Reis de Boi
Reis de Boi
Reis de Boi
Resumo
O presente estudo busca dialogar com as produções imagéticas dos grupos folclóricos Reis de
Boi, presentes na cidade de São Mateus-ES. O registro imagético associado à prática
etnográfica constitui uma integração entre o pesquisador e o objeto pesquisado permitindo
uma aproximação do “ponto de vista do outro”, considerando o que os membros de um grupo
cultural pensam sobre eles. Através da pesquisa de campo, registramos visualmente e
verbalmente as narrativas, danças, musicalidades e plasticidades apresentadas pelos
folcloristas. Identificamos que o contexto gerador de uma imagem e seus agentes produtores
encontram-se inseridos em uma coletividade e expressam uma variedade de significados e
padrões codificados culturalmente.
Palavras-chave: reis de boi, cultura, folclore, imagem
A história de um povo está impressa na sua cultura, incorporando suas raízes, mitos,
lendas, religiosidades, evolução técnica e científica. Muitos desses aspectos vão se
dissolvendo com o passar do tempo, em função de interferências da modernidade e
fenômenos da globalização. Até certo ponto, essas mudanças podem ser vistas de forma
positiva, na medida em que oferecem novos rumos para as culturas, permitindo a sua
existência.
Além da Igreja Velha e do sítio histórico (fig. 1 e 2) outros patrimônios arquitetônicos
preservam a história e cultura local como: o Museu de São Mateus 3, o Museu de Imagem e
1
Formada em Educação Artística (Licenciatura) e Artes Plásticas (Bacharelado) pela UFU. Especialista em
Educação e Mestre em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da UFRJ. Professora da Faculdade São Mateus
(UNIVC), nos Cursos de Pedagogia, Turismo e Comunicação Social. Integrante do GEPAE (Grupo de Arte
Educadores do Espírito Santo), Grupo de Pesquisa em Imagem e Cultura (PPGA-EBA/UFRJ) e Identidade das
práticas corporais (CESPCEO-UFES). E-mail: [email protected]
2
Possui Graduação (1996), Especialização (1999) e Mestrado (2009) em Educação Física pela Universidade
Federal do Espírito Santo - UFES. É Professor da Coordenadoria de Formação Geral do Instituto Federal de
Educação Ciência e Tecnologia do Espírito Santo - IFES, campus São Mateus. É coordenador e professor do
Curso de Pedagogia da Faculdade São Mateus (UNIVC). Integrante do grupo de Pesquisa Identidade das
Praticas Corporais (CESPCEO-UFES) e Coordenador do Projeto de Extensão Educação, Cultura e
Corporeidade. E-mail: [email protected]
3
Construído em 1764 para abrigar a sede do Conselho Municipal – Casa de Câmara e Cadeia. Em 1999 o prédio
foi restaurado para abrigar o Museu de São Mateus, inaugurado em fevereiro de 2001. Nele encontram-se
preservados: ferramentas, utensílios, peças de escravidão, ossadas indígenas, urnas funerárias de cerâmica Tupi e
Aratu, móveis, louças e quadros.
Som 4, o Museu Diocesano de Arte Sacra, a Casa da Estrada de Ferro, a Biquinha, a Praça do
Mirante, o Mercado Municipal, entre outros.
4
Inaugurado em fevereiro de 2002, onde se encontram expostos instrumentos musicais e fotografias da história e
cultura do município, no entanto atualmente encontra-se fechado.
sítio histórico do município e em outros locais da cidade como praças, semáforos e
construções recentes, nas quais evidenciamos a contemporaneidade da vida urbana.
A rica cultura imaterial regional é simbolizada tanto por grupos de sólida tradição
étnico-religiosa nas manifestações de Jongo, da Capoeira e dos Reis de Boi, como por grupos
modernos de dança de rua, de teatro, músicos e artistas plásticos.
Nas representações festivas da cidade de São Mateus, especificamente dos grupos
folclóricos de Reis de Boi, procuramos respostas para entender os significados relacionados à
festividade, religiosidade e expressão artístico-cultural. Entre nossas indagações procuramos
entender qual a origem e como são elaboradas as narrativas dos Reis de Boi, que sentidos
possuem essas tradições para os integrantes dos grupos, que significados são projetados nas
encenações dos folcloristas, que aspectos podem ser descritos na visualidade das imagens que
representam o grupo de Reis de Boi, qual a importância dessas festividades para a cultura
regional?
Moradores do município convivem anualmente com as apresentações desses grupos
de homens que se vestem de Reis e entre os meses de janeiro e fevereiro, visitam residências
da cidade, revivem a simbologia dos Reis Magos, contam narrativas dos bois, preservam uma
identidade cultural e um passado histórico a partir do qual reafirmam mitos, lendas, hábitos da
vida cotidiana e cultura mateense. Um aspecto que gostaríamos de ressaltar acerca deste
objeto de pesquisa é a importância de registrar, documentar e preservar a tradição e identidade
folclórica destes grupos, visto que os processos de globalização e forças econômicas muito
estão interferindo nas identidades culturais, valorização e manutenção de manifestações
festivas (HALL, 2006).
Assim, a pesquisa de campo constituiu-se um eixo metodológico norteador, como uma
possibilidade de registrar visualmente, vivenciar a pesquisa e resgatar dentro da comunidade
mateense as diferentes conexões existentes entre o passado cultural da região e a diversidade
de traços e informações culturais e artísticas transmitidas coletivamente pelos folcloristas.
Aqui estabelecemos um encontro entre arte e antropologia, no qual ambas emergem de um
sistema cultural de uma comunidade indicando a existência de uma sensibilidade coletiva.
Esta dimensão estética se expressa na vida dos indivíduos manifestando componentes
simbólicos e expressivos, sendo estes inseparáveis da realidade vivida (GEERTZ, 1997).
Em busca de imagens
Na atualidade uma ciência da imagem cada vez mais se aprimora em campos como: a
arte, a educação, a comunicação, a publicidade, a filosofia, a antropologia, a sociologia,
semiótica que exploram seus diferentes eixos investigativos. Imagens desses gruupos
presentes em nossa cultura revelam diferentes significados, expressos em múltiplas
linguagens e sistemas de signos que entrelaçados aos contextos históricos e sociais integram
práticas sociais a uma coletividade.
O sentido que resgatamos para o uso da imagem fundamenta-se em uma abordagem
antropológica, na sua capacidade de traduzir o que somos, nossas práticas, o que fazemos e
como fazemos. Seu emprego constitui uma fonte documental primária, uma vez que nossas
imagens possuem o mesmo nível de importância que os outros documentos de pesquisa
encontrados em campo.
Em nosso estudo, o uso da imagem valoriza a riqueza visual dos Reis de Boi e
considera que a visualidade das festividades encontra-se conectada a tradição oral e memórias
dos grupos estudados. Entendemos que por meio dessas diferentes representações em nossa
sociedade podemos reconhecer nossas identidades, as quais se encontram ancoradas na
história, na linguagem, na arte, na cultura e refletem diferentes projeções de sujeito
(NOVAES, 1998, p.109). Ao mesmo tempo assumimos que as “imagens não são nem um
reflexo da realidade social nem um sistema de signos sem relação com a realidade social, mas
ocupam uma variedade de posições entre estes extremos”. Elas também são plurais e
mantenedoras de estereótipos e transformações pelas quais “os indivíduos ou grupos vêm o
mundo social, incluindo o mundo da imaginação” (BURKE, 2004).
Nessas imagens encontramos “sistemas semióticos” que ligados à cultura manifestam-
se nas práticas artísticas e festivas dos Reis de Boi, ao mesmo tempo revelam uma
sensibilidade estética que participa da totalidade da vida dos folcloristas. Nesse contexto,
consideramos que a realidade social e a cultura de um povo abrangem “um padrão de
significados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos” os quais são projetados
em imagens e compõem “um sistema de concepções herdadas, expressas em formas
simbólicas por meio das quais os homens se comunicam, perpetuam e desenvolvem seu
conhecimento e suas atividades em relação à vida” (GEERTZ, 2008, p.66).
No cotidiano festivo do grupo dos Reis de Boi evidenciamos uma intensa interação de
suas encenações com a população da cidade de São Mateus. A cada ano, nos meses de janeiro
e fevereiro diferentes lares mateenses são contemplados com a visita dos Reis de Boi,
fortalecendo o sentido simbólico da passagem dos Reis Magos.
Em pesquisa de campo, antes e depois das apresentações folclóricas foi possível
dialogar com familiares e representantes dos grupos de Reis. Em um desses momentos
conhecemos o Sr. Zeca (fig.1), dono do Reis dos Laudêncios e seu sobrinho Rafael, um rapaz
ainda muito jovem, que relatou participar do grupo desde os 10 anos de idade (fig.2). Neste
relato podemos compreender a existência de uma liderança dentro do grupo e como a
iniciação dos participantes começa desde ainda na infância. Rafael também revelou que a
cada ano o grupo prepara uma nova marchinha, a qual será repetida em toda temporada de
apresentações. Ele também relatou que em alguns momentos os folcloristas representam os
Reis de Boi, em outros tocam e brincam o Jongo.
5
Maiores informações consultar: Dossiê do Jongo do Sudeste, parecer no001/GI/DPI/Iphan e processo no
0150.005763/2004-43. Brasília: IPHAN, 2005 p.5
Nesses encontros com os folcloristas foi possível conversar com o Sr. Paixão e o Sr.
Mateus, ambos integrantes dos grupos de reis dos Laudêncios. Juntos eles sempre carregam os
Reis Magos durante a procissão religiosa que tradicionalmente acontece em São Mateus, no
bairro Pedra D água (fig.3). O Sr. Paixão relatou que participa dos Reis há mais de dez anos e
que brinca no jongo há mais de 20 anos. Sua experiência como folclorista de Reis iniciou-se
aos 20 anos, no grupo de Getúlio Vargas (Comunidade São Miguel), posteriormente nos
grupos de Sebastião Vicente e Domingos Machados. Para ele a importância dos reis “está no
sangue”, tem um sentido religioso e é uma tradição trazida desde a infância.
Tanto o Sr. Mateus como o Sr. Paixão rememoram que tudo começou quando ainda
eram garotos, há muitos anos atrás. Sr. Mateus relatou que na infância tinha medo dos bichos
que apareciam nas festividades, mas seus pais sempre chamavam os reis para festejar. De
acordo com o Sr. Mateus “tudo isso vem da infância” e eles com suas apresentações não estão
deixando acabar a tradição acabar. O Sr. Mateus mencionou que dança no grupo de Reis há
20 anos e que começou a brincar aos 40 anos de idade. Ele sempre brincou no mesmo grupo,
nos Reis dos Laudêncios. Ao comentar sobre as festividades folclóricas declara: “eu gosto, eu
adoro o jongo, eu também gosto de bater o tambor, participar”. Quanto a produção de chapéus
e roupas menciona:
Portanto nesses diferentes relatos construímos imagens dos reis considerando o que os
eles dizem sobre eles mesmos. Diante de diferentes conversas e imagens, muitas informações
e subjetividades se misturavam, provocando “um contínuo vaivém entre o interior e o exterior
dos acontecimentos” (CLIFFORD, 2002). Isto ocorreu na medida em que registramos e ao
mesmo tempo selecionamos elementos a partir de nosso olhar, do que os folcloristas falavam
e posteriormente empregamos estes relatos em analises mais amplas. Sobre este aspecto, de
acordo com James (2002, p.33), podemos considerar o trabalho de campo como um método
sensível que proporciona uma observação participante, sendo tanto uma participação física:
com a própria experiência de estar no local em que se situa o objeto de estudo, quanto uma
participação que é intelectual: na qual vamos documentando e interpretando diferentes
documentos.
Essa experiência é algo real e ao mesmo tempo “intersubjetiva”, ou seja, realizada a
partir de uma interação com outros sujeitos que atuam coletivamente, por isso delimitada por
certa “autoridade etnográfica”. Nesse sentido, a escrita etnografica encontra-se imersa na
escrita, como uma forma de tradução de experiências vivenciadas para a forma textual
conferindo certa “autoridade” para o autor. Assim, mesmo transcrevendo as falas dos
folcloristas revelamos uma escolha particular das falas, enquanto pesquisadores com a
finalidade de atender nossas próprias indagações.
Essa variedade de Reis de Boi pode ser identificada pelas imagens abaixo,
registradas durante as festividades do ano de 2011 (fig. 4).
6
Atlas do Folclore Capixaba. Op. cit, p.172.
No conjunto de imagens do grupo Reis Boi dos Laudêncios identificarmos momentos
e passagens da seqüência de encenações dos folcloristas (fig. 5). Os reis cantam e fazem
coreografias, em um momento seguinte acontece a entrada do vaqueiro, a negociação com o
dono ou um representante do local onde o grupo apresenta, a entrada dos bichos (momento de
maior interação com o público), a venda da bicharada, brincadeira entre os bichos e o público,
a entrada da Catirina e a dança com o público e as marchas de encerramento.
Na festa muitas cores, movimentos, sonoridades, gestualidades estão presentes.
Evidencia-se uma relação entre o sagrado e o profano, religiosidade e festividade, fé e
divertimento com o encontro coletivo de diferentes grupos culturais: turistas, pessoas da
cidade, do campo, do bairro Pedra D`água, de municípios vizinhos, representantes políticos,
entre outros. No encontro de religiosidade e cultura existe uma busca pelo lazer, pelo
divertimento, como dizem os folcloristas, “nós brincamos os reis”. Da mesma forma em que
se homenageiam os Reis Magos, evidenciamos uma necessidade social em realizar a
festividade, como pontua Birou (1996, p.166): “a festa é uma necessidade social em que se
opera uma superação das condições normais de vida”. Por isso, elas se repetem
constantemente em nossa vida social, sendo: “um acontecimento que se espera, criando-se
assim uma tensão coletiva agradável, na esperança de momentos excepcionais” (Ibidem).
Sendo assim, uma peculiaridade das festas refere-se ao seu caráter coletivo, o qual
requer uma ação conjunta de diferentes integrantes e papéis sociais. Em alguns momentos
evidenciamos a atuação das mulheres, mas existe uma predominância da participação dos
homens. De maneira geral as mulheres colaboram com a confecção de chapéus, feitio das
roupas e arrumação dos demais acessórios das vestimentas.
As festas preservam a identidade cultural de um povo, revelam a cultura regional,
crenças, memória de grupos étnicos e a história cultural de nosso país. Conforme cita Abreu
(1999) “através das festas, pode-se conhecer melhor a coletividade e a época em que
aconteceram”, ou seja, as festividades também marcam a história de um grupo, em tempos e
espaços definidos.
Um olhar sobre os objetos utilizados pelos festeiros pode revelar toda plasticidade,
bem como elementos estéticos e expressivos que produzem seus significados. Esses
elementos caracterizam e possibilitam a simbolização dos Reis de Boi e ajudam a conservar a
tradição festiva como veremos a seguir.
Para realizar uma análise que abrangesse o conjunto de grupos de Reis de Boi em sua
totalidade, adotamos como “fio condutor” a realização de uma tradução dos diferentes eixos
presentes em suas encenações: plástico, icônico e lingüístico, especificamente no que se refere
a suas recorrências7. Para tanto resgatamos os significantes plásticos, figurações e
simultaneamente agrupamos tipologias, convergências e divergências e possíveis relações
entre os grupos de Reis de Boi.
Para Joly 8, em uma análise visual é necessário identificar para quem os registros
visuais foram produzidos, o contexto de sua produção e também conhecer as funções da
imagem. Nesse estudo as imagens foram registradas com a intenção de criar um inventário e
documentação dos grupos de Reis de Boi existentes na cidade de São Mateus. Privilegiamos a
realização do registro in loco, e captar diferentes momentos das festividades dos Reis, durante
as apresentações realizadas no ano de 2010 e 2011. Dessa maneira nossas imagens possuem
uma função estética e documental, o que demonstra sua fundamental importância para a
compreensão dos Reis de Boi.
Através do trabalho de campo e coleta de imagens aproximamos-nos dos fenômenos
estéticos e sociais relacionados a uma coletividade, como designa Mauss: “los fenómenos
estéticos constituyen uma de lãs partes más importantes de la atividade humana social, y no
simplismente del individuo” 9. Os fenômenos estéticos oferecem uma compreensão da cultura
7
Escolhemos estes eixos para a interpretação das pinturas, no entanto Mauss comenta que “ puede haber
diferentes maneras de clasificar los objetos – Según lá técnica, según a matéria,... según la matéria ”. MAUSS,
Marcel. Manual de etnografia. Lisboa: Editorial Pórtico, 1967, p.185. (Traduzido como: “podem existir
diferentes maneiras de se classificar os objetos - de acordo com a técnica, de acordo com o material,... por
assunto”). Na mesma direção Levi-Strauss apresenta que os eixos classificatórios podem variar segundo as
culturas e que “o princípio de uma classificação nunca se postula, somente a pesquisa etnográfica, ou seja, a
experiência pode apreendê-lo a posteriores”. Maiores detalhes conferir em LEVI-STRAUSS, Claude. O
pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1989, p.75.
8
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas: Papirus, 1996, p.32.
9
MAUSS, op. cit., p.147. (Traduzido por mim como: “os fenômenos estéticos são uma das partes mais
importantes da atividade social humana e não simplesmente do indivíduo”).
matérial e conjuga com um reconhecimento dos significados presentes nas festividades, sendo
também um “refazer dos objetos” localizado no entendimento de técnicas, processualidades e
artefatos presentificados na totalidade da organização social do grupo de Reis de Boi.
10
O Guia prático de antropologia expressa essa idéia relatando que “um tecido
acabado não consiste simplesmente no produto saído do tear”, mas sim em uma seqüência
completa que envolve a “apanha do algodão”, “tosquia das ovelhas”, “processo destinado a
obter a fibra”, “lavagem”, “cardação”, ou seja, todas as etapas de fabricação. Portanto no
mesmo sentido, a partir de imagens dos Reis de Boi podemos reconstruir esses fenômenos
processuais que permeiam a produção das roupas, chapéus, marchinhas e o próprio ciclo de
festividades a cada ano, dependente de todas as etapas.
A presença de roupas coloridas, chapéus, instrumentos musicais caracterizam a parte
material, sonora e visual da festa. Tudo é produzido artesanalmente, com a criatividade dos
Reis e apoio da comunidade. Na compreensão da produção coletiva de um grupo, podemos
entender que nos processos artesanais, o status do artesão opera na capacidade de cada
11
indivíduo que “conhece e realiza as atividades características em sua comunidade” , de
forma semelhante pensamos sobre as atividades dos Reis, no contexto de suas produções
plásticas e no olhar sobre cada objeto finalizado: chapéus, instrumentos, marchinhas e roupas.
Consideramos que, boa parte do potencial simbólico destes objetos artísticos reside na sua
capacidade de significar, de descrever processos de criação, de armazenar o emprego de
técnicas, recursos estéticos e leituras do mundo.
Uma análise estrutural é muito importante para a descrição de diferentes objetos
presentes na visualidade da festa, cada cor, cada forma, cada roupa pode ser tomada como um
signo e um viés de comunicação do grupo de Reis com a comunidade. Esse significado pode
12
ser compreendido nas palavras de Eco ao considerar que semiologia estuda os fenômenos
culturais como “sistemas de signos”, e encontra-se atrelada à ciência antropológica, na
capacidade significativa e simbólica da imagem, nas possibilidades de interpretar e de ver da
comunidade, bem como de suas competências cognitivas e sensíveis.
10
ROYAL ANTHROPOLOGICAL INSTITUTE OF GREAT BRITAIN AND IRELAND. Guia prático de
antropologia da Grã-Bretanha e da Irlanda. São Paulo: Cultrix, 1971. O guia oferece um roteiro de
observação para o trabalho de campo com orientações que aplicamos tanto nas pesquisas realizadas em São
Mateus, como na análise das representações dos Reis de Boi. Passagens destacam procedimentos: “deve-se fazer
uma coleção representativa”; “tirem-se fotografias, tomem-se impressões”; “o principal interesse do observador
de campo reside nos objetos e nos achados que representam o estilo de vida e as maneiras pelas quais
satisfazem as necessidades”.
11
Ibidem, p.281.
12
ECO, Umberto. A estrutura ausente. São Paulo: Perspectiva, 1987, p.3. Ainda de acordo com o autor “a
semiologia dedica-se a reconhecer os processos de decodificação pelos quais determinados significantes
correspondem a determinados significados”. Ibidem, p.43.
O contexto cultural de cada integrante do grupo e da comunidade confere uma
multiplicidade de interpretações, que se entrelaçam com as diferentes “visões de mundo”
ocasionando condições variáveis no reconhecimento dos sentidos indicados pelos
componentes plásticos e expressivos. Aqui, relacionamos as festividades e a estética dos
objetos utilizados pelos Reis de Boi a uma teoria da arte, a qual é ao mesmo tempo uma teoria
da cultura e, portanto dependente de uma semiótica da arte que permita descobrir como “os
sinais” se manifestam dentro da própria cultura que os produziu, em suas formas simbólicas e
nos produtos da experiência coletiva 13.
É relevante destacar que a amplitude de simbologias e experiências vivenciadas em
14
campo, nos coloca diante da impossibilidade de interpretar tantos sentidos, por isso de
forma imediata ao desvendarmos elementos visuais definimos propósitos, leis próprias de
organização e descobertas específicas que conferem certa temporalidade nesta análise. Sobre
este aspecto Joly (1996) acentua que as interpretações das mensagens visuais apresentam-se
subordinadas a um “condicionamento” não apenas relacionadas a sua história, mas também
pelas interrogações específicas que levantam 15. No nosso caso, realizamos inicialmente um
levantamento dos diferentes grupos folclóricos, quais os tipos de instrumentos, personagens,
roupas, e cores.
Os instrumentos
13
GEERTZ, Clifford. A arte como sistema cultural, op. cit., p.165.
14
Todo processo de interpretação remete a um “excesso de sentido, sob condição, entretanto de se
entender por excesso a abertura do sistema das leituras em que o sentido é estimulado em sua
pluralidade”. Marin analisa as diferentes leituras sobre o quadro de Poussin e como as variantes
descritivas modificam a rede significativa do quadro. MARIN, Louis. A descrição da imagem: a
propósito de uma paisagem de Poussin. In: A análise das imagens. Petrópolis: Vozes, 1974.
15
JOLY, Martine. A imagem e sua interpretação, op. cit., p. 262.
Os personagens
As peças de roupas recorrentes entre os grupos de Reis são: uma camisa branca e
chapéus. No conjunto de roupas utilizadas pelos Reis de Boi identificamos diferenciações nas
cores dos coletes, fitas e calças. Esses elementos são organizados com novos arranjos em cada
grupo e caracterizam de forma específica a visualidade das festividades dos Reis, sendo
elementos imprescindíveis para a estética das festas.
De maneira geral, nossas descrições encontram-se atreladas a um saber cultural e
solicitam comparações e associações localizadas em pontos intermediários entre arte e vida
coletiva dos grupos de Reis de Boi, mas sem com isso dar conta da variabilidade de sentidos
obtidos em cada apresentação realizada na cidade. A tradição dos grupos é de longa data e
muitos cidadãos mateenses deixaram suas contribuições possibilitando que os folcloristas
sejam caracterizados como são na atualidade.
Ao destacar a importância dos Reis de Boi para o patrimônio cultural, valorizamos os
discursos elaborados a partir da “autoridade da nação” 16. Segundo Gonçalves (1996) artistas e
intelectuais tornam-se “guardiões da cultura local” ou até mesmo “mediadores simbólicos” na
medida em que preservam, resgatam e difundem a cultura nacional. Esta característica esta
presente nas representações materiais e imateriais das festividades dos Reis de Boi.
Encontramos nos Reis de Boi um sentido de mediação cultural, uma vez que cada Rei pode
ser considerado como um “guardião da memória”, capaz de contribuir intensamente com a
produção, difusão da cultura regional capixaba, documentação festiva e histórica cultural de
São Mateus.
Destacamos a necessidade de uma política de valorização e incentivo a essas
manifestações da cultura material e imaterial para que o patrimônio cultural seja preservado.
Esse objeto de estudo apresenta ainda amplas possibilidades de análise, coleta de dados e,
portanto guarda inúmeras possibilidades para o desenvolvimento de pesquisas futuras.
Esperamos estar com esta pesquisa ajudando a escrever mais um capítulo da história de São
Mateus e cultura capixaba.
Referências
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16
Sobre estórias e alegorias consultar: GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda:
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