O Jovem - Annie Ernaux

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 37

d Livros

{ Baixe Livros de forma Rápida e Gratuita }

Converted by convertEPub
ANNIE ERNAUX

O jovem

Tradução
MARÍLIA GARCIA
Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
O jovem

OBRAS DE ANNIE ERNAUX


NOTAS
SOBRE A AUTORA
Se não escrevo as coisas,
elas não encontram seu termo,
são apenas vividas.
HÁ CINCO ANOS, passei uma noite inapropriada com um
jovem estudante que vinha me escrevendo havia um ano
e que queria me encontrar.

Muitas vezes fiz amor para me obrigar a escrever.


Queria encontrar, na sensação de cansaço e desamparo
de depois, motivos para não esperar mais nada da vida.
Nutria a esperança de que, ao fim da espera mais
violenta de todas, a de um orgasmo, eu pudesse ter
certeza de que não havia orgasmo mais intenso que a
escrita de um livro. Talvez tenha sido o desejo de
desencadear o processo de escrita de um livro — o que
eu hesitava em fazer por conta de sua dimensão — que
me levou a convidar A. para tomar uma taça de vinho na
minha casa, depois de termos jantado num restaurante
onde ele permanecera, por timidez, praticamente o
tempo todo mudo. Ele tinha quase trinta anos a menos
que eu.

Passamos a nos encontrar nos finais de semana e, nos


intervalos, sentíamos cada vez mais falta um do outro.
Todos os dias ele me telefonava de uma cabine telefônica
para não despertar suspeitas na sua companheira.
Tomados pelos hábitos de uma coabitação precoce e pelo
nervosismo com as provas da faculdade, ela e ele nunca
tinham imaginado que fazer amor pudesse ser algo além
da satisfação espaçada de um desejo. Que pudesse ser
um tipo de criação contínua. O ardor que vi em A. com
essa descoberta fortalecia ainda mais nossa relação. Aos
poucos, a aventura tinha se transformado numa história
que queríamos levar até o fim, sem saber muito bem o
que isso significava.

Quando, para minha satisfação e alívio, ele terminou


com a namorada e ela foi embora de seu apartamento,
comecei a ficar na casa dele de sexta à noite até
segunda de manhã. Ele morava em Rouen, cidade na
qual eu mesma fora estudante nos anos 1960 e que,
durante anos, eu apenas atravessava para visitar o
túmulo dos meus pais em Y. Ao chegar lá, abandonava as
compras na cozinha sem guardar nada e fazíamos amor.
Assim que entrávamos no quarto, começava a tocar um
CD que já estava no aparelho, muitas vezes do The Doors.
A certa altura, eu já não ouvia mais a música.

Até que os acordes bem marcados de “She Lives on


Love Street”, na voz de Jim Morrison, chegavam até mim
de novo. Ficávamos deitados no colchão apoiado
diretamente no piso. O trânsito era intenso àquela hora.
Os faróis projetavam luzes nas paredes do quarto pelas
janelas compridas e sem cortina. Tinha a sensação de
nunca ter me levantado de uma cama, a mesma desde
os meus dezoito anos, mas em lugares diferentes, com
homens diferentes e indiscerníveis entre si.

O apartamento dele dava para o Hôtel-Dieu, o


primeiro grande hospital de Rouen, desativado havia um
ano e em obras para se transformar na sede da
prefeitura. Ao anoitecer, as janelas do prédio acendiam e,
com frequência, ficavam assim durante toda a noite. O
imenso pátio quadrado à frente era uma vastidão
sombreada e vazia por trás dos portões cerrados. Eu
observava os telhados escuros, a cúpula de uma igreja
que despontava ao fundo. Com exceção dos vigias, não
havia mais ninguém. Foi para esse lugar, exatamente
esse hospital, que me levaram quando era estudante,
numa noite de janeiro, por conta de uma hemorragia que
tive depois de um aborto clandestino. Não lembrava em
qual ala do hospital ficava o quarto que eu tinha ocupado
por seis dias. Essa coincidência absurda, quase
inacreditável, era um sinal de que meu encontro com ele
estava carregado de mistérios e de que a nossa história
precisava ser vivida.

Nas tardes de domingo, quando chovia, ficávamos


debaixo do edredom e acabávamos dormindo ou
cochilando. Em meio ao silêncio da rua, emergiam vozes
de raros passantes, muitas vezes imigrantes que
moravam num centro de acolhimento próximo. Sentia-me
então de volta a Y., quando, criança, ficava lendo ao lado
da minha mãe, que tinha adormecido de exaustão
vestida sobre a cama, domingo depois do almoço, a loja
fechada. Eu deixava de ter uma idade e perambulava de
um tempo a outro numa espécie de semiconsciência.

Na casa dele, me deparava com o desconforto e com


condições rudimentares de instalação que eu mesma
conhecera no começo da vida conjugal com meu marido,
quando éramos estudantes. Nas placas elétricas do
fogão, cujo termostato já não funcionava, só dava para
preparar bifes, que corriam o risco de logo grudar no
fundo da frigideira, macarrão ou arroz, que cozinhavam
em meio a incontroláveis transbordamentos de água. A
geladeira velha e desregulada congelava as folhas no
recipiente de salada. Para suportar o frio úmido dos
quartos, com seu pé-direito alto e suas janelas soltas,
impossíveis de esquentar com aquecedores elétricos
deteriorados, era preciso usar três casacos de uma vez.

Ele me levava aos cafés frequentados por jovens, o Au


Bureau, o Big Ben. Convidava-me para comer no
supermercado Jumbo. Sua rádio preferida era a Europe 2.
Todas as noites assistia na tevê a Nulle Part Ailleurs. Na
rua, todo mundo que ele cumprimentava era jovem,
quase sempre estudante. Quando parava para falar com
alguém, eu ficava afastada e seu conhecido me lançava
um olhar furtivo. Depois, ele me contava sobre o
percurso universitário daquele que tínhamos acabado de
encontrar, descrevia seus êxitos, suas dificuldades. De
vez em quando, de longe e com discrição, pedindo para
eu não me virar, mostrava-me um de seus professores da
faculdade de letras. Ele me arrancava da minha geração,
mas eu não pertencia à dele.

O seu ciúme extremo — ele me acusou de ter


recebido um homem em casa porque o assento da
privada estava levantado — mostrava que era inútil
duvidar da paixão dele por mim e absurda a fantasia que
eu criava de censura por parte de seus colegas, como é
que você consegue sair com uma mulher que entrou na
menopausa?
Em meus 54 anos, nunca antes eu fora, para um
amante, objeto de tanto ardor como o que ele me
devotava.

Por estar sujeito a uma vida precária e à indigência


dos estudantes pobres — endividados, seus pais viviam
num subúrbio parisiense próximo, com um salário de
secretária e contratos temporários —, ele só comprava os
produtos mais baratos ou em promoção, como queijos A
Vaca que ri e camembert de cinco francos. Ia até o
Monoprix para comprar uma baguete porque lá custava
cinquenta centavos a menos que na padaria ao lado. Ele
se expressava, de modo espontâneo, por meio de gestos
e reflexos condicionados por uma falta de dinheiro
contínua e herdada. Uma espécie de desembaraço que
lhe permitia se virar no dia a dia. Nos supermercados,
fazer a limpa no prato com amostras de queijo oferecido
por um funcionário. Em Paris, para ir ao banheiro sem ter
de pagar, entrar decidido num café, localizar o toalete e,
em seguida, sair com desenvoltura. Usar o parquímetro
para ver a hora (ele não tinha relógio) etc. Toda semana
ele jogava na loteria esportiva, apostando, como é
natural em quem passa por dificuldades, tudo no acaso:
“Um dia vou ganhar, é inevitável”. Ao fim das manhãs de
domingo, assistia ao Téléfoot, com Thierry Roland. Para
ele, o momento exato em que um jogador faz um gol e
toda a torcida do Parc des Princes se levanta para
aclamá-lo era a imagem perfeita da felicidade absoluta.
Só de pensar na cena, ele já estremecia.

Quando eu lhe servia comida, dizia “stop” ou “está


bom” em vez de “obrigado”. Chamava-me de “patroa” ou
de “mãezona”. E se divertia com os gritinhos que eu
dava ao saber que ele tinha fumado haxixe. Nunca tinha
votado, não havia tirado seu título de eleitor. Não
acreditava ser possível transformar qualquer coisa na
sociedade, para ele bastava deslizar por dentro das
engrenagens e se esquivar do trabalho, aproveitando os
direitos que lhe eram conferidos. Era um típico jovem dos
dias de hoje, convicto de que “cada um sabe onde pisa”.
O trabalho significava apenas uma obrigação à qual ele
não queria se submeter se fossem possíveis outras
formas de viver. Para mim, ter um trabalho fora a
condição para a minha liberdade e continuou sendo
diante da incerteza do sucesso dos meus livros, mesmo
que eu admita que a vida de estudante tenha me
parecido mais rica e prazerosa.

Trinta anos antes, eu teria me afastado dele. Na


época, não queria identificar num rapaz as marcas da
minha origem humilde, tudo o que eu considerava
“bronco” e que sabia que estava em mim mesma. Agora,
não me importava que ele limpasse a boca com um
pedaço de pão ou que pusesse o dedo no copo para
indicar que não queria mais vinho. O fato de eu me dar
conta dessas marcas — e, algo talvez ainda mais sutil, de
que ficasse indiferente a elas — era a prova de que já
não pertencia ao mundo dele. Com meu marido, em
outros tempos, eu me sentia como alguém do povo; com
A., eu parecia uma filhinha de papai.
Ele era o portador da memória do meu mundo de
origem. Mexer o açúcar na xícara de café para diluir mais
rápido, cortar o macarrão, picar a maçã em pedacinhos
para, em seguida, pegar com a ponta da faca — tantos
gestos esquecidos que, de modo perturbador, eu
reconhecia nele. Remontava aos meus dez, quinze anos,
e eu estava de novo sentada à mesa com minha família e
meus primos, que tinham, como A., a pele muito branca
e as bochechas vermelhas, características típicas dos
normandos. Ele concretizava o meu passado.

Com ele eu percorria todas as épocas da vida, da


minha vida.

Eu o levava aos lugares que tinha frequentado


durante meus anos de estudante. Os cafés Le Métropole
e Le Donjon, perto da estação de trem. A faculdade de
letras, na Rue Beauvoisine, desativada desde sua
transferência para o campus de Mont-Saint-Aignan, com
a parte externa mantida exatamente como era nos anos
1960, com seu quadro de avisos protegido por uma
grade — só o relógio na fachada estava parado. O
pequeno alojamento universitário da Rue d’Herbouville e,
ao lado, o refeitório, o qual, depois de termos entrado,
subido os poucos degraus que davam no hall, idêntico,
com um aquecedor no meio e as portas no mesmo lugar,
produziu em mim a sensação, durante longos minutos,
de que eu estava vagando pelo tempo inominável de um
sonho.

O amor sobre o colchão que ficava no piso do quarto


glacial, o lanche num canto da mesa e a bagunça juvenil
de sua casa, à qual eu tinha me sujeitado de modo tão
rápido, provocavam em mim um sentimento de
repetição. Ao contrário da época de meus dezoito, vinte e
cinco anos, em que estava de todo imersa no que
acontecia, sem passado nem futuro, em Rouen com A. eu
tinha a impressão de voltar a representar a peça da
minha juventude, com cenas e gestos que já tinham
acontecido. Ou, ainda, a impressão de escrever/viver um
romance cujos episódios ia construindo com cuidado. O
episódio do final de semana no Grand Hôtel, de Cabourg,
ou o de uma viagem a Nápoles. Alguns já haviam sido
escritos, como o da escapulida a Veneza, para onde eu
fora pela primeira vez com um homem em 1963, onde eu
conhecera, em 1990, um jovem italiano. Até mesmo levá-
lo a uma encenação de A cantora careca, na Huchette,
era a duplicação de uma iniciação posta em prática com
cada um de meus filhos, no início da adolescência deles.

Nosso relacionamento podia ser encarado pelo ponto


de vista da conveniência. Ele me proporcionava prazer e
me fazia reviver coisas que eu nunca teria imaginado
poder reviver. Que eu lhe oferecesse viagens, que lhe
poupasse de buscar um emprego que lhe deixaria menos
disponível para mim, parecia-me um acordo justo, um
bom negócio, sobretudo porque era eu que estabelecia
as regras. Eu ocupava uma posição dominante e usava
as ferramentas de uma dominação que, no entanto,
sabia ser frágil em uma relação amorosa.

Eu me sentia autorizada a dar algumas respostas


rudes, sem saber se o motivo era a dependência
econômica dele ou sua pouca idade. Não me enche o
saco, ordem grosseira que o chocava e que eu nunca
tinha endereçado a ninguém antes dele.

Eu gostava de pensar em mim mesma como aquela


que poderia transformar a vida dele.

Em mais de um aspecto de sua vida — literário,


teatral, de modos burgueses — eu cumpria um papel de
iniciadora, mas o que ele me fazia viver também era da
ordem de uma experiência iniciática. O principal motivo
para eu querer seguir adiante com essa história era que,
de certo modo, ela já tinha acontecido, e meu papel ali
era o de uma personagem de ficção.
Tinha consciência de que fazer isso com esse jovem,
que vivia as coisas pela primeira vez, representava uma
forma de crueldade. Invariavelmente, em relação aos
projetos de futuro que ele tinha comigo, eu respondia: “O
presente me basta”, sem nunca dizer que o presente era,
para mim, apenas um passado duplicado. Mas essa
duplicidade, da qual ele costumava me acusar em seus
acessos de ciúmes, não se situava, ao contrário do que
ele imaginava, no desejo que eu poderia ter sentido por
outros homens e não por ele, nem mesmo, como ele
estava convencido, na memória que eu tinha de meus
amantes. Essa duplicidade era inerente à própria
presença de A. em minha vida, que ele tinha
transformado num estranho e contínuo palimpsesto.

Na minha casa, ele usava o roupão com capuz que


tinha envolvido outros homens. Quando ele o vestia, eu
não via nenhum deles. Diante desse tecido felpudo cinza
claro, eu experimentava apenas o prazer dos meus anos
vividos e da identidade do meu desejo.

Acontecia de conversarmos sobre o dia em que ele se


casaria e teria um filho. Esse futuro que evocávamos,
olhos nos olhos, num abraço apertado, os dois à beira
das lágrimas, não era, de modo algum, triste. Ele tornava
o momento presente tão mais intenso e pungente que o
vivíamos como se fosse passado. Comungávamos, na
fantasia, nossa perda recíproca com um prazer extremo.
Meu corpo não tinha mais idade. Era necessário o
olhar pesado e reprovador de clientes ao nosso lado num
restaurante para que eu me desse conta desse corpo.
Olhar que, longe de me envergonhar, reforçava minha
determinação de não esconder meu relacionamento com
um homem “que poderia ser meu filho”, enquanto
qualquer sujeito de cinquenta anos podia se exibir com
uma moça que claramente não era sua filha sem
nenhuma reprovação. Mas eu sabia, vendo esse casal
maduro me esquadrinhando, que, se eu estava com um
jovem de vinte e cinco, era para não precisar ter diante
de mim, o tempo todo, o rosto marcado de um homem
da minha idade, o rosto do meu próprio envelhecimento.
Diante do rosto de A., o meu também era jovem. Os
homens sempre souberam disso, eu não entendia por
que eu seria proibida de fazer o mesmo.

Às vezes notava, em algumas mulheres da minha


idade, o desejo de fisgar o olhar de A., seguindo, eu
supunha, uma lógica simples: se ele gosta dela, prefere
as mulheres maduras, então por que não gostaria de
mim? Elas conheciam o próprio lugar dentro da realidade
do mercado sexual; o fato de haver uma transgressão
operada por uma de suas semelhantes enchia-lhes de
esperança e ousadia. Por mais irritante que fosse tal
atitude de querer fisgar — quase sempre discretamente
— o desejo do meu parceiro, não me incomodava tanto
quanto o atrevimento de algumas jovens que tentavam
seduzi-lo na minha frente, como se a presença de uma
mulher mais velha ao lado dele fosse um obstáculo
negligenciável, até mesmo inexistente. Pensando bem, a
mulher madura era, contudo, mais perigosa que a jovem
— a prova disso era que ele tinha trocado uma de vinte
anos por mim.

Íamos ver filmes cujo tema era o relacionamento entre


um rapaz e uma mulher mais velha. Saíamos frustrados
do cinema, irritados por não poder nos identificarmos
com o roteiro, que retratava uma mulher que implorava e
acabava abandonada e destroçada. Eu também não era
a Léa de Chéri, romance de Colette, que eu relera. O que
eu sentia nessa relação tinha uma natureza indizível, na
qual se misturavam o sexo, o tempo e a memória. Por um
instante, considerava A. como o jovem pasoliniano de
Teorema, uma espécie de anjo revelador.

Como em todas as situações que infringem as normas


da sociedade, identificávamos de imediato os casais na
mesma situação que a nossa. Trocávamos olhares
coniventes. Sentíamos necessidade de ter semelhantes.
Era impossível, de fora, esquecer que vivíamos essa
história debaixo do olhar da sociedade, o que eu aceitava
como um desafio para mudar as convenções.
Na praia, deitada ao lado dele, sabia que as pessoas
ao redor ficavam nos espiando, a mim sobretudo, e que
elas examinavam meu corpo, medindo seu estado
avançado, quantos anos ela deve ter? Se estivéssemos
deitados separados na areia, nenhum de nós receberia
uma atenção especial. Ao se deparar com o casal que
nitidamente formávamos, os olhares passavam a ser
descarados, quase estupefatos, como se diante de uma
união antinatural. Ou um mistério. O que as pessoas
viam não éramos nós, e, sim, de modo confuso, o
incesto.

Certo domingo, em Fécamp, caminhávamos de mãos


dadas no cais perto do mar. De uma ponta à outra, fomos
acompanhados por todos os olhares das pessoas
sentadas no parapeito de cimento que margeava a praia.
A. me fez perceber que éramos mais inaceitáveis que um
casal de homossexuais. Lembrei-me de outro domingo de
verão com meus pais, aos dezoito anos, em que todos os
olhares me seguiram por causa do meu vestido, que era
justo demais, fato que me valeu a censura irritada de
minha mãe por eu não ter colocado a cinta elástica que,
em suas palavras, “fazia vestir melhor”. Agora eu me
tornava de novo a mesma moça escandalosa. Desta vez,
porém, sem um pingo de vergonha, com um sentimento
de vitória.
Nem sempre eu tinha sido assim tão gloriosa. Numa
tarde em Capri, diante do espetáculo de moças jovens
bronzeadas atravessando a piazzetta na qual bebíamos
nossos Camparis, lancei-lhe a pergunta: “A juventude te
seduz?”. A expressão de surpresa e a gargalhada que ele
soltou em seguida me fizeram perceber minha gafe. Era
uma pergunta para manifestar minha capacidade de
compreensão e minha abertura de espírito, de modo
algum buscava conhecer a verdade do desejo dele, do
qual eu tinha acabado de ter uma prova uma hora antes.
Ora, a pergunta não só indicava que eu já não era mais
jovem, como também o excluía dessa categoria na qual
eu o havia encaixado, como se estar comigo o afastasse
da juventude.

Naturalmente minha memória me trazia de volta


imagens da guerra, de tanques americanos na Vallée, em
Lillebonne, de cartazes do general De Gaulle com seu
quepe, das manifestações de maio de 1968, e eu estava
com alguém cujas lembranças mais antigas remontavam,
se muito, à eleição de Giscard d’Estaing.[1] Ao lado dele,
minha memória parecia infinita. Essa espessura de
tempo que nos separava era de uma grande delicadeza e
dava mais intensidade ao presente. Não me ocorria o
pensamento de que essa minha longa memória do tempo
de antes do nascimento dele fosse o par, a imagem
inversa, da memória que ele teria depois da minha
morte, com eventos e personagens políticos que eu
nunca terei conhecido. De todo modo, pela sua própria
existência, ele era minha morte. Assim como meus filhos.
E do modo como eu fora para a minha mãe, falecida
antes do fim da União Soviética, mas que se lembrava
dos badalos dos sinos atravessando o país no dia 11 de
novembro de 1918.[2]

Ele queria ter um filho comigo. Esse desejo me


perturbava e me dava o sentimento de uma injustiça
profunda por estar em plena forma física, mas não poder
mais conceber. Era espantoso saber que, graças à
ciência, agora era possível engravidar depois da
menopausa, com o óvulo de outra mulher. Mas eu não
tinha nenhuma vontade de tentar o procedimento que
meu ginecologista tinha proposto. Apenas me divertia
com a ideia de uma nova maternidade, algo que, depois
do nascimento do meu segundo filho, aos vinte e oito
anos, eu nunca mais tinha desejado. Talvez ele estivesse
confundindo seus próprios desejos. Certo verão, em
Chioggia, aguardando o vaporetto para voltar a Veneza,
ele me disse: “Eu queria estar dentro de você e sair de lá
para me parecer com você”.

Ele me mostrava fotos de quando era criança, franzino


e cacheado, e adolescente, mal-encarado de cabelo
comprido. Eu não sentia qualquer desconforto de mostrar
para ele minhas fotos de menina e adolescente. Tanto
uma situação quanto a outra estavam bem distantes de
mim. Precisei me obrigar a pegar as fotos dos meus
vinte, vinte e cinco anos, escolhendo a mais bonita por
vaidade, sabendo que seria justamente ela que tornaria
mais cruel a comparação com meu rosto de hoje, mais
magro, mais duro. Era outra moça que ele via, cuja
realidade, se fosse buscada na mulher atual, sempre lhe
escorreria pelas mãos. O desejo que essa moça sem
rugas poderia inspirar nele, essa moça de longos cabelos
castanhos que ele nunca veria, tal desejo não tinha
solução. Como revelou, na entrelinha, sua reação tão
espontânea, “essa foto me deixa triste”.

Um dia, enquanto almoçávamos num café em Madri,


tocou “Don’t Make Me Over”, música de Nancy Holloway.
Nesse momento eu revi o alojamento universitário de
moças, em Rouen, e minha busca, na Rue Eau-de-Robec
e na Place Saint-Marc, totalmente desnorteada, pela
placa de um médico que aceitasse fazer em mim um
aborto, em novembro de 1963. Kennedy tinha acabado
de ser assassinado. Eu olhei para A. comendo batata frita
na minha frente. Ele era um pouco mais velho que o
estudante que tinha me engravidado e que, sem saber,
tinha deixado gravada em minha memória essa música
de Nancy Holloway em voga na época, dando-lhe um
sentido de amor inconsequente e de desamparo, meu
estado de espírito de então. Pensei que, para mim, era
irrelevante se a ouvia com um homem ou com outro, ela
teria para sempre o mesmo sentido. Se, depois, ouvindo-
a de novo, eu me lembrasse também do café na Puerta
del Sol, com A. à minha frente, esse momento só teria
valor por ter sido o pano de fundo para a irrupção de
uma lembrança violenta. Seria apenas uma segunda
lembrança.

Parecia-me, cada vez mais, que eu poderia acumular


imagens, experiências, anos, sem ter nenhum outro
sentimento além da própria repetição. Tinha a impressão,
ao mesmo tempo, de ser eterna e de estar morta, como
vejo minha mãe num sonho que tenho com frequência.
Ao acordar, durante alguns instantes, tenho certeza de
que ela realmente vive sob essa dupla forma.

Essa sensação era um sinal de que o papel


desempenhado por ele — de alguém que abria as portas
do tempo na minha vida — tinha chegado ao fim. Talvez
o meu papel, de iniciadora na vida dele, também tivesse
acabado. Ele deixou Rouen e foi para Paris.
Depois de muito tempo dando voltas em torno do
tema, comecei a escrever a narrativa sobre o meu aborto
clandestino. Quanto mais eu avançava na escrita desse
acontecimento que tinha se passado antes mesmo do
nascimento dele, mais sentia um desejo irresistível de
terminar com A. Como se eu quisesse liberá-lo e expulsá-
lo, assim como eu tinha feito com o embrião mais de
trinta anos antes. Trabalhava incessantemente para
concluir meu texto e também, por uma estratégia
decidida de afastamento, para romper com ele. Com
poucas semanas de diferença, a ruptura coincidiu com o
fim do livro.

Era outono, o último do século 20. Percebi que estava


feliz por poder entrar sozinha e livre no terceiro milênio.

1998-2000
2022
Obras de Annie Ernaux

Les armoires vides [Os armários vazios, 1974]


Ce qu’ils disent ou rien [O que dizem ou nada, 1977]
La femme gelée [A mulher fria, 1981]
O lugar [1983]
Une femme [Uma mulher, 1987]
Passion simple [Paixão simples, 1991]
Journal du dehors [Diário do exterior, 1993]
A vergonha [1997]
Je ne suis pas sortie de ma nuit [Eu não saí da minha noite, 1997]
O acontecimento [2000]
La vie extérieure [A vida exterior, 2000]
Se perdre [Se perder, 2001]
L’occupation [A ocupação, 2002]
Os anos [2008]
L’autre fille [A outra filha, 2011]
L’atelier noir [O ateliê preto, 2011]
Retour à Yvetot [Retorno a Yvetot, 2013]
Regarde les lumières mon amour [Olhe para as luzes, meu amor, 2014]
Mémoire de la fille [Memória da menina, 2016]
Hôtel Casanova [Hotel Casanova, 2020]
O jovem [2022]
Notas

[1] Valéry Giscard d’Estaing, presidente da França de 1974 a 1981. (N.E.)

[2] Data em que, na cidade de Compiègne, na França, foi declarado o


Armistício entre os Aliados e a Alemanha na Primeira Guerra Mundial. (N.E.)
Catherine Hélie

ANNIE ERNAUX nasceu em 1940, em Lillebonne, na França.


Estudou na Universidade de Rouen e foi professora do
Centre National d’Enseignement par Correspondance por
mais de trinta anos. Seus livros são considerados
clássicos modernos na França. Em 2022, Ernaux recebeu
o prêmio Nobel de literatura pelo conjunto de sua obra.
Copyright © 2022 Éditions Gallimard
Copyright da tradução © 2022 Editora Fósforo

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser


reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum
meio sem a permissão expressa e por escrito da Editora Fósforo.

Título original: Le jeune homme

EDITORAS Rita Mattar e Eloah Pina


ASSISTENTE EDITORIAL Mariana Correia Santos
PREPARAÇÃO Fred Spada
REVISÃO Eduardo Russo e Gabriela Rocha
DIRETORA DE ARTE Julia Monteiro
CAPA Bloco Gráfico
IMAGENS Arquivo privado de Annie Ernaux (direitos reservados)
TRATAMENTO DE IMAGENS Julia Thompson
PROJETO GRÁFICO Alles Blau
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Página Viva
VERSÃO DIGITAL Marina Pastore

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ernaux, Annie
O jovem [livro eletrônico] / Annie Ernaux ; tradução Marília Garcia. — São
Paulo : Fósforo, 2022.
ePub

Título original: La jeune homme.


ISBN 978-65-84568-18-1

1. Ernaux, Annie, 1940- 2. Escritoras francesas - Autobiografia 3. Literatura


francesa 4. Relacionamentos I. Título.

22-126038 CDD-848.092

Índice para catálogo sistemático:


1. Escritoras francesas : Autobiografia 848.092

Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380


Editora Fósforo
Rua 24 de Maio, 270/276
10o andar, salas 1 e 2 — República
01041-001 — São Paulo, SP, Brasil
Tel: (11) 3224.2055
[email protected]
www.fosforoeditora.com.br

Você também pode gostar