Asasassa
Asasassa
Asasassa
AVALIAÇÃO DE ÁFRICA:
HISTÓRIA, HISTORIOGRAFIA DE ÁFRICA E SUAS DIÁSPORAS
Guarulhos
2023
introdução:
Introdução
O continente africano, quando mencionado, majoritariamente é visto como uma unidade, mas
não exatamente assim. Ao se estudar profundamente a África, pode-se notar três grandes divisões, as
quais marcam como cada região do continente evoluiu e se desenvolveu1. Na África Ocidental, assim
como na Central, tem uma estrutura de vida baseada na terra – os povos que se localizam nestas
porções do continente não veem a necessidade de desenvolver habilidades estritamente comerciais ou
que visem esse ponto, são pautadas na evolução da terra para suprir suas necessidades, as relações com
os estrangeiros têm um aspecto mais religioso e de poder, onde se faz os casamentos para aumentar a
influência de um governante; se há um sacrifício a ser feito, deve-se ser usado o de fora que foi
acolhido; enquanto suas histórias vem do saber e oralidade2. O que neste ponto entra em contraste com
a África Oriental, em sua grande parte a terra não fornece o sustento e a maneira encontrada para a
subsistência é o mar, seu domínio e desenvolvimento de técnicas para tal. O comércio flui como
principal base dessa região e com isso uma imensa troca cultural entre povos de terras banhadas pelo
Oceano Índico3, que por sua vez também quebra um paradigma de uma África isolada até a chegada
dos europeus.
Adentrando mais ao tema referente à porção Ocidental do continente africano, assim
como seu fragmento central, há, além da forte estrutura pautada na terra, metais preciosos
com um acesso relativamente fácil, entre outros produtos como o marfim e o material humano
majoritariamente comercializado, tipicamente chamado de escravos4, os quais suprem a
necessidade de trabalho das potências europeias, que divergem em como os direitos
trabalhistas devem ser aplicados – se visto a forma de vida na costa Ocidental africana e
trabalhadores europeus com seus “direitos”5. Essa relação com a chegada dos portugueses a
Angola inicia uma intensa troca das potências regionais com os comerciantes lusitanos. Um
dos grandes reveses que esse início das interações traz nessa porção do continente é a quebra
parcial das sociedades africanas ali presentes. “Além desses efeitos demográficos, os
historiadores interessados em história social e política, em consonância com Walter Rodney,
argumentaram que o comércio de escravos provocou uma ruptura social (como o aumento de
conflitos e o consequente prejuízo militar), alterou de forma adversa os sistemas judiciais ou
1
FEIRMAN, Steven African History and the dissolution of world history. In: Bates, Mudinbe &
Bar. Africa and Diciplines. Chigago, London: The University of Chicago Press, 1993. Pág. 2 - 5.
2
FEIRMAN, Steven African History and the dissolution of world history. In: Bates, Mudinbe &
Bar. Africa and Diciplines. Chigago, London: The University of Chicago Press, 1993. Pág.12.
3
SHERIFF, Abdul M. H. A costa da África Oriental e seu papel no comércio marítimo. In.:
GAMAL, Mokta. História Geral da África. Vol. 1 - História Antiga. Brasília: UNESCO, 2010. Pág.
568.
4
Como é mencionado por THORNTON, John em seu texto A África e a formação do mundo
atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro: Campus, 2005. Introdução e capítulo 1. O nascimento do
mundo atlântico. PP. 41-865, na pág. Pág. 142-149.
5
Vale-se ressaltar que a expressão “Direito” só foi utilizada graças a falta de um conceito melhor para
explicar o processo de “não escravização” do homem europeu; não se refere diretamente aos direitos
trabalhistas conquistados futuramente.
ampliou a desigualdade.”6 É de se questionar o ponto de vista da África sendo harmônica e
unida antes dessa chegada, mas deve-se atentar ao fato de como a própria estrutura de vida
acaba resultando nesse processo todo.
Se começarmos a buscar entender o funcionamento da África Oriental, o
desenvolvimento do lado Ocidental se altera significativamente. Como dito anteriormente,
essa área funcionava de forma mais comercial e seu terreno não favorecia a vida baseada na
terra7. Desta forma, se tem uma população mais focada em zonas que favorecem o contato
com as demais culturas e que pode ser vista de forma mais atrativa, dando início ao
desenvolvimento de embarcações para navegação e exploração do índico e conexões de laços
de comércio; afinal, tendo em vista os ditos pelo historiador Abdul Sheriff: “essa porção da
8
África não fica fechada nos últimos dois mil anos" ,mas sim com uma fortíssima rede de
conexões com árabes, indianos e o próprio mediterrâneo. Essa circulação de culturas e povos
dá início a uma sociedade chamada de Swahilis, os quais tanto desenvolvem a escrita, uma
vez que a base de sua sociedade é o comércio e troca, tanto quanto o cálculo.
Em consequência desses avanços, em como as sociedades e a forma de vida do lado
Oriental do continente diverge das zonas centrais e Ocidental, temos o baixo comércio de
escravos, uma vez que a troca de culturas, principalmente com os árabes, traz a islamização
da região e, de acordo com a cultura e religião, um árabe não pode escravizar o outro. Assim
como a chegada dos portugueses e seus interesses nos recursos de luxo da região e no
comércio de escravos não sendo favorável pela falta de melhores rotas e desenvolvimento de
passagem pelo interior do continente à época.
6
THORNTON, John. A África e a formação do mundo atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro:
Campus, 2005. Introdução e capítulo 1. O nascimento do mundo atlântico. PP. 41-865 Pág. 123.
7
Ibid. SHERIFF.
8
Ibid. SHERIFF.
Segunda Parte:
Relação entre a África e o Velho Mundo.
O continente africano sempre teve uma conexão e relações estáveis com a Ásia e a
Europa, principalmente ao se considerar a África Ocidenta e a parte banhada pelo
mediterrâneo, em fatores que variam entre o comércio, diplomacia e até mesmo trocas
culturais. Desde a Grécia Antiga, por exemplo, já era comum trocas comerciais entre
cidades-estado gregas e egípcias9. Cartago, as costas do Mar Mediterrâneo, conseguiu formar
um reino comercial que fez frente a Roma em ascensão e estabeleceu colônias em vários
pontos da região da África Mediterrânea e Europa; mesmo o Egito que caiu e se viu dominado
inúmeras vezes antes de finalmente proclamar sua independência já no “contemporâneo”
século XX, manteve um papel importantíssimo dentro da geopolítica mediterrânea. Dessa
forma é difícil ignorar a função do continente dentre o jogo geopolítico presente no Velho
Mundo. Embora isso tenha sido de fato negado através da ideia trazer a “civilização” a esses
povos, ou até mesmo de um apagamento da importância que ele teve para a manutenção das
grandes navegações.
O Egito foi por muito tempo considerado um ponto estratégico para os povos que
viviam no Mediterrâno devido ao Nilo, graças ao seu consequente potencial agrícola, sendo
disputado por gregos, romanos, persas, fenícios, ingleses, franceses, otomanos e outros povos
que se interessaram pela região a ponto de destinar recursos humanos e financeiros em uma
tentativa de assegurar seu domínio; na Roma Republicana, em período cesariano e em
princípio de início do período Imperial, o Egito passou, em um curto espaço de tempo, de um
estado vassalo a uma província de Roma.
Embora o Egito não tenha sido o “protagonista” no que se refere ao era cesariana, aos
Idos de Março ou até mesmo ao período agostiniano, é interessante notar que os inimigos de
César e de seu sobrinho, Augusto, tenham decidido se refugiar justamente debaixo das saias
reais da Cleópatra e não em outro lugar10. O domínio romano no Mediterrâneo também serviu
de conexão entre os dois continentes, era comum que animais e até mesmo escravos da África
fossem negociados por romanos para a realização dos famosos jogos de gladiadores.11
9
Heródoto traz interessantes debates acerca das diferentes formas de interpretação de mundo e de vida
entre egípcios e gregos. Ele não só aponta o Egito como o fundador da ideia do calendário dividido em
12 partes como também se mostra profundamente interessado em entender o motivo da instabilidade
do Rio do Nilo. Ele até traz uma citação interessante onde os egípcios alegavam que os gregos
morreriam de fome em caso de seca por dependerem da “água que cai do céu”. (Heródoto, “Heródoto
Histori: O Relato da Guerra entre Gregos e Persas”, Volume 1, Editora Nova Fronteira, 2019.).
10
Montanelli, Indro. “História de Roma: Da fundação à Queda do Império.” Edição Português,
2017. pg. 200, 218.
11
Indro Montanelli reforça o gosto e apreciação dos romanos por lutas entre animais selvagens e
principalmente exóticos, “[...]entre elefantes, ursos, lobos, crocodilos, hipopótamos, jirafas,
linces,etc.,[...] Leões contra tigres, tigres contra leopardos, ursos contra lobos.” (Montanelli, Indro.
“História de Roma: Da fundação à Queda do Império.” Edição Português, 2017. pg. 283.
Após a queda de
Roma e o início da
“Idade Média”, essa
conexão não se encerrou
de forma alguma, em
especial quando
voltamos a análise ao
período da “Baixa Idade
Média”, onde os reinos
europeus se
centralizavam e as
relações diplomáticas
12
cresciam. Os reinos da península itálica, dado a sua posição estratégica no Mediterrâneo,
realizavam cada vez mais missões diplomáticas em busca de acordos comerciais; os irmãos
Bellani retratam esse fato na obra “São Marcos Pregando em Alexandria”13.
Ao olhar de forma superficial para a pintura que apresenta São Marcos de frente a um
grupo de venezianos e diante de um conjunto de figuras orientais misturadas aos europeus, é
possível ver em segundo plano uma imagem dominada pela cidade de Alexandria, mostrando
a grandeza de uma basílica bizantina, trazendo uma mistura de Veneza e Bizâncio. É possível
dizer que o quadro geral se esforça para trazer com exatidão a diferença cultura entre os
venezianos e os povos orientais ali representados – turcos, mamelucos egípcios, mouros do
norte da áfrica, etc – parecendo tentar dar a impressão de “cristão pregando para os incultos”;
porém, Jerry Brotton entende que os irmãos Bellini pretendiam outra coisa: “Embora São
Marcos esteja vestido como um romano antigo, de acordo com sua vida em Alexandria no
século I, os trajes da audiência são reconhecidamente do final do século XV, assim como as
construções ao redor. Os Bellini se esforçaram para descrever a mistura de povos e culturas
numa cena que evoca tanto a igreja ocidental quanto o bazar oriental. [...] Ao mesmo tempo
que evoca o mundo de Alexandria e a vida de São Marcos no século I, os artistas também
desejavam retratar o relacionamento de Veneza com Alexandria contemporânea no final do
século XV”14. Com o comércio cada vez mais “renascido” dentro da Europa, seria nada
menos do que normal que os povos e reinos estabelecessem relações diplomáticas com os
africanos e asiáticos.
12
BROTTON, J. O Bazar do Renascimento. São Paulo: Grua: 2009. pg. 10-11.
13
A obra pode ser encontrada de modo digital e de exposição gratuita através do site Meisterdrucke;
link de acesso:
https://www.meisterdrucke.pt/impressoes-artisticas-sofisticadas/Gentile-Bellini/79289/São-Marcos-Pre
gando-em-Alexandria,-Egito,-1504-07.html; acesso em 28/05/2023.
14
BROTTON, J. O Bazar do Renascimento. São Paulo: Grua: 2009. pg. 40-41
Algum tempo depois, com o início do processo das grandes navegações, para o reino
português todo o processo de exploração e procura de uma rota para as “Índias” tenha sido
mantido devido ao comércio ao longo da costa africana – principalmente com a zona atlântica.
Detalhe que esse interesse em comércio aparenta ter sustentado a defesa do investimento de
enormes somas de capital nessas expedições, assim como de material humano, que Portugal a
época com seus pouco mais de um milhão de habitantes contava praticamente nos dedos. O
autor Luiz Filipe F. R. Tomaz em sua obra “Dom Manuel, a Índia e o Brasil” detalha a maior
predisposição da corte de Dom Manuel, o Venturoso, em focar na criação e estabelecimento
de redes comerciais entre Portugal e os povos da costa africana, em especial graças aos
produtos similares à pimenta-malagueta e o marfim15. Dessa forma, o processo de exploração,
conquista religiosa e política se estabeleceram sustentadas por uma política de incentivo
comercial com a costa africana16. O interesse de Portugal em estabelecer comércio com povos
do litoral africano pressupõe o fato de que se havia algo para negociar; o estabelecimento de
um comércio com os povos locais aparenta, em última instância, o principal motivo para a
continuação do processo “aventuresco” e das empreitadas rumo à busca do fim de algo que
parecia infinito.
O historiador britânico Roger Crowley descreve exatamente como o processo das
Grandes Navegações empreendido por Portugal foi lento; a morte do Infante Dom Henrique
(1394-1460) e até mesmo a ilusão de um fim do continente, causada por Diogo Cão, esfriaram
a ideia sonhadora de chegar até as "Índias", ou de achar um imaginário Reino Cristão
escondido em meio a um “mar” islamico. Como dito por Roger Crowley: “Com a morte de
Henrique, a iniciativa vacilou por algum tempo, até ser impulsionada outra vez nos anos 1470,
por seu sobrinho-neto, o príncipe João”17.
É fundamental destacar que durante todo o processo em que o “Tráfico Negreiro”
ocorreu, diferentemente do imaginário comum, os portugueses não entravam no continente,
capturavam um punhado de “pobres incultos”, os levaram para os navios negreiros para
posteriormente serem vendidos e trabalharem nas casas de "civilizados" homens brancos
endinheirados ou em suas fazendas. O processo do tráfico se sustentou por conta que as elites
das regiões da costa enxergavam e recebiam algum benefício com isso, um fato sempre a ser
considerado ao se tratar sobre a aceitação ou não do comércio de escravos com europeus por
parte dos nativos africanos, e o fato de que muitos dos reinos que se situavam na costa
15
Filipe F. R Tomaz, Luiz. “D. Manuel, a Índia e o Brasil”. Revista de História, dezembro de 2009.
pg. 20
16
A política oficial da Coroa variou, consequentemente, durante muito tempo, consoante as pressões
que sofria de um ou de outro lado e os apoios a que se arrumava. Acabou por se fixar num projeto de
reforço e engrandecimento do Estado que enlaça ambas as políticas: prosseguir na cruzada e nas
conquistas, financiando-as com os lucros do comércio. Tudo leva a crer que fosse esse já o plano de d.
Afonso V, ao reservar para a Coroa a exploração comercial da costa de África, única peça do senhorio
de d. Henrique de que não abriu mão nem doou a seu irmão d. Fernando, filho adotivo do infante. (
Filipe F. R Tomaz, Luiz. “D. Manuel, a Índia e o Brasil”. Revista de História, dezembro de 2009.
pg.20)
17
CROWLEY, Roger. "Conquistadores": Como Portugal forjou o primeiro império global.
Editora Crítica, 2016. pg. 31.
atlântica tinham uma centralização política18, porém não identitária, sendo assim, embora
muitas aldeias e vilas se considerassem como parte de um reino apenas no âmbito político,
pagando tributos apenas para evitar maiores complicações, todavia sua forma de governo era
praticamente independente e estes resolviam seus problemas com suas próprias mãos, até
mesmo em caso de conflito com outros estados, reinos e aldeias. Algo que era comum, pois
prisioneiros de guerra se tornaram escravizados antes do tráfico negreiro; o que na verdade
parece ser o caso mais real, é o fato do tráfico negreiro ter aumentado o número de batalhas e
de guerras com a intenção da captura de prisioneiros de guerra.
O comércio com os mercadores de escravos era algo muito lucrativo para as elites dos
Reinos Africanos, um exemplo disso é o relato de Olaudah Equiano ou Gustavus Vassa, o
africano que fala sobre a sua vida como criança na aldeia de Ibo, uma distância aldeia
localizada no profundo interior do Reino de Benin, bem como sua eventual captura e
transformação em escravos, assim como muito do que ele teve que passar sobre essa
condição, sendo vendido várias vezes, indo para diversos lugares inclusive para além mar.
Nesse relato não só consta-se o fato do sentimento pouco identitário de “reino” ou “nação”
presente dentro do Reino de Benin, a ponto da aldeia se autogovernar através de um
“conselho de anciões” e resolver seus próprios conflitos de forma independente, ensinando
desde cedo as crianças a lutarem, também é possível enxergar de forma implícita uma
desconfiança em relação ao governo central por parte da aldeia, afinal o narrador em nenhum
momento chega a pensar ou refletir no motivo da mesma não recorrer ao apoio da capital. O
narrador, durante o relato, deixa explícito que as invasões na aldeia não eram algo raro e
menos ainda as tentativas de sequestro de crianças que em vários momentos ficavam sozinhas
enquanto os pais trabalhavam.19
Angola foi um ponto muito importante pro tráfico negreiro, o porto de Luanda foi
desse modo um grande fornecedor de mão de obra escravizada e, portanto, isso refletiu dentro
da própria região. A escravidão não era algo novo para o costume local ou até mesmo
continental ou regional, porém, olhando para a informação de que as elites se beneficiavam
com o comércio de escravizados com os europeus e que antes o tipo de escravidão presente na
Àfrica era em maioria vinculada a guerra20. É possível afirmar que a existência do Tráfico
Negreiro dessa forma aumentou o número de guerras e conflitos dentro da região com o
18
Embora as origens do reino do Daomé remontem ao século XVII, sua expansão começou no século
XVIII, durante o período mais intenso do comércio atlântico de africanos escravizados. Em 1727, o
Daomé conquistou o reino Hueda e assumiu o controle do porto de Ajudá (ou Uidá), inaugurando
assim sua participação ativa no tráfico atlântico de africanos. O banco de dados online Slavevoyages
mostra que existe documentação comprovando que em torno de 407 mil africanos escravizados
embarcaram para as Américas em Uidá. No entanto, a partir desses mesmos dados e tendo em conta o
comércio ilegal de pessoas, os historiadores David Eltis e David Richardson estimam que cerca de um
milhão foram embarcadas em Uidá para asAméricas, entre 1659 e 1863. O porto foi o segundo maior
fornecedor de cativos para o comércio atlântico de africanos escravizados, apenas atrás de Luanda,
na atual Angola. A mulher rei: Agodjié, Daomé e o tráfico atlântico de escravos. Afro-Ásia, n. 66
(2022) – pp. 746-754 (resenha do filme).
19
As viagens de Equiano, sua autobiografia. 1789. Mesmos dados e tendo em conta o comércio ilegal
de pessoas, os historiadores David Eltis e David Richardson estimam que cerca de um milhão foram
embarcadas em Uidá para as Américas, entre 1659 e 1863. O porto foi o segundo maior fornecedor de
cativos para o comércio atlântico de africanos escravizados, apenas atrás de Luanda, na atual Angola.
20
Onde os prisioneiros derrotados se tornavam escravos daqueles vitoriosos no combate.
objetivo da captura de escravos, como pode por exemplo comprovar a bibliografia de
Equiano. Mas também é possível defender esse argumento através de uma lógica de
“causa-consequência”, as elites das principais cidades da África Atlântica se beneficiam com
o tráfico e com a falta de identidade ou “nacionalismo” presente dentro dessas regiões, ou até
mesmo de uma centralização política, não é difícil dizer que a existência de guerras entre
aldeias e sequestros também aumentou para assim poder lucrar mais com o comércio de
escravizados com o “homem branco”.
Entretanto, é interessante notar que o caso de Angola também pode servir para
comprovar que esse processo de captura não foi totalmente inerte de resistência, embora a
resistência armada propriamente dita parece não ter sido frequente, José Curto indica que as
tentativas de fuga de cativos não era algo raro21, e ainda aponta a formação do jornal de
Angola como uma fonte de comprovação dessa teoria.22
Os arquivos que existem sobre a África são muito limitados, beirando entre registros
da atualidade sobre o continente africano e registros europeus que se mantiveram preservados
do período das Grandes Navegações e ocupação do continente africano sob a intenção de
comércio. Isso dificulta o trabalho de nós historiadores quando queremos escrever sobre a
verdadeira história Africana já que a maior parte dos documentos que foram preservados
sobre esse misterioso passado Africano se encontram escritos sob uma lupa da ideologia
Eurocêntrica. Os problema acerca desta falta de registro históricos é bem discutido por
Autores e Historiadores como Steven Feierman, Paulin Hountondji, Martha Abreu, Hebe
Mattos e Alexandra Aparício, todos eles concordam que a História Africana não pode ser
vista de maneira universal e que a lente da visão ideológica eurocêntrica deve ser substituída
por uma visão mais cética e menos “esbranquiçada”, tendo em mente que não existe apenas
um povo africano, mas sim um mosaico de grandes e pequenos povos, cada um com sua
cultura, economia, costumes, línguas e sociedades distintas e únicas entre si.
21
CURTO, José. Resistência à escravidão na África: o caso dos escravos fugitivos recapturados
em Angola, 1846-1876 Áfro-Ásia, 33, 2006, p 71-73
22
José aponta que durante o surgimento do Jornal de Angola, isso na década de 1840, era comum
notícias que divulgavam a recaptura de escravizados fugitivos. (CURTO, José Resistência à
escravidão na África: o caso dos escravos fugitivos recapturados em Angola, 1846-1876
Áfro-Ásia, 33, 2006, p 75-80).
África no Brasil, Ensino, Cultura Popular e Sincretismo
23
Deixo aqui não só como uma referência, mas principalmente uma recomendação, o trabalho da
historiadora SANTOS, Ynaê Lopes dos. Racismo Brasileiro: Uma história da formação do país.
Todavia, São Paulo, 2022. pp 150-159.
24
Refere-se aqui ao caso do vereador paranaense Renato Freitas acusado de invadir a igreja Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos, o qual ocorreu em cinco de agosto de 2022; esse caso foi levado pela
mídia hegemônica e alternativa como uma invasão durante uma manifestação em repúdio do
assassinato de um homem negro, a qual fomentou violência por parte dos grupos de extrema direita. A
jornalista Natália Filipin, publicou no G1, pertencente ao Grupo Globo, uma notícia que compila o
caso; acesso disponível em:
https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2022/07/05/renato-freitas-entenda-a-cronologia-do-caso-sobre-
a-cassacao-do-vereador-em-curitiba.ghtml#invasao
25
BETHENCOURT, Francisco. “Racismo, das Cruzadas ao século XX”. pp 1-3
26
FIGUEIRÔA-REGO, João; OLIVAL, Fernanda. “Cor da pele, distinções e cargos: Portugal e
espaços atlânticos portugueses (séculos XVI a XVIII)”. Página 115 a 145. 2010
portuguesas, uma vez que, graças à sua base sistematizada no direito romano, o escravo era
visto como sujeito inimigo.27
Dentro das áreas de ensino básico é possível notar a falta de reconhecimento e respeito
em relação à história e participação da cultura africana; seja nos livros didáticos, onde há a
representação acerca da historicidade negra apenas do ponto de vista do europeu colonizador
e escravocrata, seja dentro das escolas, principalmente em aquilombamentos, às quais não têm
suas individualidades abordadas dentro da BNCC28.
Dentro da cultura popular podemos ver dois
extremos da representação da população negra, por um
lado vemos um grande respeito à cultura negra e de sua
realidade e do outro é notável o antagonismo. Ao
revisitarmos às culturas de massa, sejam animações,
músicas, desenhos e livros, conseguimos notar esses dois
espectros; em desenhos clássicos como Looney Tunes ou
livros como o Sítio do Pica-Pau Amarelo e O Presidente
Negro29 de Monteiro Lobato, notamos os estereótipos do
povo negro – se for uma ambientação selvagem ou do
passado vemos o negro como um bárbaro canibal,
supersticioso, místico, cruel e facilmente enganável, já se
a situação for mais moderna vemos o povo negro sendo
representado como pessoas preguicosas, sacanas,
criminosos ou ligados a criminalidade, agressivas ou até
mesmo submissas, como um resquício da escravidão. –
Em compensação, quando o olhar é voltado para a cultura musical recente, temos uma
exaltação da cultura negra, assim como o estilo de vida dentro das favelas e subúrbios; um
exemplo dessa realidade são os movimentos musicais similares aos Slam e saraus de poesia,
os quais visam espalhar a visão do aquilombamento e resgatar comunidades que foram
silenciadas pela passagem do tempo30, grupos musicais como Racionais, que abrange o estilo
de vida arriscado e mal visto do negro dentro da sociedade através de letras pesadas e beats
simples, e até as músicas culturalmente passadas dentro da capoeira.
Dentre as lutas assumidas pelo povo negro, a que mais é conhecida e debatida é a
busca pelo reconhecimento, espaço e respeito às fés de matriz africana, não só dentro das
quatro linhas da constituição, mas efetivamente defendida pela polícia civil e respeitada, seja
no campo político, histórico ou até mesmo cultural. Essas fés são constantemente atacadas e
27
FERREIRA, André L. Injustos cativeiros. Os índios no Tribunal da Junta das Missões no
Maranhão. Maranhão. 2021. pp 154.
28
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Ministério da Educação;
Brasília-DF;2004; BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Quilombola.
Resolução n°8, de 20 de novembro de 2012. Brasília: Conselho Nacional de Educação – Câmara de
Educação Básica (CNE/CEB).
29
O presidente negro, dentre todas as obras citadas, é a que nos causou maior repulsa, de modo que
Monteiro Lobato, quando resumiu-a a seu amigo Godofredo Rangel, disse “Acontecem coisas
tremendas, mas vence por fim a inteligência do branco”.
30
ALVES, Claudio Rodrigues. As Áfricas e suas diásporas. UNIFESP, 2021. pp 145-157
desrespeitadas, seja por comentários preconceituosos ditos pela esfera federal do antigo
governo31, seja por comentários em eventos públicos por pastores evangélicos
neopentecostais32; as causas disto são justamente as debatidas anteriormente, uma vez que o
medo que foi instaurado dentro da sociedade brasileira e durante toda a construção da
“Cultura Social” brasileira os negros foram postos de lado, do mesmo modo do que religiões
de matrizes33. Esses medos são expostos até hoje em dia por outras mídias, as imagens e
nomes de Orixás sendo destruídos, desrespeitados, conectados à demônios e sendo
ridicularizados com falsas "possessões” na rede nacional de TV. Esse preconceito e
desrespeito foi construído desde o primeiro contato do povo africano com o europeu, como
vimos no documento Das Coisas da Missão de Angola (1606-1609), onde lemos o seguinte
“havia aqui uma casa de muitos ídolos; deram os padres nela, e acharam muitos de vulto34,
assim homens como mulheres, outros, que eram os mais35, como cabeças de cabras, cágados,
pés de animais, ossos de elefantes e outras imundícies, o qual tudo queimaram,
mostrando-lhes quão falso era tudo o que lhes diziam seus feiticeiros, que quem punha a mão
nêsses ídolos logo morria”36. Neste pequeno trecho vemos o claro desrespeito e deboche em
relação às fés de matriz africana, com as imagens e representações sendo destruídas e suas
crenças sendo desafiadas e debochadas por aqueles que se julgam no direito de fazer o tal,
algo que se mantém, infelizmente, presente e forte dentro da sociedade moderna
31
UOL, Michelle Bolsonaro compartilha vídeo contra Lula que relaciona religião africana a
'trevas'. 2022. Acesso disponível em: https://youtu.be/bK3egnrZjPE. Acesso em: 29/05/2023.
32
UOL, Pastor Felippe Valadão ataca religiões africanas em evento no Rio. 2022. Acesso
disponível em: https://youtu.be/MYG5eRk755k. Acesso em: 29/05/2023.
Entretanto, vale-se ressaltar que esses casos não são isolados, ocorrem constantemente e todo dia, não
sendo gravados ou mesmo difundidos por conta da conivência com o tema.
33
Ibid. SANTOS, Ynaê Lopes dos.
34
Vulto: Estátua ou Imagem.
35
Os mais: Em maior quantidade, a maioria.
36
Autor Inquisidor na Costa de África, DAS COISAS DA MISSÃO DE ANGOLA (1606-1607),
Capítulo 92, p.239.