O Grande Houdini - Kerri Maniscalco
O Grande Houdini - Kerri Maniscalco
O Grande Houdini - Kerri Maniscalco
Tudo é possível.
“O inferno está vazio
E todos os demônios estão aqui”.
— A Tempestade, Ato I, Cena 2 —
WILLIAM SHAKESPEARE
1. FESTIVAL ENLUARADO
RMS Etruria
Liverpool, Inglaterra
1° de janeiro de 1889
A câmara que nos havia sido oferecida para a autópsia da srta. Prescott me fazia
pensar em uma caverna úmida.
Nós estávamos nas profundezas das entranhas do Etruria, e a proximidade
com as caldeiras tornava a temperatura desagradavelmente quente e fazia com
que as luzes piscassem com certa frequência, como se o próprio navio estivesse
nervoso com os feitos sombrios que estavam por vir. Eu estava grata pela refri‐
geração a bordo; nós não iríamos manter o corpo ali por muito tempo, para
que não inchasse com a putrefação durante a noite e atraísse vermes.
Calafrios fizeram minha pele formigar apesar do calor. A despeito do esfor‐
ço árduo para afastar o pensamento, eu não conseguia escapar das memórias de
um outro laboratório sinistro. Um em que os ruídos de zunir-revirar ainda va‐
gavam pé ante pé em meus pesadelos em algumas noites. Os sonhos ruins an‐
davam menos frequentes do que em semanas passadas, mas me assombravam
de tempos em tempos, como lembretes doloridos de tudo que eu havia perdido
durante o Outono do Terror.
Ignorando o silvo do vapor emanando de uma tubulação exposta, concen‐
trei-me em tio Jonathan, que arregaçava as mangas da camisa e começava a se
esfregar com sabão carbólico. Quando ele terminou, eu circulei a mesa de exa‐
mes, espalhando serragem para que sugasse qualquer resquício de sangue ou
fluidos que poderia escorrer para o chão. Rituais eram uma parte necessária de
nosso ofício. Eles nos ajudavam a desanuviar nossos corações e mentes, de
acordo com meu tio.
“Antes que eu remova as facas, quero que os detalhes físicos sejam anota‐
dos”. O tom de meu tio era tão frio quanto os escalpelos de metal que eu havia
disposto na bandeja improvisada. “Altura, peso e assim por diante. Audrey Ro‐
se, vou precisar do meu...”
Entreguei o avental para ele, então amarrei o meu na altura da cintura. Eu
não havia me trocado de meu traje de noite, e a justaposição do belo vestido de
seda contra o avental simples me lembrou do quão imprevisível a vida poderia
ser. Eu duvidava de que, ao acordar naquela manhã, a srta. Prescott receasse
acabar deitada de bruços em nossa mesa de exames, apunhalada com facas des‐
de a base do crânio até quase o cóccix.
Thomas apanhou uma caderneta e balançou a cabeça em minha direção,
com uma expressão determinada. Ele e eu éramos bem versados em nossos pa‐
péis macabros, tendo praticado muitas vezes em mais de um país. Parecia que,
não importava aonde fôssemos, a morte ia atrás, e, como avarentos ganancio‐
sos, nós armazenávamos informação, obtendo lucro, de certa forma, da perda.
Eu providenciaria os achados científicos e ele os registraria — um time, em to‐
dos os sentidos.
Cavouquei dentro da maleta médica de couro de meu tio até encontrar a
fita métrica. Medi da cabeça ao dedão do pé, como aprendera, e minha mente
se clareou com a tarefa conhecida. Não era hora de refletir sobre tudo que a sr‐
ta. Prescott desejava ter feito em vida. Era hora de examinar o cadáver dela e
procurar pistas. Eu não acreditava em vingança, mas era difícil não querer bus‐
car justiça para ela.
“A vítima é uma mulher chamada srta. Olivia Prescott, tem aproximada‐
mente um metro e sessenta e cinco centímetros de altura e dezoito anos de ida‐
de”, eu disse, fazendo uma pausa para que Thomas rabiscasse a informação. Ele
ergueu os olhos, me dando o sinal para prosseguir. “Eu diria que o peso dela es‐
taria em torno de quarenta e sete quilos”.
“Bom”. Meu tio alinhou os escalpelos, as serras para ossos e as tesouras que
eu precisaria para o exame interno a seguir. “Causa da morte”.
Desviei o olhar do corpo.
“Perdoe-me, senhor, mas há cerca de doze facas projetando-se das costas
dela. Não seria a causa da morte um tanto óbvia? Estou certa de que uma delas
ou mais perfurou o coração ou os pulmões ou lacerou sua coluna vertebral”.
Ele volveu os olhos verdes afiados em minha direção e lutei contra o im‐
pulso de me encolher. Era óbvio que eu tinha me esquecido de uma importan‐
te lição.
“Como examinadores forenses, não podemos descartar outras possibilida‐
des de investigação. O que eu lhe ensinei sobre confiar apenas no que consegue
ver?”
Aquela não havia sido a pior das reprimendas, mas mesmo assim meu ros‐
to ardeu sob seu escrutínio.
“É verdade... É... É possível que as facas tenham sido envenenadas. Ou que
a srta. Prescott tenha sido morta através de outros meios e que as facas foram
uma distração. Ela de fato morreu bem rápido, e silenciosamente”.
“Muito bom”. Meu tio concordou. “É fundamental que mantenhamos
nossas emoções e teorias sob controle ao conduzir uma autópsia. Do contrário,
corremos o risco de influenciar nossas descobertas. Ou de ficarmos tão conster‐
nados que mergulharemos em uma crise, como sua tia Amelia”.
Meu tio fechou os olhos e tive a distinta impressão de que se arrependera
de tê-la mencionado.
“Tia Amelia?” Franzi as sobrancelhas. “O que aconteceu para que ela ficas‐
se perturbada? Meu pai está bem?”
Uma pausa desconfortavelmente longa sucedeu minha pergunta, e meu tio
pareceu ficar sem palavras. Segurei com força a fita métrica nas mãos, sabendo
que qualquer coisa que o levasse a demorar tanto tempo para elaborar uma res‐
posta não poderia ser boa. Por fim, ele dardejou um olhar contrariado para
Thomas, como se não tivesse certeza de que seu aprendiz deveria ouvir o que
ele tinha a dizer, então suspirou.
“Ao que tudo indica, Liza está desaparecida”.
“Desaparecida? Isso não pode ser verdade”. O zumbido estridente de antes
estava de volta em meus ouvidos. Dei um passo vacilante para longe do corpo,
receando desmaiar sobre ele. “Recebi uma carta dela ainda na semana passada”.
Eu me calei, tentando calcular a data da carta de minha prima. Não conseguia
lembrar. Mas não havia nada fora do normal. Ela estava feliz, secretamente se
encontrando com um rapaz. Não havia mal algum em flertes inocentes. “Tia
Amelia deve estar exagerando. Liza provavelmente está com...”
Eu não havia visto Thomas se levantar, mas seu olhar encontrou o meu do
outro lado do pequeno aposento. Se Liza tivesse fugido com o rapaz sobre o
qual havia escrito, seria um golpe devastador para nossa família e reputação.
Não era à toa que meu tio havia hesitado diante de Thomas.
Tio Jonathan massageou as têmporas.
“Lamento informar que as notícias vieram de seu pai. Amelia está fora de
si com o pesar e não deixa seus aposentos há mais de uma semana. Liza saiu em
uma tarde e não retornou mais. Seu pai receia que possa estar morta”.
“Morta? Ela não pode...” Meu estômago pareceu despencar até os joelhos.
Ou era a viagem pelo oceano, ou quem sabe as notícias, mas eu estava prestes a
vomitar. Sem dizer mais nada, me apressei para fora da sala, não querendo tes‐
temunhar o desapontamento nos olhos de meu tio conforme as emoções emer‐
giam da caixa na qual eu as havia armazenado e me consumiam.
Minha pulsação vibrou com a proposta contida em uma linha tão pequena.
Aquela não era a primeira vez que Thomas havia pedido para que nos encon‐
trássemos em algum lugar em uma hora tão inapropriada. Sem uma acompa‐
nhante. Daquela vez, contudo, não estávamos em uma academia praticamente
vazia na Romênia, afastados de olhos bisbilhoteiros. Se fôssemos flagrados sozi‐
nhos aqui, em meio à alta sociedade, eu seria considerada uma mulher perdida,
e minha reputação, destruída. Por outro lado, talvez Thomas houvesse deduzi‐
do uma nova teoria ou descoberto outra pista que pudesse desvendar o assassi‐
nato da srta. Prescott. Minha infeliz curiosidade fervilhava com possibilidades.
Encarei o bilhete por mais um momento, mordendo o lábio, surpresa por
ele ter pedido para que uma criada anotasse uma mensagem tão íntima. Eu po‐
dia fingir que nunca a recebera. Ter a postura cortês e decente que era esperada
de mim. Mas aquele caminho era tão maçante. Pensei nos lábios de Thomas
nos meus, em suas mãos enroscadas no meu cabelo escuro, em nossos arquejos
conforme as mãos dele lentamente percorriam meu corpo, me explorando e
provocando.
Fosse aceitável ou não, eu ansiava por seu toque.
Meus olhos miraram o pequeno relógio que tiquetaqueava na mesa de ca‐
beceira. Era quase meia-noite. Examinei meu robe de seda e minha camisola
adornada por rendas, os babados nas mangas caindo por cima de meus dedos.
Não havia tempo para que eu me vestisse e me apressasse até o estibordo do na‐
vio sem ser vista. Entretanto, aparecer em meu estado atual causaria embolias
caso me deparasse com alguém que tivesse decidido dar um passeio à meia-noi‐
te. O que parecia bem o tipo de plano indecoroso que Thomas maquinaria.
“Patife”. Sorri, então vesti meu manto de inverno, apanhei um escalpelo de
minha maleta médica, apenas por precaução, e torci pelo melhor enquanto saía
furtivamente pela porta.
CARO CONVIDADO.
“E stá tudo bem. Respire”. Thomas me guiou até nossa mesa e puxou mi‐
nha cadeira, embora diversos garçons estivessem de prontidão. Alguns empali‐
deceram, mas não ousaram dar um passo adiante e afastá-lo da tarefa à qual ha‐
via se designado.
Diante da exibição de cavalheirismo de Thomas, tio Jonathan desviou a
atenção de seu garfo e faca. Ele ficou olhando fixamente, com uma expressão
inescrutável, e apenas Deus poderia saber o que ele pensou da atenção cuidado‐
sa de Thomas em relação a mim. Duvidava que pudesse ouvir meu coração re‐
tumbando, mas, irracionalmente, receei que as palavras EU BEIJEI THOMAS
CRESSWELL DESENFREADAMENTE de repente estivessem pintadas na minha
testa.
Um sorriso começou a despontar nos cantos de seus lábios, como se ele
houvesse dissecado aquele exato pensamento de minha mente.
“Audrey Rose”. Meu tio fez um aceno com a cabeça enquanto meu acom‐
panhante acomodou-se no assento a seu lado, defronte a mim. “Thomas. Vocês
chegaram bem na hora”.
A sra. Harvey sentou-se a minha direita — no lado oposto de meu tio — e
balançou a cabeça em um gesto de aprovação.
“Você está linda, querida. Essa cor cai bem em você. O roxo é uma cor ma‐
ravilhosa para noites sombrias de janeiro. Esconde uma infinidade de pecados
também”.
Diante de minhas sobrancelhas franzidas, ela fez um gesto para uma man‐
cha suave em seu vestido pálido. Parecia ser de natureza líquida, embora eu não
tivesse como afirmar ao certo.
“Obrigada, sra. Harvey”. Antes que eu pudesse tecer comentários sobre o
vestido elegante e moderno e as joias deslumbrantes que ela usava, as luzes di‐
minuíram. Estar a bordo de um navio equipado com eletricidade era encanta‐
dor, ainda mais quando tal luxo era utilizado para criar palpitações de empol‐
gação.
Contemplei o salão, observando qualquer pessoa que pudesse parecer ner‐
vosa, mas ninguém se sobressaiu. O capitão Norwood não havia comunicado a
verdade em relação à morte da srta. Prescott, em grande parte para poupar a si
mesmo, mas também porque os Prescott haviam pedido discrição. Os passagei‐
ros conversavam discreta e animadamente em suas respectivas mesas, e os espa‐
dachins, tanto homens quanto mulheres, continuavam girando suas lâminas, e
tudo corria estranhamente bem. Talvez Thomas estivesse errado. Talvez o espe‐
táculo daquela noite não fosse terminar em morte. Peguei minha taça e tomei
um gole, liberando o último bocado de tensão de minha espinha.
Fumaça pairava na bainha das cortinas, instigando mas também prometen‐
do um incêndio fora do alcance da visão. Minhas palmas umedeceram as luvas
translúcidas. Estava quase na hora. Olhei de relance para meu tio, mas ele esta‐
va ocupado com o jantar. Ele partiu o filé com a concentração ímpar que reser‐
vava para os mortos que estudávamos. Ao que parecia, não acreditava que um
assassinato constava novamente no menu daquela noite. Ao menos não na sala
em que nos encontrávamos.
“Estimados passageiros do Etruria”, declarou o mestre de cerimônias, em
uma voz baixa e musical, fazendo mais uma aparição do bloco de fumaça es‐
pessa. Estremeci com a lembrança dele surgindo tão inesperadamente também
na noite passada. “Sejam bem-vindos à segunda noite do Festival Enluarado! A
Roda da Fortuna selecionou uma apresentação extraordinária. Para seu prazer,
permitam-me apresentar uma noite mais ousada. Abrilhantada. E, quem sabe,
muito mais... ensanguentada!”
Sem aviso, as cortinas foram afastadas como um pedaço de carne que se es‐
palha, revelando uma jovem mascarada em um corpete de veludo vermelho
amassado e meias-calças do tom da meia-noite. E quase nada mais.
Os cachos de seu cabelo estavam presos para cima, acrescentando alguns
centímetros a sua estatura. A armação da saia tinha camadas de crinolina preta
decorada nas bordas por lindos laços vermelhos.
Um recorte no formato de um coração entre seu pescoço e colo revelava
seu decote. Laços de fita preta imitavam o verso do corpete, subindo para segu‐
rar a gola. Apliques pretos semelhantes adornavam os quadris. Ela usava uma
máscara com filigrana de um tom metálico tão escuro que parecia petróleo
congelado. Vestida em tonalidades de vermelho e preto, ela trajava o equivalen‐
te feminino ao terno do mestre de cerimônias.
O público ofegou ao absorver a figura da mulher mascarada e então a
enorme espada reluzente em suas mãos. Assim como seus trajes, o cabo da es‐
pada era belíssimo — trabalhado em um metal quase preto, lembrava um
buquê feito de flores silvestres e asas de pássaros. Era como uma lâmina do rei‐
no das fadas forjada em um fogo selvagem e celestial.
Por detrás da máscara, os olhos da jovem mulher encontraram os meus e se
arregalaram. Por que raios...
Cobri a boca, tentando conter um arquejo quando o reconhecimento me
atravessou como uma flecha. Não importava como ou o porquê, de uma coisa
eu estava certa.
A moça no palco era Liza, minha prima desaparecida.
Engoli em seco, minha atenção jamais se desviando dela. Mesmo com a
máscara cobrindo metade de seu rosto, eu sabia que era ela. O mestre de ce‐
rimônias entrou em meu campo de visão, interrompendo nosso contato visual,
e pousei minha taça com uma pancada. O líquido respingou na toalha de me‐
sa, e um criado, muito atento, prontamente limpou a bagunça. Liza. Eu mal
piscava, preocupada com a possibilidade de ela ser um espectro que eu havia
conjurado e que desapareceria na mesma velocidade.
“Tentem não perder seus corações ou suas cabeças”, os olhos de Mefistófe‐
les cintilaram, “enquanto a adorável Liza tentará manter a sanidade ao ser ser‐
rada ao meio por Jian Yu — o Invencível, o Incrível, o superior Cavaleiro de
Espadas!”
O público rugiu em deleite, e eu engoli um gemido de horror.
“Bem, esta é uma revelação interessante”, sussurrou Thomas. Eu o encarei,
nem um pouco surpresa ao vê-lo praticamente pulando em seu assento. Ele
adorava desvendar charadas e enigmas inesperados, e aquela noite havia acaba‐
do de se tornar o maior mistério de todos.
“Se por ‘interessante’ você quer dizer ‘terrível’, então, sim, concordo”.
Meu tio respirou profundamente, e eu sabia que ele também havia reco‐
nhecido o membro rebelde de nossa família. Eu me recusei a olhar para ele, sa‐
bendo que deveria estar furioso. O que Liza havia feito era muito pior do que
apenas fugir. Talvez não para mim ou meu tio, mas, aos olhos da sociedade, ela
poderia muito bem se auto intitular uma meretriz.
Mefistófeles pigarreou, incitando minha prima à ação. Liza sorriu seduto‐
ramente para a plateia e ergueu a espada acima da cabeça, pavoneando-se pelo
palco como se tivesse nascido para aquilo. Meus batimentos se intensificaram.
Eu estava sem palavras e ao mesmo tempo orgulhosa.
“Sua tia teria um derrame se estivesse aqui para ver Liza em tal estado”,
disse Thomas, e meu tio o olhou com irritação. Ele franziu as sobrancelhas.
“Ora, não é verdade?”
“Thomas”, alertou meu tio. “Já basta”.
Apesar de todas as horríveis circunstâncias, eu sorri. Minha prima estava
vivendo seu sonho romântico sem se importar com o que o mundo pensaria
dela. Eu a admirava, embora uma fagulha de preocupação começasse a me atin‐
gir conforme eu me recordava das fatídicas palavras de Mefistófeles. Ao que pa‐
recia, Liza havia perdido tanto o coração quanto a mente para aquele festival.
Eu me lembrei de repente do conteúdo de sua última carta. Ela havia mencio‐
nado seu envolvimento com um escapista.
Arquejos cresceram ao nosso redor, e eu me remexi para ver o que havia
causado tamanho rebuliço. O som agourento de cascos preencheu o salão
quando Jian Yu, o Invencível, o Incrível, o Cavaleiro de Espadas, vestido em
uma cota de malha, cavalgou um cavalo preto e atravessou o recinto. Os olhos
do animal, que pareciam liquefeitos, ofereceram um vislumbre de sua área es‐
branquiçada, e ele se empinou; os cascos golpearam o piso com força o bastan‐
te para fazer as taças chocalharem. A sra. Harvey agarrou meu braço, e algumas
mulheres sentadas ali perto soltaram gritos agudos.
Jian parecia tão rígido quanto a armadura que usava. Sua máscara prateada
cobria por inteiro um dos olhos e terminava em uma série de extremidades,
pontiagudas o suficiente para perfurar a pele do outro lado. Parecia que uma
coroa de espadas fora derretida e forjada ao redor da cabeça dele. Ele era a per‐
sonificação da carta de tarô do Cavaleiro de Espadas, e o traje refletia aquilo à
perfeição.
Na sequência, os outros artistas que também empunhavam espadas embai‐
nharam suas armas, com um som que fez gelo correr em minhas veias, e caíram
de joelhos como se estivessem fazendo uma súplica. Meus braços se arrepiaram.
A cena como um todo era aterrorizante e ficava ainda mais arrepiante com o si‐
lêncio que envolvia Jian.
Ele guiou o cavalo pelas escadas em uma marcha lenta, pois queria que o
admirássemos conforme passava. Seu longo cabelo escuro estava amarrado na
altura da nuca, permitindo que o público observasse seus traços sombrios e an‐
gulares — salientes o bastante para partir alguns corações, a julgar pelos leques
que se abriam com um estalo e pelo falatório entusiasmado das mulheres. A
sra. Harvey tomou um grande gole de sua água gelada, e Thomas revirou os
olhos.
“Seria a compleição muscular realmente tão inspiradora, ou a perigosa ci‐
catriz acima de um dos olhos?”, perguntou ele, embora a sra. Harvey não tives‐
se se dado o trabalho de responder. Muito menos de desviar o olhar do rapaz
que subira no palco. Jian desmontou de seu corcel e entregou as rédeas para Li‐
za, indicando com o queixo na direção das cortinas.
“Você tem estudado aqueles diários que lhe dei, Audrey Rose?”, interrom‐
peu meu tio, atraindo minha atenção para si. “Vou precisar que tanto você
quanto Thomas estejam bem versados nas marcas feitas com um...”
Ele fixou o olhar em alguma coisa através do salão, aguçando minha curio‐
sidade. Uma segunda assistente trazia para o palco uma geringonça que parecia
um caixão. Buracos foram cinzelados perto da extremidade superior, inferior e
também nas laterais daquela estranha caixa. Uma grande quantidade de corda
fora laçada em volta de cada ponta e também enrolada sobre os ombros das as‐
sistentes.
“Que bom”, disse Thomas, com suavidade. “Eu estava na torcida para que
levassem os mortos embora antes da sobremesa. Tripas combinam mais com o
prato principal, não concorda, Wadsworth?” Ele enrugou o nariz. “E nem um
pouco com doces”.
“Fale sério”. Meu coração palpitava apesar de minha advertência. “Nin‐
guém vai espalhar tripas por aí”.
Ele tombou a cabeça para um lado. “Estou falando sério. Aquela caixa é
utilizada para serrar pessoas ao meio. Um movimento em falso e quem estiver
na primeira fileira vai receber esguichos de sangue e órgãos decepados na mesa.
Pobre da mousse com frutas vermelhas. Por outro lado, se realmente tivermos
um assassino a bordo, esta talvez seja a morte espetaculosa que temíamos”.
Jian embainhou as espadas que estava balançando de um lado para o outro
e fez uma encenação para inspecionar cada centímetro da caixa de madeira. Li‐
za e a segunda assistente ficaram paradas uma de cada lado, sorrindo como se
uma delas não estivesse prestes a ser cortada pela metade bem diante de nossos
olhos. Enxuguei discretamente as mãos na saia. Parte de mim estava morbida‐
mente fascinada. E a outra parte enojada por aquele mesmo fascínio. Alguns
dias eu desprezava as contradições de minha mente e as sombras que habitavam
meu coração.
“Você não acha que Liza vai ser a pessoa que...” Parei de falar, com meus
olhos atados a Jian conforme ele avançou até a beirada do palco e levou uma
das mãos ao rosto como se estivesse protegendo os olhos do sol. O salão de jan‐
tar se aquietou um pouco, mas o barulho persistiu mesmo assim.
“Um voluntário”, resmungou ele, revelando um leve sotaque. “Agora”.
Ninguém parecia disposto a se oferecer para um possível sacrifício. E eu
não podia culpá-los. Quem em posse de seu perfeito juízo faria tal coisa? A
máscara de Jian brilhou quando ele avançou para a outra ponta do palco. Ele
mirou uma mesa cheia de jovens cavalheiros. “Vocês são todos covardes, indig‐
nos de conhecerem minhas lâminas”. Ele se voltou para as assistentes no palco.
“Liza!”
O sorriso de minha prima estava congelado, embora ela engolisse em seco
e seus joelhos estivessem travados, denunciando seu temor. Ela respirou fundo
e deu um passo para a frente. Antes que eu soubesse o que estava fazendo, ha‐
via pulado de meu assento, atirando meu guardanapo sobre minha refeição pe‐
la metade.
“Espere!”
“Ah”. Jian sorriu, um sorriso largo e cheio de dentes. “Temos uma voluntá‐
ria, afinal de contas”.
Por mais que eu estivesse de pé, meio pronta para correr ao palco e me ati‐
rar dentro daquela caixa da morte, o olhar do cavaleiro não estava fixo em
mim. Ele estava olhando para além de onde eu, de joelhos bambos, me encon‐
trava, para Thomas, que já estava subindo os degraus e indo ao palco, seus pas‐
sos seguros e calmos. O exato oposto dos batimentos de meu coração. Tudo em
meu corpo se anestesiou e formigou de uma só vez.
“Thomas, por favor, não”. Encarei quando ele parou diante do caixão e,
depois de piscar para mim sobre o ombro, entrou ali.
“Sente-se, querida”, sussurrou a sra. Harvey, tocando meu braço. “Você pa‐
rece meio pálida, beba um pouco de vinho. Ajuda a acalmar os nervos”. Ela fez
sinal para um garçom, que serviu um líquido vermelho-escuro do jarro que se‐
gurava. Tentei não pensar no sangue da srta. Prescott quando a bebida foi des‐
pejada na taça. “Pronto, seja uma boa garota e tome alguns golinhos”.
Sem argumentos, desmoronei na cadeira novamente e aceitei a taça, tra‐
zendo-a até meus lábios, mal registrando o sabor azedo de uva conforme a be‐
bida deslizava em goles rápidos por minha garganta. Eu não gostava muito de
vinho, mas aquilo me distraiu. Brevemente. Dei batidinhas nos cantos da boca
com um guardanapo de linho e minha atenção se desviou para o lugar onde a
cabeça, os braços e os pés de Thomas escapavam da caixa em formato de cai‐
xão, ficando totalmente imóveis.
Fui invadida por imagens do cadáver de Thomas em uma mesa mortuária,
e precisei de todo o resquício de autocontrole para não correr até o palco e pu‐
xá-lo para meus braços. A parte racional de meu cérebro sabia, com toda certe‐
za, que nada de ruim aconteceria com ele. Festivais queriam vender ingressos e
criar espetáculos. Não assassinar a plateia.
Por mais que fosse aquilo que tivesse acontecido na noite anterior.
Eu não conseguia abandonar a tensão de meus membros à medida que Li‐
za e a segunda assistente cobriam a caixa de madeira com uma tampa e acena‐
vam com a cabeça para Jian. Sentei-me mais empertigada, apaziguando a sensa‐
ção de retesamento dentro de mim. O recinto subitamente pareceu mais quen‐
te, e desejei estar do lado de fora, no deque, com o ar gélido do inverno valsan‐
do a meu redor ao flutuar pela parte coberta do convés.
Meu tio bufou diante da visão de Thomas enfiado na caixa, mas reparei no
vinco de preocupação que surgiu entre suas sobrancelhas. Aquilo não ajudou a
aplacar meus receios. “Rapaz tolo”.
Agarrei o medalhão em meu pescoço, ignorando o frio do metal em minha
palma. Thomas afastou um dos braços do campo de visão, então brandiu uma
carta quando colocou a mão para fora novamente. Tive a sensação de que o gi‐
gantesco navio havia sofrido uma turbulência conforme eu oscilava em meu as‐
sento.
O público ria diante do absurdo do braço separado do corpo de Thomas
agitando a carta, mas eu não conseguia desviar o olhar da enorme serra que as
assistentes entregavam ao cavaleiro. Os dentes de metal da lâmina faiscaram,
prontos para serem cravados na caixa de madeira — e na pele de Thomas, caso
algo não saísse conforme planejado. Ou talvez o assassinato dele fosse o plano.
Um filete de suor escorreu em minha espinha. Bastaria um movimento em
falso para que seu sangue fosse derramado e...
“Acalme-se, querida”. A sra. Harvey deu um tapinha em minha mão. Expi‐
rei e ela sorriu. “É apenas um truque. O que aconteceu ontem foi terrível, mas
a chance de um segundo assassinato acontecer, bem, apenas não é provável.
Nosso Thomas sabe o que está fazendo. Certo?”
Engoli em seco e concordei. Eu sabia que ela estava certa, mas meu cora‐
ção não queria dar ouvidos à sensatez. Ele batia descompassado diante do mero
pensamento de todas as coisas medonhas que poderiam acontecer. Thomas sa‐
bia o que estava fazendo, mesmo que o que estivesse fazendo fosse uma ideia
desastrosa.
Liza me lançou um olhar indecifrável sobre os ombros. Voltei a me enrije‐
cer quando Jian ergueu a serra acima de sua cabeça. Quase corri na direção de
um dos artistas ajoelhados, pronta para apoderar-me de uma de suas espadas
caso Thomas fosse ferido.
“Podem ver que a lâmina é verdadeira. Isabella, por gentileza. Uma de‐
monstração”. Ele meneou a cabeça na direção da segunda assistente. Isabella
deu um passo adiante e golpeou a serra com uma espada que havia pegado da
mesa, os metais ressoando para que todos pudessem ouvir. Eu rilhei os dentes
com o clangor. Um rapaz na mesa vizinha tampou os ouvidos. “Ela também é
bem afiada. Liza?”
Minha prima apresentou uma máscara bordada que guardava escondida e
a posicionou em cima da caixa. Jian cuidadosamente a serrou para a frente e
para trás, até que ela se dividiu em duas. Tentei não me apegar ao fato de que
apenas três movimentos da lâmina foram necessários para partir o metal ao
meio — ele era cortante demais para estar tão perto de meu estimado Cres‐
swell.
Respirei fundo para me acalmar enquanto Jian rondava a caixa com a serra
levantada acima de sua cabeça. Ele parou perto de onde a cintura de Thomas se
encontrava, então fez um gesto para Isabella. Com um sorriso largo, ela traçou
seu caminho pelo palco com as mãos firmemente apoiadas nos quadris, como
uma bailarina. Ela parou no lado oposto ao do cavaleiro — ao que parecia, o
ato de serrar necessitava de duas pessoas para ser executado. Torci o guardana‐
po em meu colo conforme Jian espetava a lâmina em um lado da caixa e a em‐
purrava na direção de Isabella.
“No três”, ordenou ele. “Um. Dois. Três!”
O ruído de madeira no metal soou em um padrão de scritch, scratch, scrit‐
ch, scratch à medida que a lâmina afundava mais e mais fundo na caixa.
6. SERRADO AO MEIO
Salão de jantar
RMS Etruria
2 de janeiro de 1889
Eu quis cobrir meus olhos, correr do salão e me atirar no oceano, mas for‐
cei meu corpo a permanecer sentado e imóvel. Enquanto isso, no palco, as
mãos e pés de Thomas agitavam-se freneticamente conforme a serra se aproxi‐
mava mais dele.
Algumas pessoas viraram as costas para o espetáculo, abrindo seus leques
com um estalido e requisitando sais aromáticos. Caso aquele ato falhasse, as
consequências provavelmente seriam a visão mais repulsiva que qualquer mem‐
bro da plateia já teria testemunhado, incluindo eu mesma. O rescaldo da morte
e do assassinato era um fardo difícil, mas assistir àquilo acontecer? Fechei os
olhos por um momento. Não queria imaginar a escuridão que desceria sobre
mim caso Thomas viesse a morrer naquele palco.
“Ah, céus”. A sra. Harvey tomou um gole generoso de vinho. “É muito rea‐
lista, não? Parece que aquela lâmina o está cortando”.
Trinquei meu maxilar com tanta força que doeu. Apenas alguns centíme‐
tros restavam antes que a serra atravessasse a parte central da caixa. E atraves‐
sasse Thomas.
Scritch, scratch, scritch, scratch.
Registrei mentalmente onde minha maleta médica estava, quanto tempo
demoraria para correr até minha cabine em meu vestido de noite para pegá-la e
se eu teria o conhecimento necessário para costurá-lo. Esperava que um cirur‐
gião estivesse a bordo. Alguém mais competente do que o dr. Arden, que ainda
estava afastado com o magistrado-chefe Prescott.
Scritch, scratch, scritch, scratch.
Prendi a respiração quando a serra tocou o fundo da madeira, esperando
que sangue e vísceras jorrassem pela fenda. Thomas parou de se mover. Meu
coração deve ter parado também. Murmúrios brotavam ao meu redor, mas as
vozes eram sons indistinguíveis conforme eu observava, esperando para ver
Thomas sangrar.
Nada aconteceu.
As mãos e os pés de Thomas de repente se moveram como se nenhuma lâ‐
mina o tivesse serrado ao meio. Eu me levantei um pouco, pronta para aplaudir
e dar aquele assunto por encerrado, mas o pesadelo parecia ainda não ter che‐
gado ao fim. Jian e Isabella repetiram a encenação com outra lâmina. Uma vez
que o gume havia serrado até alcançar a mesa, cada um deles pegou e puxou
uma extremidade da caixa.
Não me recordo de ter tomado aquela decisão, mas gritei. Foi alto e dra‐
mático o suficiente para fazer com que meu tio largasse o garfo e a sra. Harvey
se atrapalhasse com sua taça de vinho. O Cavaleiro de Espadas riu, o som som‐
brio e ameaçador como uma tempestade pairando acima do mar.
“Um homem serrado ao meio!”
Mais algumas pessoas na plateia se esganiçaram. Cobri a boca com a mão,
tentando conter qualquer outro grito agudo que pudesse escapar. As duas gran‐
des lâminas iam de uma extremidade à outra da caixa, ocultando quaisquer en‐
tranhas dos olhos da plateia, embora eu logicamente soubesse que não havia
nada para ser acobertado. Minhas emoções triunfaram sobre minha lógica, e o
pânico se assentou entre minhas costelas. As mãos de Thomas. Prestei atenção
nelas e na carta que ele ainda agitava. Elas estavam se movendo. Ele estava se
movendo. Aquilo era uma ilusão. Um truque terrível.
Pisquei para afastar as lágrimas, odiando Thomas por ter feito aquilo. Jian
empurrou as duas metades de meu coração pelo palco, ostentando sua habili‐
dade com a lâmina. Depois que eles deram uma volta completa, juntaram a
caixa e removeram as duas serras. Agarrei as beiradas de minha cadeira, atando-
me a ela para me impedir de voar até o palco e abrir o caixão e deslizar as mãos
por Thomas.
Liza ergueu um pano preto, grande o bastante para ocultar a caixa. Elas a
cobriram, andaram ao redor dela mais uma vez e arrancaram o tecido em um
só puxão. As assistentes ergueram a tampa e... nada. Thomas não emergiu, e
seus braços e pernas haviam sumido. Meu coração pulsou pesadamente, e os
sons no salão foram se tornando altos e silenciosos ao mesmo tempo. Parte de
mim desejava ter pensado em solicitar sais aromáticos. Liza e Isabella trocaram
olhares preocupados que não pareciam ser parte do espetáculo. Fiquei parada,
sentindo as marteladas de meu coração.
Jian embainhou as espadas que estava girando e caminhou até a caixa com
os punhos cerrados. Algo estava errado. À medida que se aproximava, Thomas
surgiu como um coelho retirado da cartola, segurando uma segunda carta, e Ji‐
an, surpreso, deu um passo para trás.
A plateia riu ao contemplar a expressão no rosto do cavaleiro — azeda co‐
mo se ele tivesse abocanhado uma torta de limão. Sem aviso, ele puxou uma fi‐
na espada da bainha em suas costas e a fincou bem no centro da carta, colocan‐
do um ponto final nas gargalhadas.
Thomas saltou da caixa, fazendo uma rápida mesura antes de descer as es‐
cadas aos pulinhos. Suas bochechas estavam agradavelmente coradas.
“Ele pareceu bem incomodado com a minha encenação”, disse ele, com a
respiração um pouco pesada. “Achei que foi um toque genial. Um pouco de ri‐
so para contrabalançar o medo”.
Jian e suas assistentes deixaram o palco, mas eu não consegui me concen‐
trar em mais nada além do pedaço desgastado de tecido no colete de Thomas.
Meu sangue pareceu tão gélido quanto as águas do oceano. “Você foi cortado”.
Thomas afastou uma mecha úmida de cabelo e não disse nada.
Mefistófeles ressurgiu da fumaça como o demônio que era. Deu um sorriso
torto para os passageiros, então fez um gesto para detrás da cortina de veludo.
Com o comando, elas se abriram, e Jian, Liza e Isabella surgiram para receber
uma chuva de mesuras e cortesias. A plateia assobiou e aplaudiu, e alguns até
retomaram o forte pisar dos pés, enquanto outros removiam as flores da estufa
e as atiravam ao palco. Eu não tive a menor vontade de me juntar a eles.
Em vez disso, observei o fogo lampejando nos olhos do cavaleiro. Thomas
o havia aborrecido, e ele não parecia ser o tipo de pessoa que tolerava ser feito
de tolo. Um dos músculos em sua mandíbula se retesou quando voltou a aten‐
ção para Thomas. Tive a impressão de que uma promessa silenciosa havia sido
feita entre os dois quando meu parceiro percebeu o escrutínio de Jian.
“Senhoras e senhores”, disse Mefistófeles. “Ao que parece, ninguém perdeu
a cabeça esta noite. Mas será que terão a mesma sorte amanhã? Nós consultare‐
mos a Roda da Fortuna para descobrir. Boa noite!”
Cada um dos artistas se afastou bem no instante em que as cortinas foram
fechadas, desaparecendo de vista.
Com as mãos entrelaçadas ao redor de minha taça para evitar um estrangu‐
lamento, eu me virei para Thomas. “Perdeu o juízo? Você poderia ter se ferido!”
O olhar dele mirou o aperto na taça e a tensão em minha mandíbula. Ele
ergueu as mãos, rendendo-se a minha raiva. “Acalme-se, Wadsworth. Vamos
nos afastar dos talheres e vidro. Posso garantir que estava em perfeita seguran‐
ça”.
Eu bufei. “É claro que estava. Quem não estaria em perfeita segurança ao
ser serrado ao meio? Depois de alguém ser assassinado no dia anterior?! Quão
tolo da minha parte foi me preocupar”.
“Audrey Rose”, alertou meu tio. “Por favor, controle-se até depois do jan‐
tar. Já tenho muito com que lidar depois da apresentação de Liza”. Ele se levan‐
tou, baixando o guardanapo. “Vou inclusive buscá-la agora. Ela vai se juntar a
você em seus aposentos”.
Com aquilo, ele marchou para fora do salão. A sra. Harvey prontamente
pegou sua taça vazia, encarando-a como se pudesse transportá-la para longe da
mesa. “Veja só isso”, disse ela, convocando um criado para puxar sua cadeira.
“Fui repentinamente vencida pelo cansaço. Se me derem licença”.
Observei enquanto ela se afastava, amuada demais para me incomodar
com o fato de que mais uma vez eu ficaria sem acompanhante.
“E então?”, perguntei. “Que tipo de deduções lhe ocorreram para que jul‐
gasse aquela caixa segura antes de subir nela?”
Ele buscou minha mão, então se refreou. Embora estivéssemos sozinhos
em nossa mesa, não estávamos às escondidas em meus aposentos. Thomas me
tocar em público seria mais do que inadequado.
“A caixa tinha um fundo falso. Reparei na ligeira emenda na madeira, al‐
guns centímetros a mais que não eram necessários. Assim que consegui dar
uma boa olhada, vi que eu na verdade estaria me deitando bem abaixo da caixa,
em uma segunda caixa embutida na mesa”. Ele deu um sorriso cauteloso. “É
um tanto engenhoso. O modelo permite que a caixa seja cortada pela metade
enquanto minhas mãos e meus pés projetam-se dos buracos. Quem quer que
tenha engendrado o objeto é um gênio. Nunca vi nada parecido”.
“Você deduziu isso tudo antes de entrar na caixa?”
“Basicamente”. Thomas olhou de relance para as mesas que lentamente es‐
vaziavam-se. Não demoraria muito para que fôssemos os únicos passageiros res‐
tantes. “É adorável quando suas narinas se inflam de forma tão dramática. Is‐
so”, sorriu ele, esquivando-se de meu rápido chute sob a mesa, “bem assim.
Um dia pedirei para que um retratista capture essa cena em uma de suas obras
e a pendurarei acima da cornija da lareira em minha sala de estudos”.
“Realmente desgosto de você às vezes, Thomas James Dorin Cresswell”.
“Mesmo quando estou sendo corajosamente heroico ao me sacrificar?” Ele
retirou as duas cartas do bolso do paletó e as balançou diante de mim. “Aposto
que você me detesta menos agora”.
“Só um pouco”. Arranquei as cartas dele com um puxão. Uma era um Ás
de Espadas, e a outra uma carta de tarô desenhada à mão, a Justiça. Suspirei e
baixei as cartas. “O que você deduz disso tudo?”
“Bem, pelo visto as balanças da justiça estão extremamente alteradas. Pare‐
ce uma coincidência muito grande que bem a filha do magistrado-chefe Pres‐
cott tenha sido assassinada. Creio que seja interessante rever o histórico dele
como juiz. Claramente alguém não acha as sentenças dele muito justas. Pode
ser um bom motivo”. Ele tamborilou os dedos na carta. “E o Ás de Espadas tal‐
vez seja uma distração”.
“E quanto ao Ás de Paus deixado no corpo da srta. Prescott?”, contestei.
“Talvez a carta de tarô seja a distração”.
Thomas deu de ombros. “Talvez ambas sejam chamarizes. Ou talvez estas
apenas tenham sido colocadas no lugar errado. Penso que devemos procurar...”
Um tumulto descomunal nos interrompeu. Soou como se uma manada de
elefantes estivesse à solta, em debandada pelos corredores. Tal ideia, tendo em
vista a presença do festival, não estava totalmente fora de cogitação. Ataranta‐
da, me virei em meu assento, observando um pequeno grupo de pessoas correr
pela porta aberta enquanto os garçons colocavam as cabeças para fora.
Um pavor percorreu meu corpo. Pessoas correndo com lágrimas escorren‐
do pelo rosto nunca era um bom sinal. Do que quer que estivessem com medo,
deveria ser algo verdadeiramente terrível. Haviam acabado de assistir a um ra‐
paz ser serrado ao meio e mal tinham parado de comer as entradas.
“Depressa”, disse Thomas, gentilmente tomando meu braço e nos apres‐
sando pela porta. “Se for o que temo que seja... talvez ainda dê tempo de salvar
a pessoa”.
“Espere!” Torci o braço para afrouxar seu aperto e corri até a mesa mais
próxima, agarrando uma faca. “É melhor nos precavermos”.
Thomas me deu a mão e atravessamos o mais depressa que conseguimos a
maré de passageiros que rumava para a direção oposta. Mantive a faca aponta‐
da para baixo, com o braço colado na lateral do corpo. Nunca tinha visto o
convés tão lotado, e o deque, que propiciava uma caminhada agradável, naque‐
le momento estava tão apinhado que me deu claustrofobia.
Homens de cartola andavam para cima e para baixo, alguns afastando suas
respectivas famílias do caos, outros mergulhando na desordem. Mais de uma
vez minha mão quase se separou da de Thomas, mas ele logo estava ali de novo,
posicionando seu corpo na frente do meu como uma barreira. Pessoas o em‐
purravam, mas ele nos conduziu para onde a multidão se concentrava.
“Por favor!”, gritou alguém de um lugar que eu não consegui localizar.
“Retornem a suas cabines. Não corram e não entrem em pânico. Eu lhes garan‐
to que manterei todos a salvo”.
“Como você a manteve a salvo?”, berrou um passageiro de volta, angarian‐
do gritos de aprovação dos mais próximos a ele. “Nenhum de nós está em segu‐
rança aqui no meio do oceano. Estamos presos!”
“Fiquem calmos”, disse o primeiro homem, “tudo vai ficar bem. Permane‐
çam tranquilos e retornem a suas cabines!”
Thomas, fazendo uso de sua altura avantajada, nos manobrou para mais
perto. O capitão Norwood havia subido em um caixote e gesticulava para que
os membros da tripulação dispersassem os passageiros. Meu olhar varreu seus
arredores, buscando a origem do alarde.
Então eu vi.
Uma mulher, suspendida pelos tornozelos, estava pendurada das vigas do
convés. Sua saia estava caída sobre a cabeça, ocultando sua identidade e expon‐
do as roupas de baixo para que o mundo pudesse vê-las. Aquilo por si só já era
medonho o bastante, mas ela também havia sido ferida múltiplas vezes por es‐
padas enfiadas em uma miríade de ângulos absurdos por todo o corpo. Sangue
de cada ferimento gotejava lentamente no deque, o som semelhante ao de água
pingando de uma torneira. Mesmo com o barulho dos passageiros assustados,
tudo que eu conseguia ouvir era aquele gotejar sinistro. Era a coisa mais horrí‐
vel que já tinha visto, e eu tinha estado presente em muitas descobertas das re‐
pugnantes matanças do Estripador.
Eu me forcei a respirar em intervalos regulares. A corda rangia à medida
que o corpo girava como um peixe capturado em uma linha de pesca. Eu acha‐
va que a morte da srta. Prescott fora terrível, mas aquele era um novo grau de
monstruosidade. O vento corria pelo corredor aberto, fazendo com que o cadá‐
ver oscilasse serenamente acima de nossas cabeças. Tentei prestar atenção em
qualquer coisa que não fossem as lâminas à medida que o sangue formava uma
poça no piso.
“Oh. Meu Deus, olhe”, falei, apontando para um pedaço puído da corda.
“Se não a tirarmos de lá logo, as cordas vão arrebentar”. E as espadas seriam
empaladas ainda mais profundamente, talvez até decapitando-a diante de nos‐
sos olhos. Meu estômago se revirou com tal imagem. Aquela pobre vítima não
merecia ser acometida por mais uma parcela de indignidade ou trauma.
Thomas escrutinou a multidão. “Seu tio está lá adiante, deveríamos ir até
ele”.
Nós nos mantivemos próximos da balaustrada, o vento nos açoitando com
fúria. Esfreguei as mãos nos braços, só então percebendo que não só havia me
esquecido de levar meu manto, como também havia perdido a faca. Sem afas‐
tar o olhar da cena do crime, Thomas depositou seu paletó em meus ombros.
Uma vez que a tripulação conseguiu afastar a maior parte dos passageiros, meu
tio fez um gesto para que fôssemos até ele.
“Por favor, retornem a seus aposentos”. Um taifeiro bloqueou nosso cami‐
nho. “Ordens do capitão”.
Thomas fitou o jovem. “Estamos aqui para prestar auxílio com o corpo”.
O taifeiro fixou a atenção em mim. “Os dois?”
“Deixe-os passar, Henry!”, trovejou Norwood. “E alguém vá buscar a por‐
caria daquele mestre de cerimônias! Se um de seus artistas malditos fez isso, ele
será pendurado por mim!” O capitão se virou para meu tio, com as mãos fe‐
chadas em punhos nas laterais do corpo. “Não podemos deixá-la aqui, indecen‐
te, a noite toda. O senhor tem vinte minutos, então poderá continuar seu tra‐
balho lá dentro”. Ele começou a se movimentar diante da fileira de tripulantes.
“Vão até as cabines e verifiquem se o membro da família de alguém desapare‐
ceu. Esta moça não estava viajando sozinha. A essa altura, alguém deve estar
preocupado. Ah, e certifiquem-se de mandar conhaque para os passageiros mais
transtornados. Não queremos um ataque de pânico coletivo. Vão!”
O olhar de meu tio capturou o meu antes que ele começasse a circular o
corpo. Por um momento terrível, imaginei que fosse Liza pendurada ali, atra‐
vessada pelas mesmas lâminas que ela havia ajudado a manejar anteriormente.
Então meu raciocínio lógico assumiu o controle, e olhei para os fatos diante de
mim. A mulher não vestia os trajes do festival. Eu não conseguia ver seu rosto,
mas ela parecia ter medidas maiores que minha prima em termos de peso e al‐
tura.
Respirei fundo, mas aquilo nada fez para acalmar as batidas de meu cora‐
ção quando me aproximei da vítima. De perto, a corda rangia conforme o cor‐
po rodopiava na brisa. O cheiro pungente de cobre misturado com a salinidade
do oceano era um odor que eu não seria capaz de esquecer tão cedo.
Thomas caminhou ao redor do corpo, seu rosto refletindo a frieza do ar in‐
vernal em volta. Era difícil imaginar que era a mesma pessoa que havia emana‐
do tanto calor apenas algumas horas antes. Ele apontou para um bote salva-vi‐
das que estava parcialmente apoiado no chão. “Alguém cortou a corda de uma
das extremidades e a usou para içá-la. Está vendo?”
Dei um passo adiante e me agachei. “Isso pode indicar que o crime não foi
planejado. Se tivesse sido, o assassino teria trazido corda consigo”.
“Respeitosamente discordo, Wadsworth. Isso era o que ele esperava retra‐
tar. Mas olhe aqui... Ele usou outra extensão de corda e a amarrou ao pedaço
que já tinha cortado, e então a enrolou duas vezes nos botes. Teria tido corda o
suficiente para cortar a quantidade necessária”. Thomas apontou para onde a
corda estava enrolada no chão. “Por que se dar o trabalho de soltar o bote sal‐
va-vidas e arriscar chamar atenção?”
Aquela era uma pergunta para a qual eu não tinha resposta. Eu me voltei
para o detalhe aterrador das espadas. Uma coisa era certa: quem quer que a ti‐
vesse perfurado tinha uma grande força. Uma peculiaridade em toda a cena me
ocorreu.
“Por que ninguém a ouviu gritar? Ela com certeza deve ter gritado por aju‐
da. Não consigo imaginar alguém parado em completo silêncio enquanto é
empalado por uma espada, muito menos...” Eu as contei, com uma acidez se
formando em meu estômago. “Muito menos sete espadas. Deve haver alguma
testemunha”.
Meu tio tirou os óculos e os limpou na manga da camisa. Imaginei que es‐
tivesse ansioso para levar o corpo para nosso laboratório improvisado. “Tenho
certeza de que nossa inspeção vai responder a algumas perguntas. Gostaria que
vocês dois se trocassem e me encontrassem no laboratório”. Ele se virou, hesi‐
tante. “Thomas, por favor, certifique-se de que Audrey Rose esteja acompanha‐
da. E certifique-se de deixar Liza sob o olhar vigilante da sra. Harvey. Eu toma‐
ria medidas para saber o paradeiro de todos esta noite”.
“Sim, tio”. Dei uma última olhada na cena do crime.
“Sete de Espadas”, disse uma voz calma e grave que me sobressaltou. Tanto
eu quanto Thomas fixamos nossa atenção ao recém-chegado. Mefistófeles enfi‐
ou as mãos nos bolsos e assobiou. “Invertido. Nunca um bom sinal. Mas, até
aí, isso é bem evidente, não é?”
“Do que está falando?”, perguntei, já perturbada pela presença dele. Ele
não tinha nem se dado o trabalho de remover a máscara; parecia empenhado
em não permitir que vissem suas verdadeiras feições. “O que isso significa?”
“Nenhum de vocês notou que ela foi disposta para parecer exatamente co‐
mo a carta Sete de Espadas do tarô?” Diante de nossos olhares inexpressivos,
Mefistófeles vasculhou os bolsos de sua casaca e retirou um baralho de cartas.
Ele as revirou e apanhou uma delas com um floreio que não combinava com
uma cena de crime. “Parece familiar para alguém? Esperem. Tem alguma coisa
errada... Ah. Aqui está”. Ele virou a carta. “Quando invertido, o Sete de Espa‐
das é uma coisinha traiçoeira. Traição. Vergonha. Também pode significar que
alguém acha que se safou de algo”. Ele apontou para o corpo. “Alguém mani‐
pulou essa cena com muito cuidado”.
Thomas estreitou os olhos. “Você é muito petulante para alguém que se
vangloria de usar as cartas de tarô para seus espetáculos”.
Mefistófeles guardou as cartas de volta na casaca, então deu uma série de
tapinhas no bolso. Seu olhar se desviou para o lugar que eu vinha encarando,
tentando encontrar a saliência no tecido. Ele puxou a casaca para mais perto de
si e sorriu. “Gostaria de procurar as cartas? Garanto que não vai encontrá-las,
mas a busca pode ser divertida”.
“Talvez o capitão devesse atirá-lo na cela”.
“Isso seria um tanto lamentável”, respondeu o mestre de cerimônias. “Veja
bem, eu comuniquei o furto de alguns objetos antes do início da apresentação
desta noite. Corda. Cartas de tarô. E... o que eram as outras coisas...” Ele coçou
o queixo, fingindo contemplação. “Ah, é mesmo. Espadas. Uma porção delas.
Na verdade, não parecem mais estar sumidas. Embora duvide que Jian vai que‐
rê-las de volta agora. A morte prejudica os negócios”.
“Você é desprezível”, retruquei, incapaz de me conter. “Uma mulher está
morta, assassinada da maneira mais hedionda bem na sua frente, e você foi ca‐
paz de reduzi-la a uma chacota”.
Mefistófeles me encarou, como se estivesse me notando de verdade, além
das aparências, pela primeira vez. “Minhas mais sinceras desculpas, senhorita.
Não tenho mais nenhuma informação para repassar além do que já forneci. É
lamentável que outra mulher tenha sido assassinada, mas meu festival não tem
nada a ver com isso. Não posso me dar ao luxo de ver as pessoas começarem a
acreditar nisso, que tenham medo e parem de frequentar os espetáculos. Muitas
pessoas que emprego dependem de nossas apresentações para viverem. Sugiro
que conduza sua investigação por outras bandas”.
Ele deu uma última olhada no corpo, então saiu a passos largos pelo de‐
que. Agarrei com mais força a casaca de Thomas. Quando alguém declarava
inocência com tanta firmeza, aquilo fazia com que eu deliberasse sobre sua cul‐
pa.
“Vamos”, Thomas ofereceu um braço. “Vou levá-la até seus aposentos”.
Conforme seguíamos para meu dormitório, olhei de relance para a água,
me arrependendo logo de ter feito aquilo. À noite, o oceano era uma criatura
sombria e ondulante. Luz reluzia do pequeno pedaço de lua, como mil olhos
pequenos observando nossa procissão, piscando e pestanejando à medida que
avançávamos. Eu me perguntei o que mais as águas silenciosas teriam testemu‐
nhado naquela noite e quais outros segredos poderiam guardar. Quantos outros
crimes teriam auxiliado ao engolir corpos inteiros?
7. UM ASSASSINATO BRUTAL
Aposentos de Audrey Rose
RMS Etruria
2 de janeiro de 1889
Á
gou o Ás de Paus sobre a mesa de cabeceira. “Você sabia que os quatro naipes
estão associados aos elementos?”
“Não”.
Ela sorriu — um sorriso raro e meio tolo que me fez pensar que um co‐
mentário particularmente açucarado estava prestes a ser servido. “Harry tem
um dom excepcional para criar fábulas grandiosas. Ele é capaz de fazer as coisas
mais mundanas parecerem extraordinárias. Ele afirma que há poder no modo
como você vende alguma coisa. Por que se referir a algo como um perfume
quando ele pode ser uma bruma de amor?”
“Harry?” Sentei-me na cama ao lado de Liza, remexendo nas pregas em
minha saia. “Sobre isso... Em nome da rainha, o que possuiu você para que fu‐
gisse com um homem que mal conhece? Espero que ele não tenha inventado
uma história boa demais para ser verdade”.
“Quase todas as histórias são boas demais para serem verdade. E é isso que
as torna encantadoras”.
“E perigosas”, murmurei.
Liza baixou a carta e se recostou em mim, sua cabeça descansando em meu
ombro da mesma forma que ela fazia quando éramos crianças e brincávamos
nos jardins de Thornbriar.
“Tenho tanto para ser grata, tantas oportunidades que outros jamais so‐
nharão em ter. Ainda assim, toda vez que provava um novo vestido para meu
baile de debutante, sentia como se estivesse sendo estrangulada. Vivendo a vi‐
da, mas sem aproveitá-la. Estava vestida em sedas, mas poderia muito bem es‐
tar coberta por espinhos”.
Era um sentimento que eu conhecia muito bem.
Liza se aninhou mais perto de mim, sua voz falhando. “Você nunca dese‐
jou ser outra pessoa? Apenas por um tempinho. Ou talvez não outra pessoa,
talvez quisesse ser sua verdadeira versão. E viver exatamente como você gosta‐
ria, sem consequência ou julgamento. Sei que tudo isso pode ser um erro terrí‐
vel, uma ilusão mais elaborada que as do festival, mas, pela primeira vez, sou a
senhora de meu destino. Sinto como se tivesse me libertado de uma jaula e fi‐
nalmente pudesse respirar outra vez. Como posso renunciar a tal liberdade?”
A culpa se apossou de mim. Eu sabia como era a sensação de me sentir pre‐
sa pelas expectativas impostas por outra pessoa. Todos merecíamos viver livre‐
mente e honrar a nós mesmos. Um direito básico não deveria ser um luxo. Co‐
loquei um braço ao redor de minha prima e recostei a cabeça na dela. “Então...
me conte sobre o Rei das Cartas. Quero ouvir todos os detalhes enquanto me
apronto para a autópsia”.
“Bem, então acho que devo começar pelo início”.
Eu conseguia ouvir o sorriso na voz de Liza à medida que ela recitava todas
as maneiras que o sr. Harry Houdini a fazia ir até as nuvens. Eu estava empol‐
gada por ela, embora a preocupação me corroesse de forma desagradável con‐
forme ela continuava seu relato. Não compartilhava dos sentimentos dela em
relação a um homem que poderia arruiná-la por causa de um capricho, especi‐
almente porque nenhum tipo de promessa sobre casamento havia sido feita.
Parecia que Houdini não tinha nada a perder, ao contrário de minha prima.
Tentei afastar minha inquietação, procurando apoiá-la tanto quanto ela havia
me apoiado. Ela falou e falou até a chegada de Thomas e prometeu que termi‐
naria a história assim que eu retornasse.
Fiz menção de me retirar, então me virei. “É bom tê-la de volta”.
“É claro que é, tolinha. Aposto que sua vida estava extremamente entedi‐
ante sem mim. Agora vá”. Ela sorriu, erguendo meu diário de anatomia como
se pretendesse examiná-lo. “Não vou a lugar algum”.
Avancei para a porta e fiz uma pausa. “Liza? Você reparou em alguém na
trupe do festival agindo de maneira peculiar?”
“Não está insinuando que algum dos meus novos amigos é o culpado de
tais atrocidades, está?” Ela se empertigou, estreitando os olhos. “Não. Não ou‐
vi, tampouco testemunhei, qualquer coisa além do pavor deles”.
“Eu não quis...”
“Vá solucionar este terrível mistério pelo bem de todos nós. Prometo que
estarei aqui quando retornar”.
Ela esticou o dedo mindinho em um juramento silencioso, e torci para que
mantivesse sua palavra.
Eu não conseguia deixar de pensar que a luz que pairava sobre nossa mesa de
exames improvisada soava como uma abelha à beira da morte. O leve zumbido
e a tremulação pouco faziam para elevar meus ânimos enquanto meu tio do‐
brava a mortalha para revelar a vítima.
Encarei seu cabelo cor de trigo, o olhar pacífico no rosto. Era difícil imagi‐
nar que ela havia morrido de maneira tão violenta — isso é, até que minha
atenção se concentrou mais abaixo. Havia um total de catorze ferimentos em
seu corpo, dois em cada braço, dois em cada perna e dez na extensão do tron‐
co. Ferimentos de saída e entrada das espadas. Quis fechar os olhos, mas me es‐
conder não adiantaria nada. Ela ainda estaria morta e eu ainda precisaria en‐
contrar qualquer pista que pudesse trazer alguma explicação. Estremeci leve‐
mente, recordando-me de como sua morte tinha sido encenada a partir de uma
carta de tarô.
“Comece o exame agora, Audrey Rose”. Meu tio já havia terminado de la‐
var as mãos, entregando em seguida a Thomas o caderno e a caneta. “Comece
com os ferimentos desta vez, por favor”.
“Sim, senhor”. Pigarreei e caminhei ao redor do corpo, observando. “A pe‐
le em volta de ambos os tornozelos possui uma leve irritação, embora não haja
indícios de abrasão por corda. Se fosse o caso, indicaria que ela estava viva e
tentando se desamarrar. Como não é, provavelmente ela não estava resistindo
e, portanto, já estava morta”.
“Bom. O que mais?”
Mirei seu rosto novamente, mordendo o lábio. Estava por demais sereno.
Os olhos estavam contornados com kajal, mas sem borrão algum. Era estranho
que alguém que tivesse sido assassinada de forma tão abominável não tivesse
derramado lágrimas. Apontei para a pista.
“O kajal da vítima está perfeitamente intacto”, declarei. “Ou o agressor o
aplicou após a morte, o que não acredito, ou vamos encontrar alguma substân‐
cia em seu organismo. Duvido que esta mulher estivesse consciente quando foi
atacada”.
“Excelente”. Thomas afastou os olhos das notas que tomava e me encarou.
“As unhas dela também estão inteiras. Não há sinais de nenhuma lesão de defe‐
sa”.
“O que também explica por que ela não gritou”, eu disse, desenvolvendo
nosso exame. “Ou já estava morta ou estava incapacitada ao ser pendurada de
cabeça para baixo”.
Meu tio observou um dos ferimentos. “Acredito que os fatos estejam se ali‐
nhando com tal teoria. Olhe para os cortes. Que história eles contam?”
Juntei-me a ele, curvando-me para ver mais de perto. De início, eu não ti‐
nha certeza... Eram cortes terríveis, até que me ocorreu. Havia sangue, mas ne‐
nhum hematoma. “As espadas provavelmente foram introduzidas após a mor‐
te”.
“Muito bom. Causa da morte?”
Parei de ver uma jovem mulher morta. Diante de mim jazia um quebra-ca‐
beça esperando para ser resolvido. Afastei suas pálpebras. “Não há hemorragia
petequial. Sem escoriações no pescoço”. Movimentei-me ao redor da mesa.
“Ela não foi estrangulada. Até abrirmos seu corpo, lamento informar que não
poderemos ter certeza da causa da morte. Embora, com base na falta de outros
sinais, podemos estar diante de um envenenamento”.
Thomas levantou-se abruptamente, derrubando a caderneta ao erguer o
braço da vítima. Ele se aproximou, então o recostou novamente, com seu rosto
exibindo uma expressão soturna. “Parece que ela recebeu uma injeção. Ou rea‐
lizou uma sangria. Olhe ali. Uma pequena seringa pode ter feito essa marca”.
Meu coração começou a bater mais depressa. “Sabemos que há ao menos
um médico neste navio”.
“Um que estava vinculado à primeira vítima”, acrescentou Thomas. “E que
não parecia nada disposto a nos ter próximos de seu paciente seguinte”.
“O dr. Arden confessou ter administrado um tônico para o magistrado-
chefe Prescott”. Um temor começou a crescer em mim. “E ambos os Prescott
estavam ausentes do salão de jantar”. Imaginei que eles tinham preferido per‐
manecer em seus aposentos para viver o luto após a perda da filha. Mas e se
não tivessem conseguido sair? “Sei que ele disse que não compareceria, mas al‐
gum de vocês viu o dr. Arden durante o espetáculo desta noite?”
Meu tio balançou a cabeça. “Não o vi. E o magistrado-chefe Prescott não
atendeu à porta quando fui visitá-lo novamente antes do jantar. Na verdade, o
dormitório parecia vazio. Não ouvi um ruído sequer. O que seria estranho caso
ambos estivessem no dormitório como afirmaram que estariam”.
“Bem, então”, Thomas pegou nossos mantos, “vamos dar uma olhada neles
agora mesmo. Buscaremos o capitão no caminho”.
“Isso não será preciso”. O capitão Norwood se recostou no batente da por‐
ta, com o rosto parecendo ainda mais cansado do que na última vez em que eu
o havia visto. “Vim trazer-lhes a notícia pessoalmente”.
Cobri o corpo com a mortalha, desejando dar o máximo de respeito para
ela quanto fosse possível. O capitão desviou sua atenção do cadáver, sua pele
parecendo um pouco mais pálida na altura do colarinho. “Minha tripulação vi‐
sitou cada cabine da primeira classe na esperança de encontrar uma testemu‐
nha. Mas...”
“Acreditamos ter descoberto a identidade do responsável, senhor”, eu disse,
não querendo desperdiçar tempo. Precisávamos visitar os Prescott; com sorte,
não seria tarde demais. “O senhor precisa localizar e deter o dr. Arden neste
instante. Ele foi visto por últi...”
“Perdoe-me, srta. Wadsworth”, interrompeu ele, “mas receio que possam
estar enganados”. Ele relanceou mais uma vez o olhar para o corpo, engolindo
em seco. “Vejam bem... conversamos com todos... e a srta. Arden, a filha do
doutor, está desaparecida”. Ele retirou uma fotografia do bolso de sua casaca e a
segurou para que pudéssemos vê-la. Eu recuei, sentindo meu estômago afun‐
dar. “Esta é a jovem em sua mesa de exames, não é?”
Olhei em silêncio para a fotografia, minha mente lentamente absorvendo
as novas informações e o que aquilo significava para nosso caso. Se a filha do
dr. Arden era nossa vítima, e se não havia conflito entre ambos, então aquilo o
eliminaria da lista de suspeitos. Precisávamos recomeçar — e tal tarefa parecia
desanimadora.
“Mas isso não foi tudo que o senhor descobriu, foi?” Meu tio indicou ou‐
tro pedaço de papel que despontava do bolso da casaca do capitão.
“Gostaria que fosse”. Norwood suspirou e retirou o bilhete. “Outra família
está exigindo que investiguemos o desaparecimento de sua filha. Peço que me
acompanhem imediatamente”.
Meus joelhos fraquejaram. Tão logo... a possibilidade de um novo corpo.
O olhar de Thomas encontrou o meu. Ele não precisou dizer uma palavra se‐
quer — dois cadáveres e um possível terceiro em apenas dois dias. O que tí‐
nhamos diante de nós, mais uma vez, era o início da carreira de um assassino.
Um que tinha acabado de começar seus feitos sombrios.
O tecido escarlate derramava-se como sangue fresco no chão da cabine da pri‐
meira classe da srta. Crenshaw, um talho feio em uma câmara que, em outra
circunstância, seria muito bem equipada. Fiquei parada sobre a bagunça, com
as mãos nos quadris, examinando as sedas da mesma maneira que imaginava
que Thomas estava fazendo a meu lado, tentando discernir a ordem do caos.
Era uma tarefa descomunal, especialmente porque eu estava ciente demais da
necessidade de discrição, uma vez que os olhares atentos de seus pais perfura‐
vam minhas costas. Eu não precisava possuir as habilidades dedutivas excepcio‐
nais de Thomas para saber que não ficariam satisfeitos com minha conclusão.
Mas, para ser franca, o destino dela era muito melhor do que o que eu ha‐
via originalmente conjecturado. Fixei meu olhar no vestido amarrotado até
quase ficar vesga, na esperança de encontrar alguma pista de para onde sua do‐
na poderia ter desaparecido. Uma que não causasse desmaios ou um escarcéu.
Lorde Crenshaw era um indivíduo conhecido, e eu sabia que a reputação de
sua família, bem como o nome, era de vital importância.
Eu me voltei para o vestido. O tecido era belíssimo — alguns dos melhores
fios em toda a Europa, pelo que eu podia ver. A única conclusão à qual cheguei
foi que era lamentável que ele tivesse sido largado no chão de maneira tão des‐
cuidada.
A srta. Crenshaw podia ser a imprudência em pessoa, mas aquilo não que‐
ria dizer que fora assassinada. Como a violência não era o problema ali, isso
significava que ela havia fugido... e mulheres jovens e solteiras não faziam tal
coisa sozinhas. Uma olhadela para os pais fez com que eu me perguntasse qual
das duas alternativas eles prefeririam que fosse verdade. Um escândalo de tama‐
nha natureza era uma espécie de morte por si só.
Duas taças de champanhe estavam apoiadas em uma mesa de cabeceira
junto a um bolo de chocolate comido pela metade, aprofundando minhas sus‐
peitas de que ela não tinha estado sozinha.
Voltei minha atenção para meu tio, mas ele estava ocupado com os mem‐
bros da tripulação que vasculhavam o dormitório, certificando-se de que não
comprometeriam possíveis pistas forenses. Depois da revelação anterior envol‐
vendo a filha do dr. Arden, o destino de todos poderia jazer na ponta de um es‐
calpelo.
Olhei para a escotilha, lembrando-me do constante fluxo de pessoas que
trabalhava nas docas antes que saíssemos do porto no dia anterior. Seria um lu‐
gar ideal para desaparecer na multidão.
“Os senhores alegam que sua filha está desaparecida desde ontem? Desde
antes que o navio zarpasse?” Eles assentiram. “Vocês chegaram a questionar a
criada?” Toquei o vestido com meus sapatos acetinados e cheios de bordados.
“Alguém deve tê-la ajudado a tirar este vestido. O corpete é um tanto compli‐
cado. Veja as amarras nas costas. É impossível que ela as tenha desenlaçado so‐
zinha”.
Thomas ergueu as sobrancelhas escuras, mas não fez nenhum comentário.
Eu o observei pelo canto do olho, reparando no sorriso que ele continha, e me
perguntei o que eu havia perdido que o tinha entretido tanto.
“Isso não indica um crime”, disse lorde Crenshaw. Notei que ele não res‐
pondeu à pergunta. Afastei minha atenção de seu bigode branco. “Nossa filha
pode estar fazendo uma visita a outro passageiro. Ou talvez tenha mudado de
ideia e retornado a Londres antes que zarpássemos”.
Pronto para agarrar-se a qualquer boia salva-vidas e proteger a reputação de
seu navio, o capitão Norwood rapidamente concordou. “Posso dizer com toda
a autoridade que não seria a primeira vez que um passageiro decidiu desembar‐
car do navio. Cruzar os mares pode ser bem desafiador para algumas pessoas”.
“Sim”, afirmou o lorde Crenshaw, parecendo esperançoso. “Provavelmente
é isso. Elizabeth possui um medo mortal da água. Quem sabe ela não queria
causar alarde e foi para casa. Ontem mesmo pela manhã ela havia mencionado
quão nervosa estava. Foi a última vez em que a vimos”.
“Ela teria levado alguém com ela? Uma acompanhante?”, perguntei, repa‐
rando na hesitação no rosto de lady Crenshaw. Era uma bela história, mas a
maioria dos contos de fada possuía um lado sombrio, especialmente quando
dizia respeito ao destino de uma princesa. “Um lacaio ou criada?”
“Eu... eu não acredito que mais ninguém esteja faltando”, disse lady
Crenshaw. “Mas Elizabeth não iria... É uma menina tão boa. Provavelmente
não queria atrapalhar nossa viagem. Não é como se ela fosse uma meretriz de
quinta categoria”.
Engoli minha resposta imediata, sentindo o rosto corar. Se ela fosse ele, du‐
vido que utilizariam tais nomes para se referirem a ela. E sua posição social de
forma alguma se relacionava com o assunto. Muitas famílias menos afortunadas
tinham mais classe do que lady Crenshaw havia acabado de demonstrar.
“A senhora deu falta de algum objeto de valor?”, perguntei. “Joias, miude‐
zas...”
Lady Crenshaw balançou a cabeça. “Apenas um anel de esmeralda. Mas
Elizabeth nunca o tirava”.
“A senhora tem certeza de que é só isso?”, insisti.
“Não ordenei que ninguém vasculhasse os pertences dela”. Lady Crenshaw
abriu a caixa de joias, passou um breve tempo remexendo seu conteúdo e fran‐
ziu as sobrancelhas. “Um colar de pérolas também não está aqui. Mas r-real‐
mente não tenho como dizer se tal fato está relacionado ao desaparecimento
dela”.
Thomas mordeu o lábio, um indício de que estava debatendo alguma
ideia. “Ela estava sozinha? Vejo duas taças de champanhe, sendo que uma delas
está com uma mancha de batom, e a outra, não”, observou ele. “Outra dedu‐
ção óbvia é que ela foi despida por seu amante depois que ambos se deixaram
levar pelo efeito do álcool”.
Todos na sala prenderam o ar. Revirei os olhos para os céus, perguntando-
me o que eu havia feito para aborrecer qualquer tipo de poder superior que pu‐
desse existir. Aquilo era a única coisa que todos deveríamos pensar, mas não fa‐
lar em voz alta. Até mesmo meu tio se enrijeceu.
“Isso explicaria a pilha de roupas”, continuou Thomas, sem se abalar com
o silêncio repentino, “a roupa de cama desarrumada e a subsequente ausência
da srta. Crenshaw. É possível que ela tenha fugido com alguém e não quis con‐
tar para seus pais. Se eu tivesse que adivinhar, diria que é alguém abaixo de sua
posição social. O que torna tudo ainda mais plausível uma vez que notamos a
mancha de tinta na fronha. Ao que parece, alguém que realiza algum tipo de
trabalho manual as tocou. Também está no cristal da taça”.
“Como ousa?!”, exclamou o lorde Crenshaw, seu rosto ficando mais verme‐
lho a cada segundo. Não sabia o que o havia perturbado mais — a ideia da srta.
Crenshaw fugindo ou partindo com alguém de uma classe inferior. “Nossa fi‐
lha jamais faria tal coisa... Sugerir esse comportamento condenável é...”
“Não se zangue, querido”. Lady Crenshaw colocou a mão no braço do ma‐
rido. “Vamos deixá-los cuidando disso e nos deitar. Elizabeth está em casa, em
Londres. Escreveremos a ela quando estivermos em Nova York daqui a uma se‐
mana. Isto tudo foi um simples mal-entendido”.
Lorde Crenshaw balançou a cabeça rigidamente para o capitão e olhou
com severidade para Thomas antes de se retirar. Quando eles se foram, me vol‐
tei para a cabine mais uma vez. Não havia sinal algum de confronto, e nenhum
respingo de sangue. A julgar pelo vestido deixado no chão, duvidava que um
assassino teria desperdiçado tempo limpando o sangue das paredes apenas para
deixar a cama e o vestido amarrotados. Sobretudo ao levar em conta a natureza
teatral do último cadáver que havíamos encontrado. Embora a segunda taça de
champanhe fosse um detalhe inquietante. Um detalhe que não parecia certo.
Era bem provável que tudo havia acontecido da maneira que Thomas suge‐
rira — uma moça que escolhera uma trajetória diferente para si mesma. Depois
de passar meia hora com os pais dela, eu diria que estava mais do que na hora
de ela fugir. Se eu tivesse permanecido mais uma hora na companhia deles, te‐
ria feito o mesmo.
Meu tio espichou o pescoço para o toalete, olhou ao redor, então empur‐
rou os óculos pela ponte do nariz. “Tudo parece em ordem, capitão. Pela inspe‐
ção preliminar, não acredito que houve intenções perversas aqui. Ao que me
parece, se trata de uma jovem que talvez seja um pouco...”, os olhos dele en‐
contraram os meus, “...vivaz para o padrão de sua família”.
O capitão Norwood visivelmente relaxou de alívio. Se mais um corpo apa‐
recesse naquela noite, creio que ele voltaria a remo para a Inglaterra. “Muito
bem, então. O restante desta viagem precisa seguir sem grandes percalços. Há
muito em jogo para o navio e para mim”. Ele suspirou. “Venham. Vamos levá-
los de volta a seus aposentos. Já tiveram tempo para dar um passeio pelas velas
auxiliares?” Ele pousou a mão sobre o ombro de meu tio, guiando-o pelo con‐
vés. “É verdadeiramente impressionante. Quando impulsionado pelas chami‐
nés de vapor, este navio é capaz de cortar o oceano como se fatia um peru de
Natal”.
“Que festivo”, comentou Thomas quando começamos a caminhar atrás de‐
les. “Um cruzeiro que se assemelha a uma faca cortando carne. Se isso não sig‐
nifica luxo, não sei o que mais poderia fazê-lo”.
Dei mais uma olhada na cabine, mas não vi nada fora do comum. Ainda
assim, meu estômago se revirou. Ignorei. Uma terceira mulher não havia sido
assassinada na segunda noite a bordo daquele navio. Era um feito felizmente
terrível demais até mesmo para o assassino que havia atravessado um corpo
com sete lâminas e o disposto como uma carta de tarô. Thomas me ofereceu o
braço e eu aceitei, deixando a cabine vazia para trás, embora a inquietação ti‐
vesse se assentado como uma farpa e permanecesse logo abaixo da superfície.
8. O QUE HÁ EM UM NOME?
Cabine de tio Jonathan
RMS Etruria
3 de janeiro de 1889
Apanhei minha estola de pele e deixei a saleta das mulheres assim que con‐
segui me libertar das conversas sobre como havia sido sentir o toque abrasador
do mestre de cerimônias em minha pele. Para integrantes da alta sociedade, elas
definitivamente não se afastavam, encabuladas, de conversas tão indecorosas.
Ninguém sequer me lançou um olhar acusatório ou crítico. Era como se esti‐
vessem todas sob algum tipo de feitiço.
Enrosquei-me mais na estola, tentando ignorar o ar cortante quando saí do
corredor e me apressei pelo convés vazio. Pequenos flocos de neve começavam
a cair, não prometendo, tampouco negando, que uma tempestade estava a ca‐
minho. Uma figura recostada na parede de barcos a remo alcançou meu campo
de visão.
Mefistófeles tocou a cartola. “Estou satisfeito que a senhorita decidiu me
encontrar”.
“Por que me escolheu para aquele número?”
“Quer a verdade ou uma versão mais agradável aos ouvidos?”, perguntou
ele.
“Não desejo versões agradáveis da realidade, senhor...”
“Ah. Vamos lidar com apenas uma verdade por vez, certo?”
Ele caminhou até a balaustrada do deque, inclinando a cabeça em minha
direção. Neve dançava e rodopiava ao nosso redor, embora ele não demonstras‐
se sentir frio. Eu, por outro lado, me aninhava na estola, desejando também ter
um sobretudo.
“Eu a escolhi porque acredito que você busca a verdade oculta na mentira.
Os outros deleitam-se com a magia e o espetáculo. Você é fascinada com o co‐
mo. Não creio que esteja fascinada por mim, ou pela ilusão que ofereço... a dis‐
tração”. Ele me fitou, buscando algo que eu não saberia dizer o que era. Um
momento se passou, sem que ele alterasse sua expressão. “O que a senhorita faz
para aquele homem mais velho com quem viaja?”
Não vi mal algum em admitir o caminho que tinha escolhido. “Estudo
medicina forense com meu tio. O sr. Cresswell e eu somos seus aprendizes”.
Abri minha boca, então a fechei, hesitante ao falar sobre os casos do Estripador
ou Drácula. Ambos eram cruéis e íntimos demais para serem divididos com
um estranho. “Estamos a caminho da América para trabalhar em um novo ca‐
so, na verdade”.
“Você estuda os mortos?” Ele ergueu uma sobrancelha para cima da másca‐
ra enquanto eu assentia. “Isso significa que está ciente da escuridão e deseja tra‐
zer a luz à tona. Não posso deixar de ficar igualmente intrigado por isso. Eu
crio o caos, e a senhorita fabrica ordem a partir dele. Não somos tão diferentes,
você e eu. Ambos temos um cerne construído com base na ciência, apenas o
expressamos de formas distintas”.
Aquilo soou estranhamente familiar aos pensamentos que rondavam mi‐
nha mente. Eu não desejava encontrar semelhança alguma com aquele crápula,
mas não podia negar sua análise. Apesar dos avisos internos de que eu deveria
ficar longe daquele rapaz, minha curiosidade sobre suas invenções mecânicas
fora atiçada.
“Por que escolheu o caminho do ilusionismo?”, eu quis saber. “Você pode‐
ria ter sido um químico grandioso. Não deseja auxiliar os outros?”
“Alguns podem argumentar que o entretenimento é uma forma de ajudá-
los”.
Revirei os olhos. “Produzir fumaça em espelhos não é o mesmo que criar
avanços científicos ou tecnológicos que poderiam erradicar doenças e salvar vi‐
das”.
“Respeitosamente discordo, srta. Wadsworth. Há muitas formas de auxiliar
os outros. O riso e a distração por vezes são coisas das quais as pessoas necessi‐
tam em conjunto com diagnósticos médicos e tratamentos”. Mefistófeles me
estudou com o olhar. “A senhorita pode querer explorar outras possibilidades já
que é uma aluna tão talentosa da ciência. Posso apenas oferecer algumas horas
de distração, mas para alguns isso é o suficiente para atravessar tempos sombri‐
os. A esperança é uma força invisível e poderosa. Não desdenhe de sua potên‐
cia”.
Pisquei, espantada com quão certo ele estava e também com a maneira ig‐
norante com que eu havia enxergado a situação. Uma memória antiga emergiu
do túmulo em que eu a havia enterrado. Com frequência, eu lera histórias para
minha mãe em seu leito de morte na esperança de afastá-la de sua dor, mesmo
que apenas por alguns instantes. Parte de mim se irritou por eu ter levado uma
lição de um jovem tão ardiloso, e minhas bochechas esquentaram diante do
embaraço de não ter entendido seu ponto de vista antes. As pessoas de fato pre‐
cisavam ser entretidas, ter suas mentes ocupadas por pensamentos em vez de
um bombardeio constante de negatividade. Os ânimos de minha mãe sem dú‐
vida pareciam mais elevados sempre que eu abria um livro e a levava por uma
nova aventura.
“Estou...”
Mefistófeles subitamente envolveu uma de minhas mãos na dele e deu um
beijo casto nela. Meu pedido de desculpas minguou enquanto eu assimilava o
ardor em seus olhos e o modo como eles miraram um ponto acima de meus
ombros. Ele estava encenando mais um espetáculo, e não era para meu bem.
Puxei a mão, mas foi tarde demais. Ele sorriu.
“Foi um grande prazer, srta. Wadsworth”, disse Mefistófeles. “Talvez nos
encontremos novamente em nosso local favorito...” Ele se inclinou para que
apenas eu pudesse ouvir a próxima parte. “Digamos, em torno da meia-noite?
Parece que nosso encontro chegou a um fim abrupto e ainda tenho muito a
discutir, se a senhorita estiver interessada?” O mestre de cerimônias assentiu pa‐
ra alguém atrás de mim, seu sorriso antagônico ainda no lugar. “Boa noite. Sr.
Cresswell, eu imagino? Nós estávamos mesmo falando sobre o senhor. E quem
é a adorável senhora a seu lado?”
Deixei o ar sair, ainda não querendo me virar e encarar Thomas.
“Ah? Vocês estavam falando sobre mim?” Thomas soou cético e pareceu
ainda mais descrente quando girei e encontrei seu olhar fixo em mim. “Uma
honra, considerando que não possuo uma cartola cheia de truques e rosas tin‐
gidas. Ou a habilidade de saltitar pelo palco. Embora de fato eu seja sombria‐
mente encantador. Entendo o interesse”. Ele fez uma pausa, como se ponderas‐
se sobre suas próximas palavras. “Vejo que ainda está usando a máscara. Não
incomoda?”
“De forma alguma. Ela é revestida de veludo”. Mefistófeles sorriu para a
sra. Harvey de forma tão radiante que temi que ela desfalecesse com tamanho
ardor. “O senhor pretende me apresentar a esta bela jovem, ou devo morrer de
vontade?”
“Sra. Edna Harvey, senhor...” A sra. Harvey franziu as sobrancelhas. “Hã,
senhor...?”
“‘Mefistófeles’ é perfeitamente adequado, se não se importar”. Ele inclinou
a cabeça. “Se me derem licença, tenho assuntos do consórcio para tratar. Boa
noite a todos”.
Ficamos ali parados no deque por um momento, observando enquanto o
mestre de cerimônias seguia seu caminho até a trupe e quaisquer que fossem os
assuntos que os artistas do festival tinham a tratar depois do espetáculo. Uma
vez que ele estava fora do alcance de sua voz, a sra. Harvey largou o braço de
Thomas e começou a se abanar.
“Ele é um tanto intrigante, não é?”, perguntou ela. “Tão misterioso com
aquela máscara e aquele nome. Será que ele comete deslizes? Não parece ser fá‐
cil adotar uma nova identidade dessa forma. Imagino que deva retirar aquela
máscara quando dorme...”
“Talvez um de nós devesse se esgueirar para os aposentos dele para desco‐
brir”, provoquei.
A sra. Harvey me olhou com atenção. “Não me importaria em me volunta‐
riar para essa tarefa”.
Thomas sorriu, então tomou o braço da sra. Harvey novamente, guiando-
nos até nossos aposentos em uma impressionante demonstração de boas manei‐
ras. “Duvido que qualquer um dos artistas sequer saiba sua verdadeira identida‐
de. Há uma clara explicação para as máscaras, e tenho certeza de que não é ape‐
nas para criar uma aura de mistério. Aposto que ele ou está se escondendo de
alguém, ou acobertando um passado sórdido”.
Bufei da forma mais deselegante possível. “Esta é uma de suas infames de‐
duções baseadas na observação?”
“Zombe de mim o quanto quiser”. Thomas deu de ombros. “Mas suas ma‐
neiras tem um quê de aristocracia. Assim como suas botas”.
Eu não estava surpresa por ver que Thomas mais uma vez havia adivinhado
algum detalhe aparentemente impossível a partir do ar salgado do oceano. “Tu‐
do bem. Conte-me mais sobre as botas de Mefistófeles e como elas indicam
aristocracia segundo o diário de deduções de Thomas Cresswell”.
“Aposto que algo terrível aconteceu a ele. Coitado”. A sra. Harvey inter‐
rompeu o passo na frente de sua cabine. Ela olhou para o deque atrás de nós.
“Srta. Wadsworth, já que sua cabine é a próxima, penso que não seria proble‐
ma se Thomas acompanhá-la sozinho desta vez. A não ser que você ache impu‐
dente demais. De repente estou sentindo...”
“Uma necessidade de encontrar seu tônico para viagens?”, sugeriu Thomas,
tendo dificuldade para manter o riso afastado de sua voz quando ela o cutucou
no peito. “Ai”.
“Calado”, disse ela, mas não de forma indelicada. “Não é cortês zombar
dos mais velhos. Um dia você também vai precisar de um gole de um tônico
para viagens para conseguir dormir”.
Ignorei o tom de brincadeira entre eles e sorri para nossa acompanhante re‐
laxada. Era totalmente impróprio que Thomas me levasse a qualquer lugar sem
uma acompanhante, mas já havíamos nos encontrado em situações bem mais
comprometedoras do que uma curta caminhada, para o horror de meu pai, se
ele um dia descobrisse. “Está tudo bem, sra. Harvey. Como nossos quartos são
interligados, tenho certeza de que ninguém ficará escandalizado demais. A mai‐
oria dos passageiros já se recolheu, de todo modo. Não vamos nos demorar”.
“Que noite mágica estamos vivendo. E nenhum cadáver arruinou a diver‐
são!” Ela plantou beijos em minhas bochechas e nas de Thomas, então abriu a
porta. “Estou completamente exaurida”.
Assim que a sra. Harvey fechou a porta, Thomas e eu caminhamos os pou‐
cos passos até um banco que ficava entre meus aposentos e os próximos. Com a
sensação de que ele tinha algo a dizer, eu me sentei e dei tapinhas no lugar ao
lado. Os flocos de neve haviam parado de cair, mas o ar cortante ainda se fazia
presente. Sempre atento, Thomas retirou seu sobretudo e o envolveu sobre
meus ombros.
“Obrigada”, eu disse. “Você estava dizendo algo intrigante sobre botas,
creio eu”.
“As solas não tinham arranhões”, retomou ele, olhando ao redor antes de se
sentar e esfregar as mãos. “Antes que você possa dizer, não, não acredito que
uma boa polida e uma camada de brilho trariam explicações. Elas são novas.
Ou ao menos não foram muito usadas”.
“Talvez ele apenas as use durante os espetáculos”.
Thomas se recostou no banco, seu sorriso penosamente dúbio na escuri‐
dão. “Uma ótima teoria, Wadsworth, mas o modo como ele se movimenta e
salta pelo palco... Mesmo se usasse aquelas botas em particular durante os nú‐
meros, elas estariam um pouco gastas. Já que nenhum arranhão pode ser en‐
contrado, o que isso pode indicar?”
“Que ele comprou botas novas”.
“Precisamente. E mesmo um apresentador bem-sucedido não gastaria tan‐
to no couro fino de sua escolha”, disse Thomas. “Ele com certeza não compra‐
ria pares tão caros toda vez. O que me leva a acreditar que ele é alguém que
vem de uma família abastada e não pondera muito antes de fazer gastos frívo‐
los. Se soubesse que precisaria substituir suas botas toda noite, você compraria
os pares mais custosos?”
Ele estava certo. “Bem. Isto também explicaria a insistência dele em usar
uma máscara e um nome artístico, não?” Estudei o rosto de Thomas, absorven‐
do os ângulos agudos e familiares de seu perfil. “Ainda assim, você acredita que
ele é perigoso”.
“Ele é reservado, manipulador, capaz de fazer coisas inofensivas parecerem
sinistras, e coisas sinistras parecerem inofensivas. Duas jovens estão mortas.
Com base somente nessas razões, eu não confio nele”. Thomas ignorou as re‐
gras de etiqueta de nosso mundo e tomou uma de minhas mãos na dele, entre‐
laçando nossos dedos, sua expressão pensativa. “Ele deseja algo de você. Não
tenho certeza do que é, mas tenho um palpite de que não será para nada bom.
Quaisquer que sejam as motivações de Mefistófeles, são estritamente para o be‐
nefício dele ou do festival. E se ele machucar você...”
“Sou capaz de cuidar de mim mesma, como você bem sabe. Já me encon‐
trei sozinha com ele e sobrevivi, não há motivo para se preocupar. Acredito que
me aproximar dele poderá ser benéfico de diversas maneiras”.
Thomas se levantou e caminhou perto da chaminé mais próxima à proa do
navio, os ombros encolhidos por causa do vento ou pelo plano parcial que eu
havia deixado escapar. Eu me levantei e o segui, desejando que pudesse devol‐
ver as palavras para dentro de minha boca. Sua respiração provocava uma fu‐
maça que era deixada para trás, como fumantes descontraídos em uma sala de
charutos, dando baforadas de um branco acinzentado que flutuavam preguiço‐
samente até as nuvens. Se ao menos ele estivesse tão tranquilo quanto aquela
imagem. Thomas estava tão tensionado que eu temia que saltasse para o oceano
a qualquer momento.
“Francamente”, eu disse, observando enquanto ele andava em círculos,
“você sabe que é o melhor método de distração, Thomas. Propicia a você uma
excelente oportunidade para trabalhar sua magia Cresswell, e me dá tempo pa‐
ra me aproximar dos artistas. Não fique com inveja por não ter pensado nisto
primeiro. O mau humor não lhe convém”.
Ele parou de andar e me encarou como se uma segunda cabeça tivesse cres‐
cido de mim. “Adentrar a jaula de um leão pode ser a melhor forma de distra‐
ção, mas não é o meio mais seguro, Wadsworth”.
“A própria natureza de nosso trabalho é perigosa”, argumentei. “Esta é ape‐
nas mais uma ferramenta na caçada de assassinos. Se a atenção de todos estiver
focada no desenrolar do drama entre mim e Mefistófeles, não voltarão os olhos
para você ou meu tio”.
“Ah, é mesmo? Então ninguém prestará atenção em seu pobre e dolorosa‐
mente atraente amante abandonado enquanto você se aproxima do mestre de
cerimônias?” Ele arqueou uma sobrancelha. “Talvez eu me faça de isca. Tenho
certeza de que poderia utilizar meu charme para conquistar os corações de al‐
gumas das artistas”.
“É este o problema? Você se sente excluído da aventura?”, perguntei. “Seu
trabalho é muito mais empolgante e importante do que flertar com o mestre de
cerimônias. Você pode estudar arranhões em botas e calcular como eles foram
parar lá e quem é o responsável. Viu só? Um trabalho muito importante”.
“Então você deveria ter a honra de desempenhar meu papel”, disse ele.
“Sou totalmente a favor da igualdade em nossa parceria”. Apertei os lábios e ele
sorriu, vitorioso. “Foi bem o que pensei. Não há motivo para você se colocar
em perigo. Mefistófeles é um possível assassino. Passear no convés com ele é tão
sensato quanto eu colocar minha cabeça dentro da boca do leão que mencio‐
nei. E embora isso possa ser uma grande diversão, com certeza é uma má
ideia”.
“Eu discordo”.
“Então está dizendo que eu deveria colocar minha cabeça dentro da boca
do leão?”
“Se você quisesse, eu o apoiaria mesmo sem gostar da ideia”. Empinei o
queixo. “Se Mefistófeles for o assassino, não será tolo o suficiente para me ata‐
car, sabendo que seria o primeiro suspeito para você e meu tio. No entanto, fi‐
car próxima dele, ganhar sua confiança, até mesmo flertar com ele vai permitir
que eu me infiltre em sua trupe. Se ele confiar em mim, os outros também
confiarão. Quem sabe o que poderei observar desta maneira?”
“Há muitas suposições envolvidas”, devolveu Thomas, com a voz cuidado‐
samente controlada. “Se algo der errado, você também estará na linha de fogo.
O risco não vale a recompensa neste caso, Wadsworth”.
“Então sinto dizer que estamos em um impasse. Penso o exato oposto. Al‐
guns riscos valem a pena, mesmo que pareçam impossíveis no início”.
Thomas bufou, mas sua expressão se misturou com uma leve repulsa. “Vo‐
cê soa como ele agora. Na verdade, ouso dizer que gosta de ficar perto dele. Ad‐
mita. É isto que...”
Estiquei o braço para ele e virei seu rosto para o meu. “Ele não vai me ma‐
chucar, tampouco ficar entre nós, Cresswell. Não me importo com o tipo de
truque que ele tente criar. Meu coração pertence a você, e nenhuma ilusão vai
roubá-lo”.
Antes que ele pudesse responder, eu me inclinei e pressionei a boca contra
a dele. Thomas me puxou para perto, suas mãos deslizando em minha cintura,
duas âncoras em um oceano de incertezas. Permanecemos daquela maneira,
trocando beijos sob constelações cintilantes e na neve que esporadicamente
caía, até que os sons de passageiros retardatários, retornando tarde da noite, nos
separaram.
Com esforço, Thomas me acompanhou até a porta de meus aposentos e
me deu boa-noite com um beijo casto. Mirei a lua, meus pensamentos tão dis‐
persos quanto as estrelas. Se Thomas tivesse razão, e estava certa de que tinha,
então quem era o mestre de cerimônias e de que ele estava fugindo, ou o que
ele escondia?
Entrei em meu dormitório e olhei de esguelha para o relógio. A meia-noite
rapidamente se aproximava. Depois de trocar minha estola de pele por um so‐
bretudo de lã, escutei atrás da porta que interligava meus aposentos com os da
sra. Harvey, aliviada ao ouvir seu ronco leve. Com sorte, ela dormiria a noite
toda e não entraria em meu dormitório para ver se eu estava bem. Eu jamais
conseguiria adormecer naquele momento, então me esgueirei pelo convés, na
esperança de obter mais respostas com nosso suspeito.
Seu dedo enluvado pairou sobre minha bochecha, nunca a tocando direta‐
mente, mas intensificando minha pulsação mesmo assim. Eu realmente queria
que Liza voltasse para casa. Queria que ela fosse feliz e livre de julgamento.
Contudo, eu sabia que estava navegando em águas traiçoeiras. Só porque en‐
xergava a devastação que resultaria de tal escolha não me dava o direito de esco‐
lher por ela.
O amor era uma coisa delicada e complexa — uma zona moral cinzenta.
Coisas grandiosas e terríveis eram frequentemente feitas em seu nome. Mas po‐
deria algo ser realmente feito por amor se possuía o potencial de ferir o coração
de alguém? Eu estava hesitante.
“Parece um acordo justo, não?”, pressionou ele. “Tudo que tem que fazer é
participar do ato final, sem contar a uma alma sequer o que está fazendo, e tu‐
do que deseja será seu. Até vou lhe dar aquelas aulas de ilusionismo que havia
prometido. Já que você se tornou uma espécie de celebridade na sociedade lon‐
drina, sua presença trará credibilidade a meu trabalho científico; minha ajuda
salvará sua prima. O que você tem a perder?”
As palavras de seu discurso de abertura imediatamente me ocorreram. O
que vocês vão perder antes que a semana termine? O coração? A cabeça? Talvez per‐
cam a vida, a própria alma. As sombras a nossa volta se aproximaram. Aquela
barganha parecia simples demais, fácil demais, para que eu concordasse com
ela. O que significava que havia algum benefício oculto para Mefistófeles e al‐
gum prejuízo para mim. Examinei sua expressão cuidadosamente composta.
“Eu...”
“Sim?” De algum modo, ele conseguira se mover de novo sem que eu per‐
cebesse. Seu cheiro era cálido e fragrante como um incenso. Notas de gengibre
e algo cítrico misturadas com baunilha e lavanda nos envolveram. Resisti ao
impulso de respirar fundo. Seu olhar viajou por meus contornos, me observan‐
do abertamente.
“Tudo que tenho que fazer é subir ao palco durante o ato final?”
“Mais ou menos”. Ele sorriu. “Ainda estou elaborando os detalhes”.
Liza tecnicamente iria apenas descobrir a verdade, então tomaria uma deci‐
são com base nos fatos apresentados a ela. Nada estaria escondido. Se ela ainda
escolhesse continuar no festival e com Houdini, então eu não interferiria nova‐
mente, embora tivesse certeza de que meu tio teria muito a dizer. Minhas pal‐
mas formigaram. Era apenas uma troca de informação. Eu não a estava forçan‐
do ou tomando uma decisão por ela. Tudo que eu tinha que fazer era subir ao
palco para aquele tolo ato final. Não parecia uma tarefa penosa. Ainda assim...”
“Temos um trato, srta. Wadsworth?”
A indecisão chegou ao fim. Eu não podia me acomodar na sensação de se‐
gurança, não quando o risco para minha prima era tão grande. Aquela obriga‐
ção moral era o suficiente. “Se eu aceitar sua oferta... vou precisar de mais deta‐
lhes do que Harry Houdini está escondendo. Sem mentiras”.
Mefistófeles esticou o dedo mindinho em juramento. “Sem mentiras”.
Mordi o lábio, desejando que a curiosidade não estivesse me dominando
por inteiro. “Então aceito sua barganha”.
Um dos lados da boca de Mefistófeles se ergueu, e meu coração bateu de‐
pressa em protesto. Seu olhar não prometia que não haveria arrependimentos.
Muito pelo contrário. Mas o aviso era tardio demais, de todo modo. Eu já ha‐
via feito um acordo com o Diabo e iria até o fim.
“Que informação você possui sobre Houdini?”
“Há uma mulher na América para quem ele escreve. Frequentemente”. Ele
balançou a cabeça. “Não preciso ser um inspetor de polícia para saber o quanto
ele a ama. Todo vilarejo ou cidade por onde passamos, ele manda uma nova
carta”. A expressão de Mefistófeles se transformou de presunçosa para penaliza‐
da. “Mesmo depois que ele conheceu Liza, as cartas nunca pararam de ser envi‐
adas. Sinto dizer que, bem, para ser honesto, sei que ele não mencionou este as‐
sunto para ela”.
O crápula! Apaixonado por outra mulher, endereçando cartas para ela de
cada aventura — e tudo isso por trás das costas de minha querida prima. Fe‐
chei os olhos, na esperança de amainar a raiva. Fingir que eu não fazia ideia do
tratante mentiroso que ele era seria difícil, ainda mais quando ansiava por evis‐
cerá-lo.
“Por que se importa com a reputação de Liza?” Inspecionei o rosto do mes‐
tre de cerimônias, buscando qualquer indício de sua verdadeira motivação. Co‐
mo quase tudo nele, a expressão estava cuidadosamente controlada, não me
oferecendo nada além de um leve esgar. Um esgar com a medida certa de ino‐
cência para fazer com que o problema parecesse valer o risco. “O que isso im‐
porta para você?”
“Não importa. Apenas preciso promover meu espetáculo, e uma vez que os
passageiros estão cientes de seu histórico forense, você, minha cara, vai entrar
no jogo e dizer que meus truques são realmente mágicos. Se você, uma perita
em seu ramo, está convencida, então minha reputação melhorará. E preciso
disso desesperadamente, uma vez que corpos ficam aparecendo durante ou de‐
pois de meus números. Esta informação é somente uma ficha de barganha,
uma que eu não usaria se não precisasse”. Um sorriso se espalhou devagar por
seu rosto. “Não aparente estar tão abalada. Eu já disse a você que não sou um
homem decente”.
Suspirei. Não, ele não era. “Você percebe quão impossível será convencer
os passageiros de que mágica existe, não percebe?”
Mefistófeles ergueu a mão. “Não acredito que seu trabalho será tão dificul‐
toso assim, srta. Wadsworth. Sua adorável presença na hora certa no ato final é
tudo de que preciso”.
Refleti por um instante. “Está pedindo para que eu seja um de seus artis‐
tas?”
“Apenas por uma noite. Mas a senhorita terá que treinar com os outros to‐
das as noites para entrar no ritmo”.
“Fantástico”. Esfreguei minhas têmporas. “Está me forçando a aprender
com os criminosos que contratou”.
“Artistas”, corrigiu ele.
E, era bem possível, ao menos um assassino. “Bem, eles não foram muito
receptivos quando compareci ao treino desta manhã. Não tenho certeza se vão
me ajudar com sua barganha”.
Ele deu um passo para a frente, e seu sorriso perigoso retornou. “É por isso
que eu mesmo lhe darei aulas na frente deles. Deixarei que vejam como você é
minha predileta... Então farão de tudo para ganhar sua atenção”.
“Mas vão acreditar que há algo mais inapropriado acontecendo entre nós”.
Outra constatação me ocorreu quando ele aquiesceu. “Na verdade, você está
torcendo para que isso aconteça”.
“De fato, minha pupila já está pegando o jeito”. Ele abriu um largo sorriso.
“Então agora você entende por que o... sr. Cresswell, não é? Ele não pode saber
sobre nossa barganha. Precisamos que isso pareça autêntico. Deixe-os pensar
que estou realmente cortejando você e conquistando sua mão. Ficarão muito
mais propensos a deixar que você faça parte da trupe. E preciso que tudo corra
tranquilamente no ato final, sobretudo depois dos assassinatos. Os investidores
ficam inseguros de associar seus nomes e dinheiro a tais coisas”.
Thomas confiava completamente em mim; no entanto, eu sabia que ele fi‐
caria um pouco desconfortável com aquele acordo, ainda mais depois de nossa
conversa anterior. Hesitei. “Thomas é excelente ao guardar segredos. Além dis‐
so, talvez você queira que ele também participe do ato final. Ele é muito talen‐
toso...”
“A reação dele diante de nosso suposto envolvimento precisa ser genuína,
srta. Wadsworth. Se ele falhar em sua atuação, os outros saberão que não há
nada entre nós. Eles nunca se dirigirão a você ou desejarão conhecê-la se detec‐
tarem um sinal sequer de desonestidade. Preciso que todos estejam de acordo
com a missão de trabalhar para garantir o sucesso deste festival. Nada ficará em
meu caminho, muito menos um pretendente sensível. Trabalhei com muito
afinco e sacrifiquei muito nesta empreitada. Não falharei agora”.
Dei um passo na direção da balaustrada, permitindo que a brisa gelada or‐
ganizasse meus pensamentos. Thomas talvez não ficasse contente, mas aquele
estratagema duraria apenas quatro dias. Naquele meio-tempo eu poderia prote‐
ger Liza das mentiras de Houdini, aprender ilusionismo como eu queria e apli‐
cá-lo a meus estudos forenses, além de poder conviver com a trupe misteriosa
do festival. A mesma trupe que poderia estar abrigando um assassino. Nosso
trato podia ter prejuízos, mas também alguns benefícios. Eu precisava ter con‐
tato com os artistas para solucionar o caso, e devido à postura distante deles em
relação a mim, aquela era uma oportunidade que não poderia recusar.
Mefistófeles foi até onde eu estava, seu braço quase roçando no meu quan‐
do ele se inclinou pela balaustrada para observar o luar oscilante sobre as águas.
Aquela era uma transação comercial e nada mais. Quaisquer avisos de perder
minha cabeça ou coração voaram para longe na rajada de vento seguinte.
“Muito bem”. Estendi a mão, apreciando quando ele devolveu o gesto e a
apertou. “Vamos jogar seu jogo de faz de conta, mas necessito de provas para
Liza sobre Houdini. Penso que a notícia deve vir de mim. Quando e onde eu
escolher”.
Ele relanceou para nossas mãos, quase parecendo surpreso ao constatar que
ainda estavam entrelaçadas, e abruptamente me soltou. “Alguma outra exigên‐
cia?”
“Você não pode me beijar. Não importa o que aconteça. Este é um papel
que não desejo desempenhar”.
“Interessante”. Seus lábios se curvaram para cima. “Muito bem. Desde que
a senhorita não deseje que eu o faça, tem minha palavra”.
Mantive a atenção em seus olhos, me recusando a olhar para baixo, para
que ele não tivesse pensamentos sórdidos. “Bom. Então estamos combinados”.
Enrolei o manto em meu corpo e perscrutei o deque vazio. “Vou encontrá-lo
depois do desjejum para... O quê? Por que está balançando a cabeça?”
“Nós temos quatro dias até o ato final, srta. Wadsworth”. Ele estendeu o
braço. “Sua primeira aula começa esta noite”.
Naquela noite, o salão de jantar havia sido novamente transformado. Mesas es‐
tavam cobertas por sedas azul-escuras, as superfícies brilhantes o suficiente para
refletir as luzes, enquanto taças de cristal cintilavam como purpurina. Festões
de copos-de-leite e eucalipto pendiam de cada uma das mesas e tocavam o piso
xadrez — exagerados e fragrantes. Apesar de ansiar por deslizar os dedos na su‐
perfície aveludada das pétalas, consegui manter um ar de dignidade. Olhei ra‐
pidamente para Liza e a sra. Harvey, que tinham expressões similares de admi‐
ração. Eu não era a única que sentia como se tivesse adentrado um sonho cheio
de estrelas.
Thomas e meu tio já estavam mexendo suas bebidas, as cabeças curvadas
no que parecia ser um debate acalorado, quando a sra. Harvey, Liza e eu entra‐
mos no salão. Eu tinha dado desculpas para não repassar os detalhes do caso
com eles naquela tarde, me trancando em meus aposentos para praticar o ilusi‐
onismo com as cartas. Foi um desastre. Pelo menos, me exercitei ao recolher as
cartas depois que as derrubei no chão. Embora eu estivesse me aperfeiçoando
no truque de troca relâmpago de cartas que Andreas me ensinara.
Sempre atento a minha presença, Thomas direcionou a atenção para mim,
e senti uma onda de calor me invadir quando nossos olhos se encontraram
através do salão. Ele disse algo para meu tio, afastou a cadeira e, um momento
depois, estava a meu lado, oferecendo um braço. Meus batimentos se intensifi‐
caram quando nos tocamos.
“Senhoritas. Vocês estão todas belíssimas esta noite”. Ele colocou uma das
mãos ao redor da orelha, inclinando a cabeça para um lado. “Ouviram isso?
Acredito que seja o som dos corações se estilhaçando pelo salão. Por favor, te‐
nham cuidado ao pisarem sobre os cacos ensanguentados”.
Balancei a cabeça. “Francamente? ‘Cacos ensanguentados’?”
“Você os culpa por sentirem inveja? Eu também estaria com uma inveja
brutal de mim. Na verdade, talvez eu me desafie para um duelo depois do jan‐
tar”.
Thomas sorriu, acompanhando-nos até a mesa sem mais provocações. Eu
jurava que às vezes seus modos eram tão corteses, tão delicadamente régios, que
eu tinha dificuldade de lembrar que ele era o mesmo rapaz que fora chamado
de autômato durante as investigações do Estripador. Ele se inclinou, sussurran‐
do para que apenas eu pudesse ouvir:
“Tivemos um dia interessante. O capitão Norwood nos convocou para dis‐
cutir um assunto um tanto delicado”. Ele puxou minha cadeira, fazendo o mes‐
mo para a sra. Harvey. Um garçom havia se aproximado para auxiliar Liza.
Thomas sentou-se a meu lado. “Ao que tudo indica, uma cabine da primeira
classe foi invadida na noite passada. Em algum momento durante o jantar e o
espetáculo”.
“Que coisa estranha”.
“De fato. Passageiros assassinados, uma garota desaparecida, um arromba‐
mento... Este navio é um pesadelo flutuante para o capitão”.
As luzes dos candelabros diminuíram. Não demoraria muito para que o es‐
petáculo começasse. Garçons movimentaram-se pelo salão com uma tranquili‐
dade ensaiada, depositando bandejas cobertas em cada uma das mesas. Eu não
sabia ao certo qual era o menu daquela noite, mas o que quer que fosse tinha
um aroma divino, o que ajudava a disfarçar o odor de querosene que vinha do
palco. Minha boca se encheu de água quando os cheiros de manteiga, limão e
alho cumprimentaram meus sentidos. Um jarro de vinho branco foi colocado
em nossa mesa, indicando que a entrada poderia ser de frutos do mar. Torci pa‐
ra que fossem camarões ou escalopes, ou até mesmo uma lagosta robusta e sa‐
borosa.
Eu me libertei dos pensamentos famintos, retomando o assunto em ques‐
tão. “Como o capitão ou seus ocupantes sabiam que a cabine havia sido invadi‐
da?”
“O baú da jovem havia sido vasculhado”, respondeu Thomas, erguendo a
tampa de sua bandeja. Metade de uma lagosta assada à perfeição e refogada em
manteiga de alho com ervas fragrantes repousava no centro do prato. Quase ge‐
mi ao erguer minha tampa. “Suas peças mais finas de seda e algumas echarpes
desapareceram. Como você bem sabe, a criada dela teria cuidado muito bem
desses acessórios. Nunca os deixaria espalhados desse modo”.
“Por que ela estava viajando com peças de seda?”, perguntei.
“Estava levando-as para Nova York para fazer vestidos com uma costureira
de renome. Ao que parece, o padrão no tecido foi desenhado para um baile à
fantasia. Tinha trepadeiras envolvendo árvores próximo do que seria a bainha,
e constelações perto do que seria o corpete”.
“Então o tecido foi roubado, mas a mulher se deu conta do furto, certo?”
“Sim”, disse Thomas, fazendo uma pausa para beber um gole de vinho, “ela
reportou o desaparecimento para as criadas que foram arrumar seus aposentos”.
“Hmm. Bem, se o tecido aparecesse, seria inconfundível”. Era tudo tão es‐
tranho. Peças de tecido perdidas, moças que pareciam desaparecer sob o céu es‐
curo e cintilante. Dois assassinatos hediondos. Tudo estava interligado, mas o
como era a dúvida da vez. Havíamos tido uma trégua na noite anterior, embora
eu temesse que não demoraria muito para que outro corpo surgisse. “O que
você pensa disso?”
Thomas cortou a lagosta, fazendo uma pausa para me responder antes de
dar uma mordida. “Francamente? Não tenho certeza. Não há muito acontecen‐
do em termos de pistas, o que dificulta qualquer tipo de dedução. Seda desapa‐
recida não é algo assim tão incomum. Estamos em um navio cheio de passagei‐
ros, muitos dos quais não precisam assinar seus nomes verdadeiros no registro
de embarque. Tecidos finos valem uma quantia considerável de dinheiro. Essa
pode ser a única motivação para o ladrão”.
“A menos que tudo esteja relacionado. Neste caso, o roubo não seria a úni‐
ca motivação”.
“Infelizmente, não temos como saber o que está relacionado e o que não
está. Até o momento sabemos que ela não tem ligação alguma com ambas as
vítimas”. Thomas deu um gole em sua taça. “Conjecturas e especulações não
são fatos concretos”.
Ele soava demais como meu tio. Embora eu concordasse que me separar de
minhas emoções era pertinente dentro do laboratório, também sabia o valor de
confiar em meus instintos quando algo não parecia certo sobre o roubo.
Dei uma mordida cuidadosa em meu jantar, me deliciando com o sabor
apetitoso, no momento em que as luzes foram apagadas. Voltei minha atenção
para o palco, onde faixas prateadas e de um tom pálido de azul pendiam do te‐
to — com estrelas e flocos de neve amarrados nas extremidades. Aquilo simul‐
taneamente me dava a impressão de estrelas cadentes e de neve caindo. Purpu‐
rina refletia nas luzes fracas conforme as estrelas giravam nos próprios eixos.
Era magnífico — mais uma obra-prima para o Festival Enluarado.
Esperei Mefistófeles aparecer no palco em meio à fumaça e à explosão dos
címbalos. Mas me surpreendi quando uma moça pequenina girando chamas
nas laterais do corpo adentrou o salão. O odor de querosene ficou mais forte,
fazendo meu nariz arder com sua pungência. Talvez devessem ter esperado o
fim do jantar antes de começar a apresentação. O delicado sabor da lagosta es‐
tava arruinado.
Á
“Essa é Anishaa. A carta de tarô dela é o Ás de Paus”. Liza interrompeu a
conversa com meu tio e a sra. Harvey, inclinando-se para sussurrar: “O traje
dela representa o gelo”.
Dava para ver como aquilo era verdade. Seu cabelo prateado combinava
com as lantejoulas costuradas em seu corpete e tinha sido preso em grossas
tranças do alto de sua cabeça. Sua pele fora pintada de um branco-azulado nas
áreas expostas — braços, mãos, rosto e na curva das clavículas. Era arrepiante,
de certo modo, ver como ela parecia uma criatura nascida do gelo que brincava
tão ameaçadoramente com o fogo. Sua cartola e corpete eram de um branco
tão puro que quase se assemelhavam a um azul-gelo.
Na verdade, com uma inspeção mais detalhada, pude ver fios de um azul
pálido com detalhes prateados adornando todo o conjunto. Até mesmo seus
olhos — visíveis através de grandes orifícios em sua máscara — foram contor‐
nados de azul e dourado, e seus cílios estavam totalmente brancos. Ela parecia
uma estrela congelada.
Anishaa ergueu um bastão de fogo e soprou, as chamas se espalharam em
um jato como se ela fosse um dragão. Arquejos surgiram ao nosso redor quan‐
do ela gingou para a extremidade oposta do palco e repetiu o truque. Eu não
conseguia deixar de encarar enquanto ela pegava o mesmo bastão de fogo e o
engolia como se fosse uma iguaria.
“É magnífico, não é?”, perguntou Liza, seus olhos seguindo a engolidora
de fogo conforme ela dava estrelas pelo palco, parava de cabeça erguida e engo‐
lia mais um bastão. Um ajudante de palco entregou outro par de bastões em
chamas para ela, e Anishaa jogou a cabeça para trás, cuspindo fogo para cima.
“Os números podem ser mentiras ou ilusões, mas eles vivem de maneira hones‐
ta. Não escondem quem são, ou fingem seguir as regras da sociedade. Não são
como a aristocracia, que sorri para você ao mesmo tempo em que enfia uma fa‐
ca em suas costas”.
Olhei para meu prato — a comida estava divina, mas percebi que meu
apetite de repente não estava cooperando. Se Liza soubesse que a pessoa que se‐
gurava uma adaga para seu sonho de se casar com Houdini era eu, nunca mais
falaria comigo. Passei os próximos instantes com metade dos pensamentos nas
conversas que se desenrolavam ao meu redor e metade na culpa que continuava
se acumulando.
Foi só quando os primeiros gritos surgiram que fui puxada de volta para o
presente.
14. A ESTRELA
Salão de jantar
RMS Etruria
4 de janeiro de 1889
Cordas rangiam, o som evocando imagens de gigantes erguendo seus velhos os‐
sos e observando aqueles que ousavam perturbar seu repouso centenário. Mes‐
mo caminhando de braços dados com Liza, não podia negar que o convés era
um lugar arrepiante à noite.
Liza me puxou para perto. “Precisamos virar naquele corredor. As escadas
nos levarão ao próximo andar”.
O vento açoitava mechas de cabelo de minha trança, somando-se aos arre‐
pios que percorriam meu corpo desenfreadamente. Eu não queria caminhar
por um corredor escuro à noite com um assassino à solta, mas não tinha muita
escolha. Ao menos Liza e eu estávamos juntas. Havia um certo conforto naqui‐
lo. Engoli em seco e segui minha prima quando ela empurrou a porta e olhou
por cima do ombro para mim.
As luzes do corredor piscaram, o zumbido das lâmpadas como um enxame
de abelhas em defesa de sua colmeia. Liza desceu as escadas de metal às pressas,
e eu desatei a segui-la, tentando ignorar as rápidas marteladas de meu coração,
ou o terceiro som de passos, que sabia ser um truque de minha imaginação.
Descemos pelo que pareceu um século inteiro, mas na verdade foi apenas
um instante ou dois. Sem hesitar, Liza empurrou a porta e espiou o deque da
segunda classe.
“Está tudo vazio”, disse ela, agarrando minha mão. “Mas vamos andar de‐
pressa”.
Ela não precisou repetir. Corremos pelo corredor, parando apenas de vez
em quando para olhar por cima de nossos ombros. Embora eu ainda pudesse
jurar que estávamos sendo seguidas, ninguém apareceu. Tinha certeza de que
não era a única passageira a bordo daquele navio que estava começando a in‐
ventar monstros da meia-noite. Não havíamos encontrado pessoa alguma desde
o jantar, e todos os aposentos pareciam estar bem trancados, como se aquilo
fosse fazer o mal permanecer do lado de fora.
“Ali estão os aposentos de Mefistófeles”. Liza parou a algumas portas de
distância. “O quarto de Harry fica três portas adiante. Encontre-me assim que
estiver pronta para ir embora”.
Ela me beijou na bochecha e se apressou. Observei Liza se esgueirar e en‐
trar na cabine de Houdini antes de levar meu punho até a porta do mestre de
cerimônias. Ouvi algo que se parecia com o rumorejo de papéis. Contei cinco
batidas de meu coração, então bati outra vez. A porta se abriu, revelando uma
mulher mascarada em um robe. Cassie. A julgar pela maneira como o tecido
estava grudado em sua figura esguia, não parecia vestir alguma coisa além da‐
quilo. Sua expressão pouco acolhedora deixou claro que eu havia interrompido
alguma coisa. Meu rosto ardeu quando percebi o que era.
“S-Sinto muito, eu...”
Mefistófeles se aproximou do batente da porta, com um sorriso frouxo se
espalhando em seu rosto. Reparei que estava totalmente vestido, sem um vinco
sequer nos trajes, e sua máscara amaldiçoada ainda estava no lugar. Quase fra‐
quejei de alívio. “Veio declarar seu eterno amor?”
“Como é que você adivinhou?”, perguntei, alto o suficiente para que Cas‐
sie pudesse ouvir. Eu me inclinei de maneira desavergonhada e sussurrei: “Vá
sonhando”.
“Ao menos não será em meus pesadelos”. Ele piscou. “Isso seria um tanto
lamentável para você”.
Eu me empertiguei e olhei por cima do ombro de Mefistófeles, observando
peças de tecidos e uma variedade estranha de redes, pérolas e mais lantejoulas
do que pensei haver no mundo. Um paletó com franjas dependuradas dos om‐
bros estava sobre uma mesa, com mais enfeites prontos para serem acrescenta‐
dos. Parecia que Mefistófeles nutria um passatempo de costurar — mais uma
peça para adicionar ao quebra-cabeça que era ele.
“Cassie?”, perguntou, não parecendo muito paciente. “A não ser que haja
algum outro assunto a ser discutido, encerramos por hoje”.
Ela me examinou antes de sumir de vista. Recordei o que Liza havia dito
— Cassie era... próxima do mestre de cerimônias. De repente desejei realizar
meu próprio número de fuga. Não era de se espantar que ela estava tão inco‐
modada; eu havia arruinado seus planos românticos. Como se lesse meus pen‐
samentos, Mefistófeles inclinou a cabeça. “Cassie estava apenas finalizando a
última prova de roupas. O novo traje dela é de tirar o fôlego; você precisa ver”.
“O que você está fazendo não é de minha conta”, eu disse. “E não pergun‐
tei”.
“Não, não perguntou”. Seu sorriso torto reapareceu. Se estava incomodado
com o assassinato que havia acontecido mais cedo ou com ter o resto de seu
encontro noturno arruinado, não demonstrou. “Mas a senhorita parece bastan‐
te aliviada para alguém que diz não se importar”. Antes que eu pudesse respon‐
der, ele deu um passo para trás e voltou com uma casaca pesada. “Você sabe
onde fica a saída, Cassie. Pedirei que alguém lhe entregue o traje antes do espe‐
táculo de amanhã”.
Fiquei ali parada, boquiaberta. “Você não pode estar falando sério”.
“Isso não acontece com frequência, mas tenho meus momentos”.
“Vai realizar mais um espetáculo amanhã? Isso é loucura!”
“E loucura é um bom negócio, srta. Wadsworth”.
“É claro que é, que tolice a minha pensar que apresentar outro espetáculo
depois de um corpo ser queimado no palco na noite de hoje não seria uma ideia
brilhante”.
O mestre de cerimônias ergueu uma sobrancelha por cima da máscara.
Aquele realmente era um gesto memorável. “É sensato porque servirá de distra‐
ção para aqueles que necessitam disso. É melhor do que a alternativa de manter
todos trancados por três noites, pulando de susto a cada rangido e chiado que o
navio emitir. Isso sim, minha cara, induz a loucura. O confinamento coloca os
nervos à flor da pele”.
“Isto é algo que você sabe por experiência própria?”
Ele fez um gesto para que caminhássemos pelo deque, longe o bastante pa‐
ra que Cassie não nos ouvisse ao ir embora. Mantivemos uma distância respei‐
tável, mas ainda senti que estávamos próximos demais.
Quando alcançamos a extremidade do navio, eu me inclinei na balaustra‐
da, mantendo minha atenção afastada do mestre de cerimônias. Eu precisava
pensar com clareza, e ele tornava aquela tarefa difícil com seus flertes atrevidos.
O vento mordia minhas orelhas e meu pescoço. O frio ajudava a manter os
pensamentos no lugar.
“E então? A que devo o prazer e a satisfação de sua presença? Está pronta
para nossa próxima aula? Ou já dominou o truque de cartas e veio se vangloriar
dele?”
Encarei o mar agitado. Ondas se reviravam e lançavam-se para a frente e
para trás do mesmo modo como minha mente quando recebia novas informa‐
ções.
“Dois dias se passaram”, respondi, ainda não olhando para ele. “Acha de
verdade que vou conseguir aprender truques quando corpos continuam apare‐
cendo?”
Mefistófeles deu uma risada surpresa. “Não trabalho com honestidade, mas
você é um grande deleite, srta. Wadsworth. É uma pena que não me dará a
honra de partir meu coração”.
Eu me virei, e meu olhar finalmente encontrou o dele. “Não sei se entendo
o que quer dizer”.
“Bem, eu não sei se acredito em você”, retrucou ele, me observando com
cuidado. “Ou seja, você está indo muito melhor do que eu havia previsto nas
aulas”.
“É bem improvável que o ilusionismo possa ser aplicado em uma situação
como esta”.
“Tem certeza? As palavras em si são coisas traiçoeiras e perversas”. Ele sor‐
riu como se tivesse descoberto uma verdade que eu não havia escondido muito
bem. “De todo modo, o que quero dizer é que toda rosa pode extrair sangue e
prazer. E ainda assim não hesitamos em sentir sua fragrância, não é mesmo? O
perigo não diminui o apelo, apenas o faz crescer”.
Ele se curvou com proximidade o suficiente para que sua respiração fosse
um sussurro morno em minha pele. Senti um arrepio. Eu só não sabia se era de
medo ou frisson.
“Não tenho medo de ser espetado quando a recompensa é tão doce. Você,
por outro lado... O que teme?”
Por algum motivo, o rosto de Thomas apareceu em minha mente em um
lampejo.
Mefistófeles deu um passo adiante. “Qual seu maior medo? Sem dúvida
não é a morte. Por ela, você se sente intrigada”. Ele me cercou, e involuntaria‐
mente me enrijeci. “Ah. Jaulas prendendo você? Isso é algo que a apavora. Se
quer uma vida livre, vá buscá-la. O que a impede?”
Meu coração batia tão rápido que eu temia que ele pudesse parar. “Isso faz
parte da aula desta noite?”
“Isso?” Ele virou o rosto próximo de minha orelha. “Isso é um conselho
amigável. Não pode viver sua vida seguindo as regras de outra pessoa. Gostaria
de explorar outros caminhos da ciência? Talvez a ciência forense não seja a úni‐
ca coisa que você ame. Quem sabe ache interessante utilizar suas habilidades na
engenharia”.
Tentei manter minha respiração controlada. Ele podia estar fingindo inte‐
resse, mas via a verdade em mim. Uma verdade que eu achava que nem Tho‐
mas havia descoberto. Aquilo me fez querer abraçá-lo e, ao mesmo tempo, chu‐
tá-lo. Eu era interessada em coisas mecânicas; meu pai fazia brinquedos e eu
sempre tinha desejado aprender a construí-los. Ele havia ensinado a meu ir‐
mão, mas nunca me incentivara, pois eu era uma garota e aquilo não era “um
interesse propriamente feminino”. Eu havia sido .presenteada com mais bone‐
cas do que conseguiria brincar, mas engrenagens e parafusos... aquilo era o que
eu desejava.
“Quero conversar com Jian”, eu interrompi o estranho momento. “Leve-
me para onde quer que os artistas estejam e vamos inventar qualquer estratage‐
ma que você quiser”.
“Não tenho certeza se esta é uma decisão sábia depois dos acontecimentos
da noite”. Toda a provocação em seu rosto desapareceu. “Os artistas decidiram
lidar com o estresse de um jeito especial. Talvez pareça meio fora de controle”.
Ele pegou o relógio de bolso. “Provavelmente já está mais do que descontrola‐
do”.
“Cassie não está com os outros artistas”, observei. “Talvez Jian também não
esteja envolvido nesse comportamento descomedido que você está sugerindo”.
“Na verdade, tenho quase certeza de que ele está distribuindo as bebidas”.
Mefistófeles olhou para as águas escuras. “Espero que Andreas esconda suas es‐
padas novamente. As coisas ficaram um tanto interessantes na última vez em
que ele afogou as mágoas. A Fada Verde é uma dama ardilosa”. Ele se recostou
na balaustrada, próximo a mim e me olhou. “Você acredita que ele seria capaz
de assassinar alguém?”
“Como posso responder tal pergunta se não tive a oportunidade de conver‐
sar mais com ele? Se está falando sério sobre solucionar esses crimes, então leve-
me para lá agora”.
“É claro que estou falando sério. Se este festival fracassar, terei que retornar
a minha vida antiga. E prefiro me atirar no oceano do que retornar para uma
gaiola de luxo”.
Examinei seu rosto. Talvez eu e ele não fôssemos assim tão diferentes.
“Onde estão os artistas?”
Mefistófeles me esquadrinhou, embora não fosse do jeito malicioso de
sempre. Havia algo brusco e quase analítico no gesto. Ele pegou impulso e se
afastou da balaustrada. “Se insiste em comparecer à reunião, terá que se vestir
de acordo”.
Alisei a frente de meu manto de veludo. O vestido debaixo dele era um
pouco mais simples do que o traje de noite que eu havia usado mais cedo, mas
não tinha nada de errado com ele. Franzi o cenho. “Quero passar despercebi‐
da”.
“E é por isso que precisa se livrar dessa roupa sem graça. Você será um ar‐
busto em um campo de flores silvestres”. O mestre de cerimônias franziu o na‐
riz. “Às vezes é preciso se destacar para passar despercebido”.
“Isso não faz sentido algum”.
“Em breve, fará”. Ele mais uma vez sacou o relógio de bolso do que parecia
ter sido do ar, sorrindo enquanto eu balançava a cabeça. “A aula número dois
começa agora”.
16. LA FÉE VERTE
Arena de treino dos artistas
RMS Etruria
4 de janeiro de 1889
“Q ue diabos ele quis dizer com ‘mistério do braço decepado’?” A voz do ca‐
pitão Norwood era um rugido de trovão no silêncio tenso. Um macaco próxi‐
mo a uma das extremidades do compartimento de carga guinchou, e fiz o pos‐
sível para não me encolher com os sons penetrantes. O capitão era tão tempe‐
ramental quanto o mar pelo qual navegava. “Diga que não é um braço humano
de verdade”.
“Lamento informar que há um espécime humano dentro da jaula do leão”,
eu disse, jamais imaginando que um dia iria pronunciar aquelas palavras jun‐
tas. Afastei meu olhar do capitão e o direcionei a Thomas na esperança de fazer
tudo que estava a meu alcance para explicar a ele — assim como ao capitão e
meu tio — o que havia acabado de acontecer... além do fato de eu ter estado
nos braços de um homem despido.
“Mefistófeles estava tentando retirar o leão quando foi atacado”, expliquei.
“Ainda não pude inspecionar a cena por completo, de modo que não possuo
mais informações. Em uma análise inicial, no entanto, pude ver que alguém re‐
virou o feno. É possível que isso tenha sido feito na tentativa de arrumar a cena
do crime, mas não saberei ao certo até conseguir entrar na jaula e olhar mais
detalhadamente”.
Thomas caminhou na direção da jaula e do membro decepado em questão,
sua atenção movendo-se do grande felino para o braço desmembrado para sa‐
be-se lá o que mais. Ele tamborilou os dedos nas barras de metal, o som abafa‐
do graças às luvas de couro que usava. O capitão abriu a boca, mas meu tio er‐
gueu a mão para silenciá-lo. Ninguém deveria interromper Thomas quando se
perdia naquelas equações que apenas ele podia ver. Não era a primeira vez que
eu desejava possuir um fragmento daquela habilidade específica dele.
“Esta não é a cena do crime”, declarou, e eu o conhecia o suficiente para
não duvidar de sua dedução. “É apenas o lugar onde o corpo foi deixado. Na
verdade, não acredito que o restante do corpo tenha estado aqui. Provavelmen‐
te foi atirado ao mar, ou o assassino planeja fazê-lo em breve. Roubo ou furto
não foi a causa; estão vendo o anel? Ou o crime foi premeditado ou feito por
conveniência”.
“Você parece estar bem confiante”, murmurou o capitão. “Talvez deva dei‐
xar o dr. Wadsworth falar, rapaz”.
Thomas fechou os olhos, e pude apenas imaginar o tipo de comentário que
estava se refreando de dizer em voz alta. Era um feito admirável, na verdade, ter
se controlado. Um segundo depois, ele se aprumou e adotou a postura de
quem não tolerava questionamentos a sua competência no assunto. Apesar das
circunstâncias, não pude deixar de sentir orgulho. Thomas era magnífico quan‐
do usava seus dons em um caso, com merecida confiança. Ele estava amadure‐
cendo do rapaz arrogante que eu havia conhecido no verão passado.
“Thomas?”, perguntou meu tio. “Poderia explicar melhor para o capitão?”
Ele assentiu. “Repare no tom da mancha de sangue no cadeado e no
resquício da cor avermelhada nas chaves”.
“Ande com isso”, disse o capitão, claramente sem paciência para gracejos
naquela noite. “Por que deveria me importar com a cor do sangue?”
“Mefistófeles não estava sangrando, então as manchas no cadeado e nas
chaves não vieram dele”. Thomas se interrompeu por um instante e rodeou a
jaula, mas senti uma acusação em seu silêncio.
“Com apenas isso é certo afirmar que o sangue ou é do assassino ou da ví‐
tima”, continuou. Seu tom de voz era profissional, frio; talvez eu tivesse imagi‐
nado sua agitação. “Está escuro, indicando que não estava fresco quando foi
transferido para o cadeado. Imagino que estivesse quase seco no momento que
o assassino tocou estes objetos. Se aqui tivesse sido a cena do crime, então ha‐
veria respingos de sangue e manchas enormes no chão. Um membro foi remo‐
vido de uma pessoa; teria sido caótico. Mesmo com o feno trocado, haveria
É
sangue no chão, paredes e teto. O senhor já foi a um abatedouro, capitão? É re‐
pugnante. E em relação ao anel? Se esse fosse o motivo para a investida, teria si‐
do a primeira coisa a desaparecer”.
“Talvez ele não tenha conseguido tirar o anel do dedo dela”, observou
Norwood.
“Se fosse o caso, ele o teria cortado fora”, eu disse, recebendo um olhar
enojado do homem, como se tivesse sido a pessoa que arrancou o braço. “E
não é o braço de uma mulher. Nossa vítima é um homem. E o anel é uma ali‐
ança de casamento”.
Thomas circulou pelo espaço entre cada uma das cabines, chutando monti‐
nhos de feno ao avançar. Ele se ajoelhou, então olhou para cima, na certa bus‐
cando indícios de respingos de sangue no teto. Segui seu olhar e pisquei. Um
pedaço de tecido azul cobalto ficara preso em alguma coisa no teto baixo. Pare‐
cia seda. Estreitei os olhos e distingui os contornos de um painel de acesso.
Uma ideia me ocorreu. “Para onde dá aquele painel, capitão?”
“É apenas uma porta de manutenção que interliga esta câmara aos corredo‐
res dos tripulantes”. Ele fez um gesto de indiferença para o painel. “Ninguém
além de um seleto grupo de membros da tripulação tem acesso. E precisa pedir
a chave para mim primeiro”.
“Qual sua finalidade?”, continuou Thomas. “Quão grande é o comparti‐
mento?”
“Seu uso é basicamente para assuntos elétricos”, disse o capitão Norwood.
“Um homem precisaria se agachar e encolher para passar. Não é a maneira ideal
para transportar um corpo, se é aonde querem chegar com essa teoria de vocês”.
Ruminei aquela informação. Nossa experiência com os últimos assassinatos
me fazia ter certeza de que o malfeitor não precisava ser um homem. “Uma
mulher não encontraria muita dificuldade. Seria imprudente descartar qual‐
quer pessoa a esta altura, senhor”. Mais um suspeito bastante óbvio me ocor‐
reu. “Sebastián talvez caiba ali”. Quando todos me encararam inexpressivamen‐
te, acrescentei: “O contorcionista. Eu o vi se contorcer até virar um nó”.
A expressão de Thomas estava cuidadosamente neutra. Eu teria muitas ex‐
plicações para dar assim que desembarcássemos do navio.
“Srta. Wadsworth, peço desculpas, mas me permita falar com clareza; não é
possível que este painel tenha sido usado”, argumentou o capitão. “Como aca‐
bei de afirmar, o único molho de chaves está em minha posse, em meus aposen‐
tos. Ninguém esteve lá nos últimos dois dias. Tenho certeza. A não ser que de‐
seje me acusar de depositar este membro aqui, aquele painel está fora de cogita‐
ção. A senhorita terá que elaborar uma teoria melhor para explicar por que ele
veio parar aqui”.
Contei mentalmente até dez. Chaves podiam ser afanadas, fechaduras po‐
diam ser violadas, e com um navio inteiro repleto de artistas que tornavam o
impossível possível, eu tinha a impressão de que o capitão não estava sendo rea‐
lista. Houdini era conhecido tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos
como o Rei das Algemas. Ele sozinho tinha talento para arrombar uma fecha‐
dura, espremer-se em espaços confinados e fazer uma fuga rápida.
Aquele pensamento congelou todos os outros, e meu coração se cobriu de
uma camada enregelada. Eu teria que me responsabilizar em ir atrás de Houdi‐
ni em seguida e perguntar onde ele estivera naquela tarde. De preferência antes
que meu tio se apresentasse para tal tarefa e desencadeasse a fúria de Liza.
“Hmm”. Tio Jonathan cofiou o bigode, evitando olhar para mim. Não
consegui ignorar a pontada que senti. Ele já havia se aborrecido comigo inúme‐
ras vezes antes, mas nunca me ignorara enquanto investigávamos uma cena de
crime. “Por que acredita que o painel de acesso foi o ponto de entrada do assas‐
sino, Thomas?”
Comprimi os lábios, irritada por ser menosprezada quando eu havia sido a
primeira a chegar à cena do crime. Thomas se voltou para mim. Havia uma fir‐
meza em seu olhar quando respondeu: “Wadsworth? O que pensa disso?”.
Por um momento, fiquei calada. Eu estava grata por Thomas ter redirecio‐
nado a atenção deles para mim, mas preocupada pelo gesto ter sido necessário.
Afastando minhas emoções para poder me concentrar na tarefa, apontei para o
pedaço de seda.
“A seda rasgada é o primeiro indício de que alguém passou por ali”, eu dis‐
se. “O segundo é que o convés ficou apinhado em uma enxurrada de atividades
durante toda a tarde e a noite. Com os membros da tripulação montando as
tendas, bem como os artistas e passageiros circulando a noite toda, não vejo de
que modo alguém poderia ter trazido um corpo, ou partes de um corpo, até
aqui sem chamar atenção. A não ser que a pessoa tenha utilizado outra entrada
que não fosse a escadaria principal para descer”.
“Bom”. Meu tio fez um gesto para o leão, que havia começado a andar de
um lado para o outro em seu confinamento. “Uma vez que a jaula estiver vazia,
saberemos mais”. Ele mirou o capitão com firmeza. “O navio é seu, capitão,
mas sugiro que tripulantes fiquem a postos em todos os deques no período da
noite. Se o assassino ainda estiver de posse do restante do corpo, estará desespe‐
rado para se livrar dele. Eu não ficaria surpreso se tentasse atirá-lo do navio al‐
gumas horas antes do amanhecer”.
O capitão esfregou as têmporas com força o suficiente para provocar uma
dor de cabeça em si mesmo — isso se ele já não estivesse padecendo daquele
mal. “Não posso deixar homens a postos no convés da primeira classe. O que
os passageiros que investiram tanto nesta viagem iriam pensar? Este navio não é
um abrigo e não tratarei meus passageiros como prisioneiros. Eles não foram
aterrorizados por um assassinato brutal esta noite e pretendo manter as coisas
desse jeito. Não lhes trarei sofrimento”.
Tive que tocar minha cabeça para ver se ela não havia explodido diante da‐
quela declaração tão tola. Uma leve cutucada em meu couro cabeludo provou
que meu crânio permanecia intacto, um verdadeiro milagre.
“Você não pode estar falando sério”. Thomas jogou as mãos para o alto.
“Seria muito melhor ter membros da tripulação a postos nos deques do que ver
partes desmembradas de um corpo flutuando por aí enquanto os passageiros da
primeira classe forem fazer o desjejum ou tomar chá. ‘Oh, veja só, srta. Eldrid‐
ge, ali está um torso estraçalhado. Pode me passar o creme e o açúcar?’”
“Não diga absurdos”, rebateu o capitão, horrorizado.
“Peço desculpas”, disse Thomas, não soando nem um pouco arrependido.
“Estou apenas sendo lógico”.
Meu tio tirou os óculos e limpou manchas imaginárias. “Se me permite,
capitão. Meus assistentes e eu não queremos desrespeitá-lo, mas o senhor não
pode fingir que algo terrível não está acontecendo. Coloque a tripulação a pos‐
tos no deque como precaução, ou esta não será a última conversa que teremos
antes de chegarmos a Nova York. Quantos corpos precisaremos descobrir até
que medidas de segurança sejam adotadas?”
O capitão Norwood cerrou as mãos com firmeza nas laterais do corpo.
“Você é um dos homens mais notórios de seu ramo, doutor. Mostre-me o que
você e seus assistentes são capazes de fazer. Designarei membros da tripulação
para os deques da segunda e terceira classe. O senhor deseja que seus compa‐
nheiros, cavalheiros ou damas, sejam investigados? Então o faça você mesmo.
Não darei a ordem para insultá-los, não depois dos horrores aos quais foram
submetidos esta semana. Temos apenas mais dois dias no mar”.
O capitão se virou para ir embora, então olhou por cima do ombro. “De‐
pois da meia-noite, assim que o festival encerrar as atividades, retirarei o leão.
Então estarão livres para investigar da maneira que julgarem adequada. Até que
eu os convoque, o que pode acontecer depois da meia-noite ou pela manhã,
poderão fazer como bem entenderem. Desde que não comentem sobre este la‐
mentável incidente com mais ninguém. Terei uma noite livre de assassinato e
terror. Colocarei todos vocês atrás das grades se criarem pânico”.
Eu me virei. “Você não possui honra alguma? Sem mencionar que é pertur‐
bador, e não encantador, quando aparece de repente assim”.
A máscara de Mefistófeles era preta como a noite que nos envolvia. Som‐
bria como sua alma diabólica. E tão escura como eu deixaria um de seus olhos
se se esgueirasse daquele jeito novamente enquanto um assassino estava na es‐
preita.
Ele virou o restante da bebida e indicou um assento onde uma caixa de pi‐
pocas pela metade estava ao lado de uma garrafa vazia de champanhe. “Eu esta‐
va sentado ali. Não é minha culpa se vocês não são observadores”.
Cerrei os dentes. “Por quanto tempo ouviu nossa conversa?”
“Tempo o suficiente para parabenizá-la por manter a farsa de inocência”,
respondeu. “Embora tenha sido um esforço insignificante. Vamos concordar
que seu verdadeiro talento não reside na atuação. Ainda que, pelo que acompa‐
nhei até o momento, sua investigação não esteja muito melhor. Ao menos você
é bem agradável aos olhos. E sua dança é surpreendentemente boa”.
“Está aqui por algum motivo concreto ou se cansou de fazer truques de
mágica para os outros?”, perguntei, meu rosto esquentando. “Ou, mais prová‐
vel, apenas veio se deleitar com os problemas que está causando entre mim e
Thomas?”
“Nunca me canso de fazer truques”. Ele sorriu. “Da mesma maneira como
você nunca se cansa de examinar cadáveres”.
“Isso não nos dá algo em comum”, devolvi.
“Se você diz”. Ele deu de ombros. “Eu discordo, no entanto”.
“A propósito”, disse com a raiva da cena na jaula do leão ardendo em mim,
“não entendi o motivo de sua demonstração anterior, mas meu tio vai me man‐
dar de volta para Londres se for flagrada sozinha com você novamente. Se colo‐
car em risco meu futuro como cientista forense, romperei nosso trato”.
“Talvez eu apenas desejasse ver se você se importa comigo ou se tudo é uma
encenação. A senhorita está se tornando uma artista um tanto habilidosa, mes‐
mo que olhe para baixo ao mentir”.
Abri minha boca, então a fechei. Ele me lançou um olhar de quem sabe
das coisas. “Se seu tio tiver a intenção de enviar você de volta para Londres por
causa disso, talvez estudar com as orientações de outra pessoa possa trazer bons
frutos. Talvez deva ter em vista o estudo de meu tipo de ciência por um perío‐
do”. Ele afastou quaisquer outros contra-argumentos com um gesto. “Embora
pudéssemos conversar infinitamente sobre nossos dramas pessoais, trago notíci‐
as. Sua prima vai encontrar Houdini no palco depois da meia-noite. Sozinha.
Um tanto escandaloso para uma moça da alta sociedade que fugiu para viajar
com uma trupe de desajustados”.
Revirei os olhos. “Ela está viajando com vocês há mais de uma semana, e
agora você se preocupa com o escândalo?”
“Eu me recordo de seu tio ter mencionado que a internaria em um ma‐
nicômio caso se encontrasse sozinha com Houdini novamente. Viu só? Fiquei
aqui sentado, esperando pacientemente que você terminasse sua investigação,
para poder lhe dizer as notícias de imediato”.
Quase grunhi. No ritmo que Liza e eu estávamos indo, nós duas iríamos
acabar em celas adjacentes no manicômio. “O que eles vão fazer?”
“Estão trabalhando no novo número de Harry para o espetáculo de ama‐
nhã. Tudo muito misterioso, mas vi uma prévia. É um truque bem complicado
e que vai desafiar a morte. Se ele demorar demais. Mas talvez possa ser a morte
de qualquer pessoa que entrar no galão de leite”.
Se havia um momento de considerar voltar a nado para a Inglaterra, era
aquele. Não apenas Liza iria se encontrar com Houdini, como estava planejan‐
do ser a assistente de mais um número depois de ter jurado a nosso tio que ja‐
mais faria aquilo de novo.
“Galão de leite?”, indaguei, por fim, mordendo a isca de Mefistófeles para
que eu fizesse mais perguntas. “Isso não parece algo que desafia a morte. O que
aconteceu com o número das algemas? Parece que ele deveria se concentrar em
ser o rei de uma coisa por vez”.
“Você não esperava que Harry Houdini se acomodasse, contente com ape‐
nas uma coroa, esperava?” Mefistófeles estreitou os olhos escuros como se eu
pudesse ter batido a cabeça em alguma coisa. “Por que ser apenas bom quando
você pode ser ótimo? Se ele vai chamar a si mesmo de ‘o Grande Houdini’, é
melhor que faça uma apresentação de acordo. As pessoas não se lembram de es‐
petáculos medíocres. Para realmente ganhar as mentes e as memórias da pla‐
teia, a grandiosidade é necessária. É ela que transforma histórias em lendas e
constrói impérios”.
“Encontrar novas maneiras de escapar com vida por um triz não é algo
grandioso. É tolice e um perigo”, rebati. “E envolver outra pessoa em tal estu‐
pidez é irresponsável e deveria ser um delito grave. Se algo acontecer a minha
prima, será culpa dele. Então ele descobrirá que a ruína também acomete aos
reis, como a todos os outros”.
“Ah. Devo discordar de você em uma coisa. A grandiosidade está em conti‐
nuar adiante, em não se acomodar apenas porque cumpriu uma meta. É um
estado constante de escalada e esforço para superar a si mesmo. Ele será o
Grande Houdini um dia porque trabalhou por tal reconhecimento, realizando
uma tarefa impossível atrás da outra, nunca se contentando com ser apenas
bom”.
“Parece que ele não se satisfaz com o que conquistou”.
“A satisfação é a raiz da complacência. Sua prima escolheu segui-lo porque
ele não se satisfaz com cruzar os braços e ser apenas medíocre. ‘O Bom Houdi‐
ni’ e ‘o Satisfatório Houdini’ soam da mesma maneira?” Ele balançou a cabeça.
“Creio que não. Assim como um bom fraque não é tão vistoso quanto um exce‐
lente”.
“Foi por isso que você renunciou ao nome da família?”, arrisquei. “Você
não concordava com uma vida de satisfações e luxo. Era apenas bom, não gran‐
dioso”.
Mefistófeles observou os homens e mulheres bem-vestidos que caminha‐
vam pelo convés, por entre as tendas do festival. Havia bem menos pessoas, e
pareciam ter pedido aquele glamour de antes. “Por que viver em uma jaula
quando você pode transformar o ato de escapar dela em um espetáculo?”
“Eu...”
“Diga que essa vida não parece interessante”.
Abri a boca, mas as palavras não saíram. Mefistófeles me lançou outro
olhar de compreensão, mas não insistiu.
“Vamos ao encontro de Liza e Harry?” Ele puxou um relógio de bolso, ba‐
lançando-o de um lado para o outro como se desejasse me hipnotizar para que
não me intrometesse em seu passado. “Em alguns minutos as cortinas vão cair
para o público, mas o número particular vai começar”.
Olhei para o público, que diminuía cada vez mais, na esperança de avistar
um cavalheiro alto em particular. Um com o qual eu me reconciliaria assim que
possível. Mas, ao contrário do taumaturgo diante de mim, Thomas parecia ter
desaparecido de vez naquela noite. Desisti de procurar. Eu o veria em breve,
quando fôssemos investigar a jaula do leão.
Vi uma estrela cadente cruzando o céu e desejei que não fosse um sinal de
quão fugazes o amor e a amizade podiam ser.
Um silêncio lúgubre nos cumprimentou no salão de jantar, uma vez que o Fes‐
tival Enluarado havia encerrado por aquela noite. Minha prima e seu adorado
artista de fuga estavam reunidos no palco, as cabeças próximas em uma conver‐
sa cochichada. Meus passos hesitaram conforme os vi definindo os detalhes do
número. Não havia dúvida de que conspirar contra Liza era um comportamen‐
to traiçoeiro e ardiloso, e eu era a líder do espetáculo secundário de minha cria‐
ção. Eu esperava que ela me perdoasse quando tudo fosse dito e feito. Ainda
que não tivesse certeza de quanto tempo levaria até que eu me perdoasse.
Os sentimentos de Houdini podiam ser uma ilusão, mas ela parecia perfei‐
tamente contente com a farsa.
Mefistófeles assobiou para o artista, erguendo a mão para saudá-lo. Um
olhar foi trocado entre os dois — surgiu e desapareceu rápido demais para que
pudesse decifrar seu significado. Talvez fosse apenas um aviso do mestre de ce‐
rimônias para que ele não falhasse naquele novo e perigoso número. Com mo‐
ças assassinadas quase todas as noites e a descoberta de um braço decepado, o
festival andava sozinho na corda-bamba. Um deslize e toda a vida que Mefistó‐
feles havia construído para si desmoronaria.
Liza sorriu e saltou do palco, correndo para perto de mim de uma maneira
que fez eu me sentir ainda pior por agir às escondidas.
“Prima! Que surpresa adorável”. Ela beijou minhas bochechas e me envol‐
veu no tipo de abraço que não só anima uma pessoa, mas também tira seus pés
do chão. “Não esperava vê-la aqui tão tarde. O sr. Cresswell também virá?”
“Ele está melancólico”, disse Mefistófeles ao avançar na direção do palco.
“Está com inveja de meu terno. Nem todos ficam bem em estampas extrava‐
gantes e franjas prateadas”.
Ela esticou o pescoço e olhou ao redor, buscando através das sombras do
salão como se não acreditasse no mestre de cerimônias. “Ele não estava se sen‐
tindo muito bem e foi para a cama. Tivemos uma noite um tanto intensa”.
“Ah”.
Liza sutilmente voltou sua atenção para mim e Mefistófeles. Eu podia ver
as perguntas se formando por detrás de seu olhar e sabia que teria muitas res‐
postas para dar assim que ficássemos sozinhas. Ela piscou, e a suspeita desapare‐
ceu. Liza compreendia os vivos tão bem quanto eu decifrava os mortos.
“É uma pena que ele vai perder isso”, ela fez um gesto para o palco, “mas
tenho certeza de que ficará encantado na noite de amanhã quando assistir ao
espetáculo. É realmente mágico. Posso jurar que há forças atuantes aqui, guian‐
do Harry de maneira sobrenatural”.
Soltei a respiração, aliviada por Houdini ter se tornado o assunto da con‐
versa. O capitão Norwood havia deixado bem claro que não deveríamos discu‐
tir o membro decepado, e embora confiasse em minha prima, não queria depo‐
sitar aquele fardo sobre ela. “Você sabe que a magia é apenas a união da ciência
com a trapaça, certo? São apenas mentiras elegantes”.
“E não existe essa história de fantasma!”, gritou Harry do palco. “O espiri‐
tualismo é uma fraude”.
“É o que você sempre diz. De novo e de novo”. Liza suspirou como fazem
os grandes sofredores e enroscou o braço no meu, inclinando-se para não ser
ouvida pelo artista de fuga. “Mas também é divertido. Deixar-se levar pelo faz
de conta é formidável e romântico, e você não pode afirmar com sinceridade
que não se sente nem um tantinho intrigada pela impossibilidade da coisa. A
esperança é a magia verdadeira; é a faísca e a atração. Sei que fantasmas não
existem, mas se algum dia eu desejar falar com um ente querido que já não está
mais entre nós, espero estar errada”.
“A esperança é uma força poderosa”, concordei.
“É verdade. Juro que me agarraria a ela como a uma corda, sem nunca sol‐
tar. E faria o mesmo para todos esses números. O público espera que o impos‐
sível se torne possível. O espetáculo mostra que sonhos não pertencem apenas a
nossas mentes, que, com esperança, as fantasias podem se tornar reais. Eliminar
a esperança de uma pessoa é como tirar a vida de alguém. Todos precisamos
acreditar que podemos fazer o impossível”.
Senti um sorriso se formar. Era bom ver que Liza sentia tanta esperança;
minha prima com certeza precisava dela enquanto torcia para que nosso tio
não descobrisse que ela era a segunda moça que o estava desobedecendo naque‐
la noite, do contrário, estávamos as duas condenadas. “Você não está realmente
pensando em ser a assistente de Harry no número da próxima noite, está?”
Liza exibiu a sombra de um sorriso malicioso. “É claro que não. Eu jamais
sonharia em...”
Harry bateu palmas algumas vezes, interrompendo nossa conversa. Conse‐
gui afastar minha atenção de Liza e encarar o rapaz. “Senhoritas! O tempo é o
único chefe que obedeço e ele tá ficando impaciente”. Ele fez sinal para minha
prima. “Preciso de sua ajuda agora. Tenho que provar pra Mefisto que este nú‐
mero não é uma armadilha mortal. Consegui acertar direitinho o tempo de
execução”.
Lancei um olhar assustado para Liza. “Armadilha mortal? O que ele quer
dizer?”
“Você vai ver”.
Dando um aperto final em minha mão, Liza retornou para o palco, subin‐
do as escadas e fazendo uma mesura dramática antes de desaparecer por detrás
das cortinas escuras. Meu estômago se revirou. Liza nunca havia interferido em
minhas paixões, não importava quanto a sociedade me desprezara por meus in‐
teresses científicos.
Durante a investigação do Estripador, ela havia sido a pessoa que permane‐
cera a meu lado, alfinetando nossos amigos em festas do chá quando zomba‐
vam de Thomas, acusando-o dos crimes violentos por conta de seu amor pela
ciência e por sua falta de demonstração de emoções. Ela também desempenhou
o papel de filha perfeita, fingindo levar-me para comprar vestidos, o que me
permitiu me embrenhar em Londres com Thomas para investigar. E era assim
que iria recompensá-la. Com mentiras e manipulação e tratos à meia-noite
com um rapaz diabólico.
De repente, não tinha mais certeza se conseguiria levar aquela barganha
adiante. De algum modo, naquela viagem, eu havia me transformado em meu
pai — enjaulando as pessoas que amava em vez de libertá-las. Era uma verdade
terrível de engolir e quase engasguei com seu gosto amargo.
“A desonestidade não combina com você. Para minha decepção”. Mefistó‐
feles exibiu um sorriso convencido. “Pode ser uma máscara divertida para testar
de vez em quando, mas sugiro que permaneça fiel a quem é. A honestidade é a
melhor opção por um motivo. Se quiser revisitar os termos de nosso trato, é só
me dizer”.
“Eu...” Antes que pudesse responder, Liza rolou um enorme galão de leite
para o palco, ajustando-o para que ficasse bem ao centro. Harry saltou do palco
e se afastou, correndo de costas pelo salão, um feito por si só já que não esbar‐
rou em nenhuma mesa ou cadeira ao analisar a geringonça.
“Um pouco mais pra esquerda... mais um centímetro... Para! Não tá perfei‐
to?” Ele cruzou os braços e estudou o salão. “Marque um X em cada canto.
Certifique-se de que são pequenos o suficiente para não serem vistos das cadei‐
ras. Vá e pegue a cortina portátil. Tudo precisa tá funcionando apropriadamen‐
te. Nós não teremos outra chance pra causar uma boa primeira impressão. Este
número precisa ser fantástico”.
‘“Por favor’”, acrescentou Mefistófeles. Harry pareceu não entender, e o
mestre de cerimônias explicou: “Se pede para que sua assistente faça algo, tenha
a delicadeza de ser educado. E tome cuidado com o ‘tá’; é abominável e distrai
as pessoas de suas habilidades”.
“Não tô nem aí”, devolveu ele. “E você também não deveria tá. Quem
mais é capaz de fazer meus truques?” Ele olhou exageradamente ao redor.
“Ninguém”.
“Você poderia tirar unicórnios nas cores de um arco-íris de nuvens roxas e
eu ainda estaria distraído por sua gramática terrível”. Mefistófeles sorriu. “Se
não for por mim, que seja pelos coitados dos unicórnios. As criaturas mágicas
merecem uma fala correta”.
Harry revirou os olhos. “Da última vez que verifiquei, este trato funciona‐
va porque mantínhamos distância dos métodos um do outro. Não critico sua
mágica ou engenharia e você faz o mesmo comigo”.
“Vamos chamar isto de conselho amigável de um taumaturgo para o outro,
então”, sugeriu Mefistófeles, curvando-se para se sentar. Ele desabou na cadeira,
colocando os pés para cima como se estivesse à vontade em seus aposentos e
não tivesse sido atacado por um leão uma hora antes. “Não ganhará muitos ad‐
miradores neste navio se for rude com as moças. Acha que o príncipe Albert já
se dirigiu ao público desta maneira? Se vai trajar um paletó e um colarinho en‐
gomado e chamar a si mesmo de rei, complete a representação de um cavalhei‐
ro de forma convincente. Seu vernáculo das ruas de Nova York pertence ao lu‐
gar onde o pegou, como um caso grave de piolhos”.
Um sorriso medonho fez os lábios do artista de fuga se contorcerem. “Não
usarei um paletó pra este número, chefe. Mas vou tratar de acrescentar gracejos
pra aristocracia”. Ele se virou para Liza, fazendo uma ampla mesura. “Você po‐
deria, por favor, buscar a cortina portátil? Nós não teremos outra chance para a
estreia de nosso número com o galão de leite. Precisamos dar a eles um número
com um quê de deslumbramento”.
Mefistófeles pareceu estar levemente entretido com o uso correto dos bons
modos e da gramática pelo artista, mas não caiu na provocação. Enquanto
Houdini e Liza preparavam o resto do palco de acordo com suas determinações
e pedidos, eu permitia a mim mesma a liberdade de repassar os acontecimentos
daquela noite. Eu não conseguia parar de pensar no horror que o homem havia
suportado até morrer e torcia para ele não ter sofrido muito.
Ao me acomodar ao lado de Mefistófeles, fiz o melhor que pude para não
me recordar de quão desconfortavelmente similar o braço no frigorífico era do
laboratório de Jack, o Estripador, e dos órgãos que ele havia coletado. O mestre
de cerimônias me observou, um vinco em seu cenho espantando o costumeiro
sorriso enviesado.
“Você já esteve nos aposentos da mulher, a que foi queimada?”, perguntou,
de repente sério.
Não era bem o que esperava ouvir, mas concordei devagar. “Uma vez.
Quando soubemos de seu desaparecimento”.
Ele sacou um pedaço quadrado de tecido de um dos bolsos internos da ca‐
saca. “Isto lembra alguma coisa para você?”
Meu sangue pareceu congelar quando vi o tecido fino e escarlate. Eu me
lembrei do belo vestido que estivera largado no chão da cabine da srta.
Crenshaw. Eu não o havia inspecionado de perto, mas estava quase certa de
que não fora cortado. “Onde conseguiu isso?”
“Foi deixado em minha cabine duas noites atrás. Sem bilhete, sem explica‐
ção”. Ele o pegou de volta e guardou em segurança na casaca uma vez mais.
“Pensei que uma criada pudesse ter deixado cair ao limpar meus aposentos,
mas agora não tenho tanta certeza”. De um segundo bolso, fez aparecer mais
um pedaço vermelho de tecido; aquele tinha manchas de um tom de ferrugem.
Sangue. “A mesma seda. Essa foi entregue na noite passada”.
“Parece ser a mesma seda que pertencia à srta. Crenshaw”.
“‘Parece ser’?”, bufou Mefistófeles. “Por que não afirmar com segurança
que é o mesmo tecido do vestido dela? Posso realizar truques de mágica, mas
você, srta. Wadsworth, é adepta dos truques de palavra”.
“Como uma cientista, é imprudente dizer algo com firmeza quando não
posso confirmar de saída”, retruquei com frieza. “Portanto, parece ser o mesmo
tecido. A não ser que eu estivesse com o vestido dela em mãos para inspecioná-
lo, não poderia dizer com absoluta propriedade que é o mesmo. Similar, com
certeza. O mesmo?” Dei de ombros. Um músculo em sua mandíbula se rete‐
sou. “Fique aborrecido o quanto quiser, mas a memória é uma operária da ilu‐
são mais eficiente do que você. E quanto a suas convicções de ‘engane os olhos,
convença a mente’? Não estamos lidando com o mesmo conceito aqui?”
“Está bem. A senhorita poderia me acompanhar até a cabine da srta.
Crenshaw?”, perguntou. “Podemos buscar evidências científicas de que este pe‐
daço de tecido, que parece pertencer a ela, realmente vem de seu vestido”.
“Invadir a cabine dela não é a melhor ideia, ainda mais por ser uma cena
de crime”.
“O que deixa tudo ainda mais interessante”. Ele se levantou e estendeu a
mão. “Vamos resolver isto logo. Tenho certeza de que o capitão retornará em
breve procurando você”.
“Isso não foi bem um sim”.
É
“É verdade. Mas também não foi um não”. Um dos cantos de sua boca se
ergueu. “Sei que está tão ávida para resolver o mistério quanto eu, srta.
Wadsworth. Comecei a receber reclamações que não parecem muito promisso‐
ras para o futuro do Festival Enluarado. Então, vai me ajudar a invadir os apo‐
sentos dela ou não? Como você disse, ela está morta. Duvido que se incomode
com nossa investigação”.
Meio a contragosto, apontei para o palco. “E quanto ao número do galão
de leite?”
“Terá que esperar até a noite de amanhã e viver a experiência com o restan‐
te dos passageiros”. Ele estendeu a mão mais uma vez. “Pronta para uma pe‐
quena atividade criminosa?”
Era evidente que não estava. Com um aperto no coração, eu me levantei e
segui o ilusionista até os aposentos da moça assassinada, já me arrependendo de
minha tolice.
22. BOLO E MÁSCARAS
Convés
RMS Etruria
5 de janeiro de 1889
Meu tio realizava o exame com uma lupa, seu nariz a centímetros de distân‐
cia do membro decepado. Eu sabia que continuava zangado comigo por ter si‐
do apanhada no flagra com o mestre de cerimônias despido, mas ele havia soli‐
citado meu auxílio, e nada mais importava quando a medicina forense estava
envolvida.
Graças aos céus pelas pequenas bênçãos.
Thomas apanhou a caderneta que havia deixado de lado enquanto vestia
um avental e retomou as anotações. Eu não conseguia me desvencilhar da sen‐
sação de enjoo ao pensar nos outros cadernos que ele havia levado na viagem
— alguns dos quais continham anotações do caso de Jack, o Estripador. Eu não
estava pronta para ler os detalhes dos crimes e Thomas guardava para si quais‐
quer mistérios que havia descoberto. Ao menos por enquanto. Eu tinha a sen‐
sação de que precisaríamos conversar sobre eles em breve.
“O fórceps denteado, Audrey Rose”. Meu tio estirou a mão, a palma virada
para cima, aguardando. “Depressa”.
“Sim, tio”.
Reuni os apetrechos médicos necessários para aquela dissecação — fórceps
denteado, escalpelo, tesoura, agulha de Hagedorn, fio para sutura — e levei
uma bandeja prateada até ele.
“Aqui”. Limpei o fórceps com ácido carbólico e o entreguei com eficiência
para meu tio. Ele grunhiu, o que não era um agradecimento, mas também não
era um silêncio pesado. Observei enquanto ele removia bocados da pele perto
de onde o cotovelo deveria estar, se não tivesse sido cortado ou mordido bem
na articulação.
Finas tiras de carne estavam penduradas, despedaçadas como um vestido
antigo deixado para apodrecer em um baú esquecido. Girei os ombros, permi‐
tindo que a frieza de uma cientista me sobrepujasse. Eu não ficaria enojada ou
sentiria fraqueza. Nenhuma daquelas sensações ajudaria a salvar a vítima de seu
destino.
Por outro lado, determinação e um coração endurecido poderiam trazer
justiça.
Meu tio pediu que eu me aproximasse com um gesto, as sobrancelhas fran‐
zidas. Ele retirou um pedaço da carne dilacerada, expondo uma faixa esbran‐
quiçada e familiar. “Está vendo o rádio e a ulna?”, perguntou. Assenti, fazendo
o possível para me concentrar apenas naqueles ossos e não na camada externa
de carne acinzentada ao redor. “Conforme eu for removendo os músculos e
tendões, descreva o que você vir. Thomas, anote tudo”.
Eu me curvei até que meu olhar estivesse nivelado com o membro, repa‐
rando em todos os detalhes. “Há uma fissura no rádio, mas não na ulna. Nela,
vejo um entalhe no osso; minha aposta é que foi feito por um objeto afiado.
Provavelmente faca”. Engoli minha repulsa. “A fissura no rádio parece ser resul‐
tado da mordida do leão no braço e não se relaciona com o modo como o
membro foi decepado”.
“Bom, muito bom”. Com as mãos firmes, meu tio removeu a pele ainda
mais para trás. “Os ferimentos são post-mortem?”
“Eu...”
Mordi o lábio. Não havia marcas na pele do antebraço, nenhum indício de
lesões que indicavam confronto. Olhei para Thomas, mas ele estava concen‐
trando anotando. Precisei de um momento para apreciar o fato de que confia‐
vam em mim — aqueles dois homens — para detectar informações forenses
por conta própria. Endireitei os ombros e me empertiguei, permitindo que a
confiança me envolvesse como um manto.
“Acredito que os ferimentos são post-mortem. Com grande probabilidade
de serem resultado do decepamento do membro”. Indiquei o restante do braço.
“Não há escoriações ou cortes, e ambos seriam encontrados em uma vítima que
estivesse se defendendo de um esfaqueamento”.
Meu tio girou o braço, analisando a parte inferior. A carne estava mais lívi‐
da do que a maioria dos cadáveres, uma vez que muito sangue fora perdido,
mas não tão embranquecida quanto os corpos mais recentes que eu havia estu‐
dado na academia. A lividez post-mortem estava presente — a leve mancha vi‐
sível na parte inferior do corpo, onde o sangue havia se acumulado por causa
da gravidade. Isso indicava onde um cadáver havia sido deitado após a morte e
era algo que não podia ser alterado depois de horas terem se passado, mesmo
quando o cadáver havia sido movido. Com exceção de um caso estranho em
que todo o sangue fora drenado... naquele caso, a mancha não existira.
“A lividez está presente”, acrescentei, reparando na centelha de surpresa e
orgulho nos olhos de meu tio. Eu aprendera muito na academia. “Acredito que
ele já estava de costas, deitado, quando o assassino começou a desmembrá-lo. A
evidência comprova isso”.
“De fato comprova”. Meu tio soou satisfeito ao examinar a lividez por con‐
ta própria; seu aborrecimento comigo havia desaparecido. Nós éramos uma fa‐
mília peculiar.
Thomas franziu o nariz. “Mesmo sem o jorro arterial, o lugar onde o mem‐
bro dele foi decepado deve estar encharcado de sangue. Não creio que alguém
teria sido capaz de limpar tudo sem deixar evidências para trás”.
“Bem observado”.
Meu tio apanhou o escalpelo, utilizando-o para cortar com precisão mais
da carne estraçalhada. Engoli em seco. Não importava a frequência com a qual
testemunhava aquilo, era sempre uma visão medonha. Fatiar a carne humana
como se fosse uma carne nobre animal era repugnante.
“Os ossos foram cortados de forma cuidadosa”, continuou meu tio.
“Quem quer que tenha removido o membro não usou uma serra ou lâmina
serrilhada”. Ele baixou o escalpelo, então caminhou até a vasilha de água. Tho‐
mas e eu não especulamos enquanto ele lavava as mãos com sabão carbólico.
Uma vez que terminou, meu tio se virou para nós com uma expressão cansada.
Eu tinha a impressão de que não era a hora tardia que o deixava fatigado. “Pre‐
cisamos nos concentrar em quem tem acesso a lâminas fortes e lisas. Emprega‐
dos da cozinha. Membros da tripulação”.
O temor, intenso e inflexível, alojou-se em meu estômago vazio. “Ou, mais
provavelmente, com base em suas habilidades e na proximidade com tais ar‐
mas, os artistas do festival especializados em lâminas”.
Por um instante, ninguém falou nada. Havia algumas possibilidades óbvias
— embora qualquer um dos artistas pudesse apunhalar alguém.
“Acredita que Jian tenha feito isso?” Thomas afastou a atenção do membro
decepado. “É um milagre que ele não tenha transformado o assassinato em par‐
te do espetáculo. Atirar melões, abacaxis, braços desmembrados. Parece um
tanto apropriado para a natureza teatral das outras mortes”.
“Acredito que ele seja alguém que devemos ao menos considerar”, respon‐
di, ignorando a piada forçada. “Também precisamos investigar cuidadosamente
quem mais tem acesso às lâminas dele após o fim do espetáculo. Será que ele as
tranca em um baú à noite, ou que dorme com elas?” Dei de ombros. “Se estão
guardadas, então podemos ampliar a busca para aqueles que são bons em violar
fechaduras”.
Troquei olhares preocupados com meu tio e Thomas, vendo a inquietação
deles misturando-se com a minha. Tudo não passava de especulação, é claro,
mas se aquelas espadas estavam guardadas, havia apenas um rapaz a bordo da‐
quele navio que se gabava por ser o rei de escapar de qualquer algema e arrom‐
bar qualquer fechadura.
Ignorei os arrepios em minha espinha. Se Harry Houdini continuava se
reinventando, usando novas máscaras invisíveis em cada cidade, era possível
que usasse o disfarce mais convincente de todos: o de um homem inocente, in‐
capaz de cometer tais atos hediondos de assassinato. Quem sabe Cassie e seu
marido não estivessem em busca de vingança. Talvez tivesse sido alguém óbvio,
mas ao mesmo tempo não tão óbvio assim. Se Houdini tinha uma amante se‐
creta nos Estados Unidos da qual Liza não sabia, não havia como dizer quantos
outros segredos ele escondia.
“Vamos atrás de algumas respostas”, anunciou Thomas, fechando o cader‐
no. “Começaremos com Mefistófeles e Jian”.
“Se marcharmos para a arena de treino dos artistas agora, exigindo interro‐
gar todo mundo, nos depararemos com um obstáculo tão espesso quanto o ne‐
voeiro de Londres”, eu disse.
“Que método sugere, então?”, perguntou meu tio. Ele não havia acompa‐
nhado a evolução pela qual eu passara desde a academia até aquele momento.
Eu me sentia muito mais confiante ao provar minhas teorias e muito menos
preocupada em estar errada ou ser alvo de zombarias caso estivesse. Thomas
certa vez me dissera que não temia estar errado; seu receio era o de não tentar.
“Apenas precisaremos criar nossas próprias ilusões”, disse, já mergulhada
em minha enganação. “Usaremos pistas falsas em nossas perguntas. Vamos fa‐
zer com que suspeitem de algo que não tenha relação alguma com o caso. Se
eles ganham a vida com essa arte, não há motivo para que nós também não uti‐
lizemos o mesmo modo”.
Um sorriso maldoso brotou devagar e ergueu os cantos da boca de Tho‐
mas. “Se eles são o Festival Enluarado, também devemos criar nosso nome so‐
fisticado. Saqueadores da Verdade. Donzelas da Maldade. Bem”, acrescentou
ele ao ouvir o suspiro pesado de meu tio, “este não necessariamente se aplica a
todos nós. Continuarei pensando em possibilidades”.
“Enquanto se ocupa com essa tarefa extremamente importante”, eu disse,
“Liza convidou Anishaa para tomar chá pela manhã. Verei o que consigo des‐
cobrir sobre ela e qualquer pessoa que possa ser um espadachim secreto”. Arris‐
quei um olhar para meu tio e sorri. “Podemos combinar de discutir nossas des‐
cobertas antes do jantar de amanhã”.
Thomas sacou o relógio de bolso e o abriu com um pequeno estalo e um
grande floreio. “Isso nos dá treze horas para dormir, nos infiltrarmos na trupe,
criar uma distração, definirmos o nome de nosso grupo e vestirmos nossos me‐
lhores trajes para o jantar”. Ele deslizou a mão por seus cachos cuidadosamente
ajeitados. “Graças aos céus que não leva muito tempo para tornar isto”, gesticu‐
lou na frente de si mesmo, “de uma beleza ofuscante. Diferentemente de Mefis‐
tófeles”.
“Parece que vocês dois aprenderam novas habilidades durante o período na
academia”. Meu tio levou o braço decepado na bandeja e o depositou na caixa
de refrigeração que o capitão havia nos emprestado. “Embora eu não saiba di‐
zer como sarcasmo e gracejos vão nos ajudar neste caso. Precisamos concentrar
nossa atenção em identificar a quem este membro pertence”.
“O nome disso é charme, professor. E realmente acredito que nos levará
longe”. Thomas respirou fundo, os olhos dançando de alegria. “Ninguém é ca‐
paz de resistir a uma piada dita no momento certo”.
Meu tio deu as costas para a caixa de refrigeração, não parecendo achar
graça. “Estão dispensados. Vão para a cama e, pela manhã, obtenham informa‐
ções dos artistas do festival com gracejos ou contrariedades”. Ele dispensou o
último comentário de Thomas com um gesto. “Tente não os provocar em de‐
masia. Uma pequena parcela de seu charme pode ser demais para eles”.
Ninguém ordenou que eu tomasse cuidado, o que achei um bom sinal.
Uma ideia se formava em minha mente, e eu não tinha certeza se iriam apro‐
var. Contudo, era sempre melhor implorar por perdão do que pedir permissão.
Eu só esperava que Thomas não ficasse muito aborrecido comigo por armar es‐
se ato por conta própria.
A manhã chegou muito mais rápido do que a noite levou para ir embora, e eu
despertei com o som de uma batida à porta. Esfreguei o rosto e encontrei uma
carta de tarô presa em minha bochecha. Eu devia ter adormecido em cima do
baralho. Liza revirou os olhos, mas não disse nada ao me empurrar na direção
de meu baú.
“Um instante!”, gritou, ganhando um pouco de tempo para que eu me
aprontasse.
Praguejei das formas mais indelicadas possíveis, andando com pressa pelo
dormitório para trajar um vestido decente, ainda que simples, para receber a vi‐
sita. Alguns minutos depois, minha prima abriu a porta com um grande flo‐
reio.
“Gostaria de apresentar Anishaa, também conhecida como Ás de Paus”,
disse Liza graciosamente. “Esta é minha prima, Audrey Rose”.
Trocamos mesuras e nos acomodamos em cadeiras e bancos enquanto uma
criada adentrou o aposento com um samovar e uma bandeja cheia de gulosei‐
mas para o desjejum. Eu me servi de uma xícara, franzindo o cenho quando o
primeiro gole queimou minha língua. Olhei para Liza. É claro que ela, uma
eterna anfitriã, havia acordado cedo e solicitado os comes e bebes. Eu poderia
abraçá-la por seu cuidado com os detalhes em situações como aquela.
Anishaa, a deusa engolidora de fogo, era quase irreconhecível quando não
vestia seu traje inspirado no gelo. Em vez da peruca prateada com tranças gros‐
sas, seu cabelo era de um preto azulado que pendia até o queixo como um
manto macio. Sua pele, que no momento não estava pintada com a palidez do
azul-gelo, era de um tom entre marrom-dourado e amarelo-acastanhado.
Ela desistiu de tentar equilibrar a xícara de chá no colo e sentou-se de per‐
nas cruzadas no chão, onde Liza já estava acomodada. Observei, pasma, en‐
quanto ela sorvia o mesmo chá quente que havia escaldado minha língua e
abria um sorriso divertido. “Depois de engolir fogo todas as noites, o chá nun‐
ca parece tão quente assim”, disse ela, dando uma piscadela.
Soltei uma risada abafada e um tanto deselegante, o que fez Liza abrir um
sorriso amável antes de bebericar da própria xícara. Não desejando ser rude, me
juntei a elas no tapete grosso.
“Arrisco dizer que isso é verdade”. Pousei a xícara e o pires, observando o
vapor subir como uma cobra roçando o ar. “Como começou a engolir fogo?
Não sou capaz de imaginar a primeira tentativa. A senhorita é muito corajosa”.
“Muitos diriam que sou tola”, ela estreitou os olhos.
Exibi minha expressão mais inocente e benigna. Liza bufou, exasperada,
mas não me repreendeu por minha curiosidade como sua mãe o teria feito. Ela
era bem versada em detectar planos e sabia que eu estava tramando algo. Em
vez de tecer comentários, ela ofereceu uma bandeja de biscoitos, provavelmente
na esperança de que os doces pudessem ser uma distração de minha falta de
traquejo social.
Anishaa apanhou um biscoito, avaliando as gotas de chocolate antes de res‐
ponder à pergunta. “Uma dupla de taumaturgos, faquires, me ensinou a engo‐
lir as chamas. Eles disseram que meu nome, que sem grande rigor quer dizer
‘aquela cuja vida desconhece a escuridão’, significa que nasci para manejar o fo‐
go”. Ela bufou. “As chamas eram minhas para comandar. Para engolir”. Ela tor‐
nou a erguer a xícara de chá e deu um grande gole. “Eu era muito jovem e
muito impressionável quando me atraíram para longe de casa e me enganaram
com promessas de riquezas. Tenho vergonha por ter dado ouvidos a suas pala‐
vras doces. Uma vez que concordei em ir, eles me largaram, pegaram o dinhei‐
ro e foram embora em busca de outra pessoa para outro festival”.
“Eles é que deveriam ter vergonha. Você não fez nada de errado”. Liza esti‐
cou o braço e segurou a mão da moça, e me lembrei de quão talentosa ela era
para identificar as necessidades de alguém e oferecer apoio.
“Liza tem razão”, acrescentei. “Enganar você para que se juntasse a uma
trupe itinerante foi uma coisa terrível de se fazer”.
Anishaa deu de ombros e partiu o biscoito em pedaços. “Eles me trouxe‐
ram até aqui, e a vida tem sido boa no Festival Enluarado. Tenho dinheiro, co‐
mida, amigos. No fim das contas, tudo ficou bem”.
“Mefistófeles fez isso com você?”, perguntei, fazendo o possível para evitar
que a porcelana chacoalhasse por conta de minhas mãos trêmulas. “Ele a enga‐
nou para afastá-la de seu lar e família?”
“Ele...”, Anishaa baixou levemente o olhar para o colo antes de prosseguir.
“Ele contrata pessoas nos países que visita à procura de talentos. Qualquer um
que esteja passando por um... período difícil... é convidado a fazer parte do fes‐
tival e dos treinos. A escolha derradeira é nossa, mas ele torna o trato bem difí‐
cil de recusar”.
“Então todos os membros do festival vêm de países diferentes?”
“A maioria. Jian é da China. Sebastián, da Espanha. Andreas é da Baviera.
Cassie é francesa, embora fale com sotaque inglês. E eu sou da Índia”.
“Você disse que ele busca aqueles que passaram por períodos difíceis. O
que quer dizer com isso?”, indaguei, por mais que Liza tivesse me lançado um
olhar que dizia que eu era uma tonta por me intrometer.
“Todos temos razões para deixar nossas vidas para trás”. Ela respirou pro‐
fundamente. “Agora, você gostaria de saber como eu engulo as chamas? É o que
todos querem, embora a maioria não queira de fato arruinar a magia e a ilu‐
são”.
Eu a observei por mais um momento, sabendo que as perguntas sobre seu
passado e o festival haviam chegado ao fim. Eu não sabia o que pensar sobre
Mefistófeles. Ele não havia necessariamente salvado ninguém, mas eu também
não podia afirmar que ele havia prejudicado ou enganado. Embora talvez eles
não vissem a situação daquela forma, quem sabe o ressentimento tivesse come‐
çado como um pequeno corte que infeccionou com o tempo. Quem sabe al‐
guém quisesse destruir o Festival Enluarado como vingança por ser afastado de
casa.
“E então?”, perguntou Anishaa. “Gostaria de saber?”
“Por favor”, respondi, afastando os pensamentos sobre possíveis motivos.
“Como você engole as chamas sem se queimar?”
Ela se levantou, graciosamente caminhando pelo chão como se fosse o pal‐
co. Eu me perguntava se os artistas deixavam a pose de lado em algum momen‐
to ou se toda a existência era cedida ao ofício.
“Observe esta vela”. Anishaa retirou um candelabro do suporte na mesa de
cabeceira, acendeu o pavio da vela e a virou quase de cabeça para baixo. A cera
gotejou em direção ao chão. “Para onde a chama vai quando a seguro desta for‐
ma?”
Compreendi. “Para longe do fundo, ou”, acrescentei, “se estivéssemos em
uma de suas apresentações, o fogo estaria se afastando da sua boca”.
“Viu só?” Anishaa abriu um sorriso afetuoso. “Você nasceu para isso”. Ela
colocou a mão ao redor da vela, abafando o fogo até apagá-lo, e a colocou de
volta no suporte. “O mesmo princípio se aplica quando ‘engulo o fogo’. Tudo
que estou fazendo é removendo o calor de meu rosto, então cuidadosamente
expirando à medida que introduzo o bastão na boca. A maioria das coisas vivas
necessita de oxigênio para respirar, até mesmo o fogo. O que acontece se o pri‐
var disso? Ele morre como todas as outras coisas”. Ela se acomodou novamente
no chão, onde eu e Liza permanecíamos sentadas. “O truque verdadeiro é usar
as leis da física. Como aquele cientista... Newton? Mefistófeles me ensinou tu‐
do sobre ele. Ele estava certo, isso me ajudou a aperfeiçoar as apresentações”.
Seu tom de voz se alterou um pouco quando falou sobre o mestre de ce‐
rimônias, uma admiração mesclada com desejo. Eu me perguntei se havia uma
pessoa a bordo daquele navio que não tinha sucumbido aos encantos dele.
Bem, com exceção de Thomas.
“Mefistófeles ajuda todos os artistas?”, perguntei com os olhos fixos em mi‐
nha xícara de chá. Imaginei que ele encantava rapazes e moças em cada cidade
ou vilarejo por onde o festival passava. Se ela havia nutrido sentimentos não
correspondidos por ele, talvez aquilo viesse a se tornar um motivo. Tal senti‐
mento misturado com alguma mágoa poderia ser um pretexto poderoso. “Ele
aparenta ter o mesmo grau de inteligência quanto de beleza”.
Liza me endereçou um olhar incrédulo, mas não disse nada. Ao que pare‐
cia, eu iria receber um grande sermão assim que ficássemos a sós. Apesar do
que todos em Londres pensavam de Thomas e seu comportamento peculiar, Li‐
za gostava muito dele, e meu interesse pelo mestre de cerimônias não estava de
acordo com suas leis do romance, não importava quais fossem minhas motiva‐
ções.
“Mefistófeles é...” Anishaa pareceu formular a resposta com cuidado. “Ele é
muito talentoso com o que faz. Muitos se beneficiam das lições que escolhe
dar. Somos muito gratos a ele”.
Eu me recostei, remexendo os botões nas laterais de minhas luvas. “Ele deu
tais lições a Cassie?”
Liza de repente achou seu chá infinitamente intrigante, e Anishaa pareceu
não saber o que dizer.
“A senhorita gostaria de vê-lo como ninguém mais o vê além de seus artis‐
tas?”, perguntou ela, por fim. Esperava que Anishaa não quisesse dizer que eu o
veria nu como no dia em que veio ao mundo. Assenti devagar. “Encontre-me
em uma hora no convés da segunda classe. Então vai entender por que faría‐
mos qualquer coisa por ele”.
25. ENGRENAGENS E ENGENHOCAS
Cabine de Audrey Rose
RMS Etruria
6 de janeiro de 1889
Jian atirava adagas incrustadas de joias pelo ar. Cabos e lâminas giravam
em rápida sucessão conforme ele fazia malabarismo como se fossem tão perigo‐
sos quanto maçãs ou laranjas. Parecia cedo demais para ser leviano com aquele
tipo de arma. Ele observou minha reação de soslaio, a boca formando uma li‐
nha fina. Jian tinha deixado muito claro que não gostava de mim ou de minha
presença no festival, sendo que meu único crime até então tinha sido existir.
Até onde ele sabia, pelo menos.
“É isso que vai me ensinar hoje?”, perguntei, tentando soar tão indiferente
quanto ele aparentava estar. “Ou desempenharei um papel diferente no ato fi‐
nal? Ninguém me disse o que vou ter que fazer ao certo”.
Andreas olhou de um para o outro, mordendo o lábio. “Na verdade”, ele
estendeu uma faixa longa e grossa, com uma expressão acanhada, “você vai ficar
de pé contra aquele alvo, usando isso. Não tenho certeza sobre o ato final. Me‐
fistófeles ainda não disse a ninguém o que vamos fazer”.
Olhei para onde ele apontava. “Não. Aprender a atirar uma faca ou empu‐
nhar uma espada é uma coisa, ficar parada, vendada, contra um alvo é outra
bem diferente. Isso é pura loucura”.
Jian ergueu uma sobrancelha. “Está com medo?”
Eu me virei de supetão para encará-lo. Era evidente que ou ele estava sob
efeito da Fada Verde de novo, ou era completamente insano. “É claro que estou
com medo! Qualquer pessoa com um pingo de lógica estaria. Você quer atirar
facas em mim. E você não gosta de mim”.
“Tenho boa mira”.
Apontei para mim mesma para frisar meu argumento. “E devo apenas
acreditar que não vai errar de propósito?”
Andreas se remexeu a meu lado. “Gostaria que eu fosse primeiro?”
“Vai cobrir os olhos e deixar que ele atire facas em você? Vocês são todos
loucos. Completa e imprudentemente loucos”.
Por mais absurda que a ideia fosse, no entanto, era difícil não lembrar da
forma precisa com que a sra. Prescott tinha sido morta. O modo como a faca
atingira o alvo de forma perturbadora, lacerando a coluna e perfurando os ór‐
gãos. Se Jian era tão habilidoso quanto ele e Andreas diziam, então realmente
não havia nada que me convencesse a ficar ali parada e me imolar como um
cordeiro.
Bufei. A lógica me dizia que era perigoso, que deveria sair correndo dali,
mas eu precisava fazer aquilo. Se não por mim, pela srta. Prescott. O tempo es‐
tava se esgotando e precisava coletar o máximo de informações possível — se
não descobríssemos a identidade do assassino, ele ou ela escaparia para as ruas
fervilhantes de Nova York e sumiria na cacofonia para sempre. Ver as habilida‐
des de Jian em primeira mão iria beneficiar minha pesquisa. “Está bem. Mas, se
errar, Mefistófeles não vai ficar feliz”.
A expressão dura de Jian não mudou, mas pude jurar que havia um brilho
a mais em seu olhar. Sem dizer mais nada, girei nos calcanhares com o máximo
de dignidade que consegui reunir e marchei até o alvo.
Andreas amarrou a venda nos meus olhos e se inclinou para sussurrar:
“Desculpe por furtar seu broche mais cedo... É um truque que ainda estou pra‐
ticando. Juro que o teria devolvido a você”.
“Certifique-se de que Jian não cometerá nenhum deslize que perdoarei vo‐
cê”.
Ele deu alguns tapinhas em meu braço e me posicionou de perfil contra o
alvo. Mal ousei respirar profundamente quando ele recuou e Jian gritou: “Pre‐
pare-se!”
Senti as palmas de minhas mãos formigarem. Podia jurar que de repente
precisava usar o toalete ou espirrar ou aliviar alguma coceira fantasma no bra‐
ço. Meus músculos estavam tão distendidos que comecei a pensar que talvez
não estivessem rijos, e sim tremendo pelo esforço que fazia para ficar no lugar.
Antes de ficar histérica, senti um deslocamento no ar na altura de meus torno‐
zelos, seguido de um pow de quando a lâmina afundou na madeira.
Soltei o ar e quase caí de alívio. Ainda bem que não tive tempo de respirar
fundo; em uma sucessão rápida, mais três lâminas passaram assobiando rentes a
meu corpo, perfurando a madeira e soltando farpas. Uma perto do joelho, a
outra um pouco abaixo dos quadris e a última na altura das costelas.
“Preparar, apontar, fogo!”, gritou Jian. Torci para que estivesse atirando a
última lâmina e que eu não tivesse magicamente encontrado uma maneira de
entrar em combustão por medo.
Pow. Pow.
Mais duas lâminas voaram, e senti a leve brisa espantosamente perto das
mangas do vestido. Feliz que a tal aula tinha acabado, fiz que ia remover a ven‐
da quando outra faca disparou pelo ar, prendendo a faixa que eu segurava. Sen‐
ti algo quente escorrer da lateral de meu rosto e terminei de tirar a faixa, arre‐
galando os olhos ao tocar uma de minhas orelhas e ver que meus dedos se man‐
charam de sangue.
Jian balançou a cabeça. “Eu disse para não se mexer”.
Sem pedir desculpas, recolheu as facas e deixou a arena de treino enquanto
Andreas fazia um escândalo sobre meu corte superficial. Conforme se apressava
entre os baús, buscando um tecido para estancar o sangue, não pude deixar de
me perguntar o que mais ele fazia para reparar os erros de Jian.
Cruzei os braços sobre o peito e finquei os pés no chão. “Não há nenhum mo‐
tivo plausível para você se apossar do anel de sinete dele, Cresswell”.
“Eu discordo. E com todo o respeito, Wadsworth”. Thomas empinou o
queixo, cabeça-dura como sempre. “Pode ser útil como evidência. Não pode‐
mos devolver só porque ele pediu com educação”.
Rilhei os dentes. “Sabe que está sendo imaturo. Isso não tem nada a ver
com o caso, mas tudo a ver com sua antipatia por Mefistófeles”.
Vi um vestígio de irritação em seus olhos. “É isso que pensa de mim agora?
Que reteria os pertences de alguém por ciúmes?”
Dei de ombros. “Você não deu um motivo melhor para ficar com o anel”.
“Você está envolvida demais neste caso”, comentou me esquadrinhando.
“Seja lá qual for a barganha que fez, está na hora de colocar um ponto final ne‐
la. Vamos solucionar os crimes de outra forma, você não precisa estar tão enre‐
dada”.
“Sinto muito, Thomas, mas preciso continuar”.
Ele sacudiu a cabeça. Antes que Thomas pudesse dizer mais alguma coisa,
meu tio e Liza fizeram uma curva, apressados, e apertaram ainda mais o passo
quando nos viram perto da proa. Lágrimas escorriam pelas bochechas de mi‐
nha prima, brilhando no sol do fim da manhã. Fiquei atordoada. Deixando
minha discussão com Thomas de lado, corri até ela, segurando suas mãos. “O
que aconteceu? Qual o problema?”
“É a s-sra. Harvey”, ela deu um solucinho. “Ela desapareceu”.
“O quê?” A voz de Thomas subiu alguns tons, e ele a controlou. “Você ve‐
rificou a cabine dela? Ela está sempre cochilando”.
Meu tio balançou a cabeça. “Foi o primeiro local que averiguamos. Tam‐
bém buscamos o salão de desjejum, a saleta das mulheres e o lado direito do
convés”.
Calafrios percorreram minha pele junto da brisa. “Ela tem que estar em al‐
gum lugar”.
“Procuramos em todos os lugares”. Os lábios de Liza tremeram. “Ela sim‐
plesmente desapareceu”.
Sem dizer uma palavra, Thomas se apressou pelo convés, com a mão man‐
tendo a cartola no lugar enquanto ele corria até a cabine de sua acompanhante.
Precisei me conter para não sair em disparada atrás dele. Eu não sabia ao
certo como ele estava se sentindo — Thomas nunca dissera, mas a sra. Harvey
era o mais próximo de uma figura materna que ele tinha, e ficaria arrasado se
algo acontecesse com ela. Meu próprio coração se apertava com a possibilidade
de ela ter um fim trágico. Eu adorava a sra. Harvey, sua gentileza e seu tônico
para viagens.
Uma sensação obscura assentou-se em meu âmago. Se a sra. Harvey estava
desaparecida... Aquilo podia significar que o assassino a escolhera especialmen‐
te para atingir meu parceiro. Se Thomas ficasse incapacitado de usar suas habi‐
lidades, o criminoso poderia sair impune. Embora eu não quisesse pensar em
Mefistófeles como o culpado, era o tipo de plano ardiloso que ele elaboraria. O
mestre de cerimônias já tinha organizado um ataque de leão por motivos que
ainda não entendia — até onde eu sabia, ele podia muito bem ter deixado o
anel de sinete no baú de espadas na esperança de Thomas apanhá-lo. Será que
cada detalhe peculiar era algo extremamente ponderado, desejado, que resulta‐
ria em emaranhados emocionais e associações perdidas?
Eu me abriguei em meu manto e olhei ao redor. Quase ninguém tinha saí‐
do — ou temiam os corpos, que continuavam surgindo, ou a tempestade imi‐
nente.
“Vamos logo”. Segurei a mão de Liza e segui depressa pelo convés, na espe‐
rança de ter disfarçado o pavor que sentia. Meu tio estava em nosso encalço,
dois passos atrás. “Conte-me tudo desde o começo. Como descobriu que ela
desapareceu?”
“Nós íamos nos encontrar para o desjejum”. Liza fungou. “Prometi lhe
mostrar os equipamentos de Harry e apresentar os dois depois...” Ela titubeou
por um instante, e me perguntei o que minha prima estava omitindo sobre
Houdini. “Ela estava tão entusiasmada que jamais perderia a chance. Por al‐
gum motivo a sra. Harvey ficou perguntando se ele iria treinar para outro nú‐
mero aquático”.
Aquilo com certeza parecia algo que a sra. Harvey diria. Confortei Liza,
afagando seu braço e evitando causar mais aflição. O gesto também me acal‐
mou e ajudou a me concentrar. Eu precisava ter tudo sob controle caso Thomas
ficasse muito abalado. “Vocês combinaram de se encontrar em nossa cabine ou
na dela?”
“Íamos nos encontrar do lado de fora do salão de desjejum às oito e quin‐
ze”. Liza ofegou. “Eu mesma estava um pouco atrasada, mas quando o relógio
marcou quinze para as dez, decidi verificar os aposentos dela. Pensei que podia
ter perdido a hora. Quando cheguei ao dormitório e bati à porta, ninguém res‐
pondeu”.
“Você não estava em nossa cabine?”, eu quis saber. Liza me encarou sem
dizer nada.
Meu tio ainda nos seguia, em silêncio e vigilante. Era impossível discernir
seus sentimentos — o que não era surpreendente, pois ele era o responsável por
ensinar a mim e Thomas a importância de separar as emoções das cenas do cri‐
me e das investigações.
“Fui buscar você, mas não a encontrei, então fui atrás de nosso tio”. Ela
olhou por cima do ombro, para confirmar que ele ainda nos acompanhava ou
na esperança de que não tivesse ouvido minha pergunta sobre onde estava. “Ele
estava indo encontrar o capitão quando o encontrei, e começamos a buscar em
todos os lugares”.
Tentei não deixar meus temores transparecerem. Algo atípico tinha que ter
acontecido para impedir a sra. Harvey de ser apresentada a Harry Houdini.
“Ela provavelmente está conversando com outras senhoras. Sabe como a sra.
Harvey se distrai fácil”.
Eu já não sabia dizer quem conduzia a outra com mais pressa pelo convés,
se era Liza ou eu. Fizemos uma curva e quase corremos até a cabine da sra.
Harvey. A porta estava entreaberta, e Thomas parado no meio do dormitório,
com os punhos cerrados.
“Você já...”
Ele ergueu a mão. “Mais um instante, por favor. Estou quase...” De súbito,
andou até o baú da sra. Harvey e o abriu. “O manto e as luvas dela estão desa‐
parecidos. Não há nada fora do lugar, o que significa que ela provavelmente foi
interceptada no caminho para o desjejum”.
“Como sabia para onde ela estava indo?”, perguntei, porque ele já tinha
ido embora quando Liza comentou aquilo.
“Ali. O chá na xícara sobre a mesa de cabeceira está gelado”. Thomas apon‐
tou. “Debaixo do pires há um papel com a data de hoje, o que significa que ela
pediu chá quando acordou. Como não há sinal de que uma refeição foi feita, é
fácil presumir que estava a caminho do desjejum com sua prima. Ela é uma
acompanhante, então é mais uma dedução simples. Agora”, girou nos calca‐
nhares, e seus olhos dardejaram pelo cômodo mais uma vez, “quem poderia tê-
la mantido tão interessada que ela não se lembrou de avisar que se atrasaria?”
Senti o assombro de Liza preencher o dormitório. Meu tio também estava
lá, mas um pouco mais tranquilo, pois já tinha presenciado as deduções de
Thomas em primeira mão várias vezes. Para Liza, por outro lado, era como ver
um macaco de circo falar inglês. Ou talvez observar um mágico que de fato
conseguia fazer milagres. Thomas era tão impressionante quanto o mestre de
cerimônias, quem sabe até mais. Mefistófeles era incrível em inventar truques,
mas Thomas desenterrava a verdade com seu intelecto.
“Venha”, disse Thomas, saindo abruptamente pela porta, “vamos fazer uma
visitinha a Mefisto. Wadsworth? Mostre o caminho até o covil”.
Passamos às pressas pelos passageiros da terceira classe que apinhavam o
convés, e senti o sangue correr nas veias mais rápido do que qualquer corrida
de cavalos ao nos aproximarmos da oficina.
Havia muito mais pessoas ali fora do que quando rumávamos para a cabi‐
ne da sra. Harvey. Algumas pareciam abaladas, os rostos lívidos como a geada
que cobria a balaustrada do navio. Meu corpo vibrou em estado de alerta — al‐
go tinha acontecido. Algo que criava um burburinho incômodo e olhares vi‐
drados de preocupação. Ou eu estava apenas imaginando coisas? Perdi o equilí‐
brio em um trecho escorregadio do corredor, e Thomas logo veio a meu resga‐
te. Agarrei seu braço, notando que meu tio também havia feito o mesmo com
Liza conforme avançávamos. Cada passo adiante me deixava ainda mais apavo‐
rada.
Quando chegamos à oficina, soltei o braço de Thomas e bati à porta de
Mefistófeles, dando pancadas ainda mais frenéticas que as de meu coração. Es‐
perei um pouco, então recomecei mais alto. A vibração reverberou em meu
braço e, embora a sentisse nos ossos, não pude evitar bater de novo e mais uma
vez. Precisávamos descobrir o paradeiro da sra. Harvey. Eu não conseguia ima‐
ginar...
Com delicadeza, Thomas envolveu a mão na minha, me tranquilizando.
“Ele não está aqui, Audrey Rose. Está tudo bem”.
Encarei a porta fechada, trincando o maxilar para impedir as lágrimas de
correrem. A sra. Harvey tinha que estar bem. Respirei fundo, me recompondo.
O ar frio ajudou a conter o pânico crescente.
“Certo”, eu disse. “Vamos para o galpão de armazenamento do circo itine‐
rante. Mefistófeles...”
“Dr. Wadsworth!” Todos viramos as cabeças de encontro ao som da voz do
mestre de cerimônias. A expressão estampada em seu rosto não me reconfortou
— era mais irrequieta e alvoroçada do que já tinha visto antes, mesmo que
oculta sob uma máscara. “Por favor, venha depressa”.
Mefistófeles derrapou, parou e deu meia-volta, sem esperar para ver se ía‐
mos segui-lo. Thomas parecia prestes a enlouquecer de preocupação, mas man‐
tinha os pensamentos para si enquanto seguíamos o mestre de cerimônias, gui‐
ando-me pela escadaria o mais rápido que minha saia volumosa permitia. Em
vez de nos embrenharmos pelo navio, fomos cada vez mais para cima, o som de
nossos sapatos contra o metal ecoando para cima e para baixo.
Meu tio e Liza estavam na retaguarda, enquanto Thomas e eu praticamente
nos agarrávamos à aba da casaca escarlate de Mefistófeles. Eu tinha desistido de
ser surpreendida quando reemergimos no convés da primeira classe e fomos di‐
reto para o salão de música. Mefistófeles se dirigira a meu tio em vez de mim, o
que não era promissor.
Ele escancarou a porta de imediato, felizmente revelando a sra. Harvey,
que soluçava em um canto, agarrada a Andreas, que estava muito pálido. Jian
pairava atrás deles, seu rosto tão tempestuoso quanto o mar encapelado. Se ele
fosse um deus, seria a ira encarnada.
“Sra. Harvey”. Thomas correu até ela, caindo de joelhos para examiná-la à
procura de ferimentos ou lesões. Liza soltou nosso tio e foi ao auxílio de Tho‐
mas.
Minhas emoções se aplacaram com a visão da sra. Harvey viva, embora ex‐
tremamente abalada; seu corpo tremia, e seus lábios moviam-se sem emitir
som, em prece ou outro tipo de conforto.
Logo entrei no modo cientista, minha atenção recaindo sobre todos os ob‐
jetos que estavam ali enquanto Thomas cuidava de sua acompanhante. As car‐
tas de tarô que Mefistófeles tinha pintado, o Cirque d’Eclipse, estavam espalha‐
das pelo chão. O espelho mágico estava no mesmo lugar onde eu o vira antes,
contra a parede, desgastado.
“Ali”. Mefistófeles se dirigiu a meu tio e a mim. “No baú”.
Meu tio ajustou os óculos na ponte do nariz, com uma expressão mais du‐
ra no rosto do que as tábuas polidas de madeira nas quais pisávamos. Também
me fortaleci; deparar-se com um corpo em qualquer lugar que não fosse um la‐
boratório esterilizado era sempre um desafio. Éramos cientistas e não monstros.
Avancei com cautela na direção do baú, escondido atrás de uma pilha de almo‐
fadas franjadas, sedas finas e cachecóis que transbordavam pelas laterais como
se tivessem sido eviscerados. Andreas fechou os olhos com firmeza, parecendo
desejar poder conjurar outra realidade.
Meu tio alcançou o baú primeiro, hesitando brevemente antes de se aga‐
char para olhar mais de perto. Meu coração batia mais depressa a cada passo
que eu dava; sabia que havia um corpo, mas descobrir sua identidade era sem‐
pre algo terrível. Por fim, parei diante do baú e olhei para baixo, sentindo meu
estômago se revirar.
“Sra. Prescott”. Levei uma das mãos à boca, balançando a cabeça. A mãe
que parecera tão assolada e sem rumo depois da morte da filha em nossa mesa,
sempre mirando o mar infinito. Parte de mim queria cair de joelhos e buscar
uma pulsação que eu sabia que tinha parado havia muito tempo. Não concebia
contar ao magistrado-chefe que aquele navio tirara não só sua filha, mas tam‐
bém sua esposa. O convite que ele tinha recebido veio à tona em minha mente.
O assassino sem dúvida queria que as mulheres da família Prescott embarcas‐
sem no navio para matá-las. Mas assassinar a sra. Prescott na surdina e deixar
seu corpo em um baú parecia diferente da dramaticidade habitual. Talvez o cri‐
minoso estivesse desesperado para culpar alguém. Quem sabe dispor o corpo
dela ali fizesse com que investigássemos Andreas — ele era, no fim das contas,
bem versado nos significados das cartas de tarô.
Em vez de desmoronar, respirei fundo. “Precisamos notificar o marido dela
o quanto antes”. Mal reconheci minha voz — estava equilibrada e resoluta.
Muito diferente de minhas emoções agitadas. Mefistófeles me fitou por um se‐
gundo antes de assentir. Encarei meu tio. “Vamos conferir dignidade a ela para
a identificação. Você fica com os braços, e eu com as pernas. Vamos colocá-la
naquele canapé ao canto”.
32. CINCO DE COPAS
Salão de música
RMS Etruria
7 de janeiro de 1889
“N ão, não, não”. Anishaa empurrou minha mão sem luva alguns centíme‐
tros para baixo. “Se segurar o bastão perto demais do fogo, vai se queimar. As
saias de nossos trajes são altamente inflamáveis por causa do tule. Você precisa
segurá-lo mais perto da extremidade. Ótimo. Agora movimente-o devagar; fin‐
ja que está pintando o céu com as chamas”.
“‘Pintando o céu com as chamas’? Parece uma tela um tanto dramática”.
Anishaa deixou que um sorriso tomasse seu rosto. Apenas algumas horas havi‐
am se passado desde a descoberta do corpo de lady Crenshaw, e a tensão ainda
estava no ar. “Eu pintava antes de a minha vida se tornar isto”. O sorriso mur‐
chou. “Minha família encorajava minha criatividade, mas nunca aprovaram o
circo”.
Ficamos alguns instantes em silêncio, interrompido apenas pelo suave cre‐
pitar do fogo. Se não estivesse segurando uma tocha, eu a teria abraçado.
“Bem, agora você é um pedacinho vivo da arte. E isso é um feito incrível e...”
“Eu li a carta! Você pretende negar isso como?” A voz aguda de Liza gritou.
Fechei os olhos rapidamente, não pela surpresa, mas por lamentar que ela tives‐
se decidido fazer um escarcéu naquele momento. Estávamos quase chegando a
Nova York; se ela ao menos pudesse ter esperado um pouco mais. “Está tudo
acabado entre nós, acabou! Não quero vê-lo perto de mim, não quero mais falar
com você!”
“Eu não escrevi pra ninguém!”
Liza, com as bochechas de um tom quase púrpura, entrou no salão de jan‐
tar a passos pesados, ignorando as tentativas de Houdini de interceptá-la.
Anishaa e eu trocamos olhares nervosos, mas ficamos em silêncio. Eu queria es‐
tar de volta ao trapézio com Cassie e Sebastián, longe dos fogos de artifício que
estouravam fora do palco. Olhei novamente para Anishaa e vi que sentia o
mesmo; a engolidora de fogo encarava as cortinas com avidez, provavelmente
desejando possuir as habilidades de fuga de Houdini.
“Liza, a única mulher pra quem escrevo é minha mãe! Você tem que me
acreditar, eu...”
“Não, Harry, não preciso ‘te acreditar’ em nada!” Ela marchou pelo salão e
atirou a máscara aos pés dele. “Pegue suas mentiras e ofereça-as para outra pes‐
soa. Não tenho mais nada a dizer para você!”
“Eu juro...”
Mefistófeles entrou com Jian e Andreas no salão. Ele se deteve quando viu
Anishaa e eu segurando os bastões chamejantes, e a conversa intempestiva de
Liza e Harry. “Brigas de casal não são permitidas durante os treinos. Por genti‐
leza, guardem esse drama para um espetáculo particular”.
Liza lançou um olhar fulminante para o mestre de cerimônias e respondeu
com altivez. “Já está resolvido: acabou. Certifique-se de que ele vai ficar bem
longe de mim ou terá um espetáculo totalmente novo nas mãos”.
Ela bateu a porta, e a louça que já tinha sido preparada para o jantar da
noite seguinte tilintou. Harry fez menção de ir atrás dela, mas Mefistófeles o
deteve, colocando a mão em seu peito. “Deixe Liza se recompor. Não é sensato
pressionar uma pessoa aborrecida”.
“Mas eu não fiz nada!”
“Vamos pegar uma bebida”. Mefistófeles colocou um braço nos ombros do
artista de fuga e o escoltou, serpeando entre as mesas até o outro lado do salão.
“Temos que nos unir agora. O espetáculo precisa de você em sua melhor for‐
ma”.
Olhando uma única vez por cima do ombro para mim, conduziu o cons‐
ternado Houdini para longe.
Anishaa balançou a cabeça. “Vamos encerrar por hoje. Preciso descansar, e
você também”. Ela se inclinou e cheirou meu cabelo. “Talvez queira tomar um
banho antes do amanhecer. Seu cabelo está com um leve odor de querosene.
Vai ser difícil esconder isso de Thomas ou seu tio”.
Concordei, distraída, e a acompanhei até um balde de água disposto para
nós. O fogo de meu bastão chamejante foi extinguido com um silvo de vapor.
Algo sobre a insistência de Houdini em alegar sua inocência me incomodava.
Ele parecera genuíno, com o rosto contorcido de agonia. Ou era um mentiroso
muito bom, ou estava contando a verdade. Ou uma versão dela.
O que significava que era muito possível que o mestre de cerimônias tives‐
se criado mais uma ilusão. Mais uma mentira na lista que me parecia intermi‐
nável. Talvez Houdini não fosse a pessoa de quem Liza precisava fugir no fim
das contas.
Algumas horas depois, saí de fininho de meus aposentos, torcendo que tempo
suficiente tivesse passado para que eu pudesse encontrar quem queria. Ele não
estava rondando a proa, então deduzi que havia mais dois lugares onde poderia
estar naquele horário.
Olhei por cima do ombro, me assegurando de que estava sozinha, então
rumei para a escadaria. Desci os degraus depressa, o metal trincando sob meus
pés, lembrando-me de quão viva eu estava, e de como aquilo poderia acabar
em um piscar de olhos.
Entrei de supetão no compartimento de carga dos animais. Mefistófeles te‐
ve um leve sobressalto, mas logo se recuperou. Ele me estudou com o olhar, e
devolvi o gesto na mesma moeda. A máscara continuava no lugar, mas a camisa
estava amarrotada e úmida. Sua aparência estava péssima, tal qual eu me sentia.
“Você mentiu para mim”. Eu o observei com atenção, buscando por um
ponto fraco em suas defesas. “Sobre a carta de Houdini. Ele estava escrevendo
para a mãe, não é?”
Mefistófeles sequer piscou. Ele olhou para mim, depois para minha boca, e
sorriu com malícia ao ver minha expressão carrancuda. “Não menti, minha
querida. Eu nunca disse que ele estava escrevendo para uma amante secreta,
disse?”
“Ah, não disse, é?” Bufei. “Então imagino que eu mesma tenha criado a
carta parcialmente destruída e inventado uma história para ela”.
Ele sustentou meu olhar, com o rosto sério. “Considere esta sua primeira
aula de prestidigitação, srta. Wadsworth. Iludir com as palavras também é uma
ferramenta valiosa para qualquer mágico ou apresentador. Nossas mentes são
ilusionistas magníficas, e sua magia é infinita. O que eu disse e mostrei a você
naquela noite foi apenas uma carta em parte arruinada. Sua mente inventou
uma história e tirou suas próprias conclusões. Nunca afirmei que ele tinha uma
amante secreta. Só disse que Houdini escrevia para alguém e enviava uma carta
de cada cidade”.
Balancei a cabeça, desejando poder chacoalhar o homem parado diante de
mim. “Mas você disse que ele a amava”.
Mefistófeles assentiu. “Eu disse. E imagino que ele ame muito a própria
mãe”.
“Você disse que Liza não sabia das cartas ou da mulher. Você me fez pensar
que havia algo mais comprometedor acontecendo. Você...” Voltei à noite em
que fizemos a barganha, sentindo meu estômago afundar cada vez que uma no‐
va lembrança me acometia. Ele não tinha mentido. Só não tinha sido comple‐
tamente franco.
“Eu o quê?”, perguntou. “Apresentei fatos a você, srta. Wadsworth. Você
presumiu que eu queria dizer amante. Você presumiu que ele não era confiável,
apenas por causa de nossas profissões. Seu preconceito interferiu na habilidade
de investigar mais a fundo, de fazer perguntas mais específicas, de separar os fa‐
tos da ficção que criou na cabeça. Você teve a oportunidade de esclarecer tudo.
Eu não teria mentido. Foi uma escolha que você fez, e se eu tomei proveito dis‐
so? É claro que sim. Não vou negar que já usei esse método antes, e que com
certeza o farei novamente no futuro. Se está zangada com alguém, que fique
também consigo mesma. Você criou uma ilusão a partir da verdade na qual
queria acreditar”.
“Você é uma pessoa terrível”.
“Sou terrivelmente preciso em compreender a humanidade. Mude os com‐
portamentos humanos, srta. Wadsworth, que mudarei minha tática”.
“Você me fez partir o coração de Liza sem nenhum motivo”.
“É mesmo? Não consegue pensar em nada bom que tenha saído disso?”
Mefistófeles inclinou a cabeça para o lado. “Realmente acha que o par ideal de‐
la é um escapista de um circo itinerante? Ou tudo não passa de um capricho
com péssimas consequências? Você fez um favor a sua prima, srta. Wadsworth.
Mas, às vezes, favores não vêm embrulhados em papel de presente. Houdini te‐
ria partido o coração de Liza em algum momento, ou ela o dele. A escolha cer‐
ta nem sempre é a mais fácil”. Ele fez uma curta reverência. “Espero que um
dia entenda isso. Boa noite”.
“Ah, não mesmo”, eu disse, marchando atrás dele e o virando pelos ombros
para que me encarasse. “Não pode fazer isso”.
“Fazer o quê?”
“Jogar querosene, atear fogo e então ir embora quando o incêndio é grande
demais para seu gosto”.
Ele se recostou na jaula do leão, pensativo. Torci para que o leão estivesse
atrás de um petisco. Era um pensamento abominável e vil para se ter depois
que o animal tinha devorado pelo menos um pedaço de uma vítima. Vítima
que ainda precisávamos identificar. Estremeci. Mefistófeles retirou seu fraque e
cobriu meus ombros com ele — o veludo bordado e escarlate me fazia pensar
um pouco demais em sangue.
“Uso a ciência e estudo a mente humana assim como você”, respondeu ele,
com calma. “Não se aborreça por ter escolhido o caminho enfadonho e con‐
vencional. Sabe que ainda pode fazer uma escolha diferente. Se quer atear fogo
em seu mundo, posso providenciar a caixa de fósforos”.
“‘Enfadonho’?”, repeti. “Desculpe se não me divirto com a ideia de quase
destruir a vida de alguém por um mero capricho. Talvez seja melhor você con‐
tinuar fazendo trajes bonitos”.
“Se quiser fazer parte de meu festival à meia-noite permanentemente e
contribuir com ideias mais brilhantes, é só pedir”.
“Está louco se acha que me juntaria a você ou a seu uso distorcido de ‘ciên‐
cia’ e engenharia para sempre. Seus espetáculos são violentos e brutais. Tudo
que fazem é nos mostrar quão horrendo o mundo pode ser”. Gesticulei com
impaciência quando ele sorriu. “O que é tão engraçado?”
“Seu fervor é adorável”.
“Sua falta de compaixão é revoltante”, rebati. “Você consegue levar algo a
sério?”
“É claro que sim. Falo sério quando digo que sou a pessoa mais honesta
que conheço”, respondeu com voz frustrantemente calma. “A verdade é como
uma lâmina afiada. Brutal e cortante. Ela fere. Pode até deixar cicatrizes se dita
levianamente. Nossos números evidenciam isso, sem remorso. Repito, se está
zangada com alguém, é com você mesma. Que verdade descobriu quando o
tanque foi revelado esta noite?”
“Além do cadáver? Descobri que estão dispostos a ultrapassar qualquer li‐
mite por um festival idiota”.
“Só isso?” Ele abriu um sorriso ferino. “Não gostou? Aposto que seu cora‐
ção bateu mais depressa e que o medo e a expectativa fizeram suas mãos sua‐
rem. Somos todos fascinados pela morte; é a única coisa que temos em co‐
mum. Não importa nossa posição na vida, todos vamos morrer. E nunca sabe‐
mos quando a morte se aproxima. Ver alguém se afogar por si só não é assusta‐
dor ou intimidante. A verdade e a constatação do que realmente nos estimula,
por outro lado, é o que há de mais perturbador”.
“Não estou entendendo onde você quer chegar”.
“Não mesmo? Conte-me, srta. Wadsworth. Imagine o seguinte: quando
aquela cortina é baixada ao redor do tanque e o cronômetro começa a marcar o
tempo, com os segundos tiquetaqueando tão rápido que provocam arritmia,
qual é o sussurro que escuta em sua cabeça, nos intervalos das batidas de seu
coração? Secretamente torce para que Houdini consiga escapar? Torce, contra
todas as probabilidades, para que ele vença a morte? Ou fica onde está, com os
punhos cerrados sob a mesa, apavorada e ao mesmo tempo antevendo a possi‐
bilidade de que está prestes a presenciar algo que todos tememos? O que é mais
empolgante? Mais assustador?”
Engoli em seco e não respondi; não havia necessidade. Mesmo que não ti‐
véssemos tido a chance de assistir ao número que ele mencionava, Mefistófeles
já sabia o que eu iria dizer.
“Essa é a verdade que oferecemos”, disse ele. “Todos somos desesperados
para encontrar uma maneira de derrotar nossa maior inimiga: a morte. Ao
mesmo tempo, somos ávidos para vê-la devorar outra pessoa. Você pode odiar a
verdade, entrar em negação ou xingar, mas, no fim das contas, é igualmente en‐
cantada por ela. Saber que o fogo é quente nem sempre impede alguém de
brincar nas chamas”.
O mestre de cerimônias deu de ombros quando continuei em silêncio, mas
havia uma tensão em seus lábios que desmentia a indiferença. “A vida, como o
espetáculo, continua, queiramos ou não. Se parássemos de viver, deixando de
celebrar nossa existência perante a morte ou a tragédia, seria melhor cairmos de
vez nas próprias covas”.
Um pensamento me ocorreu. “De quem foi a ideia de apresentar a câmara
de tortura esta noite? Sua, de Houdini ou do capitão?”
“Vamos dizer que foi um acordo mútuo”. O leão rugiu, e Mefistófeles se
afastou da jaula, sobressaltado. Ele endireitou o colete. “O que descobriu sobre
a morte da sra. Prescott?”
Que qualquer pessoa, inclusive ele, poderia ter colocado o corpo naquele
tanque. Estremeci — duas mulheres, uma enfiada em um baú, outra em um
tanque. Lugares horríveis para o repouso eterno. “Faremos um post-mortem
pela manhã. O marido dela pediu uma noite para se despedir”.
“Mas está confiante de que vão identificar a causa da morte?”, insistiu.
Aquiesci, pois não estava pronta para admitir que já tínhamos deduzido que ela
tinha sido sufocada. “Interessante”.
“Não é assim tão interessante ou difícil quando você praticou o bastante”.
“Alguns diriam que seu ofício é impossível. Pense nisso por um momento,
por favor. Você pega o corpo de uma pessoa e o abre para buscar pistas deixadas
para trás. Parece impossível para alguém sem treino. Decifrar os mortos? Iden‐
tificar a causa da morte ao pousar os olhos no corpo, determinando qual órgão
não estava funcionando corretamente?” Andou em círculos, com as mãos para
trás. “Mas precisa sujar as mãos, não é? Para fazer algo que os outros julgam
impossível, não importa o lugar ou circunstância, vai sujar as mãos pelo cami‐
nho”.
Cambaleei para trás, quase perdendo o equilíbrio perto da jaula do tigre.
Havia uma aura de confissão em suas palavras que eriçava os pelos de meus
braços. Eu não sabia nada sobre o mestre de cerimônias, exceto que ele era
muito bom em espalhar pistas falsas.
Meu coração palpitou. Será que Mefistófeles tinha me usado como uma de
suas prestidigitações o tempo todo? Aqueles encontros à meia-noite poderiam
ser uma forma de distrair Thomas. Se ele acreditasse que havia algo secreto
acontecendo entre nós, poderia se desatentar de quaisquer outras atitudes sinis‐
tras que o mestre de cerimônias viesse a cometer. Thomas podia confiar em
mim, mas era humano. Suas emoções podiam ser manipuladas, como Liza ha‐
via alertado.
E eu tinha sido igualmente enganada por Mefistófeles. Estava fazendo o
que ele pedira porque queria ajudar minha prima a qualquer custo. E ele não
havia demorado a perceber minhas intenções. Ilusionistas eram treinados para
encontrar alvos fáceis na multidão, e Mefistófeles estava entre os melhores.
Ele me observava das sombras como o leão enjaulado rondava atrás dele.
Havia algo obscuro e astuto em Mefistófeles — um gato com a barriga cheia
que deliberava se valia a pena matar o rato logo ou se era melhor guardá-lo pa‐
ra outro dia em que o saborearia melhor. Era difícil dizer o que ele mais deseja‐
va e o que mais me estimulava. Talvez eu fosse tão doentia e corrompida quan‐
to ele.
O mestre de cerimônias não se aproximou, mas conseguiu ocupar todo o
espaço entre nós. Quis ter uma resposta sagaz para dar, algo que mostrasse co‐
mo não tinha medo de vencer em seus jogos mentais, mas ele olhou sugestiva‐
mente para minhas mãos. “Se deseja realizar grandes feitos, às vezes deve sujar
as mãos. Mas você já fez isso. É um tanto peculiar que a mesma cortesia não se
aplique a mim”.
Reparei no sangue em minhas mãos. Tentei limpá-las, esfregando uma na
outra, mas a mancha não saiu. Era possível que eu tivesse tocado nas barras em
algum momento; embora já tivesse mergulhado minhas mãos em sangue mais
vezes do que era capaz de contar, fiquei exasperada por vê-las sujas.
“Graças ao mar bravio, o capitão disse que não vamos aportar por mais um
dia, srta. Wadsworth”. Mefistófeles se virou para partir, então se deteve, tambo‐
rilando os dedos no batente da porta. “Realmente espero que solucione esses
crimes, para o bem de nós dois. Não sei se o festival vai sobreviver a mais um
golpe. E há mais de um jeito de fazer um homem se afogar”.
35. OITO DE ESPADAS
Aposentos de Audrey Rose
RMS Etruria.
7 de janeiro de 1889
Fiz uma pausa, lembrando-me do que Mefistófeles dissera sobre o Sete de Es‐
padas invertido. E ele significava... significava que... alguma coisa sobre alguém
achar que havia se safado de algo. Ou ao menos era o que ele tinha dito. Então
será que aquilo queria dizer que a filha do dr. Arden teve problemas? Será que
ela acreditava que tinha escapado de algum crime que cometera? Eu não fazia
ideia de onde ir para obter respostas — o dr. Arden ainda se recusava a deixar
seus aposentos ou atender à porta, e o capitão ficava cada vez mais impaciente à
medida que nos aproximávamos da América. Acrescentei mais informações.
Srta. Wadsworth,
Thomas estava parado a meu lado, com uma postura rígida. Suas mãos enluva‐
das seguravam a balaustrada gélida enquanto observávamos o desembarque dos
passageiros. Eles sem dúvida teriam histórias para contar sobre o navio desafor‐
tunado. Nem mesmo Houdini escaparia do escândalo, mas eu tinha certeza de
que tudo terminaria bem para ele. Um grupo de policiais atravessou a multidão
para buscar o criminoso que os jornais tinham apelidado de Estripador da Ba‐
viera. Não demoraria muito. Minha respiração ficou entrecortada, e pousei as
mãos em meu peito para me acalmar. Eu não queria me despedir. De jeito ne‐
nhum.
“Estaremos juntos novamente em breve, Wadsworth. Você nem vai notar
minha ausência”.
Olhei para seu perfil, sentindo meu coração bater descompassado. Ele não
olhava em meus olhos desde quando eu tinha sido esfaqueada. Eu sabia que
meu ilusionismo com as palavras tinha funcionado até bem demais, e também
sabia que merecia sua raiva, mas aquela atitude era fria demais para ser suporta‐
da. “É isso? É só o que tem a me dizer?”
“Precisam de mim aqui, em Nova York, como representante do seu tio”.
Ele respirou fundo, os olhos fixos nas pessoas que ainda desembarcavam do na‐
vio. Quis agarrar seu sobretudo e sacudir Thomas até que ele me encarasse.
Mas mantive as mãos no lugar, uma na lateral do corpo e a outra segurando
com firmeza a bengala emprestada. Ele sempre havia me garantido a liberdade
de escolha. Eu não o privaria do mesmo direito. Se Thomas queria ficar, eu não
iria implorar de forma egoísta. “Vou me juntar a você assim que possível”.
Ignorei a lágrima que escorreu em minha bochecha. Eu não queria me se‐
parar dele daquela maneira — com ele tão frio e distante como as praias da In‐
glaterra. Tínhamos passado por muita coisa juntos. Mas talvez não fosse meu
comportamento — talvez ele não conseguisse mais me olhar depois que fui fe‐
rida.
Quem sabe minha perna quebrada o lembrasse de quão perto estivéramos
da morte. Eu podia ter entendido do que estava disposta a abrir mão, mas não
significava que ele tinha chegado à mesma conclusão.
Eu me recompus, orgulhosa de como estava conseguindo controlar minhas
emoções. “Você não deveria dizer algo como ‘Sentirei muito sua falta,
Wadsworth. Tenho certeza de que as próximas semanas serão uma tortura len‐
ta’ ou algum de seus gracejos?”
Thomas se virou para mim, e notei que seus olhos não tinham a fagulha de
malícia de sempre. “É claro que vou sentir saudades. Vai parecer que meu cora‐
ção foi cirurgicamente removido do peito”. Ele respirou fundo. “Eu preferia ser
atravessado por todas as adagas do arsenal de Jian. Mas é o melhor para o ca‐
so”.
Ele tinha razão. É claro que tinha. O caso vinha em primeiro lugar, mas eu
não precisava gostar daquilo. Segurei a bengala com mais força. Tinha passado
a vida toda desejando que as barras da gaiola em que eu estava desaparecessem
— tudo que sempre quis foi ser livre. Poder escolher meu caminho. Primeiro
meu pai me mandara embora, e parecia que Thomas estava fazendo o mesmo.
A liberdade era deliciosa e assustadora. Agora que estava a meu alcance,
queria devolvê-la. Não tinha a menor ideia do que fazer com ela, ou comigo
mesma.
“Então desejo-lhe boa sorte, sr. Cresswell”, eu disse, ignorando a estranhe‐
za que senti com minha formalidade. “Você está certo. É tolice ficar desgostosa.
Nós nos veremos em breve”.
Esperei que Thomas abandonasse a postura fria e abraçasse a calidez de seu
afeto por mim, mas ele continuou inabalado. Um detetive pigarreou atrás de
nós, interrompendo um de nossos últimos momentos juntos. Eu não sabia se
deveria desatar a chorar ou rir. Nós estivéramos nos braços um do outro naque‐
le mesmo convés apenas oito noites antes, nos beijando sob as estrelas.
“Sr. Cresswell? Estamos levando os corpos para terra firme agora. Sua pre‐
sença é solicitada no trajeto até o hospital”.
Thomas assentiu secamente. “É claro. Estou a seu dispor”.
O detetive se virou para mim e tocou a ponta do chapéu antes de desapare‐
cer pelo navio. Meu coração esmurrava o peito, e minha perna doía. Era isso.
O momento que eu mais temia desde o caso do Estripador. Eu finalmente esta‐
va me despedindo do sr. Thomas Cresswell. Senti como se não houvesse oxigê‐
nio suficiente na terra para me manter. Respirar era difícil, e amaldiçoei meu
espartilho por seguir as tendências tão à risca e estar tão apertado. Eu estava
bem. Tudo ficaria bem.
Eu continuava sendo uma bela mentirosa. Não havia nada de bom naquela
situação.
Thomas olhou para a porta que o guiaria a um caminho diferente do meu.
Pela primeira vez em meses, não embarcaríamos em uma nova aventura juntos.
Eu já sentia saudades, como se parte de mim tivesse sido amputada e meu cor‐
po ainda desse falta do membro perdido. Eu me completava. Não precisava de
outra pessoa para me preencher, mas tudo naquela partida me causava mal-es‐
tar. Não estava certo, mas eu não sabia como consertar as coisas. Talvez aquela
fosse a grande lição ao se desapegar — aceitar o que fugia de nosso controle.
Eu só podia fazer o que estava ao meu alcance; cabia a Thomas me encontrar
ou não na metade do caminho.
Ele se virou para mim, com o maxilar retesado. “Até logo, srta.
Wadsworth. Tem sido um prazer estar a seu lado. Até nosso próximo encon‐
tro”.
Ignorei as semelhanças de nossa despedida com o adeus de Mefistófeles.
Quando ele foi embora, não senti como se o mundo não mais girasse em seu
eixo. Thomas tocou sua cartola e se foi.
Em minha cabeça, eu corria atrás dele, agarrava seu sobretudo e implorava
para que ficasse. Para que me levasse com ele. Para que não obedecesse às or‐
dens de meu tio sobre ficar ali e acompanhar o caso em Nova York. Para que se
casasse comigo na capela naquele mesmo instante. Minha avó morava ali perto
— embora não tivesse respondido nenhuma das cartas que enviei e talvez esti‐
vesse viajando — e poderia ser uma testemunha, nem que fosse só para aborre‐
cer meu pai.
Na verdade, apertei os lábios e apenas assenti, observando-o se afastar pelo
tempo que fosse. Talvez algumas semanas. Ou quem sabe para sempre. Qual‐
quer que fosse a escolha dele, eu aceitaria. Não importava o quanto fosse ser di‐
fícil, eu encontraria um jeito. Ele se deteve, de costas para mim, e seus dedos
tamborilaram no batente. Esperei, prendendo a respiração, por alguma piada
ou para vê-lo correr até mim e me envolver em seus braços, mas depois de um
instante, ele deu um passo adiante e desapareceu pelo navio.
Um soluço escapou de meu peito antes que eu pudesse evitar. Fiquei ali pa‐
rada, ouvindo meu coração pulsar. Não sabia explicar por que a despedida ti‐
nha parecido permanente. Mas de algum modo eu sabia, com todo meu ser,
que se eu não o impedisse, o sr. Thomas Cresswell desembarcaria do navio e
deixaria minha vida para sempre. Segurei a balaustrada com a mão livre, permi‐
tindo que a superfície gelada aliviasse meus pensamentos. Eu precisaria buscar
uma fonte de calor logo — a dor em minha perna estava insuportável.
Decidi me concentrar na dor física em vez da agonia palpitante e exacerba‐
da em meu peito.
Eu e Thomas tínhamos entrado em combustão como uma estrela cadente e
nos desintegrado com a mesma rapidez.
Tínhamos apanhado o Estripador da Baviera. Inocentado o restante do
Festival Enluarado de qualquer injustiça. Thomas iria apenas oferecer auxílio
forense ali enquanto eu e meu tio viajaríamos para nossa próxima parada, onde
ele iria, com certeza, em algum momento se juntar a nós. Tudo ficaria bem em
breve — eu estava só fazendo tempestade em copo d’água. Depois de tantos
embates com a morte, não era difícil encontrar uma explicação lógica para mi‐
nha relutância em me despedir de alguém que eu amava. Eu me lembrei de
meus sentimentos de antes: A ciência era um altar diante do qual eu já havia me
ajoelhado antes, e ela me abençoava com seu consolo.
Entoei as palavras aos sussurros, contemplando o mar por muito tempo
depois que Thomas partiu.
EPÍLOGO
Pode soar estranho, mas publicar um livro não é muito diferente de estar em
um circo. Há muitos artistas, todos lidando com diferentes aspectos do proces‐
so, trabalhando em conjunto para transformar um simples arquivo em algo ex‐
traordinário e espetacular.
Muito obrigada a Barbara Poelle, que me mantém boquiaberta com sua
habilidade de alternar entre agente destemida e amiga gentil com a mesma agi‐
lidade que Andreas realiza o truque de cartas para Audrey Rose. Para a equipe
da Irene Goodman Agency, Heather Baror-Shapiro na Baror International Inc.,
e Sean Berard na APA, por continuarem fazendo sua mágica. Eu não preciso de
um espelho para ver quão brilhante o futuro será para Audrey Rose e Thomas.
Jenny Bak, suas edições incríveis pegam um primeiro rascunho enfadonho
e o fazem brilhar mais do que o fraque mais vistoso de Mefistófeles. Você é mi‐
nha parceira em tudo que é sangrento e espalhafatoso; obrigada por sempre se
entregar a meu lado obscuro. Sasha Henriques, você continua adicionando ca‐
madas de coisas maravilhosas com suas anotações — muito obrigada, de cora‐
ção! Para toda a trupe de artistas fantásticos na JIMMY Patterson Books e Little,
Brown, e ao talentoso mestre de cerimônias que uniu todos: James Patterson,
Sabrina Benun, Julie Guacci, Erinn McGrath, Tracy Shaw, Stephanie Yang,
Aubrey Poole, Shawn Sarles, Ned Rust, Elizabeth Blue Guess, Linda Arends e
minha editora Susan Betz. Do marketing à publicidade, a uma incrível equipe
de vendas e produção, aos responsáveis pela arte do miolo e a mágica com a ca‐
pa, sou eternamente grata por seu apoio e trabalho árduo com esta série..
Mãe e pai, vocês sempre acreditaram no poder dos sonhos, e eu estaria per‐
dida sem o seu amor e apoio. (E sem vocês para irem comigo a todas as consul‐
tas médicas, principalmente quando eles precisam tirar sangue. Quero morrer.)
Kelli, continue realizando seus sonhos da maneira mais espetacular de todas, e
com estilo! (Fiz um trocadilho com a Dogwood Lane Boutique!) Como sem‐
pre, obrigada por ser minha estilista pessoal e por me deixar, e também a mi‐
nha casa, na moda. Acho que vou manter você como irmã. Ben, Carol Ann,
Brock, Vanna, tio Rich e tia Marian, Laura, George, Rich, Rod, Jen, Olivia,
Gage, Bella, Oliver e todos os bebês peludos da família, muito amor a todos
vocês.
Irina, Phantom Rin, criadora de arte de outro mundo. Mais uma vez você
tirou as imagens da minha imaginação para melhorá-las e transformá-las em
peças deslumbrantes. Muito obrigada pela ideia de incluir luas e estrelas nas lu‐
vas de Mefistófeles, e por dar vida aos personagens do Festival Enluarado com
seus baralhos de carta e tarô personalizados.
Traci Chee, pela companhia nas viagens para eventos literários, por dividir
quartos de hotel (e comidas), por estar sempre presente em todas as coisas boas
e também nas coisas difíceis da medicina, não consigo dizer o quanto sua ami‐
zade significa para mim, tanto no mundo editorial quanto fora dele.
Stephanie Garber, não sei que tipo de poderes sobrenaturais você possui, já
que você sempre liga BEM na hora certa, mas serei eternamente grata por você!
Todas as nossas conversas sobre o enredo e os personagens, sobre recomenda‐
ções de livros e a vida, são muito inesquecíveis. :)
Sarah Nicole Lemon, Renee Ahdieh, Alexandra Villasante, Nicole Castro‐
man, Gloria Chao, Samira Ahmed, Kelly Zekas, Sandhya Menon, Riley Red‐
gate, Lyndsay Ely, Hafsah (e Asma!) Faizal — eu adoro poder ver vocês nos
eventos.
Bibliotecários, professores, livreiros, blogueiros de livros, booktubers e bo‐
okstagrammers — obrigada por contarem aos seus alunos, amigos e toda a in‐
ternet sobre o amor de vocês por esta série. Uma lembrança especial para Sasha
Alsberg, Katie Stutz, Rec-lt Rachel, Kristen em My Friends Are Fiction, Stacee,
também conhecida como Book Junkee, Bridget em Dark Faerie Tales, Melissa
em The Reader e o Chef em seu lugar. Brittany em Brittany’s Book Rambles,
Brittany em Novelly Yours, e todo o grupo de cabras.
E para você, que chegou até o fim, obrigada por ler, sonhar e embarcar em
outra aventura assassina comigo.
KERRI MANISCALCO cresceu em uma casa semiassombrada nas
cercanias de Nova York, onde teve início sua fascinação por ambi‐
entes góticos. Em seu tempo livre, ela lê tudo em que consegue
pôr as mãos, cozinha todos os tipos de comida com sua família e
com seus amigos, e bebe chá demais enquanto discute os mais be‐
los aspectos da vida com seus gatos. Seu primeiro romance desta
série, Rastro de Sangue: Jack, o Estripador, estreou no primeiro lu‐
gar na lista dos mais vendidos do New York Times. Ela está sem‐
pre animada para falar sobre crushes ficcionais em suas redes soci‐
ais. Saiba mais em kerrimaniscalco.com.
{1}
Instituições criadas para fornecer acomodação, comida e tratamento médico para pessoas
que viviam em estado máximo de miséria em troca de trabalhos árduos. Ver Vitorianas Maca‐
bras (DarkSide, 2020). [Nota da tradutora, de agora em diante N. T.]
{2}
Elegantes e coloridos, os cartões de visita eram usados pela aristocracia vitoriana para agra‐
decer por um jantar recente, prestar condolências ou apenas cumprimentar algum conhecido.
Os criados deixavam os cartões em uma bandeja de prata no saguão de entrada da casa. Uma
bandeja cheia era uma maneira sutil de indicar um grande e variado círculo social. [N. T.]
{3}
Dispositivo tubular ou com formato de funil, podendo ser feito de metal, madeira ou chifre
de animal, que coletava as ondas sonoras e as direcionava para dentro do ouvido, aumentando
a intensidade com que o som chegava ao tímpano e proporcionando uma melhor audição. As
primeiras cornetas acústicas datam do século XVII, mas seu uso só se popularizou no fim do
século XIX. [N. T.]
{4}
P.T. Barnum (1810-1891), conhecido como Príncipe da Falcatrua e Avô da Publicidade, foi
um excêntrico apresentador e empresário norte-americano que fundou, em 1871, o circo Rin‐
gling Bros, e Barnum & Bailey. O espetáculo, considerado o mais antigo do mundo, encerrou
suas atividades em 2017. [N. T.]
{5}
Tipo de literatura popular no Reino Unido no século XIX e de onde surgiram personagens
como Sweeney Todd, Dick Turpin e Varney, o Vampiro. As histórias macabras, publicadas se‐
manalmente por um centavo, narravam as façanhas de detetives, criminosos e entidades sobre‐
naturais, [N. T.]
{6}
Muito populares entre a classe trabalhadora do século XIX, os dime museums eram uma co‐
leção de curiosidades, aberrações e monstruosidades sensacionalistas em exposição com ingres‐
sos a baixo custo. [N. T.]
{7}
Forma de entretenimento que misturava diversos tipos de atrações, como números de dan‐
ça, esquetes cômicas e mímica. [N. T.]