O Peregrino Secreto - John Le Carre

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JOHN LE CARRÉ

O PEREGRINO SECRETO
Tradução de A. B. PINHEIRO DE LEMOS
Título original inglês THE SECRET PILGRIM
Copyright (c) by David Cornwell, 1990
Proibida a exportação desta edição para Portugal e colônias
portuguesas.
Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa
para o mundo inteiro, exceto Portugal e colônias portuguesas
adquiridos pela
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Rua Argentina 171 — 20921 Rio de Janeiro, RJ — Tel.: 580-
3668
que se reserva a propriedade literária desta tradução
Impresso no Brasil
PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL
Caixa Postal 23.052 — Rio de Janeiro, RJ — 20922
Sinopse
Em um de seus mais instigantes romances, John Le Carré
convida o leitor a participar de um jantar inesquecível, onde reúne
novos e antigos personagens. Perguntas e reflexões sobre o mundo
da espionagem são apresentadas por Ned, cuja missão final no
crepúsculo de da carreira é treinar uma nova geração de espiões.
No jantar de encerramento do curso, ele é impulsionado a uma
longa e sentimental viagem por sua vida. O resultado é uma
sequência de recordações que marcaram a jornada deste peregrino
secreto.
PARA ALEC GUINNESS
com afeição e agradecimentos
UM
DEIXEM-ME CONFESSAR logo de uma vez que se eu não
tivesse, num súbito impulso, pegado a caneta e escrito um bilhete
para George Smiley, convidando-o a falar a minha última turma na
noite final de seu curso de treinamento — e se Smiley não tivesse
aceitado, contra todas as minhas expectativas — eu não seria tão
generoso e liberal ao lhes oferecer meu coração.
No máximo, estaria oferecendo o tipo de reminiscências
censuradas com que, para ser franco, costumo regalar meus alunos:
feitos da cavalaria secreta, dos dramáticos, engenhosos e bravos. E
sempre, como não poderia deixar de ser, o útil. Estaria fascinando-
os com lembranças de lançamentos noturnos de paraquedas no
Cáucaso, perigosas travessias em lanchas, desembarques em
praias, luzes piscando da terra, mensagens clandestinas de rádio
interrompidas no meio da transmissão. De heróis silenciosos da
Guerra Fria, que depois de fazerem suas contribuições retornaram
modestos ao seio da sociedade que haviam protegido. De
desertores-no-lugar, arrebatados num relance das garras da
oposição.
E até certo ponto, não se pode negar, essa é a vida que
levamos. Em nosso tempo, fizemos essas coisas, algumas até
terminaram bem. Tivemos bons homens em maus países que
arriscaram suas vidas por nós. E, de um modo geral, acreditava-se
neles, as vezes suas informações eram aproveitadas sensatamente.
Espero que assim seja, pois o maior espião do mundo não vale
nada quando isso não acontece.
E para acrescentar um tom mais descontraído, tomando um
segundo uísque no refeitório dos estagiários, eu lhes contaria a
história de uma equipe de recepção de três homens do Circo,
operando na Alemanha Oriental, bravamente liderada por mim
mesmo, que ficou esperando numa crista nas Montanhas Harz,
quase congelando, rezando para que surgisse logo o avião sem
qualquer identificação, os motores desligados, e o abençoado
paraquedas preto flutuando em sua esteira. E o que descobrimos
quando nossa prece foi atendida e escorregamos por uma encosta
de gelo para recuperar nosso tesouro? Pedras, eu diria a meus
alunos de olhos arregalados. Fragmentos do honesto granito de
Argyll. Os despachantes em nossa base aérea na Escócia haviam
nos enviado por engano a embalagem de treinamento.
Essa história, pelo menos, encontrava algum eco, enquanto
as minhas outras oferendas tendiam a perder a audiência quando
estavam ainda na metade.
Desconfio que meu impulso de escrever a Smiley vinha
fermentando em mim há mais tempo do que imaginava. A ideia foi
concebida durante uma de minhas visitas regulares a Personnel
para discutir o progresso de meus alunos. Passando pelo clube dos
oficiais, para um sanduíche e uma cerveja, esbarrei com Peter
Guillam. Peter desempenhara o papel de Watson para o Sherlock
Holmes de George na longa busca pelo traidor do Circo, que se
descobriu ao final ser o nosso chefe de operações, Bill Haydon.
Peter não tinha notícias de George há... um ano ou talvez mais.
George comprara um chalé em algum lugar da Cornualha do Norte,
informou ele, e passara a satisfazer sua aversão ao telefone. Tinha
alguma sinecura na Universidade de Exeter e permissão para usar
sua biblioteca. Tristemente, imaginei o resto: George, o eremita
solitário numa paisagem desolada, fazendo suas caminhadas
solitárias, absorvido em seus pensamentos. George dando um pulo
a Exeter à procura de um pouco de calor humano na velhice,
enquanto aguardava para ocupar seu lugar no Valhala dos espiões.
E Ann, sua mulher?, perguntei a Peter, baixando a voz como
todo mundo faz quando se refere a Ann — pois era um segredo
aberto, e dos mais angustiantes, que Bill Haydon se incluíra entre os
muitos amantes de Ann.
Ann era Ann, respondeu Peter, dando de ombros a seu jeito
gaulês. Ela tinha alguns parentes nas grandes casas no estuário do
Helford, às vezes ficava com eles, às vezes ficava com George.
Pedi o endereço de Smiley.
— Não diga a ele que fui eu quem deu — recomendou Peter,
enquanto eu anotava.
Com George, sempre houve um certo sentimento de culpa em
revelar seu paradeiro... ainda não entendo direito por quê.
Três semanas depois Toby Esterhase apareceu em Sarratt
para nos apresentar a sua famosa conferência sobre as artes da
vigilância clandestina em território hostil. E é claro que ele ficou para
o almoço, que foi bastante animado em sua opinião pela presença
de nossas três primeiras moças. Depois de uma batalha que se
prolongou por todo o tempo de minha permanência em Sarratt,
Personnel finalmente decidira que, no final das contas, não havia
problemas com as mulheres.
E eu me ouvi a pronunciar o nome de Smiley.
Houvera ocasiões em que eu não receberia Toby no depósito
de lenha, enquanto em outras agradecera ao Criador por tê-lo ao
meu lado. Com o passar dos anos, porém, sinto-me feliz em
constatar, tende-se a aceitar as pessoas.
— Santo Deus, Ned! — exclamou Toby, em seu incurável
inglês húngaro, alisando os cabelos prateados, impecavelmente
arrumados com gomalina. — Quer dizer que ainda não sabe? —
Não sei o quê? — indaguei, paciente.
— Ora, meu caro, George está presidindo o Comitê de
Direitos de Pesca. Não lhe contam por aqui nada do que acontece lá
no meio do mato? Acho que é melhor eu conversar a respeito com o
Chefe, de homem para homem. Uma palavrinha em seu ouvido, no
Clube.
— Talvez seja melhor me contar primeiro o que é o Comitê de
Direitos de Pesca.
— Quer saber de uma coisa, Ned? Acho que fiquei nervoso.
Talvez o tenham tirado da lista.
— É bem possível.
Ele me contou mesmo assim, como eu sabia que aconteceria,
e reagi com o devido espanto, o que lhe proporcionou um senso
ainda maior de sua importância. O Comitê de Direitos de Pesca,
explicou Toby em benefício dos que não haviam sido abençoados,
era um grupo de trabalho informal, constituído por agentes do
Centro Moscou e do Circo. Sua função, acrescentou Toby — que
perdera toda e qualquer capacidade de ser surpreendido, como
acredito sinceramente — era identificar alvos críticos de interesse
para ambos os serviços e definir um sistema de partilhar as
informações.
— Na verdade, Ned, a ideia era determinar os pontos
problemáticos do mundo — declarou ele, com um ar de irritante
superioridade. — Creio que o primeiro da lista é o Oriente Médio.
Não me cite, está certo, Ned? — E você garante que Smuey preside
esse comitê? — insisti, incrédulo, sem conseguir digerir essa
informação.
— Talvez não por muito tempo, Ned... Anno Domini e assim
por diante. Mas os russos estavam tão ansiosos em conhecê-lo que
nós o chamamos para cortar a fita inaugural. Um banquete para o
velho, se quer saber minha opinião. Um pouco de afago. Uma
porção de notas de cinco libras num envelope.
Eu não sabia de que me admirar mais: a noção de Toby
Esterhase se encaminhando para o altar com o Centro Moscou, ou
de George Smiley celebrando o casamento. Poucos dias depois,
com a permissão de Personnel, escrevi para o endereço na
Cornualha que Guillam me fornecera, acrescentando timidamente
que, se George detestasse falar em público tanto quanto eu, então
não deveria de jeito nenhum aceitar. Eu me sentia meio contrafeito
até esse momento, mas quando seu primoroso cartão chegou,
declarando que teria o maior prazer em aceitar, passei a me sentir
como um estagiário, igualmente nervoso.
Duas semanas depois disso, usando um terno novo ao estilo
rural para a ocasião, eu me encontrava parado junto à grade na
Paddington Station, observando os velhos trens descarregarem
seus passageiros de meia-idade. Tenho a impressão de que nunca
me senti tão cônscio do anonimato de Smiley. Para onde quer que
olhasse, parecia avistar versões de George: cavalheiros
atarracados, de óculos, cada um com o mesmo ar que ele tinha de
quem está um pouco atrasado para alguma coisa que preferia não
fazer. E depois, subitamente, 8 havíamos trocado um aperto de mão
e ele sentava ao meu lado no banco traseiro de um Rover do
escritório central, mais corpulento do que eu o lembrava, cabeça
branca, é verdade, mas com um vigor e bom humor em que eu não
o vira desde que sua esposa teve uma aventura fatal com Haydon.
— Mas que prazer, Ned! Está gostando de ser um mestre-
escola? — E você está gostando da aposentadoria? — reagi, com
uma risada. — Muito em breve estarei me juntando a você! Adorava
a aposentadoria, George me assegurou. Não dava para ter o
suficiente, ressaltou irônico; eu não deveria ter o menor receio. Uma
pequena preleção aqui, Ned, um ou outro papel a entregar ali;
caminhadas, ele até arrumara um cachorro.
— Soube que o trouxeram de volta para participar de algum
comitê extraordinário — comentei. — Uma conspiração com o Urso,
pelo que dizem, contra o Ladrão de Bagdá.
George não é de comentar boatos, mas percebi que seu
sorriso se alargava.
— Quer dizer que estão falando nisso agora? E sua fonte
deve ter sido Toby, sem a menor dúvida.
Ele contemplou radiante a desolada paisagem suburbana,
enquanto se lançava ao relato de uma história divertida, sobre duas
velhinhas de sua aldeia que se odiavam. Uma possuía uma loja de
antiguidades, a outra era muito rica. Mas enquanto o Rover
continuava a avançar pela Hertfordshire outrora rural, eu me
descobri a pensar menos nas velhas da aldeia de George e mais no
próprio George. Pensava que aquele era um Smiley ressuscitado,
que contava histórias sobre velhinhas, participava de comitês com
espiões russos e contemplava o mundo público com a satisfação de
alguém que acabara de sair do hospital.
Naquela noite, meio espremido dentro de um velho dinner-
jacket, o mesmo homem sentou ao meu lado na mesa elevada em
Sarratt, espiando afavelmente os castiçais polidos e um grupo de
antigas fotografias que remontavam só Deus sabe a quando. E os
rostos compenetrados e ansiosos de sua jovem audiência,
aguardando a palavra do mestre.
— Senhoras e senhores, o Sr. George Smiley — anunciei
solenemente, ao me levantar para apresentá-lo. — Uma lenda do
Serviço. Obrigado.
— Ora, não acho que sou uma lenda — protestou Smiley,
levantando-se também. — Acho que sou apenas um velho um tanto
gordo, espremido entre o pudim e o porto.
A lenda viva começou a falar e me passou pela cabeça que
nunca antes ouvira Smiley falar numa reunião social. Presumira que
era uma coisa em que se mostraria congenitamente num, como
tentar arrancar suas opiniões sobre as pessoas, ou se referir a um
agente pelo nome verdadeiro. Por isso, o modo magnífico com que
ele falou me surpreendeu, antes mesmo de começar a avaliar o
conteúdo. Ouvi as suas primeiras frases e observei os rostos de
meus alunos — nem sempre tão submissos — se animando,
relaxando e se iluminando, enquanto lhe concediam primeiro a
atenção, depois a confiança e por fim seu apoio. E pensei, com um
sorriso interior de tardio reconhecimento: mas é isso mesmo, sem
dúvida, essa era a outra natureza de George. Esse era o ator que
sempre se ocultara nele, o Flautista Mágico. Esse era o homem que
Ann Smiley amara e Bill Haydon enganara, o homem que o resto de
nós seguira lealmente, para perplexidade dos forasteiros.
Há uma sábia tradição em Sarratt de que os discursos ao
jantar não são gravados e não se tomam anotações, a fim de que
não se possa fazer depois qualquer referência oficial ao que foi dito.
O convidado de honra desfrutava o que Smiley, em seu jeito
germânico, chamava de "a liberdade do tolo", embora eu possa
pensar de poucas pessoas menos qualificadas para o privilégio.
Mas não sou nada se não um profissional, treinado para escutar e
lembrar; e devem compreender também que Smiley ainda não
pronunciara muitas palavras quando compreendi — e meus alunos
também não demoraram a perceber — que falava diretamente ao
meu coração herético. Eu me refiro a essa outra pessoa menos
obediente, que também existe dentro de mim e que, para ser franco,
tenho me recusado a reconhecer desde que iniciei esta etapa final
de minha carreira — o questionador secreto, meu desagradável
companheiro antes mesmo que um relutante colega, conhecido
como Barley Blair, atravessasse a Cortina de Ferro desmoronando
e, por razões de amor, assim como uma certa espécie de honra,
continuasse calmamente a andar, para incredulidade do Quinto
Andar.Quanto melhor o restaurante, dizemos de Personnel, pior a
notícia.
— Está na hora de você transmitir sua sabedoria aos novos
rapazes, Ned — dissera-me ele, durante um almoço suspeitamente
excelente no Connaught, para logo depois acrescentar, com um
sorriso abominável: — E às novas moças. Calculo que daqui a
pouco estarão deixando-as ingressar na Igreja.
Ele não demorara a retornar a um terreno mais feliz.
— Você conhece todos os segredos. Já circulou por aí. Teve
um desempenho extraordinário no comando da Secretaria. Está na
hora de tirar proveito de tudo isso. Achamos que você deve assumir
o Berçário e passar a tocha aos espiões de amanhã.
Ele usara uma metáfora similar, se bem me lembro, quando
na esteira da deserção de Barley Blair me afastara do posto de
chefe da Casa da Rússia e me enviara para o ferro-velho que é o
Centro dos Interrogadores. Ao final do almoço, pedira mais dois
cálices de Armagnac.
— Como está sua Mabel, por falar nisso? — continuara ele,
como se tivesse acabado de se lembrar dela. — Alguém me contou
que ela está agora com um handicap de doze para dez.
Sensacional! Espero que a mantenha longe de mim! E então, o que
me diz? Sarratt durante a semana, a casa em Tunbridge Wells nos
fins de semana, parece-me o coroamento triunfante de uma carreira.
O que me diz? O que se pode dizer? A mesma coisa que outros já
disseram antes. Os que podem, fazem. Os que não podem,
ensinam. E o que ensinam é o que não podem mais fazer, porque o
corpo ou o espírito, se não ambos, perderam a coerência de
propósito; porque viram demais, suprimiram demais, fizeram
concessões demais, ao final saborearam muito pouco. Por isso,
empenham-se em reacender os sonhos antigos em novas mentes,
aquecendo-se com o fogo dos jovens.
E isso me traz de volta aos acordes iniciais do discurso de
Smiley naquela noite, pois subitamente suas palavras se projetavam
e me envolviam. Eu o convidara porque ele era um mito do passado.
Contudo, para satisfação de todos nós, ele estava se convertendo
no profeta iconoclasta do futuro.
Não vou perder tempo com os melhores pontos da excursão
introdutória de Smiley pelo globo. Ele lhes ofereceu o Oriente 11
Médio, que de forma óbvia predominava em sua mente, analisou os
limites do poder colonial em tempos supostamente pós-coloniais.
Ofereceu o Terceiro e o Quarto Mundos, aventou um Quinto Mundo,
ponderou em voz alta se a pobreza e o desespero humano eram
mesmo uma preocupação séria de qualquer nação rica. Parecia
absolutamente convencido de que não eram. Escarneceu da noção
de que a espionagem era uma profissão agonizante, agora que a
Guerra Fria terminara: a cada nova nação que saía do gelo, disse
ele, a cada novo alinhamento, a cada redescoberta de antigas
identidades e paixões, a cada erosão da situação tradicional, os
espiões estariam trabalhando 24 horas por dia. Ele falou, descobri
depois, pelo dobro do tempo habitual, mas não ouvi uma cadeira
ranger, um copo retinir... nem mesmo quando o arrastaram para a
biblioteca e sentaram-no no trono de honra, diante do fogo, para
mais do mesmo, mais heresia, mais subversão. Meus filhos, todos
calejados, apaixonados por George! Eu não ouvia qualquer som
além do fluxo confiante da voz de Smiley e a explosão ansiosa de
riso a alguma inesperada autoironia ou confissão de fracasso. Só se
é velho uma vez, pensei, enquanto escutava com eles, partilhando o
excitamento.
Ele apresentou histórias que eu nunca ouvira, que tenho
certeza de que ninguém no escritório central autorizara com
antecedência... certamente não o nosso consultor legal, o velho
Palfrey, que em resposta à abertura de nossos antigos inimigos
passara a trancar com sete chaves cada segredo inútil em que
podia pôr as mãos.
Discorreu sobre o futuro papel dos jovens como controladores
de agentes e, aplicando ao mundo alterado, conferiu-lhes a imagem
tradicional do Serviço, de mentor, pastor, pai e amigo, como
conselheiro pessoal e matrimonial, perdoador, anfitrião e protetor;
como o homem ou mulher que possui o dom de tratar uma premissa
ultrajante como um assunto corriqueiro, tornando-se assim o
parceiro de seu agente na ilusão. Nada disso mudara, assegurou
George. Nada disso jamais mudaria. E parafraseou Burns: — Um
espião é um espião por tudo isso.
Mas mal acabara de embalá-los com essa doce noção, ele
advertiu-os para a morte de suas próprias naturezas que 12 poderia
resultar da manipulação de seus semelhantes, para o truncamento
de seus sentimentos naturais.
— Por ser todas as coisas para todos os espiões, corre-se o
risco de se tornar nada para si mesmo — admitiu ele, tristemente. —
Por favor, nunca imaginem que não serão afetados pelos métodos
que usam. O fim pode justificar os meios... se não fosse
supostamente assim, eu diria que vocês não estariam aqui. Mas há
um preço a pagar, e o preço tende a ser você mesmo. É fácil vender
a própria alma na idade de vocês. Fica difícil mais tarde.
George misturou o extremamente sério com o extremamente
frívolo, fez com que a diferença parecesse mínima. Nos intervalos,
ele parecia estar formulando as perguntas que eu me fizera durante
a maior parte de minha vida profissional, mas jamais conseguira
expressá-las, como por exemplo: "Adiantou alguma coisa?", "O que
resultou para mim?" e "O que será de nós agora?" As vezes suas
perguntas eram respostas: George, costumávamos dizer, nunca
perguntava se já não soubesse a resposta.
Ele nos fez rir, nos fez sentir e, através de sua descomedida
deferência, chocou-nos com seus contrastes. Melhor ainda, deixou
nossos preconceitos em perigo. Acabou com o conformismo em
mim e ressuscitou o rebelde adormecido que meu exílio em Sarratt
silenciara. George Smiley, surgindo do nada, renovara minha busca
e me confundira maravilhosamente.
Pessoas assustadas nunca aprendem, como já li. Se assim é,
também não têm o direito de ensinar. Não sou um homem
assustado... ou pelo menos não mais assustado do que qualquer
outro homem que já olhou para a morte e sabe que veio buscá-lo.
Seja como for, a experiência e um pouco de sofrimento me deixaram
um pouco cauteloso em relação à verdade, até em relação a mim
mesmo. George Smiley deu um jeito nisso. George era mais do que
um mentor para mim, mais do que um amigo. Embora nem sempre
presente, ele dominou minha vida. Houve ocasiões em que pensei
nele como um pai para substituir o que nunca conheci. A visita de
George a Sarratt devolveu uma profundidade perigosa à minha
memória. E agora que disponho de tempo para recordar, é o que
tenciono fazer para vocês, a fim de que possam partilhar minha
viagem e se fazerem as mesmas indagações.
DOIS
— HÁ ALGUMAS PESSOAS que, ao terem seu passado
ameaçado, ficam com medo de perderem tudo o que julgavam
possuir, e talvez tudo o que achavam que eram também — declarou
Smiley, à vontade, favorecendo com seu sorriso jovial a moça bonita
de Trinity Oxford que ponderadamente eu sentara à sua frente, no
outro lado da mesa. — Não me sinto absolutamente assim. O
propósito de minha vida foi encerrar o tempo em que vivi. Portanto,
se meu passado ainda persistisse hoje, poderiam dizer que
fracassei. Mas isso não acontece. Nós vencemos. Não que a vitória
tenha alguma importância. E talvez, no final das contas, não
tenhamos vencido. Talvez tenhamos perdido. Ou talvez, sem as
peias do conflito ideológico para nos coibir, nossos problemas
estejam apenas começando. Não faz diferença. O que importa é
que uma longa guerra terminou. O que importa é a esperança.
Tirando os óculos das orelhas, ele tateou distraído pela frente
da camisa. Não pude imaginar o que procurava, até que percebi que
era a extremidade mais larga da gravata, com que estava
acostumado a limpar as lentes. Mas uma gravata-borboleta preta
arrumada meio sem jeito não proporcionava essa facilidade e ele
teve mesmo de usar o lenço de seda que tirou do bolso.
— Se lamento alguma coisa, é a maneira como
desperdiçamos nosso tempo e competência. Todos os falsos
caminhos, os amigos espúrios, e aplicação errônea de nossas
energias. Todas as ilusões que tínhamos sobre quem
éramos.George tornou a pôr os óculos e, como fantasiei, fixou seu
sorriso em mim. E de repente me senti como um dos meus alunos.
Eram os anos sessenta outra vez. Eu era um espião principiante e
George Smiley — o tolerante, paciente e hábil George — observava
minhas primeiras tentativas de voo.
Éramos bons sujeitos naqueles dias, e os dias pareciam mais
longos. Provavelmente não éramos melhores do que os meus
alunos hoje, mas nossa visão patriótica era menos turvada. Ao final
de meu curso de treinamento, eu estava pronto para salvar o
mundo, mesmo que precisasse espioná-lo de um extremo a outro.
Éramos dez em minha turma e depois de dois anos de treinamento
— no Berçário Sarratt, nos vales de Argyll e nos campos de batalha
de Wiltshire — aguardávamos nossos primeiros postos operacionais
como puros-sangues ansiosos por uma corrida.
À nossa maneira, também alcançáramos a maturidade num
grande momento na história, mesmo que fosse o inverso deste. A
estagnação e a hostilidade nos vigiavam de todos os cantos do
globo. O Perigo Vermelho espreitava em toda parte, inclusive em
nosso sagrado solo. O Muro de Berlim fora erguido dois anos antes
e ao que tudo indicava persistiria por mais duzentos anos. O Oriente
Médio era um vulcão, da mesma forma que agora, só que naquele
tempo Nasser era o alvo eleito do ódio britânico, entre outras coisas,
porque estava devolvendo aos árabes sua dignidade e ainda por
cima flertando com os russos. Em Chipre, África e Sudeste Asiático
as espécies menores sem lei estavam se levantando contra seus
antigos amos coloniais. E se nós, uns poucos bravos britânicos, de
vez em quando sentíamos nosso poder reduzido por isso... ora,
sempre havia a Prima América para nos levar de volta ao jogo
internacional.
Como heróis secretos em formação, portanto, tínhamos tudo
de que precisávamos: uma causa virtuosa, um inimigo maligno, um
aliado indulgente, um mundo fervilhando, mulheres para nos animar,
mas apenas da beira do campo, e acima de tudo a Grande Tradição
a herdar, pois o Circo naquele tempo ainda se aquecia em sua glória
do tempo da guerra. Quase todos os nossos principais homens
haviam conquistado seus galardões espionando os alemães. E
todos eles, quando interrogados em nossos seminários extraoficiais,
concordavam que em matéria de proteger a humanidade contra
seus próprios excessos, o Comunismo Mundial era uma ameaça
ainda mais sinistra do que os hunos.
— Vocês herdaram um planeta perigoso — gostava de nos
dizer Jack Arthur Lumley, nosso lendário chefe de treinamento. — E
se querem saber minha opinião pessoal, vocês têm muita sorte.
Mas é claro que nós queríamos sua opinião! Jack Arthur era a
intrepidez em pessoa. Passara três anos entrando e saindo da
Europa ocupada pelos nazistas como se fosse um convidado
habitual. Explodira pontes sozinho. Fora capturado e escapara e
fora recapturado, ninguém sabia quantas vezes. Matara homens
apenas com os dedos, perdera dois na refrega. E quando a Guerra
Fria substituíra a quente, Jack mal notara a diferença. Aos 55 anos,
ainda podia acertar onde queria num alvo do tamanho de um
homem, com uma Browning de nove milímetros, a vinte passos de
distância, abrir uma fechadura com um clipe de papel, montar uma
armadilha de bomba numa corrente de vaso sanitário em trinta
segundos ou imobilizar um homem na esteira do ginásio logo na
primeira queda. Jack Arthur despachara-nos de paraquedas de
bombardeiros Stirling, fizera-nos desembarcar em botes de borracha
nas praias da Cornualha e bebera conosco às escondidas no
refeitório à noite. Se Jack Arthur dizia que era um planeta perigoso,
acreditávamos nele sem a menor hesitação! Mas isso só tornava a
espera mais difícil. Se eu não tivesse Ben Arno Cavendish para
partilhar a ansiedade, seria ainda mais difícil. Há um número
limitado de amizades que se pode fazer em torno do escritório
central antes que seu entusiasmo se transforme em amargura.
Ben e eu nascêramos sob a mesma estrela. Éramos da
mesma idade, com a mesma instrução, a mesma compleição, quase
que a mesma altura, com a diferença apenas de um ou dois
centímetros. Confie no Circo para nos reunir... foi o que dissemos
um ao outro, excitados; provavelmente eles sabiam desde o início!
Ambos tínhamos mães estrangeiras, embora a dele estivesse morta
— o Arno vinha de seu lado alemão — e éramos, talvez como
compensação, resolutamente da classe extrovertida inglesa —
atléticos, hedonistas, escola particular, sexo masculino, nascidos
para comandar, se não mesmo para governar. Embora, ao examinar
agora as fotografias de nossa turma, eu constate que Ben tinha um
desempenho melhor no papel do que o meu, pois possuía um ar de
maturidade que naquele tempo ainda me faltava — tinha o bico-de-
viúva e o queixo projetado para a frente, um homem superior à sua
juventude.
E foi esse o motivo, por tudo o que sei, pelo qual ofereceram
a Ben e não a mim a cobiçada Estação Berlim, controlando agentes
de carne e osso na Alemanha Oriental, enquanto eu mais uma vez
ficava na retaguarda.
— Vamos emprestá-lo aos vigilantes por duas semanas,
jovem Ned — disse Personnel, com uma complacência paternal de
que eu começava a me ressentir. — Será uma boa experiência para
você, e eles bem que estão precisando de mais um par de mãos.
Haverá muita aventura. Você vai gostar.
Qualquer coisa para variar, pensei, aceitando a perspectiva
com um certo ânimo. Durante o último mês eu empenhara toda a
minha engenhosidade em sabotar a Conferência Mundial da Paz em
— digamos — Belgrado, de uma escrivaninha escura no Terceiro
Andar. Sob as instruções de um superior de fala arrastada, que
almoçava por horas a fio no clube dos oficiais, eu mudara com o
maior entusiasmo os percursos dos trens dos delegados, bloqueara
os encanamentos do hotel e fizera ameaças de bomba anônimas no
salão da conferência. Durante o mês anterior, agachara-me
determinado num porão fedorento ao lado da embaixada egípcia, às
seis horas da manhã, esperando que uma faxineira venal me
trouxesse o conteúdo da cesta de papel do embaixador, em troca de
uma nota de cinco libras. Por esses padrões tão modestos, duas
semanas a operar com os melhores vigilantes do mundo pareciam
férias gratuitas.
— Eles vão designá-lo para a Operação Garoto Gordo —
informou Personnel, dando-me o endereço de uma casa segura
perto da Green Street, no West End.
Ouvi o barulho de pingue-pongue assim que entrei, e uma
vitrola tocando um disco arranhado de Gracie Fields. Senti um
aperto no coração e mais uma vez elevei uma prece de inveja por
Ben Cavendish e seus heroicos agentes em Berlim, a cidade eterna
dos espiões. Monty Arbuck, nosso líder de seção, transmitiu-nos as
instruções naquela mesma noite.Deixem-me pedir desculpas de
antemão. Eu sabia muito pouco das outras classes naquela época.
Era da casta dos oficiais — literalmente, pois servira com a Marinha
Real — e achava perfeitamente natural ter nascido na extremidade
superior do sistema social. O Circo não passa de um pequeno
espelho da Inglaterra que protege, por isso parecia-me igualmente
certo que nossos vigilantes e ofícios conexos, como os
arrombadores e escutas, fossem recrutados da comunidade dos
artesãos. Não se pode seguir um homem por muito tempo num
chapéu de coco. Uma voz afinada de BBC não é passaporte para a
discrição a partir do momento em que se deixa o quilômetro dourado
de Londres, ainda menos se você está se apresentando como um
vendedor ambulante, um limpador de janelas ou um carteiro. Assim,
vocês devem me considerar, na melhor das hipóteses, como um
jovem e inexperiente aspirante sentado entre companheiros mais
experientes e menos privilegiados. E devem considerar Monty não
como ele era, mas como eu o via naquela noite, um guarda-caça
tenso e com um temperamento agressivo. Éramos dez, incluindo
Monty: três equipes de três, portanto, com uma mulher em cada
equipe, a fim de que pudéssemos cobrir os banheiros de mulheres.
Esse era o princípio. E Monty era o nosso controlador.
— Boa noite, Escola — disse ele, postando-se diante de um
quadro-negro e falando diretamente para mim. — É sempre um
prazer ter um toque de qualidade para elevar a turma.
Risos ao redor, mais alto de minha parte, uma boa diversão
para seus homens.
— O alvo para amanhã, Escola, é Sua Alteza Real o
Soberano Garoto Gordo, também conhecido como...
Virando-se para o quadro-negro, Monty pegou um pedaço de
giz e meticulosamente escreveu um longo nome árabe.
— E a natureza de nossa missão, Escola, é RP. Posso
presumir que sabe o que é RP? Não tenho a menor dúvida de que
lhe ensinaram isso na Eton dos espiões, não é mesmo? —
Relações-públicas — respondi.
Fiquei surpreso com os risos que a resposta provocou. Pois,
infelizmente, no vernáculo dos vigilantes as iniciais representavam
Relate e Proteja, sendo essa a nossa missão para o dia seguinte.
Enquanto o visitante real permanecesse aos nossos cuidados,
deveríamos providenciar para que não lhe acontecesse mal algum e
relatar suas atividades ao escritório central, quer fossem sociais ou
comerciais.
— Escola, você está com Paul e Nancy — informou-me
Monty, depois de expor as outras instruções operacionais. — Será o
número três na seção, Escola, e deve ter a gentileza de fazer
exatamente o que mandarem, independente de qualquer coisa.
Mas aqui prefiro apresentar a situação de Garoto Gordo não
nas palavras de Monty, mas com as minhas, contando com o
benefício de 25 anos de experiência posterior. Mesmo hoje, ainda
sou capaz de corar ao pensar em quem eu pensava que era, e
como isso devia parecer a pessoas como Monty, Paul e Nancy.
Vocês devem compreender primeiro que os negociantes de
armas autorizados na Inglaterra consideram-se como uma espécie
de elite — era o que acontecia naquela ocasião, é o que continua a
acontecer agora — e que desfrutavam de privilégios
desproporcionais com a polícia, a burocracia e os serviços de
informações. Por razões que jamais entendi, seu comércio macabro
lhes confere um relacionamento de confiança com esses
organismos. Talvez seja a ilusão de realidade que partilham, de
armas como a verdade natural da vida e da morte. Talvez, nas
mentes restritas de nossas autoridades, suas mercadorias insinuem
a mesma autoridade que é exercida por aqueles que as usam. Não
sei. Mas conheci o suficiente do outro lado da vida, nos anos desde
então, para compreender que mais homens estão apaixonados pela
guerra do que jamais terão a oportunidade de lutar em alguma, e
que mais armas são compradas para satisfazer esse amor do que
para um propósito aceitável.
Devem compreender também que Garoto Gordo era um
cliente dos mais valiosos dessa indústria. E que nossa missão de
Relatar e Proteger era apenas uma pequena parcela de um
empreendimento muito mais amplo, ou seja, o de zelar e cultivar as
relações com um estado árabe supostamente amigo. Isso
significava então, e significa até hoje, adular, subornar e lisonjear
seus príncipes com os nossos costumes ingleses, negociando
condições favoráveis, a fim de satisfazer nosso vício em petróleo...
e, no processo, vender bastantes armamentos britânicos para
manter as fábricas satânicas de Birmingham a funcionarem dia e
noite. O que talvez explicasse a profunda aversão de Monty por
nossa missão. Ou pelo menos gosto de pensar assim. Os velhos
vigilantes são famosos por suas posições moralistas... e com toda
razão. Primeiro eles observam, depois pensam. Monty alcançara o
estágio de pensamento.
Quanto a Garoto Gordo, suas credenciais para esse
tratamento eram impecáveis. Afinal, era o irmão pródigo do
soberano de um estado rico em petróleo. Era instável, propenso a
esquecer o que comprara antes. E chegou como estava previsto, no
Boeing do soberano, num aeroporto militar perto de Londres
especialmente preparado para ele, a fim de se divertir um pouco e
fazer algumas comprinhas... entre as quais, como esperávamos,
estariam incluídas algumas quinquilharias, como dois Rolls-Royces
blindados para ele próprio, a metade dos berloques de Cartier para
suas amigas espalhadas pelo mundo, uma centena ou mais de
nossos lançadores de mísseis terra-ar, não dos mais novos, e uma
ou duas esquadrilhas de nossos caças de combate, também não
dos mais novos, para seu real irmão. Sem esquecer um suculento
contrato com o governo britânico para sobressalentes, serviços e
treinamento, que manteriam a RAF e os fabricantes de armas na
prosperidade por muitos anos. Ah, sim, havia o petróleo também.
Teríamos petróleo para queimar. Naturalmente.
Sua comitiva, além de secretários particulares, astrólogos,
bajuladores, babás, crianças e dois tutores, incluía também um
médico particular e três guarda-costas.
Por fim, havia a esposa de Garoto Gordo; seu codinome é
irrelevante, porque desde o Dia Um os vigilantes de Monty
apelidaram-na de "a Panda", por causa das olheiras que exibia
quando estava sem véu e de seu comportamento ansioso e solitário,
o que lhe conferia a aparência de uma espécie em perigo de
extinção. Garoto Gordo tinha uma porção de esposas, mas a Panda,
embora a mais velha, era a favorita, e talvez a mais tolerante com
os prazeres do marido na cidade, pois ele gostava de boates e
adorava jogar... coisas pelas quais meus colegas vigilantes o
detestavam cordialmente, antes mesmo de sua chegada, pois sabia-
se que quase nunca se deitava antes de seis horas da manhã, e
nunca sem perder cerca de vinte vezes mais do que os seus
salários anuais combinados.A comitiva ocupava quartos num grande
hotel do West End, em dois andares, ligados por um elevador
especialmente instalado. Garoto Gordo, como muitos sibaritas
quarentões, preocupava-se com seu coração. Também se
preocupava com microfones, e gostava de usar esse elevador como
uma sala segura. Por isso, os escutas do Circo, previdentes, haviam
posto um microfone no elevador também. Era de lá que esperavam
ouvir as informações sobre as últimas intrigas palacianas, ou
qualquer ameaça imprevista à lista de compras militares de Garoto
Gordo.
E tudo correu muito bem até o Dia Três, quando um pequeno
árabe desconhecido, metido num sobretudo preto com gola de
veludo, surgiu silenciosamente em nosso horizonte. Ou, para ser
mais preciso, na seção de lingerie de uma grande loja de
departamentos em Knightsbridge, onde a Panda e suas
acompanhantes escolhiam de pilhas de roupas de baixo brancas e
rendadas, espalhadas sobre o balcão de vidro. Pois a Panda
também tinha seus espiões. E no dia anterior fora informada de que
Garoto Gordo em pessoa examinara com toda atenção os mesmos
artigos, e acabara comprando algumas dúzias, a serem enviadas
para um endereço em Paris, onde uma namorada predileta o
aguardava constantemente, no luxo subsidiado.
Dia Três, eu repito, e a moral de nossa unidade de três
pessoas se encontrava sob grande tensão. Paul era Paul Skordeno,
um homem retraído, a pele bexiguenta e um talento para as
invectivas mais furiosas. Nancy me contou que ele vivia aflito, mas
não me explicou o motivo.
— Ele gamou por uma mulher, Ned — foi tudo o que ela
disse, mas creio agora que insinuava mais do que isso.
A própria Nancy era uma mulher empertigada por todo o seu
metro e meio de altura e na aparência uma espécie de caixeira-
viajante. Para seu padrão, como dizia, usava meias de algodão e
cômodos sapatos de sola de borracha, que raramente trocava. O
resto que precisava — echarpes, capas, gorros de lã de cores
diferentes — levava numa bolsa de plástico.
No serviço de vigilância, nossa seção trabalhava em turnos
de oito horas, sempre na mesma formação, Nancy e Paul na
vanguarda, o jovem Ned seguindo atrás na varredura.Quando
perguntei a Skoderno se não podíamos variar a formação, ele disse
que eu devia me acostumar ao que tinha. No primeiro dia,
seguíramos Garoto Gordo a Sandhurst, onde se organizara um
almoço em sua homenagem. Nós três comemos ovos com batatas
fritas num café próximo do portão, enquanto Skoderno criticava
primeiro os árabes, depois a exploração ocidental deles, finalmente
o Quinto Andar, para minha consternação, descrevendo os seus
ocupantes como golfistas fascistas.
— Você é maçom-livre, Escola? Assegurei-lhe que não era.
— Pois não acha que é melhor se apressar e se juntar a eles?
Nunca reparou na maneira insolente como Personnel aperta sua
mão? Nunca chegará a Berlim se não for um maçom, Escola.
Passáramos o Dia Dois na Mount Street, enquanto Garoto
Gordo tirava as medidas para um par de espingardas Purdy,
primeiro brandindo precariamente uma arma de experiência pelas
instalações, depois tendo um acesso ao descobrir que precisaria
esperar dois anos até ficarem prontas. Paul ordenou-me duas vezes
que entrasse nas lojas enquanto essa cena se desenrolava,
parecendo satisfeito quando informei que os empregados já
começavam a desconfiar de minhas frívolas indagações.
— Pensei que era o seu tipo de lugar — comentou ele, com
seu sorriso de caveira. — Caçar, atirar, pescar... eles gostam dessas
coisas no Quinto Andar, Escola.
A noite encontrou-nos sentados, todos os três, num furgão
estacionado em frente de um bordel de janelas fechadas, na South
Audley Street, e o escritório central quase em pânico. Garoto Gordo
estava refugiado lá dentro há apenas duas horas quando telefonou
para o hotel e ordenou que o médico particular fosse ao seu
encontro imediatamente. O coração!, pensamos, alarmados.
Devemos entrar? Enquanto o escritório central tremia de apreensão,
acalentamos visões de nossa presa morrendo de infarto, nos braços
de alguma prostituta devotada, antes de ter assinado o cheque para
seus caças obsoletos. Só às quatro horas da madrugada é que os
escutas dissiparam nossos temores. Garoto Gordo fora acometido
por um acesso de impotência, eles explicaram, e o médico fora
convocado para injetar um afrodisíaco na nádega real. Voltamos
para casa às cinco horas, Skoderno dominado pela raiva, mas todos
consolados pela certeza de que Garoto Gordo deveria estar em
Luton ao meio-dia, a fim de assistir a uma grande demonstração de
um tanque britânico, quase que o mais moderno, e poderíamos
contar com um dia de descanso. Mas nosso alívio foi prematuro.
— A Panda quer comprar algumas coisinhas bonitas —
anunciou-nos Monty, afavelmente, quando chegamos da Green
Street. — É o seu turno. Sinto muito, Escola.
O que nos leva à seção de lingerie da grande loja de
Knightsbridge, e a meu momento de glória. Ben, eu estava
pensando; Ben, eu trocaria um dia dos seus por cinco dos meus. E
de repente eu não pensava mais em Ben, deixara de invejá-lo.
Recuara para a privacidade de um vão de porta e falava pelo
microfone do rádio pesadão, que era o melhor que tínhamos na
ocasião. Escolhera o canal que permitia uma ligação direta com a
base. Era o canal que Skoderno me dissera para não usar.
— A Panda tem um macaco nas costas — informei a Monty,
na voz mais calma de que era capaz, usando o jargão aprovado dos
vigilantes para descrever um seguidor misterioso. — Em torno de
um metro e sessenta, cabelos pretos crespos, bigode espesso,
cerca de quarenta anos, sobretudo preto, sapatos pretos de sola de
borracha, aparência árabe. Estava no aeroporto quando o avião de
Garoto Gordo pousou. Lembro dele. É o mesmo homem.
— Fique com ele — foi a resposta de Monty. — Paul e Nancy
ficarão com a Panda, você vai atrás do macaco. Que andar? —
Segundo.
— Siga-o onde quer que ele vá e continue a me informar.
— Ele pode estar esperando — comentei, enquanto meus
olhos fixavam furtivamente o alvo da ligação.
— Quer dizer que ele está grávido? Não achei a menor graça.
Deixem-me situar a cena com precisão, pois era mais
complicada do que vocês podem supor. Nosso trio não se
encontrava sozinho na vigilância à comitiva da Panda, em sua lenta
expedição de compras. Ricas princesas árabes não aparecem sem
aviso prévio nas grandes lojas de Knightsbridge. Além de dois
supervisores de andar, em paletós pretos e calças listradas, havia
dois detetives da casa, bastante óbvios, um em cada arcada, com
os pés bem separados, as mãos cerradas nos lados, prontos para
se engalfinharem a qualquer momento com dervixes malignos.
Como se isso não fosse suficiente, a Scotland Yard assumira
naquela manhã o encargo de oferecer a sua própria proteção, sob a
forma de um homem de rosto duro, numa capa com cinto, postado
ao lado da Panda e lançando olhares furiosos a quem quer que se
aproximasse. E, finalmente, vocês deviam ver Paul e Nancy, em
seus melhores trajes dominicais, de costas para todos, enquanto
fingiam examinar as prateleiras com negligês e vigiavam a presa
pelos espelhos.
E tudo isso, vocês devem entender, na privacidade silenciosa
e perfumada do harém, num mundo de delicadas roupas de baixo,
carpetes grossos e lânguidos manequins seminus... para não
mencionar as gentis atendentes de cabelos grisalhos, vestidas de
preto, por se considerar que a partir de uma certa idade haviam
alcançado um comportamento bastante inofensivo para prestarem
serviços nos santuários da intimidade feminina.
Outros homens, eu notei, preferiam nem entrar na seção de
lingerie. Ou passavam apressados, desviando os olhos. Meu instinto
seria o mesmo, se não fosse por aquele homenzinho melancólico,
com seu bigode preto e olhos castanhos arrebatados, que fielmente
seguia a comitiva da Panda a quinze passos de distância. Se Monty
não me designasse para a varredura, talvez nem o tivesse notado...
ou não naquele momento. Mas logo ficou evidente que tanto ele
quanto eu, em virtude de nossos ofícios diferentes, éramos
obrigados a manter a mesma distância do alvo — eu com
indiferença, ele com uma certa dependência, intensa e mística. Pois
seu olhar nunca se desviava da Panda. Mesmo quando se
encontrava encoberto por uma coluna ou freguesa, ainda dava um
jeito de esticar a cabeça escura para um lado ou outro, até fixá-la
outra vez com seu olhar zeloso e — estou convencido agora —
fanático.
Eu sentira esse fervor nele ao avistá-lo pela primeira vez, no
salão de chegada do aeroporto, comprimindo-se na ponta dos pés
contra a janela comprida, contorcendo-se para ter uma visão melhor
da aproximação do casal real. Não lhe dispensara uma atenção
especial na ocasião. Submetia todos ao mesmo exame crítico. Ele
parecia ser apenas mais um do bando de diplomatas, servidores e
parasitas que formavam o comitê de recepção real. Mesmo assim,
sua intensidade despertara-me alguma curiosidade. Então esse é o
Oriente Médio, eu refletira, enquanto o observava espremendo o
rosto chupado contra o vidro. Essas são as paixões pagãs que meu
Serviço deve controlar, se queremos continuar a guiar nossos
carros, aquecer nossas casas e vender nossas armas em paz.
O macaco dera dois passos à frente e espiava para um
armário de fitas. Sua postura — exatamente como a de seu
homônimo — era conspícua mas furtiva; dava a impressão de se
deslocar apenas dos joelhos para baixo, em passos de conspirador.
Escolhi um balcão com ligas ao seu lado e fui espiá-las, enquanto
tornava a examiná-lo, furtivamente, à procura de protuberâncias
denunciadoras na cintura e debaixo dos braços. O sobretudo preto
tinha o formato clássico dos pistoleiros: volumoso e sem um cinto, o
tipo de casaco que encobre sem a menor dificuldade uma pistola de
cano comprido, equipada com silenciador, ou uma semiautomática
pendurada sob o braço.
Estudei suas mãos, sentindo uma comichão nervosa nas
minhas. A esquerda pairava inerte ao lado do corpo, mas a direita,
que parecia a mais forte, a todo instante subia para o peito e logo se
retirava, como se ele estivesse tomando coragem para o ato final.
Um saque cruzado com a mão direita, pensei; mais
provavelmente da axila. Nossos treinadores de armas haviam
ensinado todas as combinações.
E seus olhos — aqueles olhos escuros que pareciam arder,
os olhos veementes de um fanático — mesmo de perfil davam a
impressão de contemplarem a vida posterior. Ele teria jurado
vingança contra a Panda? Contra sua família? Mulas fanáticos
haviam lhe prometido um lugar no Paraíso se cometesse o ato?
Meu conhecimento do Islã era escasso, o pouco que havia extraído
de algumas aulas secundárias e dos romances de P.C. Wren.
Contudo, era suficiente para advertir-me de que estava diante de um
fanático desesperado, que não dava muito valor à própria vida.E eu,
infelizmente, estava desarmado. Era uma questão sensível para
mim. Os vigilantes nunca sonhariam em carregar armas no serviço
normal, mas a proteção secreta é um tipo diferente de vigilância. Por
isso, Paul Skoderno recebera um revólver do cofre de Monty.
— Um é suficiente, Escola — dissera-me Monty, com seu
sorriso de velho. — Não queremos que você comece a Terceira
Guerra Mundial, não é mesmo? Tudo o que me restava, portanto, ao
tornar a segui-lo, discretamente, era escolher de antemão um dos
golpes que me fora ensinado em nossas aulas de como matar sem
fazer barulho. Deveria contar com a possibilidade de um ataque por
trás... usando o soco curto na nuca ou o golpe duplo simultâneo nos
ouvidos? Qualquer dos dois poderia matá-lo instantaneamente,
enquanto que um homem vivo ainda pode ser interrogado. Nesse
caso, seria melhor eu quebrar primeiro seu braço direito, torcendo
para surpreendê-lo com a arma na mão? Mas se o deixasse sacar,
não correria o risco de eu mesmo tombar sob uma saraivada de
balas dos vários guarda-costas espalhados pela seção? Ela o vira!
A Panda fitara o macaco nos olhos e ele retribuíra a seu olhar! Ela o
reconhecera? Eu tinha certeza que sim. Mas ela teria reconhecido o
propósito do homem? E se isso tivesse acontecido, ela não estaria
se preparando para a morte, numa estranha demonstração do
fatalismo oriental? As tétricas possibilidades afloravam disparadas
em minha mente, enquanto continuava a observar aquela misteriosa
troca de olhares. Seus olhos se encontravam, a Panda ficou
paralisada no meio de um gesto. Suas mãozinhas nervosas, cheias
de anéis, saqueando as roupas no balcão, ficaram imóveis... e
depois, como a uma ordem do macaco, resvalaram passivas para
os lados do corpo. Depois disso ela permaneceu quieta, sem
vontade, sem ter forças sequer para se desviar do olhar penetrante
do homem.
Só após um longo momento, com um ar desesperado e
estranhamente humilde, é que ela se virou, murmurou alguma coisa
para suas acompanhantes e, estendendo a mão para o balcão,
soltou a coisa cheia de babados que ainda segurava. Usava marrom
naquele dia — se fosse um homem, eu me sentiria tentado a dizer
que se tratava de um hábito franciscano — com mangas mais
compridas do que os braços, uma faixa marrom na cabeça.
Eu a vi suspirar e em seguida, devagar, com uma resignação
inegável, ela levou sua comitiva na direção da arcada. Em sua
esteira, passou seu guarda-costas pessoal, e também o policial da
Scotland Yard. Depois, as mulheres da comitiva, acompanhadas
pelos supervisores de andar. E finalmente Paul e Nancy, afastando-
se com uma demonstração de indecisão do estudo dos negligês e
seguindo como compradores a reboque de um grupo. Paul, que
ouvira com toda certeza minha conversa com Monty, não me lançou
qualquer olhar. Nancy, que se orgulhava de sua competência de
amadora na arte dramática, simulava uma discussão conjugal com
ele. Tentei verificar se Paul desabotoara o casaco, pois ele também
preferia o saque cruzado. Mas podia ver apenas suas costas largas.
— Muito bem, Escola, mostre-me o homem — disse Monty
jovialmente, em meu ouvido esquerdo, aparecendo de repente ao
meu lado, como num passe de mágica.
Há quanto tempo ele se encontrava ali? Eu não tinha a menor
ideia. Já passava de meio-dia e nosso turno se esgotara, mas
aquele não era o momento para trocar a guarda. O macaco estava a
menos de cinco metros de nós, partindo atrás da Panda, em passos
leves, mas determinados.
— Podemos pegá-lo na escada — murmurei.
— Fale mais alto — aconselhou-me Monty, na mesma voz
imperturbável. — Fale normalmente, ninguém vai escutá-lo. Comece
a murmurar pelo canto da boca e pensarão que veio para roubar a
caixa registradora.
Como estávamos no segundo andar, o grupo de Panda sem
dúvida pegaria o elevador, quer fosse subir ou descer. Ao lado do
elevador havia uma porta dupla de vaivém, abrindo para o que
naquele tempo era uma escada de emergência de pedra, um tanto
úmida e insalubre, com degraus de linóleo. Meu plano, que delineei
para Monty em frases curtas, enquanto seguíamos o macaco para a
arcada, era a própria essência da simplicidade. Assim que o grupo
se aproximasse do elevador, Monty e eu avançaríamos para os
lados do macaco, agarraríamos seus braços e o arrastaríamos para
a escada. Poderíamos subjugá-lo com um golpe na virilha,
tiraríamos sua arma e o levaríamos para a Green Street, onde o
convidaríamos a prestar um depoimento voluntário. Fizéramos tais
coisas uma dúzia de vezes nos exercícios de treinamento — uma
ocasião, para nosso constrangimento, com um inocente bancário
que voltava apressado para casa, ao encontro da esposa e família,
e a quem confundíramos com um membro da equipe de
treinamento.
Mas se Monty me ouviu, não deixou transparecer, para minha
frustração. Ele observava os supervisores, que abriam um caminho
através da multidão até o elevador, a fim de que o grupo da Panda
pudesse embarcar na privacidade. E sorria como qualquer plebeu
que tem um vislumbre da realeza.
— Ela vai descer — comentou ele, com intensa satisfação. —
Aposto uma libra contra um penny como vai à seção de joias de
fantasia. Era de se imaginar que essa gente do Golfo não perderia
tempo com coisas artificiais, mas eles adoram, não se cansam de
comprar, acham que é um grande negócio. Vamos indo, filho. A
coisa vai ser divertida. Quero dar uma olhada.
Gosto de pensar que, mesmo em minha perplexidade,
reconheci a excelência profissional de Monty. A exótica comitiva da
Panda, a maioria em trajes árabes, despertava uma intensa
curiosidade entre os fregueses na loja. Monty era apenas mais um
cliente apreciando o espetáculo. E é claro que ele acertou de novo,
o destino da comitiva era mesmo a seção de bijuterias, algo que o
macaco também adivinhou. Ao sairmos do nosso elevador, ele se
adiantou apressado, à frente do grupo, a fim de ocupar uma posição
privilegiada entre os mostruários reluzentes, o ombro esquerdo mais
próximo da parede, exatamente como convém a um pistoleiro destro
que saca cruzado através do peito.
Contudo, em vez de escolher uma posição estratégica para
responder ao fogo, Monty simplesmente vagueou atrás do homem,
parou bem perto, fez sinal para que eu viesse me postar ao seu
lado. Assim não tive alternativa que não deixar Monty, não o
macaco, no meio de nosso trio.
— É por isso que sempre venho a Knightsbridge, filho —
explicou Monty, em voz bastante alta para que metade do andar
ouvisse. — Nunca se sabe quem se vai encontrar. Trouxe sua mãe
na última vez... você deve lembrar... fomos à seção de alimentos da
Harrods. E pensei: "Ei, eu conheço você, sei que é Rex Harrison."
Podia ter estendido a mão e tocado nele, mas não fiz nada. É a
encruzilhada do mundo, Knightsbridge... não concorda, senhor?
Monty levantou o chapéu para o macaco, que sorriu em resposta.
— E me pergunto agora de onde veio essa turma. Árabes, a
julgar pela aparência, com a riqueza de Salomão nas mãos. E eles
nem pagam impostos, pelo que ouvi dizer. Pelo menos não a
realeza. Nem precisa. Não há uma casa real no mundo que pague
impostos para si mesma. Não seria lógico. Está vendo aquele
policial enorme ali, filho? É do Serviço Especial, pode-se perceber
por sua cara amarrada e estúpida.
Enquanto isso, o grupo da Panda espalhava-se entre os
balcões de vidro iluminados. A própria Panda, mal conseguindo
conter sua agitação, exigia que bandejas fossem tiradas dos
mostruários para sua inspeção. E logo, como já acontecera na
seção de lingerie, ela estava pegando uma peça depois de outra,
virando-a com um olhar crítico numa rápida inspeção, depois
largando-a para apanhar mais uma. E outra vez, enquanto ela
continuava a avaliar e largar cada peça, percebi seu olhar
preocupado desviar-se em nossa direção, fixando-se primeiro no
macaco, depois em mim, como se me considerasse a sua única
esperança de proteção.
Monty, no entanto, ainda sorria quando o fitei, em busca de
confirmação.
— É exatamente o que aconteceu na seção de lingerie —
sussurrei, esquecendo sua instrução para falar normalmente.
Mas Monty continuou em seu ruidoso monólogo.
— Mas por baixo, filho... é o que sempre digo... por baixo,
reais ou não, eles são iguais a nós, completamente iguais. Todos
nascemos nus, todos estamos a caminho da sepultura. Sua riqueza
é sua saúde, melhor ser rico em amigos do que em dinheiro, eu
diria. Todos temos os mesmos apetites, as mesmas pequenas
fraquezas e hábitos desagradáveis.
E assim ele continuou, como se em deliberado contraste com
o meu estado de alerta total.
A Panda pedira mais bandejas. O balcão estava coberto com
suntuosas tiaras, pulseiras e anéis. Escolhendo um colar de três
fileiras de pedras imitando rubis, ela ajeitou-o na garganta, depois
pegou um espelho de mão para se admirar.
Seria minha imaginação? Não, não era! Ela usava o espelho
para observar o macaco e a nós! Primeiro um olho escuro e depois
o outro fixaram-se em nós; depois os dois juntos, advertindo-nos,
suplicando, antes que ela largasse o espelho e nos virasse as
costas, afastando-se como num acesso de raiva pelo balcão de
vidro, até o ponto em que um novo mostruário a aguardava.
Nesse momento o macaco deu um passo à frente e sua mão
subiu para a abertura do sobretudo. Pondo a cautela de lado,
também me adiantei, o braço direito recuado, os dedos da mão
direita esticados, a palma paralela ao chão, no estilo aprovado pelo
Sarratt. Decidira-me por uma cotovelada no coração, seguida por
uma cutilada no lábio superior, no ponto em que a cartilagem do
nariz se encontra com a metade superior da mandíbula. Há uma
complexa rede de nervos nessa área e um golpe bem desfechado
pode imobilizar a vítima por algum tempo. O macaco estava abrindo
a boca e aspirando. Eu esperava uma súplica a Alá ou o slogan de
alguma seita fundamentalista — embora eu não mais tenha certeza
do quanto sabíamos ou nos importávamos naquele tempo sobre os
fundamentalistas árabes. Resolvi gritar também, não apenas para
confundi-lo, mas porque uma respiração profunda levaria mais
oxigênio à minha corrente sanguínea, aumentando assim a força do
golpe. Já começava a soltar a respiração quando senti a mão de
Monty fechar-se como uma argola de ferro em torno de meu pulso e,
com uma força imprevista, imobilizar-me, ao mesmo tempo em que
me puxava para trás.
— Não faça isso, filho, esse cavalheiro está na sua frente —
disse ele, com uma voz indiferente. — Ele tem um pequeno negócio
confidencial a acertar, não é mesmo, meu caro senhor? E era a pura
verdade. Monty não me largou até que descobri qual era a natureza
da transação. O macaco pôs-se a falar. Não para a Panda, não para
sua comitiva, mas para os dois supervisores de andar de calça
listrada, que inclinaram a cabeça para escutá-lo, a princípio
condescendentes, depois com um interesse surpreso, enquanto
seus olhares se deslocavam para a Panda.— Infelizmente,
cavalheiros, Sua Alteza Real aqui presente prefere efetuar suas
compras de maneira informal, espero que compreendam — disse o
macaco. — Sem a inconveniência de um embrulho ou uma fatura,
digamos assim. É a sua grande diversão. Há três ou quatro anos ela
era uma eficiente negociadora, barganhava tudo. Isso mesmo.
Sempre obtinha um desconto substancial para tudo o que
desejava comprar. Agora, porém, ela prefere tomar as coisas em
suas próprias mãos... literalmente. Ou devo dizer em suas mangas?
Por isso, estou encarregado por seu marido de fazer um acerto
generoso por todas essas aquisições informais, sob a condição
óbvia de que nenhuma notícia chegará ao conhecimento do público,
quer seja um comentário falado ou escrito, se podem me
compreender, cavalheiros.
E depois ele sacou do bolso infelizmente, não, uma mortífera
automática Walther, nem uma submetralhadora Heckler & Koch,
muito menos a nossa arma padrão tão amada, a Browning de nove
milímetros, mas sim uma carteira de couro marroquino, estofada
com notas de seu amo, nos mais diversos valores.
— Eu contei, se não estou enganado, três anéis, um de
esmeralda artificial, dois de imitação de diamantes, além de um
excelente colar de rubis artificiais, com três fieiras, cavalheiros. É
desejo de Sua Alteza Real o Príncipe que nosso acordo leve em
consideração, com toda a generosidade indispensável, as
inconveniências sofridas por seus excelentes funcionários. E
também uma comissão para vocês, meus bons cavalheiros, sob a
condição já enunciada em relação à publicidade.
O aperto de Monty em meu pulso finalmente relaxara.
Enquanto nos encaminhávamos para o saguão de entrada, arrisquei
um olhar para seu rosto e descobri, aliviado, que sua expressão,
embora pensativa, era surpreendentemente gentil.
— Esse é o problema em nosso trabalho, Ned — explicou ele,
afável, usando meu nome de batismo pela primeira vez. — A vida
está olhando para um lado, enquanto nós olhamos para o outro.
Pessoalmente, não me importo de admitir, gosto às vezes de um
inimigo honesto e evidente. Mas leva-se muito tempo para encontrá-
lo, não concorda? Há bons sujeitos demais por aí.
TRÊS
— NÃO SE ESQUEÇAM, por favor — exortou Smiley à sua
jovem audiência, solenemente, no mesmo tom que poderia escolher
se lhes pedisse para deixarem suas oferendas na caixa de coleta ao
se retirarem — que o inglês... e inglesa, se me permitem
acrescentar... com uma educação particular é o maior dissimulador
do mundo.
Ele esperou que o riso se desvanecesse, antes de continuar:
— Era, continua a ser agora e sempre será, enquanto nosso
vergonhoso sistema educacional permanecer intacto. Ninguém é
capaz de encantá-los com tanto desembaraço, disfarçar melhor
seus sentimentos, encobrir seus atos com mais habilidade, ou
experimentar mais dificuldades para confessar que é um tolo.
Ninguém age com mais bravura quando está apavorado, nem se
mostra mais feliz quando está desesperado; ninguém pode lisonjear
mais uma pessoa quando a odeia do que o extrovertido inglês ou
inglesa das classes supostamente privilegiadas. Ele pode ter um
colapso nervoso da maior intensidade enquanto está parado ao seu
lado na fila do ônibus, e você pode ser o seu melhor amigo, mas
nunca perceberá. É por isso que alguns dos nossos melhores
homens se tornam os piores. E os piores viram os melhores. E é por
isso que o agente mais difícil que vocês jamais terão de controlar
será vocês mesmos.
Em sua mente, eu não tinha a menor dúvida, Smiley falava
sobre o maior dissimulador de todos nós, Bill Haydon. Para mim, no
entanto, ele se referia a Ben... e, é isso mesmo, embora seja mais
difícil admitir, ao jovem Ned, talvez também ao velho.
Era a tarde do dia em que eu por pouco não imolara o
guarda-costas da Panda. Cansado e desolado, cheguei ao meu
apartamento em Battersea para encontrar a porta destrancada e
dois homens de terno cinza vasculhando os papéis na escrivaninha.
Mal me olharam quando entrei. O mais próximo era Personnel
e o segundo um homem atarracado, idade indeterminada,
parecendo uma coruja, os óculos redondos, que me fitou com uma
certa comiseração pesarosa.
— Quando foi a última vez que teve notícias de seu amigo
Cavendish? — indagou Personnel, lançando-me um rápido olhar,
antes de retornar ao exame de meus papéis.
— Ele é seu amigo, não é? — acrescentou o homem de cara
de coruja, infeliz, enquanto eu me esforçava para recuperar o
controle. — Ben? Arno? Como você o chama? — É, sim. Ben é meu
amigo. O que aconteceu? — Então quando foi que teve notícias
dele pela última vez? — reiterou Personnel, empurrando para o lado
uma pilha de cartas de minha namorada na ocasião. — Ele telefona
para você? Como se mantêm em contato? — Recebi um cartão-
postal há uma semana. Por quê? — Onde está? — Não sei. Acho
que destruí. Se não, está aí na mesa. Podem fazer a gentileza de
me explicar o que está acontecendo? — Destruiu? — Joguei fora.
— Destruir parece um tanto deliberado, não é? Como era o
cartão? — Personnel abriu outra gaveta. — Fique onde está.
— Tinha uma fotografia de uma moça num lado e algumas
palavras de Ben no outro. Que importância tem o que havia no
cartão? Por favor, saiam daqui.
— O que ele dizia? — Nada. Apenas que aquela era a sua
última aquisição. "Caro Ned, esta é a minha nova conquista, por
isso me sinto contente por você não estar aqui. Amor, Ben." E agora
saiam! — O que ele queria dizer com isso? — insistiu Personnel,
abrindo outra gaveta.— Que estava contente por eu não lhe tirar a
garota, imagino. Era uma brincadeira.
— Geralmente você tirava as mulheres dele? — Não temos
mulheres em comum. Nunca tivemos.
— O que vocês têm em comum? — Amizade! — exclamei,
furioso Mas o que vocês estão realmente procurando? Acho melhor
se retirarem agora. Os dois.
— Não consigo encontrar — queixou-se Personnel a seu
gordo companheiro, enquanto largava de lado outro maço de
minhas cartas particulares. — Não há nenhum cartão-postal. Não
está mentindo, não é mesmo, Ned? O homem de cara de coruja não
desviava os olhos de mim. Continuava a me fitar com uma empatia
desolada, como a dizer que acontece com todos nós e não há como
se evitar.
— Como o cartão-postal foi entregue, Ned? — indagou ele, a
voz, como a atitude, especulativa e pesarosa.
— Pelo correio — respondi em tom ríspido. — De que outra
maneira poderia ser? — O correio normal? — sugeriu tristemente o
cara de coruja. — Não pela mala postal do Serviço, por exemplo? —
Pelo correio das forças armadas. Agência postal de campanha.
Remetido de Berlim, com um selo britânico. E foi entregue pelo
carteiro local.
— Lembra-se por acaso do número dessa agência postal,
Ned? — indagou o cara de coruja, com enorme timidez. — Isto é, no
carimbo postal? — Creio que era o número normal de Berlim —
respondi, fazendo o maior esforço para manter minha indignação,
diante de alguém tão deferente. — Quarenta, se bem me lembro.
Por que isso é tão importante? Já chega dessa história! — Mas diria
que foi mesmo remetido de Berlim, sem a menor dúvida? Isto é,
essa foi a sua impressão na ocasião? Até onde pode recordar
agora? O número de Berlim... tem certeza? — Parecia exatamente
como os outros cartões que ele me enviou. Não o submeti a um
exame meticuloso.
Minha raiva aumentou de novo, enquanto observava
Personnel puxar outra gaveta e derramar seu conteúdo na mesa.
— Uma garota ao estilo pin-up, Ned? — insistiu o cara de
coruja, com um sorriso abjeto, que obviamente visava ser um pedido
de desculpas não apenas por si mesmo, mas também por
Personnel.
— Um nu, se quer saber. Uma mulher da vida, eu presumo,
de costas, olhando para trás, inteiramente pelada. Foi por isso que
joguei fora. Por causa de minha faxineira.
— Ah, está lembrando agora! — exclamou Personnel,
virando-se para me fitar. — "Joguei fora." Lamentável que não tenha
dito isso logo de uma vez! — Não sei, não, Rex... — murmurou o
cara de coruja, apaziguador. — Ned ficou muito confuso ao entrar.
Quem não ficaria? Seu olhar preocupado tornou a se fixar em mim e
ele acrescentou: — Está trabalhando com os vigilantes, não é
mesmo? Monty diz que você até que é bom. Ela era em cores, por
falar nisso? Sua pelada? — Era, sim.
— Ele sempre lhe mandou cartões-postais ou também
recebeu algumas cartas? — Apenas cartões-postais.
— Quantos? — Três ou quatro, desde que foi para lá.
— Sempre em cores? — Não me lembro. Provavelmente.
— E sempre de mulheres? — Acho que sim.
— Ora, mas você está lembrando. Claro que lembra de tudo.
E também sempre de mulheres nuas? — Isso mesmo.
— Onde estão os outros? — Devo ter jogado fora também.
— Por causa de sua faxineira? — Exatamente.
— Para proteger a sensibilidade dela? — Isso mesmo! O
homem de cara de coruja demorou algum tempo para digerir isso.
— Portanto, os cartões-postais obscenos... perdoe-me, não
tenho a intenção de ser ofensivo... eram uma espécie de brincadeira
permanente entre vocês? — Da parte de Ben.
— Mas você não lhe mandou nenhum em resposta? Por
favor, diga logo se mandou. Não fique embaraçado. Não há tempo
para isso.
— Não estou embaraçado! E não mandei nenhum cartão!
Eram de fato uma brincadeira entre nós. E estavam se tornando
cada vez mais picantes. Se quer saber, eu já começava a me sentir
aborrecido em vê-los expostos na mesa do vestíbulo à minha
espera. E o Sr. Simpson também. Ele é o senhorio. Sugeriu que eu
escrevesse para Ben e pedisse para não enviá-los mais. Disse que
estavam dando uma péssima reputação à casa. E agora, por favor,
um de vocês pode me contar o que está acontecendo? Desta vez foi
Personnel quem respondeu, num tom desolado: — Esperávamos
que você pudesse nos explicar. Ben Cavendish desapareceu. E o
mesmo aconteceu com seus agentes, por assim dizer. Dois deles
foram citados no noticiário da edição matutina de Neues
Deutschland. Rede de espionagem britânica surpreendida em
flagrante. Os jornais de Londres estão publicando a notícia em suas
últimas edições. Há três dias que ninguém sabe de Ben Cavendish.
Este é o Sr. Smiley. Ele quer conversar com você. Deve lhe dizer o
que sabe. E isso significa qualquer coisa. Falarei com você mais
tarde.
Devo ter ficado desorientado por um momento, porque
quando tornei a ver Smiley ele estava parado no meio do meu
tapete, contemplando com uma expressão desolada a devastação
que causara junto com Personnel.
— Tenho uma casa no outro lado do rio, na Baywater Street
— confessou ele, como se isso fosse um pesado fardo. — Talvez
seja melhor irmos para lá, se não se incomoda. Não está muito bem
arrumada, mas é melhor do que isto.
Fomos no Austin pequeno e humilde de Smiley, tão devagar
que se podia imaginar que transportava um inválido, o que talvez
fosse como ele me considerava. Era o crepúsculo. Os lampiões
brancos da Albert Bridge flutuavam em nossa direção como as luzes
de carruagens dentro da água. Ben, eu pensei, desesperado, o que
nós fizemos? O que fizeram com você? A Baywater Street estava
congestionada e por isso estacionamos numa garagem de aluguel.
Estacionar para Smiley era tão complicado quanto atracar um
transatlântico, mas ele finalmente conseguiu e seguimos a pé pelo
resto do caminho. Lembro como era impossível manter-me ao seu
lado, como em seu andar gingado parecia de certa forma ignorar
minha existência. Lembro como ele se empertigou para enfiar a
chave na porta da frente, como se mostrava alerta ao entrar no
vestíbulo. Como se a casa fosse um lugar perigoso para ele... e sei
agora que era mesmo. Havia o leite de dois dias no vestíbulo e um
prato meio comido de costeletas e ervilhas na sala de estar. O prato
de uma vitrola girava silenciosamente. Não se precisava ser um
gênio para deduzir que ele fora chamado às pressas —
presumivelmente por Personnel, na noite anterior — enquanto
comia suas costeletas e escutava um pouco de música.
Smiley foi até a cozinha em busca de uma soda para nossos
uísques. Acompanhei-o. Havia alguma coisa em Smiley que fazia
com que você se sentisse responsável por sua solidão. Latas de
comida abertas espalhavam-se por toda parte, a pia estava cheia de
pratos sujos. Enquanto ele preparava os uísques, comecei a lavar a
louça. Smiley pegou uma toalha de prato atrás da porta e pôs-se a
enxugar e guardar.
— Você e Ben eram parceiros, não é mesmo? — perguntou
ele.
— Éramos, sim. Partilhamos uma cabana em Sarratt.
— Como era a cabana? Cozinha, dois quartos, banheiro? —
Sem cozinha.
— Mas também ficaram juntos durante o curso de
treinamento? — No último ano. Escolhe-se um oponente e aprende-
se a trabalhar um com o outro.
— Vocês escolhem? Ou são escolhidos para vocês? — Nós
escolhemos primeiro, depois eles aprovam ou recusam.
— E depois disso, permanecem um com o outro, para o
melhor ou para o pior? — Mais ou menos assim.
— Durante todo o último ano? A metade do curso, não é
mesmo? Dia e noite, por assim dizer? Um casamento total? Eu não
podia entender por que ele me pressionava a respeito de coisas que
já devia saber.— E fazem tudo juntos? — continuou Smiley. —
Desculpe, mas já tem algum tempo que fiz o treinamento. A parte
escrita, prática, física, comem juntos, partilham uma cabana... toda
uma vida, no fundo.
— Fazemos o trabalho coletivo juntos, assim como os
exercícios de luta. Isso é automático. Por termos mais ou menos o
mesmo peso e aptidões físicas. — Apesar da tendência
desconcertante de suas perguntas, eu começava a sentir uma
grande necessidade de lhe falar. — E depois o resto se segue
naturalmente.
— Ahn...
— Às vezes eles nos separavam... para um exercício
especial, por exemplo, ou se acham que uma pessoa está se
tornando dependente demais da outra. Mas enquanto está
equilibrado, eles acham ótimo que os dois permaneçam juntos.
— E vocês ganharam tudo — sugeriu Smiley, em tom de
aprovação, pegando outro prato molhado. — Formavam a melhor
dupla. Você e Ben.
— Acontece apenas que Ben era o melhor aluno. Quem quer
que estivesse com ele acabaria vencendo também.
— Claro, claro... Todos nós conhecemos pessoas assim.
Vocês já haviam se encontrado antes de ingressarem no Serviço?
— Não. Mas seguimos caminhos paralelos. Cursamos a mesma
escola, em casas diferentes. Estudamos em Oxford, em faculdades
diferentes. Ambos fizemos um curso de línguas, mas ainda não
havíamos nos encontrado. Ben serviu por algum tempo no exército,
eu na marinha. Foi preciso o Circo para nos reunir.
Pegando uma delicada xícara de porcelana, Smiley
examinou-a com um ar desconfiado, como se procurasse por
alguma coisa que eu não percebera.
— Você teria mandado Ben para Berlim? — Claro que sim.
Por que não? — E por que sim? — Ele fala um alemão perfeito, que
aprendeu com a mãe. É inteligente. Engenhoso. As pessoas fazem
o que ele quer. E o pai teve uma atuação extraordinária na guerra.
— Sua mãe também, pelo que sei — comentou Smiley,
referindo-se ao trabalho de minha mãe com a Resistência
holandesa. — O que ele fazia... o pai de Ben? Parecia até que
Smiley não sabia.
— Decifrava códigos — respondi, com o orgulho de Ben.
— Era um matemático, o aluno mais destacado de Cambridge
em sua área. Um gênio, ao que parece. Ajudou a organizar o
sistema de traição contra os alemães... recrutava seus agentes e
depois os lançava de volta na ação. A atuação de minha mãe foi
mínima em comparação.
— E Ben se mostrava impressionado com isso? — Quem não
ficaria? — O que eu queria saber é se ele falava a respeito —
insistiu Smiley. — Com frequência? Era uma grande coisa para ele.
Você tinha essa impressão? — Apenas dizia que era algo a que
tinha de corresponder. A compensação por ter uma mãe alemã.
— Oh, não! — exclamou Smiley, consternado. — Pobre
coitado. E eram essas as suas palavras? Você não está enfeitando?
— Claro que não! Ele dizia que com antecedentes como os seus, na
Inglaterra era preciso correr duas vezes mais depressa do que os
outros, a fim de não ficar para trás.
Smiley parecia sinceramente transtornado.
— Oh, não! — exclamou outra vez. — Que coisa terrível! E
você diria que ele possuía o vigor necessário? Mais uma vez ele me
deixava aturdido. Em nossa idade, não pensávamos no vigor como
algo limitado.
— Para quê? — Não sei... Que tipo de vigor seria necessário
para correr duas vezes mais depressa do que os outros em Berlim?
Uma ração dupla de coragem, eu suponho... sempre uma tensão.
Uma cabeça duas vezes melhor para o álcool... e quando se trata
de mulheres... nunca é fácil.
— Tenho certeza de que ele possuía tudo o que era
necessário — declarei, lealmente.
Smiley pendurou a toalha num prego entortado, que parecia
ser sua contribuição à cozinha.
— Alguma vez conversaram sobre política, vocês dois? —
indagou ele, enquanto levávamos nossos uísques para a sala de
estar.
— Nunca.
— Então tenho certeza de que ele é seguro.Smiley soltou
uma risadinha triste e eu também ri.
As casas sempre me parecem, ao primeiro contato,
masculinas ou femininas. A de Smiley era indubitavelmente
feminina, com lindas cortinas, espelhos com molduras lavradas, os
toques hábeis de uma mulher. Especulei com quem ele vivia. Ou
não vivia. Sentamos.
— E há algum motivo para que você pudesse não mandar
Ben para Berlim? — recomeçou ele, sorrindo gentilmente por cima
do copo.
— Apenas o fato de que eu mesmo queria ir. Todo mundo
quer uma oportunidade em Berlim. É a linha de frente.
— E ele simplesmente desapareceu — explicou Smiley,
recostando-se e dando a impressão de que fechava os olhos. —
Não estamos lhe escondendo nada. Contarei tudo o que sabemos.
Na última quinta-feira ele foi a Berlim Oriental para se encontrar com
seu principal agente, um cavalheiro chamado Hans Seidl... pode ver
a fotografia dele no Neues Deutschland. Era o primeiro encontro
solo de Ben com o homem. Um grande acontecimento. O superior
de Ben na Estação Berlim é Haggarty. Conhece Haggarty? — Não.
— Já ouviu falar dele? — Não.
— Ben nunca o mencionou para você? — Não. Já lhe disse
isso. Nunca ouvi falar em seu nome.
— Desculpe. Às vezes uma resposta pode variar com o
contexto, se pode me entender.
Não entendi.
— Haggarty é o segundo homem na Estação abaixo do
comandante. Também não sabia disso? — Não, não sabia.
— Ben tem alguma namorada regular? — Não, ao que eu
saiba.
— E irregular? — Bastava ir a um baile com ele e todas
ficavam apaixonadas.
— E depois do baile? — Ben não se gabava. Não se gaba. Se
ia para a cama com elas, não dizia. Não é desse tipo de homem.—
Disseram-me que você e Ben tiraram algumas licenças juntos. Para
onde iam? — Twickenham. Um pouco de pescaria. Mas na maioria
das vezes ficávamos com a família de um ou de outro.
— Ahn...
Eu não podia entender por que as palavras de Smiley
estavam me assustando. Talvez eu me sentisse tão apavorado por
Ben que agora me apavorava com tudo. Cada vez mais tinha a
impressão de que Smiley me considerava culpado de alguma coisa,
mesmo que ainda precisássemos descobrir o que era. Seu relato
dos acontecimentos foi como um sumário de provas.
— Primeiro vem Willis — disse ele, como se seguíssemos por
uma trilha difícil — Willis é o chefe da Estação Berlim. Willis tem o
comando global. Depois vem Haggarty, que é o operador de campo
superior, sob Willis, o chefe direto de Ben. Haggarty é o responsável
pela operação normal da rede de Seidl. A rede tem doze agentes...
ou tinha. Nove homens e três mulheres, todos presos agora. Uma
rede ilegal desse tamanho, comunicando-se em parte pelo rádio, em
parte por mensagens secretas escritas, exige uma equipe básica
pelo menos com o mesmo número de pessoas para mantê-la... e
não estou falando da avaliação ou distribuição do produto.
— Sei disso.
— Tenho certeza que sabe, mas deixe-me contar tudo mesmo
assim — continuou Smiley, sem alterar o ritmo ponderado. —
Depois poderá me ajudar a preencher as lacunas. Haggarty é uma
personalidade forte. Um homem do Ulster. De folga, ele bebe, é
exuberante e desagradável. Mas quando está trabalhando, não é
nenhuma dessas coisas. É um operador consciencioso, com uma
memória prodigiosa. Tem certeza de que Ben nunca o mencionou
para você? — Já disse que não.
Não tive a intenção de parecer tão inflexível. Há sempre um
mistério na frequência com que se pode negar uma coisa sem
começar a parecer um mentiroso, até para si mesmo; e é claro que
esse era o mistério que Smiley explorava, a fim de levar à superfície
as coisas ocultas que havia em mim.
— Tem razão, já me disse que não — concordou ele, com sua
cortesia habitual. — E eu o ouvi dizer não. Apenas especulava se
não podia estimular sua memória.— Não.
— Haggarty e Seidl eram amigos — continuou Smiley, falando
ainda mais devagar, se é que isso era possível. — Até onde suas
atividades permitiam, eram amigos íntimos. Seidl fora um prisioneiro
de guerra na Inglaterra, Haggarty na Alemanha. Quando servia
como um trabalhador rural perto de Cirencester, em 1944, sob as
condições relaxadas para os prisioneiros de guerra alemães que
prevaleciam na ocasião, Seidl conseguiu cortejar uma camponesa
inglesa. Os guardas do campo deixavam uma bicicleta para ele no
lado de fora dos portões, com um capote militar pendurado no
guidon, para cobrir a túnica de prisioneiro de guerra de Seidl. Desde
que ele estivesse de volta em sua cama antes do toque de alvorada,
os guardas olhavam para o outro lado. Seidl nunca esqueceu sua
gratidão aos ingleses. Quando o bebê nasceu, os guardas e os
companheiros de Seidl no campo de prisioneiros compareceram ao
batizado. Fascinante, não acha? Os ingleses em seu melhor. Mas a
história não lhe lembra alguma coisa? — Como poderia? Está
falando de um agente! — Um agente descoberto. Um dos agentes
de Ben. As experiências de Haggarty em seu campo de prisioneiros
na Alemanha não foram tão animadoras. Não importa. Em 1948,
quando trabalhava normalmente na Comissão de Controle,
Haggarty encontrou Seidl num bar em Hannover, recrutou-o e
despachou-o de volta à Alemanha Oriental, para sua cidade natal,
Leipzig. A amizade Haggarty-Seidl foi a base da Estação Berlim
durante os últimos quinze anos. No momento de sua prisão, na
semana passada, Seidl era o quarto homem do Ministério do
Exterior da Alemanha Oriental. Servira como embaixador de seu
país em Cuba. E ninguém jamais o mencionou para você. Nem Ben,
nem qualquer outra pessoa.
— Não — murmurei, com uma voz tão cansada quanto podia
exibir.
— Uma vez por mês Haggarty costumava ir a Berlim Oriental
para ouvir as informações de Seidl... num carro, um apartamento
seguro, um banco de praça, qualquer outro lugar... a coisa de
sempre. Depois do Muro, houve uma interrupção do serviço por
algum tempo, antes que as reuniões recomeçassem, com a maior
cautela. O jogo era efetuar a travessia num veículo da Força
Quatro... um jipe militar, por exemplo... introduzir um substituto,
saltar no momento certo e retornar ao veículo num ponto
combinado. Parece perigoso e era mesmo, mas funcionava, com um
pouco de prática. Se Haggarty estava de licença ou doente, não
havia nenhum encontro. Há dois meses o escritório central decidiu
que Haggarty deveria apresentar Seidl a um sucessor. Haggarty já
passou da idade da aposentadoria, Willis se encontra em Berlim há
tanto tempo que todos já o conhecem, além disso sabe segredos
demais para perambular pelo outro lado da Cortina. Por isso, Ben foi
despachado para Berlim. Ben era imaculado. Absolutamente limpo.
Haggarty instruiu-o pessoalmente... e aposto que da forma mais
meticulosa possível, até a exaustão. Tenho certeza de que não foi
misericordioso. Haggarty não costuma ser misericordioso e uma
rede de doze agentes pode ser um assunto muito complicado: quem
trabalha para quem e por quê; quem conhece a identidade de quem;
os pontos de contato, códigos, mensageiros, nomes de cobertura,
símbolos, rádios, locais para deixar mensagens, tintas, carros,
salários, crianças, aniversários, esposas, amantes. Muita coisa para
entrar na cabeça de uma pessoa, tudo ao mesmo tempo.
— Sei disso.
— Ben lhe contou, não é mesmo? Não o enfrentei desta vez.
Estava determinado a manter o controle.
— Aprendemos no curso. Ad infinitum.
— Claro, claro... imagino que sim. O problema é que a teoria
nunca é a mesma coisa que a realidade, não acha? Quem é o
melhor amigo de Ben, além de você? — Não sei. — Fiquei surpreso
com essa súbita mudança de rumo. — Talvez Jeremy.
— Jeremy o quê? — Galt. Ele fez o curso com a gente.
— E mulheres? — Já lhe disse. Nenhuma em especial.
— Haggarty queria ir com Ben para Berlim Oriental,
apresentá-lo pessoalmente — continuou Smiley. — O Quinto Andar
não permitiu. Estavam tentando desmamar Haggarty de seu agente,
e não admitem enviar dois homens a território hostil quando um
apenas pode realizar o serviço. Assim, Haggarty explicou a Ben os
procedimentos para um encontro num mapa da cidade; e Ben foi
sozinho para Berlim Oriental. Na quarta-feira ele fez apenas um
teste, no reconhecimento do local. E na quinta-feira partiu de novo,
desta vez para valer. Entrou legalmente, num carro Humber da
Comissão de Controle. Atravessou em Checkpoint Charlie às três
horas da tarde e saltou do carro no ponto combinado. Seu substituto
circulou com o carro durante três horas, tudo como fora planejado.
Ben retornou ao carro sem maiores problemas às seis e dez, entrou
em Berlim Ocidental às seis e cinquenta da noite. A hora foi
registrada na barreira. Seguiu direto para seu apartamento. Uma
missão perfeita. Willis e Haggarty aguardavam-no no quartel-general
do Posto, mas Ben telefonou de seu apartamento, em vez de ir até
lá. Disse que o encontro transcorrera de acordo com o planejado,
mas não trouxera nada de volta, exceto uma febre alta e uma
tremenda dor de barriga. Poderiam adiar a sessão de coleta de
informações até a manhã seguinte? Lamentavelmente, eles podiam.
Não tornaram a vê-lo nem tiveram notícias dele desde então. Ben
parecia animado, apesar de estar passando mal, algo que eles
atribuíram aos nervos. Ben alguma vez esteve doente durante o
tempo em que conviveram? — Não.
— Ele disse que o amigo comum fora sensacional, um ótimo
sujeito e assim por diante. Obviamente, não podia falar mais por um
telefone aberto. Sua cama não estava desarrumada, ele não levou
roupas extras. Não há qualquer prova de que se encontrava no
apartamento ao telefonar, não há provas de que foi sequestrado,
também não há provas de que não foi. Se pretendia desertar, por
que não permaneceu em Berlim Oriental? Não podem tê-lo virado e
determinado que continuasse conosco, caso contrário não
prenderiam sua rede. E se queriam sequestrá-lo, por que não o
fizeram enquanto ele ainda se encontrava no outro lado do Muro?
Não existe nenhuma prova concreta de que ele deixou Berlim
Ocidental por algum dos corredores aprovados... de trem, pela
estrada ou pelo ar. Os controles não são eficientes e, como você
diz, ele era treinado. Mas, por tudo o que sabemos, ele ainda pode
estar em Berlim. Por outro lado, pensamos que ele poderia procurar
você. Não fique tão assustado. Não é amigo dele? Seu melhor
amigo? Mais chegado a ele do que qualquer outra pessoa? O jovem
Galt não se compara. Ele próprio nos disse isso. "O grande
companheiro de Ben era Ned", foram suas palavras, "Se Ben
quisesse procurar algum de nós, só poderia ser Ned." E, lamento
muito, há uma evidência que parece confirmar isso.
— Que evidência? Não houve qualquer pausa de suspense,
nenhuma mudança de voz dramática, nenhum aviso de qualquer
tipo: apenas o bom e velho George Smiley, parecendo se desculpar,
como sempre.
— Há uma carta no apartamento dele, endereçada a você —
informou ele. — Não está datada, foi largada numa gaveta. Mais um
bilhete rabiscado do que uma carta. Provavelmente ele estava
embriagado. É uma carta de amor, lamento dizer.
E depois de me entregar uma fotocópia para ler, Smiley foi
buscar outro uísque para nós.
Talvez eu faça isso como um recurso para me desviar do
constrangimento do momento. Mas sempre que projeto a cena em
minha memória, descubro-me a assumir o ponto de vista de Smiley.
Imagino qual devia ser a sensação em sua posição.
O que ele tinha diante de si é muito fácil de imaginar. Pensem
num aprendiz esforçado, tentando parecer mais velho do que sua
idade, um fumante de cachimbo, um marujo, alguém que acenava
com a cabeça sensatamente, um garoto que mal podia esperar pela
meia-idade, e terão o jovem Ned do início dos anos sessenta.
Mas o que ele tinha por trás não era tão fácil assim, podia
alterar de forma drástica a sua interpretação da minha pessoa. O
Circo, embora eu não soubesse na ocasião, encontrava-se no fundo
do poço, pressionado pelo fracasso inexplicável. A prisão dos
agentes de Ben, trágica por si mesma, era apenas a última de uma
sucessão de catástrofes em todos os cantos do mundo. No norte do
Japão, toda uma estação de escuta do Circo e sua guarnição de
três homens desapareceram em pleno ar. No Cáucaso, nossas rotas
de fuga haviam sido fechadas da noite para o dia. Perdêramos
redes na Hungria, Tchecoslováquia e Bulgária, tudo num período de
meses, E em Washington nossos Primos Americanos manifestavam
uma insatisfação cada vez mais clamorosa com nossa
confiabilidade, ameaçavam cortar o vínculo especial para sempre.
Num clima assim, as teorias monstruosas tornam-se uma
dieta cotidiana. Surge uma mentalidade de desconfiança. Não se
admite que nada aconteça por acaso, que nada foi fortuito. Se o
Circo triunfava, era porque os oponentes haviam permitido
deliberadamente. A culpa por associação prevalecia. Na percepção
americana, o Circo abrigava não apenas uma toupeira, o espião
plantado por um longo período, mas estava cheio de buracos, cada
traidor promovendo astutamente a carreira dos outros. E o que unia
esses traidores não era tanto a fé perniciosa em Marx — embora
isso já fosse bastante terrível — mas sim o repulsivo
homossexualismo inglês.
Li a carta de Ben, Vinte linhas, sem assinatura, no papel
branco sem linha d'água do Serviço, escrita apenas num lado. A
letra de Ben, mas bastante torta. Portanto, era mesmo provável que
ele estivesse embriagado.
Chamava-me de "Ned, meu querido". Punha as mãos de Ben
ao longo de meu rosto, puxava meus lábios para os seus. Beijava
minhas pálpebras e pescoço, mas, graças a Deus, na frente física
parava por aí.
Era desprovida de adjetivos, sem estilo, mas ainda mais
assustadora por isso. Não era uma peça trabalhada, não era
afetada. Não era insinuante, grega ou típica da década de 1920. Era
um grito espontâneo de anseio homossexual da parte de um homem
que eu conhecera apenas como o meu melhor amigo, Mas quando
a li, tive certeza de que era genuína, que fora o verdadeiro Ben que
a escrevera. Ben em tormento, confessando sentimentos de que eu
nunca tivera conhecimento, mas que aceitei como verdadeiros
quando os li. Talvez isso já me fizesse sentir culpado — isto é, ser o
objeto de seu desejo, mesmo que nunca o tivesse atraído
conscientemente, não o desejasse. A carta dizia sinto muito, depois
acabava, Não achei que ficara inacabada. Ben não tinha mais nada
a dizer.
— Eu não sabia — murmurei.
Devolvi a carta a Smiley. Ele guardou-a no bolso. Seus olhos
não se desviavam de meu rosto.— Ou não sabia que sabia —
sugeriu ele.
— Eu não sabia! — repeti, veementemente. — O que está
tentando me levar a dizer? Vocês devem tentar compreender a
proeminência de Smiley, o respeito que seu nome despertava em
alguém da minha geração. Ele esperava por mim. Haveria de me
lembrar por toda a vida da força compulsiva de sua paciência. Uma
súbita pancada de chuva caiu, com seu barulho habitual nas ruas
estreitas de Londres, Se Smiley me dissesse que comandava os
elementos, eu não ficaria surpreso.
— Na Inglaterra, nunca se sabe — comentei, irritado,
tentando me controlar. Só Deus sabe que argumento eu tentava
formular. — Jack Arthur não é casado, não é mesmo? Não tem para
onde ir à noite. Bebe com os amigos até o bar fechar. E depois bebe
mais um pouco. Ninguém diz que Jack Arthur é homossexual. Mas
se o prendessem amanhã na cama com dois homens, diríamos que
sabíamos durante todo o tempo. Ou pelo menos eu diria. É
imponderável.
E continuei assim, completamente errado, tateando em busca
de um caminho, mas sem encontrar nenhum. Sabia que qualquer
protesto era protestar demais, mas continuei a protestar assim
mesmo.
— Seja como for, onde a carta foi encontrada? — indaguei,
tentando recuperar a iniciativa.
— Numa gaveta da escrivaninha dele. Pensei que já tinha lhe
dito isso, — Uma gaveta vazia? — Isso faz alguma diferença? —
Claro que faz! Se estava metida no meio de papéis antigos, é uma
coisa. Se foi deixada ali para ser encontrada por vocês, é outra.
Talvez ele tenha sido forçado a escrevê-la.
— Não tenho a menor dúvida quanto a isso — declarou
Smiley. — É apenas uma questão de descobrir pelo quê. Sabia que
ele era tão solitário? Se não havia mais ninguém em sua vida além
de você, eu diria que isso seria um tanto óbvio.
— Então por que não foi óbvio para Personnel? — indaguei,
empertigando-me outra vez. — Afinal, eles nos interrogaram por
tempo suficiente antes de nos aceitarem. E interrogaram nossos
amigos e parentes, professores e tutores. Sabem muito mais a
respeito de Ben do que eu.— Por que não presumimos
simplesmente que Personnel não foi bem-sucedido nesse trabalho?
Ele é humano, estamos na Inglaterra, somos o clã. E vamos
recomeçar com o Ben que desapareceu. O Ben que lhe escreveu.
Não havia mais ninguém chegado a ele além de você. Ou pelo
menos ao que você sabe. Pode ter havido muitas pessoas que você
ignorava, mas isso não é culpa sua. Pelo que sabia, não havia
ninguém. Já definimos esse ponto. Não é verdade? — É, sim! —
Pois muito bem, vamos falar sobre o que você sabia. O que pode
me dizer? De alguma forma, ele me trouxe de volta à Terra e
falamos pela madrugada afora. Muito depois da chuva ter cessado e
os estorninhos começarem a cantar, ainda falávamos. Ou melhor, eu
falava... e Smiley escutava, como só Smiley pode escutar, os olhos
meio fechados, o queixo afundado no pescoço. Eu pensava que
estava lhe contando tudo o que sabia. Talvez ele também pensasse
assim, embora eu duvide, pois Smiley compreendia muito melhor do
que eu os níveis de autoilusão que constituem os nossos meios de
sobrevivência. O telefone tocou. Ele atendeu, escutou por um
momento, murmurou "Obrigado" e desligou.
— Ben ainda está desaparecido e não há fatos novos —
informou-me ele. — Você continua a ser a única pista, Ele não
tomou anotações, ao que posso me lembrar, e não sei até hoje se
tinha um gravador ligado. Duvido muito. Detestava máquinas e,
além disso, sua memória era mais confiável que a delas.
Falei sobre Ben, mas falei também a meu respeito,
justamente o que Smiley queria: eu mesmo como a explicação para
as ações de Ben. Descrevi outra vez a natureza paralela de nossas
vidas. Como eu o invejara por seu heroico pai — eu, que não tinha
pai para lembrar. Não escondi nosso excitamento partilhado, de Ben
e meu, quando começamos a descobrir o quanto tínhamos em
comum. Não, não, repeti, eu não conhecia nenhuma mulher —
exceto a mãe de Ben, que já morrera, E acreditava em mim, tenho
certeza que acreditava.
Na infância, contei a Smiley, costumava especular se era
algum lugar do mundo existia outra versão de mim, algum gêmeo
secreto que tinha os mesmos brinquedos, roupas e pensamentos,
até os mesmos pais. Talvez eu tivesse lido algum livro baseado
nessa história. Era apenas uma criança. E Ben também. Contei tudo
isso a Smiley porque estava determinado a lhe falar diretamente de
meus pensamentos e lembranças, à medida que afloravam, mesmo
que me incriminassem a seus olhos. Sei apenas que nada lhe
ocultei, conscientemente, mesmo reconhecendo que havia um
potencial ruinoso para mim. De alguma forma, Smiley convencera-
me de que isso era o mínimo que eu devia a Ben.
Inconscientemente... ora, isso é muito diferente. Quem sabe o que
um homem esconde, até de si mesmo, quando está contando a
verdade por sua sobrevivência? Relatei o nosso primeiro encontro
— meu e de Ben — na casa de treinamento do Circo, em Lambeth,
onde os recrutas selecionados foram reunidos. Até aquele
momento, nenhum de nós jamais se encontrara com os outros. E
também mal conhecíamos o Circo, diga-se de passagem, além do
encarregado do recrutamento, e a equipe de seleção. Alguns só
tinham uma vaga noção do que faríamos. Finalmente receberíamos
esclarecimentos — a respeito de cada um e sobre o nosso trabalho.
Estávamos reunidos na sala de espera como personagens de um
romance da Legião Estrangeira, cada um com suas expectativas
secretas e suas razões secretas para se encontrar ali, cada um com
sua valise contendo a mesma quantidade de camisas e cuecas,
marcadas a tinta com seu número pessoal, em obediência às
instruções impressas em papel sem cabeçalho. Meu número era
nove e o de Ben era dez. Havia duas pessoas na minha frente
quando entrei na sala de espera, Ben e um escocês pequeno e
corpulento chamado Jimmy. Acenei com a cabeça para Jimmy, mas
Ben e eu nos reconhecemos no mesmo instante — não da escola
ou universidade, mas como pessoas que têm uma semelhança
física e de temperamento.
— Entra o terceiro assassino — disse Ben, apertando minha
mão. Parecia um momento maravilhosamente impróprio para citar
Shakespeare. — Sou Ben, este é Jimmy. Ao que parece, não temos
mais sobrenomes. Jimmy deixou o seu em Aberdeen.
Apertei também a mão de Jimmy e sentei no banco, ao lado
de Ben, esperando para ver quem seria o próximo a passar pela
porta.
— Aposto cinco contra um como ele tem bigode, dez contra
um para barba, trinta contra um para meias verdes — disse Ben.
— E até um manto — acrescentei.
Falei a Smiley sobre os exercícios de treinamento em cidades
desconhecidas, quando tínhamos de inventar uma história de
cobertura, encontrar um contato e suportar a prisão e interrogatório.
Deixei-o sentir como esses feitos aprofundavam nosso
companheirismo, assim como partilhar os primeiros saltos de
paraquedas, viajar à noite sob a orientação de uma bússola pelas
terras altas escocesas, procurar em pontos de entrega de
mensagens em cidades do interior esquecidas de Deus, ou sair de
um submarino para desembarque na praia.
Descrevi como os instrutores às vezes faziam uma referência
ao pai de Ben, só para enfatizar o orgulho que sentiam por ter o filho
como aluno. Falei sobre nossas licenças nos fins de semana, como
fomos uma vez à casa de minha mãe em Gloucestershire e uma vez
à casa do pai de Ben em Shropshire. E como, já que ambos eram
viúvos, nos divertíramos com a noção de promover um casamento
entre eles. Mas, na verdade, as possibilidades eram mínimas, já que
minha mãe era obstinadamente anglo-holandesa, com joviais irmãs,
sobrinhos e sobrinhas, todos parecendo modelos de Brueghel,
enquanto o pai de Ben se tornara um estudioso recluso, cuja única
paixão sobrevivente conhecida era por Bach.
— E Ben o reverencia — comentou Smiley, espicaçando outra
vez no mesmo ponto.
— Isso mesmo. Ele adorava a mãe, mas ela morreu. O pai
tornou-se uma espécie de ícone para ele.
E lembro de ter notado, para minha vergonha, que evitara
deliberadamente usar o verbo "amar", porque Ben o usara para
descrever seus sentimentos por mim.
Contei como Ben bebia, embora outra vez tivesse a
impressão de que ele já sabia. Como Ben normalmente bebia
pouco, até nada com frequência, até que uma noite — por exemplo,
uma quinta-feira, o fim de semana quase chegando — virava um
bebedor insaciável, de scotch, vodca, qualquer coisa, uma dose
para Ben, uma dose para Arno. E depois cambaleava para a cama,
incapaz de falar, mas inofensivo. E como na manhã seguinte ele
parecia ter saído de uma estada de recuperação de duas semanas
numa clínica.— E não havia mais ninguém além de você? —
murmurou Smiley. — Não devia ser fácil para você, um fardo e
tanto, suportar todo esse charme sozinho.
Recordei, divaguei, falei tudo o que me ocorreu, mas sabia
que ele ainda esperava que eu lhe contasse alguma coisa que
continuava a reprimir, se pudéssemos descobrir o que era. Eu
estava consciente de que retinha alguma coisa? Só posso lhes
responder como depois respondi para mim mesmo: Não sabia se
sabia. Precisei de mais de horas de autointerrogatório para arrancar
meu segredo de seu recesso escuro. Às quatro horas da madrugada
Smiley me disse que fosse para casa e dormisse um pouco. Não
deveria me afastar do telefone sem avisar a Personnel para onde ia.
— Estarão vigiando seu apartamento, é claro — advertiu-me
ele, enquanto esperávamos pelo táxi. — Não encare a coisa em
termos pessoais, está bem? Se você se imaginar à deriva, vai
verificar que há poucos portos para onde pode se dirigir em
segurança numa tempestade. Seu apartamento deve figurar no alto
da lista de Ben. Presumindo que não haja mais ninguém além do
pai. Mas ele não procuraria o pai, não é? Ficaria envergonhado.
Mas viria à sua procura, não concorda? Ele tentaria você. Por isso,
vigiam seu apartamento. É natural.
— Claro que compreendo — murmurei, enquanto uma nova
onda de repulsa me invadia.
— Afinal, não há ninguém de sua idade de quem ele pareça
gostar mais.
— Está tudo bem, eu compreendo.
— Por outro lado, é claro, ele não é nenhum tolo, saberá
como estamos raciocinando. E não lhe passaria pela cabeça que
você pudesse se esconder em algum lugar sem nos avisar. Você
não faria isso, não é mesmo? — Não poderia.
— O que ele também saberia, se for pelo menos meio
racional, o que exclui a possibilidade de procurá-lo. Ainda assim, ele
sempre pode aparecer, em busca de conselho ou ajuda. Até para
um drinque. É improvável, mas não é uma suposição que possamos
ignorar. Você deve ser de longe o melhor amigo dele. Não há
ninguém que se compare a você... ou não? Eu gostaria muito que
Smiley parasse de falar assim. Até aquele momento, ele
demonstrara a maior delicadeza, evitando o tema do amor
declarado de Ben por mim. Mas de repente parecia determinado a
reabrir a ferida.
— Claro que ele pode ter escrito para outras pessoas —
comentou Smiley, especulativo. — Homens ou mulheres, talvez
ambos. Não é tão improvável assim. Há ocasiões em que uma
pessoa fica tão desesperada que declara seu amor às mais diversas
pessoas. Se sabe que está morrendo ou cogitando de algum ato
desesperado. A diferença, no caso das outras pessoas, seria a de
que ele remeteu as cartas. Mas não podemos circular entre os
companheiros de Ben a indagar se ele lhes escreveu uma carta
apaixonada recentemente... não seria seguro. Além do mais, por
onde se começaria? Essa é a questão. É preciso se colocar na
situação de Ben.
Será que Smiley deliberadamente plantou o germe do
autoconhecimento em mim? Mais tarde, tive certeza que sim.
Lembro do olhar perturbado e perspicaz que ele me lançou quando
entrei no táxi. Lembro de ter olhado para trás, no instante em que o
táxi virava na esquina, e avistar seu vulto corpulento parado no meio
da rua, enquanto me observava, suas últimas palavras martelando
em minha cabeça: "É preciso se colocar na situação de Ben." Eu me
encontrava num turbilhão. Meu dia começara de madrugada na
South Audley Street, continuara quase que sem uma pausa para
dormir através do macaco da Panda, para chegar agora à carta de
Ben. O café de Smiley e meu senso de ser prisioneiro de
circunstâncias ultrajantes fizeram o resto. Mas o nome de Stefanie,
eu juro, ainda não se situava em parte alguma de minha cabeça...
nem na superfície, nem no fundo. Stefanie ainda não existia. Tenho
certeza de que nunca esqueci alguém de forma tão absoluta.
De volta a meu apartamento, os acessos periódicos de
repulsa pela paixão de Ben foram substituídos pela preocupação
com sua segurança. Na sala de estar, fiquei olhando teatralmente
para o sofá em que ele se deitara tantas vezes, depois de um longo
dia de treinamento de rua em Lambeth: — Acho que vou acampar
aqui, se não se importa, meu velho. É mais convidativo do que
minha casa à noite. Amo pode dormir em casa. Ben dorme aqui.Fui
para a cozinha e toquei no velho fogão de ferro em que fritara seus
ovos de meia-noite: — Deus Todo-Poderoso, Ned, isso é um fogão?
Parece mais com o que perdemos na Guerra da Crimeia! Lembrei
sua voz, por muito tempo depois de ter apagado o abajur na
mesinha de cabeceira, lançando-me uma ideia absurda atrás de
outra, através da divisória fina — as nossas palavras partilhadas, a
nossa linguagem para os iniciados.
— Sabe o que devíamos fazer com o Irmão Nasser? — Não,
Ben.
— Entregá-lo a Israel. Sabe o que devíamos fazer com os
judeus? — Não, Ben.
— Entregá-los ao Egito.
— Por que, Ben? — As pessoas só se sentem satisfeitas com
o que não lhes pertence. Conhece a história do escorpião e da rã
cruzando o Nilo? — Claro que conheço. E agora cale a boca e trate
de dormir.
Mas ele me contara a história mesmo assim, como um caso
clássico de Sarratt. O escorpião como agente de infiltração,
precisando entrar em contato com sua equipe de apoio da
retaguarda, na margem oposta. A rã como agente duplo, fingindo
aceitar a história de cobertura do escorpião, depois denunciando-o a
seus pagadores.
E pela manhã ele já se fora, deixando um bilhete de uma
linha: "Vejo-o em Borstal", que era o nome que ele dava a Sarratt.
"Amor, Ben." Teríamos conversado sobre Stefanie nessas ocasiões?
Não, não conversáramos. Stefanie era alguém discutido em
movimento, de passagem, não de um lado para outro, através de
uma parede estacionária. Stefanie era um fantasma partilhado na
corrida, um enigma delicioso demais para dissecar. Talvez tenha
sido por isso que eu não pensara nela. Ou ainda não.
Inconscientemente. Não houve nenhum momento dramático em que
uma luz intensa acendeu-se e saí do banho gritando "Stefanie!" Não
foi assim que aconteceu, pelo motivo que estou tentando lhes
explicar; em algum lugar, na terra de ninguém entre a confissão e a
autopreservação, Stefanie flutuava como uma criatura mítica, que só
existia quando era admitida. Até onde posso me lembrar, a noção de
sua existência aflorou primeiro enquanto eu arrumava a confusão
deixada por Personnel. Encontrando meu diário do último ano,
comecei a folheá-lo, refletindo que vivíamos muito mais do que
podíamos recordar. E no mês de junho deparei com uma linha em
diagonal através das duas semanas intermediárias, com o número
"8" escrito de forma precisa ao lado — indicando Camp 8, North
Argyll, onde realizáramos o treinamento paramilitar. E comecei a
pensar — ou talvez apenas a sentir — isso mesmo, é claro,
Stefanie.
E a partir daí, ainda sem qualquer súbita revelação
arquimedeana, descobri-me a reconstituir nossa viagem noturna
através das Highlands, ao luar: Ben ao volante da baratinha
Triumph, de capota arriada, eu sentado ao seu lado, puxando
conversa, a fim de mantê-lo acordado, porque estávamos numa feliz
exaustão, depois de uma semana fingindo que nos encontrávamos
nas montanhas da Albânia, mobilizando um exército de
guerrilheiros. E o ar de junho soprando em nossos rostos.
O resto da turma voltava a Londres no ônibus de Sarratt. Mas
Ben e eu tínhamos à nossa disposição o Triumph de Stefanie,
porque Steff era camarada, Steff era desprendida, Steff o levara de
Oban a Glasgow só para que Ben pudesse tomá-lo emprestado por
uma semana, levando-o de volta para ela quando o curso
recomeçasse. E foi assim que Stefanie me voltou — exatamente
como me surgira no carro — amorfa, um conceito instigante, uma
mulher partilhada — de Ben.
— Mas quem ou o que é Stefanie? — indaguei, enquanto
abria o porta-luvas em vão por vestígios dela. — Ou terei como
resposta o mesmo silêncio agressivo? E por algum tempo só tive o
silêncio.
— Stefanie é uma luz para os ímpios e um modelo para os
virtuosos — declarou Ben, muito solene, para logo depois
acrescentar, depreciativo: — Steff é do lado huno da família.
Ele próprio era desse lado, como gostava de dizer em seus
momentos mais amargos. Steff era do lado Arno, foi o que Ben
explicou.
— Ela é uma beleza? — indaguei.
— Não seja vulgar.— Bonita? — Menos vulgar, mas ainda
não chegou lá.
— O que ela é então? — Ela é a perfeição. Luminosa.
Incomparável.
— Tão bonita assim? — Não, seu palerma. Requintada.
Sanspareil. Inteligente além dos sonhos de Personnel.
— E afora isso, o que ela é... para você? Além de ser uma
huna e a proprietária deste carro? — Ela é prima de minha mãe,
com alguns graus de distância. Depois da guerra, veio viver conosco
em Shropshire e fomos criados juntos.
— Quer dizer que ela é da sua idade? — É, sim... se é que se
pode medir o eterno.
— Sua irmã substituta, por assim dizer? — Ela foi. Por alguns
anos. Corríamos juntos pelos campos, colhíamos cogumelos ao
amanhecer, tocávamos no sexo um do outro. Depois eu fui para
uma escola interna e ela voltou a Munique para ser uma huna de
novo. Fim do idílio da infância e volta a papai e Inglaterra.
Eu nunca o ouvira tão franco em relação a qualquer mulher,
nem em relação a si mesmo.
— E agora? Temi que ele se desligasse de novo, mas Ben
acabou me respondendo: — Agora é menos divertido. Ela foi para a
escola de arte, uniu-se a um pintor louco e se instalou numa
pequena casa numa ilha ao largo da Escócia.
— Por que é menos divertido? O tal pintor não gosta de você?
— Ele não gosta de ninguém. Matou-se com um tiro. Motivos
desconhecidos. Deixou um bilhete para o conselho local, pedindo
desculpas pelo incômodo. Nenhum bilhete para Steff. Não eram
casados, o que tornava a situação ainda mais confusa.
— E agora, Ben? — Ela ainda vive lá.
— Na ilha? — Exatamente.
— Na mesma casa? — Claro.
— Sozinha? — Durante a maior parte do tempo.
— Quer dizer que você vai até lá e a visita? — Claro que a
visito. E para isso tenho que ir até lá — É sério? — Tudo o que se
relaciona com Steff é sempre muito sério.
— O que ela faz quando você não está lá? — Eu diria que a
mesma coisa que faz quando estou lá. Pinta. Conversa com os
passarinhos. Lê. Escuta música. Lê. Escuta música. Pinta. Pensa.
Lê. Empresta-me seu carro. Quer saber mais alguma coisa sobre o
que é só da minha conta? Por algum tempo permanecemos como
estranhos, até que Ben mais uma vez se abrandou.
— Tenho uma ideia, Ned. Case com ela.
— Com Stefanie? — Quem mais, seu idiota? É uma excelente
ideia, pensando bem. Proponho reunir vocês dois para discutir a
possibilidade. Você casará com Steff, Steff casará com você, e eu
irei viver com os dois e pescarei no lago.
Minha pergunta aflorou de uma inocência monstruosa e
culpável: — Por que você mesmo não casa com ela? Será que só
agora, de pé em meu apartamento, contemplando o lento
amanhecer a se insinuar pelas paredes, é que obtive a resposta?
Olhando para as páginas censuradas de junho passado e
recordando com um sobressalto a terrível carta de Ben? Ou será
que me foi dada já no carro, pelo silêncio de Ben, enquanto
avançávamos em alta velocidade pela noite escocesa? Eu sabia já
naquele momento que Ben estava me dizendo que nunca casaria
com mulher nenhuma? E fora esse o motivo pelo qual eu banira
Stefanie de minha memória consciente, exilando-a para um recesso
tão profundo que nem mesmo Smiley, com toda a sua habilidade
para escavar, fora capaz de exumá-la? Eu olhara para Ben ao lhe
fazer a pergunta fatal? Fitara-o enquanto ele se recusava — e
continuava a se recusar — a responder? Ou deliberadamente não
olhara para ele? Àquela altura já me acostumara a seus silêncios;
talvez por isso, depois de esperar em vão, punira-o com o registro
de meus próprios pensamentos.
Mas tudo o que sabia com certeza é que Ben nunca
respondera à pergunta, e que nenhum dos dois jamais tornara a
mencionar Stefanie.
Stefanie, a mulher de sonho de Ben, pensei, enquanto
continuava a examinar o diário. Em sua ilha. Que o amava. Mas
devia casar comigo.
Que tinha a mácula da morte que os heróis de Ben pareciam
sempre precisar.
Stefanie a eterna, uma luz para os ímpios, luminosa,
incomparável, Stefanie a alemã, exemplo e irmã substituta — talvez
mãe também — acenando para ele de sua torre, oferecendo-lhe
santuário contra o pai.
É preciso se colocar na situação de Ben, dissera Smiley.
Contudo, mesmo agora, o diário aberto nas mãos, eu não me
permitia o momento esquivo de revelação. Uma ideia se formava em
minha mente. Pouco a pouco, tornou-se uma possibilidade. E só
gradativamente, à medida que meu estado de tensão física e mental
permitia, consolidou-se em convicção, depois em propósito.
Finalmente era de manhã. Circulei pelo apartamento. Arrumei
e limpei. Analisei minha raiva. De forma imparcial, vocês devem
entender. Tornei a abrir a escrivaninha, tirei meus papéis
particulares profanados, queimei na lareira tudo o que sentia que
fora irremediavelmente conspurcado pela intromissão de Smiley e
Personnel: as cartas de Mabel, as exortações de meu antigo tutor
para que eu fizesse "algo um pouco mais divertido" do que o mero
trabalho de pesquisa no Departamento de Guerra.
Fiz essas coisas só com o meu eu exterior, enquanto o resto
se concentrava no curso de ação correto, o moral, o decente.
Ben, meu amigo.
Ben, com os cães em seu encalço.
Ben angustiado e só Deus sabia o que mais.
Stefanie.
Tomei um banho demorado, deitei na cama, observando o
espelho na arca de gavetas, porque o espelho me proporcionava
uma vista da rua. Podia ver dois homens que presumi serem de
Monty, usando macacões e fazendo alguma coisa numa caixa de
ligações da rede elétrica. Smiley dissera que eu não deveria encarar
em termos pessoais. Afinal, eles só queriam pôr Ben em ferros.
São dez horas da mesma longa manhã e estou parado,
determinado, ao lado da janela dos fundos, observando o pátio sujo,
com seu barracão que fora outrora a privada, com o portão de
madeira que se abre para a rua miserável. A rua está vazia. No final
das contas, Monty não é tão perfeito assim.
As ilhas ao largo da Escócia, as Western Isles, dissera Ben.
Uma casa pequena nas Western Isles.
Mas em que ilha? E Stefanie o quê? O único palpite seguro
era de que se ela vinha do lado alemão da família de Ben e vivera
em Munique, e como os parentes de Ben eram aristocratas,
provavelmente devia ter um título.
Liguei para Personnel. Poderia ter falado com Smiley, mas
achei mais seguro mentir para Personnel. Ele reconheceu minha
voz antes mesmo que eu tivesse uma oportunidade de explicar o
que queria.
— Teve alguma notícia? — indagou ele.
— Nenhuma, infelizmente. Queria sair durante uma hora.
Posso fazer isso?
— Para onde?
— Preciso de algumas coisas. Provisões. Algo para ler.
Pensei em dar um pulo à biblioteca.
Personnel era famoso por seus silêncios desaprovadores.
— Esteja de volta às onze horas. Ligue-me assim que chegar.
Satisfeito com meu frio desempenho, saí pela porta da frente,
comprei um jornal e pão. Usando vitrinas de lojas, verifiquei minha
retaguarda. Ninguém me seguia, tinha certeza. Fui à biblioteca
pública e na seção de referências encontrei um velho exemplar de
Who's Who e outro quase se desmanchando to Almanach de Gotha.
Não me detive a especular quem em Battersea, entre todos os
lugares do mundo, poderia ter deixado o Almanach de Gotha
naquele estado. Consultei primeiro o Who's Who e verifiquei o pai
de Ben, que tinha o título de cavalheiro e uma porção de
condecorações: "1936, casou com Gräfin Ilse Arno zu Lothringen
um filho Benjamin Arno" Passei para o Almanach e procurei os Arno
Lothringens. Ocupavam três páginas, mas não demorei a identificar
a prima distante cujo nome era Stefanie. Pedi à bibliotecária o
catálogo telefônico das Western Isles, na Escócia. Ela não tinha,
mas permitiu que eu usasse seu telefone para descobrir o número
que procurava; o que foi uma sorte, pois eu não tinha a menor
dúvida de que meu telefone estava grampeado. Às quinze para
onze já voltara a meu apartamento e falava pelo telefone com
Personnel, no mesmo tom relaxado de antes.
— Aonde você foi? — perguntou ele.
— Ao jornaleiro. E à padaria.
— Não foi à biblioteca?
— Biblioteca? Ah, sim, estive lá.
— E o que trouxe de lá?
— Nada, na verdade. Por algum motivo, estou com
dificuldade para me concentrar em qualquer coisa no momento. O
que devo fazer agora?
— Esperar. O mesmo que estamos fazendo.
— Posso ir para o escritório central?
— Já que tem de esperar, tanto faz aí como aqui.
— Eu poderia voltar a trabalhar com Monty, se quiser.
Provavelmente era minha imaginação exacerbada em ação, mas
tive uma imagem mental de Smiley parado ao seu lado, dizendo-lhe
como devia me responder.
— Apenas espere onde está — disse Personnel,
bruscamente.
E esperei, Deus sabe como. Tentei ler. Tornei-me dramático e
escrevi uma pomposa carta de renúncia a Personnel. Rasguei a
carta e queimei os pedacinhos. Assisti televisão. Ao anoitecer,
estava deitado na cama, observando a mudança da guarda de
Monty pelo espelho e pensando em Stefanie, depois em Ben, de
volta a Stefanie, que agora se alojava com absoluta firmeza em
minha imaginação, sempre além de meu alcance, vestida de branco,
Stefanie a imaculada, a protetora de Ben. Eu era jovem, permitam-
me lembrar, e em questões de mulheres menos experiente do que
teriam suspeitado se me ouvissem falar delas. O Adão em mim
ainda era um menino, não podia ser confundido com o guerreiro.
Esperei até dez horas, depois desci com uma garrafa de
vinho para o Sr. Simpson e sua esposa, sentei com eles enquanto
bebíamos, assistindo televisão. Acabei levando-o para um canto e
disse: — Chris, sei que é um absurdo, mas há uma mulher ciumenta
me vigiando e eu gostaria de sair pelos fundos. Você se importaria
de me deixar passar por sua cozinha? Uma hora depois eu estava
no trem noturno para Glasgow. Seguira ao pé da letra os
procedimentos de contravigilância e tinha certeza de que ninguém
me seguia. Mesmo assim, ao chegar à estação central de Glasgow
tomei a precaução de me demorar algum tempo no café com um
bule de chá, atento a vigilantes em potencial. Como precaução
adicional, aluguei um táxi para ir até Helensburgh, no outro lado do
Clyde, antes de embarcar no ônibus de Campbeltown para West
Loch Tarbert. A barca para as Western Isles fazia o percurso
naquela época três dias por semana, a não ser durante a curta
temporada de verão. Mas minha sorte persistiu: uma barca
esperava e zarpou logo depois que embarquei. No início da tarde
passamos por Jura, atracamos em Port Askaig e logo saímos outra
vez para o mar aberto, sob o céu do norte cada vez mais escuro.
Estávamos reduzidos a esta altura a três passageiros, um casal
idoso e eu. Subi para o convés a fim de me esquivar a suas
perguntas, mas fui abordado pelo imediato, que também se pôs a
me interrogar: Eu estava viajando em férias? Era um médico?
Casado? Mas eu me encontrava em meu elemento. A partir do
instante em que saio para o mar, tudo se torna claro para mim, tudo
é possível. É isso mesmo, pensei, excitado, a contemplar os
enormes penhascos de que nos aproximávamos, sorrindo ao ouvir
os gritos estridentes das gaivotas, é isso mesmo, este é o lugar em
que Ben se esconderia! Este é o lugar em que seus demônios
wagnerianos encontrariam a tranquilidade.
Vocês devem compreender e perdoar minha suscetibilidade
inexperiente naquele tempo a todas as formas de abstração nórdica.
O que perseguia Ben, eu procurava. A ilha mítica — devia ser a de
Ossian! — as nuvens turbilhonantes, o mar agitado, a sacerdotisa
em seu castelo solitário — eu não me cansava dessas coisas. Vivia
em pleno período romântico, e minha alma se perdera para Stefanie
antes mesmo de conhecê-la.
A casa ficava no outro lado da ilha, informaram-me na loja,
era melhor pedir ao jovem Fergus para me levar em seu jipe. O
jovem Fergus, logo descobri, era um homem de setenta anos, nem
menos um dia. Passamos entre um par de portões de ferro quase
caindo. Paguei ao jovem Fergus e toquei a campainha. A porta foi
aberta; uma linda mulher me contemplava.Ela era alta e esguia. Se
tinha de fato a mesma idade que eu — e tinha mesmo — já possuía
uma autoridade que eu levaria outra vida para adquirir. Em vez de
branco, usava um guarda-pó azul-marinho, sujo de tinta. Segurava
uma espátula numa das mãos; enquanto eu falava, levantou-a para
a testa e empurrou para trás uma mecha de cabelos com o dorso do
punho. Baixou-a para o lado do corpo e ficou me escutando ainda
por muito tempo depois que parei de falar, refletindo sobre a
ressonância de minhas palavras dentro de sua cabeça e
comparando-as com o homem ou o menino à sua frente. Mas a
parte mais vigorosa daquele momento também é a mais difícil de
relatar. É que Stefanie estava mais próxima da figura de minha
imaginação do que fazia sentido. Sua palidez, um ar de honestidade
incorruptível, de força interior, junto com uma fragilidade quase
deplorável, correspondiam com tanta exatidão à minha expectativa
que a reconheceria, mesmo que a encontrasse em outro lugar,
como Stefanie.
— Meu nome é Ned — disse eu, dirigindo-me a seus olhos. —
Sou amigo de Ben. E também um colega. Estou sozinho. E ninguém
sabe que vim para cá.
— Por que deveria ter alguma importância quem sabe que
você está aqui e quem não sabe? — Ela falou sem sotaque, mas
com uma cadência germânica, com pequenas hesitações antes das
vogais abertas. — Ele não está se escondendo. Quem o procura,
além de você? Por que ele precisaria se esconder?
— Pelo que sei, ele pode estar metido em algumas encrencas
— murmurei, enquanto a seguia para o interior da casa.
O salão era meio estúdio, meio sala de estar improvisada.
Capas de pó cobriam quase todos os móveis. O resto de uma
refeição continuava na mesa: duas canecas, dois pratos.
— Que tipo de encrenca? — indagou ela.
— Relaciona-se com o seu trabalho em Berlim. Achei que ele
poderia ter lhe falado a respeito.
— Ele não me contou nada. Nunca me falou sobre seu
trabalho. Talvez saiba que não estou interessada.
— Posso perguntar sobre o que ele fala?
Ela pensou a respeito por um momento.
— Não. — E logo acrescentou, como se abrandasse um
pouco: — No momento ele nem fala comigo. Parece ter se tornado
um trapista. Por que não? Às vezes ele me observa pintar, às vezes
pesca, às vezes comemos alguma coisa ou bebemos um pouco de
vinho. E com bastante frequência ele dorme.
— Há quanto tempo ele está aqui?
Ela deu de ombros. — Três dias?
— Ele veio direto de Berlim?
— Chegou aqui na barca. Como não fala, isso é tudo o que
sei.
— Ele desapareceu — expliquei. — Estão à sua procura com
a maior ansiedade. E pensaram que ele poderia me procurar. Não
creio que saibam de sua existência.
Ela me escutava de novo, primeiro as minhas palavras e
depois o meu silêncio. Parecia não sentir qualquer embaraço, como
um animal escutando. É a autoridade em sofrimento, pensei,
lembrando o suicídio de seu amante; ela não pode ser afetada por
pequenas preocupações.
— Fala no plural — comentou ela, com evidente perplexidade.
— Quem são eles? O que há para saber a meu respeito de tão
importante?
— Ben realizava um trabalho secreto.
— Ben?
— Como seu pai. Ele sentia o maior orgulho de seguir as
pegadas do pai.
Ela estava chocada e agitada.
— Por quê? Para quem? Trabalho secreto! Mas que idiota!
— Para o serviço secreto britânico. Estava em Berlim,
servindo no gabinete do adido militar, mas seu verdadeiro trabalho
era o de espionagem.
— Ben? — disse ela, a repulsa e incredulidade estampando-
se em seu rosto. — Ele devia contar todas aquelas mentiras! Ben?
— Receio que sim. Mas era seu dever.
— Que coisa terrível!
O cavalete estava virado para o outro lado do ponto em que
eu me postava. Ela foi para a frente, começou a misturar as tintas.
— Se eu pudesse conversar com ele... — murmurei, mas ela
fingia estar muito absorvida em sua pintura para me ouvir.
Os fundos da casa davam para uma campina, havendo além
uma linha de pinheiros, encurvados pelo vento. Além dos pinheiros
avistava-se um lago, cercado por pequenas colinas malvas. Na
margem do outro lado divisei um pescador, de pé num atracadouro
em ruínas. Ele pescava, mas sem puxar a linha. Não sei por quanto
tempo o observei, mas foi o suficiente para saber que era Ben, e
que ele não tinha o menor interesse em pegar algum peixe. Abri as
portas de vidro e saí para o jardim. Um vento frio ondulava a
superfície do lago. Encaminhei-me para o atracadouro, sem fazer
barulho. Ben usava um casaco de tweed, grande demais para ele.
Calculei que pertencia ao amante morto de Stefanie. E um chapéu,
um chapéu de feltro verde, que dava a impressão de ter sido feito
sob medida para ele, como todos os chapéus que Ben usava. Não
se virou, embora devesse ter percebido meus passos. Postei-me ao
seu lado.
— A única coisa que vai pegar desse jeito, seu asno alemão,
será uma pneumonia — comentei.
Seu rosto estava virado para o outro lado e assim
permaneceu. Continuei parado ao seu lado, olhando para a água,
junto com ele, sentindo o esbarrão de seu ombro, enquanto o
atracadouro a balançar nos reunia. Observei a água engrossar e o
céu se tornar cinzento por trás das montanhas. Observei algumas
vezes a rolha vermelha da linha desaparecer abaixo da superfície
oleosa. Mas se algum peixe mordera, Ben não fez o menor esforço
para dar linha ou recolher. Vi as luzes se acenderem na casa, a
silhueta de Stefanie junto do cavalete, acrescentando uma
pincelada, depois a mão recuando para a testa. O ar tornou-se frio,
a noite cada vez mais escura, mas Ben não se mexeu. Estávamos
em competição um com o outro, como acontecera durante o
treinamento de luta. Eu exigia, Ben recusava. Somente um dos dois
poderia prevalecer. Mesmo que levasse a noite inteira e todo o dia
de amanhã, mesmo que eu passasse fome no processo, não
cederia até que ele reconhecesse a minha presença.
Uma meia lua surgiu, as estrelas. O vento diminuiu e uma
neblina prateada formou-se através da campina escurecida. E
continuávamos parados ali, esperando que um dos dois capitulasse.
Eu quase dormia de pé quando ouvi o barulho do molinete e vi a
rolha se levantar da água, seguida pela linha vazia. Não me mexi e
não falei. Deixei-o recolher toda a linha e prender o anzol. Deixei-o
se virar para mim, porque tinha de fazê-lo se quisesse passar por
mim no atracadouro.Ficamos de frente um para o outro, ao luar. Ben
olhava para baixo, aparentemente estudando meus pés para
descobrir como podia contorná-los. Seu olhar subiu para o meu
rosto, mas nada se alterou em sua expressão. As feições
impassíveis permaneceram impassíveis. Se deixavam transparecer
alguma coisa, era raiva.
— Muito bem — disse ele. — Entra o terceiro assassino.
Desta vez nenhum de nós riu.
Ela deve ter ouvido a nossa aproximação e retirou-se. Ouvi
música tocando em outra parte da casa. Ao chegarmos ao vestíbulo,
Ben encaminhou-se para a escada, mas segurei-o pelo braço.
— Você tem de me contar, Ben. Nunca terá alguém melhor
para contar. Vim até aqui sem pedir autorização. Você tem de me
contar o que aconteceu com a rede.
Havia uma sala de estar comprida além do salão, com as
janelas fechadas e cobertas de pó sobre os sofás. Fazia frio, mas
Ben ainda estava de casaco e eu de sobretudo. Abri as janelas e
deixei o luar entrar. Tinha o pressentimento de que qualquer coisa
mais brilhante o perturbaria. A música não estava muito longe. Tive
a impressão de que era Grieg. Mas não tinha certeza. Ben falou
sem remorso e sem catarse. Confessara o suficiente a si mesmo,
durante todo o dia e noite, eu sabia. Falou no tom apático de alguém
descrevendo um desastre que sabe que ninguém pode
compreender se não participou, enquanto a música continuava
tocando, abaixo de sua voz. Não tinha mais o que fazer consigo
mesmo. O herói fascinante desistira de ser um dos competidores da
vida. Talvez se sentisse um pouco cansado de sua culpa. Falou
tensamente. Acho que queria que eu fosse embora.
— Haggarty é um merda — disse ele. — De primeira classe.
É um ladrão, bebe, um devasso. Sua única justificativa era a rede de
Seidl. O escritório central estava tentando lhe arrancar a rede e
entregar Seidl a novas pessoas. Eu era a primeira nova pessoa.
Haggarty decidiu me punir por tirar sua rede.
Ele descreveu os insultos deliberados, as sucessivas missões
noturnas e os fins de semana, os relatórios hostis enviados ao clube
dos partidários de Haggarty no escritório central.
— A princípio ele não queria me dizer nada sobre a rede. O
escritório central acabou por repreendê-lo e por isso ele me contou
tudo. Todos os quinze anos. Cada detalhe mínimo de suas vidas,
até os agentes que morreram no trabalho. Enviou-me pirâmides de
arquivos, tudo com códigos e referências cruzadas. Leia isso,
lembre-se daquilo. Quem é ela? Quem é ele? Anote este endereço,
este nome, estes nomes de cobertura, estes símbolos.
Procedimentos de fuga. Alternativas. Os códigos de reconhecimento
e procedimentos de segurança para o rádio. E depois ele me
testava. Levava-me para a sala segura, sentava-me no outro lado
da mesa, iniciava um interrogatório. "Você não está à altura. Não
podemos mandá-lo até que saiba de tudo. É melhor não sair no fim
de semana e estudar o material com afinco. Farei outra verificação
na segunda-feira." A rede era sua vida. Queria que eu me sentisse
inadequado. Pois eu me sentia e era mesmo.
Mas o escritório central não cedeu à pressão de Haggarty,
nem o próprio Ben.
— Eu me preparei para um exame prático — comentou ele.
À medida que se aproximava o dia de seu primeiro encontro
com Seidl, Ben organizou um sistema de mnemônicos e acrônimos
que lhe permitiria abranger todos os quinze anos de história da rede.
Sentado dia e noite em sua sala no quartel-general da Estação,
elaborou gráficos e tabelas de comunicações, assim como métodos
para memorizar os pseudônimos, nomes de cobertura, endereços
domiciliares e locais de emprego de seus agentes, subagentes,
mensageiros e colaboradores. Depois, transferia os dados para
cartões-postais simples, escrevendo num lado apenas. No outro, em
uma linha, anotava o tema: "pontos de entrega de mensagens",
"salários", "casas seguras". Todas as noites, antes de voltar para
seu apartamento ou deitar na enfermaria da Estação, realizava um
jogo de memória consigo mesmo, primeiro pondo os cartões na
mesa virados para baixo, depois comparando o que recordava com
os dados no outro lado.
— Não dormia muito, mas isso não tem nada de anormal —
disse ele. — Ao chegar o dia, não dormi nem um minuto. Passei a
noite inteira estudando o material, depois deitei no sofá e fiquei
olhando para o teto. Ao me levantar, não conseguia lembrar coisa
alguma. Uma espécie de paralisia. Fui para a minha sala, sentei à
mesa, pus a cabeça entre as mãos e comecei a me fazer perguntas.
"Se o nome de cobertura Margaret-vírgula dois acha que está sendo
vigiado, com quem ele entra em contato e como, o que o contato faz
então?" A resposta era um branco total.
Ben fez uma pausa, antes de continuar: — Haggarty entrou,
perguntou como eu me sentia, respondi que estava ótimo. Para lhe
fazer justiça, ele me desejou sorte e creio que era sincero. Pensei
que ia me fazer alguma pergunta traiçoeira e tencionava mandá-lo
para o inferno. Mas ele se limitou a dizer: "Komm gut Heim" e deu-
me uma pancadinha no ombro. Pus os cartões no bolso. Não me
pergunte por quê. Estava apavorado com o fracasso. Não é por isso
que fazemos tudo? Estava apavorado com o fracasso e odiava
Haggarty e Haggarty me submetera à tortura. Posso apresentar
cerca de duzentos outros motivos para ter levado os cartões, mas
nenhum deles ajuda muito. Talvez fosse a minha maneira de
cometer suicídio. Eis aí uma ideia que me agrada. Levei-os e
atravessei para o outro lado. Usávamos uma limusine
especialmente adaptada. Eu sentava no banco traseiro, com o duble
escondido sob o assento. Os Vopos não tinham permissão para nos
revistar, é claro. Mesmo assim trocar de lugar com um duble no
instante em que o carro faz uma curva fechada não é nada fácil.
Não há como não tropeçar ao se sair do carro. Seidl providenciara
uma bicicleta para mim. Ele acredita em bicicletas. Os guardas
costumavam lhe emprestar uma quando era prisioneiro na
Inglaterra.
Smiley já me contara a história, mas deixei que Ben a
relatasse de novo.
— Estava com os cartões no bolso do casaco — continuou
Ben. — O bolso interno. Era um daqueles dias muito quentes em
Berlim. Acho que desabotoei o casaco enquanto pedalava. Não sei.
Quando tento me lembrar, às vezes desabotoei e outras não. É isso
o que acontece com a sua memória quando trabalha até a morte.
Cria todas as versões para você. Cheguei cedo ao ponto de
encontro, verifiquei os carros, a rotina de sempre, entrei. E tudo me
voltou nesse momento. Levar os cartões comigo fizera o truque. Eu
não precisava deles. Seidl estava perfeito. Eu estava perfeito.
Fizemos o que tinha de ser feito, transmiti-lhe as instruções, dei
algum dinheiro... tudo igualzinho a Sarratt. Voltei ao local
combinado, larguei a bicicleta, embarquei no carro. Só quando
atravessávamos para Berlim Ocidental é que descobri que não
estava com os cartões. Senti a ausência do peso ou da pressão,
qualquer coisa assim. Fiquei em pânico, mas estou sempre assim.
No fundo, vivo em pânico durante todo o tempo. É assim que eu
sou. Aquele era apenas um pânico maior. Mandei que eles me
deixassem no apartamento, liguei para o telefone de emergência de
Seidl. Ninguém atendeu. Experimentei o alternativo. Ninguém
atendeu. Tentei sua substituta eventual, uma mulher chamada Lotte.
Ninguém atendeu. Peguei um táxi para Tempelhof, fiz uma saída
discreta, vim para cá. E subitamente havia apenas a música de
Stefanie para escutar. Ben concluíra sua história. Não compreendi a
princípio que isso era tudo o que havia. Esperei, fitando-o fixamente,
na expectativa de que ele continuasse. Estivera querendo um
sequestro no mínimo — a brutal polícia secreta da Alemanha
Oriental arrancando-o de seu carro, golpeando-o com toda força,
comprimindo uma máscara de clorofórmio contra seu rosto,
enquanto lhe revistavam os bolsos. Foi só gradativamente que
absorvi a terrível banalidade do que ele me contara: que se podia
perder uma rede com a mesma facilidade com que se perde um
chaveiro, um talão de cheques ou um lenço. Eu ansiava por uma
dignidade maior, mas Ben não tinha nenhuma para me oferecer.
— Onde você sentiu-os pela última vez? — indaguei,
estupidamente.
Era como se eu estivesse falando com uma criança sobre
seus cadernos perdidos, mas Ben não se importou, já que não tinha
mais qualquer orgulho.
— Os cartões? Talvez na bicicleta. Talvez ao saltar do carro.
Talvez ao voltar. A bicicleta tem uma corrente de segurança para
trancar a roda. Tive de me abaixar para tirá-la e para pô-la de volta.
Talvez tenha perdido os cartões nesse momento. É como perder
qualquer coisa. Até se descobrir, nunca se sabe. Depois, é óbvio.
Mas não houve um depois.
— Acha que foi seguido? — Não sei. Simplesmente não sei.
Eu queria perguntar quando ele escrevera a carta de amor
para mim, mas não pude. Além do mais, eu pensava que sabia.
Fora num de seus acessos de bebedeira, quando Haggarty mais o
pressionava e ele mergulhara no desespero. O que realmente
queria que ele me dissesse era que nunca a escrevera. Queria fazer
o relógio voltar e deixar as coisas como estavam uma semana
antes. Mas as perguntas simples haviam morrido com as respostas
simples. Nossa infância acabara para sempre.
Eles deviam ter cercado a casa e, com toda certeza, não
tocaram a campainha. Monty provavelmente estava parado ao lado
quando abri a janela para deixar o luar entrar, porque surgiu na sala,
quando foi necessário, parecendo embaraçado, mas resoluto.
— Fez um bom trabalho, Ned — comentou ele, em tom
consolador. — Foi a biblioteca pública que o denunciou. Sua
simpática bibliotecária ficou encantada com você. Acho que ela teria
vindo conosco, se deixássemos.
Skoderno seguiu-o, e depois Smiley apareceu na outra porta,
com o mesmo ar contrito que costumava exibir em seus atos mais
implacáveis. E compreendi, sem qualquer surpresa maior, que fizera
tudo o que ele queria que eu fizesse. Colocara-me na situação de
Ben e levara-os a meu amigo. Ben também não parecia muito
surpreso. Talvez se sentisse aliviado. Monty e Skoderno foram se
postar nos seus lados, mas Ben permaneceu sentado, o casaco de
tweed a envolvê-lo como uma manta. Skoderno bateu de leve em
seu ombro; depois, Monty e Skoderno inclinaram-se e, como uma
dupla de carregadores de móveis acostumados um ao outro,
puxaram-no gentilmente para que ficasse de pé. Quando declarei a
Ben que não sabia conscientemente que o traíra, ele sacudiu a
cabeça, a dizer que não tinha importância. Smiley ficou de lado para
deixá-los passar. Seu olhar míope fixava-se em mim, inquisitivo.
— Providenciamos uma viagem especial — informou ele.
— Eu não vou.
Virei o rosto e quando tornei a olhar ele já desaparecera. Ouvi
o jipe afastando-se pelo caminho. Segui a música até um estúdio
atulhado de livros e revistas, com o que parecia ser o manuscrito de
um romance espalhado pelo chão. Ela estava sentada de lado numa
poltrona. Pusera um chambre e os cabelos dourados pendiam soltos
pelos ombros. Estava descalça e não levantou os olhos quando
entrei. Falou-me como se tivesse me conhecido por toda a sua vida,
e acho que de certa forma isso era verdade, na medida em que eu
era conhecido de Ben. Desligou a música antes de perguntar: —
Você era amante dele? _ Não. Ele queria que eu fosse. Percebo
isso agora.
Ela sorriu.
— E eu queria que ele fosse meu amante, mas isso também
não era possível, não é? — Parece que não.
— Já teve mulheres, Ned?
— Não.
— E Ben?
— Não sei. Acho que ele tentou. Suponho que não deu Sua
respiração era profunda e as lágrimas escorriam pelas faces e
pescoço. Levantou-se, os olhos fechados, estendeu os braços,
como uma cega, para que eu a abraçasse. Seu corpo comprimiu-se
contra o meu, enquanto enterrava a cabeça em meu ombro,
tremendo e chorando. Enlacei-a, mas ela me afastou e me levou
para o sofá.
— Quem o fez tornar-se um de vocês, Ned?
— Ninguém. Foi sua própria opção. Ele queria imitar o pai.
— Isso é uma opção?
— De certa forma.
— E você também é um voluntário?
— Sou.
— A quem está imitando?
— A ninguém.
Ben não tinha capacidade para esse tipo de vida. Não tem
qualquer atividade em que ele possa vencer pelo charme. Era
persuasivo demais.
— Sei disso.
— E você? Precisa deles para transformarem-no num
homem?
— É uma coisa que tem de ser feita.
— Você virar um homem?
— O trabalho. É como esvaziar latas de lixo ou limpar
hospitais. Alguém tem de fazer. Não podemos fingir que não há
nada ali.
— Acho que podemos. — Ela pegou-me as mãos, seus dedos
rígidos se entrelaçaram com os meus. — Fingimos que uma porção
de coisas não existem. Ou fingimos que outras coisas são mais
importantes. É assim que sobrevivemos. Não venceremos os
mentirosos mentindo para eles. Vai passar a noite aqui?
— Tenho de voltar. Não sou Ben. Sou eu. Amigo dele.
— Quero lhe dizer uma coisa. Posso? É muito perigoso
brincar com a realidade. Não vai se esquecer disso? Não tenho
imagem de nossa despedida, por isso calculo que foi angustiante
demais e minha memória rejeitou-a. Tudo o que sei agora é que
tinha de pegar a barca. Não havia jipe à espera e segui a pé.
Lembro do sal das lágrimas de Stefanie, do cheiro de seus cabelos,
enquanto me afastava apressado pelo vento noturno, nuvens pretas
turbilhonando em torno da lua, o barulho do mar enquanto eu
contornava a enseada rochosa. Lembro do promontório e da
pequena barca iluminada, preparando-se para zarpar. E sei que
durante toda a viagem permaneci na coberta de proa, que Smiley
ficou ao meu lado na etapa final. Ele já devia ter ouvido a história de
Ben a esta altura e foi me oferecer seu conforto silencioso.
— Nunca mais tornei a ver Ben — mantiveram-me longe dele
ao desembarcarmos — mas quando soube que ele fora dispensado
do Serviço escrevi para Stefanie, pedindo que me informasse onde
podia encontrá-lo. A carta foi devolvida com o carimbo de "Ausente".
Gostaria de poder lhes contar que Ben não causou a
destruição da rede, porque Bill Haydon já a traíra muito antes. Ou
melhor, que a rede fora criada para nós pelos alemães orientais ou
russos, antes de mais nada, como um meio de nos manter
ocupados e transmitir desinformação. Mas receio que a verdade
seja outra, pois naquele tempo o acesso de Bill Haydon era limitado
pela compartimentação, e seu trabalho não o levava a Berlim.
Smiley até perguntou a Bill, depois de sua prisão, se ele não tivera
alguma participação no incidente. Bill riu e respondeu: — Há anos
que eu vinha querendo jogar meu anzol naquela rede. Quando
soube o que acontecera, até pensei em mandar um buquê de flores
para o jovem Cavendish, mas achei que não seria seguro.
O máximo que eu poderia dizer a Ben, se o encontrasse hoje,
é que se ele não tivesse explodido a rede naquela ocasião, Haydon
o teria feito uns dois anos depois. O melhor que eu poderia dizer a
Stefanie é que ela estava certa à sua maneira, mas eu também
estava, e que suas palavras nunca saíram de minha memória,
mesmo depois que deixei de considerá-la como a fonte de toda
sabedoria. Se nunca entendi quem ela era — se pertencia, por
assim dizer, mais ao mistério de Ben do que ao meu — ela foi de
qualquer maneira a primeira das vozes de sereia que soaram em
meus ouvidos, advertindo-me de que minha missão era ambígua. Às
vezes eu me pergunto o que fui para ela, mas receio que conheço
muito bem a resposta: um garoto imaturo, outro Ben, pouco versado
na vida, banindo a fraqueza com uma demonstração de força, e
refugiando-se num mundo enclausurado.
Não faz muito tempo voltei a Berlim. Algumas semanas
haviam transcorrido desde que o Muro fora declarado obsoleto. Um
velho negócio me levava até lá e Personnel teve o maior prazer em
pagar minha passagem. Nunca estive formalmente estacionado em
Berlim, mas fora um visitante frequente. Para nós, velhos guerreiros,
frios, uma visita a Berlim é como um retorno à fonte. E numa tarde
úmida descobri-me diante da cerca lúgubre que é pomposamente
conhecida como o Muro dos Desconhecidos, o memorial aos que
foram mortos quando tentavam escapar, durante os anos sessenta,
alguns dos quais não foram bastante previdentes para dar seus
nomes de antemão. Encontrava-me no meio de um grupo humilde
de alemães orientais, mulheres em sua maioria, e notei que
examinavam as inscrições nas cruzes: homem desconhecido, morto
em tal dia, em 1965. Procuravam por pistas, ajustando as datas ao
pouco que sabiam.
E me ocorreu a ideia chocante que podiam até estar
procurando por um dos agentes de Ben que tentara correr para a
liberdade no último instante e fracassara. E a ideia parecia ainda
mais desconcertante quando refleti que não éramos mais nós,
Aliados ocidentais, mas sim a própria Alemanha Oriental, quem
estava se empenhando para extinguir sua existência.
O memorial já desapareceu. Talvez encontre um canto em
algum museu, mas duvido muito. Quando o Muro caiu — retalhado
em pedaços, vendido — o memorial também caiu, o que me parece
um comentário apropriado sobre a fragilidade da constância
humana.
QUATRO
ALGUÉM PEDIU, mais uma vez, que Smiley falasse sobre
interrogatório. Era uma questão que aflorara com frequência durante
a noite — principalmente porque a audiência queria lhe arrancar
mais histórias. As crianças são implacáveis.
— Há alguma arte em descobrir o mentiroso, não se pode
negar — admitiu Smiley, meio em dúvida, tomando um gole de seu
copo. — Mas a verdadeira arte consiste em reconhecer a verdade, o
que é muito mais difícil. Sob interrogatório, ninguém se comporta de
maneira normal. Pessoas que são estúpidas agem com inteligência.
Os inteligentes agem com estupidez. O culpado parece inocente
como o dia, o inocente parece extremamente culpado. E só de vez
em quando as pessoas agem como são e contam a verdade como a
conhecem, e é claro que são os pobres coitados sempre
incriminados. Não há ninguém menos convincente para o nosso
deplorável ofício do que o homem inocente sem nada para
esconder.
— Exceto talvez a mulher inocente — sugeri baixinho. George
lembrara-me de Bela e do ambíguo lobo do mar chamado Brandt.
Era um homem enorme, louro, um tanto rude, à primeira vista
eslavo ou escandinavo, com o andar gingado de um marujo em
terra, os olhos distantes de um aventureiro. Encontrei-o pela
primeira vez em Zurique, onde tivera problemas com a polícia. O
superintendente da polícia da cidade telefonou-me no meio da noite
e disse: — Herr Cônsul, temos alguém que afirma que tem
informações para os britânicos. Recebemos ordens de levá-lo para
o outro lado da fronteira pela manhã.
Não perguntei que fronteira. Os suíços têm quatro, mas não
são muito meticulosos quando estão expulsando alguém do país.
Peguei o carro e fui até a prisão, encontrei-o numa sala de
entrevistas toda gradeada: um gigante engaiolado, com um pulôver
de gola rulê, que se intitulava o Comandante Brandt e parecia ser
sua versão pessoal de Kapitan zur See.
— Está muito longe do mar — comentei, ao apertar sua mão
enorme e roliça.
Para os suíços, ele tinha tudo de errado. Dera o golpe num
hotel, o que na Suíça é um crime tão hediondo que merece até um
parágrafo específico no código penal. Causara um distúrbio público,
não tinha dinheiro e seu passaporte alemão ocidental não resistia a
um exame mais atento — embora os suíços se recusassem a dizer
expressamente, já que um passaporte falso poderia prejudicar as
possibilidades de expulsá-lo para outro país. Fora apanhado
embriagado, sem rumo certo, atribuía toda a culpa a uma mulher.
Fraturara o maxilar de alguém. E insistia em só falar para mim.
— Você, britânico? — perguntou ele, em inglês,
presumivelmente para que os suíços não entendessem nossa
conversa, embora eles falassem inglês melhor do que o prisioneiro.
— Sou, sim.
— Prove, por favor.
Mostrei minha identidade oficial, descrevendo-me como vice-
cônsul para assuntos econômicos.
— Trabalha para o serviço de informações britânico? —
Trabalho para o governo britânico.
— Está bem, está bem...
Num súbito cansaço, ele arriou a cabeça para a mão; os
cabelos louros compridos despencaram para a frente e ele teve de
empurrá-los para trás com um movimento brusco do braço. O rosto
era todo marcado, como o de um pugilista.
— Já esteve alguma vez na prisão? — indagou ele, olhando
para a mesa branca.
— Não, graças a Deus.
— Jesus! — exclamou ele.
E depois, num mau inglês, contou-me sua história.Era letão,
nascido em Riga, de pai letão e mãe polonesa. Falava letão, russo,
polonês e alemão. Nascera para o mar, o que logo percebi, pois eu
também nascera assim. O pai e o avô haviam sido marujos, ele
servira seis anos na marinha soviética, navegando pelo Ártico a
partir de Archangel e pelo Mar do Japão a partir de Vladivostok. Um
ano antes retornara a Riga, comprara uma pequena embarcação e
passara a fazer contrabando pela costa do Báltico, levando vodca
russa ordinária para a Finlândia, com a ajuda de pescadores
escandinavos. Fora apanhado e metido numa prisão perto de
Leningrado, fugira e fora para a Polônia, onde vivera ilegalmente,
com uma jovem estudante polonesa, em Cracóvia. Estou relatando
tudo exatamente como ele me contou, como se escapar da Rússia
para a Polônia fosse tão simples como pegar o ônibus de número 11
ou descer pela rua para tomar um trago. Contudo, mesmo com meu
conhecimento limitado dos obstáculos que ele tivera de superar, eu
sabia que era um feito extraordinário — e ainda mais porque ele o
realizara pela segunda vez. Quando a moça o deixara para casar
com um vendedor suíço, ele voltara à costa, pegara uma carona
como clandestino até Malmoe, fora para Hamburgo, onde tinha um
primo distante, só que o primo era mesmo distante e lhe dissera que
fosse para o inferno. Por isso, ele roubara o passaporte do primo e
seguira para o sul, até a Suíça, determinado a recuperar sua jovem
polonesa. Como o marido não quisesse deixá-la, Brandt quebrara o
maxilar do pobre coitado. Agora estava ali, um prisioneiro da polícia
suíça.
Tudo isso ainda em inglês, por isso indaguei onde o
aprendera. Pela BBC, quando fazia contrabando, ele explicou. E
com a jovem polonesa — ela era uma estudante de línguas. Eu lhe
dera um maço de cigarros e ele devorava um depois de outro,
transformando nossa pequena sala numa câmara de gás.
— E qual é a informação que tem para nós? — perguntei.
Como um letão, disse ele, à guisa de preâmbulo, não sentia
qualquer fidelidade a Moscou. Fora criado sob a nojenta tirania
russa na Letônia, servira sob o comando de nojentos oficiais russos
na marinha, fora mandado para a prisão por nojentos russos e
caçados por nojentos russos, não tinha o menor remorso por traí-
los. Odiava os russos. Perguntei os nomes dos navios em que
servira e ele me disse. Perguntei que armamento carregavam e ele
descreveu alguns dos equipamentos mais sofisticados que os
soviéticos possuíam na ocasião. Dei-lhe um lápis e um papel e ele
fez desenhos surpreendentemente precisos. Perguntei o que sabia
sobre sinais. Ele sabia muita coisa. Fora sinaleiro e usara os mais
modernos brinquedos dos soviéticos, embora suas lembranças
tivessem um ano de defasagem.
— Por que os britânicos? — indaguei.
Ele respondeu que conhecera uma dupla de "caras de vocês
em Leningrado" — marinheiros britânicos numa visita de boa
vontade. Anotei seus nomes e o navio a que pertenciam, voltei a
meu escritório e mandei um telegrama de emergência para Londres,
porque só dispúnhamos de umas poucas horas de prazo para que
ele fosse expulso pela fronteira. Na noite seguinte Brandt estava
sendo submetido a um rigoroso interrogatório numa casa segura em
Surrey. Encontrava-se à beira de uma carreira perigosa. Conhecia
cada recesso e enseada ao longo da costa meridional do Báltico;
tinha bons amigos que eram honestos pescadores letões, outros
que operavam no mercado negro, ladrões e desertores
descontentes. Oferecia exatamente o que Londres procurava,
depois de nossas recentes perdas — a oportunidade de estabelecer
uma nova linha de suprimento para entrar e sair do norte da Rússia,
através da Polônia, entrando pela Alemanha.
Tenho de explicar nesse ponto a história recente — do Circo e
dos meus próprios esforços para ter êxito ali.
Depois de Ben, minha posição tornara-se bastante frágil, eles
podiam me promover ou me dispensar. Creio hoje que devia mais à
intervenção de Smiley nos bastidores do que lhe dei crédito na
ocasião. Se fosse apenas por ele, não creio que Personnel me
mantivesse por mais de cinco minutos. Afinal, eu escapara quando
estava sob prisão domiciliar, escondera o conhecimento da ligação
de Ben com Stefanie, e se não era um alvo propenso das
declarações amorosas de Ben, no mínimo era culpado por
associação — portanto, ao inferno comigo.
— Pensamos que você talvez preferisse um posto no
Conselho Britânico — sugeriu Personnel, com alguma rispidez,
numa reunião que não foi adornada nem mesmo por uma xícara de
chá.Mas Smiley intercedeu por mim. Smiley, ao que parecia, vira
além de minha impulsividade juvenil — e Smiley controlava o que
equivalia a um modesto exército particular de fontes secretas,
espalhadas pela Europa. Um motivo adicional para a minha
salvação foi proporcionado — embora nem mesmo Smiley pudesse
saber disso na ocasião — pelo traidor Bill Haydon, cuja Estação
Londres estava adquirindo rapidamente o monopólio das operações
do Circo no mundo inteiro. E se a atenção inquisitiva de Smiley
ainda não tivesse focalizado Bill, ele já estava convencido de que o
Quinto Andar abrigava em seu seio uma toupeira do Centro Moscou,
e decidira reunir uma equipe de agentes cuja idade e acesso os
situava além de qualquer suspeita. Por um golpe de sorte, fui um
deles.
Durante algum tempo fui mantido no limbo, enfurnado em
enormes salas escuras, avaliando e distribuindo relatórios de pouca
importância para clientes de Whitehall. Desamparado e entediado,
eu já começava a especular se Personnel decidira me deixar ali até
a morte quando, para minha alegria, fui convocado a seu gabinete.
Na presença de Smiley, ele me ofereceu o posto de segundo
homem em Zurique, sob o comando de um competente veterano
chamado Eddows, cujo princípio expresso era o de me deixar
sozinho para afundar ou nadar.
Um mês depois eu me achava instalado num pequeno
apartamento na Altstadt, trabalhando 24 horas por dia, oito dias por
semana. Tinha um adido naval soviético em Genebra que amava
Lênin, mas amava ainda mais uma aeromoça francesa, e um
negociante de armas tcheco em Lausanne que sofria uma crise de
consciência pelo fornecimento de armas e explosivos aos terroristas
do mundo. Tinha também um milionário albanês com um chalé em
St. Moritz que arriscava o pescoço ao voltar à sua pátria e recrutar
pessoas de sua família, e um nervoso físico alemão oriental do
Instituto Max Planck, de Essen, que se convertera secretamente a
Roma. Tinha ainda uma excelente operação de microfones contra a
embaixada polonesa em Berna e uma interceptação telefônica de
dois espiões húngaros em Basileia. E agora começava a me
fantasiar profundamente apaixonado por Mabel, que pouco antes
fora transferida para a Seção de Mensagens e era a grande atração
no bar dos agentes juniores.E a fé de Smiley em mim não foi em
vão, pois através de meus próprios esforços no campo e de sua
insistência na aplicação rígida da regra de só-quem-precisa-saber
em Londres, conseguimos colher valiosas informações e até
transmiti-las para as pessoas certas — e vocês ficariam surpresos
se soubessem como essa combinação só raramente é alcançada.
Assim, dois anos depois, quando surgiu a vaga em Hamburgo
— uma operação de um homem só, subordinada diretamente à
Estação Londres, agora a contragosto de muitos o núcleo
operacional do Serviço — contei com a generosa bênção de Smiley
para me candidatar, independente de suas restrições particulares à
jurisdição cada vez mais ampla de Haydon. Fui insinuante, sem
qualquer precipitação, lembrei a Personnel minha experiência naval.
Deixei-o inferir, embora não o dissesse expressamente, que
procurava me livrar das peias da cautela de Smiley, um resquício do
mundo antigo. E deu certo. Ele me concedeu a Estação Hamburgo,
sob o comando de Haydon. Nessa mesma noite, Mabel e eu
dormimos juntos, a primeira vez para ambos.
Meu senso de integridade das coisas aumentou ainda mais
quando ao examinar minha nova lista de agentes, deparei divertido
com o nome de um certo Wolf Dittrich, também conhecido como
Capitão do Mar Brandt, que tinha um papel de destaque em meu
novo elenco de personagens. Estamos falando agora do final dos
anos sessenta. Bill Haydon tinha mais três anos para agir.
Hamburgo sempre fora um bom lugar para ser inglês, agora
era um lugar ainda melhor para se espionar. Depois da fidalguia à
beira do lago de Genebra, Hamburgo vibrava de energia e faiscava
com o ar marinho. Os antigos vínculos hanseáticos com a Polônia,
norte da Rússia e estados bálticos ainda persistiam, com o maior
vigor. Tínhamos comércio, tínhamos a atividade bancária... mas isso
também existia em Zurique. Mas tínhamos ainda a navegação,
imigrantes e aventureiros. Tínhamos arrogância e vulgaridade em
abundância. Éramos a capital alemã da prostituição e da imprensa.
E ao nosso lado tínhamos as misteriosas planícies de Schleswig-
Holstein, com suas tempestades, fazendas, campos verdejantes e
céus nublados. Cada homem tem seu preço. Até hoje minha alma
pode ser comprada por uma caneca de cerveja Lubeck, um arenque
na salmoura e um copo de schnapps, depois de uma excursão pelos
diques.
Tudo o mais no trabalho era igualmente agradável. Eu era
Ned, o assistente consular para navegação; meu humilde escritório
era um lindo chalé de alvenaria, com uma placa de latão, bastante
próximo do consulado-geral mas prudentemente afastado. Dois
funcionários designados pelo almirante realizavam meu trabalho de
cobertura por mim, e se mantinham de boca fechada. Eu tinha um
rádio e um operador de códigos do Circo. E se Mabel e eu ainda
não ficáramos noivos para casar, nosso relacionamento alcançara
um estágio em que ela sempre se mostrava disposta a abrir a área
para mim, toda vez que eu voltava a Londres para uma reunião com
Bill ou um de seus assistentes.
Para me encontrar com os agentes, eu tinha um apartamento
seguro em Wellingsbuttel, dando para o cemitério, por cima de uma
loja de flores, dirigida por um casal alemão aposentado, que nos
pertencera durante a guerra. Os dias de maior movimento eram os
domingos, e nas manhãs de segunda-feira formava-se uma fila de
crianças do conjunto residencial próximo para lhes vender de volta
as flores que haviam sido vendidas na loja no dia anterior. Jamais
conheci um lugar tão seguro. Carros fúnebres, furgões fechados e
cortejos passavam por nós durante o dia inteiro. Mas à noite o lugar
era tão quieto quanto um cemitério, literalmente. Até mesmo a figura
exótica do meu lobo do mar tornava-se corriqueira quando ele
punha seu terno preto e chapéu também preto, passava pela arcada
da loja e, com a valise de viajante comercial balançando ao lado,
subia as escadas para a porta inocente com a placa de "Buro".
Continuarei a chamá-lo de Brandt. Algumas pessoas, por
mais que mudem de nome, sempre mantêm apenas um.
Mas a joia em minha coroa era a Margeríte — ou, como a
chamávamos em inglês, a Daisy, Era um barco de pesca de
cinquenta pés, de costado trincado" capaz de operar pelos dois
lados, convertido numa lancha de cruzeiro com cabine, uma casa do
leme, um salão principal e quatro beliches no castelo de proa. Tinha
um casco verde-escuro, amuradas de um verde mais claro, o teto da
cabine branco. A embarcação fora construída para ser furtiva, não
para ter velocidade. Com pouca visibilidade e mar encapelado,
tornava-se invisível a olho nu. Tinha mastro de mezena e sua vela
para proporcionar estabilidade. As velas superiores eram mínimas.
Permanecia bem rente à água, o que lhe conferia uma imagem
inofensiva nas telas de radar, em particular com o tempo fechado. O
Báltico é um mar vingativo? relativamente raso e sem marés.
Mesmo com um vento ameno, as ondas surgiam enormes e
ameaçadoras. A dez nós e plena velocidade, Daisy balançava como
um porco. A única coisa veloz que havia nela era o bote Zodiac, de
14 pés, içado como o escaler e preso ao teto da cabine, equipado
com um motor Johnson de 50 hp, para levar e trazer nossos
agentes.
Seu atracadouro era na velha aldeia de pescadores de
Blankenese, no rio Elba, a poucos quilômetros de Hamburgo. E ali
permanecia satisfeita, entre embarcações similares, um exemplar
tão humilde de sua espécie quanto se podia desejar. De
Blankenese, quando havia necessidade, Daisy podia subir o rio até
o Canal de Kiel, percorrendo os seus cem quilômetros a cinco nós,
até alcançar o mar aberto.
Tinha um navegador Decca que podia captar os registros de
estações na praia, mas isso também havia em outras embarcações.
Não tinha nada por dentro ou por fora que não fosse coerente com
sua modéstia. Cada um dos três tripulantes podia fazer de tudo. Não
havia especialistas, embora cada um tivesse a sua paixão particular.
Quando precisávamos de um perito em alguma coisa, a Marinha
Real estava sempre disponível para nos ajudar.
Portanto, como podem ver, com uma equipe nova e dinâmica
para me apoiar no Posto de Londres, com muitos recursos para
testar minha versatilidade, a Daisy e sua tripulação para cuidar, eu
tinha tudo o que um chefe de Posto com água salgada no sangue
podia desejar. E, é claro, eu tinha Brandt.
Os dois anos de Brandt no picadeiro do Circo haviam-no
mudado de maneiras que a princípio tive dificuldade para definir.
Não foi tanto um envelhecimento ou endurecimento que observei
nele, mas sim um estado de alerta meio cansado, aquele excesso
de vigilância que o mundo secreto imprime com o passar do tempo
até mesmo aos seus habitantes mais relaxados. Nós nos
encontramos no apartamento seguro. Ele entrou. Estacou
abruptamente e ficou me olhando, aturdido. A boca abriu e ele
deixou escapar uma exclamação de reconhecimento. Agarrou meus
braços numa saudação de sultão e quase os quebrou. Riu até as
lágrimas escorrerem, tornou a me puxar para um abraço,
comprimindo-me contra o sobretudo preto. Mas sua espontaneidade
era afetada pela vigilância. Eu conhecia os sinais. Já os vira em
outros agentes.
— Mas por que eles não me disseram nada, Herr Cônsul? —
gritou Brandt, enquanto me abraçava mais uma vez. — Qual é o
jogo deles? Estamos fazendo boas coisas por lá, entende? Temos
uma boa gente, estamos sempre batendo naqueles malditos russos,
entende? — Claro que entendo — respondi, rindo. — Já me
contaram.
E quando a noite caiu, ele insistiu em me sentar entre os rolos
de corda na traseira de seu furgão e levar-me a uma velocidade
vertiginosa à remota casa de fazenda que Londres adquirira para
seu uso. Queria me apresentar à sua equipe e eu me sentia ansioso
pelo encontro. E me sentia ainda mais ansioso em conhecer sua
namorada, Bella, porque o Posto de Londres manifestara alguma
apreensão em relação a ela, por sua entrada recente na vida de
Brandt. Bella tinha 22 anos e estava com ele há três meses. Brandt
beirava os cinquenta anos. Era o pleno verão, eu me lembro, e o
interior do furgão rescendia a frésias, pois ele comprara um ramo no
mercado para oferecer a Bella.
— Ela é uma garota de primeira — disse-me ele, orgulhoso,
ao entrarmos na casa. — Cozinha bem, faz amor muito bem,
aprende inglês, tudo. Ei, Bella, eu lhe trouxe um novo namorado!
Pintores e marujos preferem o mesmo tipo de casa, e Brandt não
era exceção. Era pequena e simples, mas acolhedora, com chão de
lajotas e teto baixo, com vigas brancas. Mesmo no escuro, parecia
absorver a claridade exterior. Da porta da frente entramos direto na
sala de estar. Um fogo de lenha ardia na lareira, um lampião de
navio iluminava o flanco nu de uma moça, deitada numa pilha de
almofadas, lendo. Ao nos ouvir, ela se levantou de um pulo,
excitada. Vinte e dois e parecendo dezoito, pensei, enquanto ela
pegava minha mão e a sacudia para cima e para baixo, na maior
alegria. Usava uma camisa de homem e um short muito curto. Um
amuleto de ouro brilhava em sua garganta, proclamando-a como
propriedade de Brandt: esta é minha mulher, usando meu emblema
de posse. O rosto era camponês e eslavo, naturalmente feliz, com
olhos claros e largos, malares salientes e um sorriso permanente,
mesmo quando os lábios se achavam em repouso. As pernas nuas
eram compridas e bronzeadas, da mesma cor dourada dos cabelos.
Tinha cintura fina, seios empinados e quadris amplos. Era um corpo
muito bonito, muito jovem, e independente do que Brandt pensasse
não pertencia a alguém de sua idade, nem da minha.
Ela pôs as flores num vaso, foi buscar pão preto, picles e uma
garrafa de schnapps. Sabia com precisão ou ignorava
absolutamente a força de cada gesto que fazia, por menor que
fosse. Sentou à mesa ao lado de Brandt, sorriu-me e passou o
braço por ele, deixando a camisa entreaberta. Segurou-lhe a mão,
mostrando-me em comparação como a sua era esguia, enquanto
Brandt falava temerariamente sobre a rede, mencionando agentes e
lugares pelos nomes. Durante todo o tempo, Bella avaliava-me com
seus olhos francos.
— Precisamos arrumar outro rádio para Aleks, está me
entendendo, Ned? — disse Brandt. — Eles desmontam, põem
peças novas, baterias, mas aquele rádio é uma porcaria. Um rádio
azarento.
Quando o telefone tocou, ele atendeu, autoritário: — Escute
aqui, estou ocupado, entende?... Deixe o pacote com Stefan, já
falei. Tem recebido notícias de Leonids? A sala foi se enchendo
pouco a pouco. O primeiro a entrar foi um homem arisco, de pernas
tortas, um bigode de pontas caídas. Beijou Bella nos lábios,
extasiado, mas casto, deu um soco de leve no antebraço de Brandt,
serviu-se de comida.
— Este é Kazimirs — explicou Brandt, com um movimento do
polegar. — Ele é um patife e eu o amo, entende? — Claro que
entendo — respondi, jovialmente.
Kazimirs escapara três anos antes pela fronteira finlandesa,
lembrei. Matara dois guardas soviéticos da fronteira no caminho, era
louco por motores — nunca se sentia mais feliz do que nas ocasiões
em que estava mergulhado em óleo até os cotovelos. Era também o
respeitado cozinheiro da embarcação.
Depois de Kazimirs chegaram os irmãos Durba, Antons e
Alfreds, corpulentos e insolentes como galeses, de olhos azuis
como Brandt. Os Durbas haviam jurado para a mãe que nunca
sairiam juntos pelo mar, por isso se revezavam, pois a Daisy era
conduzida melhor por três homens e preferíamos deixar espaço
para carga e passageiros inesperados. Não demorou muito para
que todos falassem ao mesmo tempo, fazendo-me muitas
perguntas, sem esperar pelas respostas, rindo, propondo brindes,
fumando, recordando, conspirando. A última missão fora ruim,
terrível, comentou Kazimirs. Três semanas antes, Daisy fora atingida
por uma tempestade imprevista no Golfo de Dantzig e perdera o
mastro da mezena. Em Ujava, na costa da Letônia, perderam a luz
de sinalização no nevoeiro, acrescentou Antons Durbas. Dispararam
um foguete e que Deus os guardasse, lá estavam na praia todos
aqueles letões malucos, um autêntico comitê de recepção, como
uma delegação das autoridades da cidade! Risos desenfreados,
brindes, depois um profundo silêncio nórdico, enquanto todos,
menos eu, acalentavam a mesma lembrança solene.
— A Valdemars — disse Kazimirs.
Bebemos todos um brinde a Valdemars, um membro do grupo
que morrera cinco anos antes. Bella pegou o copo de Brandt e
bebeu também, uma cerimônia separada, enquanto me observava
por cima da borda.
— A Valdemars — repetiu ela, baixinho.
Sua solenidade era tão cativante quanto o sorriso. Ela
conhecera Valdemars? Teriam sido amantes? Ou simplesmente
bebia a um bravo compatriota que morrera pela Causa? Mas preciso
lhes contar um pouco mais a respeito de Valdemars — não se ele
deitara com Bella ou mesmo como morrera, pois ninguém sabia com
certeza. Tudo o que se sabia era que ele desembarcara e nunca
mais se tivera notícias suas. Uma história dizia que ele conseguira
engolir sua pílula, outra que dera ordens a seu guarda-costas para
fuzilá-lo se caísse numa armadilha. Só que o guarda-costas também
desaparecera. E Valdemars não fora o único que sumira durante o
período que o grupo recordava agora como "o outono da traição".
Nos meses subsequentes, à medida que se sucediam os
aniversários de suas mortes, bebemos a quatro outros heróis letões,
que pereceram de forma inexplicável no mesmo período malfadado
— encaminhados, como se acreditava agora, não a guerrilheiros na
floresta, nem a comitês de recepção leais na praia, mas diretamente
às mãos do chefe de operações na Letônia do Centro Moscou. E se
novas redes haviam sido cautelosamente reconstituídas desde
então, cinco anos depois o estigma dessas traições ainda aderia
aos sobreviventes, como Haydon se empenhara em me advertir.
— Eles formam um bando de sujeitos descuidados —
comentara ele, com sua irreverência habitual. — E quando não
estão sendo descuidados, eles são dúplices. Não se deixe enganar
por toda a fleuma e cordialidade nórdica.
Eu relembrava suas palavras enquanto prosseguia no
reconhecimento mental de Bella. Às vezes ela escutava com a
cabeça apoiada em seu punho cerrado, as vezes repousava-a no
antebraço de Brandt, sonhando por ele, enquanto o enorme letão
bebia e conspirava. Mas os olhos grandes e brilhantes de Bella
nunca deixavam de me visitar, avaliando-me, esse inglês enviado
para governar nossas vidas. E de vez em quando, como uma gata
lânguida, ela se desvencilhava de Brandt e levava algum tempo a se
arrumar, recruzando as pernas, ajeitando o short meticulosamente,
entrelaçando um punhado de cabelos numa trança, pegando o
medalhão entre os seios e examinando-o, frente e verso. Esperei
por uma centelha de cumplicidade entre Bella e outros membros do
grupo, mas logo ficou patente que a garota de Brandt era território
sagrado. Até mesmo o exuberante Kazimirs se controlava ao falar
com ela. Bella foi buscar outra garrafa. Ao voltar, sentou ao meu
lado, pegou-me a mão e abriu a palma sobre a mesma,
examinando-a enquanto falava a Brandt em letão, Ele desatou num
acesso de riso, que os outros acompanharam.
— Sabe o que ela diz? — Infelizmente, não.
— Diz que o inglês dá um tremendo de um bom marido. Se
eu morrer, ela vai preferir você.
Bella virou-se para ele e, rindo, aninhou-se em seu abraço.
Não olhou para mim depois disso. Era como se não precisasse. Por
isso, evitei seus olhos também, pensei consciencioso em sua
história, conforme fora relatada por Brandt à Estação Londres.
Ela era filha de um lavrador de uma aldeia perto de Jelgava,
que fora fuzilado quando a polícia de segurança atacara uma
reunião secreta de patriotas letões, informara Brandt. O lavrador era
um dos fundadores do grupo. A polícia queria fuzilar a moça, mas
ela escapara para a floresta e se juntara a um bando de
guerrilheiros e proscritos, que a usaram e abusaram durante um
verão, o que parecia não tê-la perturbado. Por estágios, ela
alcançara a costa. Através de uma rota que ainda era misteriosa
para nós, entrara em contato com Brandt, que a recolhera na praia,
sem se dar ao trabalho de avisar Londres de antemão, no momento
em que desembarcava um novo operador de rádio para substituir o
anterior, que sofrera um colapso nervoso. Os operadores de rádio
são as prima-donas de cada rede. Se não sofrem colapsos, acabam
contraindo herpes.
— Uns sujeitos sensacionais — comentou Brandt, com o
maior entusiasmo, enquanto me levava de volta à cidade no furgão.
— Gosta deles? — São mesmo ótimos.
Eu falava sério, pois não havia em parte alguma companhia
melhor do que homens que amam o mar.
— Bella quer trabalhar com a gente. Quer matar os sujeitos
que fuzilaram seu pai. Eu digo que não. Ela é muito jovem. E eu a
amo.
Uma lua branca brilhante iluminava as campinas. À sua luz,
contemplei o rosto rude de perfil, parecendo preparado para a
tempestade iminente.
— E você o conhecia. — sugeri, fingindo recapitular algo de
que me lembrava vagamente. — O pai dela. Feliks. Ele era seu
amigo.
— Claro que eu conhecia Feliks! Eu o amava! Era um grande
sujeito! E os desgraçados o fuzilaram!
— Ele morreu imediatamente?
— Foi retalhado. Kalashnikovs. Fuzilaram todo mundo. Sete
sujeitos. Todos fuzilados.
— Alguém viu acontecer?
— Um homem. Ele viu e fugiu.
— O que aconteceu com os corpos?
— A polícia secreta levou. Eles são apavorados, esses
sujeitos da polícia. Não querem problemas com o povo. Fuzilam os
guerrilheiros, jogam os corpos num caminhão, partem a toda pressa.
— Conhecia-o muito bem... o pai dela?
Brandt fez um gesto amplo com o antebraço.
— Feliks? Ele era meu amigo. Lutamos em Leningrado.
Prisioneiro de guerra na Alemanha. Stalin não gostava desses
sujeitos. Quando voltavam da Alemanha, ele os mandava para a
Sibéria, fuzilava, atormentava. O que mais quer saber? Mas a
Estação Londres captara uma história diferente, embora àquela
altura fosse apenas um rumor. Q pai fora o informante, dizia o
rumor. Recrutado no cativeiro siberiano e enviado de volta à Letônia
para se infiltrar nos grupos. Ele convocara a reunião, avisara seus
superiores, escapara por uma janela dos fundos, enquanto os
patriotas eram massacrados. Como recompensa, era agora o
administrador de uma fazenda coletiva nas proximidades de Kiev,
vivendo com outro nome. Alguém o reconhecera e contara a mais
alguém que contara a mais alguém. A fonte era incerta, a
confirmação seria um longo processo.
Por isso eu fora alertado. Tome cuidado com Bella.
Eu estava mais do que alertado. Sentia-me perturbado. Nas
semanas subsequentes encontrei-me com Bella várias vezes e em
cada ocasião era obrigado a registrar minhas impressões no
relatório que a Estação Londres exigia agora que fosse preenchido
sempre que a visse. Marquei um encontro com Brandt no
apartamento seguro, e para meu alarme ele apareceu com Bella.
Ela passara o dia na cidade, explicou Brandt. Estavam voltando
para a fazenda, por que não? — Relaxe, pois ela não fala inglês —
lembrou-me ele, com uma risada, ao perceber meu
constrangimento.
Por isso resumi a reunião ao mínimo possível, enquanto Bella
se refestelava no sofá e nos escutava com os olhos, mas acima de
tudo escutava a mim.
— Minha garota está estudando — anunciou Brandt,
orgulhoso, acariciando a bunda de Bella, ao nos despedirmos. —
Um dia ela será uma grande professora. Nicht wahr, Bella? Du wirst
ein ganz grosser Professor, du! Uma semana depois, quando fui dar
uma olhada discreta em Daisy, em seu ancoradouro em
Blankenese, lá estava Bella outra vez, de short, andando descalça
pelo convés, como se planejasse um cruzeiro mediterrâneo.
— Pelo amor de Deus! — eu disse a Brandt naquela noite. —
Não podemos ter mulheres a bordo. Londres ficará furiosa. E a
tripulação também. Sabe como os homens são supersticiosos em
relação à presença de mulheres no barco. Você também é assim.
Ele repeliu minhas apreensões. Meu antecessor não
levantava qualquer objeção. Por que eu deveria fazê-lo? — Bella
deixa os rapazes felizes — insistiu Brandt. — Ela é da terra, Ned,
uma criança. Representa a família para eles.
Verifiquei nos arquivos e descobri que ele estava
parcialmente certo. Meu antecessor, um oficial da marinha,
informara que Bella estava "agregada" a Daisy, até acrescentara
que ela parecia exercer "uma influência benigna, como mascote do
barco". E quando li as entrelinhas de seu relatório sobre a última
missão operacional de Daisy, compreendi que Bella estivera no cais
para acenar em despedida... e também, com toda certeza, para
acenar-lhes ao voltarem sãos e salvos.
A segurança operacional, sem dúvida, é sempre relativa. Eu
nunca imaginara que tudo na organização de Brandt obedecesse às
regras de Sarratt. Sabia que na atmosfera enclausurada do
escritório central era muito fácil confundir nossas estruturas
tortuosas de codinomes, símbolos e contatos com a vida em
campanha. Cambridge Circus era uma coisa. Um bando de
estouvados patriotas bálticos arriscando suas vidas era outra.
Mesmo assim, a presença de uma mulher não investigada e
não recrutada no meio de nossa operação, a par de nossos planos e
conversas, ia além de qualquer coisa que eu pudesse conceber — e
tudo isso na esteira das traições cinco anos antes. E quanto mais eu
me preocupava, mais intensa se tornava, ao que me parecia, a
devoção de Brandt à garota. Suas manifestações de afeto eram
cada vez mais pródigas em minha presença, suas carícias mais
ostensivas. "Uma típica paixão de um homem mais velho por uma
jovem", comuniquei a Londres, como se já tivesse testemunhado
dezenas de casos assim.Enquanto isso, uma nova missão era
planejada para Daisy, cujo objetivo nos seria revelado mais tarde.
Duas ou três vezes por semana eu precisava ir de carro à fazenda,
chegava depois do anoitecer, sentava à mesa por horas a fio,
ficávamos estudando cartas náuticas, mapas meteorológicos e os
últimos boletins de observação de terra. Às vezes todos
compareciam, às vezes éramos só nós três. Para Brandt, não fazia
a menor diferença. Ele sempre agarrava Bella, como se os dois
estivessem dominados por um êxtase constante, acariciava seus
cabelos e pescoço, e uma vez chegara ao ponto de distração de
enfiar a mão por dentro de sua camisa, pegando-lhe o seio,
enquanto lhe dava um beijo prolongado. Contudo, enquanto eu
discretamente desviava os olhos dessas cenas desconcertantes, o
que permanecia por mais tempo em minha visão era o olhar de
Bella fixado em mim, como se me dissesse que desejava que fosse
eu e não Brandt quem a estivesse acariciando.
"Abraços explícitos parecem ser a norma", escrevi
laconicamente no relatório de encontro, Hamburgo para Estação
Londres, tarde daquela noite, em meu escritório. E registrei no diário
noturno: "Percurso, tempo e condições do mar aceitáveis.
Aguardamos ordens expressas do escritório central. Moral da
tripulação alta." Minha própria moral, no entanto, lutava pela
sobrevivência, enquanto uma calamidade se sucedia a outra.
Houve primeiro o problema lamentável de meu antecessor,
Capitão de Corveta Perry de Mornay Lipton, um oficial condecorado,
agora reformado, antigo herói dos irregulares de Jack Arthur Lumley
durante a guerra. Ao longo de dez anos, até minha chegada, Lipton
cultivara o papel de personagem de Hamburgo, representando de
dia o tolo rematado inglês, com um monóculo, circulando pelos
clubes de expatriados, ostensivamente para obter conselhos
gratuitos sobre seus investimentos. Mas ao cair da noite ele punha
seu chapéu secreto e saía para instruir e recolher informações de
seu formidável exército de agentes secretos. Ou assim dizia a lenda,
como eu a ouvira do escritório central.
A única coisa que me deixava aturdido era o fato de não ter
havido uma transmissão formal do cargo entre nós, mas Personnel
me dissera laconicamente que Lipton se encontrava numa missão
em outro lugar. Agora, porém, fui admitido na verdade. Lipton
partira, não em alguma aventura de vida ou morte na sinistra
Rússia, mas sim para a meridional Espanha, onde montara casa
junto com um cabo da cavalaria chamado Kenneth, e duzentas mil
libras de fundos do Circo, a maior parte em barras de ouro e francos
suíços, o dinheiro com que supostamente pagara, por vários anos,
bravos agentes que não existiam.
A desconfiança gerada por essa triste descoberta agora se
derramava por todas as operações em que Lipton estivera
envolvido, inclusive a de Brandt, como era inevitável. Brandt seria
também uma ficção de Lipton, vivendo muito bem à custa de nossos
fundos secretos, em troca de informações engenhosamente
fabricadas? Existiam mesmo suas redes, seus alardeados
colaboradores e amigos, muitos dos quais estavam recebendo
salários generosos? E Bella... Bella seria parte do embuste? Bella
amolecera a cabeça e enfraquecera a vontade de Brandt? Será que
ele também fazia seu pé-de-meia, antes de se retirar para o sul,
levando sua amada para a Espanha? Uma procissão de peritos do
Circo passou pelas portas de meu pequeno escritório de navegação.
Primeiro surgiu um homem inverossímil, que atendia pelo nome de
Capitão Plum. Na privacidade de minha sala segura, Plum e eu
examinamos os velhos registros de consumo de combustível e
quilometragem de Daisy, comparando-os com as rotas perigosas
que Brandt e a tripulação alegavam ter seguido em suas missões ao
longo do Báltico. Os diários de bordo eram sumários e incompletos,
na melhor das hipóteses, como acontece com a maioria, mas nós
lemos todos, juntamente com os registros de Plum sobre
interceptações de mensagens, estações de radar, boias de
navegação e presença de lanchas soviéticas de patrulha.
Plum voltou uma semana depois, desta vez acompanhado por
um mancuniano de boca suja chamado Rose, um antigo policial
malaio que conquistara uma certa reputação como o cão farejador
do Circo. Rose interrogou-me rudemente, como se eu próprio fosse
cúmplice do embuste. Mas quando eu já me sentia prestes a perder
a calma, ele me desarmou com a declaração de que, com base nas
provas disponíveis, a organização de Brandt era inocente de
qualquer iniquidade.Nas mentes de pessoas assim, no entanto, as
suspeitas de um tipo só serviam para despertar suspeitas de outro,
e o ponto de interrogação pairando sobre o pai de Bella, Feliks, não
desaparecera. Se o pai era ruim, então a filha devia saber, esse era
o raciocínio. E se ela sabia e não o dissera, então ela era ruim
também. O Centro Moscou, como o Circo, era notório por recrutar
famílias inteiras. Uma equipe de pai e filha era bastante plausível.
Muito em breve, sem qualquer prova concreta de que eu tivesse
conhecimento, a Estação Londres começou a apregoar a noção de
que Feliks fora o responsável pelas traições cinco anos antes.
Inevitavelmente, isso deixava Bella sob uma luz ainda mais
sinistra. Falava-se em ordenar que ela fosse para Londres e
submetê-la a um interrogatório, mas aqui minha autoridade como
controlador de Brandt prevaleceu. Impossível, avisei à Estação
Londres, Brandt nunca aceitaria. Muito bem, veio a resposta —
típica do tratamento cavalheiresco de Haydon — traga os dois e
Brandt poderá assistir enquanto interrogamos a moça. Desta vez me
senti bastante espicaçado para voar até Londres, onde insisti em
apresentar meus argumentos pessoalmente a Bill. Entrei em sua
sala para encontrá-lo esticado numa espreguiçadeira, pois ele
ostentava a excentricidade de jamais sentar à sua escrivaninha. Um
bastão de incenso queimava num velho pote de gengibre.
— Talvez Irmão Brandt não seja tão melindroso quanto você
imagina, Mestre Ned — disse ele, acusador, espiando-me por cima
dos óculos de meia armação. — Não seria você o melindroso?
— Ele está apaixonado pela moça.
— E você também?
— Se começarmos a acusar a moça na sua presença, ele
ficará furioso. Vive para ela. Poderia nos mandar para o inferno e
desmontar a rede, e duvido muito que qualquer outra pessoa possa
dirigi-la.
Haydon ponderou o seguinte: — O Garibaldi do Báltico. Mas
Garibaldi não é tão bom assim, não concorda? Ele esperou por uma
resposta, mas preferi encarar a pergunta como retórica. Depois de
algum tempo, ele acrescentou: — Os tais homens com quem ela
viveu na floresta... ela costuma falar sobre eles? — Ela não fala
sobre nada disso. Brandt é que fala, ela não.
— E sobre o que ela fala?
— Quase nada. Se diz alguma coisa importante, geralmente é
em letão e Brandt traduz ou não, como acha mais conveniente.
Afora isso, ela apenas sorri e olha.
— Para você?
— Para ele.
— E imagino que ela é uma beleza.
— É bastante atraente.
Mais uma vez, ele demorou algum tempo a considerar isso,
antes de concluir: — Parece-me que ela é a mulher ideal. Sorri e
olha, fica quieta, trepa... o que mais se pode pedir? — Bill tornou a
me fitar ironicamente, por cima dos óculos. — Está querendo me
dizer que ela nem sequer fala alemão! Deve falar, vindo lá de cima.
Não seja tolo.
— Ela fala alemão com relutância, quando não tem
alternativa. Falar letão é um ato patriótico. O alemão, não.
— Bons peitos?
— Não são dos piores.
— Você não poderia se aproximar dela um pouco mais? Sem
balançar o barco dos namorados, é claro. Apenas as respostas para
umas poucas perguntas básicas já ajudaria. Nada de dramático.
Apenas se ela é genuína, ou se Irmão Brandt a contrabandeou para
o ninho no escuro... ou se o Centro Moscou a infiltrou, é claro. Veja
o que consegue arrancar dela. Ele não é o pai natural da garota,
imagino que você já chegou a essa conclusão. Não pode ser.
— Quem não é o pai? Por um momento de confusão, eu
pensara que ele ainda se referia a Brandt.
— O suposto papai, Feliks. O que foi fuzilado ou não. O
fazendeiro. Segundo os registros, ela nasceu em janeiro de 1945,
não é? — Isso mesmo.
— Portanto, foi concebida em torno de abril de 1944. Nessa
ocasião... a se acreditar em Irmão Brandt... o suposto papai
definhava num campo de prisioneiros de guerra na Alemanha. Mas
não devemos ser muito moralistas em relação a isso, é claro. Não
tem nada demais, eu suponho, dar uma trepada enquanto seu
homem está preso. Ainda assim, qualquer coisa ajuda, por menor
que seja, quando estamos tentando decidir se devemos abortar uma
rede que já esgotou seu curso. Eu me senti grato pela companhia
de Mabel naquela noite, embora ainda não tivéssemos encontrado a
forma como os grandes amantes que ansiávamos nos tornar. Claro
que não lhe contei coisa alguma sobre o meu trabalho, muito menos
sobre Bella. Mabel vivia no lado rotineiro do Circo. Seria
inconveniente partilhar meus problemas com ela. Se já fôssemos
casados... ora, nesse caso seria muito diferente. Enquanto isso,
Bella devia permanecer meu segredo.
E permaneceu. De volta à minha cama solitária em
Hamburgo, eu pensava em Bella quase que exclusivamente. Seu
duplo mistério — como mulher e como uma traidora em potencial —
elevava-a a um objeto de perigo quase ilimitado para mim. Eu não a
considerava mais como uma figura marginal de nossa organização,
mas como o seu próprio destino. Sua virtude era a nossa. Se Bella
era pura, então a rede também era. Mas se ela era o joguete de
outro serviço — uma embusteira infiltrada entre nós para tentar e
enfraquecer, culminando com a traição — então a integridade dos
que a cercavam se encontrava maculada, a rede teria de fato, como
Haydon expressara, esgotado seu curso.
Eu fechava os olhos e a via a me contemplar, radiante e
cativante. Sentia a suavidade de seus beijos a cada vez que nos
cumprimentávamos — sempre, ao que me parecia, mantidos por
uma fração de segundo a mais do que a formalidade exigia.
Imaginava seu corpo flexível em diferentes poses, revirava-o por
todos os meios em minha mente, da mesma maneira como
contemplava as possibilidades de sua traição. Lembrava a sugestão
de Haydon de que deveria tentar me aproximar dela, e descobri que
era incapaz de separar o senso do dever de meus desejos.
Recontei a mim mesmo a história de sua fuga, questionando-
a em cada estágio. Ela escapara antes do fuzilamento ou durante?
E como? Algum namorado entre as tropas de segurança a avisara?
Houvera mesmo um tiroteio? E por que ela não lamentava mais pelo
pai morto, em vez de fazer amor com Brandt? Até sua felicidade
parecia depor contra ela. Imaginei-a na floresta, com os assassinos
e proscritos. Cada homem a possuía quando queria, ou ora ela vivia
com um, ora com outro? Sonhava com ela, nua na floresta, eu
também nu ao seu lado. Acordava envergonhado e telefonava para
Mabel logo no início da manhã.
Eu podia me compreender? Duvido muito. Pouco sabia sobre
as mulheres, menos ainda sobre as belas mulheres. Tenho certeza
de que nunca me ocorreu que descobrir uma culpa em Bella poderia
ser minha maneira de enfraquecer a atração sexual que ela exercia
sobre mim. Determinado a permanecer num caminho íntegro, eu
escrevia para Mabel todos os dias. Enquanto isso, concentrava-me
na missão iminente de Daisy como a oportunidade perfeita para
efetuar um interrogatório hostil de Bella. O tempo estava piorando, o
que mais convinha a Daisy. Era outono e as noites se tornavam
cada vez mais longas. Daisy também gostava da escuridão.
"A tripulação deve estar pronta para partir na segunda-feira",
dizia o primeiro comunicado da Estação Londres. O segundo, que
só chegou na noite de sexta-feira, informava o destino, a Baía de
Narva, no norte da Estônia, cerca de 150 quilômetros a oeste de
Leningrado. Nunca antes Daisy se aventurara tão longe pelo litoral
russo; só raramente fora usada em apoio de patriotas não letões.
— Eu daria meus olhos para participar da missão — comentei
para Brandt.
— Você é perigoso demais, Ned — respondeu ele, apertando-
me o ombro. — Ficaria enjoado por quatro dias, estendido em seu
beliche, atrapalhando todo mundo.
Ambos sabíamos que era impossível. O máximo que o
escritório central já me concedera antes fora um giro noturno em
volta da ilha de Bornholm, e mesmo assim depois de muita
insistência.
Na noite de sábado nos reunimos na fazenda. Kazimirs e
Antons Durba chegaram juntos no furgão. Era a vez de Antons ir
para o mar. Com uma equipe operacional tão pequena, todos tinham
que saber de tudo, todos tinham que ser permutáveis. Não havia
mais bebida. Dali por diante, seria uma viagem a seco. Kazimirs
trouxera lagostas. Cozinhou-as com requinte, fazendo um molho
pelo qual era famoso, enquanto Bella bancava a ajudante, pegando
as coisas, carregando, sendo um elemento decorativo. Depois que
comemos, Bella tirou a mesa e eu espalhei as cartas sob o lampião
pendurado por cima.
Brandt calculara seis dias. Era uma previsão otimista. Do
Kieler Fiord, Daisy sairia para mar aberto, passando por Bornholm,
no lado sueco. Ao alcançar a ilha sueca de Gotland, pararia em
Sundre, na extremidade meridional, onde se reabasteceria e pegaria
mais provisões. Durante o reabastecimento, dois homens se
aproximariam c um deles perguntaria se tinham algum arenque.
Deveriam responder: "Só em latas. Há anos que não temos
arenques nestas águas." Todos esses diálogos pareciam tolos a
sangue-frio e aquele provocou acessos de riso nervoso em Antons e
Kazimirs. Voltando da cozinha, Bella riu também.
Um dos homens pediria em seguida para subir a bordo,
continuei a explicar. Era um perito — eu não disse em sabotagem,
porque a equipe tinha sentimentos conflitantes sobre a questão. Seu
nome para a viagem seria Volodia. Estaria carregando uma valise
de couro e teria no bolso do casaco um botão marrom e outro
branco, como prova de sua boa-fé. Se não soubesse seu nome, não
estivesse com uma valise, nem exibisse os botões, a equipe deveria
levá-lo de volta à praia vivo, mas retornar imediatamente a Kiel.
Havia um sinal de rádio combinado para essa eventualidade. Afora
isso, eles não deveriam transmitir qualquer sinal. Um momento de
silêncio nos envolveu, e pude ouvir o ruído dos pés descalços de
Bella no chão, enquanto ia buscar mais lenha.
De Gotland, deveriam seguir para nordeste, através de águas
internacionais, expliquei, num curso central para o Golfo da
Finlândia, até se encontrarem ao largo da ilha de Hogland, onde
deveriam permanecer até o crepúsculo, partindo em seguida para o
sul, até a Baía de Narva, aproximando-se de terra por volta de meia-
noite.
Eu trouxera mapas em grande escala da baía e fotografias do
litoral arenoso. Espalhei-os sobre a mesa e os homens se
agruparam para examiná-los. Foi nesse instante que algo me fez
levantar a cabeça e avistei Bella, enroscada em seu canto da sala,
os olhos excitados fixados em mim, à luz do fogo.
Indiquei a ponta na praia para onde o bote Zodiac devia ir, o
local no promontório para o qual precisavam se manter atentos, à
espera de sinais. O grupo de desembarque estaria usando óculos
ultravioleta, expliquei; o comitê de recepção estoniano empregaria
uma luz ultravioleta. Nada seria visível a olho nu. Depois que o
passageiro e sua valise desembarcassem, o bote não deveria
esperar mais que dois minutos por qualquer possível substituto,
voltando em seguida a Daisy a toda velocidade. O bote seria
guarnecido por um único homem, a fim de poder transportar, se
necessário, um segundo homem na viagem de volta, Recitei os
sinais de reconhecimento a serem trocados com o comitê de
recepção, e desta vez ninguém riu. Forneci os detalhes sobre a
praia do desembarque. Não haveria lua. Esperava-se mau tempo,
mas isso nos era favorável. Bella trouxe chá, roçando
descuidadamente em nós, ao distribuir as canecas, Era como se
pusesse sua sexualidade a serviço de nossa causa. Inclinando-se
para Brandt, ainda debruçado sobre a carta da praia, ela acariciou
com um ar solene suas costas largas, com as duas mãos, como se
lhe transmitisse sua força juvenil.
Voltei a meu apartamento às cinco horas da manhã, sem
pensar em dormir, De tarde segui com Brandt e Bella no furgão para
Blankenese. Antons e Kazimirs haviam passado o dia inteiro no
barco. Estavam vestidos para a viagem, usando chapéus de mar e
calças de lona. Coletes salva-vidas laranjas arejavam no convés.
Apertei a mão de cada um, distribuí as cápsulas à prova d'água que
continham as pílulas letais de cianureto puro. Uma chuvinha
cinzenta caía, o cais se encontrava deserto. Brandt encaminhou-se
para a prancha; quando Bella o seguiu, ele tratou de detê-la e disse:
— Pare por aí. Você fica com Ned.
Ela usava o seu velho casaco de baeta, um gorro de lã com
proteção para as orelhas, que eu desconfiava serem as mesmas
roupas que tinha quando Brandt a recolhera. Ele beijou-a e ela
abraçou-o, até que Brandt desvencilhou-se e embarcou, deixando-a
ao meu lado. Antons entrou na casa de máquinas, ouvimos o motor
tossir e pegar, Brandt e Kazimirs soltaram os cabos. Ninguém
olhava para nós, Daisy afastou-se do cais e seguiu calmamente
para o meio do rio. Os três homens permaneceram de costas para
nós. Ouvimos a buzina do barco, ficamos observando até que
desapareceu por trás da cortina de neblina cinzenta.
Como crianças abandonadas, Bella e eu subimos a rampa de
mãos dadas, até o furgão estacionado de Brandt. Nenhum dos dois
falou, Nenhum dos dois tinha qualquer coisa a dizer. Olhei para trás,
à procura de uma última visão de Daisy, mas a neblina já tragara o
barco. Olhei para Bella e descobri que seus olhos se mostravam
excepcionalmente brilhantes, que sua respiração era acelerada.
— Não haverá problemas — assegurei-lhe, soltando sua mão
e abrindo a porta do furgão. — Eles são muito experientes. E ele é
um grande homem.
Mesmo em alemão, parecia um tanto tolo.
Ela sentou no furgão ao meu lado e tornou a pegar-me a mão.
Seus dedos eram como vidas independentes dentro de minha
palma. Aproxime-se dela, insistira Haydon. Em minha última
mensagem, eu garantira que tentaria.
A princípio seguimos num silêncio cordial, unidos e separados
pela experiência partilhada. Eu guiava com todo cuidado, porque me
sentia tenso, mas minha mão ainda segurava a de Bella, para lhe
proporcionar conforto; e quando era obrigado a segurar o volante
com as duas mãos, percebia que sua mão permanecia ao meu lado,
os dedos levantados, à espera que a minha voltasse. E,
subitamente, fiquei bastante preocupado, sem saber para onde
deveria levá-la. O que era um absurdo. Pensei num elegante
restaurante num porão, com reservados ladrilhados, para onde
costumava levar meus agentes nos círculos financeiros. Os garçons
idosos lhe ofereceriam o tipo de segurança de que ela precisava.
Mas depois me lembrei que ela usava o casaco de baeta de Brandt,
jeans e botas de borracha. Estava ficando tarde. Através da neblina,
as luzes acendiam-se nas casas.
— Está com fome? — perguntei.
Ela recolheu a mão para o próprio colo.
— Quer que eu procure algum lugar para comermos? Ela deu
de ombros. — Devo levá-la à fazenda?
— Para quê?
— Como vai passar os próximos dias? O que fez na última
vez em que ele se ausentou?
— Descansei dele — respondeu Bella, com uma risada que
eu não esperava.
— Então me diga como gostaria de esperar por ele — sugeri,
magnânimo, com uma insinuação de superioridade. — Prefere ficar
sozinha? Encontrar-se com outros exilados e conversar? O que é
melhor?
— Não é importante — murmurou ela, afastando-se de mim.
— Mas diga assim mesmo. Ajude-me.
— Irei ao cinema. Darei uma olhada nas lojas. Lerei revistas.
Escutarei música. Tentarei estudar. E ficarei entediada.
Acabei me decidindo pelo apartamento seguro. Haveria
comida na geladeira, expliquei a mim mesmo. Ofereça um jantar, um
drinque, faça com que ela fale. E depois leve-a pessoalmente à
fazenda ou a despache de táxi.
Entramos na cidade. Estacionei a duas ruas do apartamento
seguro, peguei o braço de Bella enquanto caminhávamos pela
calçada arborizada. Teria feito a mesma coisa por qualquer mulher
numa rua escura, mas havia algo perturbador na sensação de seu
braço nu dentro da manga de Brandt. A cidade era desconhecida
para mim. Nas janelas iluminadas das casas, as pessoas falavam e
riam como se nós não existíssemos. Ela segurou meu braço, puxou-
me a mão para seu seio — para ser mais preciso, a parte inferior.
Podia sentir o formato, através das camadas de tecido. Lembrei as
piadas no bar do Circo sobre certos operadores que conquistam
seus melhores agentes na cama. Lembrei de Haydon a me
perguntar se ela tinha peitos bonitos. Senti-me envergonhado e
retirei a mão.
Havia uma pequena porta ao lado dos portões do cemitério.
Quando eu a abri e introduzi Bella à minha frente, ela virou-se e
beijou-me nos olhos, um depois do outro, segurando meu rosto
entre as mãos. Agarrei-a pela cintura e ela parecia desprovida de
peso. Estava muito feliz. Pude ver seu sorriso às luzes amareladas
do cemitério.
— Todos estão mortos — sussurrou Bella, excitada. — Mas
nós estamos vivos.
Subi a escada na frente, Na metade, olhei para trás, a fim de
me certificar de que ela me seguia. Sentia-me apavorado com a
possibilidade de Bella ter mudado de ideia. Sentia-me apavorado de
um modo geral — não porque me faltasse experiência, o que
deixara de acontecer graças a Mabel — mas porque já sabia que
me deparava com uma categoria diferente de mulher, da qual nunca
tivera o menor conhecimento antes. Bella estava parada logo atrás
de mim, os sapatos nas mãos, ainda sorrindo.
Abri a porta para ela. Bella entrou e tornou a me beijar, rindo
alegremente, como se eu a tivesse pegado no colo e levado pelo
limiar, no dia de nosso casamento. Lembrei estupidamente que os
russos nunca trocam um aperto de mão nas portas, e talvez os
letões também não, e talvez os beijos de Bella fossem alguma
espécie de cerimônia de exorcismo. Teria de perguntar a ela, só que
quase perdera a voz. Fechei a porta, atravessei a sala para acender
o fogo, um sistema elétrico que soprava ar quente, com incrível
vigor, enquanto o ambiente estivesse frio, mas depois apenas aos
arrancos, como um velho cão sonhando.
Fui à cozinha para buscar vinho. Quando voltei, Bella
desaparecera, mas a luz saía por baixo da porta do banheiro.
Arrumei a mesa com todo cuidado, com facas, garfos e colheres,
queijo, carne fria, copos, guardanapos de papel e tudo o mais em
que pude pensar, porque me refugiava nas formalidades
distanciadoras da hospitalidade.
A porta do banheiro se abriu e ela apareceu, envolvida no
casaco de Brandt como se fosse um roupão e, a julgar pelas pernas
nuas, praticamente sem mais nada. Os cabelos estavam escovados.
Sempre mantemos em nossos apartamentos seguros uma escova e
um pente, por uma questão de hospitalidade.
E me lembro de ter pensado que se ela era tão ruim quanto
Haydon parecia pensar, era uma coisa terrível usar o casaco de
Brandt para enganar o homem que já estava traindo; e uma coisa
terrível para mim ser o homem que ela escolhera, enquanto meus
agentes seguiam para o perigo, levando pílulas letais no bolso. Mas
eu não experimentei qualquer sentimento de culpa. Menciono isso
para tentar explicar que minha mente ziguezagueava em várias
direções, em seu esforço para reprimir o desejo por Bella.Beijei-a e
tirei o casaco. Nunca vi antes nem depois uma mulher tão bonita. E
a verdade é que, naquele momento e naquela idade, eu ainda não
adquirira a capacidade de distinguir entre verdade e beleza. Eram a
mesma coisa para mim e só podia me sentir intimidado por ela. Se
em algum instante desconfiara qualquer coisa de Bella, a visão
daquele corpo nu convenceu-me de sua inocência.
Depois disso, as imagens de minha memória devem lhes
contar sua história. Mesmo hoje, vejo-nos como duas outras
pessoas, nunca como nós mesmos.
Bella nua à meia-luz do fogo, deitada de lado, como eu a vira
naquela primeira vez, ao lado da lareira, na fazenda. Eu trouxera o
edredom do quarto.
— Você é tão lindo... — sussurrou ela.
Não me ocorrera que eu pudesse proporcionar a ela uma
admiração comparável.
Bella na janela, a luz do cemitério convertendo seu corpo
numa estátua perfeita, dourando o tosão e desenhando padrões de
luz e sombras nos seios.
Bella beijando o rosto de Ned, centenas de pequenos beijos,
enquanto o traz de volta à vida. Bella rindo na beleza ilimitada de si
mesma, e de nós dois juntos. Bella levando o riso para o amor, uma
coisa que nunca me acontecera antes, até que cada parte de nós
era um alvo de celebração, a ser beijada, sugada e admirada.
Bella desviando-se de Ned para se oferecer, arremetendo de
volta para aceitá-lo, enquanto continua a sussurrar para ele. O
sussurro cessa. Ela inicia sua ascensão, arqueando-se para trás. E
de repente está gritando, gritando para mim e para os mortos, e é a
coisa mais viva que existe no mundo.
Ned e Bella calmos por fim, de pé na janela, olhando para o
cemitério.
Há Mabel, eu digo, mas parece muito cedo para casar.
— É sempre cedo — respondeu ela, enquanto recomeçamos
a fazer amor.
Bella no banho e eu junto com ela, espremido contra as
torneiras no outro lado, em absoluta felicidade, enquanto ela me
acaricia sob a água e fala de sua infância.
Bella no edredom, puxando minha cabeça entre suas
pernas.Bella por cima, montando-me.
Bella se ajoelhando por cima de mim, seu jardim secreto
aberto sobre meu rosto, enquanto me transporta a lugares que eu
nunca imaginara, nem mesmo estendido em minha cama solitária e
triste, sonhando e sonhando com aquele momento, tentando com
um mínimo de conhecimento evitar o desconhecido.
E nos intervalos pode-se ver Ned cochilando nos seios de
Bella, a comida intacta ainda na mesa que eu pusera tão
formalmente, como uma defesa. Com uma mente que se tornou
lúcida com o amor, pergunto tudo o mais em que posso pensar para
satisfazer a curiosidade de Bill Haydon e também a minha.
Levei-a para casa e cheguei em meu apartamento por volta
das sete horas da manhã. Sem ânimo para dormir pela segunda
noite consecutiva, sentei e escrevi meu relatório de encontro, a
caneta voando, porque ainda me encontrava no paraíso. Não havia
mensagem de Daisy, mas também eu não esperava nenhuma. Ao
final da tarde, recebi um relatório provisório de seu progresso.
Passaram por Kiel e seguia para o Kieler Fiord. Alcançaria o mar
aberto dentro de duas horas. Eu tinha um inofensivo jornalista
britânico para encontrar naquela noite e uma reunião consular pela
manhã, mas passei a notícia a Bella pelo telefone, em termos
velados, e prometi procurá-la em breve, porque ela queria de
qualquer maneira que eu a visitasse na fazenda. Quando Brandt
voltasse, ela disse, queria ser capaz de olhar para todos os lugares
da casa em que fizéramos amor e pensar em mim. Creio que o
testemunho da força da ilusão do amor é o fato de que não vi nada
de desleal ou paradoxal nisso. Criáramos um mundo juntos e ela
desejava tê-lo ao seu redor quando eu lhe fosse arrebatado. Isso
era tudo. Ela era a garota de Brandt. Nada esperava de mim, a não
ser amor.
Quando cheguei, fomos direto para a comprida sala de estar,
onde desta vez foi ela quem pôs a mesa. Sentamos, nus,
justamente o que ela queria. Queria me ver entre os móveis
familiares. Depois, fizemos amor na cama deles. Suponho que eu
deveria ficar envergonhado, mas senti apenas o excitamento de
conhecer os lugares mais secretos de suas vidas.
— Estas são as escovas de cabelo dele — disse Bella. —
Estas são as suas roupas. E você está deitado no lado da cama que
ele ocupa.Um dia ainda compreenderei o que isso significa, pensei.
E depois, mais sombriamente: ou este é o prazer que ela encontra
na traição? Na noite seguinte eu combinara uma reunião com um
velho polonês em Lubeck, que estabelecera uma correspondência
clandestina com um sobrinho distante em Varsóvia. O garoto vinha
sendo treinado para trabalhar com códigos no serviço diplomático
polonês, e queria espionar para nós, em troca de um assentamento
na Austrália. O Posto de Londres considerava que o melhor seria
um acesso direto. Voltei a Hamburgo e dormi com os mortos. Na
manhã seguinte, enquanto ainda escrevia meu relatório, Londres
comunicou que Daisy se abastecera sem qualquer problema em
Sundre e seguia para o Golfo da Finlândia, com o passageiro
Volodia a bordo. Telefonei para Bella, avisei que tudo corria bem e
ela me disse: — Por favor, venha me ver.
Passei a manhã na delegacia de polícia da Reeperbahn,
libertando dois marujos britânicos da marinha mercante que haviam
se embriagado e quebrado um bordel. A tarde foi ocupada por um
terrível chá das esposas consulares, em apoio à Semana do Preso
Político. Eu gostaria que os marujos tivessem quebrado este bordel
também. Cheguei à fazenda às oito horas da noite e fomos direto
para a cama. Às duas horas da madrugada o telefone tocou e Bella
atendeu. Era o meu perito em códigos, ligando do escritório de
navegação: uma mensagem de alta prioridade, a ser decifrada só
por mim; era necessária minha presença imediata. Guiei como o
vento e cheguei ao escritório em quarenta minutos. Ao sentar com
os livros de códigos, percebi que os cheiros de Bella impregnavam
meu rosto e mãos.
A mensagem fora transmitida com o símbolo de Haydon,
pessoal para o chefe da Estação Hamburgo. O grupo de
desembarque de Daisy fora recebido com fogo cerrado, de posições
preparadas previamente, dizia. O bote estava desaparecido, assim
como todos a bordo, o que significava Antons Durba e seu
passageiro, e provavelmente quem quer que estivesse esperando
na praia. Não havia notícia dos patriotas estonianos. Daisy avistara
sinais de luz ultravioleta da praia, mas apenas uma série completa
dos padrões combinados. A suposição era a de que a equipe
estoniana fora capturada, depois de atrair o grupo de desembarque
a seu destino. Era uma história familiar, mesmo já tendo cinco anos.
O rádio alternativo em Tallinn não respondia aos chamados.
Eu não devia transmitir essa informação a ninguém e voltar a
Londres no primeiro voo da manhã. Minha reserva já fora feita. Toby
Esterhase estaria à minha espera em Heathrow. Elaborei uma
mensagem de confirmação e entreguei a meu operador, que a
recebeu sem qualquer comentário. Ele sabe, pensei. Como poderia
não saber? Telefonara para mim na fazenda e falara com Bella. O
resto ele podia constatar em meu rosto, por tudo o que eu sabia, e
podia cheirar também.
Desta vez não havia bastão de incenso ardendo na sala de
Haydon, ele sentava à sua mesa. Roy Bland, seu diretor da Europa
Oriental, sentava-se ao lado. Toby Esterhase instalou-se no outro
lado. As funções de Toby nunca eram muito definidas, pois ele
gostava de mantê-las sempre vagas, na esperança de que se
multiplicassem. Na prática, porém, ele era o serviçal de Haydon, um
papel que mais tarde lhe custaria caro. E fiquei surpreso ao deparar
também com George Smiley, apartado dos outros, com uma cara de
infeliz, sentado na beira da espreguiçadeira de Haydon, embora o
simbolismo de sua postura só fosse me ocorrer três dias depois.
— É um trabalho interno — declarou Haydon, sem
preliminares. — A missão foi explodida antes. Se Durba não
afundou com o bote, já está pendurado pelos polegares, contando
tudo. Volodia não sabe muita coisa, mas talvez isso seja o seu azar,
pois os interrogadores não vão acreditar e ele terá um cesto cheio
de explosivos para explicar. Talvez ele tenha tomado a pílula, mas
duvido... é um idiota.
— Onde está Brandt? — perguntei.
— Sentado sob uma luz forte na ala de interrogatório de
Sarratt, urrando como um touro. Em algum lugar, alguém falou.
Estamos perguntando a Brandt se não poderia ser ele. Se não,
quem? É uma cópia em carbono da última rodada de desastres.
Cada membro da equipe está sendo interrogado separadamente.
— Onde está Daisy?
— Em Helsinki. Pusemos uma tripulação da marinha a bordo,
com ordens de tirá-la de lá esta noite. Os finlandeses não gostam de
proporcionar abrigo seguro a pessoas que— provocam o Urso. Se a
imprensa não tomar conhecimento do caso, será um milagre.
— Entendo — murmurei, atordoado.
— Ótimo. Eu não entendo. O que vamos fazer? Diga-me
você. Tem cerca de trinta agentes bálticos esperando uma palavra
sua. O que diz? Abortar? Pedir desculpas? Agir com naturalidade e
parecer ocupado? Todas as sugestões serão bem-vindas.
— Os Durbas não estavam a par da rede estoniana —
protestei. — Antons não pode explodir o que não conhece.
— Então pode me dizer, por favor, quem explodiu Antons?
Quem revelou o desembarque, as coordenadas, a praia, o horário?
Quem armou tudo? Fizemos a mesma pergunta a Brandt, por mais
engraçado que possa parecer. Achamos que ele poderia sugerir
Bella, a rameira báltica. Ele sugeriu, em vez disso, que foi um de
nós, o filho da mãe descarado.
Bill estava furioso e sua fúria era descarregada em mim. Eu
nunca imaginara que a apatia pudesse se converter numa ira tão
violenta. Mas ele ainda falava manso, com sua voz arrastada e
anasalada de classe superior. Ainda conseguia se mostrar
descuidado. Mesmo na paixão mais arrebatada, transmitia uma
indiferença total, o que o tornava ainda mais formidável.
— E então — insistiu ele — o que você me diz? — Sobre o
quê? — Sobre ela, coração. A espevitada Miss Letônia. — Ele
segurava o relatório que eu escrevera depois de nossa primeira
noite juntos. — Deus-Todo-Poderoso, pedi uma avaliação, não uma
ária! — Acho que ela é inocente. Acho que ela é uma simples
camponesa. Essa é a minha avaliação. Creio que é também a de
Brandt. Ela respondeu a minhas perguntas, deu uma explicação
plausível para tudo.
Haydon recuperara seu charme. Podia fazer isso de um
instante para outro. Atraía e repelia. Lembro disso com nitidez. Era
envolvente, lançava suas emoções umas contra as outras, porque
não tinha nenhuma.
— A maioria dos espiões é capaz de oferecer explicações
plausíveis — comentou ele, enquanto virava as páginas de meu
relatório. — Ou pelo menos os melhores. Não é mesmo, Tobe? —
Claro, Bill. Do princípio ao fim, eu diria — respondeu Esterhase, o
adulador.
Os outros também tinham uma cópia do relatório.Houve
silêncio, enquanto eles o examinavam, detendo-se nas passagens
que Haydon assinalara. Roy Bland levantou a cabeça e observou-
me. Bland fora nosso instrutor em Sarratt. Era do North Country, um
ex-professor que passara anos por trás da Cortina, sob cobertura
acadêmica. Sua voz era incisiva.
— Bella admite que o pai não é seu pai, certo, Ned? A mãe foi
estuprada por alemães e engravidou, por isso ela é meio alemã.
Certo, Ned? — Certo, Roy. Foi o que ela me contou.
— E quando o pai, como ela o chama, quando Feliks voltou
do campo de prisioneiros de guerra, e soube o que acontecera,
adotou a criança. Bella. Um nobre gesto de sua parte. Ela contou
isso a você. Não fez segredo. Certo, Ned? — Certo, Roy.
— Então por que ela não contou a Brandt a mesma história
que contou a você? Eu já fizera essa pergunta a Bella e por isso
pude responder sem hesitação: — Quando ele a trouxe para o
Ocidente, Bella ficou com medo de que não a aceitasse se
soubesse que não era filha natural de seu melhor amigo. Não eram
amantes naquele momento. Ele oferecia proteção e uma vida. Ela
estava apavorada. Aceitou. Passara algum tempo na floresta. Era a
primeira vez que vinha ao Ocidente. Seu pai estava morto,
precisava de outra figura paternal.
— Ou seja, Brandt? — indagou Bland, insidioso.
— Claro.
— Mas não acha que é muito estranho, Ned, que Brandt não
soubesse a verdade a respeito dela de qualquer maneira? —
indagou Bland, triunfante. — Se Brandt era amigo íntimo do pai
como diz, não era inevitável que soubesse de tudo isso? É óbvio,
Ned! Smiley interveio, pensei que para me ajudar: — Brandt
provavelmente sabe, Roy. Você diria à filha de seu melhor amigo
que ela era a criança ilegítima de um soldado alemão, se pensasse
que a garota não soubesse? Tenho certeza de que eu não diria. Eu
faria tudo para protegê-la. Ainda mais se o pai estivesse morto e eu
apaixonado pela filha.
— Uma estranha paixão — comentou Haydon, virando outra
página de meu relatório. — Brandt é um bode velho devasso. Quem
é esse Tadeo de quem ela tanto fala? "Tadeo viu os corpos sendo
levados para o caminhão. Tadeo viu o corpo de meu pai entrar por
último. Eles atiraram na maioria dos homens na cara, mas meu pai
foi fuzilado no peito e na barriga, uma metralhadora quase o cortou
ao meio." Para uma violeta delicada, ela é bastante explícita quando
isso ajuda em sua história, eu diria.
— Tadeo foi seu primeiro amante — informei.
— Estamos com ciúme, hem? — disse-me Haydon,
arrancando risos dos sátrapas nos seus lados.
Mas não de Smiley. Nem de mim.
— Tadeo foi seu colega de escola. Recebera ordens para ficar
de guarda fora da casa durante a reunião, mas foi fazer amor com
Bella num campo próximo. Foi assim que ela conseguiu escapar.
Tadeo mandou-a fugir, disse a quem ela deveria procurar quando
encontrasse os guerrilheiros. Depois escondeu-se numa casa
próxima e observou tudo acontecer, antes de ir se juntar a Bella.
Toby Esterhase acrescentou seu comentário escarninho
típico, em seu inglês austro-húngaro típico: — E Tadeo
convenientemente está morto, é claro, Ned. Ser uma testemunha na
história de Bella é na verdade um risco profissional, eu diria.
— Foi fuzilado por um guarda na fronteira — expliquei. —
Nem sequer tentava cruzá-la. Apenas efetuava um reconhecimento.
Ela tem a impressão de que toda pessoa com quem entra em
contato acaba morrendo — acrescentei, pensando
involuntariamente em Ben.
— E é bem possível que ela esteja certa, diga-se de
passagem — comentou Haydon.
Impertinentemente, ao que me parecia, Roy Bland lançou-se
agora à minha defesa... pois cada vez eu experimentava a sensação
de que me encontrava no banco dos réus.
— Mas também é possível que Tadeo fosse sincero e ao
mesmo tempo estivesse enganado em relação à morte de Feliks.
Talvez a polícia tenha simulado a morte. Afinal, ele foi o último a ser
jogado no caminhão. Estaria coberto de sangue de qualquer
maneira, naquele matadouro. Nem precisariam jogar molho de
tomate nele, não é mesmo? Esse detalhe já estaria resolvido.
Smiley saiu em defesa da posição de Bland. Eu começava a
me arrepender de ter pressionado tanto para sair de seu comando.
— O pai é realmente tão importante para nós, Bill? —
protestou ele. — Feliks pode ser o maior Judas de todos os tempos
e ainda assim ter uma filha absolutamente honesta, não concorda?
— Também acredito nisso — declarei. — Ela admira o pai. Não
hesita em falar a seu respeito. Idolatra-o. E ainda mantém luto por
ele.
Eu lembrava como ela se comportara no cemitério. Lembrava
de sua determinação em celebrar a dádiva da vida. Recusava-me a
acreditar que tudo não passasse de uma farsa.
— Muito bem — disse Haydon, impaciente, estendendo-me
uma fotografia, através da mesa. — Vamos ignorar as normas e
confiar em você. O que acha dessa turma? Era uma fotografia
bastante ampliada e desfocada. Calculei que era uma fotografia de
uma fotografia: Tinha uma palavra carimbada em vermelho no canto
superior esquerdo, "Bruxaria", que eu sabia ser, pelos rumores, a
fonte mais secreta do Posto de Londres. O que foi confirmado pela
advertência de Toby Esterhase.
— Na verdade, Ned, você nunca viu essa fotografia — disse-
me ele, por cima do ombro de Haydon, com o tom condescendente
que as pessoas reservam aos jovens. — E também nunca viu a
palavra "Bruxaria". Ao sair desta sala, sua mente estará totalmente
vazia.
Era a fotografia de um grupo, rapazes e moças, contra um
fundo que podia ser de alojamentos ou o campus de uma
universidade. Havia cerca de sessenta pessoas, os homens de
terno e gravata, as mulheres de blusa branca e saia comprida. Um
grupo de homens mais velhos e uma mulher de aparência maligna
postava-se ao lado. O clima, como as roupas, o prédio e o cenário
por trás, era sinistro.
— Segunda fila do coro, terceira a contar da direita — indicou
Haydon, entregando-me uma lupa. — Bons peitos, como disse o
rapaz.
Era Bella, não podia haver a menor dúvida. Bella três ou
quatro anos mais jovem, é verdade, mas Bella, os cabelos pretos
penteados para trás, presos no que parecia ser um coque. Mas os
olhos largos e claros de Bella, o sorriso inconfundível de Bella, os
malares altos e firmes que eu adorava.
— Bella alguma vez lhe sussurrou em seu pequeno casulo
que cursou uma escola de línguas em Kiev? — perguntou-me
Haydon.
— Não.
— Claro que Kiev é mais um curso de verão do que uma
escola propriamente dita. Não um lugar sobre o qual os alunos
costumam falar depois. A menos que estejam confessando.
Teoricamente, é uma escola para os intérpretes de amanhã, mas
creio que na prática é mais uma área de desova para as promessas
do Centro Moscou. O Centro a possui, o Centro a guarnece, o
Centro aproveita os melhores. Os patetas vão para o Ministério do
Exterior, como acontece aqui.
— Brandt já viu isto? — indaguei.
Haydon abandonou a jovialidade.
— Está brincando, não é? Brandt é uma testemunha hostil,
como todos eles.
— Posso falar com Brandt?
— Eu não o recomendaria.
— Isso significa que não?
— Exatamente. Significa que não.
— Bruxaria também foi a fonte do relatório sobre o pai de
Bella?
— Cuide apenas do que é da sua conta — protestou Haydon,
mas surpreendi o olhar surpreso de Toby e sentia que estava certo.
— O Centro Moscou sempre tira fotografias de turma de suas
melhores esperanças? — perguntei, encorajado quando Smiley
levantou a cabeça em minha direção, um gesto que interpretei outra
vez como apoio.
— Nós as tiramos em Sarratt — disse Haydon.
— Por que o Centro Moscou não haveria de fazer a mesma
coisa? Eu podia sentir o suor escorrendo-me pelas costas, e sabia
que minha voz começava a perder a firmeza. Mas continuei em
frente assim mesmo, tateando: — Alguém mais nesta fotografia já
foi identificado?
— Para dizer a verdade, já, sim.
— Por exemplo?
— Não importa.
— Que línguas ela aprendeu?
Haydon já se cansara de mim. Levantou os olhos para o céu,
como se apelasse pela dádiva da paciência.
— Ora, todos aprendem inglês, querido, se é isso o que está
querendo saber — resmungou ele, apoiando o queixo na mão e
lançando um longo olhar para Smiley.
Não sou clarividente e não tinha a menor possibilidade de
saber o que se passava entre os dois, ou o que já passara. Mas
mesmo descontando as vantagens da visão posterior, tenho certeza
de que experimentei a sensação de me encontrar acuado entre
campos hostis. Mesmo alguém tão distanciado da política do
escritório central como eu não podia deixar de ouvir os rumores
sobre a batalha que se travava: como o grande X passara direto
pelo grande Y no corredor sem sequer oferecer um "Bom dia"; como
A se recusara a sentar à mesma mesa que B na cantina. E como a
Estação Londres de Haydon estava se tornando um serviço dentro
do serviço, absorvendo as diretorias regionais, assumindo as
seções especiais, os vigilantes, até mesmo seres tão humildes
como os nossos carteiros, que sentavam em salas de separação
sufocantes, lealmente abrindo correspondências com vapor, as
chaleiras sempre com água fervendo. Até se insinuava que o
verdadeiro conflito era entre Bill Haydon e o Chefe reinante, o último
a se intitular Controle, e que Smiley, como escudeiro de Controle, se
achava mais ao lado de seu mestre do que de Haydon.
Mas também insinuava que o próprio Smiley se encontrava
sob a ameaça de uma sentença — ou, com mais tato, cogitando de
um cargo acadêmico, a fim de poder cuidar melhor de seu
casamento.
Haydon lançou um olhar jovial para Smiley, mas que logo se
transformou num olhar frio, enquanto esperava que Smiley o
retribuísse. O resto de nós também esperou. O embaraço foi que
Smiley não o retribuiu. Era como um homem recusando-se a
responder a um cumprimento. Continuou sentado na
espreguiçadeira, as sobrancelhas alteadas, as pálpebras compridas
para baixo, a cabeça redonda inclinada, parecendo estudar o tapete
persa de orações que constituía outro detalhe excêntrico da sala de
Bill. E simplesmente continuou a estudá-lo, como se estivesse
alheio ao interesse de Haydon por sua pessoa, embora todos
soubéssemos — até mesmo eu — que não era esse o caso. E
depois ele estofou as bochechas, franziu o rosto em desaprovação.
E acabou se levantando — não de forma dramática, pois George
nunca precisava chegar a esse ponto — e recolheu seus papéis.
— Bom, acha que já temos a essência, não é mesmo, Bill? —
disse Smiley. — Controle receberá os envolvidos dentro de uma
hora por favor, se for conveniente para todos, tentaremos fazer uma
análise. Ned, você e eu temos uma pequena parte da história de
Zurique para esclarecer. Talvez possa passar por minha sala, depois
que Bill acabar com você.
Vinte minutos depois eu estava sentado na sala de Smiley.
— Acredita naquela fotografia? — perguntou ele, sem
qualquer simulação de falar sobre Zurique.
— Suponho que tenho de acreditar.
— Por quê? Fotografias podem ser forjadas. Existe uma coisa
chamada desinformação. Centro Moscou já entrou nessa, volta e
meia. Eles até se rebaixaram a desacreditar pessoas inocentes,
pelo que estou informado. Possuem um departamento inteiro, para
dizer a verdade, devotado quase que exclusivamente a isso. Com
cerca de quinhentas pessoas.
— Mas por que incriminar Bella? Por que não partir para
Brandt ou alguém mais da equipe? — O que Bill lhe disse para
fazer? — Nada. Disse que receberei minhas ordens no momento
oportuno.
— Não respondeu à pergunta dele. Acha que devemos
abortar a rede? — É difícil para mim dar uma resposta. Sou apenas
o elo local. A rede é dirigida da Estação Londres.
— Mesmo assim.
— Não podemos exfiltrar trinta agentes. Começaríamos uma
guerra. E se as linhas de suprimentos foram descobertas e as rotas
de fuga fechadas, creio que não poderemos fazer absolutamente
nada por eles.
— Ou seja, eles estão mortos, de qualquer maneira —
sugeriu Smiley, mais uma confirmação do que uma pergunta. Um
telefone tocava em sua mesa, mas ele não atendeu. Continuou a
me fitar com uma preocupação compadecida. — Se eles já estão
liquidados, Ned, pode fazer o favor de se lembrar de que a culpa
não é sua? Ninguém espera que você enfrente sozinho o Centro
Moscou. Pode ser culpa do Quinto Andar, pode ser minha. Mas com
toda certeza não é sua. Ele acenou com a cabeça para a
porta.Fechei-a depois de sair e ouvi o telefone parar de tocar.
Voltei a Hamburgo naquela mesma noite. Bella parecia
excitada quando telefonei, mas ficou triste quando eu disse que não
poderia visitá-la logo.
— Onde está Brandt? — perguntou ela.
Bella não tinha a menor noção de segurança ao telefone.
Informei que Brandt estava bem, muito bem. Sentia-me culpado em
lhe falar quando eu sabia tanto e ela tão pouco. Devia agir com
naturalidade, como Haydon dissera: — O que quer que você fazia
antes, continue a fazer ou faça ainda melhor. Não quero que ela
perceba coisa alguma.
Eu deveria dizer a ela que Brandt a amava, algo que
aparentemente ele exigia. Calculei que em seu parto ele pedira para
me ver. Esperava que sim, porque confiava nele... e Brandt era
responsabilidade minha.
Tentei não me sentir transtornado quando havia tantas
tragédias maiores ao redor, mas era difícil. Até poucos dias antes,
Brandt e a equipe se encontravam sob meus cuidados. Eu era o
porta-voz e o defensor deles. Agora, um deles estava morto ou pior,
e o resto fora arrancado do meu controle. A rede, embora
trabalhasse para Londres, fora minha família substituta. Agora era
como os remanescentes de um exército-fantasma, fora de contato,
flutuando entre a vida e a morte.
Pior de tudo era o meu senso de deslocamento, de alojar uma
dúzia de teorias conflitantes na cabeça ao mesmo tempo,
favorecendo uma de cada vez. Num momento eu insistia para mim
mesmo que Bella era inocente, exatamente como alegara para
Haydon. No momento seguinte perguntava-me como ela poderia se
comunicar com seus superiores. A resposta era muito fácil. Bella
saía para as compras, ia ao cinema, frequentava a escola. Podia se
encontrar com mensageiros, recolher e deixar mensagens em
pontos mortos, como bem quisesse.
Mas assim que chegava a esse ponto, eu partia em sua
defesa. Bella não era má. A fotografia era uma falsificação e a
história a respeito de seu pai nada significava. Fora o que Smiley
dissera. Havia uma centena de maneiras pelas quais a missão
poderia ter sido explodida sem que houvesse a menor participação
de Bella. Nossa segurança operacional era sólida, mas não tanto
quanto eu gostaria. Meu antecessor se revelara um corrupto. Não
poderia, além de inventar agentes, ter também vendido alguns? E
mesmo que não fosse esse o caso, seria tão absurda assim a
sugestão de Brandt, de que o vazamento podia ser em nosso lado
da cerca, não no seu? Não posso permitir agora que vocês pensem
que, sozinho em sua cama naquela noite, o jovem Ned
desemaranhou toda a teia de traição que mais tarde exigiria toda a
capacidade de George Smiley para ser denunciada. Uma fonte pode
ser plantada, um informante pode ser ignorado, um controlador
experiente pode tomar uma decisão errada — tudo isso sem a ajuda
de um traidor no Quinto Andar. Eu sabia disso. Não era uma
criança, como também não era um dos pálidos teóricos da
Conspiração do Circo.
Mesmo assim eu ponderei, como qualquer de nós pode fazer
quando se encontra nos limites de sua fidelidade ao Serviço. Reuni
pela minha visão insignificante todos os rumores do Circo que
haviam chegado a meus ouvidos. Histórias de fracassos
inexplicáveis e escândalos reiterados, da ira crescente dos nossos
Primos Americanos. De reorganizações sem sentido, rivalidades
inconsequentes entre homens que eram hoje imortais e no dia
seguinte renunciavam. Histórias de horror sobre incompetência
sendo considerada como prova de traição... e provas incríveis de
traição sendo descartadas como incompetência.
Se existe o que se costuma chamar de crescimento, podem
dizer que em algum momento daquela noite eu dei um desses saltos
para a maturidade. Compreendi que o Circo era muito parecido com
qualquer outra instituição britânica, exceto que era mais ainda,
porque seus jogos se desenvolviam na segurança de salas
invioláveis, com as vidas de outras pessoas como fichas. Contudo,
senti-me satisfeito por ter feito o reconhecimento. Devolvia-me a
responsabilidade por minhas ações, o que até então eu me sentia
propenso a atribuir aos outros. Se minha carreira até aquele
momento fora uma constante batalha entre submissão e identidade,
pode-se dizer que a submissão prevalecera. Mas naquela noite
atravessei alguma espécie de fronteira. Decidi que dali por diante
prestaria mais atenção a meus instintos e desejos, e menos aos
arreios que parecia ser incapaz de dispensar.Fomos nos encontrar
no apartamento seguro. Se havia um campo neutro em qualquer
parte, era ali. Ela ainda nada sabia da catástrofe. Eu lhe dissera
apenas que Brandt fora chamado à Inglaterra. Fizemos amor
imediatamente, às cegas, com a maior voracidade; depois aguardei
a lucidez pós-amor para iniciar meu interrogatório.
Pus-me a afagar alegremente os cabelos de Bella, alisando-
os contra a cabeça. Depois puxei-os para trás com as duas mãos,
juntando-os num tosco coque.
— Desse jeito você parece muito severa — comentei,
beijando-a, com os cabelos ainda formando um coque. — Alguma
vez já os usou assim? E tornei a beijá-la.
— Quando era garota.
— Quando foi isso? — murmurei, entre nossos lábios unidos.
— Antes de Tadeo? Quando?
— Até ir para a floresta. Cortei então. Outra mulher cortou,
com uma faca.
— Tem alguma fotografia sua desse jeito?
— Não tirávamos fotografias na floresta.
— Antes. Quando usava os cabelos como uma mulher
severa.
Ela sentou na cama. — Por quê?
— Apenas responda.
Bella me observava atentamente, com seus olhos quase
descoloridos. — Tiraram nossas fotografias na escola. Por quê?
— Em grupos? Em turmas? Que tipo de fotografias?
— Por quê?
— Apenas me diga, Bella. Preciso saber.
— Tiraram fotografias em nossa turma, e tiraram fotografias
para os nossos documentos.
— Que documentos?
— De identidade. Para os passaportes.
Ela não se referia a um passaporte como o conhecemos. Era
o passaporte para se deslocar dentro da União Soviética. Nenhum
cidadão livre podia sair pela estrada sem o seu passaporte.
— Uma fotografia de frente? Sem sorrir?
— Isso mesmo.
— O que fez com seu velho passaporte, Bella?
Ela não se lembrava.
— O que usava para... para a fotografia? — Beijei seus seios.
— Não isto. O que usava?
— Uma blusa e gravata. Mas de que bobagem você está
falando?
— Preste atenção. Há alguém de quem se lembre, em sua
terra, uma colega de escola, um antigo namorado, um parente, que
teria uma fotografia sua com os cabelos para trás? Alguém para
quem você pudesse escrever, entrar em contato?
Ela pensou por um momento, sem desviar os olhos de mim,
antes de responder, irritada: — Minha tia.
— Como ela se chama? Bella me disse.
— Onde ela mora? Em Riga, informou Bella. Com Tio Janek.
Peguei um envelope, sentei-a à mesa ainda nua, fiz com que
escrevesse o endereço completo. Pus uma folha de papel em
branco na sua frente e ditei uma carta, que ela traduziu enquanto
escrevia.
— Bella... — Levantei-a e beijei-a ternamente. — Quero que
me diga mais uma coisa, Bella. Alguma vez esteve em qualquer
escola, de qualquer tipo, além das escolas de sua própria cidade?
Ela sacudiu a cabeça.
— Nenhum curso de verão? Escolas especiais? Escolas de
línguas?
— Não.
— Aprendeu inglês na escola?
— Claro que não. Se tivesse aprendido, hoje falaria inglês. O
que está acontecendo com você, Ned? Por que me faz essas
perguntas estúpidas?
— A Daisy teve problemas — anunciei, ainda fitando-a. —
Houve tiros. Brandt não foi ferido, mas outros foram. Isso é tudo o
que tenho permissão para lhe contar. Voaremos para Londres
amanhã, você e eu, juntos. Precisam nos fazer algumas perguntas e
descobrir o que saiu errado.
Ela fechou os olhos e começou a tremer. Abriu a boca e
deixou escapar um grito silencioso.
— Acredito em você, Bella. Quero ajudá-la. E a Brandt. Essa
é a verdade.
Gradativamente ela voltou para mim, encostou a cabeça em
meu peito, enquanto chorava. Era uma criança outra vez. Talvez
sempre tivesse sido uma criança. Talvez, ao me ajudar a crescer,
ela aumentara a distância entre nós. Eu trouxera um passaporte
britânico para ela. Bella não possuía uma nacionalidade própria. Fiz
com que ela passasse a noite comigo, ficou me agarrando como
uma garota a se afogar. E nenhum dos dois dormiu. No avião ela
segurou minha mão, mas já nos encontrávamos separados por
continentes. E de repente ela falou, numa voz que eu nunca ouvira
antes. Uma voz firme, adulta, de tristeza e desilusão, que me
lembrou a de Stefanie quando me apresentara sua advertência de
Sibila na ilha.
— Es ist ein reiner Unsinn — disse ela. É puro absurdo.
— O quê? Ela retirara a mão. Não em raiva, mas numa
espécie de desespero cansado.
— Você diz a eles para meterem os pés na água e espera
para ver o que acontece. Se eles não são fuzilados, viram heróis. Se
são fuzilados tornam-se mártires. Vocês não ganham nada que
valha à pena e encorajam meu povo a se matar. O que vocês
querem que a gente faça? Levantar e matar o opressor russo? Acho
que não. Tenho a impressão de que estão fazendo alguma coisa
porque não podem fazer nada. Creio que não são absolutamente
úteis para nós.
Nunca pude esquecer o que Bella disse, pois foi também uma
dispensa do meu amor. E hoje penso nela todas as manhãs ao
escutar as notícias, antes de sair para passear com meu cachorro.
Especulo sobre o que pensávamos que estávamos prometendo
àqueles bravos bálticos naquele tempo, e se era a mesma
promessa que agora rompemos com tanta diligência.
Desta vez era Peter Guillam quem esperava no aeroporto, o
que foi um alívio para mim, porque sua boa aparência e atitude
jovial pareceram incutir confiança em Bella. Como acompanhante,
ele trouxera Nancy, dos vigilantes, que assumira um ar maternal
para a ocasião. Levaram Bella pela imigração e embarcaram-na
num furgão cinza, que pertencia aos inquisidores de Sarratt. Eu
gostaria que alguém pudesse ter pensado em mandar um veículo
menos assustador, porque ao ver o furgão ela parou e olhou para
mim com uma expressão de acusação, antes que Nancy a
segurasse pelo braço e empurrasse para dentro.Na vida turbulenta
de um controlador, eu estava aprendendo, nem sempre havia uma
elegante despedida.
Só posso lhes contar o que fiz em seguida, e o que soube
mais tarde. Fui para o gabinete de Smiley e passei a maior parte do
dia tentando alcançá-lo entre reuniões.
O protocolo do Circo exigia que eu fosse primeiro a Haydon,
mas já ultrapassara as instruções dele com as perguntas que fizera
a Bella, e desconfiava que Smiley seria uma audiência mais
compreensiva. E ele me escutou; pegou a carta de Bella e
examinou-a.
— Se a remetermos de Moscou e dermos um endereço
finlandês seguro para eles responderem, pode dar certo —
assegurei.
Mas, como acontecia tantas vezes com Smiley, tive a
impressão de que ele pensava além de mim, em reinos dos quais eu
me achava excluído. Ele abriu uma gaveta, largou a carta lá dentro,
tornou a fechá-la.
— Creio que isso não será necessário — foi seu comentário.
— De qualquer forma, vamos torcer para que não seja.
Indaguei o que fariam com Bella.
— Imagino que mais ou menos a mesma coisa que estão
fazendo com Brandt — respondeu Smiley, despertando o suficiente
de sua concentração para me conceder um sorriso triste. — Vão
interrogá-la sobre cada detalhe de sua vida. Tentar fazer com que
ela tropece. Esgotá-la. Não vão machucá-la. Não fisicamente. Não
lhe dirão o que têm contra ela. Apenas vão esperar que ela destrua
sua cobertura. Parece que a maioria dos homens com quem ela
viveu na floresta foi presa recentemente. O que não é muito
favorável a ela, sem dúvida.
— E o que farão com ela depois? — Creio que ainda
podemos evitar o pior, mesmo que não possamos evitar mais hoje
em dia — respondeu ele, voltando a se concentrar em seus papéis.
— Não está na hora de você ir falar com Bill? Ele deve estar
querendo saber onde você se meteu.
E lembro a expressão em seu rosto ao me dispensar: a
angústia e a frustração, e a raiva.
Smiley despachou a carta como sugeri? A carta produziu uma
fotografia e essa fotografia era a mesma que os falsificadores do
Centro Moscou haviam incluído na fotografia do grupo? Eu bem que
gostaria que tudo fosse tão certinho, mas na realidade isso nunca
acontece, embora me agrade acreditar que meus esforços em
defesa de Bella tiveram alguma influência em sua libertação e
reassentamento no Canadá, o que ocorreu alguns meses depois,
em circunstâncias que são um enigma para mim.
Pois Brandt recusou-se a aceitá-la de volta, muito menos a ir
com ela. Bella lhe falara de nossa ligação? Ou alguém mais
contara? Não creio que seja possível, a menos que tenha sido o
próprio Haydon, por pura maldade. Bill odiava todas as mulheres e a
maioria dos homens também, adorava virar pelo avesso as afeições
das pessoas.
Brandt também recebeu uma ficha limpa e, depois de alguma
resistência do Quinto Andar, uma subvenção para se iniciar num
escalão respeitável da vida. Ou seja, ele pôde comprar um barco e
foi para as índias Ocidentais, onde retomou seu antigo ofício de
contrabandista, só que desta vez levava armas para Cuba.
E a traição? A rede de Brandt era simplesmente eficiente
demais para o gosto de Haydon, Smiley me contou mais tarde, por
isso Bill a traiu, como já traíra a anterior, e tentou lançar a culpa em
Bella. Providenciara para que o Centro Moscou falsificasse a prova
contra ela, que depois apresentara como procedente de sua fonte
espúria Merlin, fornecedora do material de Bruxaria. Na pista da
toupeira naquela ocasião, Smiley manifestara suas suspeitas em
altos escalões, apenas para ser exilado por estar certo. Foram
precisos mais dois anos para que o trouxessem de volta com a
missão de limpar os estábulos.
E a história ficou por aí até que começou a nossa perestroika
interna — no inverno de 1989 — quando Toby Esterhase, o ubíquo
sobrevivente, conduziu uma delegação de nível intermediário do
Circo ao Centro Moscou, como um primeiro passo para o que nosso
bendito serviço diplomático insistiu em chamar de "uma
normalização do relacionamento entre os dois serviços". A equipe
de Toby foi muito bem recebida na Praça Dzerzhinsky e visitou
muitas instalações, embora não, pode-se adivinhar, as câmaras de
tortura da antiga Lubyanka, ou o telhado em que alguns prisioneiros
mais descuidados haviam perdido o equilíbrio. Como dizem os
americanos, tiveram um tempo e tanto. Compraram gorros de pele,
pregaram emblemas jocosos neles, foram fotografados na Praça
Dzerzhinsky.
E no último dia, como um gesto especial de boa vontade,
foram escoltados à galeria do vasto salão de comunicações do
Centro, onde relatórios de todas as fontes são recebidos e
processados. E foi ali, no momento em que já se preparava para
deixar a galeria, diz Toby, que ele e Peter Guillam avistaram ao
mesmo tempo um sujeito alto, corpulento, louro, em meia silhueta,
na outra extremidade do corredor, saindo do que aparentemente era
o banheiro dos homens, pois só havia uma outra porta naquela
parte do corredor e tinha a indicação de que era para as mulheres.
Era um homem de certa idade, mas mesmo assim emergiu
pela porta como um touro. Ele parou e os fitou, imóvel por um longo
momento, como indeciso se devia se adiantar e cumprimentá-los ou
bater em retirada. Acabou baixando a cabeça e, ao que lhes
pareceu, com um sorriso, afastou-se e desapareceu em outro
corredor. Mas não antes que tivessem ampla oportunidade de
observar o andar gingado de marujo e os ombros de lutador.
Nada desaparece no mundo secreto; nada desaparece no
mundo real. Se Toby e Peter estão certos — e há os que ainda
alegam que a hospitalidade russa os embalara — então Haydon
possuía um motivo ainda mais forte para apontar o dedo da suspeita
na direção de Bella, afastando-a do Comandante Brandt.
Brandt era mau desde o início? Nesse caso, eu promovera
inadvertidamente seu recrutamento e as mortes de nossos agentes.
É um terrível pensamento e às vezes, nas horas frias e cinzentas do
amanhecer, enquanto deito ao lado de Mabel, surge para me
assombrar.
E Bella? Penso nela como meu último amor, como o curso
certo que nunca segui. Se Stefanie me destrancara a porta da
dúvida, Bella apontara-me para o mundo aberto, enquanto ainda
havia tempo. Quando penso em minhas mulheres desde então, elas
são como os cuidados da convalescença. E quando penso em
Mabel, só posso explicá-la como a atração da vida doméstica para
um homem que voltou da linha de frente. Mas a lembrança de Bella
permanece tão viçosa em mim quanto a nossa primeira noite no
apartamento seguro que dava para o cemitério... embora em meus
sonhos ela esteja sempre se afastando de mim, e haja censura até
mesmo em suas costas.
CINCO
— ESTÁ DIZENDO que talvez estejamos alojando outro
Haydon agora! — gritou um estudante chamado Maggs, em meio
aos resmungos de seus colegas. — Qual é a motivação dele, Sr.
Smiley? Quem o pagaria? Qual é a sua utilidade? Eu acalentava
dúvidas sobre Maggs desde o início. Ele estava reservado para uma
carreira de cobertura no jornalismo e já adquirira as piores
características de seu futuro ofício. Mas Smiley manteve-se
inabalável.
— Ora, estou convencido de que, em retrospecto, temos uma
grande dívida de gratidão com Bill — respondeu Smiley
calmamente. — Ele ministrou a agulha num Serviço que se
encontrava agonizante há muito tempo.
George fez uma breve pausa, franzindo um pouco o rosto em
perplexidade, antes de acrescentar: — Quanto a novos traidores,
tenho certeza de que nossa atual líder andou semeando seus
descontentes, não é mesmo? Talvez eu seja um deles. Descubro
que me torno muito mais radical na velhice.
Mas podem estar certos de que não agradecemos a Bill na
ocasião.
Houve Antes da Queda e houve Depois da Queda e a Queda
foi Haydon, e de repente não havia um único homem ou mulher no
Circo que não fosse capaz de dizer onde se encontra e o que fazia
ao receber a terrível notícia. Os veteranos comentam até hoje, uns
para os outros, aquele dia do silêncio nos corredores, os rostos
aturdidos e desviados na cantina, os telefones por atender.
A maior baixa foi a confiança. Só pouco a pouco, como
pessoas atordoadas depois de um ataque aéreo, saímos
timidamente, um a um, de nossas casas destruídas e iniciamos o
trabalho de reconstrução da cidadela. Uma reforma foi julgada
necessária, por isso o Circo abandonou seu antigo apelido e a toca
de corredores dickensianos e escadas tortuosas em Cambridge
Circus que alojara sua vergonha, e construíra em vez disso um
prédio hediondo de aço e vidro não muito longe de Victoria, onde as
janelas ainda tremem numa ventania e os corredores recendem a
repolho rançoso da cantina e fluido de limpeza das máquinas de
escrever. Só os ingleses punem a si mesmos com prisões tão
pavorosas. Da noite para o dia nos tornamos, no jargão formal, o
Serviço, embora o nome "Circo" ainda aflore de vez em quando a
nossos lábios, da mesma maneira como ainda falamos em libras,
shillings e pence muito depois da adoção do sistema decimal.
A confiança fora rompida porque Bill era uma parte de tudo
aquilo. Não se tratava de um arrivista arrogante e inconsequente.
Era exatamente como sempre descrevera a si mesmo, meio
desdenhoso: a Instituição da Espionagem, com tios que integravam
os comitês do Partido Conservador, uma velha propriedade em
Norfolk com camponeses meeiros que o chamavam de "Sr. William".
Era uma mecha da melhor teia da influência inglesa, em cujo centro
nos considerávamos. E nos apanhara nessa teia.
Em meu caso — ainda reivindico uma certa distinção por isso
— só recebi a notícia da prisão de Bill 24 horas depois do resto do
Circo ter tomado conhecimento, pois me encontrava encarcerado
numa cela medieval sem janelas, nos fundos de uma sucessão de
amplos aposentos do Vaticano. Comandava uma equipe de escutas
do Circo, sob a orientação de um frade de olhos fundos, que nos
fora designado pelo próprio serviço secreto do Vaticano, que
preferia recorrer até aos russos em vez de procurar a ajuda de seus
colegas seculares a um quilômetro de distância, em Roma. E nossa
missão era plantar um microfone na sala de audiência de um
corrupto bispo católico, que se envolvera numa transação de
"tóxicos por armas" com uma de nossas colônias em
desintegração... ora, por que ser tão recatado? Era Malta.
Com Monty e seus homens despachados de avião para a
ocasião, percorrêramos na ponta dos pés masmorras abobadadas,
subíramos por escadas subterrâneas, até alcançarmos aquele ponto
privilegiado, do qual propúnhamos abrir um buraco fino através do
cimento antigo entre os blocos de uma parede de um metro. O
buraco, pelo acordo, não poderia ter mais que dois centímetros de
diâmetro, largo o suficiente para que inseríssemos o canudo de
plástico comprido que conduziria o som da sala-alvo para o nosso
microfone, pequeno o suficiente para poupar a sagrada alvenaria do
palácio papal. Hoje usaríamos equipamento mais sofisticado, mas
os anos setenta foram os últimos da idade do vapor e essas sondas
ainda se encontravam na moda. Além disso, mesmo com a melhor
vontade do mundo, não se mostra as engenhocas mais valiosas a
um oficial de ligação do Vaticano, muito menos a um frade de hábito
preto que dá a impressão de ter saído direto da Inquisição.
Nós perfuramos, Monty perfurou, o frade observava.
Despejávamos água nas brocas vermelhas de tão quentes, em
nossas mãos e rostos suados. Abafávamos o ruído da furadeira com
espuma líquida, a intervalos de poucos minutos parávamos para
uma verificação, a fim de nos certificarmos de que não abríramos
um buraco até o próprio aposento do santo homem por engano. O
objetivo era perfurar o buraco até um centímetro do outro lado, e
escutar da parte interna do papel de parede ou do reboco.
E subitamente havíamos passado, mas pior do que isso.
Estávamos em pleno ar. Uma amostra recolhida as pressas com um
aspirador produziu apenas exóticos fios de seda. Um silêncio
desconcertado nos envolveu. Atingíramos algum móvel? Cortina?
Uma cama? Ou a bainha da túnica de algum inocente prelado? A
sala de audiência fora alterada desde que tiráramos as fotografias
de reconhecimento? E foi nesse instante de desânimo e
perplexidade que o frade teve uma inspiração, lembrando, num
sussurro consternado, que o bom bispo era um colecionador de
tapeçarias de valor inestimável. Compreendemos então que os
farrapos de pano que contemplávamos não eram fragmentos de um
sofá ou cortina, nem mesmo da indumentária de algum padre, mas
sim de uma tapeçaria Gobelin. Desculpando-se, o frade tratou de
fugir.
Agora a cena muda para a velha cidade de Rye, no Kent,
onde duas irmãs, as Srtas. Quayle, mantêm uma oficina de
restauração de tapeçarias, e por um golpe de sorte — ou, pode-se
dizer, pelas inelutáveis leis da conexão social inglesa — seu irmão
Henry era um membro aposentado do Serviço. Henry foi
desenterrado, as irmãs arrancadas de suas camas, um jato da RAF
levou-as para o aeroporto militar de Roma, de onde um carro trouxe-
as a toda velocidade para o nosso lado. Depois, Monty seguiu
calmamente para a frente do prédio e acendeu uma bomba de
fumaça, que esvaziou a metade do Vaticano e proporcionou à nossa
equipe ampliada quatro horas desesperadas na sala-alvo. No meio
da tarde daquele mesmo dia a Gobelin já se encontrava
passavelmente remendada e o microfone em seu devido lugar.
A cena muda mais uma vez, para o jantar oferecido por
nossos anfitriões do Vaticano. Monty, um guardanapo branco na
garganta, está sentado entre as solenes Srtas. Quayle, limpando o
resto de cannelloni de seu prato com um pedaço de pão, enquanto
as regala com relatos das últimas façanhas de sua filha na escola
de equitação.
— Não sabe disso, Rosie, e não há razão para que devesse
saber, mas minha Beckie possui o melhor par de mãos para sua
idade em toda South Croydon...
E nesse instante Monty para de falar abruptamente. Está
lendo o bilhete que eu lhe passara, o bilhete que me fora entregue
em mãos por um mensageiro da Estação Roma: Bill Haydon, Diretor
de Operações Clandestinas do Circo, confessou que era um espião
do Centro Moscou.
Às vezes eu me pergunto se não foi esse o maior de todos os
crimes de Bill: roubar para sempre a jovialidade que partilhávamos.
Voltei a Londres para ser informado de que quando houvesse
mais a me informar eu seria informado. E poucas manhãs depois
Personnel informou-me que eu fora classificado como "Meia
Confecção", o jargão do Circo para "inviável em qualquer outro lugar
que não os países amigos". Era como ser informado que eu
passaria o resto de minha vida numa cadeira de rodas. Não fizera
nada de errado, não caíra em desgraça, muito ao contrário. Mas no
ofício a cobertura é virtude e a minha fora descoberta.
Arrumei minha mesa e me concedi o resto do dia de folga. Saí
para o campo e ainda não me lembro do passeio, mas há uma
caminhada que sempre costumo fazer em Sussex Downs, pelas
colinas brancas, com penhascos de 150 metros de altura. Outro
mês se passou antes que eu ouvisse minha sentença: — Você
voltará aos emigrados — anunciou Personnel, com sua antipatia
habitual. — E será a Alemanha outra vez. Mas a ajuda de custo é
bastante razoável, e a pista de esqui não é das piores, se você subir
bem alto.
SEIS
APROXIMAVA-SE de meia-noite, mas a animação de Smiley
aumentara a cada nova heresia. Ele é como um jovial Papai Noel,
pensei, que distribui folhetos subversivos com seus presentes.
— Às vezes eu penso que a coisa mais vulgar na Guerra Fria
foi a maneira como aprendemos a engolir nossa própria propaganda
— disse ele, com o mais afável dos sorrisos. — Não tenho a
intenção de parecer didático, e é claro que de certa forma fizemos
isso ao longo de toda a nossa história. Na Guerra Fria, porém,
quando nossos inimigos mentiam, mentiam para esconder a
desgraça de seu sistema. Enquanto nós, quando mentíamos, era
para esconder nossas virtudes. Até de nós mesmos. Escondíamos
as próprias coisas que nos tornavam íntegros. Nosso respeito pelo
indivíduo, o amor à diversidade e controvérsia, a convicção de que
só se pode governar com justiça se houver o consentimento dos
governados, a capacidade de perceber o ponto de vista de nossos
semelhantes... em particular nos países que exploramos, quase até
a morte, para nossos próprios fins. Em nossa suposta integridade
ideológica, sacrificamos a compaixão ao grande deus da
indiferença. Protegemos os fortes contra os fracos, desenvolvemos
a arte da mentira pública. Fizemos inimigos os reformadores
decentes e convertemos em amigos os tiranos mais repulsivos. E
mal paramos para nos perguntar por quanto tempo mais
poderíamos defender nossa sociedade por esses meios e
permanecer uma sociedade que valesse à pena defender. — Outra
vez um olhar para mim. — Portanto, não era de admirar, não é
mesmo, Ned, que abríssemos nossos portões a todos os vigaristas
e charlatães da indústria do anticomunismo. E recebemos os vilões
que merecíamos. Ned sabe disso. Perguntem a Ned. Ao que Smiley,
para alegria geral, desatou a rir... e eu, depois de um momento de
hesitação, acompanhei-o na risada, assegurando a meus alunos
que algum dia lhes contaria a história.
Talvez vocês tenham pegado o show, como dizem nos
Estados Unidos. Talvez tenham participado da audiência apreciativa
em um dos muitos desempenhos comoventes que eles
apresentaram em sua incansável excursão através do meio-oeste
americano, explorando ao máximo o chamado circuito das
conferências, com banquetes a cem dólares o prato e cada prato
vendido. Nós chamávamos de espetáculo Teodor-Latzi. Teodor era o
primeiro nome do Professor.
Talvez vocês tenham aderido às incontáveis ovações, toma
mundo de pé, enquanto nossos dois heróis ocupavam
humildemente o centro do palco, o Professor alto e resplandecente
em um dos vários ternos dispendiosos que comprara para aquela
excursão, o pequeno e atarracado Latzi em silêncio, os olhos rasos
com ideais transbordando. Havia ovações antes que eles
começassem a falar e ovações depois que acabavam. Nenhum
aplauso era bastante vigoroso para "os dois grandes húngaros-
americanos, que sozinhos abriram um buraco na Cortina de Ferro".
Estou citando do Herald de Tulsa.
Talvez a sua filha toda americana tenha vestido um fascinante
traje de camponesa húngara e arrumado flores nos cabelos para a
ocasião — essas coisas também aconteciam. Talvez você tenha
enviado um donativo para a Liga pela Libertação, Caixa Postal
qualquer coisa, Wilmington. Ou leu sobre nossos heróis em
Reader's Digest, na sala de espera do seu dentista? Ou talvez,
como Peter Guillam, que se encontrava baseado em Washington
naquele tempo, você teve a honra de estar presente na grande
première mundial, um espetáculo encenado conjuntamente por
nossos Primos Americanos, a polícia da capital americana e o FBI,
nada menos do que num santuário do pensamento virtuoso tão
austero e pomposo como o Hay-Adams Hotel, no outro lado da
praça, pertinho da Casa Branca. Se isso aconteceu, você deve ter
sido classificado como um importante influenciador da opinião
pública. Era preciso ser um jornalista de destaque ou um lobista no
mínimo para ser admitido na sala de conferências solene, onde
cada palavra insinuada possuía a autoridade de um mandamento
eterno, onde homens em blazers estofados velavam muito tensos
pelo seu conforto e conveniência. Pois quem podia saber quando o
Kremlin atacaria de novo? Ainda era esse tipo de tempo. Ou talvez
você apenas leu o livro dele entregue furtivamente pelos primos a
um obediente editor— da Madison Avenue e lançado sob fanfarras
de aclamações da crítica dócil, antes de ocupar a extremidade
inferior da lista de best-sellers de não ficção por duas espetaculares
semanas. Espero que isso tenha acontecido, pois embora o livro
fosse lançado sob os nomes dos dois, a verdade é que eu mesmo
escrevi uma parte, apesar dos Primos desaprovarem meu título
original. O título oficial acabou sendo O Assassino de Kremlin. Eu
lhes contarei mais tarde qual era o meu.
Como sempre, Personnel se equivocara. Para qualquer um
que já viveu em Hamburgo, Munique não é absolutamente a
Alemanha. É outro país. Nunca senti a mais remota ligação entre as
duas cidades, mas em matéria de espionagem Munique, como
Hamburgo, era uma das capitais não celebradas da Europa. Até
mesmo Berlim ficava num medíocre segundo plano quando se
comparava as proporções e a viabilidade da comunidade invisível
de Munique. A maior e mais repulsiva de nossas organizações era
melhor conhecida pelo lugar que a alojava, Pullach, onde logo
depois de 1945 os americanos instalaram uma assembleia
desagradável de antigos oficiais nazistas, sob o comando de um ex-
general do serviço de informações militar de Hitler. A missão deles
era cortejar Outros veteranos nazistas, na Alemanha Oriental, e
através do Suborno, chantagem ou um apelo ao sentimento de
camaradagem, atraí-los para o Ocidente. Ao que parece, nunca
ocorreu aos americanos que os alemães orientais pudessem estar
fazendo a mesma coisa, no sentido inverso, só que mais e melhor.
Assim, o Serviço alemão baseava-se em Pullach, junto com os
americanos, que ora os estimulavam, depois desanimavam, e os
desencorajavam. E onde os americanos montavam acampamento,
todos os demais seguiam. De vez em quando estouravam
pavorosos escândalos, em geral quando um ou outro dessa trupe de
palhaços esquecia literalmente para que lado estava trabalhando,
ou tomava um porre e fazia uma confissão lacrimosa, ou atirava na
amante, no namorado ou em si mesmo, ou surgia de repente no
outro lado da Cortina para declarar sua lealdade a quem quer que
ainda não se proclamara leal. Em toda a minha vida, jamais conheci
tamanho bordel da espionagem.
Depois de Pullach, vieram os decifradores de códigos e
vigaristas da segurança, em seguida a Rádio Liberdade, Rádio
Europa Livre e Rádio Qualquer Outro Lugar Livre, e inevitavelmente,
já que eram em grande parte as mesmas pessoas, os emigrados
conspiradores, que àquela altura sentiam-se um pouco
desfavorecidos pela sorte, mas não ousavam dizê-lo. E muito tempo
se consumia entre essas organizações de exilados a se discutir
amenidades como quem seria o Mestre das Estrebarias Reais
quando a monarquia fosse restaurada; e quem seria aquinhoado
com a Ordem de São Pedro e a do Porco-Espinho; ou quem
ocuparia o palácio de verão do grão-duque depois que as galinhas
comunistas fossem removidas de suas salas de estar; ou quem
recuperaria o pote de ouro escondido no fundo do lago não sei o
quê, sempre se esquecendo que o referido lago fora drenado trinta
anos antes pelos usurpadores bolcheviques, que ali construíram
uma usina hidroelétrica, aproveitada até a água acabar.
Como se isso tudo ainda não fosse suficiente, Munique
abrigava também o tipo mais delirante de aspiração de Alemães
Unidos, cujos adeptos consideravam até mesmo as fronteiras de
1939 como um mero prelúdio para as necessidades da Grande
Alemanha. Prussianos orientais, saxônios, pomerânios, silésios,
bálticos e sudetos, todos protestavam contra a terrível injustiça que
haviam sofrido, obtendo polpudas subvenções de Bonn por seus
pesares. Havia noites, quando eu voltava para casa e para Mabel,
através das ruas animadas pela cerveja, em que imaginava que
podia ouvi-los cantando seus hinos por trás do fantasma marchando
de Hitler.
Será que eles ainda se mantêm em atividade enquanto
escrevo? Ah, temo que sim, e parecendo um bando muito menos
louco do que naquele tempo, quando meu trabalho era circular entre
eles. Smiley uma vez me citou Horace Walpole, um nome que de
outra forma não afloraria naturalmente à minha mente: Este mundo
é uma comédia para aqueles que pensam, disse Walpole, uma
tragédia para aqueles que sentem. Para a comédia, Munique tem
seus bávaros. E para a tragédia, seu passado.
Minha memória é um tanto vaga, quase vinte anos depois,
sobre os antecedentes políticos do Professor. Na ocasião, eu
fantasiava que os compreendia... e, na verdade, devia mesmo
compreender, pois a maioria das minhas noites com ele eram
consumidas a escutar seus relatos da história húngara entre as
guerras. E tenho certeza de que os incluímos no livro também...
valendo um capítulo, no mínimo, o que eu poderia confirmar se
conseguisse descobrir um exemplar.
O problema era que ele se sentia muito mais feliz evocando o
passado da Hungria do que tratando de seu presente. Talvez tivesse
aprendido, numa vida de permanente ajustamento, que é mais
sensato limitar as preocupações a questões seguramente
consignadas à história. Havia os Legitimistas, pelo que me recordo,
e apoiavam o rei Charles, que efetuara um súbito retorno à Hungria
em 1921, para grande consternação dos Aliados, que lhe ordenaram
discretamente que saísse de cena. Não creio que o Professor
pudesse ter mais de cinco anos de idade quando ocorreu esse
evento comovente, mas falava a respeito com lágrimas nos olhos
iluminados, e havia muito em sua atitude para sugerir o toque
transitório da monarquia. E quando mencionava o Tratado de
Trianon, a mão branca e refinada que segurava o copo de vinho
sempre tremia, numa indignação contida.
— Foi um Diktat, Herr Ned — protestava ele, numa censura
cortês. — Imposto a nós por vocês, os vencedores. Roubaram-nos
dois terços de nossas terras sob a Coroa! Entregaram à
Tchecoslováquia, Romênia, Iugoslávia. Entregaram a toda essa ralé,
Herr Ned! E nós, húngaros, éramos um povo refinado! Por que
fizeram isso conosco? Para quê? Eu só podia pedir desculpas pelo
péssimo comportamento de meu país, assim como só podia pedir
desculpas pela Liga das Nações, que destruíra a economia húngara
em1. É verdade que nunca entendi como a Liga efetuara esse ato
irresponsável, mas lembro que tinha alguma coisa a ver com o
mercado do trigo, e a rígida política da Liga de deflação ortodoxa.
Quando nos aproximávamos de questões mais
contemporâneas, no entanto, o Professor tornava-se estranhamente
reticente em suas opiniões.
— É outra catástrofe — era tudo o que ele dizia. — É tudo
uma consequência de Trianon e dos judeus.
Raios do sol poente entravam pela janela do jardim para
iluminar a magnífica cabeça branca de Teodor. Ele era como um
leão, podem estar certos, testa larga e socrático, como um grande
maestro à beira do gênio durante todo o tempo, as mãos refinadas e
cabelos soltos, uma ligeira corcunda de profundidade intelectual.
Ninguém que parecia tão venerável podia ser superficial — nem
mesmo quando os doutos olhos pareciam um pouco pequenos
demais para as órbitas, ou se deslocavam furtivamente para um
lado, à maneira de um freguês num restaurante que avista uma
refeição melhor passando por sua mesa.
Não, não, ele era um grande homem, um homem de bem, foi
nosso agente por quinze anos. Se um homem é alto, então
obviamente ele tem autoridade. Se possui uma voz sonora, então
suas palavras são valiosas. Se parece como Schiller, deve sentir
como Schiller. Se o sorriso é remoto e espiritual, então com certeza
o homem por dentro também é assim. Essa é a sociedade visual.
Só que de vez em quando, como penso agora, Deus se
diverte ao nos apresentar um homem completamente diferente por
dentro da embalagem. Alguns vão a pique, naufragam.
Outros se expandem até enfrentarem o desafio de sua
aparência. E com uns poucos não acontece nada disso, apenas
exibem seu esplendor como um favor concedido lá do alto,
aceitando as homenagens que não lhes são devidas.
A história operacional do Professor pode ser contada num
instante. Até depressa demais, pois foi um tanto banal. Ele nasceu
em Debrecen, perto da fronteira romena, filho único de pais
indulgentes da pequena nobreza que recolhia suas velas a cada
vento. Através dos pais, ele herdou dinheiro e ligações, uma coisa
que acontecia com mais frequência nos supostos países socialistas,
mesmo naquele tempo, do que vocês podem imaginar. Era um
homem devotado às letras, autor de artigos para publicações
eruditas, um pouco poeta e um amante várias vezes casado. Usava
os casacos como se fossem capas, as mangas soltas. Podia se
entregar a todos esses luxos, por causa de seus privilégios e
discreta riqueza.
Em Budapeste, onde ensinava uma lânguida versão de
filosofia, adquirira um modesto séquito entre os estudantes, que
discerniam mais fogo nas palavras de Teodor do que ele tencionava,
pois nunca fora talhado para ser um orador, a retórica sendo algo
para a ralé. Mesmo assim, elevara-se por uma certa distância para
atender às necessidades dos estudantes. Observara a paixão dos
jovens e, como um conciliador natural, reagira lhe proporcionando
uma voz — bastante moderada, é verdade, mas ainda assim uma
voz, e uma voz que os estudantes respeitavam, junto com suas
belas maneiras e o ar de representante de uma ordem mais antiga e
melhor. A esta altura, ele já alcançara idade suficiente para se sentir
empolgado com a adulação juvenil, e sempre foi vaidoso. E através
da vaidade ele se permitiu ser levado pela maré
contrarrevolucionária. Assim, quando os tanques soviéticos voltaram
da fronteira e cercaram Budapeste, na terrível noite de 3 de
novembro de 1956, ele não tinha opção que não correr por sua vida,
o que tratou de fazer, indo cair nos braços do serviço secreto
britânico.
O primeiro ato do Professor, ao chegar a Viena, foi telefonar
para um amigo húngaro em Oxford, pressionando-o à sua maneira
peremptória por dinheiro, apresentações e cartas testemunhando
sua excelência. Esse amigo, por acaso, era também um amigo do
Circo, e se estava no auge da temporada de recrutamento.
Em poucos meses o Professor entrava para a folha de
pagamento. Não houve quase namoro, nenhum envolvimento
insinuante, nem mesmo a costumeira dança dos sete véus. A oferta
foi apresentada, e aceita como devida. Um ano depois, com a
generosa ajuda americana, o Professor Teodor encontrava-se
instalado em Munique, numa casa confortável à beira do rio, com
um carro e sua devotada embora tresloucada esposa Helena, que
escapara junto com ele — e, podia-se desconfiar, um tanto para seu
pesar. Dali por diante, durante um período extraordinariamente
longo, o Professor Teodor foi a vanguarda improvável de nossa
ofensiva húngara e nem mesmo Haydon conseguiu desbancá-lo.
Seu trabalho de cobertura era o de aristocrata exilado na
Rádio Europa Livre, falando sobre a história e cultura da Hungria,
uma função que se ajustava a ele como uma luva. Nunca fora
qualquer outra coisa, diga-se de passagem. Além disso, ele era
professor e dava aulas particulares — principalmente, não pude
deixar de notar, para moças. Seu trabalho clandestino, pelo qual,
graças aos americanos, era muito bem remunerado, consistia em
promover contatos com os amigos e ex-alunos que deixara para
trás, tornando-se um foco para eles, um ponto de concentração, e
sob orientação convertê-los numa rede operacional, embora
nenhuma, ao que eu saiba, jamais tenha se concretizado. Era uma
operação visionária, talvez melhor no papel do que na prática. O
que não a impediu de continuar e continuar. Prolongou-se por cinco
anos, depois outros cinco, e quando assumi o controle do grande
homem já completara uma extraordinária existência de quinze anos.
Algumas operações são assim, favorecidas pela estagnação. Não
são dispendiosas, não são conclusivas, não levam necessariamente
a parte alguma — mas o impasse político também não leva — são
livres de escândalo. E a cada ano, quase se efetua a auditoria
anual, são aprovadas sem uma votação, até que a própria
longevidade torna-se sua justificativa.
Não vou dizer que o Professor nada conseguira por nós
durante todo esse tempo. Dizer isso não apenas seria injusto, mas
também desairoso para Toby Esterhase, ele próprio de origem
húngara, que em sua reintegração Depois da Queda tornara-se o
encarregado da condução do caso do Professor. Toby pagara um
preço alto por seu apoio cego a Haydon, e quando recebeu a seção
húngara — nunca a mais apreciada das vagas da Cortina de Ferro
— o Professor prontamente tornou-se o jogador mais importante no
programa de reabilitação pessoal de Toby.
— Eu diria que Teodor, Ned... Teodor é nosso astro
absolutamente total — assegurara-me ele, antes de minha partida
de Londres, durante um almoço que quase pagou. — Velha guarda,
discrição plena, muitos anos na sela, leal como uma sanguessuga.
Teodor é nosso grande trunfo.E, sem dúvida, um dos feitos mais
excepcionais do Professor fora o de escapar ao cutelo de Haydon —
ou porque tivera sorte ou, sendo menos caridoso, porque o
Professor nunca produzira informações suficientes para merecer o
interesse de um ocupado traidor. Pois não pude deixar de notar,
enquanto me preparava para assumir o cargo — meu antecessor
morrera subitamente de um derrame, quando se encontrava de
licença em Ibiza — que a ficha pessoal de Teodor estendia-se por
vários volumes, mas o arquivo de sua produção era
excepcionalmente mínimo. Isso podia ser explicado em parte pelo
fato de que sua principal função sempre fora a de localizar talentos,
não explorá-los, em parte porque as poucas fontes que ele trouxera
para a nossa rede, durante o longo período em que vinha
trabalhando para nós, ainda eram relativamente improdutivas.
— A Hungria, Ned, é no momento um alvo muito difícil —
garantiu-me Toby, quando delicadamente lhe ressaltei esse aspecto.
— É aberto demais. E quando se tem um alvo aberto, pode-se
receber muita besteira de que já se tem conhecimento. Se você não
consegue as Joias da Coroa, só obtém o que é do conhecimento
comum... e quem precisa disso? Mas é fantástico o que Teodor
produz para os americanos.
Essa parecia ser a essência da questão.
— E o que ele produz de fato para os americanos, além de
suas preleções no rádio e artigos que ninguém lê? O sorriso de Toby
tornou-se desagradavelmente superior.
— Desculpe, Ned, meu velho, mas receio que é só para
quem-precisa-saber. Você não foi incluído nessa lista.
Poucos dias depois, como o protocolo exigia, visitei Russell
Sheriton na Grosvenor Square, a fim de me despedir. Sheriton era o
chefe da Estação Londres dos Primos, mas era também
responsável pelas operações na Europa Ocidental. Deixei passar
algum tempo e depois lancei no ar o nome de Teodor.
— Ah, sim, Munique é que pode falar sobre ele, Ned —
respondeu Sheriton no mesmo instante. — Você me conhece.
Nunca invado a jurisdição de outro homem.
— Mas ele está sendo útil para vocês? Isso é tudo o que
quero saber. Afinal, os agentes não costumam se esgotar? E já se
passaram quinze anos.
— Ora, Ned, sempre pensamos que ele estava sendo útil
para vocês. A julgar pelo que Toby fala, pode-se pensar que Teodor
sustenta o mundo livre sozinho.
Essa não, pensei. A julgar pelo que Toby fala, pode-se pensar
que Teodor sustenta o mundo livre sozinho. Mas eu não era cético.
Na espionagem, tanto quanto na vida, é sempre mais fácil dizer não
do que sim. Cheguei a Munique disposto a acreditar que Teodor era
o astro que Toby o considerava. Tudo o que queria era ter certeza.
E tive. A princípio tive. Ele era magnífico. Eu pensava que o
casamento com Mabel me livrara para sempre desses entusiasmos
rápidos, o que de certa forma acontecera mesmo, até a noite em
que ele me abriu a porta e concluí que deparara com uma daquelas
relíquias perfeitamente conservadas da Europa Central. Tudo o que
podia fazer, de boa fé, era sentar a seus pés como o resto dos
discípulos e absorver sua sabedoria. É para isso que temos o
Serviço!, pensei. Vale à pena salvar um homem assim por ele
próprio! A cultura, pensei. A profundidade. Os anos e anos de
serviços prestados.
Ele me recebeu calorosamente, mas com uma certa distância,
como convinha à sua idade e distinção. Ofereceu-me um copo de
excelente Tokay e deleitou-me com um discurso sobre sua
proveniência. Não, confessei, eu não sabia muita coisa sobre os
vinhos húngaros, mas estava ansioso em aprender. Ele falou de
música, um assunto em que também sou lamentavelmente
ignorante, tocou alguns acordes para mim em seu precioso violino, o
mesmo que trouxera ao fugir da Hungria, explicou-me, fabricado não
por Stradivarius, mas por alguém infinitamente melhor, cujo nome há
muito me escapou. Pensei que era um privilégio extraordinário dirigir
um agente que fugira com seu violino. Ele falou de teatro. Uma
companhia teatral húngara apresentava-se naquela ocasião em
Munique, com um Othello excepcional. Mabel e eu ainda não
assistíramos à produção, mas fiquei encantado com sua opinião a
respeito. Ele vestia-se no que os alemães chamam de Hausjacke,
calça preta e botas engraxadas com perfeição. Conversamos sobre
Deus e o mundo, comemos o melhor gulash de minha vida, servido
pela tresloucada Helena, que murmurou suas desculpas e depois se
retirou. Era uma mulher alta e outrora devia ter sido bonita, mas
preferiu ostentar os sinais de sua negligência. Encerramos a
refeição com um Palinka.— Herr Ned, se me permite chamá-lo
assim, — disse o Professor — há um problema que me pesa na
mente e que peço que me permita levantá-lo, logo no início de
nosso relacionamento profissional.
— Por favor, diga do que se trata — respondi, magnânimo.
— Infelizmente, seu mais recente antecessor... um bom
homem, é claro... — Ele fez uma pausa, obviamente incapaz de
falar mal do falecido. — ...e também você, um homem de cultura...
— Continue, por favor.
— Relaciona-se com o meu passaporte britânico.
— Eu não sabia que tinha um! — exclamei, surpreso.
— É justamente essa a questão. Não tenho. Pode-se
compreender que há problemas. É o que acontece com todas as
burocracias. As burocracias são as piores instituições do homem,
Herr Ned. Veneram o que existe de pior em nós e desprezam o que
há de melhor. Um exilado húngaro vivendo em Munique, empregado
de uma organização americana, não é naturalmente aceitável para a
cidadania britânica. Compreendo isso. Não obstante, depois de
tantos anos de colaboração com seu departamento, creio que esse
passaporte me é devido. Um documento de viagem temporário não
é uma alternativa digna.
— Mas pelo que sei os americanos estão lhe dando um
passaporte! Não foi esse o acordo desde o início? Os americanos
não seriam responsáveis por sua cidadania e reassentamento? Isso
inclui um passaporte, com certeza. Não pode deixar de incluir.
Eu me sentia transtornado por descobrir que um homem que
nos dera tanto de sua vida visse negada aquela mínima dignidade.
Mas o Professor aprendera uma atitude mais filosófica.
— Os americanos, Herr Ned, são um povo jovem e
mercenário. Depois de aproveitarem o melhor de mim, mal me
consideram como um homem do futuro. Para os americanos, já
pertenço à lata de lixo da obsolescência.
— Mas eles não prometeram... na dependência de um serviço
satisfatório? Tenho certeza que prometeram! O Professor fez um
gesto que jamais esquecerei. Levantou as mãos da mesa como se
estivesse erguendo uma pedra prodigiosamente pesada. Levou-as
quase ao nível dos ombros, antes de deixá-las cair com toda força
sobre a mesa, a pedra imaginária entre elas. E lembro-me de seus
olhos, indignados do esforço, acusando-me no silêncio. Eis as
promessas de vocês, ele dizia. De vocês e dos americanos.
— Gostaria apenas que providenciasse meu passaporte, Herr
Ned.
Como um leal controlador, preocupado com o melhor para
meu agente, lancei-me no problema. Conhecendo Toby há muito
tempo, resolvi assumir um tom oficial desde o início: nada de
promessas vagas, nada de garantias impalpáveis para mim.
Comuniquei a Toby o pedido de Teodor e solicitei sua orientação.
Afinal, ele era o meu superior direto, meu âncora em Londres. Se
era verdade que os americanos se esgueiravam ao cumprimento da
promessa de conceder cidadania ao Professor, a questão teria de
ser resolvida em Londres ou Washington, argumentei, não em
Munique. E se, por razões alheias ao meu conhecimento, um
passaporte britânico tivesse de ser concedido no final das contas,
isso também exigiria o endosso vigoroso do Quinto Andar. Haviam
terminado para sempre os dias em que o escritório central distribuía
à vontade a cidadania britânica para qualquer ex-agente do Circo.
Era uma consequência da Queda.
Não transmiti meu pedido pelo rádio, mas sim pela mala
diplomática, o que na tradição do Circo confere uma formalidade
maior. Escrevi uma carta agressiva e duas semanas depois
acompanhei-a com um bilhete. Mas mostrei-me neutro quando o
Professor pediu um relatório de progresso. Está nos canais
competentes, assegurei-lhe; e o pessoal de Londres não gosta de
ser pressionado. Mas ainda me perguntava por que Toby demorava
tanto a responder.
Enquanto isso, em minhas reuniões com Teodor, empenhava-
me em decifrar com precisão o que ele fazia para nós que o
transformava no grande astro do firmamento despovoado de Toby.
As investigações não foram facilitadas pelo melindre do Professor, e
a princípio especulei se ele não estaria evitando uma colaboração
até que fosse resolvida a questão do passaporte. Pouco a pouco, no
entanto, compreendi que esse era o seu comportamento normal em
tudo o que se referia ao nosso trabalho secreto.Um dos seus
trabalhos rotineiros era manter um apartamento conjugado de
estudante no distrito de Schwabing, que ele usava como um
endereço seguro para receber correspondência de certos contatos
húngaros. Persuadi-o a me levar até lá. Ele abriu a porta e devia
haver uma dúzia de envelopes espalhados pelo chão, todos com
selos húngaros.
— Por Deus, Professor, quando esteve aqui pela última vez?
— indaguei, observando-o recolher os envelopes.
Ele deu de ombros, um pouco contrafeito, em minha opinião.
— Quantas cartas normalmente recebe em uma semana,
Professor? Peguei os envelopes e verifiquei os carimbos postais. A
mais antiga fora remetida três semanas antes, a mais recente há
uma semana. Fomos para a pequena escrivaninha, coberta de
poeira. Com um suspiro, ele acomodou-se na cadeira, abriu uma
gaveta e tirou dois vidros de substâncias químicas e um pincel.
Pegando o primeiro envelope, examinou-o com uma expressão
sombria, depois abriu-o com um canivete.
— De quem é? — indaguei, com mais curiosidade do que ele
parecia considerar justificada.
— Pali.
— Pali do Ministério da Agricultura? — Pali do Debrecen. Ele
fez uma visita à Romênia.
— Para quê? Por acaso para a conferência "tóxicos-armas"?
Isso poderia ser uma grande oportunidade! — Veremos. Uma
conferência acadêmica qualquer. Seu campo é a cibernética. Um
homem sem muita distinção.
Observei-o mergulhar o pincel no primeiro vidro e passar pelo
verso da carta escrita à mão. Lavou o pincel com água e aplicou a
segunda substância. E me parecia que estava determinado a
demonstrar seu desdém por um trabalho tão desprezível. Repetiu o
processo em cada carta, às vezes variando a rotina ao abrir o
envelope e passar as substâncias na parte interna, ou apenas
pincelando nas entrelinhas do texto visível. Com os mesmos
movimentos lentos, foi sentar diante de uma Remington e bateu a
tradução dos textos que haviam aparecido: deficiências previstas de
minerais e energia nas novas indústrias... reduzido conteúdo de
metal no minério de ferro recentemente extraído na região de
Miskolc... projeção das colheitas de milho e beterraba em alguma
outra região... rumores de um plano quinquenal para revitalizar a
rede federal estatizada... ação de protesto contra autoridades do
Partido em Sopron... Eu quase que podia ouvir os bocejos dos
analistas do Terceiro Andar enquanto examinavam aquele material
empolado. Lembrei como Toby se gabara que Teodor só estava
interessado em informações da melhor qualidade. Se aquilo era o
melhor, então o que podia ser o pior? Paciência, recomendei a mim
mesmo. Os grandes agentes merecem alguma indulgência.
No dia seguinte recebi uma resposta à carta sobre o
passaporte. O problema, explicou Toby, era que houvera muitas
mudanças na Seção Húngara dos Primos nos últimos anos. Um
esforço estava agora sendo efetuado, disse ele — fazendo um uso
suspeito da voz passiva — para definir os termos de quaisquer
encargos a serem assumidos pelos americanos ou por nós.
Enquanto isso, eu deveria evitar a discussão do assunto com
Teodor, acrescentou ele — como se fosse eu, não o Professor,
quem estivesse insistindo na questão.
O problema ainda se encontrava em suspenso três semanas
depois, quando almocei com Milton Wagner, no Cosmo. Wagner era
um veterano e meu equivalente americano. Estava agora
encerrando sua carreira como o Chefe de Operações do Leste dos
Primos em Munique. O Cosmo era o tipo de lugar que os
americanos providenciam em qualquer parte, com batatas fritas e
molho de alho, enormes sanduíches empalados por compridos
alfinetes de plástico.
— Como está se dando com o nosso eminente amigo
acadêmico? — perguntou ele, com seu sotaque sulista, depois que
despachamos outros assuntos.
— Muito bem.
— Alguns de nossos homens parecem pensar que Teodor
tem se aproveitado de nós durante todos esses anos — comentou
Wagner, falando bem devagar.
Desta vez não falei nada.
— O pessoal lá na base fez uma retrospectiva de seu
trabalho. E o resultado não foi dos melhores, Ned. Longe disso.
Algumas das coisas que ele vem falando no rádio, em "Alô,
Hungria". Já foi dito antes. Descobriram uma passagem que falando
no rádio, em "Alô, Hungria". Já foi dito antes. Descobriram uma
passagem que é igualzinha a um artigo publicado em Der Monat em
1948. O autor original reconheceu suas próprias palavras assim que
as ouviu no ar e não se conteve. — Wagner serviu-se de uma
porção generosa de ketchup. — É bem possível que um dia desses
o chamemos para uma conversa franca.
— Provavelmente ele está passando por um período ruim.
— Quinze anos é um período ruim longo demais, Ned.
— Ele sabe que vocês o estão investigando? — Na Rádio
Europa Livre, Ned? Entre húngaros? Intrigas? Você deve estar
brincando.
Eu não podia mais conter minha ansiedade.
— Mas por que ninguém avisou a Londres? Por que vocês
não nos falaram? — Claro que falamos, Ned. Mas deve
compreender que os recados caíram em ouvidos surdos. Um mau
momento para vocês. Sabemos disso.
A esta altura, o impacto da notícia já fora absorvido por
completo. Se o Professor andava trapaceando em suas mensagens
pelo rádio, a quem mais não poderia estar trapaceando também? —
Milt, posso lhe fazer uma pergunta tola? — À vontade, Ned.
— Teodor alguma vez realizou um bom trabalho para vocês?
Durante todo esse tempo? Um trabalho secreto? Um trabalho muito
secreto? Wagner pensou por algum tempo, determinado a conceder
ao Professor o benefício da dúvida.
— Não posso dizer que sim, Ned. Até pensamos uma ocasião
em usá-lo como intermediário para um dos nossos peixes graúdos,
mas o comportamento do velho não nos agrada.
— Posso acreditar nisso? — Alguma vez já menti para você,
Ned? Eis aí o trabalho fantástico que ele vem realizando para os
americanos, pensei. Todos os anos de leais serviços de que
ninguém consegue se recordar direito. "• Mandei uma mensagem
para Toby imediatamente. Perdi algum tempo a elaborar textos
diferentes, porque a raiva me atrapalhava. Compreendia
perfeitamente agora por que os americanos recusavam-se a
conceder um passaporte ao Professor, e por que ele recorrera a
nós. Compreendia seu ar de últimos dias, a apatia, a falta de
urgência: ele esperava a sua demissão. Repeti a informação de
Wagner e indaguei se era conhecida no escritório central. Se não,
os Primos eram culpados por não terem partilhado conosco. Por
outro lado, se os Primos haviam mesmo nos avisado, por que eu
não fora avisado também? Na manhã seguinte recebi a resposta
esquiva de Toby. O tom era pomposo. Desconfiei que ele pedira a
alguém para escrevê-la, pois era desprovida de sotaque. Os Primos
haviam transmitido a Londres "um aviso não específico", ele
explicou, de que o Professor podia enfrentar "indagações
disciplinares em alguma data futura a respeito de suas transmissões
radiofônicas". O escritório central — pelo que desconfiei que ele se
referia a si mesmo — "adotara a posição" de que o relacionamento
do Professor com seus empregadores americanos não era da conta
do Circo. O escritório central também "levava em consideração" —
quem o faria a não ser Toby? — que com tanto trabalho operacional
a ocupá-lo, podia-se desculpar o Professor por quaisquer "pequenas
deficiências" em seu trabalho de cobertura. Se fosse necessário
providenciar outro trabalho de cobertura para o Professor, o
escritório central "tomaria as medidas cabíveis, na ocasião
oportuna". Uma solução seria colocá-lo numa das revistas dóceis de
que ele já era um colaborador. Mas isso era coisa para o futuro. O
Professor já tivera conflitos antes com seus empregadores, lembrou-
se Toby, e se livrara da tempestade. Era verdade. Uma secretária
queixara-se de seus avanços e elementos da comunidade húngara
protestaram contra suas posições antissemitas.
Quanto ao resto, Toby aconselhava-me a esfriar, ganhar
tempo, e — sempre uma máxima de Toby — agir como se nada
tivesse acontecido. Era essa a situação quando, uma semana e
doze horas depois, o Professor telefonou-me às dez horas da noite,
usando a palavra de código para emergência e pedindo-me em voz
estrangulada mas autoritária que fosse à sua casa imediatamente,
entrando pela porta do jardim.
Meu primeiro pensamento foi o de que ele matara alguém,
possivelmente a esposa. Eu não poderia estar mais equivocado.O
Professor abriu a porta dos fundos e fechou-a assim que entrei. O
interior da casa se encontrava imerso na semiescuridão. Em algum
lugar um relógio de pé bateu, como se fosse uma bomba. De pé na
entrada da sala de estar avistei Helena, as mãos na boca, abafando
um grito. Vinte minutos haviam transcorrido desde o telefonema de
Teodor, mas o grito ainda parecia prestes a sair de sua boca.
Havia duas poltronas diante de um fogo agonizante na lareira.
Uma se achava vazia. Presumi que era a do Professor. Na outra, um
tanto obscurecido de minha linha de visão, sentava um homem
roliço, em torno dos quarenta anos, cabelos pretos e lisos, olhos
redondos e faiscantes a dizer que somos todos amigos, não é
mesmo? Sua poltrona tinha encosto alto e orelhas, ele se
acomodara no canto, como um passageiro de avião preparado para
o pouso. Os sapatos de pontas arredondadas não alcançavam o
chão e ocorreu-me que eram sapatos europeus orientais: de verniz,
um couro indefinível, solas gastas. O terno felpudo marrom era
como um uniforme militar reformado. À sua frente estava uma mesa
com um vaso de jacintos malvas em cima, com diversos objetos ao
lado, que reconheci como instrumentos de morte silenciosa: dois
garrotes de pinos de madeira e pedaços de corda de piano; uma
chave de parafusos tão afiada que era um estilete; um revólver .38
do serviço secreto com um cilindro de cinco balas, junto com dois
tipos de balas, seis de ponta lisa e seis de ponta estriada, com
pólvora espremida nos sulcos.
— É cianureto — explicou o Professor, em resposta à minha
perplexidade silenciosa. — Uma invenção do Demônio. A bala só
precisa roçar na vítima para destruí-la completamente.
Descobri-me a especular como a pólvora envenenada poderia
sobreviver ao calor intenso do cano de um revólver.
— Este cavalheiro chama-se Ladislaus Kaldor — continuou o
Professor. — Foi enviado pela polícia secreta húngara para nos
matar. É um amigo. Sente-se, por gentileza, Herr Ned.
Com a maior cerimônia, Ladislau Kaldor levantou-se e
apertou-me a mão, efusivamente, como se tivéssemos acabado de
concluir um negócio proveitoso.
— Senhor! — exclamou ele, feliz, em inglês. — Latzi.Sinto
muito, senhor. Não se preocupe com nada. Todos me chamam de
Latzi. Herr Doktor. Meu amigo. Por favor, sente-se. Sim.
Lembro como a fragrância dos jacintos parecia combinar à
perfeição com seu sorriso. Foi só pouco a pouco que comecei a
perceber que não experimentava a menor sensação de perigo.
Algumas pessoas irradiam perigo durante todo o tempo; outras o
fazem quando estão furiosas ou ameaçadas. Mas Latzi, quando fui
capaz de consultar meus instintos, transmitia apenas uma enorme
vontade de agradar. O que talvez seja tudo o que é necessário
quando se é um assassino profissional.
Não me sentei. Um coro de sentimentos conflitantes uivava
em minha cabeça, mas a fadiga não era um deles. As xícaras de
café vazias, eu estava pensando. Os pratos vazios com migalhas de
bolo. Quem come bolo e toma café quando sua vida é ameaçada?
Latzi tomou a sentar, sorrindo como um mágico. O Professor e a
esposa estudavam meu rosto, mas de lugares diferentes na sala.
Eles brigaram, pensei; a crise os tangera para seus cantos
separados. Um revólver americano, pensei. Mas não o cilindro
sobressalente que os jogadores mais sérios sempre levavam.
Sapatos europeus orientais, com solas que deixam marcas nítidas
em cada tapete ou chão encerado. Balas de cianureto com
cianureto que se consumiria no calor intenso do cano.
— Há quanto tempo ele está aqui? — perguntei ao Professor.
Teodor deu de ombros. Eu detestava aquele gesto.
— Uma hora. Menos.
— Mais de uma hora — contestou-o Helena. Seu olhar
indignado fixava-se em mim. Até aquela noite, ela fizera questão de
me ignorar, passando por mim como um fantasma, sorrindo ou
amarrando a cara para o chão, a fim de demonstrar sua
desaprovação. E de repente precisava de meu apoio. — Ele tocou a
campainha exatamente às quinze para as nove. Eu estava
escutando rádio. O programa mudou.
Olhei para Latzi.
— Você fala alemão? — Jawohl, Herr Doktor! De volta a
Helena.
— Que programa? — O Serviço Internacional da BBC.
Fui até o rádio e liguei-o. Um acadêmico de voz esganiçada
de Oxford, gênero indeterminado, falava sobre Keats. Obrigado,
BBC. Desliguei o rádio.
— Ele tocou a campainha... quem atendeu? — Fui eu —
respondeu o Professor.
— Foi ele — disse Helena.
— Por favor — acrescentou Latzi.
— E depois? — Ele estava parado na porta, usando um
capote — informou o Professor.
— Uma capa — corrigiu Helena.
— Perguntou se eu era o Professor Teodor, respondi que sim.
Ele deu o seu nome e disse: "Perdoe-me, Professor, mas vim matá-
lo com um garrote ou uma bala de cianureto, mas não quero fazer
isso, sou seu discípulo e admirador. Quero me entregar a você e
permanecer no Ocidente." — Ele falou em húngaro? — Claro.
Helena não concordava.
— Não! Teodor me chamou primeiro. — Antes daquela noite,
eu nunca a ouvira corrigir o marido. Agora ela o fizera duas vezes,
em dois minutos. — Ele me chama e diz:''Helena, temos uma visita."
Eu digo: "Ótimo." Depois ele convida Latzi a entrar em nossa casa.
Eu pego sua capa, penduro no vestíbulo, faço café. Foi assim que
aconteceu, exatamente.
— E bolo — acrescentei. — Você fez um bolo.
— O bolo já estava pronto.
— Você sentiu medo? — perguntei, pois o medo, como o
perigo, era algo que faltava.
— Fiquei repugnada, fiquei chocada — respondeu Helena. —
Agora estou com medo... isso mesmo, estou com muito medo.
Todos estamos com medo.
— E você? — perguntei ao Professor.
Ele tornou a dar de ombros, como a dizer que eu era o último
homem no mundo a quem confidenciaria seus sentimentos.
— Por que não leva sua esposa para o estúdio? — sugeri.Ele
parecia propenso a argumentar, mas depois mudou de ideia.
Estranhos de braços dados, eles saíram da sala.
Fiquei a sós com Latzi. Permaneci de pé, ele sentou. Munique
pode ser uma cidade muito silenciosa. Mesmo em repouso, seu
rosto ainda me sorria, insinuante. Os olhos pequenos ainda
faiscavam, mas não havia nada que eu pudesse perceber neles.
Deu-me um aceno de cabeça como encorajamento, o sorriso se
alargou. Disse "por favor" e acomodou-se mais confortavelmente na
poltrona. Fiz o que todo centro-europeu compreende. Estendi a
mão, a palma virada para cima, passei o polegar pela ponta do
indicador. Ainda sorrindo, ele vasculhou no bolso interno do casaco
e me entregou seus documentos. Estavam em nome de Egon
Braubach, nascido em 1933, ocupação artista. Jamais conheci
alguém que parecesse menos com um artista bávaro. Havia um
passaporte alemão ocidental, uma carteira de motorista e um
documento da previdência social. Nenhum deles, ao que me
pareceu, era convincente. Nem seus sapatos.
— Quando entrou na Alemanha? — Esta tarde, Herr Doktor,
esta tarde às cinco horas.
— De onde veio? — Viena, senhor. Viena — repetiu ele,
apressado, meio ofegante, como se me fizesse uma dádiva da
cidade inteira, tornando a se remexer na poltrona, aparentemente
para demonstrar mais subserviência. — Peguei o primeiro trem para
Munique esta manhã, Herr Doktor.
— A que horas? — Às oito horas, senhor. O trem das oito
horas.
— Quando entrou na Áustria? — Ontem, Herr Doktor. Estava
chovendo.
— Que documentos apresentou na fronteira austríaca? —
Meu passaporte húngaro, Excelência. Recebi em Viena os
documentos alemães.
O suor se formava em seu lábio superior. O alemão era
fluente, mas inconfundivelmente balcânico. Viajara de trem, ele
disse: Budapeste, Oyor, Viena, Herr Doktor.
Os superiores haviam lhe dado uma galinha fria e uma
garrafa de vinho para a viagem. Com picles, Meritíssimo, e páprica.
Mais sorrisos. Chegando em Viena, ele fora para o Hotel Altes
Kaiserreich, perto da estação ferroviária, onde haviam lhe reservado
um quarto. Um quarto humilde, um hotel humilde, Excelência, mas
sou um homem humilde. Fora no hotel, tarde da noite, que recebera
a visita de um cavalheiro húngaro que nunca vira antes.
— Mas desconfio que era um diplomata, Herr Doktor. Era
distinto como Sua Excelência! O cavalheiro lhe dera o dinheiro e
documentos, ele explicou — e o arsenal que se encontrava à nossa
frente, em cima da mesa.
— Onde está hospedado em Munique? — Numa pensão
modesta, à beira da cidade, Herr Doktor — respondeu ele, com um
sorriso contrito. — Mais um bordel. Isso mesmo, um bordel. Há
sempre muitos homens ali, entrando e saindo.
Ele informou o nome e tive a vaga noção de que ia me
recomendar uma das mulheres.
— Eles mandaram que ficasse lá? — Pela discrição, Herr
Doktor. O anonimato.
— Tem alguma bagagem lá? Ele deu de ombros, o gesto do
pobre coitado, muito diferente do Professor.
— Uma escova de dentes. Algumas roupas. Uma bolsa,
senhor. Tudo muito modesto.
Na Hungria era por profissão um jornalista especializado em
assuntos agrícolas, disse ele, mas passara a ter uma segunda fonte
de renda trabalhando para a polícia secreta, primeiro como
informante e depois, mais recentemente, pelo dinheiro, como
assassino. Cumprira certas missões na Hungria, mas preferia —
perdoe-me, Excelência — não revelar quais tinham sido, até receber
a garantia de que não seria processado no Ocidente. O Professor
era sua primeira "missão no exterior, mas seu senso de decoro fora
ofendido pela perspectiva de matá-lo.
— O Professor é um homem de saber, Herr Doktor! De
reputação! Não é nenhum judeu ou padre! Por que eu deveria matar
esse homem? Sou um ser humano respeitável, Deus seja louvado!
Tenho minha honra! — Diga-me quais foram as ordens que recebeu.
Não eram complicadas. Ele deveria tocar a campainha da
porta do Professor, haviam lhe dito — por isso ele tocara.
O Professor com certeza estaria em casa, pois nas quartas-
feiras dava aulas particulares até nove horas, haviam lhe dito. O
Professor se encontrava de fato em casa. Deveria se apresentar
como um amigo de Pali de Debrecen. Tomara a liberdade de não se
apresentar nesses termos. Entrando na casa, deveria matar o
Professor, por quaisquer meios que parecessem apropriados, mas
de preferência o garrote, já que era seguro e silencioso, embora
sempre houvesse o risco lamentável de decapitação. Deveria matar
Helena também, haviam lhe dito — talvez a matasse primeiro,
dependendo de quem abrisse a porta, eles não foram muito
específicos nesse ponto. Fora para essa emergência que trouxera
um segundo garrote. Com um garrote, Herr Doktor, ele explicou,
prestimoso, nunca se pode ter certeza de que será possível soltar o
instrumento depois do uso. Deveria em seguida ligar para um
telefone em Bonn, pedir para falar com Peter, e comunicar que "Susi
passará a noite com amigos" — Susi sendo o codinome do
Professor para a operação, Excelência. Esse era o sinal de sucesso,
embora nas atuais circunstâncias, Herr Doktor, devamos admitir que
ele não fora bem-sucedido. Risinhos.
— Telefonaria daqui? — indaguei.
— Desta casa, exatamente. Para Peter. Eles são homens
violentos, Herr Doktor. Ameaçam minha família. Não tenho
alternativa, naturalmente. Tenho uma filha. Deram-me instruções
rigorosas. "Telefonará para Peter da casa do Professor." — O que
deveria fazer no caso de fracasso? — Se a missão não pudesse ser
cumprida... se Herr Professor estivesse com visitas, ou não se
encontrasse disponível por algum outro motivo... devo ligar de uma
cabine telefônica e avisar que Susi está indo para casa.
— De alguma cabine telefônica específica? — Todas as
cabines telefônicas são apropriadas, Herr Doktor, no caso de
insucesso. Peter pode então me dar novas instruções, pode não dar.
Se não der, volto imediatamente para Budapeste. Alternativamente,
Peter pode dizer "Tente de novo amanhã", ou pode dizer "Tente
daqui a dois dias". Fica tudo ao critério de Peter nesse caso.
— Qual é o número do telefone em Bonn? Ele me deu.—
Esvazie os bolsos.
Um lenço caqui, algumas fotos de família mal copiadas,
inclusive de uma garota, presumivelmente a filha, três preservativos
europeus orientais, um maço aberto de cigarros russos, um precário
canivete de lata de óbvia fabricação oriental, um coto de lápis sem
tinta, 960 marcos alemães ocidentais, algumas moedas. Uma
passagem de volta de trem, na segunda classe, Viena-Munique-
Viena. Nunca eu vira antes, em toda a minha vida, uma colheita tão
miserável. O Serviço húngaro não tinha despachantes?
Controladores? Afinal, o que estavam pensando? — Deixe-me ver
sua capa também.
Observei-o ir buscá-la no vestíbulo. Era novinha. Os bolsos se
achavam vazios. Era de fabricação austríaca e boa qualidade. Devia
ter custado um bom dinheiro ocidental.
— Comprou isto em Viena? — Jawohl, Herr Doktor. Estava
chovendo muito e eu não tinha nenhuma proteção.
— Quando? — Como? — Com quê? — Como? Descobri que
ele podia me irritar muito depressa.
— Pegou o primeiro trem desta manhã, certo? Que deixou
Viena antes das lojas abrirem, certo? Não tinha o dinheiro até tarde
da noite passada, quando o diplomata húngaro foi procurá-lo. Então
quando comprou a capa que dinheiro usou? Ou será que roubou? É
essa a resposta? Primeiro, ele franziu o rosto; depois, riu indulgente
por minha violação das boas maneiras. Era evidente que me
perdoava. Abriu os braços em minha direção, magnânimo.
— Mas comprei ontem à noite, Herr Doktor! Quando cheguei
na estação! Com meu Valuten pessoal que trouxe da Hungria para
compras, é claro! Não sou um mentiroso! Por favor! — Guardou o
recibo? Ele sacudiu a cabeça, sabiamente, na orientação a um
homem mais jovem.
— Guardar recibos, Herr Doktor? Eu lhe dou um conselho.
Guardar recibos é atrair perguntas sobre onde arrumou o dinheiro.
Um recibo... é como um espião no bolso.
Desculpas demais, pensei, livrando-me do brilho de sua
mente. Respostas demais em um parágrafo. Todos os instintos me
diziam para não confiar em ninguém e em nada da história que me
era contada. Não era tanto o desleixo do plano de assassinato que
desafiava a minha credulidade — os documentos implausíveis, o
conteúdo dos bolsos, os sapatos — nem mesmo a improbabilidade
básica da missão. Já testemunhara o suficiente das operações de
baixo nível dos satélites soviéticos para considerar tal amadorismo
como a norma. O que me perturbava naquelas pessoas era a
irrealidade de seu comportamento em minha presença, a sensação
de que havia uma história para mim e outra para eles; de que eu
fora até ali para desempenhar uma função, e a vontade coletiva
exigia que eu me calasse e a realizasse.
Contudo, ao mesmo tempo, eu me encontrava acuado. Não
tinha opção, não tinha tempo, precisava aceitar tudo o que me
diziam. Estava na posição de um médico que desconfia que um
paciente simula a doença, mas não tem alternativa senão tratar dos
sintomas. Pelas regras do jogo, Latzi era um grande premio. Não
era todos os dias que um assassino húngaro se oferece para
desertar para o Ocidente, por mais incompetente que seja. Por outro
lado, o homem corria um perigo considerável, já que era
inconcebível que uma operação de assassinato de tanta importância
pudesse ser desfechada sem uma vigilância separada.
Quando em dúvida, diz o manual, siga a linha operacional.
Estariam vigiando a casa? Era necessário presumir que sim,
embora não fosse uma casa fácil de vigiar, o motivo pelo qual fora
recomendada aos controladores de Teodor quinze anos antes.
Ficava na extremidade de uma rua sem saída, os fundos davam
para o rio. Mas a varanda da frente era visível a qualquer um que
passasse por ali, e podiam ter observado a entrada de Latzi.
Subi e observei a rua pela janela lá de cima. As casas
vizinhas estavam escuras. Não vi sinais de carros ou pessoas
estranhas. Estacionara meu carro na rua transversal seguinte, perto
do rio. Voltei à sala de estar, O telefone ficava na estante. Peguei-o
e estendi o fone a Latzi, observei-o discar para o número em Bonn.
Suas mãos eram femininas e úmidas.Obsequioso, ele inclinou o
fone em minha direção, junto com sua cabeça. Ele recendia a
cobertor velho e tabaco russo. O telefone tocou, ouvi uma voz de
homem, bastante irritada, falando em alemão. Para alguém
aguardando a notícia de um assassinato, pensei, você está fazendo
um bom trabalho de fingir que não. Um sotaque carregado,
presumivelmente húngaro: — Alô? Quem é? Acenei com a cabeça
para que Latzi falasse.
— Boa noite, senhor. Eu gostaria, por favor, de falar com o Sr.
Peter.
— Sobre o quê? — É o Sr. Peter quem está falando, por
favor? O assunto é particular.
— O que você quer? — É Peter? — Meu nome é Peter! — É
sobre Susi, Sr. Peter — explicou Latzi, lançando-me uma piscadela
de lado. — Susi não virá para casa esta noite, Sr. Peter. Ficará com
amigos, infelizmente. Bons amigos. Será bem cuidada. Boa noite,
Sr. Peter.
Ele já ia repor o fone no gancho, mas segurei sua mão pelo
tempo suficiente para ouvir um grunhido de desdém ou
incompreensão no outro lado da linha. Latzi sorriu-me, bastante
satisfeito consigo mesmo.
— Ele trabalha bem, Herr Doktor. Um autêntico profissional,
eu diria. Um excelente ator, não concorda? — Reconheceu a voz?
— Não, Herr Doktor. Infelizmente, a voz não é familiar.
Abri a porta do estúdio. O Professor sentava à sua
escrivaninha, os punhos cerrados à sua frente. Helena sentava no
sofá. Eu sentia necessidade de transmitir meu ceticismo ao
Professor. Entrei na sala e fechei a porta.
— Esse homem Latzi, como o chama, é um criminoso —
declarei. — Ou ele é algum vigarista, ou um assassino confesso,
que veio para a Alemanha com documentos falsos, a fim de matá-lo
e à sua esposa. De qualquer maneira, você tem o direito de entregá-
lo à polícia alemã ocidental e acabar com ele. Quer fazer isso? Ou
prefere deixar a decisão para nós? O que acha melhor? Para minha
surpresa, ele pareceu genuinamente alarmado, pela primeira vez
naquela noite. Talvez não esperasse ser desafiado a tomar uma
decisão. Talvez a proximidade de sua própria morte lhe ocorresse.
Seja como for, tive a impressão de que ele atribuía mais importância
à questão do que eu podia entender. Helena desviara os olhos de
mim e também o observava. Com uma expressão crítica. Uma
mulher esperando para ser paga.
— Faça o que deve fazer — murmurou o Professor.
— Então devem fazer o que eu mandar. Os dois.
— Somos cooperativos. Seremos... isso mesmo,
cooperativos. Temos sido... cooperativos... há muitos anos. Até
demais.
Olhei para Helena.
— A responsabilidade é de meu marido.
Eu não tinha tempo para refletir sobre os mistérios dessa
sombria declaração.
— Então, por favor, juntem algumas coisas para passar a
noite e estejam prontos na porta do jardim dentro de cinco minutos.
Voltei à sala de estar e a Latzi. Acho que ele estava parado
junto da porta, pois recuou apressado quando entrei, depois
levantou as mãos cruzadas e me fitou radiante, indagando o que era
gefallig... o que eu desejava.
— Já tinha visto o Professor antes desta noite? — Não,
senhor. Apenas em fotografias. Mas não se pode deixar de admirá-
lo. Um autêntico aristocrata.
— E a esposa? — Eu já a conhecia, senhor. Naturalmente.
— Como? — Ela era uma atriz, Herr Doktor, uma das
melhores de Budapeste.
— E você a viu no palco? Outra pausa.
— Não, senhor.
— Então onde a conheceu? Ele estava tentando me decifrar.
Tive a impressão de que especulava se Helena me dissera alguma
coisa e tentava moldar suas respostas de acordo.
— Cartazes de teatro, Excelência. Quando ela era jovem, seu
rosto famoso se encontrava em cada esquina. Todos os jovens a
adoravam... eu não era exceção.
— Onde mais? Ele percebeu que eu não sabia de nada. E eu
percebi que ele percebeu.
— É muito triste o que acontece com a aparência de uma
mulher, Herr Doktor. Um homem pode permanecer magnífico até os
oitenta anos. Uma mulher...
Latzi suspirou. Deixei-o recolher suas armas e depois me
apoderei. Carreguei o revólver com as balas de ponta lisa. Ao fazê-
lo, um pensamento me ocorreu.
— Quando entrei aqui, o cilindro estava vazio e as balas
espalhadas sobre a mesa.
— Correto, excelência.
— Quando tirou as balas do cilindro? — Antes de entrar na
casa. A fim de poder demonstrar minhas intenções pacíficas.
Naturalmente.
— Naturalmente.
Ao nos encaminharmos para o vestíbulo, enfiei o revólver na
cintura.
— Se está com a ideia de fugir, quero avisá-lo de que atirarei
em você pelas costas. / Experimentei a satisfação de observar seus
olhinhos revirarem, em alarme. Os assassinos profissionais, ao que
parecia, não apreciavam o seu próprio medicamento.
Joguei a capa para Latzi e corri os olhos pela sala, à procura
de outros vestígios seus. Não restava mais nenhum. Ordenei a
todos que não fizessem barulhos e levei-os pela beira do rio até a
outra rua e meu carro. Uma atriz famosa, pensei, e não havia
qualquer indicação a respeito nos arquivos. Meti o Professor e
Helena no banco traseiro, instalei Latzi na frente, ao meu lado.
Ficamos sentados ali, quietos, por cinco minutos, enquanto eu
esperava pelo menor sinal de que éramos vigiados. Nada. Dei a
partida e segui até a avenida, onde parei de novo. Nada. Já era
meia-noite agora e a lua surgira entre as estrelas. Dei a volta pela
cidade, sempre atento ao espelho retrovisor, depois peguei a
autoestrada para sudoeste, até Starnbergersee, onde mantínhamos
uma casa segura para instruções e recolhimento de informações de
agentes em trânsito. Ficava perto do lago e era guarnecida por dois
prodígios de aparência assassina, remanescentes da Seção dos
Acendedores de Lampiões da Estação Londres, ainda usando os
cabelos compridos. Chamavam-se Jeffrey e Arnold. Era Arnold
quem pairava na porta quando lá chegamos. Umas das mãos se
achava enfiada no bolso do cafetã, a outra estava suspensa
ameaçadoramente ao seu lado.
— Sou eu, seu palhaço — informei-o, baixinho.
Jeffrey conduziu o Professor e a esposa a seu quarto,
enquanto Arnold sentava com Latzi na sala de estar. Desci pelo
jardim até a garagem de barco, onde finalmente pude falar com
Toby Esterhase, pelo telefone seguro. Ele se mostrou
surpreendentemente controlado. Era como se esperasse por minha
ligação.
Toby chegou a Munique pelo primeiro voo procedente de
Londres na manhã seguinte, usando um casaco de couro e um
chapéu Trilby, parecendo muito mais um empresário do que um
espião cheio de problemas.
— Por Deus, Ned! — exclamou ele, abraçando-me como um
pai pródigo. — Você parece fantástico, eu diria! Meus parabéns,
certo? Nada como um pouco de emoção para proporcionar alguma
cor às suas faces. Como vai Mabel? Um casamento é algo que se
precisa também regar, como uma flor.
Fui guiando devagar e falando, da melhor forma que podia,
imparcial, apresentando os resultados de minhas pesquisas ao
longo da noite. Queria que ele tivesse conhecimento de tudo o que
eu sabia antes de chegarmos.
— Latzi é uma página em branco, Ned, totalmente em branco
— concordou Toby, contemplando a paisagem com todos os sinais
de aprovação.
Também não havia qualquer vestígio de seu nome de
cobertura bávaro, ou de qualquer dos nomes de cobertura que Latzi
alegara ter usado em suas missões dentro da Hungria, acrescentei.
Toby baixou a janela para desfrutar a fragrância dos campos.
O passaporte alemão ocidental de Latzi era falsificado,
continuei, com determinação, de uma remessa produzida
recentemente por um falsificador de terceira classe em Viena e
vendida no mercado particular. Toby demonstrou uma ligeira
indignação.— Mas quem ainda compra essas porcarias, pelo amor
de Deus? — protestou ele, enquanto passávamos por dois cavalos
palominos, pastando num cercado. — Hoje em dia, em matéria de
passaporte, recebe-se aquilo por que se paga. A única coisa que se
consegue com essas porcarias é uma pena de seis meses numa
prisão fedorenta.
E ele sacudiu a cabeça, desolado, como um homem cujas
advertências são ignoradas até que é tarde demais. Continuei a
falar. O telefone em Bonn pertencia ao adido militar húngaro,
expliquei, cujo primeiro nome era de fato Peter. Fora identificado
como um oficial do serviço de informações húngaro. Permiti-me uma
contida ironia: — É uma novidade para nós, não concorda, Tobe?
Um espião usando seu próprio nome como cobertura? Afinal, para
que se incomodar? Você é Toby, por isso vamos manter em segredo
e chamá-lo de Toby em vez disso. Uma maravilha.
Mas Toby empenhava-se tanto em desfrutar seu dia na
Baviera que nem se perturbou com as implicações de minhas
palavras.
— Pode estar certo, meu caro Ned, de que esses sujeitos do
exército são uns idiotas rematados. O serviço de espionagem militar
húngaro é a mesma coisa que a música marcial húngara, entende o
que estou querendo dizer? Eles estão sempre fazendo besteira.
Prossegui em meu relato. A segurança alemã ocidental tinha
um grampo permanente no telefone do adido húngaro. Uma
gravação da conversa de Latzi com Peter se encontrava a caminho
de meu escritório. Pelo que eu já fora informado, não oferecia
surpresas, exceto pelo fato de que Peter parecia sinceramente
despreparado para a ligação. Peter não fizera nem recebera outras
ligações naquela noite, também não houvera nenhum aumento
súbito de mensagens diplomáticas transmitidas do telhado da
embaixada húngara em Bonn. Peter, no entanto, queixara-se ao
Departamento de Protocolo do Ministério do Exterior da Alemanha
Ocidental que fora importunado no telefone de sua casa. Isso não
era uma atitude de conspirador, sugeri. Toby não tinha tanta certeza.
— Pode ser uma coisa, Ned, pode ser outra — recostando-se
no assento e languidamente virando a mão para os lados. — Um
homem pensa que está comprometido? Nesse caso, talvez não seja
estupidez apresentar um protesto formal, cobrir o seu rastro... por
que não? Expus o resto. Assim estava determinado. A descrição de
Latzi do suposto diplomata em Viena combinava com um certo Leo
Bakocs, secretário comercial e, como Peter, um agente identificado
do serviço de informações húngaro. O Primo Wagner estava
providenciando uma fotografia para mostrarmos a Latzi ainda
naquele dia. O nome Bakocs trouxe um sorriso afetuoso aos lábios
de Toby.
— Quer dizer que arrastaram Leo nesta história? Ora, Ned,
Leo é tão vaidoso que só espiona duquesas. — Ele riu, numa
incredulidade jovial. — Leo em algum hotel sórdido, entregando
garrotes a um assassino repulsivo? Conte outra, Ned. E falo sério.
— Não sou eu quem está dizendo — protestei. — É Latzi.
Por fim, informei, eu despachara Jeffrey ao bordel de Munique
para pegar a conta de Latzi e recolher a bagagem. O único artigo de
interesse na bagagem era um jogo de fotografias pornográficas.
— É a tensão, Ned — explicou Toby, magnânimo. — Em outro
país, para matar alguém que não conhece, você precisa de alguma
companhia íntima... entende o que estou querendo dizer? Em troca
de tudo isso, Toby não me trouxera qualquer contribuição, de caráter
particular ou não. Imaginara-o ao telefone durante a noite inteira, e
talvez isso tivesse mesmo acontecido. Mas não em apoio as minhas
investigações.
— Talvez tenhamos uma festa hoje, Ned — acrescentou ele.
— Harry Palfrey, o nosso consultor jurídico, virá para cá com uma
dupla do Ministério do Exterior. É um bom sujeito, o Harry. Muito
britânico.
Fiquei aturdido.
— Que setor do Ministério do Exterior? Quem? E por que o
Palfrey? Mas, como dizia Toby, as perguntas nunca são perigosas
até o momento em que são respondidas. Chegamos à casa do lago
para encontrar Arnold cozinhando ovos com bacon. O Professor e
Latzi sentavam numa extremidade da mesa. Helena, sendo
vegetariana, sentava na outra, comendo uma barra de noz que
trouxera na bolsa. Arnold era louro, alto e magro.Os cabelos
compridos estavam presos num nó atrás da cabeça.
— Eles tiveram uma briga, Ned — confidenciou-me ele,
desaprovador, enquanto Toby se pendurava no pescoço do
Professor. — O Professor e sua mulher, não foi brincadeira. Não sei
quem começou ou sobre o que foi. Achei melhor não perguntar.
— Latzi participou? — Ele bem que queria, Ned, mas eu
mandei que ficasse quieto. Não gosto de um homem que se mete
em briga de marido e mulher, jamais gostei.
Em retrospectiva, nossas conversas naquele dia parecem um
intrincado minueto, começando em nossa humilde cozinha e
terminando no tribunal do próprio Todo-Poderoso — ou, para ser
mais exato, na embandeirada sala de reuniões do cônsul-geral
americano, onde os rostos inspiradores do Presidente Nixon e do
Vive-Presidente Agnew sorriam favoravelmente a nossos esforços.
[Pois Toby, como não demorei a descobrir, longe de não fazer nada,
preparara todo um programa pessoal, que foi desenvolvendo de
palco em palco, com a habilidade de um mestre de cerimônias. Na
cozinha, ele escutou toda a história outra vez, de Latzi e do
Professor, enquanto Helena mastigava sua barra de noz. Nunca
antes eu vira Toby em pleno voo húngaro e encontrei tempo para
me maravilhar com a transformação. À primeira frase, ele se
desvencilhou do espartilho antinatural do comedimento anglo-saxão
e retornou ao seio de seu povo. Os olhos se incendiaram.
Empertigou-se, como se estivesse desfilando a cavalo numa parada
militar.
— Ned, eles me disseram que você foi fantástico — gritou-me
Toby, através da mesa, no meio de tudo. — Uma torre de força, eles
estão dizendo, sem a menor dúvida. Tenho a impressão de que eles
vão recomendar um prêmio Nobel para você! — Diga a eles para
mudarem para um Oscar e aceitarei — respondi, azedo, resolvendo
sair para uma caminhada até a beira do lago, a fim de recuperar o
controle.
Retornei à casa para encontrar Ibby e o Professor encerrados
na sala de estar, falando sem parar. O grande respeito de Tbby pelo
Professor parecia, se alguma coisa, ter aumentado ainda mais. Latzi
ajudava Arnold a lavar a louça e os dois soltavam risadinhas
reprimidas. Era evidente que Latzi contara uma piada obscena.
Helena não estava à vista. Em seguida foi a vez de Latzi sentar a
sós com Toby, enquanto o Professor e a esposa saíam para passear
à beira do lago, apreensivos, parando a intervalos de poucos passos
para censuras mútuas, até que o Professor virou as costas e voltou
para a casa sozinho.
Aproveitando a oportunidade, esgueirei-me da casa e fui ao
encontro de Helena. Ela tinha os lábios contraídos, o rosto exibia
uma palidez doentia — se de medo, ira ou fadiga, eu não sabia
dizer. Ela tentou falar, mas teve de parar e recomeçar, antes que as
palavras saíssem.
— Ele é um mentiroso! — proclamou ela. — É tudo mentira!
Mentira, mentira! Ele é um mentiroso! — Ele quem? — Os dois são
mentirosos. Mentem desde o dia em que nasceram. E continuarão a
mentir até no leito de morte.
— Então qual é a verdade? — Esperar é a verdade! —
Esperar pelo quê? — Eu avisei a ele. "Se fizer isso, contarei ao
inglês." Por isso, vamos esperar. Se ele fizer, contarei tudo a você.
Se ele se arrepender, vou poupá-lo. Sou sua esposa.
Ela seguiu para a casa, uma mulher altiva. No momento em
que entrava, uma limusine preta subiu pelo caminho e dela
desembarcou Harry Palfrey, o consultor jurídico do Circo,
acompanhado por dois outros representantes da classe governante
inglesa. Reconheci o mais alto como Alan Barnaby, luminar do
impropriamente chamado Departamento de Informação e Pesquisa
do Ministério do Exterior, que lidava com a contrapropaganda
comunista, a mais espalhafatosa. Toby apertou-lhe a mão
calorosamente, enquanto usava a outra para me chamar. Entramos
e sentamos.
A princípio permaneci em silêncio, furioso. Os atores haviam
subido, Tbby falava, os outros escutavam, com a reverência
especial que as pessoas de sua classe dispensam aos indigentes e
aos negros. Até me descobri com algum sentimento protetor em
relação a ele... a Tbby Esterhase, que Deus me guarde, um homem
que não protegia a ninguém além de si mesmo! — O que temos
aqui, Alan, é uma fonte superior que agora se consumiu — explicou
Toby. — Um grande agente, mas seus dias chegaram ao fim.
— Está se referindo ao Professor — disse Barnaby,
prestimoso.
— Estão atrás dele. Conhecem muito bem o seu valor. Por
certas indicações que obtive de Latzi, é evidente que os húngaros
possuem um volumoso dossiê sobre as operações do Professor.
Afinal, por que tentariam matar um sujeito que não tem qualquer
utilidade para nós? Uma tentativa de assassinato dos húngaros... eu
diria que é um atestado de bons antecedentes para o alvo.
— Não podemos ser responsáveis indefinidamente pela
segurança do Professor — advertiu-nos Palfrey com seu sorriso de
perdedor. — Podemos lhe conceder proteção por algum tempo, é
claro. Mas não podemos aceitar um interesse vitalício por sua
pessoa. Ele precisa saber disso. Talvez tenhamos de lhe pedir para
assinar uma declaração, deixando esse ponto bem claro.
O segundo homem do Ministério do Exterior era roliço e
reluzente, com uma corrente estendida ao longo do colete.
Experimentei um impulso infantil de puxá-la para descobrir se ele
gritava.
— Pois eu acho que talvez estejamos todos falando demais
— disse ele, suavemente. — Se os americanos concordarem em
tirar os dois de nossas mãos, o Professor e sua mulher, não teremos
mais que nos preocupar, não é mesmo? É melhor nos mantermos
retraídos e sem nos queimarmos, não concordam? Palfrey
protestou: — Ainda assim, Norman, ele tem de assinar uma
declaração para nos eximir de qualquer responsabilidade. Ele vem
nos jogando contra os Primos nos últimos anos.
Sempre o protetor de si mesmo, Toby exibiu um sorriso
sugestivo.
— Todos os melhores agentes fazem isso, eu diria, Harry.
Uma mão lava outra, mesmo no nível de Teodor. A questão é só
uma: agora que ele não é mais usável para nós, o que temos a
perder na verdade, além de problemas? — Uma pausa e ele
arrematou, com um sorriso insinuante para Barnaby: — Mas não
sou o especialista aqui.
— E o tal assassino? — interveio o homem chamado Norman.
— Ele também vai participar? Não acham que é um tanto perigoso,
ficar sentado lá em cima como um pato numa árvore? — Latzi é
flexível — assegurou Toby. — Ele está apavorado, mas também é
um patriota total.
Eu não concordava com qualquer dos pontos, mas sentia-me
enojado demais para interromper e deixei Toby continuar: — Esses
apparatchiks, quando saem do sistema, entram em estado de
choque. Latzi está absorvendo bem. Angustia-se por causa de sua
família, mas já se resignou. Se Teodor aceitar, Latzi aceitará
também. Com garantias, é claro.
— Que tipo de garantias? — indagou o homem lustroso do
Ministério do Exterior, tão depressa que nem mesmo Harry Palfrey
conseguiu se anteceder.
Toby não titubeou.
— O de sempre, naturalmente. Latzi e Teodor não querem ser
jogados no lixo depois que tudo acabar, eu diria. Nem Helena.
Passaportes americanos, um bom dinheiro ao fim da estrada, ajuda
e proteção... isso é o básico, por assim dizer.
— Toda essa história não passa de um embuste! — exclamei
abruptamente, pois não aguentava mais.
Todos me sorriam. Teriam sorrido independente do que eu
dissesse. Eram esse tipo de gente. Se eu dissesse que era um
agente húngaro, teriam sorrido. Se eu dissesse que era o irmão
mais moço reencarnado de Adolf Hitler, teriam sorrido. Isto é, todos
menos Toby, cujo rosto adquirira a impassibilidade de alguém que
sabe que tudo o que pode ser naquele momento é absolutamente
ninguém.
— Por que diz isso, Ned? — indagou Barnaby, bastante
interessado.
— Latzi não é um assassino profissional. Não sei o que ele é,
mas não é um assassino. Trazia uma arma descarregada. Nenhum
profissional em seu juízo perfeito faz isso. Apresentava-se como um
artista bávaro, mas usava roupas húngaras e metade das porcarias
em seus bolsos é húngara. Eu me encontrava ao seu lado quando
fez a ligação para Bonn. É verdade, o primeiro nome do adido é
Peter. Consta na relação diplomática como Peter. Só que Peter não
esperava aquele telefonema, de jeito nenhum. Foi impingido por
Latzi. Prestem atenção à gravação alemã da conversa.
— E o tal camarada em Viena, Ned? — insistiu Barnaby,
ainda determinado a ser condescendente comigo. — O camarada
que deu o dinheiro e as ferramentas a ele? Hem? Hem? — Eles
nunca se encontraram. Mostramos a fotografia a Latzi e ele ficou
feliz. "É esse o homem", afirmou. Claro, já tinha visto sua fotografia
antes em algum lugar. Perguntem a Helena, ela sabe de tudo. Não
quer falar no momento, mas tenho certeza de que contará tudo se a
pressionarmos.
Toby ressuscitou por um instante.
— Pressão, Ned? Sobre Helena? Pressão é uma coisa que
se usa quando se sabe que se pode apertar mais do que a outra
pessoa. Aquela mulher é louca pelo marido. Seria capaz de
defendê-lo até a sepultura.
— O Professor caiu em desgraça com os americanos —
argumentei. — Estão retirando o seu tapete vermelho. E ele ficou
desesperado. Se não armou pessoalmente a trama do assassinato,
a ideia foi de Latzi. Tudo não passa de um plano para ele reduzir
seus prejuízos e conquistar uma vida nova.
Esperaram que eu continuasse, todos eles. Era como se
esperassem pelo desfecho da piada. Foi Ibby quem rompeu o
silêncio. Recuperara a forma e indagou, com um sorriso indulgente:
— Há quanto tempo você não dorme, meu caro Ned? Diga-nos, por
favor.
— O que isso tem a ver com o caso? Toby olhava para seu
relógio, ostensivamente.
— Acho que já está agora há trinta horas sem dormir, Ned. E
tomou algumas decisões muito importantes nesse período... todas
boas, eu diria. Acho que não podemos culpá-lo por ter uma pequena
reação.
Era como se eu nunca tivesse falado. Todas as cabeças
tornaram a se virar para Toby.
— Pois eu acho que é importante darmos uma espiada no
elenco — Barnaby estava dizendo quando me encaminhei para a
porta. — Pode pedir a eles para descerem, Toby? Precisamos ver
como vão reagir sob os refletores.
— Acho que há um valor de notícia se agirmos
imediatamente, Barnaby — declarou Palfrey, enquanto eu seguia
para o jardim e a sanidade. — Temos de malhar enquanto o ferro
está quente. Concorda? — Do princípio ao fim, Harry. Cem por
cento.
Recusei-me a assistir à primeira audição. Fiquei na cozinha,
deprimido, deixei que Arnold me atendesse, enquanto fingia escutar
alguma história sobre sua mãe, que abandonara o sujeito com quem
vivera durante vinte anos e fora morar com o namorado de infância.
Observei Toby subir apressado para buscar seus campeões,
amarrei a cara quando os três homens desceram, alguns minutos
depois, Latzi com os cabelos repartidos, o Professor com o casaco
pendurado nos ombros, a cabeça de profeta inclinada para a frente
em meditação, a cabeleira branca esvoaçando de maneira
cativante.
E depois Helena entrou na cozinha com lágrimas escorrendo
pelas faces. Arnold abraçou-a e foi buscar uma manta para ela, pois
a manhã de primavera era fria e Helena tremia. Arnold fez um chá
de camomila e sentou ao seu lado, passando o braço pelos ombros
de Helena, até que Toby apareceu para avisar que éramos todos
esperados no consulado americano dentro de duas horas.
— Russell Sheriton está voando de Londres, Pete de May de
Bonn. Demonstraram o maior interesse, Ned. O maior. Washington
está encantada.
Não me lembro se Pete de May era mais ou menos
importante do que Sheriton. Mas era bastante importante. E Toby
me assegurou, em particular: — Ned, esse Teodor é fantástico! — É
mesmo? De que forma? — Sabe o que lhe disseram? "O que está
fazendo é muito perigoso, Professor. Acha que pode assumir o
risco?" E sabe o que ele respondeu? "Senhor Embaixador, todos
devemos assumir riscos para proteger a sociedade civilizada." É um
homem digno. E Latzi também. Depois disso, Ned, você precisa
dormir um pouco. Telefonarei para Mabel.
Seguimos em dois carros, Toby com os húngaros, eu com
Palfrey e o Ministério do Exterior. Abrindo a porta do carro para mim,
Palfrey tocou em meu braço e ofereceu um conselho incisivo: —
Acho que daqui por diante devemos ficar unidos, Ned. Estar
cansado é uma coisa, falar sobre vigarice é outra. Concorda?
Devíamos ser umas vinte pessoas. O cônsul-geral presidia. Era um
pálido americano do Meio-Oeste, ex-advogado como Palfrey, falava
ansioso em "repercussões". Milton Wagner sentava entre Sheriton e
de May. Era evidente para mim que Sheriton e Wagner, quaisquer
que fossem seus pensamentos particulares, haviam recebido ordens
de não manifestarem seu ceticismo. Talvez reconhecessem também
que havia maneiras piores de se livrarem de agentes inúteis do que
descarregá-los no Serviço de Divulgação dos Estados Unidos, que
era representado por um quarteto de crentes agitados, cujos nomes
jamais descobri.
Pullach estava representada, é claro, Embora não estivessem
envolvidos, eles haviam enviado seu observador; portanto,
podíamos ter certeza de que nossas determinações seriam o alvo
dos comentários em Potsdam à tarde. Eles também insistiram em
apresentar um protesto veemente contra Viena. Parecia que Pullach
vinha travando uma batalha permanente com a polícia austríaca por
causa dos passaportes falsificados, desconfiando que era a própria
polícia que os vendia aos húngaros. Uma boa parte da reunião foi
ocupada por um Oberst qualquer coisa, lamentando a duplicidade
austríaca.
Os três campeões, como era de se esperar, não
acompanharam nossas deliberações, ficaram sentados na sala de
espera. Quando foram distribuídos sanduíches, mandaram um prato
generoso para eles. E quando finalmente foram chamados, vários
dos membros leigos da reunião prorromperam em aplausos, o que
deve ter sido a primeira de muitas vezes, a partir de então, em que
eles ouviram o troar da audiência teatral.
Mas foram as lágrimas de Helena que roubaram o espetáculo.
O Professor disse umas poucas palavras e sua dignidade hesitante
causou a magia previsível. Latzi, seguindo, provocou um calafrio
pela sala quando explicou por que levava os dois garrotes, que em
seguida circularam pela sala, junto com as outras provas. Mas
quando Helena se adiantou, no braço do Professor, senti um aperto
na garganta, e compreendi que todos os presentes experimentavam
a mesma coisa.
— Apoio meu marido — foi tudo o que a grande atriz pôde
declamar.
Mas foi suficiente para fazer com que todos se levantassem.
Só ao cair da noite é que consegui falar com ela a sós.
Estávamos esgotados a esta altura; até o irrepreensível Latzi se
encontrava exausto. Os chefes haviam partido, Toby partira. Eu
sentava em companhia de Arnold na casa do lago. Um furgão
americano, com as janelas escuras e dois fuzileiros à paisana a
bordo, aguardava na entrada da casa, mas nossas estrelas estavam
aprendendo a manter sua espera pública. O dia fora consumido no
preparo dos comunicados para a imprensa à tarde e na assinatura
dos documentos de Palfrey, que ele já trouxera prontos em sua
pasta.
Ela entrou, hesitante, como se esperasse que eu a agredisse,
mas minha raiva já se esgotara.
— Teremos nossos passaportes — disse ela, sentando. — É
o novo mundo.
Arnold saiu da sala, demonstrando o maior tato, fechou a
porta.
— Quem é Latzi? — perguntei.
— É um amigo de Teodor.
— E que mais ele é? — É um ator. Um mau ator, um péssimo
ator, de Debrecen.
— Ele sempre trabalhou para a polícia secreta? Helena fez
um gesto depreciativo.
— Ele tinha ligações. Quando Teodor precisava fazer contato
com as autoridades, Latzi era o intermediário.
— Ou seja, quando Teodor precisava denunciar seus alunos?
— Isso mesmo.
— Latzi forneceu informações a Teodor enquanto estavam em
Munique? — Apenas um pouco a princípio. Mas quando não havia
mais nada de outras fontes, passou a fornecer mais. E depois muito
mais. Latzi preparava o material para Teodor, que vendia aos
britânicos e americanos. Se não fosse assim, não teríamos dinheiro.
— Latzi recebia ajuda da polícia secreta para fazer isso? —
Era particular. As coisas estão mudando na Hungria. Não é mais
prudente se envolver com as autoridades.
Abri a porta e observei-a sair, a cabeça erguida.
Umas poucas semanas depois, de volta a Londres, confrontei
Toby com a história de Helena. Ele não se mostrou surpreso nem
arrependido.
— As mulheres, Ned, constituem na verdade uma classe
criminosa. É melhor tomarmos a sopa, em vez de remexê-la.Mais
algumas semanas e o show Teodor-Latzi fazia o maior sucesso.
Toby estava radiante. Até que ponto ele tinha participação em tudo
aquilo? O quanto sabia naquela ocasião? Toda a história? Imaginara
aquela encenação para tirar o melhor proveito de seu agente em
perigo e passá-lo para a responsabilidade de outros? Desconfiei
muitas vezes, secretamente, que a encenação foi preparada a três
mãos, no mínimo, tendo Helena como a audiência relutante.
— Quer saber de uma coisa, Ned? — disse Toby, passando o
braço por meus ombros, num gesto afetuoso. — Se você não pode
montar em dois cavalos ao mesmo tempo, é melhor ficar fora do
Circo.
Lembram-se do pseudônimo Coronel Weatherby no livro? O
mestre do disfarce, à vontade em sete línguas europeias? O líder
Pimpinela da resistência na Europa como se fosse a gaze mais
frágil? Era eu. Ned. Não escrevi essa parte, graças a Deus. Foi obra
de algum venal jornalista esportivo de Baltimore, recrutado pelos
Primos. A minha parte foi o retrato de introdução do grande homem,
impresso sob o título de "O Verdadeiro Professor Teodor Como Eu o
Conheci", arrancada de mim por Tobby e o Quinto Andar. O título
que dei para o livro foi Thiques do Oficio, mas o Quinto Andar achou
que poderia ser mal interpretado. Em vez disso, promoveram-me.
Mas não antes de eu levar minha indignação a George
Smiley, que acabara de renunciar ao cargo de chefe em exercício e
estava prestes a se afastar, quase que pela última vez, para as
sombras do mundo acadêmico. Eu voltara a Londres, no intervalo
de uma excursão. Era o final da tarde de uma sexta-feira e fui
encontrá-lo na Baywater Street, arrumando as coisas para o fim de
semana. Ele me ouviu, soltou uma risadinha, depois uma risada
maior. E murmurou, afetuosamente: — Ora essa, o Toby...
Depois, enquanto dobrava meticulosamente um terno de
tweed, ele comentou: — Mas eles cometem assassinatos, não é
mesmo, Ned? Os húngaros, estou falando deles. Mesmo pelos
padrões da Europa Oriental, eles se destacam entre os mais
sórdidos, não concorda? Era verdade, eu não podia deixar de
concordar, os húngaros matavam e torturavam à vontade. Mas isso
não alterava o fato de que Latzi era um embusteiro, Teodor era
cúmplice de Latzi, e Toby... Smiley não me deixou continuar.
— Ora, Ned, acho que está sendo um pouco escrupuloso
demais. Toda igreja precisa de seus santos. A igreja anticomunista
não é exceção. E os santos, como uma classe, são em grande parte
embusteiros, quando se vai ao fundo. Mas ninguém diria que eles
não têm seus proveitos, depois que são entronizados na função.
Acha que esta camisa serve ou devo mandá-la passar de novo?
Sentamos na sala de estar, tomando nossos scotches e escutando o
clamor das pessoas a caminho de suas festas na Baywater Street.
— E o fantasma de Stefanie espreitava por você nas calçadas
de Munique, Ned? — indagou Smiley, ternamente, no momento em
que eu começava a pensar que ele cochilara.
Há muito que eu deixara de me espantar com a capacidade
de Smiley de pôr-se no meu lugar.
— De vez em quando.
— Mas não em carne e osso? É lamentável.
— Liguei uma vez para uma de suas tias. Tive alguma briga
tola com Mabel e fui para um hotel. Já era bem tarde. E acho que eu
estava um pouco embriagado. — Descobri a especular se Smiley já
sabia daquilo, mas logo concluí que exagerava na fantasia. — Ou
acho que era uma tia. Pode ter sido uma criada. Não, era uma tia.
— E o que ela disse?
— "Fräulein Stefanie não está em casa."
Um silêncio prolongado, mas desta vez não cometi o erro de
pensar que ele adormecera.
— Uma voz jovem? — indagou Smiley, pensativo.
— Bastante.
— Então talvez tenha sido Stefanie quem atendeu.
— É possível.
Tornamos a escutar as vozes alteadas na rua. Uma moça ria.
Um homem falou em tom irritado. Alguém tocou a buzina e se
afastou. Os sons se desvaneceram. Stefanie é minha Ann, pensei,
enquanto tornava a atravessar o rio, de volta a Battersea, onde tinha
meu pequeno apartamento: a diferença é que nunca tive a coragem
de deixar que ela me desapontasse.
SETE
SMILEY SE INTERROMPERA — alguma história de um
diplomata centro-americano com uma paixão por modelos
ferroviários britânicos de uma certa geração, e como o Circo
comprara a fidelidade vitalícia do homem com uma locomotiva
Hornby Double-O roubada de um museu de brinquedos londrino
pelo pessoal de Monty Arbuck. Todos desataram a rir, até aquele
súbito silêncio pensativo, enquanto o olhar perturbado de Smiley
fixava-se em algum ponto além da sala.
— E apenas ocasionalmente deparamos com a realidade com
que vínhamos brincando — disse ele, suavemente. — Até que isso
aconteça, somos espectadores. Os agentes vivem nossos sonhos
por nós, os controladores, enquanto sentamos sãos e salvos, no
maior aconchego, por trás de nossos espelhos mágicos, dizendo a
nós mesmos que ver é sentir. Mas quando chega o momento da
verdade... se é que algum dia isso acontecerá para vocês... então
nos tornamos um pouco mais humildes em relação ao que pedimos
às pessoas para fazerem por nós.
Ele não olhou uma única vez para mim enquanto dizia isso.
Não ofereceu a menor indicação do que havia em sua mente. Mas
eu sabia, e ele sabia. E cada um sabia que o outro sabia que era o
Coronel Jerzy.
Eu o vi e não disse nada a Mabel. Talvez tenha ficado
surpreso demais. Ou talvez os antigos hábitos de dissimulação
resistam tanto a morrer que mesmo hoje a minha primeira reação a
qualquer evento inesperado é reprimir a reação espontânea.
Assistíamos ao noticiário das nove horas na televisão, o que se
tornou, para Mabel e para mim, uma espécie de oração noturna
diária, não me perguntem por quê, E de repente eu o vi, o Coronel
Jerzy. E em vez de me levantar de um pulo e gritar "Santo Deus,
Mabel! Olhe ali, aquele sujeito no fundo! É Jerzy!" — o que seria a
reação saudável para qualquer homem normal — continuei a olhar
para a tela e bebericar meu uísque com soda. Depois, assim que
fiquei sozinho, pus uma fita no videocassete, a fim de poder gravar a
reprise da notícia no último jornal da noite. Desde então — o
incidente ocorreu há seis semanas — já assisti à cena uma dúzia de
vezes, pois há sempre alguma nuance extra para apreciar.
Mas deixarei essa parte da história para o final, que é o lugar
a que pertence. É melhor relatar os acontecimentos na ordem em
que ocorreram, pois houve muito mais em Munique do que o
Professor Teodor, houve muito mais a espionar na esteira do
desmascaramento de Bill Haydon do que a espera para que as
feridas cicatrizassem.
O Coronel Jerzy era um polonês e nunca entendi por que
tantos poloneses se sentem atraídos por nós. Nossas repetidas
traições a seu país sempre me pareceram tão vergonhosas que se
eu fosse polonês cuspiria em cada sombra britânica que passasse,
quer tivesse sofrido sob os nazistas ou sob os russos — os
britânicos abandonaram os pobres poloneses a ambos. E com toda
certeza me sentiria tentado a colocar uma bomba sob o chamado
"departamento competente" do Ministério do Exterior britânico. Oh,
céus, que termo! Enquanto escrevo, os poloneses se encontram
mais uma vez espremidos entre o imprevisível Urso Russo e o um
pouco mais previsível Boi Alemão. Mas podem estar certos de que
se algum dia precisarem de um bom amigo para ajudá-los, o mesmo
"departamento competente" do Ministério do Exterior britânico
apresentará suas insidiosas desculpas, alegando uma função mais
atraente em qualquer outra parte.
Apesar disso, meu Serviço gaba-se de um desproporcional
índice de sucesso na Polônia, e um número quase embaraçoso de
homens e mulheres que, com a inconsequente coragem polonesa,
arriscaram seus pescoços e os de suas famílias a fim de espionar
pela "Inglaterra".Portanto, não é de admirar que, na esteira de
Haydon, o índice de baixas entre nossas redes polonesas fosse
correspondentemente elevado. Graças a Haydon, os britânicos
acrescentaram outra traição à sua longa lista. À medida que cada
nova perda sucedia-se à anterior com uma inevitabilidade
desesperadora, o clima de luto em nossa Estação Munique tornou-
se quase palpável, nosso sentimento de vergonha sendo agravado
pela impotência. Nenhum de nós tinha a menor dúvida sobre o que
acontecera. Até a Queda, a Segurança polonesa — comandada
com toda competência por seu chefe de operações, Coronel Jerzy
— mantivera em segredo a traição de Haydon, contentando-se com
a infiltração em nossas redes existentes e usando-as como canais
de desinformação — ou, sempre que conseguia invertê-las,
fazendo-as se virarem contra nós com a maior habilidade.
Mas Depois da Queda, o coronel não sentiu mais qualquer
necessidade de delicadeza, e em poucos dias, brutalmente,
silenciou nossos agentes leais que até então permitira que
permanecessem no lugar. "A lista de baixas de Jerzy", era como a
chamávamos, à medida que a contagem subia dia a dia. Em nossa
frustração, desenvolvemos um ódio pessoal contra o homem que
assassinara nossos amados agentes, às vezes sem se dar ao
trabalho das formalidades de um julgamento, apenas deixando que
os interrogadores se divertissem até o fim.
Pode parecer estranho pensar em Munique como um
trampolim para a Polônia. Contudo, durante décadas, Munique fora
o centro de comando para muitas operações polonesas. Do telhado
de nosso anexo consular, num subúrbio arborizado, nossa antena
captava dia e noite as mensagens dos agentes poloneses — muitas
vezes não mais do que um bip espremido entre as palavras ditas
numa emissora de rádio comum. E em resposta, em horários
predeterminados, transmitíamos nossas palavras de conforto e
novas ordens para eles. Era de Munique que despachávamos
nossas cartas polonesas, impregnadas de escrita secreta. E se as
fontes conseguiam sair da Polônia, era também de Munique que
voávamos para recolher suas informações, festejá-las e escutar
suas preocupações.
Era ainda de Munique, quando a necessidade se tornava
muito grande, que o pessoal de nossa estação cruzava para a
Polônia, sempre sozinhos, em geral disfarçados como um executivo
visitante para uma feira ou exposição comercial. E em algum local
de piquenique à beira da estrada ou um café numa rua secundária,
nossos emissários se encontravam pessoalmente, por um breve
instante, com os preciosos agentes, acertavam tudo e partiam,
sabendo que haviam reabastecido o lampião. Pois nenhuma pessoa
que não tenha levado uma vida de agente pode imaginar a solidão
da fé que representa. Uma xícara de um café horrível no momento
oportuno, partilhada com um bom controlador, pode levantar o moral
de um agente por vários meses.
E foi assim que, num dia de inverno logo depois do início da
segunda metade de meu tempo de serviço em Munique (e logo
depois da abençoada partida do Professor Teodor e seus apêndices
para os Estados Unidos), eu voava de Varsóvia para Gdansk, num
avião da linha aérea polonesa, a LOT, com um passaporte holandês
no bolso, descrevendo-me como Frans Joost, de Nijmegen, nascido
quarenta anos antes. Segundo o meu visto de executivo, minha
missão era inspecionar prédios agrícolas pré-fabricados, por conta
de um consórcio agrícola alemão-ocidental. Tenho algum
conhecimento básico da matéria como um engenheiro, pelo menos
o suficiente para trocar cartões de visita com os funcionários do
Ministério da Agricultura polonês.
Minha outra missão era mais complicada. Procurava um
agente chamado Oskar, que ressuscitara depois de seis meses
dado como morto. Inesperadamente, Oskar enviara-nos uma carta
para um antigo endereço de cobertura, usando seu equipamento de
escrita secreta e descrevendo tudo o que fizera e deixara de fazer
desde o dia em que tomara conhecimento das prisões até agora.
Ele não perdera a cabeça. Permanecera em seu emprego.
Denunciara anonimamente algum inocente apparatchik em sua
seção de Arquivos, a fim de desviar as suspeitas. Esperara e depois
de umas poucas semanas o apparatchik desaparecera. Encorajado,
ele continuara a esperar. Ouvira o rumor de que o apparatchik
confessara, lendo em vista os ternos cuidados do Coronel Jerzy,
isso não era de surpreender. À medida que as semanas passavam,
ele voltava a se sentir seguro. Agora, estava pronto para retomar o
trabalho, se alguém lhe dissesse o que fazer. Como prova disso,
grudara micropontos no terceiro, quinto e sétimo pontos parágrafos
da carta, que eram as posições combinadas. Ampliados, os
micropontos mostravam dezesseis páginas de ordens ultrassecretas
do Ministério da Defesa polonês ao departamento do Coronel Jerzy,
Os analistas do Circo declararam que eram "prováveis e
presumivelmente confiáveis", o que representava, partindo deles,
uma declaração de fé extasiada.
Devem imaginar agora o excitamento que a carta de Oskar
despertou na Estação, até mesmo em mim, embora nunca o tivesse
encontrado pessoalmente. Oskar!, exclamavam os crentes. O velho
demônio! Vivo e esperneando sob os escombros! Confiem em
Oskar para sobreviver a tudo! Oskar, nosso calejado empregado do
almirantado polonês, baseado no quartel-general da defesa costeira,
em Gdansk, um dos melhores agentes que a Estação jamais tivera!
Só os mais intransigentes, ou os que se encontravam à beira da
aposentadoria, descartaram a carta como uma isca. É fácil dizer
"não" nesses casos. Dizer "sim" exige coragem. Seja como for, os
que dizem não são sempre ouvidos com mais clareza, em particular
depois de Haydon, e durante algum tempo houve um impasse, sem
que ninguém tivesse a ousadia de pular para um lado ou outro.
Ganhando tempo, escrevemos para Oskar, pedindo mais garantias.
Ele respondeu furioso, querendo saber se confiávamos nele ou não,
e desta vez exigindo uma reunião. "Uma reunião ou nada", foi o que
ele disse. E na Polônia. Muito em breve ou nunca.
Enquanto o escritório central continuava a vacilar, supliquei
que me permitissem ir ao seu encontro. Os incrédulos em minha
Estação disseram-me que eu enlouquecera, os crentes
proclamaram que era a única coisa decente a fazer. Eu não estava
convencido por nenhum dos lados, mas queria ter certeza. Talvez eu
quisesse também ter certeza em termos pessoais, pois Mabel
recentemente dera sinais de que desejava encerrar nosso
relacionamento e não me sentia propenso a me ter em alta conta
naquele momento. O escritório central ficou com a turma do não.
Lembrei meus antecedentes navais. O escritório central hesitou,
disse "não, mas talvez". Lembrei que era bilíngue e também a força
já comprovada de minha identidade holandesa, fornecida por nosso
oficial de ligação holandês, em troca de favores em outra área. O
escritório central avaliou os riscos e alternativas, acabou dizendo
"Sim, mas apenas por dois dias". Talvez tivessem concluído que,
depois de Haydon, eu não tinha tantos segredos assim para revelar.
Apressei-me em elaborar minha cobertura e partir, antes que eles
pudessem trocar de ideia mais uma vez. A temperatura se
encontrava muito abaixo de zero quando meu avião pousou no
aeroporto de Gdansk; uma neve espessa cobria as ruas, mais neve
continuava a cair, a quietude me proporcionou um senso de
segurança maior do que era prudente. Mas podem estar certos de
que não assumi riscos desnecessários. Podia estar à procura de
certeza, mas não era mais um inocente.
Os hotéis de Gdansk são de um horror uniforme e o meu não
era exceção. O saguão recendia a mictório desinfetado; o registro
era tão complicado quanto adotar uma criança e demorava ainda
mais. Meu quarto estava ocupado por outra pessoa e ela não falava
nenhuma língua conhecida. Ao terminar de providenciar outro
quarto, e uma arrumadeira para remover os vestígios mais gritantes
do hóspede anterior, já era crepúsculo e o momento para comunicar
minha chegada a Oskar.
Cada agente tem seu jeito. No verão, dizia a ficha, Oskar
gostava de pescar e meu antecessor mantivera proveitosas
conversas com ele à beira do rio. Haviam até apanhado alguns
peixes juntos, embora a poluição os tornasse incomíveis. Mas era
inverno agora, quando só as crianças e os masoquistas pescavam.
Os hábitos de Oskar mudavam no inverno e ele gostava de jogar
bilhar num clube para funcionários subalternos, perto das docas. E
esse clube tinha um telefone. Para promover um encontro, meu
antecessor, que falava polonês, só precisava telefonar para ele no
clube e conduzir uma conversa animada a partir da ficção de que
era um antigo amigo da marinha chamado Lech. Oskar acabava
dizendo "Muito bem, vamos nos encontrar amanhã, na casa de
minha irmã, para tomarmos um trago", o que significava "Apanhe-
me em seu carro na esquina da rua tal com. a rua tal, dentro de uma
hora".
Mas eu não falava polonês. E, além disso, as regras do ofício
pós-Haydon determinavam que nenhum agente devia ser reativado
através de procedimentos passados.
Em sua carta, Oskar fornecera os telefones de três cafés, e os
horários em que tentaria ficar disponível em cada um — três porque
havia sempre a possibilidade de um dos telefones estar
escangalhado ou ocupado. Se nenhum dos telefonemas desse
certo, então recorreríamos a um recolhimento de carro. Oskar
informara em que ponto de bonde eu deveria ficar, e a que horas. E
ele indicara também a placa de seu novo Trabant azul.
E se tudo isso parece me situar num papel passivo, é porque
a regra inflexível para tais encontros é a de que o agente no campo
é o rei, e é o agente quem decide qual o curso mais seguro para ele,
e o mais natural para seu estilo de vida. O que Oskar sugerira não
era o que eu teria sugerido, assim como eu também não entendia
por que precisávamos falar pelo telefone antes de nos
encontrarmos. Mas talvez Oskar entendesse. Talvez ele receasse
uma armadilha. Talvez quisesse verificar a segurança de minha voz
antes de dar o salto no escuro. Ou talvez houvesse algo secundário
de que eu ainda não tomara conhecimento: ele levaria um amigo
para o encontro; desejava ser evacuado imediatamente; mudara de
ideia. Pois há uma segunda regra do ofício tão rígida quanto a
primeira, que diz que o absurdo deve ser considerado em todas as
ocasiões como a norma. O bom controlador prevê que todo o
sistema telefônico de Gdansk entrará em colapso no momento em
que iniciar seu telefonema. Prevê que o bonde ficará retido por uma
obra na rua, ou que Oskar bateu com seu carro num poste naquela
manhã, ou que ele está com uma febre de 40°, ou que a mulher o
persuadiu a exigir um milhão de dólares em ouro antes de retomar o
contato conosco, ou que seu bebê decidiu nascer prematuro. Toda a
arte — como eu disse a meus alunos até que me detestavam/por
isso — é confiar na Lei do Acaso e em mais nada.
Foi com essa máxima em mente que, depois de passar uma
hora telefonando em vão para os três cafés, fui me postar no ponto
de bonde combinado, as nove e dez da noite, e fiquei esperando
que o Trabant de Oskar descesse pela rua. A neve parara de cair a
esta altura, mas a rua não era ainda mais que um par de manchas
escuras a um lado dos trilhos, e os poucos carros que passavam por
ali demonstravam a cautela de sobreviventes voltando da linha de
frente.
Há a velha Dantzig, o imponente porto hanseático, e há
Gdansk, o cortiço industrial polonês. O ponto de bonde era em
Gdansk. À direita e à esquerda observei, enquanto esperava, os
prédios de apartamentos de concreto, com uma escassa iluminação,
sob o céu alaranjado. Olhando para um lado e outro da rua, não
encontrei o menor sinal de amor ou prazer humano. Nenhum café,
nenhum cinema, nenhuma luz mais alegre. Até mesmo os dois
bêbados arriados num vão de porta, no outro lado da rua, pareciam
ter medo de falar. O estrépito de uma risada, um grito de
camaradagem ou satisfação, qualquer coisa assim seria um crime
na insipidez daquela prisão aberta. Um carro passou, mas não era
azul e não era um Trabant. As janelas laterais estavam cobertas de
neve e mesmo depois de sua passagem eu não poderia dizer
quantas pessoas havia no interior. Parou logo adiante. Não no lado
da rua, encostado no meio-fio, não sobre a calçada ou num desvio,
pois a neve bloqueava tudo. Simplesmente parou no meio dos
trilhos, desligou o motor, apagou as luzes.
Amantes, pensei. Se assim, eram amantes alheios ao perigo,
pois se tratava de uma rua de mão dupla. Um segundo carro
apareceu, seguindo na mesma direção que o primeiro. Também
parou, mas pouco antes do meu ponto do bonde. Mais amantes? Ou
apenas um motorista sensato, dando espaço suficiente para
derrapar, antes de atingir o outro carro parado à frente? O efeito era
o mesmo; havia um carro em cada lado do ponto. Continuei a
esperar e um instante depois vi os dois bêbados se levantarem no
outro lado da rua, parecendo completamente sóbrios. E depois ouvi
um único passo atrás de mim, suave como uma chinela na neve,
mas bem próximo. E compreendi que não devia fazer qualquer
movimento brusco. Não havia como escapar, não havia nenhum
golpe preventivo que pudesse me salvar, porque aquilo que eu
começava a temer em minha imaginação ou era nada ou era tudo. E
se era tudo, não haveria nada que eu pudesse fazer.
Um homem se achava parado à minha esquerda, bastante
perto para me tocar. Usava um casaco de pele e chapéu de couro,
carregava um guarda-chuva fechado que podia ter um cano de
chumbo enfiado na bainha de náilon. Muito bem, ele esperava
também pelo bonde, como eu. Um segundo homem postou-se à
minha direita. Recendia a cavalo. Ora, ele também aguardava o
bonde, como seu companheiro e eu, mesmo que tivesse vindo até
aqui a cavalo. E de repente uma voz de homem me falou, num
lamentável inglês com sotaque polonês, não vinha da esquerda nem
da direita, mas diretamente de trás de mim, onde eu ouvira o passo
macio.
— Oskar não virá esta noite, infelizmente, senhor. Ele está
morto há seis meses.
A esta altura, porém, ele já me dera tempo para pensar. Toda
uma vida, diga-se de passagem. Eu não conhecia nenhum Oskar.
Que Oskar? Vindo para onde? Era um holandês que só falava um
pouco de inglês, com um carregado sotaque holandês, como meus
tios e tias em Nijmegen. Esperei por um instante, deixando que as
palavras do homem surtissem o efeito em mim; e depois me virei...
mas devagar, indiferente.
— Creio que está me confundindo, senhor — protestei, na voz
lenta e cadenciada que aprendera no colo de minha mãe. — Meu
nome é Frans Joost, da Holanda, e não estou esperando por
ninguém, só pelo bonde.
E foi então que os dois homens nos lados me agarraram
como bons profissionais, imobilizando meus braços e
desequilibrando-me ao mesmo tempo, depois me arrastando até o
segundo carro. Mas não antes que eu tivesse tempo de reconhecer
o homem atarracado que me falara, as bochechas pálidas, os olhos
fundos de um escriturário noturno. Era o próprio Coronel Jerzy, o
mais divulgado herói da Proteção da República Popular Polonesa,
cuja fotografia impassível ornamentara as primeiras páginas de
muitos ilustres jornais poloneses, mais ou menos na ocasião em que
bravamente prendia e torturava nossos agentes.
Há mortes para as quais nos preparamos inconscientemente,
dependendo da escolha do ofício. Um agente funerário pensa em
seu funeral, o rico em sua pobreza, o carcereiro em sua prisão, o
devasso em sua impotência. O maior terror de um ator, ao que me
contaram, é ver o teatro se esvaziar, enquanto ele se empenha em
recordar suas falas... e o que é isso se não uma visão prematura de
sua agonia e morte? Para o servidor civil, é o momento em que as
muralhas protetoras do privilégio desmoronam ao seu redor e se
descobre não mais seguro do que qualquer semelhante, exposto à
atenção do mundo, respondendo como um marido mentiroso por
suas complacências e evasivas. E a maioria dos meus colegas da
comunidade de informações, se quero ser honesto, enquadra-se
nessa categoria: seu maior medo era despertar uma manhã para
descobrir seus verdadeiros nomes en clair nos jornais; ouvir seus
nomes comentados no rádio e televisão, escarnecidos e
desdenhados e, pior ainda, questionados pelo público que
acreditavam servir.
Considerariam esse exame público como um desastre maior
do que serem superados pela oposição, ou desmascarados para
todos os serviços afins do mundo inteiro. Seria a própria morte.
E para mim, a pior morte, e portanto o maior teste, aquele
para o qual me preparara depois que passara pela porta secreta,
era o que me ameaçava agora: ter minha coragem incerta posta à
prova na câmara de torturas; ser reduzido mental e fisicamente ao
último componente de resistência, sabendo que estava a meu
alcance suspender a agonia com uma palavra — que a coisa que
acontecia dentro de mim era um combate mortal entre meu espírito
e meu corpo, e que aqueles que aplicavam a dor eram apenas os
mercenários contratados naquela guerra secreta interior.
Assim, na primeira explosão ofuscante de dor, minha reação
foi de reconhecimento: Olá, eu pensei, você finalmente veio... meu
nome é Joost; e o seu? Não houve cerimônia, é claro. Ele não me
sentou a uma mesa, na tradição comprovada do cinema, e disse:
"Ou você conta tudo ou será espancado. Aqui está sua confissão.
Assine." Não tinha de me trancar numa cela e me deixar a pão e
água por alguns dias, até eu chegar à conclusão de que a confissão
era a coragem maior. Simplesmente me arrancaram do carro e me
arrastaram pelo portão do que podia ser uma casa particular,
avançando por um pátio em que as únicas pegadas eram as
nossas, derrubando-me na neve, puxando-me pelos calcanhares,
todos os três, empurrando-me aos socos de um para outro, socos
na cara, na virilha, na barriga, de novo na cara, ora me acertando
com o joelho ou o cotovelo. E quando eu me dobrava e caía,
chutavam-me como a um porco meio atordoado, pelas pedras
escorregadias, como se não pudessem esperar pelo ingresso na
casa para começarem a me bater.
E depois que entramos, eles se tornaram mais sistemáticos,
como se a elegância da sala antiga e austera lhes incutisse um
senso de ordem. Revezaram-se para me bater, como homens
civilizados, dois me segurando e um golpeando, um autêntico
rodízio democrático, só que na décima ou vigésima vez do Coronel
Jerzy ele me bateu com tanto pesar e tanta força que morri de fato
por algum tempo; ao recuperar os sentidos, encontrava-me a sós
com ele. O coronel sentava a uma mesa dobrável, os cotovelos
apoiados em cima, segurando a cabeça infeliz entre as mãos
esfoladas como se tivesse uma ressaca, revisando com
desapontamento as minhas respostas às perguntas que fizera nos
intervalos entre os golpes. Ele levantou a cabeça para estudar com
desaprovação minha aparência alterada, depois sacudiu-a
pesaroso, deixou escapar um suspiro, como a dizer que a vida não
era realmente justa com ele, não sabia o que mais podia fazer para
me ajudar a enxergar a luz. ocorreu-me que mais tempo passara do
que eu compreendia, talvez sete horas.
Foi esse também o momento em que a história começou a
ficar parecida com a que eu sempre imaginara, meu algoz sentado
confortavelmente a uma mesa, estudando-me com uma
preocupação profissional, enquanto eu ficava com os braços e
pernas esticados contra um cano escaldante, os pulsos algemados
a um aquecedor, as quinas pressionando a base da espinha como
dentes em brasa. Eu sangrara pela boca e nariz e, tive essa
impressão, por um ouvido também, a frente da camisa mais parecia
o avental de um açougueiro. Mas o sangue secara, eu não estava
mais sangrando, o que era outro meio de calcular a passagem do
tempo. Quanto tempo sangue leva para congelar numa casa grande
e vazia em Gdansk, quando se está acorrentado a um aquecedor e
fitando o rosto presunçoso do Coronel Jerzy? Era muito difícil para
mim odiá-lo, e ainda mais difícil com a ardência nas costas
aumentando a cada instante. Ele era meu único salvador. Seu rosto
não se desviava mais do meu agora. Mesmo quando baixava a
cabeça para a mesa, numa prece particular, ou se levantava e
acendia um repulsivo cigarro polonês, dando uma volta pela sala,
seu olhar lúgubre parecia continuar fixado em mim, sem qualquer
referência com o resto dele. Ele me virou as costas. Ofereceu-me a
visão da cabeça calva, o pescoço forte. Contudo, seus olhos —
argumentando comigo, às vezes até, ao que parecia, implorando
para que eu aliviasse sua angústia — nunca me deixavam, por um
segundo sequer. E havia a parte de mim que queria sinceramente
ajudá-lo, e se tornava cada vez mais clamorosa com a queimadura
nas costas. Porque não era mais uma mera queimadura, era dor
pura, uma dor indivisível e absoluta, aumentando como uma escala
que não tem limite superior. A tal ponto que eu daria qualquer coisa
para fazê-lo se sentir melhor — menos a mim mesmo. Exceto a
parte de mim que me tornara separado dele e representava dessa
forma a minha sobrevivência.
— Qual é o seu nome? — perguntou ele, ainda no inglês
polonês.
— Joost. — Ele teve de se inclinar para me ouvir. — Frans
Joost.
— De Munique — sugeriu o coronel, usando meu ombro
como um apoio, enquanto aproximava o ouvido de minha boca.
— Nascido em Nijmegen. Trabalhando para fazendeiros no
Taunus, para Frankfurt.
— Esqueceu seu sotaque holandês.
Ele me sacudiu um pouco para me despertar.
— Acontece apenas que você não pode perceber. É um
polonês. Quero falar com o cônsul holandês.
— Está querendo dizer o cônsul britânico.
— Holandês.
E, depois, acho que repeti a mesma palavra, "holandês",
várias vezes, e continuei a repetir até que ele me jogou água fria,
despejou um pouco em minha boca, deixou-me bochechar e cuspir.
Compreendi que faltava um dente. Inferior, na frente, lado esquerdo.
Talvez dois dentes. Era difícil determinar.
— Acredita em Deus? — perguntou ele.
Quando me olhava daquele jeito, as bochechas pendiam para
a frente, como as de um bebê, os lábios se contraíam num beijo,
fazendo-o parecer um querubim perplexo.
— Não no momento.
— Por que não? — Chame o cônsul holandês. Vocês
pegaram o homem errado.
Percebi que ele não gostava que lhe dissesse isso. Não
estava acostumado a receber ordens ou a ser contestado. Passou o
dorso da mão direita pelos lábios, um gesto que as vezes fazia
antes de me golpear. Fiquei esperando. Ele começou a apalpar os
bolsos, presumi que à procura de algum instrumento.
— Não — murmurou ele, suspirando. — Você está enganado.
Peguei o homem certo.
Ele se ajoelhou e pensei que se preparava para me matar,
porque já notara que se tornava mais brutal quando parecia mais
infeliz, Mas ele estava abrindo as algemas. Depois, enfiou os
punhos cerrados sob as minhas axilas e levou-me — quase pensei
que me ajudou — a um banheiro espaçoso, com uma banheira
cheia de água quente.
— Tire as roupas.
Ele ficou me observando, desolado, enquanto eu tirava o que
restava de minhas roupas, exausto demais para me importar com o
que o coronel pudesse fazer depois que entrasse na água: afogar-
me, ou cozinhar-me ou congelar-me, ou largar na banheira um fio
elétrico.
Ele trouxera minha mala do hotel. Enquanto eu tomava
banho, pegou roupas limpas e ajeitou-as numa cadeira.
— Vai partir no avião de amanhã para Frankfurt, via Varsóvia
— disse o coronel, — Houve um equívoco. Pedimos desculpas.
Cancelaremos suas reuniões e diremos que foi vítima de um
atropelamento, cujo motorista fugiu.
— Precisarei de mais que um pedido de desculpas —
murmurei.
O banho não me fazia qualquer bem. Tinha medo de
desmaiar outra vez se ficasse deitado por mais tempo. Agachei-me.
Jerzy estendeu o antebraço, segurei-o e levantei, oscilando
perigosamente. Jerzy ajudou-me a sair da banheira, entregou-me
uma toalha, e me observou com uma expressão sombria, enquanto
eu me enxugava e vestia as roupas limpas que ele me trouxera.
Saímos da casa e atravessamos o pátio, o coronel
carregando minha mala com uma das mãos e amparando-me com a
outra, porque o banho me enfraquecera também, além de atenuar a
dor. Espiei ao redor, à procura de seus capangas, mas não avistei
nenhum.
— O ar frio lhe fará bem — garantiu Jerzy, com a confiança de
um perito.Ele conduziu-me a um carro estacionado, que não parecia
com nenhum dos carros utilizados em minha prisão. Havia um
volante de brinquedo no banco traseiro. Seguimos por ruas vazias.
De vez em quando eu cochilava. Chegamos a um portão branco de
ferro, guardado por milicianos.
— Não olhe para eles — ordenou-me o coronel, mostrando-
lhes seus documentos, enquanto eu tornava a cochilar.
Saltamos do carro, no topo de um penhasco relvado. Um
vento soprava da terra e congelava nossos rostos. Eu
experimentava a sensação de que o meu era enorme, como uma
bola de futebol. A boca deslocara-se para a face esquerda. Um olho
fechara. Não havia lua e o mar era apenas um rugido além da
neblina. A única claridade provinha da cidade por trás de nós.
Borrifos de espuma branca surgiam ocasionalmente na escuridão. É
aqui que vou morrer, pensei, parado ao seu lado, primeiro ele me
espanca, depois me oferece um banho quente, agora me fuzila e
joga o corpo do penhasco. Mas suas mãos pendiam sombrias nos
lados do corpo, não empunhavam qualquer arma, e seus olhos — o
que deles eu podia divisar — fixavam-se na escuridão sem estrelas,
não em num; ou seja, talvez outra pessoa fosse me fuzilar, alguém
já esperando no escuro. Se me restasse alguma energia, poderia
matar Jerzy primeiro. Mas não havia mais nenhuma, e eu não sentia
a necessidade. Pensei em Mabel, mas sem qualquer senso de
perda ou ganho. Especulei como ela conseguiria viver de uma
pensão, a quem poderia encontrar. Fräulein Stefanie não está em
casa, lembrei... Então talvez tenha sido Stefanie quem atendeu,
Smiley estava dizendo... Tantas preces sem respostas, pensei. Mas
também muitas outras que nunca foram feitas. Sentia-me muito
sonolento. Jerzy finalmente voltou a falar, a voz tão desolada quanto
antes: — Trouxe-o até aqui porque não há nenhum microfone no
mundo que possa nos ouvir. Desejo espionar para o seu país.
Preciso de um bom profissional para ser o intermediário. E me
decidi por você.
Mais uma vez, perdi toda e qualquer noção de tempo e lugar.
Mas é possível que ele também tivesse perdido, pois virara as
costas ao mar, contemplava pesaroso as luzes em terra, a mão
segurando o chapéu para que o vento não o arrancasse, o rosto
franzido para coisas que não precisava desdenhar, os punhos
enormes às vezes removendo as lágrimas do vento de suas faces.
— Por que alguém haveria de espionar para a Holanda? —
indaguei.
— Muito bem, eu me proponho espionar para a Holanda —
respondeu ele, cansado, um tanto indulgente. — Assim, preciso de
um bom profissional holandês que saiba se manter de boca
fechada. Conhecendo os idiotas que vocês, holandeses,
empregaram contra nós no passado, sou compreensivelmente
seletivo. Mas você passou no teste. Meus parabéns. Eu o escolhi.
Achei que era melhor não dizer nada. Provavelmente não
acreditava nele.
— No compartimento falso de sua mala você vai encontrar um
maço de documentos secretos poloneses — continuou o coronel,
sempre com o mesmo tom deprimido. — Não terá problemas com a
alfândega no aeroporto de Gdansk, é claro. Dei ordens para não
examinarem sua bagagem. Por tudo o que eles sabem, você é meu
agente agora. Estará em seu território quando chegar a Frankfurt.
Trabalharei para você e mais ninguém. Nosso próximo encontro
será em Berlim, no dia 5 de maio. Estarei presente às
comemorações do Dia do Trabalho, assinalando a gloriosa vitória do
proletariado.
Ele tentava acender outro cigarro, mas o vento insistia em
apagar os fósforos. Tirou o chapéu e acendeu o cigarro lá dentro,
baixando o rosto, como se sorvesse água de um regato.
— Seu pessoal vai querer saber dos meus motivos —
continuou Jerzy, depois de dar uma tragada profunda no cigarro. —
Diga a eles...
Subitamente desorientado, o coronel arriou a cabeça entre os
ombros, lançou-me um olhar, como se suplicasse uma orientação
sobre a melhor maneira de lidar com idiotas.
— Diga a eles que me sinto entediado. Diga a eles que estou
enojado do meu trabalho. Diga a eles que o Partido não passa de
um bando de vigaristas. Eles já sabem disso, mas diga assim
mesmo. Sou um católico. Sou um judeu. Sou um tártaro. Diga-lhes
qualquer coisa que eles queiram ouvir.
— Eles podem querer saber por que você preferiu procurar os
holandeses — comentei. — Em vez de procurar os americanos, os
franceses ou quaisquer outros.Ele pensou a respeito, fumando sem
parar.
— Vocês holandeses tinham alguns bons agentes. Conheci
alguns deles muito bem. Fizeram um bom trabalho, até que o
miserável do Haydon apareceu. — Ocorreu-lhe uma ideia. — Diga a
eles que meu pai foi um piloto na Batalha da Inglaterra. Abatido em
Kent. Isso deve agradá-los. Conhece o Kent? — Por que um
holandês haveria de conhecer o Kent? Se eu enfraquecesse,
poderia lhe contar, antes de nossa separação "amigável", que Mabel
e eu compráramos uma casa em Tunbridge Wells. Mas não contei, e
talvez tenha sido melhor assim, porque o escritório central verificou
sua história e não havia nenhum registro de que o pai de Jerzy
voara qualquer coisa maior que uma pipa. E quando levantei o
assunto com Jerzy vários anos depois — quando sua lealdade aos
pérfidos britânicos já fora demonstrada acima e além de qualquer
dúvida — ele apenas riu e disse que o pai era um velho idiota que
só se interessava por vodca e batatas.
Mas por quê? Durante cinco anos Jerzy foi minha
universidade secreta de espionagem, mas seu desprezo pelo motivo
— o próprio, em particular — nunca diminuiu. Nós idiotas primeiro
fazemos o que queremos fazer, dizia ele; e depois procuramos
justificativas por ter feito. Todos os homens eram idiotas para ele,
como me disse, e nós espiões éramos os maiores idiotas de todos.
A princípio desconfiei que ele espionava por vingança,
virando-se contra as pessoas acima na hierarquia, que podiam tê-lo
menosprezado. Ele odiava a todos, a si mesmo ainda mais.
Depois concluí que ele espionava por razões ideológicas, e
que seu cinismo era um disfarce para os melhores anseios que
descobrira na meia-idade. Mas quando tentei usar minha astúcia
para romper seu cinismo — "Sua família, Jerzy, sua mãe, Jerzy,
admita que sente orgulho de ser avô" — só encontrei mais cinismo
por baixo. Não sentia nada por qualquer um deles, garantiu-me, mas
com tanta frieza, concluí, que ele, de fato, como alegava, odiava
toda a raça humana, e que sua brutalidade, talvez a traição também,
fosse a simples expressão de seu ódio.
Quanto ao Ocidente, era dirigido pelos mesmos idiotas que
comandavam tudo no mundo; então qual é a diferença? E quando
lhe declarei que isso não era verdade, ele tornou-se tão defensivo
de seu credo niilista quanto qualquer outro fanático, a tal ponto que
precisei me conter, a fim de não irritá-lo demais. Então por quê? Por
que arriscar seu pescoço, sua vida, a família que ele odiava, para
fazer alguma coisa por um mundo que desprezava? — A Igreja?
Perguntei isso também e, de forma significativa, como penso agora,
ele se enfureceu. Cristo era um maníaco depressivo, argumentou.
Cristo precisava cometer suicídio em público, por isso provocou as
autoridades até que lhe prestassem o favor.
— Esses caras que vivem falando em Deus são iguais a todo
mundo •— comentou ele, desdenhoso. — Já os torturei. Tenho
conhecimento perfeito.
Como a maioria dos cínicos, ele era um puritano, um
paradoxo que aflorava de diversas maneiras. Quando oferecemos
enviar dinheiro para ele, abrir uma conta num banco suíço, as
coisas de sempre, ele teve um acesso de raiva e declarou que não
era nenhum ''informante barato". Quando escolhi o melhor momento
— sob instruções do escritório central — para lhe assegurar que se
algum dia as coisas saíssem erradas não pouparíamos esforços
para tirá-lo da Polônia e providenciar-lhe uma nova identidade no
Ocidente, seu desprezo foi total: — Sou um idiota polonês, mas
prefiro enfrentar um pelotão de fuzilamento de outros poloneses
idiotas a morrer como um traidor em alguma pocilga capitalista.
Quanto aos outros confortos da vida, nada podíamos lhe
oferecer que ele já não tivesse. Sua mulher era uma rabugenta, ele
disse, não gostava de voltar para casa depois de um dia de trabalho
intenso no escritório. A amante era uma jovem tola, e depois de uma
hora com ela preferia uma partida de bilhar à sua conversa.
Então por quê? Continuei a me fazer essa pergunta, depois
de esgotar a lista padronizada de motivos elaborada pelo Serviço.
Enquanto isso, Jerzy continuava a encher nossos cofres.
Virava seu Serviço pelo avesso, de forma tão completa quanto
Haydon fizera com o nosso. Quando o Centro Moscou lhe dava
ordens, nós éramos informados antes mesmo que ele as
transmitisse aos subalternos. Fotografava tudo o que passava por
suas mãos; assumia riscos que eu lhe suplicava para não correr.
Era tão temerário que às vezes me levava a especular se, como o
Cristo que parecia tão determinado em repudiar, também não
procurava por uma morte pública. Era apenas a eficiência
incessante do que gostávamos de chamar de seu trabalho de
cobertura que o protegia de qualquer suspeita. Pois esse era o lado
sinistro de seu ato de equilíbrio: que Deus ajudasse o agente
ocidental, real ou imaginário, que fosse convidado a fazer uma
confissão voluntária nas mãos de Jerzy. Uma única vez, nos cinco
anos em que o dirigi, ele pareceu deixar escapulir a pista que eu
procurava. Estava extremamente cansado. Comparecera a uma
conferência dos chefes de segurança do Pacto de Varsóvia, em
Bucareste, numa ocasião em que enfrentava acusações de
brutalidade e corrupção contra o seu Serviço na Polônia.
Encontramo-nos em Berlim Ocidental, numa pensão na
Kurfurstendamm, que atendia aos melhores representantes
comerciais. Jerzy era um torturador realmente cansado. Sentou em
minha cama, fumando e respondendo às perguntas sobre a sua
última remessa de material. Tinha os olhos injetados. Depois que
acabamos, ele pediu um uísque, e mais outro.
— A ausência de perigo é ausência de vida — disse ele,
jogando mais três rolos de fumo na colcha. — A ausência de perigo
é a morte.
Ele tirou um lenço marrom meio sujo do bolso e limpou o rosto
com todo cuidado, antes de acrescentar: — Sem perigo, é melhor
ficar em casa, cuidar de criança. Preferi não acreditar que era do
perigo que ele falava. Em vez disso, decidi, Jerzy referia-se ao
sentimento, seu terror era deixar de existir ao deixar de sentir — o
que talvez fosse o motivo para que se devotasse tanto a incutir
sentimento nos outros. Naquele instante, achei que tinha um
vislumbre da razão pela qual ele sentava comigo ali no quarto,
violando todas as regras de seu código. Mantinha o espírito vivo
numa época de sua vida em que começava a dar a impressão de
que morria.
Naquela mesma noite jantei com Stefanie, num restaurante
armênio a dez minutos a pé da pensão em que me encontrara com
Jerzy. Descobrira o telefone dela por intermédio de uma irmã em
Munique. Stefanie continuava alta e bela como eu a lembrava, e
determinada a me convencer de que era feliz.Ah, a vida era perfeita,
Ned, ela me declarou. Vivia com um acadêmico muito distinto, não
mais jovem — mas olhe para nós, também não somos mais tão
jovens — e absolutamente adorável e sábio. Disse-me o nome dele.
Nada significava para mim. Disse que estava grávida dele. Não
parecia.
— E você, Ned... como estão as coisas para você! — indagou
ela, como se fôssemos dois generais relatando um ao outro suas
campanhas vitoriosas, mas separadas.
Ofereci-lhe o meu sorriso mais confiante, o que me valera a
confiança de agentes e colegas nos anos transcorridos desde que a
conhecera.
— Ora, acho que correu tudo bem, é verdade, ainda bem —
respondi, no que parecia uma típica evasiva britânica. — Afinal, não
se pode esperar que uma pessoa seja tudo de que precisa, não é?
É uma boa parceria, eu diria. Uma boa vida paralela.
— E ainda faz aquele trabalho... o trabalho de Ben? — Ainda.
Era a primeira vez que qualquer dos dois mencionava Ben.
Ele estava vivendo na Irlanda, informou Stefanie. Um primo
comprara uma velha propriedade em County Cork. Ben era uma
espécie de zelador quando o primo se ausentava, represando o rio,
cuidando das plantações e assim por diante.
Perguntei se ela costumava vê-lo.
— Não — respondeu Stefanie. — Ele não quer.
Eu a teria levado em casa de carro, mas ela preferiu um táxi.
Esperamos na rua até que um apareceu, a impressão foi de que
demorou um longo tempo. Quando fechei a porta, ela inclinou a
cabeça para a frente, como se tivesse deixado cair alguma coisa no
chão. Acenei até que o táxi sumiu, mas ela não acenou em
resposta.
O noticiário das nove horas mostrava uma reunião ao ar livre
do Solidariedade, em Gdansk, onde um cardeal polonês exortava a
vasta multidão à moderação. Perdendo o interesse, Mabel ajeitou o
Daily Telegraph em seu colo e voltou a se concentrar nas palavras
cruzadas. A princípio a multidão ouviu o cardeal ruidosamente.
Depois, com a devoção pela qual os poloneses são famosos, todos
ficaram em silêncio. Terminado o discurso, o cardeal circulou entre
seu rebanho, concedendo bênçãos e aceitando homenagens. E, à
medida que um dignitário depois de outro era conduzido à sua
presença, percebi Jerzy pairando ao fundo, como o garoto feio
excluído da festa. Emagrecera bastante desde que se aposentara, e
calculei que as mudanças sociais não lhe haviam sido benéficas. O
paletó parecia dependurado, como se pertencesse a outra pessoa;
os punhos outrora formidáveis quase sumiam nas mangas.
E de repente o cardeal avistou-o, assim como acontecera
comigo.
O cardeal fica imóvel, como se em dúvida de seus próprios
sentimentos, e por um momento se torna ainda mais aprumado,
quase que em obediência, comprimindo os cotovelos contra o corpo
e jogando os ombros para trás, em posição de sentido. E depois,
lentamente, torna a erguer os braços, dá uma ordem a um de seus
assistentes, um jovem padre, que parece relutar em obedecer. O
cardeal repete a ordem, o padre abre o caminho até Jerzy; os dois
homens se fitam, o polícia secreta e o cardeal. Jerzy estremece,
como se estivesse com dores de digestão. O cardeal inclina-se para
a frente e fala no ouvido de Jerzy. Contrafeito, Jerzy ajoelha-se para
receber a bênção do cardeal.
E a cada vez que passo esta cena, vejo os olhos de Jerzy se
fecharem, aparentemente em dor. Mas de que ele está se
arrependendo? De sua brutalidade? De sua lealdade a uma causa
desaparecida? Ou de sua traição a essa causa? Ou contrai os olhos
apenas como a reação instintiva do torturador ao receber o perdão
de uma vítima? Eu pesco. E me entrego a pequenos devaneios.
Meu amor pela paisagem inglesa aumentou ainda mais, se é que
isso é possível. Penso em Stefanie e em Bella, em todas as outras
mulheres que tive pela metade. Pressiono nosso representante no
Parlamento por causa da sujeira no rio. Ele é um conservador, mas
o que será que pensa que está conservando? Aderi a um dos
grupos ecológicos mais sérios; coleto assinaturas em petições. As
petições são ignoradas. Não jogo golfe, jamais poderia jogar. Mas
acompanho Mabel numa tarde de quarta-feira, desde que ela esteja
jogando sozinha. Encorajo-a. O cachorro se diverte. A
aposentadoria não é um momento para se vaguear perdido, ou
tentar reinventar a humanidade.
OITO
MEUS ALUNOS resolveram pressionar Smiley, exatamente
como fazem comigo de vez em quando. Estamos seguindo por um
caminho tranquilo — uma aula sobre cobertura natural, por exemplo,
ao final da tarde — quando um deles começa a me desafiar, em
geral pela adoção de uma posição anárquica, que ninguém em seu
juízo perfeito poderia sustentar. Depois um segundo adere, logo
todos eles, de tal forma que se eu não tiver o senso de humor
sempre pronto — e sou apenas humano — ficarão me atropelando
até soar a campainha para o intervalo. E no dia seguinte tudo
estaria esquecido: eles haviam satisfeito o pequeno demônio que os
dominara, qualquer que fosse, agora gostariam de voltar a aprender,
por favor, onde é mesmo que estávamos? A princípio eu costumava
remoer sobre essas ocasiões, desconfiar de conspirações, caçar os
líderes. Depois, cautelosamente, passei a reconhecê-las como
manifestações espontâneas de resistência aos arreios antinaturais
que essas crianças decidiram pôr.
Mas quando começamos a pressionar Smiley, o convidado de
honra dos alunos e meu, até mesmo a questionar o inteiro propósito
do trabalho de toda a sua vida, minha tolerância acabou
bruscamente. E desta vez a pessoa responsável não era nem
Maggs, mas a recatada Claire, a namorada dele, que sentara na
frente de Smiley durante o jantar, exibindo um sorriso de adoração.
— Não, não, Ned — protestou Smiley, quando me levantei,
furioso. — Claire tem um argumento válido. Nove vezes em dez um
bom jornalista pode nos falar tanto sobre uma situação quanto um
espião é capaz. De qualquer forma, com bastante frequência eles
partilham as mesmas fontes. Então por que não acabar com os
espiões e subsidiar os jornais? É um argumento que deve ser
respondido nestes tempos de tantas mudanças. Por que não?
Relutante, tornei a sentar, enquanto Claire, aconchegando-se contra
Maggs, continuava a fitar sua vítima com uma expressão angelical,
enquanto seus colegas disfarçavam os sorrisos.
Mas onde eu teria me refugiado no humor, Smiley preferiu
levar a sério a investida de Claire.
— É absolutamente verdadeiro que a maior parte do nosso
trabalho é inútil, ou duplicada por fontes abertas — concordou ele.
— O problema é que os espiões não existem para esclarecer o
público, mas sim os governos.
E, pouco a pouco, senti que o encantamento de Smiley
tornava a atraí-los. Aproximaram suas cadeiras, num semicírculo
desordenado. Algumas moças estenderam-se no chão, cativantes.
— E os governos, como todo mundo, confiam naquilo por que
pagam, desconfiam do que não pagam.
Assim, passando delicadamente além da pergunta
provocadora de Claire, Smiley passou a uma questão mais ampla.
— A espionagem é eterna — anunciou ele, com plena
simplicidade. — Mesmo que os governos pudessem passar sem a
espionagem, nunca o fariam. Adoram. Se chegar o dia em que não
restar inimigos no mundo, os governos os inventariam para nós.
Portanto, não se preocupem. Além do mais... quem disse que só
espionamos os inimigos? Toda a história nos ensina que os aliados
de hoje são os rivais de amanhã. A moda pode determinar
prioridades, mas não a previdência. Pois enquanto patifes se
tornarem líderes, estaremos espionando. Enquanto houver
prepotentes, mentirosos e loucos no mundo, estaremos espionando.
Enquanto as nações competirem, os políticos enganarem, os tiranos
efetuarem conquistas, os consumidores precisarem de recursos, os
expatriados procurarem por terras, os famintos por comida, e os
ricos por extravagâncias, a profissão de vocês está absolutamente
segura, posso lhes garantir.E com o tópico assim voltando
habilmente para o futuro deles, Smiley mais uma vez advertiu-os
sobre os perigos: — Não há carreira no mundo mais absurda do que
a que vocês escolheram — assegurou ele, com todos os sinais de
satisfação. — Estarão mais disponíveis enquanto tiverem menos
experiência; e depois que aprenderem o ofício, ninguém poderá
despachá-los para lugar algum sem que haja uma descrição
profissional pendurada em seus pescoços. Os velhos atletas sabem
que realizaram suas melhores partidas quando se encontravam no
vigor da juventude. Mas os espiões no auge da forma permanecem
na prateleira, sendo esse o motivo pelo qual chegam a tanto
contragosto à meia-idade, e começam a contar o custo de viverem
como viveram.
Embora seu olhar empapuçado parecesse fixado no
conhaque, eu o vi me fitar de esguelha.
— E depois, numa certa idade, você quer a resposta —
continuou Smiley. — Quer o pergaminho enrolado no santuário dos
santuários que lhe revela quem controla sua vida e por quê. O
problema é que, a esta altura, você sabe melhor do que ninguém
que o santuário dos santuários está vazio. Ned, você não está
bebendo. É o traidor do conhaque. Alguém encha o copo dele, por
favor.
É uma verdade constrangedora do período de minha vida
subsequente que o recordo como uma busca obsessiva por um
objetivo que era indefinido para mim. E esse objetivo, quando o
encontrei, era o espião apóstata Hansen.
E que, embora na realidade eu perseguisse outros objetivos e
pessoas completamente diferentes em minha jornada para o leste,
todos parecem, em retrospecto, terem sido estágios em meu
caminho para ele. Não posso descrever de qualquer outra maneira.
Hansen em sua selva cambojana foi o meu Kurtz no coração da
escuridão. E tudo o que me aconteceu no percurso foi um
preparativo para o nosso encontro. Hansen era a voz que eu
esperava ouvir. Hansen tinha as respostas para as perguntas que
eu não sabia que formulava. Externamente, eu era a minha
personalidade impassível, moderada, fumante de cachimbo, um
ombro para as almas mais fracas repousarem suas cabeças. Por
dentro, sentia uma incompreensão violenta por minha inutilidade;
um senso de que, apesar de todo o meu esforço, não conseguira
me agarrar à vida; que na luta para proporcionar a liberdade aos
outros, não encontrara nenhuma para mim. Na depressão mais
profunda, eu me via como ridículo, um herói no estilo não de
Buchan, mas de Quixote.
Pus-me a escrever versões sardônicas de minha vida, a tal
ponto que, por exemplo, quando revisei os episódios que lhes relatei
até agora, dei-lhes títulos picarescos, que enfatizavam sua
inutilidade: a Panda — eu salvaguardo nossos interesses no Oriente
Médio! Ben — eu descubro nos confins do mundo um desertor
britânico! Bella — eu faço o supremo sacrifício! Teodor — eu
participo de uma grande farsa! Jerzy — eu fico no jogo até o fim!
Embora no caso de Jerzy, não posso deixar de admitir, um propósito
positivo tenha sido atendido, mesmo que fosse de curta duração,
como a maioria das informações secretas, e irrelevantes para as
forças humanas que agora engolfaram sua nação.
Como Quixote, eu me lançara pela vida com o juramento de
conter o fluxo do mal. Só que, nos momentos de maior depressão,
eu começava a me perguntar se não me tornara um contribuinte
para o mal. Mas ainda esperava que o mundo me proporcionasse a
oportunidade de fazer minha contribuição — e o culpava por não
saber como me usar.
Para compreenderem isso, vocês precisam saber o que me
aconteceu depois de Munique. Jerzy, independente do resto que me
trouxe, proporcionou-me algum prestígio. O Quinto Andar decidiu
inventar uma função para mim, como ajustador operacional
ambulante, enviado em curtas missões "para avaliar e sempre que
possível explorar oportunidades fora da competência da Estação
local" — essa a minha instrução, selada e sacramentada.
Recordando agora, compreendo que as constantes viagens
que isso acarretava — América Central uma semana, Irlanda do
Norte na seguinte, África, Oriente Médio, África de novo — aliviaram
a inquietação que me dominava, e que é bem provável que
Personnel soubesse disso, pois eu me lançara recentemente numa
ligação amorosa sem sentido com uma moça chamada Monica, que
trabalhava na Seção de Ligação Industrial do Serviço. Eu decidira
que precisava de uma ligação; via-a na cantina e escolhi-a para o
papel. Foi banal assim. Uma noite chovia, e quando eu voltava para
casa, avistei-a parada no ponto de ônibus 23. A banalidade se
consumava. Levei-a para seu apartamento, levei-a para sua cama,
levei-a para jantar e tentamos definir o que fizéramos, aventamos a
solução conveniente de que nos apaixonáramos. Foi-nos proveitoso
por vários meses, até que a tragédia, abruptamente, me fez
recuperar o juízo. Por misericórdia, eu me encontrava em Londres,
recebendo as instruções para a próxima semana, quando recebi o
aviso de que minha mãe passava muito mal. Por um ato de divino
mau gosto, eu estava na cama com Monica ao receber o
telefonema. Pude estar presente ao evento, que foi demorado, mas
inesperadamente sereno.
Mesmo assim, descobri-me inteiramente despreparado para
isso. De alguma forma, encarara como fato consumado que, da
mesma maneira com que conseguira contornar obstáculos
incômodos no passado, assim faria no caso da morte de minha
mãe. Não poderia estar mais enganado. Bem poucas conspirações,
Smiley comentou um dia, sobrevivem ao contato com a realidade. E
assim aconteceu com a conspiração que eu fizera comigo mesmo
para deixar que a morte de minha mãe passasse por mim como
uma libertação oportuna e necessária da dor. Não incluíra em meus
cálculos que a dor podia ser minha.
Era órfão e exultava ao mesmo tempo. Não posso descrever
de outro jeito. Meu pai estava morto há muito tempo. Sem que eu
percebesse, minha mãe cumprira os deveres também de pai. Em
sua morte, descobri a perda não apenas da infância, mas também
da maior parte de minha vida adulta. Finalmente me descobria
desimpedido diante dos desafios da vida, mas muitos já tinham
ficado para trás — camuflados, perdidos ou truncados. Sentia-me
livre para amar, mas a quem? Não, infelizmente, a Monica, por mais
que eu pudesse protestar em contrário e esperar que a realidade
sucedesse. Nem Monica nem meu casamento ofereciam a magia
que era meu dever procurar, como um sobrevivente. E quando me
contemplei no espelho do banheiro pintado de rosa da capela
funerária, depois de uma noite de vigília, fiquei horrorizado com o
que vi. Era o rosto de um espião marcado por sua própria farsa.
Por acaso já o viram também, em torno de vocês? Em vocês?
Esse rosto? Em meu caso, era tanto um companheiro cotidiano que
deixara de notá-lo, até que o choque da morte reavivou-o. Sorrimos,
mas nossa retração tornou o sorriso fácil. Quando estamos
exultantes, ou bêbados — ou até, como dizem, quando fazemos
amor — a reserva não se dissolve, o giroscópio permanece vertical,
a voz de controle lembra-nos de nosso chamado. Até que,
gradativamente, o próprio retraimento se torna tão clamoroso que
quase constitui um risco de segurança por si mesmo. Assim, hoje —
se vou a uma reunião, por exemplo, ou promovemos uma noite dos
veteranos em Sarratt — posso correr os olhos pela sala e constatar
como a mácula secreta aflorou em cada um. Vejo o rosto muito
muito brilhante ou o rosto quase fosco, mas por trás de cada um
percebo os remanescentes de uma vida reprimida. Ouço o clamor
do riso supostamente descontraído e não preciso identificar a fonte
para saber que nada é solto — nem o seu emitente, nem suas
restrições interiores, absolutamente nada. No passado, costumava
pensar que a pessoa se tornava assim pela inibição típica das
classes dominantes britânicas. "Nasceram no cativeiro e não tiveram
opção que não continuar desse jeito", dizia a mim mesmo, enquanto
escutava suas cortesias inconvincentes, e retribuía a seus sorrisos
de bons companheiros. Mas sendo apenas meio britânico, eu me
eximia desse infortúnio — até aquele dia no banheiro rosa da capela
funerária, quando constatei que a mesma sombra que se abate
sobre todos nós também se abatera sobre mim.
Daquele dia em diante, creio agora, vi apenas o horizonte.
Estou começando tão tarde!, pensei. E tão atrasado! A vida seria
uma busca, ou nada! Mas era o medo de que fosse nada que me
tangia para a frente. É assim que vejo tudo agora. E é também
assim, por favor, que vocês devem ver, nas recordações
fragmentadas que pertencem a esse período surrealista de minha
vida. Aos olhos do homem que eu me tornara, cada encontro era um
encontro comigo mesmo. Cada confissão de estranho era a minha,
e a de Hansen a mais acusadora — e, portanto, em última análise, a
mais consoladora. Sepultei minha mãe, despedi-me de Monica e de
Mabel. No dia seguinte parti para Beirute. Contudo, até mesmo essa
partida simples foi acompanhada por um episódio desconcertante.A
fim de me preparar para a missão, eu partilhara um quarto com um
homem bastante inteligente, chamado Giles Latimer, que encontrara
seu canto no que era conhecido como "o departamento do Mula
Louco", estudando a intrincada e aparentemente indecifrável teia de
grupos fundamentalistas muçulmanos, operando a partir do Líbano.
A noção tão acalentada da indústria do terror amador de que todas
essas organizações fazem parte de uma superconspiração é
absurda. Se ao menos fosse assim... haveria então uma
possibilidade de alcançá-los! Na verdade, eles se esgueiram,
agrupando-se e reagrupando-se como gotas d'água numa parede
molhada, são igualmente difíceis de definir.
Mas Giles, que era um arabista e um eminente jogador de
bridge, chegara tão perto de alcançar o impossível como nenhum
outro provavelmente conseguiria. Meu trabalho era sentar a seus
pés, preparando-me para a missão. Ele era alto, magro e rouco. Era
do meu tipo. O comportamento infantil proporcionava-lhe uma
juventude extra no vermelho das faces, embora na verdade isso
fosse o resultado de pequenos vasos sanguíneos rompidos. Era
infatigável, um cavalheiro esforçado, sempre abrindo portas e
levantando-se para as mulheres. Na primavera, eu o vi
completamente encharcado em duas ocasiões, por causa de seu
hábito de emprestar o guarda-chuva a quem quer que se
propusesse a sair sem um. Era rico mas frugal, um bom homem
meticuloso, com uma boa esposa meticulosa, que organizava as
viagens para o Serviço e lembrava os nomes dos subalternos e
suas famílias. E tudo isso fez com que parecesse ainda mais bizarro
quando seus arquivos começaram a desaparecer.
Inadvertidamente, fui o primeiro a perceber o fenômeno.
Seguia uma jovem alemã chamada Britta, em sua odisseia pelos
campos de treinamento de terroristas nas Montanhas Shuf, e
solicitei a pasta que continha o material interceptado a seu respeito.
Era um material americano e restrito por uma lista de assinaturas,
mas depois que cumpri o ritual de me inscrever e assinar, ninguém
conseguiu encontrá-lo. Nominalmente, a posse era atribuída a Giles,
mas isso acontecia com quase tudo, porque Giles era Giles e seu
nome constava em todas as listas.
Mas Giles nada sabia. Lembrava de ter lido o material, podia
citá-lo; pensava tê-lo encaminhado para mim. Deve ter ido para o
Quinto Andar, sugeriu ele, ou voltou ao Arquivo. Ou se encontra em
algum outro lugar.
A pasta foi registrada como desaparecida e os sabujos de
Arquivo foram informados. Tudo continuou normalmente por mais
dois dias, até que aconteceu de novo, só que desta vez foi a própria
secretária de Giles quem desencadeou a caçada, quando Arquivo
pediu os três volumes sobre um grupo nebuloso conhecido como
Irmãos do Profeta, supostamente baseado em Damour.
Mais uma vez, Giles nada sabia: não vira nem tocara no
material. Os sabujos de Arquivo mostraram-lhe sua assinatura no
recibo. Ele repudiou-a taxativamente. E quando Giles negava
alguma coisa, ninguém se sentia propenso a contestá-lo. Como eu
digo, ele era um homem de integridade transparente.
A esta altura, a caçada se tornara séria, fazia-se inventários a
torto e a direito. Arquivo vivia seus últimos dias antes da
computadorização, e ainda podia encontrar o que procurava, ou
saber com certeza que se perdera. Hoje, alguém balança a cabeça
e telefona para um mecânico.
E arquivo descobriu que 32 pastas com baixa para Giles
haviam desaparecido. Vinte e uma eram da categoria ultrassecreta
normal, cinco se enquadravam em categorias mais elevadas e seis
pertenciam a uma categoria chamada RESTRITA, que significava,
lamento dizer, que ninguém com fortes sentimentos pró-judeus
podia ser admitido como signatário. Interpretem isso como acharem
melhor. Era uma limitação sórdida e bem poucos de nós não se
sentiam embaraçados por isso. Mas era o Oriente Médio.
Minha primeira indicação de escalada da crise veio de
Personnel. Era uma manhã de sexta-feira. Personnel sempre
gostava do refúgio do fim de semana quando estava prestes a cortar
cabeças.
— Giles anda bem ultimamente, Ned? — perguntou-me ele,
com a intimidade de velho companheiro.
— Claro que sim.
— Ele não é um cristão? E um cristão especial. Devoto.
— Acho que sim.
— Todos nós somos também, de certa forma, mas não diria
que ele é um cristão exagerado, Ned? Qual é sua opinião?
— Nunca discutimos o assunto.
— E você é?
— Não.
— Diria, por exemplo, que ele poderia ser simpático a algo
como.,, digamos... a seita britânico-israelita, ou qualquer outra coisa
desse tipo? Não que eu tenha nada contra elas, é claro. Todo
homem tem suas convicções, inclusive eu.
— Giles é bastante ortodoxo, bastante intermediário, tenho
certeza. É alguma espécie de dignitário leigo de sua igreja
paroquial. Se não me engano, faz a Oração da Quaresma, e isso é
tudo.
— É isso o que tenho aqui — queixou-se Personnel, batendo
com a mão numa pasta fechada. — É exatamente a imagem que
tenho dele, Ned. O que está acontecendo? Nem sempre meu
trabalho é fácil, Ned, você deve compreender. Nem sempre é
agradável.
— Por que não pergunta a ele diretamente?
— Claro, claro, eu devo fazer isso. A menos que você
pergunte, sem dúvida. Pode levá-lo para almoçar... à minha custa,
naturalmente. Para senti-lo. E depois me diga o que pensa.
— Não.
O comportamento do velho companheiro foi substituído por
uma atitude muito mais inflexível.
— Já imaginava que diria isso. Às vezes me preocupo com
você, Ned. Anda se envolvendo com mulheres e é um pouco
teimoso, para o seu próprio bem. É o sangue holandês em você.
Pois muito bem, fique de boca fechada. E isso é uma ordem.
Ao final, foi Giles quem me levou para almoçar.
Provavelmente Personnel fizera o mesmo jogo pelos dois lados,
inventando alguma história ao inverso para Giles. Se isso aconteceu
ou não, o fato é que ao meio-dia e meia Giles levantou-se
abruptamente e disse: — Que se dane tudo, Ned. É sexta-feira.
Vamos sair. Eu lhe pago o almoço. Há anos que não tenho um bom
almoço.
E assim fomos ao Traveller's, e sentamos a uma mesa junto
da janela, bebemos uma garrafa de Sancerre muito depressa.E de
repente Giles pôs-se a falar sobre uma viagem de ligação que fizera
recentemente ao FBI em Nova York. Começou da maneira mais
normal que era possível, mas depois sua voz pareceu empacar em
uma nota, os olhos fixaram-se em alguma coisa que só ele podia
ver. Atribuí ao vinho, a princípio. Giles não parecia um bebedor e
não bebia como se fosse. Contudo, havia uma grande convicção na
maneira como ele falava e — à medida que continuou — uma
veemência visionária.
— Uns camaradas muito peculiares, os americanos, Ned, é
preciso tomar cuidado com eles. Não se imagina que eles estão
atrás da gente, a princípio. O hotel em que a gente se hospeda, por
exemplo. Sempre se pode perceber as indicações num hotel.
Sorrisos demais quando você se registra. Interesse demais por sua
bagagem. Eles estão vigiando você. Um jardim suspenso. Piscina
na cobertura. Pode-se avistar os helicópteros subindo pelo rio. "Seja
bem-vindo, Sr. Lambert, tenha um bom dia, senhor." Eu estava
usando o nome de Lambert. É o que sempre uso na América.
Puseram-me no 14º andar. Sou um camarada metódico. Sempre fui.
Formas nos sapatos, essas coisas. Meias ali. Ternos numa ordem
determinada. Nunca temos ternos leves, nós, os ingleses, não é
mesmo? Pensamos que são leves. Escolhemos ternos leves. O
alfaiate diz que são leves. "O mais leve que temos, senhor. Não há
nada mais leve." Era de se esperar que já tivessem aprendido a
esta altura, pela quantidade de trabalhos americanos que fazem.
Mas não aprenderam. Viva! Ele bebeu e eu bebi também. Servi-lhe
um pouco de água mineral. Ele estava suando.
— Voltei ao hotel no dia seguinte. Reuniões durante todo o
dia. Muito empenho para simpatizar uns com os outros. E eu gosto
deles. São bons sujeitos, apenas... diferentes. Atitudes diferentes.
Andam armados. Querem resultados. Mas não pode haver nenhum,
não é mesmo? Todos nós sabemos disso. Quanto mais fanáticos
você mata, mais aparecem. Eu sei disso, eles não sabem. Meu pai
era um arabista também, você sabe.
Eu disse que não sabia e acrescentei: — Fale-me sobre ele.
Queria que ele mudasse de assunto. Tinha certeza de que me
sentiria muito melhor se ele falasse do pai, em vez do hotel.
— Entro no hotel e eles me entregam a chave. "Ei, esperem
um pouco", eu digo. "Este não é no 14º andar, mas sim no 21º.
Houve um engano." Eu sorrio, é claro. Qualquer um pode cometer
um erro. É uma mulher que me atende desta vez. Uma mulher de
aparência firme. "Não é um engano, Sr. Lambert. Está no 21º andar.
Seu quarto é o 2.109." E eu digo: "Não é, não. É o 1.409. Olhe
aqui." Eu guardara em algum lugar o cartão de identidade que eles
haviam me dado. Procurei-o. Revirei os bolsos, enquanto ela me
observava, mas não consegui encontrá-lo. E insisti: "Pode acreditar
em mim. Tenho uma boa memória. Meu quarto é o 1.409." Ela pega
a lista de hóspedes e me mostra. Lambert, 2.109. Subo no elevador,
abro a porta, está tudo lá. Sapatos aqui. Camisas ali. Meias em seu
lugar. Ternos na mesma ordem. Tudo onde eu pusera no outro
quarto, lá embaixo, no 14º andar. Sabe o que eles fizeram? Eu disse
outra vez que não sabia.
— Fotografaram tudo. Com Polaroid.
— Por que fariam isso? — Queriam pôr um microfone para
me escutar... o 2.109 estava grampeado, enquanto o 1409 se
encontrava limpo. Não servia para eles, por isso me despacharam lá
para cima. Achavam que eu era um espião árabe.
— Por que pensariam assim? — Por causa de meu pai. Ele
foi um homem de Lawrence. Sabiam disso. E tomaram uma
decisão. É assim que eles fazem. Fotografam seu quarto.
Quase não me lembro do resto do almoço. Não lembro o que
comemos, o que mais bebemos, ou qualquer outra coisa. Tenho
uma vaga recordação de Giles enaltecendo Mabel como a perfeita
esposa do Serviço, mas talvez isso seja um fruto de minha
consciência. Tudo o que lembro realmente é de nós dois lado a
lado, na sala de Oiles no escritório central, Personnel parado na
frente do armário de aço de Giles, com a porta removida, as 32
pastas desaparecidas espremidas lá dentro de qualquer maneira,
nas prateleiras — todas as pastas que Giles não podia aguentar
enquanto sofria o que Smiley chamou de "colapso nervoso na
Escala Doze".
E qual o motivo para isso, como descobri depois? Giles
também encontrara sua Monica. O que o desequilibrou,
ostensivamente, foi a paixão por uma moça de vinte anos em sua
aldeia. O amor por ela, o sentimento de culpa e desespero
determinaram que ele não fosse mais capaz de funcionar.
Continuara a cumprir a rotina diária — afinal, era um soldado — mas
sua mente não mais participava. Adquirira preocupações próprias,
que ele não controlava.
O que mais o desequilibrou, deixo ao critério de vocês, e a
nossos analistas internos, que parecem ganhar terreno dia a dia.
Algo relacionado, talvez, com o hiato entre nossos sonhos e nossas
realidades. Algo relacionado com o abismo entre aquilo por que
Giles ansiara quando era jovem, e o que tinha agora que era quase
velho. E a verdade nua e crua é que Giles me assustara. Senti que
ele resvalara na minha frente pelo caminho que eu também seguia.
Senti isso enquanto seguia para o aeroporto; senti no avião,
enquanto pensava em minha mãe. E tomei vários uísques durante o
voo, a fim de não sentir mais.
Ainda sentia quando arrumei meu casaco no guarda-roupa no
quarto 607 do Hotel Commodore, em Beirute, e o telefone começou
a tocar, a poucos centímetros de minha cabeça. Ao atender, tive a
fantasia absurda de que ouviria Ahmed na recepção me informar
que eu fora transferido para outro quarto, no 21º andar. Estava
enganado. O episódio surrealista número dois se anunciava.
O tiroteio começara, armas semiautomáticas em ação.
Provavelmente um bando de garotos numa pickup japonesa
disparando AK 47s pela vizinhança. Era uma daquelas temporadas
em Beirute nas quais se pode acertar o relógio pelas primeiras
comoções vespertinas. Mas eu nunca me importara muito com os
tiroteios. O tiroteio possui uma lógica, embora fortuita. É dirigido
contra você, ou para outro lado. Minha fobia pessoal era os carros-
bombas — nunca saber, enquanto se avança apressado por uma
calçada, ou se arrasta suado num engarrafamento, se um carro
estacionado vai destruir todo o quarteirão, com uma única e
tremenda explosão, deixando-o em fragmentos tão pequenos que
não resta nada para um saco de cadáver, muito menos para um
funeral. A coisa que se notava em relação aos carros-bombas —
isto é, depois — era os sapatos. As pessoas são explodidas para
fora deles, mas os sapatos permanecem intactos. Assim, mesmo
depois que os fragmentos de corpo foram recolhidos e removidos,
ainda restavam insólitos pares de sapatos, usáveis, entre cacos de
vidro, dentes quebrados e farrapos de roupas. Algum fogo de
metralhadora, como agora, ou o zumbido de um foguete manual,
não me perturbavam como a outras pessoas.
Tirei o fone do gancho e senti o coração acelerar quando ouvi
uma voz de mulher, não apenas por causa de minhas ambiguidades
domésticas, mas também porque minha missão era localizar uma
alemã — a mesma Britta que andara tomando aulas de terror nas
Montanhas Shuf.
Mas não era Britta. Não era Monica e não era Mabel. A voz
era tipicamente americana e assustada. E eu era Peter, lembrem-se
— Peter Cárter, de um grande jornal britânico, mesmo que seu
correspondente local nunca tivesse ouvido falar de mim. Lembrei-
me de tudo isso enquanto a escutava.
— Pelo amor de Deus, Peter, preciso me encontrar com você!
— exclamou ela, no mesmo fôlego. — Onde é que você andou,
Peter? O matraquear de uma metralhadora pesada irrompeu, para
ser prontamente silenciado pela explosão de uma granada
impulsionada por foguete. A voz ao telefone voltou a se manifestar,
numa agitação ainda maior: — Por Deus, Peter, por que não me
ligou? Está bem, eu disse coisas horríveis. Estraguei sua matéria.
Mas, afinal, o que somos? Crianças? Você sabe como eu odeio
essas coisas.
Um frenesi de fogo de rifle. Às vezes os garotos limitam-se a
atirar para o céu, pelo efeito dramático. A voz dela se alteou ainda
mais: — Fale comigo, Peter! Diga alguma coisa engraçada, está
bem? Alguma coisa engraçada deve estar acontecendo em algum
lugar do mundo! Peter, quer me responder, por favor? Você não está
morto, não é? Não está estendido no chão com os miolos
estourados, não é? Apenas me diga que não. Não quero morrer
sozinha, Peter. Sou sociável. Amo socialmente, morro socialmente.
Responda, por favor, Peter! — Que quarto está ligando? —
indaguei.
Silêncio total. O silêncio dos mortos que se acumula entre as
rajadas de fogo.
— Quem está falando? — indagou ela.— Aqui é Peter, mas
não creio que seja o seu Peter. Para que quarto está ligando? —
Esse quarto.
— Que número? — Quarto 607.
— Ele deve ter partido. Cheguei a Beirute esta tarde. Este é o
quarto que me deram.
Uma granada explodiu, respondida por outra. Lá fora, na rua,
talvez a três quarteirões de distância, alguém gritou, um grito
lancinante. E o grito logo cessou.
— Ele está morto? — sussurrou a mulher. Não respondi.
— Pode ter sido uma mulher — acrescentou ela.
— É possível.
— Quem é você? Um britânico? — Isso mesmo.
Peter também é, pensei, sem saber por quê.
— O que faz?
— Para viver?
— Apenas fale comigo. Continue falando.
— Sou jornalista.
— Como Peter?
— Não sei que tipo de jornalista ele é.
— É durão. A escola do perigo. Você também é assim?
— Algumas coisas me assustam, outras não.
— Ratos?
— Ratos me apavoram.
— Você é bom?
— Tão bom quanto a notícia, eu suponho. Não costumo mais
escrever reportagens. Estou no editorial agora.
— É casado?
— E você?
— Sou.
— Com Peter? — Não, não com Peter.
— Há quanto tempo o conhece?
— Meu marido?
— Não. Peter.
Não perguntei a mim mesmo por que me sentia mais
interessado em seu adultério do que no casamento.
— Não se mede o tempo dessas coisas por aqui —
respondeu ela. — Um ano, dois anos... não se fala assim. Não em
Beirute. Você é casado também, não é? Não queria me dizer até
que eu lhe falasse primeiro.
— Sou casado.
— Fale-me sobre ela.
— Minha mulher?
— Claro. Você a ama? Ela é alta? Uma pele boa? Muito
britânica, metida à besta?
Eu lhe disse algumas coisas inofensivas a respeito de Mabel
e inventei outras, odiando a mim mesmo.
— Mas, afinal, quem no mundo pode acreditar em sexo
depois de quinze anos com a mesma pessoa? — comentou ela.
Soltei uma risada, mas não respondi.
— É fiel a ela, Peter?
— Infalivelmente — declarei, depois de uma pequena
demora.
— Muito bem, vamos ao trabalho. Voltemos ao trabalho. O
que está fazendo aqui? Conte-me o que está fazendo.
O espião em mim esquivou-se à pergunta.
— Acho que está na hora de me contar o que você faz. É
jornalista também? A esteira de um foguete luminoso riscou o céu.
Seguiu-se a explosão. A voz da mulher tornou-se muito cansada,
como se o medo a esgotasse.
— Despacho notícias, é claro.
— Para quem?
— Um sórdido serviço noticioso, o que mais? Meio dólar por
linha, até que algum sacana me rouba a notícia e ganha mil numa
tarde.
— Qual é o seu nome?
— Não sei. Talvez Annie. Pode me chamar de Annie. Sabia
que você é um cara muito simpático? O que você faria se um
dobermann trepasse em sua perna?
— Latiria?
— Simularia um orgasmo. Estou apavorada, Peter. Talvez eu
não tenha deixado isso bem claro. Preciso de um drinque.
— Onde você está?
— Aqui mesmo.
— Onde é aqui?
— No hotel, pelo amor de Deus! O Commodore. Parada no
saguão, sentindo o bafo de alho de Ahmed e sendo comida com os
olhos pelo Grego.
— Quem é o grego?
— Stavros. Ele é traficante de drogas das pesadas, mas jura
de pés juntos que só negocia com as leves. É um homem
desprezível.
Prestei atenção e, pela primeira vez, distingui o murmúrio de
vozes ao fundo. O tiroteio terminara.
— Peter?
— O que é?
— Apague essa luz, Peter.
Ela devia saber que só havia uma luz acesa no quarto, um
frágil abajur na mesinha de cabeceira, a copa de papel
apergaminhado torta. Fui desligá-lo. As estrelas brilhavam de novo.
— Destranque sua porta, deixe-a entreaberta. Um ou dois
centímetros. Tem alguma bebida aí?
— Uma garrafa de scotch.
— Vodca?
— Não.
— Gelo?
— Não.
— Levarei algum. E, Peter...
— O que é?
— Você é um bom sujeito. Alguém já lhe disse isso?
— Há muito tempo que não.
— Espere por mim — murmurou ela, desligando em seguida.
Ela nunca apareceu.
Podem imaginar a situação como quiserem, foi o que eu fiz,
aventando todas as possibilidades, enquanto sentava no divã, no
escuro, observando a porta e observando minha vida passar,
enquanto esperava para ouvir seus passos no corredor.
Acabei descendo, depois de uma hora. Sentei no bar e prestei
atenção a cada voz feminina americana que pude encontrar.
Nenhuma se ajustava. Procurava por alguém que podia se chamar
Annie e cantar um homem com quem só falara pelo telefone.
Subornei Ahmed para me contar quem usara o telefone interno do
saguão às nove horas daquela noite, mas sua memória, por
qualquer motivo, não incluía uma americana emocionada.
Cheguei ao ponto de tentar descobrir a identidade do
ocupante anterior de meu quarto, se o seu primeiro nome era
mesmo Peter, mas Ahmed mostrou-se misteriosamente vago, disse
que se encontrava em Trípoli na ocasião, visitando sua velha mãe, e
que o hotel não guardava a relação dos hóspedes.
Será que o verdadeiro Peter voltara no momento exato e a
levara? Teria sido Stavros o Grego? Ela era uma prostituta? Eu
também me prostituía? Ahmed seria o cafetão da mulher? O
telefonema seria alguma manobra elaborada que ela usava com os
homens que acabavam de chegar ao hotel, a fim de fisgá-los na
primeira noite que passavam sozinhos e nervosos? Ou ela era,
como prefiro pensar, apenas uma mulher assustada, com saudade
do namorado e ansiando por um corpo para se aconchegar, quando
começasse a trovoada noturna da cidade, levando-a à loucura?
Qualquer que fosse o mistério que ela representava, eu aprendera
algo a meu respeito, mesmo que isso me desconcertasse.
Aprendera como minha solidão era perigosa, como era disponível, o
quanto precisava dar e receber amor; e como era frágil em mim a
virtude que o Serviço chamava de "segurança pessoal", em
comparação com o meu crescente anseio por contato humano.
Pensei em Monica e nos meus vazios protestos de amor, que não
chegaram a comover os deuses a que eram endereçados. Pensei
em Giles Latimer e em sua paixão sem esperanças. E, de alguma
forma, a mulher que dissera se chamar Annie parecia pertencer à
mesma linha de mensageiros angustiados, todos falando de dentro
de mim.
Depois da mulher sem rosto, veio o garoto sem rosto. O que
aconteceu na noite seguinte.
Exausto, eu me refestelara no saguão do hotel e bebia meu
uísque sozinho. Visitara os campos de refugiados em torno de Sidon
e minha mão tremia de mais um dia no sul do Líbano. Agora era a
hora mágica do crepúsculo, quando o reino animal humano de
Beirute concordava em pôr de lado suas hostilidades e se reunir no
poço comunitário. Eu já vira a mesma coisa acontecer na selva.
Talvez vocês também tenham visto. A um comando único, elefantes,
javalis, gazelas, leões e girafas saem da escuridão protetora das
árvores e, em silêncio quase total, espalham-se em torno do poço
lamacento. Pode-se observar o saguão do Commodore à mesma
hora, quando os jornalistas retornam de suas excursões do dia.
Assim como as portas de vidro elétricas, sempre um pouco lentas,
suspiravam e grunhiam em seu esforço, assim também a escuridão
do início da noite em Beirute expelia sua fauna: uma equipe de
televisão sueca, liderada por um louro de rosto pálido, usando um
jeans da moda; um fotógrafo e um correspondente de uma revista
semanal americana; os homens das agências noticiosas, sempre
aos pares; um idoso e totalmente misterioso alemão oriental, com
sua amante japonesa. Todos tinham o mesmo jeito inibido e nada
dramático de entrar, parando por um instante, meio vergados ao
fardo do dia.
Não que o dia deles estivesse encerrado. Para os verdadeiros
jornalistas, havia sempre filmes a serem despachados, histórias a
serem redigidas, e despachadas por telex ou telefone. Alguém
desaparecera e era preciso dar uma explicação. Alguém fora
atingido por uma bala fatal, sua mulher já sabia? Apesar de tudo
isso, porém, quando as portas de vidro fechavam-se por trás deles,
haviam recuperado o dia do inimigo. As escotilhas eram fechadas
para a noite.
E eu observava e esperava — para encontrar um homem que
conhecia um homem que conhecia outro homem que podia
conhecer a mulher que eu deveria descobrir. Meu dia até aquele
momento nada produzira, exceto outra visita aos miseráveis do
mundo.
Em outra parte do saguão se reunia uma espécie diferente,
menos encantadora, mas quase sempre mais interessante para o
observador: os aventureiros, negociantes de armas, traficantes de
tóxicos, diplomatas subalternos em ternos escuros, os vendedores
de influência e informações, manuseando suas contas de
preocupação, enquanto os olhos irrequietos deslocavam-se de um
rosto para outro. E os espiões — espiões de todo mundo —
negociando abertamente, pois em Beirute esse era um ofício de
todos. Não havia um homem ou mulher ali que não dispusesse de
sua fonte de informações, mesmo que fosse apenas Ahmed, por
trás do balcão, que por alguns dólares e um sorriso seria capaz de
revelar os segredos do universo.
Mas a figura que atraiu minha atenção era exótica até mesmo
pelos padrões da fauna do Commodore. Não o vi entrar. Ele devia
ter chegado a reboque de algum grupo. Só o vi no interior do
saguão, emoldurado contra a escuridão das portas de vidro, vestido
numa camisa de futebol listrada, com uma echarpe branca de
enfermeira em torno da cabeça. Se ele não fosse tão magro e de
peito liso, eu não teria certeza, à primeira vista, se era uma mulher
fingindo ser homem, ou um homem fingindo ser mulher.
O segurança também o notara. E o mesmo acontecera com
Ahmed, por trás de seu formidável balcão. Suas duas Kalashnikovs
estavam encostadas na parede por trás, logo abaixo dos
compartimentos onde ficavam as chaves dos quartos. Observei
Ahmed dar meio passo para trás, a fim de ficar ao alcance de uma
das armas. Uma pequena granada de mão no saguão, àquela hora,
poderia exterminar a metade dos melhores traficantes da cidade.
Mas a aparição continuou a avançar, alheia ou indiferente à
curiosidade que despertava. Era alto, jovem e ágil, mas rígido. Era
como uma pessoa sem vontade, ordenada a se adiantar pela voz de
seu controlador. Podia observá-lo melhor agora. Usava óculos
escuros, um princípio de barba preta, um bigode. Era por isso que
seu rosto parecia tão escuro. E o lenço na cabeça tão branco. Mas
foi a rigidez de autômato de seu andar que me deixou todo
arrepiado, e me fez especular que tipo de crente poderíamos ter em
nossas mãos.
Ele chegou ao centro do saguão. Algumas pessoas recuaram
para lhe dar passagem. Algumas o fitaram e logo desviaram os
olhos, outras viraram as costas em abstenção, como se o
conhecessem e não gostassem dele. E de repente, sob a luz no
meio do saguão, ele parecia estar subindo. Com a cabeça
amortalhada inclinada para a frente, os braços mal se mexendo, ele
subia em seu próprio patíbulo, por ordens superiores. Percebi agora
que era americano. Pude percebê-lo pelos joelhos curvados, os
pulsos pendentes, os quadris um tanto femininos. Um garoto
tipicamente americano. Os óculos escuros não eram bastante
escuros, aparentemente, pois uma pala de pano pendia de uma
mão comprida. Era do tipo que os jogadores supostamente usavam,
assim como os editores noturnos nos filmes da década de quarenta.
Tinha mais de um metro e oitenta de altura. Usava sapatos de tênis,
de um branco de vestal, como o lenço na cabeça, silenciosos.
Um anormal árabe?, pensei.
Um sionista enlouquecido? Já conhecera alguns assim.
Drogado? Um turista de guerra da escola secundária, na trilha
dos hippies, em busca de emoções na cidade dos condenados?
Mudando de direção, ele pôs-se a falar com o recepcionista, mas
meio virado para o saguão, já procurando pela pessoa por quem
indagava. E foi nesse instante que reparei nos pontos vermelhos
espalhados por suas faces e testa, como urticária ou catapora, só
que mais vívidos. Os percevejos haviam-no devorado em alguma
hospedaria repulsiva, pensei. Ou enfiara a cabeça pelo para-brisa
de algum carro acidentado. Ele começou a caminhar na minha
direção. Outra vez rígido, inexpressivo. Determinado, um homem
acostumado a ser olhado. A pala pendia de sua mão, balançando.
Lançou-me um olhar furioso e cego por trás dos óculos escuros,
enquanto eu continuava sentado, bebendo. Uma mulher pegara em
seu braço. Usava uma saia e poderia ser a enfermeira que lhe
emprestara o lenço da cabeça. Pararam diante de mim. De mim e
mais ninguém.
— Senhor? Este é Sol, senhor — disse a mulher... ou Syd, ou
Mort, ou qualquer outro nome. — Ele quer saber se é o jornalista,
senhor.
Eu disse que era um jornalista.
— De Londres, senhor, em visita? É o editor, senhor? É
influente, senhor? Influente eu duvidava, comentei, com um sorriso
depreciativo. Trabalhava na área administrativa, estava ali de
passagem.
— E vai voltar para Londres, senhor? Em breve? Em Beirute
aprende-se a não falar de seus movimentos de antemão.
— Muito em breve — admiti, embora na verdade tencionasse
retornar ao sul no dia seguinte.
— Sol pode lhe falar por um momento, senhor? Só falar? Sol
precisa muito falar com uma pessoa que tenha influência junto aos
grandes jornais ocidentais. Ele acha que os jornalistas aqui já viram
tudo, estão embotados. Sol precisa de uma voz de fora.
Abri espaço e ela sentou ao meu lado, enquanto Sol arriava
lentamente numa cadeira — aquele homem coberto, silencioso,
impecável, com a camisa de futebol de mangas compridas e um
lenço na cabeça. Sentado por fim, ele pôs os pulsos sobre os
joelhos, segurando a pala com as duas mãos. Deixou escapar um
longo suspiro e começou a murmurar para mim: — Há uma coisa
que escrevi, senhor. Gostaria, por favor, que fosse publicada em seu
jornal.
A voz, embora suave, era instruída e polida. Mas era sem vida
e, como seus movimentos, frugal, como se lhe doesse produzir cada
palavra. Por trás das lentes dos óculos muito escuros, percebi que o
olho esquerdo era menor do que o direito. Mais estreito. Não
inchado, nem fechado por um murro, apenas menor do que o seu
companheiro, tirado de um rosto diferente. E os pontos não eram
picadas de inseto, nem urticárias, nem cortes. Eram crateras, como
as marcas de varíola de fogo de revólveres num muro de Beirute,
gravadas com calor e velocidade. Como crateras também, a pele ao
redor levantara, mas não fechara.
Sua história logo seguiu-se, sem que eu perguntasse. Era um
voluntário de assistência social, senhor, estudante de medicina no
terceiro ano, de Omaha. Acreditava na paz, senhor. E estava
naquela explosão, senhor, lá em Corniche, naquele restaurante que
sofrerá um dos piores atentados, fora arrasado, devia ir até lá e dar
uma olhada, um lugar chamado Akhbar, senhor, frequentado por
muitos americanos, havia o tal carro-bomba e os carros-bombas são
o pior de tudo. Não pode haver nada pior do que os carros-bombas
como surpresa.
Eu disse que sabia disso.
Quase todos no restaurante haviam morrido, senhor, a
exceção dele, as pessoas mais próximas da parede foram
desintegradas, ele continuou, sem saber que descrevera meu pior
pesadelo. E agora ele tinha aquela coisa que escrevera, sentia que
tinha de dizê-lo, senhor, uma espécie de declaração amena sobre a
paz, que precisava publicar em meu jornal, talvez adiantasse
alguma coisa, ele estava pensando naquele fim de semana, talvez
na segunda-feira. Gostaria de doar os honorários para uma obra de
caridade. Calculava que seriam uns duzentos dólares, talvez mais.
Isso ainda comprava um pouco de esperança para as pessoas nos
hospitais de Beirute.
— Precisamos de uma trégua, senhor — explicou ele, em sua
voz monótona, enquanto a mulher tirava um maço de papel
datilografado de seu bolso. — Uma trégua para a moderação.
Apenas uma pausa entre as guerras para se encontrar um caminho
intermediário.
Só no Commodore, em Beirute, podia parecer natural que um
pacifista chocado por uma bomba suplicasse por uma causa perdida
a um jornalista que não era jornalista. Não obstante, prometi que
faria o que pudesse. Depois que eu tratei de meu negócio com o
homem que esperava — que não sabia de nada, é claro, nada
ouvira, mas talvez, senhor, quem sabe se eu falasse com o Coronel
Asme em Tiro? — fui me acomodar em meu quarto e, com um copo
ao lado, comecei a ler o artigo do rapaz, decidido, se houvesse
alguma possibilidade razoável de publicação, a torcer o braço de um
de nossos incontáveis amigos na Fleet Street, assim que voltasse a
Londres, para garantir que saísse num jornal.
Era uma peça trágica, e logo se tornou ilegível; um apelo
desconexo e emocional a judeus, cristãos e muçulmanos para que
se lembrassem de suas mães e filhos, e vivessem juntos no amor.
Exortava ao terreno intermediário das concessões mútuas e
apresentava exemplos inacurados da história. Propunha uma nova
religião, "como Joana d'Arc nos teria dado, só que os ingleses não a
deixaram fazê-lo, por isso a queimaram viva, ignorando seus gritos
e a vontade das pessoas comuns". Esse novo grande movimento,
dizia ele, "uniria as raças semitas numa fraternidade espiritual de
amor e tolerância". Depois, o artigo perdia-se por completo,
recorrendo a letras maiúsculas para destaque, com sucessivas
fileiras de pontos de exclamação. Ao final, já deixara de ser tudo o
que pretendia, falava sobre aquela "família inteira, crianças e avós,
todos sentados ao lado do muro, os mais próximos do epicentro". E
como foram todos explodidos em pedacinhos, não uma vez, mas
muitas e muitas vezes, a cada vez que Sol se permitia olhar em sua
memória angustiada.E de repente eu estava escrevendo o artigo
para ele. Para ela. Para Annie. Primeiro em minha mente, depois na
margem das páginas, logo numa folha de papel em branco que tirei
de minha pasta, que enchi num instante e peguei outra. Eu suava, o
suor despejava-se de mim como chuva; era esse tipo de noite em
Beirute, tranquila até aquele momento, mas com um calor úmido,
incômodo, descendo das montanhas, enquanto um nevoeiro
cinzento e sinistro, como fumaça de pólvora, estendia-se pelo mar.
Eu escrevia, e especulava se ela tornaria a telefonar. Escrevia como
o garoto que fora vítima do atentado, para uma moça que não
conhecia. Escrevia — como descobri consternado ao despertar na
manhã seguinte — uma porcaria pomposa e pretensiosa.
Proclamava afeições independentes, manifestava grandes
sentimentos, pontificava sobre o ciclo inevitável do mal humano,
sobre a busca interminável do homem pelos motivos para fazer a
coisa errada.
Uma trégua, dissera o rapaz. Uma trégua para a moderação,
uma pausa entre as guerras. E lhe falei a respeito. Falei também
para Annie. Disse a eles que as únicas tréguas na história do
conflito humano haviam sido não para a moderação, mas para o
excesso, tréguas para que o mundo se redividisse, para que os
bandidos e as vítimas se encontrassem, para que a ganância e a
privação se reagrupassem. Escrevi como um adolescente com o
coração sangrando, e quando a manhã chegou e deparei com as
folhas preenchidas com a minha letra, espalhadas pelo chão, em
torno da garrafa de uísque vazia, não pude acreditar que aquele era
o trabalho de alguém que eu conhecia.
E por isso fiz a única coisa em que pude pensar. Levei tudo
para a pia e queimei, depois desmanchei as cinzas, joguei no vaso
sanitário e puxei a descarga, despachando tudo para os esgotos
cheios de sangue de Beirute. E depois que fiz isso, lancei-me a uma
corrida punitiva pela praia, correndo com todo o vigor de que era
capaz, a fim de escapar do que vinha atrás de mim, o que quer que
fosse.
Estava correndo para Hansen, para longe de mim mesmo,
mas ainda precisava fazer mais uma escala no caminho.
Minha jovem alemã, Britta, encontrava-se em Israel, no meio
do deserto de Negev, num conjunto de galpões cinzas, perto de uma
aldeia chamada Revivim. Os galpões tinham uma faixa escavada ao
redor, um perímetro duplo com uma cerca de arame farpado, e uma
torre de vigia guarnecida em cada canto. Se havia outras
prisioneiras europeias ali, além dela, não lhes fui apresentado. Suas
únicas companheiras, ao que pude perceber, eram moças árabes,
principalmente das aldeias pobres na Margem Ocidental e em Gaza,
que haviam sido persuadidas ou pressionadas por seus camaradas
palestinos a cometerem atos de selvageria contra os odiados
ocupantes sionistas, a maioria plantando bombas em mercados ou
lançando-as contra ônibus civis.
Cheguei lá de jipe, procedente de Beersheba, tendo ao
volante um jovem e vigoroso coronel do serviço secreto, cujo pai,
quando ainda era menino, fora treinado como um Guerreiro Noturno
pelo excêntrico General Wingate, durante o Mandato Britânico. O
pai do coronel lembrava de Wingate agachado em sua barraca,
inteiramente nu, traçando o plano de batalha na areia, à luz de vela.
Cada soldado israelense parece falar sobre seu pai e bem poucos
falam sobre os britânicos. Depois do Mandato, eles pensam que nos
conhecem pelo que provavelmente ainda somos: antissemitas,
ignorantes e imperialistas, com exceções apenas suficientes para
nos redimir. Dimona, onde os israelenses guardam seu arsenal
nuclear, fica um pouco mais além.
O senso de irrealidade ainda não me deixara. Ao contrário,
aumentara. Era como se eu tivesse perdido o distanciamento da
condição humana que é essencial para o nosso ofício. Meus
sentimentos e os sentimentos dos outros pareciam contar mais para
mim do que as minhas observações. É bastante fácil no Líbano, se
você baixa a guarda, desenvolver um ódio irracional a Israel. Mas eu
sucumbira a uma grave dose da doença. Circulando pela lama e
mau cheiro dos campos de refugiados arrasados, agachando-me
em choupanas de sacos de areia, convencera-me de que a sede de
vingança israelense não acabaria até que os olhos acusadores da
última criança palestina fossem fechados para sempre.
Talvez o jovem coronel percebesse uma insinuação disso,
pois embora o avião me trouxesse de Chipre, fora apenas algumas
horas antes que eu deixara Beirute, e algo do que sentia ainda
podia ser visível em meu rosto.— Chegou a ver Arafat? —
perguntou ele, com um sorriso melancólico, enquanto seguíamos
pela estrada reta.
— Não, não vi.
— Por que não? Ele é um bom sujeito. Deixei passar.
— Por que quer falar com Britta? Expliquei tudo. Não havia
sentido em me esquivar. Londres precisara recorrer a todos os seus
poderes de persuasão para conseguir a entrevista com ela, e meus
anfitriões com toda certeza não permitiriam que conversássemos a
sós.
— Achamos que ela pode estar disposta a nos falar sobre um
antigo namorado.
— Por que ela o faria? — Ele a abandonou. E Britta ficou
furiosa.
— Quem é o namorado? Parecia até que ele não sabia.
— É irlandês. Tem o posto de ajudante de ordens no IRA.
Instrui os terroristas, efetua o reconhecimento dos alvos, fornece o
equipamento. Ela viveu na clandestinidade com ele, em Amsterdam
e Paris.
— Como George Orwell, hem? — Isso mesmo.
— Há quanto tempo ele a abandonou? — Seis meses.
— Talvez ela não esteja mais zangada. Talvez ela mande
você à merda. Para uma mulher como Britta, seis meses é muito
tempo.
Indaguei se ela falara muito no cativeiro. Era uma questão
delicada, pois os israelenses ainda não haviam revelado há quanto
tempo ela se encontrava presa, ou como fora capturada. O coronel
tinha o rosto largo e a pele trigueira. Sua família viera originalmente
da Rússia. Usava as asas de paraquedista na túnica caqui de
mangas curtas. Tinha 28 anos, um sabra, nascido em Tel Aviv, noivo
de uma sefardita do Marrocos. O pai, o Guerreiro Noturno, era agora
um dentista. Tudo isso ele me contou nos primeiros minutos de
nosso relacionamento, num inglês gutural, que capturara sozinho.
— Falou? — repetiu ele, com um sorriso sombrio, em
resposta à minha pergunta. — Britta? Aquela mulher não parou de
falar desde que se tornou uma residente.
Conhecendo um pouco os métodos israelenses, não fiquei
surpreso, e estremeci interiormente à perspectiva de interrogar uma
mulher que estivera submetida a eles. Já me acontecera na Irlanda:
um homem tenso que me fitava como um morto e confessava tudo.
— Interrogou-a pessoalmente? — indaguei, observando de
novo os antebraços musculosos e o queixo saliente e resoluto.
E talvez, naquele momento, eu tenha pensado no Coronel
Jerzy. Ele sacudiu a cabeça.
— Impossível.
— Por quê? Ele parecia prestes a me dizer alguma coisa,
depois mudou de ideia.
— Temos peritos — explicou ele. — Gente do Shin Bet,
esperta como Britta. Passaram muito tempo com ela. Como uma
família.
Eu também já ouvira falar sobre essa família afetuosa,
embora não a chamasse assim. Os sionistas haviam-na atraído para
uma armadilha, como me sussurrara um informante de olhos
injetados em Tiro. Ela deixara os campos e seguira para Atenas com
seu novo namorado, Said, e três dos amigos de Said, dissera ele.
Bons rapazes. Todos competentes. O plano era derrubar um avião
da El Al ao se aproximar de Atenas. Os rapazes arrumaram um
lançador de foguetes manual e uma casa alugada nas proximidades
do aeroporto. O trabalho de Britta, como uma europeia de aparência
insuspeita, era postar-se numa cabine telefônica no aeroporto, com
um receptor de ondas curtas de trinta dólares, e transmitir as
instruções da torre de controle aos rapazes no telhado, quando o
avião se aproximasse. Tudo fora planejado com perfeição,
comentara meu exausto informante. Os ensaios haviam transcorrido
sem a menor dificuldade. Mas no dia a operação fracassara.
Escutando-o, eu preenchera o resto da história, imaginando
como o Serviço realizaria o trabalho, se tivéssemos o conhecimento
prévio: duas equipes para o ataque simultâneo ao telhado e à
cabine telefônica; o avião-alvo avisado e vazio, pousando são e
salvo no aeroporto de Atenas; a viagem do avião de volta a Tel Aviv,
levando os terroristas acorrentados 7 em seus assentos. Especulei
o que fariam com ela. Se a levariam a julgamento ou a trocariam por
concessões.
— O que aconteceu com os garotos com quem ela estava em
Atenas? — perguntei ao coronel, ignorando a exortação de Londres
para não demonstrar a menor curiosidade por essas questões.
— Garotos? Ela nada sabe de garotos. Atenas? Onde fica
Atenas? Ela é uma inocente turista alemã de férias em Eilat. Nós a
sequestramos, drogamos, aprisionamos, agora a estamos
incriminando pela propaganda. Convida-nos a provar o contrário,
porque sabe que não podemos. Quer mais alguma informação?
Pergunte a Britta, fique à vontade.
Seu ânimo deixou-me perplexo, ainda mais quando, ao
saltarmos do jipe, ele pôs a mão em meu ombro e desejou-me sorte.
— Ela é toda sua. Mazel tov.
Eu já começava a temer o que poderia encontrar.
Uma mulher baixa e atarracada recebeu-nos em seu escritório
imaculado, usando um uniforme militar. O pessoal da prisão nunca
tem o problema de escassez de pessoal para a faxina, pensei. Era a
Capitão Levi, a inverossímil carcereira de Britta. Falava inglês do
jeito como uma mestre-escola de uma cidadezinha americana
poderia falar, só que mais devagar, com maior cuidado. Os olhos
faiscavam e os cabelos grisalhos curtos irradiavam uma impressão
de bondosa resignação. Tinha a palidez da vida na prisão, mas
quando unia as mãos a gente sentia que devia estar tricotando para
os netos.
— Britta é muito inteligente — comentou ela, como quem se
desculpava. — Às vezes é difícil para um homem inteligente
interrogar uma mulher inteligente. Tem uma filha, senhor? Eu não
estava disposto a lhe fornecer meu perfil de caráter e por isso disse
que não, o que por acaso era também a verdade.
— Uma pena. Mas não importa. Talvez ainda venha a ter. Um
homem como o senhor tem bastante tempo. Fala alemão? — Falo.
— Então tem sorte. Pode se comunicar na língua de Britta.
Assim conseguirá conhecê-la melhor. Britta e eu, quando estamos
juntas, só podemos falar em inglês. Eu falo como meu falecido, que
era americano. Britta fala como seu falecido amante, que era
irlandês. Tel Aviv diz que devemos lhe conceder duas horas. Ficará
satisfeito com duas horas? Se precisar de mais, pediremos... talvez
eles concordem. Ou talvez duas horas seja demais. Veremos.
— É muito gentil — murmurei.
— Gentil? Não sei... Talvez devêssemos ser menos gentis.
Talvez estejamos sendo gentis demais. Você verá.
E, com isso, ela mandou trazer café e chamar Britta,
enquanto o coronel e eu ocupávamos nossos lugares num lado da
mesa de madeira simples.
Mas o Capitão Levi não sentou à mesa, provavelmente
porque não era parte da entrevista. Sentou ao lado da porta, numa
cadeira de cozinha de encosto reto, os olhos baixados, como se em
preparativo para um concerto. Mesmo quando Britta entrou, entre
duas jovens guardas, ela apenas levantou os olhos o necessário
para observar as três avançarem até o meio da sala e pararem.
Uma das guardas puxou a cadeira para Britta, e outra tirou-lhe as
algemas. As guardas se retiraram, e nos acomodamos à mesa.
E eu gostaria de descrever a cena para vocês exatamente
como a vi do lugar em que sentava: com o coronel à minha direita,
Britta em frente, no outro lado da mesa, e a cabeça grisalha
abaixada da Capitão Levi quase que diretamente por trás dela, mas
um pouco para a esquerda, com uma expressão reminiscente que
era um meio sorriso. Ela permaneceu assim durante toda a
entrevista, imóvel como uma estátua de cera. O sorriso parcial de
familiaridade nunca se alterou e nunca desapareceu. Havia
contração em sua pose, algum esforço, o que me levou a especular
se ela não se empenhava em captar as frases e palavras que podia
identificar, talvez de um conhecimento combinado de iídiche e
inglês, pois Britta, sendo uma garota de Bremen, falava um alemão
incisivo e autoritário, o que facilita a compreensão.
E Britta, sem a menor dúvida, era um extraordinário exemplar
de sua raça. Era "loura como um pão", como dizem por lá, alta, de
ombros largos, bem desenvolvida, olhos azuis grandes e um tanto
insolentes, um queixo firme e atraente. Tinha também a juventude
de Monica e a altura de Monica; e, como não pude deixar de
especular, a sensualidade de Monica. Minha suspeita de que ela
fora maltratada desvaneceu-se assim que entrou na sala. Ela
assumiu inicialmente a postura de uma bailarina, só que com mais
inteligência e mais da realidade da vida do que se costuma
encontrar na maioria das bailarinas. Ficaria muito bem num traje de
tenista ou de tirolesa, e calculei que no passado já usara ambos.
Nem mesmo a túnica da prisão a diminuía, pois fizera um cinto de
pano com algum material, prendendo-o na cintura, com os cabelos
penteados para trás. Seu primeiro gesto, quando as mãos ficaram
livres, foi me estender uma, ao mesmo tempo em que fazia uma
reverência de colegial, se por ironia ou respeito só dali a pouco eu
saberia. Não usava maquilagem, mas também não precisava.
— Und mit wem hab' ich dieEhrel — indagou ela, por cortesia
ou malícia. E a quem tenho a honra de me dirigir? — Sou um
representante britânico — respondi.
— Seu nome, por favor? — Não é importante.
— Mas você é muito importante! Os prisioneiros trazidos de
suas celas muitas vezes dizem tolices assim em seu primeiro fluxo,
por isso respondo com toda consideração.
— Estou trabalhando com os israelenses em alguns aspectos
de seu caso. Isso é tudo o que precisa saber.
— Caso? Sou um caso? Muito engraçado. Pensei que era um
ser humano. Sente-se, por favor, Sr. Ninguém.
Ela também sentou e ficamos como já descrevi, com o rosto
da Capitão Levi por trás dela, um pouco fora de foco, como sua
expressão. O coronel não se levantara para cumprimentar Britta,
mal se deu ao trabalho de fitá-la agora, quando ela sentou à sua
frente. Parecia subitamente sem qualquer expectativa. Olhou para
seu relógio. Era de aço, fosco, como uma arma em seu pulso. Os
pulsos de Britta eram brancos e lisos, como os de Monica, mas com
as marcas vermelhas das algemas.
E de repente ela me fazia uma preleção.
Começou imediatamente, como se retomasse uma aula, o
que de certa forma acontecia, pois logo compreendi que se dirigia a
todos os que viviam por ali, ou a todos os que desdenhava como
burgueses. Disse que tinha uma declaração a fazer e gostaria que
eu a transmitisse a meus "colegas", como os chamou, já que achava
que sua situação não estava sendo devidamente avaliada pelas
autoridades. Era uma prisioneira de guerra, assim como qualquer
soldado israelense em poder dos palestinos era um prisioneiro de
guerra, tinha direito ao tratamento e privilégios fixados pela
Convenção de Genebra. Era uma turista ali, não cometera nenhum
crime contra Israel; fora presa exclusivamente por causa de sua
ficha inventada em outros países, como um ato deliberado de
provocação contra o proletariado mundial.
Soltei uma risada abrupta, e ela vacilou. Não esperava por
risos.
— Não dá para entender — protestei. — Ou você é uma
prisioneira de guerra ou uma turista inocente. Não pode ser as duas
coisas.
— A luta é entre os inocentes e os culpados — retrucou ela,
sem a menor hesitação.
E prosseguiu na preleção. Seus inimigos não se limitavam ao
sionismo, mas também o que chamava de dinâmica da dominação
burguesa, a repressão de instintos naturais, e a manutenção da
autoridade despótica disfarçada como ' 'democracia".
Tentei de novo interrompê-la, mas desta vez ela falou por
cima de minhas palavras. Citou Marcuse e Freud. Referiu-se à
rebelião dos filhos na puberdade contra os pais, e o repúdio dessa
rebelião em anos posteriores, quando os filhos se tornavam pais.
Olhei para o coronel, mas ele parecia estar cochilando.
O propósito de suas "ações", ela disse, e as de seus
camaradas, era deter o ciclo instintivo de repressão em todas as
suas formas — na escravização do trabalho ao materialismo, no
princípio repressivo do próprio "progresso" — e permitir que as
verdadeiras forças da sociedade prevalecessem, como a energia
erótica, desenvolvendo-se em formas novas e livres de criação
cultural.
— Nada disso tem o menor interesse para mim — protestei.
— Pare com isso, por favor, e escute minhas perguntas.
Os atos do "suposto" terrorismo, portanto, tinham dois
objetivos definidos, ela continuou, como se eu nunca tivesse falado,
o primeiro era desconcertar os exércitos da conspiração burguesa-
materialista, e o segundo instruir, pelo exemplo, os miseráveis do
mundo, que haviam perdido todo e qualquer conhecimento da luz.
Em outras palavras, introduzir a fermentação e despertar a
consciência nos níveis humanos mais reprimidos.
Ela gostaria de acrescentar que não era uma adepta do
comunismo, mas preferia seus ensinamentos aos do capitalismo, já
que o comunismo proporcionava uma vigorosa negação do ideal do
ego, que usava a propriedade para construir a prisão humana.
Era favorável à livre manifestação sexual e — para os que
precisavam disso — o uso de drogas como um meio de descobrir o
eu livre, em contraste com o eu escravizado que é castrado pela
tolerância agressiva.
Virei-me para o coronel. Há uma etiqueta de interrogatório,
como existe em tudo o mais.
— Precisamos continuar a escutar essas besteiras? A mulher
é sua prisioneira, não minha.
Pois dificilmente eu poderia impor a lei para Britta. O coronel
levantou a cabeça o suficiente para fitá-la com indiferença.
— Quer voltar lá para baixo, Britta? Quer pão e água por duas
semanas? Seu alemão era tão bizarro quanto seu inglês. E parecia
de repente muito mais velho do que a sua idade, e mais sábio.
— Tenho mais coisa a dizer.
— Se vai ficar aqui em cima, responda às perguntas dele e
cale a boca sobre o resto — disse o coronel. — A opção é sua. Se
quer se retirar agora, não há problema para nós.
Ele acrescentou alguma coisa em hebraico para a Capitão
Levi, que acenou com a cabeça, distante. Uma prisioneira árabe
entrou com uma bandeja de café — quatro xícaras e um prato com
biscoitos — e serviu-os, submissa, uma xícara para cada um,
deixando os biscoitos na mesa. Um ar de fadiga nos envolvia. Britta
estendeu o braço comprido para pegar um biscoito, indolentemente,
como se estivesse em sua própria casa. A mão do coronel caiu
sobre a mesa um instante antes, retirando o prato do alcance de
Britta.
— O que deseja me perguntar, por favor? — disse-me Britta,
como se nada tivesse acontecido. — Deseja que eu lhe entregue os
irlandeses? Que outros aspectos do meu caso poderiam interessar
aos ingleses, Sr. Ninguém? — Se nos entregar um irlandês em
particular, já será ótimo — declarei. — Viveu com um homem
chamado Seamu? durante um ano.
Ela achou graça. Eu lhe proporcionara uma abertura.
Estudou-me, pareceu descobrir alguma coisa em meu rosto que
podia reconhecer.
— Vivi com ele? É um exagero. Deitei com ele. Seamus só
pensava em sexo. — Seu sorriso era malicioso. — Ele era uma
comodidade, um instrumento. Um bom instrumento, diga-se de
passagem. E eu era a mesma coisa para ele. Às vezes outro
homem juntava-se a nós, às vezes uma mulher. Fazíamos diversas
combinações. Era irrelevante, mas nos divertíamos.
— Irrelevante para o quê? — Para o nosso trabalho.
— Que trabalho? — Já lhe descrevi o nosso trabalho, Sr.
Ninguém. Falei de seus objetivos, e de nossas motivações. O
humanitarismo não deve ser encarado como não violência.
Devemos lutar para sermos livres. Às vezes até as causas nobres
só podem ser servidas por métodos violentos. Não sabia disso? O
sexo também pode ser violento.
— Em que tipo de métodos violentos Seamus estava
envolvido? — Não estamos falando de atos irrefletidos, mas do
direito de resistência das pessoas contra atos cometidos pelas
forças de repressão. É um membro dessas forças ou a favor da
espontaneidade, Sr. Ninguém? Talvez deva se libertar e se juntar a
nós.
— Ele é um terrorista — declarei. — Explode pessoas
inocentes. Seu alvo mais recente foi um restaurante no sul da
Inglaterra. Matou um casal idoso, o barman e o pianista, e lhe dou
minha palavra de que não libertou um único trabalhador iludido.
— Isso é uma pergunta ou uma declaração, Sr. Ninguém? —
É um convite para você me falar sobre as atividades dele.
— O restaurante ficava próximo de uma instalação militar
britânica. Proporcionava infraestrutura e conforto às forças de
opressão fascistas.
Outra vez os olhos frios de Britta fitaram-me, com uma
expressão divertida. Eu disse que ela era atraente? O que é a
atração nessas circunstâncias? Ela usava uma túnica de calicó. Era
uma penitente compulsória de crimes dos quais não se arrependia.
Mantinha-se alerta em todas as partes de si mesma, eu podia sentir,
e ela sabia que eu sentia, a divisão entre nós a fascinava.
— Meu departamento considera a possibilidade de lhe
oferecer uma quantia em dinheiro no momento de sua libertação,
que pode ser paga antes disso, se assim preferir, a qualquer pessoa
que indicar. Querem informações que levem à prisão e julgamento
de seu amigo Seamus. Estão interessados em seus crimes
passados, nos outros que ele ainda vai cometer, endereços seguros,
contatos, hábitos e fraquezas.
Ela esperou que eu continuasse e, talvez insensatamente, foi
o que fiz: — Seamus não é um herói. É um porco. Não o que você
chama de porco. Um autêntico porco. Ninguém lhe fez coisas ruins
quando ele era pequeno; seus pais são pessoas decentes, que
possuem uma tabacaria em County Down. O avô era um policial, e
dos bons. Seamus vem explodindo pessoas por prazer porque é
desequilibrado. É por isso que tratou você tão mal. Ele só existe
quando está infligindo dor. No resto do tempo não passa de um
garotinho mimado.
Eu não arranhara a superfície do olhar firme de Britta.
— Também é desequilibrado, Sr. Ninguém? Creio que talvez
seja. Em sua ocupação, isso é normal. Deve se juntar a nós, Sr.
Ninguém. Deve tomar aulas conosco, e vamos convertê-lo à nossa
causa. E então passará a ser equilibrado.
Vocês devem compreender que ela não elevou a voz ao dizer
isso, nem permitiu qualquer efeito dramático. Permaneceu
condescendente e controlada, até mesmo hospitaleira. Sua malícia
era profunda e bem disfarçada. Possuía um sorriso saudável
natural, que permaneceu em seu rosto durante todo o tempo em
que falava, enquanto a Capitão Levi por trás continuava a
contemplar suas próprias recordações, talvez por não compreender
o que se dizia.
O coronel olhou para mim, inquisitivo. Não confiando em mim
mesmo para falar, levantei as mãos da mesa, indagando de que
adianta? O coronel disse alguma coisa a Capitão Levi, que à
maneira desapontada de alguém que preparou uma refeição só para
vê-la ser retirada sem ninguém comer, apertou uma campainha para
chamar a escolta. Britta levantou-se, alisou a túnica da prisão por
cima dos seios e quadris, estendeu as mãos para as algemas.
— Quanto dinheiro estavam pensando em me oferecer, Sr.
Ninguém? — Nenhum.
Ela me fez outra reverência e encaminhou-se para a porta,
entre as guardas, os quadris requebrando dentro da túnica de
calicó, fazendo-me pensar em Monica no seu peignoir. Receei que
ela tornasse a falar, mas isso não aconteceu. Talvez soubesse que
ganhara o dia, e qualquer outra coisa estragaria o efeito. O coronel
saiu atrás e fiquei a sós com a Capitão Levi. O meio sorriso não
deixara o rosto dela.
— Aí está — disse ela. — Agora conhece um pouco a
sensação de ouvir a música de Britta.
— Tem razão.
— Às vezes comunicamos demais. Talvez devesse ter falado
com ela em inglês. Enquanto ela fala inglês, posso controlá-la. É um
ser humano, uma mulher, está na prisão. E pode ter certeza de que
ela está em agonia. É corajosa, e enquanto fala inglês comigo posso
cumprir meu dever para ela.
— E quando ela lhe fala alemão? — Qual seria o sentido, já
que ela sabe que não posso entendê-la? — Mas se ela falasse... e
pudesse compreendê-la? O que aconteceria então? O sorriso dela
se contraiu, tornou-se um pouco envergonhado.
— Nesse caso, acho que eu ficaria assustada — respondeu
ela, em seu lento americano. — Creio que se ela me ordenasse
alguma coisa, eu me sentiria tentada a obedecer. Mas não deixo
que ela me dê qualquer ordem. Por que deveria? Não lhe concedo
qualquer poder sobre mim. Falo inglês e permaneço no comando. E
olhe que passei dois anos no campo de concentração em
Buchenwald.Ainda me sorrindo, ela falou o resto em alemão, no
sussurro tenso e abafado de uma prisioneira: — Man hört so
scheussliche Echos in ihrer Stime, wissen Se. Pode-se ouvir esses
ecos terríveis em sua voz.
O coronel se encontrava parado na porta, à minha espera.
Enquanto descíamos para o jipe, ele pôs a mão em meu ombro,
mais uma vez. Agora eu sabia por quê.
— Ela é assim com todos os homens? — indaguei.
— Capitão Levi?
— Britta.
— Claro. Com você um pouco mais, só isso. Talvez porque é
inglês.
Talvez seja mesmo por isso, pensei, e talvez seja porque ela
viu em mim mais do que o fato de ser inglês. Talvez tenha percebido
meus sinais inconscientes de disponibilidade. Mas independente do
que vira ou não em mim, Britta fornecera o sumário de minha
confusão até aquele momento. Definira meu senso de tentar me
agarrar a um mundo que resvalava entre meus dedos, minha
suscetibilidade a qualquer argumento e desejo extraviado.
A convocação para encontrar Hansen chegou naquela
mesma noite, no meio de uma alegre recepção diplomática
oferecida por meu anfitrião na embaixada britânica em Herzliyya.
NOVE
O SISUDO PERIGREW interrogava Smiley sobre o
colonialismo. Mais cedo ou mais tarde, Perigrew interrogava todo
mundo que aparecia em Sarratt sobre o colonialismo, e suas
perguntas sempre se situavam à beira da afronta. Era um garoto
perturbado, filho de missionários britânicos na África Ocidental, e
uma dessas pessoas que o Serviço está quase fadado a empregar,
por causa de seus raros conhecimentos e qualificações linguísticas.
Sentava sozinho, como sempre, em meio às sombras no fundo da
biblioteca, o rosto esquelético inclinado para a frente, uma mão
comprida levantada, como a se esquivar do ridículo. A questão
começara de forma bastante racional, depois descambara para uma
tirada contra a indiferença britânica em relação a seus antigos
súditos escravizados.
— Acho que até concordo com você — disse Smiley,
cortesmente, para surpresa geral, depois de ouvir Perigrew até o
fim. — A triste resposta é a de que, infelizmente, a Guerra Fria
produziu em nós uma espécie de colonialismo substituto. Por um
lado, praticamente abandonamos cada artigo de nossa identidade
nacional à política externa americana. Por outro, adquirimos uma
suspensão da execução da visão de nosso ego colonial. Pior ainda,
encorajamos os americanos a se comportarem da mesma maneira.
Não que eles precisassem de nosso estímulo, mas ficaram
satisfeitos em tê-lo, naturalmente.
Hansen dissera quase que a mesma coisa. E quase que na
mesma linguagem. Mas enquanto Smiley quase não perdera sua
urbanidade, Hansen me fitara com uma expressão furiosa, os olhos
iluminados pelos infernos vermelhos de que voltara.
Voei de Israel para Bangkok porque Smiley dissera que
Hansen enlouquecera e conhecia segredos demais: uma mensagem
decifre-você-mesmo, aos cuidados do chefe da Estação Tel Aviv.
Smiley era o encarregado da segurança do Serviço na ocasião, com
o posto de cortesia de subchefe. Sempre que eu ouvia falar a seu
respeito, Smiley parecia estar tapando outro vazamento ou
abafando outro escândalo. Passei o fim de semana no meio de uma
onda de calor, suando por uma pilha de pastas e uma hora ao
telefone apaziguando Mabel, que caíra na última cerca de sua
corrida anual para se tornar a líder da equipe do clube de golfe local
e farejava uma intriga.
Não sei por que eles são tão duros com Mabel. Talvez seja a
sua maneira de falar com toda simplicidade que os repele. Eu fazia
o que podia. Disse a ela que nada do que jamais encontrara no
Serviço podia se comparar à insídia daquelas mulheres do Kent.
Prometi-lhe férias esplêndidas assim que voltasse. Esqueci onde
seriam as férias, porque nunca as tiramos.
A ficha de Hansen me ofereceu o retrato de um tipo com o
qual me sentia familiarizado, porque usávamos vários assim. Eu era
um e Ben era outro: o inglês híbrido, que adota o Serviço como seu
país e o cumula com uma porção de qualidades que na verdade não
possui.
Como eu, Hansen era meio-holandês. Talvez tenha sido por
isso que Smiley me escolheu. Ele nasceu na longa noite da
ocupação alemã da Holanda, foi criado à sombra da catedral de
Delft. A mãe, uma balconista em Thomas Cook's, tinha pais
ingleses, que exortaram-na a voltar a Londres com eles quando a
guerra irrompeu. Ela recusou, preferindo em vez disso casar com
um cura de Delft, que um ano depois foi fuzilado por um pelotão de
fuzilamento alemão, deixando a esposa grávida para se defender
sozinha. Destemida, ela ingressou em um caminho clandestino de
fuga britânica; quando a guerra terminou, tinha o comando de uma
rede completa, com comunicações próprias, informantes, casas
seguras e todos os demais acessórios habituais. O trabalho de
minha mãe com o Serviço não fora muito diferente.A ficha não
informava por que percurso o pequeno Hansen chegara aos
jesuítas. Talvez a mãe convertida. Aqueles ainda eram anos
sombrios, e se a conveniência assim o exigisse, ela podia ter
engolido suas convicções protestantes para proporcionar uma
educação decente ao filho. Entregue a alma aos jesuítas, ela pode
ter raciocinado, e eles lhe darão um cérebro. Ou talvez sentisse no
filho, desde cedo, a natureza volúvel que mais tarde dominara sua
vida, e decidiu subordiná-lo a uma disciplina religiosa mais forte do
que a oferecida pelos complacentes protestantes. Se foi esse o
caso, ela se mostrou sábia. Hansen assumiu a fé como assumia a
tudo o mais, com paixão. As freiras o arrebatavam, os irmãos o
arrebatavam, os padres o arrebatavam, os professores o
arrebatavam. Até que aos 21 anos, instruído e devoto, mas ainda
inexperiente, ele foi despachado para um seminário na Indonésia, a
fim de aprender os caminhos dos pagãos: Sumatra, Moluca, Java.
O Oriente parece ter despertado um amor instintivo em
Hansen, como acontece com muitos holandeses. O bom holandês,
como o pinheiro proverbial de Heine, pode se postar nas praias de
seu pequeno e baixo país e farejar as fragrâncias asiáticas no frio ar
marinho. Hansen chegou, viu, foi conquistado. Budismo, Islã, os
rituais e superstições dos selvagens mais remotos — ele se lançou
a tudo com um fervor que só aumentava quanto mais profundo
penetrava na selva.
As línguas também lhe afloraram de maneira natural. A seu
holandês nativo e inglês, ele acrescentou sem qualquer esforço o
francês e o alemão. Adquiriu agora o tamil, khmer, tai, sânscrito e
mais tinturas de cantonês, muitas vezes percorrendo a pé centenas
de quilômetros de região montanhosa em sua busca por um dialeto
ou elo ritualista perdido. Escreveu ensaios de filologia, ritos nupciais,
iluminação e macacos. Descobriu templos perdidos nas profundezas
da selva, e ganhou prêmios que a Sociedade lhe proibiu de aceitar.
Depois de seis anos de intrépidas explorações e investigações, ele
era não apenas o tipo de eminência acadêmica pelo qual os jesuítas
são famosos, mas também um padre pleno.
Mas poucos segredos podem sobreviver a seis anos. Pouco a
pouco, as histórias a seu respeito começaram a adquirir contornos
desagradáveis. Hansen o artista da carne. Os apetites de Hansen.
Não olhem agora, mas lá vem uma das garotas de Hansen.
Foram a escala e a duração que acabaram com ele: o fato de
que assim que começaram a investigar, descobriram que nenhuma
faceta de sua vida era imune, nenhuma viagem deixara de ter o seu
desvio. Uma mulher aqui ou ali — um ou outro garoto — ora, pelo
que conheço do sacerdócio, no mundo inteiro, esses pecadilhos
podem ser encarados mais na observância do que na violação.
Mas essa indulgência total, em cada aldeia, em cada rua
escondida, essa infatigável devassidão, alardeada, eles descobriram
agora, diante de seus narizes por mais de uma década, com garotas
que pelos padrões ocidentais mal tinham idade para fazer a Primeira
Comunhão, muito menos para o leito nupcial — e muitas sob a
proteção da Igreja — tornava Hansen indefensável, de forma súbita
e dramática. Confrontado com as provas desse pecado prolongado
e devotado, seu Superior reagiu mais em pesar do que indignação.
Ordenou que Hansen retornasse a Roma, e enviou uma carta na
frente à direção geral da Sociedade, De Roma, ele disse a Hansen,
com profunda tristeza, provavelmente iria para Loiola, na Espanha,
onde psicoterapeutas jesuítas qualificados o ajudariam a superar
suas lamentáveis fraquezas. Depois de Loiola... ora, um novo
começo, talvez um hemisfério diferente, uma década diferente.
Mas Hansen, como já acontecera com sua mãe antes,
recusou-se obstinadamente a deixar o lugar que adotara.
Desorientado, o Superior mandara-o para uma missão
distante, nas montanhas, dirigida por um tradicionalista da escola
mais rígida. Ali, Hansen sofreu as barbaridades da prisão domiciliar.
Era vigiado como se fosse um louco. Foi proibido de sair da casa,
negavam-lhe livros, papel, companhia, riso. Os homens encaram o
confinamento de maneiras diferentes, como também encaram de
maneiras diferentes as alturas, o frio ou a perspectiva da morte.
Hansen reagiu da pior forma possível, e depois de três meses não
podia mais aguentar. Quando dois irmãos guardiães escoltavam-no
para a missa, ele empurrou um deles pela escada, o outro fugiu.
Voltou para Djacarta e, sem dinheiro nem passaporte, foi se refugiar
nos bordéis que conhecia tão bem. As garotas tomaram-no sob
seus cuidados e, em troca, ele servia como cafetão e leão de
chácara. Servia cerveja, lavava copos, expulsava os arruaceiros,
ouvia confissões, prestava socorro, brincava com as crianças no
quarto dos fundos. Eu o vejo, como o conheço agora, fazendo todas
essas coisas sem estardalhaço nem complicação. Mal completara
os trinta anos e seus desejos ardiam com a intensidade de sempre.
Até que um dia, cedendo a um impulso como acontecia com tanta
frequência, Hansen fez a barba, pôs uma camisa limpa e
apresentou-se ao cônsul britânico, a fim de reclamar sua alma
britânica.
E o cônsul, não sendo surdo nem cego, mas um antigo
membro do Serviço, escutou a história de Hansen, fez uma ou duas
perguntas rotineiras e, de trás de uma máscara de apatia, entrou em
ação. Há anos que vinha procurando por um homem com os
talentos de Hansen. E a instabilidade de Hansen não o incomodava
absolutamente. Até que gostava. Entrou em contato com Londres,
pedindo os antecedentes; emprestou a Hansen algum dinheiro,
cauteloso, contra recibos em triplicata, pois não queria demonstrar
um entusiasmo indevido. Quando Londres respondeu com uma
ficha branca sobre a mãe de Hansen, indicando que ela fora uma
antiga agente do Serviço, o cônsul ficou radiante.
Outro mês e Hansen estava semiconsciente, o que significava
que sabia, mas apenas meio sabia, mas também podia não saber,
que talvez estivesse meio em contato com o que se podia chamar
vagamente de serviço secreto britânico. Mais dois meses e,
irrequieto como sempre, Hansen efetuava uma excursão pelo sul de
Java, ostensivamente à procura de pergaminhos antigos, mas na
verdade para informar ao cônsul sobre a força da subversão
comunista, que era o anticristo que ele acabara de adotar. Ao final
do ano, ele seguiu para Londres, com o passaporte britânico que
tanto queria no bolso, embora não em seu nome.
Passei para o relatório sobre seu treinamento, abrangendo
todos os seis meses. Clive Bellamy, um etoniano alto, magro e
malicioso, estava no comando de Sarratt. "Excelente em todas as
coisas práticas ', ele escreveu no relatório de Hansen, ao final do
curso. "Possui uma memória excepcional, reações rápidas, é
autossuficiente. Precisa ser controlado com todo rigor. Se algum dia
houver um motim em meu navio, Hansen será o primeiro homem
que vou açoitar. Precisa de um controlador de primeira classe."
Passei para o relatório operacional. Também não havia qualquer
loucura ali. Como Hansen ainda era holandês, o escritório central
decidiu mantê-lo assim e encobrir seu anglicismo. Hansen não
gostou, mas era uma imposição. Numa ocasião em que os
britânicos no exterior eram vistos por todos, exceto por si mesmos,
como americanos sem a força, o escritório central seria capaz de
matar por um sueco e roubar por um alemão ocidental. Até mesmo
os canadenses, embora fabricados com mais facilidade, eram
cortejados. De volta à Holanda, Hansen formalizou seu rompimento
com os jesuítas e pôs-se a procurar por um novo emprego para
voltar ao Oriente. Uma vintena de organizações acadêmicas
orientais espalhavam-se pelas capitais da Europa Ocidental naquela
época. Hansen circulou por essas organizações, obtendo uma
promessa aqui, um compromisso ali. Uma agência noticiosa oriental
francesa aceitou-o como correspondente. Um semanário de
Londres, pressionado pelo escritório central, ofereceu-lhe uma vaga,
sob a condição de não ter de pagar coisa alguma. Até que, pouco a
pouco, sua cobertura ficou completa — bastante ampla para lhe
proporcionar uma razão para ir a qualquer lugar e fazer as
perguntas que desejasse, bastante diversificada para se tornar
financeiramente inescrutável, já que ninguém seria capaz de
determinar qual de seus vários patrões estava lhe pagando quanto e
pelo quê. Ele se encontrava pronto para ser lançado. Os interesses
britânicos no Sudeste Asiático podiam ter definhado com seu
Império, mas os americanos se achavam atolados até os joelhos
com uma guerra oficial em andamento no Vietnam, uma extraoficial
no Camboja e uma secreta no Laos. Em nosso papel desagradável
de vivandeira, ficamos deliciados em lhes oferecer os preciosos
talentos de Hansen.
A tecnologia da espionagem pode fazer muita coisa. Pode
fotografar colheitas e trincheiras, tanques e bases de foguetes,
marcas de pneus e a migração das renas. Pode estremecer ao som
do piloto de um caça russo peidando a doze mil metros de altitude,
ou de um general chinês arrotando no sono. Mas não pode substituir
a compreensão humana. Não pode dizer o que existe no coração de
um camponês cambojano cujas colheitas foram destruídas pelos
bombardeiros sem identificação do Dr. Kissinger, cujas filhas foram
vendidas à prostituição na cidade, e cujos filhos foram seduzidos a
deixar os campos e lutar por um exército de marionetes americanos,
ou exortado, como um seguro de vida para a família, a ingressar nas
fileiras do Khmer Vermelho. Não pode ler os lábios de guerrilheiros
da selva em pijamas pretos, cuja arma mais poderosa é o marxismo
truncado de um psicopata cambojano, sedento de sangue e
educado na Sorbonne. Não pode farejar as fumaças de cano de
descarga de um exército desmecanizado. Ou decifrar os códigos de
um exército que não possui rádios. Ou calcular os suprimentos de
homens que podem se nutrir com minhocas e casca de árvore; ou a
moral daqueles que, tendo perdido todas as suas posses, solem o
futuro para conquistar.
Mas Hansen podia. Hansen, o asiático por adoção, podia
andar sem comer por uma semana, agachar-se na aldeia e escutar
os murmúrios dos habitantes, e Hansen pôde perceber o vento
crescente de sua resistência muito antes que agitasse a bandeira
americana nos telhados das embaixadas em Phnom Penh e Saigon.
E podia dizer aos bombardeiros — e assim o fez, para seu remorso
posterior — podia dizer aos bombardeiros americanos que aldeias
abrigavam vietcongues. Era também um pescador de homens.
Podia recrutar ajudantes em todos os níveis da vida e instruí-los
para ver e ouvir, lembrar e informar. Sabia o quanto devia lhes dizer
e o quanto devia esconder, como recompensá-los e quando deixar
de fazê-lo.
Durante meses, depois anos, Hansen operou assim nas
chamadas "áreas libertadas" no norte do Camboja, nominalmente
controlado pelo Khmer Vermelho, até o dia em que desapareceu da
aldeia que convertera em seu lar. E sumiu sem estardalhaço,
levando junto os aldeões. Logo foi dado como morto, outro
desaparecimento na selva.
E permaneceu morto até pouco tempo atrás, quando
ressurgira vivo num bordel em Bangkok.
— Não se apresse, Ned — recomendara-me Smiley no
telefonema para Tel Aviv. — Se quiser acrescentar uns dois dias
para se recuperar do cansaço da viagem, não tem problema.
O que era o código de Smiley para "Encontre-o o mais
depressa que puder e me diga que não tenho outro tremendo
escândalo nas mãos".
O chefe de nossa Estação Bangkok era um pequeno tirano
calvo, rude, de bigode, chamado Rumbelow, por quem eu nunca
sentira a menor simpatia. O Serviço oferece poucas perspectivas
para os homens de cinquenta anos. A maioria está desmascarada;
muitos se sentem cansados e desencantados demais para se
importarem com isso. Outros se transferem para grandes empresas
financeiras ou industriais, mas o casamento quase nunca dura muito
tempo. Aconteceu alguma coisa com sua maneira de pensar que os
torna inadequados para o mundo aberto. Mas uns poucos, entre os
quais Toby Esterhase e Rumbelow, conseguem realizar o passe de
mágico de manter o Serviço como refém de seus supostos trunfos.
Eu nunca soube quais eram exatamente os de Rumbelow.
Deprimentes, não tenho a menor dúvida, pois se ele se
especializava em alguma coisa era na vileza humana. Um rumor
dizia que ele controlava um par de corruptos generais tailandeses,
que não trabalhariam para mais ninguém. Outro que conseguira
prestar um favor escuso a um membro da família real, um favor que
não era transferível. Qualquer que fosse a sua influência, os barões
do Quinto Andar não queriam atrito com ele.
— E pelo amor de Deus, Ned, não entre em conflito com
Rumbelow — suplicara-me Smiley. — Tenho certeza de que é um
homem insuportável, mas precisamos dele.
Encontrei-o em meu quarto no hotel. Para o mundo aberto, eu
era Mark Seymour, um contador, não tinha o menor interesse em ser
visto na embaixada ou em sua casa. Passara vinte horas num avião.
Era o final da tarde. Rumbelow falava como um bookmaker
etoniano, E por falar nisso, também parecia assim.
— Foi a mais absoluta coincidência esbarrarmos com aquele
desgraçado — disse ele, com extrema irritação. — E é claro que
ligamos as antenas. Já se conhece a música. Já se ouviu falar de
outros casos. E não se é insensível. Ninguém gosta de pensar num
agente todo amarrado numa vara, carregado através da selva por
semanas a fio, enquanto o Khmer Vermelho o tortura brutalmente.
Nem mesmo um avestruz.Conhecemos a música. E seu homem
pardo não obedece às Regras do Marquês de Queensberry, você
sabe disso.
Era como se eu tivesse insinuado o oposto. Tirando um lenço
da manga do terno cheio de manchas de suor, Rumbelow enxugou
o seu ridículo bigode, antes de acrescentar: — Seu agente médio
estaria clamando por uma bala rápida depois de uma única noite
assim.
— Tem certeza de que foi isso o que aconteceu com ele? —
Não tenho certeza de coisa alguma, meu velho. Rumores, isso é
tudo. Como posso ter certeza se o desgraçado nem sequer fala com
a gente? E ameaça com violência se tentarmos! Por tudo o que eu
sei, o KV nunca o viu nem teve conhecimento de sua existência.
Jamais confie num holandês, não por aqui... eles pensam que são
os donos desta droga de lugar. Hansen não seria o primeiro agente
a se esconder quando as coisas se tornam quentes demais, para
depois reaparecer quando tudo acabou, reclamando tudo a que
acha que tem direito. E ainda em poder de todos os seus dedos,
diga-se de passagem. E também sem qualquer outra parte da
anatomia desaparecida, a julgar pelo lugar em que se meteu. Foi
Duffy Marchbanks quem o descobriu. Lembra de Duffy? Um bom
sujeito.
Com um aperto no coração, é claro que eu me lembrava de
Duffy. Lembrava-o ao ver seu nome no relatório. Era um patife
esfuziante/ baseado em Hong Kong, com uma atração irresistível
por bons negócios com qualquer coisa, de ópio a cartuchos. Durante
alguns anos lamentáveis, nós financiáramos suas atividades.
— Puro acaso, é claro, da parte de Duffy. Ele chegou aqui de
avião, para uma visita rápida. Um dia, mais nada. Um dia, uma
noite, depois voltaria para sua patroa e um livro. Um consórcio
turístico queria que ele comprasse uma centena de acres de
primeira categoria à beira-mar. Fechou o negócio, depois foram
todos para um restaurante só de mulheres, Duffy e os outros... Duffy
não é avesso a essas coisas, nunca foi. Um lugar chamado O Mar
de Felicidade, bem no meio do distrito dos prazeres. Um
estabelecimento de classe, até onde os lugares assim podem ser,
pelo que me informaram. Quartos particulares, boa comida para
quem gosta da cozinha de Hunan, e as garotas deixam a gente em
paz, a menos que se peça o contrário.Nesses restaurantes, explicou
Rumbelow, conseguindo de alguma forma sugerir que pessoalmente
nunca estivera em nenhum, jovens anfitriãs, vestidas ou despidas,
sentavam entre os fregueses, servindo-lhes comida e bebida na
boca, enquanto os homens falam de negócios. Além disso, O Mar
de Felicidade oferecia um salão de massagem, uma discoteca e um
teatro ao vivo.
— Duffy fecha o negócio para o consórcio, um cheque é
entregue, ele se sente eufórico. E decide se divertir um pouco com
uma das garotas. Tudo acertado, as condições e preço, lá vão eles
para um cubículo. A garota diz que está com sede, que tal uma
garrafa de champanhe para animá-la na festa? Recebe uma
comissão, é claro... todas recebem. Mas isso não importa. Duffy
sente-se expansivo, por isso diz por que não? A garota aperta um
botão, berra pelo interfone, e a próxima coisa que Duffy vê é aquele
europeu enorme, entrando no cubículo com uma bandeja e um
balde de gelo. Põe na mesa, Duffy lhe dá vinte bats de gorjeta, o
camarada diz "Obrigado", em inglês, bastante polido, mas, sem
nenhum sorriso, sai. É Hansen. Hansen das Selvas. Não um
retrato... o próprio! — Como Duffy sabe? — Viu a fotografia dele,
não é mesmo? — Por quê? — Porque mostramos a Duffy a
fotografia, pelo amor de Deus, quando Hansen sumiu! Mostramos a
todo mundo que conhecíamos, por todo o hemisfério! Não
explicamos por quê... apenas falamos se avistar este homem,
comece a gritar. Ordens do escritório central, é claro, não foi minha
ideia. Eu que era inseguro demais.
Para se acalmar, Rumbelow serviu-nos de outra dose de
uísque.
— Duffy volta correndo para o hotel, telefona direto para a
minha casa. Três horas da madrugada. "É o seu sujeito", diz ele.
"Que sujeito?", pergunto. "O sujeito cuja fotografia me mandou, lá
para Hong Kong, há um ano ou mais." Sabe como o velho Duffy
fala. Tem a língua solta. Explicou que Hansen era agora garçom
num bordel. Mandei Henry dar uma olhada no dia seguinte. E o
imbecil armou a maior confusão. Já ouviu falar a respeito, não é
mesmo? Típico.
— Duffy falou com Hansen? Perguntou quem ele era?
Qualquer coisa? — Não disse absolutamente nada, Olhou como se
não o reconhecesse. Duffy é muito esperto, sabe trabalhar em
equipe. Sal da terra. Sempre foi assim.
— Onde está Henry? — Sentado lá embaixo, no saguão.
— Mande-o subir.
Henry era chinês, filho de um senhor da guerra do
Kuomintang, nos Estados Shan, nosso agente-chefe residente,
embora eu desconfie que há muito já fizera o seu seguro com a
polícia tailandesa, ganhando uma vida tranquila a jogar com os dois
lados.
Era atarracado, insinuante, ansioso em agradar, sorria
demais. Usava uma corrente de ouro pendurada no pescoço,
carregava um elegante caderninho de capa de couro, com uma
caneta de ouro. Seu trabalho de cobertura era o de tradutor.
Nenhum tradutor que já conheci ostentava um caderno de
anotações Gucci, mas Henry era diferente.
— Conte a Mark como bancou o idiota no Mar de Felicidade
na noite da última quinta-feira — ordenou Rumbelow, ameaçador.
— Claro, Mike.
— Mark — falei.
— Claro, Mark.
— Suas ordens eram para dar uma olhada. Isso era tudo o
que ele tinha de fazer — interveio Rumbelow, antes que Henry
pudesse falar qualquer coisa. — Dê uma olhada, fareje, saia, fale
comigo. Certo, Henry? Ele devia apenas confirmar a história, tentar
avistar Hansen, não abordá-lo, me fazer um relato. Um
reconhecimento discreto, sem contato. Farejar e relatar. E agora
conte a Mark o que você fez.
Primeiro, Henry tomara um drinque no bar, ele contou; depois,
assistira ao espetáculo. E mandou chamar Mama San, que se
apressou em vir, presumindo que ele tinha algum desejo especial.
Mama San era uma chinesa da mesma província do pai de Henry,
por isso experimentaram um vínculo imediato.
Ele mostrou a Mama San seu cartão de tradutor, disse que
estava escrevendo um artigo sobre o estabelecimento — a comida
magnífica, as garotas românticas, os elevados padrões de
sensibilidade e higiene, em particular a higiene. Disse que tinha uma
encomenda de uma revista de turismo alemã que só recomendava
os melhores lugares.
Mama San mordeu a isca e ofereceu-lhe uma excursão pela
casa. Mostrou as salas de jantar particulares, a cozinha, os
cubículos, banheiros. Apresentou-o às garotas — e ofereceu uma
por conta da casa, o que Henry declinou — ao cozinheiro, porteiro,
leões-de-chácara, mas não ao sujeito de enormes olhos redondos
que, àquela altura, Henry já avistara três vezes, uma levando uma
bandeja com copos das salas de jantar particulares para a cozinha,
outra atravessando um corredor a empurrar um carrinho com
garrafas, a terceira saindo por uma porta de aço aberta, que
aparentemente era do depósito de bebidas.
— Mas quem é o farang que carrega as garrafas para você?
— perguntou ele a Mama San, jovial. — Ele tem de ficar aqui e
trabalhar porque não pode pagar a conta? Mama San riu também.
Contra os farangs, os ocidentais, todos os asiáticos sentem-se
naturalmente unidos.
— O farang vive com uma de nossas garotas cambojanas —
respondeu ela, com evidente desdém, pois os cambojanos são
classificados ainda mais baixo do que os farangs e os vietnamitas
na zoologia tailandesa. — Ele a conheceu aqui e se apaixonou,
tentou comprá-la e transformá-la numa dama. Mas ela se recusa a
nos deixar. Por isso, ele a traz para o trabalho todos os dias, fica
aqui até que ela possa voltar para casa.
— Que tipo de farang ele é? Alemão? Inglês? Holandês?
Mama San deu de ombros. Que diferença fazia? Henry pressionou-
a. Mas um farang que traz sua mulher para o bordel e serve bebida
enquanto ela vai para a cama com outros homens, insistiu ele, e
depois a leva de volta para casa? Deve ser uma garota e tanto! —
Ela é a número dezenove — informou Mama San, dando de ombros
outra vez. — Seu nome na casa é Amanda. Gostaria de levá-la para
a cama? Mas Henry sentia-se excitado demais por seu furo
jornalístico para se deixar desviar.
— Mas qual é o nome do farang? E qual é a sua história? —
É chamado Ham Sin. Fala tailandês com a gente e khmer com a
garota, mas não deve incluí-lo na sua revista, porque ele é ilegal.—
Posso disfarçá-lo. Posso fazer tudo disfarçado. A garota também o
ama? — Ela prefere ficar aqui, no Mar de Felicidade, com suas
amigas — respondeu Mama San, orgulhosa.
Henry não pôde resistir a dar uma olhada. As garotas que não
estavam com clientes refestelavam-se em bancos de pelúcia, por
trás de uma parede de vidro, usando números pendurados do
pescoço e mais nada, enquanto conversavam, faziam as unhas ou
fixavam um olhar vazio num aparelho de televisão mal sintonizado.
Enquanto Henry observava, a número 19 levantou-se em resposta a
um chamado, pegou sua bolsinha e um agasalho e saiu da sala. Era
muito jovem. Muitas garotas mentiam sobre a idade para se
esquivarem aos regulamentos — em particular as cambojanas sem
dinheiro. Mas aquela garota, disse Henry, parecia não ter mais do
que quinze anos.
Foi nesta altura que o excesso de zelo de Henry começou a
extraviá-lo. Ele despediu-se de Mama San e levou seu carro para
uma viela no outro lado da entrada dos fundos, onde acomodou-se
para esperar. Pouco depois de uma hora da madrugada o pessoal
começou a sair, inclusive Hansen, o dobro da altura de qualquer
outro, levando a número 19 em seu braço. Na praça, Hansen e a
garota procuraram por um táxi. Henry teve a temeridade de parar
seu carro ao lado dos dois. Cafetões e motoristas de táxi ilegais
pululam àquela hora da madrugada; como já fora as duas coisas,
Henry deve ter achado que era uma atitude natural.
— Para onde quer ir, senhor? — perguntou ele a Hansen, em
inglês. — Quer que eu o leve? Hansen deu o endereço num
subúrbio pobre, oito quilômetros ao norte. O preço foi acertado,
Hansen e a garota embarcaram no banco traseiro, o carro partiu.
E agora Henry começou a perder a cabeça por completo.
Inebriado pelo sucesso, decidiu, sem qualquer razão que pudesse
explicar depois, que o melhor curso seria entregar sua presa e a
garota direto na casa de Rumbelow, que ficava a oeste, não ao
norte. E é claro que não preparara Rumbelow para essa manobra
ousada; mal preparara a si mesmo. Não tinha qualquer garantia de
que Rumbelow estava em casa, ou em condições, a uma e meia da
madrugada, de conduzir uma conversa com um ex-espião que
sumira do mapa dezoito meses antes. Mas a razão, naquele
momento, não prevaleceu na mente de Henry. Era um agente, e não
há nenhum agente no mundo que, em um momento ou outro de sua
vida, não faça algo insensato.
— Gosta de Bangkok? — perguntou Henry a Hansen,
jovialmente, na esperança de distrair os passageiros do percurso
que seguia.
Não houve resposta.
— Está aqui há muito tempo? Também não houve resposta.
— É uma moça simpática. Muito jovem. Muito bonita. É a sua
garota regular? A garota encostava a cabeça no ombro de Hansen.
Pelo que Henry podia perceber através do espelho, ela já estava
dormindo. Por algum motivo, esse conhecimento excitou-o ainda
mais.
— Quer um alfaiate, senhor? Um alfaiate que trabalha a noite
inteira, muito bom? Eu o levo até lá. Um bom alfaiate.
E ele entrou a toda numa rua transversal, simulando estar à
procura de seu pobre alfaiate, enquanto seguia para a casa de
Rumbelow.
— Por que está indo para oeste? — perguntou Hansen,
falando pela primeira vez. — Não quero ir para este lado. Não quero
um alfaiate. Volte à rua principal.
Henry perdeu totalmente o último resquício de bom senso.
Sentiu-se de repente apavorado com o tamanho de Hansen, com a
vantagem tática de Hansen, sentado atrás dele. Hansen estaria
armado? Henry pisou no freio e parou o carro.
— Sou seu amigo, Sr. Hansen! — gritou ele, em tailandês,
como se suplicasse por misericórdia. — O Sr. Rumbelow é seu
amigo também. Tem orgulho do senhor! Quer lhe dar uma porção de
dinheiro. Venha comigo, por favor. Não há nenhum problema. O Sr.
Rumbelow ficará feliz em recebê-lo! Foi a última coisa que Henry
falou naquela noite, pois no instante seguinte Hansen empurrou o
encosto do banco do motorista para a frente, com tanta força que a
cabeça do chinês quase saiu pelo para-brisa. Hansen saltou do
carro e puxou Henry para a rua. Levantou-o e jogou-o para o outro
lado da rua, provocando consternação entre um grupo de mendigos
adormecidos, que se lamuriaram e protestaram. Hansen aproximou-
se do lugar em que Henry estava caído, fitou-o com uma expressão
furiosa e disse em tailandês: — Avise a Rumbelow que o matarei se
ele for me procurar.
E depois ele se afastou com a moça, à procura de um táxi
melhor, amparando-a com um braço em torno de sua cintura,
enquanto ela cochilava.
Ao terminar de ouvir a história dos dois, eu me sentia
extremamente cansado.
Mandei-os embora, dizendo a Rumbelow para me procurar na
manhã seguinte. Declarei que antes de qualquer outra coisa queria
dormir um pouco, pois estava exausto da viagem. Deitei e no
mesmo instante me senti completamente desperto. Uma hora
depois chegava ao Mar de Felicidade. Comprei o tíquete de
cinquenta dólares. Tirei os sapatos, como o costume exigia, logo em
seguida me encontrava de meias num cubículo iluminado a neon,
contemplando as feições passivas e muito pintadas da garota
número 19.
Ela usava um roupão ordinário de seda com tigres pintados,
mas aberto por toda a frente. Estava nua por baixo. Uma
maquilagem grossa, ao estilo japonês, cobria sua pele. Sorriu-me,
estendeu a mão para a minha virilha, mas empurrei-a de volta. Era
tão franzina e parecia tão misteriosa que se igualava ao trabalho.
Tinha pernas mais compridas do que a maioria das moças asiáticas,
a pele era excepcionalmente pálida. Tirou o roupão e, antes que eu
pudesse detê-la, estendeu-se na espreguiçadeira puída, onde se
ajeitou no que imaginava ser uma pose erótica, acariciando-se e
soltando suspiros de desejo. Rolou de lado, com as nádegas
levantadas, puxou os cabelos para a frente, cobrindo os seios
pequenos. Como eu não me adiantasse, deitou de costas e abriu as
coxas, ergueu a pélvis, chamando-me de "querido" e murmurando
"por favor". Virou para o outro lado, a fim de que eu pudesse
admirar o seu traseiro, mantendo as pernas bem separadas, num
convite.
— Sente-se — ordenei.
Ela sentou e outra vez esperou que eu me adiantasse.
— Ponha seu roupão.
Como ela parecesse não compreender, ajudei-a a vesti-
lo.Henry escrevera a mensagem para mim em khmer. Dizia: "Quero
falar com Hansen. Tenho condições de obter documentos
tailandeses para você e sua família." Entreguei-o e fiquei
observando-a, enquanto ela olhava. Será que sabia ler? Eu não
tinha como adivinhar. Estendi um envelope branco, endereçado a
Hansen. Ela pegou-o e abriu-o. A carta era datilografada e seu tom
não era gentil. Havia também dois mil bats no envelope.
"Como um velho amigo do Padre Vernon", eu escrevera,
usando o código familiar para ele, "devo avisá-lo que violou seu
contrato com a nossa companhia. Agrediu um cidadão tailandês e
sua namorada é uma imigrante cambojana ilegal. Talvez não
tenhamos alternativa que não passar essa informação às
autoridades. Meu carro se encontra estacionado no outro lado da
rua. Dê o dinheiro anexo a Mama San como pagamento para liberá-
lo por esta noite, e vão se encontrar comigo dentro de dez minutos."
Ela deixou o cubículo, levando a carta. Eu não percebera até aquele
momento como havia barulho no corredor: a música estridente,
risadas metálicas, os grunhidos do desejo, o ruído de água
descendo pelos canos precários.
Eu deixara o carro destrancado e ele estava sentado no
banco traseiro, a garota ao seu lado. De alguma forma, eu não
tivera a menor dúvida de que ele traria a garota. Era grande e forte,
o que eu já sabia, e muito pálido. Na semiescuridão, com a barba
preta, os olhos fundos e as mãos curvadas tensamente sobre o
encosto do banco da frente, parecia um dos santos que outrora
idolatrara, em vez das fotografias em sua pasta. A garota sentava
toda arriada, grudada nele, ao abrigo de seu corpo. Não
percorrêramos cem metros quando uma chuva desabou, um
tremendo aguaceiro. Encostei no meio-fio e ficamos olhando pelo
para-brisa encharcado, observando as torrentes de água caindo nos
bueiros e buracos.
— Como chegou à Tailândia? — berrei, em holandês, com a
chuva trovejando no teto do carro.
— Vim a pé — respondeu Hansen, em inglês.
— De onde veio? — gritei, também em inglês.
Ele mencionou uma cidade. Soou como "Orania Prathet". O
aguaceiro terminou e guiei por três horas, enquanto a moça
cochilava e Hansen montava guarda sobre ela, alerta como um
gato, e igualmente silencioso. Escolhera um hotel na praia
anunciado no Nation de Bangkok. Queria tirá-lo de seu ambiente,
levá-lo para um lugar que eu pudesse controlar. Peguei a chave e
paguei a hospedagem por uma noite de antemão. Hansen e a
garota seguiram-me por um caminho de concreto até a praia. Os
bangalôs formavam um semicírculo, de frente para o mar. O meu
ficava numa extremidade. Abri a porta e entrei primeiro. Hansen veio
atrás, depois a garota. Acendi a luz, liguei o ar-condicionado. A
garota permaneceu junto da porta, mas Hansen tirou os sapatos e
postou-se no meio da sala, olhando ao redor.
— Sente-se. — Abri a porta da geladeira. — Ela vai querer
beber alguma coisa?
— Dê-lhe uma Coca-Cola — disse Hansen. — Com gelo. Tem
limão aqui?
— Não.
Agachei-me diante da geladeira, indagando: — E você?
— Água.
Procurei: copos, água mineral, gelo. Enquanto isso, ouvi
Hansen dizer alguma coisa terna à garota, em khmer. Ela protestou,
mas ele prevaleceu. Ouvi-o entrar no quarto e sair um instante
depois. Ao me levantar, vi a garota enroscada no sofá encostado na
parede, Hansen inclinado sobre ela com um cobertor, agasalhando-
a. Depois de terminar, ele apagou o abajur ao lado do sofá e tocou
no rosto da moça com as pontas dos dedos, antes de se
encaminhar para as portas de vidro, onde parou, olhando para o
mar. Uma lua cheia avermelhada pairava por cima do horizonte. As
nuvens de chuva formavam montanhas negras através do céu.
— Qual é o seu nome? — perguntou ele.
— Mark.
— Esse é o seu nome verdadeiro? Mark? O conhecimento
mais seguro que temos uns dos outros vem do instinto. Observando
o vulto de Hansen emoldurado contra as portas de vidro, a
contemplar o mar, o luar definindo os ângulos e vincos de seu rosto
abatido, compreendi que o padre decaído me escolhera para seu
confessor, e murmurei: — Pode me chamar como quiser.Vocês
devem pensar numa voz inglesa forte mas inquieta, o tom profundo,
um jeito meio chocado, como se o dono nunca esperasse dizer as
coisas que está ouvindo. O ligeiro sotaque é de holandês das índias
Orientais. O bangalô está apagado, destinado à fornicação, dá para
uma pequena piscina iluminada e um pátio de concreto. Além dessa
incongruência, estende-se um magnífico e plácido mar asiático, com
uma larga trilha de luar, e estrelas falseando na água como
manchas solares. Alguns pescadores estão de pé em suas
sampanas, jogando as redes na água e tornando a recolhê-las
lentamente.
Em primeiro plano vocês devem ver a figura alta e irregular de
Hansen, enquanto vagueia pela sala, descalço, ora parando diante
das portas de vidro, ora empoleirando-se no braço de uma poltrona,
antes de deslizar em silêncio para outro canto. E sempre a voz, ora
veemente, ora pensativa, ora abalada, e ora, como seu corpo,
descansando por vários minutos, enquanto recupera as forças para
a próxima provação.
Estendida no sofá, a moça cambojana se encontra envolta
por um cobertor, o antebraço cruzado sob a cabeça, ao estilo
asiático. Estava acordada? Compreendia o que ele dizia? E se
importava? Hansen se importava. Não podia passar por ela sem
parar para contemplá-la, ou ajeitar o cobertor em seu pescoço. Uma
vez, agachando-se ao lado, ele fitou ardentemente os olhos
fechados, enquanto encostava a palma em sua testa, como se
verificasse se estava com febre.
— Ela precisa de limão — murmurou ele. — Coca-Cola não
adianta. Tem de ser limão.
Eu já pedira. Um garoto veio entregar. Hansen espremeu-os,
depois levantou a jovem para que ela bebesse.
Suas primeiras perguntas foram sobre minha posição no
Serviço. Queria saber com que autoridade eu fora enviado, com que
instruções.
— Não quero agradecimentos pelo que fiz — advertiu-me ele.
— Não há agradecimentos para o bombardeio de aldeias.
— Mas você pode precisar de ajuda — sugeri.
Sua resposta foi me declarar formalmente que nunca mais,
em quaisquer circunstâncias, trabalharia para o Serviço. Eu também
poderia lhe dizer a mesma coisa, mas abstive-me. Pensava que
trabalhava para os britânicos, disse ele, mas na verdade trabalhara
para assassinos. Fora outro homem quando fazia as coisas que
fizera. E esperava que os pilotos americanos fossem também outros
homens.
Perguntou por seus subagentes — o camponês fulano, o
comerciante de arroz sicrano. Perguntou pela rede da retaguarda
que meticulosamente formara, à espera do dia inevitável em que o
Khmer Vermelho sairia da selva e ocuparia as cidades, uma coisa
que nem nós nem os americanos, apesar de todas as advertências,
jamais acreditáramos que pudesse acontecer. Mas Hansen
acreditara. Hansen fora um dos que alertaram. Hansen nos dissera
muitas vezes que as bombas de Kissinger eram dentes de dragão,
muito embora ajudasse a orientá-las para seus alvos.
— Posso acreditar em você? — indagou ele, quando lhe
assegurei que não havia nenhum padrão de prisões entre suas
fontes.
— É a verdade — afirmei, respondendo à súplica em sua voz.
— Então não os traí — murmurou ele, espantado. Por um
momento, ele sentou e pôs a cabeça entre as mãos.
— Seja como for, ninguém poderia esperar que
permanecesse em silêncio, se foi capturado pelo Khmer Vermelho
— comentei.
— Silêncio! Oh, Deus! — Ele quase riu. — Silêncio! E,
levantando-se abruptamente, ele tornou a se virar para as portas de
vidro.
Ao luar, vi lágrimas de suor em seu rosto grande e barbudo.
Comecei a falar sobre o desejo do Serviço de inocentá-lo
honrosamente, mas no meio do meu discurso ele abriu os braços,
em toda a sua extensão, como se testasse os limites de seu
confinamento. Nada encontrando para obstruí-los, deixou que
descaíssem para os lados do corpo.
— O Serviço que se dane! — disse ele, suavemente. — O
Ocidente que se dane! Não temos que travar nossas guerras aqui,
apregoando nossas receitas religiosas. Pecamos contra a Ásia: os
franceses, os britânicos, os holandeses, agora os americanos.
Pecamos contra as crianças do Éden. Que Deus nos perdoe.
Meu gravador estava em cima da mesa.Estamos na Ásia. A
Ásia de Hansen. A Ásia contra a qual se pecou. Escutem o zumbido
frenético dos insetos. Tanto tailandeses como cambojanos
costumam apostar grandes quantias sobre o número de vezes que
uma rã-touro vai arrotar. A sala se encontra na semiescuridão, a
hora esquecida, a própria sala esquecida também; a lua subiu e
desapareceu de nosso campo de visão. A Guerra do Vietnam volta
para nós, estamos na selva cambojana com Hansen, os confortos
modernos são poucos, a menos que incluamos os bombardeiros
americanos que circulam quilômetros acima, como pacientes
falcões, esperando que os computadores lhes digam o que destruir
em seguida: por exemplo, uma parelha de bois cuja urina foi
erroneamente interpretada pelos sensores secretos como a fumaça
de cano de descarga de um comboio militar; por exemplo, crianças
cuja conversa foi erroneamente interpretada como ordens militares.
Os sensores foram escondidos por comandos americanos ao longo
das rotas de suprimentos que Hansen indicou — mas infelizmente
os sensores não são tão bem informados quanto Hansen.
Estamos no que os pilotos americanos chamam de terra ruim,
embora na selva as definições do bem e do mal sejam fluidas.
Estamos numa "área libertada" do Khmer Vermelho, que
proporciona santuário às tropas vietcongues que desejam atacar os
americanos pelo flanco, em vez do ataque frontal pelo norte.
Contudo, apesar dessas aparências de guerra, estamos entre
pessoas sem qualquer percepção coletiva de seus inimigos, numa
região inexplorada, a não ser pelos caças. A se ouvir Hansen, a
região é tão próxima do paraíso que não faz diferença, quer ele fale
como padre, pecador, estudioso ou espião.
Alguns quilômetros pela trilha acima, de jipe, existe um antigo
templo budista que Hansen, com a ajuda de aldeões, escavou das
profundezas da vegetação, e que é a razão aparente para a sua
presença ali, e para as anotações que faz, as mensagens que
transmite pelo rádio, e o fluxo de visitantes, que em geral chegam
pouco antes do anoitecer e partem à primeira claridade do
amanhecer. A aldeia em que ele vive é construída sobre palafitas,
numa clareira à beira de um rio de bom tamanho, numa planície de
campos férteis, que sobe de forma íngreme para uma floresta
tropical. Uma bruma azul é frequente. A casa de Hansen fica no alto
de uma encosta, a fim de melhorar a recepção do rádio e
proporcionar uma boa visão de qualquer coisa que entre ou saia do
vale. Na estação das chuvas, seu hábito é deixar o jipe na aldeia e
subir a pé para sua casa. Na época de estiagem, ele vai de jipe para
casa, mas com frequência levando a metade das crianças da aldeia
em sua companhia. Até uma dúzia de crianças fica esperando pelo
momento de subir no jipe para a viagem de cinco minutos até o alto
da encosta.
— Às vezes minha filha estava entre elas — disse Hansen.
Nem Rumbelow nem a ficha mencionaram que Hansen tinha uma
filha. Se a escondera de nós, cometera uma grave violação das
regras do Serviço — embora as regras do Serviço fossem de certa
forma a última coisa que importava para qualquer de nós naquele
momento. Mesmo assim, ele parou de falar e lançou-me um olhar
furioso, no escuro, como se esperasse por minha reprovação. Mas
mantive o silêncio, desejando ser o ouvido que ele esperava, talvez
há anos.
— Quando ainda era um padre, visitei os templos do Camboja
— disse ele. — E quando estava lá, apaixonei-me por uma aldeã e a
engravidei. Ainda era a melhor época no Camboja. Sihanouk
reinava. Fiquei com ela até que a criança nasceu. Uma menina.
Batizei-a com o nome de Marie. Dei dinheiro à mãe e voltei a
Djacarta, mas sentia uma profunda saudade de minha filha. Mandei
mais dinheiro. Mandei dinheiro para o chefe da aldeia cuidar delas.
Mandei cartas. Rezava pela criança e sua mãe, jurava que um dia
cuidaria delas de forma apropriada. Assim que voltei ao Camboja,
levei a mãe para minha casa, embora ela tivesse perdido a beleza
com o passar dos anos. Minha filha tinha um nome khmer, mas
chamei-a de Marie desde o dia em que ela veio para mim. Ela
gostava disso. Sentia-se orgulhosa de ter-me como pai.
Ele parecia preocupado em deixar claro para mim que Marie
sentia-se à vontade com seu nome europeu. Não era um nome
americano, disse ele. Era europeu.
— Tinha outras mulheres na casa, mas Marie era minha única
filha e eu a amava. Era mais bela do que eu a imaginara. Mas
mesmo que fosse feia e desgraciosa, eu não a amaria menos.
Sua voz adquiriu uma súbita força e, pelo que senti, um
profundo afeto.— Nenhuma mulher, nenhum homem, nenhuma
criança jamais mereceu meu amor dessa forma. Pode-se dizer que
Marie é a única mulher que já amei com toda a pureza, além de
minha mãe.
Ele me fitava fixamente na escuridão, desafiando-me a
duvidar de sua paixão. Mas, sob o encantamento de Hansen, eu
não duvidava de nada e esquecera de tudo a meu respeito, até
mesmo a morte de minha mãe. Ele estava me assumindo,
ocupando-me.
— A partir do momento em que você absorve o conceito
impossível de Deus, você compreende que o verdadeiro amor não
permite rejeição. Talvez seja uma coisa que só um pecador pode
compreender direito. Só um pecador conhece a escala do perdão de
Deus.
Acho que acenei com a cabeça, sabiamente. Pensava no
Coronel Jerzy, E especulava por que Hansen precisava explicar que
não podia rejeitar a filha. Ou por que seu pecado constituía uma
preocupação quando falava sobre ela.
— Naquela noite, quando segui do templo para casa, não
havia crianças à minha espera na aldeia, embora fosse a época da
estiagem, Fiquei desapontado, porque fizéramos uma boa
descoberta naquele dia e eu queria contar a Marie. Deve haver
alguma festa da escola, pensei, mas não me lembrava qual. Subi a
colina até a casa e chamei-a. A casa estava vazia. Os caldeirões
das mulheres se encontravam vazios debaixo das palafítas. Tornei a
chamar Marie, depois minha mulher. E depois qualquer pessoa.
Ninguém apareceu. Voltei à aldeia. Entrei na casa de uma das
amigas de Marie. Depois em outra e mais outra, chamando-a. Até
mesmo os porcos e galinhas haviam desaparecido. Procurei por
sangue, vestígios de luta. Não encontrei nada. Mas descobri
pegadas levando para a selva. Fui para minha casa, Peguei uma pá
e escondi o rádio na floresta, entre duas árvores altas, que se
alinhavam na direção oeste, perto de um velho formigueiro quase
que com o formato de um homem. Detestava todo o meu trabalho
para vocês, todas as minhas mentiras, para vocês e para os
americanos. Ainda odeio. Retornei à casa, peguei os códigos e
equipamentos que estavam escondidos, destruí tudo, E senti-me
contente ao fazer isso. Também os odiava. Pus as botas, enchi uma
mochila com comida para uma semana. Peguei o revólver e disparei
três balas no motor do jipe, a fim de imobilizá-lo; e depois segui as
pegadas para a selva. O jipe era um insulto a mim, porque fora
comprado por vocês.
Sozinho, Hansen partira em perseguição do Khmer Vermelho.
Outros homens — até mesmo homens que não eram espiões
ocidentais — poderiam ter pensado duas vezes e até uma terceira,
mesmo que sua mulher e filha fossem reféns. Não Hansen. Hansen
só tinha um pensamento e, absolutista como era, agiu de acordo.
— Não podia me permitir a separação da graça de Deus —
disse ele.
Estava me contando, caso eu não soubesse, que além da
sobrevivência da menina havia a sobrevivência de sua alma imortal.
Perguntei-lhe por quanto tempo marchara. Ele não sabia.
Para começar, andava apenas à noite, escondia-se durante o dia.
Mas a luz do dia o corroia e pouco a pouco, contra todo o senso da
selva, atraiu-o a seguir em frente. Enquanto avançava, recordava
cada evento da vida de Marie, desde a noite em que a retirara do
útero da mãe com um bastão de bambu ritual, cortara o cordão
umbilical e ordenara às mulheres na assistência que trouxessem
água, a fim de poder lavá-la; e com a água, por sua autoridade de
sacerdote e pai, batizara Marie em homenagem à sua própria mãe e
à mãe de Cristo.
Lembrava as noites em que ela deitara adormecida em seus
braços ou no berço de vime a seus pés. Vira-a no seio da mãe à luz
do fogo. Angustiara-se pelos terríveis anos de separação em
Djacarta e no curso de treinamento na Inglaterra. Angustiara-se pela
falsidade de seu trabalho para o Serviço, e por sua fraqueza, como
descrevia, por sua traição contra a Ásia. Estava se referindo a seu
trabalho de orientação dos bombardeiros americanos.
Revivera as horas que passara a contar histórias e cantar
para a filha adormecer, canções inglesas e holandesas. Só se
interessava por seu amor por Marie, pela necessidade que sentia
dela, a necessidade que ela sentia dele.
Seguia os rastros porque não tinha mais nada a seguir. Sabia
agora o que acontecera. Já ocorrera em outras aldeias, embora em
nenhuma na região de Hansen. Os guerrilheiros cercavam a aldeia
à noite, esperavam até o amanhecer, quando os homens saíam
para os campos. Capturavam-nos primeiro, depois entravam na
aldeia, pegavam os velhos, mulheres e crianças, até mesmo os
animais. Eram provisões para eles, mas também estavam
aumentando suas fileiras. Tinham pressa ou teriam vasculhado as
casas, mas queriam voltar à selva antes de serem descobertos. Não
demorou muito para que Hansen, sob uma lua cheia, encontrasse
as primeiras provas macabras de sua teoria: os corpos nus de um
velho dono de armazém e sua mulher, as mãos amarradas nas
costas. Eles se mostraram incapazes de acompanhar os outros?
Eram feios demais? Haviam protestado? Hansen passou a avançar
mais depressa. Agradecia a Deus por Marie parecer uma asiática
total. Na maioria das crianças mestiças o sangue europeu se
destaca para todo asiático ver, mas Hansen, embora um gigante,
tinha a pele escura e corpo esguio, e de alguma forma, com sua
alma asiática, conseguira gerar uma criança asiática.
Na noite seguinte havia outro cadáver à beira da trilha e
Hansen aproximou-se apreensivo. Era Ong Sai, a mestre-escola
argumentativa. Tinha a boca escancarada. Baleada no momento em
que protestava, diagnosticou Hansen, passando adiante na maior
ansiedade. Em busca de Marie, seu puro amor, a mãe-terra que era
sua filha, a única guardiã de sua graça.
Especulou sobre o tipo de unidade que estaria seguindo, Os
garotos inibidos que batiam em sua porta à noite para pedir um
pouco de arroz para os guerrilheiros? Os guerreiros sinistros que
consideravam o sorriso asiático como um símbolo da decadência
ocidental? E havia ainda os zumbis, ele bem se lembrava: bandos
saqueados de homens sem lar, que se agrupavam pela
necessidade, mais proscritos do que guerrilheiros. Mas já no grupo
à frente havia uma indicação de disciplina. Um bando menos
organizado teria permanecido para saquear a aldeia. Montariam
acampamento para comer uma refeição e se regozijarem. Na
manhã seguinte à descoberta de Ong Sai, Hansen teve um cuidado
especial de se esconder para dormir.
— Tive uma premonição — disse ele.
Na selva era um risco ignorar a premonição. Ele se enterrou
na vegetação, cobriu o corpo com lama. E dormiu com o revólver na
mão. Despertou ao cair da noite ao cheiro de lenha queimando e ao
som estridente de gritos, e quando abriu os olhos descobriu-se a
contemplar os canos de vários rifles automáticos.
Ele estava falando sobre as correntes. Guerrilheiros da selva,
treinados para viajar com um mínimo de carga, carregando uma
dúzia de grilhões por centenas de quilômetros — como acontecera?
Ele ainda se sentia perplexo. Mas alguém os carregara, alguém
abrira uma pequena clareira no meio da selva, fincara uma estaca
no centro, prendera as argolas de ferro ali, ligara as doze correntes
às doze argolas de ferro, a fim de segurar doze prisioneiros
especiais, sob a chuva e o calor, o frio e a escuridão. Hansen
descreveu o padrão das correntes. Para isso, recorreu ao francês.
Presumi que precisava da proteção de uma língua diferente.
— ... une tringle collective sur laquelle étaient enfilés dês
étriers,.. nous étions fixes par un pied... j'avais été mis au bout de Ia
chaíneparce que ma cheville trop grasse ne passait pás...
Olhei para a garota. Ela continuava estendida no sofá, mais
inerte do que antes, se é que isso era possível. Podia estar morta ou
em transe. Compreendi que Hansen poupava-a de alguma coisa
que não queria que ela ouvisse.
Durante o dia, disse ele, ainda em francês, soltavam nossos
tornozelos, o que nos permitia ajoelhar e até rastejar, mas nunca
muito longe, porque continuávamos presos à estaca e havia os
corpos uns dos outros a nos estorvar. Só à noite, quando as
correntes nos tornozelos eram colocadas e presas a grossas
estacas, podíamos nos esticar plenamente. A disponibilidade de
correntes determinava o número de prisioneiros especiais, que eram
exclusivamente da burguesia da aldeia, disse ele. Reconheceu dois
anciãos da aldeia, e uma viúva de quarenta anos chamada Ra, que
tinha uma reputação de profecia. E os três irmãos Liu, negociantes
de arroz, avarentos notórios, um dos quais já parecia morto, pois
jazia enroscado em torno de suas correntes como um ouriço sem
pelos. Só o som de seus soluços provava que ainda estava vivo.
E Hansen, com seu horror ao cativeiro? Como reagira às
correntes? — Je les ai portées pour Marie — respondeu ele, em seu
francês rápido, incisivo, que eu estava aprendendo a respeitar.
Os prisioneiros que não eram especiais ficavam confinados
num cercado, à beira da clareira, do qual a intervalos um deles era
conduzido ou arrastado ao quartel-general, escondido por trás de
um outeiro. O interrogatório era breve. Depois de umas poucas
horas de gritos, um único tiro de pistola soava e o silêncio
inquietante da selva voltava a prevalecer. Ninguém voltava do
interrogatório. As crianças, inclusive Marie, tinham permissão para
circular, desde que não se aproximassem dos prisioneiros nem se
aventurassem a subir pelo outeiro que ocultava o quartel-general.
As mais ousadas já haviam iniciado um relacionamento com os
jovens guerrilheiros durante a marcha, agora os cercavam, tentando
cumprir pequenas missões para eles, tocar em suas armas.
Mas Marie permanecera apartada de todos. Sentava na terra,
no outro lado das estacas, observando o pai, do amanhecer ao
anoitecer. Mesmo quando arrastaram a mãe do cercado e seus
gritos por Hansen ressoaram de trás do outeiro, transformando-se
em gritos de misericórdia e terminando com o tiro de pistola
habitual, os olhos de Marie nunca se desviaram do rosto de Hansen.
— Ela sabia? — perguntei em francês.
— Todo mundo sabia.
— Ela gostava da mãe? Foi minha imaginação ou Hansen
realmente fechou os olhos no escuro? — Eu era o pai de Marie. Não
era o pai do relacionamento entre elas.
Como eu soubera que mãe e filha se odiavam? Seria porque
sentira que o amor de Hansen por Marie fora ciumento e exigente —
absoluto, como todos os amores, excluindo rivais? — Eu não tinha
permissão de falar com ela, nem ela comigo — ele estava dizendo.
— Os prisioneiros não podiam falar com ninguém, sob pena de
morte.
Até mesmo um grunhido era suficiente, como um dos
desafortunados irmãos Liu aprendeu quando os guardas reduziram-
no ao silêncio permanente com as coronhas de seus rifles, e
substituíram-no na manhã seguinte por um apavorado
remanescente do cercado. Mas não havia necessidade de palavras
entre Marie e o pai. O estoicismo que Hansen via no rosto da filha
era a determinação arrebatada de seu próprio coração, deitado ali,
impotente, acorrentado. Com Marie para ampará-lo, seria capaz de
suportar qualquer coisa. Cada um seria a salvação do outro. O amor
de Marie por ele era tão intenso e sincero quanto o de Hansen por
ela. Ele não tinha a menor dúvida quanto a isso. Apesar de toda a
sua aversão ao cativeiro, agradecia a Deus por tê-la seguido.
Um dia passou e depois outro, mas Hansen permaneceu
acorrentado à estaca, queimando ao sol, tremendo ao frio da noite,
chafurdando em sua própria sujeira, o olhar e o espírito fixados
sempre em Marie.
Em sua cabeça, durante esse tempo, ele analisava a tática de
sua situação.
Desde o início ficara evidente que era uma celebridade. Se
planejavam capturar um europeu, teriam desfechado o ataque antes
que Hansen saísse de casa, revistado a casa depois. Era um
tesouro inesperado, e os guerrilheiros esperavam instruções sobre o
que fazer com ele. Outros na estaca foram levados e
desapareceram, à exceção de um irmão Liu sobrevivente e da
mulher que era adivinha, que depois de dias de ruidosos
interrogatórios voltaram como prisioneiros privilegiados, insultando
seus antigos companheiros e tentando por todos os meios possíveis
se insinuarem junto aos soldados.
Foi instituído um curso de doutrinação, e todas as tardes as
crianças e sobreviventes selecionados sentavam num círculo, à
sombra, para serem persuadidas por um jovem comissário com uma
faixa vermelha na cabeça. Enquanto ardia e congelava, Hansen
podia ouvir a voz estridente do comissário, hora após hora, a
verberar contra os odiados imperialistas. A princípio ressentiu-se
contra essas preleções, porque lhe tiravam Marie. Mas quando fazia
o esforço, ainda conseguia erguer a cabeça bastante alto para ver
seu corpo empertigado, sentado no outro lado do círculo, fitando-o
através da clareira. Serei sua mãe, seu pai e seu amigo, serei sua
vida, mesmo que tenha de renunciar à minha.
Em outras ocasiões, ele se censurava pela beleza
espetacular de Marie, considerando-a como uma punição por seus
desejos fortuitos. Marie aos doze anos era sem dúvida a mais bela
do campo. Embora o sexo fosse proibido aos guerrilheiros, sob a
alegação de que constituía uma ameaça burguesa à vontade
revolucionária, Hansen não podia deixar de perceber o efeito que o
corpo de Marie, em tênues roupas, causava nos jovens soldados,
enquanto observavam-na passar; como os olhos mortiços
devoravam os seios incipientes e os quadris por baixo da roupa de
algodão rasgada, como suas expressões se tornavam sombrias
quando gritavam com ela. Pior ainda, ele sabia que Marie estava
consciente de tais desejos, que sua feminilidade aflorando reagia de
acordo.
E veio uma manhã em que a rotina do cativeiro de Hansen
inexplicavelmente melhorou, e suas apreensões se aprofundaram,
pois seu benfeitor era o jovem comissário com a faixa vermelha na
cabeça. Escoltado por dois soldados, o comissário ordenou que
Hansen ficasse de pé. Como ele não conseguisse se levantar, os
soldados ajudaram-no e, cada um segurando um braço, deixaram-
no cambalear até um ponto na margem do rio em que uma ponta de
terra proporcionava a formação de uma piscina natural.
— Lave-se — ordenou o jovem comissário.
Por muitos dias — desde que fora manietado — Hansen
vinha exigindo em vão o direito de se limpar. Gritara para os
guardas em sua primeira noite: — Levem-me até o rio! E fora
espancado por isso. Na manhã seguinte debatera-se nas correntes,
arriscando-se a mais golpes, clamando pela presença de um
camarada responsável, tudo para garantir o seu direito de
permanecer uma pessoa que os captores pudessem respeitar e, em
consequência, preservar.
Sob o olhar dos soldados, Hansen conseguiu reunir forças
suficientes nos membros doloridos para se banhar e — embora
fosse como uma crucificação — esfregar-se com a lama fina do rio,
antes de ser levado de volta à estaca. No percurso, passou a
poucos passos de sua amada Marie, no lugar habitual, além do
círculo de estacas. Embora seu coração se regozijasse pela
proximidade e a coragem nos olhos da menina, não pôde reprimir a
suspeita de que fora sua própria filha quem lhe obtivera o conforto
excepcional que agora desfrutava. E quando o comissário grunhiu
uma saudação para ela, Marie levantando a cabeça e oferecendo
um meio sorriso em resposta, a angústia do ciúme acrescentou-se
às dores de Hansen.Depois do banho, serviram-lhe arroz — mais do
que haviam lhe dado durante todo o tempo em que era prisioneiro. E
em vez de fazê-lo comer da tigela como um cachorro, soltaram suas
mãos e deixaram-no usar os dedos. Assim, ele pôde esconder uma
pequena quantidade na palma, largando-a pela frente da túnica,
antes que tornassem a acorrentá-lo.
Durante todo o dia ele não pensou em outra coisa que não na
pelota de arroz dentro da túnica, evitando qualquer movimento que
pudesse esmagá-la. Haverei de reconquistá-la, ele pensou.
Suplantarei o comissário em sua admiração. Ao final da tarde,
quando o levaram outra vez ao rio, Hansen realizou o milagre que
planejara. Cambaleando mais dramaticamente do que era
necessário, ele conseguiu largar a pelota de arroz aos pés de Marie,
sem ser percebido pelos guardas. Ao passar por ela, na volta,
constatou que o arroz desaparecera, o que lhe proporcionou um
êxtase secreto.
O rosto de Marie, no entanto, nada lhe dizia. Só os olhos,
fixos e às vezes sem vida em sua devoção, diziam que ela retribuía
seu amor absoluto. Eu estava me iludindo, ele concluiu, enquanto
tornavam a prender suas correntes. Ela aprendeu os truques dos
prisioneiros. É casta e vai sobreviver. Naquela tarde ele escutou
com uma nova tolerância a preleção de doutrinação do comissário.
Manobre-o, ele exortou no diálogo telepático que mantinha
constantemente com a filha; embale-o, enfeitice-o, conquiste sua
confiança, mas não lhe dê nada em troca. E Marie devia ter ouvido,
porque ao final da preleção o comissário chamou-a e repreendeu-a,
enquanto ela permanecia intimidada e silenciosa. Hansen viu a
cabeça da filha pender para a frente. Viu-a se afastar do comissário,
a cabeça ainda abaixada.
No dia seguinte e por uma semana depois, Hansen repetiu a
manobra do arroz, convencido de que só era notado por Marie. A
pelota de arroz, rolando por sua barriga a cada vez que mudava a
posição do corpo, tornou-se uma fonte vital de conforto para ele.
Estou alimentando-a de meu próprio peito. Sou seu guardião, o
protetor de sua castidade. Sou seu padre, dando-lhe o Sacramento
de Cristo.
O arroz era tudo o que importava para Hansen. Sua
preocupação era conceber novos meios de contrabandeá-lo para
Marie, esperando até passar por ela, deixando a pelota cair por
dentro da perna da calça esfarrapada.— Eu era um desregrado —
murmurou ele, no tom de um penitente.
E porque era um desregrado, Deus lhe tirou Marie.
Subitamente, uma manhã, quando o desacorrentaram e levaram à
piscina no rio, não havia Marie para receber o Sacramento. Na aula
de doutrinação, ao final da tarde, ele viu que a filha fora elevada
para o lado do comissário. Pensou ter ouvido a voz de Marie acima
das outras, entoando as responsas litúrgicas com uma nova
autoconfiança. Quando a noite caiu, Hansen divisou a silhueta da
filha entre as fogueiras dos soldados — aceita na companhia deles,
partilhando seu arroz como uma camarada. No dia seguinte ele não
a viu, nem no outro.
— Senti vontade de morrer — comentou Hansen. Mas ao cair
da noite, enquanto esperava em desespero, deitado e imóvel, para
que os guardas acorrentassem seus pés, foi o jovem comissário que
se aproximou, acompanhado por Marie, vestindo uma túnica preta.
— Esse homem é seu pai? — indagou o comissário, ao
alcançarem Hansen.
O olhar de Marie não vacilou, mas ela parecia vasculhar a
memória em busca de uma resposta.
— Angka é meu pai — disse ela finalmente. — Angka é o pai
de todos os oprimidos.
E Hansen explicou-me, sem que eu perguntasse: — Angka
era o Partido. Angka era a Organização que o Khmer Vermelho
rezava. Na escada de seres do Khmer Vermelho, Angka era Deus.
— Então quem é a sua mãe? — perguntou o comissário a
Marie.
— Minha mãe é Angka. Não tenho outra mãe além de Angka.
— Quem é esse homem? — É um agente americano —
respondeu Marie. — Lança bombas em nossas aldeias. Mata
nossos trabalhadores.
— Por que ele finge que é seu pai? — Ele quer nos enganar,
alegando ser nosso camarada.
— Verifique as correntes do espião — ordenou o comissário.
— Providencie para que fiquem bastante apertadas.
Marie ajoelhou-se aos pés de Hansen, exatamente como ele
lhe ensinara a se ajoelhar para rezar. Por um momento, como o
contato curador de Cristo, sua mão tocou nos tornozelos feridos.
— Pode enfiar os dedos entre a corrente e o tornozelo? —
indagou o comissário.
Em seu pânico, Hansen comportou-se como sempre fazia
quando seus pés eram acorrentados. Flexionou os músculos do
tornozelo, esperando assim contar com mais liberdade ao relaxar.
Sentiu o dedo da filha sondar a corrente.
— Posso enfiar o dedo mindinho — respondeu ela,
levantando-o, enquanto mantinha seu corpo na linha de visão entre
o comissário e os pés de Hansen.
— Pode enfiar com dificuldade ou facilidade? — Só consigo
enfiar com bastante dificuldade. Observando-os se afastarem,
Hansen notou algo que o deixou alarmado. Com sua túnica preta,
Marie assumira o andar furtivo de um guerrilheiro da selva. Mesmo
assim, pela primeira vez desde a sua captura, Hansen dormiu
profundamente nas correntes. Ela está se juntando a eles para
enganá-los, assegurou a si mesmo. Deus está nos protegendo.
Muito em breve escaparemos.
O interrogador oficial chegou de barco, um estudante de rosto
liso, uma expressão compenetrada. Na mente de Hansen, era assim
que ele o denominava: o estudante. Um comitê de recepção, o
comissário à frente, esperava-o na margem do rio, escoltou-o pelo
outeiro até o quartel-general. Hansen soube que era o interrogador
porque foi o único que não virou a cabeça para ver o último
prisioneiro remanescente, apodrecendo ao calor. Mas ele olhou para
Marie. Parou na frente dela, obrigando todos a pararem também.
Postou-se diante dela; estendeu para a frente seu rosto atento,
enquanto fazia perguntas que Hansen não pôde ouvir. Ficou imóvel,
enquanto ouvia as respostas de papagaio de Marie. Minha filha é a
prostituta do acampamento, pensou Hansen, em desespero. Mas
seria mesmo? Nada do que ele já ouvira sobre o Khmer Vermelho
sugeria que trouxessem ou mesmo tolerassem prostitutas em seu
meio. Tudo sugeria justamente o contrário. "Angka hait le sexuel",
um antropólogo francês lhe dissera certa ocasião.
Portanto, estão encantando-a com seu puritanismo, concluiu
Hansen. Atraíam-na numa paixão que é pior do que a devassidão. E
ele ficou estendido com o rosto na terra, rezando para que lhe fosse
permitido assumir os pecados de inocência de Marie.
Não tenho um quadro coerente do interrogatório de Hansen,
pelo simples motivo de que ele também não tinha. Lembrei o
tratamento que recebera as mãos do Coronel Jerzy, e concluí que
fora brincadeira de criança em comparação. Mas as recordações de
Hansen apresentavam a mesma imprecisão. Que o torturaram, nem
é preciso dizer. Fizeram uma grade de madeira com esse propósito.
Mas se preocupavam também em mantê-lo vivo, porque entre as
sessões lhe davam comida e até, se ele recordava direito, permitiam
visitas à margem do rio, embora pudesse ter sido apenas uma vez,
reproduzida nos delírios da inconsciência.
Havia também sessões de redação, pois na mente literária do
estudante nenhuma confissão era real até que fosse escrita. E
escrever foi se tornando mais e mais difícil, tornou-se uma punição,
apesar de soltarem-no da grade nessas ocasiões.
Como um interrogador, o estudante parece ter seguido
simultaneamente por duas frentes intelectuais. Quando chegava a
um impasse em uma, passava para a outra.
Você é um espião americano, disse ele, e um agente do
fantoche contrarrevolucionário Lon Nol, também um inimigo da
revolução. Hansen negou.
Mas você é também um católico romano, disfarçado como
budista, um envenenador de mentes, um promotor de superstições
anti-Partido, e um sabotador do esclarecimento popular, gritou o
estudante.
De um modo geral, o estudante parece ter preferido fazer
declarações em vez de perguntas.
— Por favor, informe agora todas as datas e locais de suas
reuniões conspiradoras com o fantoche contrarrevolucionário e
espião americano Lon Nol, dando os nomes de todos os americanos
presentes.
Hansen insistia que não ocorrera nenhuma reunião assim.
Mas isso não proporcionava qualquer satisfação ao estudante. À
medida que a agonia aumentava, Hansen recordou os nomes de
uma canção folclórica inglesa que a mãe costumava cantar para ele:
Tom Pearse... Bill Brewer... Jan Stewer... Peter Gurney... Peter
Davey... Dan Whiddon... Harry Hawk...— Agora, por favor, escreva o
nome do líder dessa ralé — disse o estudante, virando uma página
de seu caderno.Os olhos do estudante, disse Hansen, estavam com
frequência quase fechados. Lembrei que a mesma coisa acontecia
com Jerzy.
— Cobbleigh — sussurrou Hansen, levantando a cabeça da
mesa a que fora sentado.
Thomas Cobbleigh, ele escreveu. Tom na intimidade. E o
codinome é Tio.
As datas eram importantes porque Hansen se preocupava em
esquecê-las depois de inventá-las, sendo acusado de incoerência.
Escolheu o aniversário de Marie e o aniversário de sua mãe, assim
como a data da execução de seu pai. Mudou o ano para ajustar à
ascensão ao poder de Lon Nol. Como local para a conspiração,
escolheu os jardins murados do palácio de Lon Nol em Pnom Penh,
que muitas vezes admirara a caminho de uma fumerie.
Seu medo, enquanto confessava todas essas asneiras, era a
de que pudesse revelar a informação genuína por equívoco, pois
era-lhe agora evidente que o estudante nada sabia sobre suas
verdadeiras atividades de recolhimento de informações, e que as
acusações baseavam-se unicamente no fato de ser um ocidental.
— Por favor, escreva o nome de cada espião a quem deu
dinheiro nos últimos cinco anos, assim como cada ato de
sabotagem cometido contra o povo.
Em todos os dias e noites que passara a antecipar a
provação, Hansen nunca imaginara que pudesse fracassar por falta
de criatividade. Recitou os nomes de mártires cujas agonias
contemplara, a fim de se preparar; de sábios orientais seguramente
mortos; de autores de obras eruditas sobre filologia e linguística.
Espiões, disse ele. Todos espiões. E escreveu seus nomes, a mão
tremendo sobre o papel, nas convulsões da dor que continuava a
sacudi-lo, muito depois de terem desligado a máquina.
Escrevendo desesperadamente, fez uma lista dos oficiais de
T.E. Lawrence no deserto, que se lembrava de muitas leituras de Os
Sete Pilares da Sabedoria. Descreveu como, sob ordens pessoais
de Lon Nol, organizara o envenenamento de colheitas e gado por
sacerdotes budistas. O estudante tornou a pô-lo na grade e
aumentou a dor.Descreveu os cursos clandestinos de imperialismo
que promovera, como encorajara os sentimentos burgueses e
virtudes familiares. O estudante abriu os olhos, apresentou seus
pêsames e tornou a aumentar a dor.
Hansen deu quase tudo. Descreveu como acendera lanternas
para orientar bombardeiros americanos, e espalhara rumores de
que os bombardeiros eram chineses. Já estava prestes a contar
quem o ajudara a levar comandos americanos para as trilhas de
suprimentos, quando misericordiosamente desmaiou.
Mas ao longo de toda a provação ainda era com Marie que
vivia em seu coração, a pessoa por quem clamava em seu
sofrimento, cujas mãos o atraíam de volta à vida quando seu corpo
suplicava para abandoná-la, cujos olhos velavam por ele com amor
e compaixão. Era para Marie que ele sacrificava seu sofrimento, por
quem jurava sobreviver. Entre a vida e a morte, teve uma alucinação
em que se viu estendido no barco do estudante, Marie em sua
túnica preta sentada ao lado, remando rio acima para o Paraíso.
Mas ainda não morrera. Não me mataram. Confessei tudo e eles
não me mataram. Mas ele não confessara tudo. Permanecera leal a
seus ajudantes e nada dissera sobre o rádio. E quando o arrastaram
de volta no dia seguinte, e prenderam-no de novo na grade, ele viu
Marie sentada ao lado do estudante, com uma cópia de sua
confissão à frente, sobre a mesa. Ela tinha os cabelos cortados, a
expressão era indefinível.
— Está a par das declarações do espião? — perguntou o
estudante a Marie.
— Estou a par das declarações.
— As declarações do espião descrevem de forma acurada
seu estilo de vida, pelo que pôde observar quando estava em sua
companhia? — Não.
— Por que não? — indagou o estudante, abrindo seu
caderno.
— Não são completas.
— Explique por que as declarações do espião Hansen não
são completas.
— O espião Hansen tinha um rádio em sua casa, que usava
para se comunicar com os bombardeiros imperialistas. Além disso,
os nomes que ele mencionou em sua confissão são fictícios. Foram
tirados de uma cantiga burguesa inglesa, que ele cantava para mim
quando fingia ser meu pai. E também ele recebia soldados
imperialistas em nossa casa à noite e levava-os para a selva. E
também deixou de mencionar que tem uma mãe inglesa. O
estudante parecia desapontado.
— O que mais ele deixou de mencionar? — indagou ele,
alisando uma página em branco com a beira da mão pequena.
— Durante seu confinamento, ele foi culpado de muitas
violações dos regulamentos. Escondeu comida e tentou comprar a
colaboração de camaradas em seus planos de fuga.
O estudante suspirou e fez mais anotações.
— O que mais ele deixou de mencionar? — insistiu, paciente.
— Ele tem usado as correntes nos pés de maneira imprópria.
Quando as correntes são colocadas, ele contrai os pés ilegalmente,
deixando-as frouxas para a sua fuga.
Até aquele momento, Hansen conseguira se persuadir de que
Marie empenhava-se num jogo de astúcia. Agora, não era mais
possível. O jogo era a realidade.
— Ele é um traficante de prostitutas! — gritou ela, entre as
lágrimas. — Corrompe nossas mulheres, levando-as para sua casa
e drogando-as! Finge formar um casamento burguês, depois obriga
sua esposa a tolerar suas práticas decadentes! Vai para a cama
com garotas da minha idade! Finge que é o pai de nossas crianças
e que o nosso sangue não é Khmer! Lê para nós a literatura
burguesa, em línguas ocidentais, a fim de nos depravar! E nos
seduz, levando-nos para passeios em seu jipe e cantando canções
imperialistas! Hansen nunca a ouvira gritar antes. Nem,
evidentemente, o estudante, que parecia constrangido. Mas Marie
não podia mais parar. Persistiu em repudiá-lo. Contou como ele
proibira que a mãe a amasse. Manifestava um ódio por ele que
Hansen sabia ser sincero, tão absoluto e incontrolável quanto o seu
amor por ela. O corpo de Marie tremia com o ódio acumulado de
uma mulher abusada, as feições contraídas em ódio e culpa.
Estendeu o braço, apontando para Hansen, na postura clássica de
acusação. Sua voz pertencia a alguém que ele nunca conhecera.—
Matem-no! — berrou Marie. — Matem o profanador de nosso povo!
Matem o corruptor de nosso sangue Khmer! Matem o mentiroso
ocidental que nos diz que somos diferentes uns dos outros!
Vinguem o povo! O estudante escreveu uma última anotação e
depois ordenou que levassem Marie embora.
— Rezei pelo perdão dela — murmurou Hansen.
No bangalô, percebi agora, já estava amanhecendo. Hansen
se encontrava de pé junto das portas de vidro, os olhos fixados no
platô enevoado do mar. A garota continuava estendida no sofá,
onde passara a noite inteira, os olhos fechados, a lata de Coca-Cola
vazia ao seu lado, a cabeça ainda apoiada no braço. A mão,
pendendo pela beira do sofá, parecia gasta e idosa. Havia agora
uma certa sobriedade na voz de Hansen, e por um momento temi
que ele decidira se ressentir de mim com a manhã. E depois
compreendi que não era eu o alvo de sua desavença, mas sim ele
próprio. Recordava sua ira quando o carregaram, amarrado mas
não acorrentado, de volta ao cercado para dormir — se é sono o
que se tem quando o corpo morre de dor, o sangue se derrama
pelos ouvidos e nariz. Raiva contra si mesmo, por ter implantado
tanta aversão em sua filha.
— Eu ainda era o pai dela — disse ele, em francês: — Não
culpei Marie por nada, assumi toda a culpa. Se ao menos eu tivesse
efetuado a fuga antes, em vez de contar com ela para me ajudar...
Se ao menos eu tivesse lutado para me salvar quando ainda tinha
forças, em vez de depositar toda a minha confiança numa criança...
Eu nunca deveria ter trabalhado para vocês. Meu trabalho secreto a
expunha ao perigo. E amaldiçoei todos vocês. E ainda amaldiçoo.
Eu falei alguma coisa? Minha preocupação era não dizer
nada que pudesse interromper seu fluxo.
— Ela foi atraída por eles — continuou Hansen, inventando
desculpas para a filha. — Eram sua própria gente, guerrilheiros da
selva, com uma fé pela qual estavam dispostos a morrer. Por que
ela os rejeitaria? Eu era o último obstáculo para a aceitação de
Marie por seu povo. Era um intruso, um corruptor. Por que ela
acreditaria que eu era seu pai, quando lhe diziam que eu não era?
Ainda estendido na terra dentro do cercado, Hansen lembrou-a no
dia em que o jovem comissário vestira-a no preto nupcial. Lembrou
sua expressão de aversão quando ela o fitara, fétido e espancado,
um mendigo a seus pés, um vil espião ocidental. E, a seu lado, o
bonito comissário com uma faixa vermelha na cabeça.
— Sou casada com o Angka — ela estava lhe dizendo. — O
Angka responde a todas as minhas perguntas.
— Eu estava sozinho — murmurou Hansen.
A escuridão caiu, e ele calculou que esperariam pela luz do
dia se tencionavam fuzilá-lo. Mas a ideia de que Marie continuaria
pela vida sabendo que ordenara a morte do pai o assustava.
Imaginou-a na meia-idade. Quem a ajudaria? Quem a confessaria?
Quem lhe daria alívio e absolvição? A ideia de sua morte tornou-se
cada vez mais alarmante. Seria também a morte de Marie.
Em algum momento deve ter cochilado, ele contou, pois ao
amanhecer encontrou uma tigela de arroz ao seu lado e sabia que
não estava ali na noite anterior; mesmo em sua agonia, teria sentido
o cheiro. Não em pelotas, o arroz, não guardado contra a pele nua,
mas um monte branco, o suficiente para cinco dias. A princípio
estava cansado demais para ficar surpreso. Virando-se de barriga
para baixo, a fim de comer, Hansen notou o silêncio. Àquela hora a
clareira devia estar agitada pelos sons dos soldados despertando
para o dia: vozes cadenciadas e o barulho de pessoas se lavando
na margem do rio, o estardalhaço de panelas e rifles, o canto de
slogans sob o comando do comissário. Quando ficou imóvel para
escutar, no entanto, percebeu que até mesmo os pássaros e
macacos pareciam ter suspenso seus gritos, não ouviu
absolutamente qualquer som humano.
— Eles tinham ido embora — disse Hansen, de algum lugar
por trás de mim. — Levantaram acampamento durante a noite e
levaram Marie.
Ele comeu mais arroz e tornou a cochilar. Por que não me
mataram? Marie os dissuadira. Marie comprou minha vida. Hansen
pôs-se a roçar os elos na parede do cercado. Ao cair da noite,
coberto de moscas, estava estendido na margem do rio, lavando os
ferimentos. Rastejou de volta ao cercado para dormir, e partiu na
manhã seguinte, levando o resto do arroz. Desta vez, não tendo
prisioneiros ou animais, os guerrilheiros não haviam deixado rastros.
Mesmo assim, ele partiu à procura da filha.
Durante meses, ele acha que foram cinco ou seis, Hansen
permaneceu na selva, deslocando-se de aldeia para aldeia, jamais
parando, não confiando em ninguém — desconfio que um pouco
enlouquecido. Sempre que podia, indagava pela unidade de Marie,
mas havia muito pouco para descrevê-la e sua busca se tornou
indiscriminada. Ouvia falar de unidades que tinham moças lutando.
Ouvia falar de moças sendo enviadas para as cidades como
prostitutas, a fim de obterem informações. Imaginava Marie em
todas essas situações. Uma noite retornou à sua antiga casa, com a
esperança de que ela tivesse se refugiado ali. A aldeia fora
incendiada.
Perguntei se haviam mexido no rádio escondido.
— Não olhei — respondeu ele. — Nem me importei. Odiava
todos vocês.
Outra noite ele procurou a tia de Marie, que vivia numa aldeia
remota, mas ela jogou-lhe panelas e teve de fugir. Mas a
determinação de salvar a filha era mais forte do que nunca, pois
sabia agora que deveria resgatá-la de si mesma. Ela está
amaldiçoada com meu absolutismo, ele pensava.
É violenta e obstinada; e o culpado sou eu. Encerrei-a na
prisão de meus próprios impulsos. Só o amor de um pai poderia
deixá-lo cego para esse conhecimento. Agora tinha os olhos
abertos. Via Marie atraída para a crueldade e desumanidade como
um meio de provar sua devoção. Via-a revivendo sua própria busca
desesperada, mas privada de sua disciplina intelectual e religiosa —
vagamente acreditando, como ele, que sua suposição numa grande
visão a levaria à autorrealização.
Hansen pouco falou de suas andanças pela fronteira
tailandesa. Seguiu para sudoeste, na direção de Pailin. Fora
informado de que havia ali um grande acampamento para
refugiados Khmer. Atravessou montanhas e pântanos impregnados
de malária. Assim que chegou, assediou os centros de localização e
pregou a descrição de Marie em todos os quadros de avisos. Ainda
é um mistério para mim como ele conseguia manter em segredo sua
presença na Tailândia, sem documentos, dinheiro ou ligações.
Mas Hansen era um agente treinado e experiente, mesmo
que nos negasse. Não estava disposto a permitir que qualquer coisa
o detivesse. Perguntei por que não procurara Rumbelow para pedir
ajuda, mas ele sacudiu a cabeça, descartando a ideia com o maior
desdém.
— Eu não era mais um agente imperialista. Não acreditava
em nada além de minha filha.
Um dia, no escritório de uma organização assistencial, ele
encontrou uma americana que achava que se lembrava de Marie.
— Ela foi embora — disse a mulher, cautelosa. Hansen
pressionou-a. Marie pertencia a um grupo de meia dúzia de garotas,
informou a mulher. Eram prostitutas, mas tinham a segurança de
guerrilheiras. Quando não recebiam homens, mantinham-se
apartadas de todo mundo e não eram fáceis de controlar. E um dia
deixaram o acampamento. Ela ouvira dizer que haviam sido presas
pela polícia tailandesa.
Nunca mais tornara a vê-las.
A mulher que disse isso parecia indecisa, sem saber se
acrescentava ou não mais alguma coisa. Hansen não lhe deu
opção.
— Ficamos apreensivos por ela — explicou a mulher. — Ela
deu diferentes nomes para si mesma. E ofereceu relatos conflitantes
sobre a maneira como chegou aqui. Os médicos aventaram a
possibilidade de que tivesse enlouquecido. Em algum ponto de sua
jornada a moça perdera a noção de quem era.
Hansen procurou a polícia tailandesa e, por ameaças ou
persuasão animal, conseguiu descobrir Marie numa pensão mantida
para a satisfação dos guardas. Nunca lhe perguntaram quem ele
era, nunca lhe pediram os documentos. Era um olho-redondo, um
farang, que falava Khmer e thai. Marie passara três meses na
pensão, eles disseram, depois desaparecera. Ela era estranha,
comentou um afável sargento.
— Estranha como? — indagou Hansen.
— Só falava inglês.
Havia outra moça, uma amiga de Marie, que ficara mais
tempo e acabara casando com um cabo. Hansen obteve seu nome.
Ele cessara de falar.
— E encontrou-a? — indaguei, depois de um longo silêncio.Já
sabia a resposta, desde a metade da história, embora sem saber
que sabia. Hansen estava sentado junto da cabeça da garota,
afagando-a gentilmente. Ela sentou, bem devagar, esfregou os
olhos com as mãos de velha, fingindo que estivera adormecida.
Tenho a impressão de que nos escutara durante a noite inteira.
— Era tudo o que ela podia compreender agora — explicou
Hansen, em inglês, enquanto continuava a afagar a cabeça da
garota, referindo-se ao bordel em que a encontrara: — Não queria
grandes opções, não é mesmo, Marie? Nada de palavras
pomposas, nada de promessas.
Ele abraçou-a, antes de acrescentar: — Ela deseja apenas
ser admirada. Por sua própria gente. Por todos. Todos nós devemos
amar Marie. É isso o que a conforta.
Creio que ele tomou minha hesitação por censura, pois tratou
de altear a voz.
— Ela deseja ser inofensiva. É tão terrível assim? Deseja que
a deixem em paz, como todos nós desejamos. Seria ótimo se mais
pessoas desejassem a mesma coisa. Seus bombardeiros, seus
espiões e sua conversa pomposa não são para ela. Não é a filha do
Dr. Kissinger. Pede apenas por uma pequena existência, em que
possa proporcionar prazer, sem fazer mal a ninguém. O que é pior?
O bordel de vocês ou o dela? Saiam da Ásia. Vocês nunca deveriam
ter vindo, nenhum de vocês. Sinto-me envergonhado por tê-los
ajudado. Deixem-nos em paz agora.
— Contarei um pouco dessa história a Rumbelow —
comentei, levantando-me para sair.
— Conte a ele o que bem quiser.
Da porta, lancei um último olhar para os dois. A moça me
fitava como creio que fitara Hansen do exterior do círculo de
correntes, os olhos inflexíveis, profundos, parados. Achei que sabia
o que havia em sua mente. Eu pagara por ela e não a possuíra.
Especulava se eu queria meu dinheiro de volta.
Rumbelow levou-me ao aeroporto. Como Hansen, eu preferia
dispensar a sua companhia, mas tínhamos alguns problemas a
discutir.
— Prometeu a ele quanto! — gritou Rumbelow, horrorizado.—
Disse que ele tinha direito a uma subvenção de reassentamento e
toda a proteção que pudermos lhe conceder. E disse também que
você lhe enviaria um cheque visado de cinquenta mil dólares.
Rumbelow estava furioso.
— Eu dar a ele cinquenta mil dólares? Ora meu caro, ele
passará seis meses embriagado e contará sua história a todo
mundo em Bangkok! E o que me diz daquela sua prostituta
cambojana? Aposto que ela sabe de tudo.
— Não se preocupe. Ele se recusou a me contar qualquer
coisa.
Essa notícia deixou Rumbelow tão espantado que sua
indignação se esgotou por completo, levando-o a um silêncio
melindrado, que perdurou pelo resto da viagem.
No avião bebi muito e dormi pouco. Uma vez, despertando de
um pesadelo, fui culpado de um pensamento sedicioso sobre
Rumbelow e o Quinto Andar. Gostaria de despachar toda aquela
tribo para a marcha de Hansen pela selva, inclusive Smiley. Gostaria
de poder fazer com que renunciassem a tudo por uma paixão
maculada e impossível, só para ver o alvo dessa paixão virar-se
contra eles, provando que não há recompensa para o amor além da
experiência de amar, e nada para se aprender exceto na humildade.
Contudo, sentia-me contente, como me sinto contente até
hoje quando penso em Hansen. Eu descobrira o que procurava —
um homem como eu, mas que em sua busca por sentido encontrara
um objetivo digno de sua vida; que pagara todos os preços e não os
encarara como um sacrifício; que ainda estava pagando e pagaria
até morrer; que não se importava com os compromissos, com seu
orgulho, conosco ou com a opinião dos outros; que reduzira sua
vida a uma única que lhe importava, e assim estava livre. O
subversivo adormecido em mim encontrara seu campeão. O amante
em potencial em mim encontrara uma escala pela qual medir suas
próprias preocupações triviais.
Assim, poucos anos depois, quando fui designado para chefe
da Casa da Rússia, só para ver meu agente mais valioso trair seu
país por amor, nunca fui capaz de sentir a indignação que os
superiores me exigiam. Personnel não foi absolutamente estúpido
quando me transferiu para o Centro de Interrogatório.
DEZ
MAGOS, MEU ANTIPÁTICO criptojornalista, tentava atrair
Smiley a falar sobre a natureza amoral de nosso trabalho. Queria
que Smiley admitisse que qualquer coisa era possível, desde que se
escapasse impune. Desconfio que ele queria na verdade ouvir essa
máxima aplicada a toda a vida, pois era implacável além de
grosseiro, e desejava ver em nosso trabalho alguma espécie de
licença para se descartar de todos os escrúpulos que ainda lhe
restavam.
Mas Smiley não lhe daria essa satisfação. A princípio ele
parecia prestes a se irritar, o que torci para que acontecesse. Se
assim foi, ele se controlou a tempo. Começou a falar, mas parou de
novo, hesitou, deixando-me a especular se não era hora de
suspender a sessão. Até que, para meu alívio, ele se controlou, e
percebi que fora apenas distraído por alguma lembrança particular,
entre as mulheres que constituíam o seu eu secreto.
— Devem compreender que é realmente essencial numa
sociedade livre que as pessoas que realizam o nosso trabalho
permaneçam irreconciliadas — explicou Smiley, respondendo, como
acontecia com tanta frequência, mais ao espírito do que à letra da
pergunta: — É verdade que somos obrigados a cear com o Diabo, e
nem sempre com uma colher muito comprida. E como todos
sabem... — Um furtivo olhar para Maggs produziu uma explosão de
riso bem-vinda. — ...o Diabo é muitas vezes uma companhia muito
melhor do que o Divino, não é? Seja como for, nossa obsessão pela
virtude não desaparece.O egoísmo é muito limitador. E o mesmo
acontece com a conveniência.
Ele fez outra pausa, ainda imerso em seus pensamentos.
— Tudo o que estou realmente querendo dizer, eu acho, é
que se a tentação pela humanidade os atacar de vez em quando,
espero que não considerem como uma fraqueza pessoal, mas lhe
concedam uma audiência justa.
As abotoaduras, pensei, num relance de inspiração. George
está se lembrando do velho.
Durante muito tempo não pude compreender por que a
história continuara a me atormentar. Depois cheguei à conclusão de
que por acaso eu me encontrava numa época em que o
relacionamento com meu filho Adrian atingira um ponto muito baixo.
Ele falava em não perder tempo com a universidade, preferindo em
vez disso arrumar um emprego bem remunerado.
Equivocadamente, encarei a sua inquietação como materialismo e
seus sonhos de independência como indolência. Uma noite perdi o
controle e insultei-o, senti-me devidamente envergonhado por
muitas semanas depois. Foi durante uma dessas semanas que
desencavei a história.
Depois me lembrei também que Smiley não tivera filhos, e
que talvez sua participação ambígua no caso fosse até certo ponto
explicada por isso. Senti-me um pouco alterado pelo pensamento de
que ele pudesse estar preenchendo um vazio em si mesmo pela
reparação de um relacionamento que nunca tivera.
E finalmente lembrei que apenas uns poucos dias antes de
deparar com os papéis, eu recebera a carta anônima denunciando o
pobre Frewin e o velho, relacionadas com lealdade obstinada e
mundos perdidos. Tudo isso para o contexto, espero que
compreendam, pois ainda não conheci nenhum caso que não fosse
constituído por uma centena de outros.
Por fim, havia o fato de que, como tantas vezes aconteceu em
minha vida, descobri que Smiley fora mais uma vez o meu
precursor. Mal me instalara à mesa desconhecida no Centro de
Interrogatório quando comecei a descobrir os sinais dele por toda
parte: em nossos arquivos empoeirados, em números antigos no
registro do funcionário de plantão e nos sorrisos reminiscentes das
secretárias veteranas, que falavam a seu respeito com a reverência
da velha vestal, em parte como Deus, em parte como o ursinho de
pelúcia, em parte — embora sempre se apressassem em desculpar
esse aspecto da natureza de Smiley — como o tubarão assassino.
Até mostravam a xícara e o pires de porcelana de Thomas Goode
— da South Audley Street — de que outro lugar poderia ser? — um
presente de Ann para George, elas explicavam, afetuosamente, que
George legara ao Centro depois de sua reabilitação e retorno ao
escritório central — e, como não podia deixar de ser, como se fosse
o próprio Graal, a xícara de Smiley nunca poderia ser usada por um
mero mortal.
O centro, se vocês ainda não perceberam, é uma espécie de
Sibéria do Serviço, e Smiley, senti-me reconfortado ao descobrir, ali
estivera como exilado não apenas uma vez, mas duas: a primeira,
por sua desfaçatez de sugerir ao Quinto Andar que podia estar
abrigando uma toupeira do Centro Moscou em seu seio; e a
segunda, poucos anos depois, por estar certo. E o centro tem não
apenas a monotonia da Sibéria, como é igualmente remoto, situado
não no prédio principal, mas numa sucessão de cavernosas salas
no andar térreo de uma pilha de pedras na Northumberland Avenue,
na extremidade norte de Whitehall.
E como acontece com a maior parte da arquitetura ao redor, o
centro já conhecera dias melhores. Fora instalado na Segunda
Guerra Mundial para receber as oferendas de estrangeiros, ouvir
suas suspeitas e acalmar suas apreensões ou — se haviam de fato
deparado com uma verdade maior — desorientá-los ou assustá-los
para que ficassem em silêncio.
Se você pensou, por exemplo, que vislumbrou seu vizinho
tarde da noite debruçado sobre um radiotransmissor; se avistou
luzes estranhas piscando de uma janela e sentiu-se muito inibido ou
desconfiado para comunicar à delegacia de polícia local; se seu
amante secreto lhe confessou — por solidão ou bravata, talvez por
uma necessidade desesperada de parecer mais interessante a seus
olhos — que trabalhava para o Serviço Secreto Alemão... nesse
caso, depois de uma correspondência com algum assistente espúrio
de algum subsecretário desconhecido de Whitehall, provavelmente
seria convidado, ao final de uma tarde, a desafiar a blitz, sendo
conduzido, com o coração na boca, através de um corredor cheio de
sacos de areia e com a tinta descascando, até a Sala 909, onde um
Major Fulano ou Capitão Sicrano, ambos falsos como uma nota de
três dólares, pediria cortesmente que relatasse tudo com absoluta
franqueza, sem medo das repercussões.
E de vez em quando, como registra a história secreta do
centro, grandes coisas começaram ali, o que ainda acontece até
hoje, desses primórdios inauspiciosos, embora o negócio não seja
mais como no passado, pois grande parte do trabalho agora se
concentra nas ofertas espontâneas de serviços, denúncias
anônimas como a que fizeram contra o pobre Frewin e até mesmo
— em apoio aos desprezados serviços de segurança — inquéritos
internos positivos, que são as piores de todas as Sibérias, o mais
longe que se pode chegar das operações emocionantes da Casa da
Rússia sem deixar completamente o Serviço.
Apesar disso, há mais para se aprender nessas punições do
que a mera humildade. E o agente secreto não é nada se perdeu a
disposição de escutar, e George Smiley, o gorducho, transtornado,
corneado, despretensioso e infatigável George, sempre limpando os
óculos no forro da gravata, murmurando para si mesmo e
suspirando em sua perene distração, era o melhor ouvinte de todos
nós.
Smiley podia escutar com seus olhos empapuçados e
sonolentos; podia escutar pela própria inclinação do corpo
atarracado, pelo silêncio e sorriso compreensivo. Podia escutar
porque, com uma única exceção, que era Ann, sua esposa, nada
esperava de seus semelhantes, nada criticava, justificava o pior em
você muito antes que o revelasse. Podia escutar melhor do que um
microfone porque sua mente iluminava no mesmo instante os
pontos essenciais; parecia capaz de identificá-los antes de saber
para onde levavam.
E foi assim que George veio a escutar o Sr. Arthur Wilfred
Hawthorne, de The Dene, Ruislip, 12, meia vida antes de mim, na
mesma Sala 909 em que sento agora, virando curioso as páginas
amareladas de uma pasta com a indicação de "À Espera de
Destruição", que eu desencavara das prateleiras do arquivo.
Começara a minha busca ociosamente — podem até dizer
com uma certa frivolidade — quase como alguém pegando um velho
exemplar do Tatler em seu clube. E de repente compreendi que
tropeçara com página após página da letra familiar e circunspecta
de Smiley, com seu inclinado germânico, o e torto grego, e
assinadas com seu símbolo lendário. Onde era forçado a aparecer
no drama em pessoa — e podem senti-lo a procurar todos os meios
para escapar a essa provação vulgar — referia-se a si mesmo
apenas como "O.P.", abreviação de Oficial de Plantão. E como ele
era notório por seu ódio a iniciais, vocês podem perceber mais uma
vez sua natureza reclusa, se não mesmo francamente fugitiva. Eu
não poderia ficar mais excitado se descobrisse uma obra
desaparecida de Shakespeare. Estava tudo ali: a carta original de
Hawthorne, transcrições das entrevistas gravadas, até os recibos
assinados por Hawthorne pelo dinheiro para suas viagens e
pequenas despesas.
Minha apatia desapareceu. O exílio não mais me oprimia,
nem o silêncio da grande casa vazia a que estava condenado.
Partilhava tudo com George, esperando pelo ruído das leais botas
de Arthur Hawthorne marchando pelo corredor e chegando à
presença de Smiley.
"Prezado Senhor", ele escrevera a "O Oficial no Comando do
Serviço Secreto, Ministério da Defesa". E já, porque somos
britânicos, sua classe está fixada na página — quanto menos não
seja pelo uso estranhamente arrogante das letras maiúsculas, tão
apreciado pelas pessoas incultas. Imaginei muito esforço para
escrever, talvez um dicionário ao lado. "Desejaria, Senhor, Solicitar
uma Entrevista com sua Equipe relativa a uma Pessoa que tem
realizado um Trabalho Especial para o Serviço Secreto Britânico no
mais alto Nível, e cujo Nome é tão Importante para minha Esposa e
para mim assim como pode ser para os Senhores, cujo Nome estou
por isso proibido de mencionar nesta Carta." Era tudo. Assinado
"Hawthorne, A.W., Suboficial Classe II, reformado". Arthur Wilfred
Hawthorne, em outras palavras, como as pesquisas de Smiley
revelaram, quando consultou a lista de eleitores, seguindo-se as
suas descobertas por uma consulta aos arquivos do Ministério da
Guerra. Nascido em 1915, Smiley meticulosamente registrou na
ficha de referências pessoais de Hawthorne. Alistado em 1939,
serviu com o VIII Exército do Egito á Itália. Ex-Primeiro-Sargento
Arthur Wilfred Hawthorne, duas vezes ferido em batalha, três votos
de louvor e uma medalha por bravura, desmobilizado sem nada que
o desabonasse, "o melhor exemplo do melhor soldado no mundo",
escreveu seu comandante, num elogio entusiasmado, se bem que
hiperbólico.
E eu sabia que Smiley, como um bom profissional, teria
ocupado seu posto muito antes da chegada do cliente, como eu
fizera naqueles últimos meses: na mesma escrivaninha amarelada
de pinho, um tanto escalavrada, do tempo da guerra, chamuscada
na beira — a lenda dizia que pelo huno; com o mesmo telefone
musguento, tanto as letras quanto os números no disco; a mesma
fotografia pintada à mão da Rainha sentada num cavalo, aos vinte
anos de idade. Vejo George franzindo o rosto atentamente para seu
relógio, depois fazendo uma careta ao espiar a confusão habitual ao
redor, pois havia uma batalha permanente, tão antiga quanto
qualquer um podia se lembrar, sobre quem deveria limpar o lugar, o
Ministério ou nós mesmos. Vejo-o tirar um lenço da manga —
penosamente outra vez, pois nenhum gesto jamais veio a George
sem uma luta — e limpar a poeira do assento de sua cadeira de
pau, depois fazer a mesma coisa de antemão por Hawthorne, no
outro lado da mesa. E depois, como eu próprio já fizera algumas
vezes, desempenhar um serviço para a Rainha endireitando a
moldura e devolvendo o brilho a seus olhos jovens e idealistas.
Pois imaginei que George já estudava os sentimentos de seu
cliente, como qualquer competente agente de informações deve
fazer. Um ex-primeiro-sargento esperaria encontrar uma certa
ordem na sala, no final das contas. E logo vejo o próprio Hawthorne,
pontual até o minuto, sendo introduzido por um porteiro, em seu
melhor terno, abotoado como um uniforme de batalha, as pontas
das botinas engraxadas brilhando como castanhas na
semiescuridão. A descrição dele feita por Smiley em seu relatório é
escassa mas incisiva: um metro e setenta, cabelos grisalhos
cortados rentes, rosto raspado, aparência bem cuidada, postura
militar. Outras características: manqueira suprimida da perna
esquerda, botinas do exército.
— Hawthorne, senhor — disse ele bruscamente, assumindo
posição de sentido, até que Smiley, com alguma dificuldade,
persuadiu-o a sentar.
Smiley era o Major Nottingham naquele dia, e tinha um cartão
impressivo com sua fotografia para prová-lo. Em meu bolso,
enquanto lia o seu relato sobre o caso, havia um cartão similar, em
nome do Coronel Ned Ascot.
Não me perguntem por que Ascot, exceto para ressaltar que,
ao escolher o nome de um lugar para meu pseudônimo, eu copiava
inconscientemente um dos pequenos hábitos de Smiley.
— De que regimento é, senhor, se não se importa que eu
pergunte? — indagou Hawthorne a Smiley, enquanto sentava.
— Dos Serviços Gerais — respondeu Smiley, o que é a única
coisa que temos permissão para falar.
Mas tenho certeza de que era difícil para Smiley, como
acontecia comigo, ser obrigado a descrever-se como alguma
espécie de não combatente.
Como prova de sua lealdade, Hawthorne trouxera suas
medalhas, embrulhadas num pano. Smiley, atenciosamente,
examinou-as.
— É sobre o nosso filho, senhor — disse o velho. — Preciso
lhe perguntar. A pessoa... bem, ela não quer mais saber disso, diz
que é um absurdo. Mas falei com ela que precisava indagar. Mesmo
que o senhor se recuse a me responder, eu disse a ela, não estarei
cumprindo o dever que tenho com meu filho se não indagar por sua
conta.
Smiley não disse nada, mas estou convencido de que seu
sorriso era compreensivo.
— Ken era nosso único filho, Major, por isso é natural —
acrescentou Hawthorne, desculpando-se.
E ainda Smiley deixava que ele se demorasse. Não falei que
Smiley era um bom ouvinte? Era capaz de arrancar respostas a
perguntas que nunca fizera, apenas pela sinceridade da maneira
como escutava.
— Não estamos pedindo segredos, Major. Não estamos
pedindo para saber o que não pode ser conhecido. Mas a Sra.
Hawthorne está debilitada, senhor, e precisa saber se é verdade
antes do desenlace. — Ele preparava a pergunta com precisão. E
agora formulou-a: — Nosso garoto... nosso Ken... estava ou não no
curso do que parecia ser uma carreira criminosa, operando por trás
das linhas inimigas na Rússia? E aqui, pode-se dizer que por uma
vez eu me encontrava à frente de Smiley, quanto menos não fosse
porque depois de cinco anos na Casa da Rússia tinha uma boa
noção das operações que conduzíramos no passado. Senti um
sorriso aflorar a meu rosto, e meu interesse pela história aumentou
ainda mais, se é que isso era possível.
Mas no rosto de Smiley, tenho certeza, nada aflorou. Imagino
suas feições fixadas numa imobilidade de mandarim. Talvez ele
ajeitasse os óculos, que sempre davam a impressão de
pertencerem a um homem maior. E finalmente ele perguntou a
Hawthorne — mas a sério, sem qualquer insinuação de ceticismo —
por que supunha que isso pudesse ocorrer.
— Ken me disse que era, senhor, é por isso. — E ainda nada
por parte de Smiley, exceto uma porta sempre aberta. — A Sra.
Hawthorne não queria visitar Ken na prisão. Eu visitava. Todos os
meses. Ele cumpria uma sentença de cinco anos por lesões físicas
graves, mais três por reincidência.
Tínhamos a DP naquele tempo, a detenção preventiva.
Estamos na cantina da prisão, eu e Ken, sentados a uma mesa. E
de repente Ken aproxima sua cabeça de mim, e me diz em sua voz
baixa típica, "Não volte aqui, papai. É difícil para mim. Não estou
realmente encarcerado aqui, deve compreender. Estou na Rússia.
Tiveram de me trazer de volta, em viagem especial, só para me
mostrarem a você. Trabalho por trás das linhas, mas não conte a
mamãe. Escrevam para mim... isso não é problema, eles remeterão
as cartas. E responderei da mesma forma, como se fosse um
prisioneiro aqui, que é justamente o que finjo ser, porque não há
cobertura melhor do que uma prisão. Mas a verdade, papai, é que
estou servindo ao nosso país, exatamente como você fez quando
estava com os Ratos do Deserto, e é para isso que os melhores de
nós são postos neste mundo." Não fiz mais nenhuma pergunta a
Ken depois disso. Sentia que devia obedecer às ordens. E lhe
escrevi, é claro. Para a prisão. Hawthorne e depois seu número. E
três meses depois ele respondia, no papel da prisão, como se fosse
um garoto diferente me escrevendo a cada vez. Às vezes era uma
carta longa e pesada, como se estivesse com raiva, outras uma
carta curta, como se não dispusesse de tempo. Uma ou outra vez
havia até palavras estrangeiras na carta, palavras que eu não
entendia, quase sempre sublinhadas, como se ele tivesse
dificuldade com sua própria língua. Às vezes ele me fazia uma
insinuação. "Estou com frio mas seguro", dizia. "Na semana
passada fiz um pouco mais de exercício do que precisava", dizia.
Não contei nada à minha esposa, porque ele dissera que eu não
deveria contar. Além do mais, ela não teria acreditado. Quando lhe
oferecia as cartas de Ken, ela as recusava... doíam demais.
Mas quando Ken morreu, fomos até lá e vimos seu corpo todo
retalhado no necrotério da prisão. Vinte punhaladas e ninguém para
culpar. Ela não chorou, ela não chora, mas era como se a tivessem
apunhalado também. E na volta para casa, no ônibus, não pude
mais conter. "Ken é um herói", eu disse a ela. Tentava despertá-la,
porque ela se tornara completamente apática. Segurei-a pela manga
e sacudi-a um pouco, para fazê-la escutar. "Ele não é um
condenado desprezível", afirmei. "Não o nosso Ken. Nunca foi. E
também não foram outros presos que o mataram. Foram os russos
vermelhos." E lhe falei também sobre as abotoaduras. "Ken está
inventando", disse ela. "Como sempre fez. Ele não sabe a diferença,
nunca soube, foi por isso que sempre se meteu em encrencas." Os
interrogadores, como os padres e os médicos, contam com uma
vantagem particular quando se trata de esconder seus sentimentos.
Podem fazer outra pergunta, que é o que eu teria feito.
— Que abotoaduras, Sargento? — indagou Smiley. Posso vê-
lo a baixar as pálpebras compridas e afundar a cabeça no pescoço,
enquanto se preparavam mais uma vez para escutar a história do
velho.
— "Não há medalhas, papai", Ken me diz. "Medalhas não
seriam seguras. Uma medalha implica em notícia e muita gente
saberia. Se não fosse por isso, eu teria uma medalha como você.
Talvez até melhor, para ser franco, como a Victoria Cross, porque
eles exigem o máximo de nós e às vezes ainda mais. Mas se você
faz o trabalho certo, ganha suas abotoaduras, que ficam guardadas
num cofre especial. Uma vez por ano há um grande banquete, num
certo lugar que não tenho permissão para mencionar, com
champagne e garçons que nem dá para você imaginar, com a
presença de todos nós, os homens da Rússia. E vestimos nossos
smokings e pomos as abotoaduras, como um uniforme, só que
secreto. E temos essa festa, com discursos e apertos de mão, como
se fosse uma investidura especial, da mesma forma que você teve
para suas medalhas, eu imagino, neste lugar que não tenho
permissão para mencionar. E quando termina a festa, devolvemos
as abotoaduras. Temos de fazê-lo, por segurança. Assim, se eu
desaparecer, ou alguma coisa me acontecer, basta escrever para o
Serviço Secreto e pedir as abotoaduras do seu Ken. Talvez eles
digam que nunca ouviram falar de mim, talvez perguntem 'Que
abotoaduras?' Mas talvez abram uma exceção por compaixão e
entreguem as abotoaduras, porque às vezes fazem isso. E se
fizerem... você saberá que tudo o que sempre fiz de errado era mais
certo do que pode imaginar. Porque sou o filho de meu pai, até o
fim, e as abotoaduras vão prová-lo. Isso é tudo o que tenho a dizer e
já é mais do que tenho permissão para falar." Smiley perguntou
primeiro pelo nome completo do garoto. E depois pela data de
nascimento. Indagou pela instrução e qualificações, previsivelmente
desoladoras, as duas coisas. Vejo-o com uma atitude compenetrada
e profissional enquanto anota os detalhes: Kenneth Branham
Hawthorne, disse-lhe o velho soldado — Branham era o nome de
solteira da mãe, senhor; às vezes ele o usava para o que
chamavam de seus crimes — nascido em Folkestone, a 14 de julho
de 1946, senhor, doze meses depois que voltei da guerra. Não teria
um filho antes, senhor, embora a esposa o desejasse. Achava que
não era certo. Queria que o nosso garoto fosse criado na paz,
senhor, com pai e mãe vivos para cuidarem dele, Major, o que é o
certo para qualquer criança, eu diria, mesmo que não seja tão
comum como deveria ser.
A tarefa seguinte de Smiley não era tão fácil quanto podia
parecer, independente das improbabilidades da história de Kenneth
Hawthorne. Smiley nunca foi de negar a um bom homem, às vezes
até aos piores, o benefício da dúvida. O Circo naquele tempo não
possuía algo como um índice central e confiável de seus recursos; o
que passava por tal era vergonhosa e muitas vezes
deliberadamente incompleto, pois as unidades rivais guardavam
suas fontes com o maior ciúme e furtavam das vizinhas sempre que
surgia a oportunidade.
É verdade que a história do velho estava repleta de
incongruências. Em termos puristas, era grotesco, por exemplo,
imaginar um grupo de agentes secretos reunindo-se uma vez por
ano para jantar, violando assim a regra mais elementar do "só quem
precisa saber". Mas coisas piores podiam acontecer no mundo sem
lei dos irregulares, como Smiley bem sabia. E foi preciso todos os
seus poderes de engenhosidade e persuasão para se convencer de
que Hawthorne não se encontrava em parte alguma dos livros. Não
como um mensageiro, nem como um acendedor de lampiões, nem
como um caçador de escalpos, nem como um sinaleiro ou qualquer
outro dos amados nomes de ofícios com que essas organizações
furtivas gostam de tornar atraentes seus efetivos.
Depois de esgotar os irregulares, Smiley passou para as
forças armadas, os serviços de segurança e a Polícia Real do
Ulster, qualquer uma das quais poderia ter empregado — se bem
que numa base muito mais modesta do que o garoto descrevera —
um criminoso violento do caráter de Ken Hawthorne.
Pois uma coisa pelo menos parecia certa: a ficha criminal do
garoto era um pesadelo. Seria difícil imaginar um registro mais
sinistro de comportamento persistente e com frequência bestial. À
medida que Smiley conferia a história do garoto, da infância à
adolescência, do reformatório à prisão, parecia não haver qualquer
transgressão, do furto à agressão sádica, que Kenneth Branham
Hawthorne, nascido em Folkestone em 1946, não tivesse cometido.
Até que ao final de uma semana inteira, Smiley parece ter
admitido para si mesmo, com evidente relutância, o que em outra
parte de sua cabeça já devia saber desde o início. Kenneth
Hawthorne, por quaisquer tristes razões, fora um monstro
irrecuperável e contumaz. A morte que ele sofrera, nas mãos dos
outros presos, não era mais do que merecia. Seu passado era
escrito e completo, suas histórias de heroísmo por conta de algum
mítico serviço secreto não passavam do último capítulo em seu
esforço permanente para roubar a glória do pai.
Era meados do inverno. Um fim de tarde horrível, cinzento,
granizo caindo, para se arrastar um velho soldado através de
Londres até uma árida sala de entrevistas em Whitehall. E
Whitehall, na escassa iluminação daquela época, ainda era uma
cidadela em guerra, mesmo que seus canhões estivessem em outra
parte. Era um lugar de austeridade militar, impiedoso e autoritário;
de vozes baixas e janelas escurecidas, passos raros e apressados,
olhos desviados. Smiley também se encontrava na Guerra, não se
esqueçam, mesmo que sentado por trás das linhas alemãs. Posso
ouvir o zumbido da estufa que o Circo aprovara com a maior
relutância, a fim de complementar os falhos aquecedores
ministeriais. Tem o som de um radiotransmissor operado por uma
mão congelada.
Hawthorne não viera sozinho para ouvir a resposta do Major
Nottingham. O velho trouxera a esposa, e posso até lhes dizer como
ela parecia, pois Smiley escreveu a seu respeito no relatório e
minha imaginação há muito que já projetou o resto.
Tinha um corpo doente, encurvado, envolto por seu melhor
traje dominical. Usava um broche no desenho do emblema
regimental do marido. Smiley convidou-a a sentar, mas ela preferiu
se apoiar no braço do marido. Smiley ficou de pé no outro lado da
mesa, a mesma escrivaninha queimada, amarelada, a que eu me
sentara no exílio durante os últimos meses. Vejo-o de pé, quase em
posição de sentido, os ombros arredondados se empertigando de
uma forma que não era habitual, os dedos roliços comprimidos
contra as costuras da calça, ao estilo tradicional do exército.
Ignorando a Sra. Hawthorne, ele dirigiu-se ao velho soldado,
de homem para homem: — Compreende que não tenho
absolutamente nada a lhe contar, Sargento? — Sim, senhor.
— Nunca ouvi falar de seu filho, entende? Kenneth
Hawthorne não é um nome do meu conhecimento, nem de qualquer
dos meus colegas.
— Sim, senhor.
O olhar do velho era fixo, ao estilo de parada militar, por cima
da cabeça de Smiley. Mas a esposa manteve os olhos fixados com
a maior intensidade nos de Smiley, durante todo o tempo, embora
fosse difícil fixá-los através das lentes grossas dos óculos de
George.
— Nunca, em toda a sua vida, ele trabalhou para qualquer
departamento do governo britânico, secreto ou não. Foi um
criminoso comum por toda a sua vida. Nada mais. Absolutamente
nada mais.— Sim, senhor.
— Nego categoricamente que ele jamais tenha sido um
agente secreto a serviço da Coroa.
— Sim, senhor.
— Deve compreender também que não posso responder a
perguntas, não posso dar explicações, e que você nunca mais
tornará a me ver nem será recebido neste prédio.
— Sim, senhor.
— E, finalmente, compreende que não pode falar sobre este
momento a ninguém? Por mais orgulhoso que possa se sentir de
seu filho? Que há outros ainda vivos que devem ser protegidos? —
Sim, senhor. Compreendo perfeitamente, senhor. Abrindo a gaveta
de nossa mesa, Smiley tirou uma caixinha vermelha da Cartier,
entregando-a ao velho e dizendo: — Por acaso encontrei isto em
meu cofre.
O velho passou a caixa para a esposa sem olhar. Com dedos
firmes, ela abriu-a. Lá dentro havia um magnífico par de
abotoaduras de ouro, com uma pequena rosa inglesa discretamente
num canto, gravada à mão, um trabalho excepcional. O marido
ainda não olhava. Talvez não precisasse; talvez não confiasse em si
mesmo. Fechando a caixa, a Sra. Hawthorne abriu sua bolsa e
guardou-a. Tornou a fechar a bolsa, com estalido tão alto que era de
se pensar que batera com a tampa do caixão de seu filho. Escutei a
gravação; também está à espera de destruição.
O velho não disse nada. Os dois sentiam-se muito orgulhosos
para se incomodarem com Smiley ao saírem.
E as abotoaduras?, vocês indagam... de onde Smiley tirou as
abotoaduras? Não obtive a resposta dos arquivos amarelados da
Sala 909, mas da própria Ann Smiley, quase que por acaso, uma
noite, no esplêndido castelo da Cornualha, perto de Saltash, em que
ambos éramos hóspedes. Ann se encontrava sozinha, e mortificada.
Mabel fora participar de um torneio de golfe. Foi muito depois da
história de Bill Haydon, mas Smiley ainda não podia suportar a
proximidade de Ann. Terminado o jantar, os hóspedes dispersaram-
se em grupos, mas Ann permaneceu perto de mim, imaginei que
como um substituto para George. E perguntei-lhe, meio
intuitivamente, se alguma vez dera a George um par de
abotoaduras. Ann sempre se mostrava mais bonita quando estava
sozinha.
— Ah, aquelas abotoaduras... — murmurou ela, como se mal
as lembrasse. — Imagino que está se referindo às que ele deu de
presente ao velho.
Ann explicou que as dera a George no primeiro aniversário de
casamento. Depois da aventura dela com Bill, ele decidira que
poderiam ter um uso melhor.
Mas por que exatamente George decidiu isso?, especulei.
A princípio, parecia bastante claro para mim. Era o ponto
mole de Smiley. O velho guerreiro frio revelava seu coração
desolado.
Como a maioria das coisas de George — talvez.
Ou talvez um ato de vingança contra Ann? Ou contra seu
outro amor infiel, o Circo, numa ocasião em que o Quinto Andar
mantinha-o fora de casa? Pouco a pouco, cheguei a uma teoria um
pouco diferente, que posso muito bem transmitir a vocês, já que
uma coisa é certa, a de que o próprio George nunca vai nos
esclarecer.
Escutando o velho soldado, Smiley reconheceu um daqueles
raros momentos em que o Serviço podia ser de real valor para
pessoas reais. Por uma vez, a mitologia da espionagem seria usada
não para disfarçar mais uma história de incompetência ou traição,
mas para deixar um idoso casal com seus sonhos. Por uma vez,
Smiley podia olhar para uma operação secreta e declarar com
absoluta certeza que fora bem-sucedida.
ONZE
— E ALGUNS INTERROGATÓRIOS não são absolutamente
interrogatórios — disse Smiley, olhando para as chamas dançando
nas achas da lareira — mas sim comunhões entre almas avariadas.
Ele falava sobre seu interrogatório do mestre da espionagem
do Centro Moscou, codinome Karla, cuja deserção conseguira. Para
mim, no entanto, referia-se apenas ao pobre Frewin, de quem, até
onde eu sei, ele nunca ouvira falar.
A carta denunciando Frewin como um espião soviético
chegou à minha mesa na tarde de uma segunda-feira, despachada
na área S.W.l de Londres na sexta-feira, aberta pelo protocolo do
escritório central na manhã de segunda-feira e encaminhada pelo
funcionário de serviço "para o conhecimento do CCI", CCI sendo o
acrônimo insólito de Chefe do Centro de Interrogatório; em outras
palavras, eu, e na opinião de alguns dos antigos "C" devia ser um
"D" — você Descansa em Paz no Centro de Interrogatório. Eram
cinco horas da tarde quando o furgão verde do escritório central
descarregou o seu modesto pacote na Northumberland Avenue; e
no centro, essas intromissões tardias são quase sempre ignoradas
até a manhã seguinte. Mas eu tentava mudar tudo isso e, de
qualquer forma, não tendo mais nada a fazer, abri o envelope
imediatamente.
Dois bilhetes rosas estavam grampeados na carta, cada um
com um nome escrito a lápis. Os bilhetes do escritório central para o
nosso centro sempre tinham o tipo de instruções dirigidas a um
idiota. O primeiro dizia "FREWIN C presumidamente idêntico a
FREWIN Cyril Arthur, funcionário de codificação do Ministério do
Exterior", seguindo-se a referência de investigação positiva de
Frewin e o número da ficha branca, o que era uma maneira
estapafúrdia de me informar que não havia nada registrado contra
ele. O segundo dizia "MODRIAN S presumivelmente idêntico a
MODRIAN Sergei", seguindo-se uma série de referências, que não
perdi tempo em verificar. Depois de cinco anos na Casa da Rússia,
Sergei Modrian era apenas Sergei para mim, como fora para o resto
de nós: o velho Sergei, o astucioso armênio, chefe da equipe
generosamente numerosa do Centro Moscou na embaixada
soviética em Londres.
Se ainda persistia algum desejo de adiar a leitura da carta
para o dia seguinte, o nome de Sergei dissipou-o por completo. A
carta podia ser irrelevante, mas eu jogava em terreno conhecido.
Ao Diretor, Departamento de Segurança, Ministério do
Exterior, Downing Street, SW.
Prezado senhor: Esta é para informá-lo que C. Frewin,
funcionário de codificação do Ministério do Exterior com acesso
constante e regular a Ultrassecreto e Acima, vem mantendo
encontros sub-reptícios com S. Modrian, Primeiro-Secretário na
Embaixada Soviética em Londres, durante os últimos quatro anos, e
não revelando os mesmos em seus depoimentos anuais. Materiais
secretos foram passados. O paradeiro do Sr. Modrian não é mais
conhecido, em vista do fato de que recentemente foi chamado de
volta à União Soviética. O referido Frewin ainda reside em
Chestnuts, Beavor Drive, Sutton, e Modrian esteve presente ali pelo
menos em uma ocasião. C. Frewin está agora levando uma vida
extremamente solitária.
Atenciosamente, a Patriota.
Datilografada em máquina elétrica. Papel branco simples, A4,
sem linha d'água. Datada, excessivamente pontuada, soletrada com
precisão e dobrada de forma impecável. E sem endereço do
remetente. Nunca há.
Não tendo mais nada a fazer naquela noite, tomei dois
scotches em The Sherlock Holmes e depois fui para o escritório
central, sentando na sala de leitura dos arquivos e pedindo as
pastas pertinentes. Na manhã seguinte, às dez horas, o horário de
consultas, ocupei meu lugar na sala de espera de Burr, depois de
primeiro soletrar meu nome para seu especioso assistente pessoal,
que parecia nunca ter ouvido falar de mim. Brock, da Estação
Moscou, encontrava-se à minha frente na fila. Conversamos na
maior animação sobre críquete até que seu nome foi chamado,
conseguindo não nos referir ao fato de que ele trabalhara para mim
na Casa da Rússia, mais recentemente no caso Blair. Dois minutos
depois Peter Guillam apareceu, carregando uma porção de pastas e
parecendo de ressaca. Tornara-se pouco antes o chefe de gabinete
de Burr.
— Não se importa se eu entrar na sua frente, não é mesmo,
meu velho? Fui chamado com urgência. O homem parece esperar
que eu trabalhe até durante o sono. Qual é o seu problema? —
Lepra — respondi.
Não há nenhum outro lugar como o Serviço — exceto talvez
Moscou para se tornar uma não pessoa da noite para o dia. Nas
semanas subsequentes à deserção de Barley Blair, nem mesmo o
antecessor de Burr, o sagaz Clive, fora capaz de manter o equilíbrio
no convés escorregadio do Quinto Andar. A última notícia dele é de
que estava a caminho para assumir o salutar posto de chefe da
Estação Guiana. Somente nosso medroso consultor jurídico, Harry
Palfrey, parecia como sempre ter resistido as mudanças; e quando
entrei na reluzente suíte executiva de Burr, Palfrey esgueirava-se
furtivamente pela outra porta... mas não bastante depressa, por isso
presenteou-me com um sorriso, extasiado. Deixara recentemente
crescer um bigode para demonstrar maior integridade.
— Ned! Maravilhoso! Precisamos almoçar um dia desses! —
balbuciou ele, num sussurro excitado, para logo depois desaparecer
abaixo da superfície.
Como seu escritório, Burr era um homem moderno. Era um
mistério para mim de onde vinha, mas também eu não estava mais
na correnteza. Alguém me dissera que era proveniente da
propaganda, outro do mercado financeiro, e mais outro dos meios
judiciários. Um engraçadinho na sala de correspondência de nosso
centro comentara que ele não vinha de parte alguma: já nascera
assim, recendendo a loção após a barba e talco, em seu terno azul
de executivo, sapatos pretos de verniz, com fivelas nos lados. Era
enorme, flutuante e absurdamente jovem. Pegando-se a sua mão
macia, a pessoa no mesmo instante afrouxava o aperto, com receio
de machucá-la. Ele tinha à sua frente, sobre a escrivaninha de
executivo, a pasta de Frewin, com minha minuta a respeito —
escrita tarde da noite anterior — pregada na capa.
— De onde veio esta carta? — indagou ele, em sua cadência
seca do North Country, antes mesmo que eu me sentasse.
— Não sei. É bem informada. Quem quer que a tenha escrito,
estava a par das coisas.
— Provavelmente o melhor amigo de Frewin — disse Burr,
como se fosse por isso que os melhores amigos são conhecidos.
— Ele conhece as datas certas de Modrian, conhece o
acesso certo de Frewin — comentei. — E conhece a rotina de
verificação positiva.
— Mas não é uma obra de arte, não é mesmo? Não se você
está por dentro. É bem provável que tenha sido um companheiro.
Ou sua garota. O que quer me perguntar? Eu não esperava esse
interrogatório à queima-roupa. Depois de seis meses no centro, não
estava acostumado a que alguém me apressasse.
— Suponho que preciso saber se quer que eu continue a
investigar o caso.
— Porque eu não deveria querer? — É fora da jurisdição
normal do centro. O acesso de Frewin é enorme. Sua seção cuida
de alguns dos mais importantes sinais de tráfego em Whitehall.
Presumi que preferiria passar o caso para o serviço de segurança.
— Por quê? — É a área deles. Se qualquer coisa, é uma
investigação direta de segurança.
— É nossa informação, nosso grito, nossa carta — respondeu
Burr, com uma firmeza que secretamente me entusiasmou.— Eles
que se danem. Quando soubermos o que temos, decidiremos para
onde ir. Aqueles idiotas do outro lado do parque só podem pensar
num processo perfeito para o juiz e uma porção de medalhas para
distribuir. Eu coleto informações para o mercado. Se Frewin é podre,
talvez possamos mantê-lo e virá-lo. Ele pode até nos levar a Irmão
Modrian em Moscou. Quem sabe? Os artistas da segurança jamais
farão isso, com toda certeza.
— Sendo assim, presumivelmente, prefere entregar o caso à
Casa da Rússia — insisti, obstinado.
— Por que eu deveria fazer isso? Eu presumira que seria uma
figura pouco atraente para ele, pois ainda estava na idade de
considerar o fracasso como uma coisa imoral. No entanto, parecia
estar me pedindo para dizer-lhe por que não deveria contar comigo.
— O centro não tem autorização para funcionar em termos
operacionais — expliquei. — Temos autorização para realizar
investigações clandestinas ou dirigir agentes, nenhum mandato para
perseguir suspeitos com o tipo de acesso de Frewin.
não podem grampear o telefone dele? Posso fazer isso, se
me conseguir uma autorização judicial.
— Pode instruir os vigilantes, não é? Já fez isso algumas
vezes, pelo que me disseram.
— Só se autorizar pessoalmente.
— E se eu autorizar? O centro também está incumbido de
efetuar investigações de verificação. Pode vigiá-lo. É bom nisso,
pelo que sei. É uma questão de verificação, certo? E Frewin está no
prazo para ser verificado. Portanto, faça-o.
— Em casos de verificação positiva, o centro é obrigado a
comunicar todas as investigações ao serviço de segurança com
antecedência.
— Presuma que isso está feito.
— Não posso fazê-lo se não tiver por escrito.
— Pode, sim. Não é um burocrata do Serviço. É o grande
Ned. Já violou todas as regras quando precisou, pelo que li. E
também conhece Modrian.
— Não muito bem.
— Até que ponto? — Jantei com ele uma vez e jogamos
squash em outra ocasião. Não se pode dizer que isso significa
conhecê-lo bem.
— Squash onde? — No Landsdowne.
— Como aconteceu? — Modrian nos foi declarado
formalmente como o elo de ligação do Centro Moscou na
embaixada. Tentei fechar um negócio com ele relacionado com
Barley Blair. Uma troca.
— Por que não deu certo? — Barley não queria aceitar. Já
fizera seu acordo. Queria a garota, não a nós.
— Como é o jogo dele? — Astuto.
— Venceu-o? — Venci.
Ele interrompeu seu próprio fluxo, enquanto me avaliava. Era
como ser estudado por um bebê.
— E pode cuidar do caso, não é mesmo? Não está sob muita
pressão? Já fez boas coisas no seu tempo. E ainda por cima tem
um coração, o que é mais do que posso dizer dos capões nesta
organização.
— Por que eu deveria estar sob pressão? Não houve
resposta. Ou não imediata. Ele parecia mastigar alguma coisa logo
atrás dos lábios grossos.
— Quem acredita em casamento hoje em dia, pelo amor de
Deus? — indagou ele. O sotaque regional aumentara. Era como se
tivesse abandonado todo o controle. — Se quer viver com sua
garota, viva com ela é o meu conselho. Já a verificamos, ela não
preocupa ninguém, não é uma lançadora de bomba, uma
simpatizante secreta, ou uma viciada em drogas. Qual é o seu
problema? Ela é uma boa garota, vivendo de uma boa maneira, e
você é um sujeito afortunado. Vai querer o caso ou não? Por um
momento, não fui capaz de dar uma resposta. Não havia nada de
surpreendente em Burr ter conhecimento de minha ligação com
Sally. Em nosso mundo, você põe essas coisas em sua ficha antes
que a ficha ponha em você. Além do mais, eu já suportara a
confissão compulsória com Personnel. Não era isso, mas sim a
capacidade de Burr para a intimidade que me silenciara, a rapidez
com que ele entrara em meus sentimentos.— Se me der cobertura e
os recursos necessários, é claro que aceitarei — acabei
respondendo.
— Pois então comece logo, e mantenha-me informado, mas
não demais... não me venha com rodeios, sempre dê as más
notícias de forma direta. Ele é um homem sem qualidades, o nosso
Cyril. Por acaso já leu Robert Musil? — Receio que não.
Ele estava abrindo com alguma dificuldade a pasta de Frewin.
Digo isso porque suas mãos pálidas davam a impressão de nunca
terem feito qualquer coisa antes: agora vamos descobrir como se
pode abrir esta pasta; agora vamos nos concentrar neste estranho
objeto chamado um lápis.
— Ele não tem hobbies, nenhum interesse declarado além da
música, sem esposa, sem namorada, sem preocupações
financeiras, nem mesmo tem qualquer apetite sexual bizarro, o
pobre coitado. — Burr folheava a pasta enquanto falava. Quando ele
encontrara tempo para lê-la?, perguntei a mim mesmo. Presumi que
fora durante a madrugada. — E como um homem de sua
experiência, cuja função é lidar com a civilização moderna e seus
descontentamentos, poder dispensar a sabedoria de Robert Musil é
uma questão para a qual exigirei uma resposta num momento mais
calmo. — Burr passou a língua no polegar e virou outra página. —
Ele é um de cinco.
— Pensei que fosse filho único.
— Não estou me referindo a irmãos, seu idiota, mas ao
trabalho. Há cinco funcionários em sua melancólica seção de
codificação e Cyril é um deles. Todos cuidam do mesmo material,
todos têm o mesmo ponto, trabalham no mesmo horário, têm os
mesmos pensamentos repulsivos.
Burr fez uma pausa, fitando-me nos olhos, uma coisa que não
fizera antes.
— Se ele é culpado, qual o seu motivo? O autor da carta não
diz. O que é engraçado. Geralmente eles dizem. Tédio... o que acha
disso? Tédio e ganância, são os únicos motivos que restam hoje em
dia. Além de vingança, o que é eterno. — Ele voltou à pasta. —
Notou que Cyril é o único que não é casado? Ele é homossexual. E
daí? Eu também sou, você também é. É apenas uma questão de
quem fica por cima. Já reparou que ele não tem cabelos? Tive um
relance da fotografia de Frewin que ele me acenou, enquanto
continuava a falar. Possuía uma energia assustadora.
— Ainda assim, não é crime, a calvície, como o casamento
também não é. Falo com conhecimento, pois já casei três vezes, e
ainda não acabei. Não é uma denúncia normal, não é mesmo? É
por isso que você está aqui. Essa carta sabe do que está falando.
Acha que foi Modrian quem a escreveu? — Por que ele o faria? —
Estou perguntando, Ned, não tente ser mais esperto do que eu. São
os pensamentos iníquos que me mantêm em movimento. Talvez
Modrian quisesse deixar uma pequena confusão em sua esteira ao
voltar a Moscou. É um diabo insidioso, o Modrian, quando assim
quer. Também já li a seu respeito.
Quando?, tornei a especular. Quando encontrou tempo para
isso? Por outros vinte minutos ele ziguezagueou de um lado para
outro, aventando possibilidades, lançando-as para mim, a fim de
descobrir como voltavam. E quando, finalmente, saí exausto para a
antessala, esbarrei de novo com Peter Guillam.
— Mas quem é Leonard Burr? — perguntei-lhe, ainda
atordoado.
Peter se mostrou atônito por eu não saber.
— Burr? Ora, meu caro, Leonard foi o príncipe herdeiro de
Smiley durante anos. E George salvou-o de um destino pior do que
a morte em Finados.
Sobre Sally, minha namorada extraconjugal do momento, o
que posso lhes dizer? Ela era livre, falava ao cativo em mim. Monica
estivera dentro dos meus muros. Monica era uma mulher do
Serviço, obrigada e não obrigada pelas mesmas regras. Mas para
Sally eu era apenas um servidor civil de meia-idade que esquecera
de se divertir. Era uma designer e uma antiga bailarina, com uma
intensa paixão pelo teatro, achando que o resto da vida era irreal.
Era alta e loura, um tanto sábia, às vezes penso que ela devia me
lembrar Stefanie.
— Encontrá-lo, comandante? — gritou Gorst pelo telefone.
— Quer saber do nosso Cyril? Será um prazer, senhor! O
encontro foi no dia seguinte, numa sala de entrevistas do Ministério
do Exterior. Eu era o Comandante York, outro sinistro oficial de
verificação fazendo uma investigação de rotina. Gorst era o chefe da
Seção de Codificação de Frewin, mais conhecida como o Ianque:
um devasso num terno de bedel, de andar gingado, risonho,
cotovelos espetados para fora e uma boca pequena que se
contorcia como uma minhoca. Ao sentar, puxou as abas do paletó,
como se estivesse se expondo por trás. E depois estendeu uma
perna roliça, como uma corista, antes de largá-la sugestivamente
sobre a coxa da outra.
— Santo Cyril, é assim que chamamos o Sr. Frewin —
anunciou ele, jovialmente. — Não bebe, não fuma, não diz palavrão,
virgem com diploma. Fim da entrevista.
Tirando um cigarro de um maço de dez, ele bateu com a
ponta na unha do polegar, depois umedeceu os lábios com a língua
agitada.
— A música é sua única fraqueza. Adora a ópera. E vai à
ópera sempre, regular como um relógio. Pessoalmente, eu jamais
gostei. Nunca sei se são atores cantando ou cantores
representando. — Ele acendeu o cigarro. Pude sentir o cheiro da
cerveja do almoço em seu bafo. — E também não gosto muito de
mulheres gordas, para ser franco. Ainda mais quando gritam para
mim.
Ele inclinou a cabeça para trás e soprou anéis de fumaça,
saboreando-os como se fossem emblemas de sua autoridade.
— Posso lhe perguntar como Frewin se dá ultimamente com o
resto dos funcionários? — falei, bancando o assalariado honesto,
enquanto virava uma página do meu caderninho de anotações.
— Sem problemas. Às mil maravilhas.
— Arquivistas, escreventes, secretárias... não há problemas
nessa área? — Absolutamente nenhum.
— Vocês sentam todos juntos? — Numa sala enorme e eu
sou o chefe titular.
— E me disse que ele é uma espécie de misógino —
murmurei, sondando.
Gorst soltou uma risada estridente.
— Cyril? Um misógino? Claro que não. Ele apenas odeia as
mulheres. Não fala com elas, nada além de um bom dia. Não
comparece à festa de Natal se pode evitar, a fim de não precisar
beijá-las sob o azevinho. — Ele recruzou as pernas, indicando que
decidira fazer uma declaração. — Cyril Arthur Frewin... Santo Cyril...
é um servidor altamente confiável, eminentemente consciencioso,
totalmente calvo e incrivelmente chato da velha escola. Santo Cyril,
embora meticuloso ao máximo, em minha opinião alcançou seu teto
natural de promoção em sua profissão. Santo Cyril consolidou-se
em seus hábitos. Santo Cyril faz o que faz, cem por cento. Amém.
— Política? — Não em minha casa, obrigado.
— E ele não é esquivo ao trabalho? — Eu disse que era? —
Não, ao contrário, eu citava da ficha. Se há trabalho extra a ser
realizado, Cyril sempre vai arregaçar as mangas, ficar na hora do
almoço, à noite e assim por diante. Isso ainda acontece? Não houve
nenhuma diminuição de seu entusiasmo? — Nosso Cyril está
sempre disponível em todas as horas, para o prazer daqueles que
possuem famílias, esposas ou uma linda Outra Significativa para
voltar. Chega mais cedo, trabalha na hora do almoço, faz o plantão
noturno, exceto nas noites de ópera, é claro. Cyril jamais calcula o
custo. Ultimamente, não posso deixar de admitir, ele tem se
mostrado um pouco menos propenso a bancar o mártir, mas não
resta a menor dúvida de que se trata de uma suspensão dos
serviços apenas temporária. Nosso Cyril também tem suas
pequenas depressões. Quem não tem, sua eminência? — Diria
então que recentemente houve um afrouxamento? — Não em seu
trabalho, nunca. Cyril é o escravo total do trabalho, sempre foi.
Apenas de sua disposição de ser usado pelos colegas mais
humanos. Hoje em dia, bate cinco e meia e Santo Cyril arruma sua
mesa e vai para casa como o resto de nós. Não se oferece, por
exemplo, para substituir o último plantão e permanecer sozinho,
trancado e incomunicável até nove horas da noite, que era o que
costumava fazer.
— Pode fixar uma data para essa mudança de hábito? —
indaguei, com todo o desinteresse que podia demonstrar, virando
zeloso outra página do caderninho de anotações.
Por mais curioso que possa parecer, Gorst podia. Contraiu os
lábios. Franziu o rosto. Alteou as sobrancelhas femininas, comprimiu
a papada contra o colarinho encardido da camisa. Fez uma vasta
ostentação de ruminação. E acabou se lembrando.
— A última vez em que Cyril Frewin fez o turno da noite do
jovem Burton foi no dia 24 de junho. Mantenho um registro.
Segurança. Também tenho uma memória excelente, que nem
sempre me interesso em revelar.
Eu me sentia secretamente impressionado, mas não com
Gorst. Três dias depois que Modrian deixara Londres e retornara a
Moscou, Cyril Frewin deixara de trabalhar até tarde, eu estava
pensando. Tinha outras perguntas que clamavam para serem
formuladas. O Tanque contava com máquinas de escrever elétricas?
Os técnicos em codificação tinham acesso a essas máquinas? Oorst
tinha? Mas receava despertar as suspeitas dele.
— Mencionou o amor pela ópera — lembrei. — Poderia me
falar um pouco mais a respeito? — Não, não posso, pois não
recebemos relatos minuciosos, e não pedimos. Mas ele sempre
aparece com um terno escuro bem passado nos seus dias de ópera,
se não mesmo leva seu smoking numa valise. Além disso, irradia o
que só posso descrever como um estado de alto excitamento,
embora controlado, um tanto similar a outras formas de expectativa,
que não mencionarei.
— Mas ele tem uma poltrona permanente, por exemplo? Uma
assinatura? É uma informação apenas para o registro. Como disse,
ele é um tanto carente de outros passatempos relaxantes.
— Como acho que já lhe disse, excelência, eu e a ópera,
infelizmente, não fomos feitos um para o outro. Ponha "aficionado
por ópera" em seu formulário e estará coberto em matéria de
passatempo relaxante, esse é o meu conselho.
— Obrigado. Farei isso. — Virei outra página. — E ele
realmente não tem inimigos, ao que possa lembrar? Mantive o lápis
suspenso sobre o papel, Gorst ficou furioso. O efeito da cerveja
começava a passar.
— Todos riem de Cyril, Comandante. Mas ele aceita de bom
grado. Cyril não é detestado.
— Ninguém que falasse mal dele, por exemplo? — Não posso
pensar em um único motivo para que alguém falasse mal de Cyril
Arthur Frewin. O servidor civil britânico, ele pode ser taciturno, mas
não é maldoso. Cyril cumpre o seu dever, como todos nós. Temos
um navio feliz. Eu não me importaria se anotasse isso também.
— Aposto que ele foi a Salzburgo para o Natal este ano. E
nos anteriores também, não é? — Correto. Cyril sempre tira a sua
licença no Natal. Vai a Salzburgo, ouve sua música. É o único ponto
em que não fará qualquer concessão ao resto do Tanque. Há alguns
jovens que tentam protestar, mas eu não permito. "Cyril compensa
por outros meios", digo a eles. "Cyril tem sua antiguidade, adora a
viagem a Salzburgo para sua música, tem as suas manias, e é
assim que vai continuar." — Ele deixa algum endereço onde possam
localizá-lo quando viaja? Gorst não sabia, mas a meu pedido
telefonou para seu departamento de pessoal e obteve-o. O mesmo
hotel, nos últimos quatro anos. Ele vem se encontrando com
Modrian também há quatro anos, pensei recordando a carta. Quatro
anos de Salzburgo, quatro anos de Modrian, terminando numa vida
extremamente solitária.
— Sabe me dizer se ele costumava ir com algum amigo? —
Cyril nunca teve um amigo em toda a sua vida, Comandante. —
Gorst bocejou. — Ninguém que levaria em suas férias, com toda
certeza. Vamos almoçar na próxima vez? Disseram-me que vocês
têm uma generosa verba para as despesas, quando querem
agradar alguém.
— Ele fala sobre as viagens a Salzburgo quando volta? A
diversão que teve... a música que ouviu... alguma coisa assim?
Graças a Sally, eu suponho, acabara de aprender que as pessoas
podem se divertir. Depois de uma breve ostentação de que
procurava se lembrar, Gorst sacudiu a cabeça.
— Se Ciryl se diverte, Comandante, é algo muito, muito
particular — comentou ele, com um derradeiro sorriso.
Essa não era absolutamente a ideia de diversão de Sally.
Providenciei de minha sala uma linha segura para Viena e
falei com Toby Esterhase, que com seu infinito talento para a
sobrevivência fora promovido recentemente a chefe de Estação.
— Quero que verifique o Weisse Rose em Salzburgo para
mim, Toby. Cyril Frewin, súdito britânico. Esteve lá em cada Natal
dos últimos quatro anos. Quero saber quando chegou, quanto
tempo ficou, com quem, o valor das notas e o que andou fazendo.
Ingressos para concertos, excursões, refeições, mulheres, rapazes,
celebrações... qualquer coisa que você puder descobrir. Mas não
desperte a curiosidade local, o que quer que faça. Apresente-se
como um agente de divórcio ou algo parecido.
Toby mostrou-se previsivelmente consternado.
— Ora, Ned, isso é completamente impossível. Estou em
Viena, entende? Salzburgo fica no outro lado do planeta. Esta
cidade fervilha como uma colmeia. Preciso de mais gente, Ned.
Diga isso a Burr. Ele não compreende as pressões aqui. Arrume-me
mais dois homens, faremos qualquer coisa que quiser, sem
problemas. Sinto muito.
Ele pediu uma semana. Eu disse três dias. Ele prometeu que
se empenharia ao máximo e acreditei. Toby comentou que ouvira o
rumor de que Mabel e eu havíamos nos separado. Neguei.
Desde que posso me lembrar, os vigilantes sentem-se mais à
vontade em casas condenadas, perto de percursos de ônibus e do
aeroporto. A escolha de Monty para seu quartel-general era um
inauspicioso palazzo edwardiano em Baron's Court. Do vestíbulo
ladrilhado, uma escada de pedra subia imponente por cinco andares
inconfortáveis até uma claraboia de vitral. Enquanto eu subia, portas
se abriam e fechavam, como uma farsa francesa, os estranhos
ocupantes, em estágios diversos de se despirem, circulavam
apressados de quartos de troca de roupa para o café e salas de
instruções, os olhos desviando-se do forasteiro. Cheguei a uma
mansarda que fora outrora o estúdio de um pintor. Em algum lugar,
quatro mulheres jogavam pingue-pongue ruidosamente. Mais perto,
duas vozes de homem entoavam "Jerusalém" de Blake debaixo do
chuveiro.
Há muito tempo que eu não via Monty, mas nem os anos nem
sua promoção a Vigilante-Chefe haviam-no envelhecido. Uns
poucos fios brancos, ângulos mais definidos nas faces encovadas.
Não era um conversador natural, e por algum tempo ficamos
sentados em silêncio, tomando o chá.
— Frewin, então — disse ele finalmente.
— Frewin — confirmei.Como um atirador, Monty tinha um jeito
de criar uma área de silêncio ao seu redor.
— Frewin é esquisito, Ned. Não está sendo normal. É claro
que não sabemos o que é normal, não para Cyril, não além do que
você ouve os outros falarem e coisas assim. Carteiro, leiteiro,
vizinhos, o de sempre. Todos falam para uma faxineira que limpa as
janelas, você ficaria espantado. Ou um técnico da telefônica que
está enfronhado numa caixa. Seja como for, só estamos em cima
dele há dois dias.
Com Monty, quando ele se punha a falar assim, você apenas
aguçava os ouvidos e esperava.
— E as noites, é claro — acrescentou ele. — Se contar as
noites. Cyril não tem dormido, isso é certo. Passa a maior parte do
tempo a andar de um lado para outro, a julgar por suas janelas e
pelas xícaras de chá na manhã seguinte. E sua música. Uma das
vizinhas está pensando em apresentar uma queixa. Ela nunca fez
isso antes, mas pode fazer agora. "O que deu nele?", diz ela.
"Handel ao desjejum é uma coisa, mas Handel às três horas da
madrugada é outra muito diferente." Ela acha que Cyril está
mudando. Diz que os homens ficam assim na idade dele, da mesma
forma que as mulheres. Nada sabemos sobre isso, não é mesmo?
Sorri. E continuei a esperar.
— Mas ela sabe — comentou Monty, pensativo. — Seu velho
foi embora com uma professora. Ela nem mesmo tem certeza se o
aceitará de volta. Quase estuprou o nosso garoto bonito que foi ler o
relógio de luz. Ahn... como está Mabel? Especulei se ele também
ouvira o rumor; mas concluí que se isso tivesse acontecido, Monty
não me faria a pergunta.
— Muito bem.
— Cyril costumava levar um jornal no trem. O Telegraph, nem
precisa perguntar. Mas não compra mais um jornal. Apenas senta.
Senta e olha. Isso é tudo o que ele faz. Nosso homem teve de
cutucá-lo ontem, quando pararam em Victoria. Ele se perdera num
devaneio. Voltando para casa ontem à noite, ele deixou cair da
pasta toda a partitura de uma ópera. Nancy diz que era Vivaldi.
Imagino que ela sabe dessas coisas. Lembra de Pauli Skoderno?
Eu disse que sim. As divagações eram parte do estilo de Monty. Por
exemplo, "Como está Mabel?" — Pauli está cumprindo sete anos
em Barbados por assaltar um banco. O que acontece com eles,
Ned? Pauli nunca pôs um pé fora da linha enquanto era vigilante.
Nunca se atrasava, nunca exagerava nas despesas, excelente
memória, excelentes olhos, um ótimo faro. E como fazíamos
arrombamentos. Londres, o interior, a turma dos direitos civis, o
pessoal do desarmamento, o Partido, os diplomatas escusos...
cuidávamos de todo mundo. Pauli alguma vez foi mal falado? Nem
uma única vez. Mas no momento em que passa para a vida privada,
torna-se o homem dos dedos leves, ainda por cima se gaba ao
homem sentado ao seu lado no bar. Acho que eles querem ser
apanhados, Ned, essa é a minha opinião. Creio que é o desejo de
reconhecimento, depois de tantos anos sendo ninguém.
Ele tomou um gole do chá.
— Cyril tem outra paixão, além da música, é o seu rádio.
Adora seu rádio. Apenas receptor, diga-se de passagem, até onde
podemos saber. Mas ele tem um desses aparelhos alemães de luxo,
com a melhor sintonia e alto-falantes para seus concertos. Não
comprou aqui, porque quando apresentou um defeito a oficina local
teve de mandar para Wiesbaden. Levou três meses, custou uma
fortuna. Ele não dirige um carro. Faz compras de ônibus, nas
manhãs de sábado, é do tipo que fica sempre em casa, exceto pelo
Natal em Salzburgo. Não tem bichos de estimação, não se envolve
com os vizinhos. Receber alguém em casa, nem pensar. Não tem
hóspedes, nem inquilinos, não recebe correspondência, exceto as
contas, paga tudo em dia, não vota, não vai à igreja, não tem um
aparelho de televisão. A faxineira diz que lê muito, principalmente
livros grandes. Ela só vai uma vez por semana, geralmente quando
ele não está em casa, e não ousamos pressioná-la mais. Um livro
grande para ela é qualquer coisa maior que um panfleto de estudo
da Bíblia, As contas de telefone de Cyril são modestas, ele tem seis
mil libras investidas numa empresa construtora, a casa é própria, a
conta bancária é bem administrada, variando entre seiscentas e mil
e quatrocentas libras, exceto na época do Natal, quando o saldo
baixa para duzentos, por causa de suas férias.
O senso de etiqueta de Monty exigiu outro desvio, desta vez
para discutir nossos filhos. Meu filho Adrian acabara de ganhar uma
bolsa para línguas modernas em Cambridge, informei. Monty ficou
bastante impressionado. Seu único filho acabara de ser aprovado no
exame para advogado com distinção. Concordamos que os filhos
faziam com que a vida valesse à pena.
— Modrian — falei, depois que as formalidades foram
encerradas de novo. — Sergei.
— Lembro muito bem do cavalheiro, Ned. Todos nos
lembramos. Costumávamos segui-lo 24 horas por dia. A não ser no
Natal, é claro, quando ele voltava para sua terra em férias... Ei! Está
pensando o que eu estou pensando? Todos saímos de férias no
Natal? — Passou por minha cabeça.
— Nem nos dávamos ao trabalho de fingir com Modrian, não
depois de algum tempo, seria impossível. Mas ele era um bocado
escorregadio. Tive vontade às vezes de lhe dar uma surra, juro que
tive. Pauli Skoderno ficou tão furioso com ele em uma ocasião que
arriou seus pneus diante do Museu Victoria e Albert, enquanto
Modrian se encontrava lá dentro, recolhendo uma mensagem.
Nunca relatei isso, não tive coragem.
— Não estou certo ao pensar que Modrian também era um
aficionado por ópera, Monty? Os olhos de Monty se arregalaram e
desfrutei o prazer raro de vê-lo surpreso.
— Por Deus, Ned, é isso mesmo! Claro que você está certo.
Sergei era um assinante de Covent Garden... exatamente, assim
como Cyril. Devemos tê-lo acompanhado até lá... ora, pelo menos
uma dúzia de vezes. Ele poderia usar um táxi, se tivesse um mínimo
de misericórdia, mas nunca o fazia. Gostava de nos deixar
desesperados no tráfego.
— Se pudéssemos determinar as apresentações a que ele
compareceu, e onde sentou... se você pudesse descobrir isso...
poderíamos comparar com a frequência de Frewin.
Monty caiu num silêncio teatral. Franziu o rosto, depois coçou
a cabeça.
— Não acha que tudo isso está um pouco fácil para nós,
Ned? Fico desconfiado quando tudo parece se ajustar num padrão
certinho.
Na noite anterior, Sally me dissera: — Não serei parte de seus
padrões. Os padrões existem para serem rompidos.— Ele canta,
Ned — murmurou Mary Lasselles, enquanto arrumava minhas
tulipas brancas num pote de picles. — Ele canta durante todo o
tempo. Noite e dia, não faz diferença. Acho que perdeu sua
vocação.
Mary era tão pálida quanto uma enfermeira noturna e
igualmente dedicada. Uma virtude luminosa iluminava o rosto sem
maquilagem e faiscava nos olhos claros. Uma mecha branca, como
a marca da viuvez prematura, encimava os cabelos cortados curtos.
Entre os muitos ofícios que constituem o mundo secreto,
nenhum exige tanta devoção quanto a irmandade das ouvintes. Só
as mulheres são capazes desse matrimônio arrebatado com o
destino dos outros. Condenadas a porões sem janelas, envoltas por
cabos cinzentos e bancos degravadores ao estilo russo, ocupam
uma região inferior, povoada por vidas ausentes, que conhecem
mais intimamente do que a de seus parentes ou amigos mais
íntimos. Nunca veem suas presas, nunca se encontram
pessoalmente, nunca as tocam nem dormem com elas. Contudo,
toda a força de suas personalidades irradia-se para esses amores
secretos. Através de microfones e telefones, escutam-nos adular,
chorar, fumar, comer, discutir e acasalar. Escutam-nos cozinhar,
arrotar, roncar e se preocupar. Suportam seus filhos, parentes afins
e babás sem se queixam, assim como seus gostos em televisão.
Hoje em dia, até viajam com eles em carros, acompanham-nos nas
compras, sentam a seu lado em cafés e salões de bingo. São as
partilhadoras secretas do ofício.
Passando-me um par de fones, Mary ajustou os seus e,
cruzando as mãos sob o queixo, fechou os olhos para escutar
melhor. Foi assim que ouvi pela Primeira vez a voz de Cyril Frewin,
cantando uma ária de Turandot, enquanto Mary Lasselles, de olhos
fechados, sorria em encantamento. A voz era suave e parecia, aos
meus ouvidos leigos, tão agradável quanto era obviamente para
Mary.
E de repente me empertiguei na cadeira. A cantoria cessara.
Ouvi uma voz de mulher ao fundo, depois a de um homem... e
ambos falando em russo.
— Mas o que é isso, Mary?
— Os professores dele, querido. Olga e Bóris, da Rádio
Moscou, cinco dias por semana, às seis horas da manhã em ponto.
Esta é da manhã de ontem.
— Quer dizer que ele está aprendendo russo!
— Ele escuta, querido. Mas quanto entra em sua cabecinha,
ninguém sabe. Todas as manhãs, às seis em ponto, Cyril ouve Bóris
e Olga. Eles estão visitando o Kremlin hoje. Ontem fizeram compras
na Gum.
Ouvi Frewin murmurar de forma ininteligível no banho, ouvi-o
gritar "Mamãe!" à noite, enquanto se remexia na cama, irrequieto.
FREWIN Ella, lembrei, mãe de FREWIN Cyril Arthur, e nunca
entendi por que Arquivo faz questão de abrir fichas pessoais para os
parentes mortos de suspeitos de espionagem.
Escutei-o discutir com o pessoal do departamento de reparos
da telefônica, depois de esperar os vinte minutos regulamentares
para ser completada a ligação. Sua voz era nervosa, cheia de
ênfases inesperadas.
— Ora, na próxima vez em que resolverem descobrir um
defeito em minha linha, eu ficaria bastante grato se gentilmente me
informassem como assinante, antes de entrarem em minha casa
quando a faxineira por acaso se encontra lá, deixando fragmentos
de fios no tapete e marcas de botinas no chão da cozinha...
Escutei-o telefonar para o teatro de ópera de Covent Garden
para avisar que não retiraria o seu ingresso de assinatura naquela
sexta-feira. Desta vez o tom era de autocompaixão. Ele explicou que
estava doente. A gentil senhora no outro lado da linha disse que
lamentava muito.
Escutei-o falar com o açougueiro na expectativa de minha
visita, que o departamento de pessoal do Ministério do Exterior
marcara para a manhã seguinte, em sua casa.
— Sr. Steele, aqui é o Sr. Cyril Frewin. Bom dia. Não poderei
ir até aí no sábado, porque terei uma reunião em minha casa. Por
isso, ficaria grato se pudesse fazer a gentileza de me entregar
quatro boas costeletas de carneiro, no final da tarde de sexta-feira,
ao passar por aqui, a caminho de sua casa. É possível, Sr. Steele?
Quero também um pote de seu molho de menta já pronto. Não,
ainda tenho geleia de groselha, mas obrigado. É pode anexar a
conta, por favor? Para meus ouvidos superaguçados, ele parecia
um homem preparando-se para abandonar o navio.
— Quero ouvir o pessoal do reparo de novo, Mary.Depois de
escutar mais duas vezes o tom dogmático de Cyril a se queixar da
telefônica, dei um beijo distraído em Mary e saí para o ar noturno.
Sally dissera "Apareça", mas eu não sentia o menor ânimo de
passar uma noite lhe declarando amor e ouvindo uma música que
secretamente detestava.
Voltei ao centro. Os laboratórios do Serviço haviam
completado o exame da carta anônima. Uma máquina Markus,
modelo tal e tal, provavelmente de fabricação belga, nova ou pouco
usada, era o máximo que podiam sugerir. Achavam que seriam
capazes de identificar outro documento saído da mesma máquina.
Eu poderia obtê-lo? Fim do relatório. Os laboratórios ainda tinham
dificuldades com as características da nova geração de máquinas.
Telefonei para Monty em sua toca em Baron's Court. A queixa
de Frewin à telefônica ainda ressoava em meus ouvidos: suas
pausas, como vírgulas antinaturais, o hábito de empregar uma
palavra improvável para alcançar a ênfase vingativa.
— Seu pessoal por acaso notou uma máquina de escrever na
casa de Cyril, Monty, enquanto gentilmente consertavam o telefone?
— Não, Ned. Não havia nenhuma máquina de escrever, Ned...
nenhuma que vissem, digamos assim.
— Mas poderia ter deixado de percebê-la? — Com a maior
facilidade, Ned. Foi tudo na surdina apenas. Nada de abrir mesas ou
armários, nada de fotografar, nem muita intimidade com a faxineira,
caso contrário ela ficaria preocupada depois. Foi tudo na base de
"Vejam o que podem fazer, saiam depressa, e deixem alguma
sujeira para trás, se não ele pode farejar um rato".
Pensei em telefonar para Burr, mas não o fiz. A
possessividade de meu superior estava se tornando evidente, e eu
não tinha a menor intenção de partilhar Frewin com ninguém, nem
mesmo com o homem que o confiara a mim. Uma centena de fios
retorcidos passavam por minha cabeça, de Modrian a Gorst, Bóris e
Olga, Natal, Salzburgo e Sally. Ao final, escrevi um relatório para
Burr, omitindo a maior parte do que já descobrira e confirmando que
"efetuaria um primeiro reconhecimento" de Frewin na manhã
seguinte, ao entrevistá-lo para sua verificação de rotina.Ir para
casa? Ir para Sally? Casa era um detestável apart-service em St.
James's, onde eu deveria fazer uma definição pessoal. .. embora
isso seja a última coisa que um homem faz quando senta sozinho
com uma garrafa de scotch e uma reprodução do quadro "O
Cavaleiro Risonho", vacilando entre os sonhos de liberdade e seu
vício em tudo aquilo que o mantém prisioneiro. Sally era minha Vida
Alternativa, mas eu já sabia que era muito empedernido para pular o
muro e alcançá-la.
Assim, preferi permanecer no escritório. Peguei uma garrafa
de uísque no cofre e dei uma olhada na ficha de Modrian. Não me
disse nada que eu já não soubesse, mas queria-o no primeiro plano
de minha cabeça. Sergei Modrian, experiente e comprovado
profissional do Centro Moscou. Um homem encantador, grande
dançarino, fácil para conquistar amizades, um sorridente armênio
com uma língua insinuante. Eu gostara dele. Ele gostara de mim.
Em nossa profissão, como não podemos gostar de ninguém além de
um certo ponto, podemos perdoar muita coisa pelo charme.
O telefone direto começou a tocar. Pensei por um momento
que era Sally, pois lhe dera o número, apesar dos regulamentos
proibirem. Era Toby, porém, e parecia bastante satisfeito consigo
mesmo. O que era habitual. Não mencionou Frewin pelo nome. Não
mencionou Salzburgo. Calculei que ligava de seu apartamento, e
tive a noção de que se encontrava na cama — e não estava
sozinho.
— Ned? Seu homem é uma piada. Reserva um quarto
simples por duas semanas, chega ao hotel, paga as duas semanas
adiantadas, dá aos empregados a gratificação de Natal, afaga as
crianças, mostra-se simpático com todo mundo. Na manhã seguinte
desaparece. É o que acontece todos os anos. Está me ouvindo,
Ned? O sujeito é maluco. Não dá nenhum telefonema, uma refeição,
dois apfelsaft, nenhuma explicação, pega o táxi e vai para a
estação. Mantenham meu quarto, não o aluguem para ninguém,
talvez eu volte amanhã, talvez dentro de poucos dias, não sei. Ele
volta depois de doze dias, sem explicações, dá mais gorjetas aos
empregados, todos ficam felizes como pagãos. Chamam-no de "o
fantasma". Ned, você precisa conversar com Burr para mim. Está
me devendo agora. Toby está trabalhando demais, diga a ele. Um
velho astro como você, um jovem como Burr, ele vai escutá-lo, não
custa tentar. Preciso de outro homem por aqui, talvez dois. Fale com
ele, está bem, Ned? Fiquei olhando para a parede, igual ao muro
que eu não era capaz de escalar? Olhei para a ficha de Modrian,
lembrei o comentário de Monty sobre o excesso de facilidade. E de
repente senti um profundo anseio por Sally, tive a vaga noção de
que se solucionasse o mistério de Frewin poderia converter os
acessos recorrentes por liberdade num único e ousado salto. Mas
quando estendi a mão para o telefone, a fim de falar com ela, a
campainha tocou outra vez.
— Ajustam-se — anunciou Monty, em voz incisiva. Ele
conseguira verificar a frequência de Frewin na ópera. — É Sergei e
Cyril em todas as ocasiões. Quando um vai, o outro também vai.
Quando um não vai, o outro também não vai. Talvez seja por isso
que ele não vai mais. Entendeu?
— E as poltronas?
— Lado a lado, querido. O que esperava? Um na frente e o
outro atrás?
— Obrigado, Monty.
Tenho de lhes contar como passei aquela noite interminável?
Nunca telefonaram para seu próprio filho, escutaram suas
zombarias infelizes e tiveram de se lembrar que ele lhes pertencia?
Nunca conversaram francamente com uma esposa compreensiva
sobre suas inadequações, sem terem a menor ideia de quais eram?
Nunca procuraram uma amante, proclamaram "eu amo você" e
permaneceram como um espectador perplexo da imperturbável
satisfação dela, antes de deixá-la mais uma vez, e percorrer as ruas
de Londres como se fosse uma cidade estranha? Nunca, entre
todos os outros sons do amanhecer, fixaram-se na risada de uma
pega, que persiste pelo resto da vida, enquanto deita de olhos
abertos no horror de uma cama de solteiro? Cheguei à casa de
Frewin às nove e meia, tendo me vestido da maneira mais insípida
possível, o que devia ser insípido demais, pois nunca fui de me
vestir com elegância mesmo nas melhores ocasiões, embora Sally
tenha algumas ideias assustadoras sobre a maneira como pode
melhorar o meu estilo. Frewin e eu marcáramos dez horas, mas eu
disse a mim mesmo que queria contar com o elemento de surpresa.
Talvez a verdade fosse a de que eu precisava da companhia dele.
Um furgão do correio se encontrava estacionado na rua, mais
adiante. Um caminhão com uma antena grande estava mais além,
informando que os homens de Monty mantinham-se em seus
postos.
Esqueci qual era o mês, mas lembro que era outono, tanto em
minha vida particular quanto no meticuloso beco sem saída de
casas de alvenaria. Pois vejo um disco de sol branco por trás dos
castanheiros podados que davam nome ao lugar, sinto até hoje o
cheiro de lenha ardendo e o ar do outono em minhas narinas,
exortando-me a deixar Londres, deixar o Serviço, partir para Sally e
o mundo real. E lembro da algazarra de passarinhos ao alçarem voo
da linha telefônica de Frewin, a caminho de algum lugar melhor. E
um gato no jardim ao lado erguendo-se sobre as patas traseiras
para abocanhar uma sonolenta borboleta.
Abri o portão do jardim e avancei ruidosamente pelo
impecável caminho de cascalho para a casa meio geminada dos
Sete Anões, com suas janelas de garrafa de vidro e pórtico e
varanda coberta de colmo. Estendi a mão para a campainha, mas a
porta da frente abriu-se antes que tocasse. Era toda acanelada e
coberta com falsos tachões de carruagem, abriu-se como se fosse
arrombada pela explosão de uma bomba na rua, quase me sugando
em sua esteira para o vestíbulo de lajotas escuras. E no instante
seguinte a porta parou, com Frewin postado ao lado, um centurião
calvo em sua casa ameaçada.
Ele era mais alto do que eu imaginara. Os ombros largos
pareciam preparados para resistir ao meu ataque, os olhos fixavam-
se em mim com uma hostilidade assustada. Contudo, mesmo
naquele primeiro momento da confrontação, não senti nele um
competidor à altura, apenas uma espécie de vulnerabilidade
heroica, tornada trágica por sua corpulência. Entrei em sua casa, e
sabia que ingressava num hospício. Soubera-o durante a noite
inteira. Em desespero, descobrimos uma afinidade natural com os
loucos. Há muito tempo que eu sabia disso.
— Comandante York? Claro, claro, é um prazer. Seja bem-
vindo. O departamento de pessoal em sua gentileza avisou-me que
viria. Nem sempre avisam. Mas desta vez avisaram. Tem um dever
a cumprir, Comandante, assim como eu tenho o meu.As mãos
enormes e úmidas levantaram-se para meu casaco, mas pareciam
incapazes de pegá-lo. Por isso, pairaram em torno de meu pescoço,
como se estivessem prontas para me estrangular ou enlaçar,
enquanto ele continuava a falar: — Estamos todos no mesmo lado e
não pode haver ressentimento, é o que sempre digo. Comparo o
seu trabalho à segurança do aeroporto, pessoalmente, são os
mesmos parâmetros. Se não revistarem a mim, também não
revistarão os vilões, não é mesmo? É a maneira lógica de se
encarar a questão, em minha opinião.
Só Deus sabe que original perdido ele pensava copiar
enquanto me lançava essas palavras previamente preparadas, mas
pelo menos serviram para libertá-lo de sua paralisia. As mãos
desceram para o meu casaco e ajudaram-me a removê-lo. Ainda
posso sentir a reverência com que o fizeram, como se revelando
algo excitante para os dois.
— Quer dizer que costuma andar de avião com frequência,
Sr. Frewin? — indaguei.
Ele pendurou meu casaco num cabide. Esperei por uma
resposta, mas não houve nenhuma. Eu pensava na sua viagem de
avião para Salzburgo, e especulei se ele também, se sua
consciência cometia uma indiscrição na tensão de minha chegada.
Ele seguiu na minha frente para a sala de estar, onde à claridade
que entrava pela janela curva e saliente pude examiná-lo à vontade,
pois ele já se ocupava com o próximo item de sua hospitalidade
aflita: desta vez uma cafeteira elétrica já preparada, mas ainda não
ligada... eu queria com leite ou açúcar, se não ambos, Comandante?
E o leite, Comandante, prefere frio ou quente? E não gostaria
também de um biscoito feito em casa, Comandante? — É você
mesmo quem o faz? — perguntei, enquanto tirava um biscoito de
um jarro.
— Qualquer tolo capaz de ler uma receita pode fazer —
respondeu Frewin, com um caótico sorriso de superioridade, o que
me permitiu perceber logo de saída por que Gorst tanto o detestava.
— Pois eu sei ler, mas não sou capaz de cozinhar —
comentei, balançando a cabeça com uma expressão pesarosa.
— Qual é o seu primeiro nome, Comandante?
— Ned.
— Isso acontece, Ned, imagino, porque é casado. Sua
esposa privou-o da autossuficiência. Já vi acontecer com frequência
ao longo de minha vida. A esposa entra em cena, a independência
sai. Sou Cyril.
E está se esquivando à minha pergunta sobre viagens
aéreas, pensei, recusando-me a permitir-lhe aquela incursão
tentada por meu território particular.
— Se eu dirigisse este país — anunciou Frewin, por cima do
ombro, enquanto servia o café — e me sinto satisfeito em dizer que
nunca terei a oportunidade de fazê-lo... — A voz adquiria o tom
didático de sua conversa com o pessoal da telefônica. -.. .faria uma
lei absoluta, obrigando a todos, independente de cor, sexo ou credo,
a aprenderem a cozinhar, como uma disciplina obrigatória na escola.
— Boa ideia — murmurei, aceitando a caneca com café.
— Daria bons resultados.
Servi-me de açúcar do pote amarelo, que se aninhava como
um míssil em sua mão úmida. Ele se virara para mim por completo,
tudo ao mesmo tempo, ombros, cintura e cabeça, juntos. Os olhos,
sem qualquer proteção, fitavam-me com uma inocência radiante e
afetuosa.
— Pratica algum jogo, Ned? — perguntou ele, suavemente,
inclinando a cabeça para um lado, a fim de alcançar uma
confidencialidade adicional.
— Um pouco de golfe, Cyril — menti. — E você?
— Algum hobby, Ned?
— Gosto de fazer uma aquarela quando estou de férias —
respondi, outra vez tomando emprestado de Mabel.
— Tem um carro, Ned? Imagino que vocês são hábeis
motoristas, não é mesmo?
— Tenho apenas um velho Rover.
— De que ano? E de que tipo, Ned? Há muitas boas melodias
que se pode tocar numa velha rabeca, como dizem.
Sua energia não se encontrava apenas em sua pessoa,
compreendi, enquanto lhe oferecia a primeira data que me ocorreu;
derramava-se para cada objeto que entrava em sua esfera de
influência. Nos cavalos de latão que brilhavam como emblemas em
quepes militares de tão polidos. Na grade da lareira polida, no
assoalho de madeira e na superfície reluzente da mesa de jantar.
Na própria poltrona em que eu sentava agora, tomando
mansamente o café, os braços cobertos por proteções de linho tão
bem passadas e impecáveis que eu relutava em pôr as mãos em
cima. E compreendi sem que Cyril me dissesse que, com ou sem
faxineira, ele cuidava de todas aquelas coisas, era seu servo e
ditador, no reino de sua ilimitada energia desperdiçada.
— Onde mora, Ned?
— Eu? Ahn... em Londres.
— Que parte de Londres, Ned? Que distrito? Em algum bairro
elegante, ou precisa ser um pouco anônimo para o seu trabalho?
— Lamento, mas não tenho permissão para revelar isso.
— E nasceu em Londres? Eu nasci em Hastings.
— Uma comunidade suburbana. Sabe como é. Pinner, por
exemplo.
— Sei que deve manter sua discrição, Ned. Sempre. Sua
discrição é sua dignidade. Não deixe que ninguém a tire. É sua
integridade profissional, a discrição. Lembre-se disso. Pode se
tornar conveniente.
— Obrigado — murmurei, simulando uma risada acanhada. —
Não esquecerei.
Ele se alimentava de mim com os olhos. Lembrou-me minha
cadela Lizzie, quando me observa à procura de um sinal — sem
piscar, o corpo pronto para entrar em ação.
— Vamos começar, Ned? E quer começar informalmente?
Assim que for oficial, basta me dizer: "Cyril, a luz vermelha está
acesa." Isso é tudo o que tem a dizer.
Ri de novo, balançando a cabeça, como a dizer que ele era
um número.
— É apenas uma rotina, Cyril. E, afinal, você já deve saber as
perguntas de cor, depois de todos esses anos. Importa-se que eu
fume? Acendi o cachimbo com todo o vagar, larguei o fósforo no
cinzeiro que ele me estendeu. E depois recomecei o estudo da sala.
Ao longo das paredes, havia prateleiras no estilo faça-você-mesmo,
ocupadas por livros no mesmo estilo, todos de ressonância global:
Os Cem Maiores Homens do Mundo', Joias da Literatura Universal;
Musica das Grandes Eras em Três Volumes. Ao lado, os discos de
gramofone, todos clássicos. E no canto o gramofone, uma
esplêndida peça de teca, com mais botões de controle do que um
simplório como eu poderia usar.
— Se gosta de pintar aquarelas, Ned, por que não
experimenta a música? — sugeriu ele, acompanhando meu olhar.—
É o maior conforto no mundo, a boa música, tocada da forma
apropriada, se escolher certo. Eu poderia lhe indicar as linhas
certas, se assim quiser.
Tirei umas baforadas. Um cachimbo é uma grande arma para
se bancar o lento contra alguém que tem pressa.
— Creio que sou surdo para a música, Cyril, para ser franco.
Já fiz alguns esforços, mas não sei o que acontece, parece que
perco o ânimo...
Minha heresia — extraída, lamento dizer, de debates
inconclusivos com Sally — já era demais para ele. Cyril levantou-se,
o rosto uma máscara de horror e preocupação, pegou o pote de
biscoitos e estendeu-o em minha direção, como se apenas a comida
pudesse me salvar.
— Ora, Ned, isso não é certo, se me permite dizê-lo! Não há
essa coisa como uma pessoa surda para a música! Vamos, pegue
dois biscoitos, tenho mais na cozinha.
— Ficarei com meu cachimbo, se não se importa.
— A surdez musical, Ned, é apenas uma expressão, eu diria
mesmo que uma desculpa, destinada a encobrir, a disfarçar, uma
resistência psicológica, autoimposta, puramente temporária, a um
determinado mundo que o seu consciente se recusa a aceitar! É
meramente um medo do desconhecido que o reprime. Deixe-me
citar os exemplos de alguns conhecidos meus...
Ele continuou a falar e deixei, quase me espetando com o
indicador, enquanto a outra mão comprimia o pote de biscoitos
contra o coração. Escutei-o, observei-o, manifestei minha admiração
nos momentos apropriados. Tirei do bolso o caderninho de
anotações de capa preta, removi o elástico preto que o envolvia,
como um sinal para ele de que estava pronto a começar, mas Cyril
ignorou-me e continuou a falar. Imaginei Mary Lasselles em sua
toca, com um sorriso sonhador, enquanto seu amado me fazia a
preleção. E os rapazes e moças de Monty em seus furgões de
vigilância lá fora, praguejando e bocejando, enquanto aguardavam a
mudança de turno. E por tudo o que eu sabia, Burr também — todos
prisioneiros da história interminável de Frewin sobre um casal
vizinho quando morava em Surbiton, ao qual ensinara a partilhar
sua apreciação musical.
— Seja como for, posso dizer aos meus superiores em QGVP
que a música ainda é o seu grande amor — sugeri com um sorriso,
quando ele acabou.
"QG" para quartel-general e "VP" para verificação positiva. O
papel de agente de segurança sobrecarregado e oprimido exigia
uma autoridade maior do que a minha. Abri o caderninho de
anotações sobre os joelhos, alisei as páginas e, com o lápis sem
tinta fornecido pelo governo, escrevi o nome FREWIN no alto da
página esquerda.
— Muito bem, Ned, se está falando sobre amor... ora, pode
dizer que a música foi o meu grande amor. E a música, para citar o
bardo, é o alimento do amor. Contudo, eu prefiro dizer, tudo
depende de como se define amor. O que é o amor? Essa é a
verdadeira questão, Ned. Defina o amor.
As coincidências de Deus são às vezes vulgares demais,para
se suportar.
— Creio que eu defino de uma maneira um tanto ampla —
respondi, hesitante, o lápis suspenso. — Como você define? Ele
sacudiu a cabeça e pôs-se a mexer o café, com extremo vigor, todos
os dedos contornando a extremidade da colherzinha.
— É oficial? — indagou ele.
— Pode ser. Como preferir.
— Compromisso é como eu defino o amor. Muitas pessoas
falam de amor como se fosse alguma espécie de nirvana. Não é. E
falo disso com conhecimento de causa. O amor não está separado
da vida. Não está além, não é superior. O amor está dentro da vida.
O amor está totalmente integrado com a vida. E o que se tira do
amor, depende dos meios e recursos com que se investe os
esforços e lealdade. Nosso Senhor ensinou-nos isso com absoluta
clareza, não que eu seja pessoalmente um devoto, pois sou um
racionalista. Amor é sacrifício, amor é trabalho árduo. Amor é
também suor e lágrimas, exatamente como a grande música tem de
ser, a fim de se qualificar. Por essa forma, Ned, eu admito que a
música é meu primeiro amor, se pode me entender.
Eu o entendia muito bem. Já apresentara argumentos
similares a Sally, sem muito ânimo, para vê-los descartados. Sabia
também que no estado de espírito angustiado de Cyril não havia a
menor possibilidade de uma pergunta casual, muito menos de uma
resposta casual — como também não havia para mim, embora
meus sistemas de dissimulação fossem mais sofisticados que os
dele.
— Acho que não anotarei isso — murmurei. — Creio que é
melhor considerar o que chamamos de antecedentes profundos.
Com um ar compenetrado, rabisquei algumas palavras no
caderninho, como um memorando para mim mesmo e um aviso
para Cyril de que agora seria oficial.
— Muito bem, vamos primeiro às coisas mais objetivas, ou
QGVP vai dizer que estou molengando, como sempre. Ingressou no
Partido Comunista desde a última vez em que falou com um de
nossos representantes, Cyril, ou se absteve? — Não — respondeu
ele, sorrindo.
— Não ingressou ou não se absteve? Um sorriso mais largo.
— O primeiro. Gosto de você, Ned. Aprecio o espírito quando
o encontro, sempre apreciei. Não que haja em abundância no lugar
em que trabalho. Em matéria de espírito, sinto-me propenso a me
referir ao Tanque como um deserto total.
— Nenhuma amizade ou grupos pacifistas? — continuei,
simulando desapontamento. — Organizações de viajantes? Tornou-
se associado de algum clube homossexual ou de qualquer outro tipo
de orientação desvirtuada? Sentiu uma paixão ultimamente por
algum rapaz? — Nada disso, obrigado — garantiu Frewin, agora
com um sorriso ainda maior.
— Assumiu dívidas grandes, levando-o a viver além dos seus
recursos? Proporcionou a alguma ruiva deslumbrante um estilo de
vida a que ela não está acostumada? Por acaso comprou uma
Ferrari? — Minhas necessidades permanecem tão modestas como
sempre foram. Não sou um materialista nem tenho uma natureza
autoindulgente, como já deve ter percebido. Para ser franco, até que
abomino o materialismo. Há demais hoje em dia.
— E não para o resto? — Não para tudo.
Eu escrevia durante todo o tempo, fazendo anotações numa
lista imaginária.
— Portanto, não estaria trocando segredos por dinheiro —
comentei, virando uma página e acrescentando alguns rabiscos. —
E posso presumir que não iniciou nenhum curso de língua
estrangeira sem obter antes o consentimento por escrito de seu
departamento? — O lápis ficou em suspenso de novo. — Sânscrito?
Hebraico? Urdu? Servo-croata? Russo? Ele se mantinha
completamente imóvel, não desviava os olhos de mim, mas fingi que
não percebia.
— Hotentote? — continuei, jovialmente. — Estoniano? —
Desde quando isso está na lista? — perguntou Frewin, agressivo.
— Hotentote? Esperei.
— Línguas. Uma língua não é um defeito. É um atributo. Uma
realização! Não é preciso relacionar todas as suas realizações só
para receber a verificação positiva! Inclinei a cabeça para trás,
reminiscente.
— Adendo ao procedimento de verificação positiva, de 5 de
novembro de 1967. Esse eu nunca esqueço. Circular especial para
todos os departamentos governamentais, o seu inclusive, exigindo o
aviso antecipado, por escrito, da intenção de fazer qualquer curso
de línguas. Recomendado pelo Comitê de Orientação Judicial e
aprovado pelo Gabinete.
Cyril me virara as costas.
— Considero isso uma questão absolutamente ilegal e me
recuso a respondê-la por qualquer forma. Pode escrever isso.
Soltei uma risada através da fumaça do cachimbo.
— Eu disse para escrever! — Eu não faria isso se estivesse
no seu lugar, Cyril. Eles ficarão irritados com você.
— Pois que fiquem! Tornei a dar uma baforada no cachimbo.
— Explicarei para você como o QG me apresentou a questão,
está bem? "Mas que história é essa de Cyril se levantar com seus
amigos Bóris e Olga?", eles me disseram. "Pergunte isso a ele... e
vamos ver o que responde." Ainda de costas para mim, ele franzia o
rosto, indignado, olhando de um lugar para outro, como se apelasse
a seu mundo polido para testemunhar minha profanidade. Esperei
pela explosão que considerava inevitável. Em vez disso, porém, ele
me fitou com uma expressão magoada. Nós éramos amigos, ele
dizia; como pode fazer isso comigo? E da maneira como o cérebro
sob pressão pode manipular uma multidão de imagens ao mesmo
tempo, a pessoa que vi diante de mim não era Frewin, mas uma
datilógrafa que interrogara em nossa embaixada em Ancara: como
ela levantara a manga do cardigã e mostrara as queimaduras de
cigarro infeccionadas que infligira a si mesma na noite anterior à
entrevista: "Não acha que já me fez sofrer bastante?", ela
perguntara. Só que não fora eu quem a fizera sofrer, mas sim o
diplomata polonês de 25 anos por quem sacrificara todos os
segredos que possuía. Tirei o cachimbo da boca agora e ofereci
uma risada tranquilizadora.
— Ora, Cyril, Bóris e Olga não são dois personagens do curso
de russo que você vem fazendo às escondidas? Arrumando junto a
casa deles? Partindo para umas férias na dacha de sua Tia Tanya?
Está fazendo o curso de língua russa da Rádio Moscou, cinco dias
por semana, às seis horas da manhã em ponto, foi isso o que me
disseram. "Pergunte a ele sobre Bóris e Olga", eles me pediram,
"Pergunte por que ele está aprendendo russo sem contar a
ninguém." É o que estou perguntando. Mais nada.
— Não é da conta deles se eu faço ou não esse curso —
murmurou Cyril, ainda absorvendo as implicações da pergunta. —
Não passam de uns sabujos! Era particular. Escolhido
particularmente, feito particularmente. Eles que se danem. E você
também.
Soltei uma risada. Mas me sentia também desconcertado.
— Não fique assim, Cyril. Conhece os regulamentos tão bem
quanto eu. Não é do seu estilo ignorar um regulamento. Nem do
meu. Russo é russo, comunicar é comunicar. É apenas uma
questão de pôr no papel. Eu não fiz os regulamentos. Tenho minhas
instruções, assim como todo mundo.
Eu falava de novo para as costas de Cyril, que se refugiara na
janela, e olhava para o retângulo que era seu jardim.
— Quais são os nomes deles? — indagou Cyril.
— Olga e Bóris — respondi, paciente. O que o deixou
enfurecido.
— Não, seu idiota, as pessoas que lhe dão as instruções! Vou
apresentar uma queixa contra elas! Estão bisbilhotando, é isso o
que fazem! O que é uma brutalidade hoje em dia! E, para ser franco,
vou lhe atribuir também alguma responsabilidade. Como eles se
chamam? Não respondi. Preferia deixar que sua fúria se
acumulasse.
— Em primeiro lugar... — anunciou ele, ainda olhando para o
jardim lamacento. — Está anotando isso? Em primeiro lugar, não
estou fazendo nenhum curso de língua, nos termos da lei. Um curso
de língua é ingressar numa escola ou numa turma, sentar a uma
carteira com um bando de escriturários emburrados, de mau hálito,
submetendo-se ao desdém de um professor pedante. Em segundo
lugar, eu estou sempre ouvindo rádio, sendo um dos meus prazeres
permanentes procurar em todas as sintonias por programas exóticos
ou esotéricos. Escreva isso e eu assinarei. E ponto final, está bem?
Depois pode se retirar. Estou com você por aqui. Nada pessoal. Meu
problema é com eles.
— Foi assim que tropeçou com Bóris e Olga — sugeri,
prestativo, voltando a escrever. — Já entendi. Girava o botão e lá
estavam eles. Bóris e Olga. Nada de errado nisso, Cyril. Continue e
pode até conseguir um abono de língua, se passar no teste. Acho
que são apenas umas poucas libras, mas é melhor no seu bolso do
que no deles, é o que eu sempre digo.
Continuei a escrever, mas devagar, deixando-o ouvir o
rangido irritante do lápis governamental.
— É sempre o que não é informado que mais os irrita —
confidenciei, pedindo desculpas pelas fraquezas de meus
superiores. — "Se ele não nos falou de Bóris e Olga, o que mais
deixou de nos contar?" Não se pode culpá-los, eu acho. O emprego
deles está em jogo, da mesma forma que o nosso.
Virar outra página. Lamber a ponta do lápis. Escrever outra
anotação. Eu começava a sentir o excitamento da caçada. O amor
como compromisso, dissera ele, o amor como parte da vida, o amor
como esforço, o amor como sacrifício. Mas o amor por quem? Tracei
uma linha grossa com o lápis e virei a página.
— Podemos agora, por gentileza, passar para o seu pessoal
no outro lado da Cortina de Ferro, Cyril? — Indaguei, na minha voz
mais cansada. — A turma do QG é louca por gente da Cortina de
Ferro. Gostaria de saber se tem algum nome novo para acrescentar
à lista dos que já nos deu nos últimos anos. O último... — Voltei
algumas folhas no caderninho de anotações. — ...ora, já tem
séculos! Um cavalheiro da Alemanha Oriental, um membro da
sociedade coral local em que ingressou. Não há mais ninguém de
quem se lembre desde então? Não posso deixar de admitir, Cyril,
que estão em cima de você, agora que descobriram que não
informou o curso de língua.
Sua desilusão comigo tornava a resvalar para a ira. Mais uma
vez, ele pôs-se a sublinhar as palavras improváveis. Mas agora
eram como golpes desferidos contra mim.
— Vai descobrir que todos os meus contatos na Cortina de
Ferro foram devidamente relacionados e apresentados a meus
superiores, de acordo com os regulamentos. Se você se deu ao
trabalho de obter esses dados com o departamento de pessoal do
Ministério do Exterior antes desta entrevista... e imagino por que me
enviaram alguém como você...
Resolvi interrompê-lo. Não seria proveitoso se permitisse que
me reduzisse a nada. À insignificância, não tinha problema. Mas não
a nada, pois eu era o representante de uma autoridade superior.
Arranquei uma folha do caderninho.
— Aqui está, tenho todos eles. Todas as pessoas que você
conhece na Cortina de Ferro em uma página. São apenas cinco, em
todos os seus vinte anos. E todos verificados pelo QG. E não há
problema, desde que você informe. — Tornei a guardar a folha no
caderninho. — Tem alguém para acrescentar? Quem vai
acrescentar? Pense bem, Cyril. Não precisa se apressar. Eles
sabem muita coisa, meu pessoal. Às vezes até me deixam chocado.
Leve todo o tempo que precisar para se lembrar.
Ele levou esse tempo. E mais. E mais. Finalmente adotou a
linha da autocompaixão.
— Não sou um diplomata, Ned — queixou-se ele, num fio de
voz. — Não saio por aí fazendo o circuito alegre todas as noites.
Belgravia, Kensington, St. John's Woods, confraternizando com os
grandes. Sou apenas um escriturário. Não sou absolutamente esse
tipo de homem.
— Mas que tipo de homem, Cyril? — Gosto de um agrado,
mas isso é diferente. Gosto de um grande amigo.
— Sei que gosta, Cyril. E o QG também sabe.
Um novo recurso à raiva para encobrir o pânico
crescente.Linguagem do corpo ensurdecedora, Cyril cerrando os
punhos enormes e levantando os cotovelos.
— Não há um único nome nessa lista que tenha cruzado meu
caminho desde que comuniquei as pessoas envolvidas. Os nomes
nessa lista referem-se apenas a encontros completamente casuais,
que não tiveram qualquer sequência.
— Mas o que me diz de novas pessoas desde então? —
insisti, paciente. — Não poderia esquecê-las, Cyril. Eu não
esqueceria. Então por que você esqueceria? — Se houvesse
alguém para acrescentar, absolutamente qualquer contato, até
mesmo um cartão de Natal de alguém, pode estar certo de que eu
teria sido o primeiro a acrescentá-lo. E ponto final. Vamos à próxima
pergunta, por gentileza.
Diplomata, anotei. Ele, anotei. Natal, Salzburgo. E tornei-me
ainda mais insistente.
— Não é essa a resposta que eles querem, Cyril — declarei,
enquanto escrevia. — Para ser franco, parece um pouco com uma
evasiva. Eles querem um "sim" ou um "não", ou um "se sim, quem?"
Querem uma resposta direta e não vão se contentar com nenhuma
evasiva. "Ele não revelou seu curso de língua, então por que
devemos achar que está revelando todas as pessoas que conhece
na Cortina de Ferro?" É assim que eles estão pensando, Cyril. É o
que vão me dizer. Ao final, tudo acabará caindo em cima de mim.
Eu não parava de escrever enquanto falava. Pude sentir outra
vez que minha meticulosidade era uma tortura para ele. Cyril
andava de um lado para outro, estalando os dedos nos lados do
corpo. Murmurava, mexendo a boca ameaçador, resmungando de
novo que queria saber os nomes. Mas eu me encontrava muito
absorvido a escrever para perceber tudo isso. Era o velho Ned, o
emissário de Burr, cumprindo o seu dever para o QG.
— O que acha disso, Cyril? — indaguei finalmente,
levantando o caderninho de anotações. Li em voz alta o que
escrevera: — "Eu, Cyril Frewin, declaro formalmente que não travei
conhecimento, por mais superficial que tenha sido, com qualquer
cidadão do Bloco Soviético ou Europeu Oriental, afora os que já
foram relacionados por mim, nos últimos doze meses. Datado e
assinado, Cyril." Tornei a acender o cachimbo e examinei o fornilho,
a fim de me certificar de que não estava entupido. Larguei o fósforo
usado na caixa, e a caixa em meu bolso. Minha voz, já reduzida
para um ritmo de andar, tornou-se agora como alguém se
arrastando.
— Por outro lado, Cyril, e lhe digo isso como um conselho, se
há alguém assim em sua vida, agora é a sua oportunidade de me
contar. E a eles. Tratarei tudo o que me disser como um assunto
confidencial; e eles também, dependendo do que eu lhes disser, o
que nem sempre é tudo, de jeito nenhum. Afinal, ninguém é um
santo. E o QG provavelmente não daria o visto a quem fosse.
Intencionalmente ou não, eu acendera o pavio nele. Cyril
esperava por uma desculpa e agora eu lhe proporcionara.
— Santo? Quem está falando em santo! Não me chame de
santo, eu não vou admitir! Santo Cyril, é assim que eles me
chamam, não sabia disso? Claro que sabia, está apenas zombando
de mim! Rosto tenso e agressivo. Golpeando-me com palavras.
Frewin contra o mundo, batendo em qualquer coisa que se
aproximasse.
— Se houvesse alguma pessoa... e não há... eu não contaria
a você ou à sua turma bisbilhoteira de VP... teria relatado o assunto
por escrito, de acordo com os regulamentos, ao departamento de
pessoal AIO...
Pela segunda vez, permiti-me interrompê-lo. Não queria que
ele conduzisse o ritmo da conversa.
— Mas há de fato alguém, não é mesmo? — falei, tão
premente quanto meu papel passivo permitia. — Não há ninguém?
Nunca esteve em qualquer situação... festas, reuniões, encontros...
oficiais, extraoficiais... em Londres, fora de Londres, até mesmo no
exterior... em que algum cidadão de um país da Cortina de Ferro
estivesse presente, mesmo que remotamente? — Tenho de
continuar a dizer não? — Não se a resposta é sim — respondi, com
um sorriso que não me agradava.
— A resposta é não. Não, não, não. E repito: não. Entendeu?
— Obrigado. Então posso pôr ninguém, não é? Significa
absolutamente ninguém, nem mesmo um russo. E você pode
assinar. Está bem? — Está, sim.
— Significando não? — sugeri, fazendo outra piada sem
graça. — Desculpe, Cyril, mas temos de ser bem claros, caso
contrário o QG cairá em cima da gente lá do alto. Já escrevi tudo
para você. Assine.
Entreguei-lhe meu lápis e ele assinou. Queria incutir o hábito
nele. Cyril devolveu-me o caderninho de anotações, com um sorriso
trágico. Mentira-me e precisava do meu conforto em sua aflição. E
lhe concedi... apenas, lamento dizê-lo, porque queria retirá-lo muito
em breve. Guardei o caderninho no bolso interno do paletó, levantei-
me e me estiquei, como se anunciasse uma interrupção em nossas
discussões, agora que um ponto difícil ficara para trás. Esfreguei um
pouco as costas, doloridas como as de um velho.
— O que foi toda a escavação que andou fazendo por aqui,
Cyril? Construindo o seu próprio abrigo subterrâneo? Eu diria que
isso não é mais necessário hoje em dia.
Passando por ele, meus olhos fixaram-se numa pilha de
tijolos novos num canto do jardim, cobertos por uma lona. Uma vala
inacabada, com pouco mais de meio metro de profundidade,
atravessava o gramado, na direção dos tijolos.
— Estou construindo um tanque — respondeu Frewin,
aproveitando agradecido a oportunidade para uma diversão jocosa.
— Acontece que gosto muito de água.
— Um tanque para peixinhos dourados, Cyril? — Um tanque
ornamental.
Seu bom humor ressurgia. Ele relaxou, sorriu, o sorriso era
tão caloroso e despretensioso que me descobri a sorrir em resposta.
— O que tenciono fazer, Ned — explicou ele, aproximando-se
de mim em amizade — é construir três níveis diferentes de água,
começando um metro e vinte acima da superfície, descendo com
intervalos de 45 centímetros até a vala. Depois iluminarei cada nível
por trás, com uma lâmpada escondida. E bombearei a água com
uma bomba elétrica. À noite, em vez de fechar as cortinas, poderei
contemplar o meu chafariz particular! — E tocar sua música! —
exclamei, reagindo na mesma medida a seu entusiasmo. — É uma
esplêndida ideia, Cyril. Coisa de gênio. E confesso que estou muito
impressionado.Gostaria que minha esposa visse isso. Como estava
Salzburgo, por falar nisso? Ele teve uma vertigem genuína, pensei,
observando sua cabeça afastar-se de repente. Atingi-o em cheio e
ele cambaleia. Vou esperar que recupere os sentidos antes de
acertá-lo de novo.
— Vai a Salzburgo pela música, ao que me disseram. Uma
Meca para os músicos, todos me contaram, Salzburgo. Apresentam
óperas no Natal, ou só tem cantigas natalinas e hinos? Deviam ter
fechado a rua, pensei, escutando o profundo silêncio. Especulei se
Frewin pensava a mesma coisa, enquanto continuava a olhar
fixamente para o jardim.
— Por que você deveria se importar? — indagou ele. — É um
ignorante musical. Foi o que você mesmo disse. Além de ser um
tremendo bisbilhoteiro.
— Verdi? Já ouvi falar de Verdi. Mozart? Ele não era
austríaco? Assisti ao filme. Aposto que tocam Mozart no Natal. Não
podem deixar de tocar. O que se ouve por lá? Silêncio de novo.
Sentei e mais uma vez me preparei para escrever o que ele ditasse.
— Vai sozinho? — perguntei.
— Claro que vou.
— Sempre? — Claro.
— Na última vez também? — Sim! — Fica sozinho? Ele soltou
uma gargalhada.
— Eu? Nem por um minuto. Não eu. Há bailarinas à espera
no quarto quando eu chego. E mudam todos os dias.
— Mas música noite após noite, do jeito que você gosta? —
Quem disse que eu gosto? — Quatorze noites de música. Isto é,
doze, se descontarmos a viagem.
— Podem ser doze. Podem ser quatorze. Podem ser treze.
Que diferença isso faz? Ele ainda se encontrava sob os efeitos da
concussão. Falava de muito longe.
— É para onde você vai. Para Salzburgo, Aquilo por que
paga. Não é mesmo, Cyril? Dê-me um sinal qualquer, Cyril, por
favor. Tenho a impressão de que o estou perdendo, Foi para onde
você foi neste Natal também? Ele acenou com a cabeça.
— Concertos, noite após noite? Ópera? Cantigas natalinas? ,,
— Isso mesmo. \ — O único problema, deve entender, é que o QG
diz que você só ficou uma noite. Chegou no primeiro dia como
estava marcado, eles dizem, mas tornou a partir na manhã seguinte.
Pagou toda a estada em seu quarto, as duas semanas, mas o
pessoal do hotel não o viu desde o segundo dia, até o final de suas
férias. Por isso, como não podia deixar de ser, o que é lógico, o QG
está querendo saber para onde foi. — Dei o salto mais ousado até
aquele momento. — E com quem. Estão querendo saber se você
arrumou alguém às escondidas. Como Bóris e Olga, só que reais.
Virei mais duas páginas do caderninho; no silêncio profundo,
o farfalhar era como tijolos caindo. O terror de Cyril me contagiava.
Era como o mal partilhado. A verdade estava a um passo de nós,
mas o medo dela parecia tão terrível para o homem que tentava
mantê-la fora da porta quanto para mim, que tentava deixá-la entrar.
— Tudo o que precisamos é pôr no papel, Cyril. E depois podemos
esquecer. Nada como escrever alguma coisa para superá-la, é o
que eu sempre digo. Não é nenhum crime ter um amigo. Nem
mesmo um estrangeiro é um crime, desde que esteja escrito. Ele é
estrangeiro, posso presumir? Noto uma certa hesitação de sua
parte. Ele deve ser um amigo e tanto, eu diria, se você renunciou à
sua música por tal homem.
— Ele não está em parte alguma. Não existe.
— Quer dizer que ele não apareceu na época do Natal, Cyril?
Não é possível, se você estava com ele. Era um austríaco, Cyril? ./
Frewin estava inerte. Morto, com os olhos abertos. Eu o acertara
vezes demais.
— Muito bem, então ele é francês — sugeri, mais alto,
tentando arrancá-lo de sua introspecção. — Era um francês, Cyril, o
seu amiguinho? ... Eles não se importariam com um francês,
embora não gostem deles. Ou será que era um ianque, Cyril? Eles
não podem protestar contra um ianque! — Não houve resposta. —
Nem um irlandês, hem? Espero que não, para o seu próprio bem! Ri
por ele, mas nada o animava, nada o arrancava de sua melancolia.
Ainda junto da janela, ele curvava o polegar e comprimia a
articulação contra a testa, como se tentasse abrir um buraco de
bala. Teria sussurrado alguma coisa? — Não ouvi, Cyril.
— Ele está acima de tudo isso.
— Acima da nacionalidade? — Ele está acima.
— Está querendo dizer que é um diplomata? — Ele não foi a
Salzburgo, será que não escuta? — Cyril virou-se para mim, passou
a gritar. — Você sabia que sofre de paralisia cerebral? Não se
importa com as respostas, nem mesmo é capaz de perguntar direito!
Não é de admirar que o país esteja nesta confusão! Para onde foi a
sensatez? Onde está a sua compreensão humana? Levantei-me de
novo. Lentamente. Ele me observava. Tornei a massagear as
costas. Vagueei pela sala. Sacudi a cabeça, como a dizer que isso
não era suficiente.
— Estou tentando ajudá-lo, Cyril. Se foi a Salzburgo e ficou lá,
é uma coisa. Se foi a outro lugar... ora, é muito diferente. Se o seu
amigo é italiano, digamos. E se fingiu que ia a Salzburgo, mas foi...
ora, não sei... a Roma, por exemplo, ou Milão, até Veneza... é outra
história. Não posso fazer tudo por você. Não é justo e eles não me
agradeceriam se fizesse.
Cyril tinha os olhos arregalados. Transferia sua loucura para
mim, considerava-se o são. Tornei a encher o cachimbo,
concentrando nisso toda a minha atenção, enquanto continuava a
falar.
— Você é um homem difícil de satisfazer, Cyril... — Eu
espremia o fumo com o polegar. -.. .é um implicante, se quer saber.
"Não me toque aqui, tire sua mão daí, pode fazer isso mas só uma
vez." Afinal, sobre o que eu tenho permissão de falar? Risquei um
fósforo e levei-o ao fornilho. Ao fazê-lo, vi que ele transferia as mãos
para os olhos, a fim de se retirar da sala. Mas fingi não notar.
— Muito bem, vamos esquecer Salzburgo. Se Salzburgo
incomoda, vamos deixar Salzburgo de lado e voltemos ao pessoal
da Cortina de Ferro. Está bem? Concorda? As mãos escorregaram
do rosto, lentamente. Não houve resposta, mas também não houve
uma rejeição expressa. Continuei a falar. Era o que ele queria. Pude
sentir que se apoiava em minhas palavras como uma ponte entre o
mundo real e o inferno interior em que vivia. Queria que eu falasse
por nós dois. Senti que precisava fazer a confissão por ele, e foi por
isso que decidi jogar a minha carta mais perigosa.
— Vamos supor, apenas para argumentar, Cyril, que
acrescentemos o nome de Sergei Modrian a essa lista,
considerando-a encerrada — sugeri, descuidado, quase encobrindo
as palavras em meus esforços para dar a impressão de que não
havia nada de ameaçador. E acrescentei, jovialmente: — Só como
uma margem de segurança. O que me diz? A cabeça de Cyril ainda
pendia, o rosto isolado de mim. E continuei falando, sempre jovial,
expandindo minha última proposta prestativa ao QG.
— "Muito bem", diremos a eles, "fiquem com o seu miserável
Sr. Modrian. Não brinquem mais com a gente, sairemos limpos.
Fiquem com ele e voltem para casa. Ned e Cyril têm mais o que
fazer." Ele balançava, parecendo um enforcado. No silêncio
profundo que se instalava na vizinhança, experimentei a sensação
de ouvir minhas palavras ressoando pelos telhados. Mas Frewin mal
parecia tê-las ouvido.
— É Modrian que querem que você confesse, Cyril —
continuei, a sensatez em pessoa. — Foi o que me contaram. Se
você diz sim a Modrian... e se eu o anoto, o que estou fazendo, e
você me permite, e noto que não está tentando me impedir, não é
mesmo?... ninguém poderá nos acusar de não sermos francos. "É
isso mesmo, sou amigo de Sergei Modrian e enganei vocês todos"...
o que acha disso? "fui com ele para uma porção de lugares, e
fizemos isso e aquilo, combinamos fazer outras coisas, e nos
divertimos muito, ou não nos divertimos. E, de qualquer maneira,
para que serve a glasnost, se ainda sou proibido de me associar
com um russo extremamente civilizado?"... O que acha disso? Não
têm importância as lacunas por enquanto, podemos preenchê-las
depois. E, assim, eles podem dar o visto por mais um ano, e
podemos todos partir para o nosso fim de semana.
— Por quê? Fingi não entender.
— Por que eles podem dar o visto e arquivar o processo? —
indagou Cyril, sua suspeita aumentando. — Quando eles sempre
foram quem são? Não vão virar as costas e dizer "De que adianta?"
Ninguém faz isso. Ainda mais quando eles têm uma coisa.
Continuam a ser quem são. Não se tornam outras pessoas. Não
podem.
— Ora, Cyril, pare com isso! — Ele se absorvia em seus
pensamentos, era cada vez mais difícil alcançá-lo. — Cyril! — O que
houve? O que aconteceu? Não precisa gritar.
— O que há de errado em ser russo hoje em dia? O QG
ficaria muito mais preocupado se Sergei fosse francês! Só sugeri um
francês como uma armadilha. Lamento isso agora, peço desculpas.
Mas um russo hoje em dia... ora, não estamos falando apenas de
nações amigas, mas sim de parceiros! Você conhece o QG. Eles
estão sempre atrasados. E o mesmo acontece com Gorst. Nosso
trabalho é abrir o caminho. Está me entendendo, Cyril? E foi nesta
altura que, por um momento, pensei ter perdido todo o jogo...
perdido a sua cumplicidade, perdido a sua dependência, perdido a
suspensão voluntária de sua incredulidade. Cyril passou por mim
como um sonâmbulo. Voltou a se postar diante da janela, ali
permaneceu, contemplando seu tanque parcialmente escavado e os
outros sonhos parciais de sua vida, e devia saber àquela altura que
nunca seriam concluídos.
Depois, para meu alívio, ele se pôs a falar. Não sobre o que
fizera. Não sobre com quem fizera. Mas por quê.
— Não sabe o que significa, não é mesmo, passar o dia
inteiro trancado com idiotas? Pensei a princípio que ele visualizava
seu futuro, até compreender que se referia ao Tanque.
— Escutando suas piadas sórdidas durante o dia inteiro,
tripudiando sobre as bichas e as mulheres. Não você, é um
privilegiado, por mais humilde que queira parecer. Dia após dia da
mesma coisa, risadinhas sobre peitos e calcinhas e menstruação e
mais algumas coisas. "Vamos, Santo Cyril, o nosso querido Santo,
conte-nos uma piada bem obscena, para variar! Aposto que é um
sujeito que vai até o fundo, Santo! Qual é a sua... a proeza atlética?
Um pouco rude? Qual é a fantasia do nosso Santo noite de
sábado?" Ele recuperara a energia, com todo vigor; e com isso, para
meu espanto, um inesperado talento para a mímica. Interpretava
para mim, representando a rainha do teatro de variedades, um
sorriso sinistro a contorcer o rosto sem barba.
— "Já ouviu a piada dos escoteiros e das bandeiras, Santo?
Toda a emoção nas barracas!" Não ouviria uma coisa dessas, não é
mesmo? "Dá um puxão nele de vez em quando, Santo? Uma
sacudidela ocasional, só para ter certeza de que ainda está lá? Vai
acabar ficando cego. Vai cair. E aposto que tem um dos grandes,
não é? Uma autêntica lança de jumento, descendo pela perna da
calça e prendendo na liga."... Você nunca teve de passar por isso,
não é mesmo, durante o dia inteiro, no escritório, na cantina? É um
cavalheiro. Sabe o que me deram no primeiro de abril? Uma
mensagem ultrassecreta de Paris, só para os olhos de Frewin,
decifre você mesmo, manual, ah, ah. Prioridade máxima, entende a
piada? Eu não entendi. E lá fui para o cubículo, peguei os livros,
sabe? E começo a decifrar. Manual. Todo mundo está de cabeça
baixa. Ninguém ri, para não estragar a brincadeira. Decifro os seis
primeiros grupos e é uma obscenidade, uma piada vulgar. Fora ideia
de Gorst. Ele convencera o pessoal na embaixada em Paris a
mandar especialmente, como uma piada. "Aguente firme, Santo,
não perca a calma, dê-nos um sorriso. Foi apenas uma brincadeira,
Santo, não pode suportar uma brincadeira?" Foi a mesma coisa que
o departamento de pessoal disse quando me queixei. Uma
brincadeira, eles disseram. São boas para o moral. Encare como um
elogio, demonstre um pouco de espírito esportivo. Se não fosse por
minha música, há muito que eu já teria me matado. Cheguei a
pensar, não me incomodo de contar. O problema era que eu não
veria seus rostos ao descobrirem o que tinham feito.
Um traidor precisa de duas coisas, Smiley me dissera um dia,
amargurado, por ocasião da traição de Haydon ao Circo: alguém
para odiar, e alguém para amar. Frewin já me revelara a quem
odiava. Agora, começou a falar sobre quem amava.— Eu já estivera
no mundo inteiro naquela noite... Porto Rico, Cabo Verde,
Johanesburgo... e não encontrei nada que me agradasse. Gosto
mais dos amadores, de um modo geral, que dos profissionais. Eles
têm mais espírito, justamente o que aprecio, como já lhe disse. Nem
mesmo sabia que já era de manhã. Tenho aquelas cortinas grossas
ali, que me custaram trezentas libras, fechadas. O sossego, depois
do Tanque, é tudo para mim.
Um sorriso diferente insinuara-se em seu rosto, o sorriso de
um menino em seu aniversário.
— "Bom dia para você, Bóris, meu amigo", diz Olga. "Como
está se sentindo esta manhã?" Depois ela diz isso em russo e Bóris
responde que se sente um pouco deprimido. Ele se mostra com
frequência deprimido, o Bóris. Ele é propenso aos acessos eslavos
de depressão. Olga cuida dele, é claro. Faz uma piada, mas nunca
com intenções cruéis. Também brigam de vez em quando... nada
mais natural, já que fazem tudo juntos. Mas sempre fazem as pazes
no mesmo programa. Não guardam ressentimentos de um dia para
outro. Olga não podia fazer isso, para ser franco. Para Olga, é tudo
preto no branco. E depois os dois riem. É assim que eles são.
Construtivos. Cordiais. Falam francamente. E são musicais também,
é claro... não poderia ser de outra maneira, já que são russos. Eu
não apreciava muito Tchaikovsky até que ouvi os dois discutindo-o.
Depois, passei a amá-lo. Bóris tem gostos musicais bastante
avançados. Olga... na verdade, ela é um pouco fácil de agradar.
Seja como for, eles são apenas atores, eu suponho, lendo suas
falas. Mas a gente esquece isso quando os escuta, tentando
aprender a língua. Acredita-se neles.
E se manda para eles seu trabalho escrito, disse Cyril, para
ser corrigido.
Uma correção grátis e conselhos, disse Cyril.
E nem mesmo se precisa escrever para Moscou depois da
primeira vez. Eles têm uma caixa postal em Luxemburgo.
Ele se tornara quieto, mas não perigosamente. Ainda assim,
assustei-me com a possibilidade do transe terminar em breve. Saí
de seu campo de visão e fui me postar num canto da sala, por trás
dele.
— Que endereço você lhes forneceu, Cyril?
— Este, é claro. O que mais eu podia indicar? Uma casa de
campo em Shropshire? Uma villa em Capri?
— E forneceu também o seu próprio nome?
— Claro que não. Isto é, disse que era Cyril. Mas qualquer um
pode ser Cyril.
— Tem razão — murmurei, aprovador. — Cyril o quê?
— Nemo — anunciou ele, orgulhoso. — Sr. C. Nemo. "Nemo"
é o latim para "ninguém", caso não saiba. Sr. C. Nemo. Talvez como
Sr. A. Patriota.
— Indicou a sua ocupação.
— Não a verdadeira. Está sendo estúpido outra vez.
— E o que pôs?
— Músico.
— Eles perguntaram sua idade?
— Claro que perguntaram. Tinham de perguntar. Precisam
saber se você é qualificado, caso ganhe o prêmio. Não podem dar o
prêmio a menores, não é mesmo? Ninguém pode.
— E o estado civil... casado ou solteiro... também lhes disse
isso?
— Eu tinha de informar meu estado civil, com o prêmio sendo
disponível a casais! Eles não podem dar um prêmio a uma pessoa e
deixar sua mulher de fora, não seria delicado.
— Que trabalho você mandou... na primeira vez, por
exemplo... está lembrado?
Ele decidiu protestar mais uma vez contra a minha estupidez.
— Mas que obtusidade! O que acha que lhes mandei? Logaritmos,
por acaso? Você escreve, recebe os formulários, matricula-se, tem o
número da caixa postal em Luxemburgo, recebe o livro, é um deles.
E passa a fazer o que Bóris e Olga lhe dizem para fazer no
programa, não é mesmo? "Complete o exercício na página 9.
Responda às perguntas na página 12." Nunca esteve na escola?
— E você era bom. O QG diz que possui uma mente que nem
uma enciclopédia. Foi o que me contaram.
Eu começava a aprender o quanto ele gostava da lisonja. —
Eu era mais do que bom, diga-se de passagem, obrigado, QG. Se
quer saber, eu tinha condições para ser o melhor aluno. Algumas
observações me foram enviadas por alguns professores, e tinham
um tom altamente congratulatório.
— Cyril exibiu o sorriso exultante que lhe aflorava quando era
elogiado. — E sentia a maior emoção, se quer saber, ao entrar no
Tanque numa manhã de segunda-feira com uma de suas pequenas
observações no bolso, sem dizer nada. E pensava: eu poderia
contar a vocês uma história e tanto, se quisesse. Só que eu não
queria. Preferia minha privacidade. Preferia minhas amizades. Não
permitiria de jeito nenhum que aqueles animais fizessem
comentários sórdidos sobre Olga e Bóris.
— E escrevia para esses professores? — Só como Nemo.
— Mas, fora isso, não se envolvia com eles, não é mesmo? —
indaguei, tentando sondar que barreiras, se é que alguma havia em
sua mente ao se lançar nesse primeiro caso de amor ilícito. — Isto
é, se eles faziam uma pergunta simples, oferecia-lhes uma resposta
simples. Não se mostrava desdenhoso.
— Claro que eu não era desdenhoso! Não havia causa para
isso! Esforçava-me em ser cortês, da mesma forma que meus
professores. Eu me sentia grato e era diligente. Era o mínimo que
eles mereciam, levando-se em consideração que não havia
honorários, era tudo voluntário, no interesse da compreensão
humana.
O caçador em mim outra vez. Calculava os movimentos que
eles teriam feito, enquanto o manobravam. Imaginava como eu o
manobraria, se o Circo tivesse algum dia inventado algo tão perfeito.
— E suponho que, à medida que você foi melhorando,
passaram dos exercícios impressos mais simples a coisas mais
ambiciosas... composições, ensaios? — Quando o Comitê de
Professores em Moscou julgou que eu estava pronto para isso, claro
que me promoveram ao estilo livre.
— Lembra os assuntos que lhe indicaram? Ele riu, o seu riso
de superioridade.
— Acha que eu esqueceria? Cinco noites em cada um, com a
ajuda do dicionário? Duas horas de sono, se tinha sorte? Acorde,
Ned! Soltei uma risadinha pesarosa, enquanto escrevia o que ele
ditava.— "Minha Vida" foi o primeiro trabalho assim. Falei sobre o
Tanque, sem mencionar nomes, é claro, nem a natureza de nosso
trabalho. Não obstante, havia um certo elemento de comentário
social, não posso negar. Achei que o Comitê tinha o direito de saber,
ainda mais com a glasnost em andamento e tudo melhorando em
benefício da humanidade.
— Qual foi o seguinte? — "Meu Lar". Falei sobre os planos
para o chafariz. Eles gostaram. E dos meus dotes culinários. Um
deles era um grande cozinheiro. Depois disso, deram-me "Meu
Passatempo Predileto", o que poderia ser redundante, mas não era.
— E descreveu seu amor pela música? — Errado.
O resto de sua resposta ressoa em meus ouvidos até hoje:
como uma acusação, como um grito de compaixão de um
semelhante sofredor; como uma prece cega lançada ao éter por um
homem que, como eu, estava desesperado em busca de amor,
antes que fosse tarde demais.
— Escolhi "Boa Companhia" como meu passatempo predileto,
se quer mesmo saber — disse ele, o sorriso exultante tornando a se
estampar em seu rosto. — O fato de que não tivera muito boa
companhia em minha vida até aquele momento não me impedia de
apreciar as poucas ocasiões em que isso ocorrera.
Ele parecia ter esquecido que falara, pois logo recomeçou,
com palavras que eu poderia usar em relação a Sally: — Tinha um
sentimento de que renunciara a alguma coisa em minha vida que
agora desejava recuperar.
— E eles admiraram também o seu trabalho adiantado?
Ficaram impressionados? — perguntei, enquanto escrevia tudo
diligentemente.
Ele sorria de novo.
— Moderadamente, eu presumo. Algumas coisas, aqui e ali.
Com restrições, é claro.
— Por que presume isso? — Porque, ao contrário de alguns,
eles tiveram a cortesia e generosidade de demonstrar sua
apreciação. Só por isso.
E demonstraram, disse Frewin — eu mal precisava pressioná-
lo a continuar — e demonstraram na pessoa de um certo Sergei
Modrian, primeiro-secretário cultural da embaixada soviética em
Londres, em sua condição de devotado emissário local da Rádio
Moscou, enviado para responder à prece de Cyril.
Como todos os anjos bons, Modrian chegou de forma
inesperada, batendo na porta de Frewin num úmido sábado de
novembro, levando os presentes enviados pela matriz: uma garrafa
de vodca Moskovskaya, uma lata de caviar Sevruga, e um livro de
arte com uma péssima impressão sobre o Balé Bolshoi. E uma carta
datilografada, em termos pomposos, designando o Sr. C. Nemo
como um Estudante Honorário da Universidade Estadual de
Moscou, em reconhecimento a seus progressos excepcionais na
língua russa.
Mas o maior de todos os presentes foi a figura mágica do
próprio Modrian, feito sob medida para proporcionar a Frewin a boa
companhia pela qual ele clamara com tanta ansiedade em seu
ensaio para o curso.
Chegáramos a nosso destino. Frewin estava calmo. Frewin
era triunfante; Frewin, não importa por quanto tempo, sentia-se
realizado. A voz se libertara de seus confinamentos; o rosto rude era
iluminado pelo sorriso de um homem que conhecera o verdadeiro
amor e ansiava em transmitir sua sorte. Se houvesse alguém no
mundo por quem eu pudesse algum dia sorrir da mesma maneira,
teria sido um homem diferente.
— Modrian, Ned? Sergei Modrian? Oh, Ned, estamos falando
aqui do que pode haver de melhor. Bastou uma olhada para ele e eu
já sabia. Nada de meias medidas aqui, pensei. Este aqui é o
máximo. Tínhamos o mesmo senso de humor, é claro, um humor
franco. E ácido. Nada de indiretas. Os mesmos interesses também,
até os compositores. — Ele tentou um tom mais isento, mas foi em
vão. — É muito raro na vida, em minha experiência, dois seres
humanos serem naturalmente compatíveis, em cada um e todos os
aspectos... exceto as mulheres, algo em que, não posso deixar de
admitir, a experiência de Sergei era muito maior do que a minha. A
atitude de Sergei em relação às mulheres... — Ele se esforçava em
parecer desaprovador. — ...digamos assim: se fosse qualquer outro
se comportando daquela maneira, eu teria a maior dificuldade para
aprovar.
— Ele apresentou-o a mulheres, Cyril? Sua expressão mudou
para a de rejeição intransigente.
— Claro que não, obrigado. Nem eu teria permitido. Nem ele
teria considerado tais apresentações como condizentes com o
âmbito de nosso relacionamento.
— Nem mesmo nas viagens que fizeram à Rússia juntos? —
arrisquei, dando outro salto.
— Em nenhum lugar. Seria uma desgraça para eles, diga-se
de passagem.
— Então é tudo boato, o que dizem sobre as mulheres dele?
— Não, não é. Foi o que o próprio Sergei me contou. Sergei
Modrian tinha uma atitude totalmente implacável em relação às
mulheres. Seus colegas me confirmaram isso, particularmente. Uma
atitude implacável.
Encontrei tempo para admirar a habilidade psicológica de
Modrian,.. ou seria a habilidade de seus superiores? Entre Modrian
o implacável conquistador de mulheres, e Frewin o implacável
rejeitador, havia de fato um vínculo natural.
— Ou seja, conheceu também os colegas dele — comentei.
— Em Moscou, presumivelmente. No Natal.
— Só aqueles em quem ele confiava. O respeito que tinham
por ele era incrível. Ou Leningrado. Eu não era exigente. Não tinha
esse direito. Era um convidado de honra. Aceitava tudo o que
providenciavam para mim.
Eu mantinha os olhos no caderninho. Só Deus sabe o que eu
escrevia àquela altura. Uma bobagem qualquer. Depois, houve
trechos inteiros em que não fui capaz de entender uma única
palavra. Escolhi o meu tom absolutamente mais insípido para falar:
— E tudo isso foi em homenagem à sua extraordinária capacidade
linguística, Cyril? Ou já estava prestando serviços informais a
Modrian àquela altura? Como lhe fornecer informações ou coisas
assim. Traduções, por exemplo. Há muito isso, pelo que me
contaram. Não se deveria, é claro. Mas também não se pode culpar
as pessoas... não é mesmo?... por quererem ajudar a glasnost a
continuar. Esperamos por tempo demais. Acontece apenas que
tenho de explorar a história direitinho, Cyril. Caso contrário, eles vão
me esfolar.
Não me atrevi a levantar os olhos. Simplesmente continuei a
escrever. Virei uma página e escrevi: continue falando, continue
falando, continue f alando. E continuei também sem levantar os
olhos.
Ouvi-o sussurrar alguma coisa que não pude entender. E
ouvi-o murmurar: — É não. Não fiz. Nunca fiz. — E ouvi-o protestar,
mais alto: — Não diga isso, está bem? Nunca mais diga isso, você e
seu QG. "Fornecer informações"... mas que história é essa? São
palavras erradas, Estou falando com você, Ned! Levantei os olhos,
sugando o cachimbo e sorrindo.
— Está mesmo, Cyril? Claro que está. Desculpe. Você é o
meu sexto numa semana, para ser sincero. Todos estão fazendo a
glasnost hoje em dia. É a moda. Já começo a sentir o peso da
idade.
Ele decidiu me confortar. Sentou-se. Não na poltrona, mas em
seu braço. Assumiu uma atitude paternal, de amigo para amigo, que
me fez lembrar o diretor da minha escola preparatória.
— Você é de certa forma um liberal, não é mesmo, Ned? Pelo
menos tem a cara para isso, embora seja hoje um pouco adulador
do QG.
— Acho que tem razão, sou uma espécie de livre-pensador, à
minha maneira. Embora não possa deixar de pensar em minha
pensão, é claro.
— Claro que é! Não é a favor de uma economia mista? Não
gosta da pobreza pública e riqueza particular da mesma forma que
eu. A humanidade acima da ideologia, acredita nisso? Parar o trem
descarrilado do capitalismo destruindo tudo à sua frente no
caminho? Claro que você acredita nessas coisas! Tem uma
preocupação sensata com o meio ambiente, eu diria. Texugos,
baleias, casacos de pele, usinas de energia. Até mesmo uma visão
de partilha, quando não há conflito. Irmãos e irmãs marchando
juntos para objetivos comuns, cultura e música para todos!
Liberdade de movimentos e escolha de lealdade! Paz! — Tudo isso
faz sentido para mim — murmurei.
— Você não é velho bastante para ter participado da agitação
nos anos trinta; nem eu. Não sei se teria suportado aquela situação.
Somos homens de bem, é isso o que somos. Homens racionais. É
isso o que Sergei também era. Você e Sergei... posso ver em seu
rosto, Ned, não adianta tentar esconder, vocês são vinho da mesma
pipa. Portanto, não diga que eu sou uma coisa e você outra, porque
somos iguais, da mesma forma que Sergei e eu éramos. No mesmo
lado contra a iniquidade, a falta de cultura, a sordidez. "Nós somos a
aristocracia não reconhecida"... era assim que Sergei nos chamava.
Ele estava certo. Você também é, isso é tudo o que posso dizer.
Afinal, quem mais existe? Quem é a alternativa para o que vemos
ao nosso redor todos os dias, a degradação, o desperdício, o
desrespeito? A quem vamos escutar, lá em cima, no sótão, à noite,
girando o botão de sintonia? Não os yuppies, com toda certeza. Não
a turma dos hippies... eles não têm nada a dizer. Nem a escola do
faça-mais, consuma-mais, seja-mais, eles não ajudam em nada.
Também não a brigada dos devassos. E não vamos converter o Islã
de um momento para outro, não enquanto eles brigam uns com os
outros e produzem o gás venenoso. Portanto, qual é a alternativa
para um homem de sentimentos, um homem de consciência, agora
que os russos estão abandonando suas responsabilidades e
assumindo o papel de penitentes? Quem está lá para nós? Onde
está a visão? Onde está o socorro? Na amizade? Alguém tem de
preencher a lacuna. Não posso ficar sem nada. Não posso ficar no
ar. Não depois de Sergei, Ned... eu morreria. Sergei era o homem
mais importante do mundo para mim. A essência da vida, o riso,
Sergei era tudo isso. Era o meu sentido total. O que vai acontecer?
É isso o que quero saber. Algumas cabeças poderiam rolar, em
minha opinião. Sergei tinha a ideologia. Não a encontro em você...
ou pelo menos acho que não. Tenho apenas um vislumbre, um
anseio aqui e ali, depois não tenho a menor certeza. Não sei se
você possui a qualidade.
— Pode me experimentar, Cyril.
— Não sei se você possui o espírito. O embalo. Pensei que
tinha quando entrou. Comparei-o mentalmente com Sergei, e receio
que o achei insuficiente. Sergei não chegou aqui se arrastando
como um morto-vivo; entrou como uma tempestade. Tocou a
campainha, avançou pela porta como se tivesse comprado a casa,
sentou onde você está, só que mais desperto... não que
permanecesse sentado em qualquer lugar por muito tempo, isso
nunca acontecia com Sergei, era um irrequieto, até mesmo na
ópera. Depois ele sorriu como um duende, levantou o copo de sua
própria vodca. "Parabéns, Sr. Nemo", disse ele. "Ou posso chamá-lo
de C? Ganhou o concurso e eu sou o prêmio." Cyril passou o dorso
da mão pela boca, e compreendi que estava removendo um sorriso.
— Sergei era um homem impetuoso.
Ele começou a rir e eu ri também. Modrian era a sua falsa
liberdade, eu pensava. Assim como Sally era a minha.
— Ele nem mesmo tirou o casaco — continuou Cyril. —
Entrou direto com o seu discurso. "A primeira coisa que precisamos
acertar é a cerimônia", diz ele. "Nada de espalhafatoso, Sr. Nemo,
apenas dois amigos meus, nada menos que Olga e Bóris, mais um
ou outro dignitário do Comitê, e uma pequena recepção para alguns
de seus muitos admiradores em Moscou." '"Na sua embaixada?',
perguntei. 'Não posso ir até lá. Meu escritório me mataria... não
conhece Gorst.' '"Não, não, Sr. Nemo', diz ele. 'Não, não, Sr. C. Não
estou falando da embaixada... quem se importa com a embaixada?
Estou me referindo à escola de línguas estrangeiras da
Universidade Estadual de Moscou e a inauguração oficial de sua
situação como estudante honorário, com todas as honras civis.'
"Pensei a princípio que acabara de morrer. Meu coração parou de
bater. Pude senti-lo. Nunca estivera além de Dover em toda a minha
vida, muito menos na Rússia, embora fosse do Ministério do
Exterior. 'Ir a Moscou?', balbuciei. 'Perdeu o juízo. Sou um técnico
de codificação, não um líder sindical com uma úlcera. Não posso ir a
Moscou sem mais aquela', falei. 'Mesmo que haja um prêmio ao
final da viagem, com Olga e Bóris esperando para me apertarem a
mão, o título de estudante honorário e não sei mais o quê. Parece
que não entende a posição que ocupo. Meu trabalho é altamente
sensível', falei. 'As pessoas não são tão sensíveis assim, mas o
trabalho é. Tenho um acesso constante e regular a muitos segredos.
Não sou uma pessoa qualquer, não posso entrar num avião e seguir
para Moscou sem que ninguém se importe. Pensei que havia
explicado isso em meus ensaios, em alguns.' "'Pois então venha
para Salzburgo comigo', diz ele. 'Quem vai se importar? Pegue um
avião para Salzburgo, diga que vai assistir ao festival de música ali,
depois siga para Viena, estarei com as passagens de avião à
espera... não se preocupe, é a Aeroflot, mas a viagem dura apenas
duas horas... e nenhum problema de passaporte quando
chegarmos, será uma cerimônia em família, quem vai saber?'
Depois ele me entrega o documento, como um pergaminho, as
pontas queimadas e essas coisas, o convite formal, assinado por
todo o Comitê, em inglês de um lado, russo no outro. Li em inglês,
não tenho vergonha de lhe dizer. Não ia sentar na frente dele com
um dicionário durante uma hora, não é mesmo? Pareceria um idiota,
logo eu, um eminente estudioso da língua. Cyril fez uma pausa... um
tanto constrangido, pensei.
— E foi então que eu lhe disse meu nome. Não deveria ter
feito isso, é claro, mas já me cansara de ser Nemo. Queria ser eu.
Agora vocês devem se soltar de mim por um momento, assim
como eu me soltei de Cyril. Até aquele momento eu conseguira
acompanhar suas referências. Onde mais tinha receio, até as
conduzira. Mas agora, subitamente, ele corria livre e eu precisava
fazer o maior esforço para acompanhá-lo. Falava sobre Bóris e
Olga, não mais como soavam, mas sim como pareciam; e como
Bóris o abraçara, e como Olga lhe dera um beijo russo, recatado
mas afetuoso — ele não gostava de beijos como regra geral, Ned,
mas com os russos não era o tipo de beijo de Gorst, por isso você
não se importava. A gente até passava a esperar, Ned, sendo tudo
parte do que os russos consideram como camaradagem. Frewin
parecia vinte anos mais jovem e falava de ser festejado, de todos os
aniversários que nunca tivera. Olga e Bóris em carne e osso, Ned,
sem nenhuma ostentação, sempre naturais, exatamente como eram
em suas aulas.
— "Parabéns, Cyril", ela me diz, "por seu progresso
fenomenal na língua russa." Através de intérprete, é claro, pois eu
não era tão avançado assim, como disse a ela. E depois Bóris
passou o braço por meus ombros. "Estamos orgulhosos em poder
ajudá-lo, Cyril", diz ele. "Há muitos alunos que desistem pelo
caminho, para dizer a verdade, mas os que continuam até o fim
compensam todo o resto." E a esta altura eu já definira a cena que
ele me pintava em pinceladas tão gerais e toscas: seu primeiro
Natal na Rússia, e para Frewin, eu não tinha a menor dúvida, seu
primeiro bom Natal em qualquer lugar, e Sergei Modrian bancando o
mestre de cerimônias a seu lado. Estão numa sala grande em algum
lugar de Moscou, com candelabros e discursos e uma
apresentação, com cinquenta extras escolhidos com todo cuidado
no Elenco Central de Moscou, Frewin no paraíso, que é justamente
o lugar em que Modrian deseja pô-lo.
E depois, tão abruptamente quanto me oferecera essa
recordação, Frewin abandonou-a. A luz apagou em seus olhos, a
cabeça inclinou-se para um lado, ele franziu as sobrancelhas, como
se em julgamento de seu próprio comportamento. Prudentemente,
tratei de trazê-lo de volta ao presente, indagando: — E onde está o
pergaminho que ele lhe deu? Aqui? O pergaminho, Cyril. O
pergaminho que o designava estudante honorário. Onde está? Ele
me fitava fixamente, despertando devagar.
— Tive de devolver a Sergei. "Quando estivermos em
Moscou, Cyril," disse ele, "você o terá em sua parede, emoldurado
em ouro. Não aqui. Eu não o submeteria a esse risco." Ele pensara
em tudo, o Sergei, e tinha toda razão, com você e o seu QG me
bisbilhotando noite e dia.
Eu não permitia qualquer pausa, nenhuma alteração em
minha voz, nem mesmo na direção da informalidade. Tornei a baixar
os olhos e enfiei a mão no bolso interno do paletó. Era seu
candidato a substituto de Sergei, ele estava me cortejando.
Mostrava-me seus truques e pedia-me para aceitá-lo. O instinto me
dizia que devia dificultar as coisas para ele. Tornei a me endereçar
ao caderninho de anotações, e falei exatamente como se lhe
perguntasse o nome do avô materno.
— E quando você começou a passar para Sergei todos
aqueles grandes segredos britânicos? Isto é, pelo menos o que nós
chamamos de segredos. Obviamente o que era um segredo há
poucos anos não é a mesma coisa que um segredo hoje, não
concorda? Não vencemos a Guerra Fria pelo sigilo, não é mesmo?
Vencemos pela abertura. A glasnost.
Era a segunda vez que eu mencionava a entrega de
segredos, mas nesta ocasião, quando atravessei o Rubicão para
ele, Cyril me acompanhou. Só que nem parecia notar que se
encontrava no outro lado.— Correto. Foi assim que vencemos. E
Sergei, a princípio, nem mesmo queria os segredos. "Segredos,
Cyril, não têm a menor importância para mim", disse ele. "Segredos,
Cyril, no mundo em transformação em que vivemos, tenho o maior
prazer em dizer, não valem nada no mercado", disse ele. "Prefiro
manter nossa amizade numa base não oficial. Mas se algum dia eu
precisar de alguma coisa assim, pode contar que o avisarei."
Enquanto isso, ele disse, bastava que eu lhe escrevesse alguns
relatórios extraoficiais sobre a qualidade dos programas da Rádio
Moscou, só para manter seus chefes felizes. Se a recepção era
bastante boa, por exemplo. Nunca se sabe com os russos onde se
vai despertar a ignorância neles, para ser franco. Não é uma crítica,
é um fato. Ele gostaria também de ter minha opinião sobre o curso,
disse Sergei, o padrão de instrução em geral, qualquer sugestão
que eu pudesse ter para Bóris e Olga no futuro, já que eu era um
discípulo excepcional.
— E o que mudou isso? — Mudou o quê? Seja lúcido, por
favor, Ned. Não sou ninguém, você sabe. Não sou o Sr. Nemo. Sou
Cyril.
— O que mudou a relutância de Sergei em aceitar segredos
de sua parte? — A embaixada dele. Os reacionários. Os bárbaros. É
o que eles sempre fazem. Deram um jeito de prevalecer.
Recusaram-se a reconhecer o curso da história; preferiam
permanecer trogloditas totais, em suas cavernas, prosseguir em sua
ridícula Guerra Fria.
Falei que não estava entendendo. Era um pouco acima da
minha capacidade de compreensão.
— O que não me surpreende. Porei de outra forma. Havia
muitos naquela embaixada que não gostavam do tempo dispensado
à amizade cultural, para começar. Havia uma rivalidade interna entre
as facções. Eu era um espectador impotente. Os pombos, eles eram
a favor da cultura, naturalmente, e acima de tudo eram a favor da
glasnost. Viam a cultura preenchendo o vácuo deixado pela
suspensão das hostilidades. Sergei me explicou isso. Mas os
falcões... inclusive o embaixador, lamento dizer... queriam que
Sergei se concentrasse mais na continuação de antigas atividades,
o que restava delas, recolhendo informações e de um modo geral se
comportando de uma forma agressiva e conspiradora, independente
das mudanças no clima internacional. Os intransigentes da
embaixada não estavam absolutamente interessados no fato de
Sergei ser um idealista. Era de se prever, não é mesmo, não se
interessariam, do mesmo modo que Gorst não se interessa. Sergei
tinha de andar na corda bamba, para ser franco, inclinando-se um
pouco para um lado, depois para o outro. Eu fazia o mesmo, era o
dever. Cultivávamos nossa cultura juntos, um pouco de língua, um
pouco de arte ou música; e depois arrumávamos alguns segredos
para satisfazer os falcões. Precisávamos nos justificar para todos os
lados, como acontece com você com seu QG e eu com o Tanque.
Ele começava a definhar, eu o estava perdendo, tinha de
recorrer ao açoite.
— Mas quando! — indaguei, impaciente.
— Quando o quê? — Não banque o espertinho comigo, está
bem, Cyril? Tenho de registrar tudo. Pense no tempo. Quando
começou a passar informações a Sergei Modrian, o que disse a ele,
para que, quanto, quando parou, por quê, quando podia muito bem
continuar? Eu gostaria de ter um fim de semana, Cyril, se não se
incomoda. E minha esposa também. Eu gostaria de levantar os pés
na frente da televisão. E não me pagam horas extras, você sabe. É
estritamente um trabalho por tarefa, o que eles oferecem. E um
candidato é igual a outro, em matéria de pagamento. Estamos
vivendo numa época de eficiência de custo, caso ainda não tenha
percebido. E disseram que poderíamos ser privatizados, se não
tomássemos cuidado.
Ele não me ouviu. Não queria ouvir. Perambulava, no corpo e
na mente, à procura de distração, de algum lugar em que se
esconder. Minha raiva já não era mais simulada. Começava a odiar
Modrian. Sentia-me furioso por constatar até que ponto
dependíamos da credulidade dos inocentes para sobreviver. Era
repulsivo para mim que um embusteiro como Modrian fosse capaz
de transformar a solidão de Frewin em traição. Sentia-me ameaçado
pela noção do amor como antítese do dever.
Levantei-me abruptamente, a ira ainda como aliada. Frewin
empoleirava-se apaticamente na beira de um banco arthuriano todo
esculpido, com a insígnia da Marinha Real no assento.— Mostre-me
seus brinquedos — ordenei a Cyril.
— Que brinquedos? Sou um homem, não se esqueça, não
um menino. E está na minha casa. Não me diga o que fazer.
Eu me lembrava da maneira como Modrian operava, o
material que usava, a forma como equipava seus agentes. E
lembrava também de minha própria operação, do tempo em que
dirigia os equivalentes de Frewin contra o alvo soviético, embora
nenhum deles fosse tão alucinado quanto Frewin. Imaginava como
poderia manipular um agente difícil de alto acesso como Frewin,
vivendo à beira da sanidade.
— Quero ver sua câmera, está bem? — declarei, petulante. —
E seu transmissor de alta velocidade, Cyril, está bem? Seu plano de
sinais. Seu código de horários. Seus cristais. Seus carbonos
brancos para a escrita secreta. Seus artefatos de ocultamento.
Quero ver tudo, Cyril, quero pôr tudo em minha pasta para a
segunda-feira; e depois quero ir para casa, assistir ao jogo de
futebol entre o Arsenal e o United. Esse pode não ser o seu gosto,
mas acontece que é o meu. Assim, não podemos acelerar um pouco
e acabar logo com essa droga, por favor! A loucura começava a se
esgotar, eu podia sentir. Ele sentia-se exausto e eu também. Cyril
sentou, cabeça baixa, joelhos separados, olhando apaticamente
para as mãos. Pude sentir o princípio do fim — o momento em que
o penitente se torna cansado de sua confissão e das emoções que a
impeliram.
— Estou ficando um pouco nervoso, Cyril.
E como ele não reagisse, fui até o telefone, o mesmo que o
falso técnico de Monty deixara permanentemente ligado. Disquei o
número direto de Burr e ouvi sua secretária de luxo no outro lado da
linha, a mesma que não conhecia meu nome.
— Querida? — falei. — Vou demorar mais uma hora, se tiver
sorte. Estou com um cliente devagar. Eu sei, eu sei, desculpe. Está
bem, já pedi desculpas. Claro, claro.
Desliguei e olhei para Cyril, com uma expressão acusadora.
Ele se levantou lentamente, levou-me para o segundo andar. E
continuamos a subir. O sótão era um quarto extra, telhado alto. O
receptor de rádio se encontrava numa mesa no canto — alemão,
como Monty dissera. Liguei-o, enquanto ele me observava, ouvimos
uma voz de mulher falando russo com sotaque, protestando
indignada contra a máfia criminosa de Moscou.— Por que desfazem
isso? — explodiu Frewin em cima de mim, como se fosse eu o
responsável. — Os russos. Por que falam mal de seu país durante
todo o tempo? Não costumavam se comportar assim. Eram
orgulhosos. E eu também me orgulhava. Todos os trigais, a
ausência de classes, o xadrez, os cosmonautas, o bale, os atletas.
Era o paraíso, até que eles começaram a destruí-lo. Esqueceram o
que havia de bom neles. É vergonhoso. Foi isso o que eu disse a
Sergei.
— Então por que ainda os ouve? — indaguei.
Ele estava quase chorando, mas fingi não perceber.
— Pela mensagem, entende?
— Vamos logo, Cyril!
— A mensagem dizendo que estou reativado. Que sou
desejado outra vez. "Volte, Cyril. Tudo está perdoado, amor, Cyril." É
tudo o que eu preciso ouvir.
— Como eles diriam isso?
— Tinta branca.
— Continue.
— "Lá está a tinta branca no cachorro, Olga".... "Precisamos
de uma mão de tinta branca na estante, Bóris."... "Oh, Olga, olhe só
para o gato! Alguém mergulhou seu rabo em tinta branca. Detesto a
crueldade", diz Bóris. Por que eles não falam quando estou
escutando?
— Vamos nos ater ao método, está bem? Você ouve a
mensagem. Pelo rádio. Olga ou Bóris diz "tinta branca". Ou os dois.
O que você faz em seguida?
— Verifico o meu plano de sinais.
Estendi a mão, comandando-o com um estalo dos dedos.
— Depressa! E ele se apressou. Pegou uma escova de
cabelos de madeira. Retirou as cerdas, enfiou os dedos grandes na
abertura e removeu um pedaço de papel mole, inflamável, com
horários do dia e faixas de ondas impressos em paralelo. Estendeu
para mim, esperando que pudesse me satisfazer. Peguei sem a
menor satisfação e meti dentro de meu caderninho de anotações, ao
mesmo tempo em que olhava o relógio.
— Obrigado — falei, bruscamente. — Mais, por favor, Cyril.
Preciso do livro de códigos e do transmissor. E não me diga que não
os tem, pois minha paciência se esgotou.
Ele mexia numa lata de talco, puxando a base, tentando
desesperadamente me agradar. E pôs-se a falar, muito nervoso,
enquanto sacudia o talco na pia.
— Eu era respeitado, deve entender, Ned, o que não se
encontra muito hoje em dia. Há três desses. Boris e Olga me dizem
qual deles usar, como o código da tinta branca, só que com
compositores. Tchaikovsky era o número três, Beethoven o número
dois, Bach o número um. Escolheram em ordem alfabética para me
ajudar. Temos os vislumbres, mas não os amigos de verdade, não
normalmente, não é? Não a menos que você encontre Sergei ou
alguém de sua turma.
Todo o talco fora despejado. Três cristais de rádio se
encontravam em sua mão, junto com um pequeno bloco de código e
uma lupa para aumentá-lo.
— Ele tinha tudo o que eu era, o Sergei. Dei a ele. Sergei me
dizia uma coisa, eu acrescentava à minha vida. Eu tinha uma
depressão, ele me reerguia. Ele me compreendia. Podia ver dentro
de mim. O que me proporcionava um sentimento de ser conhecido,
muito agradável. Mas que desapareceu agora. Foi transferido de
volta a Moscou.
Seu devaneio me assustava. E também o seu desejo febril de
me apaziguar. Se eu fosse o seu carrasco, ele estaria ajeitando o
laço agradecido.
— Seu transmissor — pedi, em tom ríspido. — De que adianta
um cristal e um código se você não pode transmitir? No mesmo
ritmo terrível, ele inclinou o corpo estofado para o chão e empurrou
para trás um canto do tapete Wilton de tufos.
— Não tenho uma faca, Ned.
Nem eu tinha, mas não me atrevia a deixá-lo, não me atrevia
a romper o controle que mantinha sobre ele. Agachei-me ao seu
lado. Cyril olhava vagamente para uma tábua solta no assoalho,
tentando levantá-la com os dedos grossos. Cerrando o punho, bati
numa extremidade da tábua e tive a satisfação de ver o outro lado
se levantar.
— Pode pegar, Cyril.
Era um aparelho velho, calculei, já não usavam mais nada
parecido — um conjunto de caixas cinzentas, um transmissor
comprido, com um pino para ligar a seu receptor. Mas ele me
entregou com evidente orgulho, em sua confusão emaranhada. E
uma ansiedade profunda insinuou-se em seus olhos.— Tudo o que
sou agora, Ned, é um buraco. Não quero ser mórbido, juro, mas a
verdade é que não existo. Esta casa também não é nada. Eu a
amava. A casa cuidava de mim, da mesma forma que eu cuidava
dela. Não éramos nada um sem o outro, esta casa e eu. É difícil
para você compreender isso, eu diria, se tem uma esposa, o que
significa uma casa. Ela se interpõe entre vocês. Você e a casa. Sua
esposa. Você e ele. Modrian. Eu o amava, Ned. Era apaixonado.
"Você exagera, Cyril", ele costumava dizer. "Acalme-se. Relaxe. Tire
umas férias. Está com alucinações." Eu não podia. Sergei era
minhas férias.
— Câmera — ordenei.
Ele não entendeu imediatamente. Estava obcecado por
Modrian. Fitou-me, mas era Modrian que via.
— Não seja assim — murmurou ele, sem entender.
— Câmera! — berrei. — Pelo amor de Deus, Cyril, nunca teve
um fim de semana?
Ele foi até o armário. Lâminas de espadas esculpidas nas
portas de carvalho.
— Câmera! — berrei, ainda mais alto, enquanto ele ainda
hesitava. — Como pode passar o filme para um bom amigo na
ópera se não fotografou antes seus arquivos?
— Tenha calma, Ned. Controle-se, está bem? Por favor. —
Sorrindo, de uma maneira superior, ele enfiou a mão dentro do
armário. Mas seus olhos me observavam, enquanto acrescentava:
— E agora veja isto.
Ele tateou pelo interior do armário, exibindo um sorriso
misterioso. Tirou um binóculo de ópera e focalizou-o em mim,
primeiro da maneira correta, depois ao inverso. E estendeu-o para
mim, a fim de que eu pudesse fazer a mesma coisa. Peguei o
binóculo e percebi seu peso anormal no mesmo instante. Girei o
controle central, até ouvir um estalido. Cyril balançava a cabeça
para mim, encorajando-me, enquanto dizia: — É assim mesmo,
Ned, é assim que se faz.
Ele pegou um livro na estante e abriu-o no meio, Todos os
Bailarinos do Mundo, ilustrado. Uma moça fazia pas de chat. Sally
também cursara uma escola de balé. Ele pegou o binóculo e
apontou-o para o livro, calculou a distância e girou o controle até
que estalou.
— Está vendo? — disse Cyril, orgulhoso. — Comprenez, não
é mesmo? Fizeram especialmente. Para mim. Para as noites de
ópera. Sergei projetou-o pessoalmente. Há muita ociosidade na
Rússia, mas Sergei exigia o melhor. Eu ficaria até mais tarde no
Tanque. Fotografaria todo o movimento da semana para ele, se
assim quisesse, depois lhe entregaria o filme, quando nos
encontrássemos na ópera. Geralmente eu entregava durante uma
das árias... era uma espécie de brincadeira entre nós.
Cyril devolveu-me o binóculo e vagueou pelo cômodo, as
pontas dos dedos coçando a calva, como se tivesse uma vasta
cabeleira. E depois estendeu as mãos, como alguém verificando se
está chovendo.
— Sergei teve o melhor de mim, Ned, e agora ele foi embora.
C'est la vie. Agora depende de você. Será que tem coragem? Tem o
espírito? Foi por isso que lhe escrevi. Tinha de fazê-lo. Eu estava
vazio. Não o conhecia, mas precisava de você. Queria um homem
de bem que me compreendesse. Um homem em que eu pudesse
confiar outra vez. Tudo depende de você, Ned. Agora é a sua
oportunidade. Caia fora e viva, eu lhe digo, enquanto ainda há
tempo. Aquela sua esposa é um tanto autoritária, ao que parece.
Seria melhor dizer a ela para cuidar de sua própria vida, em vez de
controlar a vida do marido. Eu deveria anunciar, não é mesmo? Um
sorriso opressivo, que ele fixou todo em cima de mim.
— Homem solteiro, que não fuma, apreciador de música e
espírito. Dou uma olhada nessas colunas às vezes... quem não dá?
Penso de vez em quando em responder, mas não saberia como
romper, se não fosse condizente. Por isso eu lhe escrevi uma carta,
não é? De certa forma, era como escrever a Deus, até que você
apareceu em seu casaco surrado e fez uma porção de perguntas
incômodas, sem dúvida elaboradas pelo QG. Está na hora de você
se levantar, Ned, da mesma forma que eu. Sente-se intimidado, é
esse o seu problema. Sua esposa é em parte culpada por isso, na
minha opinião. Escutei sua voz enquanto pedia desculpas e não
fiquei impressionado. Não tem empenho para se libertar. Ainda
assim, acho que poderia fazer alguma coisa por você, e você
também poderia fazer alguma coisa por mim. Pode me ajudar a
escavar o tanque. E eu poderia introduzi-lo à música. E ficaríamos
quites, certo? Ninguém é impermeável à música. Só fiz isso por
causa de Gorst.
Abruptamente, sua voz ficou impregnada de horror.
— Ned! Largue isso, pelo amor de Deus! Tire suas mãos de
ladrão da minha propriedade! Ned, não\ Eu mexia na máquina de
escrever Markus. Estava no armário em que ele também guardava o
binóculo de ópera, por baixo de algumas camisas. Assinado A.
Patriota, pensei. O "A" representando Alguém, pensei. Alguém que
o amava. Eu já adivinhara e ele já me dissera, mas a visão da
máquina excitou a nós dois, com um senso de conclusão.
— Então por que você rompeu com Sergei? — perguntei,
ainda mexendo nas teclas.
Mas desta vez ele não correspondeu à minha lisonja.
— Eu não rompi, foi ele. E não estou terminando agora, não
se você ficar no lugar dele. Largue isso. Cubra da maneira como
encontrou e largue isso, por favor.
Fiz como ele pedia. Escondi a prova da máquina de escrever.
— O que ele disse? — indaguei, num tom de indiferença. —
Como ele rompeu com você? Ou apenas escreveu e fugiu? Eu
pensava em Sally de novo.
— Não houve nada demais. Não se precisa de muitas
palavras quando se está retido em Londres, e você se encontra em
Moscou. O silêncio fala por si.
Ele se aproximou do rádio e sentou na sua frente.
Acompanhei-o, pronto para contê-lo.
— Vamos ligar o rádio, está bem, escutar um pouco. Eu ainda
poderia receber um "Volte, Cyril", nunca se sabe.
Observei-o armar o transmissor, depois abrir a janela e
estender a antena para fora, como se fosse uma linha de pesca,
com um peso de chumbo, mas sem anzol. Observei-o estudar o
plano de sinais, bater SOS e seu código no gravador. E depois ligou
o gravador ao transmissor, mandando a mensagem pelo éter, com
um zumbido. Cyril fez isso várias vezes, antes de ligar o receptor,
mas nada veio e ele também não esperava; só me mostrava que
nunca mais viria.
— Ele me disse que estava acabado — murmurou Cyril,
olhando para os controles. — Não o estou acusando. Ele disse.
— O que estava acabado? A espionagem?
— Oh, não, não a espionagem, isso continuará para sempre,
não é mesmo? O comunismo, na verdade. Ele disse que o
comunismo não passava de outra religião minoritária hoje em dia,
mas ainda não despertáramos para o fato. "Está na hora de
pendurar as chuteiras, Cyril. E é melhor não ir para a Rússia, a fim
de não ser descoberto. Seria um embaraço para o novo clima. E
poderíamos ter de devolvê-lo, como um gesto. O problema é que
estamos superados, você e eu. O Centro Moscou decidiu. O que
importa em Moscou hoje em dia são as moedas fortes. Eles
precisam de todas as libras e dólares que puderem conseguir. Por
isso, receio que ficamos deslocados, você e eu, somos de trop e um
pouco déjà vu, para não dizer um grande embaraço para todos os
envolvidos. Moscou não pode se dar o luxo de controlar funcionários
de codificação do Ministério do Exterior com acesso a altos
segredos. Meu conselho a você, Cyril, é tirar umas boas férias,
procurar um médico, bastante sol e repouso, porque aqui entre nós
você começa a apresentar alguns sinais de desvario. Gostaríamos
de ajudá-lo, mas estamos com escassez de moedas fortes, para ser
franco. Se você precisar de uma quantia modesta de duas mil libras,
tenho certeza que poderíamos providenciar um depósito num banco
suíço, mas qualquer quantia maior é impossível até segunda
ordem." Sinceramente, Ned, era como uma pessoa diferente me
falando.
Sua voz agora era de resignada incompreensão, enquanto ele
continuava: — Fôramos grandes amigos e ele não queria mais.
"Não leve a vida tão a sério, Cyril", ele diz. E não para de me falar
que estou sob tensão, há pessoas demais dentro da minha cabeça.
Acho que ele tem razão. Vivi a vida errada, só isso. Mas às vezes
não se sabe até que já é tarde demais, não é? Pensa que é uma
pessoa, descobre que é outra, como na ópera. Mas não se
preocupe, eu sempre digo. Lute por mais um dia. E não diga que a
luta foi em vão. Sempre há algum proveito. Isso mesmo.
Ele empinou os ombros moles, empertigou-se um pouco,
como uma pessoa superior aos acontecimentos.
— Muito bem, Ned.
Voltamos à sala de estar. Já acabáramos. Só faltava OD— ter
as respostas que faltavam e obter um inventário de tudo o que ele
traíra.
Já acabáramos, mas era eu, não Frewin, quem resistia ao
passo final. Sentado no braço do sofá, ele virou a cabeça para longe
de mim, sorrindo exuberante e me oferecendo o pescoço comprido
para o machado. Mas esperava por um golpe que eu me recusava a
desferir. A cabeça calva redonda esticava-se para cima, como se ele
dissesse "Faça agora, acerte-me aqui". Mas eu não podia. Não fiz
qualquer movimento em sua direção. Tinha o caderninho de
anotações na mão, escrevera o suficiente para ele assinar e
acarretar a própria destruição. Mas não me mexi. Estava no lado
estúpido de Cyril, não no deles. Mas que lado era esse? O amor era
uma ideologia? Ou será que nós, em nossa pressa de dividir o
mundo, dividíamos pelo lado errado, deixando de perceber que a
verdadeira batalha era travada entre os que ainda procuram e os
que, a fim de prevalecer, reduziram sua vulnerabilidade ao mais
baixo fator comum de indiferença? Eu me encontrava prestes a
destruir um homem por amor. Levava-o pelos degraus de seu
patíbulo, fingindo que fazíamos um passeio dominical.
— Cyril...
Tive de repetir o nome.
— O que é?
— Devo obter um depoimento assinado seu.
— Pode dizer ao QG que eu promovia a compreensão entre
grandes nações — sugeriu ele, prestativo. Tive a impressão de que
ele lhes diria isso por mim, se fosse capaz. — Diga-lhes que pus um
ponto final na hostilidade insensata e inacreditável que observei no
Tanque durante muitos anos. Isso deverá acalmá-los.
— Eles adivinharam que era alguma coisa assim, Cyril.
Acontece apenas que há um pouco mais nessa história do que você
compreende.
— Diga também que desejo uma transferência. Quero deixar
o Tanque imediatamente e alcançar a aposentadoria num cargo
mais modesto. Aceito até um rebaixamento, já decidi. Não me falta
algum dinheiro. E não sou orgulhoso. Uma mudança de trabalho é
melhor do que férias, eu diria. Para onde vai, Ned? O banheiro fica
no outro lado.
Eu me encaminhava para a porta. Encaminhava-me para a
sanidade e a fuga. Era como se o meu mundo tivesse se reduzido
àquela sala pavorosa.
— Preciso voltar ao escritório, Cyril. Durante uma hora, mais
ou menos. Não posso tirar o seu depoimento de uma cartola, você
sabe. É necessário elaborá-lo de forma apropriada, de acordo com
os funcionários e todo o resto. E não se preocupe com o fim de
semana. Não gosto mesmo dos fins de semana, para ser sincero.
Buracos no universo, se quer saber minha opinião, assim são os fins
de semana. — Por que eu falava com a cadência dele? — Não se
incomode, Cyril. Posso sair sozinho. Trate de descansar um pouco.
Eu queria escapar antes que eles chegassem. Olhando além
da cabeça de Frewin para a janela, pude ver Monty e dois de seus
homens saindo do furgão, ao mesmo tempo em que um carro preto
da polícia parava na frente da casa... pois o Serviço, graças a Deus,
não tinha competência para efetuar uma prisão.
Mas Frewin recomeçou a falar, da forma como os agonizantes
continuam a falar depois que você pensa que já estão mortos.
— Não posso ficar sozinho, Ned. Não posso mais. Não posso
explicar a um estranho o que eu fiz, Ned, não tudo de novo,
ninguém pode.
Ouvi passos no caminho de cascalho, depois a campainha da
porta. Frewin levantou a cabeça, seus olhos se encontraram com os
meus, observei a compreensão raiar neles, desvanecer-se em
incredulidade, raiar de novo. Continuei a fitá-lo enquanto abria a
porta da frente. Palfrey estava ao lado de Monty. Por trás deles
havia dois guardas uniformizados e um homem chamado Redman,
mais conhecido como Bedlam, da equipe de psicanalistas do
Serviço.
— Maravilhoso, Ned — murmurou Palfrey, num aparte
apressado para mim, enquanto os outros entravam na casa. — Um
coup extraordinário. Providenciarei para que ganhe uma medalha.
Algemaram Cyril. Não me ocorrera que fariam isso.
Algemaram suas mãos nas costas, o que o fez levantar o queixo.
Acompanhei-o até o furgão e ajudei-o a embarcar, mas a esta altura
ele já encontrara alguma dignidade pessoal, e não mais se
incomodava de quem era a mão em seu cotovelo.— Nem todos
podem quebrar um agente treinado por Modrian entre o desjejum e
o almoço — comentou Burr, com uma melancólica satisfação.
Jantávamos no Cecconi's, sem muito ânimo, para onde ele insistira
em me levar naquela mesma noite. — Nossos caros irmãos do outro
lado do parque estão fora de si de raiva, fúria, indignação e inveja, o
que nunca é mau.
Mas ele me falava de um mundo do qual eu me retirara
temporariamente.
— Ele quebrou sozinho — murmurei. Burr fitou-me
atentamente.
— Não aceito isso, Ned. Nunca vi uma mão ser jogada
melhor. Você agiu como um prostituto. Tinha de fazer isso. Somos
todos assim. Prostitutos que pagam. E não aguento mais a sua
melancolia, por falar nisso... sentado lá na Northumberland Avenue,
ameaçador como uma nuvem de tempestade, sacudido entre suas
mulheres. Se não pode tomar uma decisão, aqui vai uma. Deixe o
seu pequeno amor de lado e volte para Mabel, se quer meu
conselho, o que não é o caso. Voltei para minha mulher na semana
passada e é uma coisa terrível.
Apesar da depressão, descobri-me a rir.
— Portanto, tomei a seguinte decisão — continuou Burr,
depois que generosamente consentiu em outro enorme prato de
massa. — Você deve abandonar o mau humor como um modo de
vida, e vai também abandonar o Centro de Interrogatório, no qual,
em minha modesta opinião, tem estudado o seu reflexo narcisista há
tempo demais. Vai desenrolar a sua esteira no Quinto Andar e
substituir Peter Guillam como meu chefe de gabinete, o que é
condizente com sua disposição calvinista, além de me livrar de um
funcionário completamente ocioso.
Fiz o que ele sugeriu — tudo mesmo. Não porque ele
sugerira, mas porque falara ao meu ânimo. Comuniquei a decisão a
Sally na noite seguinte e, se nada mais, a angústia da ocasião
serviu para atenuar a lembrança de Frewin. Durante alguns meses,
a pedido de Sally, continuei a lhe escrever de Tunbridge Wells, mas
tornou-se tão difícil quanto fazer os deveres de casa da escola, Sally
foi a última do que Burr chamara de meus pequenos amores. Talvez
eu tivesse a noção de que, somando todos, poderiam formar um
grande amor.
DOZE
— PORTANTO, está acabado — disse Smiley.
O brilho do fogo agonizante iluminava a biblioteca revestida
de madeira, dourava as prateleiras de livros empoeirados sobre
viagens e aventuras, assim como o couro antigo e rachado das
poltronas, ressaltava as fotografias de seus batalhões
desaparecidos de oficiais uniformizados com bengalas; e,
finalmente, nossos rostos sortidos, virados para Smiley, instalado no
trono de honra. Quatro gerações do Serviço espalhavam-se pela
sala, mas a voz suave de Smiley e o nevoeiro de fumaça de charuto
pareciam nos unir em uma única família.
Não me lembrava de ter convidado Toby, mas com certeza os
funcionários o esperavam e os garçons adiantaram-se apressados
para cumprimentá-lo quando ele chegou. Com as lapelas largas de
seda e colete, em sua casaca balcânica, Toby parecia o próprio
Rittmeister.
Burr viera direto de Heathrow, vestindo o smoking no banco
traseiro de seu Rover com motorista, em deferência a George.
Entrara quase sem ser percebido, com seu andar silencioso de
bailarino, que os homens enormes parecem adquirir naturalmente.
Depois Monty Arbuck avistou-o e ofereceu o seu lugar. Burr tornara-
se recentemente o primeiro homem a ocupar o cargo de
Coordenador antes dos 35 anos.
E aos pés de Smiley alojava-se a minha última leva de
alunos, as moças como flores cortadas em seus vestidos de baile,
os rapazes ansiosos e rostos viçosos, depois dos exercícios de final
de curso em Argyll.— Está acabado — repetiu Smiley.
Foi seu súbito sossego que nos alertou? A voz alterada? Ou
algum gesto quase sacerdotal que ele fez, uma contração do corpo
roliço em compaixão ou determinação? Eu não poderia lhes dizer
naquela ocasião, não posso agora. Mas sei que não fitei ninguém
nos olhos, e ainda assim senti com suas palavras, no mesmo
instante, uma espécie de tensão entre nós, como se Smiley nos
chamasse às armas — embora o que ele falasse agora se
relacionasse mais em largar as armas do que levantá-las.
— Está acabado, e eu também. Absolutamente acabado. É
tempo de baixar a cortina sobre o último guerreiro frio de ontem. E,
por favor, não me peçam para voltar, nunca mais. O novo tempo
precisa de novas pessoas. A pior coisa que vocês podem fazer é
nos imitar.
Creio que ele tencionava terminar por aí, mas com George é
melhor não tentar adivinhar. Por tudo o que sei, ele gravara todo o
seu discurso de encerramento na memória antes de vir, trabalhara-
o, ensaiara-o, palavra por palavra. Seja como for, nosso silêncio
agora o pressionava, assim como a nossa necessidade de
cerimônia. Na verdade, nossa dependência de George era tão
profunda naquele momento que se ele virasse as costas e deixasse
a sala, sem nos oferecer mais nenhuma palavra, o desapontamento
transformaria o amor em rancor.
— A única coisa com que sempre me importei foi o homem —
anunciou Smiley.
E foi típico de sua habilidade que começasse com um
enigma, depois esperasse por um momento, antes de passar à
explicação: — Nunca dei a menor importância às ideologias, a
menos que fossem insanas ou malignas, nunca encarei as
instituições como dignas de seus papéis, ou as políticas como muito
mais do que desculpas para não sentir. O homem, não a massa, é
esse o nosso ofício. Foi o homem que encerrou a Guerra Fria, caso
vocês não tenham notado. Não foram os armamentos, tecnologia,
exército ou campanhas. Foi apenas o homem. E nem mesmo o
homem ocidental, como aconteceu, mas nosso inimigo jurado no
Leste, que saiu para as ruas, enfrentou as balas e os cassetetes e
disse: não aguentamos mais. Foi o imperador deles, não o nosso,
que teve a coragem de subir no palanque e declarar que não tinha
roupas. E as ideologias seguiram na esteira desses acontecimentos
improváveis como prisioneiros condenados, como sempre ocorre
com as ideologias ao se esgotarem. Porque não têm um coração
próprio. São como prostitutas e anjos de nossos eus sempre em
busca. Um dia, a história pode nos dizer quem realmente venceu.
Se uma Rússia democrática aflorar... ora, nesse caso a Rússia terá
vencido. E se o Ocidente engasgar em seu próprio materialismo,
então o Ocidente ainda pode ser o perdedor. A história mantém
seus segredos por mais tempo do que a maioria de nós. Mas ela
tem um segredo que revelarei a vocês esta noite, na mais absoluta
confiança. As vezes não há absolutamente vencedores. E as vezes
ninguém precisa perder. Perguntaram-me como devemos pensar na
Rússia hoje.
Será que lhe perguntáramos mesmo isso? O que mais
explicava a sua mudança de direção? Faláramos em termos vagos
sobre o Império Soviético desabando, era verdade; ponderáramos
sobre a ascensão e a ascensão do Japão e das transferências
históricas do poder econômico. E é verdade que no vaivém depois
do jantar houvera umas poucas referências de passagem a meu
tempo na Casa da Rússia, assim como algumas perguntas
relacionadas com o Oriente Médio e o trabalho de Smiley com o
Comitê de Direitos de Pesca, o que já se tornara do conhecimento
comum, graças a Toby. Mas não creio que fosse essa a pergunta
que George optava por responder agora.
— Querem saber: poderemos algum dia confiar no Urso?
Parecem achar divertida, embora um pouco inquietante, a noção de
que podemos conversar com os russos como seres humanos e
encontrar uma causa comum com eles, em muitas áreas. Eu lhes
darei várias respostas ao mesmo tempo.
"A primeira é não, nunca podemos confiar no Urso. Por um
motivo, porque o Urso não confia em si mesmo. O Urso está
ameaçado, o Urso está assustado, o Urso está desmoronando. O
Urso sente repugnância por seu passado, está cansado do presente
e apavorado com o futuro. O que aconteceu com frequência. O Urso
está abalado, é indolente, volúvel, incompetente, esquivo,
perigosamente orgulhoso, perigosamente armado, às vezes
brilhante, muitas vezes ignorante. Sem suas garras, ele não
passaria de outro membro caótico do Terceiro Mundo. Mas não está
destituído de suas garras, de jeito nenhum. E não pode retirar seus
soldados de territórios estrangeiros da noite para o dia, pelo bom
motivo de que não pode alojá-los, alimentá-los ou empregá-los, e
também não confia neles. E como este Serviço é o guardião
remunerado da desconfiança nacional, estaríamos negligenciando
nosso dever se relaxássemos por um segundo sequer na vigilância
ao Urso, ou a qualquer de suas crias rebeldes. Essa é a primeira
resposta.
"A segunda .resposta é sim, podemos confiar totalmente no
Urso. O Urso nunca foi tão digno de confiança. O Urso suplica para
ser parte de nós, submergir seus problemas em nós, ter sua conta
bancária conosco, fazer compras em nossas lojas, ser aceito como
um membro distinto de nossa floresta tanto quanto da sua... ainda
mais porque sua sociedade e economia estão em frangalhos, seus
recursos naturais foram pilhados e seus administradores são
incompetentes além da imaginação. O Urso precisa de nós tão
desesperadamente que podemos confiar em segurança que precisa
de nós. O Urso anseia em voltar atrás na sua terrível história e
emergir das trevas dos últimos setenta ou setecentos anos. Somos
a luz do dia para o Urso.
"O problema é que nós, ocidentais, não achamos natural
confiar no Urso, quer seja um Urso Branco ou Urso Vermelho, ou
ambos os tipos de urso ao mesmo tempo, o que ele é no momento.
O Urso pode cair em desgraça sem a gente, mas há muitos entre
nós que acham que é justamente o que ele merece. Assim como
havia pessoas em 1945 que argumentavam que uma Alemanha
derrotada deveria permanecer como um deserto de escombros pelo
resto da história humana.
Smiley fez uma pausa, parecia especular se já dissera o
suficiente. Olhou para mim, mas recusei-me a aceitar seu olhar. O
silêncio expectante deve tê-lo convencido a continuar.
— O Urso do futuro será qualquer coisa que o fizermos agora,
e as razões para fazer alguma coisa são várias. A primeira é a
simples decência. Depois que você ajudou um homem a escapar de
uma prisão injusta, o mínimo que pode fazer por ele é fornecer-lhe
uma tigela de sopa e os meios para ocupar seu lugar no mundo
livre. A segunda é tão óbvia que me sinto um pouco desconfortável
em ter de mencioná-la. A Rússia... até a Rússia sozinha, despojada
de todas as suas conquistas e possessões... é um vasto país, com
uma vasta população, numa parte crucial do globo. Deixamos o
Urso apodrecer? Encorajamos o Urso a se tornar ressentido,
atrasado, uma nação excessivamente armada fora de nosso lado?
Ou o convertemos em parceiro, num mundo que muda de contornos
a cada dia? Smiley pegou seu copo e fitou-o, pensativo, enquanto
girava o resto de conhaque. E senti que ele descobrira ser mais
difícil do que esperava se retirar.
— Muito bem — murmurou ele, como se de alguma forma
estivesse se defendendo de suas próprias afirmações. — É também
não apenas as nossas mentes que precisamos reformular. É todo o
Estado moderno, excessivamente poderoso, que construímos como
um bastião contra algo que não existe mais. Renunciamos a
liberdades demais para sermos livres. Agora, temos de recuperá-
las.
Ele ofereceu um sorriso tímido, e compreendi que tentava
lançar seu próprio encantamento sobre nós.
— Assim, enquanto vocês se empenham lealmente pelo
Estado, talvez possam me fazer um pequeno favor e de vez em
quando dar um empurrãozinho em seus pilares. Tornou-se grande
demais para suas medidas ultimamente. Seria ótimo se vocês
pudessem reduzi-lo a seu devido tamanho. Ned, ninguém me
aguenta mais. Está na hora de me mandar para casa.
Smiley levantou-se abruptamente, como se se desvencilhasse
de alguma coisa que ameaçava contê-lo com muita força. E depois,
lentamente, deliberado, correu os olhos pela sala uma última vez —
não a contemplar os alunos, mas sim as fotografias e troféus de seu
tempo, ao que parecia gravando tudo na memória. Ia se retirar da
casa depois de legá-la a seus herdeiros. E de repente, na maior
agitação, ele se lançou a uma busca de seus óculos, antes de
descobrir que os estava usando. Empinando os ombros, marchou
determinado para a porta, enquanto os dois estudantes adiantavam-
se apressados para abri-la.
— Muito bem. Boa noite. E obrigado. Ah, sim, peça a eles
para espionarem a camada de ozônio, está bem, Ned? Faz uma
calor horrível em St. Agnes para esta época do ano.
E ele saiu sem olhar para trás.
TREZE
OS RITUAIS de afastamento do Serviço provavelmente não
são mais penosos do que os de aposentadoria em qualquer outra
profissão, mas possuem uma pungência exclusiva. Há cerimônias
de reminiscências — almoços com velhos contatos, festas no
escritório, apertos de mão resignados com veteranas secretárias em
lágrimas, visitas de cortesia a serviços amigos. E há as cerimônias
de esquecimento, em que pouco a pouco você é isolado do
conhecimento especial que não se encontra ao alcance de outros
mortais. Para alguém que passou uma vida inteira no Serviço,
inclusive três anos como chefe de gabinete de Burr, podem ser
episódios longos e repetitivos, mesmo que os próprios segredos
tenham se aposentado muito antes de você. Encerrado na bolorenta
sala de advogado de Palfrey, felizmente, em muitas ocasiões, sob a
animação de um bom almoço, assinei uma declaração depois de
outra em renúncia a meu passado, obedientemente murmurando
com ele o tímido juramento inglês, e escutando a cada vez as suas
insinceras advertências de retaliação, caso eu me sentisse tentado
a violá-lo por vaidade ou dinheiro.
E eu estaria enganando a mim e a vocês se pretendesse que
o fardo cumulativo dessas cerimônias não foi pouco a pouco me
oprimindo, e me fazendo desejar que o dia de execução pudesse
ser antecipado — ou, melhor ainda, considerando como
consumado. Pois dia a dia passei a me sentir como o homem que
aceita a morte, mas precisa despender suas últimas energias a
consolar os que vão lhe sobreviver.
Foi um considerável alívio para mim, portanto, quando me
encontrava sentado mais uma vez na toca miserável de Palfrey,
faltando ainda três dias para a liberdade final ou prisão e recebi uma
convocação categórica para comparecer ao gabinete de Burr.
— Tenho um trabalho para você, e sei que vai detestar —
informou ele, batendo com o telefone em seguida.
Ele ainda parecia furioso quando entrei em sua sala.
— Deve ler a pasta, depois ir até o campo e argumentar com
ele. Não deve ofendê-lo, mas não receberá nenhuma crítica de
minha parte se quebrar o pescoço dele por acidente.
— Quem é ele? — Alguma relíquia do tempo de Percy
Alleline. Um desses magnatas barrigudos da City com quem Percy
gostava de jogar golfe.
Olhei para a capa da pasta volumosa. "BRADSHAW", eu li,
"Sir Anthony Joyston". E, em letras pequenas por baixo, "índice de
ativo", o que significa que a pessoa da pasta era considerada como
uma aliada do Serviço.
— Rasteje para ele, é uma ordem — disse Burr, no mesmo
tom ácido. — Apele para a sua melhor natureza. Recorra ao
discurso do velho estadista. Traga-o de volta ao rebanho.
— Quem diz que devo? — O santificado Ministério do
Exterior. Quem mais seria? — Por que eles próprios não rastejam?
— indaguei, espiando curioso a sinopse da carreira na primeira
página, — Pensei que era para isso que eles eram pagos.
— Eles bem que tentaram. Mandaram um ministro, de chapéu
na mão. Sir Anthony é à prova de rastejamento. E também sabe
demais. Pode citar nomes e apontar dedos. Sir Anthony Bradshaw...
— anunciou Burr, alteando a voz, numa salva de indignação do
North Country — ...Sir Anthony Joyston Bradshaw é um dos merdas
naturais da Inglaterra, que no curso de simular um serviço a seu
país adquiriu mais conhecimento de atividades ignominiosas do
Governo de Sua Majestade do que o Governo de Sua Majestade
jamais recebeu de Sir Anthony em relação a seus adversários.
Assim, ele acerta o Governo de Sua Majestade pelos ovos. Sua
missão é convidá-lo, com toda a cortesia, a afrouxar esse aperto.
Suas armas para essa missão são os cabelos grisalhos e a
afabilidade palpável, algo que já notei que não se recusa a usar de
maneira pérfida. Ele o espera às cinco horas da tarde e gosta de
pontualidade. Kitty arrumou uma mesa para você na antessala.Não
demorou muito para que a indignação de Burr ficasse explicada. Há
poucas coisas mais irritantes em nosso ofício do que ter de lidar
com as sobras dos antecessores, ainda mais quando são
repulsivas. Sir Anthony Joyston Bradshaw, pretenso mercador,
aventureiro e magnata da City, era um tétrico exemplo do tipo.
Alleline tornara-se seu amigo — no clube, onde mais? Alleline o
recrutara. Alleline o patrocinara por uma sucessão de transações
escusas de valor duvidoso para qualquer um que não o próprio Sir
Anthony. Houvera até sugestões constrangedoras de que Alleline
poderia ter recebido uma comissão. Quando o escândalo ameaçara,
Alleline abrigara Sir Anthony sob o guarda-chuva amplo do Circo.
Pior ainda, muitas das portas que Alleline abrira para Bradshaw
pareciam ter permanecido abertas, pelo simples motivo de que
ninguém se lembrara de fechá-las. E fora por uma dessas portas
que Bradshaw agora entrara, para indignação clamorosa do
Ministério do Exterior e de metade de Whitehall.
Pedi um mapa à biblioteca e um Ford Granada à garagem. Às
duas e meia, com o arquivo na cabeça, parti para o encontro. Às
vezes a gente esquece como a Inglaterra é linda. Passei por
Newbury e subi a estrada sinuosa de um morro, margeado por faias,
cujas sombras compridas pareciam trincheiras abertas nos campos
dourados. Uma fragrância de campos de críquete impregnou o
carro. Subi uma crista, castelos de nuvens brancas esperavam para
me receber. Devia estar pensando em minha infância, só podia ser,
porque experimentei um súbito impulso de seguir direto para as
nuvens, uma coisa com que sonhara muitas vezes quando era
menino. O carro tornou a mergulhar, um vale inteiro se abria lá
embaixo, com povoados, igrejas, campos cultivados e florestas.
Passei por um pub, e pouco depois um par de portões
dourados, fechados, surgiu entre colinas de pedras, encimadas por
leões esculpidos. Ao lado havia uma pequena casa branca de
porteiro, com um teto de colmo novo. Um jovem robusto baixou o
rosto para minha janela aberta e estudou-me com os olhos de um
atirador de tocaia.
— Vim falar com Sir Anthony — informei.
— Nome, senhor?
— Carlisle — respondi, usando um pseudônimo pela última
vez.
O jovem desapareceu na casa; os portões se abriram,
tornaram a fechar um instante depois que passei. O parque era
cercado por um muro alto de tijolos, que devia se estender por mais
de três quilômetros. Avistei um gamo à sombra dos castanheiros. O
caminho foi subindo e a casa logo surgiu à minha frente. Era
dourada, imaculada, enorme. A seção central era do período de
William e Mary, enquanto as alas pareciam posteriores, mas não
muito. Um lago estendia-se na frente, com hortas e estufas por trás.
Os antigos estábulos haviam sido convertidos em escritórios, com
elegantes escadas externas e corredores de vidro. Um jardineiro
regava as laranjeiras.
O caminho contornava o lago e levou-me à entrada da casa.
Duas éguas árabes e um lhama fitaram-me por cima de uma cerca.
Um mordomo jovem desceu os degraus, vestindo calça preta e um
casaco de linho.
— Posso estacionar seu carro nos fundos, Sr. Carlisle, depois
que for introduzido? Sir Anthony gosta de ter a fachada
desobstruída, senhor, sempre que é possível.
Entreguei as chaves e segui pelos degraus largos. Eram
nove, embora eu não possa imaginar por que contei, exceto por ser
algo que ensinávamos no curso de percepção de Sarrat, e nas
últimas semanas minha vida parecia ter se tornado menos uma
continuação do que um mosaico de eras e experiências passadas.
Se Ben aparecesse e me apertasse a mão, acho que eu não ficaria
muito surpreso. Se Monica ou Sally se apresentassem para me
acusar, eu já teria as respostas preparadas.
Entrei num vasto vestíbulo. Uma esplêndida escada dupla
subia para um patamar aberto. Retratos de ancestrais nobres, todos
homens, fitavam-me do alto, mas não acreditei que fossem da
mesma família, ou que pudessem ter vivido ali por muito tempo sem
suas mulheres. Passei por uma sala de bilhar e notei que a mesa e
os tacos eram novos. Imagino que vi tudo tão nitidamente porque
tratava cada experiência como a última. Segui o mordomo por uma
imponente sala de estar, atravessei uma segunda sala toda
adornada como um salão de espelhos, e uma terceira supostamente
informal, com um aparelho de televisão do tamanho de um daqueles
velhos triciclos de sorveteiro que costumavam aparecer na minha
escola preparatória nas tardes ensolaradas. Cheguei a uma porta
dupla majestosa e esperei enquanto o mordomo batia. E tornei a
esperar por uma resposta. Se Bradshaw fosse um árabe, me
manteria à espera por horas, pensei, recordando Beirute.Finalmente
ouvi uma voz de homem resmungar "Entre". O mordomo deu um
passo para dentro da sala e anunciou: — Um Sr. Carlisle, de
Londres, Sir Anthony.
Eu não lhe dissera que viera de Londres.
O mordomo deu um passo para o lado e permitiu-me uma
primeira visão do anfitrião, embora demorasse um pouco mais antes
que o anfitrião tivesse a primeira visão do Sr. Carlisle.
Ele sentava a uma escrivaninha de quatro metros, com
incrustações de latão e pés curvos. Quadros a óleo modernos de
crianças mimadas estavam pendurados por trás. Sua
correspondência se achava empilhada em bandejas de couro
grosso costurado. Era um homem grande, bem nutrido, obviamente
muito trabalhador também, pois estava só de camisa, que era azul,
colarinho branco, com suspensórios vermelhos. E parecia ocupado
demais para assumir minha presença. Leu primeiro, usando uma
caneta de ouro para orientar os olhos. Depois assinou, usando a
caneta de ouro para escrever. Em seguida meditou, ainda virado
para baixo, usando a ponta"da caneta de ouro como um foco para
seus profundos pensamentos. As abotoaduras de ouro eram
enormes como pennies antigos. Ao final, ele baixou a caneta e, com
um ar magoado — até acusador — levantou a cabeça, primeiro para
me descobrir, depois para me avaliar por padrões que eu ainda não
podia determinar.
E nesse momento, por um feliz acaso da natureza, uma haste
do sol baixo entrou pelas portas de vidro e incidiu em seu rosto, o
que me permitiu avaliá-lo em troca: a tristeza dos olhos
empapuçados, como se merecesse compaixão por sua riqueza, a
boca pequena e reta contraída tensamente sobre a papada
pregueada, a aparência de determinação formada de fraqueza, de
suspeitas infantis num mundo adulto. Aos 45 anos, aquele menino
gordo ainda não fora apaziguado, culpando pai ou mãe ausentes
por seus confortos.
E, subitamente, Bradshaw andava em minha direção. Passos
firmes? Bamboleando? Há um andar inglês hoje em dia,
característico dos homens de poder, constituído de várias coisas ao
mesmo tempo. Autoconfiança é uma, a esportividade indolente é
outra. Mas há também ameaça, impaciência, uma arrogância vaga,
que vem com os cotovelos esticados que nem um caranguejo para
não dar espaço a ninguém, os ombros contraídos de um pugilista,
uma flexibilidade jovial nos joelhos. Sabia-se muito antes de apertar
sua mão que ele não tinha nada a ver com toda uma categoria da
vida, que se estendia da arte ao transporte público. Era-se advertido
silenciosamente a ficar a distância, se por acaso você fosse desse
tipo de tolo.
— Você é um dos rapazes de Percy — disse-me ele, para o
caso de eu não saber, enquanto avaliava minha mão, e ficava
devidamente desapontado. — Ora, ora, já faz muito tempo. Deve ter
sido dez anos. Mais. Tome um drinque. Champanhe. Beba o que
quiser. — Uma ordem: — Summers, traga-nos uma garrafa de
xampu, balde de gelo, dois copos, e depois suma. E castanhas! —
acrescentou ele, quando o mordomo já se afastava. — Castanhas
de caju. Brasileiras. Muita da porra da castanha... gosta de
castanhas? — perguntou-me ele, com uma intimidade súbita e
desconcertante.
Eu disse que gostava.
— Ótimo. Eu também. Adoro. Veio me ler a lei de
insubordinação. Certo? Pode começar. Não precisa do copo para
isso.
Ele foi abrir as portas de vidro, a fim de que eu tivesse uma
visão melhor do que possuía. Escolheu um jeito de andar diferente
para essa manobra, mais uma marcha, os braços balançando ao
ritmo de uma música marcial que ninguém mais podia ouvir. Depois
de abrir as portas, ofereceu-me suas costas para olhar, manteve os
braços levantados, as palmas encostadas nos batentes, como um
mártir esperando pela flecha. E o corte de cabelos da City, pensei:
denso por cima do colarinho, com pequenos chifres sobre as
orelhas. Em tons dourados, marrons e verdes, o vale desvanecia-se
suavemente para a eternidade. Uma babá e uma criança pequena
passeavam entre os cervos. Ela usava um chapéu marrom, com a
aba toda levantada, um uniforme marrom, como o de uma
bandeirante. O gramado estava arrumado para o críquete.
— Estamos apenas lhe fazendo um apelo, Sir Anthony, isso é
tudo. Pedindo outro favor, como os que prestou a Percy. Afinal, não
foi Percy quem lhe conseguiu o título de cavaleiro?
— Percy que se foda. Ele está morto, não é? Ninguém me dá
nada, obrigado. Eu ajudo a mim mesmo. O que você quer? Diga
logo, está bem? Já ouvi um sermão. Portly Savoury, do Ministério do
Exterior. Ele era o calouro que me servia na escola, e eu costumava
lhe dar uns cascudos. Era um fraco naquele tempo, continua a ser
agora.
Os braços permaneceram levantados, as costas
empertigadas, numa pose agressiva. Eu poderia ter falado, mas me
sentia estranhamente deslocado. Três dias antes de minha
aposentadoria, começava a sentir que mal conhecia o mundo real.
Summers trouxe o champanhe, tirou a rolha e encheu dois copos,
que nos entregou numa bandeja de prata. Bradshaw pegou um e
saiu para o jardim. Fui atrás, até o meio de uma aleia gramada.
Azáleas e rododendros cresciam alto nos lados. Na outra
extremidade, um chafariz derramava água num tanque de pedra.
— Também obteve o título inerente à propriedade quando
comprou esta casa? — perguntei, pensando que uma conversa
amena poderia me proporcionar tempo para recuperar o controle.
— E daí se eu obtive? — disse Bradshaw, bruscamente.
Compreendi nesse instante que ele não queria ser lembrado que
comprara a casa, em vez de herdá-la.
— Sir Anthony...
— O que é?
— O problema envolve seu relacionamento com uma
companhia belga chamada Astrasteel.
— Nunca ouvi falar.
— Mas não está associado a eles? — insisti, com um sorriso.
— Não estou agora, nunca estive. Já disse isso a Savoury.
— Mas tem ações de Astrasteel, Sir Anthony — protestei,
paciente.
— Porra nenhuma. Absolutamente nada. Um sujeito diferente,
endereço errado. Já disse isso.
— Mas possui cem por cento das ações de uma companhia
chamada Allmetal of Birmingham Limited, Sir Anthony. E a Allmetal
of Birmingham possui uma companhia chamada Eurotech Funding &
Imports Limited, de Bermuda, não é? E a Eurotech de Bermuda
possui a Astrasteel da Bélgica, Sir Anthony. Assim, devemos
presumir que existe uma certa associação indireta entre sua pessoa
por um lado, e a companhia que é possuída pela companhia que
possui por outro.
Eu ainda sorria, ainda argumentava com ele, ainda mantinha
o tom afável.
— Não tenho ações, não recebo dividendos, não exerço
nenhuma influência sobre os negócios da Astrasteel. Estou a
distância, de toda a coisa. Disse isso a Savoury, digo a mesma
coisa a você.
— Não obstante, quando foi convidado por Alleline... nos
velhos tempos, eu sei, mas não há tanto tempo assim, não é
mesmo?... a fazer entregas de determinados produtos a
determinados países que não estavam incluídos expressamente na
lista oficial de compradores desses produtos, a Astrasteel foi a
companhia que usou. E a Astrasteel fez o que mandou que fizesse.
Por que se não fizessem, Percy não o teria procurado... não é
mesmo? De nada adiantaria para ele.
Eu sentia que o sorriso em meu rosto era rígido, enquanto
continuava: — Não somos policiais, Sir Anthony. Também não
somos coletores de impostos. Estou apenas indicando certos
relacionamentos que se mantêm... como insiste... além do alcance
da lei, e foram de fato projetados... com a ajuda ativa de Percy...
justamente para isso.
Meu discurso parecia-me tão precário, tão pouco incisivo, que
a princípio presumi que Bradshaw nem perderia tempo em
respondê-lo. E, de certa forma, eu estava certo, pois ele se limitou a
dar de ombros e disse: — E que porra isso tem a ver com qualquer
coisa? — Tem muito a ver, na verdade. — Pude sentir que o sangue
começava a me subir à cabeça, e não havia nada que pudesse
fazer para impedi-lo. — Estamos lhe pedindo para acabar com isso.
Pare. Já tem o seu título de cavaleiro, vale uma fortuna, tem um
dever para com seu país hoje, exatamente como tinha há doze
anos. Assim, saia dos Bálcãs, pare de agitar os sérvios, pare de
agitar na África Central, pare de lhes oferecer armas em abundância
a crédito, e pare de tentar ganhar dinheiro com guerras que
poderiam nunca ocorrer se você e outros espíritos de mentalidade
similar não se metessem. É britânico. Tem mais dinheiro no bolso do
que a maioria das pessoas jamais conseguirá ganhar em toda a
vida. Pare. Apenas pare. Isso é tudo o que estamos pedindo. Os
tempos mudaram. Não estamos mais empenhados nesses jogos.
Por um momento, fantasiei que o impressionara, pois ele me
virou seu olhar mortiço, fitou-me como se eu fosse alguém que no
final das contas pudesse valer à pena comprar. E depois seu
interesse tornou a se desvanecer, ele recaiu na melancolia.
— É seu país lhe falando, Bradshaw — declarei, agora com
uma raiva sincera. — Pelo amor de Deus, homem, o que mais
precisa! Não tem sequer o vestígio de uma consciência?
Apresentarei a resposta de Bradshaw como a transcrevi, pois a
pedido de Burr levara um gravador no bolso do paletó. O tom
anasalado e incisivo de Bradshaw garantiu uma reprodução perfeita.
E apresentarei também o jeito com que ele falou, na medida em que
se pode passar para a palavra escrita. Ele falava inglês como se
fosse a sua segunda língua, embora fosse a única que tinha. Falava
no que meu filho Adrian diz que é chamado de "slur" a pronúncia um
tanto indistinta, que é o cockney de boca mole de Belgravia, que
consegue fazer com que mice soe mouse e dispensa quase que
inteiramente a formalidade dos pronomes. Tem um vocabulário
específico, é claro: nada sobe, mas sim escala, nenhuma
oportunidade é desprovida de uma janela, não ocorre nenhum
evento menor que não seja sensacional. Também possui uma
imprecisão pedante, que supostamente a distingue da ralé, e explica
pérolas como "quanto a eu e você". Mas mesmo sem meu gravador,
gosto de pensar que me lembraria de cada palavra, pois seu
discurso foi como o grito de guerra vespertino de um mundo que
estava deixando.
— Sinto muito — disse ele, com uma mentira para começar.
— Compreendi que estava apelando para a minha consciência!
Ótimo. Certo. Anote uma declaração para os autos. Importa-se? A
declaração começa aqui. Ponto Um. Há apenas o ponto um, na
verdade. Estou cagando. A diferença entre mim e os outros caras é,
eu admito. Se uma horda de crioulos... é isso mesmo, crioulos, com
todo desdém... se esses crioulos matam uns aos outros com meus
brinquedos e eu ganho um dinheirinho com isso, grande novidade
para mim. Porque se eu não vender as mercadorias, algum outro
sujeito vai. O governo antes compreendia isso. Se eles ficaram
moles, que se danem. Ponto dois. Pergunta: sabe o que o pessoal
do tabaco anda fazendo hoje em dia? Impingindo tabaco altamente
tóxico aos idiotas e dizendo que deixa com tesão e cura resfriado. E
a turma do tabaco se importa? Fica em casa e tem colapso nervoso
por espalhar câncer no pulmão entre os nativos? Porra nenhuma.
Fazendo um pouco de venda criativa e ponto final. Veja as drogas.
Não usam elas pessoalmente. Não precisam. Não importa. Se
vendedor disposto está fazendo negócios com comprador disposto,
meu conselho é ficar de lado, deixar que se entendam, e boa sorte
para eles. Se drogas não matam eles, a atmosfera vai ou viram
churrasquinho com o aquecimento global. Britânico, você disse.
Para dizer a verdade, até me orgulho. E também me orgulho de uma
escola. Homem do Império. Acontece que é uma tradição que a
gente herda. Quando pessoas se metem no caminho, eu as destruo.
Ou me destroem. Disciplina é o que importa. Ordem. Aceitar as
responsabilidades de sua classe e educação, e derrotar o
estrangeiro em seu próprio jogo. Pensei que vocês estavam
empenhados nisso, também. Erro, aparentemente. Falha de
comunicação. O que alguém se importa é a qualidade de vida. Esta
vida. Padrões de verdade. Velho mundo. Não importa. Estes
padrões. Pomposo, você está pensando. Muito bem, sou pomposo.
E você que se foda. Sou Faraó, certo? Se uns poucos milhares de
escravos têm de morrer para que eu possa construir a pirâmide,
natureza. E se eles podem me fazer morrer por causa de sua porra
de pirâmide deles, bom para eles. Sabe o que tenho na minha
adega? Argolas de ferro. Argolas de ferro enferrujadas, embutidas
nas paredes quando esta casa foi construída. Sabe para que eram?
Escravos. Isso é natureza também. Proprietário original desta
casa... homem que construiu esta casa... homem que pagou por
isto, homem que mandou seu arquiteto para a Itália... aprender
ofício... esse homem possuía escravos, e tinha os alojamentos de
escravos no porão desta casa. Pensa que não há escravos hoje?
Pensa que capital não depende de escravos? Por Deus, que
espécie de negócio vocês dirigem? Não se fala normalmente de
filosofia, mas receio que ninguém gosta também de ouvir pregação.
Não temos isso. Não em minha casa, por favor. Irrita-me. Não perco
a calma fácil, sou até famoso pela frieza. Mas a gente precisa ter
uma certa visão da natureza, a gente dá trabalho às pessoas e a
gente tira a nossa parte.
Não disse nada, e isso também consta da gravação.
Diante de um absoluto, o que se pode dizer? Toda a minha
vida eu batalhara contra um mal institucionalizado. Tinha um nome,
quase sempre um país também. Tinha um propósito corporativo,
encontrara um fim corporativo. Mas o mal que surgia diante de mim
agora era um menino naufragado, em nosso próprio meio. Tornei-
me também um menino em troca, desarmado, incapaz de falar,
traído. Por um momento, foi como se tivesse passado toda a minha
vida a lutar contra o inimigo errado. E depois foi como se Bradshaw
tivesse furtado pessoalmente os frutos de minha vitória. Lembrei do
aforismo de Smiley sobre as pessoas certas perdendo a Guerra
Fria, e as pessoas erradas ganhando-a, e pensei em repetir para ele
como uma espécie de insulto, mas teria sido como agredir o ar.
Pensei em lhe dizer que agora derrotáramos o comunismo,
passaríamos a nos empenhar em derrotar o capitalismo, mas esse
não era na verdade o meu argumento: o mal não estava no sistema,
mas no homem. E, além do mais, a esta altura ele me perguntava
se eu ficaria para o jantar, o que recusei polidamente, e fui embora.
Ao final, foi Burr quem me ofereceu o jantar, e ficou satisfeito
em dizer que não lembro muito a respeito. Dois dias depois
entreguei meu passe ao escritório central.
Vejam o próprio rosto. Não é de ninguém que se lembrem. E
se perguntam onde puseram seu amor, o que encontraram, o que
procuravam. Querem dizer: "Abati o dragão, deixei o mundo um
lugar mais seguro." Não podem fazer isso, não hoje em dia. Talvez
nunca foi possível.
Temos uma boa vida, Mabel e eu. Não falamos sobre coisas
que não podemos mudar. Não irritamos um ao outro. Somos
civilizados. Compramos um chalé no litoral. Há um jardim comprido
ali, eu gostaria de meter as mãos na terra, plantar algumas árvores,
criar uma paisagem à beira-mar. Há um clube de vela para crianças
pobres em que estou envolvido; nós as trazemos de Hackney, elas
adoram. Há um movimento para me incluir no conselho de
administração local. Mabel frequenta a igreja. Eu volto à Holanda de
vez em quando. Ainda tenho alguns parentes ali.
Burr aparece ocasionalmente. Gosto dele. Burr se dá bem
com Mabel, como era de se esperar. Não tenta ser um sábio.
Conversa com ela sobre suas aquarelas. Não faz julgamentos.
Abrimos uma boa garrafa, preparamos uma galinha. Ele me dá as
últimas notícias, volta de carro a Londres. De Smiley, nada, mas é
assim que ele queria. Detesta a nostalgia, mesmo que seja parte da
nostalgia de outras pessoas.
Não existe a aposentadoria, na verdade. Às vezes se sabe
demais, não se pode fazer muito a respeito, mas isso é apenas um
problema da idade, tenho certeza. Penso muito Estou pondo em dia
a leitura. Converso com as pessoas, ando de ônibus. Sou um
recém-chegado ao mundo aberto, mas estou aprendendo.

FIM
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2014

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