Círculo de Giz N. 3 Luiza

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 10

CÍRCULO DE GIZ

Internacionalismo e latino-americanismo
na crítica de arte:
atuação de Mário Pedrosa no Instituto de
Arte Latino-Americana
* Mestra e Doutora em Luiza Mader Paladino*
Estética e História da
Arte (USP), professora
efetiva do Instituto Fede- Resumo: Este artigo reflete sobre a contribuição de Mário Pedrosa em instituições
ral de Brasília. culturais chilenas, durante o exílio no país andino, com foco no Instituto de Arte La-
tino-Americana. Essa entidade, criada em 1970, foi essencial para aprofundar o deba-
te sobre arte e cultura produzidas no continente, por meio de uma ampla programa-
ção de exposições, publicações e congressos que fortaleceram uma rede de intelectu-
ais alinhados com a pauta latino-americanista. Busca-se compreender o papel de Pe-
drosa nessa instituição e o diálogo estabelecido com artistas e críticos da região.
Palavras-chave: Mário Pedrosa; Instituto de Arte Latino-Americana; Arte latino-
americana, Unidade Popular, exílio.

Abstract: This article reflects on Mário Pedrosa's contribution to Chilean cultural


institutions, during his exile in the Andean country, with a focus on the Instituto de
Arte Latino-Americana. This entity, created in 1970, was essential to deepen the de-
bate on art and culture produced on the continent, through a broad program of exhi-
bitions, publications and congresses that strengthened a network of intellectuals alig-
ned with the Latin Americanist agenda. The aim is to understand Pedrosa's role in
this institution and the dialogue established with artists and critics in the region.
Keywords: Mário Pedrosa; Institute of Latin American Art; Latin American art, Po-
pular Unity, exile.

O crítico de arte brasileiro Mário Pedrosa viveu no Chile, país que o acolheu
da ditadura brasileira, quando teve o seu pedido de prisão preventiva decretado pelo
regime militar. A sua chegada à nação vizinha, em outubro de 1970, coincidiu com a
vitória de Salvador Allende, presidente responsável pela implantação da via chilena ao
socialismo. Na condição de exilado, o autor foi convidado para dirigir o Museu da Solidarieda-
de, além de integrar o Instituto de Arte Latino-Americana (IAL), como docente convidado. O
país andino se tornou um centro de acolhimento de exilados oriundos de vários paí-
ses devastados pela ditadura, regime de exceção que se alastrou pela América Latina a
partir da década de 1960. Apesar do trauma do desterro forçado e do sufocamento
de projetos de esquerda deflagrados pelos militares, sob a égide da lei de segurança

https://www.circulodegiz.org/revista 101
Luiza Mader Paladino - Internacionalismo e latino-americanismo na crítica de arte CÍRCULO DE GIZ

nacional, o exílio privilegiou a inserção da pauta latino-americana no centro das dis-


cussões e promoveu uma ampliação de horizontes teóricos e culturais.
1. As principais publica- O Instituto de Arte Latino-Americana foi uma entidade crucial para o apro-
ções do IAL foram: Las
Brigadas Muralistas; La
fundamento do debate e fomento da arte regional, por meio de uma ampla progra-
Imagen del Hombre, escultu- mação que envolvia exposições, publicações e congressos que fortaleceram uma rede
ra neofigurativa chilena;
Guayasamin, un artista de intelectuais alinhados com a pauta latino-americanista. Dirigido por Miguel Rojas
comprometido?; Abstratos,
geométricos y cinéticos; Bienal
Mix, a instituição integrou uma das frentes culturais mais importantes do governo
Chileno-Cubana, Encuentros Allende, caracterizando-se pelo interesse latino-americanista manifestado em diversas
de Artistas del Cono Sur; e
monografias dos artistas exposições, publicações1 e encontros internacionais.
argentinos Luis Felipe
Noé e Ernesto Deira.
Criado em 1970, o Instituto tinha o propósito de promover a arte latino-
americana como expressão direta de uma consciência “comum entre os povos de
nosso continente” (INSTITUTO DE ARTE LATINO-AMERICANO, Abril-Junho
de 1971, p. 93), sendo necessário também abordar as raízes de sua dependência cultu-
2. Aldo Pellegrini (1903- ral e econômica. A entidade foi concebida com o intuito de preencher uma lacuna no
1973), crítico de arte
essencial no campo cul- ensino e na difusão da arte latino-americana, além de formar bibliotecas, museus e
tural argentino, foi pio- cátedras especializados no tema. O trabalho do IAL se apresentava como importante
neiro na difusão das
vertentes surrealistas no “contribuição na luta contra toda servidão cultural e como estímulo permanente a
país. Pellegrini apoiou o
desenvolvimento da arte toda forma de arte que se cria em nossa realidade” (Idem, p. 94). Buscando ampliar o
abstrata e concreta e de intercâmbio da arte chilena com um panorama artístico mais avançado, o Instituto
movimentos como o
Arte Destructivo, na déca- reuniu acadêmicos e críticos reconhecidos, como Mário Pedrosa e o argentino Aldo
da de 1960.
Pellegrini2, ao corpo docente e à área de pesquisa.
Assim que foi inaugurado, o IAL instituiu conexões diretas com a Casa das
Américas, entidade criada em 1959 na capital cubana, fruto da necessidade cultural de
intercâmbio com outros governos latino-americanos no contexto da Revolução Cu-
bana. Indubitavelmente, Cuba foi um satélite revolucionário e anti-imperialista que
marcou parte da agenda do Instituto de Arte Latino-Americana. Se a política interna-
cional da Unidade Popular distinguiu-se pelo reestabelecimento de vínculos diplomá-
ticos com o país caribenho, os ecos dessa aproximação tiveram forte impacto nas
instituições artísticas.
Essa associação foi concretizada por meio de uma agenda repleta de exposi-
ções, como o Encuentro Chile Cuba, na Casa das Américas, em Havana, de 1971; o
evento Encuentros de Artistas del Cono Sur, no Instituto de Arte Latino-Americano, em
Santiago, em 1972; e a Exposición de la Plastica Latinoamericana, em Havana, no mesmo
ano. As mostras estreitavam os laços de fraternidade entre os países, abrindo espaço
para um intercâmbio artístico e ideológico. Nas ocasiões, houve doações mútuas com
o objetivo de impulsionar a criação do acervo do futuro Museu de Arte Latino-
americana no Chile.
A capacidade de articulação difundida nesses encontros legitimou a centrali-
dade da função política da arte em oposição à retórica do objeto artístico autônomo e
das leis do mercado. As redes que floresceram desse novo polo cultural e político
contribuíram para uma agenda cheia de oficinas, exposições multicontinentais, deba-

https://www.circulodegiz.org/revista 102
Luiza Mader Paladino - Internacionalismo e latino-americanismo na crítica de arte CÍRCULO DE GIZ

tes e concursos que permitiram produzir símbolos “usados na luta”, além de


“denunciar manifestações de repressão burguesa, campanhas de oposição à política
imperialista e convocatórias à solidariedade internacionalista” (LONGONI, 2015, p.
3. O encontro, organizado 237).
pelo IAL e pela Casa das
Américas, ocorreu entre Encuentros de Artistas del Cono Sur reuniu artistas da Argentina, do Uruguai e do
os dias 3 e 15 de maio. O Chile e teve Mariano Rodriguez, representando a Casa das Américas, como observa-
Museu da Solidariedade,
dirigido por Mário Pe- dor. A abertura do evento ocorreu alguns dias antes da inauguração do Museu da So-
drosa, foi inaugurado
dias depois. lidariedade3 e contou com a presença de Mário Pedrosa e Aldo Pellegrini, que auxilia-
ram na organização do encontro no IAL, ativando redes de contatos mais amplas.
Um bom exemplo dessa articulação foi a participação dos pintores argentinos Ernes-
to Deira e Luís Felipe Noé, expoentes do grupo Nueva Figuración, que, a essa altura,
4. Carta de Aldo Pellegrini eram figuras reconhecidas internacionalmente.
a Ernesto Deira. 22 de Os esforços para atrair artistas e intelectuais ao “Novo Chile”4 haviam come-
junho de 1971. Arquivo
Digital ICCA DOCS. çado no ano anterior. Pellegrini escreveu a Deira em junho de 1971, comunicando-
Disponível em:
http:// lhe a abertura do IAL, que incluía a concepção de um Museu Latino-Americano. Na
icaadocs.mfah.org/ mesma correspondência, o crítico pedia apoio ao seu conterrâneo para divulgar a ins-
icaadocs/
ELARCHIVO/ tituição chilena aos seus pares. A delegação argentina foi bastante ativa no Encuentros
RegistroCompleto/
tabid/99/doc/745056/ de Artistas del Cono Sur, com a presença heterogênea de artistas de distintas tradições
language/es-MX/ estilísticas, como Victor Grippo, Antonio Berni e Eduardo Costa, além de outros
Default.aspx.
Acesso em: 25 jun. 2018. marcados pela postura mais combativa na política.
Desde o final da década 1960, as vanguardas artísticas argentinas atravessa-
vam um período de crise caracterizado pelo afastamento do circuito artístico tradicio-
nal. As experiências de caráter conceitualista igualmente contribuíram para uma gui-
5. Ver carta do dia 4 de
nada radical da arte, bem como para o abandono de linguagens e materiais consagra-
março de 1971, de Mari- dos. Essas transformações abriram espaço para a ação política direta como forma
ano Rodríguez a Graciela
Carnevale, na qual o artística legítima e possibilitaram o estreitamento do elo entre as vanguardas e os mo-
cubano demonstra inte- vimentos sindicais, cada vez mais relevante como instrumento de luta ideológica. Ar-
resse pela ação e solicita
fotos e materiais sobre tistas argentinos envolvidos diretamente nesse tipo de militância política, entre os
Tucumán Arde à artista
rosarina. Arquivo Digital quais podemos citar León Ferrari, Graciela Carnevale, Margarita Paksa e Juan Pablo
Graciela Carnevale. Dis- Renzi, atuaram nos debates do IAL. Esse grupo participou da emblemática proposi-
ponível em:
http:// ção coletiva Tucumán Arde, em 1968, ação político-artística de denúncia das condições
archivosenuso.org/
carnevale/colecciones. degradantes da população de Tucumán, no norte da Argentina (Cf.: LONGONI e
Acesso em 22 abr. 2019.
MESTMAN, 2008). Esses artistas foram incorporados à rede chilena por meio de
Julio Le Parc, que, ao passar pela Casa das Américas, em Havana, apresentou a ação
interdisciplinar a Mariano Rodríguez5.
Por sua vez, Luis Felipe Noé aprofundou o sentido de rede latino-americana
promovido pelo IAL ao integrar o Encuentros e participar da mostra El arte de América
Latina es la Revolución, cuja publicação homônima divulgava uma entrevista de Miguel
Rojas Mix com o artista. Em consonância com o debate chileno, Noé propunha uma
reflexão sobre o exercício artístico em um contexto marcado pela dependência cultu-
ral e a superação desse impasse como processo de emancipação política. O argentino

https://www.circulodegiz.org/revista 103
Luiza Mader Paladino - Internacionalismo e latino-americanismo na crítica de arte CÍRCULO DE GIZ

se apropriava da metáfora da inversão para discutir os processos de descolonização


em curso e, mais uma vez, o papel do artista na revolução, pois apenas a revolução
revelaria a “verdadeira imagem” da América Latina (MARCHESI, 2010, p. 125). Para
reforçar seu manifesto, o artista expôs uma série de cartazes que revisitavam a ima-
gem icônica do mapa invertido de Joaquín Torres García, a qual integrou o campo
iconográfico vinculado às vanguardas artísticas do começo do século XX. Segundo
Mariana Marchesi, a utopia evocada pela imagem de Torres García representou uma
tradição que buscou estratégias alternativas de interpretação da realidade latino-
americana (Ibid., p. 125).
O ato de inversão exposto em Nuestro Norte es el Sur “implica uma outra loca-
lização de fundamento ideológico” e “marca uma nova etapa que se propõe como
independente para a arte latino-americana” (GIUNTA, 2011, p. 296). A inversão car-
tográfica reivindicava novos parâmetros, a partir da “justa ideia de nossa posição, e
não como querem o resto do mundo”, e buscava, ainda, “sinalizar insistentemente o
6. DEIRA, Ernesto. Sul” (GARCÍA apud GIUNTA, 2011, p. 296), tal como indicou o manifesto uruguaio
Solidaridad con pueblos de 1935, que assentou muitas das bases do imaginário político e artístico décadas de-
de Chile y America en
Encuentro de Artistas pois. No Chile de Allende, inverter o mapa era uma espécie de grito anti-imperialista
Plasticos del Cono Sur.
El Siglo, Santiago, 15 que simbolizava um novo período de insubordinação e independência cultural.
maio 1972. Arquivo Na ocasião do Encuentros, Ernesto Deira, outro expoente da Nueva Figuración,
Museu de Arte Contem-
porânea da Faculdade de comentou a um jornal chileno sobre o intercâmbio entre artistas promovido pelo
Artes, Universidade do
Chile (FAIMAC). evento:

O Encontro de artistas plásticos do cone Sul tem a particularidade de ser o primeiro


encontro deste tipo [...] claramente preocupado com a América Latina e seus países, o
que lhe confere enorme transcendência. Esse ponto de partida vai permitir, sem dúvi-
das, melhores formas de intercâmbio, informação e conhecimento mútuo. Apoiará os
7. Cf.: Dos encuentros: 1- De movimentos coletivos e permitirá criar as bases de uma ação unificada em nosso campo
artistas del cono sur latino-americano.6
(Santiago, Chile, 1972). 2-
De plastica latinoamericana Os participantes do Encuentros de Artistas del Cono Sur se dividiram em cinco
(La Habana, Cuba, 1972).
Cuadernos de Arte comissões que discutiram os seguintes temas: 1- Significação ideológica da arte; 2- A
Latinoamericano. Santiago: arte na América Latina e o momento histórico mundial; 3 – Arte e comunicação de
Editorial Andrés Bello,
1973. massas; 4- Arte e criação popular; e 5- Estratégia cultural. Embora cada mesa tenha
focado em demandas específicas, prevaleceu o tema da responsabilidade social do
artista, designado de maneira geral como trabalhador da cultura, cujo objetivo central
seria a luta contra a dependência e o imperialismo. O resultado dessas discussões foi
8. No texto Arte Culta e
publicado em um catálogo produzido pelo IAL7. A programação do evento também
Arte Popular, Pedrosa promoveu o contato in locu dos participantes com algumas ações culturais do governo
menciona a parceria
entre o Instituto de Arte Allende, como a visita a fábricas e espaços autogestionáveis de economias locais, co-
Latino-Americana e a
mina El Teniente, da fun-
mo a mina El Teniente8.
dação da Casa de la Cultu- Mário Pedrosa e outros dezessete convidados, entre eles Rojas Mix e os ar-
ra de Goya, um espaço de
oficinais artísticas direci- gentinos Ferrari, Carnevale, Carpani e Paksa, participaram da segunda mesa. O com-
onadas aos trabalhadores
da mina (PEDROSA,
pêndio desse debate amalgamava diferentes embates e visões sobre a autenticidade da
1995, p. 330). arte latino-americana, o impacto e os limites do internacionalismo na sensibilidade

https://www.circulodegiz.org/revista 104
Luiza Mader Paladino - Internacionalismo e latino-americanismo na crítica de arte CÍRCULO DE GIZ

regional e as definições de arte burguesa versus arte revolucionária. A primeira era des-
crita como tributária de uma sociedade dividida em classes e baseada na propriedade
privada e a segunda, como uma arte de transição, fruto da crise da sociedade burgue-
sa. Em todos os debates, destacou-se o caráter processual da revolução, cujo parâme-
9. Textos escritos entre
tro, evidentemente, era a via chilena democrática de transição entre a etapa burguesa
1966 a 1970, como Crise e a etapa socialista revolucionária.
do Condicionamento Artísti-
co, O “Bicho da Seda” na A mesa ‘‘a arte na América Latina e o momento histórico mundial” apresen-
Produção em Massa, Quin-
quilharia e Pop’Art, entre
tou algumas ideias caras ao pensamento de Pedrosa, com referências elaboradas pelo
outros. crítico em artigos escritos antes do exílio9. Primeiramente, havia citações diretas à
teoria marxista no campo da arte. Nos anais chilenos, os participantes assinalaram o
perfil hostil do capitalismo em relação à cultura artística e ao ambiente criativo: a pri-
vação da classe trabalhadora das satisfações essenciais ao ser, como a necessidade da
arte, por exemplo, contribuía para a manutenção da sociedade de classes. Tal como
alertou Pedrosa anteriormente, não haveria como abordar o assunto da produção
sem falar no sistema de trabalho, nas formas de trabalho e na própria esfera da cria-
ção. “Nas condições dadas”, dizia o crítico, ao analisar o contexto do capitalismo
avançado, “toda a atividade, mesmo a mais desinteressada, [...], tende a ser absorvida
pelo círculo do trabalho produtivo, ou o trabalho que só produz para o merca-
do” (PEDROSA, 2007, p. 90). Sua análise estava voltada para os rumos que a arte
havia tomado após a arte pop, cujo caráter complacente, que, próximo à escala indus-
trial, diluía as fronteiras entre a arte e as commodities, Pedrosa via, não por acaso, com
desconfiança. No entanto, sua previsão trágica da arte, acelerada pelos experimentos
contemporâneos da arte pop, foi postergada em sua passagem chilena.
No contexto da Unidade Popular, sua crença na recuperação da práxis revolu-
cionária das vanguardas seria renovada com a tomada de consciência do artista, cujo
ato de criação não estaria mais condicionado exclusivamente à lógica do mercado.
Essa foi uma das utopias que Pedrosa pôde acompanhar de perto, ao angariar cente-
nas de obras doadas em solidariedade ao povo chileno, durante a gestão do Museu da
Solidariedade. Esse experimento de fraternidade artística abriria caminho para um
devir revolucionário análogo às atividades comunitárias pré-capitalistas, que se basea-
vam na funcionalidade social da arte. Pedrosa frequentemente exaltou a integridade
do produtor independente membro das sociedades ditas “primitivas”, reconhecendo
os resíduos dessa dimensão coletiva de outrora na produção de alguns artistas con-
temporâneos e na arte popular chilena. Ambas as produções se caracterizavam, se-
gundo o crítico, pela insubmissão ao mercado capitalista, cuja lei é transformar tudo
em mercadoria e valor de troca.
A construção da ideia de arte latino-americana autêntica abordada no texto
referente à mesa ‘‘a arte na América Latina e o momento histórico mundial” também
recuperou algumas teses elaboradas por Miguel Rojas Mix em exposições anteriores
do IAL. A autenticidade americana deveria ser expressa não apenas por valores exal-
tados na cultura indígena, folclórica ou pré-colombiana, mas também nos princípios

https://www.circulodegiz.org/revista 105
Luiza Mader Paladino - Internacionalismo e latino-americanismo na crítica de arte CÍRCULO DE GIZ

revolucionários da América dos anos 1970. O debate do Encuentros aprofundava esse


assunto, ampliando o repertório de figuras históricas do continente, com a inclusão
de José Martí e do peruano José Carlos Mariátegui. Ambos eram descritos como pre-
cursores de um sentimento que havia favorecido o surgimento de uma nova cultura,
por meio do valor de seu próprio povo, em detrimento da hegemonia cultural bur-
guesa na América Latina. De acordo com as ideias do debate, a estrutura social de
classes aprofundou a dependência cultural e econômica, contribuindo para que os
‘‘países de nossa América’’ sufocassem a presença do elemento indígena desde a
Conquista (DOS ENCUENTROS..., 1972, p. 11).
Seguindo essa linha, a citação a Mariátegui não era improcedente. Ainda nas
primeiras décadas do século, o autor foi um dos primeiros pensadores marxistas a
refletirem sobre o socialismo na chave indo-americana, dentro do que ele denominou
‘‘comunismo agrário inca’’. Mariátegui defendia que a sobrevivência das práticas cole-
tivistas era ‘‘uma estratégia política que situava nas comunidades indígenas o ponto
de partida para uma via socialista própria aos países indo-americanos’’ (LÖWY, 2005,
p. 21-22). No Chile revolucionário, as ideias mariateguianas contribuíram para sedi-
mentar o escopo teórico dos debates, cujo propósito era a busca dos primórdios da
arte e da literatura que aprofundaram ‘‘a nossa realidade e questionaram os valores
institucionais’’. Em suma, o que se propunha era o ‘‘gérmen de uma nova cultura: a
cultura latino-americana’’ (DOS ENCUENTROS... Op. cit., 1972, p. 11).
O apelo à arte latino-americana de estilo regional, em oposição ao viés inter-
nacionalista, também marcou as discussões da segunda comissão. O internacionalis-
mo na arte era apresentado como uma influência negativa, caso penetrasse as realida-
des regionais como uma “moda artificialmente criada pelo mercado de arte e absorvi-
do de forma superficial pelos artistas” sem uma elaboração crítica. De acordo com as
reflexões da segunda comissão,

As contribuições formais do estilo internacional se difundem por todo o mundo;


mas em cada região se encontram com as possibilidades locais adquirindo uma fisio-
nomia singular. O estilo internacional dura muito menos que a sensibilidade regional
e daí resulta o grande perigo (Ibid., p. 13).

Sabidamente, a metodologia crítica desenvolvida por Mário Pedrosa desde o


final da década de 1940 não interpretou o internacionalismo na arte como um perigo.
Pelo contrário, a originalidade desse método ocorreu exatamente por seu ajuste entre
as tendências internacionais e a realidade local (ARANTES, 2001, p. 45). O exercício
dialético entre o internacional e o local, questão chave para a arte brasileira desde o
10. Cf.: PEDROSA, Má-
rio. O problema da uni- modernismo, foi uma espécie de núcleo duro do pensamento crítico do autor, para
versalidade da arte mo- quem o problema do regionalismo era essencial para o entendimento do fenômeno
derna. Jornal do Brasil, Rio
de Janeiro, 15 maio do internacionalismo e, sem dúvida, questão central para os países novos em proces-
1958. Arquivo CEDEM.
Centro de Documenta- so de formação cultural moderna, como o Brasil (PEDROSA, 2007, p. 50).
ção e Memória da Entre 1958 e 1960, Pedrosa publicou em sua coluna do Jornal do Brasil arti-
UNESP. Fundo Mário
Pedrosa. gos sobre o VI Congresso Ordinário de Críticos, sediado em Varsóvia, cujo tema

https://www.circulodegiz.org/revista 106
Luiza Mader Paladino - Internacionalismo e latino-americanismo na crítica de arte CÍRCULO DE GIZ

principal foi “O problema da relação entre as diferentes tradições nacionais e o cará-


ter internacional da arte moderna”10. O crítico afirmava que, desde o cubismo e o
abstracionismo, a arte moderna havia adquirido um caráter mais universal, contudo,
sabia que a aclimatação da linguagem moderna não era um fator pacífico, por isso
levantou perguntas que problematizavam essa questão, como: “se se admite que a
11. Cf.: PEDROSA, Má- arte moderna tem tal alcance internacional, em que medida pode ela contribuir para o
rio. Arte – Fenômeno
Internacional. Jornal do desenvolvimento das diferentes particularidades nacionais?”, ou ainda: “como medir-
Brasil, Rio de Janeiro, 13 se a contribuição dos diferentes meios e tradições nacionais para o desenvolvimento
jun. 1958. Arquivo CE-
DEM. dessa mesma arte moderna?”11. Para o autor, esse debate era um dos pilares para a
compreensão do desenvolvimento da arte, especialmente em países em fase de ama-
durecimento cultural.
Na disputa “realismo regionalista versus abstracionismo internacional”, é sabi-
do que Pedrosa tomou posição pela frente mais avançada, em detrimento de seus
críticos, que viam a arte abstrata como uma forma de transplante artificial em um
país que havia construído seu cânone modernista há pouco tempo. No entanto, a
batalha de Pedrosa pela atualização da arte, segundo Sônia Salzstein, não foi mera
“plataforma da internacionalização pela internacionalização, ou de absorção das lin-
guagens abstratas como panaceia para os problemas do descompasso cultu-
ral’’ (SALZSTEIN, 2001, p. 80). Salzstein aponta, ainda, que a singularidade de Pe-
drosa se deu justamente pela opção por um “espírito mais ventilado e internacionalis-
ta”, sem jamais deixar “de valorizar uma densidade local” (Ibid., p. 80).
Vale situar essa discussão, que, de maneira geral, integrou o campo da crítica
de arte latino-americana ao longo da década de 1970. Essa perspectiva internaciona-
lista foi interpretada com desconfiança por personagens fundamentais da crítica de
arte do continente, como a crítica argentino-colombiana Marta Traba, por exemplo,
cujo discurso combativo convergia com a suspeita ao influxo internacional capitanea-
da pelo IAL. Sobre essa questão, Traba escreveu Dos Décadas Vulnerables en las Artes
Plásticas Latinoamericanas (1950-1970), obra essencial sobre a produção artística da regi-
ão, publicada em 1973. Entretanto, é bom lembrar que, no ano de lançamento, o de-
bate sobre internacionalismo já não mais passava pela querela entre abstratos e figu-
rativos. Nessa conjuntura, o antigo confronto havia cedido lugar a uma produção
artística assinalada pela falta de unidade estilística e pela sucessão acelerada de movi-
mentos, como hard-edged, minimalismo, op art, arte cinética, arte povera, novo realis-
mo, arte conceitual, etc. No livro de Traba, foi desenvolvida a tese da “resistência”
artística frente à influência política e cultural dos Estados Unidos na região. Para a
crítica, 1960 e 1970 foram as décadas de entrega às tendências estrangeiras e, nesse
viés, Buenos Aires simbolizava a abertura e a “servidão” incondicionais às modas
internacionais, principalmente ao Instituto Torcuato Di Tella, que capitaneou a as-
censão de um novo modelo institucional a que o internacionalismo das vanguardas
argentinas esteve fortemente atrelado (GIUNTA, 2008). Local por excelência da cena
artística ligada à pop art e representativa do “esnobismo argentino” (TRABA, 2005, p.

https://www.circulodegiz.org/revista 107
Luiza Mader Paladino - Internacionalismo e latino-americanismo na crítica de arte CÍRCULO DE GIZ

191), o Di Tella foi dirigido por Jorge Romero Brest, mentor de Traba no final da
década de 1940, quando esta começou a escrever para a revista Ver y Estimar12.
12. Revista fundamental Apesar da confluência de ideias capitaneadas no Encuentros de Artistas del Cono
para a difusão e atualiza-
ção da crítica de arte Sur, sobretudo em relação à pauta anti-imperialista, o aparato discursivo de Traba ia
portenha, Ver y Estimar
foi coordenada por Jorge
no caminho oposto à produção plástica de muitos artistas presentes no evento chile-
Romero Brest e circulou no. A crítica ficou marcada pelo conservadorismo de sua leitura formal e pelo favore-
de 1948 a 1955.
cimento de artistas que posteriormente foram cooptados pelo mercado de arte inter-
nacional. As décadas estudadas pela autora caracterizaram-se pelo alargamento das
práticas artísticas, que se distanciaram cada vez mais do paradigma modernista de
unicidade e autonomia da arte. Portanto, a escolha de figuras convencionais ao seu
rol de “resistência” apenas evidenciava a dificuldade de Traba em assimilar proposi-
ções de caráter experimental de artistas como Graciela Carnevale e León Ferrari, para
citar dois exemplos. Contudo, é importante pontuar que o projeto latino-americanista
da argentino-colombiana foi sedimentado a partir da busca emergencial por uma
“tradição que não fosse apenas artística, mas também, crítica e metodológi-
ca” (RAMÍREZ, 2005, p. 50) em um amplo território caracterizado por instituições
artísticas frágeis e pouco profissionalizadas. Ademais, suas ideias foram cruciais para
a instauração de novos marcos teóricos que reposicionaram a arte latino-americana
no âmbito regional e internacional.
Voltando ao debate chileno, além da discussão sobre os limites do internacio-
nalismo na esfera regional, os participantes da segunda mesa ressaltaram também o
caráter forjado entre arte e liberdade. Ambas as noções eram associadas ao liberalis-
mo e ao mito da liberdade de criação artística, utilizados para ocultar a repressão e a
exploração do povo. Os participantes pontuaram mais uma vez a responsabilidade
social do artista de “usar essa liberdade para questioná-la ou para denunciar a realida-
de na qual a liberdade se esconde” e, por fim, concluíram que era por meio da
13. Dos encuentros: 1- De “revolução socialista” que seria “possível outorgar a verdadeira liberdade”13.
artistas del cono sur A liberdade foi um problema fundamental na crítica de Pedrosa. Em 1967, no
(Santiago, Chile, 1972). 2-
De plastica latinoamericana texto O “bicho-da-seda” na produção em massa, o crítico refletiu sobre a condição do artis-
(La Habana, Cuba, 1972).
Cuadernos de Arte
ta na sociedade moderna, afirmando que o traço decisivo do comportamento artísti-
Latinoamericano. Santiago: co baseava-se na liberdade. “Já faz tempo que, tentando analisar o fenômeno, defini a
Editorial Andrés Bello,
1973, p.10. arte de nossos dias como o exercício experimental da liberdade”, admitia
(PEDROSA, 2007, p. 110), e fazia alusão a Marx para entender o lugar ambíguo do
artista, equivalente ao do “produtor independente” das sociedades pré-capitalistas,
nas quais não se trabalhava para o mercado, mas para satisfazer as necessidades ime-
diatas sem a intervenção do dinheiro. Assim, o crítico comparava o artista ao bicho-
da-seda: produtor de seda movido por um dom natural. Para Pedrosa, o artista havia
tomado consciência do “uso da liberdade” como forma de trabalho livre, equivalente
às sociedades pré-capitalistas, de forma que voltaria “a ser um produtor independente
e não mais alienado no seu próprio objeto” (Ibid., p.112).
Foi exatamente esse sentido de liberdade criativa que Pedrosa observou nas

https://www.circulodegiz.org/revista 108
Luiza Mader Paladino - Internacionalismo e latino-americanismo na crítica de arte CÍRCULO DE GIZ

cooperativas de artesanato da Unidade Popular e que mais tarde identificaria na pro-


dução de arte indígena, ao voltar para o Brasil, em 1977. O crítico destacava o poten-
cial revolucionário da arte popular, baseado na “liberdade criativa” e na “alegria po-
pular” como vetores fundamentais de uma sociedade em transformação, como era o
Chile de Allende.
A experiência chilena de transição ao socialismo despertou o interesse de di-
ferentes círculos da esquerda de todo o mundo, que vislumbraram a viabilidade da
implantação do socialismo por meio da via democrática e pacífica. A revolução andi-
na representou “um processo político inédito na história e, por essa razão, acabaria
ganhando repercussão mundial, no momento de sua vigência e mesmo após o seu
desfecho” (AGGIO, 2008, p. 78). Embora o epílogo tenha sido trágico, essa experi-
ência extraordinária concretizou um projeto utópico que se ancorou, sobretudo, no
sentimento de solidariedade e empatia para além das fronteiras nacionais, mobilizan-
do o gesto fraterno de comprometimento na construção de outros mundos possí-
veis. As utopias que circundaram o Instituto de Arte Latino-Americana, o Museu da
Solidariedade e seus inúmeros projetos, mesmo os que não saíram do papel, simboli-
zaram o sonho pela emancipação política e cultural, o bem-estar social e a revolução
dos sentidos por meio da arte e da liberdade.
Não obstante, os militares inauguraram um novo capítulo na história política
da América Latina. As noções de solidariedade, cooperação e fraternidade entre os
países de Terceiro Mundo e a conexão latino-americana, bases centrais da Unidade
Popular, assim como o ambiente de pluralidade intelectual, foram brutalmente sola-
padas. Tomou o seu lugar um regime autoritário que serviu como laboratório de po-
líticas neoliberais implementadas pelos Chicago Boys, grupo de tecnocratas que favo-
receu a especulação, a desigualdade e a força do dinheiro, ideologias que ecoam com
força total na atualidade, reforçando que o “inimigo não tem cessado de ven-
cer” (BENJAMIN, 2005, p. 244).

Referências:

AGGIO, Alberto. O Chile de Allende: entre a derrota e o fracasso. In: FICO, Carlos
et al. Ditadura e Democracia na América Latina: Balanço Histórico e Democracia na
América Latina. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008.
ARANTES, Otília. Mário Pedrosa e a Tradição Crítica. In: NETO, José Castilho
Marques. Mário Pedrosa e o Brasil. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2001.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 2012 – (Obras Escolhidas v. 1)
Carta de Aldo Pellegrini a Ernesto Deira. 22 jun. 1971.
Carta de Mariano Rodríguez a Graciela Carnevale. 4 mar. 1971
DEIRA, Ernesto. Solidaridad con pueblos de Chile y America en Encuentro de

https://www.circulodegiz.org/revista 109
Luiza Mader Paladino - Internacionalismo e latino-americanismo na crítica de arte CÍRCULO DE GIZ

Artistas Plasticos del Cono Sur. El Siglo, Santiago, 15 maio 1972.


DOS encuentros: 1- De artistas del cono sur (Santiago, Chile, 1972). 2- De plastica
latinoamericana (La Habana, Cuba, 1972). In: Cuadernos de Arte Latinoamericano.
Santiago: Editorial Andrés Bello, 1972.
GIUNTA, Andrea. Escribir las imágenes: Ensayos sobre arte argentino y
latinoamericano. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2011.

Instituto de Arte Latino-americano. Anales de la Universidad de Chile. Nueva Serie.


Abril-Junho de 1971. Ano CXXIX. Nº 1.
LONGONI, Ana; MESTMAN, Mariano. Del Di Tella a “Tucumán Arde”: vanguardia
artística y política en el 68 argentino. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos
Aires, 2008.
LONGONI, Ana. Otro mapa es posible. Impulsos internacionalistas en el arte
argentino y latinoamericano entre los años sesenta y ochenta. In: BERNAL, Maria
Clara (Org.). Redes Intelectuales: Arte y Política en América Latina. Bogotá: Universidad
de Los Andes, Faculdad de Artes y Humanidades, Departamento de Arte, Ediciones
Uniandes, 2015.
LÖWY, Michael. Nem decalque, nem cópia: o marxismo romântico de José Carlos
Mariátegui. In: MARIÁTEGUI, José Carlos. Por um socialismo indo-americano. Seleção e
introdução de Michael Löwy. Rio de Janeiro: Editora URJ, 2005.
MARCHESI, Mariana. Redes de arte revolucionario: el polo cultural chileno-cubano,
1970-1973. Revista A Contracorriente, v. 8, n. 1, 2010.

PEDROSA, Mário. O problema da universalidade da arte moderna. Jornal do Brasil,


Rio de Janeiro, 15 maio 1958.
______. Arte – Fenômeno Internacional. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 jun. 1958.
______. Política das Artes: Mário Pedrosa. Textos escolhidos I. Organização e prefácio
de Otília Arantes. São Paulo: Edusp, 1995.
______. Mundo, Homem, Arte em Crise: Mário Pedrosa. Organização de Aracy Amaral.
São Paulo: Ed. Perspectiva, 2007.
RAMÍREZ, Mari Carmen. Sobre la pertinencia actual de una crítica comprometida.
In: TRABA, Marta. Dos Décadas Vulnerables en las Artes Plásticas Latinoamericanas.
Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2005.
TRABA, Marta. Dos Décadas Vulnerables en las Artes Plásticas Latinoamericanas. Buenos
Aires: Siglo XXI Editores, 2005.

https://www.circulodegiz.org/revista 110

Você também pode gostar