Filosofia Crista e o Sentido Da - Herman Dooyeweerd

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Filosofia cristã e o sentido da história

Herman Dooyeweerd
Copyright © 2013, de Paideia Press
Publicado originalmente em inglês sob o título
Christian Philosophy and the Meaning of History [Série B, Volume 13]
pela Paideia Press,
Grand Rapids, MI, 40507 Estados Unidos.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por


Editora Monergismo
SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato
Brasília, DF, Brasil — CEP 70.760-620
www.editoramonergismo.com.br
a
1 edição, 2020

Editor: Felipe Sabino de Araújo Neto


Editor assistente: Fabrício Tavares de Moraes
Tradução: Fabrício Tavares de Moraes
Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto
Sumário
PREFÁCIO
1. FILOSOFIA CRISTÃ UMA ABORDAGEM
2. O SENTIDO DA HISTÓRIA
3. OS CRITÉRIOS DAS TENDÊNCIAS PROGRESSIVAS E REACIONÁRIAS
4. OS PERIGOS DO DESARMAMENTO INTELECTUAL DO CRISTIANISMO NA
CIÊNCIA
HERMAN DOOYEWEERD — UM ESBOÇO BIOGRÁFICO
PREFÁCIO

Com a publicação deste volume, o The Dooyeweerd Centre for


Christian Philosophy dá continuidade a seu projeto de traduzir, editar e
publicar as Obras Completas de Herman Dooyeweerd, anteriormente
conduzido pela The Herman Dooyeweerd Foundation.
A publicação de Obras Completas refletirá as três dimensões de uma
abordagem filosófica cristã integral em relação à ciência e ao trabalho
acadêmico. Pode-se identificá-las como: (1) levar a história da filosofia em
consideração, integralmente; (2) tomar parte da reflexão filosófica sistemática
e (3) interagir com várias disciplinas acadêmicas a fim de certificar-se da
fecundidade científica especializada dessas duas tarefas anteriores.
O projeto de publicação será distinguido em duas séries — cada uma
das quais abarcando todas as três dimensões mencionadas acima:
— A Série A conterá obras em vários volumes, bem como obras num
único volume maior, todos produzidos num formato padrão.
— A Série B, que conterá volumes menores e outros que consistirão em
artigos, ensaios, discursos e outros materiais relacionados, também
produzidos num formato padrão.

Neste Volume 13 da Série B, vários artigos relacionados são reunidos. O


primeiro oferece ao leitor uma introdução apropriada à filosofia de
Dooyeweerd pelas portas de suas observações lúcidas sobre o contexto e
desenvolvimento históricos de sua nova filosofia cristã e de sua exposição
clara de sua crítica da crença na autonomia do pensamento teórico,
predominante em muitos aspectos da modernidade. Sua breve análise
subsequente dos motivos básicos que operam no desdobramento contínuo da
civilização ocidental acrescenta profundidade e peso ao desafio que essa
filosofia coloca a várias escolas de filosofia que estão ainda indispostas a
reconhecer as motivações mais profundas de suas atividades. O segundo
capítulo, que lida com o sentido da história, revela uma faceta crucial da
filosofia sistemática de Dooyeweerd. Toda sua análise do processo de
abertura histórica vê no aspecto histórico o ponto nodal de todo desvelamento
de sentido — guiado pela função da fé.
O sentido da história é tratado dentro do contexto mais amplo de muitas
distinções sistemáticas extraídas de sua filosofia em geral.
O terceiro capítulo discute os critérios das tendências progressivas e
reacionárias na história, suplementa apropriadamente essa análise do sentido
da história, visto que se põe a revelar os princípios fundamentais que guiam
toda mudança história e a ajudar-nos a discernir os eventos históricos
normativos e os antinormativos, igualmente.
Ao apontar os conflitos e tensões dialéticas que ocorrem no processo de
abertura da cultura humana — que resulta da absolutização do que é relativo
—, Dooyeweerd não hesita em destacar a revelação bíblica de que o único
caminho que liberta do espírito da apostasia subjacente a toda absolutização
se dá na consciência que não haveria esperança futura para todo o processo
de desenvolvimento cultural “se Jesus não tivesse se tornado o centro da
história do mundo”.
O que se trata apenas superficialmente no terceiro artigo é a teoria dos
aspectos modais, uma teoria verdadeiramente original de Dooyeweerd —
juntamente com sua teoria das “estruturas de individualidade” (que
constituem nossa experiência de eventos concretos, processos e relações
sociais) —, uma contribuição singular ao legado da filosofia ocidental. A
orientação mais adequada para sua filosofia se encontra na obra ainda não
publicada Introduction to Legal Science, escrita por ele mesmo. Essa obra é,
na verdade, uma introdução à sua filosofia enquanto tal.
O quarto e último capítulo lida com uma realidade que ainda hoje se
apresenta como um desafio ao cristianismo, a saber, os perigos da
desmobilização do cristianismo na ciência e na academia. Os efeitos
devastadores inerentes tanto à acomodação de motivos não bíblicos por parte
do catolicismo romano quanto à secularização do cristianismo pelo
humanismo moderno são tratados com grande precisão e profundidade
analíticas. De acordo com Dooyeweerd, dever-se-ia acrescentar ao dualismo
entre fé e ciência presentemente estabelecido a aceitação geralmente acrítica
da separação entre filosofia e as ciências especiais que se desenvolveu no
pensamento humanista. Com grande sensibilidade histórica, Dooyeweerd
também percebe que a ciência e o trabalho acadêmico de fato atuam em nossa
cultura ocidental como um grande poder espiritual de nossa época.
Dooyeweerd demonstra quão trágico é o fato de o humanismo ter
adquirido seu poder histórico de moldar o desenvolvimento científico,
devido, em certa medida, ao esforço (conduzido por séculos) de acomodação
e síntese por parte do próprio pensamento cristão. A importância integral de
um ponto de partida radicalmente bíblico na ciência e no trabalho acadêmico
se encontra amplamente expressa na afirmação final do último ensaio deste
volume:

Todos os cristãos que, em seu trabalho científico,


envergonham-se do Nome de Cristo Jesus, uma vez que
buscam honra entre os homens, serão totalmente inúteis
nessa valorosa campanha de recapturar a ciência (um dos
grandes poderes da cultura ocidental) para o Reino de
Deus. Nessa luta, porém, não estaremos desamparados,
contanto que travemos o combate revestidos de toda a
armadura da fé naquele que disse: “Toda autoridade me foi
dada no céu e na terra”, e igualmente: “tende bom ânimo;
eu venci o mundo”.
— D.F.M. Strauss
Editor Geral da Série
1. FILOSOFIA CRISTÃ UMA ABORDAGEM[1]

Introdução
O termo “filosofia calvinista”, usado para descrever o movimento
filosófico que se desenvolveu em torno da “filosofia da ideia cosmonômica”
desde a década de 1930, pode, em muitos aspectos, gerar um entendimento
equivocado.
O termo só pode ser explicado historicamente pelo fato de que o
movimento se originou no reflorescimento calvinista que, em fins do século
XIX, conduziu a uma reflexão renovada sobre a relação da religião cristã com
a ciência, cultura e sociedade. Abraham Kuyper, cuja inspiradora liderança
orientou essa nova reflexão, assinalava que o grande movimento da Reforma
não poderia continuar restrito à reforma da igreja e da teologia. Seu ponto de
partida bíblico tocava a raiz religiosa da totalidade da vida temporal e tinha
de reivindicar sua validade em todos seus setores. Kuyper considerava que o
entendimento quanto a essas implicações foi mais bem expresso por Calvino,
e portanto, por falta de um termo mais apropriado, começou a falar do
“calvinismo” como uma cosmovisão todo-abrangente que era claramente
distinguível do catolicismo romano e do humanismo.
Kuyper estava bastante ciente das objeções que poderiam ser
levantadas contra esse termo. Poderia, por exemplo, facilmente levar à
percepção equivocada de que um sistema teológico particular estava sendo
canonizado, dando ao pensamento de Calvino uma autoridade que, na visão
bíblica-reformacional, jamais pode ser atribuída a um ser humano. Ao mesmo
tempo, implicaria um estreitamento duvidoso da base para a discussão, o qual
contradiria a importância universal — de fato, ecumênica ou católica —
dessa perspectiva, e levaria inevitavelmente à formação de seitas cristãs.
Kuyper rejeitou vigorosamente essa confusão. A experiência desde
então demonstrou que o termo pejorativo “calvinismo” é amplamente
entendido como uma designação para a formação de um grupo específico,
uma designação que antes obscurece que ilumina as verdadeiras intenções do
movimento reformacional ao qual se refere.
O que Kuyper tinha em mente quando trouxe novamente à tona o
princípio reformacional que estimulou Calvino e que, conforme ensinava,
abarcava toda a vida? O que o incentivou, em oposição a toda divisão
dualista entre um domínio “cristão” e outro “mundano”, a clamar pelo
reconhecimento do reinado de Cristo em todas as áreas da vida?
Seu interesse mais profundo era uma vida e pensamento enraizados na
unidade central das Sagradas Escrituras que está acima da divergência das
ideias e interpretações humanas. Está acima delas porque não procede do ser
humano, mas, antes, enquanto força condutora espiritual (dynamis) da divina
Palavra, toma posse de uma pessoa e exige autoentrega incondicional. A
operação central desse dynamis espiritual afeta o coração humano, por
atração ou repulsa, antes de qualquer reflexão teórica da mente humana. O
controle possessivo sobre o coração da existência humana deve ser
transmitido a partir dessa base central para toda orientação do pensamento e
vida.
O foco de interesse aqui não é apenas o indivíduo, mas a comunhão da
nova comunidade enraizada em Cristo; é o reino de Deus que está
incansavelmente em guerra com o reino das trevas. O mundo em sua
totalidade, em todos seus diversos setores, é a arena desse conflito, um
conflito que espraia de sua raiz religiosa no coração humano para a totalidade
da vida no tempo.
Deus não abandonou sua criação ao espírito da apostasia. A criação
pertence a ele. É sujeita à sua soberania absoluta. Por essa razão, o controle
dinâmico central da Palavra de Deus não afeta somente a vida pessoal do
cristão, não apenas a igreja como uma comunhão institucional, mas todos os
relacionamentos sociais humanos, a política, cultura, ciência e filosofia.
O reconhecimento da relevância radical[2] e integral da religião cristão
não deveria ser apresentado como um ponto de vista especificamente
calvinista. Pelo contrário, a relevância da religião cristã se impõe,
irresistivelmente, sobre nós, a partir do interior do motivo básico central[3]
das Sagradas Escrituras: o da criação, queda e redenção por meio de Jesus
Cristo em sua comunhão do Espírito Santo. Quando esse reconhecimento
abre caminho para a aceitação de uma “autonomia” da vida “natural” ou
“terrena”, isto se deve exclusivamente à influência de motivos não bíblicos.
Kuyper adentrou nas questões teológicas e filosóficas de sua época até
às forças espirituais mais profundas e integralmente centrais que colocam a
vida e pensamento humanos em movimento. Essas forças não podem ser
analisadas no nível dos problemas teóricos ou científicos, porque toda
reflexão teórica já está, de início, sob seu controle. Esses motivos básicos
espirituais centrais são expostos em sua verdadeira natureza somente quando
uma pessoa é interiormente transformada pela Palavra na qual Deus se revela
aos seres humanos e os leva à descoberta de si próprios.
Em seu agravamento — o escândalo (“skandalon”) dessa exposição
que culmina na cruz do Gólgota —, é revelada a crise de um conflito
inevitável entre o espírito da apostasia e o dynamis espiritual da Palavra de
Deus que expõe a todos. Nesse ponto, na esfera inteiramente central da
religião, a antítese final torna-se manifesta — uma antítese que exige uma
escolha inevitável da posição na vida e pensamento do indivíduo.
Ao seguir Abraham Kuyper em sua linha de pensamento inteiramente
bíblica, a filosofia da ideia cosmonômica aceita, em razão do motivo básico
integral, radical e central das Sagradas Escrituras (isto é, o da criação-queda-
redenção por Jesus Cristo, a Palavra Encarnada), que “a chave do
conhecimento” não é dependente dos seres humanos; pelo contrário, assume
o controle sobre eles. Seu sentido espiritual radical é diretamente revelado à
humanidade pela operação do Espírito Santo e não por intermédio de uma
exegese teológica falível de textos bíblicos e de um sistema de dogmática
teológica.
O conhecimento desse sentido radical é uma percepção adquirida por
meio da confissão, não uma conclusão obtida como resultado da reflexão
teológica. Por essa razão, esse motivo central pode também ser o ponto de
unificação ecumênica real para aqueles que, a despeito de sua afiliação
denominacional, vivem no espírito bíblico da Reforma e levam a sério o
controle radical e integral da Palavra de Deus sobre a totalidade da vida
temporal. É por isso que Kuyper divergiu das tendências sectárias do
paroquialismo eclesiástico no grande conflito cultural de sua época. E,
embora se opusesse ao “romanismo” em princípio, continuou fiel ao ponto de
partida cristão católico que não exclui ninguém da militia Christi por causa
de sua afiliação eclesiástica.

PROLEGÔMENOS À FILOSOFIA DA IDEIA COSMONÔMICA

Essa breve introdução se fez necessária a fim de dispor o contexto


espiritual da filosofia da ideia cosmonômica na perspectiva apropriada e para
salvaguardá-la de concepções equivocadas às quais está exposta devido à
infeliz designação de “filosofia calvinista”. O fato de que seus adeptos de
vários países pertencem a distintas tradições eclesiásticas e de que há uma
simpatia crescente a ela em meio a pensadores católicos romanos que foram
influenciados pela chamada “Nova Teologia” prova que sua base cristã
ecumênica não é um mote vazio.
Essa filosofia não é um sistema fechado. Não afirma ter o monopólio
sobre a verdade na esfera da reflexão filosófica, nem que as conclusões
provisórias de suas investigações se tornam sacrossantas em virtude do
motivo bíblico central que a impulsiona e a controla. Como uma filosofia,
não exige, de modo algum, uma posição privilegiada para si mesma; pelo
contrário, busca criar uma base real para o diálogo filosófico entre os
diferentes movimentos — movimentos que muitas vezes se isolam e que
somente podem levar à estagnação e sobrevalorização de suas próprias ideias.
A “crítica transcendental do pensamento teórico”, que é a chave para se
entender a filosofia da ideia cosmonômica, busca servir ao propósito desse
diálogo. É também o meio pelo qual essa filosofia busca abordar os campos
diametralmente opostos da filosofia levando em consideração seus
respectivos e mais profundos contextos espirituais.
Neste ensaio, apenas alguns prolegômenos à filosofia da ideia
cosmonômica poderão ser explorados mais detidamente. Por uma “crítica
transcendental do pensamento teórico”, essa filosofia se refere a uma
investigação genuinamente crítica (i.e., impiedosa para com qualquer um dos
chamados axiomas filosóficos) em relação às condições universalmente
válidas que tornam a atitude teórica possível e que são requeridas pela
estrutura intrínseca dessa atitude. É nessa condição[4] que reside a diferença
fundamental entre uma crítica “teologicamente transcendente” e uma crítica
“transcendental” — dois tipos de crítica aos quais se pode sujeitar o
pensamento filosófico. O primeiro não toca realmente a natureza interna e a
estrutura intrínseca da atitude teórica da mente humana, mas apenas sujeita os
diferentes resultados do pensamento filosófico ao teste das Sagradas
Escrituras ou de um dogma eclesiástico que é tido como infalível. É uma
crítica que permanece sendo dogmática, contudo, e não tem valor à filosofia,
na medida em que o dogma da autonomia da filosofia não é sujeito a uma
crítica genuinamente transcendental e em que o ponto interno de contato
entre a filosofia e a religião não é posto a nu. Além disso, é sempre um perigo
para a teologia quando esta não examina a fundo seus próprios pressupostos
filosóficos — pressupostos que frequentemente se impuseram sobre suas
exegeses científicas das Escrituras, sem um exame de suas raízes. Bastar
pensar na influência dos conceitos filosóficos gregos e modernos sobre o
entendimento teológico da analogia do ser, a relação entre alma e corpo,
criação, tempo e eternidade, causalidade, etc. A crítica transcendental a que a
filosofia da ideia cosmonômica visa é tão necessária para a teologia quanto o
é para sua antiga rival, a filosofia.
Essa “crítica transcendental” não deve ser confundida com a “crítica
transcendental do conhecimento” inaugurada por Immanuel Kant [1724-
1807], nem com a crítica transcendental-fenomenológica do conhecimento
conduzida por Edmund Husserl [1859-1938]. O impulso mais profundo do
pensamento de Kant o levou, em seu período mais importante, a uma
“metafísica prática”. Ele buscou investigar apenas os limites e as condições a
priori do conhecimento científico, limitando este último, ademais, ao
conhecimento físico-matemático, e rejeitando suas reivindicações
metafísicas. Ele acreditava que essa teoria do conhecimento poderia
determinar essas fronteiras e condições de um modo que fosse
universalmente válido. Mas a teoria do conhecimento em si não se tornou um
problema central para Kant. Ele presumiu a autonomia da “razão teórica” sem
ter primeiramente conduzido uma investigação crítica relativamente às
condições universalmente válidas da própria atitude teórica do pensamento.
O ponto de partida dogmático da teoria do conhecimento de Kant
tornou-se o maior obstáculo para uma postura genuinamente crítica. Impediu-
o de considerar que é nesse ponto, na própria teoria do conhecimento, que se
manifesta a principal diferença no ponto de partida entre as várias escolas. É
uma diferença que precede — e controla — toda reflexão teórica.
A mesma coisa se aplica, numa medida ainda maior, à fenomenologia
transcendental de Edmund Husserl, que ele caracteriza, em suas Meditações
Cartesianas, como “crítica do conhecimento fenomenológico-
transcendental”. Essa teoria do conhecimento, apresentando-se como a
“crítica derradeira do conhecimento”, vai muito além de Kant em sua
absolutização da atitude teórica. Kant ao menos ainda postulava uma
“Primazia da Razão Prática” e desejava estabelecer princípios limitantes à
“Razão Teórica”. Que a Crítica da Razão Prática de Kant tenha permanecido
ligada, em princípio, à atitude teórica, não diminui o fato de que ele
permaneceu plenamente consciente da dependência de sua crítica da razão
prática de uma fé que, por mais que desejasse mantê-la dentro dos limites da
razão autônoma, era, no entanto, inacessível a uma abordagem puramente
teórica.
Mesmo essa reserva crítica com relação à atitude teórica é
fundamentalmente abolida na fenomenologia de Husserl. Neste, a fé da razão
prática de Kant é sujeita à redução fenomenológica teórica ( ἐ π οχή ), como
se pertencesse a uma “atitude da vida natural” pré-crítica. Nessa linha de
associação, os fenomenologistas acreditam que, embora sejam eles próprios
livres de qualquer fé na condução de suas pesquisas, podem apreender todos
os elementos essenciais do ato intencional de fé na contemplação teórica e
expor, por um método puramente teórico, a constituição transcendental de
todo conteúdo de crença possível.
Aqui, de fato, a absolutização da atitude teórica não é mais
contrabalanceada por qualquer tipo de reserva crítica. É por essa razão
mesma que a crítica fenomenológica “transcendental” do conhecimento,
conduzida por Husserl, forma um campo extremamente promissor de estudo
para uma crítica transcendental radical do pensamento que forçará a crítica
fenomenológica a propor, como problema transcendental, a própria
autonomia da atitude fenomenológica que aceitou como um axioma.
Como se pode explicar que a teoria do conhecimento aristotélica leva a
resultados tão diferentes daqueles de Locke e Hume, e que a crítica do
conhecimento destes mais uma vez se desvia fundamentalmente da crítica de
Kant ou da crítica fenomenológica de Husserl? O que está em questão aqui?
Tratava-se simplesmente de uma reflexão puramente teórica sobre a natureza
e condições do processo teórico, uma reflexão que firmemente se aprofunda e
se corrige no curso da história, em sua confrontação com os resultados
progressivos da ciência?
Essa interpretação é aceita por todos que partem axiomaticamente da
autonomia do pensamento teórico filosófico. Para eles, a possibilidade do
debate filosófico científico permanece de pé ou desmorona com a aceitação
ou rejeição do “axioma” da autonomia. Mesmo a filosofia existencialista, ao
menos em sua expressão não cristianizada, não desafiou a autonomia da
filosofia, muito embora não tenha direcionado a filosofia para um plano de
pensamento totalmente diferente do da reflexão sobre os limites e condições
do conhecimento científico ou daquele de uma fenomenologia não
existencialista.
Mas, para um indivíduo com uma atitude realmente crítica do
pensamento, o simples fato de que uma definição mais precisa dessa
autonomia revelaria grandes diferenças conceituais deve opor-se à aceitação,
como um axioma, da autossuficiência do pensamento filosófico. Esse
axioma, de igual modo, deve ser posto como um problema para uma crítica
transcendental genuinamente radical do pensamento.
Toda filosofia, distintamente da sabedoria prática, permanece ligada à
atitude teórica. Essa atitude não é de modo nenhum idêntica à chamada
objetivação ou, para usar do jargão existencialista, à atitude “factual”, que se
concentra apenas naquilo “que está presente”. A verdade é, pelo contrário,
que esses “dados”, em sua posição antitética típica em relação à existência
intrinsecamente “histórica” dos próprios seres humanos, somente assume, na
atitude teórica, a configuração peculiar que o existencialismo lhes deu.
A atitude teórica do pensamento não desvela sua natureza e estrutura
internas até que seja justaposta à atitude pré-teórica da experiência ingênua.
A primeira, em distinção a esta última, é caracterizada pela relação antitética
na qual o aspecto lógico do ato de pensamento (o analítico) confronta os
aspectos não lógicos do horizonte da experiência humana.
Por conseguinte, os aspectos não lógicos, permanecendo, como o
fazem, numa relação antitética para com a função analítica humana, resistem
ao esforço, por parte da lógica humana, de separá-los um do outro e
apreendê-los conceitualmente. Dessa resistência surge o problema teórico.
Nessa “relação antitética”, não há uma oposição oculta entre sujeito e
objeto enquanto tais, visto que se trata antes de uma oposição teórica do
aspecto lógico aos aspectos não lógicos de um único e mesmo horizonte
temporal da experiência humana. Esses aspectos são simplesmente os modos
nos quais experienciamos a realidade temporal. Formam um diagrama
coerente de modalidades que pertencem à estrutura do horizonte humano de
experiência. Como tal, esse quadro é básico a toda realidade empírica no
tempo, como um dado a priori de sua [do tempo] diversidade intrínseca de
sentido. A confusão, em nossa experiência, entre esses aspectos modais e os
fenômenos que se manifestam neles muitas vezes impediu o entendimento
[insight] sobre a natureza da “relação antitética do pensamento” (a relação
Gegenstand).
Também é essa a razão por que a filosofia quase não se atentou às
estruturas modais reais dos aspectos da experiência. Ninguém deveria pensar,
contudo, que esses aspectos modais são apenas uma construção da filosofia
da ideia cosmonômica, e que outras escolas de pensamento são, portanto,
livres para ignorá-los. Os aspectos modais de nossa experiência não
permitirão ser ignorados pela atitude teórica do pensamento, pois conferem à
experiência a diversidade primária do sentido que é básica a toda distinção
teórica e que a torna possível. Em última análise, são esses aspectos modais
que determinam as áreas distintas de investigação das ciências especiais,
embora dentro desse diagrama as ciências especiais possam, é claro,
especializar-se ainda mais e de muitas formas.
Pois não são os fenômenos empíricos em sua totalidade que podem
oferecer um critério para a delimitação dessas áreas de estudo científico. Os
mesmíssimos fenômenos que são investigados pela física no domínio da
operação da energia física são considerados, pelos biólogos, sob o aspecto da
vida orgânica. Para a ciência da história, esses fenômenos podem assumir um
aspecto histórico. Pense apenas no significado histórico de catástrofes
naturais como inundações, ou a influência do inverno russo sobre a campanha
de Napoleão na Rússia, dentre outros. A economia os concebe com base no
aspecto econômico. A teoria do direito há de estudá-los no aspecto jurídico
dos fatos objetivos do direito em sua pertinência às relações legais subjetivas.
A estética analisá-los-á a partir de sua perspectiva — por exemplo,
considerando a estética das cores e das ondas sonoras. Na filosofia, as
diferenças podem surgir somente no que diz respeito ao modo como se
deveria conceber a interrelação e coerência mútuas desses aspectos modais e,
ligado a isso, a como deveriam ser distinguidos teoricamente. Porém, a
diversidade modal do horizonte de nossa própria experiência é algo inegável,
e toda tentativa, na filosofia, de esquivar-se da força dessa realidade leva
apenas a conceitos confusos e a teorias destituídas de toda especificidade
genuína de sentido. Por essa razão, toda visão filosófica do horizonte da
experiência humana, e da realidade que se apresenta dentro desse horizonte,
deve ser testada imediatamente pela dimensão modal desse horizonte. Toda
forma de redução da diversidade modal dos aspectos da experiência
necessariamente conduz a declarações teoricamente confusas do problema e
se transforma numa verdade cilada na discussão filosófica.
Na atitude teórica, filosófica, do pensamento, toda totalidade que
abarca uma variedade de aspectos dentro de si necessariamente se torna um
problema teórico. E, ainda que o problema seja apresentado em detalhes, ele
sempre implica a relação Gegenstand teórica no sentido transcendental
explicado anteriormente. Por essa razão, o entendimento dessa relação
transcendental é uma condição primária para uma crítica transcendental da
reflexão filosófica. E uma vez que essa reflexão, sendo teórica por natureza,
somente é possível na diversidade modal dos aspectos da experiência, toda
perspectiva teórica sinóptica sobre as coisas necessariamente tem de passar
por essa dimensão do horizonte de nossa experiência, ao mesmo tempo que
oferece uma exposição teórica dessa totalidade. De igual modo, essa sinopse
teórica fornece à crítica transcendental do pensamento uma explicação de seu
conteúdo e sentido. E o simples fato de que todos os termos filosóficos se
tornem multívocos sempre que se tenta ignorar a tarefa de distinguir
teoricamente os aspectos modais — o que só é possível na relação
“Gegenstand” — mostra que essa relação transcendental é uma condição
estrutural do pensamento filosófico.

O Primeiro Problema Transcendental

Ora, o primeiro problema transcendental com o qual a estrutura


antitética da atitude teórica nos confronta pode ser definido, num primeiro
momento, da seguinte forma:

A antítese teórica entre o aspecto lógico e os aspectos não lógicos de nossa


experiência correspondem à estrutura integral do horizonte de nossa
experiência e portanto à estrutura da realidade empírica?

Caso assim o fosse, então qualquer possibilidade de uma distinção


lógica entre os aspectos não lógicos e, com isso, a própria possibilidade da
atitude teórica seriam anuladas. O aspecto lógico de nosso pensamento seria
separado por um abismo intransponível dos modos não lógicos de nossa
experiência. Também não haveria lugar para a atitude pré-teórica da
experiência ingênua.
Na experiência ingênua também pensamos ativamente. A experiência
humana não é uma questão de sofrer e reagir a estímulos, à maneira animal.
Pressupõe, pelo contrário, uma combinação de atos de recepção e resposta
relacionados ao ego, nos quais a atividade de pensamento exerce um papel
essencial. Enquanto essa vida-ato não houver se desenvolvido numa pessoa,
esta carece da possibilidade de experiência.
Porém, a atitude ingênua do pensamento difere-se, em princípio, da
atitude teórica. A primeira é destituída de qualquer traço de estrutura
antitética e, por isso, não conhece problemas teóricos. Na experiência
ingênua estamos imersos, tanto com nossa função analítica quanto com todas
as demais funções modais[5] de nossa consciência e subconsciência que
experienciam, na realidade empírica. Na experiência empírica, apreendemos
a realidade nas estruturas de totalidade típicas das coisas individuais, eventos
concretos, relações sociais concretas, etc., nas quais todos os aspectos modais
são tipicamente individualizados e integrados na coerência inquebrável,
unidas como uma totalidade sem qualquer distinção analítica entre os
próprios aspectos modais.[6]
A formação ingênua de conceitos não é direcionada a esses aspectos
modais, mas a coisas, eventos, etc., enquanto totalidades individuais; não
está, por exemplo, orientada para as relações numéricas ou espaciais abstratas
ou para as operações de energia, mas sim para realidades enumeráveis,
espaciais e operantes, em cujas estruturas de totalidade empíricas o aspecto
lógico está unido em coerência inquebrável com as modalidades não lógicas
da experiência. Todos esses aspectos são implicitamente experienciados em
relação às coisas e eventos enquanto entidades integrais, e não
explicitamente, como seria consequentemente no caso de distingui-las
teoricamente. Mas como isso é possível?
É possível apenas em virtude da relação sujeito-objeto que é
característica da experiência ingênua, uma relação que tem de diferenciar-se,
portanto, fundamentalmente da relação Gegenstand teórica à qual é
continuamente igualada na teoria epistemológica.
Nessa relação sujeito-objeto, atribuímos às coisas e eventos uma
função-objeto nesses aspectos modais do horizonte de nossa experiência nos
quais não podem atuar como sujeito. A experiência ingênua faz uma
distinção entre funções-sujeito e funções-objeto.[7] Por exemplo, sabe-se
muito bem que a água, em si, não está viva; no entanto, tem uma função-
objeto essencial na modalidade biótica como um “meio de vida” necessário.
Sabe-se também muito bem que o ninho de um pássaro, por si só, não é um
sujeito de vida, porém cumpre uma função objetiva essencial na vida do
pássaro. Sabemos que o edifício de uma igreja não pode ser um sujeito no
aspecto da fé; entretanto, serve um propósito objetivo no culto de uma
comunidade de fé — um propósito que se exprime objetivamente na estrutura
do próprio edifício. Ademais, essas relações sujeito-objetos são apreendidas,
na experiência ingênua, como relações estruturais dentro da própria realidade
empírica. Em momento nenhum, as funções-objetos das coisas são
absolutizadas e atribuídas à denominada “coisa-em-si” (Ding na sich). Pelo
contrário, as funções-objeto são experienciadas numa relação inquebrável
com as funções-sujeito possíveis nos aspectos considerados. Por exemplo,
sob iluminação adequada, uma rosa pode ter, para toda a percepção humana
normal, a cor sensorial objetiva “vermelha”. Uma coisa tem características
objetivas-analíticas em relação à formação humana subjetiva de conceitos.
Uma obra de arte tem uma função estética objetiva (qualificante), tanto como
expressão objetiva de uma concepção estética subjetiva do artista quanto em
relação à apreciação estética subjetiva de quem a observa.
Como resultado dessas relações sujeito-objeto, experienciamos a
realidade de uma só vez, na coerência total dos diferentes aspectos modais do
horizonte de nossa experiência. A experiência ingênua deixa as estruturas da
experiência empírica intactas; e embora não compreenda esses aspectos
explicitamente de uma maneira conceitual, tem, no entanto, uma consciência
implícita deles.
A atitude teórica antitética, por outro lado, desmembra a realidade na
diversidade de seus aspectos modais, mesmo que o pensador teórico, sem um
entendimento quanto à natureza da relação antitética, não esteja consciente
disso. A epistemologia vê a si própria nessa atitude antitética do pensamento
quando tenta opor o sujeito e o objeto de conhecimento, dispondo assim o
aspecto lógico do pensamento contra um aspecto não lógico da experiência
humana (o da percepção sensorial).
E os chamados fenômenos da natureza atuam, é claro, apenas como
objeto, embora numa relação inquebrável com a observação sensorial
subjetiva. A contagem, medição e pesagem, quando aplicadas pelas ciências
exatas, só podem trazer à luz a objetividade dos fenômenos observados em
conexão inseparável com atos subjetivos de contagem, medição e pesagem,
atos que ocorrem dentro do horizonte integral da experiência humana. Mas o
caráter objetivo contável, mensurável e pesável desses fenômenos já constitui
um apelo a outros aspectos modais de nossa experiência, além do aspecto da
percepção sensorial. O quadro teórico da realidade é sempre produto da
abstração teórica. O que é especificamente abstraído da estrutura da realidade
experienciada é aquilo que é uma de suas primeiras condições,
nomeadamente, o vínculo contínuo da coerência entre o aspecto lógico e os
aspectos não lógicos.
Na natureza das coisas, essa abstração teórica não pode realmente
anular esse vínculo. O ato real de pensamento não opera apenas na
modalidade lógica, mas também, e de igual modo, nos outros aspectos
modais do horizonte de nossa experiência e na inquebrantável coerência
dessas funções modais. Em outras palavras, a relação antitética possui apenas
um caráter intencional. É posicionada dentro do ato real de pensamento no
instante em que direcionamos nossa função analítica para um ou mais
aspectos não analíticos de nossa experiência, aspectos que abstraímos, para
esse propósito, da síntese intermodal do horizonte de nossa experiência.
Toda disciplina científica faz isso quando busca investigar a realidade
empírica de um ponto de vista específico. Mas nessa investigação ela não
concentra sua atenção teórica sobre a estrutura modal desse aspecto em si;
antes, concentra-se na coerência dos fenômenos reais que operam dentro
dessa estrutura. Quando são apreendidos apenas em certos aspectos
específicos, abstratos, esses fenômenos não mais são vistos em sua realidade
integral, mas apenas relativamente a suas funções modais específicas.
Mas também a filosofia, embora não caracterizada pela atitude
investigativa particular das ciências especiais, permanece ligada, em todas
suas nuances e escolas possíveis, à atitude teórica. Ela não pode permanecer
na atitude da experiência ingênua, porque os problemas filosóficos reais
surgem apenas dentro da atitude teórica. Portanto, o primeiro problema
transcendental básico que a atitude teórica propõe pode ser agora
definitivamente formulado como se segue: na relação-pensamento antitética,
o que abstraímos da estrutura integral do horizonte de nossa experiência?
Ao proceder dogmaticamente a partir disso, os adeptos do dogma da
autonomia do pensamento teórico permaneceram inconscientes desse
problema fundamental. Eles igualavam a relação antitética do pensamento
teórico com a relação sujeito-objeto, e assim chegavam a uma curiosa
deformação da experiência ingênua, vista como um tipo de teoria. A
experiência ingênua passou então a ser interpretada como uma teoria sobre a
realidade, a chamada teoria realista ingênua. De acordo com o realismo
ingênuo, a mente humana estava situava defronte à realidade objetiva como
uma câmera, e a realidade an sich (em si mesma, apartada da mente humana
consciente) era fielmente refletida na observação sensorial. Essa teoria
realista ingênua da experiência ingênua foi supostamente refutada em sua
inteireza pela teoria kantiana do conhecimento em sua aliança com a física
moderna.
Essa é de fato uma interpretação peculiar da atitude da experiência
ingênua! Mas faz sentido à luz da absolutização da relação teórica antitética,
que já na metafísica grega levou a um processo no qual a teorização, a
faculdade analítica da mente humana, se tornou autônoma, e cujo Objeto
(Gegenstand) tornou-se “uma realidade em e de si mesma”. De fato, a des-
teorização da interpretação da experiência ingênua é uma conditio sine qua
non para uma crítica transcendental do pensamento teórico.
Para a pergunta formulada anteriormente, isto é, o que, na relação-
pensamento antitética, é abstraído da estrutura integral do horizonte de nossa
experiência, a resposta da filosofia da ideia cosmonômica é: a coerência
intermodal do tempo. O tempo é aqui entendido num sentido plenamente
universal, um sentido ao qual não correspondem o “tempo fenomenológico”
de Husserl nem o “tempo histórico-existencial” do existencialismo. O tempo
no sentido utilizado presentemente, isto é, em sua continuidade intermodal,
não é de modo nenhum aberto à penetração teórica, visto que precede toda
distinção teórica como sua premissa transcendental derradeira.
Experienciamos o tempo como algo que não se exaure no fluxo ininterrupto
de experiências subjetivas. O tempo universal abarca todos os aspectos
modais do horizonte de nossa experiência; manifesta-se em cada um desses
modos no sentido específico de cada modalidade, mas não se exaure em
nenhum deles. O aspecto matemático da quantidade e o da espacialidade são
tão intrinsecamente temporais quanto o aspecto matemático do puro
movimento; assim como os aspectos físico, biótico, psíquico, lógico e
cultural-histórico, ou ainda o do sentido simbólico. Porém, o tempo integral
tem uma dimensão de profundidade contínua que se estende para além das
fronteiras modais dos aspectos da experiência e que traz estes para uma
coerência inquebrável de sentido. Mas então como a reflexão filosófica
teórica no tempo universal é possível? E afinal, o fato de que a filosofia da
ideia cosmonômica envolve o tempo universal em sua teorização não é uma
negação dessa afirmação de que o tempo não está aberto à penetração
teórica?
Evidentemente, a resposta pode ser apenas que, na atitude teórica do
pensamento, podemos abordar o tempo universal apenas numa investigação
teórica de seus aspectos modais, conforme estes são distinguidos nessa
atitude teórica. Nesse caso, abordamo-lo na necessária descontinuidade
teórica de uma ideia teórica de uma totalidade que continua a apelar para um
senso intuitivo de sua continuidade na atitude da experiência ingênua, mas
que nos impede de igualar o tempo com uma de suas manifestações modais
(e.g. o senso contínuo de sua duração na esfera física, a continuidade do
tempo na história, a continuidade biótica das coisas vivas no processo de
desenvolvimento, ou ainda a continuidade do movimento).
O tempo integral se manifesta em cada um de seus aspectos modais na
inquebrável correlação com a ordem e duração do tempo, sendo esta última
sujeita à primeira. A ordem é o lado-lei, ao passo que a duração é o lado-
sujeito (ou o lado subjetivo-objetivo) do tempo. A visão irracionalista
(subjetivista) do tempo que identifica o tempo real com sua duração
subjetiva, conforme se manifesta nas modalidades biótica, psíquica ou
histórica, está tão baseada numa absolutização teórica sem sentido quanto a
visão racionalista (objetivista) que interpreta o tempo como o ordenamento
matemático do movimento e o relaciona a um tempo objetivo supostamente
absoluto, sem aperceber-se que a relação sujeito-objeto torna absurda
qualquer absolutização de (da duração de) um tempo objetivo na modalidade
do movimento. Todas essas visões sobre o tempo presumem apreendê-lo em
sua continuidade intermodal integral. Mas, numa atitude genuinamente
crítica-transcendental, começamos a perceber que, a fim de trazer todos os
modos fundamentais de tempo abertamente à vista, é preciso abstraí-los de
sua continuidade intermodal.
Todas as estruturas transcendentais nas quais experienciamos a
realidade dentro do horizonte universal do tempo — tanto as estruturas
modais dos aspectos quanto as estruturas-de-totalidade típicas de
individualidade — são intrinsecamente temporais.[8] Estão fundamentadas na
ordem universal do tempo em sua relação intrínseca à duração do tempo. O
pensamento teórico permanece fechado inteiramente dentro desse horizonte
temporal. Teoricamente, podemos abstrair as estruturas de tempo
transcendentais de toda duração temporal real. Ao fazê-lo, podemos gerar a
ilusão de que incorporamos estruturas atemporais em nossa perspectiva
teórica. Com efeito, essas são estruturas temporais abstraídas e o processo da
abstração teórica em si permanece fechado dentro do horizonte universal do
tempo que, em primeiro lugar, o tornou possível.
Na atitude teórica, não podemos, é claro, satisfazer-nos com e pararmos
na antítese teórica entre os aspectos lógicos e não lógicos na relação
Gegenstand. Não podemos ainda permanecer face a um problema teórico.
Devemos mover-nos a partir da antítese teórica para a síntese teórica, a fim
de chegar a um conceito teórico dos aspectos não analíticos. Pode ser que,
nas ciências especiais, essa síntese se dê apenas implicitamente, porque aí
toda atenção teórica é direcionada à coerência dos dados (as funções da
realidade) que se apresentam para o estudo dentro do campo Gegenstand[9]
abstraído. Mas a filosofia, se deseja manter-se de fato crítica, tem de chegar a
um conceito explicitamente teórico dos aspectos modais distinguidos (isto é,
analiticamente separados) do horizonte temporal de nossa experiência, para
que seja capaz de apreendê-los numa teoria que os abranja todos. A filosofia
não pode escapar a essa perspectiva de totalidade porque cada aspecto desse
horizonte de experiência contido na relação antitética apresenta uma estrutura
modal fundacional na qual se expressa uma coerência interna com todos os
demais aspectos. É apenas na coerência intermodal que os aspectos modais
revelam sua própria natureza interna, e, embora na atitude teórica do
pensamento sejamos compelidos a abstraí-los da continuidade dessa
coerência, essa continuidade se impõe sobre nós, mesmo na descontinuidade
teórica dos aspectos abstraídos.
As próprias ciências especiais são forçadas a responder a essa
coerência, já que os aspectos, que em princípio determinam seu campo de
investigação, refletem e se relacionam entre si. Os conceitos constitutivos
fundamentais dessas ciências apresentam uma conectividade recíproca, a
despeito do fato de que, em cada área científica, adquirem uma qualificação
modal especial. E quando as ciências especiais apelam à realidade empírica
para estabelecer suas posições teóricas, esse apelo não é à realidade empírica
tal como se apresenta na experiência ingênua, mas a uma realidade conforme
vista pelas lentes de uma visão teórica da totalidade. Nesse ponto, os
pressupostos filosóficos amiúde inconscientes da pesquisa nas ciências
especiais se manifestam — pressupostos que precisam ser trazidos à tona,
numa crítica do pensamento radicalmente crítica.

O Segundo Problema Transcendental

A síntese intermodal da qual o pensamento teórico depende dá origem a


um segundo problema básico transcendental, que pode ser formulado da
seguinte forma: sob qual ponto de vista os aspectos de nosso horizonte de
experiência — que foram separados e opostos entre si na antítese teórica —
poderão ser reunidos numa síntese teórica?
Ao levantar esse segundo problema básico, todo ponto de partida
possível do pensamento teórico é sujeito a uma crítica transcendental. E nesse
ponto devemos finalmente evidenciar se a presumida autonomia do
pensamento teórico é fundamentada na natureza interna e na estrutura desse
pensamento ou se é, antes, um pré-julgamento suprateórico. Se é este último
o caso, então a crítica transcendental não pode descansar até que tenha
trazido à luz a verdadeira natureza desse pré-julgamento.
Ora, é de pronto óbvio que o verdadeiro ponto de partida da síntese
teórica, a despeito de como tenha sido escolhido, não se encontra, de modo
algum, em um dos termos da relação antitética. Deve necessariamente
transcender a antítese teórica, a fim de ser capaz de atuar como o ponto
central para a síntese; isto é, ser capaz de relacionar a diversidade modal dos
aspectos de nossa experiência a uma unidade radical mais profunda de nossa
consciência, uma que é fundamental a todo ato de pensamento. Isto é certo: a
relação antitética, pela qual a atitude teórica permanece ou cai (porque todos
os problemas teóricos se originam nela), não oferece em si mesma uma ponte
entre o aspecto lógico do pensamento e seus aspectos-Gegenstand não
lógicos. Uma síntese puramente lógica é algo diferente da síntese intermodal
que está em jogo no segundo problema básico transcendental da crítica do
pensamento. De igual modo, o tempo, considerado em sua continuidade
intermodal, não pode servir como o ponto central de referência para a síntese,
por nenhuma outra razão senão a de que não pode ser um ponto de referência
para a antítese teórica.
Já nesse estágio, o dogma da autonomia do pensamento teórico parece
levar seus adeptos a um impasse inescapável. A fim de manter a
autossuficiência da atitude teórica, eles têm pouca ou nenhuma escolha senão
abraçar a conclusão de que seu ponto de partida deve ser encontrado no
próprio pensamento teórico. Para a filosofia, isso significa que o único ponto
de partida para uma visão teórica total do horizonte de nossa experiência,
bem como para a realidade empírica que se apresenta dentro desse horizonte,
teria de ser buscado no interior desse próprio pensamento [teórico]. Na
filosofia da ideia cosmonômica, essa visão é chamada de perspectiva da
imanência, e toda filosofia que julga ser capaz de aderir-se a ela é descrita
como filosofia da imanência.
Mas o pensamento teórico, em virtude de sua estrutura antitética
intencional, depende da síntese intermodal. Há tantas modalidades de síntese
teórica possíveis quanto há aspectos não lógicos em nosso horizonte de
experiência. Há o pensamento teórico sintético de natureza matemática,
física, biológica, psicológica, histórica, linguística, estética, econômica,
jurídica, moral-teórica, dentre outras. Em qual dessas perspectivas das
ciências especiais a visão total do filósofo buscará seu ponto de partida? A
despeito de sua escolha, manifestar-se-á sempre como a absolutização de um
aspecto modal específico (sinteticamente apreendido) do horizonte da
experiência humana. Essa é a fonte de todos os “ismos” na visão teórica da
realidade: “ismos” que continuamente se esforçam para reduzir todos (ou ao
menos alguns) os aspectos restantes a simples modalidades daquele que foi
absolutizado; “ismos” que exercem seu confuso papel tanto na filosofia
quanto nas ciências especiais (em seu apelo à realidade).
Ora, esses “ismos” (como o energismo, biologismo, psicologismo,
historicismo, etc.) são acríticos em dois sentidos. Primeiramente, jamais
podem ser teoricamente justificados. A antítese teórica resiste a toda tentativa
de reduzir um dos aspectos modais abstraídos a outro, e responde à
absolutização ao enredar, em antinomias[10] internas, o pensamento teórico
responsável por essa absolutização. Em todo o horizonte do tempo abarcado
pela atitude teórica, simplesmente não há lugar para o absoluto. E a síntese
intermodal teórica não pode ser deslocada da relação antitética teórica que é
seu pré-requisito.
Com isso tocamos na segunda razão da natureza acrítica dos diferentes
“ismos”. Em cada um deles, o problema concernente ao ponto de partida da
síntese teórica permanece sem solução. Uma vez que não pode derivar sua
origem do próprio pensamento teórico, essa absolutização sugere a influência
de um ponto de partida suprateórico que controle a visão teórica da
interrelação mútua e da coerência dos aspectos modais da experiência, as
quais foram teoricamente separadas.
A filosofia da imanência sempre tentará escapar da força da relação
antitética que ameaça a autonomia da atitude filosófica do pensamento. Essas
tentativas assumem várias formas. Pode tentar buscar refúgio numa
metafísica irracionalista da vida, na qual todos os conceitos estáticos são
substituídos por conceitos fluidos para expressar o movimento vital conforme
apreendido nas formas móveis, imediatas, de intuição. Pode também tentar,
ao modo da fenomenologia “eidética” que se crê capaz, ao aplicar as
“reduções” (ejpochv), de apreender as estruturas essenciais da totalidade
conforme dadas nos atos intencionais da consciência por uma observação
intuitiva imediata da natureza. Pode-se tentar igualmente o caminho da
fenomenologia existencial que, como a filosofia da vida, se dissocia
expressamente do pensamento “objetivizante”. Esta assume seu ponto de
partida na situação concreta do ser “lançado ao mundo” da existência
histórica e, na análise fenomenológica dos estados de ânimo existenciais de
“cuidado” e “terror”, rejeita o método husserliano de redução; e, ao fazê-lo,
acredita que está escapando à abstração teórica no processo.
Em oposição a esses movimentos filosóficos modernos, a crítica
transcendental do pensamento teórico levado a cabo pela filosofia da ideia
cosmonômica parece falhar, na medida em que afirma que a abstração teórica
implicada na relação antitética é uma característica essencial da atitude
teórica. Mas isso é apenas uma ilusão. Todos os movimentos filosóficos
referidos se desassociam expressamente da atitude da experiência ingênua.
Esse próprio ato de dissociação já implica a relação antitética no sentido
pretendido pela filosofia da ideia cosmonômica. É a absolutização encoberta
da abstração teórica que cria a ilusão de que a reflexão filosófica tem acesso
imediato ao horizonte temporal integral da experiência humana. A crítica
transcendental do pensamento teórico perturba essa ilusão ao trazer à tona a
absolutização oculta.
Nessa crítica, o problema inescapável da interrelação e coerência dos
aspectos modais fundamentais do horizonte da experiência humana exerce
um papel essencial. Esse problema jamais pode ser evitado ao operar-se com
visões totais de “vida” teoricamente não testadas, “fluxo de consciência”,
“mundo”, “existência”, etc., nem ao reduzir o horizonte integral da
experiência a seus aspectos sensorial e lógico, porque em suas respectivas
estruturas modais ambos se referem a todas as demais modalidades.
Enquanto isso, seria certamente prematuro e incorreto supor que o
ponto de vista de imanência teria necessariamente de levar a uma
absolutização de um ponto de vista científico específico ou a uma única
absolutização. É tarefa da crítica transcendental do pensamento investigar
todas as possibilidades que ela oferece para uma investigação filosófica-
transcendental da estrutura do horizonte da experiência humana, porque essa
investigação está necessariamente implicada na crítica transcendental da
atitude teórica. É por essa razão que, no decorrer dessa crítica, a filosofia da
ideia cosmonômica deu especial atenção à filosofia transcendental crítica de
Immanuel Kant, à fenomenologia transcendental de Edmund Husserl e a
outros movimentos transcendentais na filosofia da imanência.
Kant certamente discerniu o caráter não crítico da absolutização de uma
síntese teórica especial. Ele estava ciente da necessidade de um ponto central
de referência para todos os atos sintéticos de pensamento. Ele, no entanto,
acreditava que podia identificar na razão teórica um ponto de partida que
estaria na base de toda síntese teórica possível e que não seria portanto obtida
pela absolutização de uma perspectiva científica específica.
De acordo com o filósofo de Konisberg, para descobrir esse ponto de
partida iminente no qual todos os atos sintéticos de pensamento convergem
numa unidade central mais profunda, é preciso desviar o olhar do objeto
concreto (Gegenstand) sobre o qual o pensamento teórico está focado e tomar
a via da autorreflexão teórica crítica. E, de fato, essa via é bastante
promissora. Pois, ignorando por um momento a negligência de Kant para
com a relação antitética real e notando a grande diversidade de aspectos
modais nos quais o horizonte da experiência humana parece separar-se, não
se pode negar que, enquanto o pensamento filosófico, em sua função lógica,
continuar a ser orientado aos aspectos modais opostos da experiência humana
que formam sua Gegenstand, ele dissipará a si mesmo nessa diversidade
teórica das modalidades. Apenas quando orientado em direção ao
pensamento em si mesmo, é que ganha um foco concêntrico na unidade de
uma consciência que deve se encontrar na base de toda a diversidade dos
aspectos da experiência.
Indague a todas as disciplinas que trabalham no domínio da
antropologia: “O que é um ser humano?” e você receberá uma amostra de
dados e atributos que se relacionam a aspectos específicos da existência
humana. Mas a questão: “o que é o ser humano em si mesmo na unidade de
sua individualidade?” não pode ser respondida por todas as ciências reunidas.
A individualidade humana atua, certamente, em todos os aspectos modais do
horizonte temporal da experiência humana; no entanto, é uma unidade radical
que simultaneamente transcende todos esses aspectos.
Assim, a via da autorreflexão crítica é, de fato, a única que pode levar a
uma descoberta do verdadeiro ponto de partida de uma síntese teórica.
Sócrates já sabia disso quando fez do oráculo délfico — “conhece a ti
mesmo” — a exigência primária para a reflexão filosófica crítica.

O TERCEIRO PROBLEMA TRANSCENDENTAL

Mas isso dá origem a um novo problema transcendental que pode ser


formulado como se segue: como é possível essa autorreflexão crítica, essa
direção concêntrica do pensamento teórico em direção ao eu, e qual é sua
origem?
Não pode haver dúvida de que esse terceiro problema é também
imposto a nós pela estrutura interna e intencional da atitude teórica. Isso é
evidente quando lembramos que o pensamento teórico em si está ligado à
diversidade teórica das modalidades de experiência, mesmo quando volta sua
atenção à experiência da totalidade dentro do horizonte do tempo. Esse
problema não é resolvido pela distinção entre os tipos reflexivo e objetivo do
pensamento teórico, referindo-se o primeiro ao sujeito pensante, enquanto o
segundo se concentra sobre objetos reais. O que se encontra em jogo aqui não
é a relação sujeito-objeto no pensamento humano, mas a relação antitética em
seu sentido teórico transcendental fundamental. Enquanto o chamado sujeito
pensante estiver encerrado na relação Gegenstand, não será um ponto de
concentração real para o ato teórico de pensamento.
O próprio Kant não levantou esse problema porque o dogma
concernente à autonomia do pensamento teórico o forçou a eliminar todo o
complexo transcendental de problemas da atitude teórica. Ele acreditava que
se pode apontar para um polo subjetivo do pensamento, dentro do aspecto
lógico, isto é, o cogito (eu penso), que é colocado em contraposição a toda
realidade empírica como seu correlato necessário da consciência, e que esse
polo subjetivo tem de ser considerado o ponto lógico transcendental de
referência para toda a atividade sintetizadora do entendimento (incluindo
tanto as atividades a priori quanto as empíricas). Kant diz que o “eu penso”
deve ser capaz de acompanhar todas minhas representações a fim de que
sejam (em toda sua diversidade teórica) em si minhas representações. É uma
unidade lógica subjetiva final da consciência experienciadora que não mais
inclui, de acordo com Kant, uma multiplicidade de momentos que em si
exigiriam uma síntese. Portanto, é uma unidade inteiramente simples que
jamais pode tornar-se um objeto (Gegenstand) de conhecimento, porque todo
ato cognitivo teórico tem de proceder desse “eu penso”. É um sujeito
pensante transcendental que Kant também chama de “eu lógico
transcendental”, e que tem de ser visto como uma pressuposição
transcendental de toda síntese teórica. Kant distinguia-o nitidamente daquilo
que chama o “ego individual empírico no espaço e tempo”. Como ego lógico
transcendental, é destituído de toda individualidade. Kant também nega que
possamos obter autoconhecimento essencial desse conceito lógico
transcendental do eu pensante. Pois, de acordo com sua visão epistemológica,
o conhecimento humano pode relacionar-se apenas às percepções sensoriais
dadas que são obtidas dentro de formas a priori de intuição do espaço e
tempo e que são ordenadas, por meio de categorias lógicas transcendentais de
pensamento, numa realidade empírica objetiva.
Kant teve sucesso em apresentar um ponto de partida imanente
(intrínseco ao pensamento teórico) que satisfaz as demandas postas por uma
crítica do pensamento genuinamente transcendental? A resposta tem de ser
um enfático “não”. O “eu lógico transcendental” de Kant não pode ser um
centro unificado de consciência acima da diversidade modal do horizonte de
nossa experiência. Ele abrange o problema irresolvido da relação entre o eu
pensante e sua função lógica do pensamento, e, como tal, jamais pode ser
uma unidade “simples” sem multiplicidade. A concepção metafísica da anima
rationalis (a alma racional) como substância simples, uma concepção que
Kant rejeitou em sua Crítica da Razão Pura como especulação vazia, é aqui
simplesmente transposta por ele em uma “unidade lógica transcendental de
apercepção” que está igualmente enraizada numa mistificação.
Não há uma única “unidade simples” a ser encontrada na esfera lógica,
considerada em seu sentido transcendental. O sujeito de pensamento
transcendental de Kant permanece preso ao polo lógico da relação
Gegenstand, que, de acordo com a própria premissa teórica kantiana, tem seu
contra-polo na sensibilidade, à qual necessariamente corresponde. Como
então, na própria epistemologia de Kant, a síntese entre a categoria lógica
transcendental e o material da experiência sensorial no tempo e espaço pode
proceder do polo lógico do pensamento? Se o aspecto lógico do pensamento
e o aspecto da percepção sensorial não podem originar-se um do outro, como
o próprio filósofo enfaticamente afirma, então o ponto de partida para a
síntese também não pode estar no primeiro [o aspecto lógico]. Ao aceitar
como axiomático que a síntese procede do sujeito lógico transcendental do
pensamento e é realizada na faculdade transcendental da imaginação, Kant
deixou a senda crítica da investigação e pôs de lado o problema real do
processo de síntese teórica. Como resultado, o verdadeiro ponto de partida de
sua crítica do conhecimento permaneceu oculto.
Ora, se não se pode encontrar um ponto de partida para a síntese
intermodal no pensamento teórico como tal, segue-se que a direção
concêntrica desse pensamento que é necessário para a autorreflexão crítica
também não pode ser de natureza teórica. Deve estar enraizado no eu
enquanto centro individual da existência humana. Isso significa que não é
possível chegar ao verdadeiro ponto de partida do pensamento teórico sem ter
chegado ao autoconhecimento genuíno. Ao menos não é possível sem que se
haja aprendido a conhecer a natureza real do eu como o centro supramodal da
existência.
À vista disso, o ponto de partida não é mais a chamada unidade
estrutural do ato teórico de pensamento, pois essa unidade estrutural, que
permanece encerrada dentro do horizonte temporal, jamais pode ser mais que
uma unidade na diversidade dos aspectos modais do tempo, isto é, uma
unidade intermodal mas não supratemporal.
Essa unidade intermodal não é mais que uma estrutura temporal que,
como tal, não pode possuir um ponto de referência central para todos seus
aspectos modais. Por isso a classificação do eu como o “centro-de-ato”
permanece sendo uma mistificação enquanto este centro continuar a ser
buscado dentro da própria esfera-de-ato. Se alguém crê que poderia encontrar
o centro de existência numa “temporalidade histórica” numa direção
antecipatória, dissociado de tudo que é um “dado” da experiência, está se
esquecendo de que essa temporalidade somente pode ser uma abstração
teórica do horizonte integral do tempo, que também abarca os dados [da
experiência] e só pode ser identificado com ele [o horizonte integral do
tempo] por meio de uma absolutização. Em parte alguma o tempo universal
como tal oferece um ponto central de referência no sentido de uma unidade
radical da existência humana, um que genuinamente transcende a coerência
modal dos aspectos temporais. Contudo, cada absolutização que descobrimos
na filosofia da imanência implica esse ponto de referência radical com base
no qual se realiza a absolutização.
É uma evidência de falta de autoconhecimento quando as pessoas
supõem que podem assegurar o acesso à unidade radical da existência
humana por meio de uma metafísica teórica autônoma. O conceito metafísico
tradicional de ser, ignorando suas origens especulativas, é um conceito
analógico que permanece encerrado no espectro cósmico da diversidade de
sentido, não podendo ser, enquanto tal, um ponto de concentração para o ato
teórico de pensamento. E o conceito metafísico de substância que está
enraizado nessa noção de ser também não é capaz de dar ao pensamento
teórico uma direção concêntrica, visto que permanece num estado de
dispersão na diversidade das substâncias que se adotou. A noção da
simplicidade substancial da alma racional (animas rationalis) adotada por
Tomás de Aquino continua a ser oprimida por uma contradição interna, já
que o conceito de alma racional é apenas o produto de uma abstração teórica
na qual não há espaço para uma unidade absoluta.
Ora, a concentração do pensamento teórico (ele próprio preso à
diversidade temporal dos aspectos modais) sobre o eu (como a unidade
radical tanto de nosso horizonte de experiência quanto de nossa existência
temporal) é possível apenas numa concentração simultânea sobre a origem
real ou suposta de tudo que é relativo. Enquanto tentarmos apreender
teoricamente o eu em si mesmo como uma “independência” encerrada em si
próprio, ele se dissolverá no nada — na absoluta negação de todas as
definições. Pois o eu como unidade radical de nossa existência não existe em
si mesmo. Ele realmente transcende todo entendimento conceitual. Possui de
fato uma natureza existente, mas não no sentido de uma temporalidade
histórica antecipatória da existência humana que se opõe aos “dados”. Antes,
essa existência tem o sentido bíblico radical de uma imagem criatural
transcendente da origem absoluta, a saber, Deus, uma imagem que
constantemente tem de estender-se para além de si própria, a fim de encontrar
a si e sua Origem.
Em outras palavras, o eu é o centro religioso da existência humana que
de fato transcende a diversidade modal do horizonte temporal, uma vez que,
por natureza, concentra tudo o que é relativo sobre o absoluto. O domínio
religioso inteiramente central da consciência não pode, portanto, ser
confundido com um dos aspectos modais do horizonte temporal, não com o
psíquico-emocional, não com o lógico, não com o moral, nem mesmo com o
aspecto pístico.
Esse último, a da fé, é o aspecto limite temporal desse horizonte, pelo
qual a tendência religiosa de nosso eu se comunica a todas as funções modais
de nossa experiência. Mas no que diz respeito à sua estrutura modal, o
aspecto pístico permanece encerrado na diversidade modal e na coerência
intermodal inquebrável dos aspectos; não pode ser a unidade radical de todas
as funções modais. A própria fé exige o ponto de referência supramodal da
consciência que somente pode ser encontrado no eu. É o eu que crê, assim
como é o eu que pensa logicamente, que sente, vive, etc. O autoconhecimento
jamais se dá na direção divergente da diversidade temporal de nossa
existência, mas, pelo contrário, somente na direção concêntrica, na qual o eu
torna-se consciente da dependência de tudo que é relativo e busca a expressão
da unidade da origem em sua unidade radical criada.
Isso significa que o autoconhecimento depende do conhecimento de
Deus. Ambos tomam forma no controle central do absoluto sobre o centro
religioso de nossa existência, não num suposto conceito autônomo que parte
da atividade do pensamento teórico. Visto que estamos sob o controle do
absoluto, passamos a conhecê-lo como um encontro que é, ao mesmo tempo,
uma descoberta. Esse conhecimento não se dá fora de nossas funções
cognitivas temporais; antes, permeia-as e lhes dá uma direção concêntrica.
No entanto, esse conhecimento também transcende o horizonte temporal de
nossa experiência com sua diversidade modal de aspectos. É central, não
funcional.
A queda no pecado desviou esse autoconhecimento e o conhecimento
de Deus para uma direção apóstata e obscureceu a imagem de Deus no
espelho do eu. Mas a natureza religiosa do centro (ou coração) da existência
humana não foi perdida como consequência disso. Pelo contrário, o impulso
inato do eu de buscar sua origem agora se afirma na absolutização daquilo
que é relativo, isto é, de algo na criação. A humanidade busca por si própria e
sua origem dentro do horizonte do tempo.
O espelho obscurecido da raiz (radix) de nossa existência transforma a
imagem divina em ídolos, falsos deuses, aos quais o eu se entrega num
encontro imaginado no qual acredita encontrar descanso. Mesmo aqueles que
creem, com toda sinceridade, que romperam com toda religião e não têm
necessidade dela continuam sob o controle desses ídolos, aos quais se
devotam com todas suas energias. O eu humano, por natureza, aponta para
além de si mesmo.
Isso implica que o eu, embora seja de fato a unidade radical individual
da consciência, à qual os atos do pensamento teórico estão necessariamente
associados, não pode ainda apresentar em seu interior o ponto de partida do
pensamento teórico mais profundo e tão cobiçado. O “eu” não está encerrado
em si próprio como uma mônada hermética. É apenas um “eu” na relação
comunal central do “nós” e em sua relação ao “Tu” de sua origem divina. No
“nós”, o “eu” também se dirige para fora de si, a fim de encontrar-se, bem
como sua origem, na existência da comunidade enraizada na humanidade.
Essa comunidade radical é de natureza espiritual, no pleno sentido religioso
do termo, e só se torna operante por um espírito de comunidade que, como
força motriz e dinâmica central, dá à existência humana sua direção
derradeira em seu motivo básico religioso. O pensamento filosófico que
opera dentro do horizonte temporal não é exceção. Este, de igual modo,
recebe sua direção central dessa fonte. Se o “eu” é o instrumentista oculto do
pensamento teórico, o motivo central da música, por sua vez, procede do
espírito de comunidade que opera nos centros individuais da existência
humana. É o motivo básico religioso que determina o ponto de partida central
e buscado para a síntese teórica.
Nesse ponto, a crítica transcendental do pensamento tocou na ligação
interna e necessária entre religião e filosofia. Visto que a filosofia (por meio
de sua visão total teórica do horizonte de experiência e da realidade empírica
nela encerrada) dá à ciência, em seu sentido estrito, seus pressupostos
necessários, penetramos também na ligação interna entre religião e ciência.
Partindo da estrutura e natureza internas da própria atitude teórica, essa
crítica que penetra até à raiz do pensamento trouxe à luz o fato de que o
pensamento teórico não é autossuficiente, isto é, que ele é necessariamente
determinado pela dynamis suprateórica e central do motivo básico religioso.
Se, pelo bem do dogma da autonomia, essa investigação crítica deixasse de
levar em consideração esses pressupostos suprateóricos do pensamento
filosófico, ela deixaria de ser crítica e cairia no dogmatismo teórico que
oculta seu verdadeiro ponto de partida. De nada adianta escapar à crítica
transcendental do pensamento apelando à estrutura universalmente válida da
experiência humana e do pensamento teórico. Essa estrutura é a mesma para
todos os seres humanos, mas exige um ponto de referência central na
atividade do pensamento teórico, sem o qual a estrutura não pode ser
atualizada [concretizada] e não pode bastar a si própria.
Enquanto isso, mesmo a crítica transcendental necessariamente se
encontra sob o controle de um motivo básico central particular que dá direção
à sua própria pesquisa teórica. E enquanto a crítica transcendental esteve
limitada à formulação dos problemas transcendentais que se impõe sobre ela
pela estrutura intencional da própria atitude teórica, pode ter parecido que
procedia do mesmo ponto de vista imanente, cujo caráter ilusório ela trouxe à
luz.
Essa situação pode ser observada, por exemplo, na obra de Maurice
Blondel. Ele conscientemente aceitou o ponto de vista da imanência como o
ponto de partida a fim de demonstrar sua não autossuficiência pelo método de
pensar radical e integralmente as implicações das tendências de totalidade
intrínsecas da reflexão filosófica. Contudo, esse método neoescolástico não é
capaz de levar a uma crítica transcendental genuína do pensamento. Alguém
que segue essa via não perceberá os problemas transcendentais reais da
atitude teórica, já que está procedendo dogmaticamente da possibilidade de
uma autonomia teórica do pensamento.
A filosofia da ideia cosmonômica de fato apela a situações
universalmente válidas quando conduz uma investigação na estrutura
intencional da atitude teórica; ao mesmo tempo, deixa claro que essas
situações necessariamente permanecem ocultas em relação à visão teórica
enquanto a atitude teórica do pensamento não se tornar um problema crítico.
Por essa razão, sua proposição do problema transcendental é controlada,
desde o início, por esses pressupostos suprateóricos que não são expostos até
ao estágio final da crítica transcendental.
A filosofia da imanência, por outro lado, continua a ocultar seus
pressupostos necessários atrás do dogma da autonomia do pensamento
teórico. E, contudo, sua formulação dos problemas é também determinada
por um ponto de partida central e suprateórico.
Assim, a questão é: que ponto de partida central torna de fato possível a
crítica transcendental radical do próprio pensamento? Qual ponto de partida
liberta a visão teórica dos pressupostos que bloqueiam o entendimento quanto
ao horizonte integral da experiência humana e seu ponto de referência central
verdadeiro? E qual, ao mesmo tempo, revela e explica esses pressupostos em
seu caráter real, de modo que a comunidade do pensamento filosófico não se
perca na confrontação necessária dos motivos básicos?

O MOTIVO BÁSICO BÍBLICO

O ponto de partida central que satisfaz a essas condições é oferecido


exclusivamente pelo motivo básico radical e integral da Palavra de Deus, o da
criação, queda e redenção por meio de Jesus Cristo na comunhão do Espírito
Santo.[11] Esta é de fato a “chave do conhecimento”, pois, na autorrevelação
autêntica de Deus, revela-se simultaneamente a humanidade a si mesma,
expõe-se a unidade radical e a comunidade radical de sua existência, e
desvela-se o motivo básico da apostasia em relação a Deus como a fonte de
toda absolutização. No entanto, justamente porque revela a solidariedade
integral da raça humana, tanto na criação quanto na queda em pecado, jamais
pode levar, enquanto ponto de partida para o pensamento filosófico, a uma
ruptura da comunidade do pensamento filosófico. Pelo contrário, coloca toda
reflexão filosófica, assim como teológica, igualmente sob sua crítica radical.
Esse tipo de crítica transcendental do pensamento, que está realmente sob o
controle desse ponto de partida bíblico, em última análise exerce a autocrítica
quando exprime a crítica da filosofia da imanência, e só dá continuidade à sua
autocrítica sujeitando também os resultados provisórios e positivos da
filosofia da ideia cosmonômica ao processo crítico.
Tendo revelado a ligação interna e necessária entre o pensamento
teórico filosófico e o domínio religioso central da consciência humana, a
filosofia da ideia cosmonômica continua em sua caminhada trazendo à plena
vista os motivos básicos religiosos que controlaram o pensamento ocidental
em seu desenvolvimento desde a Antiguidade grega.
A divergência desses motivos básicos só é explicável com base na
direção apóstata na qual o impulso inato rumo à concentração da existência
humana começa a manifestar-se, isto é, quando a humanidade desvia-se da
Palavra de Deus — da qual, e somente da qual, pode-se extrair vida espiritual
— e passa a buscar por si própria e sua origem dentro do horizonte temporal,
com sua diversidade intrínseca de sentido.
No horizonte temporal, o sentido religiosamente unificado do mundo
que está concentrado no eu humano é dividido numa rica diversidade de
modalidades e de estruturas de individualidade inseparáveis. Esse horizonte
apresenta várias possibilidades para a absolutização e para a formação de
ídolos. A raiz de toda divergência nos motivos básicos é o próprio espírito
comum de apostasia. Sua força motriz central afasta a humanidade de sua
verdadeira origem e, como resultado, leva a uma nulidade absurda. Nesse
sentido, o motivo básico da apostasia permanece sendo um e o mesmo, a
despeito da diversidade nos modos de sua manifestação.
A raiz desses motivos básicos apóstatas não é eliminada pelo motivo
central da Palavra-revelação divina, mas, antes, é desmascarada, em seu
caráter verdadeiro, por esta última. Por isso o motivo bíblico não é apenas
mais um dentre muitos, mas de fato o único motivo básico integral e radical
que nos leva ao conhecimento genuíno de Deus e do eu e que, igualmente,
nos permite conhecer realmente o ser humano e o mundo concentrado neste
ser humano em seu estado de apostasia.
O motivo bíblico, enquanto tal, não pode levar à divergência no ponto
de partida da filosofia cristã. Quando, no pensamento filosófico cristão, essas
divergências no ponto de partida fazem sua aparição, somente podem ser
explicadas pelo fato de que motivos básicos não bíblicos se imiscuíram no
processo, motivos que os scholars [nota] tentaram adaptar ao bíblico. Nesse
processo, o motivo bíblico teve de ser acomodado de tal forma que perdeu
seu controle radical e integral sobre o pensamento humano. Visto que essas
sínteses religiosas buscaram justificação no estudo acadêmico teológico
ortodoxo, a crítica transcendental do pensamento tem de recordar as pessoas,
reiteradamente, que a chave do conhecimento não se encontra no estudo
acadêmico teológico.
Os motivos básicos não bíblicos da filosofia ocidental revelam seu
verdadeiro caráter também em sua síntese teológica com o motivo bíblico da
criação, através de sua estrutura dialética interna. De fato, eles consistem em
dois motivos centrais que estão atados a um conflito religioso irreconciliável
e que constantemente leva o pensamento filosófico que passou a estar sob a
influência de ambos a direções opostas de um polo a outro. Essa dialética
religiosa está enraizada na absolutização do relativo, que somente tem sentido
dentro do tempo na coerência inquebrável de sentido com seus próprios
correlativos. A absolutização rompe essa coerência na ilusão de um ídolo,
sem, no entanto, ser capaz de realmente anulá-lo. Daí toda absolutização de
um relatum evoca os relata correspondentes. Esses correlata emergem, pois,
na consciência religiosa como contra-forças independentes opostas à
dinâmica do primeiro motivo absolutizado.
Uma vez que esse conflito se dá no ponto de partida central do
pensamento filosófico, jamais pode ser resolvido por uma simples síntese
teórica. Toda síntese teórica exige um ponto de referência central que
transcende a antítese teórica. Mas um conflito ao nível do motivo básico
necessariamente assume um caráter absoluto, pois não há ponto de partida
anterior do qual a síntese genuína possa originar-se. Por essa razão,
não se pode realizar uma síntese religiosa; permanece sendo uma ilusão.
Apenas o motivo básico bíblico mostra o caminho para erguer-se acima da
antítese religiosa. Não é o caminho de uma síntese com o motivo da queda
em pecado, mas sim o da redenção real do poder do pecado por meio de Jesus
Cristo que cria a comunhão do Espírito Santo.
Desde a Antiguidade grega, contudo, ainda se vê essas tentativas que
foram feitas na filosofia ocidental para resolver a antítese radical no motivo
básico por meio de um método dialético de pensamento e para, com isso,
estabelecer uma síntese metafísica teórica. Essas tentativas não são críticas. O
pensamento filosófico do momento, estando sob o controle de um motivo
básico dialético, passa a empreender uma autorreflexão crítica, e a síntese
metafísica dissolve-se na antítese derradeira de seu ponto de partida. Como
escreveu Proudhon: “A antinomia não encontra uma resolução para si”.
A dialética religiosa do motivo básico tende a dirigir o pensamento
filosófico, quando este se torna autocrítico, em direção a uma descrição
dualista da pessoa humana e do mundo. No processo, a coerência integral do
sentido do horizonte temporal de nossa experiência é rompida numa
dicotomia. É também assim que surgem as oposições metafísicas entre
númeno e fenômeno, almas racionais imortais e corpos materiais, o “ser” e o
“deve ser”, etc. Periodicamente, essas oposições são novamente frustradas
pelas tendências conceituais monísticas não críticas.
Visto que uma resolução genuína do conflito no motivo básico dialético
não é possível, resta apenas um único modo crítico de escape: atribuir
primazia a um dos motivos antitéticos, um processo que é inevitavelmente
acompanhado pela desvalorização do outro. A contínua alternância de
primazia, as tentativas de síntese e a dissolução crítica dessas sínteses até um
retorno à antítese radical original são fenômenos típicos que acompanham a
influência da dialética religiosa no domínio do pensamento filosófico.

MOTIVOS BÁSICOS DIALÉTICOS OCIDENTAIS[12]

A filosofia da ideia cosmonômica, por meio de sua crítica


transcendental da filosofia da imanência, tem feito uma investigação
extensiva do processo que cativou o pensamento filosófico ocidental, ao estar
sob a influência desses motivos básicos dialéticos. Esses motivos básicos são:
(1) o motivo forma-matéria da filosofia grega que permeia todo o pensamento
grego em suas raízes e governa mesmo sua concepção da matemática; (2) o
motivo básico escolástico da natureza e da graça sobrenatural que, por meio
de sua tentativa de unir o motivo bíblico da criação com o do motivo grego
da forma-matéria (e, nos tempos modernos, com o do motivo básico
humanista), envolve o pensamento cristão num processo dialético e lança os
fundamentos para a secularização moderna da filosofia; e (3) o motivo básico
humanista da natureza e liberdade, que completa essa secularização e que
conduziu, na fase dialética mais recente da filosofia da imanência, à crise
fundamental de um estado de pensamento espiritualmente desarraigado.

O MOTIVO FORMA-MATÉRIA

O primeiro motivo básico, que antes de Aristóteles não tinha uma


denominação fixa, originou-se no conflito entre a religião cultural mais
recente dos deuses olímpicos e as religiões da natureza da Antiguidade grega.
Por menos que saibamos sobre as diferentes formas cultuais destas últimas,
sabemos, contudo, que o tema da vida e morte era central. E foi
especificamente no culto dionisíaco, importado da Trácia, que esse tema
encontrou plena expressão. Nesse culto, a divindade não era representada
numa forma ou figura fixas. Era, antes, a corrente vital que fluía eternamente
do útero da mãe terra; essa corrente vital era venerada como um princípio
divino de origem informe mas material. Desse princípio divino antigo
procedeu gerações de seres mortais que buscavam tomar corpo numa forma
fixa e eram, em razão disso, sujeitos à ira de Anangke, o terrível e inevitável
destino de morte. A forma não é divina nem permanente. No culto extático de
Dionísio, isso era simbolizado pela dilaceração de um animal cuja carne era
comida crua. Ao aproximar-se do deus Dionísio, o êxtase levava a uma
ruptura intrínseca para com as limitações da forma corporal, até ao ponto da
imersão no fluxo da vida divina. O motivo básico religioso desse culto da
vitalidade — o da divindade da corrente vital e o da Anangke como a
vingadora de qualquer tentativa de vincular a corrente vital a uma forma
física — exerceu uma influência permanente e central sobre o pensamento e
arte gregos. Esse motivo grego original da matéria tinha como sua contraparte
dialética o motivo da forma implícito na religião cultural mais recente das
divindades olímpicas. Esta última era a religião da forma, medida e harmonia.
Os deuses olímpicos deixaram a mãe terra com seu ciclo infindável de
princípio e fim, de vida e morte. Eles eram imortais. Como forças deificadas
da cultura, assumiram forma pessoal que invisivelmente compartilhava da
qualidade de imperecibilidade. Mas essas divindades supra-mundanas não
tinham poder sobre a Anangke, que regia sobre o ciclo terreno da vida e
morte. Por isso os gregos apegavam-se aos cultos antigos da natureza em suas
vidas privadas, ao passo que a religião olímpica se tornou simplesmente a
religião oficial da polis grega.
O culto órfico foi um movimento de reforma religiosa que buscava uma
síntese religiosa entre o culto dionisíaco da corrente vital e a religião cultural
olímpica (o motivo da forma desta última foi desviado, no entanto, para o
motivo uraniano da medida e harmonia divinas dos céus estrelados). É nesse
culto que o motivo forma-matéria encontra sua primeira expressão
antropológica numa visão dualista da pessoa. A alma racional imortal, que se
originou nos céus astrais, caiu na terra tenebrosa; aqui, a alma foi encerrada
na prisão de um corpo material e assim presa ao ciclo de origem, falecimento
e reencarnação. O ciclo continuava até que, por um modo de vida ascético, a
alma purificava-se da contaminação do corpo terreno e poderia retornar então
ao seu lar celestial. O motivo forma-matéria, nascido do conflito entre as
religiões antagonistas, não estava, como motivo básico religioso dialético,
vinculado às formas mitológicas e rituais da fé popular. A filosofia grega
declarou sua autonomia em relação a essa fé. Mas o motivo básico religioso
da forma e matéria continuou a ser seu ponto de partida comum e determinou
pois todo o curso de seu desenvolvimento dialético. Controlou sua visão de
natureza (physis), sua doutrina metafísica do ser, sua antropologia, sua ética e
teologia filosófica, bem como sua visão do Estado e da sociedade humana.
Com a filosofia jônica da natureza e com a filosofia heraclitiana da
vida, seu processo dialético deixou de conceder primazia ao motivo da
matéria, para dar primazia ao motivo da forma na religião cultural. Nesse
processo, o princípio material foi reduzido ao status do princípio de
imperfeição, e o nous divino como forma pura passou a ser visto como
separado de toda matéria.
Partindo da concepção monista (acriticamente defendida) da origem
(arché) da natureza (physis), o pensamento grego é então conduzido, por
meio da rígida teoria do ser de Parmênides, para a aceitação de dois
princípios mutuamente irredutíveis de origem. Tentativas de síntese por meio
de uma lógica dialética levou pois a uma doutrina do ser metafísica e
analógica, que recebeu seu primeiro fundamento nos diálogos eleáticos de
Platão e foram elaborados, a seu modo, por Aristóteles em sua metafísica. A
matéria, como ser em potencialidade, está relacionada à forma do ser como a
meta para cuja atualização o processo natural do vir a ser se dirige (genesis
eis ousian no Filebo de Platão, a forma essencial como enteléquia do
processo natural do vir a ser em Aristóteles).
Mas o conceito analógico de ser, com o qual se pretendia
dialeticamente unir os princípios da matéria e forma, carecia de um ponto de
partida central para essa síntese, e, portanto, quando sob a autorreflexão
crítica, teve de dissolver-se novamente na antítese absoluta do motivo básico
religioso. Em Timeu de Platão, essa antítese final mais uma vez é claramente
expressa na oposição polar entre a atividade modeladora do Demiurgo divino
e a causa irregular de uma Anangke voluntariosa; na Metafísica de
Aristóteles, expressa-se na oposição polar entre a matéria pura e a pura forma
divina atualizada.

O MOTIVO NATUREZA-GRAÇA

O motive básico escolástico da natureza e da graça sobrenatural


origina-se da tentativa de acomodação entre o motivo grego da forma-matéria
e o motivo básico bíblico radical. Na teologia escolástica do tomismo, ele se
apodera do pensamento cristão; permeia a doutrina, teologia, filosofia e
sociologia da Igreja Católica Romana.
Também o pensamento protestante reformado continua, de modo geral,
a abrir-se à influência religiosa do motivo básico escolástico — como
resultado, perde logo seu impulso reformador.
O motivo grego forma-matéria exclui fundamentalmente o motivo
bíblico da criação. A acomodação escolástica da visão aristotélica da natureza
à doutrina da criação sustentada pela Igreja [Católica Romana] levou a uma
distinção entre uma esfera natural e uma sobrenatural, sendo a primeira
considerada uma subestrutura relativamente autônoma da segunda. A
doutrina da Igreja afirmou que, durante a criação, um dom sobrenatural da
graça foi concedido à natureza humana, tida como composta de uma alma
imortal, racional (como sua forma substancial) e de um corpo material
perecível. Esse dom sobrenatural foi perdido quando da queda, uma perda
que não corrompeu a natureza enquanto tal.
Nesse sistema, não havia mais espaço para a unidade religiosa radical
da existência humana. Por conseguinte, o motivo da criação, agora
acomodado à visão aristotélica da natureza, perdeu seu controle radical sobre
o pensamento filosófico e teológico. Nem havia espaço, ao menos na
escolástica católica romana oficialmente aprovada, para a natureza radical da
queda e redenção de uma pessoa. Nesse ínterim, a escolástica protestante, que
também aceitava a visão escolástica aristotélica da natureza humana, entrou
em conflito com essa visão ao preservar o ponto de vista bíblico em relação à
natureza humana.
Na escolástica tomista, a metafísica aristotélica resultante de uma
acomodação tornou-se, com sua doutrina analógica do ser e sua culminação
numa teologia natural, o estágio antecipatório relativamente autônomo da
doutrina eclesiástica da graça sobrenatural. A ideia de que a natureza tem sua
causa primária em Deus como o Motor imóvel, juntamente com as provas
aristotélicas para a existência de Deus, foram proclamadas como sendo uma
verdade natural a ser apreendida pela luz natural da razão. Esse Motor imóvel
foi identificado com o Criador divino, embora o motivo forma-matéria
aristotélico fosse intrinsecamente inconsistente com a noção da “Causa
primeira” como “Causa criadora”.
A concepção sintética de Tomás de Aquino adotou (e partiu de) uma
harmonia natural entre a luz natural da razão e as verdades sobrenaturais da
igreja. A conexão interna entre ambos foi localizada no desejo natural da
razão para sua perfeição sobrenatural. A autonomia atribuída à razão natural
foi entendida num sentido sintético escolástico, a saber, que a razão, uma vez
que só pode penetrar as verdades da natureza, jamais pode entrar em conflito
com a verdade da revelação; e que a filosofia tem uma função serviçal em
relação à teologia da revelação. Implícita a essa concepção, naturalmente,
está a acomodação escolástica da filosofia aristotélica ao dogma da igreja.
Mas a dialética interior do motivo natureza-graça levou, no século XIV,
à dissolução da síntese tomista numa antítese polar. O vigoroso movimento
nominalista da escolástica tardia, conduzido por Guilherme de Ockham,
negou toda ligação entre os conhecimentos natural e o sobrenatural; a
natureza e a graça tomaram caminhos diferentes. Ao intelecto natural negou-
se toda capacidade de conhecer elementos metafísicos, e rejeitou-se a
teologia natural juntamente com a metafísica. O critério realista da verdade
deu lugar a um nominalista.
Ockham ainda atribuía a primazia à esfera da graça. Para ele, isso
implicava um menosprezo à razão natural, que portanto não tinha qualquer
valor enquanto estágio preparatório para o conhecimento sobrenatural. Mas
em fins da Idade Média vieram à tona os sintomas de uma realocação da
primazia na esfera da natureza. A primeira indicação dessa mudança ocorreu
na secularização da teoria referente à igreja na escolástica nominalista, um
desenvolvimento que já podia ser observado na obra de Marsílio de Pádua.
Desse modo, o movimento nominalista se tornou o precursor do humanismo.

O MOTIVO NATUREZA-LIBERDADE
O motivo básico humanista da natureza e liberdade implica uma ruptura
completa com o motivo escolástico cristão da graça sobrenatural. Origina-se
de uma reversão copernicana da imagem bíblica de pessoa, de um
deslocamento radical que nos leva diretamente a uma religião da
personalidade humana, na qual todo o motivo básico bíblico é humanizado. O
movimento da Renascença italiana foi de fato vitalizado e dirigido pelo
motivo religioso de um renascimento, no qual um indivíduo renasce para ser
uma personalidade inteiramente autônoma e livre que remodela sua ideia
sobre Deus e natureza segundo a sua [do indivíduo] própria imagem. Esse
ideal humanista de personalidade difunde-se a partir da Itália para outros
países da Europa. O novo motivo da liberdade, no qual o motivo bíblico da
redenção e renascimento humano é secularizado, também incorporou, de
início, o motivo da criação num sentido humanizado.
O Criador divino torna-se então o reflexo deificado do impulso criativo
que o novo motivo da liberdade traz à tona em um ser humano. Quando, pois,
Leibniz chama o Criador divino de “o grande Geômetra”, essa ideia de Deus
é simplesmente o reflexo deificado do intelecto humano que criou o cálculo
infinitesimal. Isso demanda um ídolo do intelecto criativo que pode carregar a
análise matemática do cosmos diretamente à esfera contingente dos
fenômenos.
O motivo humanista da liberdade evoca a nova imagem da natureza
macrocósmica, que se torna um segundo “ídolo” e obtém maestria sobre o
indivíduo moderno. A “descoberta da natureza” no período renascentista
sinaliza uma nova atitude para com o cosmos que circunda — dentro do
horizonte temporal — o indivíduo. Os indivíduos modernos se emanciparam
de toda fé na autoridade e desejam, em total autonomia, tomar seu destino em
suas próprias mãos. Buscam na natureza um campo infindável para seu
próprio impulso de expansão e contemplam-na com o otimismo ilimitado
dessa nova visão para o futuro. A natureza, como o reflexo macrocósmico do
novo ideal da personalidade religiosa, é deificada. “Deus sive Natura” torna-
se um motivo religioso que é simplesmente o correlato do motivo humanista
da liberdade, e portanto fundamentalmente diferente da deificação da physis
(natureza). Esta é vista na filosofia natural jônica sob o primado do motivo da
matéria.
Nesse ínterim, tanto no motivo da liberdade quanto no seu correlato (o
novo motivo da natureza) reside uma multiplicidade básica de sentidos, uma
que abriga muitas tendências diferentes. Nascido de uma secularização do
motivo básico bíblico, o ideal humanista da liberdade carece do caráter
profundo peculiar à liberdade cristã, que toca a unidade radical da existência
humana. Embora a humanidade autônoma moderna tenha estado em contato
com a Palavra de Deus que descerra a raiz de sua existência, ela mais uma
vez busca a si própria dentro do horizonte temporal e concentra seus
impulsos religiosos sobre a diversidade temporal do sentido de sua existência.
A humanidade autônoma pode buscar seu centro religioso em sua função
moral, estética ou emotiva, mas pode também buscá-la no pensamento
científico autônomo. A mesma multiplicidade de sentidos está presente no
motivo humanista da natureza.
A Natureza, em sua imensidade, que desde a revolução copernicana na
imagem astronômica do mundo parecia intimamente ligada à revolução
religiosa da imagem do ser humano, pôde ser contemplada como um reflexo
macrocósmico da liberdade estética criativa de uma pessoa. Nesse caso, a
“Natureza” é vista como o criador de formas sempre novas de beleza e de
centros de individualidade livre. Nessa conjuntura, o indivíduo moderno
ainda não estava consciente de qualquer tensão dialética no motivo básico da
natureza e liberdade. É ainda o traço estético predominante na glorificação
renascentista da natureza que reaparece na filosofia da natureza de Giordano
Bruno. Mas a natureza também pode ser vista com base no motivo fáustico
da maestria que permeou o ideal humanista de personalidade desde o
princípio. Nesse caso, a ciência autônoma contempla a natureza apenas como
um objeto gigante de dominação, e a natureza se torna o motivo do poder do
indivíduo autônomo moderno.
E é esse motivo do poder que, pouco tempo depois, obteve a
predominância. Galileu e Newton lançaram os fundamentos para a física
matemática, que de fato mostrou o caminho para o domínio científico dos
fenômenos naturais em seus aspectos matemáticos e físicos. Tão logo eles o
fizeram, a nova filosofia, dirigida pelo motivo básico humanista, lançou-se
com dedicação religiosa sobre o novo método científico e o elevou a um
modelo universal para o pensamento, como a fundação de toda a visão
filosófica da realidade.
O ideal da ciência humanista clássica exigia uma imagem determinista
do mundo que, como um sistema fechado de causalidades, correspondia
completamente a seu motivo da dominação. A ruptura metodológica de todas
as estruturas dadas da realidade serviu a esse propósito. Hobbes, no prefácio
de seu De Corpore, exigiu essa destruição metódica em nome da tarefa
criativa do pensamento lógico matemático.
Mas agora a tensão dialética inerente ao motivo básico humanista
também se torna manifesta. No quadro determinista da natureza — ele
próprio evocado pelo motivo humanista da liberdade —, não há mais espaço
para um indivíduo livre, autônomo. A natureza e a liberdade tornam-se
adversárias. A partir desse ponto, o pensamento humanista é capturado num
processo dialético incansável.
A destronização do ideal da ciência matemática e a mudança
rousseauniana da primazia ao motivo da liberdade dá-se no mesmo período
iluminista em que a crítica psicologista de Hume ao conhecimento solapou os
fundamentos da matemática e física modernas, bem como a nova metafísica
neles baseada. Na crítica do conhecimento kantiana, o pensamento humanista
entra na fase da autorreflexão crítica.
A natureza e liberdade são agora nitidamente separadas, com o auxílio
do antigo contraste metafísico entre fenômeno e númeno.[13] Atribui-se a
primazia ao motivo da liberdade que opera na razão prática. A natureza é
degradada ao nível de um mundo de fenômeno dos sentidos que são então
constituídos pela consciência transcendental. Kant chegou mesmo a recusar-
se a atribuir origem divina a ela [à natureza]. Sua ideia de Deus torna-se
moralista. Deus é um “postulado da razão prática” e o verdadeiro cerne da
personalidade livre é buscada na “pura vontade” moral.
O ideal de ciência não pode mais ameaçar a liberdade autônoma da
vontade, já que, com o auxílio do esquema forma-matéria (transformado num
sentido humanista), esse ideal é então restringido ao domínio da natureza
sensível; liberdade, pertencente ao reino suprassensível do “deve ser”, torna-
se uma matéria de fé prática na razão. Assim, a separação que Kant faz entre
fé e ciência prova ser governada pela dialética religiosa do motivo básico
humanista.
O período da Restauração inaugura a conversão dialética do conceito de
liberdade ainda racionalista e individualista de Kant num conceito
irracionalista e universalista. Volta-se da absolutização racionalista da lei, a
regra geral, para a absolutização da individualidade subjetiva e o evento
“singular” e irrepetível na história.
Surge assim o modo histórico de raciocínio. Nascido da conversão
irracionalista e universalista do motivo da liberdade, é elevado ao status de
um novo modelo universal para o pensamento, que leva a uma visão histórica
da realidade. Simultaneamente, iniciou-se uma tentativa de renunciar à
separação crítica de Kant entre natureza e liberdade, por meio de uma lógica
dialética e a pensar ambas como dialeticamente unificadas numa síntese
superior (Fichte, Schelling e Hegel). Voltando-se contra esse idealismo pós-
kantiano da liberdade, o positivismo (Comte, cum suis) atribuiu primazia
novamente ao motivo da dominação sobre a natureza, e enxergou a liberdade
da natureza humana autônoma como uma consequência natural do progresso
científico. O modo histórico de raciocínio passa pois a ser racionalizado e
visto como o plano superior do modo de raciocínio científico natural. O
darwinismo naturaliza o modo histórico de raciocínio num modo
evolucionista. O marxismo transforma o idealismo dialético de Hegel num
materialismo dialético histórico. O historicismo, nascido da conversão
irracionalista do motivo da liberdade, distancia-se, portanto, do idealismo
pós-kantiano que o havia restringido.
Torna-se um ideal da nova ciência que se desenvolve numa tensão
dialética com o ideal humanista de personalidade e mostra-se um adversário
bem mais perigoso do motivo da liberdade que o modelo científico de
pensamento do determinismo clássico. Leva a um relativismo universal que,
embora ainda descrito por Wilhelm Dilthey como um último passo para a
liberação do ser humano autônomo em relação a preconcepções dogmáticas,
começa a afetar, no entanto, os fundamentos religiosos do próprio
pensamento humanista.
Nietzsche já havia visto o niilismo no horizonte como o abismo no qual
o pensamento ocidental, sob a influência do historicismo, perigava cair. O
niilismo emergente é também promovido pela tecnocracia moderna e por seu
concomitante tratamento da pessoa como parte das massas. Isso escraviza a
personalidade livre ao motivo da dominação, que se desloca pois do
mandamento religioso e central do amor e de sua relação para com a raiz da
existência humana. Durante esse processo de desarraigamento espiritual do
pensamento moderno, sobrepujado pelo historicismo, surge o existencialismo
como um protesto contra o declínio interno da personalidade humana
autônoma. Søren Kierkegaard, seu fundador, estava completamente preso na
tensão dialética entre sua fé cristã e a posição isolada do indivíduo autônomo
suspenso no tempo. O indivíduo rebela-se contra a dialética de Hegel, porque
esta faz dele uma marionete do desvelamento dialético da Ideia.
Mas com Karl Jaspers, Martin Heidegger (em sua famosa obra Sein und
Zeit, Ser e Tempo) e Jean-Paul Sartre, o existencialismo é totalmente
humanizado e torna-se um escape final do processo de despersonalização
moderna da personalidade ocidental, que é reduzida ao “ser humano geral” e
impessoal (os “homens”). Torna-se uma tentativa, por meio da autorreflexão
filosófica, de restaurar ao motivo da liberdade humanista um conteúdo que
esteve em perigo de perder-se sob a influência do historicismo radical. O
motivo da liberdade existencialista, em oposição dialética ao “dado” como o
produto objetivo de uma dominação humanista completamente despida de
valores na ciência e tecnologia, dirige-se agora à existência do ego, mas em
sua “temporalização” histórica individual.
Contudo, com Heidegger e Sartre, essa liberdade existencial não tem
outra perspectiva senão a morte e o “nada”. É uma transcendência do “ser”
em direção ao “nada”. E na “fé filosófica” de Jaspers, o pensamento
existencial admite seu fracasso em apreender o transcendente que, no tempo,
continuamente se oculta em cifras (“Chiffren”).
O curto espaço nos impossibilita uma discussão mais extensa da
importância central desses motivos ao pensamento ocidental além do diorama
extremamente limitado apresentado acima. Contudo, é possível advertir com
frequência contra a confusão — que é autoevidente a partir da perspectiva da
imanência — entre esses motivos básicos centrais e os chamados temas
filosóficos que naturalmente poder ser encontrados em grande diversidade
dentro de um mesmo sistema filosófico e que não são redutíveis a um simples
tema filosófico. A coerência da rica diversidade dos temas filosóficos
somente se torna transparente levando-se em consideração o motivo básico
central. A posição cristã escolástica amiúde levanta vigorosas objeções à
crítica transcendental do pensamento, porque esta procede de um motivo
básico central na revelação da Palavra. As pessoas veem [na crítica
transcendental] uma seleção arbitrária da grande diversidade de “verdades de
fé” reveladas nas Sagradas Escrituras, e continuam a apegar-se à ideia de que
a filosofia pode apenas extrair seus “princípios cristãos” da Bíblia por
intermédio da teologia.
Uma teologia escolástica sente-se justamente ameaçada por uma crítica
transcendental que expõe seu motivo básico dialético, mas não pode ignorar a
incontornável questão concernente à “chave do conhecimento” que a exegese
teológica não pode oferecer. O motivo básico escolástico da natureza e do
sobrenatural afasta o pensamento teológico do controle radical e integral da
Palavra de Deus, excluindo com isso o foco na raiz da existência humana.
Isso também explica por que as pessoas são capazes de ver o motivo central
da criação, queda e redenção apenas como uma seleção arbitrária de
“verdades de fé” bíblicas.
O motivo da natureza e graça é, ex origine, um motivo de síntese.
Introduziu uma dualidade dialética dentro do pensamento cristão ao prover
alternadamente um ponto religioso de entrada para os motivos básicos grego
e humanista moderno. Entretanto, as pessoas acreditavam que poderiam ainda
manter-se em seu ponto de vista cristão.[14]

AS TRÊS IDEIAS TRANSCENDENTAIS


Por fim, devemos considerar brevemente como os motivos básicos
religiosos permeiam intrinsecamente o pensamento filosófico e determinam
sua formulação de problemas. Isso se dá por meio de três ideias teóricas
transcendentais que se encontram na base de todo pensamento filosófico e
que torna possível a típica visão filosófica da totalidade. Essas ideias estão
diretamente relacionadas a três problemas transcendentais fundamentais que,
como vimos, inevitavelmente surgem da estrutura antitética intencional da
atitude teórica.
Em primeiro lugar, toda filosofia pressupõe uma ideia da coerência
mútua e da interrelação das modalidades de nosso horizonte de experiência,
que são dispostas em oposição entre si na “relação Gegenstand”. Essa ideia
também determina o denominador comum básico sob o qual essas
modalidades são elencadas a fim de distingui-las teoricamente uma das
outras. Nem mesmo a filosofia existencialista pode escapar dessa ideia
transcendental, conforme evidencia o fato de que Heidegger, em seu Sein und
Zeit, expressamente propõe o problema do denominador comum quando tenta
distinguir ontologicamente o “dado” do “ser” histórico. Essa distinção apenas
é possível na relação transcendental “Gegenstand”. Ele apresenta o problema
do denominador comum antes de explicar a grande diversidade modal do
horizonte temporal da experiência humana. Isso se deve exclusivamente ao
motivo básico dialético de seu pensamento. Esse motivo básico exige, acima
de tudo, a oposição polar entre a necessidade do “dado”[15] e a liberdade ex-
sistente do “ser” humano [Dasein]. No entanto, essa onto-logia dispõe essa
antítese na base da função lógica teórica do pensamento. Mesmo Heidegger,
em sua fenomenologia existencialista, está ciente de que o ôntico não é
idêntico ao onto-lógico.
A questão de como se vê a interrelação e coerência dos aspectos modais
de nosso horizonte experiencial é, de fato, dependente do ponto de partida
desde o qual a síntese teórica em seu caráter intermodal é conduzida. O
pensamento teórico se concentra sobre esse ponto de partida por uma segunda
ideia transcendental na qual a unidade radical mais profunda (ou, no caso de
um motivo básico dualista, as duas raízes supostamente antagonistas) das
modalidades separadas é (ou são) apreendida(s).
E essa segunda ideia transcendental é em si mais uma vez dependente
de uma terceira, na qual o pensamento teórico liga a diversidade teórica e a
ideia transcendental de sua coerência a uma Origem suprema (no caso de um
motivo básico dialético: a dois princípios antagonistas de origem).
Assim, toda filosofia concebível se funda nessas três ideias
transcendentais que, em sua indissolúvel coerência, formam uma tri-unidade
essencial. Na filosofia da ideia cosmonômica, essa tri-unidade é chamada de
ideia básica transcendental ou ideia cosmonômica, como a expressão teórica
da lei religiosa de concentração da existência humana.
Uma filosofia da ideia cosmonômica é possível apenas na direção
concêntrica da crítica transcendental do pensamento na qual os pressupostos
necessários da atitude teórica filosófica devem ser explicitamente
considerados.
A filosofia dogmática da imanência usa sua ideia cosmonômica
implicitamente sem estar consciente de seu significado transcendental. A
própria ideia cosmonômica é uma condição universalmente válida do
pensamento filosófico, mas o conteúdo dado a ela depende do motivo básico
religioso que governa seu pensamento.
Por fim, qual é o benefício dessa crítica transcendental do pensamento,
apenas brevemente apresentada aqui, para o intercâmbio de ideias entre as
diferentes escolas de filosofia? A resposta é que ela possibilita o contato
genuíno do pensamento entre elas, que — por mais paradoxal que pareça — é
cortado pela raiz pelo ponto de vista dogmático da autonomia do pensamento
filosófico.
Tendências de pensamento polarmente opostas, que pertencem
igualmente ao mesmo motivo básico central, podem encontrar um melhor
entendimento mútuo tão logo estejam conscientes de que seus pontos de vista
opostos estão enraizados no mesmo motivo básico central. Por outro lado,
escolas de pensamento que procedem de um motivo básico diferente podem,
de semelhante modo, começar a entender que cada ponto de vista filosófico
deve, em primeiro lugar, ser julgado com base em seu próprio ponto de
partida, e que o diálogo filosófico frutífero somente pode iniciar-se quando os
problemas transcendentais do pensamento filosófico enquanto tais forem
analisados criticamente.
Nessa base, o diálogo entre a filosofia da ideia cosmonômica e a
filosofia neotomista foi conduzido por um período razoável, uma atitude que
levou a um aprofundamento crescente do entendimento. Mas toda escola de
pensamento, sem distinção, é um parceiro bem-vindo a essa discussão crítica,
que substitui a reação defensiva pela autorreflexão crítica mútua, e substitui a
húbris do exclusivismo pela modéstia filosófica nascida da percepção da
relatividade de todas as visões filosóficas totalizantes. Apenas aquele que
perde de vista o ponto de referência central e a Origem dessa relatividade
pode chegar à ilusão de que a crítica transcendental do pensamento
necessariamente leva ao relativismo filosófico. O ponto de vista da filosofia
da ideia cosmonômica no tocante à relatividade da filosofia é sumarizado, em
oposição a todo relativismo, na seguinte declaração:

“Sentido é o ser de tudo que foi criado;


está religiosamente enraizado e é de Origem divin
2. O SENTIDO DA HISTÓRIA[16]
De princípio, é necessário traçar uma distinção fundamental entre o
aspecto histórico da realidade temporal e a história no sentido de eventos
concretos que operam na realidade. O aspecto histórico constitui o “como”,
isto é, o caráter modal da história. Eventos históricos concretos indicam o
“que” da história.
Na experiência ingênua, pré-teórica, apreendemos explicitamente a
história nas estruturas reais de pessoas, coisas e eventos enquanto totalidades
típicas, e, em contrapartida, apenas implicitamente da perspectiva do aspecto
histórico.
Essas estruturas concretas se estendem por todos os aspectos modais da
realidade em princípio e os agrupam numa totalidade típica. Isso explica por
que, em nossa experiência ingênua, identificamos a história com o que
aconteceu. Contudo, não passamos então a uma interpretação historicista da
realidade, visto que implicitamente permanecemos conscientes das fronteiras
internas do aspecto histórico em sua relação com os demais aspectos da
realidade. E jamais reduzimos o todo da realidade à história. Nem buscamos
reduzi-lo a um complexo de impressões sensoriais no modo como são
ordenadas pelas categorias cognitivas sintéticas que empregamos nas ciências
naturais.
Por outro lado, na atitude teórica ou científica do pensamento, o
aspecto da história não pode permanecer implícito, pois agora estamos
primariamente interessados na delimitação teórica do campo de pesquisa da
ciência histórica.
A definição ingênua de “história” como “aquilo que aconteceu” não
oferece um critério para a história enquanto uma ciência específica. A ciência
da história tem um campo limitado de visão. Não investiga toda a realidade
empírica daquilo que aconteceu, mas somente um de seus aspectos modais.
Até o presente, as várias tentativas filosóficas de encontrar um critério
para a delimitação teórica do campo histórico de visão não levaram a um
resultado satisfatório. Essas tentativas incluem: o critério ontológico de “vir a
ser” ou “desenvolvimento”, o critério metodológico de “individualisierende
Wertbeziehung” (literalmente: “relação de valor individualizante”); o critério
genético em contraposição ao ponto de vista sistemático; ou o critério
idealista de realização de valores.
Nenhum deles identifica com sucesso o sentido do modo histórico
como um aspecto da realidade. O sentido da história é primariamente
determinado pela estrutura modal do aspecto histórico da realidade. Essa
estrutura é um quadro de referência modal constante e fundacional. É uma
pré-condição da história concreta no sentido ontológico.
Portanto, antes de prosseguirmos, é preciso proceder com uma rigorosa
análise teórica da estrutura modal desse aspecto.

A ESTRUTURA MODAL DO ASPECTO HISTÓRICO

Na teoria das esferas-de-lei, a filosofia da ideia cosmonômica tem


demonstrado que a estrutura de todo aspecto da realidade contém um cerne
original de sentido — o núcleo de sentido modal. Não se pode reduzi-lo além
disso, em nossa teoria. Chamamo-lo de núcleo de sentido modal original. Ele
qualifica todo o aspecto e garante sua irredutibilidade em relação a outros
aspectos da realidade (a soberania da esfera modal dos aspectos).
Ao mesmo tempo, entretanto, a filosofia da ideia cosmonômica
demonstrou que os aspectos modais foram ordenados numa ordem temporal
caracterizada por uma coerência de sentido. Essa coerência mútua de sentido
não pode ser rompida e se expressa na estrutura de cada um dos aspectos
modais — e cada um destes, por sua vez, é qualificado por seu próprio núcleo
de sentido particular. A ordem temporal e a coerência do sentido em
discussão tornam-se evidentes num entrelaçamento dessas estruturas modais:
o núcleo de sentido original em cada estrutura modal está necessariamente
ligado a outros elementos modais (não originais) de sentido. Esses elementos
não originais apontam para os núcleos de aspectos anteriores e são chamados
analogias modais. Cada núcleo de sentido também se relaciona a elementos
modais (não originais) de sentido que apontam para os núcleos de aspectos
posteriores. Na filosofia da ideia cosmonômica, chamamo-los de
antecipações.[17] As únicas exceções ocorrem no caso dos aspectos
fronteiriços da realidade: os do número e os da fé. A estrutura destes aspectos
foge ao que foi delineado acima. O primeiro, o aspecto do número, não pode
possuir analogias modais, ao passo que o último, o aspecto da fé, não pode
possuir antecipações modais.
Dessa forma, todo aspecto modal reflete toda a ordem temporal e a
coerência de sentido de todos os demais aspectos (a universalidade de esfera
modal). Isso explica a aparente plausibilidade e força persuasiva de todos os
“ismos” na filosofia, incluindo o “ismo” do historicismo, que é tão dominante
no pensamento moderno.

O NÚCLEO DE SENTIDO DA HISTÓRIA

Quando analisamos o sentido modal da história, estamos primariamente


interessados em encontrar o núcleo de sentido modal da história. A fim de
fazê-lo, as estruturas modais dos outros aspectos devem ser levadas em conta
por um método analítico de confrontação. O núcleo de sentido do aspecto
histórico também aparece na forma de antecipações nas estruturas dos
aspectos anteriores. Inevitavelmente, aparece nos aspectos posteriores em
forma de analogias.
No círculo de historiadores, há uma concordância de que a ciência da
história tem de limitar sua área de investigação aos fenômenos culturais. De
fato, essa qualificação cultural oferece uma pista ao núcleo de sentido modal
da história. Contudo, a filosofia contemporânea da história passou a estar sob
a influência do motivo básico humanista na filosofia moderna com sua
polaridade entre natureza e liberdade, entre o ideal científico e ideal da
personalidade. Rebaixou essa condicionante cultural ao incorporar ao termo
“cultura” todos aqueles aspectos da realidade que não se enquadram no
campo de investigação das ciências naturais.
Nesse conceito inexato de cultura, o núcleo de sentido do aspecto
histórico permaneceu oculto. Foi equivocadamente entendido em seu sentido
típico de aspecto da realidade. Na verdade, esse núcleo deveria ser
identificado como o livre controle formativo.
Que de fato descobrimos aqui o núcleo de sentido modal do aspecto
histórico, é algo que pode ser asseverado pelo método de confrontação que
mencionamos acima.
No aspecto lógico, encontramo-lo primeiramente entre as antecipações
modais da classificação lógica. Encontramos o controle sobre a forma lógica
sendo aberto primeiramente no raciocínio teórico, que obtém esse controle
formativo por meio de seu caráter sistemático. O pensamento pré-teórico
ainda não está aberto: falta-lhe ainda todo controle sobre sua forma lógica e
está rigidamente vinculado às impressões sensoriais da função do sentido. O
controle formativo lógico não tem caráter histórico original. Pelo contrário, é
governado por princípios peculiares da esfera de lei lógica ao qual o aspecto
lógico está limitado. Portanto, não é satisfatório chamar as formas do
pensamento lógico de “cultura” como tal.
Há um conexão inquebrável entre o sentido dessa antecipação histórica
na estrutura modal do pensamento lógico e o núcleo de sentido original do
aspecto histórico. No primeiro lugar de sua formação lógica, o pensamento
teórico tem um desenvolvimento histórico. Em seu caráter controlador,
encontra-se sob a orientação e direção do livre controle formativo em seu
sentido histórico original.
Na estrutura modal do aspecto lógico, o elemento formativo
controlador aparece inicialmente num sentido não original como uma
configuração ou contorno antecipatório, aberto. Em todos os aspectos da
realidade, que se seguem ao aspecto histórico no tempo cósmico, esse
elemento formativo deve ser qualificado pelos núcleos de sentido
correspondentes, e se encontra entre as analogias modais. Mesmo em sua
estrutura ainda fechada (não antecipatória), o elemento formativo é essencial.
Não pode haver linguagem sem formas linguísticas, nem direito sem formas
genéticas jurídicas (e.g. lei, regras, regulamentos, vereditos, acordos, etc.). O
mesmo se aplica às situações primitivas — ainda fechadas —, nas quais esses
aspectos aparecem na realidade.
Quando a estrutura peculiar dos aspectos modais é ignorada, a tentação
óbvia é separar esse elemento cultural analógico nos aspectos pós-históricos
dos núcleos de sentido modais e qualificantes desses mesmos aspectos. Ao
fazer isso, seu caráter analógico é, pois, desconsiderado. Esse esfumaçamento
das fronteiras das estruturas de aspecto modal, contudo, necessariamente é
vingado com antinomias. A antinomia teórica é sempre um critério da
violação da soberania da esfera modal e portanto não pode ser simplesmente
vista como o resultado necessário dos limites da cognição humana.
Com o auxílio do método de confrontação, conforme explicado mais
detidamente adiante, uma análise do núcleo de sentido modal permite-nos
localizar imediatamente o lugar que o aspecto histórico assume na ordem
temporal dos aspectos. Esse aspecto está estrategicamente situado entre os
aspectos lógico e linguístico da realidade, como uma análise mais profunda
— que não pode ser realizada aqui — traria à luz.
A determinação do local apropriado do aspecto histórico é
indispensável para uma investigação mais profunda em relação à estrutura de
sentido modal da história.

O CARÁTER NORMATIVO DO ASPECTO HISTÓRICO

O fato de que o aspecto histórico é fundado diretamente no aspecto


lógico garante o caráter normativo do sentido modal da história. Entendemos
esse caráter normativo num sentido especificamente histórico, e não no
sentido moral, isto é, as leis que governam o desenvolvimento histórico são
de caráter normativo; são normas históricas. Sem uma relação com essas
normas históricas, esses fatos perderiam seu sentido histórico. Reconhecer o
sentido normativo da história não significa obliterar as fronteiras entre norma
e fato. Pelo contrário, reconhecemos simplesmente a inegável pluriformidade
modal da normatividade.
Aqueles que negam o sentido normativo da história devem, no entanto,
reconhecê-lo, ainda que não intencionalmente, tão logo introduzam no
aspecto histórico o contraste normativo entre o histórico e o reacionário (ou
a-histórico).
Não se pode usar o termo “reacionário” num sentido pejorativo a
menos que se presuma uma norma específica para o desenvolvimento
histórico. Nesse contexto, a aplicação de normas éticas como critérios falha
conosco completamente. O par contrário histórico/a-histórico é uma analogia
modal do princípio lógico de contradição que constitui uma norma lógica
para o pensamento. Apenas aquelas criaturas que possuem a habilidade de
envolver-se no discernimento razoável e que têm uma percepção analítica são
capazes de ser sujeitos no aspecto histórico.
Quando os fatos da natureza operam na história, o único papel que
podem desempenhar é um papel objetivo. Somente podem assumir um
sentido histórico no relacionamento com sujeitos históricos. Um
entendimento correto em relação a essa relação modal sujeito-objeto dentro
do aspecto histórico — e também em relação ao caráter normativo da
estrutura de sentido modal da história — torna-se especialmente importante
para a determinação do sentido modal do conceito de causalidade histórica.
Se eliminarmos seu caráter normativo atual, essa causalidade histórica pode
prosseguir não sendo reconhecida. A causalidade histórica é uma analogia
modal de causalidade no sentido original (científico) do aspecto físico. O
sentido subjetivo da causalidade histórica pressupõe a responsabilidade
histórica de pessoas que usam livremente seu controle formativo. De
semelhante modo, a causalidade jurídica pressupõe a responsabilidade legal a
pessoas responsáveis. Isso é válido na medida em que se trata da causalidade
subjetiva de um ato humano, e não de uma causalidade objetiva (por
exemplo, o efeito fatal da mordida de um cão hidrófobo).
A responsabilização história é uma analogia modal do princípio lógico
da razão suficiente, que somente podemos aplicar a sujeitos com
discernimento racional. Uma série causal natural-científica apresenta apenas
uma cadeia sem fim em que todos os fatores causais têm o mesmo valor, ao
menos em princípio (o princípio de equivalência). Os fatores naturais podem
simplesmente ter uma função objetiva modal[18] dependente no aspecto
histórico. Só podem dar origem a contextos causais objetivos com um sentido
histórico. São historicamente relevantes somente na medida em que vão de
encontro à vida cultural de uma pessoa enquanto sujeito. Apenas o ser
humano está sujeito a normas históricas. Dessa maneira, podemos também
analisar as outras analogias no sentido modal da história, cada uma por sua
vez (poder histórico como a analogia da influência psíquica-sensorial,
desenvolvimento histórico como a analogia do desenvolvimento biótico e
área cultural como a analogia espacial, etc.).
Todos esses elementos do sentido histórico até aqui investigados
também se revelam nas culturas primitivas, ainda fechadas. Contudo,
recebem um sentido mais profundo no processo de desenvolvimento cultural
no qual o aspecto histórico descerra as antecipações modais latentes.

CULTURAS FECHADAS E CULTURAS ABERTAS

O critério para distinguir entre culturas fechadas e abertas é de


fundamental importância para a ciência da história, pois esta só pode
pesquisar e investigar aquelas culturas que adentraram nesse processo de
abertura, isto é, aquelas que embarcaram na grande corrente da história
mundial. A ciência da história deixa à etnologia (que deve, portanto, seguir
um método essencialmente diferente) o lado cultural do desenvolvimento de
culturas primitivas que ficaram de fora da história do mundo.
Esse critério tem também, necessariamente, um caráter histórico
normativo. A primeira marca da condição fechada de uma cultura é o escopo
das restrições sociais impostas sobre a interação cultural do povo. A
sociedade primitiva está encerrada em formas sociais indiferenciadas, que
apresentam uma esfera de poder indiferenciada em sua cultura. Em todas as
esferas da vida, o indivíduo está sujeito a essa esfera de poder. É considerado
apenas como um membro da comunidade primitiva, e não como uma pessoa
individual.
Todo aquele que não pertence à comunidade primitiva é um inimigo,
um forasteiro (hostis, ex lex). Uma cultura assim começa a descerrar-se pela
diferenciação, integração e individualização; uma cultura abre sua primeira
antecipação modal ao descerrar o sentido do aspecto do intercurso social.
Conforme a esfera cultural perde, com isso, sua condição indiferenciada
“fechada”, ela adentra no câmbio cultural da história do mundo. A demanda
pelo câmbio cultural está necessariamente latente na norma para
desenvolvimento histórico implicada em seu sentido modal. De acordo com
essa norma, toda forma de isolacionismo cultural é condenada.
Subsequentemente, a cultura também descerra sua antecipação modal
com respeito ao núcleo de sentido do aspecto linguístico, isto é, a
significação simbólica. É somente nesse estágio que aquilo que é
historicamente significante se diferencia daquilo que é historicamente
insignificante (simbolismo cultural). Isso dá origem ao impulso normativo de
registrar simbolicamente a história em crônicas, narrativas históricas,
memoriais etc. No curso demasiadamente congruente de uma cultura
primitiva, a musa da história não encontra material para a crônica de
episódios memoráveis. Uma terceira antecipação normativa é agora
descerrada pela cultura em sua estrutura modal, isto é, a econômica. Como
resultado dessa diferenciação cultural, nenhuma das esferas diferenciadas
podem declarar uma autoridade exclusiva sobre o indivíduo e esferas culturas
restantes, caso essa cultura queira desenvolver-se harmoniosamente. Toda
expansão excessiva da área da autoridade de qualquer esfera cultural (seja a
da ciência, arte, Estado, igreja, comércio etc.), isto é, toda violação da norma
da economia cultural resulta necessariamente numa desarmonia no processo
de desdobramento cultural. Ao mesmo tempo, isso descerra a antecipação
estética da cultura. O julgamento da história do mundo é feito sobre esse
desdobramento cultural desarmonioso (antecipação jurídica). Isso se dá
porque um desenvolvimento cultural harmonioso pressupõe um amor à
cultura, uma paixão irrestrita pela formação cultural, na qual toda esfera
cultural pode devotar-se à sua tarefa de acordo com seu próprio caráter.
Nesse amor à cultura, a antecipação moral descerra-se no sentido da história.
Caso se questione acerca das origens da desarmonia cultural, dá-se o
caso, aparentemente, de que todo desdobramento cultural está
derradeiramente direcionado por uma crença da parte do poder cultural
dirigente. Este tem seu ponto de partida na raiz religiosa, supratemporal, de
toda a história do mundo, na qual, de acordo com o dito de Agostinho, trava-
se o conflito entre a civitas Dei e a civitas terrena. Do ponto de vista cristão,
a raça humana decaiu em sua raiz religiosa. Em última análise, a queda
radical no pecado traz uma inevitável desarmonia no desdobramento cultural.
A comunidade da humanidade desviou-se, no centro religioso de toda sua
existência, de seu Criador. Como resultado, seu desdobramento cultural
apresenta uma direção religiosamente apóstata. Esta se revela na
absolutização — e portanto superextensão — daquilo que é temporal e
criatural. Contra toda violação da norma da economia cultural, o tribunal da
história do mundo por fim declara uma retribuição concomitante, que por seu
turno assume um papel no desdobramento cultural. O poder conservador
central, contudo, permanece sendo o da crença cristã.

OBSERVAÇÕES FINAIS

A ligação entre crença e história demanda a formulação de uma ideia de


desenvolvimento que relacione a história do mundo à raiz transcendente
religiosa da criação. A própria função da fé continua sendo parte de uma
ordem cósmica temporal, podendo, pois, ser confundida com o cerne
religioso transcendente da realidade temporal. A função pística é a função
limite transcendental da existência temporal, que pertence a essa esfera de lei
distinta.
A estrutura modal da crença ou fé expressa a posição fronteiriça
transcendental que esse aspecto final ocupa entre o tempo e a eternidade. O
núcleo de sentido modal da função de fé é a certeza transcendental no tempo
concernente a uma base firme transcendente e à origem daquilo que é criado
e que se revela no tempo. A fé aponta para além do tempo.
Na estrutura do aspecto pístico, todas as analogias modais tomam parte
nesse caráter fronteiriço transcendental (e.g., o elemento de adoração inerente
em toda fé, que é uma analogia do amor moral; a analogia jurídica
concernente ao direito de Deus de ser adorado; a analogia estética da
harmonia entre o finito e o infinito, a analogia econômica da prontidão para
sacrificar-se quando se considera os valores temporais e eternos; a analogia
social de um relacionamento de fé com a Origem absoluta de todas as coisas;
a analogia linguística do simbolismo da fé, etc.). A fé está sempre relacionada
a uma revelação de Deus em suas obras ou na natureza da criação. Em seu
sentido real, é explicada primeiramente na Palavra-revelação. Em
contrapartida, a fé apóstata interpreta a revelação de Deus na “natureza da
criação” de acordo com sua própria fantasia apóstata (cf. mitologia).
Toda absolutização, incluindo todas que se dão na filosofia, é em
última instância um ato de fé e jamais pode ser explicada em termos
puramente teóricos. É um ato de fé porque propõe uma base segura para o
processo de pensamento, a qual só pode ser encontrada no Absoluto.
Há um ponto fronteiriço transcendental em toda fé apóstata,
nomeadamente, a apostasia da deificação das forças naturais que são
incompreensíveis (a religião da mana). Nesse ponto fronteiriço, a fé pagã
atada à natureza mantém toda a cultura sob seu controle numa condição
rígida e fechada. Mantém sua cultura rigidamente vinculada a seu substrato
natural deificado, e isto impossibilita qualquer desdobramento das esferas
culturais antecipatórias.
3. OS CRITÉRIOS DAS TENDÊNCIAS
PROGRESSIVAS E REACIONÁRIAS[19]

A comemoração do 150º aniversário da Academia Real Neerlandesa


das Ciências e Humanidades fornece a ocasião para a reflexão histórica. Não
será uma questão de surpresa, portanto, que, ao considerar a questão sobre
qual tema geral poderia ser mais adequado a essa comemoração, elenquei um
problema fundamental da filosofia da história, nomeadamente, se podemos
apontar para critérios objetivos que possibilitarão distinguir entre as
tendências progressivas e reacionárias na história.
No conflito da política, os termos opostos “progressivo” e “reacionário”
são frequentemente usados num sentido demagógico. No princípio, os
partidos liberais reivindicavam a denominação de “progressistas”.
Posteriormente, os partidos socialistas fizeram o mesmo. Hoje em dia, os
partidos totalitários exigem o direito exclusivos de denominar-se
“progressistas” em contraposição a todos os outros que rejeitam sua
ideologia. É claro: parece lógico que esses partidos totalitários não aceitariam
ser designados de “reacionários”. Eles, igualmente, enfatizam em geral o
caráter progressivo de seus programas políticos, ao menos enquanto não
abandonaram a crença no progresso em seu sentido político-histórico. A
situação demonstra que pode haver diferentes perspectivas das chamadas
demandas do desenvolvimento histórico. Contudo, é inquestionável que, em
ambos os casos, os padrões ou normas verdadeiramente históricos do
desenvolvimento histórico estão em jogo. Esses padrões podem ter uma base
objetiva na natureza interna da própria histórica, ou não são nada mais que
medidas inverificáveis de uma apreciação meramente subjetiva do curso de
um processo histórico? É a essa questão que dedicarei algumas observações
esta manhã.
Ficará evidente que essa questão é importante não somente ao político,
que busca, a partir de um estudo do curso da história, entender as demandas
do presente e do futuro próximo. O processo histórico move-se no aspecto
histórico de tempo, no qual passado, presente e futuro estão inseparavelmente
entrelaçados entre si.
O historiador, cuja atenção científica é dirigida ao passado, é
igualmente confrontado pelo problema quanto a se os critérios objetivos para
uma distinção entre as tendências progressivas e reacionárias na história
podem ser descobertos. E nesse ponto, igualmente, essa distinção é
indubitavelmente de caráter normativo, uma vez que a questão em jogo é se
de fato existem as normas do desenvolvimento histórico de uma validade
verificável pelas quais o curso factual dos eventos históricos pode ser testado.

A ELIMINAÇÃO DOS PONTOS DE VISTAS NORMATIVOS NA


HISTORIOGRAFIA CIENTÍFICA

Por essa mesma razão o célebre filósofo neokantiano Heinrich Rickert,


que dedicou bastante atenção aos fundamentos epistemológicos da ciência
cultural em sua distinção aos fundamentos da ciência natural, negou à ciência
da história qualquer juízo em relação às tendências progressistas e retrógradas
no processo do desenvolvimento histórico. Em sua opinião, esses juízos
axiológicos ultrapassavam os limites tanto da ciência quanto da filosofia da
história, e deveriam, portanto, ser reservados apenas para as visões pessoais
de mundo e da vida.
Podemos deixar de lado, por um momento, a questão da possibilidade
de eliminação de todos os pontos de vistas normativos na historiografia
científica e na filosofia da história. Por ora, será suficiente estabelecer que o
contraste normativo entre progresso e regresso ou reação está intimamente
ligada à noção fundamental de desenvolvimento histórico.
Dificilmente há espaço para duvidar de que é essa própria noção que
permite que o historiador descubra coerências internas na sucessão temporal
dos fatos e mudanças históricos. Se essa noção fosse eliminada como, numa
perspectiva positivista, J.H. Kirchman defendeu no século XIX, nenhum
entendimento sintético em relação ao processo da história seria possível, e a
historiografia degenerar-se-ia num agregado de relatos mistos do passado.
Mas o conceito fundamental do desenvolvimento ou evolução
evidencia a condição geral de todos os conceitos básicos das várias
disciplinas acadêmicas: é, em si, [um conceito] de caráter analógico ou
multívoco, o que faz com que seja usado em outras disciplinas, embora num
sentido modal diferente. Numa leitura anteriormente ministrada no
departamento das Humanidades desta Academia, chamei atenção
especialmente para esse fato marcante. Aparentemente está enraizado na
estrutura do horizonte temporal da experiência humana, e mais precisamente
na estrutura dos diferentes aspectos modais fundamentais desse horizonte
experiencial que, a princípio, delimitam os pontos de vistas diferentes dos
quais a realidade empírica pode ser abordada por diferentes ramos
especializados da ciência. O aspecto histórico é apenas um desses modos
fundamentais de experiência, que, em si mesmos, não se referem ao que
concreto, isto é, a coisas ou eventos concretos da realidade temporal, mas sim
ao como modal, isto é, a maneira na qual são experienciados em seus
aspectos diferentes.
Esses aspectos modais fundamentais da experiência humana temporal
estão ordenados numa ordem temporal irreversível que se expressa na
estrutura modal de cada um deles. Essa estrutura determina seu sentido
modal. Ao traçar esse sentido modal, somos confrontados com um momento
nuclear que garante o caráter irredutível do aspecto em questão. Mas o núcleo
desse sentido modal pode revelar-se apenas numa coerência inquebrável com
outros momentos estruturais que apontam para trás ou para frente,
respectivamente, a todos os outros aspectos modais que estão ordenados
anterior ou posteriormente na sequência temporal. Uma vez que estes outros
momentos (os não nucleares) na estrutura modal de um aspecto expressam a
coerência universal intermodal do sentido de nosso horizonte experiencial,
eles têm em si mesmos um caráter analógico ou multívoco. É apenas o núcleo
modal irredutível do aspecto no qual ocorrem que lhes dão um sentido
unívoco.

A HISTÓRIA NÃO É O QUE REALMENTE OCORREU NO


PASSADO: HISTORICISMO

Se formos aplicar esse entendimento ao aspecto histórico de nosso


horizonte experiencial, deve estabelecer-se, primeiramente, que esse modo de
experiência não deve ser identificado com aquilo que realmente ocorreu no
passado. Eventos concretos, mesmo aqueles que, num sentido típico, são
chamados “fatos históricos”, operam em princípio em todos os aspectos
experienciais. O aspecto histórico deles só pode ser um modo particular de
experienciá-los. Em segundo lugar, deve estar claro que, ao falar de
desenvolvimento histórico, nos referimos a um momento analógico de
sentido cujo significado modal é determinado pelo momento nuclear desse
aspecto. Mas o que é, pois, o núcleo modal do modo histórico de
experiência? Aqui somos confrontados com a pergunta fundamental que é
ignorada com uma questão de princípio nas atuais visões epistemológicas da
natureza da historiografia científica. Isso se explica pelo fato de que, no
pensamento ocidental moderno, o modo histórico de experiência não é mais
visto como um aspecto modal específico da realidade empírica, mas, antes,
como idêntico a essa realidade, ou ao menos com a realidade empírica da
sociedade humana. Essa visão foi expressa tanto pela declaração de De
Bonald: “La realité est dans l’histoire” [a realidade está na história] quanto
na concepção de Von Ranke da tarefa da historiografia científica como uma
descrição de “wie es eigentlich gewesen ist” [como realmente foi]. Essa visão
implica que todos os aspectos normativos da vida da sociedade humana, isto
é, os da interação social, linguagem, administração econômica de bens
escassos, apreciação estética, direito, moralidade e fé são historicizados. Em
outras palavras, somos confrontados por uma visão histórica da realidade
temporal, que se origina de uma absolutização do aspecto histórico de
experiência. De modo semelhante, a absolutização do aspecto físico-químico
da energia, ou do aspecto biótico, ou do aspecto psíquico do sentimento
emocional e sensação dá origem a visões energista, vitalista, psicologista da
realidade.
Dever-se-ia perceber que essa visão historicista do mundo foi
originalmente postulada como a visão de que, de fato, se opunha
dialeticamente à imagem naturalista da realidade que procedeu de uma
expansão excessiva do ponto de vista científico natural matemático da física
clássica. Ambas as visões naturalista e historicista tinham sua origem comum
na revolução copernicana do pensamento filosófico iniciada por Descartes.
Ambas resultavam de uma demolição metódica da ordem estrutural dada da
experiência humana baseada na ordem divina da criação.
A ideia moderna da liberdade autônoma da personalidade humana que
envolve tanto seu pensamento quanto sua atividade era incompatível com a
aceitação de qualquer ordem estrutural dada; pois uma ordem dada da criação
significava teonomia. A virada cartesiana ao cogito subjetivo como a base
última de certeza estava inteiramente de acordo com o motivo básico
religioso da forma de humanismo que surgiu na época da Renascença.
Enraizava-se no motivo da natureza e liberdade, como proposto desde
Immanuel Kant.
Como uma secularização da concepção cristã da liberdade humana, o
motivo da liberdade humanista era bastante diferente da ideia grega clássica
da autonomia da razão humana. Implicava atribuir à mente humana um poder
criativo de projetar um mundo segundo sua própria imagem e em ter total
controle de seu próprio futuro. Elevava a personalidade humana a um fim
absoluto em si mesmo, o que implicava uma reversão radical da visão bíblica
da relação entre Deus e o ego humano criado à imagem de Deus. Evocava
também um novo conceito de natureza como a contraparte macrocósmica do
ego humano emancipado, que, na época da Renascença, deu origem a uma
deificação da natureza (Natura sive Deus). O esforço fáustico em prol de uma
dominação completa da natureza exigia uma imagem determinista da
realidade natural vista como uma corrente ininterrupta de relações causais
funcionais que poderia ser formulada em equações matemáticas. A nova
física matemática fundada por Galileu e Newton forneceu os métodos
científicos para reconstruir teoricamente o mundo de acordo com o motivo
fáustico da dominação. Mas a natureza, como um reflexo objetivo desse
motivo da dominação, não deixava espaço para a liberdade da ação humana.
Assim, o motivo básico religioso da natureza e liberdade apresentava,
como o ponto de partida oculto e supremo do pensamento humanista
moderno, uma tensão dialética entre dois motivos opostos. Envolvia a
filosofia moderna num processo dialético no qual se atribuía a primazia
alternadamente a um desses motivos concorrentes, do que resultava que o
efeito do outro era depreciado.
Ao passo que, sob a primazia do ideal da ciência matemática, a filosofia
cartesiana se desenvolveu numa direção anti-histórica, o pensador italiano G.
B. Vico foi o primeiro a colocar sua “nova ciência” (“nuovo scienze”, a
ciência da história da humanidade que ele, de modo não muito claro,
denominava “filologia”) em oposição ao padrão matemático do pensamento.
Mas essa nova ciência não estava de modo nenhum delimitada em seu ponto
de vista modal específico de maneira a evitar a absolutização do aspecto
histórico de nosso horizonte experiencial. Partiu, pelo contrário, do motivo
humanista da liberdade criativa da mente humana autônoma, que
essencialmente busca romper os vínculos estruturais dados dos aspectos
modais da realidade empírica. A tese fundamental de Vico é que nosso
mundo civil é indubitavelmente criado pelos seres humanos no processo da
história, de modo que suas origens devem ser buscadas na mente humana.
Assim sendo, a ciência da história é concebida como a ciência da gênese
temporal da humanidade, que criou a si mesmo na totalidade de sua
existência cultural e, portanto, conhece a si própria a partir de toda a herança
de sua cultura. Disto resulta que, nessa ciência, sujeito e objeto são idênticos.
Mas a gênese temporal da humanidade não pode ser um ponto de vista
científico específico, visto que, em princípio, essa gênese funciona em todos
os aspectos modais de nosso horizonte experiencial. É um processo real que
se dá na plena e contínua coerência do tempo, e não simplesmente num
aspecto histórico específico deste último. Portanto, de nada vale dizer que o
ponto de vista histórico é o ponto de vista genético, sem indicar o sentido
modal deste último. O aspecto físico-químico ou o aspecto biótico desse
processo genético não é do interesse da pesquisa histórica, entendida em seu
sentido apropriado. Vico, de fato, não incluiu esses aspectos no campo de sua
nova ciência. Partindo do motivo básico da natureza e liberdade, ele
estabeleceu (com uma ênfase particular em oposição ao ideal cartesiano da
ciência) que a natureza não foi criada pelos humanos; mas sua cultura, sim.
Consequentemente, a história é restrita à totalidade da atividade cultural
da humanidade e seus resultados. Desde a época de Vico, essa se tornou a
visão prevalente; pois a restrição anterior da historiografia respeitável à
história política, ou mesmo à história das guerras e batalhas, é inteiramente
arbitrária e inadequada. Por outro lado, não há sentido nenhum opor a história
política e a das guerras e batalhas à história cultural, visto que, sem a cultura
humana, não pode haver nem vida política pacífica nem guerras ou batalhas
humanas.
Mas a cultura deve ser vista como uma realidade temporal concreta,
sempre cambiante, de um tipo específico, ou é um aspecto modal irredutível
da realidade temporal? De acordo com Vico, é a realização histórica de ideias
eternas na vida social das nações, o produto de sua mente ou consciência
coletiva, o “mundo civil”, conforme ele chama. Abarca seus costumes, seu
direito, sua linguagem, suas belas-artes, suas relações econômicas, sua
religião, sua vida científica, suas instituições sociais.
Aqui somos confrontados com a fonte do historicismo moderno; pois a
história, em seu sentido apropriado, é a história da cultura humana e a própria
cultura é uma realidade histórica que abarca todos os aspectos normativos da
vida humana temporal. Daí todas nossas normas e valores e todas nossas
instituições sociais não são nada senão os produtos históricos de uma mente
cultural específica numa fase particular de seu desenvolvimento.
O historicismo radical é o oposto dialético da doutrina a priori
humanista da lei natural desenvolvida, more geometrico [de modo
geométrico], sob a primazia do ideal de ciência matemático. Em Vico, essa
oposição não poderia ainda revelar-se como uma alternativa exclusiva, uma
vez que sua visão histórica da vida humana temporal era temperada por sua
crença em ideias eternas, que são realizadas na história do homem com a
necessidade interna de uma Providência divina. É a mesma Providência que,
em sua opinião, também guia o curso cíclico da história em seus movimentos
progressivos e regressivos, seus “corsi” e “recorsi”. Isso significa, no que se
refere ao domínio do direito na sociedade humana, que toda lei positiva nada
mais é que uma positivação dos princípios eternas da lei natural, que
consequentemente se encarnam na realidade histórica. Esse componente da
lei natural é, de acordo com Vico, o impulso da verdade racional em qualquer
ordem legal. O impulso da positivação cultural é o da certeza e corresponde
ao impulso do poder na história. Esta última perspectiva, a de que a atividade
cultural da humanidade é um desdobramento do poder, é extremamente
importante para a teoria de Vico, embora ele a explane apenas de passagem;
pois veremos que ela fornece a pista para a solução de nossa indagação
anterior, a saber, qual é o momento nuclear do modo histórico de
experiência? Uma resposta satisfatória a essa questão equivale a uma
subversão fundamental da visão de mundo historicista, embora isso seja algo
a que o próprio Vico não pôde chegar, já que uma visão historicista da
realidade temporal não pode ser neutralizada por uma crença nas ideias
eternas. Ideias supra-temporais de justiça, beleza, bondade e que tais não são
nada senão uma absolutização metafísica dos aspectos modais normativos de
nossa ordem temporal da experiência, cujas diferenças de sentido podem
existir somente na ordem do tempo. Pois é essa ordem do tempo que divide a
unidade religiosa radical de todo sentido numa pluralidade sucessiva de
modos. O historicismo tem uma tendência inata para emancipar-se de
qualquer crença em ideias eternas; pois a crença humana está também
incluída no horizonte temporal da consciência e o historicismo identifica o
tempo verdadeiro com o tempo histórico. Se a crença pertence à cultura
humana, então as chamadas ideias eternas podem somente ser o componente
ideológico de uma cultura numa fase metafísica de seu desenvolvimento
histórico. Consequentemente, só podem ter um significado histórico.
O historicismo em sua forma consistente significa a historicização de
todo nosso horizonte temporal de experiência e do ponto de referência
religioso central do horizonte experiencial, a saber, a eu-dade humana em sua
relação com outros egos e com o Autor Divino de toda criação.
A absolutização do aspecto histórico começa com a eliminação de sua
estrutura modal pela qual seu sentido geral é determinado e restrito. Essa
estrutura não pode ser mutável no tempo, visto que é a condição que, sozinha,
torna possível o modo histórico da experiência.
Consequentemente, não pode ser identificado a um fenômeno histórico
variável apresentando-se em seu modo experiencial. Estamos buscando o
momento nuclear dessa estrutura. A derivação etimológica do termo
“história” não nos auxilia em nossa busca. A palavra é de origem grega e
inicialmente tinha o sentido neutro de “investigação”. É muito mais provável
descobrir o momento nuclear qualificante do modo experiencial particular
que determina o ponto de vista da ciência histórica genuína por meio de uma
análise epistemológica do conceito de cultura, porque vimos que as noções de
vir a ser e de desenvolvimento — com o auxílio das quais se tentou delimitar
esse ponto de partida histórica específico — são em si mesmos multívocos.
No último exemplo, é apenas o modo cultural do desenvolvimento que
pode dar ao conceito analógico de desenvolvimento seu sentido histórico. É
por essa razão que todas as investigações gnoseológicas relativas ao ponto de
vista histórico especial específico estiveram centradas na significância
fundamental do conceito de cultura para o modo histórico de pensamento.
Vimos que o historicismo concebia a totalidade da sociedade humana
em todos seus aspectos normativos como um produto histórico-cultural. Por
conseguinte, a absolutização do aspecto histórico da experiência deve estar
intimamente ligada à absolutização do conceito de cultura. O uso do
substantivo “cultura” pode facilmente originar a opinião equivocada de que o
termo se refere a um tipo particular de realidade, um “que” concreto. Toda
absolutização de um aspecto experiencial específico começa identificando
esse aspecto com a realidade concreta, embora esta tenha de fato várias
funções modais. Mas é impossível que haja um tipo particular de realidade
que seja inteiramente cultural em seu caráter. Substituamos, pois, o
substantivo “cultura” pelo adjetivo “cultural”, a fim de enfatizar que se refere
a apenas um aspecto modal da realidade empírica. Tomada nesse sentido
modal, o termo “cultural” não se refere senão a uma maneira particular de
formação que é fundamentalmente distinta de todos os modos de formação
encontrados na natureza. Trata-se de um modo controlador, pelo qual se dá
forma a um material de acordo com um projeto livremente elaborado.
Uma aranha tece sua tece com uma precisão impecável; mas o faz
segundo um padrão fixo e uniforme, prescrito pelo instinto da espécie. Falta-
lhe controle livre sobre o material no qual trabalha. Por outro lado, o modo
cultural de formação deve receber sua qualificação modal específico por meio
da liberdade, controle ou poder formativos. É por isso que o grande
mandamento cultural dado à humanidade após a criação do mundo diz:
“sujeitai a terra e dominai-a”.[20] E se o ponto de vista histórico genuíno da
historiografia é o do desenvolvimento cultural, segue-se que o poder ou
controle formativo deve também ser o momento nuclear do aspecto histórico
que dá ao conceito analógico de desenvolvimento seu senso histórico
apropriado.
O modo cultural de formação revela-se em duas direções que estão
intimamente conectadas. Por um lado, é um poder formativo sobre pessoas
desdobrando-se ao dar forma cultural à sua existência social; por outro,
aparece como uma maneira dirigente de moldar coisas ou materiais naturais
para fins culturais.
Os alemães falam de “Personkultur” [cultura pessoal] e “Sachkultur”
[cultura material]. Visto que todos os fenômenos culturais estão ligados à
sociedade humana em seu aspecto histórico, o desenvolvimento da
Sachkultur depende, em princípio, do desenvolvimento da Personkultur,
porque a primeira só pode desenvolver-se numa relação sujeito-objeto
histórica e apenas os seres humanos em seus relacionamentos sociais podem
atuar como sujeitos no processo cultural da história. Além disso, tanto a
Personkultur quanto a Sachkultur pressupõem as ideias diretrizes de um
projeto cujas figuras ou grupos na história buscam levar a efeito numa
comunidade humana. É por essa razão que o poder formativo dessas figuras
ou grupos dirigentes sempre apresentam uma relação de intenção para com
essas ideias.
Essas ideias não podem ser fruídas simplesmente com base na
concepção subjetiva daqueles que a propagam. Eles devem assumir uma
forma sociocultural, de modo que eles próprios sejam capazes de exercer o
poder formativo nas relações da sociedade. Por meio de uma ilustração, posso
apontar para a influência cultural das ideias de lei natural e do ius gentium
romano, ou para a influência das ideias técnicas dos grandes inventores, ou
para ideias estéticas de grandes artistas, ou para as ideias religiosas dos
pregadores de uma nova crença. Essas ideias não têm um caráter cultural-
histórico em si mesmos; mas eles adquirem um significado histórico tão logo
comecem a exercer o poder formativo na sociedade humana. Elas podem ser
concretizadas apenas nas estruturas sociais típicas de individualidade que, em
princípio, funcionam em todos os aspectos de nosso horizonte experiencial.
Portanto, a realidade empírica da vida social humana jamais pode ser
esgotada em seu aspecto cultural-histórico. Tudo que é real ou que realmente
se passa na sociedade humana é mais que meramente histórico.
O CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO

Tendo estabelecido desse modo o momento nuclear modal do aspecto


histórico da experiência, podemos agora voltar-nos para o conceito analógico
do desenvolvimento histórico. A indagação que levantamos foi se o contraste
normativo entre tendências progressivas e reacionárias no processo de
desenvolvimento histórico pode estar baseado sobre a estrutura modal do
aspecto histórico da experiência. Para responder a essa questão, é, de certo
modo, necessário examinar mais plenamente os momentos analógicos de
sentido dessa estrutura.
O momento de desenvolvimento da história remonta sem dúvida a esse
tipo de desenvolvimento que encontramos no aspecto biótico da experiência.
Mas não o faz assim diretamente. O aspecto cultural-histórico está
imediatamente fundado no aspecto lógico, isto é, o aspecto da distinção
analítica. Rickert presumia que o modo histórico de experiência é constituído
por uma categoria lógica da cultura por meio da qual, de uma forma
individualizante, a realidade natural no espaço e tempo se ligaria a um
domínio supratemporal de valores. Isto não pode estar certo. A cultura não é
um modo lógico de experiência. No entanto, sem o fundamento lógico do
modo analítico de distinção, não pode haver modo histórico de experiência. E
essa ligação entre os aspectos lógico e histórico é expresso, na estrutura
modal deste último aspecto, em analogias das relações lógicas fundamentais
de identidade, diversidade, implicação e contradição. Apontarei simplesmente
para a analogia da relação lógica da contradição no modo história da
experiência. Uma contradição lógica se dá quando um argumento contém
duas proposições contraditórias. Esse raciocínio é chamado ilógico, quando
comparado a uma sequência lógica de pensamento. Esse contraste tem um
caráter normativo, visto que um argumento ilógico viola uma norma
fundamental do pensamento lógico.
Ora, é indiscutível que, em todos os aspectos da experiência que são
fundados no aspecto lógico, se encontra uma analogia desse contraste lógico
normativo. É uma forte indicação do caráter normativo desses contrastes, o
que significa que, dentro desses modos experienciais, o comportamento
humano não está sujeito às leis da natureza, mas a normas. Refiro-me aos
contrastes entre polido e impolido, decente e indecente, e afins, os quais
funcionam no aspecto da interação social humana; ao contraste entre o
linguisticamente correto e errado, que funciona dentro do aspecto linguístico;
aos contrastes entre estético e não estético, lícito e ilícito, moral e imoral,
crível e incredível, que funcionam respectivamente nos aspectos estético,
jurídico, moral e seguridade[21] de nosso horizonte experiencial.
Portanto, o contraste entre movimentos progressivos e reacionários no
processo de desenvolvimento histórico é claramente uma analogia do
princípio lógico de contradição. Deve estar fundado na estrutura interna do
aspecto histórico, visto que este se baseia sobre o aspecto lógico. Se há
sentido em falar das demandas do desenvolvimento histórico — e os únicos
que se recusam a fazê-lo são aqueles enviesados pelo dogma de que mesmo
as chamadas ciências culturais deveriam abster-se de qualquer juízo
normativo —, então a distinção entre tendências progressivas e regressivas
não podem ser o resultado de uma simples avaliação subjetiva.
Ninguém que pensa em termos realmente históricos negará que, de um
ponto de vista político-histórico, o chamado movimento
contrarrevolucionário na primeira metade do século XIX, que se empenhou
por uma restauração do regime feudal germânico medieval com sua
concepção patrimonial indiferenciada de autoridade política, tivesse um
caráter reacionário.
Esse juízo será independente da questão de se a memória desses tempos
é invocada ou não com um certo desejo romântico. Mas sobre que norma
objetiva do desenvolvimento histórico pode assentar-se esse juízo? A escola
histórica germânica de filosofia do direito, cuja concepção filosófica da
história foi fortemente influenciada por Herder e Schelling, enfatizou
particularmente o caráter orgânico de qualquer desenvolvimento histórico
real. Tomando o desenvolvimento natural de um organismo vivo como
padrão, von Savigny e seus seguidores acreditavam que toda nação produz
sua cultura a partir de seu próprio “espírito nacional” individual num
processo de continuidade orgânica, conectando o presente e o futuro com o
passado. Mas na tradição histórica de um povo, eles distinguiam os elementos
vivos e os mortos. Os primeiros devem ser utilizados para um
desenvolvimento ulterior, mas estes últimos deveriam ser descartados.
Durante o período em que o espírito nacional foi realmente produtivo, sua
cultura, incluído suas instituições políticas e jurídicas, foi o resultado do
crescimento natural, e não o produto artificial e mecânico de uma época de
mentalidade racionalista. É evidente que, nessa visão, ressalta-se bem a
analogia biótica no desenvolvimento histórico. No entanto, não se deve
pensar que se trata aqui de uma má interpretação naturalista da evolução
cultural, pois o fato de que, em seu contexto filosófico, essa visão orgânica da
história se originou no idealismo da liberdade germânico pós-kantiano exclui
essa possibilidade.
Alinhado com Schelling, von Savigny considerava a história como uma
síntese dialética de liberdade autônoma e necessidade natural. Esta última,
contudo, não era vista como uma causalidade mecânica governada por leis
gerais. Depois de Kant, o motivo básico humanista da natureza e liberdade
sofreu uma virada irracionalista. A concepção racionalista eliminou toda
individualidade dessa visão de mundo ao reduzir todos os fenômenos
individuais a leis gerais. A concepção irracionalista, por outro lado, usou,
como seu ponto de partida, a individualidade irredutível de qualquer
totalidade real e negou sua sujeição a regras gerais. A escola histórica rejeitou
a visão racionalista e jusnaturalista da sociedade humana com seus padrões
gerais e a priori de direito e Estado, os quais, pensava-se, eram aplicáveis a
qualquer povo e em qualquer época.
Cada nação produz sua própria composição jurídica e política a partir
da individualidade plena de sua mente coletiva. Fá-lo assim na liberdade
autônoma no processo de desenvolvimento histórico e de um modo
individual. À história falta leis gerais. Há, todavia, uma lei oculta da
providência (ou “Schicksal”, numa versão mais pagã) que dirige esse
processo de um modo tal que também demonstra uma necessidade natural
interna que se eleva acima de toda arbitrariedade humana. Essa lei oculta do
processo histórico, que já se encontrava na filosofia da história de Fichte, não
poderia deixar de assumir um sentido normativo irracional. E foi Friedrich
Julius Stahl, o filósofo do direito e político luterano, que aceitou abertamente
essa consequência. Segundo sua opinião, tudo que se passou num longo
processo de desenvolvimento histórico, sob a influência de forças
incalculáveis e inescrutáveis, sem a interferência do planejamento humano
racional, deveria ser respeitado como uma manifestação da orientação divina
na história, contanto que não contradiga os mandamentos revelados de Deus.
Essa concepção da orientação de Deus na história estava bastante
alinhada à mentalidade conservadora da Restauração. Apartada de sua
formulação romântica-quietista, teve uma grande influência na chamada
teoria histórica cristã do século XIX. Esta aceitava o novo modo histórico de
pensamento como um poderoso aliado no conflito com os princípios da
Revolução Francesa.
Ao mesmo tempo, porém, essa atribuição de um sentido normativo à
orientação divina na história recebeu sérias objeções, que foram amplamente
expressas numa tese memorável defendida por A. C. Leendertz, em 1911, na
Universidade de Leiden. De um ponto de vista teológico, o autor argumentou
que a orientação de Deus abarca todas as coisas que ocorrem, tanto boas
quanto más. Por essa razão, essa orientação pertence ao conselho oculto de
Deus e não pode implicar qualquer norma para o comportamento humano. E,
de um ponto de vista filosófico, Leendertz atacou a concepção normativa da
orientação de Deus na história com o argumento kantiano de que fatos
empíricos e normas pertencem a mundos diferentes. Se o curso factual da
história é elevado a uma norma, isso equivale a uma aceitação contínua do
“fait accompli”. Se uma dinastia governante deve ser supostamente
justificada pelo fato de que manteve seu poder por um longo período, então
uma revolução que venha a derrubá-la também é justificada após manter, por
um tempo, e com êxito, sua posição.
Essa crítica filosófica necessariamente fracassa, na medida em que
parte de uma separação kantiana entre fatos empíricos e normas, cujo
dualismo está enraizado no motivo humanista dialético da natureza e
liberdade em sua concepção crítica. Não levou em consideração que os fatos
históricos não se dão do mesmo modo que os eventos naturais, e que, nos
aspectos normativos da experiência humana, não se pode estabelecer nenhum
fato sem fazer uso de uma norma. Não se pôde fazer jus à visão da escola
histórica, uma vez que esta não buscava elevar qualquer curso de eventos
simplesmente factual ao nível de uma norma histórica. A concepção de
desenvolvimento histórico orgânico não pode ter um conteúdo somente
factual separado de um critério normativo pelo qual estabelece o que está e o
que não está em acordo com ela. A distinção de von Savigny entre
componentes vivos e mortos na tradição histórica implicava uma rejeição de
qualquer tentativa factual de reviver o que perdera sua relevância histórica no
desenvolvimento orgânico da cultura. Implicava, em outras palavras, uma
distinção entre movimentos progressivos e regressivos na história. Assim,
[essa distinção] se manifestou baseada num critério normativo.
Mas qual era esse critério? Em última análise, procedia da
individualidade do espírito nacional, visto como a verdadeira fonte de cultura
nacional e como uma dádiva da Providência Divina que tinha valor em si
mesma. Supunha-se que a continuidade orgânica no desenvolvimento cultural
estava garantida apenas pela potência diretiva do espírito nacional
(“Volksgeist”) que opera em conformidade com a lei oculta da Providência.
Essa visão irracionalista da norma da evolução histórica pode levar a
consequências muito perigosas, especialmente se acompanhada por uma
visão historicista das normas da lei, moralidade e fé. O movimento nazista na
Alemanha estava bastante disposto a abraçar essas consequências, como se
evidenciou na afirmação de Hitler de que a Providência Divina destinara o
povo alemão para ser uma nação de governantes.
A individualidade subjetiva de um caráter nacional jamais pode ser uma
norma cultural em si. Demonstrará sempre tanto traços bons quanto maus,
sem mencionar o fato de que é sempre difícil estabelecer, como um todo,
traços os característicos de uma nação particular. E ainda que fossem
considerados uma dádiva de Deus, certamente terão sido afetados pelo
pecado.
Caso nos indagassem se a escola história pelo menos ofereceu um
critério claro pelo qual podemos distinguir entre tendências progressivas e
reacionárias no processo cultural, a resposta seria necessariamente um não. A
razão é que sua concepção de desenvolvimento histórico se apega
exclusivamente às analogias bióticas na estrutura modal do aspecto histórico.
Visto que este aspecto está definitivamente fundado no da vida orgânica,
essas analogias bióticas não podem senão manifestar-se no senso modal da
ideia histórica de desenvolvimento. O movimento e desenvolvimento
culturais são inerentes à vida cultural, e consequentemente a distinção de von
Savigny entre elementos vivos e mortos na tradição histórica de uma nação
está bem fundamentado. O senso histórico dessa distinção é qualificado pelo
momento nuclear do modo histórico-cultural de experiência. Elementos vivos
são aqueles que ainda têm poder formativo numa comunidade humana, ao
passo que elementos mortos são aqueles que perderam definitivamente esse
poder e que terão, no futuro, apenas uma importância folclorista ou
simplesmente teórico-histórica.
Mas essas analogias bióticas são de um caráter retrospectivo. Apontam
para trás na ordem do tempo, para um aspecto anterior de nosso horizonte
experiencial que carece de caráter normativo. O desenvolvimento no senso
modal da vida orgânica, que é baseado em processos físico-químicos, não é
regido por normas, mas por leis bióticas da natureza. No aspecto biótico do
tempo, o desenvolvimento de um organismo vivo multicelular apresenta
apenas as fases naturais de nascimento, crescimento, amadurecimento,
envelhecimento e declínio. Mas no desenvolvimento histórico, uma vocação
humana normativa se revela, uma tarefa cultural confiada à humanidade na
criação. Essa tarefa não pode ser realizada senão na direção antecipatória do
tempo, na qual o aspecto histórico-cultural da [estrutura] temporal aprofunda
seu sentido modal descerrando seus momentos antecipatórios ao apontar para
adiante, para os aspectos pós-históricos.
Assim sendo, o momento nuclear do modo cultural de
desenvolvimento, isto é, o poder formativo, tem em si um sentido normativo,
uma vez que implica uma vocação cultural normativa, conforme se torna
evidente a partir do mandamento cultural divino de subjugar a terra. Mesmo o
mais terrível abuso de poder em nosso mundo pecaminoso não pode tornar o
poder em si pecaminoso, nem afastá-lo do senso normativo da vocação
cultural de um indivíduo.
O SENTIDO ANTECIPATÓRIO DO ASPECTO CULTURAL-
HISTÓRICO

Até que o aspecto cultural de uma comunidade humana descerre os


momentos antecipatórios de seu sentido, ela se apresenta numa condição
rígida e primitiva. A mesma coisa vale para esses aspectos normativos que
são fundados no cultural, isto é, o aspecto linguístico da significação
simbólica, o aspecto da interação social, os aspectos econômico, estético,
jurídico e moral, e o aspecto da fé. As culturas primitivas estão confinadas a
comunidades pequenas e indiferenciadas que demonstram uma forte
tendência ao isolamento. Enquanto essas comunidades primitivas mantiveram
seu isolamento na história, não pode se pode falar de desenvolvimento
cultural no sentido utilizado na historiografia genuína.
Eles demonstram um aspecto totalitário, visto que se envolvem em
todas as esferas das vidas pessoas de seus membros, ao passo que a existência
temporal do indivíduo é completamente dependente da membresia na família
ou na sib,[22] respectivamente, e da comunidade tribal. Não há espaço ainda
para uma diferenciação da cultura nas esferas particulares do poder
formativo, isto é, as da ciência, das belas-artes, comércio e indústria, política,
religião e assim por diante. Visto que essas comunidades indiferenciadas
realizam todas as tarefas para as quais, num nível superior de civilização,
organizações particulares foram formadas, há apenas uma única esfera
cultural indiferenciada. Uma tradição rígida, deificada por uma crença pagã, e
inquietamente guardada pelos líderes do grupo, tem o monopólio do poder
formativo. O processo pelo qual essas culturas se desenvolvem demonstra, de
fato, apenas analogias bióticas das fases do nascimento, crescimento,
maturação, envelhecimento e declínio. A duração dessa existência da cultura
depende da duração das comunidades tribais ou pequenos povos pelos quais é
sustentada. Esses podem desaparecer de cena sem deixar qualquer traço na
história.
A situação no desenvolvimento histórico de culturas abertas é bastante
diferente. Desses centros culturais antigos da história mundial — como a
Babilônia, Egito, Palestina, Creta, Grécia, Roma e Bizâncio —, tendências
essenciais de desenvolvimento passaram para as civilizações ocidentais
medieval e moderna. Eles fertilizaram as culturas germânica e árabe, e esta
fertilização deu origem a novas formas de civilização.
Esse desenvolvimento cultural aberto foi liberto da rígida dependência
das condições de vida de comunidades de pequenos povos ou tribais. Ele não
se move dentro dos limites estreitos de uma comunidade cultural fechada e
indiferenciada, mas, como um fluxo doador de vida, sempre busca novos
canais ao longo dos quais continua seu curso. O processo pelo qual uma
cultura é aberta sempre ocorre num conflito entre os guardiães da tradição e
os proponentes de novas ideias. O poder formativo da tradição é enorme,
pois, numa forma concentrada, incorpora tesouros culturais acumulados ao
longo dos séculos. Somos todos dominados por ele em um grau muito maior
do que percebemos. Numa cultura fechada primitiva, o poder da tradição é
quase absoluto. Numa cultura aberta, a tradição não é mais inatacável, mas
tem o papel indispensável de guardar essa medida de continuidade no
desenvolvimento cultural sem o qual a vida cultural seria impossível.
Na luta com o poder da tradição, as próprias ideias progressivas dos
chamados modeladores da história têm de ser purgadas de sua subjetividade
revolucionária e ajustada à norma modal da continuidade histórica. Mesmo
Jacob Burckhardt, que fora fortemente influenciado pelo relativismo
historicista, apegava-se a essa norma de continuidade como uma última
garantia contra o declínio de toda civilização. É, evidentemente, nada senão
uma ilusão imaginar que uma revolução cultural possa destruir todos os
vínculos com o passado e iniciar um ano revolucionário um.
Esse processo de abertura da cultura é caracterizado pela destruição do
poder indiferenciado e exclusivo das comunidades primitivas. É um processo
de diferenciação cultural que é balanceado por uma integração cultural
crescente. É levado a cabo pela destruição das muralhas rígidas de isolamento
que cercavam a cultura primitiva e pela submissão desta ao contato frutífero
com civilizações que já foram abertas.
Desde Herbert Spencer, diferenciação e integração (sociais) foram
aceitas por muitos sociólogos como um critério para distinguir entre as
sociedades mais altamente desenvolvidas e as primitivas. O processo de
diferenciação era visto como uma consequência de divisão do trabalho e
tentou-se explicá-lo ao modo das ciências naturais. Mas não entendo o termo
“diferenciação cultural” em seu uso das ciências pseudonaturais.
O que tenho em mente, pelo contrário, é uma diferenciação nas
estruturas de individualidade típicas dos relacionamentos sociais. No aspecto
cultural-histórico dessas relações, esse processo de diferenciação é expresso
na ascensão de uma rica diversidade de esferas culturais típicas, cada uma das
quais é caracterizada por uma função guia de uma modalidade normativa
distinta pertencente a um aspecto pós-histórico da experiência. Esferas
culturais diferenciadas, como as da ciência, belas-artes, comércio e indústria,
política, religião e assim por diante, podem ser realizadas apenas com base no
processo de abertura da história. Mas isso não significa que suas estruturas de
individualidade típicas têm em si um caráter histórico variável.
Uma vez que essas estruturas determinam a natureza interna das
relações diferenciadas da sociedade e suas esferas culturais típicas, eles
necessariamente pertencem à ordem da criação em sua diversidade temporal,
que é também a ordem de nosso horizonte experiencial. São apenas as formas
sociais em que se concretizam, que variam no processo do desenvolvimento
histórico.
A linha irracionalista no historicismo partiu da posição da
individualidade absoluta de qualquer comunidade sociocultural. Mas essa
linha negligenciou as estruturas de individualidade típicas que determinam a
natureza interna total dessas comunidades e que, enquanto tais, não podem ter
um caráter histórico variável. Entretanto, é verdade que o processo de
diferenciação e integração culturais crescentes é ao mesmo tempo um
processo de crescente individualização da cultura humana, na medida em que
é somente numa cultura que se abriu e se diferenciou, que a individualidade
assume um significado realmente histórico. É verdade que, numa esfera
cultura fechada primitiva, a individualidade não está ausente. Mas em
consequência da rígida dominância da tradição, essa individualidade retém
certa uniformidade tradicional, de modo que, de geração a geração, essas
culturas fechadas em geral demonstram os mesmos traços individuais. É por
isso que a historiografia, em seu sentido verdadeiro, não se interessa por
essas individualidades culturais. Porém, assim que o processo de
diferenciação e integração tem início, a tarefa histórica de trazer à fruição
disposições e talentos culturais individuais torna-se manifesta. Toda
contribuição individual à abertura do aspecto cultural da sociedade humana é
uma contribuição ao desenvolvimento cultural da humanidade, que tem uma
perspectiva de abrangência mundial. Consequentemente, a individualidade
dos líderes e grupos culturais assume um sentido histórico aprofundado.
É o processo de abertura da cultura humana também que, por si só,
pode dar origem às individualidades nacionais. Uma nação vista como uma
unidade sociocultural deveria ser nitidamente distinguida da unidade étnica
primitiva denominada comunidade tribal ou popular.
Uma totalidade cultural nacional verdadeira não é um produto natural
do sangue e solo, mas o resultado de um processo de diferenciação e
integração na formação cultural da sociedade humana. Numa comunidade
nacional, todas as diferenças étnicas entre os vários grupos de uma população
são integradas numa nova totalidade individual que não tem os traços
totalitários indiferenciados de uma unidade social fechada e primitiva.
Portanto, era uma prova inconfundível do caráter reacionário do mito
nazista do sangue e solo o fato de que ele tentou solapar a consciência
nacional dos povos germânicos revivendo a ideia étnica primitiva de
Volkstum. De semelhante modo, é uma prova inegável da tendência
retrógrada de todos os sistemas políticos totalitários modernos o fato de
tentarem aniquilar o processo de diferenciação e individualização culturais
por meio de uma uniformização (Gleichschaltung) de todas as esferas
culturais, pela qual se implica uma negação fundamental do valor da
personalidade individual no processo de abertura da história.
O movimento político contrarrevolucionário na primeira metade do
século XIX, que se empenhou pela restauração do regime feudal em seu
sentido mais amplo, com sua concepção patrimonial indiferenciada de
autoridade política, tinha também, sem dúvida, um caráter reacionário.
Desejava restaurar um sistema político que era incompatível com a ideia do
Estado e sua implícita integração da nação. Por essa razão, estava fadado a
desaparecer tão logo o Estado se concretizasse na linha progressiva do
desenvolvimento político-histórico. No processo de abertura da história,
deve-se superar o apego a quaisquer resquícios indiferenciados da formação
de poder política, já que esse apego contradiz a norma de diferenciação e
integração político-históricas. Essa norma, todavia, não tem somente um
caráter histórico modal, já que está orientada ao princípio estrutural típico do
Estado como uma res publica, que, em seu aspecto histórico, implica uma
organização monopolista do poder da espada, útil ao serviço público do corpo
político.
Visto que o processo de abertura do aspecto cultural-histórico se dá na
direção antecipatória ou progressiva da ordem temporal, deve ser possível
indicar os momentos antecipatórios nos quais se revela a coerência dinâmica
do sentido entre esse aspecto e os modos normativos subsequentemente
ordenados. De início, o processo de abertura progressiva da história é
caracterizado pela manifestação de uma antecipação linguística. O aspecto
linguístico de nosso horizonte experiencial é o da comunicação pelo medium
de sinais que têm um sentido simbólico. No processo de abertura do
desenvolvimento histórico, os fatos adquirem uma significância história que
dá origem a um significado simbólico de seu sentido histórico.
Hegel e von Ranke afirmavam que a história em seu verdadeiro sentido
não se iniciou antes da necessidade de preservar a memória dos eventos
históricos por meio de crônicas, registros e outros materiais. A chamada
Kulturkreislehre na etnologia, que busca traçar a continuidade genética na
vida cultura da humanidade desde as (assim nomeadas) culturas primevas da
pré-histórica até às civilizações no nível mais alto de desenvolvimento, negou
que a presença de memoriais pudesse ter qualquer importância essencial para
a delimitação do campo histórica de pesquisa. Como Frobenius afirmou: a
história é ação, e, em comparação com essa realidade, seu registro simbólico
é prescindível!
A verdade é, contudo, que essa depreciação do surgimento dos
memoriais históricos no que toca à sua relevância para o desenvolvimento
histórico da humanidade testifica essa falta de percepção para com a estrutura
modal do processo de abertura da cultura. Pois o surgimento desses
memoriais é um critério inquestionável da abertura história de uma
civilização. A ausência, nas sociedades primitivas, de memoriais históricos
(ou ao menos de formas orais de informações históricas confiáveis) e a
presença apenas de representações mitológicas da gênese e desenvolvimento
de sua cultura não são elementos prescindíveis. O curso relativamente
uniforme de seu processo de desenvolvimento ainda não ofereceu a
Mnemosyne [memória] qualquer material memorável, historicamente
significativo, digno de registro. Uma consciência histórica ainda fechada
apega-se às analogias bióticas no desenvolvimento cultural e se inclina para
uma interpretação mitológica de seu curso sob a influência de uma religião
primitiva da natureza.
A manifestação da antecipação simbólica ou linguística no processo de
abertura do aspecto histórico da experiência está indissociavelmente ligada a
uma manifestação do intercurso cultural entre diferentes nações que são
pegas no fluxo da história mundial. O intercurso cultural, nessa acepção
internacional, é um momento antecipatório na história que aponta para frente,
para a abertura do aspecto modal da interação social com suas normas
específicas de bons modos, cortesia e afins. Uma manifestação desse
intercurso cultural significa que uma cultura nacional está aberta ao poder
formativo da atividade cultural estrangeira, de modo que há um intercâmbio
contínuo da vida cultural entre as nações.
Uma vez que, sem esse intercâmbio cultural livre, o processo de
abertura histórico não pode avançar, qualquer tentativa, por parte de um
regime totalitário, de impedir ou excluir esse livre contato cultural deve ser
considerada reacionária. O critério normativo que se encontra no fundamento
desse juízo não tem um caráter simplesmente subjetivo, já que se prova
enraizado na estrutura modal do processo de abertura histórica. Isso pode ser
verificado ao se observar as consequências do isolamento cultural para uma
nação altamente desenvolvida. É por essa razão que essas medidas
reacionárias de um regime totalitário não podem ser sustentadas a longo
prazo.
Visto que o processo da diferenciação cultural conduz a uma crescente
diversidade típica das esferas culturais, há um constante perigo de que uma
dessas esferas possa tentar expandir-se seu poder formativo excessivamente,
à custa das outras. De fato, desde a dissolução da cultura eclesiasticamente
unificada que prevaleceu na civilização ocidental medieval, tem havido uma
batalha corrente entre as esferas culturais emancipadas para adquirir
supremacia uma sobre a outra.
Portanto, no processo de abertura da história, a preservação de um
relacionamento harmonioso entre as esferas diferenciadas da cultura torna-se
de vital interesse para toda a sociedade humana. Mas essa harmonia cultural
só pode ser garantida se o processo de desenvolvimento histórico cumpre
com o princípio normativo da economia cultural que proíbe qualquer
expansão excessiva do poder formativo de uma esfera particular à custa das
demais. Aqui, as antecipações estética e econômica no aspecto histórico
revelam-se em sua coerência interna inquebrantável. Ambos os princípios, o
da economia cultural e o da harmonia cultural, apelam à natureza interna das
esferas culturais diferenciadas conforme determinadas pelas estruturas de
individualidade típicas dos círculos da sociedade a que pertencem. É minha
convicção de que essas estruturas de individualidade estão baseadas na ordem
da criação, pela qual os devidos limites são atribuídos a toda entidade
temporal de acordo com sua natureza.
Tão logo esses limites são ignorados no processo de abertura da cultura
humana por meio de uma expansão excessiva do poder formativo de uma
esfera cultural particular, tensões e conflitos desastrosos eclodem na
sociedade humana. Isso pode evocar as reações convulsivas da parte daquelas
esferas culturais que são ameaçadas, ou pode mesmo levar à ruína completa
de uma civilização, a menos que tendências opostas no processo de
desenvolvimento se manifestem antes que seja demasiado tarde e adquira
poder cultural suficiente para contrabalancear a expansão excessiva do poder
de um fator cultural particular.
É nessas consequências da violação dos princípios da economia e
harmonia culturais no processo de abertura histórica que uma antecipação
jurídica na história vem à luz. Nesse ponto, somos confrontados com a
exclamação hegeliana: “die Weltgeschichte ist das Weltgericht” (a história do
mundo é o juízo do mundo). Não aceito esse dito no sentido a que Hegel se
referia; mas a violação dos princípios normativos aos quais o processo de
abertura do aspecto cultural da história está sujeito é vingada no curso da
história do mundo — o que se pode de fato verificar quando se observa as
consequências dessa violação.
Quando finalmente se levanta a questão: “qual é a causa mais profunda
da desarmonia no processo de abertura da história?”, ficamos face a face com
o problema concernente ao relacionamento entre fé e cultura e com os
motivos básicos religiosos que operam na esfera central da vida humana. A
desarmonia em questão pertence — lamentavelmente! — à linha progressiva
do desenvolvimento cultural, já que somente pode revelar-se no processo de
abertura histórica da diferenciação cultural. Numa cultura fechada primitiva,
os conflitos e tensões que são em particular vistos na civilização ocidental
moderna não podem ocorrer. Como consequência do fato de que qualquer
expansão do poder formativo da humanidade dá origem a uma manifestação
crescente do pecado humano, o processo de abertura histórico é marcado por
lágrimas e sangue, e não conduz a um paraíso terrestre.
Que sentido há, então, em todo esse imenso esforço, conflito e miséria
a que as pessoas se submetem a fim de cumprir sua tarefa cultural no mundo?
O historicismo radical, conforme a forma que se expressa, em todas suas
consequências, em O Declínio do Ocidente, de Spengler, privou a história de
qualquer esperança para o futuro e a despojou de sentido. Esse é o resultado
da absolutização do aspecto histórico da experiência. Pois vimos que este
último [o aspecto histórico] só pode revelar seu significado numa coerência
inquebrantável com todos os demais aspectos de nosso horizonte temporal da
experiência. E esse próprio horizonte aponta para o ego humano como seu
lócus central de referência, tanto em sua comunhão espiritual com todos os
outros egos humanos quanto em seu relacionamento central com o Autor
Divino de tudo que foi criado.
Em última análise, o problema do sentido da história revolve-se em
torno da questão central de quem são os próprios seres humanos e qual é sua
origem e sua destinação. Fora do motivo básico bíblico da criação, queda e
redenção por meio de Jesus Cristo, não se encontrará, em minha opinião,
nenhuma resposta verdadeira para essa questão. Os conflitos e tensões
dialéticas que ocorrem no processo de abertura da cultura humana resultam
da absolutização do que é relativo. E toda absolutização tem sua origem do
espírito de apostasia, do espírito da civitas terrena, conforme denominava
Agostinho.
Não haveria esperança futura para a humanidade e para todo o processo
do desenvolvimento cultural humano, se Jesus Cristo não tivesse se tornado o
centro da história do mundo. Esse centro não está confinado ao Ocidente nem
a qualquer outra civilização, mas levará a nova humanidade como um todo a
seu verdadeiro destino, visto que ele conquistou o mundo pelo amor revelado
em seu autossacrifício.
4. OS PERIGOS DO DESARMAMENTO
INTELECTUAL DO CRISTIANISMO NA
CIÊNCIA[23]

“CIÊNCIA OBJETIVA” E “FÉ SUBJETIVA”

A ciência[24] é um campo para o qual, numa primeira análise, a fé cristã


aparentemente tem menos relevância que qualquer outro campo. Isso é
verdade se se restringe o conceito de ciência à investigação sistemática e
metódica daquilo que é dado objetivamente dentro dos limites da experiência
humana universalmente válida. As pessoas tentarão promover o status de
muitas atividades ao reivindicar para estas a designação de “ciência”, quando
na verdade não estariam legitimadas a fazê-lo, caso seguissem o critério
acima. Alguns exemplos são a metafísica, que se foca no fundamento oculto
do mundo da experiência, e a teologia dogmática. Mas, para essas atividades,
a falsa designação de “ciência” não pode mudar a natureza dos bens
oferecidos. Certamente, a metafísica e a teologia dogmática se engajam em
formas teóricas e científicas de pensamento. Mas, nesse contexto, falta
conteúdo científico a essas formas de pensamento, pois são usadas à parte da
coerência objetiva da experiência. Daí, perderam-se nos espaços inabitados e
vazios da especulação.
Isso não significa que a ciência é incapaz de satisfazer as mais
profundas necessidades do coração humano. Pelo contrário! Aqueles que
muito ciosamente tentam delimitar as fronteiras da ciência em relação à fé e
que rejeitam qualquer intrusão da fé na pesquisa científica “autônoma” são
usualmente os últimos a negar o valor inato da fé. Mas, eles afirmam, a fé
não se foca na realidade geral da experiência. Assim, os conteúdos da fé não
podem ser verificados pelos critérios científicos universalmente válidos. Eles
devem permanecer uma matéria de convicção pessoal, que é
reconhecidamente digno de respeito, mas completamente subjetivo.
De acordo com essa perspectiva, não poderia haver pior compromisso
da fé cristã do que torná-la juiz sobre a ciência, ou de algum modo fazê-la o
fundamento da investigação científica na reivindicação para uma ciência
cristã. Assim que as fronteiras entre elas são apagadas, a fé e a ciência devem
tornar-se adversários irreconciliáveis. Apenas a completa separação permiti-
las-á coexistir em paz e mesmo em harmonia.
Após Immanuel Kant desenvolver os princípios de sua filosofia
“crítica”, essa linha de pensamento tornou-se dominante na ciência, que
parecia totalmente fútil tentar adulterá-la. Também nos círculos cristãos
protestantes, a resistência a essa chamada visão crítica da ciência se
enfraqueceu visivelmente. Aqui, apenas a teologia dogmática continuou
sendo um problema, porque, de modo nenhum, permitiu-se ser forçada a uma
estrutura de referência do conceito dominante de ciência. Afinal de contas,
por meio de seu método crítico de pensamento, Kant aparentemente a [a
teologia dogmática] havia desmantelado completamente e negou-lhe qualquer
direito de existir como ciência.
Os humanistas ainda tentaram salvar o caráter científico da teologia ao
interpretar a “experiência religiosa” como uma área singular dentro dos
conteúdos da consciência. Mas, nas fronteiras da visão dominante da ciência,
isso somente era possível atribuindo um caráter puramente psicológico a essa
“experiência religiosa”. Em outras palavras, a fé teve de ser destronada e
reduzida a um complexo verificável de sentimentos psíquicos acessível à
descrição científica exata. Contudo, isso significava que a fé tinha de ser
completamente deslocada de sua orientação a uma Verdade divina
supratemporal.
Essa análise “empírica” da vida da fé teve, pois, de comprar suas
credenciais científicas ao custo de toda ligação com o dogma cristão. Teve,
portanto, de consentir em ser reduzida a uma “psicologia da religião”. Como
tal, poderia enquadrar-se junto a uma etnologia das noções religiosas dos
povos primitivos e a uma investigação histórica crítica das ideias religiosas
das nações “aculturadas” — em particular, nações cristãs.
Em linhas kantianas, poder-se-ia também desenvolver uma teologia
“crítica”, que desenvolveria as “formas universalmente válidas” da
experiência religiosa. Por outro lado, a teologia poderia ser diluída numa
filosofia moral crítica. É desnecessário dizer que essa concepção de ciência
teológica jamais poderia ser aceita pelos verdadeiros cristãos confessos.
Aqueles que foram influenciados pela visão dominante da separação entre fé
e ciência continuaram a preservar uma posição especial para a teologia que
era difícil de se defender. O resultado inevitável foi um conflito incansável
entre as chamadas ciências seculares e a teologia sagrada (sancta theologia).
Ao fim, esse conflito poderia levar somente ao afastamento entre os cristãos
que atuam nas ciências especiais e os cristãos que atuam na teologia
dogmática.

A SEPARAÇÃO ENTRE AS CIÊNCIAS ESPECIAIS E A FILOSOFIA

Nos círculos cristãos, surgiu um segundo fator que reforçou


intensamente a influência avassaladora da visão predominante da ciência, a
saber, a aceitação geralmente acrítica da separação entre as ciências especiais
e a filosofia que se desenvolveu no pensamento humanista.
Essencialmente, a filosofia é a reflexão teórica sobre a origem, a
unidade central, e a relação e coerência mútuas de todos os aspectos da
realidade temporal que são selecionados pelas ciências especiais como
campos separados de estudo. [A filosofia] inclui também o exame teórico das
estruturas de individualidade diversas dentro das quais a realidade temporal
se apresenta à experiência humana.[25]

UMA FÉ CEGA NA SOBERANIA DA RAZÃO HUMANA

Em sua atitude científica em relação à realidade, a filosofia jamais pode


ser confundida com a visão de mundo pré-científica de uma pessoa. No
entanto, entendida como no sentido acima exposto, a filosofia está
inseparavelmente ligada a essa visão de mundo, tanto em seu ponto de partida
quanto em sua orientação. Seu foco na Origem e na unidade central mais
profunda da realidade criada deve levar à reflexão teórica sobre os princípios
e pressupostos da própria atividade científica.
Nesse processo, a filosofia deve lidar com a questão de se a ciência
como tal é intrinsecamente autossuficiente, ou se seus pressupostos essenciais
são suprateóricos em sua natureza.
Não é difícil ver que a filosofia, ao sustentar, de modo dogmático, que
o pensamento teórico é absolutamente autossuficiente em face da fé,
aprisiona-se numa fé cega na soberania da razão humana. Em outras palavras,
nesse caso, recusa-se, de maneira acrítica e não científica, a dar uma
justificativa teórica de seus pressupostos mais básicos.
Ora, essa atitude verdadeiramente acrítica e dogmática do pensamento
tentou de fato parecer crítica ao buscar demonstrar que todo ataque ao
postulado da autossuficiência intrínseca do pensamento teórico solapa os
fundamentos da ciência. Argumentou-se que a filosofia, se de fato deseja
manter-se verdadeira científica, tem de restringir-se ao exame crítico das
condições universalmente válidas do conhecimento humano. Como ciência,
[a filosofia] deveria buscar a verdade teórica; deve trazer à luz o caráter
absoluto e a autossuficiência dessa verdade teórica ao mostrar que toda
tentativa de relativização da verdade teórica ao se postular sua dependência
sobre uma matéria de fé extra-científica necessariamente leva a um
relativismo cético que internamente refuta a si mesmo.
A verdade teórica, como se argumentava, possui sua própria garantia
interna para sua autossuficiência, sua independência em relação a outros
valores na vida. Não se trata de uma questão de fé (e.g. segundo o filósofo
neokantiano Heinrich Rickert), mas sim algo que pode ser demonstrando de
um modo rigorosamente lógico.
Tão logo um indivíduo expresse o juízo de que “a verdade teórica não é
universalmente válida”, reivindica a validade universal, isto é, a verdade
teórica, para o próprio juízo. Em outras palavras, esse indivíduo contradiz
imediatamente o sentido de sua opinião e implicitamente reconhece a
validade universal da verdade.
Esse ponto de vista, porém, não percebia que toda essa linha de
raciocínio erra por completo o alvo. Pelo contrário, faz com que a verdade se
torne relativa ao pensamento científico puramente imaginado. Com efeito, em
nome da Verdade absoluta, fez-se a reivindicação em prol de uma
autossuficiência intrinsecamente impossível do pensamento teórico. No
entanto, essa reivindicação também impressionou filósofos cristãos.
Dessa forma, assim que se declarou o pensamento filosófico como
autossuficiente dentro de seu próprio domínio, a linha fundamental de
demarcação entre a filosofia e as ciências especiais não mais pareceram
apresentar quaisquer dificuldades.
A filosofia não deveria interferir na atividade das ciências especiais na
investigação da realidade empírica. Pelo contrário, sendo uma teoria da
ciência, deve restringir-se a uma investigação dos pressupostos imanentes da
atividade científica enquanto tal, isto é, das formas universalmente válidas de
conhecimento que, a princípio, possibilitam a ciência. Dito de outro modo,
deveria restringir-se à epistemologia.
Toda essa linha de pensamento estava, mais uma vez, dogmaticamente
baseada na autossuficiência das ciências especiais, cada uma dentro de seu
próprio campo, tal como efetivamente se desenvolveram sob a influência do
humanismo. As pessoas falam da realidade factual da ciência (“Faktum der
Wissenschaft”), que a filosofia teria simplesmente de aceitar como tal, já que
ela não teria qualquer direito a uma voz no processo interno da pesquisa
científica.
Nas próprias ciências especiais, uma forte tendência positivista obteve a
primazia. Como uma reação à filosofia especulativa, que buscava impor suas
deduções apriorísticas sobre a realidade, os cientistas acreditavam que
poderiam emancipar-se completamente da filosofia e restringir-se a um
exame imparcial dos fenômenos factuais sem justificar seu sentido.
Baseado nessa visão da filosofia e da ciência, é de fato impossível falar
significativamente sobre qualquer ciência cristã. Pois as ciências especiais só
têm de apegar-se aos “fatos objetivos”, que deveriam ser examinados de
acordo com os métodos universalmente válidos e completamente objetivos e
científicos. Sobre essa base, a filosofia não é nada senão autorreflexão
teórica, crítica, do pensamento científico em sua atividade puramente teórica.
Mesmo quando as pessoas entendiam novamente que a tarefa da filosofia era
universal e queriam expandi-la para uma cosmovisão, eles mantiveram a
atitude puramente teórica que excluía todos os critérios de fé como a conditio
sine qua non de seu caráter científico. O que mais a fé cristã poderia ter a ver
com a ciência?
KUYPER E A IDEIA DE UMA DUPLA CIÊNCIA

Dada a supremacia desse conceito de ciência, é compreensível que


pouquíssimas pessoas, mesmo nos círculos cristãos, levaram a sério a antítese
postulada pelo Dr. Abraham Kuyper entre uma ciência que parte do
renascimento [em Cristo] e outra que é fruto da raiz apóstata da criação.
A fundação da Universidade Livre de Amsterdã, como um
desenvolvimento dessa ideia da antítese, foi recebida com um escárnio mal
velado. No melhor dos casos, foi vista como uma ligação superficial da
pesquisa científica com a teologia dogmática, que em si mesma não tem
relação alguma com a ciência real. Nos últimos anos, mesmo alguns
acadêmicos que seguiam linhas semelhantes e que eram próximos a Kuyper
passaram a duvidar da possibilidade de uma ciência genuinamente cristã.
Para muitos deles, os argumentos para a necessidade de uma ciência
estritamente factual, supostamente não atada a quaisquer pressupostos
dogmáticos da fé, mostrou-se também equivocada. Uma vez que imaginavam
que a defesa de uma ciência genuinamente cristã já estava perdida, eles
exigiam um novo entendimento da relação entre a fé cristã e a ciência. Eles
buscavam uma base teológica para um ponto de vista dualista que poderia,
em última análise, justificar, mesmo para a consciência cristã, a neutralidade
factual da ciência frente à fé cristã.
Nesse espírito, fez-se um apelo à doutrina da graça comum. Essa
doutrina passou então a ser interpretada como se não existisse uma linha
divisória natural entre fé e incredulidade no “domínio da graça comum”.
Antes, essa linha é dada apenas no “domínio da graça especial”. Afinal de
contas, arrazoavam, o reino de Cristo não é deste mundo, mas o
conhecimento natural é a propriedade comum de crentes e descrentes. Mesmo
o cristão pode servir a Deus nessa área sem render-se ao ideal impossível de
uma ciência cristã.
A revelação da Palavra divina (argumentavam) não se dirige ao
pensamento científico, mas à fé. Jamais pode abarcar algo que a razão
humana possa rastrear por meio da pesquisa científica estrita. A ciência,
pertencendo ao domínio da graça comum, é factualmente independente do
reino de Cristo. Dentro de sua própria esfera, contribui para a glória de Deus,
que, afinal, concedeu a ciência à humanidade como uma dádiva da graça
comum. A fé cristã afeta os cientistas cristãos somente conforme aceitam sua
atividade científica factualmente neutra como uma tarefa para a glória de
Deus.
Creio que essa linha de pensamento já havia afetado inteiramente
muitos cientistas cristãos antes que a teologia dialética, sob a liderança de
Karl Barth e Emil Brunner, lançasse seu ataque feroz e sistemático contra a
ideia de uma ciência cristã. Esse ataque era ainda mais sério porque, dessa
vez, veio não do campo humanista, mas sim de um arraial que, ao mesmo
tempo, buscava, com fervor profético, chamar a teologia de volta à Palavra de
Deus.
Visto que já falei de um ataque sistemático à ideia de um estudo
acadêmico cristão, pretendo agora definir o sentido dessas palavras.

A ABORDAGEM DE EMIL BRUNNER


Aparentemente, Emil Brunner, cujo ponto de vista, mais que qualquer
outro, pretendo discutir aqui, não ensina uma divisão, em qualquer sentido,
entre ciência e fé cristã. Em face da visão humanista prevalecente, ele
defende o caráter científico da teologia e ética cristãs, que estão sujeitas à
Palavra de Deus. Ele enfaticamente se opõe à noção humanista de uma razão
autocontida e absolutamente autossuficiente. Pelo contrário, ele sustenta que
a razão deve estar imbuída da fé. Nesse sentido, o cristão verá o mundo da
razão (Vernunftwelt) sob uma nova luz pela Palavra de Deus.[26]
Contudo, Brunner diz conscientemente que “uma cientista não deveria
conduzir sua pesquisa como um cristão, mas como um cientista”.[27] Com
isso, ele busca enfatizar que a fé cristã não pode ter uma relevância
constitutiva, materialmente construtiva, para a pesquisa científica, na medida
em que a ciência se concentra na realidade temporal governada por suas
próprias leis.
Assim, no curso imanente dessa pesquisa, a ciência cristã é irrelevante.
Nessa linha de pensamento, também não há lugar para a filosofia cristã que
descrevi anteriormente. Na filosofia, de igual modo, a fé do pensador cristão
permanece sendo um simples princípio regulador e crítico, que intenta
protegê-lo [o pensador cristão] de “digressões racionalistas e violações
especulativas dos limites”.[28] No entanto, em suas operações internas, o
pensamento filosófico continua não sendo afetado por esse princípio. A
noção de que a filosofia, a partir de um ponto de vista cristão, deveria
desenvolver seu próprio entendimento quanto à estrutura da realidade, à
estrutura do conhecimento humano e à formação de conceitos é, em
princípio, excluída pela visão integral da relação entre fé cristã e existência
temporal proposta por Brunner. Somente onde a raiz real — o verdadeiro
centro da existência humana, da personalidade humana — está em jogo, é
que a fé cristã tem uma contribuição positiva para a ciência. Pois esse centro
existe apenas num relacionamento pessoal direto com Deus, tal como foi
conspurcado em sua essência pela queda no pecado, e tal como foi
redirecionado a Deus por meio de Cristo. A ciência não pode conduzir a um
autoconhecimento genuíno. Com efeito, conforme o pensamento natural tente
alcançar seu conhecimento por si próprio, ele cai em especulações falsas que
são desmascaradas e desvendadas pela Palavra de Deus conforme aprendida
por meio da fé.
Não é difícil perceber que, para o cristão, uma reconciliação interna
entre fé e ciência a partir desse ponto de vista está fora de questão. É claro,
rejeita-se a separação humanista, e penetra-se no conceito humanista de
ciência na proporção em que se abre um espaço para a teologia e ética cristãs.
Contudo, dá-se à arbitrariedade objetiva da ciência, orientada para a realidade
temporal, uma validade enfaticamente maior que a fé cristã. E isso é
representado de tal modo, que qualquer outra concepção significa
essencialmente um ataque ao espírito da Reforma, aliás, um ataque à própria
fé.
Em discussões anteriores, já demonstrei que, subjacente a esse ponto de
vista dualista, há um esquema essencialmente anticristão de pensamento. Já
nos seus primórdios, o pensamento cristão foi penetrado por uma tensão entre
natureza e graça, ofuscando a antítese bíblica entre a queda e a redenção, o
reino das trevas e o reino de Cristo. Originalmente, o esquema natureza-graça
serviu para realizar uma síntese, um compromisso, entre a doutrina da fé
cristã e o pensamento pagão.
A natureza passou a ser identificada com a estrutura temporal da
criação de Deus conforme concebida à luz da filosofia grega, e tentou-se
adaptar esse conceito à Palavra-revelação divina. Inicialmente, sob a
influência de Agostinho, a razão natural foi considerada como incapaz de
chegar ao verdadeiro conhecimento do cosmos sem a luz da divina Palavra-
revelação.

ARISTÓTELES E TOMÁS DE AQUINO: NATUREZA E GRAÇA

Muito tempo depois, Tomás de Aquino (1225-1274), o grão duque da


escolástica medieval, corajosamente ousou declarar a razão humana como
autônoma e autossuficiente em seu próprio domínio, isto é, o do
conhecimento “natural”. Em outras palavras, ele emancipou a razão humana
da Palavra-revelação divina em Jesus Cristo.
Contudo, Tomás não ensinou a autossuficiência absoluta da razão
natural. Pelo contrário, assumiu a posição tipicamente católica romana de que
a natureza é um estágio inferior que precede a graça, de maneira que tinha de
ser trazida, pela graça, a um nível de perfeição subsequente e superior e,
portanto, de fato cristão. Essa posição implicava a ideia igualmente típica do
catolicismo romano de que a queda não corrompeu radicalmente a natureza.
O pecado simplesmente fez com que ela perdesse o dom “sobrenatural” da
graça, que indubitavelmente “feriu” a “natureza” da criação. Desde então, a
doutrina de Tomás da autonomia da razão natural dentro de seu próprio
domínio jamais desapareceu do pensamento cristão.
Tornou-se logo evidente, contudo, que o compromisso, presente no
sistema tomista, entre a doutrina cristã da fé e a filosofia pagã não poderia
implicar uma reconciliação interna entre ambas. Antes, introduzia uma
ruptura interna extremamente perigosa no pensamento cristão.
A concepção filosófica da natureza, interpretada como um trampolim
para a graça cristã conforme acepção de Tomás, era essencialmente a do
filósofo grego Aristóteles. Este, deve-se notar, partiu de uma absolutização
— essencialmente, uma deificação — da razão. De acordo com Aristóteles, o
cosmos temporal é racional em sua origem. O próprio Deus é a Razão
absoluta, pura e autocontida.
A concepção aristotélica da natureza humana também está inteiramente
de acordo com essa ideia da Origem do cosmos temporal. Em sua visão, a
natureza humana tem sua raiz e centro supratemporal na parte racional da
alma. Esta última é tida em si como imortal, como a substância ou forma
essenciais de toda a existência humana. Sua conexão às funções sensoriais e
corporais não é essencial à sua estrutura. Essa visão alçou as funções
racionais do ser humano para fora de sua coerência cósmica com todas as
demais funções de sua existência temporal. De modo fundamentalmente
falso, proclamaram que essas funções racionais eram o centro supratemporal
da existência humana.
Ora, essa visão estava em conflito irreconciliável com a divina Palavra-
revelação nas Sagradas Escrituras. Pois estas nos ensinam que, subjacente a
todas as funções temporais da existência humana, incluindo as funções
racionais, está o coração, isto é, o eu real, a raiz religiosa da qual todas as
funções temporais brotam: “guarda o coração, porque dele [e não da razão]
procedem as fontes da vida” [Provérbios 4.23]. Como, pois, essa concepção
aristotélica poderia ser aceita como um pedestal natural para a revelação
superior da revelação da Palavra de Deus concernente ao sentido religioso da
existência humana?

A TENTATIVA DE SÍNTESE ENTRE O PAGANISMO GREGO E


CRISTIANISMO BÍBLICO

Com efeito, a síntese tomista foi obtida ao custo de uma desnaturação


intrínseca da ideia bíblica, que não foi mais compreendida. O “coração”, o
centro religioso da existência humana, passou então a ser interpretado ou no
sentido da função temporal do sentimento, ou ainda como intelecto, como a
razão. As Sagradas Escrituras foram pois interpretadas segundo essa visão!
Nos pronunciamentos de Paulo em Romanos 2.14-15, as palavras: “a norma
da lei gravada no seu coração” foram interpretadas como se significassem:
“gravada em sua razão natural”.[29] Desse modo, alguns pais da igreja já
preferiam justificar uma síntese entre a doutrina cristã e a filosofia moral
pagã. A “alma” humana foi essencialmente concebida à maneira aristotélica
como uma “substância imortal”, embora — diferentemente de Aristóteles —
a função sensorial tenha sido também relegada à parte imortal de uma pessoa.
Alguns falavam do “primado do intelecto”, a que o movimento voluntarista
na escolástica justapunha “o primado da vontade”.
Juntamente à visão de Aristóteles da origem e unidade central da
natureza humana, eles também aceitavam toda sua visão pagã da estrutura da
realidade temporal, a saber, uma hierarquia das formas inferiores ou
superiores do ser. Nessa hierarquia, cada forma inferior servia como um
meio, como material, para uma forma superior de ser, e cada coisa continha
sua própria lei de desenvolvimento dentro de sua própria forma essencial.
A concepção aristotélica da lei moral natural também fora aceita. De
acordo com essa visão, o bem não é bom porque Deus o ordena ser; pelo
contrário, Deus tem de ordenar o bem porque isto está baseado na razão.
Assim, a ideia bíblica da soberania de Deus como Criador foi totalmente
neutralizada, porque, em última análise, Deus estava atado a padrões
criaturais da razão. Essa concepção foi chamada realista, pois, juntamente ao
idealismo especulativo da filosofia grega, o “bem” foi considerado uma ideia
racional e creditado como uma realidade objetiva.
Assim, com a Metafísica de Aristóteles, aceitou-se também sua física,
sua psicologia, lógica, ética e teoria política. Também adotaram, da filosofia
grega, a tese de que o Estado é a comunidade natural consumada, da qual
todos os demais relacionamentos sociais naturais podem ser somente partes
dependentes. Dito de outro modo, ao seguir a visão aristotélica da ordem
cósmica temporal — segundo a qual todas as coisas se combinam numa
ordem de matéria e forma, meios e fins, inferior e superior —, a sociedade
humana é vista como o vínculo supremo no qual a família, o clã, a
comunidade da vila, negócios, etc., são todos apenas, e de igual modo,
componentes inferiores, subservientes.
A noção do Estado como o vínculo abrangente da sociedade natural
também estava enraizada no ponto de partida pagão. As pessoas não viram
que todas as formas temporais da sociedade, de acordo com as Sagradas
Escrituras, estão enraizadas na comunidade religiosa, supratemporal, da raça
humana. Pelo contrário, de maneira apóstata, buscaram, dentro da própria
sociedade temporal, por um vínculo abrangente, e então declararam o Estado
como tal.
Assim como as pessoas aceitaram a visão de Aristóteles do reino da
natureza, eles também buscavam, dentro do reino sobrenatural da graça, um
vínculo temporal que teria de abarcar a totalidade da sociedade cristã em
todas suas formas. Eles encontraram isso na instituição temporal da igreja.
Desse modo, esta última recebeu um lugar acima do Estado. Essencialmente,
foi identificada com o corpo genuinamente supratemporal de Cristo, a “igreja
invisível”, como a comunidade central religiosa da humanidade renascida em
Jesus Cristo. Dessa maneira, a noção bíblica do reino supratemporal,
totalitarista, de Deus, a Civitas Dei, foi substituída pelo motivo não bíblico de
que a instituição temporal da igreja é o vínculo abrangente de tudo que é
cristão. E, portanto, a igreja foi também inteiramente entendida por meio da
analogia com o Estado.
Tudo isso foi o resultado da radical concepção equivocada de que a
religião cristã poderia aliar-se à filosofia apóstata. De acordo com Tomás de
Aquino, a luz natural da razão não podia entrar em conflito com a luz
sobrenatural da Revelação divina. Afinal de contas, a natureza era
supostamente o fundamento, o pedestal para a graça. Tomás apenas ignorou
que, de acordo com as Escrituras, a razão natural procede do coração, a raiz
religiosa da existência de uma pessoa, e que portanto a queda radical no
pecado, a apostasia do coração, também obscureceu a razão e afastou-a da
Verdade.
A proclamação tomista da autossuficiência da razão natural dentro de
seu próprio domínio significou um grande passo, embora certamente não
intencional, rumo à desmobilização intelectual do cristianismo no reino da
ciência. A “Natureza” abriu as comportas para os conceitos invadirem o
pensamento cristão e ocasionou um processo interno de decadência. Esse
processo foi temperado apenas pelo repúdio aos conceitos mais patentemente
antibíblicos da filosofia grega (e.g., a teoria da eternidade da matéria) e pela
subordinação do conhecimento natural ao conhecimento da Revelação. Esse
processo de decadência não poderia ser interrompido enquanto não houvesse
uma ruptura radical com as tentativas de sintetizar a fé cristã e a filosofia
apóstata.
A REAÇÃO DO MEDIEVO TARDIO DE GUILHERME DE
OCKHAM

Na Idade Média tardia, uma reação tardia contra a síntese tomista se


pronunciou. Ao invés de uma acomodação supostamente harmônica entre
filosofia pagã e a Revelação divina, ensinou-se um dualismo radical entre
ambas. Isso, contudo, de modo nenhum significou uma ruptura com a visão
pagã da natureza da criação. Pelo contrário, o movimento nominalista da
escolástica tardia, que se voltou contra a visão tomista sob a liderança do
franciscano inglês Guilherme de Ockham (século XIV), tornou o caráter não
bíblico dessa visão da ciência ainda mais pronunciado. Isso foi feito ao negar-
se qualquer conexão entre razão natural e a luz da Revelação divina.
Os nominalistas de fato perceberam que a doutrina aristotélica-tomista
da origem racional da ordem cósmica temporal estava em conflito radical
com o ensinamento bíblico da soberania absoluta de Deus como Criador. Mas
eles foram culpados de desnaturar essa doutrina ainda mais, ao conceber a
soberania de Deus enquanto Criador como uma arbitrariedade irrestrita e
despótica. Desse modo, a teoria do primado da vontade, que já havia sido
defendida pelo contemporâneo de Tomás, João Duns Escoto, realizou uma
virada inteiramente nominalista e positivista.
A aceitação dessa visão exigia que a ordem cósmica de Deus fosse vista
como um puro produto do capricho. De acordo com Ockham, a lei moral em
particular estava tão pouco fundamentada numa “razão” divina imutável, que
a vontade de Deus poderia igualmente ter sancionado uma lei moral do
egoísmo. Essa visão obviamente rejeitou a concepção aristotélico-tomista de
que todo ente existente é criado com uma forma ou natureza essencial
universal, supra-arbitrária, que é objetivamente fundamentada numa ordem
cósmica racional e que estende esse ente para a lei imanente.
Na visão de Tomás, essas formas de ser eram “ideias imanentes” que
tinham uma existência real, tanto nas coisas individuais quanto na razão
divina. O nominalismo escolástico tardio ensinava, contudo, que ideias ou
conceitos universais (universalia) não tinham qualquer existência real, seja na
mente divina, seja nas coisas temporais. Pelo contrário, são apenas produtos
subjetivos da consciência humana, que servem como atalho para uma
multiplicidade de coisas individuais, que estas, por sua vez, representam
como “signos naturais”. A realidade era vista como totalmente individualista.
O que o nominalismo medieval estava fazendo era simplesmente seguir outra
linha do pensamento na filosofia grega em contraposição à linha platônica-
aristotélica tradicional, a saber, a linha individualista, subjetivista. A visão
nominalista da ciência deu origem, num primeiro momento, a uma tendência
fortemente positivista e anti-metafísica. Considerou-se que a exploração do
fundamento oculto, da origem e substância das coisas, estava para além do
alcance da ciência. A ciência foi limitada à lógica, à matemática e às ciências
“experimentais”. Desse modo, Ockham já havia banido a teologia do domínio
da ciência. Para ele, a fé e a ciência eram mutualmente exclusivas. Elas não
conflitavam pela simples razão de que jamais entravam em contato com a
outra. Ockham não ensinou, como o fez Tomás, o aperfeiçoamento
sobrenatural da razão natural pela fé. Pelo contrário, os domínios da natureza
e da graça foram então separados por um abismo, e a ciência, portanto, foi
totalmente afastada do reino de Cristo.
A separação nominalista entre graça e natureza pavimentou o caminho
para a concepção humanista moderna da absoluta autossuficiência da ciência
em seu próprio domínio. Por meio de seu viés positivista, o nominalismo se
tornou o precursor da moderna atitude positivista nas ciências especiais.
Abriu o caminho para a noção de que a pesquisa científica é essencialmente
independente de toda concepção filosófica do sentido da realidade, de sua
raiz subjacente e de sua Origem, e que a verdade teórica contém sua própria
validade. A separação absoluta entre razão natural e fé cristã levou
gradualmente à secularização que se estendeu mesmo às verdades da fé cristã.
Essa secularização seria posteriormente consumada pelo humanismo.
A visão equivocada, individualista e subjetivista do nominalismo
acerca da realidade temporal difundiu-se para sua teoria da sociedade
humana. Visto que havia rejeitado decisivamente a construção tomista da
natureza como pedestal da graça, o nominalismo naturalmente não poderia
mais colocar a instituição temporal da igreja acima da sociedade natural.
É por isso que o nominalismo travou batalhas em todas as frentes
contra a supremacia da igreja sobre o Estado, ciência, arte, comércio, e assim
por diante. Por si só, isso poderia ter sido acolhido como um reconhecimento
da independência intrínseca comumente compartilhada das relações dentro da
sociedade, não fosse pelo fato de que o nominalismo visse essas relações,
emancipadas da igreja, como também inteiramente independentes do reino de
Deus em Cristo Jesus. A sociedade foi interpretada a partir do indivíduo
supostamente independente. A rica diversidade de estruturas, integradas por
Deus nas formas temporais de sociedade, foi basicamente apagada pela
construção uniforme das relações sociais — construção esta que se deu
usando o consentimento voluntário dos indivíduos que eram, por natureza,
iguais.
Essa linha de pensamento formaria posteriormente a base para as ideias
da Revolução Francesa. Seguindo a noção nominalista de que toda
manifestação da lei e ordem é, em última análise, um produto da
arbitrariedade subjetiva, a autoridade do governo e a autoridade oficial da
igreja foram também interpretados a partir da “vontade geral” (volonté
générale) dos indivíduos que se reuniam na relação social.

A ASCENSÃO DO IDEAL HUMANISTA DE CIÊNCIA

Nos séculos XVI e XVII, a escola nominalista moderna de pensamento,


que surgiu do espírito da Renascença, lançou os fundamentos da ciência
natural matemática. O humanismo logo depois passou a desenvolver um ideal
de ciência que tinha em si um novo programa. A totalidade do cosmos
temporal deveria ser construída teoricamente a partir de elementos simples,
seguindo um método científico natural, matemático e uniforme.
Esse novo ideal de ciência, que se constituía como uma ruptura radical
com a metafísica aristotélica das formas essenciais das coisas, inspirou-se na
cosmovisão então florescente do humanismo. Em sua origem, portanto, não
foi de modo nenhum neutro ou religiosamente imparcial. Essa cosmovisão
humanista foi uma secularização da fé crista, tanto no tocante à soberania de
Deus como Criador quanto com relação à liberdade cristã. Rompeu
radicalmente com a concepção bíblica do coração como o centro
supratemporal ou raiz religiosa da existência humana. Ademais, retornou à
noção pagã de que a personalidade humana encontra seu centro na razão.
Contudo, o humanismo rompeu, igualmente, com a ideia tomista de que essa
“razão” é uma forma essencial objetiva que é criada na natureza humana e
ordenada numa hierarquia orgânica, metafísica, de formas essenciais
inferiores e superiores. Essa visão não partiu de um mundo dado de ideias
objetivas que confrontam a razão humana e que esta pode refletir somente em
seus conceitos. Pelo contrário, de maneira subjetivista e nominalista,
proclamou a soberania criativa do pensamento subjetivo.
A filosofia de Descartes, em que a fé humanista na soberania da razão
encontrou sua primeira expressão sistemática, começou com uma dúvida
metódica universal de toda a realidade dada na experiência ingênua. Apenas
no cogito, isto é, no pensamento subjetivo (matemático), o método de
Descartes finalmente veio encontrar descanso. O filósofo inglês Thomas
Hobbes iniciou suas investigações filosóficos, completamente no mesmo
espírito, com o experimento de pensamento, isto é, ele sistematicamente
fragmentou todo o cosmos dado. Em seguida, num processo criativo teórico,
usando os métodos matemáticos mais simples, ele reconstruiu o cosmos
como uma coerência lógica de pensamento que não mais apresenta falhas
irracionais. Subjacente a essa aplicação do pensamento humanista, se
encontra a fé humanista na soberania da personalidade humanista, que se
recusa a prender-se por qualquer lei que não tenha sido imposta sobre si
mesma em estrita autonomia.
Com efeito, esse ideal humanista de personalidade é também a raiz
religiosa oculta do ideal humanista moderno da ciência, um ideal que se foca
no domínio de toda a realidade temporal com a ajuda do pensamento
científico natural moderno. Desse modo, a liberdade soberana da
personalidade teria de revelar-se na ciência como o mestre rematado de todo
o cosmos.
A confissão cristã da soberania de Deus como Criador desapareceu,
neste ponto, face a uma fé arrogante no poder criativo do pensamento
matemático. De semelhante modo, a ideia cristã da liberdade do crente em
Cristo Jesus foi totalmente deformada na ideia da liberdade soberana e
autodeterminação da personalidade humana.
O novo ideal humanista da ciência é inteiramente incompatível com a
aceitação de uma ordem cósmica divina à qual o pensamento científico
permanece ligado e na qual, em cada aspecto (cada faceta de sentido da
realidade temporal), está assegurada sua própria estrutura e sentido
peculiares, sua própria soberania de esfera dentro de seu próprio círculo de
leis divinas, isto é, dentro de sua própria esfera de lei.
A aceitação dessa ordem cósmica é, afinal de contas, incompatível com
a fé humanista no poder criativo teórico do pensamento matemático,
incompatível com a fé na soberania da razão humana. A implementação séria
desse ideal da ciência exige que o pensamento científico natural reconheça
apenas aqueles limites a seu processo teórico criativo que impôs a si mesmo.
E se o próprio pensamento soberano determina as fronteiras de suas próprias
construções teóricas, então permanece soberana acima dessas fronteiras e
pode ultrapassá-las. À medida que, então, que o pensamento se dispõe a fazer
distinções teóricas entre os vários aspectos da realidade (tais como número,
espaço, movimento, vida orgânica, sentimento), ele presume, todavia, ser
capaz de construir suas relações e coerência mútuas numa estrutura lógica
rigorosa que não prejudique a soberania do pensamento humano.

A TENSÃO INERENTE ENTRE O IDEAL HUMANISTA DE


PERSONALIDADE E O IDEAL DE CIÊNCIA

Em outras palavras, o pensamento matemático criativo usurpa o papel


do legislador cósmico. Ele se propõe a construir a própria ordem cósmica, em
liberdade soberana. Portanto, há uma tendência peculiar de continuidade
[continuiteitstendenz] inerente a esse ideal humanista da ciência. Essa ideal
dirige-se continuamente a um nivelamento teórico das fronteiras cósmicas de
sentido que existem entre as esferas de lei distintas nas quais a ordem
cósmica divina encerrou os variados aspectos da realidade temporal e que são
mantidos numa coerência temporal de sentido por essa própria ordem
cósmica. Contudo, a aplicação consistente desse ideal de ciência deve
necessariamente conduzir diretamente a uma contradição básica, uma
antinomia fundamental, entre ela mesma e sua raiz mais profunda, isto é, o
ideal humanista da personalidade do qual ela brotou.
Afinal de contas, o ideal humanista de ciência não reconhece quaisquer
fronteiras cósmicas para a elaboração do método científico natural. Uma
aplicação consistente desse método teria de tratar, em última análise, a
própria personalidade humana livre como um mecanismo científico natural.
Como resultado, a fé na autonomia absoluta e a liberdade soberana da
personalidade precisaria ser desmascarada como uma ilusão. Assim, o ideal
da ciência logicamente termina abolindo o ideal de personalidade do qual
surgiu.
Nesse ponto, encontramos a pista para a antinomia fundamental entre a
necessidade e liberdade moral. Essa antinomia exerce um grande papel na
ciência moderna, na qual se cristalizou num conflito acirrado entre dois tipos
de lei com os quais o pensamento científico opera, nomeadamente, a lei
natural e a norma. Devo demorar-me um pouco mais nesse ponto, pois ele se
relaciona com o conceito de lei na ciência moderna e com toda visão
humanista da estrutura da realidade. Para isso, tentarei primeiro lançar mais
luz sobre a visão moderna da ciência em seu contraste com a visão
aristotélico-tomista medieval.
O CONCEITO DE LEI

O conceito aristotélico-tomista de lei estava orientado para a doutrina


metafísica das formas substanciais essenciais, que mencionamos
anteriormente. Aristóteles havia extraído sua noção de formas essenciais da
observação de organismos vivos. Plantas e animais desenvolvem-se a partir
de sementes, que já contêm suas formas naturais “embrionariamente”.
Platão, o mestre de Aristóteles, havia ensinado que as formas das coisas
temporais são cópias das ideias supratemporais, que estão contidas num tópos
noêtós,[30] um mundo inteligível, imutável. Ali levam uma existência
autossuficiente, completamente separada das coisas temporais e mutáveis que
foram moldadas nessas ideias. Contudo, essa rígida separação entre o mundo
das ideias e o mundo dos fenômenos sensoriais não explicava o
desenvolvimento temporal e mudança das coisas.
Aristóteles rompeu com o dualismo platônico entre um mundo estático
de ideias e um mundo cambiante dos fenômenos. Ele transportou as ideias de
Platão de seu isolamento transcendente e as converteu em formas essenciais
imanentes das coisas temporais. Assim, essas formas essenciais imanentes
deveriam, supostamente, ser, ao mesmo tempo, as causas imanentes do
desenvolvimento e da mudança dessas coisas. Aristóteles, portanto, concebia-
as como as sementes ocultas das coisas, nas quais as formas maduras já
estavam embrionariamente presentes. Como tais, essas formas substanciais
foram chamadas de enteléquias das coisas, a fim de se enfatizar que cada
coisa contém um princípio teleológico de desenvolvimento que, por natureza,
se esforça para realizar-se. Todas as coisas se esforçam, por natureza, rumo à
sua própria perfeição; isto é, desenvolvem-se, de acordo com sua enteléquia
inata, em direção à forma madura que já estava embrionariamente presente
nela.
Em outras palavras, esse conceito da forma substancial essencial
buscava explicar a estrutura interna das coisas individuais na plena
concretude de sua existência. A atividade científica, na visão aristotélica,
envolve abstrair essas formas essenciais a partir da percepção sensorial das
coisas e classificar os conceitos formais assim obtidos num sistema científico.
O conceito de lei contido na visão aristotélica da ciência focava-se,
assim, nas estruturas de individualidade internas das coisas. Não está
orientada para aspectos abstratos da realidade que são explorados pelas
ciências especiais modernas.
Esses aspectos da realidade — os do número, espaço, movimento, vida
orgânica, sentimento, análise lógica, desenvolvimento histórico, linguagem,
interação social, economia, harmonia estética, justiça, moralidade e fé — são
naturalmente, ao mesmo tempo, aspectos das coisas. Uma árvore tem um
lado numérico, um lado espacial, um lado cinemático, um lado biótico, um
lado sensorialmente perceptível, um lado lógico conceitual, um lado
linguístico, dentre outros.

O QUADRO FUNCIONAL UNIVERSAL DE ENTIDADES

Mas dentro de cada aspecto da realidade, isto é, dentro de cada esfera


de lei da ordem cósmica temporal, existe uma coerência funcional governada
pela lei, que, enquanto tal, é independente da estrutura interna das coisas que
funcionam nela. Por exemplo, no aspecto cinemático da realidade, as leis
funcionais governam o movimento de uma caneta que deixei cair de minha
mesa do escritório, assim como os movimentos dos planetas no universo.
Em outras palavras, em cada aspecto, todas as coisas, a despeito de sua
estrutura interna, são coeridas por leis funcionais. A coerência funcional não
pode ser capturada cientificamente por meio da noção aristotélica de forma
substancial. Pode ser apreendida somente num conceito abstrato de função,
que deliberadamente abstraímos da estrutura interna das coisas individuais.
A física moderna não trabalha com conceitos como animais, plantas e
montanhas, mas sim com os conceitos funcionais de massa em movimento e
de energia matematicamente aproximados. Esse conceito funcional de lei era
desconhecido para Aristóteles e para os homens da Idade Média em suas
investigações científicas dos fenômenos naturais. Eles atribuíam, por
exemplo, a causa do movimento dos objetos em queda à natureza interna
(forma essencial) dos corpos pesados, e não estavam cientes das leis de
gravidade, que são universalmente válidas para todo o aspecto físico do
cosmos.
Foi a ciência natural matemática, moderna, fundada por Galileu, que
introduziu, na física, o conceito funcional da lei. Ao fazê-lo, apontou o
caminho para o controle metódico dos fenômenos naturais. Para esse fim, a
ciência natural matemática tinha de banir radicalmente, do domínio da física,
a metafísica aristotélica das formas essenciais ocultas. Seu conceito de
causalidade não era mais a noção aristotélica do propósito interno ou causa
formal (enteléquia). Pelo contrário, era o conceito função matematicamente
determinado que reúne todos os fenômenos naturais, relativamente a seu
aspecto cinemático,[31] sob o mesmo denominador físico comum.
O ideal humanista da ciência apoderou-se então desse conceito função
moderno, a fim de purgar o cosmos inteiro — em todas suas dimensões de
sentido — das “qualidades ocultas”, e construí-lo como uma coerência
ininterrupta e contínua de pensamento a partir dos elementos matemáticos
mais simples.
Um modo funcionalista de pensamento começou a aparecer em todas as
ciências. Assim, passou a dominar o pensamento de que todos os demais
aspectos da realidade são apenas modos mais complexos ou formas
fenomênicas do aspecto matemático ou mesmo físico.
No processo, a vida orgânica, o sentimento, o desenvolvimento
histórico, a linguagem, a interação social, economia etc. foram eliminados
como aspectos irredutíveis de sentido e concebidos como meros modos ou
manifestações da função física matemática. A concepção funcional moderna
de causalidade deveria então servir para possibilitar a interpretação de toda a
realidade cósmica como uma coerência de pensamento logicamente
transparente e completamente controlada. Em inteira associação com essa
linha de pensamento estava a noção de que mesmo a sociedade humana,
mesmo a história, linguagem, justiça e afins não são nada mais que
aplicações extremamente complexas das leis da natureza.
Até hoje, as ciências da economia e sociologia não foram plenamente
libertadas desse quadro conceitual mecanicista. O modo funcionalista de
pensamento levou à uniformização radical dos aspectos modais distintos da
realidade conforme estão encerrados dentro de sua esfera de lei singular;
levou também a uma eliminação fundamental de todas estruturas da
individualidade das coisas e das relações sociais. Já fiz referência à
construção niveladora e individualista da sociedade humana com base no
esquema uniforme do contrato social.
O ideal-ciência humanista impôs uma visão particular da estrutura da
realidade sobre a ciência, e chamou esta visão de a verdadeira, a científica.
Todas as demais visões foram rejeitadas como “místicas” ou “mitológicas”.
O ideal humanista da ciência por fim havia des-divinizado e des-
espiritualizado o cosmos.

O DESENVOLVIMENTO DA ANTINOMIA BÁSICA NO


PENSAMENTO HUMANISTA
Nesse ínterim, dentro da visão humanista do cosmos, veio à tona a
antinomia fundamental entre o ideal da ciência e o ideal da personalidade,
anteriormente mencionada. A fim de manter este último ideal, não se deveria
permitir que o primeiro tivesse escopo ilimitado. Pois, conforme vimos, o
ideal da ciência não deixava espaço para a liberdade humana.
Já vimos antes tentativas de reconciliar esses dois fatores básicos da
cosmovisão humanista ao estabelecer fronteiras para cada uma. A estrita
separação cartesiana entre alma e corpo pode ser vista como a primeira dessas
tentativas. Para Descartes, o “corpo” era a soma dos aspectos matemático,
físico e biótico da realidade, todos reunidos por ele sob o denominador
comum funcional do espaço físico (extensão). A “alma” era a soma de todas
as funções da consciência humana, que por sua vez foram também reduzidas
ao denominador comum do pensamento matemático. Descartes então
separava a alma e o corpo entre si como duas “substâncias”, exigindo que o
corpo fosse tratado cientificamente como se não houvesse alma, e a alma
como se não houve corpo.
É evidente que, por trás de todo esse dualismo, está a preocupação de
Descartes em proteger a essência da personalidade humana (que ele buscou,
de modo racionalista, no “pensamento matemático criativo”) de ser absorvida
pelo ideal naturalista da ciência. Pois este último tentava dissolver toda a
realidade em relações causais mecanicistas. Ao mesmo o pensamento, como a
verdadeira sede da liberdade humana, tinha de ser preservado.
Em contraposição, Thomas Hobbes, por exemplo, não reconhecia
quaisquer limites para o ideal da ciência. Assim, surgiu o primeiro conflito na
filosofia humanista entre naturalismo, que consistentemente aplicava o ideal
da ciência, e o semi-idealismo, que tentou traçar um reino da liberdade ideal
para a personalidade humana em contraposição à tendência da continuidade
no pensamento científico natural.
O pensamento cristão protestante, que anteriormente havia chegado a
um compromisso com a visão aristotélica da ciência, passou então a um
compromisso com a visão humanista moderna. Assim, o idealismo cartesiano
ganhou influência também na teologia protestante. Dessa maneira, a igreja foi
então forçada a lidar com um novo conjunto de heresias, que havia se
originado na filosofia humanista! Pascal, que se orientou inteiramente a partir
do pensamento cartesiano, tentou salvaguardar a religião cristã como “uma
questão do coração” contra as reivindicações do pensamento moderno,
enquanto depreciava este último.
Após uma fase de transição, no ceticismo crítico-positivista do filósofo
escocês David Hume, tentativas de reconciliar os ideais modernos da ciência
e da personalidade finalmente conduziram à visão crítica da ciência de Kant
em fins do século XVIII. No princípio deste ensaio, já fiz referência a essa
visão.
Kant depreciou a ideia humanista de ciência ao limitar a ciência
estritamente aos fenômenos sensorialmente perceptíveis. Ele rejeitou
radicalmente a metafísica humanista que veio à tona desde Descartes, que
acreditava que, com o auxílio do pensamento matemático moderno, poder-se-
ia revelar a “substância”, o “verdadeiro ser”, a raiz supratemporal da
realidade. A ciência, argumentava Kant, só nos pode tornar conhecidos os
“fenômenos do mundo sensível”. Ademais, de acordo com o filósofo, essa
realidade empírica nada mais é que uma coerência em conformidade à lei
natural na qual o pensamento teórico reina supremo. O “dado” material da
experiência sensorial é apreendido pela consciência humana em formas a
priori, e em seguida o pensamento científico o organiza numa rigorosa
coerência que se conforma à lei. Esse pensamento, contudo, permanece
ligado à percepção sensorial. Não pode penetrar além dos fenômenos
sensoriais e prover conhecimento da substância, a “coisa-em-si” (Ding an
sich).
Kant ensinava que, por trás do mundo sensível dos fenômenos, espreita
um domínio suprassensível da liberdade, em que a personalidade humana se
conhece como um fim em si mesmo (Selbstzweck), um ser completamente
autônomo. O que é válido para esse domínio suprassensível não é a lei
natural, mas a norma moral, a regra para o que deveria ser, cujo objetivo é a
autodeterminação livre, moral, de uma pessoa em ação. Esse domínio da
liberdade, contudo, não pode mais ser um objeto de prova científica, mas
apenas de fé racional. Kant não hesitou em atribuir primazia ao ideal da
personalidade (compreendido nesta fé racional), em detrimento do ideal de
ciência.
O esquema medieval da natureza e graça ainda tentou sintetizar a
filosofia pagã e a doutrina cristã da fé. Ora, nas pegadas de Leibniz, esse
esquema foi definitivamente substituído pelo esquema da natureza e
liberdade, que se focava inteiramente no aqui e agora (Diesseits), na vida
terrena.
Desde a ascensão do ideal humanista da ciência, o conceito da natureza
sofreu uma transformação radical. Kant o havia limitado aos fenômenos
sensíveis, que o pensamento científico natural molda numa coerência
rigorosa da lei natural.
Essa natureza, esvaziada de Deus ou deuses, foi agora identificada à
realidade experiencial. A ciência deveria restringir-se a essa realidade, de
modo que seu domínio seria estritamente separado das questões da fé. O
reino da graça foi final e inteiramente secularizado e humanizado num reino
da liberdade suprassensível da personalidade humana, que supostamente
estava em conflito com a natureza sensível inferior.
Essa visão kantiana (chamada crítica) da ciência também alcançou
grande influência no pensamento cristão. Já vimos como essa visão foi
considerada a solução real para o antigo conflito entre ciência e fé cristã.
Afinal de contas, a ciência tinha então definitivamente perdido todos os
direitos a uma opinião nas questões de fé. A fé cristã, portanto, parecia
inteiramente salvaguardada dos ataques da ciência, aos quais tinha estado
bem exposta na época do iluminismo!
Em geral, as pessoas perceberam que a moralidade autônoma de Kant
era inaceitável para um cristão. Ao mesmo tempo, abraçavam ainda mais
fervorosamente sua visão crítica da experiência e dos limites da ciência.
Contudo, eles fracassam por completo em perceber que a visão kantiana da
ciência em última análise procede da mesma raiz religiosa que sua doutrina
da moralidade autônoma.
Eles não foram capazes de perceber que sua teoria da ciência implicava
uma perspectiva sobre a estrutura da realidade na qual a ordem cósmica
divina havia sido banida como mitologia. Nem perceberam que essa teoria foi
dominada pelo modo funcionalista, naturalista, de pensamento, baseada no
ideal humanista de ciência.
Nesse ínterim, a filosofia humanista não deu fim ao dualismo kantismo.
Num primeiro momento, a ideal humanista da ciência havia forçado o ideal
de personalidade a pôr-se na defensiva. Contudo, tão logo Kant atribuiu a
primazia ao ideal da personalidade na cosmovisão humanista, este último
passou a reivindicar o monopólio na teoria da realidade. Pois se, como vimos,
a linha de continuidade típica [continuiteitstendenz] é peculiar ao ideal da
ciência, o ideal da personalidade, por seu turno, em virtude de toda sua
orientação, também não pode reconhecer quaisquer limites básicos para suas
reivindicações.
As pessoas desejam entender a própria natureza (no sentido moderno)
como o domínio do ideal humanista de ciência, como um produto da
personalidade livre, que Kant havia concebido como uma ideia
suprassensível num sentido subjetivista. Ao mesmo tempo, a visão
racionalista e individualista anterior, que Kant ainda mantinha, abriu caminho
para uma visão irracionalista, universalista. A visão anterior concebia a
realidade, tanto em seu domínio empírico e sensível quanto no seu domínio
numenal e suprassensível, como essencialmente um sistema universal de lei.
A subjetividade individual era então concebida como simplesmente um
exemplo particular da lei. A visão posterior, por outro lado, que era
igualmente parcial, entendia que a essência da realidade estava na
individualidade subjetiva. Assim, a lei — como regra universal — era válida
somente como uma forma de pensamento do ponto de vista abstrato, das
ciências naturais, que castra a realidade viva.
As pessoas acreditavam que só poderiam entender a individualidade
por meio do pensamento dialético, isto é, ao tomar o indivíduo como um
ponto de transição para a totalidade individual transpessoal mas igualmente
subjetiva. Como resultado, em oposição ao modo de pensamento natural-
científico e matemática atomístico e reducionista, propôs-se um novo
método, isto é, o das humanidades, que se concentrou em apreender a
individualidade como um todo. Esse método de pensamento não está mais
orientado para a matemática e ciências naturais, mas sim à história com suas
totalidades individuais como nação, povo, comunidade cultural, etc.
Já no período da Sturm und Drang, essa visão nova e irracionalista da
realidade começou a desafiar as reivindicações absolutistas da visão natural-
científica da realidade. O romantismo logo coroou essa visão nova e
irracionalista como a única válida. O método dialético do pensamento
aceitava a antinomia básica da concepção humanista entre necessidade
natural e liberdade como uma contradição que é resolvida dentro da própria
realidade numa síntese e harmonia superiores.
Esse método também dirigiu o idealismo monista de Hegel, que o
desenvolveu num sistema completo de lógico. Hegel buscou entender a
natureza como uma autoexteriorização da ideia, como uma fase transicional
no autodesvelamento dialético do espírito absoluto.

UMA NOVA TENTATIVA DE SÍNTESE

O pensamento cristão protestante também buscou encontrar uma síntese


com essas linhas. O romantismo cristão e o hegelianismo cristão vieram à
tona. Friedrich Julius Stahl foi um pensador e político luterano
antirrevolucionário bastante célebre na Alemanha e que exerceu grande
influência sobre o neerlandês Groen Van Prinsterer em seu segundo período.
Em sua visão da história, mesmo Stahl estava fortemente orientado para a
filosofia romântica de Schelling e para a Escola Histórica irracionalista. Daí
sua identificação da orientação de Deus na história com o conselho secreto de
Deus, que é ainda aceita como a norma secundária para a ação humana; e daí
também sua noção de que, na formação do direito, a Common Law (que
supostamente evolui inconscientemente sob a orientação de Deus) é mais
santa em sua natureza do que a lei estatutária deliberadamente promulgada!
As pessoas não percebiam como toda a concepção irracionalista e
dialética da realidade tinha sua origem numa metamorfose irracionalista do
ideal humanista de personalidade. Pelo contrário, eles permitiram que seu
pensamento cristão se enredasse no dilema da ideal-lei humanista da natureza
e liberdade. E acreditaram que poderiam reinterpretar, de forma cristã, a
secularização humanista das ideias cristãs de personalidade e liberdade.

A REAÇÃO DO POSITIVISMO
O romantismo e o hegelianismo começaram a introduzir suas
construções especulativas também em vários ramos da ciência. Na segunda
metade do século XIX, isso provocou uma reação poderosa dessas ciências
contra a interferência, por parte de qualquer filosofia (independentemente de
seu tipo), na “pesquisa factual”.
Essa tendência “positivista” moderna não se satisfez, contudo, em
separar a filosofia das ciências especiais. Num primeiro momento, essa
tendência opôs-se a toda filosofia, identificando-a com especulação. Seus
proponentes exigiam um modo puramente empírico do pensamento na
ciência, um que se apegaria aos “fatos”.
Na verdade, esse positivismo não era mais que uma reação moderna do
ideal natural de ciência contra a metafísica romântica e idealista do ideal
humanista da personalidade. Essa reação se evidenciou claramente na
ascensão do darwinismo, à época. O darwinismo mudou, num sentido
mecanicista e individualista, a noção romântica organológica e idealista de
desenvolvimento, que estava orientada para a teoria da história. Adquiriu
influência enorme em todas as ciências especiais e mesmo na psicologia, na
ciência da história, etnologia, econômica, na teoria do direito, teoria moral e
teologia.
Em sua famosa palestra intitulada “Evolution” [Evolução], Abraham
Kuyper descreveu a imensa influência das teorias darwinistas nesta
esplêndida abertura: “O século XIX está desvanecendo sob a hipnose do
dogma da evolução”.
Pouco depois, o ideal humanista de ciência construiu uma nova
filosofia naturalista (Haeckel, Ludwig Büchner e Moleschott) sobre a suposta
teoria puramente factual da evolução. E, mais uma vez, o pensamento cristão
buscou um compromisso com o novo dogma, particularmente nas ciências
naturais. A narrativa da criação apresentada nas Sagradas Escrituras foi
colocada, de todas as maneiras possíveis, no leito de Procusto da
acomodação. Mesmo alguns estudiosos cristãos da natureza falharam em
reconhecer de imediato que a ideia de uma pessoa ter evoluído dos
organismos mais simples num processo ininterrupto e mecânico de
desenvolvimento era um produto naturalista e especulativo do ideal
humanista da ciência.
No princípio do século XX, surgiu a inevitável reação contra esse
naturalismo evolucionista. A pesquisa científica contínua não ofereceu um
único fato que confirmasse a hipótese básica da teoria darwinista, isto é, que
as espécies reais, como formas completamente variáveis, evoluem num
processo contínuo de “adaptação” mecânica.

O MÉTODO HISTÓRICO-CULTURAL DAS HUMANIDADES

De sua parte, as humanidades passaram a protestar contra essa


interpretação evolucionista dos fatos. Elas exigiam um método de pesquisa
totalmente diferente do das ciências naturais, isto é, um método “histórico-
cultural”, que não buscaria estabelecer sistemas universais de lei, mas sim
entender estritamente as relações individuais.
Conforme vimos, os fundamentos filosóficos para esse método já
haviam sido lançados pelo idealismo alemão depois de Kant. Contudo, a
exigência não era mais por uma filosofia idealista ou romântica, mas sim por
um reconhecimento do caráter singular do método científico especial de
pensamento nas ciências culturais.
Todo esse desenvolvimento coloca mais uma vez a epistemologia
humanista em ação. Com o mote “retornemos a Kant”, surgiu uma filosofia
neo-kantiana que começou a concentrar-se particularmente no estudo das
condições universalmente válidas, a priori (transcendentais), para todo
conhecimento científico. Ao mesmo tempo, a ideologia real do ideal
humanista da personalidade, que, por elaboração de Kant, tornou-se uma
metafísica da fé racional, e que se centrou na ideia de liberdade, caiu num
estado de total declínio, sob a pressão acachapante da escola positivista de
pensamento.
Num primeiro momento, os neo-kantianos não levaram em conta a raiz
mais profunda da teoria kantiana da ciência, isto é, a fé no valor soberano de
uma pessoa, ou, em casos distintos, haviam substituído essa fé racional por
um relativismo cético.
Confinaram seu pensamento filosófico a um formalismo lógico
criticista, cujo único objetivo era distinguir nitidamente entre formas a priori
e o conteúdo empírico do conhecimento científico. A ciência tinha de basear-
se em formas de consciência universalmente válidas e a priori, a fim de
assegurar sua absoluta independência em relação à fé. Às ciências especiais
designou-se a pesquisa empírica como um domínio autônomo, ao passo que à
reflexão crítica epistemológica sobre as formas a priori de conhecimento, que
atuava nessa pesquisa, designou-se a filosofia. Desse modo, tentou-se
delimitar os fundamentos epistemológicos do novo método histórico-cultural
de pesquisa em relação aos da ciência natural matemática.
Heirinch Rickert, em particular, tentou, dessa maneira, oferecer uma
demonstração epistemológica crítica dos direitos independentes das ciências
culturas face às ciências naturais generalizantes.
É claro, esse ponto de vista tinha de entrar em flagrante conflito com a
concepção cristã recentemente desenvolvida de que os limites das ciências
especiais são determinados pela ordem cósmica divina que encerra os vários
aspectos da realidade temporal em esferas de lei, cada uma das quais é
soberana em sua própria área. Pelo contrário, ao seguir a linha nominalista do
humanismo, tentou-se encontrar, dentro da própria “consciência
epistemológica”, a diferença formal que fazia a demarcação entre o modo
científico natural e o científico cultural de apreensão da “realidade empírica”.
A perspectiva neokantiana sobre a realidade permaneceu, portanto,
primariamente orientada ao ideal humanista de ciência. Assinalamos
anteriormente como o pensamento cristão também começou a irmanar-se
com essa epistemologia neokantiana. Considerava-se uma grande vantagem
ser capaz de, com essa epistemologia, sustentar um confronto com as
reivindicações absolutistas do pensamento natural-científico; pois, em última
instância, essas reivindicações não deixavam espaço para a liberdade e
responsabilidade morais de uma pessoa, nem para a fé cristã.

O HISTORICISMO E RELATIVISMO IRRACIONALISTAS

Essa filosofia neokantiana, que era basicamente um formalismo


positivista, não poderia resistir por muito tempo. Seu inimigo mais poderoso,
a filosofia existencial moderna e irracionalista, já havia anunciado sua
presença antes da irrupção da 1ª Guerra Mundial. Obteve a primazia no
pensamento filosófico por meio de sua transvaloração de todos os valores
(Umwertung aller Werte), que podemos observar atualmente.
Os pais espirituais dessa filosofia existencial moderna foram Friedrich
Nietzsche e o filósofo-teólogo dinamarquês Søren Kierkegaard. Desde seus
primórdios, esse novo movimento na filosofia veio à tona numa grande
variedade de nuances. Dentre os representantes desse movimento estava
Wilhelm Dilthey, um dos seus pensadores tardios mais influentes, que se
concentrou no historicismo. Henri Bergson, o famoso professor francês,
advogava um pronunciado biologismo metafísico. William James, o
pragmatista americano, seguiu uma direção mais psicologista, e Martin
Heidegger, por sua vez, representava uma corrente ontológica-
fenomenológica.
O caráter de toda essa filosofia existencial da vida é irracionalista.
Todavia, ela não pode ser vista como uma repristinação da antiga filosofia
romântica e idealista da vida. Sua principal corrente, a que é dominante hoje,
surgiu de uma crise dos fundamentos da cosmovisão humanista. Atravessou o
processo de decadência positivista moderno. A fé no ideal da personalidade
humana tem sido a tradição no mundo metafísico das ideias. Mas duas visões
de mundo já haviam solapado esse ideal: por um lado, o materialismo
histórico de Marx, que estava rapidamente conquistando o mundo do
operariado; por outro lado, o positivismo empiricista e neokantiano.
A humanidade moderna perdeu todos os pontos de apoio para sua visão
de mundo. Tornou-se consciente do desenraizamento religioso de sua
existência. O criticismo historicista-relativista da cultura ocidental (Oswald
Spengler) predisse a iminente “decadência do Ocidente”. O historicismo
positivista ganhou terreno e não deixou espaço para a fé em ideias eternas.
O ideal humanista de ciência, em suas formas mais antigas
(metafísicas), havia solapado a ideia humanista de personalidade e liberdade;
porém, o historicismo moderno afetou essa ideia de modo ainda mais radical.
Mesmo as ideias sacrossantas da visão humanista da vida passaram a ser
tratadas como produtos puramente históricos da mente, sujeitos à lei do
“ascender, brilhar e perecer” no fluxo sempre contínuo do desenvolvimento
histórico.
A antiga máxima heracliteana: “panta rhei kai ouden menei” (tudo flui,
nada permanece), emerge então na consciência humana como uma realidade
assustadora. Com efeito, até o próprio ideal humanista de ciência viu seus
fundamentos serem subvertidos por esse historicismo. Sua natureza
relativizadora não deixou nenhum dos antigos baluartes de pé. Tudo o que o
neokantismo positivista conseguiu salvar desse maremoto foi simplesmente
um mundo de formas lógicas vazias, do qual todo valor material havia
desaparecido.
Hans Kelsen, o notável teórico neokantiano do direito, esvaziou o
conceito kantiano de norma, que o deixou aberto a qualquer forma-
pensamento lógica arbitrária. Ele imprudentemente abandonou a ideia
jusnaturalista de justiça à maré do relativismo. A ideia humanista tradicional
do Estado constitucional perdeu todo conteúdo axiológico em seu
pensamento, pois ele identificou, de modo formalista, Estado e direito e
castrou este último, transformando-o num sistema de juízos lógicos, no qual
só a forma lógica era constante e supra-arbitrária. O movimento
fenomenológico no pensamento filosófico foi fundando por Edmund Husserl,
o célebre professor de Göttingen, é bastante influente nos tempos modernos.
Em sua primeira manifestação fortemente logicista, o movimento também
estava contaminado com o espírito positivista. Submeteu todos os juízos de
valor à redução fenomenológica; isto é, o fenomenologista de fato
“experienciava” esses juízos de valor, mas submetia-o, como meros fatos da
consciência (Tatsachen des Bewusztseins), a uma descrição fenomenológica
exata de sua natureza. As formas a priori e sintéticas de consciência propostas
por Kant foram tratadas da mesma maneira.
De uma posse não problemática da “razão soberana”, todas essas
formas tornaram-se então um objeto problemático de descrição positivista
que se atinha estritamente aos “fatos”. Ora, o existencialismo moderno tenta
superar toda essa linha positivista de pensamento. Ele deseja expandir a
filosofia mais uma vez para a cosmovisão prática. Contudo, tendo perdido a
fé no mundo metafísico e eterno das ideias que pertencia ao ideal humanista
de personalidade, não mais se esforça para retomar os padrões absolutos de
caráter supostamente supra-temporal. Além disso, o existencialismo não mais
crê na possibilidade de uma atitude puramente teórica do pensamento, na
qual todas as pré-concepções da cosmovisão de um indivíduo seriam
sacrificadas à ideia de uma verdade teórica absoluta.
O antigo ideal humanista de ciência foi solapado. O pensamento
filosófico científico deve emergir da existência plena de uma pessoa, e deve,
nesse sentido, tornar-se mais uma vez responsável. A existência humana, no
entanto, não está mais concentrada num centro metafísico da razão.
Nietzsche admoestava a humanidade: “Irmãos, permaneçam fiéis à
terra”. Sua transvaloração de todos os valores relativizou todos os valores
eternos e os subordinou à brutal e histórica luta pelo poder do super-homem.
Kierkegaard, cuja forma de pensamento era semi-cristã, postulou a noção de
um abismo intransponível entre o tempo e eternidade e considerou a
consciência humana, com seu sentimento de terror, como o “centro temporal
da existência humana sucumbido ao tempo”.
Dilthey tentou infundir o próprio ideal humanista de personalidade com
um conteúdo historicista, relativista. De acordo com ele, a verdade soberania
da personalidade humana consiste em sua habilidade de libertar-se dos
últimos resquícios do confinamento dogmático por meio de um pensamento
genuinamente histórico e de apropriar-se dos melhores elementos de cada
fase da cultura. Entretanto, ele substitui o cogito (penso) metafísico, que
Descartes considerava como a essência supra-temporal de uma pessoa, por
um vivo dinâmico, historicamente concebido. O fluxo histórico da
experiência vivida, que engolfa a própria existência humana como um
elemento fluido, usurpou a posição do foco metafísico do pensamento.
De semelhante modo, a filosofia ontológica do tempo proposta por
Martin Heidegger buscou descerrar a base da existência humana, a do Dasein
(ser), como um “ser-aí-no-mundo” histórico imanente. De acordo com ele, a
ex-istência humana tem ciência de estar sujeita à morte; absorve, portanto,
essa sujeição como culpa e, em sua percepção disso, planeja livremente seu
futuro histórico.
Essa moderna filosofia existencialista, afastada de toda metafísica
idealista e fortemente influenciada pelo relativismo histórico, submergiu,
como um amplo rio, todas as áreas do pensamento moderno. Tornou-se a
cosmovisão prática da humanidade moderna religiosamente desenraizada.
Essa filosofia existencialista se entende como uma filosofia do espírito
corrente dos tempos, e não mais indaga pela verdade eterna. Substituiu a
antiga fé racional em leis e normas universalmente válidas por uma fé
completamente irracionalista no imperativo do momento (Gebot der Stunde).
Incorporou-se na visão irracionalista do Estado, adotada pelo nacional-
socialismo e pelo fascismo, nos quais a antiga ideologia idealista
representada pelo ideal humanista da personalidade é substituída pelos mitos
da “grande nação” e da “raça e terra”. Substituiu o ideal humanista anterior
de ciência, com sua fé na soberania criativa do pensamento matemático, por
uma visão da ciência na qual o pensamento teórico é deliberadamente posto a
serviço da nova visão de mundo.
Na biologia, introduziu-se uma forma inteiramente nova de
pensamento, isto é, a do “holismo”. Nos Estados nazista e fascista, [o
holismo] dominou a sociologia, a ciência da história, a economia, a estética, a
teoria do direito e da política, a pedagogia, etc. E assim a cosmovisão
humanista tradicional caiu num processo de decadência e transformação,
mesmo que sua raiz humanista tivesse sido mantida.

UMA ALIANÇA PREVISÍVEL ENTRE CRISTIANISMO E


HUMANISMO

Poder-se-ia prever que um cristianismo intelectualmente desmobilizado


também se comprometeria com essa nova filosofia existencialista. Sob a
liderança de Barth e Brunner, a “teologia dialética” tomou de empréstimo seu
motivo básico dialético, a saber, a tensão absoluta entre eternidade e tempo,
diretamente da filosofia existencial dialética de Sören Kierkegaard. Também
nele buscaram sua noção de que a fé cristã não tem ponto de contato com a
natureza humana temporal; antes, só pode ser entendida como um salto
divino para um mundo totalmente diferente. A influência direta de
Kierkegaard pode também ser encontrada nesse movimento, particularmente
em sua concepção do eu como pura atualidade, cujo ser é co-determinado por
sua interpretação do sentido da existência; e na noção de consciência de
Brunner como um sentimento consciente de ansiedade, os gemidos
silenciosos de um prisioneiro em sua cela, que atestam a dissonância interna
da existência sujeita ao tempo, sua “doença para morte”.
Toda a concepção irracionalista do mandamento evangélico do amor
como sendo “o imperativo do momento” que transcende toda norma ou lei
universalmente válida, bem como a concepção atualista [nota] da Palavra de
Deus e da fé como sendo meras ações fugazes, “relampejantes”, de Deus:
estes são, em suma, produtos da filosofia moderna da vida, que infectaram a
própria doutrina cristã da fé.[32]
Em tempos antigos, o pensamento cristão já havia justificado seus
compromissos com a ciência descrente por meio do esquema de natureza e
graça. Esse esquema também se adaptou à “dialética” moderna, ao chamado
pensamento existencial. O “reino da natureza”, com suas próprias ordenanças
autônomas, não oferece ponto de contato para a graça supra-temporal. Desde
o princípio, o rígido dualismo entre ambos foi adotado pelo motivo básico
dialético de Kierkegaard, a tensão e contradição absolutas entre tempo e
eternidade. Karl Barth, especificamente, conduziu esse dualismo a suas
conclusões radicais. Desse modo, um modo de pensamento dualista, semi-
cristão, combatia a ideia cristã de ciência com todas as armas que a filosofia
incrédula havia forjado contra ela até nossa época.

UM CAOS DAS TENTATIVAS PROTESTANTES DE SÍNTESE

A maioria dos católicos romanos continuaram a apegar-se à visão


aristotélico-tomista da ciência como a verdadeira harmonia entre
conhecimento “natural” e o “conhecimento sobrenatural baseado na revelação
divina”. Nessa mesma época, contudo, o desenvolvimento do pensamento
protestante apresentou um espetáculo caótico de tentativas de síntese: desde
aqueles que buscavam uma síntese com a escolástica e a filosofia antiga até
àqueles que tentam uma síntese com todas as variações em desenvolvimento
da filosofia humanista. Neste ensaio, pudemos apresentar apenas uma visão
panorâmica dessas tentativas.
Ora, surge a questão de se a ideia básica da Reforma poderia de fato
tolerar um compromisso com a filosofia apóstata. A resposta a essa questão
deve ser um enfático não! Pois a Reforma retirou sua força precisamente de
sua ruptura fundamental com o esquema dualista da natureza e graça que
sempre havia sido usada para justificar sínteses. A Reforma retornou, ao
menos em seus rudimentos, à visão bíblica de que a natureza da criação só
poderia ser entendida com base em sua origem religiosa, vista pela luz da
Palavra de Deus. É por isso que repudiou a doutrina católica romana da graça
como um dom que foi acrescentado à “natureza” (donum superadditum); é
também a razão por que viu a queda no pecado, mais uma vez, e em
conformidade com as Escrituras, como uma corrupção radical da natureza
que afetou sua raiz religiosa; é igualmente o motivo por que rejeitou a
doutrina católica romana do mérito natural das boas obras e ensinou a
justificação pela fé somente; por fim, é a razão pela qual se opôs fortemente à
visão católica romana da instituição temporal da igreja como o vínculo
supremo da cristandade. Pelo contrário, em virtude de sua visão da sociedade
humana, escolheu mais uma vez partir da crença na origem religiosa da raça
humana, renascida em Jesus Cristo.
O LEGADO REFORMACIONAL E SUAS INTERRUPÇÕES

Não se pode negar, contudo, que nem todos os reformados aplicaram


radicalmente essa ideia bíblica básica concernente à relação da religião cristã
com a realidade temporal em suas visões de mundo.
Por um lado, Lutero, treinado na escola nominalista de Ockham (“Ich
bin von Ockham’s Schule” [pertenço à escola de Ockham]), apontou, em seu
entendimento teológico da queda e da redenção, o caminho para todo o
movimento da Reforma que veio depois dele. Por outro lado, em sua visão da
vida temporal, ele jamais foi capaz de livrar-se do esquema de pensamento do
medievo tardio. Para ele, a lei como tal se degradou a uma regra para a vida
pecaminosa na natureza; assim, a contrapôs à vida de graça na liberdade
evangélica. Desse modo, vê-se claramente a influência da concepção
nominalista em sua visão da lei. A liberdade evangélica em Cristo Jesus é
entendida não simplesmente como uma libertação da servidão legalista, nem
apenas como uma libertação da maldição da lei, nem ainda como uma
suspensão da lei cerimonial do “ministério de sombras” judaico. Antes, ao
modo nominalista, é vista como o fim da sujeição à lei como tal, como a vida
acima de toda regra e ordenanças universalmente vinculantes de Deus.
Assim, em sua visão de mundo, Lutero caiu novamente no dualismo
nominalista da natureza e graça. A natureza, agora compreendia como o reino
das ordenanças temporais, o domínio da lei, foi posto em nítida oposição à
graça como o reino da liberdade evangélica, como a vivência do amor
evangélico sem a lei, sem a sujeição às regras divinas.
E assim Lutero retornou também à noção não bíblica de que a “luz
natural da razão”, comum a crentes e descrentes, tinha a última palavra nas
questões naturais, terrenas, e de que a fé cristã afeta apenas a vida interna do
cristão. É inteiramente certo que Lutero considerava a filosofia de Aristóteles
como um grande perigo para a fé cristã. Ele falou abertamente, e com os
termos mais enérgicos, contra a aceitação dessa filosofia no protestantismo.
Não devemos esquecer, contudo, que, atacando a filosofia aristotélica, Lutero
queria atacar todo o posicionamento católico romano de síntese. Pois ele viu
muito claramente que essa filosofia estava se tornando um dos esteios
teóricos para todo o modo hierárquico de pensamento no catolicismo romano.
A postura de Lutero para com o trabalho científico pagão permaneceu,
portanto, puramente negativa. Ele de fato não mostrou o caminho para uma
reforma também do pensamento científico num sentido bíblico, cristão. Os
efeitos do dualismo nominalista em sua visão da realidade temporal na
verdade impossibilitavam isso. É verdade, ele realmente percebeu os perigos
da visão humanista da vida que já estavam realizando avanços grandiosos em
sua época. Seu combate apaixonado com Erasmo no tocante à questão da
liberdade da vontade humana se tornou um marco da antítese irreconciliável
entre Reforma e humanismo que claramente começava a emergir. No entanto,
o treinamento acadêmico de Lutero era muito enviesado à escolástica
medieval tardia, para que ele tivesse organizado ataques sérios à nova visão
humanista da ciência. Na nova teoria da astronomia de Copérnico, que
pressagiava uma revolução radical na forma anterior do pensamento
científico, Lutero não viu senão um capricho tolo que não tinha de ser levado
a sério.
A tarefa de fornecer uma liderança ao movimento da Reforma na área
da ciência e educação universitária ficou, pois, a cargo de Filipe Melâncton, o
sobrinho-neto de Johannes Reuchlin. Melâncton era um homem de erudição
universal, mas não tinha o dom da originalidade, que — é preciso admitir —
seria essencial para realizar uma reforma real nessa área. Ademais, ele era, no
fundo, um humanista, e em sua juventude manifestara forte admiração pelos
grandes líderes do movimento humanista: Agrícola, Erasmo e Willibald
Pirckheimer.
Melâncton assumiu seu posto na Universidade de Wittenberg em
agosto de 1518 — um mestre de apenas vinte e um anos. Naquela ocasião,
ele ministrou uma palestra intitulada: “Sobre a Reforma da Educação da
Juventude”, que se mostrou uma declaração militante de guerra contra o
“barbarismo” escolástico que prevalecia nas universidades. Ele estava
imbuído da familiar arrogância humanista, direcionada contra a mutilação da
linguagem e filosofia clássicas na era dos “doutores seráficos e querúbicos”.
Era o espírito de Agrícola e Erasmo que animava o jovem Melâncton.
Sua palestra tinha em vista nada mais que a Reforma filológica, moral e
eclesiástica apreciada por seus companheiros, isto é, uma Reforma com um
matiz cristão-estoico, mas, a bem da verdade, feita no espírito humanista e
nominalista.
O contato eletrizante de Melâncton com Lutero — o herói que lhe era
tão diferente nos talentos e caráter — o inspirou temporariamente com o
espírito de antítese reformacional. Entre 1519 e 1521, o outrora humanista
pareceu desenvolver um entendimento cada vez maior acerca do abismo
intransponível que divide o cristianismo de toda a filosofia antiga pagã e da
filosofia escolástica. Em seu discurso em oposição a Thomas Rhadinus
(fevereiro de 1521), em que ele entrou na arena a fim de defender Martinho
Lutero, e em seu Loci communes rerum theologicarum (1521) [nota],
rivalizou Lutero em sua condenação acirrada do “rabulista” (advogado
trapaceiro) Aristóteles.
Numa análise mais detida, contida, ficou claro que, mesmo nesse
período, a ruptura com a filosofia da imanência, que presume a
autossuficiência da razão natural dentro de seu próprio domínio, não foi
radical. Mesmo então, Melâncton apegou-se firmemente à dialética
humanista. E, posteriormente, quando seu afastamento dos ideais humanistas
o levou a romper com seu mestre Reuchlin, e quando Erasmo, decepcionado,
afastou-se dele, seu antigo amor pela Antiguidade greco-romana fora
reacendido.
Em seguida, teve início uma nova fase em seu desenvolvimento que, já
em 1536, teve um fecho com sua síntese definitiva entre a doutrina luterana
da fé e uma interpretação nominalista e humanista da filosofia aristotélica.
Toda a impotência interna dessa síntese protestante tornou-se visível na
resposta de Melânchton à questão de como se deveria abordar a filosofia
então vigente, sob o ponto de vista da Reforma. “O melhor que se pode fazer
em relação a isso”, disse ele, “é fazer parte de uma escola respeitável”.
Essa resposta abriu as portas para a escolástica protestante, que logo
faria sua entrada nas universidades protestantes. Pavimentou também o
caminho para a síntese, na ciência, entre a Reforma e humanismo. Com isso,
o pensamento protestante permitiu-se enredar no dilema básico da filosofia
humanista e participou em quase todas as variações em desenvolvimento do
modo humanista de pensamento.
O ataque mais recente de Barth e Brunner contra toda ideia da ciência
cristã não é senão uma extensão radical do dualismo nominalista de Lutero
entre lei e liberdade evangélica na síntese com o existencialismo moderno,
igualmente nominalista e irracionalista. É simplesmente o vinho velho da
síntese em odres novos! E é a influência enorme de Melâncton que tornou
possível toda essa acomodação entre a Reforma e o pensamento humanista.
Leibniz era um gênio tanto do iluminismo alemão quanto de seu pior
inimigo, a filosofia irracionalista da vida. Ele havia sido educado na escola de
filosofia de Melâncton e Aristóteles,[33] e desta tomou de empréstimo vários
motivos para sua própria filosofia. Em seu pensamento, o esquema
escolástico da natureza e graça já adquirira o conteúdo de uma síntese entre o
ideal humanista da ciência e o da personalidade, entre a necessidade natural e
a liberdade racional.[34]
A síntese não foi de modo nenhum frutífera para a Reforma. A filosofia
da imanência que foi então acomodada, lançada num molde edificante, pouco
depois arrancou sua máscara e mostrou sua verdadeira face!

A TENDÊNCIA BÍBLICA POSITIVA DA REFORMA

Desde os primórdios, contudo, houve outra corrente no grande


movimento da Reforma. Ora, essa corrente buscou mais uma vez considerar
com seriedade o significado radical da religião cristã para a realidade
temporal. Assim, não produziu senão frutos para a reforma do pensamento
científico à luz das Escrituras.
Essa corrente não se originou de Lutero nem de Melâncton, nem
mesmo do reformador suíço Zwinglio, que chegou a ir mais longe que
Melâncton em sua síntese entre humanismo e Reforma. Seu autor é, antes,
João Calvino. Isso não significa dizer que o grande reformador de Genebra já
havia desenvolvido uma teoria cristã da ciência. Em sua juventude, ele havia
mesmo vivido uma fase humanista e estava completamente familiarizado
com a filosofia clássica, assim como com o humanismo nascente de sua
época; Calvino, porém, rejeitou a ambos radicalmente. Ele não desenvolveu,
contudo, uma filosofia própria baseado nos fundamentos bíblicos, cristãos, da
Reforma — assim como Lutero não o fez.
Antes, a grande relevância do reformador genebrino para a reforma do
pensamento científico foi sua rejeição completa da concepção nominalista de
lei, bem como do esquema dualista da natureza e graça. Igualmente relevante
foi o fato de que Calvino seguiu até ao fim a linha agostiniana de
pensamento, que exigia que o conhecimento natural também tinha de ser
iluminado pela revelação da Palavra de Deus.
O pensamento de Calvino não deixou espaço para uma razão natural
autônoma, pois ele começou novamente a considerar o significado radical da
queda e da redenção em Jesus Cristo também para esta vida terrena.
Certamente, permaneceram com Calvino vários resquícios de sua fase
humanista da juventude. A grande diferença entre Calvino e Melâncton, no
entanto, era que este último buscou deliberadamente a síntese, ao passo que
Calvino simplesmente assumiu uma posição antitética, mesmo em seu
trabalho acadêmico. Ele fez isso sem tentar eliminar, de modo revolucionário,
todo o desenvolvimento da ciência, ou negar os elementos de verdade que
também podem ser encontrados no pensamento apóstata. Se essa direção
bíblica do pensamento tivesse sido capaz de permear as universidades
protestantes, o pensamento científico cristão certamente teria se desenvolvido
de uma maneira bem diferente. Porém, não foi Calvino, mas sim Melâncton
que estabeleceu a senda nessa área para os séculos seguintes. Como
resultado, o desenvolvimento da ciência moderna em última instância
esquivou-se da Reforma e ficou completamente sob a liderança humanista.
As tentativas protestantes de sínteses careciam inteiramente até mesmo da
arquitetura (inegavelmente grandiosa) do tomismo. Pois essas tentativas estão
enraizadas num dualismo nominalista que não deixava espaço para uma
síntese real entre conhecimento natural e fé cristã. No melhor dos casos,
poderiam apenas empenhar-se em prol de uma trégua religiosa externa entre
ambos. É por isso que o dualismo kantiano entre ciência e fé teve sua enorme
popularidade entre proponentes protestantes da síntese.
Desse modo, a desmobilização intelectual do cristianismo no campo da
ciência assumiu inevitavelmente formas muito mais radicais no pensamento
protestante posterior do que no pensamento católico romano. Pois nos
círculos romanos, a liderança eclesiástica poderia ainda sempre impor uma
restrição final, embora a partir de fora, no processo de deformação, e, por
meio de sua autoridade, poderia assegurar a visão tomista da ciência como
uma posição dominante e coesiva.

O ESTUDO ACADÊMICO CRISTÃO INTEGRAL EXIGE O


FUNDAMENTO DE UMA FILOSOFIA BIBLICAMENTE
INFORMADA

Assim, num primeiro momento, a ideia de uma ciência radicalmente


cristã aparentemente havia fracassado. Contudo, era uma ideia que não
poderia ser erradicada. Uma vez por outra, os olhos tinham de abrir-se para o
fato de que a própria aliança com a ideia humanista de ciência havia infligido
um dano incalculável à causa da Reforma. Em fins do século XX, o
avivamento calvinista nos Países Baixos introduziu um novo e poderoso
desenvolvimento na visão bíblica da ciência.
Nesse tocante, a proclamação do Dr. Kuyper de que a antítese exerce
seu controle mesmo sobre o domínio da ciência e a fundação da Universidade
Livre [de Amsterdã] como uma consequência disso devem ser vistas como
um ponto de virada de imensa relevância. Os proponentes da teologia
dialética perceberam argutamente que esse movimento calvinista era seu
adversário mais capaz também na área da ciência. Pois, com efeito, o ponto
de vista antitético de Kuyper na ciência — que havia sido interpretado de um
modo bastante tacanho — é incompatível com a noção, defendida por Barth e
Brunner, de que a religião cristã é materialmente irrelevante para a
investigação científica da estrutura da realidade temporal.
Em contraposição à palavra-passe de desmobilização intelectual na
ciência, Kuyper propôs a demanda bíblica de que se deveria permitir que o
cristianismo, plenamente mobilizado, participasse do desenvolvimento da
ciência. Ele rejeitou, fundamentalmente e em todas as frentes, a autonomia da
razão natural. Esse ponto de vista bíblico será levado adiante no pensamento
científico, ou as buscas por sínteses obterão mais uma vez o predomínio
sobre o curso antitético na ciência, conforme traçado por Kuyper? Esta é a
grande pergunta para o futuro do pensamento cristão reformacional. Uma
coisa é certa: o estudo acadêmico genuinamente cristão não pode mais
subsistir sem o fundamento da filosofia bíblica. Assinalei anteriormente que,
nos tempos modernos, a desmobilização intelectual cristã no estudo
acadêmico foi promovida em grande medida pela aceitação inquestionada da
linha de demarcação moderna e humanista entre as ciências especiais e a
filosofia. A tendência positivista do pensamento nas ciências especiais deseja
confrontar o pensamento cristão com um fait accompli. A escola positivista é
muito perigosa, justamente porque cobriu a ideia de neutralidade na ciência
com as vestes enganosas da evidência. Afinal de contas, o que poderia ser
mais independente da religião cristã do que a investigação de fatos objetivos?
É nesse ponto que a filosofia bíblica deve intervir a fim de abrir os olhos do
pesquisador cristão para o caráter acrítico e enganador dessa atitude
positivista do pensamento. Pois os “fatos” não podem ser apreendidos
cientificamente sem o entendimento de sua estrutura, que é determinada pela
ordem cósmica divina. E esse entendimento de sua estrutura depende
absolutamente da questão de onde o pensador escolhe seu ponto de partida. O
sentido é o modo de ser de toda a realidade criada; o sentido não repousa em
si mesmo, mas aponta incansavelmente para acima e além de si próprio, para
a Origem de todas as coisas. Isso faz com que a separação entre as ciências
especiais e a filosofia seja impossível.
Assinalamos anteriormente a razão por que o ideal humanista de
ciência é incompatível com a aceitação de uma ordem cósmica divina que
controla as relações e coerência mútuas dos distintos aspectos da realidade
temporal e que tem sua mais profunda unidade radical no centro religioso da
existência humana. Vimos como essa ideia humanista, em razão de sua falha
em reconhecer a verdadeira raiz da realidade temporal, tentou diversas vezes
aplanar as estruturas ordenadas por Deus em sua criação.
Na verdade, nenhuma ciência especial é possível sem que faça uma
escolha epistêmica implícita a respeito da relação e coerência mútuas dos
vários aspectos da realidade escolhidos pelo pensamento teórico para seu
campo de estudo. A matemática já pressupõe uma ideia filosófica
concernente às relações mútuas de número, espaço, movimento e pensamento
lógico. Dependendo de como essa ideia seja concebida, pesquisadores da área
da matemática dividem a sua empreitada em muitas direções diferentes
(formalismo, logicismo, intuicionismo, empirismo). E essas diferenças no
entendimento filosófico não têm relevância somente especulativa; elas
interferem diretamente na própria pesquisa matemática. Isso pode ser
claramente percebido no fato de que a escola intuicionista, por exemplo,
rejeita a validade de seções inteiras da chamada matemática avançada que
foram erigidas pelo formalismo e logicismo, e no fato de que exige um
projeto totalmente novo para essas seções. Na física, o desenvolvimento
moderno desde Planck, Schrödinger e Heisenberg desencadeou uma
controvérsia fundamental sobre o problema da causalidade.
Na biologia moderna, movimentos mecanicistas, neovitalistas e holistas
consideram os demais como adversárias ferozes. A psicologia é um
verdadeiro viveiro de escolas rivais. Mesmo na lógica, há um conflito total
entre diferentes escolas filosóficas. Considere a diferente entre a antiga lógica
aristotélica da inclusão e a lógica moderna de relações (lógica simbólica), ou
o contraste entre a escola psicologista e a escola moderna da “lógica pura”.
A ideia de que a ciência da história poderia ser um porto seguro para a
mente positivista só pode ser acolhida por quem ainda está preso ao
preconceito ingênuo de que fatos históricos podem ser conhecidos à parte de
um entendimento quanto ao sentido de sua estrutura e sua coerência. Mesmo
a concepção positivista de história, que dissolve toda a sociedade humana a
um complexo de fenômenos puramente históricos, é essencialmente orientada
a uma perspectiva filosófica historicista sobre a coerência dos vários aspectos
da realidade.
A concepção que nega que fenômenos históricos são governados por
qualquer tipo de lei está igualmente enraizada na visão nominalista e
historicista da história. Ou alguém crê que o historiador pode investigar, por
exemplo, se durante a Idade Média havia ainda algo como direito público,
sem ter um entendimento sobre a estrutura do Estado? E esse alguém aceita,
como filosoficamente imparcial, o ponto de vista historicista de que a ciência
da história pode, sozinha, desvelar-nos a natureza do Estado?
Considere ainda a separação entre etnologia e a ciência da história, a
questão de se a história tem um sentido normativo ou não, ou o significado do
conceito de causalidade histórica. Todas essas são questões filosóficas que
assumem um significado científico especial tão logo se comece a interpretar o
material factual que se reuniu.
Será necessário que eu me refira também à linguística, sociologia,
economia, teoria do direito, teoria moral e teologia? Em cada uma dessas
ciências especiais, o conflito entre as várias escolas de pensamento se revela
um de natureza essencialmente filosófica.
Mas é o suficiente. A crença pré-concebida da atitude positivista
acreditava que poderia afastar essas ciências do conflito entre pontos de
vistas filosóficos ao mantê-las rigorosamente no exame de “fatos objetivos”.
Mas a natureza enviesada dessa atitude nos últimos tempos já foi exposta sob
tantos ângulos amplamente divergentes, que o positivismo ingênuo nas
ciências especiais só pode ser chamado de acrítico ou não científico. Jamais
se deve esquecer que a atitude positivista nas ciências especiais está
enraizada numa perspectiva filosófica positivista sobre a estrutura da
experiência e realidade. No que toca à abundância da criação de Deus, essa
postura filosófica não nos deixou senão uma abstração naturalista, que, por
sua vez, é, em si, somente o produto do raciocínio filosófico teórico que se
declarou autônomo.
Que nenhum pensador cristão continue a crer que, quando está
trabalhando em qualquer ciência especial, possa aceitar essa visão positivista
da realidade, sem com isso negar sua fé cristã.
Por meio do tradicional esquema de natureza e graça, o pensamento
cristão buscou, por séculos, justificar ou o divórcio entre fé e ciência, ou um
compromisso entre a fé cristã e a filosofia pagã. Mas, precisamente porque
usado desse modo, esse esquema é inerentemente falso, porque ele próprio
está em conflito com a estrutura de nossa existência temporal, conforme
determinada pela ordem cósmica divina.
Em virtude dessa lei estrutural, nossa função cognitiva é
necessariamente guiada pela função da fé, ainda que essas duas funções
sejam mutuamente irredutíveis e cada uma delas esteja encerrada dentre de
sua própria esfera-de-lei. Todo crer é estender-se, com a função da fé de
nossa existência, para a base derradeira, eterna, da Verdade e certeza, à qual
as próprias leis de nosso pensamento científico remetem. Toda fé e crença
estão atadas à revelação divina.
Ora, o Senhor Deus se revelou em toda a extensão de sua criação, e
centralmente no coração humano, a raiz da existência humana. Desde o
princípio, a clareza dessa revelação de Deus na “natureza” da criação tinha de
ser obtida por meio da Palavra-revelação divina, que exigia o ouvir com um
coração crente à Palavra de Deus. A queda da humanidade no pecado, que
necessariamente também desviou o pensamento humano da Verdade, resultou
no fechamento desse coração à Palavra-revelação divina, que não dava mais
ouvidos à Palavra de Deus. Com isso, é claro, a (natural) função da fé da vida
temporal do indivíduo não deixou de existir, mas passou a apontar para uma
direção apóstata. A fé, tendo se tornado apóstata, começou a buscar a Deus e
ao eu humano no mundo temporal
Egoisticamente, começou a criar seus próprios deuses a partir da
“revelação de Deus na natureza”, que não mais era iluminada pela Palavra de
Deus. É também assim que a fé no caráter autossuficiente e criativo da
ciência nasceu, como idolatria no sentido real do termo. Todo ato de declarar
certos aspectos ou estruturas da realidade como autossuficientes, cada
tentativa de fazê-los subsistir por si próprios, procede de uma deificação do
pensamento teórico que realiza atos como os de isolar e abstrair.
É, pois, uma fé apóstata que se manifesta na proclamação da
neutralidade religiosa do pensamento humano. Essa fé apóstata
inevitavelmente afasta esse pensamento em relação à plenitude da Verdade e
o conduz por falsos caminhos.
A graça comum de Deus não significa que essa apostasia não tem
influência efetiva na ciência. Significa apenas que, em Cristo Jesus, Deus
continua a manter sua ordem cósmica, a estrutura de sua criação e, portanto, a
estrutura também de nossa função cognitiva. Significa que ele distribui seus
dons individuais também no domínio da ciência, tanto a crente quanto a
descrentes.
No entanto, todo aquele que busca excluir Cristo Jesus como a
Plenitude da Revelação Divina do domínio da ciência abusa do dom de Deus
e coloca-se fora da Verdade, mesmo no seu modo de pensar. Essa pessoa de
fato permanece vincula às leis universalmente válidas da experiência humana
e, quando se mantém em contato com a realidade, pode fazer importantes
contribuições ao desenvolvimento do conhecimento científico. Todavia,
tornar o pensamento teórico autossuficiente sempre leva a um
obscurecimento do entendimento da estrutura da realidade. Certos aspectos
modais ou certas estruturas de individualidade dos fatos sob exame são
absolutizados à custa de outros, e assim são teoricamente dilacerados de sua
coerência no cosmos. É precisamente por essa razão que a ciência apóstata
carece de foco na Verdade e necessariamente conduz, reiteradas vezes, a uma
interpretação distorcida daquilo que descobre.
A ciência, ademais, não é uma tarefa de indivíduos isolados, mas uma
empreitada comum. Sob a liderança daqueles que são especialmente dotados,
várias pessoas cooperam a fim de aumentar o depósito do conhecimento
acumulado ao longo de muitas gerações. Por sua vez, todo cientista deve
recorrer a esse depósito para seu próprio trabalho.
Além disso, de acordo com a própria ordem cósmica divina, a ciência
atua na história sob a orientação de um espírito cultural, que, por sua vez, é,
em última instância, guiada por uma fé. A ciência moderna é inegavelmente
impregnada pelo espírito cultural e pela fé do humanismo ocidental. Em
razão disso, ao longo de todo seu desenvolvimento, está enraizada na ideia da
autonomia, ou, antes, da autossuficiência do pensamento científico.
Isso confronta, com uma tarefa aparentemente desesperadora, cientistas
e acadêmicos cristãos que desejam levar a sério (de modo radical)[35] a visão
cristã da ciência. Afinal, eles também têm de recorrer ao depósito comum do
conhecimento, e devem cooperar na tarefa comum de promover e
desenvolver o conhecimento humano.
Eles não podem manter-se alheios à comunidade científica como
indivíduos isolados. No entanto, também não podem aceitar o curso atual de
desenvolvimento que a ciência tomou como um “fait accompli”. Pelo
contrário, têm o chamado de sujeitar esse curso de desenvolvimento à crítica
constante da ideia bíblica de ciência e trabalho acadêmico cristãos. Essa ideia
não consiste em uma acomodação externa dos resultados da ciência à fé
cristã. Antes, significa uma transformação interna da visão teórica da
estrutura da realidade e da experiência humana, de modo que ambas podem
ser vistas, mais uma vez, da perspectiva de seu verdadeiro centro e Origem.
Não se trata de uma tentativa arrogante de desmantelamento, que está fadada
à futilidade desde o princípio. O que está em jogo é uma reforma, no sentido
pleno da palavra, do pensamento científico num sentido bíblico, cristão.
Para que se realize isso, contudo, deve-se travar uma tremenda batalha
histórica e cultural contra o espírito humanista nas ciências, um espírito que
busca excluir da comunidade científica tudo que se interpõe em seu caminho.
Pois o humanismo de fato teve êxito em obter o poder histórico para moldar o
desenvolvimento científico, graças à tentativa de síntese (conduzida por
séculos) da parte do próprio pensamento cristão.
Todos os cristãos que, em seu trabalho científico, envergonham-se do
Nome de Cristo Jesus, uma vez que buscam honra entre os homens, serão
totalmente inúteis nessa valorosa campanha de recapturar a ciência (um dos
grandes poderes da cultura ocidental) para o Reino de Deus. Nessa luta,
porém, não estaremos desamparados, contanto que travemos o combate
revestidos de toda a armadura da fé naquele que disse: “Toda autoridade me
foi dada no céu e na terra”, e igualmente: “tende bom ânimo; eu venci o
mundo
HERMAN DOOYEWEERD — UM ESBOÇO
BIOGRÁFICO[36]

Sr. Presidente, Membros do Conselho, Corpo Docente, Funcionários e


Estudantes,
Distintos convidados, Senhoras e Senhores:

Muitos de vós estais familiarizados com o trabalho do falecido Herman


Dooyeweerd, quem ele foi, o que defendia, o que escreveu e qual impacto
teve em seu próprio país e em outros lugares ao redor do mundo. Por outro
lado, suspeito que há muitos outros aqui esta noite que, a respeito de
Dooyeweerd, sabem pouco além de nome, do fato de que viveu nos Países
Baixos, de que esteve envolvido no desenvolvimento de uma filosofia que
soa bastante complexa, chamada “a filosofia da ideia cosmonômica” e que,
por vezes, é chamada de filosofia “calvinista” ou filosofia “cristã”.
Aqueles nesta audiência que pertencem ao segundo grupo podem muito
bem estar se perguntando uma série de questões. Por exemplo, quem foi esse
homem, o que ele de fato fez, por que ele é aparentemente considerado tão
importante para que tenha, aqui na América do Norte, um centro acadêmico
com seu nome; o que esse centro busca realizar e por que se encontra no
Redeemer College? Também: o que é a “The Herman Dooyeweerd
Foundation” e qual é seu papel em tudo isso?
Os demais palestrantes desta noite abordarão a maior parte dessas
questões. Contudo, para oferecer ao menos um pano de fundo para aqueles
que não estão tão familiarizados com o trabalho de Dooyeweerd, creio que,
antes de irmos noite adentro, seria útil se eu usasse o tempo que tenho à
minha disposição para oferecer um breve esboço biográfico de Dooyeweerd,
conforme visto a partir de minha perspectiva pessoal como seu filho mais
velho.
Herman Dooyeweerd foi um filósofo neerlandês que alcançou estatura
internacional. É considerado por muitos um dos mais proeminentes filósofos
— alguns julgam o mais proeminente — que os Países Baixos produziram
desde uma longa linha de eminentes pensadores que remontam há trezentos
anos, incluindo nomes como Erasmo e Spinoza. Tanto a Encyclopaedia
Britannica quanto a Encyclopaedia Filosofia italiana têm seções com
referências ao pensamento filosófico de Dooyeweerd. Alguns de seus escritos
já foram traduzidos e publicados em inglês. Alguns foram originalmente
escritos em francês ou em alemão pelo próprio Dooyeweerd, ao passo que
outros foram traduzidos, após sua morte, para o coreano, japonês e espanhol.
No mês passado, por exemplo, recebi pelos correios uma obra recém-
publicada, vinda da Itália, feita a partir de uma tradução do francês para o
italiano, de uma série de cinco palestras que Dooyeweerd ministrou na França
nos anos de 1950. Assim, estamos começando a ver traduções de traduções.
A obra de Dooyeweerd é considerada uma grande contribuição para o
desenvolvimento de uma nova filosofia cristã sistemática que, em seu escopo,
na abordagem e profundidade inteiramente acadêmicas de sua percepção
filosófica não precisam absolutamente ocupar uma posição inferior em
relação a filosofias amplamente conhecidas e academicamente aclamadas.
Contudo, Dooyeweerd não aspirava ser um filósofo. No último mês,
completou-se cem anos desde seu nascimento em Amsterdã. Ele foi criado
numa família convictamente calvinista. Seu pai era um escriturário no
Departamento Neerlandês de Tributação e um consultor tributário particular,
em seu tempo livre. Era um homem de muitas leituras, tinha um grande
respeito pelo trabalho acadêmico, profunda afinidade com as artes,
especialmente a poesia, e era um seguidor devotado do renomado pregador,
escritor e estadista Dr. Abraham Kuyper e do movimento de renovação cristã
que este último fundou. Todos esses valores, incluindo muitos daqueles tão
eloquentemente articulado pelo Dr. Kuyper, ele transmitiu a seu filho e a seus
demais filhos que o amavam e o respeitavam imensamente.
O jovem Dooyeweerd recebeu uma educação secundária clássica numa
escola cristã que ficava bem próxima da Universidade Livre. Embora sua mãe
o tivesse encorajado a tornar-se um corretor, a ideia não atraía Dooyeweerd.
Pelo contrário, ele queria estudar, mas não sabia exatamente o quê. Era
profundamente interessado pela literatura, mas, ao fim, contentou-se com o
direito.
Ele matriculou-se na Universidade Livre, que havia sido estabelecida
em 1880 pelo Dr. Kuyper e outros como uma universidade cristã reformada.
Ali Dooyeweerd obteve um doutorado em direito quando tinha 22 anos. Sua
tese fora intitulada “Os Ministros do Gabinete sob o Direito Constitucional
Neerlandês”. Recebeu resenhas positivas na imprensa da época e permanece
sendo uma referência padrão sobre o tema até hoje.
O primeiro emprego de Dooyeweerd foi como inspetor fiscal assistente
na província da Frísia, seguido por uma lotação durante um ano como
assistente de um conselheiro municipal na antiga cidade universitária de
Leiden. Menos de um ano depois, convidaram-no a participar no Ministério
do Trabalho do governo nacional, onde se tornou vice-chefe do
Departamento de Saúde Pública em Haia.
Durante seus poucos anos no serviço público, Dooyeweerd dispendeu
grande parte de seu tempo livre aprofundando-se nos estudos em casa,
particularmente na filosofia do direito. Ocasionalmente, deparava-se com
uma grande divergência, quando não confusão, entre os filósofos do direito,
com cada um defendendo uma abordagem diferente (e amiúde conflitante)
em relação à lei, nenhuma das quais ele conseguia reconciliar com suas
próprias crenças religiosas que lhe calavam profundamente.
Isso convenceu Dooyeweerd da necessidade de uma filosofia
abrangente e pensada com profundidade, que apresentaria uma descrição
mais credível do mundo em que vivemos e das estruturas e interação dos
vários aspectos daquilo que sentimos, vemos e experienciamos ao nosso
redor. Acima de tudo, deveria fornecer um entendimento e fundamento
genuinamente cristãos e biblicamente fundados. Em 1922, Dooyeweerd teve
sua chance de desenvolver seu pensamento filosófico a sério e aplicá-lo num
sentido bastante prático. Na época, o partido político que o Dr. Kuyper havia
fundado e conduzido desde o princípio era um dos principais partidos do
governo. Não muito depois do falecimento do Dr. Kuyper, os três homens a
quem foi legada a liderança do partido perceberam que era necessário criar
um novo instituto de pesquisa acadêmica — ou think tank, na designação
atual — para aconselhar o partido em questões fundamentais que deveriam
governar as futuras propostas de políticas por ele promovidas.
Dooyeweerd, que contava seus 27 anos, foi avaliado e selecionado,
dentre outros seis candidatos muito mais velhos, pelo então Ministro da
Defesa e pelo Primeiro Ministro — ambos também representavam a liderança
veterana do partido — para tornar-se o primeiro diretor do novo instituto de
pesquisa do partido. Ao aceitar essa posição, Dooyeweerd insistira que lhe
dessem tempo suficiente para desenvolver os sólidos fundamentos filosóficos
que, segundo acreditava, deveriam governar qualquer partido cristão e o
Estado, a sociedade como um todo, bem como seus cidadãos individuais.
Foi durante seus cinco anos no instituto de pesquisa — que ainda existe
hoje e é conhecido como Instituto Kuyper — que suas ideias filosóficas
começaram a tomar forma definitiva. Ele estava para fazer sua mudança final
de carreira cinco anos mais tarde, quando, com apenas 32 anos, aceitou uma
oferta para tornar-se professor na Universidade Livre [de Amsterdã], não na
faculdade de filosofia, mas na de direito. Ali permaneceu pelos 40 anos
seguintes ensinando enciclopédia do direito, direito neerlandês antigo e
direito constitucional neerlandês, até aposentar-se em 1965, aos 70 anos de
idade.
Seus anos na Universidade Livre foram agitados. Foi lá que, nos anos
1930, durante a Grande Depressão, terminou seu trabalho mais proeminente,
sua magnum opus com mais de 2200 páginas, apresentando sua filosofia
sistemática. Em 1953, uma edição em inglês foi publicada na América do
Norte, contendo revisões e adições extensas que refletiam o desenvolvimento
posterior de seu pensamento durante esse período intermediário entre as
edições. Esse período, é claro, inclui os cinco longos e tenebrosos anos da 2ª
Guerra Mundial e a ocupação e supressão brutais da Holanda por parte dos
nazistas.
Quando a guerra terminou e toda a energia e atenção públicas e
concentram na reconstrução e reedificação da sociedade e suas instituições
políticas (e de outras naturezas), Dooyeweerd tomou parte ativamente nos
debates promovidos para a consecução desses objetivos. Ele usou sua posição
como editor chefe num jornal semanal para publicar seus pontos de vista.
Por mais de trinta anos trabalhou também como editor chefe de um
periódico internacional de filosofia cristã reformada, uma publicação da
Associação da Filosofia Reformacional que Dooyeweerd e seu cunhado, o
professor Vollenhoven, fundaram em meados da década de 1930 e que, até
hoje, é subscrita por centenas de pessoas ao longo de dezenas de países. Ele
contribuiu com vários artigos e editoriais próprios, além de editar as
contribuições de outros autores e de publicar resenhas de novos livros. Ao
todo, incluindo seus livros mais importantes, seus escritos compreendem
mais de 200 títulos.
Ora, para completar o retrato, alguns comentários sobre a vida pessoal
de Dooyeweerd:
❊ Era, como dizem, “bem casado”. Sua esposa era uma mulher amável e
impressionante (e não é só porque sou eu quem diz, pois é claro que sou
suspeito!). Eles tiveram nove filhos. Para sua tristeza, nenhum deles foi para
a vida acadêmica, muito menos seguiram, ainda que remotamente, suas
pegadas.
❊ Ele amava arte, especialmente música e poesia. Era um talentoso pianista
amador e praticava diariamente no piano que tinha em seu escritório. Seus
compositores favoritos eram Chopin e Tchaikovsky. Ele também gostava de
improvisar por conta própria.
❊ Ele gostava de histórias de detetive e muitas vezes era visto saindo de
fininho de uma festa de aniversário ou de uma reunião em casa, indo para o
andar de cima, a fim de escutar ao rádio, quando seu programa de mistério ou
detetivesco favorito estava para começar.
❊ Ele se tornou um grande e ávido fã de futebol, primeiramente por meio
das partidas transmitidas pela rádio, e posteriormente pelas transmitidas pela
televisão, especialmente quando o famoso time Ajax, de Amsterdã, estava
jogando.
❊ Ele podia desfrutar um pouco de jazz e pareceu não se importar quando,
anos mais tarde, seu caçula, que é um músico profissional de jazz (baixo e
composição) passou a ser mais prontamente identificado pelo público com o
nome Dooyeweerd do que o próprio pai.
❊ Ele rigorosamente praticava uma hora de exercício físico pesado toda
manhã, mesmo nos períodos de suas viagens.
❊ Ele tinha, em sua casa, uma imensa biblioteca pessoal para o trabalho, a
qual ocupava cada parede, do chão ao teto, nos dois amplos quartos que
constituíam seu escritório, expandindo-se também para os corredores daquele
andar e dos de cima. Ele afirmava ter lido cada um dos volumes. Não havia
razão para duvidar dele, já que sempre parecia saber exatamente onde
encontrar uma citação específica de um livro particular.
❊ Ele era uma pessoa profundamente religiosa e frequentava fielmente a
igreja. Contudo, sua assiduidade na igreja não lhe sustava a ocasional crítica
ferrenha a um ministro particular ou a seu sermão, ao chegar à casa depois do
culto.
❊ Ele atuava em diversas organizações, incluindo o Hospital Juliana em
Amsterdã e a organização para as Prisões e Reabilitação de Prisioneiros, que
seria o equivalente neerlandês da Sociedade John Howard. Ele foi presidente
de ambas as organizações por muitos anos.

Espero que esses meus comentários tenham sido úteis, até aqui, para
dar-vos uma ideia de algumas realizações de Dooyeweerd e alguns aspectos
pessoais de sua vida. Contudo, deveria mencionar mais uma coisa: suas
viagens para o exterior que o levaram a turnês de palestras na Suíça, África
do Sul, França, Estados Unidos da América e Canadá. Sua turnê norte-
americana, em particular, foi longa e bastante árdua. Acompanhada por sua
esposa, ele esteve em atividade por muitos meses contínuos e falou em
inúmeras universidades e faculdades importantes de uma costa à outra, tanto
nos Estados Unidos quanto no Canadá. As palestras e inumeráveis eventos
menores e reuniões sociais criaram um seguimento de pessoas neste
continente. Muitos deles ainda se lembram, de tempos em tempos, do
primeiro encontro com Dooyeweerd, que era, segundo todos os relatos, um
orador dinâmico.
A viagem, embora tenha sido um sucesso em muitos aspectos, exigiu
dele um imenso esforço físico do qual jamais se recuperou plenamente. A
morte prematura de sua esposa também o afetou profundamente. De meu
longo “esboço em miniatura”, pode ser que tenhais a impressão de que me
esforcei em colocar Dooyeweerd em um tipo de “pedestal”. Se assim
pareceu, meu pai teria desaprovado fortemente. Pelo contrário, espero que
tenha sido capaz de mostrar que Dooyeweerd foi um homem talentoso, mas,
em muitos aspectos, uma pessoa bastante pé no chão. Em nossa família, o
amávamos profundamente e temos — cremos que justificadamente —
orgulho dele. Lembramo-nos dele como alguém que era bastante humilde
perante Deus e sempre se esforçava para apresentar-se ao serviço dele.
Poucos dias antes de sua morte, testemunhei pessoalmente como ele lutava
com o fato de que, a seus próprios olhos, ele não havia feito tudo para o qual
sentia que Deus lhe havia chamado.
Ora, antes de concluir minhas observações, gostaria de aproveitar esta
oportunidade, falando como Presidente da The Herman Dooyeweerd
Foundation e em nome da família Dooyeweerd, e, por este meio, expressar
publicamente minha estima ao Redeemer College, especialmente seu novo
Presidente, Dr. Justin Cooper, ao seu antigo Presidente, Reverendo Henry De
Bolster, aos membros da Diretoria, aos membros e ex-membros do Comitê
Diretor e à faculdade e funcionários que ajudaram que o Dooyeweerd Center
for Christian Philosophy se tornasse uma realidade.
Obrigado.
Glossário
O glossário de termos técnicos e neologismos de Dooyeweerd, produzido por Albert M.
Wolters, foi inicialmente publicado em L. Kalsbeek, Contours of a Christian Philosophy
(Toronto: Wedge, 1975), p. 346-354.[37] Em seguida, foi adaptado e reproduzido em C. T.
McIntire (ed.), The Legacy of Herman Dooyeweerd (Lanham MD, 1985), p. 167-171, e
finalmente editado e reproduzido de forma resumida pelo editor geral Daniel F. M. Strauss
em The Collected Works of Herman Dooyeweerd, com permissão do autor. Para a versão
em português, a versão final foi usada como base, sendo incluídos quase todos os verbetes
da primeira versão omitidos pela versão final. O texto de alguns verbetes foi expandido e
uns poucos novos verbetes foram incluídos para facilitar a compreensão.
O glossário não oferece definições técnicas exaustivas, mas pistas e indicadores para uma
melhor compreensão. Verbetes marcados com asterisco são aqueles usados por
Dooyeweerd com um sentido incomum em contextos filosóficos tradicionais, sendo, assim,
fonte potencial de confusão. Palavras em VERSALETE referem-se a outros verbetes neste
glossário.

A PRIORI — Expressão de origem latina, significando “antes de”. O termo tornou-se


proeminente na filosofia desde Kant para descrever aquilo que pode ser conhecido “antes”
da experiência, isto é, independentemente dos dados empíricos, e que está enraizado na
estrutura da subjetividade humana. Antônimo de a posteriori. Ver TRANSCENDENTAL.
ALMA — Sinônimo bíblico ocasional para CORAÇÃO.
AN SICH — Expressão alemã para “em si”; compõe a expressão kantiana Ding an sich,
“coisa em si”, ou seja, uma coisa concebida à parte de nossa experiência dela.
*ANALÍTICO — Ou lógico. Nome para o sétimo aspecto da experiência, caracterizado
pela diferenciação lógica.
*ANALOGIA — Ver MODALIDADE. Nome coletivo para RETROCIPAÇÕES e ANTECIPAÇÕES,
destacando a interdependência das diversas modalidades do sentido cósmico. Equivalente a
MOMENTO DE SENTIDO.
*ANTECIPAÇÃO — ANALOGIA ou MOMENTO DE SENTIDO dentro de determinada
MODALIDADE, referindo-se a uma modalidade mais alta na escala modal. Por exemplo,
“eficiência” é um momento de sentido encontrado na modalidade histórico-formativa, mas
que remete à modalidade econômica, que se encontra mais acima na escala modal.
Contrasta com RETROCIPAÇÃO.
*ANTINOMIA — Literalmente “conflito de leis” (do grego anti, “contra”, e nomos, “lei).
Uma contradição lógica que surge de uma falha em distinguir os diferentes tipos de leis
válidas em diferentes modalidades. Uma vez que leis ônticas não conflitam (ver PRINCIPIUM
EXCLUSAE ANTINOMIAE), uma antinomia é sempre um sinal lógico de REDUCIONISMO
ontológico. Exemplo: os paradoxos de Zeno, causados por uma confusão entre o aspecto
espacial e o aspecto cinético (do movimento).
*ANTÍTESE — Conceito usado por Dooyeweerd (seguindo Abraham Kuyper) em um
sentido especificamente religioso para referir-se à oposição espiritual fundamental entre o
Reino de Deus e o reino das trevas (Cf. Gálatas 5.17). Em se tratando de uma oposição
entre regimes, não entre domínios, ela se espalha por todos os departamentos da vida e da
cultura humanas, incluindo a filosofia e o empreendimento acadêmico como um todo, e
atinge também o coração de cada crente em sua luta por viver uma vida de compromisso
integral com Deus.
*ARCHÉ — Termo grego que significa literalmente “princípio” ou “origem”. Dooyeweerd
tornou-o, juntamente com a tradução Origem, um termo técnico para referir-se à fonte
divina de todas as coisas, o incondicionado. Sendo o SIGNIFICADO o modo de ser da
realidade criada, podemos dizer que o Arché é a Origem do sentido cósmico: aquilo que
não significa outra coisa, mas o que todas as coisas juntas significam. Esta é uma forma de
dizer que tudo vem de Deus e dele depende para sua existência. O pensamento imanentista,
ao rejeitar a diferença qualitativa entre Deus e o cosmo, procura encontrar o Arché dentro
do horizonte temporal da experiência, identificando-o com uma entidade concreta ou com
um dos ASPECTOS da experiência. Essa ação pode ser vista como uma espécie de “idolatria
filosófica”: a deificação de um dos aspectos da experiência. Sempre que ocorre o
REDUCIONISMO intermodal, temos um sinal claro de que algum aspecto da realidade está
sendo tratado como Arché de outro aspecto no lugar de Deus, o que constitui idolatria. O
Arché deve distinguir-se do PONTO ARQUIMEDIANO , que é aquele ponto firme e privilegiado
no homem, no qual ele participa simultaneamente de todos os aspectos da realidade, de
modo a conhecer o seu sentido.
ASPECTO — Sinônimo de MODALIDADE e de esfera modal.
*CIÊNCIA — Duas coisas devem ser notadas a respeito do uso que Dooyeweerd faz do
termo ciência. Em primeiro lugar, como tradução do termo holandês Wetenschap (análogo
ao termo alemão Wissenschaft), o termo abrange não apenas as ciências naturais, mas
também as ciências sociais e as humanidades, incluindo a teologia e a filosofia. Em
segundo lugar, a ciência é sempre, estritamente falando, uma questão de abstração modal,
isto é, de “destacar” analiticamente um aspecto específico da coerência temporal na qual se
encontra e examiná-lo na relação GEGENSTAND. No entanto, nessa investigação, ela não
concentra sua atenção teórica na estrutura modal de um aspecto em si; antes, foca a
coerência do fenômeno efetivo que se desenrola dentro dessa estrutura. A abstração modal
deve distinguir-se da EXPERIÊNCIA INGÊNUA/ORDINÁRIA. Desse modo, “ciência” é um termo
com aplicação mais ampla em Dooyeweerd que no sentido habitual do português, que
frequentemente se refere apenas às “ciências naturais”, mas também pode ocorrer com
sentido mais técnico.
CINEMÁTICO — Refere-se ao terceiro aspecto modal, cujo nome deriva da palavra
grega para movimento (kinema), que é o seu momento nuclear.
*CORAÇÃO — O ponto de concentração da existência humana; o foco supratemporal de
todas as suas funções temporais; a raiz religiosa unificada do homem. Dooyeweerd diz que
foi sua redescoberta da ideia bíblica de coração como a dimensão de profundidade religiosa
da vida humana, subjacente a suas funções temporais (biótica, social, econômica, etc.), que
o capacitou a libertar-se do neokantismo e da fenomenologia. No coração, essas funções
estariam concentradas numa unidade que transcende o tempo em direção a Deus, a origem
de tudo. É essa unidade transcendental que possibilitaria ao homem, na atitude teórica de
pensamento, a síntese entre os aspectos lógico e não lógico da experiência. Por essa razão,
Dooyeweerd referiu-se ao coração como o PONTO ARQUIMEDIANO do pensamento. As
escrituras também falam desse ponto focal usando termos como “alma”, “espírito” e
“homem interior”. Termos equivalentes seriam EGO, “eu”, e os termos em língua inglesa:
self, I-ness e selfhood. É o coração nesse sentido que sobrevive à morte, e é pelo
redirecionamento religioso do coração na regeneração que todas as funções temporais do
homem são renovadas.
COSMOS — Toda a realidade criada; criação. Dooyeweerd às vezes usa “cósmico” no
sentido de estrutural de “cosmológico”. Como nas expressões “esfera modal cosmicamente
anterior”, ou “tempo cósmico”, ou “sentido cósmico”.
DIALÉTICA — No uso de Dooyeweerd, uma tensão insolúvel, dentro de um sistema ou
linha de pensamento, entre duas posições logicamente polares e irreconciliáveis. Essa
tensão dialética é uma característica de cada um dos três MOTIVOS BÁSICOS não cristãos que
Dooyeweerd acreditava terem dominado o pensamento ocidental.
DING AN SICH — “coisa-em-si”. Expressão de origem alemã usada por Kant para referir-
se às coisas reais como existentes fora da nossa consciência. Kant acreditava não ser
possível conhecer as “coisas-em-si”, isto é, a própria realidade, mas apenas a sua
“aparência” para nós. Seu pensamento é chamado, nesse ponto, de fenomenalismo.
Dooyeweerd rejeitou o fenomenalismo evitando separar a “coisa-em-si” da experiência do
sujeito. Isso está refletido em sua crítica à noção clássica de SUBSTÂNCIA e em sua teoria das
relações entre SUJEITO e OBJETO.
EGO — Sinônimo de CORAÇÃO.
*ENCAPSE — De Enkapsis. Um neologismo criado por Dooyeweerd a partir do biólogo
suíço Heidenhain e derivado do grego ENKAPTEIN, “incorporar”. O termo se refere ao
entrelaçamento estrutural que pode existir entre coisas, plantas, animais e estruturas sociais
que têm seu próprio princípio estrutural interno e função qualificadora independente. Como
tal, a encapse deve ser claramente distinguida da relação parte-todo, em que há uma
estrutura interna e uma função qualificadora comum a ambos.
ESFERA DE LEI — Do inglês Law-Sphere. O círculo de leis qualificado por um núcleo de
sentido único, irredutível e indefinível é conhecido como esfera de lei. Dentro de cada
esfera-lei a realidade temporal tem uma função modal e nessa função permanece sujeita
(francês: sujet) às leis das esferas modais. Desse modo, cada esfera de lei tem um LADO-LEI
e um LADO-SUJEITO, que são dados unicamente numa correlação mútua inquebrável (ver
DIAGRAMA).
ESFERA MODAL — Equivalente de MODALIDADE, ASPECTO ou ESFERA DE LEI. Este último
termo destaca o fato de que cada esfera modal tem suas próprias leis peculiares.
ESTRUTURA DE INDIVIDUALIDADE — Esse termo representa um dos conceitos
mais difíceis na filosofia de Dooyeweerd. Cunhado tanto em holandês como em inglês pelo
próprio Dooyeweerd, levou algumas vezes a sérios mal-entendidos entre estudiosos. Ao
longo dos anos, foram feitas várias tentativas de obter um termo alternativo, algumas das
quais são descritas abaixo, mas, na ausência de um consenso, decidiu-se manter o termo
como está.
A expressão é o nome geral para a lei característica (ordem) das coisas concretas, como são
dadas na criação. Estruturas de individualidade pertencem ao LADO-LEI da realidade.
Dooyeweerd usa a expressão estrutura de individualidade para indicar a aplicabilidade de
uma ordem estrutural à existência de entidades individuais. Assim, as leis estruturais para o
Estado, o casamento, as obras de arte, para os mosquitos, para o cloreto de sódio, e assim
por diante, são chamadas estruturas de individualidade. A ideia de um todo individual é
determinada por uma estrutura de individualidade que precede a análise teórica de suas
funções modais. A identidade de um todo individual é uma unidade relativa em uma
multiplicidade de funções (ver MODALIDADE). Van Riessen prefere chamar essa lei para
entidades de estrutura de identidade (identity-structure), visto que, como tal, ela garante a
persistente identidade de todas as entidades (Wijsbegeerte [Kampen, 1970], p. 158). Em
sua obra (Alive, An Enquiry into the Origin and Meaning of Life [Vallecito, California:
Ross House Books, 1984]), M. Verbrugge introduz a sua própria perspectiva da natureza
dos (por ele denominados) fuctores (functors), uma palavra introduzida pela primeira vez
por Hendrik Hart para a dimensão das estruturas de individualidade (cf. Hart,
Understanding our World: Towards an Integral Ontology [New York, 1984], cf. p.445-46).
Como substituto da noção de estruturas de individualidade, Verbrugge introduziu o termo
idionomia (Cf. Alive, p. 42, 81ss, 91ss). Obviamente, o termo também pode causar mal-
entendidos se tomado com o sentido de que cada criatura individual (cada SUJEITO) tem a
sua própria lei única. A intenção é dizer que cada tipo de lei (nomos) tem a função de
delimitar e determinar sujeitos únicos. Em outras palavras, não importa o quanto seja
especificada a universalidade da lei, ela jamais, em sua relação com criaturas individuais
únicas, se tornará algo unicamente individual. Uma outra forma de captar o sentido da
noção de Dooyeweerd de uma estrutura de individualidade é, segundo uma sugestão oral de
Roy Clouser (Zeist, Agosto de 1986), chamá-la de lei-tipo (type-law; do grego tiponomia).
Isso simplesmente significa que todas as entidades de um certo tipo se conformam a essa
lei. A perspectiva seguinte dada por M. D. Stafleu elucida essa terminologia de um modo
sistemático (Time and Again: A Sistematic Analysis of the Foundations of Physics
[Toronto: Wedge Publishing Foundation, 1980], p. 6, 11): leis típicas (leis-tipo/tiponomias,
como a lei de Coulomb, aplicável apenas a entidades carregadas; e o princípio de Pauli,
aplicado apenas a fermions) são leis especiais que se aplicam apenas a uma classe limitada
de entidades, ao passo que as leis modais sustentam-se universalmente, para todas as
entidades possíveis. D. F. M. Strauss (‘Inleiding tot die Kosmologie’ [Bloemfontein:
Sacum, 1980]) introduz a expressão estruturas de entidade. O termo entidade compreende
tanto a individualidade como a identidade da coisa em questão — assim ele dá conta das
respectivas ênfases encontradas na noção de Dooyeweerd de estruturas de individualidade
e na noção de Van Riessen de estruturas de identidade. As palavras seguintes de
Dooyeweerd mostram que tanto a individualidade quanto a identidade de uma entidade é
determinada por sua “estrutura de individualidade”: “De modo geral, podemos estabelecer
que a duração temporal de uma coisa como um indivíduo e um todo idêntico é dependente
da preservação de sua estrutura de individualidade” (A New Critique of Theoretical
Thought, vol. III, p. 79).
ESTRUTURA MODAL — A constelação peculiar, em qualquer modalidade específica,
de todos os MOMENTOS DE SENTIDO (antecipatórios, retrocipatórios e nucleares). Contrasta
com ESTRUTURA DE INDIVIDUALIDADE.
*ÉTICA — Nome para a décima quarta e penúltima MODALIDADE, caracterizada, segundo
Dooyeweerd, pelo “amor nos relacionamentos temporais”. Este sentido técnico restrito da
palavra deve ser cuidadosamente distinguido do sentido mais comum, segundo o qual o
ético é equivalente ao normativo. No uso de Dooyeweerd, o termo NORMA aplica-se não
apenas às leis éticas, mas a todas as leis pós-psíquicas, as quais dependem de POSITIVAÇÃO.
Um sinônimo de “ético” em Dooyeweerd seria “moral”.
*EXPERIÊNCIA — A totalidade do funcionamento do ser humano. O termo tem uma
aplicação bastante ampla no uso técnico de Dooyeweerd, abrangendo todas as funções
modais, incluindo, por exemplo, a numérica, a espacial e a física. Todas as modalidades
são modos de experiência humana.
*EXPERIÊNCIA INGÊNUA/ORDINÁRIA — A experiência humana na forma original,
ainda não tratada “teoricamente” no sentido precisado por Dooyeweerd. Algumas vezes
chamada também de experiência “ordinária” ou “cotidiana”. O termo “ingênua” não tem o
sentido pejorativo de “ilusória”, “ignorante” ou “sem sofisticação”. O termo tem certa
equivalência com a expressão “senso comum”, mas esta última tem sido vista em teoria
social de um modo pejorativo que contradiz o sentido pretendido por Dooyeweerd. Ele se
esforçou para enfatizar que o pensamento teórico está fundamentado na experiência
ordinária ou ingênua, devendo preservá-la, não violá-la.
*FILOSOFIA — Na terminologia sistemática de Dooyeweerd, o sentido preciso de
“filosofia” é o de CIÊNCIA ENCICLOPÉDICA, isto é, sua tarefa básica é a investigação teórica da
integração geral das várias disciplinas científicas e seus campos de inquirição. Dooyeweerd
também usa o termo em um sentido mais inclusivo, especialmente quando afirma que toda
filosofia é enraizada em um compromisso religioso pré-teórico e que algumas concepções
filosóficas, por seu turno, encontram-se na raiz de toda erudição científica.
FILOSOFIA IMANENTISTA — Ou filosofia de imanência. Um nome para todas as
filosofias não cristãs, que procuram o fundamento e o ponto de integração da realidade
dentro da ordem temporal. O cristianismo, que reconhece um criador transcendente acima
de todas as coisas, pode abster-se de absolutizar um dos aspectos da experiência temporal
humana. Já a filosofia imanentista, ao negar a transcendência do Criador, é obrigada a
absolutizar alguma característica ou aspecto da própria criação.
FUNÇÃO DE DESTINAÇÃO — No inglês, function of destination. Tradução do termo
holandês bestemmingsfunctie, referindo-se à função que caracteriza primariamente uma
totalidade estrutural. Também chamada de FUNÇÃO GUIA, “função qualificante” (qualifying
function) ou “função final” (end-function). No caso de algumas totalidades estruturais, a
função inferior na escala modal é chamada de FUNÇÃO FUNDANTE (founding function). O
Estado, por exemplo, tem como função de destinação a esfera jurídica, e sua função
fundante é histórica.
FUNÇÃO FUNDANTE — Ou função básica. É a mais baixa das duas modalidades que
caracterizam certos tipos de totalidades estruturais. A outra modalidade com papel especial
na caracterização de uma totalidade estrutural é sua modalidade mais alta, denominada
FUNÇÃO DE DESTINAÇÃO ou FUNÇÃO GUIA. A função fundante de uma família, por exemplo, é
biótica, e sua função guia é ética.
FUNÇÃO GUIA — A mais alta função subjetiva de uma totalidade estrutural (por
exemplo, uma pedra, um animal, um empreendimento financeiro ou um Estado). Também
chamada de FUNÇÃO DE DESTINAÇÃO. Exceto no caso do homem, também se diz que esta
função qualifica a totalidade estrutural. Ela é chamada de função guia porque “guia” ou
“lidera” as funções que compõem o substrato modal de certo ente. Por exemplo: a função
guia de uma planta é biótica. A função física da planta (como é estudada, por exemplo, na
bioquímica) é diferente do funcionamento de outros objetos físicos não vivos, porque na
planta esse funcionamento é controlado pela função biótica. Dooyeweerd também chama
essa função de “função líder” (leading function).
*FUNÇÃO OBJETIVA — No inglês, object-function. A função modal que certo OBJETO
tem em sua relação com um SUJEITO. Como os objetos são definidos por suas funções
modais, isto é, por seu funcionamento dentro das MODALIDADES, a natureza de um objeto é
indissociável de sua relação com o sujeito. Segundo Roy Clouser, haveria duas formas de
um ente possuir propriedades de um certo aspecto: ativamente ou passivamente. A função
objetiva de um objeto pode ser descrita como função passiva (Roy Clouser, O mito da
neutralidade religiosa [Brasília: Monergismo, 2018]). Ver OBJETO.
*FUNÇÃO SUBJETIVA — No inglês, subject-function. Refere-se à função modal que o
SUJEITO tem na relação com um OBJETO. Segundo Roy Clouser, haveria duas formas de um
ente possuir propriedades de certo aspecto: ativamente ou passivamente. A função
subjetiva de um objeto poderia ser descrita como a sua função ativa (Roy Clouser, O mito
da neutralidade religiosa [Brasília: Monergismo, 2018]). Ver SUJEITO.
*GEGENSTAND — Um termo de origem alemã para “objeto”, usado por Dooyeweerd
como um termo técnico para uma MODALIDADE quando esta é abstraída da coerência
temporal e colocada em oposição à esfera analítica na atitude teórica de pensamento,
estabelecendo assim a “relação Gegenstand” (gegenstand-relation). Gegenstand é, pois, o
termo técnico preciso para o objeto da CIÊNCIA, enquanto o termo OBJETO é reservado, em
Dooyeweerd, para descrever as coisas como são percebidas na EXPERIÊNCIA
INGÊNUA/ORDINÁRIA.
*HISTÓRICO — Como um nome para o ASPECTO imediatamente pós-analítico, o termo é
sinônimo de “técnico” e de “histórico-cultural” em Dooyeweerd. Denota o aspecto do
“poder formativo”, seja ele o poder de um artesão sobre os seus materiais ou aquele do
estadista sobre o curso dos eventos. O aspecto histórico é o pivô no PROCESSO DE ABERTURA
modal.
*HUMANISMO/HUMANISTA — Dooyeweerd usa a palavra num sentido religioso que
não é usual em inglês nem em português. Para ele, o termo denota a filosofia não cristã
antropocêntrica do período moderno e contemporâneo. O humanismo deve ser distinguido
do paganismo por ser pós-cristão, incorporando assim muitas características de um
cristianismo secularizado.
IDEIA COSMONÔMICA — O equivalente do termo holandês WETSIDEE, que significa
“ideia de lei”. O termo “cosmonomia” (cosmonomy) teria sido sugerido a Dooyeweerd por
um dos tradutores da versão inglesa e adotado por ele. A intenção deste novo termo é
expressar a existência de uma coerência inquebrável entre a Lei de Deus (grego nomos) e a
realidade criada (grego cosmos), factualmente sujeita à Lei de Deus. A expressão completa
“ideia cosmonômica” (cosmonomic idea) refere-se às ideias fundamentais de uma
cosmovisão ou filosofia a respeito do que seria o princípio ordenador do cosmo.
Equivalentes ocasionais da expressão são “ideia de fundamento transcendental”
(transcendental ground Idea) ou “ideia básica transcendental” (transcendental basic Idea).
IDEIA DE LEI — De Law-Idea. Ver IDEIA COSMONÔMICA e WETSIDEE.
IDEIAS TRANSCENDENTAIS — Dooyeweerd identificou três problemas
transcendentais básicos em sua crítica do pensamento teórico. Esses problemas, que Kant já
havia apontado anteriormente (os problemas da cosmologia, da antropologia e da teologia
metafísicas) sem compreender sua importância, indicariam as três condições necessárias e
incontornáveis de todo pensamento teórico. São elas: (1) a ideia de totalidade do sentido
cósmico; (2) a ideia de PONTO ARQUIMEDIANO do pensamento teórico; (3) a ideia de ARCHÉ
ou da Origem do sentido cósmico. Essas três ideias juntas (mundo, homem, Deus)
compõem a IDEIA COSMONÔMICA de qualquer filosofia. Segundo Dooyeweerd, as três ideias
têm caráter hipotético: não são sempre as mesmas, variando conforme o MOTIVO BÁSICO
religioso que domina certa filosofia. No caso do pensamento cristão, a partir do motivo
básico Criação-Queda-Redenção, a ideia cosmonômica da filosofia é (1) a noção de
unidade na diversidade do sentido cósmico, (2) o CORAÇÃO como o ponto arquimediano do
pensamento e (3) Deus como a Origem absoluta do sentido cósmico. Essas “três” ideias são
interdependentes, compondo uma única ideia básica transcendental.
INDIFERENCIAÇÃO SOCIAL — Um estágio primário (“fechado” ou “primitivo”) da
cultura e civilização humana no qual as diferentes esferas da vida e da responsabilidade
humanas (cúltica, jurídica, familiar, etc.) ainda não se distinguiram claramente. Em tal
sociedade, por exemplo, uma única pessoa pode ser um patriarca, cabeça de uma tribo ou
clã e sacerdote ao mesmo tempo. Ver PROCESSO DE ABERTURA .
INTERLIGAÇÕES — Do inglês interlinkages. Termo para relações interindividuais e
intercomunais, como realidades opostas às relações restantes, que ocorrem dentro de
estruturas sociais específicas. O termo inglês foi cunhado para traduzir o holandês
maatschapsverhoudingen.
IRREDUTIBILIDADE/IRREDUTÍVEL — Incapacidade de redução teórica. Essa é a
forma negativa de se referir à diferença ou singularidade das coisas que encontramos na
criação e que o pensamento teórico deve respeitar. Visto que cada coisa tem sua natureza e
caráter peculiar, como criatura de Deus, ela não pode ser compreendida em termos de
categorias estranhas a si mesma. Ver REDUCIONISMO.
LADO FACTUAL — Designação genérica para tudo o que está sujeito ao LADO-LEI da
criação. Ver LADO-SUJEITO.
LADO-LEI — Do inglês law-side, literalmente “lado de lei”. O cosmo criado, para
Dooyeweerd, tem dois “lados” correlativos: um lado de lei, ou lado “cosmonômico”, e um
lado factual (inicialmente chamado de LADO-SUJEITO). O primeiro é simplesmente a
coerência das leis ou ordenanças de Deus para a criação. O último é a totalidade da
realidade criada, que está sujeita a essas leis. É importante notar que o lado de lei não foi
afetado pela queda, sendo sempre universalmente válido.
LADO-SUJEITO — Ou lado dos entes. O correlato de LADO-LEI. Uma vez que o pecado é
a desobediência à Lei, encontramos o pecado apenas no lado-sujeito do cosmos. Outra
característica do lado-sujeito é que só nele podemos encontrar individualidade (ver
ESTRUTURAS DE INDIVIDUALIDADE).
*LEI — A noção de lei criacional é central à filosofia de Dooyeweeerd. Tudo na criação é
sujeito à lei de Deus, e a lei é o limite/ligação entre Deus e a criação. A Lei se diferencia no
tempo em diversas leis que governam as esferas modais (leis modais) e as estruturas de
individualidade (leis típicas). Sinônimos escriturísticos para Lei são “ordenança”,
“decreto”, “mandamento”, “palavra”, etc. Dooyeweerd enfatiza que a Lei não está em
oposição à liberdade; antes, é a condição para a verdadeira liberdade, porque é ela o que
habilita as diversas funções temporais do homem. As leis lógicas, por exemplo, não são
“limites” para o pensamento num sentido negativo, mas as suas condições de possibilidade.
Veja também NORMA e LADO-LEI.
MODALIDADE (ver ESTRUTURA MODAL e ESFERA DE LEI) — Uma das quinze formas
fundamentais do ser distinguidas por Dooyeweerd (numérica, espacial, CINEMÁTICA, física,
biótica, SENSITIVO-psíquica, ANALÍTICA, HISTÓRICO-cultural, linguística, SOCIAL, econômica,
estética, jurídica, ÉTICA e PÍSTICA). As formas do ser também podem ser consideradas como
seus níveis de SIGNIFICADO. Como modos de ser, elas se distinguem agudamente das coisas
concretas que nelas funcionam. Inicialmente, Dooyeweerd distinguiu quatorze aspectos
apenas, mas desde 1950 ele introduziu o aspecto cinemático do movimento uniforme entre
os aspectos espacial e físico. Alguns sinônimos em Dooyeweerd são ASPECTOS, ESFERAS
MODAIS, “facetas”, “funções modais”, “Modi”. Ver também MODUS QUO e o DIAGRAMA.
MODUS QUO — Termo latino para “modo no qual”, ou “modo de”. Dooyeweerd às vezes
usa essa frase para destacar o fato de que uma modalidade é um modo ou forma em que
uma coisa existe ou funciona, não uma coisa em si mesma.
MOMENTO — Elemento, fragmento ou aspecto, como em “momento de verdade”, ou
MOMENTO DE SENTIDO.
MOMENTO DE SENTIDO — Um fragmento da estrutura analógica de sentido dentro de
um aspecto da realidade. Como o termo ANALOGIA, aplica-se a uma ANTECIPAÇÃO, a uma
RETROCIPAÇÃO ou ao NÚCLEO DE SENTIDO de uma modalidade. Ver também MOMENTO e
SIGNIFICADO.
*MOMENTO NUCLEAR — Um sinônimo para NÚCLEO DE SENTIDO e ESFERA DE LEI,
usado para designar o centro indefinível de sentido de uma MODALIDADE ou aspecto da
realidade criada.
MOTIVO BÁSICO — No holandês, grondmotief, no inglês ground-motive. Usado por
Dooyeweerd no sentido de motivação fundamental, força motriz. Ele distingue quatro
motivos básicos fundamentais, sendo os três primeiros dualistas e o último integral: (1)
Matéria/Forma, o motivo que dominou a filosofia grega pagã; (2) Natureza/Graça, que
subjaz ao pensamento cristão de síntese no período medieval; (3) Natureza/Liberdade, que
moldou as filosofias dos tempos modernos; e (4) o único integral: o motivo básico bíblico
triádico criação-queda-redenção, que está na raiz de uma filosofia radical e integralmente
bíblica.
NORMA/NORMATIVO — “Normas” são as leis pós-psíquicas, isto é, as leis modais que
vão da esfera analítica até a esfera pística (ver MODALIDADE e o Diagrama). Essas leis são
normas porque precisam sofrer POSITIVAÇÃO, podendo ser violadas pelo homem. Isso
distingue as normas das “leis naturais”, ou leis pré-analíticas, que são obedecidas
involuntariamente (por exemplo, no processo digestivo).
*NÚCLEO DE SENTIDO — Do inglês meaning-nucleus ou meaning-kernel. O
MOMENTO DE SENTIDO central ou nuclear de uma modalidade, que a distingue das outras e
caracteriza todas as analogias dentro daquela modalidade. Acessível pela intuição, mas
além da possibilidade de definição teórica. Sinônimo de MOMENTO NUCLEAR.
*OBJETO — Qualquer coisa qualificada por uma função objetiva e assim correlacionada
a uma função subjetiva. Uma obra de arte, por exemplo, é qualificada objetivamente por
sua correlação com a função humana subjetiva da apreciação estética. Similarmente, os
elementos de um sacramento são objetos fiduciais. A função que certo objeto tem em sua
relação com um sujeito é denominada tecnicamente FUNÇÃO OBJETIVA ou função passiva.
No caso, o sacramento teria uma função objetiva fiducial.
ORIGEM — Sinônimo de ARCHÉ.
PALAVRA-REVELAÇÃO — A revelação de Deus nas Escrituras, distinta da revelação
na criação.
*PÍSTICA/PÍSTICO — Um dos nomes para a décima quinta e mais alta modalidade,
derivado de pístis, a palavra grega neotestamentária para “fé”. Outro nome para essa
modalidade é “fiducial”, do latim fides, “fé”. Todos os homens têm fé no sentido de
lealdade última, seja ao Deus das Escrituras ou a algum ídolo. Dooyeweerd é cuidadoso em
distinguir entre a modalidade pística e a religião, que é central e subjaz a todas as funções
humanas, e não apenas à sua fé. Alguns discípulos adotaram termos como “confessional”
ou “certitudinal” como sinônimos de “pístico”.
Em um artigo não publicado (Dooyeweerd on Religion and Faith: A Response)
respondendo à interpretação de Dooyeweerd feita por James Olthuis, Roy A. Clouser
propôs como nome para essa modalidade o termo “confiabilidade” (trustworthiness), o qual
seria qualificado de acordo com o tipo de relação entre o SUJEITO humano e o OBJETO.
Haveria diferentes formas de confiabilidade, dependendo da MODALIDADE envolvida e da
natureza do objeto: a confiabilidade física de um tipo de material para a indústria, a
confiabilidade econômica de certa empresa, a confiabilidade moral de uma pessoa, etc.
Assim, um elemento variável de confiança estaria sempre presente na relação do sujeito
humano com qualquer objeto. Finalmente, a relação de uma pessoa com aquilo que ela
considera incondicionalmente confiável seria a relação de confiança religiosa, ou de “fé”
no sentido próprio.
*PONTO ARQUIMEDIANO — Ou “ponto de Arquimedes”. Um lugar seguro para
permanecer; um ponto vantajoso a partir do qual todas as coisas podem ser vistas na
perspectiva correta; o ponto de apoio correto para mover um peso. O termo vem da história
do cientista grego Arquimedes, que teria afirmado a respeito do princípio da alavanca: “dê-
me um ponto de apoio, e eu moverei o mundo”. O ponto arquimediano do pensamento
seria aquela dimensão da existência mais adequada para uma visão de conjunto da
realidade, ou o ponto no homem no qual ele participa da estrutura essencial da realidade
tendo-a como sua e sendo capaz de compreender seu sentido. Na tradição filosófica, este
ponto de apoio seria o pensamento racional. Para Dooyeweerd, este ponto de apoio é o
CORAÇÃO humano, e não a racionalidade, que é apenas uma de suas funções.
Entretanto, o coração só se torna o ponto arquimediano por participação. O homem natural
tenta encontrar um ponto de apoio para o seu pensamento entre as suas funções temporais,
porque lhe falta o autoconhecimento para reconhecer a transcendência do seu coração em
relação a essas funções. Mas Jesus Cristo é a raiz da humanidade redimida e o centro do
cosmo restaurado, tornando-se assim o ponto arquimediano verdadeiro. Por meio da união
com Cristo, os corações de todos os regenerados participam conjuntamente do ponto
arquimediano, obtêm verdadeiro autoconhecimento e tornam-se capazes de captar o sentido
verdadeiro das coisas.
POSITIVAÇÃO — O termo inglês (positivation) foi cunhado para traduzir o holandês
positiveren, que significa “tornar positivo”, no sentido de tornar um princípio efetivamente
válido num dado tempo ou lugar. Por exemplo: a lei positiva é a legislação que está em
vigor em dado país em certo momento; deve ser distinguida dos princípios da justiça, que
precisam ser positivados numa forma particular de legislação. Em sentido geral, o termo
refere-se à implementação responsável de todos os princípios NORMATIVOS (ou leis modais
pós-psíquicas) na vida humana, como incorporados, por exemplo, na legislação estatal, na
política econômica, nas orientações éticas, etc.
PRINCIPIUM EXCLUSAE ANTINOMIAE — Expressão técnica cunhada por
Dooyeweerd em latim, traduzindo-se como “princípio da antinomia excluída”. Norma
geral da análise teórica que proíbe toda confusão entre diferentes tipos de leis modais,
tornando inválidos todo e qualquer conceito que envolva REDUCIONISMO intermodal. Os
paradoxos de Zeno seriam exemplos notórios de antinomias intermodais.
PROCESSO DE ABERTURA — No inglês, opening process. O processo pelo qual
antecipações modais latentes são “abertas” ou atualizadas. O significado modal é então
“aprofundado”. É esse processo que torna possível o desenvolvimento cultural da
sociedade de um estágio primitivo (“fechado”, “indiferenciado”) para um estágio civilizado
(“aberto”, “diferenciado”). Por exemplo, através do processo de “abertura” ou
“desvelamento” da antecipação ética na jurídica, o significado modal da justiça é
aprofundado e a sociedade pode se mover de um princípio de “olho por olho” para a
consideração de circunstâncias atenuantes na administração da justiça.
QUALIFICAÇÃO MODAL — A FUNÇÃO GUIA de uma coisa é aquela função que
qualifica essa coisa no sentido de caracterizá-la. A função qualificante é sempre a mais alta
MODALIDADE em que o ente funciona como sujeito. Nesse sentido, dizemos que uma pedra é
qualificada fisicamente, uma planta é qualificada bioticamente, uma obra de arte é
qualificada esteticamente, e um Estado é qualificado juridicamente. Em um sentido
diferente, uma modalidade é “qualificada” por seu NÚCLEO DE SENTIDO.
*RADICAL — Dooyeweerd frequentemente usa esse termo com referência implícita ao
sentido grego de radix, “raiz”. Este uso não deve ser confundido com a conotação política
do termo “radical”, nas línguas inglesa e portuguesa. Em outras obras, Dooyeweerd às
vezes parafraseia o seu uso do termo “radical” com a frase “penetrando até à raiz da
realidade criada”.
REDUCIONISMO — Reduzir alguma coisa a outra é dar uma explicação teórica da
primeira em termos da segunda. Em sentido pejorativo, significa fazer isso
injustificavelmente, como quando a moralidade é explicada em termos meramente
psíquicos, ou o psiquismo em termos meramente bioquímicos. O reducionismo é aquilo
que William James apelidou de “nada-mais-ismo” (nothing-buttery). A insistência de que a
vida, por exemplo, seja “nada mais” que a interação de átomos, ou que a experiência
estética seja “nada mais” que a forma como o organismo se adapta ao meio ambiente, etc.
A constante ênfase de Dooyeweerd na IRREDUTIBILIDADE dos ASPECTOS e seu uso do conceito
kuyperiano de SOBERANIA DAS ESFERAS expressou sua incansável oposição ao reducionismo
hoje dominante e constitui um pedido de reconhecimento teórico da riqueza e diversidade
da realidade criada.
*RELIGIÃO/RELIGIOSO — Para Dooyeweerd, a religião não é uma área ou esfera da
vida, mas a sua raiz, que a envolve completamente e lhe confere direção. É serviço a Deus
(ou a um não Deus substituto) em cada domínio do empreendimento humano. Como tal,
deve ser claramente distinguida da fé religiosa, que é apenas uma das muitas ações e
atitudes da existência humana. A religião é um assunto do CORAÇÃO, orientando assim
todas as funções humanas. Dooyeweerd diz que a religião é “o impulso inato do eu humano
em direção à verdadeira ou a uma simulada Origem absoluta de toda a diversidade
temporal do sentido” (A New Critique of Theoretical Thought, vol. I, 1953, p. 57).
*RETROCIPAÇÃO — Uma característica em certa MODALIDADE que se refere a uma
esfera anterior na escala modal, como uma espécie de reminiscência, mas mantendo a
qualificação modal da esfera na qual se encontra. A “extensão” de um conceito, por
exemplo, é um tipo de “espaço lógico”: lembra analogicamente a esfera espacial,
apontando para o seu NÚCLEO DE SENTIDO, mas permanece com um sentido estritamente
lógico. Ver também ANTECIPAÇÃO.
SENSITIVO — O nome que Dooyeweerd prefere para a sexta modalidade, qualificada
pela sensação ou sentimento como seu núcleo de sentido. Anteriormente ele usou o termo
“psíquico”, que veio a considerar equivocado, pois o que geralmente denominamos
“psíquico” transcende à sensitividade, descrevendo não uma dimensão apenas, mas uma
dinâmica transmodal.
*SIGNIFICADO — Dooyeweerd usa o termo “significado” (inglês meaning, holandês
zin) com um sentido incomum. Ele quer apontar com isso para o caráter referencial, não
autossuficiente, ou heterônomo da realidade criada, que sempre aponta para além dela
mesma em direção a Deus como Origem. A análise da estrutura ANALÓGICA dos vários
aspectos da realidade revela que cada um deles depende dos outros, e nenhum tem sentido
por si mesmo. Não há, por assim dizer, um ponto de descanso na realidade criada, um fato
ou substrato que não seja relativo aos outros. Isso se dá porque a realidade criada não é
feita de uma substância autoexistente, mas é como que um sinal da realidade incriada
transcendente. Para Dooyeweerd, realidade é significado nesse sentido e, portanto, não é
exato dizer que ela tem significado. “Significado” ou “sentido” é a alternativa cristã para o
conceito metafísico de SUBSTÂNCIA encontrado na filosofia imanentista. Note que vários
conceitos são formados a partir deste: núcleo de sentido, lado de significado, momento de
sentido, plenitude de sentido ou totalidade do sentido cósmico.
*SÍNTESE — (1) A combinação, em um único conceito filosófico, de temas
característicos tanto da filosofia pagã como da religião bíblica. É com essa característica da
tradição intelectual cristã desde os tempos patrísticos que Dooyeweerd se esforça para fazer
uma ruptura radical. (2) Epistemologicamente falando, o termo síntese também é usado
para designar a forma com que uma multiplicidade de características integra-se na unidade
de um conceito. A reunião do aspecto lógico do ato teórico de pensamento com o seu
GEGENSTAND não lógico denomina-se síntese intermodal de sentido.
SOBERANIA DAS ESFERAS/SOBERANIA MODAL — A expressão inglesa sphere
sovereignty (também vertida para o português como “esfera de soberania”) traduz a
expressão de Kuyper Souvereiniteit in eigen kring, que significava que as várias esferas
distintas da autoridade humana, como a família, a igreja, a escola e os negócios, têm cada
uma a sua própria responsabilidade e poder decisório, que não pode ser usurpado por
aqueles que têm autoridade em outra esfera, como, por exemplo, o Estado. Dooyeweerd
retém esse sentido kuyperiano original, mas estende o seu uso para significar também a
IRREDUTIBILIDADE das esferas modais, tornando assim o princípio das “esferas de soberania”
um princípio cosmológico. Este é o princípio ôntico sobre o qual o princípio social de
Kuyper se baseia, visto que cada uma das “esferas” sociais mencionadas é qualificada por
uma modalidade irredutível diferente.
*SOCIAL — Nome da décima modalidade. O termo é insuficiente, visto que se refere
nesse contexto apenas a uma faixa muito limitada dos fenômenos e relacionamentos
comumente denominados como “sociais”, restringindo-se ao campo do “intercurso social”
(a forma como Dooyeweerd circunscreve o momento nuclear do social). Isso inclui coisas
como polidez, boas maneiras e etiqueta, normas de relacionamento, funções e limites
comunais, etc.
SUBSTÂNCIA — No uso de Dooyeweerd, o conceito metafísico de uma estrutura
subjacente às entidades temporais que exista por si mesma e seja autossuficiente. Segundo
Dooyeweerd, o conceito de substância ignora a natureza referencial das funções modais e
tenta fixar seu conteúdo como se elas não fossem modos do ser, mas essências metafísicas.
A ideia de substância introduz um dualismo entre o ente individual e a sua essência ou
forma universal, uma vez que diversos entes particulares participam em graus variados
dessa única forma essencial e desconecta o ente individual dos outros entes com os quais
ele se relaciona, uma vez que sua essência fica definida independentemente da relação com
eles. Em oposição à noção de substância, Dooyeweerd apresentou o conceito de Ser como
SIGNIFICADO.
SUBSTRATO — De Substratum. O agregado das modalidades que precedem um dado
aspecto na escala modal. Os aspectos numérico, espacial, cinético e físico, por exemplo,
formam juntos o substrato do aspecto biótico. Eles são também o fundamento necessário
sobre o qual o aspecto biótico repousa e sem o qual não pode existir. Ver também
SUPERSTRATO (e o DIAGRAMA).
*SUJEITO — Usado em dois sentidos por Dooyeweerd: (1) “sujeito”, como o que se
distingue da LEI; (2) “sujeito”, como o que se distingue de OBJETO. O segundo sentido é
quase equivalente ao uso comum, mas o primeiro não é o usual, podendo trazer alguma
confusão. Uma vez que todas as coisas estão “sujeitas” à Lei, objetos também são sujeitos
no primeiro sentido. Assim, no caso de entidades específicas, dizemos que todas elas —
sujeitos e objetos — se encontram no LADO-SUJEITO da realidade (subject-side).
O lado-sujeito compõe-se então de sujeitos e objetos. Entidades funcionam como sujeitos
até à sua FUNÇÃO GUIA ou FUNÇÃO DE DESTINAÇÃO, e daí em diante funcionam como objetos
em relação a outras entidades com função guia mais elevada na escala modal. A função que
um sujeito desempenha na relação com um objeto é denominada FUNÇÃO SUBJETIVA ou
função ativa. Uma árvore, por exemplo, é um sujeito biótico, pois sua função guia é
biótica; mas ela é um objeto quanto às esferas pós-bióticas. Uma pessoa que preserva a
árvore desempenha uma função subjetiva (ou ativa) econômica, e torna manifesta a função
objetiva (ou passiva) econômica da árvore.
SUPERESTRATO — De Superstratum. O agregado das modalidades que se seguem a um
determinado aspecto na escala modal. Por exemplo, os aspectos pístico, ético, jurídico e
estético constituem juntos o superestrato do aspecto econômico. Ver SUBSTRATO.
*TEMPO — Em Dooyeweerd, um princípio ontológico geral de continuidade intermodal,
com aplicação muito mais ampla que a nossa noção comum de tempo, a qual é equacionada
por ele com a manifestação física desse tempo cósmico geral. Ele não está, assim,
coordenado com o espaço compondo duas “dimensões” de tipo semelhante. Todas as
coisas criadas, com exceção do CORAÇÃO do homem, estão no tempo. No LADO-LEI, o
tempo se expressa como ordem temporal e, no LADO-SUJEITO (incluindo as relações sujeito-
sujeito e sujeito-objeto), como duração temporal.
TIPO RADICAL — A classe de todas as estruturas de individualidade com a mesma
qualificação modal, como, por exemplo, animais, empresas e obras de arte, que são
qualificados respectivamente pelas modalidades sensitiva, econômica e estética.
TRANSCENDENTAL — (1) Um termo técnico derivado da filosofia de Kant, que denota
as condições estruturais A PRIORI que tornam a experiência humana (especificamente o
conhecimento humano e o pensamento teórico) possível. Como tal, o conceito deve ser
claramente distinguido do termo “transcendente”, que significa simplesmente “aquilo que
vai além”. (2) A ideia básica (transcendental) de uma filosofia pressupõe a esfera central e
transcendente da consciência (o CORAÇÃO humano). Este é o segundo sentido com que
Dooyeweerd usa o termo transcendental: através da ideia básica transcendental
(transcendental ground-Idea), a filosofia aponta para além de si mesma, em direção ao
fundamento religioso último que transcende o campo do pensamento.
UNIVERSALIDADE DAS ESFERAS/UNIVERSALIDADE MODAL — No inglês,
sphere universality, ou “universalidade de esfera”. A contrapartida de SOBERANIA DE ESFERA.
É o princípio segundo o qual todas as modalidades estão intimamente conectadas umas às
outras em uma coerência inquebrável. Assim como “esfera de soberania” ressalta diferença
e a irredutibilidade dos aspectos modais, “universalidade modal” enfatiza que cada um
deles depende de todos os outros para o seu significado. Isso é evidenciado pelas
ANALOGIAS na ESTRUTURA MODAL de cada uma das MODALIDADES.
WETSIDEE — O termo holandês original para IDEIA COSMONÔMICA, literalmente “ideia de
lei”. A filosofia de Dooyeweerd é conhecida na Holanda como a Wijsbegeerte der Wetsidee
(“filosofia da ideia de lei”). O nome deriva do lugar central da LEI criacional no
pensamento de Dooyeweerd.

[1]
Este ensaio constitui o capítulo I em Verkenningen (“Calvinistische Wijsbegeerte”), Buijten & Schipperheijn,
Amsterdã, 1962. Foi publicado pela primeira vez em 1956 em Scientia (W. de Haan, Zeist, 1956, pp.127-159).
Tradutor: John Vriend; Editores: T. Grady Spires, Natexa Verbrugge.
[2]
Ver a explicação do termo “radical” no Glossário. [N. do E., DFMS]
[3]
Ver a explicação do termo “motivo básico” no Glossário. [N. do E.]
[4]
Isto é, uma crítica que não deixa de levar em conta mesmo os axiomas filosóficos. [N. do T.]
[5]
Ver a explicação do termo “motivo básico” no Glossário. [N. do E.]
[6]
A investigação transcendental dessas estruturas de individualidade é, ao lado da investigação das estruturas modais,
certamente a parte positiva mais importante da filosofia da ideia cosmonômica. [N. do E.]
[7]
Esses termos em geral causam confusões desnecessárias, já que utilizam, com outro sentido, conceitos já
solidificados na tradição filosófica ocidental. É por isso que Roy Clouser, um dos principais intérpretes
contemporâneos do pensamento de Herman Dooyeweerd, opta pelas expressões “função ativa” (para a função-sujeito) e
“função passiva” (para função-objeto). [N. do T.]
[8]
Vejas as notas, no Glossário, sobre “estrutura de individualidade”. [N. do E.]
[9]
Ver, no Glossário, a definição de Gegenstand e os usos particulares que Dooyeweerd faz do termo. [N. do T.]
[10]
Para a filosofia cosmonômica, uma antinomia só se dá na atitude teórica; pois quando esta abstrai uma modalidade
de sua intercoerência temporal, é possível (embora não necessário) que leve à confusão entre as leis que se aplicam à
modalidade abstraída e as leis das demais modalidades. É, mais especificamente, uma contradição lógica originada pela
confusão ou indistinção entre as leis que regem cada aspecto modal (as esferas de lei). Conforme definição do
Glossário: Trata-se de “uma contradição lógica que surge de uma falha em distinguir os diferentes tipos de leis válidas
em diferentes modalidades. Uma vez que leis ônticas não conflitam (ver Principium Exclusae Antinomiae), uma
antinomia é sempre um sinal lógico de Reducionismo ontológico. Exemplo: os paradoxos de Zeno, causados por uma
confusão entre o aspecto espacial e o aspecto cinético (do movimento)”. [N. do T.]
[11]
Isso não significa que a estrada para a crítica transcendental esteja fechada à filosofia da imanência. Nesse caso, a
crítica transcendental teria de romper com a comunidade do pensamento filosófico à qual se dispõe a servir. Ao nível
da reflexão filosófica-teórica, a filosofia da ideia cosmonômica faz um constante apelo às situações estruturas
universalmente válidas que permaneceriam ocultas enquanto a atitude teórica do pensamento não as considerasse
criticamente. O fato de que a filosofia da imanência, por si, não é capaz de romper seu próprio ponto de vista
dogmático não demonstra que não seja capaz, de acordo com nossa crítica transcendental, de ser trazida a uma
autorreflexão crítica sobre seu próprio ponto de partida central. Somente impede, na medida em que seus aderentes
rejeitem conscientemente o motivo básico bíblico, que cheguem em algum momento a um autoconhecimento radical
que lhes revele o sentido apóstata de seu ponto de partida central. A declaração no texto busca simplesmente enfatizar
esse ponto.
[12]
Bos questiona o modo com que Dooyeweerd explica a gênese da tensão dialética inconciliável presente no
pensamento grego (cf. Bos, A.P.: Dooyeweerd en de wijsbegeerte van de oudheid, in: Herman Dooyeweerd 1894-1977,
Breedte en actualiteit van zijn filosofie, editado por H.G. Geertsema, J. Zwart, J. de Bruin, J. van der Hoeven & A.
Soeteman, Kok, Kampen 1994, p.197-227. De acordo com Bos, no entanto, o valor da análise dooyeweerdiana dessa
tensão dialética permanece inteiramente intacto: “Naar onze mening blijft de waarde daarvan overeind” [Em nossa
opinião, seu valor permanece inteiramente intacto] — p. 220. [N. do E.]
[13]
Essa contraposição metafísica é também conhecida como a oposição entre essência e aparência. [N. do E.]
[14]
A afirmação de Dooyeweerd não implica que os cristãos que adotaram a síntese com um motivo básico grego ou
humanista moderno deixam de sê-lo; pelo contrário, como o próprio filósofo disse anteriormente neste ensaio, a
filosofia cosmonômica busca não só o diálogo entre as várias tradições cristãs, pois acredita que o motivo básico
bíblico é católico (no sentido de universal) e portanto implode todo sectarismo, mas busca, de igual modo, a inserção na
comunidade filosófica acadêmica, evitando o isolacionismo intelectual, ao mesmo tempo em que expõe seu ponto de
partida, mantendo-se firme nele. Com efeito, segundo Dooyeweerd, é preciso que, na interação científica e teórica, cada
parte explicite seu ponto de partida (os diferentes motivos básicos), de modo que esse diálogo acadêmico (ao qual,
repetimos, a filosofia cosmonômica busca integrar-se) se torne honesto e realmente frutífero. Só assim seria possível de
fato realizar-se um dos objetivos a que a crítica transcendental se propõe, isto é, desmascarar a pretensa autonomia do
pensamento teórico, que confunde hipóteses teóricas com crenças religiosas. Assim, Dooyeweerd critica os diversos
autores da tradição cristã, sobretudo Tomás de Aquino, que, ainda quando movidos por boas intenções, e até sem o
perceberem, introduziram em seus sistemas um motivo básico não cristão ao acomodarem (pretensas) hipóteses
filosóficas sob a justificativa da autonomia da razão. Conforme demonstrado nos três problemas transcendentais,
nenhuma teoria é religiosamente neutra, consciente disto ou não, de forma que essa tentativa de síntese é impossível
(pela própria natureza da antítese religiosa). Entretanto, reforçamos: isto não significa que, para Dooyeweerd, esses
autores não sejam cristãos, nem que não cristãos não ofereçam diversas percepções acertadas no empreendimento
teórico e científico e que, por isso, é preciso rejeitá-las. A bem da verdade, toda a filosofia e ciência são apenas
tentativas falíveis de compreensão do mundo criado por Deus (ou, como Dooyeweerd prefere, a “ordem cósmica de
Deus”); e, conforme reconhecido por Dooyeweerd em diversos outros lugares, a filosofia da ideia cosmonômica não
possui superioridade inata sobre os demais esforços teóricos, nem é infalível. Novamente, o ponto para Dooyeweerd é
de que toda hipótese teórica tem de passar pelo crivo do motivo (e não propriamente das formulações doutrinárias) da
criação, queda e redenção. [N. do T.]
[15]
Na fenomenologia, a intencionalidade é o ato de consciência na apreensão do objeto. Por sua vez, o ato das coisas
de serem suscetíveis à apreensão de uma consciência é o “dado”. [N. do T.]
[16]
“De Zin der Geschiedenis” — retirado de: De Zin der Geschiedenis, editado por J.D. Bierens de Haan et.al., Van
Gorcum & Comp. N.V., Assen, 1942, p.17-27. Tradutores: K.C. and A.L. Sewell; Editor: Magnus Verbrugge.
[17]
Dooyeweerd vê o tempo como uma dimensão abrangente da realidade e que garante uma ordem de sucessão
(anterior e posterior) entre os diferentes aspectos. Inicialmente, ele denominava de “analogias” as referências aos
aspectos modalmente anteriores; e de “antecipações” as referências aos aspectos modalmente posteriores. Por fim, ele
simplificou essa distinção e passou a usar o termo “analogia” para abarcar esses dois “momentos intermodais de
coerência de sentido” — o que implica que temos de distinguir, nestes ensaios, entre analogias retrocipatórias e
analogias antecipatórias (cf. A New Critique of Theoretical Thought, Vol.II, 1955:75).
[18]
Remetemos o leitor à nota 7, para um entendimento mais profundo do uso singular
dessa expressão por Dooyeweerd. [N. do T.]
[19]
Originalmente, uma palestra ministrada na Koninglijke Akademie van Wetenschappen (Royal Academy of
º
Sciences and Humanities) em Amsterdã, por ocasião do 150 aniversário da instituição, em maio de 1958, N.V. Noord-
Hollandse Uitgeversmaatschappij, Amsterdam, p.213-228. Traduzido pela Academia; editado por Magnus Verbrugge.
[20]
Gênesis 1.28: “E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a;
dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra”.
[21]
O aspecto aqui designado “seguridade” é também chamado, mais comumente, de
pístico (do grego: pistis, fé). No caso, para Dooyeweerd, o núcleo modal do aspecto pístico
é a certeza ou segurança. Ver no Glossário o verbete PÍSTICO/PÍSTICA. [N. do T.]
[22]
Sib (ou sippe) é um termo utilizado na antropologia e designava originalmente a
instituição social dominante nas antigas comunidades tribais germânicas. Pode referir-se
tanto a um clã (um amplo grupo familiar que baseia as relações entre seus membros nas
relações de sangue, sendo, também, encabeçado por um chefe e progenitor reconhecido)
quanto a uma família menor, cujos membros ficam sobre a guarda (mund) do chefe de
família, até que, no caso dos rapazes, atinjam a maturidade física e, no caso das moças, se
casem e passem assim à guarda de seus maridos [Nota do Tradutor].
[23] Este ensaio constitui o capítulo IV, “De gevaren van de geestelijke ontwapening der Christenheid op het gebied
van de Wetenschap” no volume intitulado Geestelijk Weerloos of Weerbaar? (Intelectualmente Indefeso ou Armado?),
com introdução de J.H. DeGoede Jr., Ed. (editora não identificada, Amsterdã, 1937, p. 153-212). Tradutor: John
Vriend; Editors: T. Grady Spires, Natexa Verbrugge, Magnus Verbrugge.
[24]
O termo holandês “wetenschap” tem um escopo mais amplo que a palavra em português “ciência”, embora
frequentemente seja a ela associada. A bem da verdade, “wetenschap” se refere a todas as disciplinas acadêmicas, não
apenas às ciências naturais (e.g. matemática e física). [N. do E.]
[25]
No tocante às seções que se seguem, ver meu “De Wijsbegeerte der Wetsidee,” Livro I (Paris, Amsterdã, 1935),
Prolegomena; e o primeiro volume de minha obra A New Critique of Theoretical Thought (Collected Works, A-Series,
Mellen Press, Volumes 1-4).
[26]
Cf. Das Gebot und die Ordnungen (1932), p.76.
[27]
Op.cit., p.246.
[28]
Op.cit., p.664, note 470.
[29]
Conforme Calvino, inclusive, em Opera 49, 38: “nec vero cordis nomen pro sede affectuum, sed tantum pro
intellectu capitur", onde ele segue a concepção que se tornou comumente aceita desde Agostinho. No entanto, Bohatec,
em sua obra Calvin und das Recht (1934, p. 6), demonstrou que Calvino não localizava a "essência" do ser humano na
"razão". Ademais, nas Institutas (III, 2, 33), Calvino acusa os escolásticos de terem se desviado da perspectiva bíblica,
por causa do entendimento que tinham da fé como apenas conhecimento intelectual; ao concebê-la assim, não
perceberam que a fé tinha de estar viva no coração do indivíduo.
[30]
Isto é, a região do inteligível, tal como consta em República, VI, 508c; 509d; VII, 517b. [N. do T.]
[31]
Inicialmente, Dooyeweerd distinguia apenas quatorze aspectos. Em sua primeira designação da modalidade física,
ele usava o termo “movimento” (cf. De Wijsbegeerte der Wetsidee, Vol.II, p.71: “den wetskring der beweging”). Por
fim, depois de 1950, ele percebeu que a ciência da cinemática (foronomia e, atualmente, mecânica) pode “definer um
movimento uniforme sem qualquer referência a uma força causadora” — uma percepção que o inspirou a distinguir
entre aspectos cinemático e físico (cf. A New Critique of Theoretical Thought [NC], Vol. II, p.99). Um ponto histórico
digno de nota associado a isso é o fato de que o cunhado de Dooyeweerd, o falecido professor D.H.Th. Vollenhoven,
apresentou quinze modalidades na primeira edição de sua obra Isagogé Philosophiae em 1930 distinguindo a o aspecto
mecânico do aspecto físico. Contudo, nas edições de 1936, assim como as posteriors, essa distinção desaparece, pois
Vollenhoven reconhece então o aspecto físico (cf. K.A. Bril: A Selected and Annotated Bibliography of D.H.Th
Vollenhoven, in: Philosophia Reformata, 1973, p.216). Dooyeweerd, por outro lado, quanto a isso, menciona
apropriadamente a lei da inércia, conforme formulada por Galileu (cf. New Critique II, p. 99). A. Maier (Die Vorläufer
Galileis im 14. Jahrhundert, Roma 1949, pp.132-215) demonstra, de modo persuasivo, que essa lei havia sido
antecipada por pensadores do século XIV. Num contexto distinto, P. Janich enfatizou uma “rígida distinção entre as
declarações foronômicas (posteriormente chamadas de cinemáticas) e as dinâmicas” (“Tragheitsgesetz und
Inertialsystem”, in: Frege und die modern Grundlagenforschung, ed. Chr. Thiel, Meisenheim am Glan, 1975, p.68).
[32]
Analisei essas questões de modo mais extensivo em meu artigo “De Wetsbeschouwing in Brunner's boek ‘Das
Gebot und die Ordnungen’” (A concepção de lei na obra “O Imperativo Divino”, de Brunner), no periódico
Antirevolutionaire Staatkunde, (órgão trimestral, publicado por Kok, Kampen), 1935, p.1-42.
[33]
Cf. E. Weber, Die philosophische Scholastik des deutschen Protestantismus im Zeitalter der Orthodoxie,
Abhandlugen zur Philosophie und ihrer Geschichte, edited by R. von Falckenberg, 1st Volume, 1907.
[34]
Ver meu: De Wijsbegeerte der Wetsidee, Livro I (Amsterdã, Paris, 1935), Parte II, p. 181 s. (A New Critique of
Theoretical Thought, Vol.I, p. 150 s.).
[35]
“Radical”, aqui, refere-se mais uma vez ao significado particular que o termo adquiriu na filosofia de Dooyeweerd,
conforme definido no Glossário. [N. do T.]
[36] Considerações de Herman Dooyeweerd Jr., Presidente do The Herman Dooyeweerd Foundation, palestra
ministrada na ocasião da inauguração official do “The Dooyeweerd Centre for Christian Philosophy”, no Redeemer
College, em 5 de novembro de 1994.
[37]
Em edição brasileira: Contornos da filosofia cristã, trad. Rodolfo Amorim de Souza (São Paulo: Cultura Cristã,
2015), p. 251-263. [N. do R.]

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