Resenha Do Filme Contágio
Resenha Do Filme Contágio
Resenha Do Filme Contágio
2022
[www.reciis.icict.fiocruz.br] e-ISSN 1981-6278
https://doi.org/10.29397/reciis.v16i2.3314 RESENHAS
1
Fundação Oswaldo Cruz, Instituto Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
a
Mestrado em Comunicação pela Universidade Federal de Goiás.
Reciis – Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 488-495, abr.-jun. 2022
[www.reciis.icict.fiocruz.br] e-ISSN 1981-6278
RESUMO
Esta resenha aborda o filme Contágio (Contagion), longa-metragem norte-americano de 2011, com direção
de Steven Soderbergh e roteiro de Scott Z. Burns. O filme acompanha a trajetória de disseminação de um
vírus zoonótico a partir de Hong Kong para o resto do mundo. Enquanto isso, autoridades científicas e
sanitárias se mobilizam para combater a nova doença, que rapidamente atinge diversos países, fazendo
milhares de vítimas. Em 2020, a procura pelo thriller aumentou devido à semelhança com a pandemia de
covid-19, evidenciando o potencial do cinema para a divulgação científica ao abordar conceitos, processos
e controvérsias da ciência. Com um roteiro cientificamente apurado, Contágio também ressalta o potencial
preditivo da ciência em relação a emergências sanitárias.
ABSTRACT
This review addresses the 2011 American feature film Contagion, directed by Steven Soderbergh and
screenplayed by Scott Z. Burns. The film follows the trajectory of the spread of a zoonotic virus from Hong
Kong to the rest of the world. Meanwhile, scientific and health authorities are mobilizing to fight the new
disease, which is rapidly reaching several countries, claiming thousands of victims. In 2020, the demand
for the thriller increased due to the similarity with the covid-19 pandemic, highlighting the potential of
cinema for science communication by approaching science’s concepts, processes and controversies. With
a scientifically accurate script, Contagion also underlines the predictive potential of science in relation to
health emergencies.
Keywords: Cinema; Disease outbreaks; Pandemic; Scientific communication and diffusion; Covid-19.
RESUMEN
Esta reseña aborda el largometraje estadounidense de 2011 Contagio (Contagion), dirigido por Steven
Soderbergh y con guión de Scott Z. Burns. La película sigue la trayectoria de la propagación de un virus
zoonótico desde Hong Kong al resto del mundo. Mientras tanto, las autoridades científicas y sanitarias se
movilizan para combatir la nueva enfermedad, que rápidamente llega a varios países y se cobra miles de
víctimas. En 2020 aumentó la demanda del thriller por la similitud con la pandemia del covid-19, desta-
cando el potencial del cine para la divulgación científica al abordar conceptos, procesos y controversias de
la ciencia. Con un guión científicamente certero, Contagio también destaca el potencial predictivo de la
ciencia en relación con las emergencias sanitarias.
INFORMAÇÕES DO ARTIGO
Obra resenhada: CONTÁGIO. Direção: Steven Soderbergh. Burbank: Warner Bros, 2011. 1 vídeo (105 min). Disponível em:
https://itunes.apple.com/br/movie/cont%C3%A1gio/id499581030. Acesso em: 25 abr. 2022.
Agradecimentos/Contribuições adicionais: Luisa Massarani e Penélope Andreani Valadares contribuíram para o estudo
citado nesta resenha (MASSARANI; NEVES; VALADARES, 2021).
Histórico do artigo: submetido: 14 abr. 2022 | aceito: 14 abr. 2022 | publicado: 30 jun. 2022.
Licença CC BY-NC atribuição não comercial. Com essa licença é permitido acessar, baixar (download), copiar, imprimir,
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créditos de autoria e menção à Reciis. Nesses casos, nenhuma permissão é necessária por parte dos autores ou dos editores.
A história está repleta de registros de surtos, epidemias e pandemias. Desde a Antiguidade, passando
pelo período medieval até a modernidade, doenças transmitidas em larga escala sempre desafiaram a
humanidade (REZENDE, 2009). O desenvolvimento da microbiologia, a partir do século XIX, descortinou
o universo dos organismos minúsculos, por um lado revelando nossa vulnerabilidade diante de ameaças
até então invisíveis, por outro abrindo possibilidades de combatê-las. O concomitante avanço da medicina
e de especialidades como a imunologia e a biotecnologia nos permitiram chegar ao momento presente
com um relativo controle ou mesmo a erradicação de diversas enfermidades. Entretanto, é importante não
perder de vista que há pouco mais de 100 anos a gripe espanhola infectava um terço da população mundial
(WHO, 2018); que a aids, mesmo depois de quatro décadas, ainda é um problema de saúde pública; e que
o início do século XXI foi – e está sendo – marcado por graves emergências sanitárias, como a Síndrome
Respiratória do Oriente Médio (MERS), a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), o ebola, as gripes
suína (H1N1) e aviária (H5N1), além da atual pandemia de covid-19.
Sendo assim, não causa surpresa o fato de as imagens relacionadas a doenças devastadoras e o temor
por uma disseminação descontrolada estarem presentes no imaginário coletivo, sendo constantemente
explorados nas representações artísticas. Um exemplo emblemático é a máscara da peste (Figura 1), que
fazia parte do traje usado por médicos que tratavam as vítimas da peste bubônica na Europa do século XVII
(LYNTERIS, 2018). Seu aspecto lúgubre e sufocante remete à dizimação causada pela doença, embora tenha
sido apropriada pela Commedia dell’arte – o teatro popular italiano – e até hoje seja uma das imagens mais
icônicas do Carnaval de Veneza (BLAKEMORE, 2020).
Mais recentemente, nos produtos audiovisuais, doenças desconhecidas são retratadas como uma ameaça
iminente, um inimigo que desafia o conhecimento científico e precisa ser combatido rapidamente. As diversas
narrativas ficcionais sobre o tema apresentam diferentes graus de correspondência e distanciamento da
realidade. Por exemplo, em O enigma de Andrômeda (The Andromeda Strain, 1971), o microrganismo
que causa a enfermidade vem do espaço e chega à Terra com a queda de um satélite artificial. Nos filmes
A epidemia (The Crazies, 2010) e #Alive (#Saraitda, 2020), a contaminação transforma as vítimas em
zumbis sanguinários que passam a perseguir os não infectados. Em Epidemia (Outbreak, 1995), o cientista
herói corre contra o tempo não apenas para encontrar a cura da doença, mas para evitar a solução que
havia sido encontrada pelas forças militares e endossada pelo governo norte-americano: a de bombardear
a cidade afetada.
Embora todas essas obras cinematográficas abordem questões científicas, sociais e políticas envolvendo
uma crise sanitária, foi em 2011 que um filme chamou a atenção pela fidedignidade com que retratou uma
pandemia. Contágio (Contagion, 2011), dirigido por Steven Soderbergh, com base no roteiro de Scott Z.
Burns, foi concebido para retratar como seria uma emergência de saúde de proporções globais nos dias de
hoje. O thriller acompanha a trajetória de disseminação de um vírus até então desconhecido, a começar
pelo Dia 2 (a indicação do dia logo no início mostra que a história seguirá uma sequência mais ou menos
linear, com uma grande revelação – o Dia 1, ou seja, quando tudo começou – reservada para o final).
As sequências iniciais dão o tom de uma narrativa calcada na facilidade com que um microrganismo
pode se espalhar. O filme começa em tela preta, apenas com o som que sugere um ambiente cheio de
pessoas, uma delas tossindo. A cena então começa com a personagem Beth Emhoff (Gwyneth Paltrow),
recém-chegada de uma viagem a Hong Kong, sentada no balcão do café de um aeroporto. Ela leva a mão à
boca ao comer amendoins, atende o celular e entrega o cartão de crédito à atendente. A cena termina com o
quadro fechado nas mãos da balconista. Depois de chegar em casa, onde vivia com o marido Thomas (Matt
Damon), Beth morre repentinamente, assim como seu filho, pouco tempo depois.
Os registros de mortes por causas desconhecidas em outras partes do mundo acendem o alerta das
autoridades de saúde. Nos Estados Unidos, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em
inglês) designa a médica Erin Mears (Kate Winslet) para mapear os contatos de Beth, enquanto cientistas
se desdobram para identificar o novo vírus, batizado de MEV-1, e para tentar encontrar uma cura. Já a
Organização Mundial da Saúde (OMS) envia para Hong Kong a epidemiologista Leonora Orantes (Marion
Cotillard) para descobrir a origem do vírus e o ponto de partida da infecção. Enquanto isso, o mundo entra
em colapso com a escalada da contaminação. Há saques em supermercados, tumulto em farmácias, hospitais
de campanha são instalados em ginásios para atender os inúmeros pacientes e corpos são enterrados em
valas comuns. A pandemia somente é controlada com o desenvolvimento de uma vacina. O filme termina
com a sequência dos fatos que culminaram no famigerado Dia 1: o desmatamento que destrói o habitat
natural de morcegos; a migração desses animais para uma granja de porcos; o preparo da carne suína
em um restaurante (momento em que o vírus salta para o ser humano); e o aperto de mão entre o chef de
cozinha e uma cliente – que vinha a ser justamente Beth Emhoff.
Contágio foi lançado poucos anos depois de graves surtos e epidemias – SARS em 2003, gripe aviária em
2004 e gripe suína em 2009. Embora tenham atingido vários países e feito milhares de vítimas, essas crises
sanitárias não chegaram a causar o cenário retratado pelo filme. Talvez por isso a sensação à época tenha
sido: será que isso pode realmente acontecer? Em 2011, quando o longa foi lançado nos Estados Unidos, as
emissoras CBS e CNN fizeram exatamente essa pergunta a especialistas. E a resposta de dois entrevistados
– Thomas Frieden, diretor do CDC, e Laurie Garrett, consultora científica do filme – foi categoricamente
positiva (CBS, 2011; CNN, 2011). Com o surgimento do novo coronavírus SARS-CoV-2, cujos primeiros
casos foram registrados em Wuhan, na China, no início de 2020, a semelhança entre ficção e realidade
passou a ser constatada pelo próprio espectador.
A emergência provocada pela covid-19 estimulou uma retomada na audiência de Contágio. O filme
alcançou o nível máximo de interesse no Google Trends entre os dias 15 e 21 de março de 2020, na semana
posterior à declaração de pandemia pela OMS, no dia 11 daquele mês. A busca pelo título se intensificou nas
plataformas de streaming e em redes sociais destinadas a discussões e avalições de obras cinematográficas
(CLARK, 2020; CUNHA; OLIVEIRA; GRAZINI, 2020; SPERLING, 2020). Matérias a respeito da retomada
do interesse pelo filme destacaram seu caráter ‘preditivo’ (ADOLFO, 2020).
O espanto diante da capacidade de ‘previsão’ de Contágio pode ser interpretado, na verdade, como um
elogio à ciência, já que foi ela que possibilitou que o roteiro fosse escrito com tamanho rigor. O roteirista
Scott Z. Burns passou cerca de três anos estudando pandemias, visitou o CDC na cidade de Atlanta, nos
Estados Unidos, e manteve contato com diversos cientistas, incluindo Lawrence “Larry” Brilliant, um dos
epidemiologistas que contribuiu para a erradicação da varíola (ADOLFO, 2020). Pela preocupação em contar
uma história plausível, Contágio acaba sendo uma ode ao potencial da ciência de fornecer prognósticos com
alto grau de acerto, para isso se valendo do método científico e dos avanços tecnológicos. Uma das licenças
utilizadas no filme e admitidas pelo diretor Steven Soderbergh foi o desenvolvimento de uma vacina em um
tempo extremamente curto e sem todas as fases de testes necessárias.
No mundo acadêmico, Contágio já havia subsidiado, antes mesmo da pandemia de covid-19, estudos nas
mais diversas áreas, como pedagogia, biologia, saúde, ensino de ciências, audiovisual e ciências sociais de
uma forma geral (BALBINOT; MIQUELIN, 2013; SILVA JÚNIOR, 2016; MARTÍNEZ et al., 2013; BORBA,
2015; BENSON-ALLOT, 2011; JUDENSNAIDER, 2012). Tomados em conjunto, é possível afirmar que o
interesse acadêmico pelo filme também é motivado pela acurácia na abordagem dos aspectos científicos e
nas consequências sociais de uma emergência sanitária.
Com o retorno do interesse pelo filme em 2020, levantamos naquela ocasião um novo problema de
pesquisa: será que a percepção dos espectadores de Contágio mudou por causa da covid-19? Juntamente
com as pesquisadoras Luisa Massarani1 e Penélope Andreani Valadares2, empreendemos uma análise de
4.801 comentários sobre o filme postados no site Letterboxd, uma rede social de cinema de abrangência
mundial, e estabelecemos como marco temporal de comparação o dia 30 de janeiro de 2020, quando a OMS
declarou que a disseminação do novo coronavírus já se configurava como uma emergência de saúde pública
de importância internacional (MASSARANI; NEVES; VALADARES, 2021). Utilizamos uma abordagem
qualiquantitativa para identificar as palavras e expressões mais frequentes nos comentários feitos antes e
depois daquela data, procurando capturar possíveis sentidos expressos pelos padrões textuais.
A análise revelou pontos interessantes. Antes da pandemia, os comentários são mais voltados aos
aspectos cinematográficos, como direção, elenco e personagens, o que também pode ser atribuído ao
conjunto de atores e atrizes de peso escalados para a obra. Já nos comentários feitos com a pandemia de
covid-19 em curso, os espectadores procuram ressaltar com mais frequência a semelhança do filme com
a realidade, como fica evidente na recorrência a termos como “vida real”, “situação atual”, “pandemia de
covid”, “pandemia atual”, “mundo real”, “pandemia do coronavírus” e “eventos atuais”. Também é evidente
a mudança lexical relativa às medidas de proteção individual. Antes da pandemia, a expressão “lavar as
mãos” aparece com mais frequência. Depois, surgem termos como “distanciamento social”, “usar máscara”
e “desinfetante para as mãos”.
Portanto, nossos dados permitem inferir que, vivendo os efeitos de uma crise sanitária semelhante à
retratada na tela, o espectador passa a assimilar o filme de acordo com sua experiência pessoal. Aqui cabe
a reflexão de Piassi e Pietrocola (2009, p. 528) em relação ao elo entre ficção e realidade: “Não se trata de
mero espanto e estranhamento frente ao incomum, que ocorre em histórias de terror ou fantasia, mas de
um estranhamento que obriga a pensar no incomum como uma conjetura plausível e lógica, aplicável ao
mundo fora da ficção”. Nesse sentido, Contágio também apresenta ao espectador imagens que passaram
a ser vistas no mundo real pandêmico, como o uso de máscara cotidianamente, cientistas com robustos
equipamentos de proteção, hospitais de campanha e sepultamentos em massa (Figura 2).
1 Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT).
2 Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT).
Figura 2 – Frames do filme Contágio com pessoas usando máscara, corpos sepultados em vala comum, ginásio
transformado em hospital de campanha e cientista com equipamento de segurança
Fonte: retirados pelo autor de Contágio (2011).
Portanto, na perspectiva da divulgação científica, pode-se afirmar que Contágio também é bem-sucedido
ao abordar questões relativas à ciência e à saúde. Em várias passagens, há explicações sobre conceitos e
processos científicos, por vezes de forma literalmente didática, como na cena em que a médica Erin Mears
usa uma lousa para explicar a autoridades do governo as formas de contaminação e o número básico de
reprodução (R Zero).
Dra. Mears: – O que precisamos determinar é isto: para cada pessoa que fica doente,
quantas outras ela pode infectar? Para a gripe sazonal, geralmente é uma. A varíola, por
outro lado, é mais de três. Antes de termos uma vacina, a poliomielite se espalhou a uma
taxa entre quatro e seis. Chamamos esse número de R Zero. R significa taxa reprodutiva
do vírus.
Homem: – Alguma ideia do que pode ser para esse novo vírus?
Dra. Mears: – O quão rápido ele se multiplica depende de uma variedade de fatores.
O período de incubação, quanto tempo uma pessoa permanece transmitindo... Às vezes
as pessoas podem transmitir sem sequer apresentar sintomas. Precisamos saber disso
também. E precisamos saber o tamanho da população de pessoas suscetíveis ao vírus.
(CONTÁGIO, 2011, tradução nossa)
Mas Contágio vai muito além do mundo dos laboratórios. Direção e roteiro não se ancoram somente
no aspecto técnico-científico e demonstram estar atentos à realidade social ao abordar outras dimensões
de uma emergência sanitária. Uma delas é a disseminação de notícias falsas (fake news) e das teorias da
conspiração. Essas questões também surgiram em filmes anteriores, como Epidemia (1995) e A epidemia
(2010), em que o surto é causado por armas biológicas desenvolvidas pelo governo. Em Contágio, entretanto,
esse aspecto torna-se mais crível com o personagem Alan Krumwiede (Jude Law), que usa a internet
para vender um medicamento chamado forsítia, com a promessa de cura da nova doença. Essa subtrama
viria a ter um paralelo surpreendente na pandemia de covid-19, com toda a controvérsia envolvendo a
hidroxicloroquina. O uso do medicamento, originalmente empregado no tratamento da malária, chegou a
ser defendido pelos presidentes dos Estados Unidos e do Brasil, Donald Trump e Jair Bolsonaro, embora
sucessivos estudos tenham demonstrado sua ineficácia contra o novo coronavírus (SELF et al., 2020).
É certo que um filme não precisa necessariamente ser uma reprodução fiel da realidade para suscitar
reflexões e debates. A ficção científica é um exemplo de que mesmo as abstrações mais imaginativas
veiculam questões que incomodam ou estimulam as pessoas, e que são originadas na nossa relação com a
ciência (PIASSI; PIETROCOLA, 2009). Entretanto, por tudo o que foi exposto, é interessante ver como o
encontro das mentes criativas de dois universos – o do cinema e o da ciência – fez emergir uma obra tão
verossímil e antecipatória.
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