Técnicas de Poder e Controle Han Focault

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Revista

Opinião
Filosófica
Fundação Fênix – www.fundarfenix.com.br

https://doi.org/10.36592/opiniaofilosofica.v13.1048

Uma Breve Genealogia das Técnicas de Poder e Controle


desde Michel Foucault a Byung-Chul Han

A Brief Genealogy of the Techniques of Power and Control since


Michel Foucault to Byung-Chul Han
Matias Stecker1
Mauricio Dal Castel2
Resumo

O filósofo francês Michel Foucault desenvolveu ao longo de sua obra uma genealogia
das técnicas de poder exercidas desde, pelo menos, o século XVIII, realizando uma
análise aprofundada do funcionamento, origem e consequências destas técnicas na
subjetividade dos sujeitos. Byung-Chul Han, por seu turno, imerso no presente, mas
amparado por autores que o precederam e, dentre eles, Foucault, realiza uma
análise das técnicas de poder características do capitalismo tardio do século XXI,
caracterizadas, especialmente, pelas novas tecnologias de vigilância e controle
social, como big data e algoritmos. Assim, o presente texto realiza uma análise
conjunta das obras de ambos os autores objetivando identificar a continuidade entre
as técnicas de poder e controle identificadas por Foucault e, posteriormente,
reimaginadas por Han, com a realização de uma interseção entre as obras destes
importantes autores para o pensamento das relações sociais e, assim, alcançando
uma compreensão mais apurada do fenômeno do controle biopolítico na
contemporaneidade. Através da presente pesquisa, pudemos concluir pela
existência de uma continuidade entre os fenômenos descritos por Foucault e
aqueles descritos por Han, sendo aqueles precedentes diretos destes. Para tanto, a
metodologia de pesquisa empregada foi a fenomenológico-hermenêutica e o
procedimento utilizado o bibliográfico.
Palavras-chave: Biopolítica. Controle. Poder. Psicopolítica.

Abstract

The French philosopher Michel Foucault developed throughout his work a


geneology of the techniques of power exercised since, at least, the 17th century,
performing a deep analysis of the function, the origins e the consequences in the

1 Mestrando em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul –
PUCRS.
E-mail: [email protected]; https://orcid.org/0000-0003-1910-8401
2 Mestrando em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, como bolsista

PRO-Stricto/PUCRS.
E-mail: [email protected]; https://orcid.org/0000-0002-3137-7412

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subject’s subjectivities of these techniques. Byung-Chul Han, by his turn, immersed


in the present, but supported by author that preceded him, among which Foucault,
performs an analysis of the techniques of power particulars of the late capitalism of
the 21th century, particularized, specially, by the new technologies of surveillance
and social control, such as big data and algorithms. Thus, the present text performs
a joint analysis of the work of both authors aiming to identify the continuity between
the techniques of power and control identified by Foucault and, lately, reimagined
by Han, with the achievement of an intersection between the work of both of these
important author for the thought of social relations thus achieving a more accurate
comprehension of the biopolitical control phenomenon in contemporaneity.
Thought the present research, we could conclude by the existence of the continuity
between the phenomena described by Foucault and those described by Han, been
the firsts direct predecessors of the seconds. Therefore, the research methodology
used was the hermeneutical-phenomenological and the procedure was the
bibliographic.
Keywords: Biopolitics. Control. Power. Psychopolitics.

A sociedade contemporânea, diferentemente daquela descrita por Michel


Foucault como uma sociedade disciplinar em seu clássico Vigiar e Punir3, situada
nos séculos XVIII e XIX e cujo apogeu deu-se no século XX4, é, para Byung-Chul
Han (2017b, pp. 105-116), marcada pela desconstrução e supressão da negatividade
e pela emergência totalizante da positividade, constituindo aquilo que cunhou de
sociedade do controle. O termo, no entanto, já havia sido trabalhado por Gilles
Deleuze (2013, pp. 223-230) no Post-scriptum sobre as Sociedades de Controle,
presente na obra Conversações (1972-1990), extraído de uma entrevista concedida
ao L’Autre Journal em 1990, onde desenvolve, a partir do conceito foucaultiano de
sociedade disciplinar, o conceito de sociedade de controle. A origem do termo, no
entanto, remonta a William S. Burroughs, pintor, escritor e crítico social americano,
quem primeiro o cunhou.
As sociedades disciplinares são caracterizadas por dois núcleos distintos
identificados como indivíduo e o seu posicionamento no interior de uma massa. O

3 Obra mais célebre do filósofo francês Michel Foucault, Vigiar e Punir é um estudo sobre a evolução
histórica dos dispositivos penais, processuais penais, métodos coercitivos e dispositivos de punição
adotados pelo poder público na repressão à criminalidade. Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir:
Nascimento da Prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
4 Para Deleuze, a sociedade disciplinar foucaultina tinha como característica o deslocamento

contínuo do indivíduo de um espaço fechado para outro: da família para a escola, da escola para
fábrica, eventualmente para o hospital ou para a prisão. É a prisão, portanto, o símbolo analógico
dessa sociedade marcada pela disciplina e pela estruturação e disposição dos corpos em espaços
rigorosamente determinados. As sociedades disciplinares sucedem às sociedades de soberania, nas
quais o monarca soberano presava mais em açambarcar os súditos do que funcionar como gestor
deles, “decidir sobre a morte mais do que gerir a vida”. In: DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-
1990). Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 223.

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poder pode ser, simultaneamente, massificante e individuante, sem,


necessariamente, abrigar qualquer incompatibilidade entre os dois efeitos.
Foucault, diz Deleuze, já havia descrito esta relação de via de mão dupla ao analisar
o poder pastoral do sacerdote, este encarregado a apoderar-se do seu núcleo de
pessoas com a vinculação de cuidar e manter tal núcleo positivo simultaneamente,
função posteriormente exercida pelo poder civil por outros meios. Nas sociedades
de controle, no entanto, o essencial à identidade do sujeito deixa de ser uma
“assinatura” ou “número” que identificaria e individuaria o indivíduo no interior da
massa como um ser único e dotado de características particulares como ocorria na
sociedade disciplinar, tornando-o, ao mesmo tempo, individual e componente de
um todo, e passa a ser a representação deste indivíduo a partir de uma cifra (ou de
uma senha) 5 , transformando-o em um perfil, delimitável e determinável.
Desaparece, aqui, o par massa-indivíduo característico da sociedade disciplinar.
Sintetiza o autor: “[o]s indivíduos tornaram-se “dividuais”, divisíveis, e as massas
tornaram-se amostras, dados, mercados ou “bancos.”” Em outras palavras, o
indivíduo passa a ser representado – dentro da sociedade do controle – através do
“seu” código, atribuídos a cada sujeito, possibilitando a sua leitura ao sistema,
especialmente pelos (bancos de) dados, retirando-se as particularidades individuais
e transformando-as em (grandes) amostras. Assim, para Deleuze, a sociedade de
controle diferencia-se da sociedade disciplinar pelas transformações morfológicas
da subjetividade dos indivíduos e de suas relações interpessoais, que correspondiam
ao que denominou de massa (para Foucault, população6), transformações, estas,
causadas principalmente pela influência sofrida através do desenvolvimento
tecnológico característico do capitalismo do pós-guerra e das políticas do welfare
state. Há, portanto, o rompimento com a concepção tradicional de
massa/população a ser gerida pelo governo e passa-se a uma concepção de
indivíduo dividual, cujos traços de personalidade, psicológicos e físicos, são
cognoscíveis através de uma extração massiva de informações públicas e privadas,

5 Os termos cifra e senha conotam um signo cuja identificação se dá a partir da aferição da


compatibilidade entre o sinal fornecido e o sinal oculto correspondente. Assim, no presente contexto,
infere-se a relação com os signos cifra e senha como cognoscíveis a partir de amostras e dados
informacionais, i.e., os indivíduos, ou divíduos, no termo deleuziano, tornam-se divisíveis e
cognoscíveis a partir de amostragens, dados, estatísticas. Cf. DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-
1990). Tradução de Peter Pál Pelbart. 3. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 2013, pp. 225-226.
6 Cf. FOUCAULT, Michel. Segurança, População, Território: curso dado no Collège de France (1977-

1978). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2008b.

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fenômeno possibilitado pela expansão da tecnologia e pelo avanço do


neoliberalismo (DELEUZE, 2013, pp. 225-226).
É com a técnica da informatização da vida que podemos observar
potencialmente a mudança, ou melhor, o surgimento de novas formas de controle,
inclusive, mais eficientes e mais ágeis, que no passado não se tornavam visíveis.
Através da informática, cada indivíduo é determinável e rastreável, pois todos
portam uma senha, retomando o termo empregado por Deleuze, para ter acesso a
uma gama indefinida de serviços online: e-mail, redes sociais, aplicativos de
relacionamento, softwares de uso profissional, aplicativos de streaming e de
música. O banco de dados (novamente Deleuze) cresce exponencialmente,
quantitativa e qualitativamente, a cada nova account (conta) criada para o usufruto
de novos serviços, que funcionam como credenciais para o trânsito no ciberespaço,
acumulando cada vez mais informações sobre o divíduo deleuziano, agora
precisamente determinável através de amostragens e dados, e aumentando a
quantidade de informações disponíveis sobre cada perfil determinado (FERREIRA,
2014, pp. 109-120).
Embora não apenas a mudança na subjetividade e a influência tecnológica
explicam a emergência da sociedade de controle em detrimento da sociedade
disciplinar, para Deleuze, mas o aspecto fundamental para explicar o triunfo da
sociedade do controle sobre a sociedade disciplinar (sem, no entanto, extingui-la7),
reside justamente na maior eficiência da primeira, mantra intrínseco às noções
neoliberais de produção (de si e de produtos) que norteará toda esta racionalidade
e que será extensivamente escrutinada nos últimos seminários no Collège de France
de Foucault (Segurança, Território, População e Nascimento da Biopolítica) e na
obra de Han.

[P]ara Gilles Deleuze, o poder disciplinar diminui em importância diante


das possibilidades oferecidas pelo poder de controle sobre as atividades
dos indivíduos no dia a dia. Enquanto a disciplina demanda por um longo
e descontínuo período de tempo necessário ao adestramento dos
comportamentos, o controle se exerce em curto prazo, além de ser
contínuo e ilimitado. Por isto, a eficiência do controle produz efeitos mais

7 Edgardo Castro, filósofo argentino e estudioso da obra de Michel Foucault, adverte que na obra
foucaultiana as técnicas de poder não substituem umas às outras, mas se complementam, ainda que
o sejam sucessivas no tempo, não o são em relação ao seu exercício. Assim, afirma que o poder
disciplinar não fora solapado pelo biopoder, mas que estas diferentes técnicas de controle dos corpos
apenas somaram-se, ainda que a primeira tenha perdido importância em detrimento da segunda,
jamais desapareceu. Frisa, assim, que as técnicas de poder não são excludentes entre si, mas
complementares. In: CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Tradução de Beatriz de Almeida
Magalhães. 1. ed. 4. reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2020, p. 110.

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rápidos, haja vista o desenvolvimento da informática que, por meio de uma


linguagem binária, criou um recurso simples, a senha, capaz de identificar
e de localizar as pessoas onde quer que estejam, e o que quer que estejam
fazendo (FERREIRA, 2014, pp. 109-120).

A conclusão de Gilles Deleuze converge em grande medida com a de Byung-


Chul Han, quem identifica, retomando, assim como o fez Foucault outrora na sua
analítica do poder, o conceito do panóptico benthamiano para descrever o
funcionamento do poder subjacente à sociedade do controle e localizando, ainda
que parcialmente, a fonte desta nova forma de poder, responsável por reformular a
sociedade disciplinar foucaultiana em uma sociedade de controle, na tecnologia e
no desenvolvimento agressivo do neoliberalismo 8 . Apesar de não o dizer
nominalmente, Deleuze (2013, pp. 225-226), ao desenvolver seu conceito de
sociedade(s) de controle, já atribui função relevante aos dados e estatísticas,
fenômeno cuja evolução contemporânea é conhecida como dataísmo9 — dataísmo
e estatística são fenômenos distintos, mas que, evidentemente, guardam certas
semelhanças entre si, como a quantificação da informação, sendo aquele sucessor
deste —, cuja manifestação mais potente manifesta-se, principalmente, na
tecnologia denominada big data. Foucault, cujos conceitos Deleuze e Han
consideraram ultrapassados para o diagnóstico do poder a que submetida a
sociedade contemporânea, já havia antevisto a utilização da estatística e da coleta

8 No Post-scriptum sobre as Sociedades de Controle em DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-


1990). Tradução de Peter Pál Pelbart. 3. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 2013, pp. 223-230, Deleuze
vale-se do termo “capitalismo” para designar o sistema econômico responsável por esta
transformação morfológica do poder, no entanto, em razão da maior precisão teórica, utilizaremos
o termo “neoliberalismo”, que constitui não apenas o sistema econômico onipresente na(s)
sociedade(s) de controle caracterizado pela economia de livre mercado, mas uma verdadeira
racionalidade governamental, como a frente será abordado com o devida atenção, e por ser
amplamente utilizado pelas analíticas de Michel Foucault e Byung-Chul Han, dois autores essenciais
para a presente pesquisa.
9 “O dataísmo surge com a ênfase em um segundo Iluminismo. No primeiro Iluminismo, acreditava-

se que a estatística seria capaz de libertar o conhecimento do teor mitológico; por isso, a estatística
foi festeja com euforia pelo primeiro Iluminismo. À luz da estatística, Voltaire almejava uma história
que fosse separada da mitologia. De acordo com ele, a estatística seria «objeto de curiosidade para
quem quer ler a história como cidadão e como filósofo». [...] Os big data devem libertar o
conhecimento da arbitrariedade subjetiva. A intuição não representa nenhuma forma de
conhecimento superior: ela é algo meramente subjetivo, um recurso que compensa a falta de dados
objetivos. De acordo com esse argumento, em uma situação complexa, a intuição é cega. Até mesmo
a teoria cai sob suspeita de ser ideológica. Quando os dados suficientes estiverem disponíveis, a
teoria se torna dispensável.” In: HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: O neoliberalismo e as novas
técnicas de poder. Tradução de Maurício Liesen. Belo Horizonte: Âynié, 2018b, pp.79-81.

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de dados para o controle e o gerenciamento da população,10 naquilo que denominou


de biopolítica11 e, posteriormente, de governamentalidade12.
A literatura foucaultina é, portanto, de extrema importância para a
compreensão desta evolução dos poderes disciplinar e biopolítico dos séculos XVII
e XVIII e da primeira metade do século XX, respectivamente, para o poder de
controle da segunda metade do século XX e do século XXI13. Foucault identificou
inicialmente nos dispositivos disciplinares14 as principais funções destes poderes:
constituir indivíduos politicamente dóceis e economicamente eficientes/rentáveis
(CASTRO, 2020, p. 86). No pensamento de Deleuze e de Han, estes objetivos
permanecem, mas a eles são somados outros desígnios até então inexistentes, seja
pela impossibilidade material de existirem no período anterior à Segunda Guerra
Mundial, seja pela insuficiência tecnológica da época em comparação à presente. De

10 O termo “população” adquire, em Foucault, especial relevância para designar a massa opaca de
indivíduos visualizável através da estatística, dos dados, cujo gerenciamento norteará as técnicas
governamentais. Cf. FOUCAULT, Michel. Segurança, População, Território: curso dado no Collège
de France (1977-1978). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2008b.
Portanto, na presente pesquisa, ao nos referirmos à “população”, o faremos de acordo com o conceito
foucaultiano do termo.
11 A biopolítica afirma-se como técnica de exercício de poder de maneira positiva sobre a vida dos

sujeitos (aqui pensados como indivíduos que compõe determinada população), poder este que
intenta administrar e aumentar as forças da população e do indivíduo, em nível geral e particular,
gerando mais valor e utilidade aos corpos, através de, v.g., técnicas e ciências medicinais, higienistas
e de controle da mortalidade infantil. Cf. Idem. História da Sexualidade 1: A Vontade de Saber.
Tradução de Maria Thereza de Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. 9. ed. Rio de Janeiro,
RJ/São Paulo, SP: Paz e Terra, 2019, pp. 145-150.
12 “[A] governamentalidade se define pelo conjunto de instituições, cálculos e táticas que têm “como

objetivo principal o governo da população, como forma maior a economia política e como
instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança” (FOUCAULT, 2004c, p. 111, p. 143).” In:
CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Tradução de Beatriz de Almeida Magalhães. 1. ed. 4.
reimp. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2020, p. 113.
13 Edgardo Castro aponta, com precisão, a insuficiência do conceito de poder disciplinar para

designar os últimos cursos de Foucault, principalmente aqueles que denomina de cursos


biopolíticos, fazendo-se necessário anotar a diferenciação entre o poder disciplinar, característico da
sociedade homônima, e do biopoder e da biopolítica, posteriormente governamentalidade,
característicos da sociedade moderna. Castro diz, no entanto, inexistirem “épocas históricas” aptas
a demarcar o exato momento histórico de existência de cada uma dessas sociedades, pois estes
poderes não são sucessivos, mas simultâneos. Cf. CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault.
Tradução de Beatriz de Almeida Magalhães. 1. ed. 4. reimp. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2020, p.
110.
14 “Os dispositivos de segurança se ocupam, em resumo, de fenômenos de massa, em série, de longa

duração. Daí a importância que, no desenvolvimento desses dispositivos, teve o que no século XVIII
se denominava ciência da polícia, vale, a estatística. Então, na medida em que se trata de administrar
esse conjunto e seus efeitos, os dispositivos de segurança devem funcionar tendo em conta a
aleatoriedade dos acontecimentos futuros. À diferença de quanto sucede nas disciplinas, não se trata
de adaptar os acontecimentos a uma norma estabelecida com anterioridade, mas de seguir as
tendências gerais que elas descrevem. Desse modo, enquanto no caso da disciplina a norma é
anterior e externa, no dos dispositivos de segurança, em contrapartida, é intrínseca. Para distinguir
essas duas diferentes maneiras de relacionar-se com o normal, Foucault propõe reservar o termo
“normalização” para os dispositivos de segurança, e o termo “normação” para as disciplinas
(FOUCAULT, 2004c, p. 65; p. 83).” In: Ibidem, p. 111.

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igual forma, não modificaram-se somente os objetos do poder, mas também os seus
métodos de atuação sobre indivíduos (ou para citar Deleuze novamente: os poderes
que os atravessam, passam entre os indivíduos), agora muito mais incisivos do que
aqueles diagnosticados por Foucault e que atuam não mais apenas sobre os corpos,
mas também sobre a psyche15.
Byung-Chul Han denomina esta nova forma de poder sobre a psyche de
psicopoder, em homenagem e referência ao termo foucaultiano biopoder. Para Han,
quem considera as noções de biopoder, biopolítica e controle biopolítico
insuficientes para descrever o exercício do poder de controle na sociedade
contemporâneaos, pois limitadas a “fatores externos como reprodução, taxa de
mortalidade ou estado de saúde”, o psicopoder detém o potencial de intervir nos
processos psicológico-subjetivos do indivíduo (HAN, 2018a, pp. 129-130). Para
Han, a insuficiência no conceito de biopolítica elaborado por Michel Foucault reside
no fato de o filósofo francês não ter antecipado que o neoliberalismo apropria-se
das “tecnologias do eu”, nem que a constante e incessante otimização de si seja uma
forma eficiente de dominação e exploração do indivíduo. Ainda, identifica que a
virada para o controle dos corpos para o controle da psyche está calcada em “uma
inter-relação com os modos imateriais e incorpóreos da produção de otimização
estética”, ou seja, o indivíduo na obsessiva busca pela otimização de si é,
simultaneamente, livre e explorado, estreitando os conceitos de liberdade e
exploração de si separados apenas por uma linha tênue (e muitas vezes inexistente).
Assim, não há mais resistências corporais a serem superadas em prol da
produtividade, mas processos psicológicos a serem otimizados pela e para a
produtividade (HABOWSKI, 2020, pp. 1-7).
Desta forma, os dispositivos externos16 de administração e gerenciamento da
população, como a punição dos desviantes e a vigilância no cumprimento das
funções (laborais, educacionais) deixam de ser necessárias como outrora foram na
sociedade disciplinar foucaultina, pois o indivíduo, imerso na lógica do

15 O termo psyche é utilizado por Byung-Chul Han na obra No Enxame: Perspectivas do Digital no
capítulo dedicado à psicopolítica. Psyche, para os gregos antigos, denominava a alma, cujo nome
fora extraído da deusa homônima. No contexto da obra de Han, infere-se que psyche conota a ideia
moderna de “mente”, pois, para o autor, a psicopolítica atua sobre a mente e a subjetividade dos
indivíduos. Cf. HAN, Byung-Chul. No Enxame: Perspectivas do Digital. Tradução de Lucas
Machado. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018a, pp. 129-134.
16 A distinção entre dispositivos externos e internos de coação é presença constante na obra de

Byung-Chul Han. Para o autor, a violência externa tradicional perde espaço em detrimento da
violência auto-infligida, interna. Cf. HAN, Byung-Chul. Topologia da Violência. Tradução de Enio
Paulo Gianchini. Petropólis, RJ: Vozes, 2017c.

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desempenho17, internaliza para si estas funções. As funções de punição e vigilância


passam a ser exercidas por cada indivíduo por conta própria e sobre si mesmo,
processo este intensificado e facilitado pela expansão massiva das redes sociais
(NOYAMA, 2019, pp. 175-182). Retorna-se, aqui, à lógica da exploração praticada
pelo próprio sujeito contra si mesmo, confundida18 com liberdade, através da qual
torna-se explorador e explorado simultaneamente. Sobre a lógica da exploração
mestre/escravo e sobre a sua substituição pela internalização do mestre pelo
escravo, diz Jean Baudrillard (2007, p. 33):

A fim de compreender como a globalização e o antagonismo global


funcionam, precisamos distinguir cuidadosamente entre dominação e
hegemonia. Pode-se dizer que a hegemonia é o estágio final da dominação
e sua fase terminal. A dominação é caracterizada pela relação
mestre/escravo, que ainda é uma relação de dualidade com potencial
alienatório, uma relação de força e conflito. Há um histórico de opressão e
libertação. Há dominadores e dominados—permanece uma relação
simbólica. Tudo muda com a emancipação do escravo e a internalização
do mestre pelo escravo emancipado. A hegemonia começa aqui no
desaparecimento da dual, pessoal e agonística dominação por causa da
realidade integral—a realidade das redes, do virtual e a mudança total
onde não há mais dominadores e dominados.19

Tanto em Baudrillard quanto em Byung-Chul Han, guardadas as devidas


diferenças de abordagem entre os dois autores, na sociedade contemporânea
desaparecem as tradicionais formas de dominação marcadas pela dualidade
dominadores-dominados. Para Han, no entanto, o dominador e o explorador agora
subsistem na mesma pessoa do dominado e do explorado, a dominação e a
exploração são exercidas pelo indivíduo contra si, processo intensificado pela
substituição do Real pelo Virtual identificada por Baudrillard. O controle é,
portanto, absoluto. Em entrevista cedida à revista ZEIT Wissen, em setembro de

17 Cf. Idem. Sociedade do Cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. 2. ed. ampl. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2017a.
18 No sentido de misturada.
19 Tradução livre e contextualizada de “[i]n order to grasp how globalization and global antagonism

works, we should distinguish carefully between domination and hegemony. One could say that
hegemony is the ultimate stage of domination and its terminal phase. Domination is characterized
by the master/slave relation, which is still a dual relation with potential alienation, a relationship
of force and conflicts. It has a violent history of oppression and liberation. There are the dominators
and the dominated—it remains a symbolic relationship. Everything changes with the emancipation
of the slave and the internalization of the master by the emancipated slave. Hegemony begins here
in the disappearance of the dual, personal, agonistic domination for the sake of integral reality—
the reality of networks, of the virtual and total exchange where there are no longer dominators or
dominated.” In: BAUDRILLARD, Jean. The Agony of Power. Introduction by Sylvere Lotringer.
Translated by Ames Hodges. Los Angeles, CA: Semiotext(e), 2007, p. 33.

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2014, Han descreve, com seu tradicional poder de síntese, o desaparecimento da


noção tradicional de exploração na era neoliberal, que se transmuta sob o signo da
liberdade em uma técnica de exploração de si no interior de um sistema estruturado
e voltado à auto exploração voluntária e pelo controle total do indivíduo:

Talvez, mas em sua estrutura, esta sociedade não é diferente do feudalismo


medieval. Estamos em servidão. Senhores feudais digitais como o
Facebook nos dão terras e dizem: ara-a e poderá tê-la de graça. E aramos
como loucos esta terra. Ao final, os senhores feudais vêm e tomam a
colheita. Esta é uma exploração da comunicação. Nos comunicamos uns
com os outros e nos sentimos livres. Os senhores feudais ganham dinheiro
com esta comunicação e os serviços secretos a vigiam. Este sistema é
extremamente deficiente. Não há protesto contra isso porque estamos
vivendo em um sistema que explora a liberdade.20

No capítulo que encerra a obra Sociedade da Transparência, Han o dedica


exclusivamente ao conceito de sociedade de controle como a entende e como este
controle absoluto é possibilitado. Para o autor, à diferença da sociedade disciplinar
foucaultina, cuja analogia ideal consubstanciava-se no panóptico benthamiano,
onde a um observador central era viabilizada a vigilância de todos os
internos/presos de determinada instituição carcerária enquanto estes indivíduos
não dispunham do mesmo poder de vigilância, na sociedade do controle a vigilância
é descentralizada e mútua. No panóptico digital a comunicação entre os habitantes
digitais é mútua, intensa e incentivada. A vigilância é possível e exercida justamente
através da voluntariedade dos indivíduos em exporem-se uns aos outros e, assim,
disponibilizarem, livres de coação externa, informações privadas sem o menor
pudor. O controle é, então, mais eficiente, pois não enfrenta resistências, tudo é
disponibilizado diretamente pelo detentor da esfera de privacidade (inexistente,
agora) e adere ao Virtual, para retornar em Baudrillard. É nesse novo
exercer/existir que a liberdade é imprescindível para o perfeito funcionamento do
panóptico digital, e, nisto reside, justamente, a fonte de seu controle incisivo e

20Tradução livre e contextualizada de “[t]al vez, pero en su estructura, esta sociedad no es diferente
del feudalismo medieval. Estamos en servidumbre. Señores feudales digitales como Facebook nos
dan tierra y dicen: aranla, y puedes tenerla gratis. Y lo aramos como locos, esta tierra. Al final, los
señores feudales vienen y toman la cosecha. Esta es una explotación de la comunicación. Nos
comunicamos unos con otros, y nos sentimos libres. Los señores feudales ganan dinero con esta
comunicación, y los servicios secretos la vigilan. Este sistema es extremadamente eficiente. No hay
protesta contra eso, porque estamos viviendo en un sistema que explota la libertad.” In: BYUNG-
CHUL Han: "Si un sistema ataca mi libertad, debo resistir". Entrevista a Byung-Chul Han,
publicada el 7 de septiembre del año 2014, realizada por la revista ZEIT Wissen. Bloghemia, 2020.
Disponível em: <https://www.bloghemia.com/2019/06/byung-chul-han-si-un-sistema-ataca-
mi.html?m=1>. Acesso em: 19 ago. 2020.

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abrangente sobre os corpos e as mentes dos sujeitos. O psicopoder da sociedade de


controle submete-se a uma coação livre (autogerida) e é tão poderoso por lograr
converter o mesmo sujeito em vítima e agressor, explorado e explorador, oprimido
e opressor, operacionalizado através e pela liberdade, lembrando-se: estimulada e
explorada por seu valor econômico. A armadilha perfeita (HAN, 2017b, pp. 105-116)
A esse tempo observa-se a positividade como o elemento central
potencializador da emergência da denominada sociedade de (psico)controle, na
obra de Byung-Chul Han, visto que sua atuação no controle dos corpos não está
somente ligada a fatores externos, como incansavelmente detalhada na obra de
Foucault, mas o seu acesso e exercício de poder na psyche das pessoas na sociedade
contemporânea, principalmente sob a óptica da eficiência.
Para Han (2017b, pp. 09-13), a positividade é entendida como a supressão
completa dos campos de dissonâncias e dissensos, que transforma todas as coisas
em “rasas e planas” e as concebe uniformes, através da comunicação, informação e
da livre circulação do capital excessivas, fenômeno sintetizado, primordialmente,
pela globalização e pela massificação da internet. Na sociedade positiva de Han não
há espaço oculto, informação desconhecida ou território não desbravado, o excesso
característico da positividade – estimulada pelo capital – consome a tudo e a todos.
Também não admite qualquer sentimento negativo, ou seja, perde-se a forma,
especialmente do sofrimento e da dor, o que favorece o fluxo contínuo e inesgotável
de informação, dados etc., pois não se exige a sua compreensão e aprofundamento.
O fenômeno da massificação da informação adquire, portanto, especial importância
na análise social feita por Han, pois constitui um dos pilares de determinação do
comportamento humano na era neoliberal 21 e digital, mas não somente do
comportamento intersubjetivo, atuando também na subjetividade dos sujeitos.
Assim, a positivação da sociedade adquire efeito totalizante sobre o corpo social,
abrangendo todos os aspectos, públicos e privados, da vida. A positividade é,
portanto, percebida através do excesso, seja pelo excesso de informação, de
exposição, de transparência (HABWOSKI, 2020, pp. 1-7). A centralidade da
positividade consubstancia-se em uma mudança de paradigma, cuja incidência vai

21Benjamin Loveluck, contudo, dirá que a internet e a cibernética foram utilizadas, especialmente
ao longo do século XX, muitas vezes em sentido ambivalente, para libertar ou para subjugar o
indivíduo, tanto em países capitalistas como em países comunistas, não havendo, portanto, para o
autor, este vínculo necessário do controle através da tecnologia para com o capitalismo. Cf.
LOVELUCK, Benjamin. Redes, Liberdades e Controle: Uma Genealogia Política da Internet.
Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018, p. 38.

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além dos campos da economia, da política e do social, senão que repercute nas
dimensões estéticas e existenciais do ser humano (ARELLANO, 2016, pp. 179-191).
A positividade, como tendência sistêmica prevalente, é caracterizada por
uma ontologia que percebe todos os elementos da realidade como voltados para a
operatividade, o rendimento e maximização da produtividade econômica, impondo,
como consequência, o princípio positivo do “ótimo”. O princípio do “ótimo”
direciona os sujeitos, objetos, fenômenos, processos e relações a uma condição de
máxima funcionalidade. O imperativo da otimização não comporta a contingência,
o azar, o oculto ou o sofrimento, todos estes fenômenos negativos e, portanto,
obstáculos à maximização da produtividade econômica (ARELLANO, 2016, pp. 179-
191).
Conceitos como o de disciplina e biopolítica em Michel Foucault, o de Estado
de Exceção em Giorgio Agamben, o de Vida Activa em Hannah Arendt e de império
e multitude em Antônio Negri seriam, segundo Han, adequados apenas para pensar
a sociedade do século passado, caracterizada por instituições carcerárias,
psiquiátricas e de reclusão, porém não seriam suficientes para a compreensão da
sociedade contemporânea, marcada pela ausência de negatividade, e pelo
surgimento de uma positividade totalizante e inescapável22, suficiente a abarcar
toda a realidade social (ROSA, 2019, pp. 228-232).
A ode ao excesso, raiz da sociedade positiva, elimina toda e qualquer
ambivalência e alimenta tão somente uma obscenidade pornográfica que elimina
obstáculos e estimula um contato entre sujeito e objeto cada vez mais direto,
fazendo desaparecer qualquer possiblidade de nuances ou ambiguidades, levando o
sujeito a um estado de percepção planificada dos objetos ou os objetos à uma
exposição planificada ao sujeito. Assim como o dinheiro que, exceção às variações
entre o preço atribuído, submete tudo a seu jugo e a tudo precifica de acordo com a
sua unidade de valor, consubstanciada no preço e que “desfaz qualquer

22 Na entrevista à revista ZEIT Wissen, Han diz: “[m]e sinto incomodado quando não estou
conectado, por óbvio. Eu também sou uma vítima. Sem toda esta comunicação digital, não posso
fazer meu trabalho, como professor ou como escritor. Todos estão envolvidos, integrados.” Tradução
livre e contextualizada de “[c]omo todos los demás, me siento incómodo cuando no estoy conectado,
por supuesto. Yo también soy una víctima. Sin toda esta comunicación digital, no puedo hacer mi
trabajo, como profesor o como escritor. Todos están involucrados, integrados”, ou seja, o próprio
autor considera-se vítima desta racionalidade totalizante e, portanto, inescapável, que submete
todos a seu jugo. In: BYUNG-CHUL Han: "Si un sistema ataca mi libertad, debo resistir". Entrevista
a Byung-Chul Han, publicada el 7 de septiembre del año 2014, realizada por la revista ZEIT
Wissen. Bloghemia, 2020. Disponível em: <https://www.bloghemia.com/2019/06/byung-chul-
han-si-un-sistema-ataca-mi.html?m=1>. Acesso em: 19 ago. 2020.

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incomensurabilidade, qualquer singularidade”, tudo é preficicável (HAN, 2017b, pp


09-13). A planificação a que refere-se o autor é causada, essencialmente, pela
uniformização, seja da cultura, dos hábitos, dos objetos em sentido lato ou mesmo
de mercadorias de massa, como roupas e acessórios, eletrodomésticos e veículos
automotores. Enfim, tudo aquilo que é fruto da massificação e cuja
identidade/singularidade não é mais tangível ou sequer concebido para conter
qualquer grau de unicidade. O termo pornografia, no contexto do excesso de
positividade e supressão da negatividade, é assim sintetizado pelo autor:

A pornografia evita desvios. Vai direto às coisas. Eróticos são, em oposição,


signos que circulam sem se revelarem. Pornográfico seria o teatro da
revelação. Erótico são mistérios a princípio irreveláveis. Nisso se
diferenciam das informações ocultas, retidas, que podem ser reveladas.
Pornográfico é justamente a revelação progressiva até à verdade ou à
transparência (HAN, 2019, pp. 92-93).

Infere-se, portanto, que pornográfico é tudo aquilo que se consubstancia na


ausência de espaços de negatividade e faz predominar, portanto, a positividade,
onde o contato sujeito-objeto é direto, sem nuances ou ambiguidades, apenas
marcado pela transparência totalizante. A comunicação direta com o outro
desaparece, e em seu lugar aparece tão somente a tela, do smartphone, do
computador, do tablet, através da qual toda a hipercomunicação digital se dá
(ROSA, 2019, pp. 228-232).
A positividade, assim, adquire forma amável, flexível e permissível, em
contraposição aos dispositivos disciplinares foucaultianos que eram voltados a
repressão e normação dos sujeitos. Dessa forma, a positividade, como o principal
instrumento da psicopolítica e do controle, faz com o que sujeito submeta-se
voluntariamente ao jugo deste psicopoder, voltado para a exploração econômica
neoliberal, cuja maximização mostra-se mais eficiente através do agrado e do
estímulo do que do castigo e da repressão (CÁRCAMO, 2019, pp. 21-26).
Benjamin Loveluck identifica no incentivo ao compartilhamento de
informações e conhecimentos na internet através do estímulo para que o usuário
tenha liberdade de opinar, demandar, avaliar, uma verdadeira subversão destas
atividades em uma forma de trabalho desenvolvido gratuitamente pelos indivíduos
em prol das big techs. Diz o autor:

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A implementação de sites e de plataformas destinados a coletar e


promover o compartilhamento de conteúdos pelos internautas – opiniões,
comentários, dicas, mas também imagens, vídeos etc. – se tornou um dos
aspectos mais visíveis da economia da internet, principalmente sob a
forma do “web 2.0”, a partir de 2004. Nesse aspecto é que foram utilizadas,
da maneira mais eficaz, as dinâmicas sociais peculiares da rede. Mas, se
esses serviços atendem a uma verdadeira demanda e fornecem
ferramentas inéditas de compartilhamento da informação, dos
conhecimentos e da cultura, os internautas se encontram nesse mesmo
movimento, recrutados como “mão de obra gratuita” para engendrar
conteúdos, sendo incentivados a colocar on line informações pessoais que
também são “comodificadas” na medida em que elas são “consumidas”
pelos outros usuários do serviço; e, enfim, os dados oriundos da
observação de seus comportamentos na rede podem ser utilizados para
fins de marketing. De acordo com alguns autores, a “cultura participativa”
pode, assim, ser desviada para o mecanismo de criação de valor, a baixo
custo, associado a uma nova forma de apreciação do trabalho cognitivo
(digital labor) (LOVELUCK, 2018, pp. 223-224).

A negatividade, por seu turno, percebida como algo não descoberto ou


externalizado – na lógica da sociedade positiva aquilo que permanece internalizado
não pode ser mercantilizado e é, portanto, contraproducente –, é considerada
indesejável por carecer de valor mercadológico. A sociedade positiva opera,
portanto, em uma via de mão dupla, pelo excesso estimulado de positividade e pela
supressão da negatividade (HAN, 2017b, pp. 09-13), fenômenos evidentemente
convergentes, mas distintos em suas características fundamentais. Por essa razão, o
adentramento na subjetividade faz-se imprescindível para a concepção de sociedade
positiva, fenômeno estritamente ligado à razão neoliberal, para citar Dardot e Laval,
não só por fomentar a ideia de positividade e de (auto)exposição, mas por seu valor
mercadológico.
Nas páginas inaugurais de sua obra Psicopolítica: O neoliberalismo e as
novas técnicas de poder, Byung-Chul Han, ao tratar do tema da liberdade na era
neoliberal, traz o conceito para o paradigma da positividade, ou seja, para ele a
liberdade, percebida como o desaparecimento de limites à vontade individual, é
estimulada como objeto de obsessão e enaltecimento, enquanto a negatividade,
percebida como limites e restrições, é suprimida, mas, paradoxalmente, é essa
noção particular de liberdade, construída sobre o pilar da positividade e que o
indivíduo crê constituir-se em instrumento de libertação, é subvertida em
mecanismo de controle e de coação interna. Diz Han (2018b, p. 09):

Hoje, acreditamos que não somos sujeitos submissos, mas projetos livres,
que se esboçam e se reinventam incessantemente. A passagem do sujeito
ao projeto é acompanhada pelo sentimento de liberdade. E esse mesmo
projeto já não se mostra tanto como uma figura de coerção, mas sim como

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uma forma mais eficiente de subjetivação e sujeição. O «eu» como


projeto, que acreditava ter se libertado das coerções externas e das
restrições impostas por outros, submete-se agora a coações internas, na
forma de obrigações de desempenho e otimização.

Não só o modo de exercício da liberdade vinculado ao seu aspecto


mercantil(izado) exemplifica a dualidade entre positividade e negatividade no seio
do corpo social. Contrapondo a positividade, Han aponta que a religiosidade, por
exemplo, configura espécie de negatividade, pois impõe ao sujeito uma série de
proibições, mandamentos, normas de conduta morais e “faz surgir sinais e espaços
claramente delimitados”, ou seja, a religião faz surgir limites bem definidos a serem
observados pelo indivíduo e aos quais ele é desincentivado a transpor. Por outro
lado, a sociedade positiva e sua ode à liberdade, na sua “orgia da libertação, a
desregulamentação, a supressão de limites e a desritualização”, opera na destruição
da negatividade, gerando “excesso de positividade, grande promiscuidade e excesso
de mobilidade, consumo, comunicação, informação e produção” (HAN, 2017c, p.
185).
A tendência para a qual convergem todas as formas de positividade pode ser
identificada no desejo. Foucault, em seu curso no Collège de France nos anos de
1977 e 1978, intitulado Segurança, População, Território, já havia identificado no
desejo o motor de ação da população e como aquilo que o sujeito busca pela
satisfação de seus desígnios. Assim, segundo os economistas fisiocratas do século
XVIII cujas obras Foucault (2008b, p. 95) analisa, ao deixar-se fazer (laissez-faire)
aos sujeitos aquilo que almejam e deixar-se o desejo fluir livremente dentro de um
determinado contexto socioeconômico, acabaria produzindo-se o interesse geral da
população. A espontaneidade da ação individual gerada pelo desejo seria a garantia
do acerto na decisão, ainda que individualmente esta decisão pudesse estar
equivocada, em termos gerais, produzir-se-ia o interesse dessa população. Adam
Smith, expoente dos ideais liberais na Grã-Bretanha, já havia manifestado esta
noção na sua obra inaugural, Teoria dos Sentimentos Morais, onde aduz que o
interesse geral da humanidade seria melhor promovido a partir da promoção dos
interesses particulares de cada indivíduo23, ou seja, concebe, neste ponto, a noção
liberal de uma economia fisiocrata, regida por leis naturais, e autorregulável, que
veio a cunhar a célebre expressão “mão invisível do mercado”. Carl Schmitt, notório

Cf. SMITH, Adam. Teoria dos Sentimentos Morais. Tradução de Lya Luft. São Paulo, SP: WMF
23

Martins Fontes, 2015, p. 288.

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jurista antiliberal e presença constante nos escritos de Byung-Chul Han, na sua


Teoria Constitucional, sintetiza que o liberalismo pode ser inferido a partir de dois
princípios: liberdade individual em princípio ilimitada e capacidade governamental
de intervir nessa liberdade em princípio limitada, ou seja, tudo o que não for
proibido por lei, é permitido24, noção esta central para o laissez-faire.
Justamente pela concepção naturalista da população, como algo pertencente
à natureza e cujos fenômenos a técnica possui o poder de mensurar, prever e
estimar, é que foi possível a criação dos meios necessários para o seu gerenciamento
através do desejo. “Produção do interesse coletivo pelo jogo do desejo: é o que marca
ao mesmo tempo a naturalidade e a artificialidade dos meios criados para geri-la”,
completa Foucault (2008b, p. 95).
A partir do momento em que o desejo é então reconhecido como motor da
população, intrínseco ao corpo social, natural, mas manejável, o âmbito de atuação
do poder desloca-se de uma concepção negativa, como a imposição de limites e
punições, para um concepção positiva, exemplificada como uma demanda
crescente de interesses individuais e coletivos a serem atendidos pelo governo. Para
Foucault:

Ora, vemos formar-se, através desse pensamento econômico-político dos


fisiocratas, uma idéia bem diferente, que é a seguinte: o problema dos que
governam não deve saber absolutamente o de saber como eles podem dizer
não, até onde podem dizer não, com que legitimidade eles podem dizer
não; o problema é de saber como dizer sim, como dizer sim a esse desejo.
Não, portanto, o limite da conscupiscência ou o limite do amor-próprio,
no sentido do amor a si mesmo, mas ao contrário tudo o que vai estimular,
favorecer esse amor-próprio, esse desejo, de maneira que possa produzir
os efeitos benéficos que deve necessariamente produzir. Temos aí portanto
a matriz de toda uma filosofia, digamos, utilitarista (FOUCAULT, 2008b,
p. 96).

A liberdade marcada pelo excesso, no entanto, conforme já dito, não


necessariamente traduz-se em libertação. Pelo contrário, ao distinguir poder e
dever, Han (2018b, pp. 09-10) afirma que “[a] liberdade de poder (Können) produz
até mais coações do que o dever (Söllen) disciplinar, que expressa regras e
interditos. O dever tem um limite; o poder não.” O limite e o dever, marcados pela
negatividade, não possuem o potencial totalizante da coerção auto-infligida, pois, a

24“Isso significa que a esfera de liberdade do indivíduo é ilimitada por princípio, enquanto os
poderes do Estado são limitados por princípio.” Tradução livre de “[t]hat means that the liberty
sphere of the individual is unlimited in principle, while the power of the state are limited in
principle.” In: SCHMITT, Carl. Constitutional Theory. Translated and edited by Jeffrey Seitzer.
Foreword by Ellen Kennedy. Durham/London: Duke University Press, 2008, pp. 197-198.

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não ser que a coerção parta do próprio sujeito, não é possível que o controle adentre
e, nos termos usados por Deleuze e Guattari n’O Anti-Édipo, desterritorialize e
reterritorialize 25 a complexa estrutura psíquica do sujeito. Assim, o regime da
positividade atua diretamente na subjetividade do indivíduo, transformando-o no
opressor de si mesmo ou, no termo usado por Han, no empreendedor de si. O sujeito
como empreendedor de si é caracterizado pela obsessão com o desempenho, atitude
necessária para que possa competir contra os outros empreendedores de si,
competição essa fundada na lógica mercantil da (livre-)concorrência, e, por
paradoxal que pareça, acaba por explorar a si mesmo (HAN, 2018b, pp. 09-13) e
funcionar como uma peça eficiente na engrenagem (ou na máquina social) do
capital 26 , assim como descrito acima a partir da obra de Benjamin Loveluck.
Liberdade e coerção confundem-se e o sujeito obediente da sociedade disciplinar
agora transforma-se em explorador de si, assim “[o] sujeito de desempenho
distingue-se do sujeito de obediência pelo fato de ser soberano de si mesmo; de,
enquanto empreendedor de si, ser livre” (HAN, 2017c, p. 262).
Para desenvolver a transição da sociedade disciplinar foucaultiana para a
sociedade de controle (ou positiva, de desempenho e suas inúmeras variações de
nomenclatura), Han identifica nessa perseguição pelo desempenho aliada à oferta
sedutora de liberdade (de comunicação, locomoção, informação) como elementos
propiciadores do surgimento de novos dispositivos de controle e sua propagação em
níveis jamais vistos até então, como armazenamento de dados, coleta de
informações privadas, mapeamento de perfis psicológicos, que foram tornados
possíveis pelo desenvolvimento tecnológico experimentado nos últimos séculos
(NOYAMA, 2019, pp. 175-182).
A liberdade estimulada e caracterizada pelo excesso, materializada no
conceito do empreendedor de si e fundamentada na lógica mercantilista
identificada em sua gênese por Foucault e no seu excesso de positividade por Han,

25 Na obra O Anti-Édipo, Deleuze e Guattari desenvolvem os conceitos de “desterritorialização” e


“reterritorialização” no âmbito do Estado, além de entre tantos outros, quando este confisca para si
o território e o substitui em signos abstratos como propriedade privada, da qual funciona como
garante. Assim, no presente contexto os termos são usados para demonstrar o processo de
substituição/alteração da subjetividade operante na sociedade positiva. A esse fenômeno de confisco
e substituição os autores denominam “pseudoterritorialidade”. In: DELEUZE, Gilles, GUATTARI,
Félix. O Anti-Édipo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo, SP: Editora 34, 2011, pp. 260-261.
26 “A máquina social, ao contrário, tem os homens como peças (ainda que os consideremos com suas

máquinas) e os integra, interioriza-os num modelo institucional que abrange todos os níveis da ação,
da transmissão e da motricidade.” In: DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. Tradução
de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo, SP: Editora 34, 2011, p. 187.

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subverte-se, como já dito, em fator de autocoerção do sujeito e causará o


esgotamento da defesa neuronal-psíquica e, por decorrência, ocasionará uma série
de doenças psicológicas. Em Sociedade do Cansaço, Han explica extensivamente as
causas da moderna busca obsessivo-compulsiva pelo desempenho e as
consequências que imprime na subjetividade do sujeito neoliberal. Segundo o autor,
em Topologia da Violência, o “excesso de superprodução, superdesempenho,
superconsumo, supercomunicação e superinformação não ameaça o sistema
imunológico”, em uma crítica ao pensamento de Jean Baudrillard, para quem a
eliminação da negatividade causaria novas formas virais pela sedentariedade do
sistema imunológico, “mas o sistema neuronal-psíquico”, ou seja, o excesso, seja
qual for a sua natureza, resulta não no surgimento de novas patologias virais como
historicamente experimentadas pela humanidade, mas na exaustão do sistema
neuronal-psíquico do sujeito inserido nessa sociedade caracterizada pela
positividade e por seus fenômenos correlatos, cujo excesso é a característica comum
(HAN, 2017c, 185-191).
No curso Nascimento da Biopolítica, ministrado nos anos de 1978 e 1979,
Foucault identifica na concepção liberal de liberdade, fazendo questão de frisar o
termo “liberal” para designar o surgimento das ideias representativas do liberalismo
político e econômico, a convergência entre produção de liberdade e liberdade de
deixar fazer (laissez-faire). O liberalismo é consumidor de liberdade, alimenta-se
da produção excessiva propiciada pelo excesso de liberdade. Não é por motivos de
fundamento ético-moral ou teológicos que a liberdade passa a ocupar o centro da
discussão política e das técnicas de governo, mas em razão do resultado, já antevisto
pelos fisiocratas e pelos utilitaristas, que a liberdade propicia ao acúmulo de
riqueza, ou, para novamente voltar a Foucault, a partir do conceito de
administrativação do Estado germinado pela disciplina da economia política.
Assim, o Estado ocupa o lugar de gestor das condições graças às quais a liberdade é
possível e passa a funcionar como garantidor e limitador da liberdade
simultaneamente, operando em uma relação contraditória de produção e destruição
da liberdade (FOUCAULT, 2008a, pp. 86-87).
Já no contexto do século XXI, diferentemente de Foucault, mas de quem
toma as teorias emprestadas, Loveluck assevera que o vínculo estreito entre

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tecnologias de informação, fomentadoras de ideais libertários27, especialmente no


contexto da cultura da cibernética surgida a partir dos anos 1960 e, posteriormente,
da cultura da internet, fortalecida a partir da década de 1990, e a globalização
financeira do capitalismo, permitiu uma concentração exponencialmente maior de
capital enquanto serviu para flexibilizar, i.e., precarizar, as relações de trabalho. 28
Novamente, faz-se necessário o diálogo com Foucault. No seminário
Segurança, População, Território, o filósofo francês desenvolve a distinção entre o
poder disciplinar, característico da sociedade, principalmente da europeia, até o
século XVIII e os dispositivos de segurança, característicos das democracias liberais
modernas. Para Foucault, o poder disciplinar atua(va) através de prescrições de
caráter geral e que buscavam abranger de maneira extremamente exaustiva toda a
realidade social, ou seja, somente aquilo que era legalmente previsto como
permitido o era, impondo-se uma técnica de governo por demais onerosa e com uma
pretensão totalitária irrealizável. Por outro lado, na concepção fisiocrata de uma
sociedade regida por leis naturais, como o mercado e sua mão invisível, no termo de
Adam Smith, a nova razão de Estado passou a inverter essa lógica, prescrevendo
proibições e punições àquelas ações ou omissões que não poderiam ser praticadas
para manter a coesão do tecido social e assegurar o normal funcionamento da
economia de mercado, e, permitindo todo o restante, resultando nos modernamente
conhecidos direitos fundamentais de primeira geração ou negativos. Assim, a
liberdade foi instrumentalizada como técnica de governo e a regra, que antes era
exceção, passou a ser a da mínima interferência no espaço de atuação do sujeito
(FOUCAULT, 2008b, p. 62-64), servindo o poder estatal como mero regulador que
realiza tão somente os ajustes e interferências necessários na realidade social.
A liberdade instrumentalizada, ou subvertida, como técnica não só de
governo, como antevisto por Foucault, mas também de mercado, é, para Byung-
Chul Han, o alicerce do neoliberalismo no século XXI. Para o autor, diversos
fenômenos, diferentes mas interligados, atendem aos mesmos objetivos de fomento
à geração e ao acúmulo de capital. A autenticidade, que para o filósofo sul-coreano
diferencia-se da incomparabilidade por tornar, justamente, iguais a todos nesta

27 O termo libertário é utilizado pelo autor com a conotação que lhe é dada, principalmente, nos
Estados Unidos, que designa a teoria política segundo a qual a liberdade individual e a propriedade
privada são princípios absolutos e o Estado deve ser visto, sempre, com ceticismo e rigorosamente
delimitado à mínima ingerência possível na atividade econômica de particulares e empresas.
28 Cf. LOVELUCK, Benjamin. Redes, Liberdades e Controle: Uma Genealogia Política da Internet.

Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018, p. 80.

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Matias Stecker; Mauricio Dal Castel | 19

característica ansiada e comum, opera em prol da racionalidade mercadológica de


geração de (mais-)valor, ainda que através da própria imagem, do próprio corpo e
da própria subjetividade, rejeitando a negatividade do distinto, cuja geração de
capital dificulta, e cedendo espaço à positividade do igual, daquele e daquilo que é
facilmente assimilável e, portanto, rentável (HAN, 2021, p. 21).
A economia dos likes, nas palavras de Beiguelman (2021, pp. 39-40), situa-
se sobreposta sobre a organização dos dados que, algoritmicamente distribuídos,
detém o controle sobre a forma como nos comunicamos, expressamos e vivemos
quando em rede. Segundo a autora:

A economia liberal dos likes, e suas fórmulas de sucesso, tende a


homogeneizar tudo o que produzimos e vemos. Padroniza ângulo,
enquadramentos, cenas, estilos, o que está por trás disso são os critérios
de organização dos dados para que sejam mais rapidamente
“encontráveis” nas buscas (os recursos de Search Engine Optimization –
SEO) e os modos como os algoritmos contextualizam os conteúdos nas
bolhas específicas que pertencemos (algo que não controlamos e que nos
controla.

O fenômeno da positividade, embora assim designado somente a partir de


Byung-Chul Han para descrever os efeitos das novas tecnologias sociotécnicas,
especialmente com a emergência do neoliberalismo, encontra raízes profundas no
pensamento de Michel Foucault e sua análise do pensamento fisiocrata e liberal dos
séculos XVII e XVIII, principalmente quando o ideal da liberdade e do estímulo à
liberdade e à produção semeou o terreno para que fosse possível a ascensão
vertiginosa dos fundamentos daquilo que Han veio, no século XXI, a identificar
como sociedade positiva. Mas não só em sua análise do liberalismo primordial
Foucault havia antevisto a positividade como nova forma de controle social. Já na
Idade Média, especialmente nos anos da Peste Negra, o autor francês identifica na
substituição dos modelos governamentais/estatais de combate à doença o germinar
daquilo que viriam a ser as técnicas positivas de poder, que passaram a ocupar cada
vez mais espaço em detrimento das técnicas negativas de poder. Segundo Foucault
(2010, p. 41):
[N]o fundo, a substituição do modelo da lepra pelo modelo da peste
corresponde a um processo histórico importantíssimo que chamarei,
numa palavra, de invenção das tecnologias positivas de poder. A reação à
lepra é uma reação negativa; é uma reação de rejeição, de exclusão, etc. A
reação à peste é uma reação positiva; é uma reação de inclusão, de
observação, de formação de saber, de multiplicação dos efeitos de poder a
partir do acúmulo da observação e do saber. Passou-se de uma tecnologia
do poder que expulsa, que exclui, que bane, que marginaliza, que reprime,

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20 | Opinião Filosófica, V. 13, 2022

a um poder que é enfim um poder positivo, um poder que fabrica, um


poder que observa, um poder que sabe e um poder que se multiplica a
partir de seus próprios efeitos.

Assim, é possível identificar a positividade como um fenômeno antigo, mas


agora potencializado pelas novas tecnologias de vigilância disponíveis.
É necessário atentar: é no fenômeno da positividade que o poder potencializa
a produção de subjetividade, mais do que nunca, a “docilidade” para fabricar, para
produzir, embora a olhares performáticos e pornográficos.

Referências

ARELLANO, César Alcázar. Byung-Chul Han y la Positivización de la Sociedad: El


Sentido, la Verdad y la Libertad en la Era Digital. Argumentos de Razón Técnica,
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Recebido em: 16/10/2021.


Aprovado em: 17/05/2022.
Publicado em: 06/06/2021.

Opinião Filosófica – ISSN: 2178-1176 - Editora Fundação Fênix. www.fundarfenix.com.br

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