147-Texto Do Artigo-486-1-10-20200710

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A “ARMADILHA” DO REGIME DE SEPARAÇÃO DE BENS


E A HUMANIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA BRASILEIRO
The “pitfalls” of separate property
and the humanization of Brazilian Family Law
Eduardo de Oliveira Leite*

Resumo: O objetivo da imposição do regime de separação obrigatória de bens é proteger os nu-


bentes em situações especiais que poderiam conflitar com o regime de comunhão de bens. Estra-
nhamente, na dicção do Código Civil, as pessoas que casam sob o regime de separação total de
bens estão ingressando no regime de comunhão parcial de bens quanto aos aquestos. Tal incoe-
rência revela a irresistível preferência do legislador nacional pelo regime da comunhão de bens. A
publicação da súmula 377/STF contraria o objetivo perseguido pelo legislador podendo ser afas-
tada por meio de pacto antenupcial garantindo-se exatamente o que a lei determina.
Palavras-chave: Regime de separação de bens. Afastamento da Súmula 377/STF. Possibilidade de
pacto antenupcial.

Abstract: The goal of the mandatory property regime is to protect the betrothed in certain special
situations which might clashwirh community property regimes. Oddly, in the words of the Code Civil,
persons that marry under the separate property regime are entering the regime of partial communion
of assets in regards to deferred property.The publication of Súmula 377/STF goes against the legislators
wishes and can be neutralized by a prenuptial agreement therefore accomplishing what the law
demands.
Keywords: Separate Property Regime. Non-application of Súmula 377/STF. Possibility of prenuptial
agreement.

*
Doutor em Direito Privado pela Faculdade de Direito da Universidade de Paris (Nouvelle Sorbonne)
Paris, França; Pós-Doutor em Direito de Família pelo Centre du Droit de la Famille, da Universidade
Jean Moulin, de Lyon, França; Professor Titular na Faculdade de Direito da UFPR; Professor Titular de
Direito Civil da UEM/Paraná e Professor Adjunto de Direito Civil da UTP/PR. Advogado e Parecerista.

Revista do Ministério Público do RS Porto Alegre n. 83 maio 2017 – mar. 2018 p. 51-68
Eduardo de Oliveira Leite

Sumário: 1. A noção de regulamentação do regime de bens. 2. A tipificação dos regimes de bens


no direito brasileiro. 3. A “armadilha” legal da separação. 4. A Súmula 377 do Supremo Tribunal Fe-
deral. 5. Da possibilidade de afastamento da Súmula 377/STF. 6. Primeiras conclusões.

Summary: 1. An introduction to matrimonial regime regulation. 2. Typification of matrimonial


regimes in Brazilian law. 3. The “pitfalls” of separate property. 4. Súmula (repertoire of jurisprudence)
377 of the Brazilian Supreme Court (STF). 5. The possibility of non-application of Súmula 377/STF. 6.
Initial conclusions.

1 A noção de regulamentação do regime de bens

No título II do Código Civil é tratada a matéria do Direito Patrimonial e no


Subtítulo I, o Regime de Bens entre os cônjuges. Como o casamento cria a co-
munhão de vida entre o marido e a mulher, os interesses que passam a gerir a
sociedade conjugal não mais se restringem aos aspectos puramente pessoais mas
também vão influir sobre os bens que ambos trazem para o casamento, ou que o
casal adquire durante o casamento.
Considerando que a matéria é de ordem pessoal, leia-se, de foro íntimo,
a lei permite que os contraentes escolham, dentro da maior liberdade, o regime
que há de reger o patrimônio de ambos. Assim dispõe o art. 1.639 (Disposições
Gerais) que, “É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular,
quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.”
No caso brasileiro, esta tendência se direciona em duas nítidas tendências,
a comunicabilidade dos bens ou a separação de bens, com clara preferência pelo
sistema da comunhão de bens. A separação de bens sempre foi encarada com
desconfiança pela sociedade brasileira, tendência que vai encontrar ampla acei-
tação no terreno jurídico, conforme examinaremos a seguir.
Com efeito, na vigência do Código Civil de 1916, o legislador nacional
optou, sem vacilar, pelo regime da comunhão universal de bens, como regime
legal. Ou seja, o Brasil, contrariamente ao modelo português que lhe serviu de
paradigma, seguiu a orientação germânica. Tal tendência durou até o advento
da Lei do Divórcio que, em 1977, substitui o regime legal da comunhão universal
pelo regime da comunhão parcial.1 O modelo a ser seguido pela sociedade brasi-
leira e desejado pelo legislador pátrio, resgate-se, permaneceu com nítida pre-
ferência pela comunicabilidade dos bens durante o casamento.
A opção pelo regime da comunhão parcial de bens, embora parcial, deter-
mina uma tendência que sempre se impôs no modelo brasileiro, a saber, a co-
municabilidade patrimonial.
1
Dispõe o art. 1.640. “Não havendo convenção ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos
bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial.”

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Se o casamento implica em comunhão de vidas – na esfera estritamente


pessoal – no ambiente patrimonial esta característica também deve predominar
para garantir a noção de comunhão de vidas.
Os motivos de tal opção são vários e decorrem de áreas meta-jurídicas
que, embora paralelas ao mundo jurídico, sempre deixaram sua impressão inde-
lével no ambiente jurídico.
Dois parecem determinar de forma mais veemente a irresistível escolha do
legislador brasileiro pela comunicabilidade. Seriam eles: a influência do direito
canônico – via doutrina da Igreja católica – e a característica da sociedade brasi-
leira (predominantemente católica) que sempre visualizou o casamento como co-
munhão total de vida, incluindo aí os efeitos de ordem econômica.
O primeiro motivo, embora pouco citado pelos doutrinadores brasileiros,
foi apreciado de forma erudita por Pontes de Miranda em monografia – Fontes
e evolução do Direito Civil brasileiro – que permanece com sua integral poten-
cialidade, apesar da passagem do tempo. O direito canônico, “mais religioso do
que político e moral”2 se faz presente em quase todos os institutos do Direito
de Família o que levou Orlando Gomes a afirmar que a legislação brasileira in-
corporou “certos princípios morais, emprestando-lhes conteúdo jurídico, parti-
cularmente no direito de família.”3
A mesma função da comunhão de bens na vida familiar é resgatada pela
sociedade brasileira no que diz respeito à comunhão universal, “por isso mes-
mo que acarreta solidariedade maior entre os cônjuges e pressupõe maior con-
fiança recíproca, fundindo-lhes o patrimônio como o vínculo matrimonial os
associara...”4
Esta postura sempre foi resgatada pela doutrina nacional como corolário
natural da sociedade conjugal. Assim, “em sua natureza e efeito a comunhão é
por certo o regime que mais se coaduna com a índole da sociedade conjugal.”5
E, no mesmo sentido, Clóvis Bevilaqua ao afirmar que “... esta pronunciada pre-
dileção pelo regime da comunhão, entre nós, explica-se bem por estar ele em
acordo mais pleno com a índole da união conjugal.”6
Sob esta ótica, da comunhão integral de vidas, o regime da comunhão jus-
tifica a prevalência que lhe foi dada pelo legislador no sistema codificado de 1916
e, agora, no de 2002.

2
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Obra citada, p. 27.
3
GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil Brasileiro. p. 24.
4
PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Civil, v. 8. p. 215.
5
PEREIRA, Lafaiete Rodrigues. Direitos de Família. p. 98.
6
BEVILAQUA, Clóvis. Direito de Família. p. 230.

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Com o advento da Lei do Divórcio, a comunhão universal cedeu espaço à


comunhão parcial, mas ainda assim a comunicabilidade se manteve como parâ-
metro fundamental a reger as questões econômicas no casamento.
A natural evolução da sociedade brasileira com todos seus efeitos no casa-
mento – especialmente aqueles respeitantes à facilidade da ruptura da sociedade
conjugal e à inserção da mulher no mercado de trabalho com sua economia
própria – gerou, como era de se esperar, um abrandamento da comunhão de to-
dos os bens, pretéritos e futuros em proposta mais consentânea com a realidade
social da atualidade.
Assim, o regime da comunhão parcial (também chamado de legal ou suple-
tivo) aplicável ao casamento em que não houve pacto antenupcial, quando a lei
não impuser o regime de separação de bens, ou quando este for nulo ou invali-
dado, passou a viger como regime legal a partir de 2002, com o advento no no-
vo Código Civil.
Vale, porém ressaltar, que, independente da força das pressões sociais ou
do aporte potencialmente vigoroso da construção doutrinária e legislativa, a
comunhão se mantém como “modelo” perseguido pelo legislador que resistiu
incólume o passar dos séculos. Tal constatação é suficiente a reconhecer o poder
dos costumes (de um lado) e da ideologia religiosa (de outro) como garantido-
res de uma prática que se encontra arraigada à sociedade brasileira.

2 A tipificação dos regimes de bens no direito brasileiro

A atual sistemática do Código Civil brasileiro admite quatro modelos de


regimes de bens, a saber: a comunhão universal de bens (arts. 1.667 a 1.671), a
comunhão parcial de bens (arts. 1.658 a 1.666), a participação final nos aquestos
(arts. 1.672 a 1.686) e a separação de bens (arts. 1.641 e 1.687 a 1.688).
Destes nos ocuparemos apenas dos modelos básicos, da comunicabilidade e
da separação, em decorrência do limite temático a que se restringe o presente artigo.
A regra que domina a matéria do regime de bens brasileiro é a da mais
absoluta liberdade, tanto é que nas “Disposições Gerais”, o legislador permite
aos contraentes a opção por regimes “mistos”7 a partir de regras tipificadas nos
regimes “puros”, conforme dicção claríssima estampada no já citado art. 1.639.
O que quer isso dizer? Que a regra do art. 1.639 permite aos contraentes
optarem por um regime misto, a saber, o da comunhão universal, com a inclusão

7
Consideramos um regime de bens como “misto” quando os contraentes não aderiram integralmente à
proposta de regime estampada no Código Civil, mas empregaram preceitos próprios a mais de um
regime de bens; de igual modo, consideramos um regime de bens “puro”, quando os contraentes esco-
lheram um regime de bens na sua integralidade, sem recorrer à hipótese prevista no art. 1.639 do CC.

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de regras (via pacto antenupcial) pertencentes a outro regime de bens. Por exem-
plo, é possível um dos contraentes optar pelo sistema da total comunicabilidade
com a exclusão de um ou alguns bens particulares (exclusão própria da comu-
nhão parcial, de acordo com o disposto no art. 1.659, I). Esta opção está criando
um regime misto, ou “híbrido”, plenamente aceito pela ordem jurídica nacional
em manifesta concordância com o art. 1.639.
Da mesma forma, no regime da separação total de bens, pode um dos con-
traentes sugerir que o bem imóvel adquirido após o casamento pertencerá a am-
bos os cônjuges.
Fizemos questão de nos referir aos dois regimes básicos para afastar qual-
quer exegese tendente a limitar a possibilidade de mixagem de regime de bens
apenas aos regimes de comunicabilidade. Não é essa a tendência do legislador
que, prevendo a hipótese de regimes mistos, nas Disposições Gerais (art. 1.639)
estendeu tal hipótese a todos os quatro tipos tipificados de regime de bens.
Outra não poderia ser a interpretação extensiva, vez que inaugurando a ma-
téria de direito patrimonial do regime de bens entre cônjuges, aquela prerrogativa
não está vinculada a este ou aquele regime de bens, mas a todos indistintamente.
Claro está que a liberdade de escolha de regime, a qual nos referimos, não é
tão ampla ou ilimitada como poder-se-ia imaginar mas encontra limites na ordem
civil em uma hipótese específica na qual a comunicabilidade cede espaço (por
meio de imposição legal) ao regime de separação.
Assim, temos a liberdade de escolha como princípio e a ausência de opção,
como exceção. Nesta segunda hipótese se situa o regime de separação obriga-
tória de bens (art. 1.641)8 que é uma espécie do gênero maior, regime de sepa-
ração de bens.
Com efeito, o legislador admitiu a separação convencional, decorrente de
acordo, ou composição, entre as partes, como dispõe o art. 1.687 do CC9 e o re-
gime de separação obrigatória de benso que nos leva a concluir que, no Brasil, a
separação é oriunda de imposição (art. 1.641) ou opção (art. 1.687). Indepen-
dente da origem – imposição ou opção – este regime se caracteriza pela ausên-
cia de patrimônio comum e, ao contrário do regime legal (comunhão parcial)
os cônjuges mantêm autonomia econômica distinta.
Enquanto a comunhão parcial forma três massas distintas (ou acervos) de
bens, os particulares do marido, os particulares da mulher, e os comuns (ou aques-
8
“Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casa-
mento;
II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos;
III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.”
9
“Art. 1.687. Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de
cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real.”

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tos), na separação existem apenas dois acervos, os bens do marido e os bens da


mulher, tendo ambos liberdade de administrá-los ou aliená-los. Ou seja, o casa-
mento gera comunhão de efeitos pessoais, mas não de efeitos patrimoniais.
Tudo levava a indicar que a dicotomia existente entre os dois regimes era
absoluta, implicando em afirmar que, no regime da separação, em qualquer das
duas hipóteses (convencional ou legal) não ocorria confusão patrimonial, cada
cônjuge mantendo sua vida econômica distinta, enquanto no regime da comu-
nhão, também nas duas hipóteses (universal ou parcial) os aquestos se comuni-
cam, gerando acervo comum.
Tal afirmação, porém, ficou negada pela dicção do art. 259 do Código Ci-
vil de 1916 que afirmava, sem vacilar, “Embora o regime não seja o da comu-
nhão de bens, prevalecerão no silêncio do contrato, os princípios dela, quanto à
comunicação dos adquiridos, na constância do casamento”. Logo, se o regime
fosse de separação de bens, entendia a melhor doutrina que os adquiridos de-
viam, na falta de estipulação em contrário, seguir a natureza do regime.
O próprio Clóvis Bevilaqua reconheceu que o dispositivo era desarmônico.
“Num sistema, em que se afasta a comunhão de bens em numerosos casos”,
ainda afirmava o civilista, “o que se deve supor é que não a querem, para os bens
que, de futuro, lhe vierem.”10 Esta seria a conclusão lógica que não foi acompa-
nhada pelo artigo 259.
Conforme se afirmou acima, a dicção do artigo sob comento só se justifi-
cava face à irresistível tendência do legislador pátrio favorecer, sempre que pos-
sível, a comunicabilidade dos aquestos em detrimento de todos os demais regimes.
Ora, a hipótese prevista no então revogado art. 259/CC-1916, deixava claro
que, não havendo disposição específica sobre a incomunicabilidade dos aquestos,
embora os nubentes tivessem casado no regime de separação, os aquestos se
comunicavam. Ou seja, a lei, em verdadeiro tour de force, impunha ao casal um
regime de bens equivalente ao atual regime de comunhão parcial de bens (incomu-
nicabilidade dos bens particulares e comunicabilidade do bens aquestos) quando,
na realidade, o casal havia optado pela separação de bens.
Tal interpretação, contrária à intenção do casal, criou entendimento juris-
prudencial no sentido de aplicar os princípios da comunhão parcial de bens, em
relação aos bens adquiridos durante o casamento nos casos do regime de sepa-
ração de bens convencional.11

10
BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. v. 1. p. 647.
11
Nesse sentido a doutrina de Caio Mário da Silva Pereira: “A nós nos parece que se o Código insti-
tuiu a comunicabilidade ‘no silêncio do contrato’, somente teve em vista a situação contratual, pois
se desejasse abranger, nomesmo efeito, a separação compulsória, aludiria à espécie, em termos am-
plos, e não restritivo ao caso, em que o contrato é admitido.” Instituições de Direito Civil: Direito
de Família. v. 5. p. 131.

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A disposição legal (do art. 259/1916) endossada pela jurisprudência na-


cional gerou um verdadeiro “alçapão” legal, na ótica de Silvio Rodrigues,12 le-
vando os cônjuges a viverem sob regime contrário àquele escolhido na data da
celebração do casamento. Com efeito, estavam casando no regime de separa-
ção de bens mas, por força do citado art. 259, os aquestos se comunicavam.
A contradição era manifesta. E a injustiça daí decorrente, notória.

3 A “armadilha” legal da separação

Se a separação fosse convencional, dependente, pois, de pacto antenupcial,


nela deveriam os contraentes se referir acerca dos aquestos, dispondo quer
quanto à comunicabilidade ou quanto à incomunicabilidade. Caso silenciassem
sobre os aquestos, impunha-se a aplicação da comunicabilidade dos mesmos
(art. 259/1916).
Tal situação não era estendida ao regime de separação obrigatória de bens,
vez que nesta hipótese a separação era imposta aos contraentes, sem possibi-
lidade de pactuarem livremente sobre seu patrimônio. O regime resultava de
imposição legal e não de contrato.
Se na separação de bens convencional os contraentes, por meio de pacto
antenupcial “em que ajustam a separação, circunscrevem os efeitos dessa união,
a fim de impedir que ela se estenda também ao campo patrimonial”13 não é crí-
vel, nem razoável que o legislador nulifique a intenção do casal, impondo regi-
me de efeitos contrários àqueles manifestados no pacto.
Na separação, “embora sejam marido e mulher, cada cônjuge continua
dono daquilo que era seu, será senhor exclusivo dos bens que vier a adquirir e
receberá, sozinho, as rendas produzidas por uns e outros desses bens.”14 A apli-
cação do art. 259, como vimos, descaracterizava o regime de separação con-
fundindo-o com os efeitos do regime de comunhão parcial de bens.
Por isso, com razão, José Fernando Simão, não vacila em afirmar que, “o
dispositivo, aplicado ao regime da separação convencional determina a comu-
nhão dos aquestos, caso o pacto antenupcial não os excluísse expressamente.

12
Assim doutrinava Silvio Rodrigues: “Tal regra, que surge como um alçapão posto na lei para ludi-
briar a boa-fé dos nubentes e conduzi-los a um regime de bens não desejado, só encontra explica-
ção na indisfarçável preferência do legislador de 1916 pelo regime da comunhão universal e na sua
desmedida tutela do interesse particular, injustificável em assunto que não diz respeito à ordem pú-
blica.” (Silvio Rodrigues. Direito Civil: Direito de Família. v. 6. p. 165-166).
13
RODRIGUES, Silvio. Obra citada, v. 6, p. 216.
14
RODRIGUES, Silvio. Obra citada, ibidem.

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Era uma armadilha para aqueles que simplesmente escolhiam a separação de


bens, sem excluir expressamente a comunhão de bens adquiridos a título oneroso
na constância do casamento.”15
No mesmo sentido a doutrina de Silvio de Salvo Venosa para quem “o
legislador preparou uma armadilha indesejável para os que escolhiam no pacto
antenupcial o regime da separação: se não fossem expressos a respeito da
incomunicabilidade absoluta, estariam casando-se, na verdade, sob o regime da
comunhão de aquestos.”16
A armadilha não pode ser subestimada se considerarmos a grande maioria
de brasileiros que casa sem discutir ou atentar à importância do regime de
bens antes do casamento.17 Na realidade esta é uma matéria de discussão que
gera mal-estar entre os contraentes e que, quase sempre, é postergada para o
momento da cerimônia quando o regime é indicado, na maioria das vezes, sem
o conhecimento integral das consequências patrimoniais da opção feita. A pros-
perar a tendência jurisprudencial originária do então art. 259, os contraentes
estariam casando sob o regime de separação de bens (quanto aos bens preté-
ritos, ou particulares) mas, efetivamente, sob o regime de comunhão parcial de
bens (no qual a comunicabilidade dos aquestos é regra imperativa).
A jurisprudência nacional assumiu, então, postura diametralmente oposta,
alguns Tribunais entendendo que, na citada hipótese, os bens adquiridos na
constância do casamento, em decorrência do mútuo esforço, seriam comuns e,
pois, comunicáveis. Em oposição oposta, outros Tribunais sustentavam a inco-
municabilidade dos aquestos (decisão correta) em decorrência da dicção do art.
259 somente aplicável aos casos de “silêncio do contrato”.

15
SIMÃO, José Fernando. O regime da separação absoluta de bens (CC, art. 1.647): separação con-
vencional ou obrigatória? In: Meus artigos. Disponível em: http://professorsimao.com.br/artigos_
simao_regime_separação.html. Acesso em: 5 mar. 2018.
16
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil – Direito de Família. v. VI. p. 327.
17
Se considerarmos que, segundo dados levantados por técnicos da ONU e pesquisadores brasileiros,
42 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza, é factível concluir que quase metade da
população brasileira não tem a menor ideia do que seja regime de bens e, muito menos, utilize o recurso
do pacto antenupcial face à ausência absoluta de patrimônio. De igual modo, a tabela do IBGE –
Classes de rendimento mensal, em salários mínimos comprova que aproximadamente 40% (quaren-
ta por cento) dos brasileiros não têm rendimento e, aproximadamente 10% (de por cento) ganha
um salário mínimo, ou seja, metade da população está excluída do acesso à legislação nacional em
geral e sobre regime de bens no casamento, especificamente. Em 2015, a saber, há três anos atrás, a
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Síntese de Indicadores 2015, levada a efeito pelo
IBGE comprovou que “44,7% dos domicílios particulares brasileiros que declararam ter algum tipo
de rendimento contavam com apenas 1 salário mínimo por morador no domicílio. Dos 68,2 milhões
de domicílios que declararam possuir rendimento, 30,5 milhões receberam menos de 1 salário mínimo
de rendimento domiciliar per capita; 22,2 milhões (ou 32,5%) foram enquadrados nas faixas de ren-
dimento domiciliar per capita de 1 a menos de 2 salários mínimos; e 13,6 milhões (ou 19,9%) infor-
maram rendimento domiciliar per capita, de 2 ou mais salários mínimos” (Fonte: IBGE).

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A tese do esforço comum, a favor da comunicabilidade gerava atração con-


siderável no meio judiciário vez que, pensar contrariamente, implicaria negar a
ocorrência da mútua ajuda em detrimento dos interesses patrimoniais do casal. De
qualquer maneira, ainda que prevalecesse tal exegese, a noção de “armadilha” era
notória, vez que o casal casara sob o regime de separação de bens.
Diante, pois, do impasse e da inquestionável contradição de decisões que
gerava legítima reação dos casais, as Cortes Superiores tentaram resolver a di-
cotomia com a publicação da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal que as-
sim dispunha: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adqui-
ridos na constância do casamento.”
O escopo do preceito, agora sumulado, era pôr fim às intermináveis dis-
cussões a respeito da comunicabilidade ou não dos aquestos decorrente do re-
gime de separação de bens. Embora a dúvida tenha sido minorada, já que, a
partir de então, a súmula se aplicava ao regime de separação legal (leia-se, obri-
gatória) de bens, a dúvida ainda persistia em relação ao regime de separação
convencional de bens.
A súmula, como se depreende da sua leitura, é restritiva ao “regime de
separação legal de bens” e, portanto, aplica-se a esta espécie de separação. Se a
intenção fosse abranger todo o gênero de separação de bens, por certo, a reda-
ção não teria se limitado à separação legal.
Claro está, e nem é preciso muito esforço para já se concluir parcialmente,
que a Súmula 377/STF “distorce o regime de separação obrigatória de bens,
transformando-o, na prática, em regime de comunhão parcial de bens, em clara
violação ao comando legal e, ainda, ao senso comum que vigora na sociedade,
sendo de difícil compreensão que um regime que se intitula separação obriga-
tória gere a comunhão de aquestos”.18
A objetiva e clara doutrina de Ana Luiza Nevares aponta com precisão
impecável o equívoco de uma súmula que, em vez de pôr pá de cal na dis-
cussão intermitente do problema gerado pelo art. 259/1916, aumentou o ques-
tionamento alargando a problemática da comunicabilidade (a comprovação dos
aquestos independeriam de prova do esforço comum, sendo este presumido?
ou a súmula deveria ser interpretada restritivamente, exigindo-se prova de con-
tribuição para a partilha do patrimônio adquirido na constância do casamento?)
a setores jurídicos até então inimagináveis.

18
NEVARES, Ana Luiza Maia. O regime de separação obrigatória de bens e o verbete 377 do Su-
premo Tribunal Federal. In: II a. 3. n. 1.2014 II 5. Disponível em: <civilistica.com>. Acesso em: 5
mar. 2018.

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4 A súmula 377 do Supremo Tribunal Federal

A súmula, conforme se viu, tem sua base legal fixada no art. 259 do Có-
digo Civil de 1916. A ratio do citado artigo referia-se ao silêncio do contrato,
tendo naturalmente em vista o regime da separação contratual, isto é, a separa-
ção convencional. A contrario sensu, se no regime da separação legal, obriga-
tória, não há contrato, vez que a imposição decorre do texto legal, não há que
se falar na aplicação do citado dispositivo.
Esta sempre foi a posição dominante da doutrina brasileira19 que não va-
cilava em afirmar a inaplicabilidade da hipótese ao regime da separação obri-
gatória de bens.
Outro motivo a ensejar duras e pertinentes críticas da doutrina nacional
remontaria à confusão de regimes puros que a nossa lei civil nunca agasalhou.
Com efeito, a aplicação do art. 259 ao regime de separação legal de bens im-
plicaria, inevitavelmente, em convertê-lo em regime de comunhão parcial. Com
efeito, dizer comunicarem-se os aquestos no regime de separação legal equiva-
le a dizer que o regime passa a ser o da comunhão parcial. Certamente não foi
este o escopo perseguido pelo legislador, que visou a uma sanção aos cônjuges
(art. 1.641, incisos I a III) quando previu o regime de separação legal (especial-
mente a situação do setuagenário à época do casamento).20
Não bastassem os argumentos invocados, Inácio de Carvalho Neto se re-
fere a outro argumento que parece decisivo à elucidação do impasse criado.
Assim segundo o doutrinador, era intenção do legislador, com a redação do
art. 1.641 do novo Código Civil “deixar clara a revogação da Súmula 377 do
Supremo Tribunal Federal, dizendo não haver comunhão de aquestos no regi-
me de separação legal de bens.”21 Entretanto, “na última revisão redacional do
19
RODRIGUES, Silvio. “O que me parece de absoluta evidência é que a regra do art. 259 [...] se aplica
exclusivamente ao regime convencional da separação de bens.” Obra citada, p. 166. No mesmo
sentido a doutrina de Pontes de Miranda: “O art. 259 não incide se o regime da separação é o obri-
gatório. Então os bens são adquiridos pelos cônjuges separadamente e há dois patrimônios sem liga-
ção.” Tratado de Direito Privado. v. 8. p. 346. E, ainda, a doutrina de João Manuel de Carvalho San-
tos: “O legislador ao dispor pela forma que o fez, pressupôs a existência de um contrato antenupcial.
E somente quando o contrato silencia, manda que se aplique o dispositivo supra. Donde a conclu-
são de que, se se trata de regime obrigatório da separação de bens, em virtude do que estatui o art.
258, parágrafo único, não se aplica o dispositivo do art. 259. Permitir que se comunicassem os
bens adquiridos, no caso de ser obrigatório o regime de separação, seria tolerar que a lei fosse bur-
lada, seria, em suma, admitir que os cônjuges fugissem daquele regime que a lei lhes impôs, para
caírem no regime da comunhão de bens.” Código Brasileiro Interpretado. v.5. p. 55.
20
A partir da Lei nº 12.344, de 9 de dezembro de 2010, o art. 1.641 passou a viger da seguinte forma:
“II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos”.
21
CARVALHO NETO, Inácio. A Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal e o novo Código Civil.
Disponível em: <http://www.professorchristiano.com.br/artigosleis/artigo_inacio_sumula.pdf>, p.
5. Acesso em: 6 mar. 2018.

60 Revista do Ministério Público do RS, Porto Alegre, n. 83, maio 2017 – mar. 2018
A “armadilha” do regime de separação de bens e a humanização...

novo Código, suprimiu-se do projeto a expressão ‘sem a comunhão de aquestos’


que se pretendia acrescentar ao caput, para deixar claro que no regime de sepa-
ração legal não se comunicam os bens adquiridos na constância do casamento,
sepultando definitivamente a Súmula nº 377, do Supremo Tribunal Federal.”22
Após questionar a constitucionalidade formal dessa supressão, Carvalho
Neto visualiza a possibilidade de releitura do caput do art. 1.641 da forma co-
mo estava originariamente redigido, ou seja: “É obrigatório o regime da separa-
ção de bens no casamento, sem a comunhão de aquestos” concluindo que “a
Súmula nº 377 do Supremo Tribunal Federal está revogada, não mais se poden-
do falar em comunicação de aquestos no regime de separação legal de bens.”23
Claro está que a edição da referida Súmula aconteceu em outro contexto
social e histórico, na década de 1964, quando a realidade social brasileira era
diferente do atual contexto econômico-financeiro. De lá pra cá, porém, vem re-
cebendo duras críticas, pois a sociedade de modo geral sofreu grande evolução
histórica e mudanças de conceitos o que deixa mais evidente o desuso da Sú-
mula atualmente. Na década de 60 a pretensão do STF era, talvez, a de prote-
ger os incautos contra o enriquecimento ilícito proveniente de aventureiros que
se apropriavam de fortunas indevidas em decorrência do casamento com nu-
bentes jovens e inexperientes. Sustentar tal hipótese na atualidade soaria, no
mínimo surreal. A evolução da sociedade brasileira em termos culturais (apesar
do quadro econômico sofrível, conforme se comprovou) retrata uma realidade
distinta, mais otimista, na qual o ingresso no casamento se materializa em bases
totalmente diferentes, bastando para tal considerar dois aspectos fundamentais:
1) o ingresso da mulher no mercado de trabalho e 2) a igualdade constitucional
de direitos e deveres entre marido e mulher (art. 226, § 5º/CF).

5 Da possibilidade de afastamento da Súmula 377/STF

A questão tormentosa da possibilidade de afastamento da Súmula 377 foi


enfrentada originariamente por Ana Luiza Maia Nevares, em 2014.24 A mes-
ma matéria foi suscitada agora por artigo de lavra do civilista Zeno Veloso, pu-
blicado inicialmente no Jornal O liberal, de Belém do Pará e, posteriormente,
disponível no site <Jusbrasil.com.br>, onde ganhou maior publicidade e trans-
parência.

22
CARVALHO NETO, Inácio. Idem, ibidem.
23
CARVALHO NETO, Inácio. Idem, p. 6.
24
Ana Luiz Maia Nevares é mestre e doutora em Direito Civil pela UERJ e Professora de Direito
Civil da PUC-Rio. O artigo de sua lavra, aqui citado foi publicado em 21 de fevereiro de 2014 no
site <Civilistica.com>.

Revista do Ministério Público do RS, Porto Alegre, n. 83, maio 2017 – mar. 2018 61
Eduardo de Oliveira Leite

Antes, porém, de adentrar na questão doutrinária do afastamento (ou des-


consideração) da súmula sob comento, vale lembra que o Superior Tribunal de
Justiça, em REsp25 de relatoria da Ministra Nancy Andrighi já havia se mani-
festado sobre a impossibilidade da súmula ser estendida para o regime de sepa-
ração convencional de bens.26
Para a relatora, a restrição contida no art. 259 do CC/16, assim como teor
da Súmula 377/STF, incidem sobre casamentos regidos pelo regime de sepa-
ração legal de bens, nos quais não há manifestação dos noivos quanto ao regime
de bens que regerá a futura união.
Questionou a Ministra: “Ademais, o que pode ser mais expresso, quanto
à vontade dos nubentes de não compartilhar o patrimônio adquirido na constância
do casamento, do que a prévia adoção do regime de separação de bens?”
A decisão revela-se importante na medida em que ressalta a intenção dos
nubentes (adoção do regime de separação de bens) que não pode ser alterada,
nem por dispositivo legal, nem tampouco, por eventual súmula que disponha
contrariamente à vontade dos mesmos. O casal em questão havia feito pacto
antenupcial no qual definiram o regime de separação de bens para regular o pa-
trimônio adquirido durante o casamento.
A postura da Ministra em relação ao caso analisado direciona-se em duas
nítidas tendências que vão definir a posição da doutrina nacional, a saber, em
primeiro lugar, o argumento invocado deixa claro que a vontade manifestada
pelos nubentes deve ser respeitada, resgatando – ainda que indiretamente
– a noção inserida no art. 1.639 do CC (“É lícito aos nubentes [...] estipular
quanto aos seus bens, o que lhes aprouver”) e, em segundo lugar, resgata a va-
lidade absoluta do pacto antenupcial na determinação do que “lhes aprouver”.
Aqui é possível visualizar os elementos fundamentais que legitimam, ou
justificam, a escolha do regime de bens: a possibilidade de definir como que-
rem que sua vida econômica seja estruturada e, ato imediato, a formalização da
vontade por meio do pacto antenupcial.
É dentro desta ótica que já havia se manifestado a doutrina de Ana Luiza
Nevares quando afirma, sem vacilar:
Não é incomum que as pessoas sujeitas ao regime de separação obrigatória de bens decidam celebrar
pacto antenupcial, no qual manifestam a clara vontade de que seu casamento seja regido da mais absoluta
e total separação patrimonial. Nestes casos, resta consignado no assento pertinente que o casamento foi
celebrado pelo regime da total separação de bens, com indicação expressa da escritura pública do pacto
antenupcial, sendo certo que dito pacto não tem o condão de atribuir àquele matrimônio os efeitos

25
O número deste processo não foi divulgado em razão de segredo judicial.
26
“Regime de separação convencional mantém bens do casal separados antes e durante o casamento.”

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A “armadilha” do regime de separação de bens e a humanização...

próprios do regime de separação total convencional de bens (que diferem dos efeitos do casamento pelo
regime de separação obrigatória de bens), mas apenas de consignar que o regime de bens deve ser o da
mais absoluta separação de patrimônios, afastando a incidência do verbete 377 da Súmula do Supremo
Tribunal Federal.27
Como pode se perceber, os dois aspectos salientados no voto da Ministra
Nancy Andrighi retornam aqui com o devido realce. Primeiro, resgatando a
soberania da vontade em matéria de regime de bens (“... clara vontade de que
seu casamento seja regido da mais absoluta e total separação patrimonial”) e,
ato contínuo, o afastamento da incidência da Súmula 377 (“afastando a inci-
dência do verbete 377 da Súmula do Supremo Tribunal Federal”).
Mas a posição doutrinária de Nevares avança um pouco mais ao afirmar,
de modo claro e objetivo, que o pacto antenupcial – instrumento perfeitamente
disponível a quem pretende regular o seu regime de bens “como lhe aprouver”
– não tem o poder de atribuir ao casamento os efeitos do regime de separação
convencional de bens. A ressalva é importante, respeitando as características
desejadas pelo legislador no art. 1.687 (separação convencional de bens) po-
rém, reafirmando a vontade dos nubentes que, no regime de separação obrigatória
de bens, perseguem a mais absoluta separação de patrimônios. Ao pacto ante-
nupcial, como se percebe, é reconhecido efeito limitado, que não compromete
a dicção legal do art. 1.687 mas, ao mesmo tempo, tal exegese afasta a incoe-
rência até então criticada pela doutrina mais abalizada, de realização de um ca-
samento sob o regime de separação e que, ao final, se confunde com a comunhão
parcial de bens.
Dentro da rigorosa análise científica do problema, Nevares contrapõe os
dois argumentos que fragilizariam a utilização do pacto antenupcial na hipóte-
se sob comento. Seriam eles, primeiro, a não aceitação do pacto nos processos
de habilitação do casamento em decorrência do disposto no número 7 do art.
70 da Lei 6.015/7328 e, segundo, a arguição de cancelamento do pacto pelo
Ministério Público, sob alegação de nulidade.
Questionando a natureza do ato nulo e o alcance do pacto antenupcial, a
citada autora conclui que “na medida em que o pacto em comento prevê exata-
mente o regime de bens que a lei impõe, ou seja, o regime de separação patrimo-
nial, pode-se concluir que dito ajuste não contraria o comando legal, não sendo

27
NEVARES, Ana Luiza Maia. Obra citada, p. 7.
28
A Lei dos Registros Públicos assim dispõe no seu art. 70, nº 7:
“Do matrimônio, logo depois de celebrado, será lavrado assento, assinado pelo presidente do ato,
os cônjuges, as testemunhas e o oficial, sendo exarados:
7º) o regime de casamento, com declaração da data e do cartório em cujas notas foi tomada a es-
critura antenupcial, quando o regime não for o da comunhão ou o legal que, sendo conhecido, será
declarado expressamente.”

Revista do Ministério Público do RS, Porto Alegre, n. 83, maio 2017 – mar. 2018 63
Eduardo de Oliveira Leite

nulo, portanto”29 e, ainda, “... não há motivos para negar que aqueles que de-
vem se submeter ao regime de separação obrigatória de bens afirmem em do-
cumento autêntico o seu desejo de realmente viverem uma separação total e
plena de patrimônios na esteira do comando legal.”30
Justificando a possibilidade do pacto antenupcial com vistas ao afastamento
da indesejada aplicação da Súmula 377/STF ainda afirma a civilista, sem va-
cilar, que “não há motivos para negar que aqueles que devem se submeter ao
regime de separação obrigatória de bens afirmem em documento autêntico o
seu desejo de realmente viverem uma separação total e plena de patrimônios,
na esteira do comando legal.”31
Vale frisar, que a doutrina exposta, além de fazer rigorosa interpretação do
texto legal, em prova de impecável lógica, prioriza a humanização do Direito de
Família não mais o submetendo à exegese restritiva, puramente calcada na inter-
pretação literal da lei, mas, em nítida tendência finalística, procurando eviden-
ciar a interpretação teleológica32 priorizando, sempre que possível, a dimensão
humana e o respeito à liberdade de optar.
É nesta dimensão e sob esta ótica que se alinha toda a doutrina atual so-
bre o conteúdo do art. 1.641 e a não aplicação da Súmula 377/STF.
Assim, para citar as posições mais atuais a respeito do questionamento
objeto do presente estudo, doutrina José Fernando Simão:
Com a vigência do novo Código Civil, o artigo foi revogado e não encontra correspondente legal. Assim, a
primeira conclusão que se chega e que após a vigência do Código Civil de 2002, a separação convencional
de bens é realmente absoluta, não havendo a comunhão dos aquestos.
Mais adiante, sobre o afastamento da Súmula 377/STF:
[...] Entendo estar revogada a disposição [...] isso porque a Súmula 377 não evita o enriquecimento
sem causa, mas contrariamente, gera o enriquecimento sem causa. Isso porque, em razão da Súmula, a
comunhão dos aquestos gera o enriquecimento se causa. Isso porque, em razão da Súmula a comunhão
dos aquestos é considerada automática, independentemente da prova do esforço comum33 [...] Em
29
NEVARES, Ana Luiza Maia. Idem, p. 9.
30
NEVARES, Ana Luiza Maia. Idem, ibidem.
31
NEVARES, Ana Luiza Maia. Idem, ibidem.
32
Aquela que busca entender a lei por seu sentido finalístico. Parafraseando a lição sempre atual de
Maria Helena Diniz: “O direito deve ser visto em sua dinâmica como uma realidade que está em
perpétuo movimento, acompanhando as relações humanas, modificando-se, adaptando-se às novas
exigências e necessidades da vida [...] A evolução da vida social traz em si novos fatos e conflitos
[...] juízes e tribunais constantemente estabelecem novos precedentes e os próprios valores sofrem
mutações, devido ao grande e peculiar dinamismo da vida.” As lacunas no Direito. p. 72.
33
O exemplo dado por Simão é elucidativo: “Se um senhor de 90 anos se casa com uma moça de 18
anos, pelo regime de separação obrigatória em razão da idade, e depois de casado adquire uma casa e
um carro, os bens são considerados aquestos em decorrência da súmula e a jovem nubente terá di-
reito automaticamente à meação. E por que? Porque a Súmula 377 não exige prova do esforço co-
mum.” Obra citada, p. 2.

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A “armadilha” do regime de separação de bens e a humanização...

conclusão, a Súmula deve ser entendida como revogada [...] Afasta-se definitivamente a presunção
contida na Súmula 377 e a separação obrigatória passa a ser considerada realmente absoluta.34
No mesmo sentido a posição de Zeno Veloso em parecer solicitado por
casal que assim colocou o problema à apreciação do sensível civilista:
Querem lavrar uma escritura – pacto antenupcial, mencionando que vão casar-se, e o casamento seguirá
o regime obrigatória da separação de bens, por força do art. 1.641, inciso II, do Código Civil. Até ai, nada de
novo: só estão repetindo o que a lei já diz. Todavia, não querem, em nenhuma hipótese, haja comunicação
de bens, mantendo-se a separação de bens de forma absoluta, em todos e quaisquer casos, sem limitação
ou ressalva alguma, excluindo, portanto, expressamente a aplicação da Súmula 377 do STF.35
A posição de Zeno Veloso foi taxativa: “Já dei a minha opinião; não acho
que o enunciado da Súmula seja matéria de ordem pública, represente direito
indisponível, e tenha de ser seguida a qualquer custo, irremediavelmente.”36
No mesmo sentido se direciona a doutrina de Jones Figueirêdo Alves que
gerou Provimento da Corregedoria Geral da Justiça de Pernambuco37 O citado
Provimento dispôs sobre o afastamento da reportada Súmula 377 do STF, quando
determina:
a) no regime de separação legal ou obrigatória de bens, na hipótese do art. 1.641, inciso II, do Código Civil
deverá o oficial do registo civil cientificar os nubentes da possibilidade de afastamento da incidência da
Súmula 377 do STF, por meio de pacto antenupcial e, b) o oficial do registro esclarecerá sobre os exatos
limites dos efeitos do regime de separação obrigatória de bens, onde comunicam-se os bens adquiridos
onerosamente na constância do casamento (Artigo 1º).38
Merecem transcrição os argumentos expendidos pelo preclaro pensador:
É que, iniludivelmente, o regime patrimonial da separação obrigatória de bens imposto aos nubentes
de maior faixa etária, por expressa disposição do legislador, não inibe ou afasta o interesse dos consortes
pelos bens adquiridos onerosamente ao longo do casamento sob o regime de separação legal; razão
pela qual, obrigados a este regime, cumpre-lhes, assim querendo, certificar, por convenção de interesse
mútuo, sobre a hipótese de “separação absoluta” dos bens futuros, que se contém no regime de separação
convencional de bens.
34
SIMÃO, José Fernando. O regime da separação absoluta de bens (CC, art. 1.647): separação con-
vencional ou obrigatória? In: Meus artigos. Disponível em: <http://professorsimao.com.br/artigos
_simao_regime_separaçao.html>. Acesso em: 5 mar. 2018. Ainda, e no mesmo sentido, o artigo in-
titulado Separação obrigatória com pacto antenupcial? Sim, é possível. In: Consultor Jurídico. Dis-
ponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-fev-11/processo-familiar-sepraçao-obrigatoria-pacto-
antenupcial-sim-possivel?imprimir=1>. Acesso em: 5 mar. 2018.
35
VELOSO, Zeno. Casal quer afastar a Súmula 377. In: p. 2-3. Disponível em: <Jusbrasil.com.br>.
O artigo foi publicado no Jornal O Liberal, de Belém do Pará, em abril de 1916.
36
VELOSO, Zeno. Idem, p. 3.
37
Provimento nº 08/2016, de 30.05.2016 (Dje. de 01.06.2016, p. 68-69).
38
ALVES, Jones Figueirêdo. As uniões septuagenárias e a separação absoluta de bens por pacto
antenupcial com superação da Súmula 377 do STF. In: Poder Judicário. Tribunal de Justiça de Per-
nambuco. Disponível em: <http://www.tjpe.jus.br>. Acesso em: 5 mar. 2018.

Revista do Ministério Público do RS, Porto Alegre, n. 83, maio 2017 – mar. 2018 65
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Anote-se que, quando preferido este regime, através de pacto antenupcial, o casamento não reper-
cute na esfera patrimonial dos consortes, implicando dizer que os cônjuges preservam o domínio e a
administração dos seus bens presentes e futuros, como também, diferentemente do art. 276 do CC/1916,
“estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos
cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real” (art. 1.687 do Código Civil/2002).
Em tais latitudes, como se observa, o regime de separação convencional e voluntária, apresenta uma
separação absoluta ou total de bens, o que não é alcançada, expressamente, pelos que são submetidos
ao regime de separação legal ou obrigatória. No caso, estes últimos nubentes estariam desprovidos da
capacidade de convencionar pela separação plena e absoluta, aparentemente reservada aos nubentes com
idade inferior aos setenta anos.39
Invocando a prevalência da autonomia privada em matéria patrimonial
(mediante pacto antenupcial) sobre o poder vinculante das súmulas assim se
posicionou Mário Luiz Delgado:
[...] podem os nubentes, atingidos pelo art. 1.641, inciso II do Código Civil, afastar por escritura pública, a
incidência da Súmula 377 do STF, estipulando nesse ponto e na forma do que dispõe o art. 1.639, caput, do
Código Civil, quanto aos seus bens futuros o que melhor lhes aprouver.40
Corroborando a mesma orientação da doutrina citada assim se posicionou
Flávio Tartucce:
[...] Sem dúvida, a Súmula 377 do STF – do remoto ano de 1964–, traz como conteúdo matéria de ordem
privada, totalmente disponível e afastada por convenção das partes, não só no casamento, como na união
estável [...] A única restrição de relevo a essa regra diz respeito à disposições absolutas da lei, consideradas
regras cogentes, conforme consta do art. 1.655 da mesma codificação, o que conduziria à nulidade
absoluta da previsão [...] Todavia, não há qualquer problema em se afastar a súmula 377 pela vontade
das partes, o que, na verdade, ampliaria os efeitos do regime de separação obrigatória, passando esse a
ser uma verdadeira separação absoluta, em que nada se comunica [...] Acreditamos que tal afastamento
constitui um correto exercício da autonomia privada, admitido pelo nosso Direito, que conduz a um eficaz
mecanismo de planejamento familiar, perfeitamente exercitável por força de ato público, no caso de um
pacto antenupcial (art. 1.653 do CC/2002).41
Conforme se depreende da doutrina invocada é possível afirmar que a dou-
trina nacional evoluiu, resgatando a dimensão humana da vontade dos nubentes,
em detrimento dos meros aspectos patrimoniais, ao considerar que é possível
a convenção dos nubentes por pacto antenupcial formalizado em escritura pú-
blica afastando a incidência da Súmula 377/STF no regime obrigatória de se-
39
ALVES, Jones Figueirêdo. Obra citada, p. 2. Por questões de ordem especial deixamos de reprodu-
zir todo artigo que merece leitura a análise pela clareza e coerência dos argumentos invocados.
40
DELGADO, Mário Luiz. Apud Jones Figueirêdo Alves. Artigo citado, p. 2.
41
TARTUCE, Flávio. Da possibilidade de afastamento da súmula 377 do STF por pacto antenupcial.
(25 de maio de 2016). Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104.MI23
9721,61044-Da+possibilidade+de+afastamento+da+sumula+377+do+STF+por+pacto+antenupci
al>. Acesso em: 5 mar. 2018.

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A “armadilha” do regime de separação de bens e a humanização...

paração de bens; que os nubentes podem, por convenção, ampliar os efeitos da


separação obrigatória de bens garantindo a efetiva separação absoluta, na qual
nada se comunica; que o afastamento da Súmula 377/STF constitui exercício na-
tural da autonomia privada garantidor de um eficaz mecanismo de planejamento
familiar, e da livre escolha dos nubentes, com a opção pela separação total de
bens sem incidir na “armadilha” da separação de bens que conduz os incautos
à indesejada comunhão de bens.

6 Primeiras conclusões

A análise levada a efeito indica, de forma segura, a tendência do pensamento


jurídico nacional à aceitação de premissas que priorizam inquestionavelmente
a prioridade da condição humana sobre a mera consideração do texto frio da
lei, em prova manifesta que vivemos novos tempos pontuados pelo abranda-
mento da legislação sempre que ela contraria as expectativas mais caras do pro-
jeto existencial de cada sujeito.
Como notoriamente sabido, o argumento principal justificador da inclu-
são do inciso II do art. 1641 do CC sempre foi o do risco de confusão patrimo-
nial entre uma pessoa idosa e eventual pessoa jovem, caracterizando suspeita de
casamento por interesse42 (de um lado) e, igualmente, evitar o enriquecimento
ilícito daquele que tem os bens em seu nome, embora as respectivas aquisições
sejam provenientes de esforço comum.
A questão sempre invocada pelos estudiosos do Direito de Família e
ainda sem resposta plausível é: Por que uma pessoa idosa não pode escolher
livremente o regime de bens aplicável ao seu casamento? Essa era e continua
sendo uma questão misteriosa que os doutrinadores e operadores do direito ten-
taram e continuam tentando desvendar em vão.
A proposta inédita e vanguardista materializada no Provimento nº 08/2016
da Corregedoria Geral da Justiça de Pernambuco, de autoria de Jones Figueirêdo
Alves, abriu uma perspectiva nova no tratamento mais humanizado do Direito
de Família, recolocando o sujeito de direito acima das meras considerações de
ordem econômica resgatando o papel central da afetividade nas relações matri-
moniais, ao mesmo tempo que garante a coerência da ordem codificada que en-
contra na dicção do art. 1.639 as noções maiores de liberdade e de escolha.

42
Segundo doutrina de Milton Paulo de Carvalho Filho: “O inciso II realça o caráter protetor do le-
gislador que pretende resguardar o nubente maior de 70 anos de união fugaz e exclusivamente in-
teresseira.” Código Civil Comentado. p. 1731.

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Eduardo de Oliveira Leite

Esta tendência, agora visível, na recente decisão da Corregedoria Geral


do Tribunal de Justiça de São Paulo (Recurso Administrativo nº 1065469-
74.2017.8.26.0100)43 – que se manifestou pela validação de pacto antenupcial
que previa a absoluta incomunicabilidade de bens no regime da separação
obrigatória de bens – faz eco ao Provimento nº 08/2016 e, certamente, será
adotada por todo país, em prova inequívoca de um humanismo que passa a aden-
trar no Direito de Família ocupando um espaço sempre legítimo e plenamente
defensável.
Os argumentos invocados pela Corregedoria Geral da Justiça resgatam de
forma precisa e objetiva os aspectos que merecem ser considerados na solução
da complexa questão. Assim:
a) Uma vez que a mens legis do art. 1.641 é protetiva e que a regra geral é a livre contratação do regime
de bens, afigura-se de todo razoável permitir que ambas as situações incidam cumulativamente, am-
pliando-se a proteção buscada pela lei, por meio de pactuação entre os nubentes; b) o óbice imposto aos
recorrentes [...] implica rematado contrassenso. Impede que se alargue a proteção pretendida pelo le-
gislador, ao mesmo tempo em que limita o poder de livre pactuação; c) por se tratar de norma de exceção,
a vedação imposta pelo art. 1.641 comporta, ademais, interpretação restritiva. O cerceamento do poder de
pactuar deve ser o mínimo necessário para que o objetivo da norma seja alcançado. Não se há de impedir,
portanto, a contratação de regime que amplie o cunho protetivo almejado pela norma.44
Pensar de forma diversa seria retroceder a um autoritarismo negado pela
evolução natural da comunidade brasileira. Raciocinar contrariamente implica-
ria em fechar os olhos à força inquestionável do abrandamento de princípios co-
gentes que exigem releitura consentânea ao atual estágio de desenvolvimento e
de conquistas do mundo jurídico.

43
“Registro Civil de Pessoas Naturais – Casamento – Pacto antenupcial – Separação obrigatória
– Estipulação de afastamento da Súmula 377 do STF – possibilidade. Nas hipóteses em que se im-
põe o regime de separação obrigatória de bens (art. 1.641 do CC), é dado aos nubentes, por pacto an-
tenupcial, prever a incomunicabilidade absoluta dos aquestos, afastando a incidência da súmula 377
do Excelso Pretório, desde que mantidas todas a demais regras do regime de separação obrigatória. Si-
tuação que não se confunde com a pactuação para alteração do regime de separação obrigatória, para o
de separação convencional de bens, que se mostra inadmissível.”
44
Apud, Portal do RI – Portal do Registo de Imóveis, p. 2. Disponível em: <http://www.portaldori.
com.br>. Acesso em: 5 mar. 2018.

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