Conto
Conto
Conto
Era mais uma tarde chuvosa na grande e agitada cidade de Londres. Uma típica tarde, eu diria. Desde sua
morte, a chuva não parava de cair. Às vezes, somente garoava, outras ouviam-se fortes trovões vindos do
céu. Porém, há algo reconfortante em toda a água; o tempo nunca muda: está sempre cinza, apagado e
entristecido, assim como eu.
Acredite, eu já fui uma garota saudável de 22 anos, com cabelos escuros, ondulados, pele clara,
bochechas avermelhadas, olhos brilhantes e verdes como a grama após receber o toque do orvalho pela
manhã; silhueta média, de 1,57, e um sorriso brilhante e largo, que encantava qualquer um que o
recebesse.
Mas essa era a antiga Kate, aquela cuja mãe ainda estava viva, aquela que recebia seus abraços
apertados todos os dias, aquela que sempre teve alguém com quem contar nos piores momentos de sua
vida. A Kate Sheffield atual não era nada parecida com a descrita. Ela era triste, com olheiras escuras
como as nuvens antes de uma tempestade de verão, um olhar frio e sombrio, sem vida, assim como a
mãe; seus sorrisos, antes tão frequentes, foram substituídos por lágrimas quentes que escorrem por toda a
face, sua postura agora era caída, semelhante à de um idoso de 97 anos de idade. Sua pele se tornou um
tom de cinza, devido à ausência da exposição ao Sol. Kate era como um fantasma, que vagava pela
residência que um dia pertenceu à falecida mãe
Era uma casa suntuosa, com quatro suítes, duas cozinhas e duas salas de estar e um jardim maravilhoso,
repleto de flores, onde a mãe adorava passar horas cuidando do lugar. Havia também um balanço, no qual
eu e ela brincávamos todas as tardes quando mais nova. Era uma casa linda, colorida e cheia de vida,
com quadros em todos os cômodos, esculturas e plantas.
Mas agora era apenas mais um imóvel, comum, sem a vida que antes ali habitava. As flores e plantas
murcharam, os quadros foram retirados e as esculturas quebradas durante um acesso de raiva causado
pelo inconformismo da morte de mamãe.
Quando o câncer foi descoberto, já estava no nível quatro. Os médicos disseram que não havia muita
coisa a se fazer. A única providência que poderia ser tomada era esperar que a quimioterapia fizesse
efeito. De início, estávamos esperançosos, pois as notícias eram boas. Porém um dos sintomas do
meningioma é a ocorrência de convulsões espontâneas, e foi isso que aconteceu. Era uma noite e tudo ia
bem. Até que fui comprar um pouco de sopa para mamãe na lanchonete do hospital e, quando voltei, um
grupo de médicos e enfermeiras estavam em seu quarto, aplicando diversas doses de remédios e gritando
termos médicos desconhecidos aos meus ouvidos. Eu perguntava inúmeras vezes o que estava
acontecendo, mas ninguém me respondia. Apenas me mandaram para fora do quarto.
Depois de esperar por alguns minutos, ansiedade tomando conta de meu corpo, o grupo de profissionais
param em frente a mim e me deram a notícia que eu mais temia: Elouise Sheffield havia morrido.
Demorou um tempo até que eu conseguisse digerir a notícia, mas depois que o fiz, sai em disparada às
portas do hospital; precisava de um pouco de ar; não conseguia respirar.
Encontro um pequeno banco, no qual eu me sento. E só então que as lágrimas começaram a descer.
Lágrimas quentes que escorriam por todo o rosto. Não conseguia parar. Como eu poderia viver em um
mundo onde minha mãe não existia? Onde ela não estava comigo em todos os momentos? Quem riria das
minhas piadas? Quem me abraçaria apertado?
Não tinha mais ninguém, ninguém com quem eu poderia contar; estava sozinha nesse mundo. A vida
agora era um oceano, escuro e muito frio, e eu não faria esforço para nadar: deixaria que me afundasse.
O funeral ocorreu cinco dias depois da declaração de óbito. Foi um evento simples e tradicional: todos os
presentes de preto, rostos chorosos e muitas pessoas dizendo “sinto muito pela sua perda “ ou “ meus
pêsames”. E mesmo sabendo que poderiam ser palavras verdadeiras, eu não acreditava nelas. Era como
se ninguém sentisse a dor da perda como eu sentia, uma dor intensa, a qual estava em todo lugar e, ao
mesmo tempo, em nenhum.
Depois do evento, tirei os pertences de mamãe da casa, todos os quadros, as roupas, as esculturas. Não
seria capaz de viver ali com tantas lembranças de uma pessoa tão boa e que agora era apenas pó.
Portanto, assim tem sido minha vida desde então: acordar, ir à cozinha para tomar café da manhã e
lembrar que não tem mais comida na geladeira, voltar para cama, chorar e cair no sono de novo. Levantar
na hora do almoço e ir ao banheiro a fim de tomar um banho, dirigir até uma lanchonete próxima e comer
algo a fim de não desmaiar; voltar para casa, receber telefonemas e ficar encarando o jardim de flores pelo
resto do dia, pensando que eu nunca pude nem me despedir, que poderia ter sido uma filha melhor, que
poderia ter a levado ao hospital no momento em que as dores de cabeça começaram. Entretanto, eu sabia
que ela estaria em um lugar melhor que o mundo em que vivemos. Seria impossível alguém tão gentil
como Eloise Sheffield não ser presenteada com uma vida eterna e perfeita a fim de descansar em paz e
serenidade.
Naquela noite, pensando eu que somente mais uma dentre as milhares as quais se passavam, um sujeito
bateu à porta de minha residência. De início, pensei em não atendê-lo, mas este tanto insistiu que não tive
escolha senão abrir a porta só para me deparar com a face de meu ausente e complicado pai.
O homem que arrasou minha vida de tantas maneiras, Daniel Smith Sheffield,era de estatura média, cerca
de 1,80 m, silhueta forte e robusta, cabelos loiros ,e que agora estão um pouco esbranquiçados, olhos
castanhos claros, um pouco esverdeados; rosto que não escapou das famosas marcas de tempo as quais
todos aqueles que se expressam demais com o corpo recebem, e muitas rugas, um sinal de que o mesmo
envelheceu em grande quantidade desde que foi embora de casa, há sete anos atrás, quando eu ainda
era apenas uma ingênua adolescente a qual não conseguiu se safar de seu terrível temperamento que
tomava conta de si ao ficar nervoso.
— Olá. Que surpresa, pai! - digo em alto e bom tom.
— Bom te ver também, Kate- Daniel responde com um pingo de falsidade.
— Posso entrar?
— Claro! Fique à vontade. Só não repare muito na bagunça. Esses dias têm sido difíceis.
— Eu fiquei sabendo. Sinto muito pela perda de sua mãe, Kate. Ela era uma mulher maravilhosa. Pena
que não percebi isso antes quando era mais jovem e inexperiente. - ele diz talvez com sinceridade, porém
não me atento a esse detalhe, pois vejo um indivíduo atrás de meu pai.
Ao perceber que meus olhos captaram o sujeito presente, ele se apressa em me apresentá-lo
— Ah, sim. Desculpe-me por me esquecer de te apresentar Thomas Huntzberg, o meu advogado.
— Muito prazer em conhecê-lo, senhor. Sou Kate Sheffield. Filha de seu cliente, suponho.
— Sim,sim. Ouvi algumas coisas a seu respeito. É um prazer conhecer-te. Vamos entrar?
Estava confusa. O que fazia meu pai em minha residência acompanhado de um advogado?
— Desejam alguma coisa? Talvez chá ou café?
— Eu estou bem, obrigada - responde Dr. Thomas , o qual era um homem alto, magro, usava um terno
preto e sua postura e voz pertenciam a uma pessoa autoritária.
— Vou querer uma xícara de chá. Acredito que esteja no armário da minha cozinha. Estou correto?
As palavras me atingem em cheio. “ Minha cozinha”. Havia me esquecido de que a casa também pertencia
a ele. Agora com a morte de mamãe, tudo está no nome dele, não no meu. Papai veio a fim de pegar o
imóvel de mim, por isso o advogado.
Eu devia saber. Daniel Sheffield não faz nada por acaso, sempre tem uma carta na manga. As pessoas,
para ele, são como peões em um complexo jogo de xadrez, e tudo é movido com a finalidade de beneficiar
o rei, ou seja, a si próprio. Tudo gira em torno dele; tudo se baseia em um jogo de interesses. Ele sempre
irá esperar algo da pessoa com quem se relaciona.
— Claro! Uma xícara de chá para você, papai.- digo com toda a naturalidade que consigo.
Vou até a cozinha e preparo o chá que me foi requisitado, como nos velhos tempos. Sempre que me pedia
algo, eu devia parar de fazer o que estava fazendo para obedecê-lo. Caso contrário, punições viriam. “
Não se atrase!” “Você sabe o que pode perder caso não faça isso, certo?” É claro que eu sabia, tive de
aprender ainda muito nova, quando as punições começaram. De início, eram somente restrições, como
não ir brincar no jardim ou não poder ler nas horas vagas. Todavia, quanto mais velho ele ficava, menor se
tornava sua paciência e piores ficavam suas punições. Não ir à escola, tapas, xingamentos, prender-me
em lugares pequenos e escuros por horas. Tudo isso me apavorava, então eu o obedecia, como uma
máquina. Quando Daniel foi embora em uma noite de verão após uma briga com mamãe e muita bebida,
demorou um tempo até eu me acostumar com a ausência de ordens e severos castigos.
— Bem, suponho que você saiba o motivo pelo qual estamos aqui - diz papai recebendo a xícara de chá.
— Não, não faço a mínima ideia- respondo, fingindo inocência a fim de deixá-lo desconfortável, mas não
funciona. Ele vai direto ao ponto.
— Vou explicar-lhe, então: sua mãe, Eloise, faleceu a alguns meses, dois se não me engano, e com isso, a
casa passa para meu nome, pois sou o outro proprietário.
— Entendo. Prossiga.
— Baseando-se nisso, quero que você se retire do imóvel o mais rápido possível, já que pretendo
reformá-lo e vendê-lo.
— Mas aonde eu iria? Onde eu moraria? A casa era de mamãe, e acho que ela gostaria de que eu ficasse
com ela.
— Entendo seu ponto, Kate querida, mas a vida real não funciona desse modo. Não há a possibilidade de
realizar desejos de falecidos sem um testamento. E, além disso, você já é maior de idade, ou seja, já pode
atuar no mercado de trabalho. Talvez você consiga encontrar um emprego em uma lanchonete e pagar por
um apartamento no fim da rua.
— Corrija-me, Dr. Huntzberg, se estiver incorreta: só é emancipado o indivíduo que tiver em mãos o
diploma de um curso superior. Caso este ainda se encontre realizando o mesmo, depende financeiramente
de seu responsável - eu pergunto com o maior nível de formalidade e neutralidade que sou capaz.
— Sim, senhorita Sheffield, está correta em sua fala.
— Como se você fosse capaz de se formar em um curso superior, com a cabeça que possui - Daniel
rebate, cínico
— Bem, sinto em te desapontar, pai, mas eu não só fui capaz de adquirir uma vaga no curso de
Engenharia Civil, como também sou uma das melhores alunas na Universidade de Oxford.
— Oxford? E como é que pagou?
— Sempre fui boa aluna, apesar de seus argumentos de que não usava a cabeça para lidar com situações
que exigiam mais inteligência do que o normal, e por isso, consegui uma bolsa de estudos. No entanto,
não se preocupe, já estou quase me graduando e logo poderei atuar na área.
— Bem, já que você se encontra em tal situação, poderemos esperar até que termine o curso e, então, a
casa será demolida.
— Demolida? Mas você acabou de dizer que apenas reformaria e, em seguida, venderia? Por que mudou
de ideia?
— Acontece que tenho uma filha que está prestes a se tornar engenheira civil e acredito que seria de
grande valor que ela mesma demolisse a casa e a reconstruísse bloco por bloco.
— Por que está fazendo isso comigo? Já não foi suficiente ter nos abandonado, nos esquecido e ter nos
tratado como lixo todos esses anos? Agora quer que eu destrua a casa onde eu morei por tantos anos,
onde desenvolvi minhas melhores memórias com a pessoa que eu mais amava na vida? Por que quer me
destruir? - eu já estava gritando em pé, de frente para ele. Lágrimas ameaçavam cair de meus olhos. Mas
eu resistiria, não me mostraria fraca diante dele. Não dessa vez, pelo menos.
— Primeiramente, querida, não quero te destruir. Só quero o seu bem profissional. Imagine quantas
empresas não gostariam de te contratar após o grande feito na casa. Imagine o quão famosa ficará na
cidade. E, por favor, entenda, eu nunca quis te tratar como uma pessoa sem importância. Tudo o que eu fiz
foi para que se tornasse alguém mais forte, mais inteligente, mais rápida nas decisões da vida. E, pelo que
estou vendo, deu certo. Engenharia em Oxford é algo do qual se deve orgulhar.
— Que bom que pensa isso, pai. Vou pensar no assunto, mas por enquanto, ficarei na casa. Não se
preocupe, sairei assim que terminar o curso. Foi ótimo te ver! - digo, obrigando-os a se retirarem através
de um gesto na direção da porta.
— Foi, de fato, uma boa visita, Kate. Sucesso em Oxford. E não se esqueça de se alimentar melhor, está
com a pele mais amarelada que o normal.
Daniel e Thomas saem pela porta da frente como se não tivessem acabado de me destruir por inteiro com
a sua vinda.
Fecho a porta com força e escorrego por esta até me encontrar no chão, duro e frio. E, por fim, deixo que
as lágrimas se libertem dos meus olhos e escorram por toda a face.
Choro e choro. Lamento todas as coisas que não fiz enquanto ainda estava com minha amada mãe. Todas
as coisas que deveria ter me lembrado: pedir a ela que escrevesse um testamento, organizar os bens e
tudo o que fosse necessário a fim de que nosso patrimônio ficasse longe das mãos de papai. Eu deveria
ter pensado melhor, deveria ter sido mais inteligente, ter usado a cabeça, o raciocínio. Agora, não há nada
que eu possa fazer para salvar o que restou de minha mãe.
Atordoada, em uma mistura de fúria, tristeza e necessidade de que tudo acabasse, vou à garagem, entro
no carro e dirijo pelas ruas de Marylebone. Está escuro, e tudo vazio. Aumento a velocidade até que o
ponteiro do velocímetro atinja 111,8 milhas por hora, o que equivale a 180 km/h.
Não penso em mais nada além de minha mãe quando vejo um caminhão passando pelo cruzamento. Só
acelero ainda mais e não freio. As últimas coisas de que me lembro são as luzes do farol em meus olhos e
o rosto aterrorizado e instantaneamente culpado do motorista cujo veículo escolhi como vítima para meu
plano de acabar com o sofrimento. Tudo depois disso se tornou escuridão. Não havia mais dor, nem nada
que me abalasse. Embora tenha sentido algo perfurando meu tórax, sangue quente escorrendo por este e
vidros se estilhaçando, a dor não veio.
No meio de toda a escuridão, vejo uma silhueta de uma mulher brilhante vindo em minha direção. Ela se
parece com minha mãe. Talvez não seja real, talvez seja somente minha cabeça pregando peças em mim.
Porém, ouço com clareza o que ela me diz: “Lute, Kate. Não desista agora. Continue nadando, não deixe
que o oceano te afunde.”
Em seguida, tudo se torna escuridão e inconsciência e, pela primeira vez em meses, eu me sinto em casa.
Abro os olhos, e tudo o que enxergo é uma forte luz branca. Portanto, logo penso que estou no Céu; no
Paraíso do qual tanto se fala. Um lugar sem sofrimento, angústia ou dor. Onde as ruas de ouro são e não
há noite; só luz e alegria; um lugar onde não há mães mortas ou figuras paternas que tentam tirar de você
o único bem importante que te sobrou.
No entanto, logo após ter esse pensamento, uma pontada terrível de dor de cabeça me atinge; sinto dor
em todas as regiões do corpo; como se eu tivesse sido esmagada em milhares de pedacinhos e suturada
parte por parte até estar reconstruída; como uma boneca de pano.
Em seguida, percebo um sujeito de altura média de 1,82 metros; cabelos escuros como os de um corvo,
olhos azuis acompanhados de duas escuras olheiras ao seu redor; silhueta magra. O sujeito deve ter
cerca de 40 anos baseando-se nas rugas que começam a aparecer, de leve, no limite dos olhos. Ele veste
um jaleco branco que está bordado com “Dr. Oliver Evans” por cima de um par de pijamas cirúrgicos azuis
escuros.
Dr. Oliver Evans analisa cuidadosamente todos os cantos do quarto de hospital. Ele diz algo à enfermeira,
a qual acena e faz uma anotação rápida em uma planilha.
O médico vem em direção ao lugar onde estou, percebe minha consciência, sorri e diz:
— Ora, ora. Parece que alguém acordou de uma cirurgia de 6 horas de duração. Bem vinda de volta,
senhorita Kate Sheffield.
Tento dizer alguma palavra, porém percebo que tenho tubos respiratórios que me impedem de realizar o
ato.
Percebendo meu incômodo, Dr. Evans retira os instrumentos que antes me ajudaram a respirar mas agora
somente desconforto causavam.
— Sou o Dr. Oliver Evans, o responsável pelo seu caso. Ao que tudo indica, você foi de encontro a um
caminhão no meio da noite do dia 23/08 e a coluna de ferro do parabrisa de seu automóvel perfurou seu
tórax de maneira crítica. Quando chegou ao hospital, quase não respirava. Eu e mais alguns cirurgiões
optamos pela cirurgia imediata, que teve duração de 6 horas e 27 minutos.Ocorreram duas hemorragias
torácicas, isto é, um grande acúmulo de sangue entre os pulmões e a parede do tórax. Conseguimos
contê-las. - explica detalhadamente franzindo a testa ao dizer sobre as complicações do procedimento.
— Ainda, descobrimos, através de exames de sangue, que você apresenta hepatite do tipo A, por isso sua
pele e olhos estão amarelados. Anda sentindo náuseas, dores de cabeça constantes e febre, Senhorita
Sheffield?
— Sim, eu acho - respondo ao médico não com muita veemência, já que estive ocupada demais pensando
na morte de mamãe para me importar com a questão de minha saúde. No entanto, tento me lembrar das
ultimas coisas que comi: uma barra de cereal velha que encontrei no fundo do armário, macarrão
instantâneo, lasanhas congeladas e uma quantidade imensa de café a fim de que eu não pegasse no sono
e os pesadelos invadissem minha mente.
— Bem, acredito que temos um diagnóstico confirmado, então. Em relação a seus familiares, encontramos
um número de telefone que suponhamos ser de um conhecido seu: um sujeito chamado Daniel Smith.
Deseja que entremos em contato com ele?
— Não, por favor não faça isso! - digo quase gritando de desespero. A última coisa de que preciso é de
meu pai me repreendendo por ter sofrido um acidente de carro; por não saber dirigir tão bem quanto ele ou
por não ter desviado rápido o suficiente do caminhão.
— Algum problema, Kate? Você parece mais pálida. Acha que o indivíduo tem algum envolvimento com o
acidente? - Dr. Evans pergunta, preocupado. Quero dizer que sim, que ele é o motivo pelo qual decidi
acabar com minha vida, mas que por sinal, não fui bem sucedida.
— Não, na verdade ele é meu pai, mas não temos uma relação muito saudável. É melhor não chamá-lo.
Mas obrigada pela preocupação, Doutor.
— Entendo muito bem, Kate. Perdoe-me por abordar um assunto delicado para você. Tenho que ir agora,
pois tenho uma cirurgia agendada,mas um de meus internos da Cardiologia tomará conta de você.
Qualquer problema, pode me avisar- declara ele antes de sair do quarto apressadamente.
Agora que me encontro sozinha, percebo o que aconteceu. A casa, o carro, as lágrimas e o caminhão.
Todos os pensamentos que tive e a vontade de colocar um fim no sofrimento pelo qual estou vivendo.
Entretanto, lembro-me também de minha mãe me dizendo para não desistir; para continuar nadando.
Talvez tenha sido isso que me ajudou a ficar viva; a sobreviver.
Acredite, ainda estou frustrada por minha tentativa de suicídio ter dado errado, todavia uma parte de mim
queria viver e eu sabia disso, só decidi ignorá-la.
Lágrimas escorrem novamente pelo meu rosto e desejo não estar mais sozinha. Tenho vontade de gritar e
jogar os objetos no chão, mas estou presa por fios que alertam os profissionais de meus sinais vitais e não
quero atrapalhá-los com um acesso de raiva. Portanto, choro em silêncio, pensando que estava só, porém
o som de um espirro me prova o contrário: há uma pessoa no canto direito do cômodo. Um médico, eu
suponho, já que traja um pijama cirúrgico, mas de um tom mais claro de azul, e um jaleco branco, com
alguns respingos de sangue seco. Seu nome, escrito no uniforme, é Anthony Carls.
— Perdoe-me por te atrapalhar. Sou o Dr. Carls, o interno designado a cuidar de você. É um prazer
conhecê-la - ele diz, estendendo a mão a fim de que eu a aperte.
Enxugo minhas lágrimas e o analiso. Trata-se de um sujeito de baixa estatura, cabelos loiros e olhos
claros, de um tom azul acinzentado; deve ter entre 22 a 27 anos, no máximo.
— Olá. Sou Kate, mas você já deve me conhecer.
— Ah, sim. O hospital inteiro já te conhece. A garota que voltou à vida. Você é praticamente um milagre,
mas não conte ao Dr. Evans que lhe disse isso, ele não acredita em milagres, só na mais pura medicina.
Ofereço-lhe um pequeno sorriso que não chega até os olhos.
— Não está feliz por ter sobrevivido? Seu caso é surpreendente!
Desvio meu olhar para que ele não enxergue a verdade por trás da minha expressão.
— Ah meu Deus! Você não queria ter sobrevivido, não é mesmo? - o interno pergunta, embora já saiba a
resposta. Consigo detectar uma ponta de decepção em seu olhar, mas que logo é substituída por pena e
tristeza.
— Você não entenderia. Sua vida não deve ser tão ruim quanto a minha. Tenho motivos para ter efetuado
a devida ação. - rebato, um pouco ríspida demais.
— É claro, Kate. Talvez eu nunca entenda, porém todos nós lutamos contra nossos próprios demônios. A
única diferença é o modo pelo qual os combatemos.
— Aparentemente, seus sinais estão estáveis. Voltarei em uma hora para checar novamente. Tente comer
um pouco; vai ser bom para você - Dr. Carls me avisa e aconselha antes de sair e fechar a porta.
Sinto-me culpada pela maneira que falei com ele. Não sou a única que passa por problemas e, por isso,
não deveria comparar minha vida com as de outras pessoas.
Trinta minutos depois, as enfermeiras trazem o jantar: um prato de sopa com diversos legumes e que, por
mais incrível que pareça, é a melhor refeição que tenho em meses. É, talvez eu não estivesse me
alimentando corretamente.
Após terminar minha refeição, encaro o teto do hospital pensando em como irei resolver a questão da casa
quando ouço barulhos vindos da porta e, logo em seguida, vejo Anthony Carls, o interno da Cardiologia,
entrando novamente.
— Pensei que estaria dormindo, senhorita Sheffield, já está tarde.
— Você também deveria estar dormindo, mas não está - rebato, com um pouco de ironia
— Tem razão. Mas você se esqueceu de que sou interno, internos nunca descansam em plantões. Já você
é paciente e sua obrigação é descansar para se curar mais rapidamente - diz o médico, arqueando uma
sobrancelha como em um ato de desafio.
Decido contar-lhe a verdade sobre minha condição, esperando que este me dê algum remédio que vá me
ajudar a dormir sem pesadelos.
— Não consigo dormir. Tenho pesadelos que me tiram o sono toda vez que durmo. Então eu opto por não
dormir, mas sem cafeína é um pouco mais complicado.
— Entendo. Bem, acredito que não sou autorizado a oferecer café a uma paciente, mas tenho algo que
pode te ajudar a passar o tempo e a ocupar a mente com algo diferente do que a tanto perturba e do qual
não tenho conhecimento - Anthony diz, tirando de dentro da bolsa um tabuleiro de xadrez dobrado ao
meio. Ouço as peças dentro da estrutura de madeira se mexerem.
— Como acha que jogar xadrez vai me ajudar a limpar a mente? - pergunto, intrigada.
— Veja bem, cara Kate. O xadrez é um jogo de estratégia que pode auxiliar- te na resolução de problemas.
Além do fato de que vai me manter ocupado para não cair no sono no meio do plantão e levar uma grande
repreensão do Dr. Evans.
— Então, o jogo não serve apenas para me beneficiar. Você está me usando para seu próprio benefício. -
respondo, sarcástica, com em um tom de falsa acusação.
— A vida é uma troca de interesses. Assim deixa bem explícito em suas obras Machado de Assis.
Sorrio ao perceber que o sujeito tem um amplo conhecimento de Literatura. O autor citado, Machado de
Assis, um fabuloso escritor brasileiro que estudava os comportamentos humanos, era o favorito de minha
mãe. Lembro-me das tardes que ela passava lendo seus livros no balanço enquanto eu estudava para as
provas da universidade. Sempre ao terminar um de seus livros, ela me contava tudo sobre a história.
Algo diferente de remorso, tristeza e solidão preenche meu coração e percebo que é saudade, mas uma
saudade boa, daquelas que traz alegria à alma. Senti falta desse sentimento.
— Tudo bem, então. Vamos jogar uma partida de xadrez, mas não chore se perder para mim. Sou uma
jogadora nata - digo, já posicionando as peças pretas no tabuleiro com precisão.
— Estou morrendo de medo, Senhorita Sheffield. Que comece a partida! - ele diz, estendendo a mão a fim
de que eu aperte-a, como em uma disputa séria e profissional que ocorre entre dois jogadores em uma
mesa elegante com enorme plateia, e não em um quarto de hospital onde um dos participantes está
sentado em uma maca, com os braços perfurados por agulhas que o conectam a substâncias as quais
privam-no da dor física da cirurgia.
Anthony começa movendo o peão para E4. Movo o peão preto para E5. Uma das poucas coisas boas que
aprendi com meu pai foi a formular estratégias,e isso Daniel Smith me ensinou desde quando eu tinha
cinco anos. Nessa época, ele ainda era paciente comigo e respeitava minhas decisões. Talvez até tivesse
um pouco de orgulho de mim. Lembro-me de suas palavras como se tivessem sido ditas ontem: ´´ Caso o
oponente mova o peão para E4, mova o outro para E5´´
O interno desloca o cavalo para a posição F3 e, logo, movo outro peão para F5. O cavalo ocupa o lugar do
peão livre em E5. O bispo vai à posição C5. Meu peão negro destrói o peão branco em E4. O peão branco
destrói o outro em F5. Sacrifico meu bispo movendo-o para a posição F2, de modo que a rainha de
Anthony o destrói em F2. Analisando o tabuleiro, desloco minha rainha para H4 e, o interno, recuando,
move sua rainha para G1. Suspirando de alegria, em um último movimento antes de vencer, movo a peça
que representa a rainha preta para D4. Xeque-mate. Levanto os olhos para ver a expressão de surpresa
no rosto de Anthony, antes deste derrubar o próprio rei em sinal de derrota.
— Com quem aprendeu a jogar tão bem assim? - pergunta Anthony, em um tom de respeito.
— Meu pai me ensinou quando eu era pequena - respondo.
— Ele não veio te ver depois do acidente?
— Não. Eu pedi aos médicos para não o chamarem. Não temos uma boa relação.
— Ah, entendi. Posso perguntar o porquê? Se não tiver problema, é claro.
— Meu pai nunca foi uma pessoa muito compassiva. Não tratava minha mãe e eu muito bem. Um dia,
durante uma briga, ele foi embora e nunca mais voltou. Pensei que isso se manteria, porém logo depois da
morte de minha mãe, ele foi a minha casa com um advogado, alegando que era seu direito demolir a casa
onde estava morando, uma vez que era dele, e construir um estabelecimento comercial. Fiquei furiosa e
,no meio da noite, com o carro em alta velocidade, acabei batendo em um caminhão.
— Uau! É uma longa história, então. Mas, você sabe que a rua em foi encontrada, Marylbone, é uma das
mais calmas de Londres. Portanto, seria improvável que o caminhão estivesse em alta velocidade. Os
índices de transgressão do limite de velocidade são raros naquela região.
— Bem, parece que tive má sorte, então - respondo, sem muita convicção.
— Sabia que,- começa ele, como se fosse contar uma história - quando eu era mais jovem, no início da
faculdade, eu era muito orgulhoso; arrogante. Um dia, tentando provar que era um bom médico para meu
pai, que duvidava de mim todas às vezes, e com razão, fiz um procedimento, pouco invasivo, em minha
irmã mais nova, a qual tinha caído de moto e possuía cortes profundos na cabeça. Convenci meus pais a
não levarem-na ao hospital; disse-lhes que tinha tudo sob controle e que era somente alguns cortes. Bem,
eu realizei as suturas e a aconselhei a tratar do ferimento até que chegasse o dia de retirar os pontos.
— E o que aconteceu? - pergunto, curiosa para saber o fim da história.
— Alguns dias depois, enquanto eu trabalhava no hospital próximo a nossa residência, minha irmã, de
apenas sete anos, estava quase inconsciente, resmungando de dor em uma maca na emergência. Eu corri
até ela e perguntei o que havia acontecido e, quando verifiquei se seus olhos acompanhavam a luz que
mostrava-lhe, ela não o fez. Nós a levamos para a sala de tomografia e descobrimos uma hemorragia
intercerebral avançada. Tentamos terminar a cirurgia, porém ela estava tão fraca que teve morte cerebral.
— Eu sinto muito mesmo - tento mostrar o máximo de empatia possível
— Eu não pude participar da cirurgia por ser seu parente. Então, quando os médicos nos abordaram com
expressões de terror e tristeza, eu comecei a tremer. Ao darem a notícia de que Lily havia tido morte
cerebral e não iria mais acordar, o mundo se tornou cinza e minha audição abafada. Quase não conseguia
ouvir os gritos e choros da minha mãe ou meu pai perguntando ao cirurgião se não havia mais nada a ser
feito para salvá-la. Tudo o que eu podia pensar era que tudo era minha culpa. Minha irmã estava morta e
nunca mais poderia fazer qualquer coisa por minha causa; devido a minha arrogância e orgulho nojentos.
Lily nunca mais poderia tocar o piano na sala enquanto jantávamos, nunca mais brincaria com suas
diversas bonecas das quais tanto cuidava; ela nunca mais iria me implorar para eu a levar tomar sorvete;
ela nunca mais ouviria as histórias estranhas do meu pai antes de dormir sobre formigas que eram
atropeladas ao não olharem para os dois lados da rua; nunca nem competiria no show de talentos da
escola. E tudo era minha culpa. O remorso tomou conta de mim e, por isso, me deportei ao GMC( General
Medical Council). Perdi minha vaga na universidade e só pude voltar três anos depois. Tive de fazer os
quatro primeiros anos novamente. No entanto, nada disso compensava a dor e a culpa de tê-la perdido.
Meus pais ainda não conseguem me olhar no rosto sem sentir desgosto.
— Que história triste, Anthony. Como consegue ter vontade de viver depois disso? - questiono, pois eu
não aguentei a dor de ter perdido minha mãe e tentei pôr fim ao sofrimento, mas ao que tudo indica, ele
ainda está aqui.
— A dor do luto é pior do que qualquer coisa que se poderia imaginar. E o remorso me corrói por dentro
todos os dias. Entretanto, eu sei que minha irmã não iria querer que eu desistisse. Lily provavelmente diria
para eu continuar a vida e fazer certo da próxima vez. E é exatamente isso que estou fazendo: começando
de novo, só que corretamente.
— Faz sentido. Mas eu não sei como recomeçar. Eu não sei como seguir em frente sem me deixar
envolver pelo passado e pela culpa- digo, a fim de que Anthony me dê uma resposta.
— Isso, minha cara Kate, só você pode saber. Você é a única que sabe o seu propósito na vida, mas se
você desistir agora, nunca irá saber.
— Tem razão. Aliás, desculpa por ter comparado meus problemas com os seus, os quais são muito
maiores.
— Como eu disse, todos nós lutamos contra nossos próprios demônios. A única diferença é a maneira
pela qual lidamos com eles.
— Obrigada pela sessão de terapia, Dr. Carls. Não sabia que internos também eram psicólogos - digo, em
um tom sarcástico com o intuito de terminar a conversa pesada.
— Não tem de que, senhorita Sheffield. Ainda precisa de cafeína?
— Acho que consigo me virar daqui. Obrigada - respondo, antes de Anthony dar meia volta, se dirigir à
porta e sair.
Naquela noite, os pesadelos não me tiram o sono. É, talvez jogar xadrez seja bom para espantá-los.
Todos os dias depois se basearam em noites jogando xadrez e manhãs e tardes estudando para as provas
finais da faculdade. Após minha graduação, vou enviar meu currículo para diversas empresas que me
aceitem para trabalhar como engenheira civil. Vou alugar ou ,talvez, até comprar um apartamento
dependendo do salário que receberei. Meu pai poderá fazer o que ele bem entender com a casa de
mamãe. Lá deixou de ser meu lar a partir do momento em que ela se foi. Eu simplesmente negava isso a
mim mesma.
Uma noite, Anthony aparece a fim de jogarmos xadrez, todavia ele não trajava o uniforme azul de sempre
com o jaleco bordado. Hoje, ele usava um casaco sobretudo preto e longo, calças casuais e carregava
uma bolsa grande.
— Aonde está indo? - pergunto, já me levantando da cama de hospital.
— Lembra quando lhe disse que enviei meu currículo a um hospital escola em Nova Iorque para fazer
residência? - ele diz, franzindo a testa para ver se eu me lembrava.
— Sim, eu me lembro. Lenox Hill Hospital, não é mesmo?
— Sim, esse mesmo. Bem, eu fui aceito. Recebi a notícia semana passada, mas esperei o ano letivo
acabar para fazer as malas. Vou embora do hospital, Kate. Vou me mudar para Nova Iorque daqui duas
semanas.
— Ah, meus parabéns - tento soar o mais feliz possível. E eu estava, claro que estava. Anthony finalmente
conquistou seu grandioso objetivo de ser residente de Cardiologia em um hospital de prestígio nos
Estados Unidos. Mas uma parte de mim estava um pouco triste por não ter mais alguém com quem
conversar nas horas vagas.
— Obrigado - ele responde, um pouco tímido.
— Então, eu acho que é isso. Foi bom te conhecer, Dr. Anthony Carls. Espero que tenha um futuro
brilhante em Nova Iorque.
— Muito obrigado, cara Kate. Fique bem em Londres.
— Tudo bem. Não faça nada que eu não faria lá! Eu estou falando sério! - digo, em tom de sarcasmo.
— Vou tentar.
Ele se aproxima e me dá um abraço de despedida, antes de checar meus sinais vitais novamente, se
dirige à porta e diz:
— Viva, Kate. Viva cada segundo da sua vida como se fosse o último e, ao mesmo tempo, viva como se
nunca fosse morrer. Porque a vida é boa e curta demais para não aproveitá-la ao máximo.
Logo depois, ele abre a porta, me lança um olhar de despedida e vai embora.
Penso em chorar; em lamentar que todas as boas pessoas que conheço me abandonam. No entanto,
estou cansada de me lamentar, de chorar por todas as coisas que perdi. Desejo ser uma pessoa resiliente,
boa, feliz, que inspira os outros. Quero lutar e vencer. E é isso que vou fazer. Passei muito tempo da minha
vida me vitimando e percebi que isso de nada adianta. Só causa ódio e afasta as pessoas.
Quero correr, sorrir, rir, chorar, trabalhar, amar conhecer o mundo e fazer tudo o que um ser faz.
Porque, pela primeira vez em 23 anos, eu quero viver!