Verhoeven - 03 - Camille - Pierre Lemaitre
Verhoeven - 03 - Camille - Pierre Lemaitre
Verhoeven - 03 - Camille - Pierre Lemaitre
Para Pascaline
fevereiro•2022
Clube SPA
DIA 1
fevereiro•2022
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10h
Um acontecimento é considerado decisivo quando tira totalmente sua
vida do eixo. É o que Camille Verhoeven leu, alguns meses antes, em um
artigo sobre “A aceleração da história”. Esse acontecimento decisivo,
arrebatador, inesperado, capaz de disparar uma descarga elétrica no seu
sistema nervoso, evidencia-se em relação a todos os outros acidentes da
existência, por ser portador de uma energia e de uma densidade
particulares: assim que ele ocorre, você já sabe que as consequências vão
ter proporções gigantescas, que o que está acontecendo nesse instante é
irreversível.
Por exemplo, os três tiros de espingarda calibre 12 na mulher que você
ama.
É o que vai acontecer com Camille.
E pouco importa se naquela ocasião você estava a caminho, como ele, do
enterro do seu melhor amigo, com a sensação de já ter tido o bastante para
aquele dia. O destino não é do tipo que se contenta com tal banalidade;
mesmo assim, ele é perfeitamente capaz de se manifestar sob a forma de
um assassino equipado com uma Mossberg 500 calibre 12 de cano curto.
Resta saber agora como você vai reagir. Essa é a questão.
Porque nesse instante seu raciocínio está tão conturbado que você só
consegue reagir por puro re lexo. Por exemplo, antes dos três tiros, quando
a mulher que você ama é totalmente espancada e você vê o assassino
apontar a arma depois de tê-la carregado com um estalo metálico.
É certamente em momentos como esse que se revelam os homens
excepcionais, os que sabem tomar as decisões certas nas piores das
circunstâncias.
Mas, se você for uma pessoa comum, vai lidar como pode. E,
normalmente, diante de um terremoto como esse, você está condenado a
fracassar ou a falhar, isso se não estiver praticamente fadado à inação.
Se já é velho o su iciente ou se esse tipo de coisa já tiver vindo aniquilar
a sua vida antes, você pode até imaginar que está imune. É o caso de
Camille. Sua primeira mulher foi assassinada, uma tragédia, e ele levou
anos para se recuperar. Quando você já atravessou tamanha provação,
acaba pensando que nada mais pode lhe ocorrer.
Essa é a armadilha.
Porque você baixou a guarda.
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Ela demonstra bastante irritação, mas seu receio é maior que o dano
causado. Além disso, quem a conhece meramente não vê o que poderia
haver a temer, Anne não possui nada. Nem na sua bolsa nem na sua vida. O
que ela carrega consigo qualquer um poderia adquirir. Ela não comprou
apartamento nem carro, gasta o que ganha, não mais que isso, mas nunca
menos. Não economiza, pois não faz parte da sua natureza: seu pai era
comerciante. Um pouco antes de ir à falência, ele fugiu com o caixa de cerca
de quarenta associações para as quais havia sido recentemente eleito
como tesoureiro e nunca mais foi visto. Isso talvez explique por que Anne
tem uma relação de desapego com o dinheiro. Suas últimas preocupações
inanceiras remontam à época em que ela criava sozinha sua ilha, Agathe,
muito tempo atrás.
Anne imediatamente joga a caneta na lixeira e en ia o celular no bolso da
jaqueta. Sua carteira está manchada, ela vai ter de jogá-la fora também,
mas os documentos que estão dentro se mantiveram intactos. Quanto à
bolsa, o revestimento está úmido, mas a tinta não o atravessou. Anne talvez
decida comprar outra bolsa nessa mesma manhã; uma galeria comercial é
o lugar ideal, mas ninguém nunca saberá, pois o que vai acontecer em
seguida a impedirá de realizar seus projetos. Por ora, não importando sua
decisão, ela cobre o fundo da bolsa com os lenços de papel que tem. Uma
vez tendo terminado tudo, o que passa a preocupá-la são seus dedos
cheios de tinta, agora das duas mãos.
Poderia retornar à cervejaria, mas a perspectiva de reencontrar o
garçom é bastante desencorajadora. Ainda assim, está prestes a decidir
retornar à cervejaria quando nota, à sua frente, uma placa indicando
sanitários públicos, o que não é tão frequente nesse tipo de lugar. Estão
numa área situada logo após a confeitaria Cardon e a joalheria Desfossés.
É a partir desse momento que as coisas se aceleram.
Anne percorre os trinta metros que a separam dos sanitários, empurra a
porta e se depara com dois homens.
Eles entraram pela saída de emergência que dá para a rua Damiani e se
dirigiam para a galeria.
Por causa de um ou dois segundos... Sim, é ridículo, mas é uma
evidência: se Anne tivesse entrado cinco segundos depois, eles já estariam
de capuz e tudo teria sido bem diferente.
Mas, na verdade, é deste modo que as coisas acontecem: Anne entra,
todos icam espantados e paralisados.
Ela olha para os dois homens, um após o outro, espantada com a
presença, o comportamento deles, as roupas pretas.
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Pior: fugir pela saída de emergência sem que ele perceba e pedir
socorro?
Esconder-se em uma das cabines do banheiro, pegar o celular e ligar
para a polícia?
Então ele coloca o pé contra a porta para mantê-la aberta, curva-se
sobre Anne, segura-a pelo calcanhar direito e deixa o sanitário arrastando-
a pelo chão ao longo de mais ou menos trinta metros, como uma criança
que puxa um brinquedo, com a mesma facilidade, tamanha é a indiferença
com o que tem atrás de si.
O corpo de Anne se choca aqui e ali, o ombro topa contra o canto da
porta do sanitário, o quadril contra a parede do corredor, a cabeça balança
conforme os safanões que ela vai levando; bate contra um rodapé, contra a
quina de um dos canteiros de plantas que contornam a galeria. Anne não é
mais que um pano de chão, que um saco, um manequim amorfo, sem vida,
perdendo sangue e deixando atrás de si um largo rastro vermelho que
coagula ao passar dos minutos; o sangue não demora a secar.
Ela parece morta. Quando o homem a larga, ele abandona sobre o chão
um corpo desarticulado, para o qual nem sequer olha; não é mais
problema seu, ele acaba de carregar a espingarda com um gesto irme,
de initivo, que demonstra toda a sua determinação. Os homens irrompem
na joalheria Desfossés com gritos de ordem. A loja acabou de abrir. Um
espectador, se houvesse algum lá dentro, não deixaria de se surpreender
com a desproporção entre a brutalidade que eles demonstram desde a
entrada e a baixa quantidade de pessoas que se encontram na loja. Os dois
homens ladram suas ordens aos funcionários (nada além de duas
mulheres) e já chegam distribuindo pancadas: no estômago, no rosto; tudo
acontece muito rápido. Ouvem-se barulhos de vidro quebrando, gritos,
gemidos, respirações ofegantes de medo.
Talvez efeito da cabeça raspando pelo chão por trinta metros, dos
solavancos ao longo do percurso, há uma súbita pulsão de vida em Anne...
Chega o momento em que ela tenta se reconectar à realidade. Seu cérebro,
como um radar desmantelado, busca em desespero um sentido a tudo o
que se passa, mas não há nada a fazer, sua consciência se perdeu,
literalmente anestesiada pelas pancadas, pela brusquidão de tudo o que
está acontecendo. Quanto ao corpo, está entorpecido pela dor, impossível
mexer o menor músculo.
O espetáculo do corpo de Anne arrastado pela alameda e jazendo numa
poça de sangue à entrada da butique vai ter um efeito positivo: transmitirá
um impacto de urgência à situação.
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seus próximos entre aqueles que contam com sua proteção; imagine
assisti-lo sofrer, morrer. Você vai suar frio. Agora tente ir mais longe e
imagine-o chamando por você no ápice do desespero; você vai ter vontade
de morrer. Camille se encontra nessa situação, diante dessa tela,
totalmente impotente; ele não pode fazer nada além de assistir a essas
tomadas, agora tudo isso já passou...
É uma situação insuportável, de initivamente insuportável.
Ele vai assistir a essas imagens dezenas de vezes.
Anne, por sua vez, vai se comportar como se tudo o que está
acontecendo ao redor não existisse. O assaltante poderia subir em cima
dela e apontar de novo o cano da espingarda para a sua nuca, ela faria a
mesma coisa. É guiada por um instinto de sobrevivência impressionante,
ainda que, visto do outro lado da tela, o que ela vai fazer esteja mais para
um suicídio: a menos de dois metros de um homem armado que mostrou,
alguns minutos antes, que estava pronto para atirar na sua cabeça sem a
menor comoção, Anne prepara-se para fazer o que nenhuma outra pessoa
faria. Vai tentar se levantar. Sem a mínima preocupação com as
consequências. Ela vai tentar fugir. Anne é uma mulher de personalidade
forte, mas daí a enfrentar desarmada uma espingarda calibre 12 existe
uma grande diferença.
O que vai acontecer é o desdobramento quase automático da situação,
duas energias opostas vão se confrontar. Uma ou outra terá que prevalecer.
Elas não têm saída. A diferença, claro, é que uma dessas energias tem o
reforço de uma calibre 12. Isso sem dúvida vai lhe dar vantagem. Mas Anne
é incapaz de medir a potência das forças presentes, de calcular
racionalmente suas chances; ela se conduz como se estivesse só. Reúne
toda a vitalidade que lhe resta – e, nas imagens, vê-se logo que é
pouquíssima –, ajeita a perna, apoia-se sobre os braços, faz um esforço
enorme, as mãos escorregando pela poça do próprio sangue. Ela quase se
esparrama pelo chão, recomeça, e a lentidão com que tenta se levantar dá
um teor surreal à cena. Seu corpo parece terrivelmente pesado; ela está
entorpecida, é quase possível ouvi-la arfar. Ela nos faz querer ampará-la,
puxá-la, ajudá-la a se pôr de pé.
Camille, por sua vez, teria vontade mesmo é de suplicar a ela que não
izesse nada. Mesmo que o cara demorasse um minuto para se virar, no
estado de embriaguez, de desvario no qual se encontra Anne, ela não terá
nem percorrido três metros, e o primeiro tiro de espingarda já a terá quase
cortado ao meio. Mas Camille está de frente para a tela, várias horas depois
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homens voltaram aos sanitários e saíram alguns segundos mais tarde pela
rua Damiani, onde outro parceiro os aguardava de carro.
Já Anne, não se sabe mais onde está. Ela cai, levanta-se, mas, ainda
assim, ninguém sabe muito bem como ela ganha a saída da galeria e chega
à rua.
– Ela caminhava toda ensanguentada... Parecia um zumbi!
De origem sul-americana, cabelos negros, pele bronzeada, por volta dos
vinte anos, ela trabalha no salão de cabeleireiros, na esquina; havia saído
para buscar algumas xícaras de café.
– Nossa máquina está quebrada, temos que buscar café para as clientes.
É a proprietária que explica. Janine Guénot. Firmemente postada diante
de Verhoeven, lembra uma alcoviteira, tem todos os atributos. O senso de
responsabilidade também; ela não deixaria nenhuma das suas garotas icar
batendo papo com homens na calçada sem vigiar de perto. Mas para
Camille pouco importa a razão do deslocamento da garota, os cafés, a
máquina quebrada, ele repele isso tudo com um gesto. Na verdade, nem
tudo.
Porque, no instante em que Anne irrompe, a cabeleireira carrega uma
bandeja redonda com as cinco xícaras de cafés e caminha rápido; é que as
clientes, nesse bairro, são particularmente chatas, são cheias da grana. Ser
exigente, para elas, é como exercer um direito milenar.
– Um café morno é motivo para o maior drama – explica a proprietária
com um olhar dolente.
E, então, a jovem cabeleireira.
Já surpresa e intrigada com os dois disparos que ouviu da rua, ela corre
pela calçada com a bandeja e dá de cara com uma maluca, coberta de
sangue, que sai da galeria comercial cambaleando. É o maior choque. As
duas mulheres se topam, a bandeja voa, adeus xícaras, pires, copos de
água, uniforme do salão. Os tiros de espingarda, os cafés, o tempo perdido,
tudo isso até que vai, mas estragar um conjunto desse preço, mas que saco,
dessa vez a voz da proprietária ica estridente, ela quer demonstrar o
prejuízo. “Está bem, está bem”, diz Camille fazendo um gesto. Ela pergunta
quem vai pagar a lavanderia, a lei deve prever esse tipo de incidente. “Está
bem”, repete Camille.
– E ela nem sequer parou...! – salienta a proprietária, como se falasse de
uma colisão com uma mobilete.
Agora ela conta o caso como se tudo tivesse acontecido com ela. Toma a
frente, porque, antes de tudo, trata-se da “sua garota” e porque os cafés
derramados no salão lhe dão esse direito. A clientela sempre acaba
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comentando depois. Camille a segura pelo braço, ela abaixa os olhos para
ele, como se olhasse para um monte de cocô de cachorro na calçada.
– A senhora – diz Camille com um tom bem baixo de voz –, pare de me
encher o saco.
A proprietária não acredita nos próprios ouvidos. Da parte desse anão!
Não falta mais nada. Mas Verhoeven continua a encará-la; é mesmo
impressionante. Diante desse mal-estar, a pequena cabeleireira deseja
demostrar que preza pelo seu emprego.
– Ela gemia... – explica ela, para mudar o foco.
Camille se vira para ela, querendo saber mais. Como assim gemia? Sim,
ela dava uns gritinhos, como... é di ícil explicar... não sei como dizer. Vamos,
tente, diz a proprietária, que deseja se redimir aos olhos da polícia, a inal,
nunca se sabe o dia de amanhã; ela dá uma cotovelada na garota, vamos,
responda à pergunta do policial, esses gritos, como eram? A garota olha
para eles, os olhos pestanejando, não está muito certa de ter entendido o
que estão lhe pedindo. Então, em vez de tentar descrever o som, ela tenta
imitá-lo, começa a murmurar, uma espécie de gemido, tentando achar a
entonação correta: ai, ai, ou quem sabe uhh, uhh, o mais próximo disso, ela
conta, bastante concentrada, uhh, uhh. Como, en im, encontra a entonação
certa, ela aumenta o volume, fecha os olhos, abre-os em seguida,
esbugalhados, e, alguns segundos depois, uhh, uhh. Ela soa como se fosse
gozar.
Eles se encontram na rua, há muitas pessoas pelo local (eles estão no
local onde os empregados da limpeza pública passaram distraidamente o
jato de água sobre o sangue de Anne, que escorreu até o meio- io da
calçada. As pessoas caminham sobre as manchas ainda visíveis, a angústia
que isso causa em Camille...), os transeuntes se deparam com um policial
de um metro e quarenta e cinco tendo à frente uma jovem cabeleireira de
pele bronzeada que o encara estranhamente e solta gritos agudos de
orgasmo sob o olhar aprovador da mãe alcoviteira... Meu Deus, essa é nova
por aqui. Os demais comerciantes, na frente das lojas, assistem ao
espetáculo horrorizados. Os tiros já estão longe de ser boa propaganda
para a clientela, mas agora essa rua já começou mesmo a virar uma zona.
Camille vai reunir os depoimentos, confrontá-los e tentar compreender
como as coisas terminaram.
Anne abandona a galeria Monier pela rua Georges-Fladrin, à altura do
número 34, totalmente desnorteada; ela vira à direita e sobe a rua em
direção ao cruzamento. Alguns metros mais longe, choca-se com a
cabeleireira, mas não para, continua seu caminho apoiando-se, passo após
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Já Anne está estirada sobre a calçada, o braço caído pelo meio- io, uma
perna debaixo do carro estacionado. “Brilhando”, dirá o senhor de idade, o
que é evidente, a inal, ela está coberta de cacos de vidro do para-brisa que
estilhaçou.
– É como se tivesse nevado sobre o corpo dela...
10h40
Os turcos não icaram contentes.
Não icaram nada contentes.
O grandalhão, com ar obstinado, dirige com prudência, mas contorna a
Place de l’Étoile e desce a avenida da Grande-Armée cerrando os punhos
sobre o volante. Franze as sobrancelhas. Quer causar impacto. Ou talvez
seja cultural manifestar as emoções dessa forma.
O mais agitado é o caçula. Sangue ruim. Pele bem morena, com um
semblante impetuoso, seu temperamento sombrio pode ser sentido de
longe. Também é muito comunicativo, brande o indicador, ameaça,
consegue ser bem irritante. Não entendo nada do que ele está dizendo – o
espanhol, pra mim... –, mas não é di ícil supor: fomos incumbidos de
realizar um assalto rápido e lucrativo, e, de repente, estamos em meio a um
tiroteio sem im. Ele abre as mãos amplamente: e se eu não tivesse
interrompido você? Silêncio. Passa um anjo capenga pelo veículo. Em
seguida, ele faz a pergunta com uma insistência visível, sem dúvida
indagando o que teria acontecido se a mulher tivesse sido morta. Então, de
repente, ele não consegue se conter, a fúria o domina: a gente foi até lá para
fazer um assalto, não um massacre etc.
Ele é mesmo um pé no saco. Ainda bem que sou um homem calmo, se eu
fosse icar nervoso, as coisas sairiam dos trilhos com rapidez.
Isso não tem a menor importância, mas ele já está me cansando. Esse
moleque não para de se esbaforir de tanto reclamar, ele deveria poupar
suas forças, vai precisar das suas energias logo mais.
Nem tudo aconteceu exatamente como o previsto, mas o objetivo global
foi atingido, isso é o essencial. Dois sacos grandes de joias estão no
assoalho do carro. Serão su icientes por um tempo. E este é só o começo,
porque, se tudo der certo, vou ampliar os projetos e a quantidade de sacos.
O turco também não tira o olho deles; fala com o irmão, ambos parecem
entrar num acordo, o motorista faz gestos de assentimento. Eles têm uma
reunião em família como se estivessem a sós, devem estar calculando a
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11h45
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Camille não consegue dizer uma palavra. Anne tenta falar, ele põe a mão
sobre o lençol para acalmá-la, nem sequer ousa tocá-la. Anne, por sua vez,
inquieta-se subitamente, ica agitada; ele sente vontade de fazer algo, mas
não sabe o quê. Chamar alguém? O olhar de Anne é febril; ela quer sem
dúvida exprimir algo com urgência.
– ... rrada ... orte.
A brusquidão dos acontecimentos ainda a mantém perplexa, como se
eles tivessem acabado de ocorrer.
Curvado sobre ela, Camille busca escutá-la com atenção, inge entender,
tenta sorrir. Anne parece estar mastigando um purê escaldante. Ele
entende algumas sílabas totalmente disformes, mas, de tanto se
concentrar, após alguns minutos, começa a adivinhar as palavras, a deduzir
o sentido... Mentalmente, ele passa a traduzir. É estranho como nos
adaptamos rápido. A tudo. E às vezes também deprimente.
“Agarrada”, ele entende, “espancada”, “forte”.
As sobrancelhas de Anne se erguem, os olhos se arredondam de pavor,
como se o homem estivesse diante dela de novo, como se ele se preparasse
para prensá-la contra o chão de novo a coronhadas. Camille estende a mão,
coloca-a sobre seu ombro; Anne tem um sobressalto violento, soltando um
grito.
– Camille... – diz ela.
Ela vira a cabeça da direita para a esquerda, a voz se torna quase
inaudível. Os dentes que faltam a fazem assoviar, pois, além de tudo, há
ainda três dentes quebrados, incisivos do lado esquerdo, em cima e
embaixo, quando abre a boca. Anne tem trinta anos a mais; como Fantine
numa versão ruim de Os miseráveis, ela insiste junto à enfermeira, mas
ninguém quer lhe dar um espelho.
Além disso, mesmo com di iculdade, ela tenta esconder a boca ao falar.
Com o dorso da mão. Na maioria das vezes, não consegue; a boca é um
buraco escancarado de lábios moles, arroxeados.
– ... vão me operar...?
É a pergunta que Camille acredita discernir. As lágrimas remontam, tem-
se a impressão de que são independentes ao que ela diz, surgem e
escorrem sem lógica aparente. Já o rosto de Anne não exprime nada além
de um atordoamento mudo.
– Não sabemos ainda... Acalme-se – diz Camille, bem baixo. – Vai dar
tudo certo...
Mas a mente de Anne já partiu de novo para outra direção. Ela vira a
cabeça para o lado oposto, como se sentisse vergonha. Então, o que diz é
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ainda menos audível. Camille acredita ouvir: “Assim não...”, ela não queria
que ninguém a visse nesse estado. Ela consegue se virar totalmente para o
outro lado. Camille coloca a mão sobre o ombro dela, mas Anne não reage,
paralisada numa posição de recusa, apenas suas costas se contraem sob o
efeito dos soluços abafados.
– Você quer que eu ique? – pergunta ele.
Nenhuma resposta. Ele permanece ali, sem saber o que fazer. Ao im de
um longo momento, Anne faz não com a cabeça, não, não se sabe a que, a
tudo aquilo, ao que está acontecendo, ao que aconteceu, a esse absurdo
que atinge nossas vidas sem avisar, à injustiça do mundo, que é vista por
suas vítimas como uma questão pessoal. Impossível dialogar com ela. É
cedo demais. Eles não se encontram no mesmo momento. Ambos se calam.
Será que ela está dormindo? Não dá para saber. Ela se vira lentamente,
ica de frente para Camille mais uma vez, os olhos fechados. E não se mexe
mais.
É isso.
Camille olha ixamente para ela, uma mão sobre a outra, escuta sua
respiração, angustiado, tenta comparar esse ritmo ao de quando ela
dorme, conhece-o como ninguém. Já passou horas assistindo a Anne
dormir. De início, no meio da madrugada, ele se levantava só para observá-
la por um longo tempo e traçar seu per il, como o de uma nadadora, uma
vez que durante o dia ele nunca conseguia captar a magia sutil do seu
rosto. Assim, fez centenas de croquis, passou um tempo in inito tentando
traduzir seus lábios, tal pureza, suas pálpebras. Ou traçar sua silhueta
durante o banho sob o chuveiro. Do esplendor de todos os seus fracassos,
compreendeu a que ponto ela era imponente: se, por um lado, ele consegue
reproduzir com precisão quase fotográ ica os traços de qualquer pessoa
em minutos, por outro, Anne guarda algo de irredutível, inatingível, que
escapa ao seu olhar, à sua experiência, à sua observação. Porém, a mulher
ali deitada, inchada, enfaixada, como se estivesse mumi icada, não possui
mais nenhuma magia; dela não resta mais que seu invólucro, um corpo
feio, terrivelmente prosaico.
É isso o que, conforme os minutos passam, aumenta a raiva de Camille.
Às vezes, ela desperta bruscamente, solta um gritinho, olha ao redor, e
Camille descobre nela o que viu também em Armand nas semanas que
antecederam sua morte: uma feição inexpressiva, totalmente nova, que
exprime o estupor de ter chegado até ali, a incompreensão. A injustiça.
Ele nem sequer se recuperou do choque quando a enfermeira vem lhe
lembrar que seu tempo de visita acabou. Ela se faz de discreta, mas não
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deixa o quarto enquanto ele não sai. No seu crachá: “Florence”. Mantém as
mãos para trás, numa posição que concentra insistência e respeito com um
sorriso compreensível que o colágeno ou o ácido hialurônico deixou
totalmente arti icial. Camille queria icar até que Anne pudesse lhe contar
o que aconteceu, ele está terrivelmente impaciente para saber como as
coisas se passaram. Mas não há nada a fazer, a não ser esperar. Sair. Anne
precisa descansar. Camille sai.
Para compreender tudo melhor, ele vai ter que esperar vinte e quatro
horas.
Porém, vinte e quatro horas é muito mais tempo que o su iciente para
um homem como Camille devastar a Terra inteira.
Após sair do setor do hospital, ele só dispõe de algumas explicações que
lhe foram fornecidas pelo telefone e ali mesmo, no hospital. Na realidade,
com exceção das informações gerais, ninguém sabe de nada, ainda é
impossível recompor com precisão a sequência dos acontecimentos.
Camille não obtém mais que a terrível imagem de Anne des igurada, o que
já é demais para um homem bastante propenso a fortes emoções, e esse
espetáculo desperta sua raiva natural.
Desde o momento em que passou pela saída, ele entrou em ebulição.
Quer saber de tudo, imediatamente, ser o primeiro a saber, ele quer...
É importante deixar claro: Camille não é vingativo. Ele sente rancores,
como todo mundo, mas, para escolher apenas um exemplo, Buisson, o
homem que matou sua mulher quatro anos atrás1, continua vivo e Camille
nunca quis fazer com que ele fosse assassinado na prisão, e, com os
contatos que ele tem, isso não teria sido nem um pouco complicado.
Hoje, no caso de Anne (ela não é sua segunda esposa, mas ele não sabe
muito bem que palavra deve usar)... no caso de Anne, não é isso o que ele
sente, não, não se trata de espírito de vingança.
É como se sua própria vida estivesse ameaçada por esse acontecimento.
Ele precisa agir porque é incapaz de imaginar as consequências de um
ato que interfere em sua relação com ela, a única coisa que, desde a morte
de Irene, devolveu sentido à sua vida.
Se isso soa como um exagero é porque você não se sente responsável
pela morte de alguém que amou. Garanto que isso faz uma enorme
diferença.
Enquanto desce apressado os degraus do hospital, ele revê o rosto de
Anne, seus olhos com as rugas amareladas, a cor horrível dos hematomas,
os tecidos da face inchados.
Ele acabou de vê-la morta.
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Não sabe ainda de que maneira nem por qual razão, mas alguém quis
matá-la.
É essa sensação de repetição que o inquieta. Após o assassinato de
Irene... As duas circunstâncias não têm estritamente nada a ver uma com a
outra. Irene era pessoalmente visada por um assassino. Anne apenas
cruzou com a pessoa errada no momento errado, mas, neste instante,
Camille não faz triagem das suas emoções.
Ele é apenas incapaz de deixar as coisas seguirem seu curso sem agir.
Sem tentar agir.
Aliás, ele já teve uma primeira atitude sem nem perceber, por instinto, a
partir da conversa pelo telefone no começo da manhã. Anne foi “ferida”
num assalto à mão armada no oitavo distrito e “agredida”, disse a mulher
da delegacia. Camille adora essa palavra, “agredir”. Na polícia, eles adoram
usá-la. Eles também adoram “meliante” e “estipular”, mas “agredir” é muito
melhor, com três sílabas abarca-se uma gama que vai do simples ato de
esbarrar em alguém até a maior surra; o interlocutor entende o que quiser,
nada mais prático.
– Como assim, “agredida”?
A policial não sabia mais que isso, ela devia estar lendo um papel,
Camille se pergunta se ao menos ela entendia o que estava dizendo:
– Um assalto à mão armada. Houve tiros. A senhora Forestier não foi
atingida, mas foi agredida. Foi conduzida aos primeiros-socorros do
hospital mais próximo.
Alguém atirou? Em Anne? Durante um assalto à mão armada? Posto
dessa forma, não era fácil entender, imaginar. Anne e “à mão armada” são
duas ideias tão distantes uma da outra...
A mulher explicou a ele que Anne não estava com nenhum documento,
sem bolsa, que foram descobertos apenas seu nome e endereço no telefone
celular.
– Ligamos para a casa dela, mas não havia ninguém.
Eles se detiveram no número discado com mais frequência, o de Camille,
no topo da lista de contatos.
Ela lhe perguntou seu sobrenome para o relatório. Ela pronunciava
“verove”, Camille teve de corrigir: Verhoeven. Após um breve silêncio, ela
lhe pediu que soletrasse.
A icha caiu nesse momento para Camille. Como um re lexo da mente.
Porque Verhoeven já não é um nome muito comum, entre os policiais é
ainda mais raro. E, para completar, Camille faz parte dos comandantes de
polícia de que as pessoas se lembram. Não só por causa do seu tamanho,
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mas também pela sua história pessoal, sua reputação, de Irene, do caso de
Alex Prévost, de tudo isso. Para muitas pessoas, ele leva a etiqueta “Visto
na tevê”. Fez algumas aparições famosas na televisão, os câmeras adoram
ilmá-lo de cima para baixo com seus olhos de águia e sua careca reluzente.
Mas Verhoeven, o policial, a tevê, mesmo com isso tudo, a auxiliar não fez a
conexão, ela pediu a ele que soletrasse seu nome.
Em retrospectiva, a raiva sussurra a Camille que esse desconhecimento
talvez seja a primeira boa notícia de um dia fora do comum.
– Você me disse Ferroven? – insistiu a mulher.
Camille respondeu:
– Sim, é isso. Ferroven.
E ele soletrou para ela.
14h
Assim é a humanidade, basta um acidente e todo mundo já sai pela
janela. Enquanto houver um giro lex ou um rastro de sangue, vai ter
alguém para olhar. E, desta vez, são muitas as pessoas. Também não é para
menos, um assalto e tiros de espingarda em plena Paris. Comparado a isso,
a Queda da Bastilha é uma piada.
Teoricamente, a rua está isolada, mas isso não impede os pedestres de
passarem. A ordem é iltrar apenas os residentes; perda de tempo, todo
mundo virou residente porque todo mundo quer saber o que está
acontecendo. Agora as coisas estão mais calmas, mas, segundo os
comentários, lá pelo inal da manhã, o lugar estava a maior zona. Viaturas
de polícia, vans, peritos, motos, todos aglomerados na parte baixa da
Champs-Élysées, o engarrafamento dominando os dois extremos. Em duas
horas, tudo parecia estar bloqueado da Concorde à Étoile e de Malherbes
ao Palais de Tokyo. Pensar que eu sou o autor de um tumulto como esse é
excitante.
Se você atirou várias vezes numa mulher sangrando dos pés à cabeça e
arranca numa quatro por quatro cantando pneus em posse de cinquenta
mil euros de joias, claro que voltar ao cenário causa um efeito parecido
com o do biscoito da Madeleine de Proust. É bem agradável, na verdade.
Quando as coisas caminham bem, a gente acaba icando com a alma leve.
Avisto um café, na rua Georges-Flandrin, bem na saída da galeria Monier.
Muito bem situado. Chama-se Le Brasseur. Ali as coisas ainda estão bem
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14h15
O céu de outono parece ter sido pintado especialmente para esse
cemitério. Muita gente compareceu à cerimônia. Essa é a vantagem dos
servidores em atividade, eles se deslocam aos enterros como uma
delegação, logo se forma uma multidão.
De longe, Camille avista os parentes de Armand, sua esposa, seus ilhos,
os irmãos, as irmãs. Todos bem asseados, eretos, tristes e sérios. Ele não
sabe exatamente com que aquilo se parece na realidade, mas o conjunto o
fez pensar numa família quaker.
A morte de Armand, quatro dias atrás, devastou Camille imensamente.
Ela também o libertou. Semanas e semanas indo vê-lo, segurando suas
mãos, conversando com ele, mesmo que ninguém fosse capaz de dizer se
ele ainda compreendia alguma coisa. Com isso, ele se limita apenas a fazer
um sinal com a cabeça, de bem longe, direcionado para a esposa. Após
aqueles longos dias de agonia, todas aquelas palavras ditas para a esposa,
para os seus ilhos, Camille não tem mais nada para eles, até poderia ter
deixado de vir, tudo o que podia oferecer a Armand ele já tinha oferecido.
Ele e Armand tinham várias coisas em comum. O fato de que haviam
começado a carreira juntos, o que constitui um laço de juventude ainda
mais precioso, considerando que nunca tiverem o espírito jovem de fato,
nem um, nem outro.
Depois, o fato de que Armand era um avarento patológico. Nesse
domínio, ninguém podia imaginar do que ele era capaz. Ele havia entrado
num combate mortal contra qualquer gasto e depois contra o dinheiro.
Camille não pode se conter de interpretar sua morte como uma vitória do
capitalismo. Evidentemente, não era essa avareza que os unia, mas ambos
tinham em si certa pequenez e a obrigação de recompensá-la com algo
mais forte que eles mesmos. Se for possível pôr nesses termos, havia uma
espécie de solidariedade entre de icientes.
E, então, os seus dias agônicos con irmaram isso; Camille era o melhor
amigo de Armand.
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Louis olha para o seu chefe um segundo a mais, balança a cabeça, faz
algo como hum. É um rapaz extremamente aguçado e hum para ele é como
o afastamento da mecha, com a mão direita, com a mão esquerda; signi ica
toda uma linguagem à parte. E aquele hum diz claramente: o senhor não
está com cara de enterro, portanto, aconteceu alguma outra coisa.
E, para que nesse momento isso tenha dimensão maior que a morte de
Armand, deve ser algo grave...
– Vão nos encarregar de cuidar de um assalto que aconteceu esta manhã,
no oitavo distrito...
Louis se pergunta se essa é a resposta para a sua pergunta.
– Houve confronto?
Camille balança a cabeça, sim, não.
– Uma mulher...
– Morta?
Sim, não, na verdade, não. Camille olha para a frente como se estivesse
em meio a um nevoeiro, franzindo as sobrancelhas.
– Não... Bem, ainda não...
Louis se demonstra surpreso. Não é o tipo de caso para o qual sua
unidade costuma ser convocada, assalto não é a especialidade do
comandante Verhoeven. Pensando bem, por que não? Mas ele trabalhou
com Camille tempo su iciente para sentir quando as coisas não vão bem.
Ele expressa sua surpresa com um relance para os sapatos (modelos
Crockett & Jones perfeitamente engraxados), acompanhado de um
pigarrear seco, quase inaudível. Quando se trata de Louis, isso signi ica
mais ou menos a expressão máxima de sua comoção.
Camille aponta com o queixo a entrada do crematório.
– Assim que terminarmos aqui, gostaria que você se informasse um
pouco a respeito. Discretamente... Ainda não fomos convocados, sabe... –
Camille en im desvia o olhar para o adjunto. – É questão de ganhar tempo,
entendeu?
Em meio à multidão, ele já procura Le Guen com os olhos e o encontra
sem di iculdade. Impossível perdê-lo, ele é um mastodonte.
– Bom, temos que ir.
Quando Le Guen ainda era seu comissário, Camille só precisava levantar
o dedinho para obter o que queria, agora é mais di ícil.
Ao lado do auditor-geral Le Guen, a comissária Michard caminha
rebolando, como se fosse um ganso.
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14h20
O Café Le Brasseur está passando por um dos grandes momentos de sua
existência. Mas um assalto como esse! Não haverá outro igual em menos de
um século! A opinião é unânime. Mesmo os que não viram nada estão de
acordo. Os testemunhos voam rápido. Alguém viu uma garota, depois
dizem que eram duas, ou uma mulher, armada, desarmada, de mãos vazias,
e ela gritava. Não era a proprietária da joalheria? Não, era a ilha dela! Ah,
é? Não sabia que ela tinha uma ilha, tem certeza? Eles estavam de carro?
Qual o modelo? As opiniões abrangem mais ou menos toda a gama de
carros estrangeiros vendidos na França.
Vou bebericando meu café tranquilamente, é o meu primeiro momento
de repouso num dia bem longo.
O proprietário, com uma cara que dá vontade de estapear, calcula que o
montante do roubo chega a cinco milhões de euros. Não menos que isso.
Ninguém sabe onde o homem foi achar esse número, mas ele é categórico.
Dá vontade de dar na mão dele uma Mossberg carregada e empurrá-lo pela
porta da primeira joalheria do bairro. Quando ele tiver terminado de fazer
a rapa no lugar inteiro e voltado para o seu café, vamos deixá-lo calcular o
faturamento. Se conseguir um terço do que espera, que esse palerma se
aposente, pois nunca vai conseguir mais que isso.
E o carro em que eles atiraram! Qual? Aquele! Até parece que se chocou
contra um búfalo em alta velocidade! Atiraram nele com uma bazuca ou o
quê? E então começam os comentários balísticos, assim como izeram com
os carros: todos os calibres possíveis são mencionados, dá vontade de
atirar para cima a im de obter algum silêncio. Ou dar um tiro no meio do
bando para obter um pouco de paz.
Cheio de si, o proprietário anuncia peremptório:
– Um ri le ponto 22 de cano longo.
Ele fecha os olhos ao im da frase, con iante no seu conhecimento.
Eu me divirto imaginando como seria se ele fosse decapitado por um
tiro de calibre 12, como um turco; faz bem para o meu humor. Ri le ponto
22 ou qualquer outra coisa, a clientela concorda com ele, ninguém entende
nada do assunto. Diante de testemunhas como essas, os tiras vão ter
diversão garantida.
14h45
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15h15
Louis deixou o cemitério com rapidez. Camille, prisioneiro de sua
função, teve de esperar quase até o im. A cerimônia foi longa, muito longa,
durou o tempo necessário para cada um demonstrar o que sabia fazer em
matéria de discurso. Camille retirou-se discretamente assim que possível.
Enquanto se aproxima do carro, ele escuta uma mensagem que acaba de
chegar. É de Louis. Ele fez algumas ligações, já sabe o essencial:
– Encontramos apenas uma ocorrência de assalto com Mossberg 500. No
dia dezessete de janeiro deste ano. A semelhança deixa pouca dúvida. E o
caso foi bem sério... O senhor pode me ligar de volta?
Camille liga.
– Em janeiro – explica Louis –, foi muito mais violento. O assalto ocorreu
em quatro locais seguidos! Deixou um morto. O chefe da quadrilha é
conhecido. Vincent Hafner. Não tínhamos mais notícias dele desde o caso
de janeiro. Com esse novo crime, seu retorno parece querer chamar
bastante a atenção...
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15h20
De repente, uma agitação no Brasseur.
As conversas são interrompidas por sirenes, todos se precipitam em
direção ao terraço, inclinam-se na direção da rua, as cores do giro lex
parecem mais intensas. O patrão é categórico: é o Ministro do Interior. Eles
tentam lembrar o seu nome, mas é em vão; se fosse um apresentador de
tevê, teria sido mais fácil. Os comentários começam novamente. Alguns
pensam que essa agitação se deve a uma nova ocorrência, foi descoberto
um cadáver ou algo assim, o proprietário fecha os olhos mais uma vez,
altivo. As contradições da clientela são como uma homenagem à sua
erudição.
– Tenho certeza de que é o Ministro do Interior.
Ele enxuga os copos serenamente com um breve sorriso, sem olhar na
direção do terraço, para realçar a que ponto ele está certo do seu
prognóstico.
Eles aguardam com fervor, retêm a respiração, como se estivessem à
espera da passagem de uma etapa do Tour de France.
15h30
A impressão é de que sua cabeça está recheada de algodão e cercada de
veias grossas como braços que pulsam, martelam.
Anne abre os olhos. O quarto. O hospital.
Tenta mover as pernas, paralisada, como uma idosa dominada pelo
reumatismo. É doloroso, mas ela consegue levantar o joelho, em seguida o
outro, as pernas dobradas lhe concedem um instante de alívio. Ela move a
cabeça lentamente para veri icar como se sente; a cabeça pesa uma
tonelada. Os dedos, cobertos de curativos, parecem pinças de caranguejo,
além de estarem repletos de sujeira. As imagens que passam pela cabeça
são um pouco nebulosas, a porta dos sanitários na galeria comercial, uma
poça de sangue, os disparos, a sirene da ambulância, latejante, o rosto do
radiologista e, em algum lugar, atrás dela, a voz da enfermeira dizendo:
“Mas o que izeram com ela?”. Ela sente um forte abalo emocional, contém
as lágrimas; respirar fundo, controlar-se, não se entregar, não desistir.
E, para tanto, levantar-se, manter-se viva.
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Com um gesto, ela afasta o lençol, coloca uma perna para fora da cama,
em seguida a outra. Sente vertigem, permanece um instante equilibrada na
beirada, apoia-se sobre os pés, ergue o tronco, é obrigada a sentar-se de
novo; agora ela sente as dores de verdade, espalhadas pelo corpo inteiro e
também concentradas: nas costas, nos ombros, na clavícula. É como se
tivesse sido pisoteada. Tenta respirar, ergue-se de novo, en im se põe de pé,
se for possível assim dizer, pois é obrigada a se apoiar na mesinha de
cabeceira.
À sua frente se encontra o banheiro. Como se escalasse, ela passa de um
apoio para o outro, do travesseiro para a mesa de cabeceira, em seguida,
para a maçaneta da porta, para a pia, e agora ela está diante do espelho.
Meu Deus, essa é mesmo ela?
Os soluços lhe sobem pela garganta, ela não pode fazer nada desta vez.
Os malares roxos, os hematomas, os dentes quebrados... E o ferimento
através da bochecha esquerda, o osso malar se rompeu, a longa ileira de
pontos...
O que izeram com ela?
Anne se segura na pia para não cair.
– Mas o que a senhora está fazendo de pé?
Anne se vira, é acometida por um atordoamento, a enfermeira tem
tempo apenas para segurá-la; agora ela se encontra deitada no chão, a
enfermeira se levanta, põe a cabeça furtivamente no corredor.
– Florence, você pode me ajudar?
15h40
Camille anda a passos largos e nervosos, Louis no seu encalço. Apenas
alguns centímetros atrás do seu chefe, a distância precisa que ele mantém
de Verhoeven é o resultado de uma dosagem ponderada entre o respeito e
a familiaridade; somente ele sabe realizar combinações assim tão sutis.
Por mais que Camille esteja apressado e inquieto, automaticamente
levanta os olhos para os prédios erguidos ao longo da rua Flandrin.
Arquitetura haussmaniana, escurecida pela poluição; há tantos prédios
assim nesse bairro, ninguém mais sequer repara neles. Seus olhos avistam
de passagem o alinhamento das sacadas sustentadas em suas
extremidades por duas colunas atlantes monumentais, as tangas dos titãs
são preenchidas por uma protuberância excepcional e, sob cada sacada,
encontram-se Cariátides de seios escandalosamente generosos, que olham
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para o céu. São os seios que olham para o céu; as Cariátides, por sua vez,
têm o olhar lisonjeiro e falsamente pudico das mulheres seguras de si.
Camille segue seu percurso rapidamente, mas balança a cabeça,
contemplativo.
– René Parrain, na minha opinião – diz ele.
Silêncio. Camille fecha os olhos na espera da réplica. – Está mais para
Chassavieux, não?
É sempre assim. Louis tem vinte anos a menos que ele e sabe vinte mil
vezes mais coisas. O que mais incomoda é que ele nunca se engana. Ou
quase nunca. Camille já tentou pegá-lo com uma pergunta di ícil, tentou,
tentou, não há nada a fazer, esse sujeito é mesmo uma enciclopédia.
– É – disse ele. – Pode ser.
Ao se aproximar da galeria Monier, Camille topa com o veículo que foi
atingido pela calibre 12 sendo colocado na plataforma de um caminhão de
reboque.
Ele vai descobrir mais tarde que Anne estava do outro lado desse carro
quando a arma foi apontada para o seu rosto.
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15h50
Louis aperta a mão dos colegas. Camille quer ver o vídeo.
Imediatamente. Louis ica espantado. Ele sabe do pouco apreço de Camille
por costumes e protocolos, mas uma tamanha falta de trato surpreende
bastante vindo da parte de um homem no seu cargo e com sua experiência.
Louis afasta a mecha com a mão esquerda, mas ele segue seu chefe em
direção aos fundos da livraria, requisitada como quartel provisório.
Camille aperta distraidamente a mão da proprietária, uma verdadeira
árvore de Natal; ela fuma um cigarro com uma piteira de mar im, o tipo de
coisa que não se vê há um século. Camille não para no caminho. Os colegas
recuperaram as tomadas das duas câmeras.
Assim que ele se coloca diante da tela do notebook, volta-se para o
adjunto.
– Pode deixar – diz ele –, eu assisto a isso. Você pode ir agrupando as
informações que já temos.
Ele aponta para a sala ao lado, o que dá no mesmo de ter apontado para
a porta. Sem esperar, senta-se diante da tela e olha para todo mundo. É
como se quisesse icar sozinho para assistir a um ilme pornô.
Louis adota o comportamento de quem acha aquilo tudo perfeitamente
lógico. Seu ligeiro lado mordomo.
– Vamos – diz ele empurrando os outros –, vamos nos acomodar ali.
A ilmagem que interessa Camille é a da câmera situada sobre a entrada
da joalheria.
Vinte minutos mais tarde, enquanto Louis assiste a ela, compara as
imagens com os primeiros depoimentos e monta as primeiras hipóteses,
Camille vai até a alameda central e se posiciona mais ou menos no mesmo
local onde o atirador se encontrava.
As coletas de evidências terminaram, os peritos se foram, os estilhaços
de vidro foram recolhidos, o perímetro do assalto é isolado com ita
adesiva, eles estão aguardando os inspetores de estruturas e as
seguradoras, após isso, vão levantar acampamento, contratar empresas
para cuidar dos estragos e em dois meses tudo estará de volta ao lugar, um
assaltante lunático poderá voltar a assaltar os clientes no horário de
abertura.
O local está sendo vigiado por um guarda municipal, um alto magro de
olhar cansado, maxilas inferiores proeminentes, bolsas sob os olhos.
Camille logo o reconhece, já cruzou com ele cem vezes em cenas de crime,
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16h
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18h
Apesar do seu nervosismo, Camille não pode tamborilar os dedos no
volante. No seu carro, todos os comandos são centralizados; ele não tem
outra alternativa, a não ser os pés que balançam a vários centímetros do
chão e os braços curtos demais. E, no seu carro, equipado para de icientes,
é preciso tomar cuidado com onde se põem os dedos; um gesto
intempestivo, e você vai parar fora da pista. Para piorar, entre os defeitos
de Camille, está o de não ser muito hábil com as mãos. Exceto para
desenhar, ele é bem desajeitado.
Ele estaciona, atravessa o estacionamento do hospital repetindo suas
frases destinadas ao médico, o tipo de frase lapidada que você passa uns
quinze minutos polindo e acaba esquecendo quando a ocasião se
apresenta. Pela manhã, a recepção estava abarrotada, ele subiu direto para
o quarto de Anne. Desta vez, ele para no caminho, o balcão ica na altura
dos seus olhos (um metro e cinco, segundo Camille, que, sobre esse
assunto, raramente se engana em mais de um centímetro ou dois). Ele dá a
volta e empurra com autoridade a pequena portinhola ao lado, sobre a
qual se encontra a plaqueta “Proibido entrar”.
– Ei! – grita a mulher. – O senhor não sabe ler?
Camille mostra a carteira da polícia.
– A senhora sabe?
A mulher começa a rir, o polegar para cima.
– Essa é boa!
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Ela realmente acha graça. É negra, magra, de olhos bem vivos, peito
achatado, ombros ossudos, por volta dos quarenta anos. Antilhana. Seu
crachá indica “Ophélia”. Ela usa uma camisa com babados de uma feiura
espantosa, óculos brancos enormes, hollywoodianos, em forma de
borboleta, e exala um odor forte de tabaco. Estende a palma da mão aberta
em direção a Camille, pedindo-lhe que aguarde. Ela atende uma ligação,
encerra a conversa, desliga o telefone, volta-se para ele em seguida e o
observa admirada.
– Como o senhor é baixinho! Digo, para um policial... Não há altura
mínima para entrar na polícia?
Camille não está com ânimo para aquilo, mas a mulher o faz sorrir.
– Consegui uma autorização especial – diz Camille.
– Você tinha era alguém lá dentro, isso sim!
Em cinco minutos, o gracejo vai abrir espaço para uma conversa
amigável. Policial ou não, eles vão acabar trocando tapinhas no ombro.
Camille corta logo aquilo e pede para falar com o médico que está
cuidando de Anne Forestier.
– Nesse horário, o senhor tem que procurar o médico-residente
responsável pelo andar.
Camille faz um gesto de que entendeu e se dirige ao elevador. Mas volta
atrás.
– Ela recebeu alguma ligação?
– Não que eu saiba...
– Tem certeza?
– Con ie em mim. Nesse setor, os pacientes raramente se encontram em
condições de atender ligações.
Camille se vai.
– Ei, ei, ei!
De longe, ela balança uma folha de papel amarelo, como se abanasse
alguém mais alto que ela. Camille volta. Ela lança sobre ele um olhar
fumegante.
– Um bilhetinho de amor para você... – murmura ela.
É um formulário administrativo. Camille o en ia no bolso e sobe para o
andar de cima, pergunta pelo médico, terá que aguardar.
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18h15
Anne está adormecida. A bandagem em torno da cabeça tem manchas
amareladas e sujas por causa dos produtos cauterizantes. Isso dá ao seu
rosto uma cor branca leitosa, as pálpebras fechadas parecem inchadas com
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18h45
No quarto de Anne, Camille não acende a luz, ele permanece sentado na
cadeira sob a penumbra (nos hospitais, as cadeiras são bem altas),
tentando colocar as ideias no lugar. Tudo está acontecendo terrivelmente
rápido.
Anne ronca. Ela sempre roncou um pouco, dependendo da posição em
que dorme. Quando se dá conta disso, ela se sente envergonhada. Hoje,
todo o seu rosto está coberto por hematomas, mas, em tempos comuns,
quando ela ica corada, parece ainda mais linda, sua pele se torna quase
ruiva, com pintinhas bem claras que só se manifestam quando ela está com
vergonha e em algumas outras circunstâncias.
Camille lhe diz com frequência:
– Você não ronca, você respira alto, é totalmente diferente.
Ela ica vermelha e enrola os cabelos na ponta dos dedos para disfarçar
o embaraço.
– No dia em que você encarar meus defeitos como defeitos – diz ela
sorrindo –, tudo terá terminado.
É habitual da parte dela icar fazendo menção à separação dos dois. Ela
fala sem distinção dos momentos em que eles estão juntos e dos em que
não estarão mais, como se a diferença entre ambos fosse mínima. Camille
se sente tranquilo com esse jeito de abordar as coisas. Instinto de viúvo, de
depressivo. Ele não sabe se ainda é depressivo, mas continua sendo viúvo.
Desde Anne, as coisas têm estado menos claras, menos evidentes. Eles
seguem juntos por um luxo temporal deconhecido, descontínuo, incerto,
que se reinicia constantemente.
– Camille, sinto muito...
Anne acabou de abrir os olhos. Ela articula cada palavra com esforço.
Apesar das consoantes labiais pesadas, das dentais sibilantes, da mão na
frente da boca, Camille compreende tudo, de imediato.
– Sinto muito pelo que, meu amor? – pergunta ele.
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Ela aponta com a cabeça para seu corpo deitado, o quarto, e seu gesto
abrange Camille, o quarto do hospital, a vida de ambos, o mundo.
– Isso tudo...
Seu olhar perdido dá a ela esse semblante de sobrevivente que se vê nas
vítimas de atentado. Ele segura sua mão, os dedos tocam nas talas. Você
precisa descansar, nada vai acontecer, estou aqui. Como se isso izesse
alguma diferença. Embora ele esteja sendo bombardeado por sentimentos
pessoais, os instintos pro issionais voltam à tona. E a pergunta que o açoita
ainda é sobre a tenacidade com que o assassino da galeria Monier quis
matá-la. A ponto de tentar quatro vezes. Claro que havia a tensão do
assalto, o andamento automático das coisas, mas, ainda assim...
– Lá, na joalheria, você viu ou ouviu algo a mais? – pergunta Camille.
Ela não está certa de ter entendido bem a pergunta. Ela articula:
– Algo a mais... o quê?
Não, nada. Ele tenta sorrir, não é muito convincente, põe a mão sobre o
braço dela. Deve deixá-la dormir agora. Mas é preciso que ela fale com ele o
mais rápido possível. Que ela conte tudo, em detalhes, talvez haja algo que
lhe escapa. Saber o que é, tudo se resume a isso.
– Camille...
Ele se curva.
– Sinto muito...
– Mas... – responde ele com brandura. – Pare com essa conversa!
Enfaixada com todas essas bandagens, os inchaços que escurecem seu
rosto, sua boca distendida, sob a penumbra do quarto, a aparência de Anne
é hedionda. Camille pode ver a ação do tempo sobre seu corpo. Os
hematomas, terrivelmente inchados, passam insensivelmente do preto
para azulado, com nuances de roxo, de amarelo. Camille tem de deixá-la,
ele queira ou não. São as lágrimas de Anne o que mais lhe causam dor. Elas
escorrem como se saíssem de uma fonte. Até mesmo enquanto ela dorme.
Ele se levanta. Desta vez está decidido a partir.
Ali, de todo modo, não pode fazer nada. Fecha a porta do quarto com
precaução, como se fechasse a porta do quarto de uma criança.
18h50
A mulher da recepção normalmente está cheia de trabalho. Quando o
ritmo está um pouco mais calmo, ela dá uma saída para fumar. Isso é
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vê um crânio. Acho que essa imagem não cai muito bem para um
estabelecimento como esse.
O importante não está aí. Se minhas deduções estiverem corretas, devo
ser capaz de subir ao quarto 224 pela escada; uma vez no mesmo andar, o
quarto se encontra a menos de dez metros. Para sair, vou ter que optar por
um trajeto mais complexo, é preciso embaralhar as pistas, subir um andar,
atravessar o corredor, subir de novo, depois dos quartos da neurocirurgia,
três portas duplas seguidas, dá para chegar à recepção pelo elevador
oposto, a vinte passos da saída de emergência e, em seguida, um longo
trajeto do estacionamento até o carro. Após o estrago causado, as pessoas
vão precisar ter um bom faro para encontrar você...
Resta ainda a possibilidade de ela ser transferida. Nesse caso, é melhor
esperar aqui. Conheço o nome da paciente, o mais seguro agora é buscar
saber novidades.
Procuro e, em seguida, disco o número do hospital.
Aperte 1, aperte 2, que pé no saco! Com a Mossberg, as coisas são muito
mais rápidas.
19h30
Como não pôs os pés no escritório o dia inteiro, Camille chama Louis
para atualizá-lo sobre o andamento dos demais casos. Nesse momento,
eles estão com um travesti estrangulado, um turista alemão que
provavelmente se suicidou, um motorista esfaqueado por outro motorista
durante uma briga de trânsito, um morador de rua que sangrou até a
morte no porão de uma academia, o corpo de um jovem viciado recolhido
de um esgoto do décimo terceiro distrito e um crime passional, o culpado
acabou de confessar, ele tem setenta e um anos. Camille ouve, passa as
instruções, aprova medidas, mas não está realmente ali. Louis, felizmente,
continua a se ocupar do cotidiano.
Quando Louis termina, Camille não retém quase nada do que ouviu.
Se izer um resumo do geral, só uma constatação se impõe: quanta
desgraça!
Com o recuo que tomou agora, ele examina melhor a situação. Percebe
que meteu o dedo num mecanismo di ícil de manipular. Enganou a
comissária divisional alegando um informante que não tem, mentiu ao seu
superior, passou um nome falso para a delegacia com o intuito de se
encarregar de um caso ao qual está ligado pessoalmente...
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jeito nas coisas sem maiores problemas. Uma mentirinha a mais, para Le
Guen, não é nada, ele é auditor-geral, mas, se as coisas saírem de sua
alçada, não haverá mais nada a fazer. Se Camille lhe explicar tudo, ele
trocará duas ou três palavrinhas com a comissária Michard, que icará feliz
em adquirir crédito com seu chefe, crédito esse de que ela certamente virá
a precisar um dia, ela vai até considerar isso como um tipo de
investimento. É necessário que tudo seja resolvido antes que o juiz Pereira
comece a fazer perguntas.
Camille usará como argumento a tentação, a raiva, o ofuscamento
emocional, o delírio, ninguém teria muita di iculdade em enxergar nele
todas essas características.
Ele se sente aliviado com sua decisão.
Vai abandonar logo o caso.
Que algum outro se ocupe de encontrar esses ladrões, ele tem colegas
muito competentes. Que ele possa dedicar seu tempo a ajudar Anne, a
cuidar dela, é disso que ela vai ter mais necessidade.
E, também, o que ele poderia fazer melhor que os outros?
– Com licença...
Camille se aproxima da recepcionista.
– Duas coisas – diz ela. – O formulário administrativo de internação dos
pacientes, o senhor en iou no bolso. Sei que está pouco se lixando, mas
aqui a administração é severa, se o senhor entende o que quero dizer.
Camille tira o formulário do bolso. Na ausência do seu número do seguro
social, o cadastramento de Anne não foi feito. A mulher aponta com o dedo
um cartaz desbotado cujas extremidades, coladas ao vidro com ita
adesiva, começaram a se rasgar, e ela recita o slogan:
– “No hospital, a identi icação é a chave do contrato social”. Eles até nos
obrigam a fazer cursos sobre o assunto, pra você ver a importância da
coisa. Dizem que chegam a perder milhões com isso.
Camille faz um gesto de que entende, ele vai precisar ir até a casa de
Anne. Ele faz que sim com a cabeça, como essas coisas enchem o saco...
– Outra coisa... – continua a recepcionista. Ela esboça uma expressão
convidativa, um ar de mocinha charmosa, que fracassa totalmente. – Em
relação a multas – pergunta ela –, será que o senhor poderia quebrar um
galho pra mim ou isso seria pedir demais?
Maldito trabalho que ele foi escolher.
Camille, exausto, estende a mão, resignado. A mulher não demora nem
três segundos e abre sua gaveta. Há pelo menos quarenta multas de
estacionamento lá dentro. Ela sorri, como se mostrasse um troféu. Todos
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19h45
Enquanto empurra a porta de vidro que dá para o estacionamento,
Camille lembra-se da ligação da delegacia e subitamente toma consciência
que o acaso acabou de designá-lo como a pessoa mais próxima de Anne.
Evidentemente, isso não é verdade, mas foi ele que decidiu avisar, ele que
está encarregado de informar os outros.
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Que outros?, ele se pergunta. Por mais que vasculhe em toda a sua
memória, ele não conhece “os outros” na vida de Anne. Cruzou com alguns
dos seus colegas, consegue se lembrar sobretudo de uma mulher de uns
quarenta anos, de cabelos pouco volumosos, olhos grandes e cansados,
caminhando com passos cadenciados, como se trepidasse. “Uma colega...”,
disse Anne. Camille tenta se recordar do sobrenome. Charras, Charron...
Charroi, é esse o nome. Eles atravessavam o bulevar, ela usava um casaco
azul, elas trocaram um breve gesto de cumplicidade, um sorriso; Camille a
achou enternecedora. Anne virou a cabeça para ele. “A maior mala...”,
sussurrou ela sorrindo.
Sempre ligava para o celular de Anne. Antes de deixar o hospital, porém,
ele procura o telefone ixo do trabalho. Já são dez da noite, mas vai saber.
Uma voz de mulher atende:
– Wertig & Schwindel, bom dia. Nossos escritórios...
Camille sente uma brusca descarga de adrenalina. Na hora, pensou que
fosse a voz de Anne. Fica abalado por ter vivido a mesma circunstância
com Irene. Um mês após sua morte, ele ligou por engano para o próprio
número e deparou com a voz de Irene: “Olá, esta é a caixa postal de Camille
e Irene Verhoeven. Não estamos em casa para...”. Totalmente estarrecido,
irrompe em lágrimas.
Vai deixar uma mensagem. Ele balbucia: estou ligando a respeito de
Anne Forestier, ela está hospitalizada e não poderá... (o quê?) voltar ao
trabalho... agora, um acidente, não muito grave, bem, na verdade, sim
(como dizer?), ela ligará em breve... se conseguir. Uma mensagem
desconexa, confusa. Ele desliga.
O ódio de si mesmo lhe sobe como uma maré de ressaca.
Ele se vira, a recepcionista olha para ele com ar zombeteiro.
20h
Eis aqui o segundo andar.
À direita, a escada. Todo mundo prefere ir de elevador, nunca se vê
ninguém nas escadas. Principalmente nos hospitais, as pessoas preferem
se poupar.
A Mossberg é equipada com um cano de quarenta e cinco centímetros e
pouco. Com um cabo de pistola, ela cabe sem di iculdade dentro de um
grande bolso interior da minha jaqueta impermeável. Isso me obriga a
andar meio ereto, como um robô, com o corpo endurecido, pois é preciso
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Ora, para carregar a arma, é preciso pôr as duas mãos à frente do corpo.
E uma arma como essa faz um barulho bem particular, um estalido
metálico. No corredor de um hospital, isso ecoa de forma preocupante.
– Os elevadores icam ali...
Diante do estalido da arma, a voz se interrompe abruptamente, dando
lugar a um silêncio apreensivo. Uma voz jovem, irme, mas perturbada,
como se tivesse sido atingida em pleno voo.
– Senhor!
Agora que a espingarda está pronta para ser usada, basta ir com calma,
não oscilar. O importante é se manter de costas. A jaqueta permite notar a
protuberância rígida da espingarda, como se eu tivesse uma perna de
madeira. Dou três passos, a jaqueta mal se abre, uma fração de segundo
que deixa à mostra a ponta do cano da Mossberg, ligeiramente, como um
feixe de luz ou um raio de sol re letido sobre um caco de vidro. Quase nada,
indiscernível, e, se você só viu armas no cinema, é muito di ícil fazer a
conexão com o que acabou de passar pelos seus olhos. Porém, ela sabe que
viu alguma coisa, ica na dúvida em a irmar que sim, poderia ser isso, não,
impossível, mas, pensando bem...
Enquanto a enfermeira tenta chegar a uma conclusão...
O senhor aqui já deu meia-volta, passou por ela de cabeça baixa, disse
que se enganou, fechou de novo a jaqueta, partiu em direção às escadas...
Ao invés de descer, subiu. Ah, não, ele não estava fugindo, senão teria
descido. E aquela postura... É estranho. Di ícil ter certeza. O que era aquilo?
Na hora eu diria que é uma espingarda. Mas aqui? No hospital? Não. Ela
não pode acreditar.
Isso me dá tempo su iciente para correr para as escadas...
– Senhor... senhor?
20h10
Hora de partir. Policial em horário de trabalho, Camille não pode se
comportar como um adolescente apaixonado. Como imaginar o
investigador passando a noite junto à cabeceira da vítima? Ele já fez
besteira demais para um só dia.
Justamente nesse momento, seu celular vibra: comissária divisional
Michard. Ele en ia o aparelho de volta no fundo do bolso, vira-se para a
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recepcionista, levanta a mão para se despedir. Ela lhe responde com uma
piscadinha de olho e um gesto com o indicador, convidando-o, venha aqui
um pouquinho. Camille hesita, inge não entender, mas mesmo assim se
aproxima, é o efeito do cansaço, já não oferece muita resistência. Depois
das multas, o que será que ela vai inventar?
– E aí, você está indo embora? Vocês não devem ir cedo para a cama na
polícia, né?
Deve haver ali algo subentendido, porque ela sorri com todos os seus
dentes desiguais. Não deve perder tempo para ouvir isso. Ele solta um
suspiro profundo, dá um sorriso amarelo, precisa dormir. Já deu três
passos quando:
– Recebemos uma ligação, acho que o senhor icaria contente em saber...
– Quando?
– Agora há pouco... Por volta das sete horas.
E, antes que Camille perguntasse:
– O irmão dela.
Nathan. Camille nunca o vira; ouvira sua voz várias vezes na caixa postal
de Anne, uma voz febril, apressada e jovem; eles têm mais de quinze anos
de diferença. Anne já cuidou muito dele, tem muito orgulho do irmão. Ele é
pesquisador num domínio impenetrável, fotônica, nanociências, algo
assim, o tipo de área de que Camille não entende sequer o título. “E, para
um irmão, ele não é muito afetuoso. Ao ouvi-lo, não acho nem um pouco
ruim ser ilha única.”
A conclusão explode no cérebro de Camille: como será que ele soube que
ela está hospitalizada?
Ele desperta de imediato, precipita-se para a porta dupla, empurra-a,
passa para o outro lado do balcão da recepção, a recepcionista não precisa
que ele lhe faça a pergunta para responder.
– Uma voz de homem e... – Ophélia revira os olhos – bem direto!
Forestier... Oras, Forestier! Como você acha que se soletra? Com dois f? –
ela imita em um tom arrogante, autoritário. – Ela tem o que exatamente? E
os médicos, o que eles dizem? – A imitação se torna caricatural. – Como
assim, ninguém sabe? – um tom de voz indignado, quase escandalizado...
– Ele tinha algum sotaque?
A recepcionista faz que não com a cabeça. Camille corre o olhar pelo
local. Está para concluir algo, sabe bem disso, espera que as sinapses se
realizem, o que se dará em questão de segundos...
– Tinha uma voz jovem?
Ela franze as sobrancelhas.
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– Não era jovem, jovem... Uns quarenta anos, eu diria. Para mim, parec...
Camille não ouve o restante. Põe-se imediatamente a correr, trombando
com todos no caminho.
Chega à escada, empurra com tudo a porta do patamar, que bate com
violência atrás dele. Agora já está escalando os degraus tão rápido quanto
permite o tamanho de suas pernas.
20h15
Pelo barulho dos passos, o homem subiu um andar, pensa consigo a
enfermeira. Vinte e dois anos, a cabeça quase raspada e um piercing em
formato de argola no lábio inferior, um ar provocativo, mas, por dentro,
tudo é diferente; sensível, chega até a ser uma pessoa prudente demais e
muito simpática, di ícil acreditar. Em seguida, ela ouve a porta bater, mal
tem tempo de pensar, icar na dúvida; aquele homem pode estar em
qualquer lugar agora, no corredor, no andar superior, pode descer de volta
ou, pelo contrário, atravessar o hospital pelo setor de neurocirurgia e daí
para localizá-lo...
O que fazer? Primeiro, seria preciso ter certeza, não se pode disparar um
alarme por nada, quer dizer, quando não se tem certeza... Ela volta para o
escritório das enfermeiras. Não, não é possível, ninguém vai a um hospital
com uma espingarda. O que podia ser aquilo? Uma prótese? Alguns
visitantes vêm aqui com buquês de gladíolos longos como braços, estamos
na estação dos gladíolos? Ele se enganou de quarto, pelo que disse.
Ela permanece um pouco descon iada. Na escola de enfermagem, cursou
uma disciplina sobre agressão feminina, sabe que os maridos são
agressivos, bem capazes de seguir a esposa até um hospital. Ela volta pelo
mesmo caminho e olha de relance para o quarto 224. Essa paciente só
chora, o tempo todo, toda vez que alguém entra no seu quarto, ela está
chorando, não para de passar os dedos pelo rosto, deslizá-lo pelos lábios,
fala escondendo a boca com o dorso da mão. Duas vezes foi pega na frente
do espelho do banheiro, embora nem consiga se manter direito sobre as
pernas.
Mas, de todo modo, pensa ela consigo, deixando o quarto (uma vez que
isso continua a deixá-la inquieta), o que aquele homem podia ter debaixo
da jaqueta impermeável, que parecia um cabo de vassoura e, durante o
breve instante em que a jaqueta icou entreaberta... parecia de inox, de
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metal? O que pode ser parecido com um cano de espingarda? Ela pensa
numa muleta.
Está ali imersa em suas re lexões quando, do outro lado do corredor,
surge o policial, o baixote, que está por lá desde o começo da tarde – não
tem nem um metro e sessenta, careca, um belo rosto, mas severo, não sorri
–, ele corre como um louco, quase tromba com ela, abre a porta do quarto
sem parar, como se fosse se atirar em cima da cama, ele grita:
– Anne, Anne...!
Vai entender... Ele é policial, mas, vendo assim, parece o marido dela.
Já a paciente ica toda agitada. Ela vira a cabeça para todo lado e, diante
do bombardeio de perguntas, levanta uma mão: pare de gritar. O policial
repete:
– Está tudo bem? Está tudo bem?
Sou obrigada a pedir a ele que se acalme. A paciente deixa o braço cair
de volta sobre o lençol e olha para mim. Está tudo bem...
– Você viu alguém? – pergunta o policial. – Alguém entrou? Você viu?
Sua voz está séria, angustiada. Ele se vira para mim.
– Alguém entrou?
Digo sim, bem, na verdade, não...
– Alguém se enganou de andar, um homem, ele abriu a porta...
Ele não espera a resposta, vira-se de novo para a paciente, olha
intensamente para os seus olhos, ela balança a cabeça, parece perder o io
do raciocínio. Não diz nada, faz apenas não com a cabeça. Não viu ninguém.
Agora, ela se deixa deslizar pela cama, puxa os lençóis até o queixo, chora.
Claro, o policialzinho a assusta com suas perguntas. Ele está agitado como
uma pulga. Busco intervir.
– Senhor, o senhor está num hospital!
Ele faz um sinal de concordância, mas nota-se bem que ele está
pensando em outra coisa.
– E o horário de visita já terminou.
Ele volta a si:
– Ele saiu por onde?
E, como não respondo com muita rapidez:
– O cara que se enganou de quarto, por onde ele saiu?
Veri ico o pulso da paciente. Digo:
– Pela escada, ali...
Até parece que vou dar a mínima para isso agora; o que me interessa é a
paciente. Maridos ciumentos não são problema meu.
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Nem terminei minha frase e ele dispara como um coelho. Posso ouvi-lo
pelo corredor, precipitando-se pela porta, tomando as escadas; posso ouvi-
lo, impossível saber se está subindo ou descendo.
E essa história de espingarda, eu estava sonhando ou o quê?
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Camille sente que foi deixado para trás, mas, ainda assim, aperta o passo.
Dessa vez, ele optou pelo elevador, pode recuperar o fôlego enquanto
sobe. Se não tivesse ninguém dentro, ele poderia bater com o punho nos
anteparos. Mas tudo o que faz é respirar profundamente.
Ao despontar no hall da recepção, ele con irma sua hipótese. A sala de
espera está cheia, pacientes, funcionários, paramédicos não param de
entrar e sair; à sua direita, um corredor dá para a saída de emergência, o
outro à esquerda leva ao estacionamento.
E essa é só uma das sete ou oito possibilidades de deixar o edi ício sem
ser notado.
Interrogar quem? Colher depoimentos. Das testemunhas? Depoimentos
de quem? O tempo que ele levaria para convocar uma equipe ao local daria
para dois terços dos pacientes serem substituídos por novos.
Ele tem vontade de bater com a cabeça na parede.
Ainda assim, vai para o andar de cima, empurra a porta da sala das
enfermeiras. A garota de lábios carnudos, Florence, está concentrada num
prontuário médico. Sua colega? Não, ela não sabe, diz sem levantar os
olhos. Mas, diante da insistência de Camille:
– Nós estamos com muito trabalho – diz ela.
– Mais um motivo, não deve estar muito longe...
Ela ia responder, mas ele já não está mais lá. Dá uns cem passos pelo
corredor, en ia a cabeça dentro toda vez que alguma porta de quarto se
abre; se for preciso, ele vai entrar nos sanitários femininos. No estado em
que se encontra, nada irá detê-lo, mas isso não é necessário, a garota
aparece.
Ela expõe um ar contrariado, passa a mão no couro cabeludo raspado,
Camille o desenha em pensamento, esse corte, uniforme, dá ao seu rosto
um aspecto bem frágil, ela parece intimidada, mas isso é ilusório, na
verdade, ela é uma pessoa pragmática. Sua primeira resposta con irma
isso. Ela fala enquanto anda, Camille é obrigado a correr ao seu lado:
– O homem se enganou de quarto, ele pediu desculpas...
– Você ouviu a voz dele?
– Na verdade, não, apenas o ouvi pedir desculpas...
Mas icar correndo assim, ao lado de uma garota por um corredor de
hospital para obter informações absolutamente necessárias para salvar a
vida da mulher que ama, ver-se nessa situação, faz Camille explodir. Ele
segura o braço da garota, ela é obrigada a parar e olhar para baixo; ela é
tocada pelo impacto da determinação que os olhos de Camille transmitem,
intensi icada por sua voz calma, sombria e tempestuosa:
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21h30
– Já está vindo...
O encarregado da segurança não gosta nada dessa história. Para
começar, já é tarde, ele teve de trocar de roupa mais uma vez. E ainda por
cima em plena noite de jogo na tevê. Trata-se de um antigo guarda
municipal, bastante inquieto, barrigudo, sem pescoço, pele avermelhada,
com uma dieta baseada em carne bovina charolais. E, para completar, para
visualizar as ilmagens das câmeras, é preciso uma autorização. Assinada
pelo juiz. Como manda a lei.
– Pelo telefone, o senhor me disse que tinha a autorização...
– Não – diz Camille com irmeza. – Eu disse que ia obtê-la.
– Não foi o que eu entendi.
Do tipo teimoso. Geralmente, Camille negocia, mas dessa vez ele não tem
vontade nem tempo de icar de conversa iada.
– E o que o senhor entendeu? – pergunta ele.
– Ora, que o senhor tinha um comis...
– Não – corta Camille –, não se trata de comissão rogatória, se trata de
um cara que entrou no seu hospital, com uma espingarda de caça, o que o
senhor acha que entendeu mesmo? Que ele subiu até o segundo andar com
o objetivo de trucidar um de seus pacientes? E que, se ele tivesse
encontrado gente pelo caminho, teria provavelmente atirado em todo
mundo? E que, se ele voltar e izer um massacre, sua cabeça vai ser a
primeira a rolar e você vai parar no olho da rua?
De qualquer modo, aquelas são as câmeras que cobrem a entrada do
setor de emergências; há poucas chances de o homem, se é que ele existe,
ter passado por ali, ele não seria idiota. Se é que ele existe.
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E, no intervalo de tempo em que ele poderia ter passado por ali, nada de
particular nas ilmagens. Camille veri ica novamente. O encarregado da
segurança pula de um pé para o outro e suspira com força para manifestar
sua exasperação. Camille se inclina sobre a tela, o luxo das ambulâncias,
veículos do Samu e do público geral, pessoas que entram e saem, feridas,
não feridas, andando ou correndo. Nada de relevante que possa ajudar
Camille.
Ele levanta a cabeça e se vai. Volta atrás, aperta o botão, ejeta o DVD e se
vai.
– O senhor acha que eu sou um idiota? – esguela-se o encarregado. – E o
mandato?
Camille diz com um gesto: veremos isso depois.
Ele já está de volta ao estacionamento. Se fosse eu, pensa consigo,
observando os arredores, viria pelas laterais do prédio. Pela saída de
emergência. Ele se debruça sobre a porta para vê-la mais de perto. É
obrigado a tirar os óculos. Nenhum rastro de arrombamento.
– Quando a senhora vai fumar lá fora, quem ica no seu lugar?
A resposta para a pergunta é óbvia. Camille está de volta à recepção, ele
foi até o fundo do hall e à sua esquerda ele encontrou, como por acaso, o
corredor que leva para a saída de emergência.
Ophélia sorri com todos os seus dentes amarelos.
– A gente não tem nem substituto para a licença-maternidade, até parece
que alguém vai nos dar um para as pausas-câncer!
Será que ele veio? Ou não veio?
Ao entrar no carro, ouve suas mensagens.
– É a Michard! – Tom cortante. – Me ligue. Não importa a hora, não tenho
horário. Me diga onde o senhor está. E, amanhã bem cedo, terei a inal o seu
relatório, não é?
Camille sente-se sozinho. Terrivelmente sozinho.
23h
A noite nos hospitais é algo à parte. Até mesmo o silêncio parece se
manter em suspenso. Aqui, no setor de emergências, as macas não param
de abrir caminho pelos corredores, ouvem-se gritos, por vezes distantes,
irrupções de vozes, passos precipitados, campainhas.
Anne consegue adormecer, mas seu sono é inquieto, repleto de
pancadas, de sangue, ela sente o chão de cimento da galeria Monier
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debaixo da mão, sente a chuva de vidro desabar sobre seu corpo com uma
exatidão hiper-realista, revê sua queda contra a vitrine e o barulho dos
tiros pelas costas; começa a arquejar, a enfermeirazinha com o piercing no
lábio hesita em acordá-la. Nem é preciso se dar ao trabalho, ao im do
ilme, Anne sempre acorda com sobressaltos, volta a si aos gritos. Diante
dela, a imagem do homem descendo o capuz sobre o rosto, seguida da
coronha da espingarda ocupando todo o seu campo de visão, prestes a
atingir em cheio seu osso malar.
Adormecida, Anne toca o rosto com a ponta dos dedos, topa com os
pontos, em seguida os lábios, ela procura os dentes, topa com a gengiva,
pedaços de dentes quebrados que se sobressaem, como cotocos.
Ele queria matá-la.
Ele vai voltar. Ele quer matá-la.
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DIA 2
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6h
Não dormiu nada essa noite. Quando se trata do emocional de Camille,
Doudouche tem antenas.
Ontem à noite, Camille teve de passar de novo pela Brigada para dar
cabo de tudo o que não tivera tempo de fazer durante o dia, voltou para
casa exausto, deitou-se direto no sofá. Doudouche se pôs a seu lado, eles
não se mexeram mais pelo resto da noite. Ele não a alimentou, acabou
esquecendo, ela não reclama, compreende que ele está preocupado. Fica
ronronando. Camille conhece de cor as mais inas nuances desse seu
ronronar.
Pouco tempo atrás, noites como essa, em claro, tensas, nervosas ou
melancólicas, eram noites por Irene. Com ela. Ele revirava em sua memória
a vida passada que tiveram, imagens dolorosas. Não havia assunto que
tivesse maior importância para ele que a morte de Irene. Não havia outro
assunto.
Camille se pergunta o que hoje lhe causa mais dor, a inquietude que
sente por Anne, a imagem do rosto dela, o seu sofrimento, ou justamente
essa imperceptível convergência de todos os seus pensamentos em sua
direção, ao passar dos dias, das semanas. Há certa vulgaridade no ato de
passar assim de uma mulher para a outra, ele se sente num lugar
incomum. Nunca pensara na ideia de reconstruir sua vida, mas a vida está
se reconstruindo sozinha, quase a despeito da própria vontade. Porém, o
que mais persiste, talvez de maneira de initiva, são as imagens de Irene,
dilacerantes. Elas resistem a tudo, ao tempo, aos novos relacionamentos.
Bem... ao novo relacionamento, pois ele não teve nenhum outro.
No caso de Anne, ele a aceitou porque ela não é, diz ela, mais que uma
passageira. Também tem os próprios lutos, não deseja fazer planos para o
futuro. Só que, mesmo sem planos, hoje ela se encontra instalada na sua
vida. E, dentro da eterna divisão entre aquele que ama e aquele que é
amado, Camille não sabe que lugar está ocupando.
Eles se conheceram na primavera. Começo de março. Havia quatro anos
que ele perdera Irene, dois anos que havia emergido para a vida, sem
muita vivacidade, mas vivo. Levava a existência sem risco e sem desejo dos
homens destinados à solidão. Um homem do seu tamanho não encontra
mulheres assim tão facilmente, pouco importa, isso não lhe fazia mais falta.
Os momentos em que se conhece alguém sempre têm algo de milagroso.
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organização, as contas, todas essas coisas que Camille não faz ideia do que
são. Ela nunca passa mais de dois dias em Paris por semana. Essas
partidas, essas ausências, esses retornos davam aos encontros dos dois
uma aparência caótica, imprevisível, a impressão de estarem sempre se
encontrando por acaso. Já nessa época eles não sabiam como de inir o que
tinham, deixavam acontecer, saíam, jantavam, dormiam, e aquilo ia
crescendo e crescendo.
Camille tenta lembrar em que momento teve consciência do lugar que
essa história estava ocupando em sua vida. Nenhuma recordação.
A chegada de Anne ofereceu um distanciamento para a morte de Irene,
essa página incandescente de sua vida. Ele se pergunta se o novo ser capaz
de viver sem Irene en im surgiu nele. Sabe que esquecer é inevitável. Mas
esquecer não é se curar.
Hoje ele se sente apreensivo pelo que está acontecendo com Anne.
Sente-se responsável não pela circunstância, não pode fazer nada quanto a
isso, mas pelo seu desdobramento, que depende dele, da sua vontade, da
sua determinação, da sua competência, isso é algo sufocante.
Doudouche cessou de ronronar para dormir totalmente. Camille se
levanta, a gata desliza para o lado com um suspiro de descontentamento,
ele vai até a escrivaninha, um “caderno de Irene” está em cima dela, os
outros foram jogados fora numa noite de raiva, de desengano. Um caderno
repleto de imagens dela, Irene sentada a uma mesa, levantando seu copo e
sorrindo, adormecida, pensativa, Irene aqui e ali. Ele o abandona. Esses
quatro anos sem ela talvez tenham sido os mais duros, os mais infelizes da
sua vida, e, apesar de tudo, ele não consegue se impedir de considerá-los
os mais interessantes, os mais vibrantes. Não se distanciou do seu passado.
Foi esse passado que se tornou (ele escolhe as palavras) mais matizado?
Mais discreto? Abafado? Como o resto de uma divisão que ele nunca fez de
fato. Anne não tem nada a ver com Irene, são duas galáxias diferentes,
anos-luz uma da outra, mas ambas convergem para o mesmo ponto. O que
as separa é que Anne está ali enquanto Irene se foi.
Camille lembra que Anne também quase partiu, mas voltou. Foi em
agosto. Tarde da noite. De pé de frente para a janela, nua, pensativa, os
braços cruzados, ela diz: “Acabou, Camille”, sem sequer se virar para ele.
Em seguida, ela se veste sem dizer uma palavra. Nos romances, isso exige
um minuto. Na vida real, uma mulher nua vestindo-se leva um tempo
insano. Camille permanece sentado, não se move, parece um homem
surpreendido por uma tormenta, resignado.
E ela se vai.
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Camille não esboça nem um gesto, ele compreende. Sua partida não
provoca nenhum terremoto, mas um abatimento profundo e uma dor
abafada. Ele lamenta aquela fuga, mas a entende porque a considerava
inevitável. Por causa do tamanho, há nele instintos que fazem com que não
se sinta digno dela. Ele permanece assim por um longo momento, então,
en im se vira, deita-se sobre o sofá, talvez seja meia-noite.
Ele nunca saberá o que se passou naquele instante.
Anne partiu há mais de uma hora, de repente, ele se levanta, vai até a
porta, sem a menor hesitação, impelido por uma certeza inexplicável, abre.
Anne está sentada na escada, sobre o primeiro degrau, de costas para ele,
os joelhos entre os braços.
Após alguns segundos, ela se levanta, passa a seu lado, entra no
apartamento, deita-se na cama totalmente vestida e se vira contra a
parede.
Ela chora. Camille já vivera algo parecido com Irene.
6h45
O prédio, visto de fora, não tem uma aparência tão ruim, mas, assim que
se entra nele, percebe-se a que ponto tem sido abandonado. O painel de
caixas de correio de alumínio prestes a entregar a alma parece dominado
pela degradação. A última caixa traz a etiqueta “Anne Forestier”, sexto
andar, escrita com a mão dela, com sua letra arrebatadora, no canto da
etiqueta o e e o r estão espremidos um contra o outro, para não
transbordarem, icando ilegíveis.
Camille descarta o elevador minúsculo.
Não são nem sete horas quando ele dá três batidas discretas na porta da
frente.
A vizinha abre de imediato, como se esperasse sua chegada, a mão na
maçaneta. Senhora Roman, a proprietária do apartamento. Ela reconhece
Camille na hora. É a vantagem do seu tamanho, ninguém o esquece. Ele lhe
oferece sua mentira:
– Anne teve de sair com pressa... – Ele imita o sorriso benevolente do
namorado lúcido e paciente, em busca de cumplicidade. – Com tanta
rapidez que, pra variar, esqueceu a metade das suas coisas.
O “pra variar”, de teor bastante machista, agrada bastante à vizinha. A
senhora Roman é uma mulher sozinha, perto de se aposentar, com o rosto
redondo e rechonchudo, como uma criança que envelheceu precocemente.
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que, se tudo der certo, ela poderá quem sabe sair um pouco para dar
alguns passos pelo corredor, descer à revistaria no térreo.
Mentalmente, tinha feito uma pequena lista; agora que se encontra ali,
não se lembra mais de nada. Na verdade, sim, do agasalho roxo. A partir
daí, a cadeia associativa começa a se desenrolar: tênis, aqueles que ela usa
para correr, provavelmente estes aqui, mais gastos, ainda tem areia nas
solas. Depois disso, vai icando mais di ícil. O que mais?
Camille abre o pequeno guarda-roupa, não tem tanta coisa assim para
uma mulher. Uma calça jeans, pensa ele, qual? Ele pega uma. Camiseta,
blusa, tudo é tão complicado. Desiste, soca tudo o que encontra numa bolsa
de esporte, roupas de baixo, não escolhe mais.
E os documentos.
Camille avança até a cômoda. Acima dela, um espelho na parede repleto
de manchas. Deve datar da época da construção do prédio, no canto; Anne
inseriu uma foto: Nathan, seu irmão. Ele parece ter vinte e cinco anos, um
rapaz de ísico banal, sorridente e reservado. Talvez por saber duas ou três
coisas dele, nessa fotogra ia, Camille o acha com um semblante lunático,
alheio ao que acontece ao redor. Ele é um cientista. Anne diz que é bastante
desorganizado, chega a contrair muitas dívidas, ela sempre vem em seu
socorro. Como uma mãe. “Aliás, é bem isso que eu sou”, diz ela. Desde
sempre ela veio em seu socorro. Ela ri disso, como se não fosse mais que
uma anedota, mas nota-se bem que é algo que a preocupa. O estúdio onde
ele mora, os estudos, os lazeres, é como se Anne tivesse inanciado tudo; é
di ícil saber se ela se orgulha disso ou se lamenta. Nathan foi fotografado
em uma praça, talvez na Itália, faz sol, as pessoas vestem camisas de manga
curta.
Camille abre a cômoda. A gaveta da direita está vazia. Na da esquerda,
alguns envelopes rasgados, um ou dois tíquetes de roupas, restaurantes, e
principalmente pan letos com o carimbo da sua agência de viagens, mas
nada do que ele procura, nem cartão de convênio médico nem de seguro
social; talvez dentro da bolsa dela. Debaixo dos pan letos, roupas de
esporte. Então ele volta à papelada. Esperava encontrar holerites, extratos
bancários, contas de água, de telefone. Nada. Ele se vira. Seus olhos topam
com a estatueta, a colher em formato de nadadora egípcia, uma jovem
mulher talhada em madeira escura, deitada de bruços, com seu penteado
de laterais triangulares. E um traseiro digno de antologia. Presente de
Camille. Museu do Louvre. Ele e Anne foram ver a exposição sobre Da
Vinci, Camille explicara tudo para ela, ele é inesgotável sobre esse tema,
enciclopédico, e, na butique do museu, eles toparam com essa jovem
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mulher que saiu intacta da décima oitava dinastia egípcia com seu traseiro
de proporções mitológicas.
– Juro pra você, Anne, o seu é exatamente igual.
Ela sorri, uma maneira de dizer eu bem que gostaria, mas é gentil da sua
parte. Já Camille tinha certeza. Ela se perguntava se ele estava sendo
sincero ou não. Ele se inclinou na direção dela, insistente.
– Não tenho a menor dúvida.
Antes que ela pudesse esboçar o menor gesto, ele a comprou. À noite,
procedeu às comparações, como especialista. Anne riu bastante no
começo, em seguida começou a gemer, e a sequência não é di ícil imaginar.
Depois, Anne chorou; ela chora algumas vezes após fazer amor. Camille
acha que isso também faz parte do seu processo de limpeza.
E, justo nesse momento, colada contra a parede, a estatueta parece
sofrer uma punição; um espaço vazio a separa dos s que Anne dispôs
sobre essa estante. Camille lança um olhar panorâmico pela sala. É um
desenhista excepcional, graças ao seu senso de observação; sua conclusão
não tarda.
Alguém esteve no apartamento.
Ele volta à gaveta da direita, os documentos não estão lá porque ela foi
revirada. Camille se curva na direção da porta de entrada, sobre a
fechadura. Nada. Só podem ter sido eles; encontraram o endereço de Anne
e a chave do apartamento na sua bolsa, que foi levada por um dos
assaltantes ao deixar a galeria Monier.
Será esse o mesmo homem que esteve no hospital ou eles são vários e
dividiram as tarefas entre si?
A proporção que ganhou essa caça tem algo de absurdo. A persistência
em perseguir Anne parece desproporcional em relação à circunstância.
Algo nos escapa, repete-se Camille. Algo que não vimos, não entendemos.
Com os documentos pessoais que encontraram aqui, provavelmente já
sabem tudo sobre ela, onde a encontrar, seus eventuais pontos de
passagem, Lion, Paris, a empresa onde ela trabalha, de onde ela vem, onde
pode se refugiar; eles sabem de tudo.
Segui-la e encontrá-la se tornou uma brincadeira de criança.
Matá-la, um exercício de estilo.
Se Anne colocar um pé para fora do hospital, está morta.
Ele não pode falar dessa visita para a comissária. A não ser que confesse
ter uma relação íntima com Anne e ter mentido desde o começo. Ontem,
isso não era mais que um receio. Hoje, nada menos que uma suspeita.
Diante dos superiores, tal conduta será indesculpável. Podem até mandar
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7h20
– Não, não é um mau horário.
Se alguém que trabalha com você lhe responde coisa semelhante ao
telefone às sete horas da manhã, não lhe faça nenhuma pergunta, vai
correr um grande perigo. Principalmente se essa pessoa for comissária
divisional.
Camille começa a contar o que está acontecendo.
– E o seu relatório...? – corta a comissária.
– Em andamento.
– E...?
Camille começa do princípio, ele escolhe as palavras, tenta se mostrar
pro issional. A testemunha está hospitalizada e, segundo todas as
probabilidades, o assaltante foi ao hospital, subiu ao seu quarto e tentou
matá-la.
– Um momento, comandante, não estou entendendo. – Ela articula
exageradamente cada palavra, como se sua inteligência se chocasse com
uma parede intransponível. – Essa testemunha, a senhora Foresti, ela...
– Forestier.
– Como quiser. Ela disse que não viu ninguém entrar no quarto, é isso? –
Ela não lhe dá tempo de responder, não se trata de perguntas. – Por sua
vez, a enfermeira alega que viu alguém, mas, na verdade, ela não tem
certeza, é isso? Em primeiro lugar, quem é esse “alguém”? E, mesmo que
for o assaltante, ele esteve por lá ou não esteve, a inal de contas?
Não há do que se queixar. Le Guen, no lugar dela, teria a mesma reação.
Desde que Camille solicitou se encarregar desse caso, tudo parece girar no
sentido contrário.
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8h
Os turcos não sabem o que perderam. Dois sacos bem grandes cheinhos
de joias. Mesmo com o que o receptor vai descontar na venda, mesmo que
eles pesassem duas vezes menos, pouco importa. Tudo está no rumo certo.
E, se eu tiver um pouco de sorte, espero conseguir mais um bom lote.
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SAINT-OUEN
Dois mortos em incêndio misterioso
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Fim de papo.
“Os investigadores esperam poder de inir...” Faz-me rir! Posso apostar o
que quiserem que eles não chegam nem perto. E, se os tiras conseguirem
descobrir quem são os irmãos Yildiz, que não aparecem em nenhum
registro policial, deposito a parte deles no Fundo de Órfãos da Polícia.
A hora se aproxima, entrar no trem periférico, saída pela Porte Maillot,
caminho de acesso, Neuilly-sur-Seine.
Como é bela a vizinhança dos burgueses. Se fossem menos babacas,
quase teria vontade de me juntar a eles. Estaciono a dois passos do liceu,
garotas de treze anos vestem roupas que custam treze salários mínimos.
Às vezes, lamento que a Mossberg não seja reconhecida como um
instrumento de igualdade social.
Deixo o liceu para trás, viro à direita. A casa é menor que as outras dessa
rua, a entrada é mais modesta e, porém, todo ano, nas mãos do
proprietário desse lugar, passam somas de assaltos e de arrombamentos
su icientes para construir uma torre em La Défense4. Ele é um cara
descon iado, escorregadio, que muda de protocolo incessantemente.Teve
de mandar um dos seus capangas buscar os dois sacos de joias no armário
da Gare du Nord.
Um lugar para recolher a mercadoria, outro para avaliar, um terceiro
para negociar.
E ele cobra caro pela segurança da transação.
9h30
Camille está queimando de vontade de interrogá-la. O que ela viu
exatamente na galeria Monier? Mas mostrar-lhe seu verdadeiro nível de
ansiedade é admitir que ela corre perigo, aterrorizá-la, acrescentar
angústia à dor.
De qualquer modo, ele é obrigado a voltar a esse assunto.
– Ahn? – grita Anne. – Vi o quê? O quê?
Quanto ao repouso, a última noite não lhe serviu de nada, Anne saiu dela
mais exausta do que entrou. Está extremamente nervosa, constantemente
à beira das lágrimas, percebe-se pelo tremor da sua voz, mas ela se
exprime com um pouco mais de clareza que na véspera, as sílabas se
articulam melhor.
– Eu não sei – diz Camille. – Pode ser qualquer coisa.
– O quê?
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ele é indiano. Ele se aproxima de Anne. Escuta o que ela diz com atenção e,
enquanto inclina a cabeça na sua direção, observa seus hematomas; essa
paciente, nesse estado, está bem feia, mas isso não é nada perto do que a
aguarda dentro de alguns dias, os dias seguintes, a evolução desse tipo de
hematomas é muito assustadora. Tenta dissuadi-la com uma voz branda.
Antes de tudo, ele a ausculta, ninguém entende o que ele está fazendo, a
tomogra ia não espera pelos pacientes, horário é horário. Ele, pelo
contrário...
A enfermeira começa a icar sem paciência, os enfermeiros tentam não
perder as estribeiras. O residente, por sua vez, termina a auscultação,
então sorri para Anne e pede um par de muletas. Seus colegas se sentem
traídos.
Camille olha para a silhueta de Anne, apoiada sobre as muletas, erguida
pelos ombros por um enfermeiro de cada lado.
Ela caminha lentamente, mas caminha. É um começo.
10h
– Aqui não é extensão do comissariado...
Um escritório numa desordem indescritível. Ele é cirurgião, tomara que
as coisas sejam mais organizadas na sua cabeça.
Hubert Dainville, médico responsável pelo serviço de traumatologia.
Eles se cruzaram na véspera, na escada de emergência, quando Camille
corria atrás do seu fantasma. Visto rapidamente, ele parecia não ter idade
de inida. Hoje, ele tem cinquenta anos. No mínimo. Seus cabelos brancos
são naturalmente ondulados, nota-se que são seu orgulho, o emblema
irresistível da sua virilidade madura; aquilo não é um penteado, é uma
concepção de mundo. Unhas feitas. O tipo de homem que veste camisas
azuis de gola branca e que põe um lenço no bolso dos ternos. Um garanhão
de meia-idade. Ele deve ter tentado passar por cima de metade dos seus
funcionários e deve atribuir a seu charme conquistas que não são mais que
consequência das próprias estatísticas. Seu jaleco está sempre
impecavelmente passado, mas ele agora já não tem mais aquela isionomia
abobada que tinha ontem na saída das escadas. Pelo contrário, parece
autoritário. E ele fala com Camille enquanto se ocupa de outra coisa, como
se o assunto estivesse encerrado; não tem tempo para icar perdendo.
– Eu também não – diz Camille.
– O quê?
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10h45
– Eu não vou ser operada – diz ela.
São necessários alguns segundos para Camille absorver a informação.
Ele bem que gostaria de demonstrar entusiasmo, mas opta pelo
comedimento.
– Muito bem... – diz ele em um tom encorajador.
As radiogra ias e as tomogra ias con irmam o que o jovem residente lhe
disse na véspera. Será feita uma cirurgia dentária, mas o resto vai voltar ao
lugar naturalmente. Talvez iquem algumas cicatrizes próximo aos lábios e
principalmente na bochecha esquerda. O que quer dizer “algumas”?
Várias? Visíveis? Anne tinha se examinado minuciosamente no espelho; os
lábios incharam tanto que é di ícil saber o que vai permanecer ou
desaparecer. Quanto à cicatriz na bochecha, enquanto estiver coberta por
pontos, impossível ter uma ideia.
Questão de tempo, disse o médico-residente.
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O rosto de Anne diz nitidamente que ela não acredita nisso. E tempo
também é exatamemte o que Camille não tem de sobra.
Ele foi até lá para transmitir uma mensagem essencial. Estão a sós no
quarto.
Ele espera alguns segundos, então fala:
– Espero que você consiga reconhecê-los...
Anne faz um gesto vago que pode querer dizer muitas coisas.
– O que atirou em você, você me disse que era bem alto...
Como ele era?
É ridículo tentar fazê-la falar agora.
A Perícia Judiciária vai recomeçar tudo do zero; insistir dessa mesma
maneira chega a ser até contraprodutivo. Porém:
– Charmoso – diz Anne.
Anne articula as palavras com esforço. Camille se precipita:
– O quê... Como assim, “charmoso”?
Anne olha ao redor. Camille não acredita nos seus olhos: ela acaba de
esboçar uma espécie de sorriso. Vamos chamar isso de sorriso para
resumir, pois seus lábios não izeram mais que se esticar, mostrando três
dentes quebrados:
– Charmoso... como você...
Ao longo dos dias de agonia de Armand, Camille teve essa sensação
várias vezes: o menor sinal de melhora já lhe permite manifestar o mais
inabalável otimismo. Anne mal faz uma piada e Camille já poderia ir
correndo até a recepção exigir sua alta. A esperança é mesmo uma cilada.
Ele tem vontade de responder no mesmo tom, mas foi pego
desprevenido. Ele começa a gaguejar, Anne já fechou os olhos de novo.
Camille pelo menos tem certeza de que ela está lúcida, de que entende o
que ele diz. Ele está prestes a arriscar mais uma vez, mas é interrompido
pelo celular de Anne, que começa a vibrar sobre a mesa de cabeceira.
Camille o apanha. Nathan.
– Não se preocupe – articula Anne de imediato, fechando os olhos.
Ela ganha o ar paciente da irmã mais velha, levemente excedida. Camille
discerne a voz do irmão, insistente, febril.
– Eu já disse tudo o que tinha a dizer na minha mensagem...
Anne faz bem mais esforços para ingir falar normalmente do que
quando fala com Camille. Ela quer se fazer entender, mas, sobretudo,
acalmar o irmão, tranquilizá-lo.
– Não há mais nada a saber – acrescenta ela, quase demonstrando
alegria. – E eu não estou sozinha, você não tem com que se preocupar.
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Ela levanta os olhos para o alto, em direção a Camille, Nathan deve estar
pegando no seu pé.
– Mas é claro que não! Ouça, tenho que fazer uma radiogra ia agora, eu
te ligo depois. Tá, eu também...
Ela desliga totalmente o celular e o passa para Camille, suspirando.
Ele aproveita a ocasião, pois o momento íntimo dos dois não vai durar
muito tempo. Precisa dizer o essencial:
– Anne... eu não deveria me encarregar do seu caso, entende?
Ela entende. Responde: “Ahã”, balançando a cabeça, isso quer dizer sim.
– Entende mesmo?
Ahã... Camille solta um suspiro; evacuar a pressão na cabeça, para ele,
para ela, para os dois.
– Fui pego um pouco de surpresa, sabe. E depois...
Ele estende a mão até ela, acaricia-a com a ponta dos dedos. Sua mão é
menor, mas masculina, coberta de veias sobressalentes; Camille sempre
tem as mãos quentes. Para não a apavorar, ele precisa escolher bem o que
vai dizer. Não dizer: o assaltante que espancou você se chama Vincent
Hafner, ele é um animal, tentou matá-la e tenho certeza de que vai tentar
de novo.
Em vez disso, dizer: estou aqui, você está em segurança.
Evitar: minha superior não acredita em mim, mas, se eu estiver certo, ele
é completamente maluco e não tem medo de nada.
Preferir: vamos encontrá-lo com rapidez e tudo terá terminado. Para
isso, é preciso que você nos ajude a reconhecê-lo. Se puder.
Esquecer: vamos deixar um guarda municipal na porta do seu quarto
durante o dia, isso é totalmente inútil, pois eu lhe garanto: enquanto esse
cara estiver em liberdade, você corre perigo. Nada vai detê-lo.
Não mencionar: a passagem desses caras pelo seu apartamento, o roubo
dos documentos, a organização que se impuseram para encontrar você.
Nem os meios de que dispõe Camille, quase pí ios. Em grande parte por
sua própria culpa.
Dizer: tudo vai dar certo, não se preocupe.
– Eu sei...
– Você vai me ajudar, Anne, não é? Você vai me ajudar?
Anne balança a cabeça.
– Não diga a ninguém que nos conhecemos, ok?
Anne diz que sim. Porém, nos seus olhos, há um lampejo de
descon iança. Uma nuvem de mal-estar paira sobre eles.
– O guarda, do lado de fora, por que ele está ali?
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O mais urgente agora é que ela descanse. Que recupere as forças, toda a
energia de Camille está voltada para esse único objetivo. Se ela não
reconhecer ninguém nas fotos, a investigação vai se tornar uma estrada em
linha reta rumo a um penhasco. Se ela der uma pista, apenas um primeiro
passo, Camille acredita que é capaz de completar o trajeto inteiro.
E acabar com isso de uma vez. Logo.
Ele sente vertigens, como se tivesse bebido, sua pele parece crepitar, a
realidade parece lutuar ao seu redor.
Onde ele foi se meter?
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12h
O técnico da Perícia Criminal tem um sobrenome polonês, uns dizem
Krystkowiak, outros pronunciam Krystoniak, só Camille pronuncia
correto: Kryszto iak... Um sujeito com costeletas, seu lado roqueiro
nostálgico. Ele carrega seu equipamento dentro de uma maleta com cantos
de alumínio. O doutor Dainville deu a eles uma hora, presumindo que
poderiam ultrapassar duas. Camille sabe que serão quatro. O perito, que já
fez milhares de sessões dessas na sua carreira, sabe que isso pode levar
seis horas. E chegar a dois dias.
Ele dispõe de uma pasta com centenas de fotogra ias, deve fazer uma
triagem severa. O objetivo é não mostrar imagens demais para a
testemunha porque, após dado momento, todos os rostos começam a se
parecer e o reconhecimento se torna totalmente inútil. Ele inseriu no
conjunto a foto de Vincent Hafner e de três outros sujeitos, conhecidos por
serem seus cúmplices, para ver no que vai dar. E inseriu também tudo o
que a base de dados da polícia conhece de sérvios ou parentescos.
Ele se curva para Anne:
– Bom dia, senhorita...
Ele tem uma bela voz. Branda. Gestos lentos, precisos, tranquilizadores.
Anne ajeita-se sobre a cama, o rosto túrgido de cima a baixo, um monte de
travesseiros debaixo dos quadris, dormiu durante uma hora. Para mostrar
que quer contribuir, ela esboça uma espécie de sorriso, sem abrir a boca
por causa dos dentes quebrados. Enquanto abre a maleta para dispor seu
material, o perito recita as frases usuais, que tem sempre repetido. Há
muito tempo.
– Pode ser que tudo corra bem rápido, às vezes estamos com sorte!
Ao dizer isso, ele dá um amplo sorriso, para encorajá-la. Sempre busca
trazer um toque de leveza à situação porque, quando precisa mostrar
fotogra ias a uma pessoa, ou é porque ela levou uma surra ou assistiu a
uma cena abrupta e violenta, ou porque foi violentada ou alguém foi
assassinado diante dos seus olhos, coisas desse tipo, portanto, raramente a
atmosfera é descontraída.
– Mas, certas vezes – prossegue ele com um olhar sério, ponderado –, é
preciso tempo. Então, quando a senhorita se sentir cansada, me avise, ok?
Não estamos com pressa...
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Anne balança a cabeça. Seu olhar pálido se direciona para Camille, ela
entende. Faz um gesto positivo.
É o sinal, o perito diz:
– Certo, vou lhe explicar como vamos proceder.
12h15
Ao vê-lo, e embora não esteja de bom humor, Camille pensou que aquilo
era uma pegadinha ou uma provocação da comissária Michard, mas não,
nada mais sério. O policial uniformizado que lhe enviaram é o guarda com
quem cruzou na véspera na galeria Monier, o sujeito franzino de rugas
roxas sob os olhos, que parece ter saído do túmulo. Camille, se fosse
supersticioso, veria nele um mau agouro. Ora, na verdade, ele é
supersticioso. Daqueles que fazem gestos para evitar maus presságios; ele
tem receio de prenúncios negativos e, ao ver junto à porta do quarto de
Anne um guarda com a cara de um morto, tem di iculdade em permanecer
calmo.
O guarda esboça uma saudação com o indicador em direção à têmpora,
que Camille interrompe no meio.
– Verhoeven – diz ele.
– Comandante... – responde o guarda estendendo-lhe uma mão
esquelética, fria.
Um metro e oitenta e três, calcula Camille.
E bem organizado. Ele já trouxe para o corredor a melhor cadeira da sala
de espera. Ao seu lado, apoiado contra a parede, um saquinho azul-
marinho. Sua esposa deve lhe preparar sanduíches. Tem também uma
garrafa térmica, mas o que chama mais a atenção de Camille é o cheiro de
cigarro. Se fosse oito da noite e não meio-dia, ele o botaria para fora no
mesmo segundo, pois, no primeiro cigarro, o assassino à espreita
acompanha seu percurso, registra minuciosamente seu ritualzinho; no
segundo cigarro, ele calcula o tempo; no terceiro, ele o deixa sair e, assim
que o guarda se encontrar o mais longe possível, ele não precisa fazer mais
que subir ao quarto e cobrir Anne de tiros com sua espingarda calibre 12.
Foram lhe mandar o guarda mais alto, mas também o mais imbecil. Por
enquanto, isso não é tão grave assim. Camille não consegue imaginar o
assassino voltando tão rápido e em plena luz do dia.
O turno da noite é que será nevrálgico. Ele vai descobrir isso por si
mesmo. Mas, ainda assim, Camille insiste.
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12h45
No outro extremo do corredor, encontra-se uma pequena sala de espera
na qual ninguém nunca entra, sua localização é inapropriada, é de
perguntar o que ela faz ali, quiseram transformá-la em escritório, mas é
proibido, explicou Florence, a enfermeira que quer beijar a vida inteira
com a boca. Parece que há normas, ela deve ser mantida tal como está,
inútil. É o regulamento. Ele é europeu. Com isso, os funcionários
começaram a estocar material dentro, pois eles têm problemas com faltas
de espaço no hospital. Quando chega a comissão de segurança, eles
armazenam tudo em carrinhos no subsolo, depois sobem tudo de volta, a
comissão de segurança ica satisfeita e carimba o formulário como devido.
Camille empurra duas pilhas de caixas de curativos e puxa duas cadeiras.
No canto de uma mesa baixa, faz uma breve reunião com Louis (terno
gra ite Cifonelli, camisa branca Swann & Oscar, sapatos Massaro, tudo feito
sob medida. Louis é o único tira da Brigada Criminal a vestir o montante do
seu salário anual). Ele mantém Verhoeven atualizado sobre o
desenvolvimento das investigações em curso, a turista alemã se suicidou
de fato, o motorista das facadas foi identi icado, ele está foragido, vão
capturá-lo em dois ou três dias, o criminoso de setenta e um anos
confessou seu motivo: ciúmes. Camille despacha os casos, eles chegam ao
que lhe preocupa.
– Se a senhora Forestier con irmar que se trata de Hafner... – começa
Louis.
– Mesmo se ela não o reconhecer – corta Camille –, isso não quer dizer
que não é ele!
Louis respira fundo e discretamente. Esse nervosismo não faz parte do
comportamento do seu chefe. Realmente, tem algo de errado. E não será
fácil lhe explicar que todos já entenderam do que se trata...
– Claro – admite Louis. – Ainda que ela não o reconheça, talvez seja
Hafner mesmo. Mas tem também o fato de que ele havia desaparecido
totalmente de circulação. Contatei os colegas que se encarregaram do
assalto de janeiro, e eles se perguntam, como quem não quer nada, por que
não foram encarregados desse caso...
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– Isso não vai ajudar muito a investigação! – diz ele. Tem o tom de um
homem que esperava por uma descoberta, mas que está totalmente
desapontado. – O senhor não acha? Camille é um nome bastante comum.
Não dá nem para saber se ele se refere a um homem ou a uma mulher...
E, como Camille não responde:
– O que o senhor quer que façamos com isso... – conclui ele.
Ajusta o nó da gravata.
E afasta sua mecha, mão esquerda.
Levanta-se, deixando o papel sobre a mesa. Camille o recolhe, amassa-o
em formato de bola e en ia-o no bolso.
13h15
O técnico da Perícia Criminal acabou de recolher suas coisas e deixar o
hospital. Ele disse:
– Obrigado, acho que trabalhamos bem.
A frase que pronuncia habitualmente, qualquer que seja o resultado.
Apesar das vertigens que isso provoca, Anne se levanta, volta ao
banheiro. Ela não pode resistir à necessidade de se olhar, de veri icar a
dimensão do estrago. Agora, sem as bandagens ao redor da cabeça, vê
apenas os cabelos curtos e sujos, foram raspados em duas regiões para que
fossem feitos os pontos. É como se houvesse buracos na sua cabeça. Há
pontos também sob a mandíbula. Hoje, o rosto parece ainda mais
volumoso; os primeiros dias são assim, todo mundo repete isso, vai inchar,
sim, eu sei, você já me disse, cacete, mas ninguém chegou a descrever o
efeito real. O rosto in la como um balão, ica congestionado como o de um
alcoólatra. O rosto de uma mulher agredida evoca a degradação, Anne
padece de um violento sentimento de injustiça.
Ela passa os dedos sobre as maçãs do rosto, sente uma dor abafada,
difusa, insidiosa, que parece ter se instalado ali por toda a eternidade.
E esses dentes, meu Deus, eles a deixam com uma isionomia deplorável,
ela não sabe por que, para ela, é como se tivessem feito a remoção de um
seio; sente-se integralmente violada. Não é mais a mesma, não está mais
inteira, vão lhe colocar dentes postiços, ela nunca mais vai se recuperar
desse martírio.
Aí está. Ela acabou de proceder ao reconhecimento dos assaltantes,
dezenas de fotos passaram pelos seus olhos. Fez como lhe pediram,
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13h20
Graças à minha experiência, acabo quase sempre obtendo o que quero.
Nesse momento, estou recorrendo a medidas drásticas porque tenho
pressa, mas também porque faz parte da minha natureza. Sou assim,
impaciente e impetuoso.
Preciso de dinheiro e não vou perder o que ganhei com tanto suor. Esse
dinheiro, para mim, é como um fundo de previdência, só que muito mais
seguro.
E não vou permitir que qualquer um venha surrupiar minhas
expectativas para o futuro.
Então vou tratar de acelerar o processo.
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no meio da cara, mas não tenho escolha, tenho que liquidar esse caso de
uma vez: vou abandonar momentaneamente a Mossberg e escolher um
fuzil de seis tiros, um m40a3, calibre 7.62. Dentro do seu estojo, o
equipamento completo, o silenciador, a mira telescópica Schmidt & Bender,
duas caixas de munição para tiro a longa distância, direto e certeiro, seis
tiros antes de recarregar. Quanto à pistola de mão, eu opto por uma
Walther p99 compacta com suporte para dez tiros munida de um
silenciador de e iciência surpreendente. Para terminar, vou pegar um
punhal de caça Buck Special de quinze centímetros, vem sempre a calhar.
Aquela vadia já teve uma amostra da minha capacidade.
Agora, vamos subir um nível; ela está precisando de fortes emoções.
13h30
Foi mesmo Vincent Hafner.
– A moça é totalmente categórica. – Kryszto iak, o técnico da Perícia
Criminal, encontrou Camille e Louis na saleta. – Ela tem uma boa memória
– diz ele, satisfeito.
– Porém, ela não pôde vê-los por muito tempo... – arrisca Louis.
– Pode ter sido o su iciente, depende principalmente das circunstâncias.
Testemunhas podem ver um suspeito durante minutos sem serem capazes
de o reconhecer uma hora depois. Outras avistam um sujeito por um
minuto, mas gravam seus traços, ninguém sabe por quê.
Camille não reage, é como se estivessem falando dele: ele registra um
rosto no metrô, dois meses depois, pode restituí-lo até a menor ruga.
– Às vezes – continua Kryszto iak –, os suspeitos reprimem as
lembranças, mas, diante de um cara que te espanca e que atira em você de
dentro do seu carro quase à queima-roupa, sua tendência vai ser de se
lembrar muito bem.
Se houver algum humor nessa frase, ninguém está conseguindo discerni-
lo claramente.
– Nós fomos delimitando a seleção das fotos por faixa etária, categoria
ísica, e assim por diante. Ela não tem dúvida, é Hafner.
Na tela do seu laptop, ele expõe a foto de um homem de mais ou menos
sessenta anos, alto, fotografado de corpo inteiro durante uma prisão. Um
metro e oitenta, calcula Camille.
– Oitenta e um – diz Louis com precisão enquanto consulta a icha de
identi icação; conhece o seu chefe até sem ele dizer nada.
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14h
Camille diante da tela do computador.
Arquivo “Vincent Hafner”.
Sessenta anos. Mais ou menos catorze anos de prisão, todas as penas
possíveis. Quando jovem, tentou várias coisas (arrombamento, extorsão,
proxenetismo), mas encontra sua verdadeira vocação aos vinte e cinco
anos, em 1972, assaltando um carro-forte em Puteaux. As coisas não
correm muito bem, a polícia chega ao local, um ferido, ele é condenado a
oito anos. Cumpre dois terços da pena e tira sua lição da experiência
vivida: é dessa pro issão que ele gosta. Ele pecou apenas por imprudência,
não vai mais cometer esse erro. Na verdade, sim, ele é preso algumas
outras vezes, mas recebe apenas condenações menores, dois anos aqui,
três anos ali. No geral, ele construiu o que se pode chamar de uma bela
carreira.
E desde 1985 ele não foi preso mais nenhuma vez. Hafner, em sua
maturidade, alcançou o apogeu de sua arte. É suspeito de onze assaltos,
mas nenhuma prisão, nunca sequer é levado a interrogatório, nenhuma
prova, arquivos e álibis de ferro, depoimentos de aço. Um artista.
Hafner é um chefe do crime, um criminoso de primeira, e seus registros
con irmam: ele é do tipo que não brinca em serviço. Está sempre
perfeitamente informado, seus ataques são preparados de forma
meticulosa, mas, uma vez em ação, a terra treme. Vítimas feridas,
agredidas ou espancadas, sequelas muitas vezes graves, ele não deixa
mortos, mas não faltam pessoas mutiladas. Depois que Hafner passa,
pessoas saem mancando, capengando, cambaleando, isso sem contar as
caras estouradas e os anos de isioterapia. A técnica é simples: se fazer
respeitar arrebentando o primeiro que aparecer, os outros logo entendem
a lição e então tudo passa a funcionar muito melhor.
A primeira a aparecer, ontem, foi Anne Forestier.
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O caso da galeria Monier é coerente com seu per il. Camille desenha
rostos de Hafner na margem do bloco de notas, enquanto folheia
interrogatórios de casos antigos.
Durante muitos anos, Hafner conta com um grupo restrito de mais ou
menos uma dúzia de homens, escolhendo seus cúmplices com base na
necessidade e na disponibilidade. Camille calcula rapidamente que em
média há sempre três pessoas detidas, em prisão preventiva ou
condicional. Hafner, por sua vez, consegue escapar ileso. Mas, no ramo dos
assaltos, assim como no empresarial, é di ícil encontrar funcionários
estáveis e quali icados. A rotatividade é até mesmo superior nesse
domínio, esses homens são como artesãos. No espaço de alguns anos, nada
menos que seis membros históricos da “quadrilha Hafner” saem de
circulação. Dois pegam prisão perpétua por homicídio, dois foram postos
para dormir (irmãos gêmeos, esses aí se acompanharam do começo ao im
da vida), um quinto está de cadeira de rodas devido a uma queda de moto,
o último foi declarado desaparecido num acidente de bimotor Cessna na
costa da Córsega. Tempos duros para Hafner. Além disso, durante vários
meses, nenhum novo caso lhe é atribuído. Todos entram em acordo quanto
a uma conclusão lógica: Hafner, que deve ter feito seu pé-de-meia, en im se
aposentou. Os funcionários e clientes das joalherias podem acender uma
vela ao santo patrono.
Portanto, os quatro assaltos de janeiro são uma surpresa. Ainda mais
porque ele é, pela sua dimensão, algo totalmente excepcional na carreira
de Hafner. A produção em série é rara no ramo dos assaltos. É di ícil
imaginar quanto um único assalto exige da força ísica, dos nervos,
sobretudo com os métodos arrojados de Hafner. Também é preciso uma
organização impecável e, quando se projeta assaltar quatro
estabelecimentos em um mesmo dia, é preciso que os quatro alvos estejam
no ponto ideal nos mesmos horários, que as distâncias sejam compatíveis,
que... É preciso uma conjunção de tantas condições positivas que não é de
espantar que tenha terminado tão mal.
Camille passa as fotogra ias das vítimas.
Primeiro a do segundo assalto de janeiro. O rosto do jovem funcionário
da joalheria da rua de Rennes após a passagem dos grandes pro issionais.
Por volta dos vinte e cinco anos, espancado de tal forma... Perto dele, Anne
parece arrumada para uma festa de debutante. Passou quatro dias em
coma.
A do terceiro assalto. Um cliente. Se for possível chamá-lo assim. Ele está
mais para um soldado das trincheiras da Primeira Guerra. A icha já aponta
fevereiro•2022
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logo de início “estado grave”. Pela sua cara, disforme (ele recebeu várias
coronhadas no rosto, outro ponto em comum com Anne), não tem como
discordar, estado grave.
Última vítima. Essa está banhada no próprio sangue no meio da sua loja,
na rua de Sèvres. De certa forma, o método foi mais limpo, duas balas em
cheio no peito.
Esse ponto também é raro na carreira de Hafner. Até então, seus casos
não deixavam mortos. Só que, dessa vez, além da equipe tradicional, ele
precisa compor seu grupo com os elementos disponíveis no mercado. Ele
escolheu sérvios. Não estava muito inspirado. Eles são corajosos, mas têm
pavio curto.
Camille olha para a folha do seu bloco. No centro, o rosto de Vincent
Hafner, inspirado por uma foto antropométrica, e, ao redor, traçados com
rapidez, retratos instantâneos de suas vítimas; o mais impactante é o de
Anne, recomposto de memória de quando ele a avistou pela primeira vez
ao entrar no quarto de hospital.
Camille arranca a folha do bloco, amassa-a e a atira na lixeira. Em
seguida, escreve uma palavra que resume sua análise da situação.
“Urgência”.
Pois Hafner não abandonou sua aposentadoria em janeiro – ainda mais
com uma equipe improvisada – sem um motivo maior.
Com exceção da necessidade de dinheiro, é di ícil ver o que poderia ser.
Urgência também porque ele não se contenta em voltar à ativa. Para
maximizar seus lucros, ele se arrisca em quatro assaltos seguidos, cujos
resultados são incertos.
Urgência, en im, porque, após um roubo excepcional em janeiro,
deixando-lhe uma parcela individual de duzentos ou trezentos mil euros,
seis meses depois, aí está ele de volta. Hafner revival. E se, dessa vez, ele
não roubou o tanto que esperava, vai pedir mais uma rodada; inocentes
estão à sua espera, seria mais prudente capturá-lo antes disso.
Qualquer um poderia farejar algo de errado nessa história toda. Camille
não sabe onde o problema se encontra exatamente, mas está por aí. Falta
uma peça do quebra-cabeça. Um acontecimento em algum lugar.
Ele é inteligente o bastante para saber que um homem como Hafner será
muito di ícil de localizar. E que, por enquanto, o mais rápido, o mais e icaz
consiste em encontrar Ravic, seu cúmplice. Torcendo para que, por
intemédio dele, seja possível obter alguma pista que conduza a Hafner.
E, para que Anne permaneça viva, é extremamente necessário que essa
pista seja a certa.
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14h15
– Isso lhe parece... apropriado? – preocupa-se o juiz Pereira pelo
telefone. O tom é de perplexidade. – O que o senhor está querendo fazer é,
na verdade, uma prisão em massa!
– Não, senhor juiz, não é uma prisão em massa!
Mais um pouco e Camille ingiria desatar a rir. Ele não faz isso porque o
juiz é ino demais para cair na armadilha. Mas ele também está
su icientemente ocupado para poder con iar nos policiais experientes
quando eles lhe propõem soluções.
– Pelo contrário – argumenta Camille –, essa será uma operação muito
bem circunscrita, senhor juiz. Conhecemos os três ou quatro contatos aos
quais Ravic pode ter pedido ajuda durante sua evasão após o homicídio de
janeiro, trata-se apenas de chacoalhar um pouco o coqueiro, nada mais.
– O que a comissária Michard acha disso? – pergunta o juiz.
– Ela concorda – diz Camille assertivo.
Ele ainda não falou com ela, mas aparenta estar seguro da resposta. É a
estratégia administrativa mais antiga que existe: dizer a um que o outro
concorda com sua proposta e vice-versa. Como todas as técnicas batidas,
essa é muito e icaz. Bem utilizada, quase infalível.
– Bem, então faça como achar melhor, comandante.
14h40
O guarda grandalhão estava jogando paciência no celular quando se deu
conta de que a pessoa que acabou de passar por ele é a mesma que deveria
estar protegendo. Ele se levanta abruptamente, sai andando atrás dela e
chamando, senhora, esqueceu seu nome, senhora, ela não olha para trás,
apenas para por um breve momento ao passar em frente à sala das
enfermeiras.
– Estou indo embora.
Seu anúncio soa de maneira causal, como tchau, até amanhã. O
grandalhão aperta o passo, aumenta o tom da voz.
– Senhora...!
É a jovem enfermeira com o piercing no lábio que está encarregada dela.
A que acredita ter visto uma espingarda, mas depois, bem, não, mas
pensando melhor... Ela se precipita sem dizer uma palavra, ultrapassa o
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14h45
A comissária Michard passa grande parte do tempo em reuniões. Camille
consultou sua agenda, as séries de compromissos são ininterruptas, ela vai
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15h15
Verhoeven mandou soltarem os cães. Ficarem todos a postos. Chega a
ser um pouco exagerado.
Fortalecido pela aprovação da comissária, Camille convocou todos os
policiais momentaneamente disponíveis, ele faz ligações diante do olhar
ansioso de Louis, pede uma mão para os colegas, aqui lhe emprestam um
cara, ali dois, tudo parece meio improvisado, mas acaba resultando em um
número alto, ninguém sabe muito bem para que inalidade está ali, mas
ninguém faz muitas perguntas. Camille dá suas instruções com autoridade
e, além disso, vale dizer, eles estão se divertindo, põem o giro lex no teto
dos carros, atravessam a cidade em alta velocidade, vão chacoalhar todo
mundo, sacudir os tra icantes, os ladrões, os cafetões, os proxenetas, a inal,
eles também entraram na polícia para poder brincar de caubói, oras!
Camille disse que aquilo duraria apenas algumas horas. Basta meter o pé
na porta de todo mundo e logo todos vão poder voltar para casa.
Alguns colegas se demonstram relutantes, Camille está bem nervoso, ele
fornece toneladas de razões, mas poucas explicações. O que está
preparando não é exatamente o que eles haviam compreendido, pensavam
que se tratava apenas de cair em cima de três alvos ao mesmo tempo, nada
mais. Em vez disso, Camille organiza uma operação tão fulminante quanto,
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mas bem mais extensa, a todo momento, ele deseja mais gente, ninguém
chega a saber quantos ele já arrumou, todo mundo começa a icar
preocupado.
– Se encontrarmos o cara que estamos procurando – explicou Camille –,
tudo vai icar em ordem, os superiores vão se encher de orgulho, vão
distribuir medalha de mérito a todos os líderes de equipe. E também é só
uma questão de algumas poucas horas, se trabalharmos direito, antes que
os chefes se perguntem em que bar vocês pararam para beber, já
estaremos todos de volta.
Não é preciso mais que isso para que os colegas aceitem, eles cedem
mão de obra, os tiras vão subindo nos carros, Camille à frente, Louis ao
telefone. Em matéria de discrição, a operação Verhoeven não será um
modelo. E esse é mesmo o objetivo.
Uma hora depois, não há mais, em Paris, um único criminoso nascido
entre o Zagreb e o Mostar que não esteja sabendo da procura fervorosa por
Ravic. Ele está escondido em algum lugar, eles enchem de fumaça todos os
corredores, túneis, chacoalham prostitutas, prendem todos os que
encontram pela frente com uma preferência especial por imigrantes
ilegais.
Tratamento de choque.
As sirenes reverberam, as luzes dos giro lex cobrem as fachadas, no
décimo oitavo distrito, uma rua é bloqueada de ponta a ponta, três homens
saem correndo e são capturados, Camille, de pé junto ao carro, olha para a
cena enquanto conversa com a equipe que está invadindo um hotel
pulguento do vigésimo distrito.
Se parasse para pensar naquilo, Camille poderia vir a sentir alguma
nostalgia. Outrora, em circunstâncias como essa – nos dias do Grande
Esquadrão, da brigada Verhoeven –, Armand se encerrava no meio de
arquivos e enchia grandes folhas quadriculadas com centenas de nomes
extraídos de casos que tinham pontos em comum, então, dois dias depois,
apresentava os dois únicos que podiam levar você a avançar com a
investigação. E, enquanto isso, assim que Louis virava as costas, Maleval
chutava o traseiro de qualquer coisa que se mexesse, distribuía bofetadas
em prostitutas peladas e quando você estava prestes a repreendê-lo, ele
defendia a e icácia do seu método com um depoimento decisivo que lhe
poupava três dias de trabalho.
Camille não parou para pensar. Está concentrado na missão.
Ele sobe de quatro em quatro os degraus de hotéis encardidos,
acompanhado de tiras que irrompem nos quartos durante os programas,
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para rodar, elas começam a tremer. Dušan Ravic? Fazem de novo sinal de
que não, elas seguem assim até a viatura de polícia... Atrás delas, Camille
faz um sinal discreto ao colega, podem soltá-las.
Nos comissariados da cidade, pessoas vociferam pelos corredores,
gemem alto, aqueles que falam um pouco francês ameaçam ligar para o
consulado, a embaixada, como se eles fossem dar a mínima. Podem ligar
até para o papa, se ele for sérvio.
Louis, sempre com o telefone na orelha, distribui as instruções, informa
Verhoeven, coordena o deslocamento das equipes. Sua cartogra ia mental
acende pontos luminosos, sobretudo ao norte, nordeste. Louis centraliza,
atualiza, despacha. Camille volta para o carro. Nenhum rastro de Ravic.
Ainda.
Todas as garotas são magras? Não, não necessariamente. Num prédio em
demolição do décimo primeiro distrito, há uma mulher que chega a ser
enorme, por volta dos trinta, os seus pivetes choram, são no mínimo oito; o
pai, de regata, magro como um palito, ele tem um bigode, todos eles têm
bigode, vai procurar seus documentos em uma gaveta da cômoda, todos
vêm de Prokuplje. Ao telefone, Louis diz que ica no centro do país. Dušan
Ravic? O homem não diz nada, ele tenta se lembrar, não, na verdade; eles o
levam, os pivetes se agarram às suas mangas, o melodrama faz parte do
trabalho deles. Em uma hora, eles estarão na rua, mendigam entre a igreja
Saint-Martin e a rua Blavière com um cartaz de papelão escrito com pincel
atômico e erros de ortogra ia.
E os jogadores de cartas, em matéria de informação, di ícil encontrar
melhor. Eles passam o dia jogando conversa fora enquanto as mulheres
labutam, as mais novas se prostituem e as demais cuidam dos ilhos.
Camille desce com três caras, ao vê-los, eles jogam as cartas na mesa, gesto
cansado, é a quarta vez em um mês que estão vindo incomodá-los, mas
dessa vez o anão está junto, fechado em seu casaco, com seu chapéu na
cabeça, ele olha nos olhos dos jogadores um a um, seu olhar lhes perfura a
retina, o ar selvagem e decidido, como se sua procura fosse pessoal. Ravic?
Sim, conhecem-no vagamente, eles se olham, você aí, você o viu? Não,
fazem beiço de desolação, a gente até que gostaria de ajudar, ah tá, diz
Camille, ele separa o mais jovem do grupo, um sujeito bem alto, como se
escolhesse justamente o mais alto, e é exatamente isso, porque basta que
ele estenda as mãos para apanhar suas bolas; ele olha para o vazio
enquanto o grandalhão se ajoelha gritando. Ravic? Esse aí, se não disser
nada, é porque não sabe mesmo. Ou porque suas bolas não funcionam
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mais, arrisca um colega. Todos caem na risada. Camille não, ele deixa o
estabelecimento, todos vão em cana.
Uma hora mais tarde, os tiras descem a escada com a cabeça abaixada, o
teto é muito inclinado na descida para o porão, grande como um depósito,
mas não tem mais de um metro e sessenta de altura, vinte e quatro
máquinas de costura, vinte e quatro imigrantes ilegais. Deve fazer uns
trinta graus ali dentro, eles trabalham todos de torso nu, nenhum tem mais
de vinte anos. Nas caixas estão empilhadas centenas de camisas polos com
estampa da Lacoste, o patrão quer se explicar, eles o interrompem. Dušan
Ravic? A o icina de costura local vai ser tolerada, os policiais fazem vista
grossa porque o patrão passa muitas informações, dessa vez, ele comprime
os olhos, aparenta estar tentando se lembrar, espere, espere, um tira diz
que seria melhor chamar o comandante Verhoeven.
Enquanto Camille não chega, os tiras reviraram todas as caixas de
papelão, os jovens operários icam colados contra as paredes, como se
fossem se fundir com o concreto. Vinte minutos após a batida da polícia,
faz tanto calor lá dentro, mandaram que subissem, agora estão todos
alinhados na rua, resignados ou aterrorizados.
Camille chega alguns minutos mais tarde. Ele é o único que não precisa
abaixar a cabeça para descer a escada. O patrão é de Zrejanin, no extremo
norte, não muito longe de Elemir, a cidade de Ravic. Ravic? Não conheço,
diz ele. Tem certeza? pergunta Camille.
Dá para ver que a pergunta está lhe corroendo por dentro.
16h15
Não me afasto do local já faz muito tempo, tenho muito medo de perder
a chegada do meu amigo. Também estou acostumado demais a icar
escondido para cometer o erro de fumar ou abrir a janela para arejar o
habitáculo, mas se o grande Ravic tiver que vir se refugiar, é melhor que
venha logo porque seu velho amigo vai acabar morrendo de cansaço aqui.
Os tiras estão revirando céu e terra, não deve demorar para ele dar as
caras por esses lados.
E aí vem ele, basta falar o nome e o que vemos surgir na esquina? A
silhueta do meu amigo Dušan, reconhecível de longe, alto como uma
chaminé, sem pescoço e com os pés apontando dez horas e dez minutos,
como os palhaços.
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Nesse horário, não estou me sentindo com muita paciência. Faz dois dias
que não durmo e, se der a mínima para mim, vai responder às minhas
perguntas rapidamente, e assim todo mundo vai poder ir com
tranquilidade para a cama, sua franguinha, eu, você, todo mundo, ok?
Ravic nunca falou bem francês, suas conversas costumam ser ornadas
por um monte de erros de sintaxe, erros de vocabulário, a gente sempre
tem que se expressar cuidadosamente com ele. Escolher palavras simples,
gestos convincentes. Por exemplo, apoiado por essas belas palavras, en io a
faca de caça no que resta do seu calcanhar, a lâmina atravessa tudo e crava
no assoalho do outro lado. Um buraco no assoalho, sem sombra de dúvida
isso vai ser extraído da caução quando ele for devolver o apartamento;
pouco importa. Ele consegue gritar, apesar da mordaça, se contorce para
todos os lados, como um verme, com sua mão livre, ele abana o ar como
uma borboleta.
Agora acho que ele entendeu o essencial. Deixo a informação ser mais
bem absorvida durante o tempo necessário para ele re letir sobre a
situação. Então, explico, en im:
– A minha opinião é que no começo você combinou com o Hafner de me
passar para trás. Você também devia achar que três era demais, dois era
melhor. Claro, assim as partes do roubo icam mais gordas.
Ravic me olha através de uma cortina de lágrimas, não é por causa da
mágoa, e sim pela dor, mas eu sinto que minha hipótese é certeira.
– Mas como você é burro como uma porta... É isso aí, Dušan! Você é
mesmo muito burro! Por que acha que o Hafner escolheu você, senão pela
sua burrice? Ah, agora você está começando a sacar!
Ele faz uma careta, esse tal de calcanhar parece estar mesmo acabando
com ele.
– Então você ajuda o Hafner a me passar pra trás... e depois você é
passado pra trás também. O que nos conduz ao meu diagnóstico: você é
burro como uma porta.
O nível do seu QI não parece ser sua principal preocupação. Ravic, nesse
momento, está mais preocupado com a sua saúde, ele avalia os danos pelo
corpo. E está certo em fazer isso, porque, só de falar nesse assunto, vou
icando cada vez mais nervoso.
– Acho que você não quis ir atrás do Hafner. Ele é um cara muito
perigoso, você não se achou com peito o su iciente para cobrá-lo pelo que
ele deve, você não tem peito e sabe disso. E, além disso, você tinha um
assassinato nas costas, preferiu se esconder. Já eu preciso achar o Hafner.
Então você vai me contar tudo o que sabe para me ajudar a achá-lo: o que
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foi combinado entre vocês, como as coisas aconteceram, você vai me dizer
tudo o que sabe, ok?
Minha proposta parece sensata. Eu tiro a mordaça da sua boca, mas o
seu temperamento vulcânico logo volta à tona, ele berra alguma coisa que
eu não entendo. Agarra minha gola com a sua mão livre, esse imbecil tem
uma puta mão de alicate, tem muita força, consigo escapar por milagre. É
isso que você recebe em troca de con iança.
Ele cospe em mim.
Pela circunstância, essa reação é compreensível, ainda assim, ela não é
nada amigável.
Eu percebo que não estou fazendo as coisas do jeito certo. No im das
contas, eu quis me mostrar civilizado, mas Ravic é mesmo um animal, se
você o trata com delicadeza, ele ignora. Está com muita dor para oferecer
alguma resistência de verdade, no im das contas, ele está debilitado, eu o
projeto para o chão com dois chutes na cara e, enquanto ele tenta se soltar
da faca que mantém seu calcanhar preso ao chão, eu vou pegar algo que vai
ser de grande utilidade.
Sua franguinha está esparramada sobre o colchão. Não tem problema, eu
seguro o edredom (você não pode ser uma pessoa muito nojenta para
dormir sobre ele) e puxo bem forte, a garota rola sobre o próprio corpo e
para de bruços, sua saia ica levemente erguida, ela tem pernas magras e
brancas. Também tem picadas atrás dos joelhos. De qualquer maneira, já
estava com os dias contados.
Eu me viro no instante em que meu caro Ravic consegue retirar a faca
cravada no calcanhar. Esse cara tem a força de um cavalo.
Meto uma bala no seu joelho, a reação é explosiva, se assim posso dizer.
Ele praticamente decola do chão, grita, mas antes de voltar a si, eu o viro
de bruços e o cubro com o edredon sobre o qual me sento. Busco icar na
posição certa, não quero sufocá-lo, vou precisar dele, mas quero que ele se
concentre nas minhas perguntas. E que pare de gritar.
Puxo o seu braço na minha direção; é engraçado icar sentado sobre ele,
você balança, como num parque de diversões ou num rodeio, eu apanho
minha faca de caça, abro a mão dele sobre o assoalho. Como esse animal se
mexe; é como se eu estivesse pescando um peixe de duzentas libras.
Primeiro, corto o seu dedinho. Na altura da segunda falange.
Habitualmente, você tem tempo de decepar o osso de forma bem alinhada,
mas, quando se trata de Ravic, tudo o que é minimamente delicado não faz
parte do seu mundo. Contento-me apenas em cortar de uma vez, o que é
custoso para um perfeccionista como eu.
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17h
– Verhoeven?
Nem sequer “comandante”. Está exaltada demais. Nem sequer
preliminares, formalidades inúteis. A comissária Michard não sabe mais
por onde começar, tem coisas demais a dizer. Então, o instinto de sempre:
– O senhor vai ter que prestar contas...
Os superiores sempre servem de recurso aos seres sem imaginação.
– O senhor falou ao juiz de uma “operação circunscrita”, o senhor me
enrola com “três alvos” e sai fazendo batidas policiais em cinco distritos de
Paris. O senhor está tirando sarro da minha cara?
Camille abre a boca. Como se ela pudesse vê-lo do outro lado da linha,
ela logo o interrompe:
– O senhor pode parar com essa sua demonstração de força,
comandante, isso se revelou inútil.
Um fracasso. Camille fecha os olhos. Ele acelerou no inal da corrida e
acabou de ser ultrapassado a alguns metros da linha de chegada.
Louis, a seu lado, olha ao redor, contraindo os lábios. Ele também
entendeu o que aconteceu. Camille, com um dedo, con irma que a casa
caiu, a mão faz um sinal para ele dispensar todo mundo, Louis
imediatamente disca os números no seu celular. Só o rosto do comandante
Verhoeven já basta para entender. Perto dele, os colegas abaixam a cabeça,
falsamente desapontados; vão ouvir desaforos, mas até que se divertiram.
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Rua Jambier, número 45, a comissária diz que está a caminho. Fica no
décimo terceiro distrito. Camille estará no local em menos de quinze
minutos.
De certa maneira, a batida policial rendeu seus frutos, ainda que não
fossem os frutos esperados. A comunidade sérvia se mobilizou para
encontrar paz, a discrição de que precisa para prosperar, para viver ou
simplesmente sobreviver, ela se articulou internamente, isolou Ravic, uma
brincadeira de criança, e uma ligação anônima informou a localização do
seu corpo, rua Jambier. Camille esperava encontrar um corpo vivo, mas não
foi dessa vez.
Ao anúncio da chegada da polícia, o prédio se esvaziou num piscar de
olhos, não sobrou nem um gato pingado para contar história, ninguém
para interrogar, nenhuma testemunha, ninguém para ter ouvido ou visto o
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Camille se afasta três passos, adoraria poder pular no pescoço dela. Ele
chama a responsabilidade para si:
– A senhora subestimou o caso – disse ele. – Não se trata apenas do caso
de uma mulher que é covardemente espancada. Os assaltantes são
reincidentes, eles deixaram um primeiro morto em janeiro, na ocasião dos
quatro assaltos seguidos. O líder, Vincent Hafner, é um verdadeiro animal e
está acompanhado de sérvios que também não são nada delicados. Ainda
não sei por qual razão, mas Hafner quer matar essa mulher, e, embora a
senhora não queira ouvir isso, estou convicto de que ele tenha ido ao
hospital armado com uma calibre 12. Se nossa testemunha vier a ser
assassinada, teremos que explicar por que e a senhora vai ser a primeira!
– Muito bem, essa mulher é de uma importância estratégica
incomensurável, e, para prevenir um risco que é incapaz de comprovar, o
senhor sai por Paris prendendo todo mundo que nasceu entre Belgrado e
Saraievo.
– Saraievo ica na Bósnia, não na Sérvia.
– Como?
Camille fecha os olhos.
– Está bem – ele concorda –, não segui o procedimento à risca; quanto ao
meu relatório, eu vou...
– A discussão não é mais essa, comandante.
Verhoeven franze as sobrancelhas, seu sensor interno é ativado em
estado crítico. Ele sabe perfeitamente aonde a divisionária pode chegar se
desejar. Ela aponta com a cabeça o apartamento onde jaz o corpo de Ravic.
– O senhor o obrigou a sair da toca fazendo o maior estardalhaço,
comandante. Na verdade, o senhor facilitou o trabalho do assassino.
– Não há nada que comprove isso.
– Não, mas a questão é legítima. E, mesmo com as melhores intenções,
uma operação brutal que envolve a prisão coletiva exclusivamente
centrada numa população estrangeira, organizada sem o aval dos
superiores e transgredindo as autorizações do juiz, ela tem um nome,
comandante.
Claramente, Camille não havia previsto essa abordagem; seu rosto ica
branco.
– Isso se chama perseguição racial.
Ele fecha os olhos. Que catástrofe.
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18h
Sempre que o vê, Camille pensa que Mouloud Faraoui não tem muito a
ver com alguém que se chamaria Mouloud Faraoui. Os traços das suas
raízes marroquinas ainda estão presentes no seu patronímico, mas, no
quesito ísico, tudo se dilui em três gerações de casamentos inesperados,
uniões ao acaso, uma mistura cacofônica cujo resultado é surpreendente. O
rosto desse cara condensa a história inteira. Castanho bem claro, quase
loiro, um nariz bem longo, um queixo quadrado atravessado por uma
cicatriz que deve ter lhe causado muita dor e que lhe deixa com uma cara
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Faraoui nunca soube quem o entregou; fez de tudo para saber, mas não
descobriu nada. Ele pegaria mais quatro anos de prisão para ter esse
nome, todo mundo sabe disso. E ninguém é capaz de imaginar realmente o
que Faraoui faria com esse cara no dia em que o encontrasse.
Ele sorri e balança a cabeça. Combinado.
Essa é a primeira mensagem de Camille.
Encontrar com Faraoui é o mesmo que dizer a certa pessoa: acabei de
fazer um trato com um assassino.
Se eu der a ele o nome daquele que o entregou, ele não poderá me
recusar nada.
Em troca desse nome, posso fazê-lo sair à sua procura; ele estará no seu
encalço antes que você tenha tempo de respirar.
A partir de agora, pode começar a contar os segundos.
19h30
Camille senta-se à sua mesa, colegas en iam a cabeça pela porta, acenam,
todo mundo ouviu falar do seu caso; obviamente, ele é o centro de todas as
conversas. Sem contar aqueles que participaram da tal “perseguição
racial”, eles não terão com que se preocupar, mas o boato anda circulando,
a comissionária começou a disseminá-lo. Um assunto nada agradável. Mas
que diabos Camille está fazendo? Ninguém faz ideia. Nem mesmo Louis, ele
quase não disse nada, e então o rumor voa, um tira desse nível, deve ter
sido mesmo algo grave, alguns estão surpresos, outros espantados, é
sabido que a comissária está furiosa, e isso não é nada comparado ao juiz,
ele vai convocar todo mundo. Desde essa tarde, o auditor-geral Le Guen,
ele mesmo já está de péssimo humor e, surpresa, quando os policiais
en iam a cabeça pela porta do escritório, eles veem Verhoeven, digitando
seu relatório, tranquilo, como se aquilo tudo não fosse mais que
tempestade em copo d’água, como se não tivesse nada a ver com ele ou
como se essa história de assalto com um bando de assassinos fosse
assunto pessoal. Não estou entendendo nada, e você? Eu também não. É
muito estranho mesmo. Mas todos continuam a trabalhar, logo são sugados
para outros afazeres, é possível ouvir uma agitação lá, nos corredores,
irrupções de vozes. Por aqui se trabalha noite e dia, não há repouso.
Camille deve se concentrar nesse relatório, tentar circunscrever o
desastre que se anuncia. Ele precisa de pouco tempo, bem pouco, se sua
estratégia vingar, ele vai encontrar Hafner com rapidez.
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Um ou dois dias.
É o objetivo do seu relatório. Ganhar dois dias.
Quando Hafner for localizado, detido, tudo será explicado, os nevoeiros
desse caso se dissiparão, Camille vai se justi icar, vai se desculpar, receber
a carta disciplinar com a advertência dos superiores, talvez seu
afastamento, sua promoção bloqueada até o im da carreira, talvez ele até
tenha que solicitar – ou aceitar – uma mudança de posto, pouco importa:
Hafner no xadrez, Anne ica protegida. O resto...
No momento de começar essa delicada redação (ele já não é de costume
muito inclinado para os relatórios...), ele se lembra da página do bloco de
papel que jogou no cesto, mais cedo nessa tarde. Ele se levanta, desenterra
o papel. O rosto de Vincent Hafner, o de Anne sobre seu leito de hospital.
Enquanto alisa a folha amassada sobre a mesa com a palma de uma mão,
com a outra, ele liga mais uma vez para Guérin, para lhe deixar uma
mensagem, a terceira do dia. Se Guérin não lhe responde rapidamente, é
porque não tem interesse. Já o auditor-geral Le Guen, em contrapartida,
está correndo atrás de Camille há muitas horas; todos correm atrás de
todos. Quatro mensagens sucessivas: “Que diabos você está fazendo,
Camille! Me ligue!”. Ele está a mil. E tem razões para isso. Além disso,
Camille mal inicia as primeiras linhas do relatório e seu celular vibra de
novo. Le Guen. Dessa vez, ele atende e fecha os olhos, espera a avalanche.
Pelo contrário, Le Guen fala com uma voz baixa, calma.
– Você não acha que deveríamos ter uma conversa, Camille?
Camille pode dizer sim ou não. Le Guen é um amigo, o único que lhe
resta de todos os seus naufrágios, o único capaz de modi icar a trajetória
na qual ele embarcou. Mas Camille não diz nada.
Ele se encontra num desses momentos decisivos que podem, ou não,
salvar sua vida e se cala.
Não pense que ele tenha subitamente se tornado masoquista ou suicida;
sente-se bastante lúcido. Com três riscos, num canto do papel que
permaneceu virgem, ele esboça o per il de Anne. Fazia a mesma coisa com
Irene, sempre que lhe restava um segundo, assim como outras pessoas
roem as unhas.
Le Guen tenta convencê-lo com seu tom mais persuasivo, mais
esmeroso:
– Você só fez merda esta tarde, todo mundo está se perguntando se
estamos à procura de terroristas internacionais, você ultrapassou todos os
limites. Os informantes estão gritando que foram apunhalados pelas
costas. Você fode com todos os colegas que trabalham o ano inteiro com
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ali.
– Se você não se explicar logo – continua Le Guen –, se não izer isso,
agora, a comissária Michard vai informar o tribunal, Camille. Não
poderemos evitar um inquérito administrativo...
– O quê? Um inquérito sobre o quê?
Le Guen dá de ombros de novo.
– Ok. Faça como você quiser.
20h15
Camille bate suavemente à porta do quarto, nenhuma resposta, ele abre,
Anne está deitada, com os olhos para o teto, ele se senta ao seu lado.
Eles não se falam. Camille simplesmente segura sua mão, ela não expõe
resistência, tudo nela transmite um abandono terrível, como uma
resignação. Porém, após alguns minutos, como uma simples constatação:
– Quero sair daqui...
Ela se ajeita lentamente na cama, apoiando-se sobre os cotovelos.
– Como eles não vão operar você – diz Camille –, você vai poder voltar
para casa rapidamente. É questão de um ou dois dias.
– Não, Camille. – Ela fala lentamente. – Quero sair imediatamente, agora.
Ele franze as sobrancelhas, Anne vira a cabeça para a direita e para a
esquerda e repete:
– Agora.
– Não se pode sair assim, no meio da noite. E também é preciso obter
alta do médico, receitas e...
– Não! Eu quero ir embora, Camille, está me ouvindo?
Camille levanta da cadeira, precisa acalmá-la, ela está icando nervosa.
Mas ela toma à sua frente, passa as pernas para fora da cama e coloca-se de
pé.
– Não quero icar aqui, ninguém pode me obrigar!
– Mas ninguém quer obrig...
Ela superestimou suas forças, sente um atordoamento, apoia-se em
Camille, senta-se sobre a cama, abaixa a cabeça.
– Tenho certeza de que ele veio aqui, Camille, ele quer me matar, ele não
vai parar por aí, eu sei disso, posso sentir.
– Não, você não tem certeza, não está sentindo coisa nenhuma! – diz
Camille.
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DIA 3
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7h15
Camille não dorme há quase dois dias. Enquanto aquece as mãos em
volta da caneca de café, ele olha para a loresta através da grande porta de
vidro do ateliê. Foi aqui, em Montfort, que sua mãe pintou durante longos
anos quase até sua morte. Depois disso, o lugar mergulhou no abandono,
foi invadido, depredado, Camille não se preocupou com isso, mas ele nunca
o vendeu, sem saber muito bem por quê.
Então, um dia, após a morte de Irene, ele escolheu não conservar nada
da mãe, nenhuma obra, era uma conta bem velha que ele tinha a quitar
com ela; é devido ao seu tabagismo que ele mede um metro e quarenta e
cinco.
Algumas telas se encontram em museus estrangeiros. Ele prometeu para
si mesmo também se desfazer do dinheiro angariado e, evidentemente,
nada fez com ele. Na verdade, sim. Quando voltou a viver em sociedade,
depois da morte de Irene, reconstruiu e reformou esse ateliê à beira da
loresta de Clamart, a antiga casa de um caseiro de uma propriedade agora
inexistente. Antigamente, o lugar era ainda mais isolado que hoje, quando
as primeiras casas não se encontram a mais de trezentos metros, mas
trata-se de trezentos metros de loresta densa. A estrada de terra termina
por ali, não vai além dela.
Camille reformou tudo, mandou colocar um piso de terracota vermelha
para substituir o anterior, que estalava a cada passo, construiu um
banheiro de verdade, montou um sótão onde fez seu quarto, toda a parte
de baixo é uma vasta sala, com uma cozinha americana, cuja parede lateral
é inteiramente envidraçada e com vista para a orla da loresta.
Assim como quando era criança, quando passava as tardes observando a
mãe trabalhar, essa loresta continua a aterrorizá-lo. Hoje se trata de um
temor adulto, que tem algo de tardio, de deleitoso e doloroso. A única
ponta de nostalgia que ele se permitiu está condensada nessa enorme
lareira de ferro fundido, plantada no centro da sala, substituindo a que sua
mãe havia instalado e que foi roubada quando a casa estava abandonada à
própria sorte.
Se você não tomar cuidado, o calor da lareira vai todo para cima, o
quarto do andar superior se torna uma estufa enquanto embaixo você tem
os pés gelados, mas esse tipo de aquecedor, rústico, lhe agrada porque é
preciso saber como lidar com ele, necessita tanto atenção quanto
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experiência. Camille sabe abastecê-lo e regulá-lo para que ele dure a noite
inteira. No mais frio inverno, a atmosfera, pela manhã, é fresca, mas ele
considera essa primeira tarefa, abastecer e reacender a lareira, como uma
pequena liturgia.
Ele também substituiu uma larga parte do telhado por vidro, o céu é
constantemente visível, as nuvens e a chuva parecem estar caindo em cima
quando você levanta os olhos. Quando neva, é quase angustiante. Essa
abertura para o alto não serve de nada, ela oferece luz, mas, na verdade,
isso não fazia falta para a casa. Quando veio visitá-lo, Le Guen, homem
pragmático, obviamente se questionou. Camille disse:
– Fazer o quê? Tenho o tamanho de um poodle, mas aspirações cósmicas.
Ele vem para o ateliê sempre que pode. Vem nos dias de folga, nos ins
de semana, convida poucas pessoas. Mesmo porque na sua vida não há
muitas pessoas. Louis e Le Guen vieram, Armand também, não foi uma
decisão dele, mas esse lugar se mantém secreto, onde passa seu tempo
desenhando, sempre de memória. Nas pilhas de croquis, nas centenas de
cadernos que se amontoam pela vasta sala, encontram-se os retratos de
todos os que ele prendeu, de todos os mortos que viu e sobre os quais
investigou, juízes para os quais trabalhou, colegas com quem cruzou, com
uma predileção marcada pelas testemunhas que interrogou, silhuetas que
chegam e partem, passantes traumatizados, atordoados, espectadores
enfáticos, mulheres abaladas pelos acontecimentos, jovens garotas
submersas pela emoção, homens ainda exaltados por terem roçado a
morte, quase todos eles estão lá, dois mil croquis, talvez três mil, uma
gigantesca galeria de retratos sem igual: o cotidiano de um policial da
Brigada Criminal, interpretado pelo artista que ele nunca se tornou.
Camille é um desenhista como poucos, extremamente talentoso, ele diz às
vezes que seus desenhos são mais inteligentes que ele, o que é bem
verdade. A ponto de as fotogra ias parecerem até mesmo menos iéis,
menos precisas. Em uma visita ao hotel Salé, Anne lhe pareceu tão linda
que ele lhe disse: não se mexa, tirou seu celular do bolso, tirou uma foto
dela, uma só, para que ela aparecesse na tela quando ela ligasse para ele, e
depois, no im das contas, ele teve que fotografar um dos próprios croquis,
mais preciso, mais real, mais vivo.
Estamos em setembro, ainda não começou a fazer frio, Camille
contentou-se apenas em acender na lareira o que ele costuma chamar de
fogo de conforto.
Sua gata deveria morar aqui, Doudouche, mas ela não gosta do campo,
para ela é Paris ou nada, é o seu jeito. Ela também foi muito desenhada. E
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Camille diz não, eu não sei. Na verdade, sim, ela tem uma ilha nos
Estados Unidos. Ele tenta lembrar o nome. Agathe. Mas não o diz.
– Se ela tiver ido para um hotel – continua Louis –, será mais demorado
para achá-la, mas pode também ter pedido abrigo para um conhecido. Vou
veri icar no trabalho dela.
Camille suspira:
– Não, pode deixar – diz ele –, eu faço isso. Você se mantém concentrado
no Hafner. Alguma novidade?
– Nada por enquanto, parece que ele sumiu pra valer. Último domicílio
conhecido, ninguém. Locais que costuma frequentar, nenhum rastro. Entre
as pessoas que o conhecem, ninguém o viu desde o começo do ano...
– Desde o assalto de janeiro?
– Sim, mais ou menos.
– Ele deve ter se mandado para bem longe...
– É o que todos acham. Alguns acreditam até que ele está morto, mas
com base em nada. Dizem também que ele está doente, é uma informação
que se ouve com frequência, mas, pela sua performance na galeria Monier,
eu diria que ele está bem cheio de vida. Continuamos a procurá-lo, mas não
acredito muito que...
– E os resultados do laboratório sobre a morte de Ravic, quando os
teremos?
– Nada antes de amanhã, pelo menos.
Louis deixa pairar um silêncio delicado; dentro da sua educação, esse
tipo de silêncio é muito particular, reservado a perguntas di íceis. Ele
arrisca:
– Quanto à senhora Forestier, quem avisa a comissária, eu ou o senhor?
– Eu faço isso.
A resposta irrompeu. Rápida demais. Camille coloca a caneca sobre a
pia. Louis, sempre intuitivo, espera a sequência, que não demora.
– Ouça, Louis... pre iro procurá-la eu mesmo.
Ele supõe que Louis tenha concordado, balançando a cabeça
discretamente.
– Acho que posso encontrá-la... bem rápido.
– Sem problema – decide Louis.
A mensagem quer dizer claramente que ninguém vai falar nada para a
comissária Michard.
– Estou a caminho, Louis. Bem rápido. Antes, tenho um compromisso,
mas logo em seguida eu chego.
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A gota de suor frio que Camille sente descer ao longo das costas não tem
nada a ver com a temperatura do ateliê.
7h20
Ele termina de se vestir rapidamente, mas não pode ir embora assim, é
mais forte que ele, precisa se certi icar de que tudo está bem seguro, é sua
velha sensação incômoda de que tudo sempre depende dele.
Ele sobe ao sótão, caminha na ponta dos pés.
– Eu não estou dormindo...
Então ele se aproxima com mais convicção, senta-se na beira da cama.
– Eu ronquei? – pergunta Anne sem se virar.
– Com uma fratura no nariz é inevitável.
Ele sempre topa com essa posição. Já no hospital, sempre com o rosto
para o outro lado, na direção da janela, ela não quer mais me ver, sente que
sou incapaz de protegê-la.
– Você está segura aqui, não vai acontecer nada com você.
Anne balança a cabeça, di ícil saber se está dizendo sim ou não.
Está dizendo não.
– Ele vai descobrir. Ele vai vir aqui.
Ela se vira sobre as costas e olha para ele. Quase o faz duvidar de si
mesmo.
– Isso é impossível, Anne. Ninguém poderia imaginar que você está aqui.
Anne se limita apenas a balançar a cabeça mais uma vez. O signi icado é
claro: você pode dizer o que quiser, ele vai me achar, ele vai vir me matar. A
história começa a virar uma obsessão, torna-se incontrolável. Camille
segura sua mão.
– Depois do que aconteceu com você, é normal sentir medo. Mas eu
asseguro...
Dessa vez, o balanço da cabeça pode querer dizer: como explicar para
você? Ou então: deixe para lá.
– Tenho que ir – diz Camille consultando seu relógio. – Você tem tudo o
que precisa lá embaixo, eu mostrei...
Sim. Com um gesto. Ela ainda está muito cansada. Nem a penumbra do
quarto é capaz de mascarar o estrago dos hematomas e dos ferimentos.
Ele mostrou tudo para ela, a cafeteira, o banheiro, a farmácia para limpar
os curativos. Não queria que ela deixasse o hospital, quem vai acompanhar
a evolução do seu estado, retirar os pontos? Mas não havia nada a fazer;
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8h
A loresta me deprime, sempre detestei. Essa é pior que as outras.
Clamart, Meudon, é o mesmo que dizer que estou em lugar nenhum. Sem
graça como um im de semana chuvoso. Um letreiro de madeira anuncia
um perímetro suburbano, di ícil saber o que pode vir a ser, algumas
residências, propriedades de novos ricos, não se trata nem de cidade, nem
de vilarejo, nem de periferia. São os arredores. Arredores do quê?, você se
pergunta. Pelo esmero que eles têm com seus jardins, seus terraços, não
sei o que é mais desanimador, a tristeza do lugar ou a satisfação que ele
parece oferecer aos seus habitantes.
Passados os conglomerados de casas, não há nada mais além da loresta
a perder de vista, passo pela rua do Pavé-de-Meudon que o GPS leva um
século para localizar e, à esquerda, a rua da Morte-Bouteille, quem foi
inventar esse nome? Sem contar que é totalmente impossível estacionar
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8h30
Cada porta que estala, cada metro de corredor, cada olhar para as
grades, tudo lhe é custoso e pesado. Porque, no fundo, Camille está com
medo. Quando, há muito tempo, a certeza de ter que vir aqui se impôs
certo dia, ele a rechaçou de imediato. Mas ela voltou à super ície,
continuou a se agitar, como um grande peixe na beira do rio, sussurrando
ao pé do seu ouvido que o grande encontro iria acontecer, cedo ou tarde.
Faltava apenas um pretexto para ele vir aqui, para ceder a essa
necessidade irrepreensível sem ter que sentir vergonha de si mesmo.
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– Estava escrito – diz Buisson. Sua voz treme, alta demais, estridente
demais. – E a hora é agora – conclui ele, como se a entrevista tivesse
acabado de terminar.
Já nos seus tempos de esplendor, ele adorava essas frases de efeito. Na
realidade, foi a mesma coisa que fez dele o homicida de seis pessoas, esse
gosto pela grandiloquência, essa arrogância pretensiosa. Ele e Camille se
odiaram logo de cara, assim que se conheceram. Depois, a história, como
acontece muitas vezes, con irmou que as intuições deles haviam feito
escolhas corretas. Mas não é o momento de falar do passado.
– Sim – responde Camille –, é agora.
Sua voz não treme. Ele está mais calmo agora que se vê diante de
Buisson. Tem muita experiência no face a face e percebeu que não
explodiria. Esse homem cuja morte, tortura e sofrimentos o izeram sonhar
tanto não é mais o mesmo e, ao descobri-lo assim, anos mais tarde, Camille
compreende que agora ele pode se abandonar a um rancor sereno,
de initivo, pois não tem mais a urgência passional. Durante todos esses
anos, projetou sobre o assassino de Irene todo o seu ódio, sua violência e
seu ressentimento, mas são águas passadas.
Buisson é assunto encerrado.
A história de Camille, por outro lado, não.
Sua culpa pessoal pela morte de Irene continuaria a lhe declarar guerra
para sempre. Ele nunca resolveria sua questão com ela, eis a constatação, a
certeza que esclarece tudo. Todo o resto era evasão.
Ao tomar consciência disso, Camille levanta a cabeça para o teto e
devolve lágrimas que o reaproximam imediatamente de uma Irene intacta,
encantadora, eternamente jovem, só para ele. Enquanto ele envelhece, ela,
mais radiante que nunca, não mudará; o que Buisson fez com ela não tem
mais nenhum poder sobre sua lembrança, a coleção íntima de imagens,
reminiscências, sensações que condensam o amor que Camille teve por
Irene.
E do qual sua vida carrega o vestígio como uma cicatriz na bochecha,
discreta, mas inalterável.
Buisson não se move. Desde o começo da entrevista, está com medo.
A comoção de Camille, breve, rapidamente controlada, não criou
nenhum embaraço entre os dois homens. As palavras virão, primeiro era
necessário que o silêncio tivesse sua vez. Camille volta a si, ele não quer
que Buisson veja, nesse conturbado imprevisto e no silêncio de ambos,
uma espécie de comunhão muda. Não quer compartilhar nada com ele.
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até mesmo uma espécie de celebridade por ter conseguido dar tanto
trabalho para a Polícia Criminal; ele soube fazer fruti icar seu pequeno
capital de simpatia com muito talento junto aos outros detentos,
conseguindo se içar para fora das guerras de gangues, fazendo favores a
uns e outros: um intelectual ali dentro, um homem que sabe das coisas, é
uma raridade. Ele teceu, ao passar dos anos, uma rede bem estreita de
relações, primeiro aqui dentro, depois fora, graças aos detentos que
saíram, para os quais ele continuou a fazer favores, apresentando pessoas,
organizando reuniões, presidindo encontros. No ano passado, ele chegou
até mesmo a intervir numa luta fratricida entre duas gangues da periferia
oeste, a esfriar a rixa, propôs os termos do acordo, negociou, um trabalho
de ourives. Ele não se mistura com nenhum trá ico interno, mas conhece
todos. E, quanto ao que ocorre do lado de fora da prisão, em matéria de
criminalidade, desde que ela seja de um alto calibre, Buisson sabe tudo o
que há por saber, é distintamente informado e, portanto, um homem
poderoso.
Apesar disso tudo, agora que Camille tomou sua decisão, amanhã talvez,
ou em uma hora, ele será um homem morto.
– Você parece preocupado... – diz Camille.
– Eu estou esperando.
Buisson imediatamente se arrepende do que disse porque soa como
uma provocação, portanto, uma derrota. Camille levanta a mão, não tem
problema, ele compreende.
– Você vai me explicar...
– Não – diz Camille –, não vou explicar nada. Vou apenas dizer como as
coisas vão acontecer, nada mais.
Buisson ica muito pálido. O distanciamento que demonstra Verhoeven
lhe parece uma ameaça suplementar. Isso o revolta.
– Eu tenho direito a uma explicação! – grita Buisson.
Fisicamente, hoje ele é outra pessoa, mas, internamente, nada mudou.
Continua com aquele ego gigantesco. Camille mexe no bolso. E põe sobre a
mesa uma foto.
– Vincent Hafner. Ele é...
– Eu sei quem é...
A reação irrompe como se ele tivesse se sentido insultado. Ela também é
o resultado de alívio. Em uma fração de segundo, Buisson percebeu que ele
ainda tinha uma chance.
Camille discerne uma espécie de euforia instintiva e involuntária na sua
voz, mas não se detém a isso. Era previsível. Buisson tenta imediatamente
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nível, com dezenove anos, ela já tinha dado para o equivalente a uma
cidade. Ela deve gostar de apanhar, só pode ser isso...
Camille se pergunta se Buisson vai ter o atrevimento, ou a
inconsequência, de seguir até o im. A resposta é sim.
– Independentemente do que ela seja, parece que Hafner se empolgou
com essa garota. O amor, comandante, como tem poder, não é mesmo?
Você entende um pouco do assunto...
Camille não demonstra, mas está no seu limite, a alguns milímetros de
entrar em dissidência. Por dentro, ele é um homem em pedaços. Acabou de
autorizar Buisson a chafurdar na sua história. “O amor, comandante...”.
Buisson deve sentir isso, uma camada de instinto de autopreservação se
sobrepõe ao deleite da situação.
– Se está muito doente – continua ele –, talvez Hafner queira deixar sua
donzela livre de necessidades futuras. Sabe como é, os instintos mais
generosos se encontram nas almas mais obscuras...
O rumor já corria, Louis lhe contara aquilo, mas essa con irmação, que
custa caro, valia o sacri ício.
Para Camille, um feixe de luz acaba de aparecer, ali, bem no im do túnel.
Esse alívio não escapa à Buisson. Mas ele é perverso; ao mesmo tempo que
arrisca a vida, não consegue deixar de especular sobre a necessidade do
comandante Verhoeven, sobre a importância que ele atém a essa
investigação para se rebaixar a ponto de ter que se dirigir a ele. Diante
dessa sua necessidade urgente, mal tendo salvado a própria vida, ele já
está se perguntando que proveito pode tirar disso.
Camille não lhe dá tempo para isso.
– Preciso encontrar o Hafner, imediatamente. Você tem doze horas.
– Isso é impossível! – exclama Buisson, esbaforido.
Ao ver Camille se levantar, ele vê escapar sua última chance de
permanecer vivo. Bate febrilmente com o punho sobre os braços da sua
cadeira. Camille permanece imóvel.
– Doze horas, nem uma a mais. Sempre trabalhamos com mais e icácia
quando estamos sob pressão.
Ele bate com a palma da mão na porta. No momento em que ela se abre,
ele se volta para Buisson:
– Mesmo depois disso, ainda posso mandar matarem você quando eu
quiser.
Bastou que ele dissesse isso para que ambos se dessem conta de que ele
tinha de dizê-lo, mas que não era verdade.
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Que Buisson já deveria estar morto há muito tempo se ele fosse mesmo
fazer isso.
Que, para Camille Verhoeven, ordenar um assassinato não condiz com o
que ele é.
E agora que sabe que não está arriscando nada, agora que entende que,
na verdade, talvez nunca tenha arriscado nada, Buisson toma a decisão de
descobrir o que Verhoeven precisa saber.
Ao sair da prisão, Camille se sente, ao mesmo tempo, aliviado e
terrivelmente abalado, como o último sobrevivente de um naufrágio.
9h
O frio me causa tantos problemas quanto o cansaço. Não dá para senti-lo
de imediato, mas, se você não começa a se mexer logo, rapidamente ica
congelado até os ossos. Vai ser fácil para atirar com precisão!
Mas pelo menos o local é tranquilo. A casa é térrea, extensa, sem andar
superior, embora tenha um telhado alto. O espaço é desobstruído na parte
da frente. Eu me preparo atrás de um minúsculo alpendre situado no
extremo do jardim de entrada, no passado isso devia ser uma coelheira ou
algo do tipo.
Deixo ali o fuzil de precissão, permaneço apenas com a Walther e o
punhal de caça, e saio do esconderijo para fazer um reconhecimento do
local.
Compreender a topologia é essencial. Os danos a se causar devem ser
bem dirigidos, nos lugares certos. Ser cauteloso. Preciso. Como dizem
mesmo? Ah, sim.“Cirúrgico”. Aqui, utilizar a Mossberg seria como utilizar
um rolo para pintar uma miniatura. Cirúrgico quer dizer fazer incisões
precisas nos locais necessários. E, como a parede envidraçada é
visivelmente à prova de muitas coisas, ico feliz por ter escolhido a m40a3
com sua mira telescópica, essa arma é muito precisa. Com grande poder de
perfuração.
Um pouco à direita da casa, encontra-se algo como um montículo. Por
cima dele, a terra deslizou com a chuva, ele é composto por materiais de
construção, gesso, blocos de cimento, que provavelmente foram separados
para serem jogados fora, o que, no im das contas, nunca foi feito. Esse não
é o posto ideal para eu me instalar, mas é tudo de que disponho. Daqui,
posso ver uma grande parte do cômodo principal, mas apenas de viés. Para
atirar, vou precisar icar de pé. No último segundo.
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Assim que se levantou, Anne foi até a porta para veri icar se Camille
havia trancado bem as fechaduras. A casa foi arrombada várias vezes, nada
espantoso para um lugar tão isolado, por isso, hoje tudo é blindado. A
grande parede de vidro é constituída por um duplo envidraçamento
reforçado, podem martelá-la, e ela sequer vai estremecer.
– Esse é o código para o alarme – disse Camille, mostrando a ela uma
página rasgada de um caderno. – Você digita jogo da velha, os números,
jogo da velha. Isso força o alarme a se ativar. Não está conectado ao
comissariado, não dura mais que um minuto, mas garanto, é bem
dissuasivo.
Os números são: 29091571, ela não teve vontade de perguntar ao que
eles correspondem.
– A data de nascimento de Caravaggio... – Ele parecia se desculpar. – Não
é uma má ideia para um código, não há muitos que o conhecem. Mas, eu
garanto mais uma vez, você não precisará dele.
Ela também visitou os fundos da casa, onde há uma lavanderia e um
banheiro. A única porta que dá para o exterior é blindada e também está
trancada.
Em seguida, Anne tomou um banho, como ela pôde, impossível lavar os
cabelos corretamente; hesitou em retirar as talas dos dedos. Não fez isso
ainda porque é muito doloroso, sempre que toca nas extremidades das
falanges, ela contém um grito. Vai ter que se adaptar a isso. Como se tivesse
patas de urso, apanhar o menor objeto se torna uma façanha. Ela faz o
máximo das coisas com o polegar direito, o esquerdo está luxado.
O banho lhe fez um bem imenso, sentiu-se suja a noite inteira, com a
impressão de carregar consigo os odores do hospital.
A água inicialmente fervente, bastante suave, acalentou-a por um longo
momento; ela abriu a janela e o ar deliciosamente fresco a revigorou.
Já seu rosto não parece mudar. No espelho, é o mesmo da noite anterior,
mas cada vez mais feio, mais inchado, mais roxo aqui, mais amarelado ali, e
esses dentes quebrados então...
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Ela encontrou chá natural, mas muito envelhecido, já sem nenhum gosto.
Ela se deu conta quase de imediato de que nessa casa ela é
constantemente obrigada a desfazer seus gestos, a fazer um pequeno
esforço suplementar para cada coisa. Pois essa é a casa de um homem de
um metro e quarenta e cinco, tudo nela é um pouco mais baixo do que em
outro lugar, as maçanetas das portas, das gavetas, os objetos, os
interruptores... Um olhar panorâmico e você pode avistar por toda parte
meios de icar mais alto, escadotes, escadas, banquinhos... pois,
estranhamente, nada também é da altura de Camille. Ele não excluiu
totalmente a possibilidade de compartilhar esse espaço com alguém, tudo
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está situado a uma altura intermediária entre o que seria confortável para
ele e aceitável para o outro.
Anne recebe essa constatação como uma punhalada no coração. Ela
nunca teve pena de Camille, não é o tipo de sentimento que ele provoca em
alguém, não, na verdade, ela está comovida. Sente-se culpada, mais aqui
que em outro lugar, mais agora que nunca, culpada por colonizar assim sua
vida, por arrastá-lo para a sua história. Ela se segura para não chorar,
decidiu que não vai mais se entregar às lágrimas.
Recuperar-se. Ela despeja o chá na pia com um gesto decidido, gesto de
raiva contra si mesma.
Está vestindo a parte de baixo do agasalho violeta e, na parte de cima,
uma blusa de gola alta; ela não tem mais nada que lhe pertence por ali. As
roupas que vestia quando foi para o hospital estavam cobertas de sangue,
os funcionários jogaram tudo fora, e, das roupas da sua casa que Camille
havia trazido, ele decidiu deixar a maior parte no armário para levar a
acreditarem, se alguém entrasse no quarto durante sua ausência, que ela
havia apenas saído brevemente do quarto. Ele estacionara perto da saída
de emergência, Anne serpenteou sinuosamente por trás da recepcionista,
subiu no carro e se deitou no banco de trás.
Ele prometeu lhe trazer roupas essa noite. Mas essa noite está muito
longe de chegar.
Durante a guerra, os homens deviam se fazer essa pergunta todos os
dias: é hoje que eu vou morrer?
Porque, apesar de toda a segurança de Camille, ele vai acabar vindo.
A única pergunta: quando? Agora ela está plantada na frente da grande
parede de vidro. Desde que começou a perambular pela sala, desde a
partida de Camille, ela tem se sentido sugada pela presença imponente
dessa loresta.
Sob a luz da manhã, isso parece uma alucinação. Ela se vira para ir ao
banheiro, mas volta à loresta. Algo idiota acabou de atravessar a sua
mente: em Odeserto dosTártaros, aquele posto avançado, diante do
deserto, pelo qual deve chegar o inimigo implacável.
Como alguém consegue sair vivo?
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compartilharam. E, depois, por causa dela mesma. Aquela não tem mais
nada a ver com a mulher que ela é hoje, os croquis remontam ao período
em que ela ainda era bela, com seus dentes intactos, sem os hematomas, as
cicatrizes na bochecha e ao redor dos lábios, o olhar perdido. Camille, com
alguns rabiscos do seu lápis, não fez mais que iscar alguns elementos do
cenário, mas Anne reconhece, quase todas as vezes, a circunstância que o
inspirou. Anne dominada por uma risada insana, a cena se passa no Chez
Fernand, no dia em que eles se conheceram, Anne de pé, na saída do
escritório de Camille, basta seguir o caderno página por página para
retraçar a história deles, aqui está Anne no Verdun, o café onde foram
conversar na segunda noite. Ela usa um gorro, sorri, está totalmente
segura de si e, ao ver a maneira com que Camille se lembra desse
momento, ela tinha bastante razão para estar assim.
Anne funga, pega um lenço. Eis sua silhueta caminhando pela rua, perto
da Opéra, ela veio se encontrar com ele, Camille tem ingressos para
Madame Butter ly, e, então, logo em seguida, Anne no táxi imitando a
protagonista. Cada página narra a história deles juntos, semana após
semana, mês após mês, desde o começo. Anne aqui e ali, no chuveiro e em
seguida na cama, por várias páginas; ela chora, sente-se feia, mas Camille,
por sua vez, projeta sobre ela um belo olhar. Ela estende o braço para a
caixa de lenços, precisa se levantar para alcançá-la.
É exatamente no momento em que ela apanha o lenço que a bala
atravessa a porta de vidro e estilhaça a mesa de centro.
Anne receava esse momento desde a hora em que acordou, ainda assim,
ica surpresa. Não pelo barulho habitual de um disparo de fuzil, mas pelo
impacto da bala, que lhe dá a impressão de que toda a fachada da casa vai
desabar. E a mesa se estilhaçando de uma só vez sob suas mãos a deixa
estupefata. Ela solta um grito. Tão rápido quanto seus re lexos permitem,
encolhe-se como um porco-espinho. No primeiro golpe de vista para fora,
vê que a porta de vidro não se estilhaçou. No local em que a bala passou há
um grande buraco brilhante do qual partem longas issuras... Quanto
tempo ela vai conseguir resistir?
Anne percebe rapidamente que ela é um alvo exposto. Onde encontra
energia, impossível dizer: com um movimento dos quadris, ela se lança por
cima do encosto do sofá.
O rolamento lateral comprime suas costelas fraturadas, deixando-a sem
ar; ela desaba pesadamente, grita, mas o instinto de sobrevivência é mais
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Camille abre as mãos, obrigado. O juiz Pereira balança a cabeça, não tem
de quê.
Esse encontro é sua última chance, Camille sabe disso. Entre a amizade e
o apoio de Le Guen e a atitude benevolente do juiz, resta-lhe uma
esperança ín ima de escapar do dilúvio. Ele se agarra a ela, o juiz pode ver
isso claramente no seu rosto. Também tem algo de curiosidade, não
consegue esconder isso, o que acontece com Verhoeven, o que estão
dizendo dele há dois dias, parece estranho a tal ponto que desperta
vontade de ir ver mais de perto, de tirar as próprias conclusões.
– Obrigado – diz Camille.
A palavra soa como uma con issão, como um pedido. Pereira faz um sinal
para ele; em seguida, incomodado, vira-se, desaparece.
Ela levanta a cabeça subitamente. Ele parou de atirar. Onde será que ele
está?
Os fundos da casa. A janela do banheiro de baixo foi deixada entreaberta.
Ela é estreita demais para a passagem de um corpo, mas não deixa de ser
uma abertura e, de agora em diante, ninguém sabe do que ele é capaz.
Sem considerar os riscos que está correndo, Anne se precipita; sem
pensar que ele ainda pode estar à espreita do outro lado da parede
envidraçada, ela se lança escada abaixo, pula por cima do último degrau,
vira à direita, quase cai.
Quando ela irrompe na lavanderia, ele já está diante dela, do outro lado
da janela.
Seu rosto sorridente aparece emoldurado pela janela como um retrato
formal. Ele passa o braço através da abertura. Tem na mão uma pistola
equipada com um silenciador e apontada em sua direção. O cano é de uma
extensão fora do comum.
Assim que a vê, ele atira.
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Camille entra no seu escritório, lança seu casaco sobre uma cadeira,
procura e digita o número do telefone da sede de Wertig & Schwindel
olhando para o relógio. Nove horas e quinze minutos. Alguém atende.
– Gostaria de falar com Anne Forestier, por favor?
– Não saia da linha – diz a recepcionista –, vou veri icar.
Suspiro. O aperto no peito relaxa. Mais um pouco e ele soltaria um grito
de alívio.
– Perdão... quem mesmo? – pergunta a jovem mulher. – Me desculpe –
uma voz risonha, que busca cumplicidade –, estou substituindo outra
pessoa...
Camille engole a saliva. O aperto volta ao peito, mas a dor agora se
espalha por todo o corpo, a angústia aumenta a uma velocidade...
– Anne Forestier – diz Camille.
– Em que setor ela trabalha?
– É... auditoria de gestão ou algo assim.
– Sinto muito, não estou encontrando na lista de colaboradores... Não
saia da linha, vou passar para outra pessoa...
Camille sente os ombros se contraírem. Uma mulher responde, talvez
aquela que Anne disse ser “uma mala”, mas não pode ser ela, porque Anne
Forestier, não, esse nome não lhe diz nada, não diz nada a ninguém, ela se
oferece para procurar, o senhor tem certeza do nome? Posso passar para
outra pessoa, seria a respeito de quê?
Camille desliga.
Ele tem a garganta seca, precisa tomar um copo de água, não tem tempo,
as mãos estão tremendo.
Insere sua senha.
Com um clique, abre o motor de busca: “Anne Forestier”. Existem muitas.
Simpli icar. “Anne Forestier, nascida no dia...”.
A data ele vai lembrar, eles se conheceram no começo de março e, três
semanas depois, quando ele descobriu que era o aniversário dela, Camille a
convidou para o Chez Nénesse. Ele não tivera tempo de comprar um
presente, apenas fez o convite, Anne diz rindo que, para um aniversário,
um jantar cai muito bem, ela adora sobremesas. Ele fez o retrato dela no
guardanapo e lhe deu de presente, não fez nenhum comentário a respeito,
mas icou muito orgulhoso com esse retrato, muito inspirado, muito
realista. Alguns dias são assim.
Ele tira seu celular do bolso, abre a agenda: 23 de março.
Anne tem quarenta e dois anos. Mil novecentos e sessenta e cinco.
Nascida em Lion? Não tem certeza. Busca na sua memória da noite, será
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que ela mencionou seu lugar de nascimento? Ele apaga “Lion”, valida a
busca, o sistema lhe envia duas Anne Forestier, o que é comum, digite sua
data de nascimento, se o seu nome for comum o bastante, você vai
encontrar irmãos gêmeos por toda parte.
A primeira Anne Forestier não é a sua. Ela morreu no dia 14 de fevereiro
de 1973, com oito anos.
A segunda também não. Faleceu no dia 16 de outubro de 2005. Há dois
anos.
Camille esfrega os dedos contra as palmas da mão repetidamente. Ele
conhece bem a agitação que está sentindo, faz parte fundamental do seu
trabalho, não se trata mais somente de pro issionalismo irrequieto, mas da
aparição de uma anomalia. E, em matéria de anomalias, ele é campeão
incontestável, todos podem ver isso de primeira. Só que, desta vez, essa
anomalia corresponde a uma outra, à do próprio comportamento, que
ninguém está conseguindo entender.
Que nem ele mesmo consegue entender.
Por que ele está nessa luta?
Contra quem?
Algumas mulheres mentem sobre a data de nascimento. Não é do feitio
de Anne, mas nunca se sabe.
Camille se levanta e abre o armário. Ninguém nunca organiza as coisas
ali dentro. Sua desculpa para nunca se ocupar disso é a altura. Quando ela
lhe serve de algo, ele nem pensa duas vezes... São necessários alguns
minutos para encontrar o manual de instruções que está procurando. Não
pode pedir ajuda para ninguém.
– O que mais demora depois de um divórcio é fazer a limpeza – disse
Anne.
Camille pousa as mãos abertas sobre a mesa para se concentrar. Não,
impossível, ele precisa de um lápis, de um papel. Ele rabisca. Tenta se
lembrar. Eles estão na casa dela. Ela está sentada no sofá-cama, ele acabou
de dizer que esse apartamento é muito... como dizer, para falar a verdade,
ele é meio lúgubre. Ele tentou escolher uma palavra que não fosse ofensiva,
mas, independentemente do que viesse a fazer, uma frase iniciada dessa
maneira, preenchida por um longo silêncio constrangedor, está fadada ao
fracasso, é apenas questão de tempo.
– Não estou nem aí – diz Anne de forma seca. – Eu queria mesmo me
livrar de tudo.
A lembrança vem à mente. É preciso voltar ao divórcio, eles nunca
falaram dele de fato, Camille não fez perguntas.
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Assim que o viu diante dela, Anne se atirou no chão, a bala cravou no
batente da porta, alguns centímetros acima da sua cabeça. Depois daquela
que ricocheteou na lareira de ferro causando um estardalhaço, o disparo
da arma soa quase abafado, mas o impacto contra a madeira é
ensurdecedor.
Anne, engatinhando, remexe-se freneticamente para sair da lavanderia.
Apavorada. É bizarro, essa é exatamente a mesma cena de dois dias antes
na galeria Monier. Aí vai ela de novo patinando pelo chão, antes que ele
consiga atirar nas suas costas...
Ela rola sobre si mesma, as talas deslizando pelo piso encerado; a dor
não conta mais, não existe mais dor, apenas instinto.
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Outra bala passa raspando pelo ombro direito e se crava na porta. Anne
corre como um cachorrinho, rola de novo sobre o copo para chegar à
soleira da sala. Miraculosamente, agora ela se encontra sentada e
protegida, as costas coladas contra a parede.
Será que ele consegue entrar? Como?
Curiosamente, ela não largou o celular. Ela se atirou correndo pelas
escadas, jogou-se no chão, correu até aqui sem soltá-lo, como essas
crianças que se agarram a um bicho de pelúcia enquanto o mundo desaba
ao redor.
O que será que ele está fazendo? Ela queria poder olhar, mas se estiver à
espreita, ela vai levar a terceira bala na cabeça.
Pensar. Rápido. Seu dedo já teclou o número de Camille. Ela desliga, está
sozinha.
Ligar para a polícia? Onde vai ter polícia nesse im de mundo? Explicar
para eles vai demorar um tempo insano e, se decidirem vir, quanto tempo
vão levar para chegar até aqui?
Dez vezes mais tempo do que Anne vai levar para morrer. Pois ele está
ali, muito perto, do outro lado da parede.
A solução agora se chama Caravaggio.
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Anne põe o telefone no chão, ela vai ter que rastejar, faz isso apoiando-se
sobre os cotovelos, lentamente, se ela pudesse se fundir ao piso... Completa
uma grande volta pela sala. E aqui está a pequena fruteira onde Camille
deixou o código.
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Camille mal ouve a voz de Louis, que acaba de in iltrar a cabeça pela
porta do escritório; ele bateu, mas ninguém respondeu.
– O juiz Pereira está vindo falar com o senhor...
Camille ainda não saiu totalmente do seu atordoamento. Precisaria de
mais tempo, precisaria ser muito inteligente, rigoroso, racional, insensível
para entender, para extrair as lições certas, seria preciso uma série de
qualidades que Camille não tem.
– O quê? – pergunta ele.
Louis repete. Muito bem, murmura Camille se levantando. Ele apanha o
casaco.
– Tudo bem? – pergunta Louis.
Camille não ouve. Ele acabou de tirar o celular do bolso. Uma mensagem
aparece no visor. Anne ligou! Ele rapidamente aperta o botão, liga para a
caixa postal. Logo nas primeiras palavras, “Ele está aqui! Atenda, eu
imploro...!”, ele já está na porta, passa e tromba com Louis, está no
corredor, atravessa o patamar trombando com tudo, a escada, o andar de
baixo, quase tromba com uma mulher, é a comissária Michard,
acompanhada do juiz Pereira, eles estavam subindo justamente para
encontrá-lo, falar com ele, o juiz abre a boca, Camille não faz nem um
milésimo de pausa, lançando-se pela escada, ele grita:
– Mais tarde eu explico!
– Verhoeven! – grita a comissária Michard.
Mas ele já está lá embaixo, junto ao carro. A porta estala, o braço
esquerdo passa pelo vidro abaixado. No instante em que o veículo engata a
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marcha a ré, para colocar o giro lex sobre o teto, a sirene já ressoa e os
faróis estão acesos; ele arranca de uma vez, um guarda apita para parar o
trânsito e deixá-lo passar.
Camille entra na faixa de ônibus, de táxis, ele tecla de novo o número de
Anne. Deixa no viva-voz.
Atenda, Anne!
Atenda!
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Ela vira a cabeça para o chão do terraço. Não tinha visto que ele havia
posto no chão a jaqueta de couro, o cabo da pistola é visível, ostensivo, e,
saindo de outro bolso, o cabo de um punhal. Como os restos mortais de um
soldado romano. Ele en ia a mão nos bolsos e as tira devagar, exibindo o
forro da calça: veja, nada nas mãos, nada nos bolsos.
Apenas dois passos. Ela já deu tantos. Ele não moveu um cílio. Ela se
decide, en im, de uma vez, como se se atirasse ao fogo. Um passo, a
di iculdade de puxar o ferrolho com as talas, sem contar que mal consegue
fechar as mãos.
Assim que o ferrolho cede, que a porta ica livre, que não há mais que um
passo a dar para entrar, ela recua com rapidez, põe a mão na boca, como se
de repente tomasse consciência do que acabou de fazer.
Anne mantém os braços caídos ao lado do corpo. Ele entra. É mais forte
que ela:
– Seu desgraçado! – ela grita. – Seu desgraçado, seu desgraçado, seu
desgraçado...
Andando para trás, a boca escancarada, impropérios misturados a
lágrimas vindos lá do fundo, do ventre, seu desgraçado, seu desgraçado.
– Ora, vamos...
Nitidamente, ele acha isso tudo maçante. Dá três passos, com o ar
curioso e interessado de um visitante, de um agente imobiliário, nada mal
o sótão, nada mal a iluminação... Anne, esbaforida, refugia-se perto da
escada que dá para o andar de cima.
– Melhorou? – pergunta ele, virando-se para ela. – Está mais calma?
– Por que você quer me matar? – grita Anne.
– Mas... o que a faz pensar isso?
Ele se demonstra contrariado, quase ultrajado.
Anne está fora de si; todo o seu medo, toda a sua raiva são postos para
fora, sua voz é alta e aguda, ela não está mais com a mão na frente da boca,
não está mais retraída, apenas ódio, mas, ao mesmo tempo, tem medo dele,
medo de que bata nela de novo; ela recua...
– Você está tentando me matar!
Ele suspira, sente-se cansado antes de explicar... como isso é maçante.
Anne continua:
– Aquilo não fazia parte do plano!
Dessa vez, ele balança a cabeça, desesperado diante de tamanha
ingenuidade.
– Ah, fazia, sim!
Ele tem sempre que explicar tudo. Mas Anne não terminou.
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– Não! Você deveria apenas me empurrar! Foi o que disse: “Vou só te dar
uns empurrões”!
– Mas... – Ele não sabe o que dizer ao ver que precisa explicar coisas tão
básicas. – Mas tinha que ser convincente! Você entende? Con-vin-cen-te!
– Você está me perseguindo por toda parte!
– Sim, mas preste atenção! É por uma boa causa...
Ele ri. A raiva de Anne aumenta dez vezes.
– Aquilo não fazia parte do plano, seu ilho da puta!
– Tudo bem, posso não ter passado todos os detalhes para vocês, é
verdade... E, depois, não me chame de ilho da puta porque senão eu vou
ter que te dar uma surra, logo, logo.
– Desde o começo você quer me matar!
Desta vez, ele é dominado pela raiva.
– Matar você? Isso com certeza não, queridinha! Se realmente quisesse
matar você, posso garantir que, com as oportunidades que eu tive, você
não estaria aqui para falar isso. – Ele levanta o indicador, a im de dar
ênfase ao que diz. – Com você, busquei causar um grande impacto, é muito
diferente! E, acredite em mim, isso é muito mais di ícil do que pensam.
Principalmente no hospital. Garanto que, para assustar o seu tira sem fazer
com que ele acabasse convocando a Guarda Nacional, deu trabalho, isso
exige habilidade!
O argumento faz sentido. Ele a deixa fora de si.
– Você arrebentou a minha cara! Quebrou os meus dentes! Você...
O rosto dele faz uma pequena careta compassiva.
– Isso eu devo admitir, você não está bonita de se ver. – Ele se esforça
para conter o riso. – Mas tudo tem conserto hoje em dia, os médicos fazem
milagres. Quer saber? Quanto aos dentes da frente, se eu conseguir a
grana, eu te dou dois dentes de ouro. Ou de prata, o que preferir, você
escolhe. Se quiser arrumar um marido, sugiro dentes de ouro para
substituir os da frente, são mais chiques...
Anne desabou, de joelhos, encolhida sobre o próprio corpo. As lágrimas
não lhe sobem mais, somente ódio.
– Um dia, eu vou matar você...
Ele ri.
– Ora, sua rancorosa, também não é pra isso... Está falando assim porque
está com raiva. – Ele caminha pela sala como se estivesse em casa. – Não,
não – diz ele com uma voz mais grave –, acredite em mim, se tudo correr
bem, vão tirar os seus pontos, você vai colocar dentes de plástico e voltar
bem-comportada para casa.
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10h30
Camille se acalmou um pouco, ele apagou e guardou o giro lex. Tem
informações demais para sintetizar e ainda se sente bombardeado pelas
emoções, incapaz de ordenar as coisas...
Há dois dias, caminha sobre uma tábua bamba, um precipício de cada
lado. E Anne acabou de cavar outro, bem debaixo dos seus pés.
Apesar de provavelmente estar colocando sua carreira em risco, de
alguém ter tentado em dois dias matar três vezes a mulher que está na sua
vida, de ele ter acabado de descobrir que ela está usando um nome falso,
de não saber que lugar exato ela ocupa nessa história, ele deveria estar se
fazendo perguntas estratégicas, raciocinando, mas a sua mente está
monopolizada por uma única pergunta que de ine a relevância de todas as
demais: o que Anne está fazendo na vida dele?
Não, não apenas uma pergunta, ele tem uma segunda: o fato de ela ser
ou não Anne, que diferença faz?
Ele recompõe a história deles, aquelas noites em que se encontravam,
mal se tocavam e mais tarde já estavam rolando por debaixo dos lençóis...
Em agosto, ela termina com ele, uma hora depois, ele a encontra na escada,
teria sido aquilo uma simples manobra da parte dela? Um truque? As
palavras, as carícias, os abraços, as horas e os dias, pura e simples
manipulação?
Em breve, ele vai se ver diante daquela que se faz chamar Anne
Forestier, com quem ele tem dormido há vários meses e que tem mentido
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desde o primeiro dia. Ele não sabe o que pensar, sente-se esvaziado, como
se tivesse saído de um espremedor.
Qual é a relação entre a identidade falsa de Anne e o caso da galeria
Monier?
E, principalmente, qual o papel dele nessa história?
Mas o que é essencial: alguém está tentando matar essa mulher.
Ele não sabe mais quem ela é, mas tem uma certeza. Cabe a ele protegê-
la.
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– Não, sozinho...
A voz dela é grave, vibrante.
– Era o mesmo que você reconheceu nas fotos? O Hafner, era mesmo ele?
Sim. Anne limita-se apenas a um movimento com a cabeça, era ele.
– Me conte o que aconteceu.
Enquanto Anne conta (diz apenas palavras entrecortadas, nunca frases
de verdade), Camille recompõe a cena. O primeiro tiro. Ele vira a cabeça
para os estilhaços de vidro que cobrem o chão no lugar onde se encontrava
a mesa de centro, os estilhaços de madeira de cerejeira que parecem ter
passado por um vendaval. Enquanto escuta, ele se levanta, aproxima-se da
porta de vidro, o buraco da bala é muito alto para que consiga tocá-lo, ele
ica imaginando a trajetória.
– Continue... – disse ele.
Agora ele se encontra junto à parede, então volta para a lareira, põe o
indicador sobre o buraco da bala, levanta a cabeça, olha de longe para o
largo buraco na parede, em seguida, dirige-se para a escada. Permanece ali
um longo momento, a mão sobre o que sobrou do primeiro degrau; ele
olha para o alto da escada, pensativo, vira-se para o lugar de onde partiu o
disparo, do outro lado da sala, em seguida, ele sobe o segundo degrau.
– E depois? – pergunta ele, descendo.
Ele sai da sala, entra no banheiro. A voz de Anne agora está longe, di ícil
de ouvir. Camille continua a recompor a cena, ele está em casa, mas trata-
se de uma cena de crime. Portanto, deve proceder por: hipóteses,
constatações, conclusões.
A janela entreaberta, Anne chega à lavanderia, Hafner a espera do outro
lado, o braço inteiro passa pela brecha do vidro, ele ergue na direção dela
sua arma munida de um silenciador. Acima da própria cabeça, Camille
avista a marca da bala no batente, ele volta para a sala.
Anne se cala.
Ele vai buscar uma vassoura debaixo da escada e varre apressadamente
os pedaços de vidro e de madeira da mesa de centro para a parede. Bate
rapidamente o pó do sofá. Esquenta água.
– Venha... – diz ele. – Já passou...
Eles estão sentados, Anne encosta o corpo contra o dele, eles sorvem o
que Camille chama de chá, muito ruim, mas Anne não vai reclamar.
– Vou te levar para outro lugar.
Anne faz que não com a cabeça.
– Por quê?
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Camille é dominado pelo cansaço. Sob esse céu cinzento, essa loresta
que se ergue à sua frente, essa casa corpulenta e langorosa transformada
em um bunker, o fardo desse mistério nas costas, ele dormiria o dia todo
se fosse escutar os apelos do seu corpo. Mas é Anne que ele escuta, sua
respiração, o ruído da sua boca terminando de beber seu chá, o silêncio,
esse desconforto mudo que se instalou entre eles.
– Você vai conseguir achá-lo? – en im pergunta Anne, em voz baixa.
– Ah, sim.
A resposta veio sem esforço, a expressão de uma convicção tão íntima,
tão forte que a própria Anne ica impressionada.
– Você vai me contar na hora, não vai?
Para Camille, o subtexto de cada pergunta poderia compor sozinho um
romance inteiro. Ele franze as sobrancelhas: por quê?
– Quero me sentir tranquila, acho que entende isso, não é?
Anne elevou a voz e, dessa vez, não pôs a mão na frente da boca, a
gengiva com os dentes quebrados exposta, como um tapa.
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– Claro...
Mais um pouco e ele pediria desculpas.
O silêncio de ambos se uni ica. Anne adormeceu. Camille não tem
palavras, ele precisaria de um lápis, desenharia, em poucos traços, a
solidão que eles têm em comum, cada um se encontra num ponto extremo
de sua história, estão juntos e separados. Inexplicavelmente, ele nunca se
sentiu tão próximo dela, uma obscura solidariedade o prende a essa
mulher. Ele se afasta com suavidade, põe delicadamente a cabeça de Anne
sobre o sofá e se levanta.
Chegou a hora. Vamos tirar essa história a limpo.
Ele sobe a escada com uma lentidão de índio, conhece cada degrau, cada
rangido, não faz nenhum barulho, além disso, ele não pesa muito.
No andar de cima, o quarto é inclinado, o teto se abaixa formando uma
curvatura vertiginosa, o extremo do cômodo só tem algumas dezenas de
centímetros. Camille deita-se no chão, rasteja até o pé da cama, até um
painel de madeira que ele puxa na sua direção e que permite chegar às
vigas do teto, uma tampa de acesso. O interior está imundo de poeira, de
teias de aranhas, passar a mão por ali é uma aventura. Camille passa o
braço, procura aos tatos, encontra o saco plástico, apanha-o e puxa. Um
saco de lixo cinza cobrindo uma pasta grossa fechada com elásticos. Ele
não a abre desde...
Essa história o confronta incessantemente com o que ele teme.
Ele procura algo ao redor, retira a fronha do travesseiro e coloca
cautelosamente dentro dela o saco plástico cuja sujeira, como cinzas, sobe
em formato de nuvem diante do menor movimento. Levanta-se, carrega o
saco, desce as escadas com mil precauções.
Alguns minutos depois, ele deixa um recado para Anne. “Descanse. Ligue
para mim quando quiser. Eu volto bem rápido.” Eu vou te proteger, não,
isso ele não ousa escrever. Em seguida, percorre a casa inteira, testa todos
os trincos, veri ica todas as fechaduras.
Antes de sair, olha para o corpo de Anne de longe, deitado sobre o sofá.
Deixá-la ali lhe dá um aperto no coração. É di ícil ir embora, mas é
impossível permanecer.
Hora de ir. Com a pasta enorme debaixo do braço, embalada pela fronha
listrada, Camille atravessa o jardim de entrada, avança em direção à
loresta, até o lugar onde estacionou o carro.
Então, ele se vira para trás. É como se aquela casa silenciosa tivesse sido
edi icada sobre um pedestal no meio da loresta, como objeto de uma
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11h30
À medida que Paris se aproxima, a paisagem mental de Camille se
simpli ica. As coisas não icaram mais claras, mas agora ele sabe onde
colocar os pontos de interrogação.
O mais urgente é saber fazer as perguntas certas.
Durante um assalto, um assassino ataca essa mulher que usa o nome de
Anne Forestier. Ele sai na sua captura, quer matá-la e vai persegui-la até
mesmo em Montfort.
Qual será a relação entre a identidade oculta de Anne e esse assalto?
Tudo ocorreu como se ela tivesse surgido ali por acaso, como se ela
apenas tivesse ido buscar um relógio encomendado para Camille, mas os
dois acontecimentos, por mais distantes que parecessem ser, estão
interligados. Estritamente.
Existem duas coisas quaisquer que não estejam interligadas?
Em relação a Anne, Camille não conseguiu descobrir a verdade, ele
sequer sabe quem ela é na realidade. Então, ele precisa partir de outro
ponto. Da outra extremidade do io.
No seu celular, três ligações de Louis, que não deixou mensagem, o que
faz parte do seu estilo. Apenas um : “Precisa de ajuda?”. Um dia, quando
ele terminar com a história toda, Camille vai perguntar a Louis se ele o
deixa adotá-lo.
E três mensagens de Le Guen dizendo a mesma coisa. Mas o teor se
altera, a voz de Jean vai se esvaindo de mensagem em mensagem, elas são
cada vez mais curtas. E cada vez mais prudentes. “Ouça, preciso que você
me lig...”, Camille passa para outra. “En im... Por que você não...?” Camille
passa. Na última, Le Guen está sério. Na verdade, está descontente: “Se não
me ajudar, não posso ajudar você”. Camille passa.
Sua mente limpa tudo o que interfere e continua a seguir seu embalo.
Permanecer concentrado no essencial.
Tudo icou mais complicado.
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12h
No banheiro, Anne observa mais uma vez sua gengiva, aquele buraco
horrível. Ela entrou no hospital com um nome falso, não poderá recuperar
seu prontuário médico, as radiogra ias, análises, diagnósticos, vai ter que
fazer tudo de novo. Recomeçar do zero, em todos os sentidos do termo.
Ele alega que não quis matá-la porque precisa dela. Pode dizer o que
quiser, ela não acredita em uma palavra sequer. Anne teria cumprido sua
função morta ou viva. Ele a agrediu com tanta violência, com tanta
vontade... Podia até argumentar que aquilo era necessário para sua
encenação, mas ela não tem dúvida: tivera tanto prazer em bater nela
daquela maneira que, se naquele instante pudesse massacrá-la ainda mais,
ele o teria feito.
Ela encontra, no armário de remédios, uma pequena tesoura pontiaguda
e uma pinça de depilação. O médico, o jovem indiano, assegurou que o
ferimento era mais fundo; considerava retirar seus pontos só depois de
uns dez dias, mas ela quer fazer isso imediatamente. Também achou uma
lupa em uma gaveta da escrivaninha de Camille, mas trabalhar com duas
ferramentas improvisadas dentro de um cômodo mal iluminado para fazer
esse tipo de procedimento não é o ideal. Só que ela não quer esperar. E,
desta vez, isso não tem a ver com sua mania de limpeza. Isso era o que ela
dizia a Camille quando eles estavam juntos, que ela desejava fazer uma
limpeza. Não desta vez. Contrariamente ao que ele pensará depois, quando
tudo tiver terminado, ela mente muito pouco para ele. O mínimo
necessário. Pois se trata de Camille, para quem é di ícil mentir. Ou fácil
demais, o que dá na mesma.
Anne enxuga os olhos com a manga da blusa, já não é simples tirar os
pontos sozinha, se para completar ela estiver com os olhos molhados,
então... São onze pontos. Ela segura a lupa com a mão esquerda, a tesoura
com a mão direita. De perto, esses iozinhos pretos se parecem com
insetos. Ela desliza a ponta debaixo do primeiro nó, a dor é imediata,
aguda, pontuda como a tesoura. Em circunstâncias normais, isso não
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deveria doer, mas ela sente dor porque a ferida ainda não está fechada. Ou
porque está infeccionada. É preciso empurrar a ponta da tesoura bem para
a frente para conseguir cortar os nós, Anne faz uma careta, um movimento
seco, o primeiro inseto acabou de morrer, falta só retirá-lo. Suas mãos
tremem. O io resiste, ainda colado debaixo da pele, ela precisa puxá-lo
com a pinça, apesar dos tremores. En im, ele cede, seu deslizamento sob a
ferida causa uma péssima sensação, Anne examina com a lupa em seguida,
mas ainda não consegue ver nada; ataca o segundo io, está tão tensa, tão
nervosa que precisa se sentar, respirar um pouco...
De volta ao espelho, ela comprime o ferimento fazendo uma careta, aí vai
o segundo io, agora o terceiro. É cedo demais para extraí-los, pela lupa se
vê que a ferida ainda está vermelha, não se fechou. O quarto io é mais
resistente, mais colado à pele que os anteriores, mas a vontade de Anne é
inabalável; ela o raspa com a ponta da tesoura, cerra os dentes, consegue
passar por baixo dele, segura, erra na hora de cortar, tenta de novo, a ferida
começa a sangrar, aberta. En im, o io cede, ela o puxa para cima. Agora a
ferida sangra abertamente, rosa em cima e vermelha embaixo, gotas de
sangue grandes como lágrimas; os ios seguintes se entregam, por sua vez,
e deslizam pela pele. Ela joga os cadáveres na pia e, com os últimos, faz o
procedimento meio às cegas, porque o sangue que ela enxuga logo volta à
super ície; ela só para quando todos os ios estão partidos. O sangue
escorre. E escorre. Sem pensar, ela apanha no armário o frasco plástico de
álcool com concentração a 90%. Sem querer saber de compressa, faz uma
concha com a mão, coloca o álcool dentro e o aplica diretamente na ferida.
Que dor ela sente... Anne grita e bate o punho com violência na pia, os
dedos, mal protegidos pelas talas que cedem, fazem-na gritar de novo. Mas
hoje esse grito lhe pertence, ninguém veio arrancar dela.
Uma segunda vez, a mão, o álcool diretamente no rosto com a palma da
mão. Anne se apoia com as duas mãos na beirada da pia, quase
desfalecendo, mas se mantém irme.
Então, quando a dor diminui, uma compressa embebida de álcool, bem
apertada sobre a bochecha. Quando ela o tira, o curativo exibe uma ferida
túrgida, feia, que continua a sangrar mais um pouco.
Essa é uma cicatriz que vai permanecer. Retilínea, atravessando a
bochecha. Se fosse um homem, chamariam aquilo de cicatriz de guerra.
Di ícil saber como a marca vai icar, mas não é di ícil perceber que ela
nunca irá embora.
É de initiva.
E, se fosse preciso cavar a ferida com uma faca, ela o faria.
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12h30
O estacionamento do setor de emergências está sempre lotado. Dessa
vez, para ter o direito de entrar, Camille é obrigado a exibir sua carteira
policial.
A recepcionista desabrocha como uma rosa. Uma rosa murcha, mas que
se esforça para manifestar simpatia.
– Então quer dizer que ela sumiu mesmo?
Como se ela soubesse a importância que isso tem para o comandante
Verhoeven, ela faz um beiço, entristecida, o que aconteceu, isso deve ter
sido um choque para o senhor, isso é ruim para a imagem da polícia, não é?
Camille quer se livrar dela, mas não é tão fácil como esperava.
– E o formulário dela?
Camille volta até ela.
– Veja bem, isso não é lá da minha alçada, mas, quando uma paciente sai
pela tangente e não temos nem sequer seu número de seguro social para
debitar seu atendimento, pode ter certeza, os superiores enlouquecem. E
os patrões caem em cima de todo mundo, sendo você responsável ou não,
eles não fazem distinção, eu também já senti como é na pele... É por isso
que estou perguntando.
Camille balança a cabeça, eu entendo, com a feição de se compadecer,
enquanto a recepcionista atende ligações. É óbvio que, tendo entrado aqui
com um nome falso, Anne teria sido totalmente incapaz de fornecer um
cartão de seguro social ou convênio. Eis por que ele não encontrou
nenhum documento com seu nome na sua casa. Ela não tem nenhum, pelo
menos com esse nome de empréstimo.
Ele logo sente uma grande vontade de ligar para ela, assim, sem razão,
como se estivesse com medo de resolver esse caso sem ela, fora do seu
alcance; tem vontade de contar para Anne...
Nisso ele toma consciência de que ela provavelmente não se chama
Anne.Tudo o que essa palavra representa em seu imaginário não serve
para nada. Camille se sente desamparado; até mesmo o nome dela ele
perdeu.
– Algo de errado? – pergunta a recepcionista.
Não, tudo bem. Camille adquire um ar de preocupação; essa é a
expressão mais e icaz quando se precisa confundir alguém.
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13h
Você passa pelo cercado, caminha pela alameda. À sua frente, uma
construção cor-de-rosa, acima, grandes árvores, você poderia achar que
está chegando a uma mansão, di ícil imaginar que, por detrás dessas
janelas, as pessoas agrupam cadáveres e os dissecam. Aqui, corações e
ígados são pesados, crânios são cerrados. Camille conhece o lugar como a
palma da mão, ele o detesta. É das pessoas que ele gosta, os funcionários,
os peritos, os médicos-legistas, Nguyen sobretudo. Viveu muitas
lembranças com ele, desagradáveis, duras, isso ajuda a criar vínculos.
Camille entra como de costume, ele acena para um e para outro. Sente
bem que existe certo desconforto no ar, que o rumor também chegou até
aqui. Sente isso diante dos sorrisos amarelos, as mãos que se estendem,
hesitantes.
Já Nguyen continua o mesmo, uma espécie de es inge, impenetrável, é
um pouco mais alto que Camille, tão magro quanto, a última vez que sorriu
foi em 1984. Ele aperta a mão de Camille, ouve, olha para a pasta que
recebe. Circunspecto.
– Só dê uma rápida passada de olhos. Quando sobrar um tempo.
“Uma rápida passada de olhos” quer dizer: quero sua opinião, tenho uma
dúvida, cabe a você tirar, não vou lhe explicar nada, não quero in luenciá-lo
e, se puder fazer isso o quanto antes...
“Quando sobrar um tempo” quer dizer: isso não é assunto o icial, é
pessoal – eis o que con irma o rumor segundo o qual Verhoeven está no
olho do ciclone –, e então Nguyen diz combinado, para Camille ele nunca
nega nada. Ainda mais considerando que ele não corre nenhum risco, gosta
dos mistérios, adentrar as brechas, tatear os detalhes de perto, ele adora,
a inal, é um médico-legista.
– Pode me ligar por volta das cinco?
Ao dizer isso, ele fecha a pasta dentro da gaveta, assunto pessoal.
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13h30
Agora é hora de passar de novo no escritório. Diante do que está à sua
espera, ele não tem a menor vontade, mas precisa.
Pelos corredores, Camille cumprimenta os colegas, não é nem um pouco
necessário ser psicólogo para sentir o clima pesado. No Instituto Médico-
Legal, ele era abafado. Aqui, é gritante. Como em todos os escritórios, três
dias é um prazo mais que su iciente para um rumor. E, quanto mais vago
ele é, mais aumenta, o efeito é mecânico. Típico. Certos gestos de simpatia
têm o teor de condolescências.
Ainda que o interrogassem, Camille não tem a menor vontade de falar
nem de se explicar, com ninguém, ele também não saberia o que dizer, por
onde começar. Felizmente, da sua equipe, quase todos estão na rua, há
apenas dois na Brigada, Camille acena, o colega está ao telefone, ele levanta
o braço, bom dia, comandante, o outro mal tem tempo de se virar, Camille
já se foi.
Um pouco depois, chega Louis. Ele entra sem dizer uma palavra na sala
do comandante. Os dois homens olham um para o outro.
– Tem bastante gente atrás de você...
Camille se curva sobre a mesa. Uma convocação da comissária Michard.
– Estou vendo...
Marcada para as dezenove e trinta. Depois do expediente. Na sala de
reuniões. Território neutro. A convocação não cita quem vai estar presente.
O procedimento não é habitual. Quando um tira está sob suspeita, não o
convocam para se explicar, o que seria o mesmo que preveni-lo de que há
um inquérito aberto envolvendo-o. Isso signi ica que, prevenido ou não,
não faz diferença, Michard dispõe de evidências concretas que Camille não
tem mais tempo para neutralizar.
Ele não tenta entender, isso não é o mais urgente, dezenove e trinta, o
mesmo que daqui a mil anos.
Ele pendura o casaco, mergulha a mão no bolso e tira um saco plástico
que manipula com as duas mãos, como um tubo de nitroglicerina, para não
tocar com seus dedos. E coloca a caneca sobre sua mesa. Louis aproxima-
se, debruça-se com curiosidade, lê em voz baixa: Мой дядя самых
честных правил…
– É o primeiro verso de Eugene Onegin7, não?
Pela primeira vez, Camille sabe a resposta. E é sim. A caneca pertencia a
Irene, ele não diz isso a Louis.
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que podemos sonhar quando estamos na polícia: brilhar aos olhos dos
chefes.
– “A conquista é...”.
– Manda ver, Louis! Mais uma citação!
Louis sorri.
– Não – continua Camille –, deixe-me adivinhar: Essa é de Saint-John
Perse! Não, melhor: Noam Chomsky!
Louis sai da sala.
– Ah, sim... – diz ele voltando a inclinar a cabeça para dentro da sala. –
Debaixo do seu bloco de notas... acho que tem algo para você, não tenho
certeza...
Mais essa.
Um post-it. A letra grande e angular de Jean: “Bastilha, saída Roquette,
15 horas”, o que signi ica muito mais que uma simples reunião.
O fato de o auditor-geral ter preferido deixar uma mensagem anônima
debaixo do seu bloco de notas em vez de ligar para o seu celular é um mau
sinal. Jean Le Guen diz claramente: estou tomando precauções. Também
diz: sou seu amigo o bastante para correr o risco, mas encontrar com você
poderia antecipar o im da minha carreira, então vamos fazer isso
discretamente.
Com a altura que tem, Camille está um pouco habituado ao ostracismo,
às vezes basta andar de metrô para ter uma prova... Mas se ver suspeito
dentro da própria polícia, mesmo que, com tudo o que tem se passado há
três dias, isso não seja uma surpresa, ainda assim, para ele é como um tapa
na cara.
14h
Fernand é um sujeito de valor. Pode ser um imbecil, mas é
condescendente. O restaurante está fechado, ele o abriu para mim. Estou
com fome, ele me fez um ometele com champignon. É um bom cozinheiro.
Deveria ter continuado assim, mas, como sempre, o empregado sonha em
virar patrão. Ele se endividou até os ossos para quê? Para ter o prazer de
ser “o patrão”. Que babaca. Já para mim, ele vem bem a calhar, os babacas
têm utilidade. Considerando os juros abusivos que eu impus, ele me deve
mais dinheiro do que jamais poderá pagar. Durante um ano e meio, eu
inanciei seu negócio, quase todo mês. Não sei se Fernand tem mesmo
consciência disso, mas o restaurante dele me pertence, basta estalar os
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dedos, e o suposto patrão vai parar no olho da rua. Evito lembrá-lo disso.
Ele me faz muitos favores. Serve de álibi, de caixa de correio, de escritório,
de testemunha, de caução, de caixa eletrônico, eu esvazio os vinhos da sua
adega e ele me prepara comida quando preciso. Na última primavera, para
garantir o encontro com Camille Verhoeven, ele foi perfeito. Aliás, todos
foram perfeitos. O escândalo se desenrolou às mil maravilhas. Na hora
certa, meu comandante favorito acabou se levantando da mesa e fazendo o
que era preciso. Meu único receio era que alguma outra pessoa se
levantasse para intervir, porque essa mulher era mesmo uma gata
naqueles dias. Agora não mais, claro. Hoje, com suas cicatrizes, seus dentes
quebrados e sua cabeça em formato de abajur, ela poderia fazer o
escândalo que fosse num restaurante, não teria lá muitos homens correndo
em seu socorro, mas antes ela realmente conseguia despertar a vontade de
sair na mão com o bom Fernand. Linda e habilidosa, ela soube lançar os
olhares certos para a pessoa certa. Bem ou mal, Verhoeven acabou sendo
atraído por ela...
Fico aqui me lembrando disso tudo porque estou com tempo. E porque
me encontro no cenário adequado.
Pus meu celular sobre a mesa, não consigo deixar de checá-lo a todo
instante. Embora eu ainda dependa do resultado inal, estou contente com
os resultados parciais. Espero que renda uma grana boa, porque senão vou
acabar icando bem puto de novo, com vontade de desossar o primeiro que
cruzar meu caminho.
Enquanto isso, saboreio minhas primeiras horas de repouso em três
dias, e Deus sabe bem que eu não tive folga.
No fundo, manipulação tem muitos pontos em comum com assalto. É
preciso muito preparo e um bom grupo para executá-la. Não sei como ela
fez o Verhoeven tirá-la do hospital e levá-la para a casa dele, no campo,
mas, pelo jeito, ela não teve muito trabalho.
Provavelmente deve ter usado o truque da crise de histeria. Com os
homens sensíveis, é o que funciona melhor.
Mais uma olhada no celular.
Quando ele tocar, terei minha resposta.
Ou terei trabalhado para nada, e, nesse caso, nada a dizer, cada um para
a sua casa.
Ou a grana é minha, e, se for esse o caso, não sei quanto tempo vou ter.
Com certeza não muito, terei que agir rápido.
E não vai ser na linha de chegada que vou perder meu prêmio. Então vou
pedir uma água mineral para o Fernand, não é hora de dar uma de imbecil.
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15h
Camille, que esperava um Le Guen explosivo, encontra-o prostrado.
Sentado sobre um banco da estação do metrô, ele ita os próprios pés, um
ar de desengano. Nenhuma bronca. Na verdade, sim. Mas está mais para
uma espécie de lamentação.
– Você poderia ter me pedido ajuda...
Camille nota o emprego do passado. Para Le Guen, uma parte do caso já
está liquidada.
– Para um cara com a sua reputação – diz ele –, você gosta mesmo de
colecionar problemas...
E Le Guen nem sabe da história toda, pensa Camille.
– Você pede para cuidar do caso, só isso já é algo bem suspeito. A inal,
esse papo de informante, você vai me desculpar...
E isso não é nada. Le Guen vai saber em breve que Camille ajudou
pessoalmente a testemunha principal desse caso a sair do hospital e,
portanto, a escapar da ação da Justiça.
Camille também não sabe quem é essa testemunha, mas, se Anne se
revelar culpada de algo grave, vai saber; ele pode se ver diante de uma
acusação de cumplicidade... A partir de então, pode-se imaginar de tudo:
cumplicidade com homicídio, com roubo, com assassinato, com sequestro,
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com assalto à mão armada... E ele vai ter muita di iculdade para fazer
acreditarem na sua inocência.
Ele não responde ao que Jean lhe diz, apenas engole a saliva.
– E o modo como lidou com o juiz... – diz Le Guen. – Você é mesmo muito
burro: passou por cima dele, você me dizia vou dar um jeito em tudo,
ninguém mais vai falar dessa história. Mesmo sabendo que o Pereira é um
cara com quem a gente pode conversar.
Le Guen não vai tardar para descobrir que, desde então, Camille fez
muito pior, surrupiou o arquivo médico dessa testemunha. Testemunha
que, aliás, ele está hospedando no seu próprio domicílio.
– Sua batida policial de ontem causou o maior estardalhaço! Já era algo
previsível, mas será que você se dá conta do que faz? Tenho a impressão de
que você é completamente inconsequente!
E o auditor-geral sequer imagina que o nome de Verhoeven igura em
uma folha do dossiê que ele obteve na joalheria nem que ele passou uma
identidade falsa para a delegacia. E agora é tarde demais.
– Aos olhos da comissária Michard – continua Le Guen –, você usou de
manipulação para obter esse caso porque quer acobertar essa mulher.
– Que estupidez! – diz Camille.
– Também acho. Mas há três dias você tem se comportado como se
estivesse apenas por conta própria. Então é óbvio que...
– É óbvio – admite Camille.
Os metrôs se sucedem diante deles. Le Guen olha para todas as mulheres
que passam, absolutamente todas, sem ser grosseiro, apenas
contemplativo, olha para todas, deve a elas todos os seus casamentos.
Camille sempre foi seu padrinho.
– Já eu, o que quero saber é por que você está fazendo dessa
investigação uma questão pessoal!
– Acho que é o contrário, Jean. Foi uma questão pessoal que se tornou
tema de uma investigação.
Ao dizer isso, Camille entende que acabou de dizer uma grande verdade.
Ele entra em efervescência, precisaria de um pouco mais de tempo para
extrair todas as consequências dessa constatação. Ele até busca gravar
estas palavras na memória: é uma questão pessoal que se tornou tema de
uma investigação.
A informação mergulha Le Guen em incerteza.
– Uma questão pessoal... Quem você conhece nessa história?
Boa pergunta. Há algumas horas, Camille teria respondido: Anne
Forestier. Tudo mudou.
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17h15
– O que você espera que eu te diga...? Ela levou uma surra com tudo o
que tem direito.
Ao telefone, Nguyen tem uma voz bastante nasal. Ele deve estar falando
de dentro de uma sala vasta, sob um teto muito alto, sua voz ecoa, como
um oráculo. Aliás, é isso que ele é para Camille nesse momento. Daí sua
pergunta:
– Houve alguma intenção de matá-la?
– Não... não, acho que não. Houve desejo de causar dor, de punir, deixar
marcas, o que for, mas não de matar...
– Você tem certeza?
– Por acaso já viu algum médico ter certeza de algo? Eu diria apenas que,
a menos que alguém o impedisse, bastaria que o cara botasse todas as suas
forças, e o crânio dessa mulher explodiria como um melão.
Para que isso não aconteça, pensa Camille, ele teve de se controlar.
Calcular. Ele imagina o assaltante erguendo a sua espingarda, batendo com
o cabo mirando no osso malar e no maxilar em vez da cabeça, contendo
sua força no último milésimo. Um homem de sangue-frio.
– O mesmo para os pontapés – continua o legista. – O relatório do
hospital diz oito chutes, eu contei nove, mas isso não é o mais importante.
O essencial é a maneira como eles foram aplicados. O assaltante tem
vontade, sim, de quebrar as costelas, de fraturá-las, de machucar, de fazer
estrago, decerto, mas, tendo em vista o lugar em que eles foram aplicados e
o tipo de calçado que ele estava usando, se realmente tivesse desejado
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matar essa mulher, teria sido muito fácil. Ele podia esmagar o baço dela,
três golpes bem endereçados e era hemorragia interna. Essa mulher
poderia até ter morrido, mas acidentalmente: deixá-la viva foi algo
voluntário.
A forma como se deu o espancamento descrito por Nguyen assemelha-se
a um primeiro aviso. O tipo de retaliação que anuncia que as coisas
poderiam ser muito piores, não o su iciente para comprometer o que há
por vir, mas violento o bastante para se fazer entender.
Se o seu agressor (agora não se trata mais de Hafner, Hafner já é assunto
passado) não quis matar Anne (também não se trata mais de Anne), isso
coloca em questão a cumplicidade de Anne (seja qual for seu nome), que
agora não é mais apenas uma possibilidade, mas quase uma certeza.
Só que, nesse caso, o verdadeiro alvo não é Anne, é Camille.
17h45
Agora é só esperar. O ultimato que Camille ixou para Buisson termina às
vinte horas, mas são apenas palavras, mera teoria. Buisson passou algumas
instruções e fez algumas ligações. Pôs sua rede de contatos para funcionar,
receptores, revendedores, fabricantes de documentos falsos, cúmplices
antigos de Hafner. Deve estar gastando todo o crédito que dispõe para
obter o que deseja. Ele pode conseguir em duas horas assim como pode
precisar de dois dias e Camille terá que esperar o tempo que for preciso
pela resposta, pois não tem outra alternativa.
Que ironia: o gongo será – ou não – soado por Buisson.
A vida de Camille agora depende da e iciência do assassino da sua
mulher.
Anne, por sua vez, está sentada no sofá da sala, não acendeu a luz, a
penumbra da loresta dominou o interior da casa. A única iluminação vem
das luzes piscantes do sensor do alarme, do seu telefone celular, que conta
os segundos. Anne não se move, repete para si continuamente as palavras
que vai dizer. Ela sente que pode lhe faltar energia, mas não pode falhar, é
uma questão de vida ou morte.
Se essa morte fosse a sua, ela cederia neste exato instante.
Não tem vontade de morrer, mas aceitaria.
Mas é preciso que ela se saia bem, esse é o último degrau a subir.
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18h
Rua Durestier. Sede da Wertig & Schwindel. O hall é dividido em duas
partes, à direita, os elevadores que sobem em direção aos escritórios, à
esquerda, a butique de venda de passagens. Nesses edi ícios antigos, o hall
é enorme. Para mobiliar e deixar a recepção um lugar menos frio, o teto foi
rebaixado, foram distribuídos por toda parte vasos de plantas verdes,
poltronas largas, estantes com catálogos de viagens, mesas de centro.
Camille permanece na entrada. Ele consegue imaginar Anne
perfeitamente, sentada na poltrona, com um olho no relógio, esperando a
hora de sair para encontrá-lo.
Ela assumia um semblante esbaforido ao chegar, sempre um pouco
atrasada, em cima da hora marcada, com um pequeno gesto, desculpe, iz o
que pude, e o sorriso que vinha junto, que dá vontade de dizer: não é nada,
não se preocupe.
O plano era ainda mais engenhoso do que ele pensava. Camille se dá
conta disso ao ver surgir subitamente, no canto do elevador, um
entregador apressado com seu capacete debaixo do braço. Camille avança.
Encontra outra saída, que dá para a rua Lessard. Nada mais prático. Se
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Anne chegasse atrasada para encontrá-lo, ela poderia entrar por ali e, em
seguida, sair de novo pela rua Durestier.
Na calçada, encontraria Camille alegre e todos icariam contentes.
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18h35
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Doudouche está de cara amarrada, mas ela vai abandonar essa feição.
Basta que se dê conta de que Camille não está com ânimo para suportar
seu mau humor para que ela abaixe a bola. Um dia, Camille se pegou
sonhando com uma faxineira rabugenta, uma peste, que faria a faxina
todos os dias, limpando até debaixo dos móveis, e lhe cozinharia batatas
tristes como as próprias nádegas. Em vez disso, ele optou por essa gata,
Doudouche, dá quase na mesma. Ele a adora. Esfrega as suas costas, abre-
lhe uma lata de ração e a põe junto à janela, ela ica observando a
movimentação do canal, logo abaixo do edi ício.
Em seguida, ele vai até o banheiro, manipula com precaução o saco de
lixo para que a poeira não se disperse pelo cômodo. Depois, ele leva a pasta
com alça até a mesa de centro da sala.
Doudouche, da janela, olha para ele ixamente. Você não deveria fazer
isso.
– Tem alternativa melhor? – responde Camille.
Ele abre a pasta e vai direto ao grande envelope contendo as fotos.
A primeira é uma grande fotogra ia colorida com excesso de exposição,
que mostra os restos de um corpo estripado, as costelas quebradas
atravessando uma bolsa vermelha e branca, provavelmente um estômago e
um seio de mulher cindido e contendo inúmeras marcas de mordidas. A
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19h
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parte, convida-o para jantar. Mas já é tarde demais. Por mais que Maleval
jurasse por Deus, percebe-se que ele já garantiu sua passagem para a rua.
As baladas, as noites, o uísque, as mulheres, as boates, as más companhias,
o ecstasy.
Alguns tiras descem a ladeira com certa lentidão, uma regularidade que
permite ao ambiente se habituar, se preparar. Já Maleval é brutal, ele vai
com tudo.
Ele é preso por cumplicidade com Buisson, sete vezes homicida,
escândalo que as autoridades conseguem conter. A história de Buisson é
tão insana que ela toma conta da imprensa, abafa tudo o que encontra pelo
caminho, como o fogo numa loresta tropical. A prisão de Maleval quase
desaparece por trás das chamas.
Desde a morte de Irene, Camille, por sua vez, ica hospitalizado,
depressão severa, vai permanecer meses na clínica de reabilitação,
olhando pela janela, desenhando em silêncio, ele recusa as visitas, chegam
a achar que nunca mais vão revê-lo na Polícia Judiciária.
Maleval vai a julgamento, sua condenação é coberta pelo tempo que
passou em prisão preventiva, ele sai, Camille não ica sabendo de imediato,
ninguém deseja lhe falar sobre. Quando descobre, não diz nada, como se
tivesse passado muito tempo, como se o destino de Maleval não tivesse
mais importância, como se isso não se tratasse de uma questão pessoal.
Libertado e dispensado da polícia, Maleval desaparece. Depois,
começam a revê-lo, de passagem, imperceptivelmente. Camille cruza com
seu nome aqui e ali pelo dossiê que Louis reuniu.
Para Maleval, o im do período da vida policial coincide com o início do
período da vida de criminoso, para a qual ele demonstra uma
predisposição indiscutível, provavelmente foi essa a razão pela qual ele
havia sido, outrora, um tira tão bom.
Camille passa as folhas rapidamente, mas a paisagem vai se delineando
pouco a pouco, eis aqui as primeiras ocorrências em que Maleval
reaparece, pequenos delitos, pequenas infrações, ele estava nervoso, nada
sério, mas vê-se bem que já fez sua escolha, não se contentará, experiente
pela sua passagem pela polícia, em bater ponto numa empresa qualquer de
segurança, em vigiar um supermercado ou em digirir um furgão blindado.
Em três ocasiões, ele é interrogado e solto novamente. E chegamos, então,
ao último verão, há dezoito meses.
Uma intimação seguida de uma queixa.
Nathan Monestier.
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Camille levanta as mãos para o alto, não tem problema. Ele se explica.
A velha engrenagem.
Sim, ele está pessoalmente conectado à pessoa que foi agredida na
galeria Monier, tudo parte daí. Não demora a enxurrada de perguntas:
como o senhor a conhece? Que relação ela tem com esse assalto? Por que o
senhor não...?
A sequência é previsível, sem nenhuma surpresa. O importante agora é
se organizar e ir buscar Hafner-Bourgeois no seu esconderijo nos
subúrbios, prendê-lo por assalto à mão armada, homicídio, agressão ísica.
Não vamos passar a noite inteira examinando o caso do comandante
Verhoeven, vemos isso mais tarde, a comissária concorda, sejamos
pragmáticos, uma das palavras favoritas, “pragmático”. Enquanto isso,
Verhoeven, o senhor ique aqui.
Ele não participará de nada, ica apenas como espectador. Como ator, ele
já fez suas demonstrações, elas são desastrosas. E, quando estivermos de
volta, decidiremos sanções, afastamento, transferência... Isso tudo é tão
previsível que nem se trata mais de um acontecimento.
Eis o que seria possível. Camille sabe há muito tempo que não é dessa
maneira que as coisas vão acontecer.
Sua decisão está tomada, ele nem sabe mais em que momento foi
tomada.
Ela se deve a Anne, a essa história, à sua vida, tudo está dentro dela, não
há nada que outra pessoa possa fazer.
Ele pensou que havia sido atropelado pelas circunstâncias, mas, na
verdade, não.
O que nos acontece é fruto de nossas atitudes.
19h45
Na França, existem quase tantas ruas Escudier quanto habitantes. São
ruas retas, perpendiculares, com sobrados de granito ou com revestimento
de concreto, os mesmos jardins, as mesmas grades, as mesmas marquises
compradas nas mesmas lojas. O número 15 não é exceção. Granito,
marquise, grade de ferro forjado, jardim, o pacote completo.
Camille passou em frente duas ou três vezes de carro, nos dois sentidos,
em velocidades distintas. Na sua última passagem, a janela do primeiro
andar apagou-se bruscamente. Não é preciso continuar.
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Ela continua sem dizer uma palavra, sem levantar o olhar, sua silhueta
transmite toda a sua hostilidade e determinação. Camille atravessa o pátio
minúsculo, sobe os degraus, empurra a porta que se fechara pela metade.
Um simples corredor com um porta-casacos de parede vazio. À direita,
uma sala e, a alguns metros, sentado numa poltrona, de costas para a
janela, um homem de uma magreza terrível, os olhos escavados, febris.
Embora se encontre dentro de casa, está usando um pequeno gorro de lã
que acentua a esfera perfeita do seu crânio. Seus traços são fundos, Camille
nota de imediato sua semelhança com Armand.
Entre dois homens de tanta experiência, há coisas que não precisam ser
ditas, soariam quase como um insulto. Hafner sabe quem é Verhoeven,
todos conhecem um tira do seu tamanho. Ele sabe também que, se tivesse
vindo para prendê-lo, teria procedido completamente diferente. Portanto,
a questão é outra. Mais complicada. Resta esperar para ver.
Atrás de Camille, a jovem mulher entrelaça as mãos e rodopia os dedos,
ela tem o costume de esperar. “Deve gostar de apanhar, só pode ser isso...”.
Camille permanece imóvel no corredor, espremido entre Hafner, sentado
ali, diante dele, e essa mulher, às suas costas. O silêncio pesado,
inquietante, diz bem claramente que não será fácil lidar com esses dois.
Mas, para eles, o silêncio também diz que esse policialzinho inexpressivo
traz consigo o caos. Na vida que eles levam, esse é um outro nome para
designar a morte.
– Vamos ter que conversar... – diz en im Hafner em voz baixa.
Ele está dizendo isso para Camille, para a mullher, para si mesmo?
Camille dá alguns passos, sem tirá-lo dos olhos, aproxima-se, para a dois
metros de distância. Em Hafner não há nada do animal selvagem descrito
pela sua icha policial. Isso é algo que se constata com frequência, com
exceção dos minutos em que executam a mais agressiva das suas tarefas,
os assaltantes, os ladrões, os criminosos se parecem com todo mundo. Os
assassinos são como eu e você. Mas, por certo, existe ainda outra coisa
nele, a doença, o espectro da morte. E esse silêncio, esse desconforto, que
concentram todas as ameaças que o circundam.
Camille avança ainda mais um passo pela sala iluminada fragilmente por
um lampadário que se encontra ao canto, projetando uma luz azulada,
difusa. Não ica surpreso também ao descobrir uma sala mobiliada de
forma banal, uma grande tevê tela plana, um sofá coberto com uma manta
de lã, enfeites de todo tipo e, sobre a mesa redonda, uma toalha de mesa
estampada. Os bandidos costumam ter os mesmos gostos da classe média.
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A mulher deixa o cômodo, Camille não a ouviu partir, ele a imagina por
um instante, sentada na escada, com uma espingarda calibre 12. Já Hafner
não sai do seu sofá, ele ica esperando para ver de que maneira as coisas
vão evoluir. Pela primeira vez, Camille se pergunta se ele está armado, a
possibilidade não veio à sua mente antes. O que não tem nenhuma
importância, pensa ele, mas, ainda assim, procura fazer gestos lentos,
nunca se sabe.
Ele tira o celular do bolso do casaco, o ativa e abre a foto de Maleval; dá
um passo para a frente e passa o aparelho a Hafner, que se limita a contrair
os lábios, acompanhado de um ruído gutural. Ele balança a cabeça, estou
entendendo, em seguida, aponta o sofá. Camille prefere uma cadeira, puxa-
a para perto de si, põe seu chapéu sobre a mesa, os dois homens estão face
a face, como se esperassem que alguém viesse servi-los.
– Avisaram da minha visita...
– De certa forma...
Logicamente. O sujeito que foi obrigado a passar para Buisson o novo
nome de Hafner e seu endereço precisou se proteger. O que não altera em
nada o plano.
– Devo recapitular? – propõe Camille.
Ele ouve, então, vindo de algum lugar da casa, um grito agudo, distante,
e, em seguida, por cima dessa voz, passos precipitados e, então, a voz da
mulher, abafada. Camille se pergunta se esse novo fator vai complicar ou
simpli icar as coisas. Ele aponta o teto.
– Quantos anos?
– Seis meses.
– Menino?
– Menina.
Outra pessoa perguntaria o nome, mas a situação não convém nem um
pouco.
– Então, em janeiro, sua mulher estava grávida de seis meses.
– Sete.
Camille aponta para o seu gorro.
– E fugir nunca é simples. A propósito, a sua quimioterapia, posso saber
onde fez?
Hafner espera um momento e então:
– Na Bélgica, mas eu parei.
– Cara demais?
– Não, tarde demais.
– Logo, cara demais.
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Hafner deixa passar um meio sorriso, quase nada, não mais que uma
sombra em algum lugar pelos lábios.
– Já em janeiro – continua Camille –, não restava muito tempo para você
assegurar o sustento da sua pequena família. Então você organiza o Grande
Assalto. Quatro alvos num dia. Uma baita grana. Os seus cúmplices de
costume estão pouco disponíveis; talvez também você tenha escrúpulos
em jogar sujo com eles. En im, você convoca Ravic, o sérvio, e Maleval, o
antigo policial. A propósito disso, eu não sabia que ele fazia assaltos à mão
armada.
Hafner leva um tempo para responder.
– Ele procurou seu ramo certo por um tempo, depois de vocês o terem
mandado para rua – disse ele, en im. – Ficou bastante no trá ico de cocaína.
– Sim, acho que ouvi dizer...
– Mas acabou demonstrando preferência pelo assalto. Combina bastante
com a personalidade dele.
Desde que descobriu a verdade, Camille tenta imaginar Maleval como
assaltante, ele tem di iculdade para conseguir. Não tem muita imaginação.
E, além disso, Maleval e Louis nasceram na sua equipe, é di ícil imaginá-los
fora desse contexto. Como os homens que nunca terão ilhos, Camille tem
um grande senso de paternidade. Seu tamanho tem muito a ver com isso.
Desse modo, ele inventou dois ilhos: de um lado, Louis, o ilho perfeito, o
bom aluno, o impecável, que retribui por tudo; e, de outro, Maleval, o
agressivo, o liberal, o obscuro, o que o traiu, que lhe custou sua mulher.
Que carrega a ameaça até mesmo no seu sobrenome.
Hafner espera a continuação. No andar de cima, a voz da mulher
silenciou-se progressivamente, ela deve estar embalando o ilho.
– Em janeiro – continua Camille –, com exceção de um morto, tudo se
passa como o planejado. – Seria preciso ser ingênuo para esperar a menor
reação de um homem como Hafner. – Você tinha planejado passar todos
para trás e se mandar com a grana. Toda a grana. – Camille aponta de novo
o teto com o indicador. – Normal, quando temos o senso do dever,
queremos assegurar o sustento dos nossos entes próximos. No fundo, o
fruto desses assaltos era uma espécie de legado testamental, se assim se
pode dizer. Eu nunca descobri, essas coisas são tributáveis?
Hafner não move um cílio. Nada o fará desviar de sua trajetória. A esse
que veio caçá-lo até aqui, esse portador de más notícias, mensageiro do
im, ele não lhe dará nem sequer a esmola de um sorriso, sequer de uma
con idência, de qualquer conivência.
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Não tem a menor dúvida sobre o efeito da sua estratégia, leve o tempo
que levar, até a porta da frente, até os degraus, até o jardim, talvez até a
grade, pouco importa, mas Hafner vai chamá-lo de volta. A iluminação da
rua acende novamente, os postes, bem espaçados, projetam sobre a
calçada e o im do jardim uma luz amarelada e pálida.
Camille permanece junto à porta, olha para a rua tranquila, em seguida
se volta, um gesto com a cabeça para o alto da escada.
– Como se chama a pequena?
– Ève.
Camille aprecia, lindo nome.
– Ela começou com o pé direito – diz ele enquanto se retira. – Só espero
que ela vingue.
Ele sai.
– Verhoeven!
Camille fecha os olhos.
Ele refaz o mesmo caminho.
21h
Anne icou em Montfort, incapaz de saber se está agindo por coragem ou
por covardia; ela apenas permanece ali, esperando. Mas a hora passa e o
cansaço comprime seu peito. Ela tem a impressão de ter atravessado uma
provação, de ter passado para o outro lado: não tem mais controle sobre
nada, uma concha vazia, não pode mais suportar.
Foi o fantasma de Anne que, vinte minutos mais cedo, juntou suas
coisas; não há muito o que carregar. Sua blusa, o dinheiro, o celular, o papel
com o mapa e os números de telefone. Ela se dirige para a porta de vidro,
dá meia-volta.
O motorista de táxi acabou de ligar para ela de Montfort, ele não
consegue encontrar essa bendita estrada de terra e está à beira do
desespero. Tem sotaque asiático. Ela teve de acender a luz da casa para
acompanhar o mapa e tentar guiá-lo; não há o que fazer... Ele queria dizer
depois da rua Longe? Sim, à direita, mas ela não sabe sequer em que
direção ele está indo. Ela vai ao encontro dele. Bem, vá até a igreja, não saia
de lá, me espere, ok? Ele concorda, prefere essa solução, pede desculpas,
mas o GPS... Anne desliga. Em seguida, senta-se de novo.
Só mais alguns minutos, ela promete a si mesma. Se o telefone tocar em
cinco minutos... E, se ele não tocar...
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21h45
Eu nem botava mais fé. Mas aí está o resultado esperado: Hafner foi
localizado!
Não é à toa que estava sendo impossível encontrá-lo, agora ele é o
senhor Bourgeois. Depois de ter conhecido esse cara no auge da glória, vê-
lo disfarçado com um nome desses é mesmo decepcionante.
Mas Verhoeven tem certeza. Logo, eu também.
Os rumores sobre sua doença tinham fundamento, só torço para que ele
não tenha gastado toda a sua grana em exames e remédios, que sobre o
su iciente para recompensar meus esforços, porque, senão, perto do que
tenho guardado para ele, as metástases do câncer não são mais que
bicarbonato de sódio. Logicamente, ele deve estar tentando poupar seu pé-
de-meia e tê-lo à mão, caso necessário.
Agora é só pular dentro do carro, devorar a via periférica, um pouco de
rodovia, os subúrbios, e aqui estou.
Um sobrado... Imaginar Vincent Hafner num lugar desses é mesmo
impossível. O esconderijo é astucioso, mas não posso deixar de pensar que,
para ele ter se reduzido a se refugiar nesse subúrbio residencial, ele deve
estar envolvido com alguma mulher, impossível de outra forma. Talvez a
pequena da qual ouvimos falar, uma paixão de terceira idade, o tipo de
sentimento que o leva a aceitar se tornar senhor Bourgeois para os seus
vizinhos.
Esse tipo de constatação faz você re letir sobre o sentido da vida: basta
que Vincent Hafner, que passou a metade da vida trucidando o próximo,
apaixone-se por alguém e já ica mole como massa de pão.
A minha vantagem é que a presença de uma garota sempre é de uma
ajuda muito preciosa nessas horas. O melhor pé-de-cabra. Você quebra as
duas mãos dela, oferecem as próprias economias, fura um olho, ganha as
economias de toda a família, e assim por diante, cada órgão vale o peso
equivalente em ouro maciço.
Claro, nada equivale a um moleque. Quando você quer obter alguma
coisa, um pivete é a arma mais poderosa. Ninguém nem sonha negar o que
seja.
Primeiro virei e revirei o bairro, bem longe da rua Escudier. Os tiras só
se acercarão bem mais tarde, na madrugada.
E, ainda assim, nada disso é certo porque eles ainda vão precisar se
preparar bem. Cercar a zona não é nada di ícil, basta bloquear todas as
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ruas, mas invadir a casa será nitidamente mais complicado. Primeiro eles
vão ter que se certi icar que Hafner está em casa – é o mínimo – e que está
só. Isso não vai ser simples, não há nenhum espaço para estacionar as
viaturas das unidades e, como nesse bairro quase não há tráfego, um carro
à espreita logo chama a atenção. Eles vão ter que mandar discretamente
um ou dois tiras à paisana para averiguar a casa, e isso não vai ser feito em
meia jornada, pode ter certeza.
Nesse momento, os caras do Grupo de Operações Especiais estão
certamente fazendo planos mirabolantes, desenhando trajetórias em
mapas aéreos, traçando zoneamentos, compartimentações, não devem
estar com tanta pressa. Eles têm, no mínimo, a madrugada inteira pela
frente, nada possível antes de amanhã pela manhã e, depois, vigiar, vigiar e
vigiar... Isso pode levar um dia, dois dias, três dias. E, daqui até lá, a presa
deles não apresentará mais nenhum perigo há muito tempo porque eu
terei cuidado dela pessoalmente.
Meu carro está estacionado a duzentos metros da rua Escudier, passei
pelas grades com a mochila nas costas, duas ou três cacetadas em uns
cachorros que queriam dar uma de valentões e de grade em cerca aqui
estou, sentando num jardim debaixo de um pinheiro. Os proprietários, no
térreo, estão assistindo à tevê. Do outro lado, a trinta metros, através do
cercamento que separa as duas residências, tenho uma vista perfeita dos
fundos da número 15.
Apenas um cômodo está aceso, no andar de cima, por uma luz azulada,
intermitente, que indica um televisor.Todo o resto da casa está apagado. Há
apenas três hipóteses: ou Hafner está assistindo à televisão no andar de
cima, ou ele saiu, ou está dormindo e é a garota que está se instruindo,
vendo o canal TF1.
Se ele tiver saído, eu lhe garanto uma recepção de boas-vindas no seu
retorno.
Se estiver deitado, vou lhe servir de despertador.
E, se ele estiver na frente da tevê, vai perder os comerciais, porque vou
oferecer a ele um outro entretenimento.
Passo um tempo observando o local com o binóculo, então me aproximo
e invado. Quero tirar o máximo de proveito do elemento surpresa. Já estou
me divertindo.
O jardim é um local propício para a meditação. Faço uma análise da
situação. Quando me dei conta de que tudo ia funcionando
maravilhosamente bem, quase melhor do que esperava, eu me forcei a ser
paciente porque, de costume, sou uma pessoa impetuosa. Quando cheguei
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aqui, mais um pouco, eu teria dado tiros para cima e invadiria o barraco
gritando como um lunático. Mas chegar aqui é resultado de muito trabalho,
muita re lexão e muita energia, estou a dois dedos da grana e, portanto,
preciso me controlar. E, meia hora mais tarde, como nada sai do lugar, eu
passo um tempo organizando cuidadosamente as minhas coisas e
percorrendo os arredores da casa. Nenhum sistema de alarme. Hafner não
quis chamar atenção transformando sua pací ica fortaleza em bunker. Ele é
muito malandro, fundiu-se com a paisagem, esse senhor Bourgeois.
Volto ao meu lugar, sento mais uma vez, fecho a minha jaqueta e
continuo a observar pelos binóculos.
E inalmente, por volta das vinte e duas e trinta, a tevê do andar de cima
é desligada, a janelinha do meio se acende por um minuto. Essa janela é
mais estreita que as demais, deve ser o banheiro. Eu não poderia sonhar
com uma con iguração melhor. A julgar por essa única movimentação, tem
gente em casa, mas não muita. Tomo minha decisão, levanto e passo para a
ação.
A casa é um sobrado dos anos trinta cuja cozinha foi construída nos
fundos. Dá para entrar nela por uma porta de vidro disposta depois de
alguns degraus que dão para o quintal. Subo silenciosamente, a maçaneta é
tão antiga que daria para abrir com um abridor de lata.
Daqui em diante, o desconhecido.
Deixo minha bolsa de viagem perto da porta, ico apenas com a minha
Walther munida do seu silenciador e, no estojo de couro preso na minha
cintura, meu punhal de caça.
Reina por aqui um silêncio pulsante, uma casa à noite sempre causa
certo desconforto. Primeiro preciso acalmar meu ritmo cardíaco, senão
não conseguirei ouvir nada. Permaneço aqui por um longo momento, em
estado de alerta.
Nenhum som.
Eu deslizo sobre o piso, bem devagar, porque alguns ladrilhos estalam.
Ao sair da cozinha, chego ao pé da escada. À minha direita, a escada que
liga os dois pisos. À minha frente, a porta de entrada. À minha esquerda,
uma abertura, provavelmente a sala de estar ou de jantar, cuja porta dupla
foi retirada para melhorar a ventilação do cômodo.
Todos estão no andar de cima. Por precaução, encosto na parede no
momento de passar diante da porta da sala e chegar à escada, a Walther
nas duas mãos, o cano apontado para o chão...
Sinto-me estupefato, permaneço praticamente grudado à parede: no
instante em que atravesso o patamar em direção à escada, à minha
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A arma está sendo segurada com uma mão irme. O cano exerce uma
leve pressão. Mensagem clara, empurro a Walther para longe de mim, ela
percorre mais ou menos dois metros e para.
Estou bem encrencado. Abro os braços para mostrar que não ofereço
resistência, viro-me bem lentamente, a cabeça baixa, evitando qualquer
movimento brusco.
Não tenho que pensar muito para adivinhar quem está prestes a me
matar. A con irmação chega em seguida; assim que vejo os sapatos,
percebo que os modelos são bem pequenos. Sapatos de anão. Meu cérebro,
que continua sua corrida brusca para encontrar uma saída, faz-me a
pergunta: como ele chegou aqui antes de você?
Mas não ico muito tempo analisando o meu iasco porque, antes de
conseguir a resposta, vou acabar levando uma bala na cabeça com total
impunidade. Aliás, o cano da arma já está deslizando pelo meu crânio para
parar no meio da minha testa, exatamente onde Hafner levou minha
segunda bala; levanto a cabeça.
– Boa noite, Maleval – diz-me Verhoeven.
Ele está de sobretudo, chapéu na cabeça, uma mão no bolso. Parece que
está prestes a partir.
O que é um mau sinal é que a outra mão, a que segura a arma com
irmeza, está com uma luva. Começo a ser dominado pelo pânico. Mesmo
que eu reaja com rapidez, se ele atirar, estou morto. E, ainda mais com uma
perna ferida, já estou perdendo muito sangue, tento pensar, não tem como
saber, se eu me apoiar sobre ela, não sei como vai reagir.
Mas Verhoeven sabe muito bem.
Por precaução, ele recua um passo, seu braço não se move, permanece
perfeitamente reto, ele não demonstra medo, está decidido, seu rosto
angular exprime uma serenidade sóbria, modesta.
Estou de joelhos, ele está de pé, nossos olhos não estão à mesma altura,
mas falta muito pouco. Talvez essa seja a minha chance, a última. Ele está
ao alcance da mão, se eu conseguir alguns centímetros, alguns minutos...
– Vejo que continua a pensar rápido, meu jovem...
“Meu jovem”... Verhoeven sempre teve esse jeito, protetor, paterno. Pelo
seu tamanho, parece ridículo. Mas ele é bem esperto. E eu, que o conheço
bem, vejo que não está num bom dia.
– Bem, vou ser rápido... – continua ele. – Como de costume. Porque, esta
noite, você está um passo atrás. Tão perto do seu objetivo, deve ser
decepcionante. – Ele não tira os olhos de mim. – Se tiver vindo procurar
uma mala cheia de dinheiro, vai fazer bem para você saber que ela estava
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mesmo aqui. Há uma hora a mulher de Hafner se foi com ela. Fui eu mesmo
que chamei um táxi para ela. Você me conhece, sou um homem prestativo
com as mulheres. Seja quando elas estão com uma mala ou quando estão
armando um barraco num restaurante, estou sempre pronto para oferecer
meus serviços.
Ele não vai dar brecha para nenhum lapso, a pistola está engatilhada e
dá para ver que essa não é a sua arma de serviço...
– Pois é – diz ele como se seguisse meus pensamentos –, a arma pertence
a Hafner. No andar de cima tem todo um arsenal, você nem pode imaginar.
Foi ele mesmo que me indicou essa aqui. Para mim, nessa situação,
qualquer uma me serve, esta, outra...
Seus olhos não saem de mim, é algo quase hipnotizante. Eu já havia
reparado algumas vezes, no tempo em que trabalhava para ele, esse olhar
frio, como uma lâmina.
– Você me pergunta como cheguei aqui, mas principalmente de que
maneira vai conseguir sair dessa. Porque deve estar supondo a que ponto
estou furioso.
Sua imobilidade perfeita con irma que a saída é só uma questão de
segundos.
– E ofendido – continua Verhoeven. – Principalmente ofendido. Isso não
é bom para um cara como eu. A gente aprende a lidar com a raiva, acaba
por se acalmar, relevar, mas é terrível o estrago que o amor-próprio pode
causar. Principalmente num cara que não tem mais nada a perder, um cara
que não tem mais nada que lhe pertence de verdade. Um cara como eu, por
exemplo. Por causa de uma ferida ao amor-próprio, ele pode ser capaz de
tudo.
Não digo nada. Engulo minha saliva.
– Você – diz ele –, você vai querer se atirar sobre mim. Sinto isso. – Ele
sorri. – No seu lugar, é também o que eu faria. Tudo ou nada, faz parte da
nossa natureza. Somos muito próximos, não é? Parecemos muito um com o
outro. Foi o que tornou essa história possível, acredito.
Ele disserta, mas não perde o foco na situação.
Contraio meus músculos.
Ele tira a mão esquerda do bolso.
Sem mexer os olhos, calculo minha trajetória.
Ele segura sua pistola com as mãos, perfeitamente apontada para os
meus olhos. Vou surpreendê-lo; ele espera que eu o ataque ou que me
esquive, então vou recuar.
– Tsc, tsc, tsc...
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22h30
Todas as casas e jardins se iluminaram. Os proprietários icam sobre os
degraus de entrada, eles se interpelam algumas vezes, trocam perguntas,
alguns se aproximaram do portão; outros, mais temerosos, foram até o
meio da rua, mas, ainda assim, hesitam em se aproximar. Dois o iciais de
uniforme colocam-se nos extremos da rua para impedir as aproximações
intempestivas.
O comandante Verhoeven, com o chapéu en iado na cabeça e as mãos
nos bolsos do sobretudo, dá as costas para a cena. Ele olha para a rua toda
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causados, ainda podia fazer meu trabalho. Mas não. Sempre pensei que o
fato de ela passar por tudo o que passou... não podia ser por um mau
motivo. E eu estava certo. Ela estava se sacri icando pelo irmão. Sim, eu sei,
“sacri ício” é uma palavra ridícula! Não é muito usada nos dias de hoje, está
fora de moda, mas, en im... Veja Hafner, não era nenhum anjo, mas se
sacri icou pelas meninas. Anne, por sua vez, pelo irmão... Essas coisas
existem.
– E o senhor?
– Eu também.
Ele hesita, se arrisca.
– Prestes a chegar ao fundo do poço, descobri que não era ruim ter
alguém por quem eu aceitava sacri icar algo importante. – Sorri. – Nesses
tempos de egoísmo, isso chega a ser um luxo, não acha?
Ele levanta a gola do sobretudo.
– Bem, isso não é tudo, não terminei o meu dia. Tenho uma carta de
demissão para escrever. Não dormi...
Porém, ele não se move.
– Ei, Louis!
Louis se vira. Um perito o chama, a uns quinze metros na calçada, diante
da casa de Hafner.
Camille faz um sinal: pode ir, Louis, não o deixe esperando.
– Eu já venho – diz Louis.
Mas, quando ele volta, Camille já não está mais lá.
1h30
Camille sentiu uma brusca aceleração cardíaca quando viu a luz acesa
dentro da casa.
Parou o carro de imediato, desligou o motor. Permaneceu sentado ao
volante, perguntando-se como proceder. Anne está lá.
Ele não precisava de mais essa decepção, dessa provação. Precisava icar
sozinho.
Ele suspira, apanha o sobretudo, pega o chapéu, sua grande pasta com
alça e, em seguida, faz o caminho a pé lentamente, perguntando-se como
eles vão se comportar, o que ele vai dizer a ela, como vai dizer. Ele a
imaginou ainda no mesmo lugar, sentada no chão, perto da pia da cozinha.
A porta do terraço está ligeiramente entreaberta.
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