Verhoeven - 03 - Camille - Pierre Lemaitre

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 235

No volume final da trilogia, o comandante Verhoeven enfrenta seu caso mais

angustiante – um acerto de contas para o inesquecível protagonista.


Anne Forestier está no lugar errado e na hora errada. Espancada até ficar quase
irreconhecível, ela teve a sorte de sobreviver a um assalto – mas continua em
perigo mortal em uma cama de hospital, com seu agressor ainda solto. Ao
investigar o caso, Camille Verhoeven é novamente atraído rumo a uma teia
labiríntica neste último e estarrecedor capítulo da história do inesquecível
protagonista – a conclusão incisiva que deixará os fãs desta trilogia
completamente emocionados e satisfeitos.
Clube SPA

“Nós não conhecemos mais que um centésimo


do que acontece conosco.

Não sabemos qual parte do céu


paga por todo esse inferno.”

William Gaddis, The Recognitions

Para Pascaline

A Cathy Bourdeau, pelo seu apoio.


Com afeto.

fevereiro•2022
Clube SPA

DIA 1

fevereiro•2022
Clube SPA

10h
Um acontecimento é considerado decisivo quando tira totalmente sua
vida do eixo. É o que Camille Verhoeven leu, alguns meses antes, em um
artigo sobre “A aceleração da história”. Esse acontecimento decisivo,
arrebatador, inesperado, capaz de disparar uma descarga elétrica no seu
sistema nervoso, evidencia-se em relação a todos os outros acidentes da
existência, por ser portador de uma energia e de uma densidade
particulares: assim que ele ocorre, você já sabe que as consequências vão
ter proporções gigantescas, que o que está acontecendo nesse instante é
irreversível.
Por exemplo, os três tiros de espingarda calibre 12 na mulher que você
ama.
É o que vai acontecer com Camille.
E pouco importa se naquela ocasião você estava a caminho, como ele, do
enterro do seu melhor amigo, com a sensação de já ter tido o bastante para
aquele dia. O destino não é do tipo que se contenta com tal banalidade;
mesmo assim, ele é perfeitamente capaz de se manifestar sob a forma de
um assassino equipado com uma Mossberg 500 calibre 12 de cano curto.
Resta saber agora como você vai reagir. Essa é a questão.
Porque nesse instante seu raciocínio está tão conturbado que você só
consegue reagir por puro re lexo. Por exemplo, antes dos três tiros, quando
a mulher que você ama é totalmente espancada e você vê o assassino
apontar a arma depois de tê-la carregado com um estalo metálico.
É certamente em momentos como esse que se revelam os homens
excepcionais, os que sabem tomar as decisões certas nas piores das
circunstâncias.
Mas, se você for uma pessoa comum, vai lidar como pode. E,
normalmente, diante de um terremoto como esse, você está condenado a
fracassar ou a falhar, isso se não estiver praticamente fadado à inação.
Se já é velho o su iciente ou se esse tipo de coisa já tiver vindo aniquilar
a sua vida antes, você pode até imaginar que está imune. É o caso de
Camille. Sua primeira mulher foi assassinada, uma tragédia, e ele levou
anos para se recuperar. Quando você já atravessou tamanha provação,
acaba pensando que nada mais pode lhe ocorrer.
Essa é a armadilha.
Porque você baixou a guarda.

fevereiro•2022
Clube SPA

Para o destino, que tem um olhar muito aguçado, esse é o melhor


momento para pegá-lo de surpresa.
E lembrá-lo do infalível oportunismo do acaso.

Anne Forestier entra na galeria Monier um pouco após a hora da


abertura. A alameda principal está quase vazia, ainda paira no local um
aroma embriagante de removedor. As lojas abrem lentamente. São postos
para fora os estandes de livros, de joias, mostruários.
Essa galeria, construída no século na parte inferior da Champs-
Élysées, é composta de comércios de luxo, papelarias, lojas de artigos de
couro, de antiguidades. Seu telhado é recoberto de vidro. Ao levantar os
olhos, o visitante instruído pode descobrir uma série de detalhes de art
déco, cerâmicas, cornijas, pequenos vitrais. Anne também poderia admirá-
los, se tivesse vontade, mas, como admite sem di iculdade, ela não é uma
pessoa matinal. E, a essa hora, olhar para cima, ver os detalhes e os tetos, é
a última de suas preocupações.
Antes de tudo, ela precisa de um café. Bem forte.
Porque hoje, como se izesse de propósito, Camille quis icar enrolando
na cama. E ele, ao contrário dela, é uma pessoa mais matinal. Mas Anne
não estava com muita disposição para aquilo. Assim, logo depois de repelir
gentilmente as investidas de Camille – ele tem mãos muito quentes, nem
sempre é fácil resistir –, ela correu para o chuveiro, esquecendo-se do café
que havia deixado coando, voltou para a cozinha secando os cabelos,
deparou-se com um café já frio, apanhou uma das suas lentes de contato a
alguns milímetros do ralo da pia...
E já não havia mais tempo, era preciso sair. De estômago vazio.
Então, assim que chega à galeria Monier, por volta das dez horas e
alguns minutos, é a primeira cliente a se sentar no terraço de uma pequena
cervejaria que se encontra próxima à entrada. A máquina de café ainda
está aquecendo, ela deve aguardar para ser servida e, caso ela comece a
consultar várias vezes seu relógio, não é porque está com pressa. É por
causa do garçom. Para tentar fazê-lo desistir de suas investidas. Como ele
não tem muito a fazer enquanto espera a máquina aquecer, aproveita para
tentar puxar conversa. Limpa as mesas ao redor dela, observando-a por
debaixo do seu braço e, como quem não quer nada, vai se aproximando em
círculos concêntricos. É um sujeito alto, magro, barulhento, um loiro de
cabelos oleosos, do tipo que se encontra com facilidade em zonas de
turismo. Ao terminar sua última volta, ele se posta perto dela, uma mão no

fevereiro•2022
Clube SPA

quadril. Solta um suspiro contemplativo, olhando para fora, e expõe suas


medíocres e patéticas considerações meteorológicas do dia.
Esse garçom pode ser um imbecil, mas não tem mau gosto, pois, aos
quarenta anos, Anne segue encantadora. Morena, delicada, belos olhos
verde-claros, um sorriso atordoante... É uma mulher radiante. Um rosto
com covinhas e gestos lentos, suaves. É inevitável desejar tocá-la, pois nela
tudo parece redondo e irme, os seios, as nádegas, a barriga lisinha, as
coxas. De fato, todo o seu corpo é realmente redondo e irme, de
enlouquecer qualquer homem.
Sempre que pensa nisso, Camille se pergunta o que ela está fazendo com
ele. Ele tem cinquenta anos, é um pouco calvo, mas o principal, o principal
mesmo, é que ele mede um metro e quarenta e cinco. Para se ter uma ideia,
essa é mais ou menos a altura de um garoto de treze anos. A im de evitar
qualquer especulação, melhor deixar logo claro: Anne não é alta, mas mede
vinte e dois centímetros a mais que ele. Isso equivale a mais ou menos uma
cabeça de diferença.
Anne responde às investidas do garçom com um sorriso charmoso e
sarcástico, que diz claramente: vá se foder (o garçom faz sinal de que
entendeu, sua investida não foi bem recebida). E, assim que termina seu
café, ela adentra a galeria Monier em direção à rua Georges-Fladrin. Chega
quase ao outro extremo do edi ício quando mergulha a mão na bolsa,
provavelmente para apanhar a carteira, e sente algo úmido. Seus dedos
estão cheios de tinta. Uma caneta estourada.
Para Camille, é com essa caneta que a história começa de fato. Ou com o
fato de Anne escolher ir àquela galeria e não a uma outra, precisamente
naquela manhã e não em outra etc. A soma de coincidências necessárias
para que uma catástrofe ocorra é perturbadora. Mas é também a uma
soma de coincidências como essa que Camille deve o fato de ter um dia
conhecido Anne; não se pode reclamar de tudo.
Portanto, Camille lembra-se bem dessa simples caneta de carga que
estourou. Azul-escuro e bem pequena. Anne é canhota; quando ela escreve,
a posição da sua mão é bem peculiar. Ninguém entende como ela consegue,
e, ainda por cima, são letras bem grandes, como se ela alinhasse com
violência uma série de assinaturas. Curiosamente, ela sempre escolhe
canetas minúsculas, o que torna a cena ainda mais espantosa.
Ao tirar da bolsa a mão cheia de tinta, Anne ica inquieta com o estrago
causado. Parte à procura de uma solução e encontra, à direita, um canteiro
de plantas. Põe a bolsa sobre a borda de madeira e começa a tirar tudo de
dentro.

fevereiro•2022
Clube SPA

Ela demonstra bastante irritação, mas seu receio é maior que o dano
causado. Além disso, quem a conhece meramente não vê o que poderia
haver a temer, Anne não possui nada. Nem na sua bolsa nem na sua vida. O
que ela carrega consigo qualquer um poderia adquirir. Ela não comprou
apartamento nem carro, gasta o que ganha, não mais que isso, mas nunca
menos. Não economiza, pois não faz parte da sua natureza: seu pai era
comerciante. Um pouco antes de ir à falência, ele fugiu com o caixa de cerca
de quarenta associações para as quais havia sido recentemente eleito
como tesoureiro e nunca mais foi visto. Isso talvez explique por que Anne
tem uma relação de desapego com o dinheiro. Suas últimas preocupações
inanceiras remontam à época em que ela criava sozinha sua ilha, Agathe,
muito tempo atrás.
Anne imediatamente joga a caneta na lixeira e en ia o celular no bolso da
jaqueta. Sua carteira está manchada, ela vai ter de jogá-la fora também,
mas os documentos que estão dentro se mantiveram intactos. Quanto à
bolsa, o revestimento está úmido, mas a tinta não o atravessou. Anne talvez
decida comprar outra bolsa nessa mesma manhã; uma galeria comercial é
o lugar ideal, mas ninguém nunca saberá, pois o que vai acontecer em
seguida a impedirá de realizar seus projetos. Por ora, não importando sua
decisão, ela cobre o fundo da bolsa com os lenços de papel que tem. Uma
vez tendo terminado tudo, o que passa a preocupá-la são seus dedos
cheios de tinta, agora das duas mãos.
Poderia retornar à cervejaria, mas a perspectiva de reencontrar o
garçom é bastante desencorajadora. Ainda assim, está prestes a decidir
retornar à cervejaria quando nota, à sua frente, uma placa indicando
sanitários públicos, o que não é tão frequente nesse tipo de lugar. Estão
numa área situada logo após a confeitaria Cardon e a joalheria Desfossés.
É a partir desse momento que as coisas se aceleram.
Anne percorre os trinta metros que a separam dos sanitários, empurra a
porta e se depara com dois homens.
Eles entraram pela saída de emergência que dá para a rua Damiani e se
dirigiam para a galeria.
Por causa de um ou dois segundos... Sim, é ridículo, mas é uma
evidência: se Anne tivesse entrado cinco segundos depois, eles já estariam
de capuz e tudo teria sido bem diferente.
Mas, na verdade, é deste modo que as coisas acontecem: Anne entra,
todos icam espantados e paralisados.
Ela olha para os dois homens, um após o outro, espantada com a
presença, o comportamento deles, as roupas pretas.

fevereiro•2022
Clube SPA

E as armas. Espingardas calibre 12. Mesmo quando não se sabe nada de


armas, deparar-se com elas é impressionante.
Um dos dois, o mais baixo, solta um grunhido, talvez um grito. Anne olha
para ele, está atônita. Em seguida, vira-se para o outro. Ele é mais alto, com
um rosto rude, retangular. A cena não dura mais que alguns segundos, mas
os três personagens permanecem mudos, imóveis, todos atônitos, pegos de
surpresa. Os dois homens abaixam o capuz com rapidez. O mais alto ergue
a arma, dá meia-volta e, como se segurasse um machado e se preparasse
para derrubar uma árvore de carvalho, golpeia o rosto de Anne com o cabo
da espingarda.
Com toda força.
Isso praticamente arrebenta sua cabeça. Ele chega até a soltar um “ahh”
de dentro da barriga, como os tenistas quando batem na bola.
Anne pende para trás, tenta se agarrar a alguma coisa, mas não encontra
nada. A pancada foi tão súbita e violenta que ela tem a impressão de que a
cabeça se destacou do resto do corpo. Foi projetada mais de um metro
para trás; seu crânio bate na porta, ela abre os braços e desaba no chão.
A coronha de madeira arrebentou quase metade do seu rosto, do
maxilar até a têmpora, rompendo o osso da maçã esquerda, que se
espatifou como uma fruta, explodindo dez centímetros de bochecha, o
sangue jorrando de imediato. De fora, o barulho se parece com o de uma
luva de boxe contra um saco de treinamento. Para Anne, que o sente dentro
do corpo, é como uma pancada de martelo, mas um martelo de uns vinte
centímetros de largura, desferida com as duas mãos.
O outro homem se põe a gritar, furioso. Anne pode ouvi-lo, mas apenas
vagamente, pois sua mente tem muita di iculdade para se reencontrar.
Como se nada estivesse acontecendo, o mais alto se aproxima
calmamente de Anne, aponta o cano da arma para a cabeça dela, carrega-a
com um estalido oco e se prepara para atirar, quando seu cúmplice grita de
novo. Bem mais alto desta vez. Talvez até mesmo o segure pela manga da
camisa. Anne, grogue, não consegue abrir os olhos, só as mãos se agitam,
abrindo-se e fechando-se no ar com um re lexo espasmódico e automático.
O homem que segura a espingarda se contém, vira-se, ica hesitante:
tiros são de fato a forma mais certa de atrair os tiras. Antes de entrar para
o crime, todos os criminosos pro issionais dirão isso para você. Durante
um segundo, ele balança perante a jurisprudência a seguir e, uma vez
tendo sua escolha interrompida, volta-se de novo para Anne e lhe desfere
uma longa série de chutes. No rosto e no estômago. Ela tenta se esquivar,
mas, mesmo que encontrasse forças, é impossibilitada pela porta que a

fevereiro•2022
Clube SPA

bloqueia. Sem saída. De um lado, a porta contra a qual ela se espreme; do


outro, o homem, apoiado sobre o pé esquerdo, desferindo-lhe chutes
violentos com a ponta do sapato. Entre um pontapé e outro, Anne recupera
brevemente o fôlego. O sujeito se detém por um breve instante e, talvez por
não obter o resultado esperado, decide passar para um método mais
radical: vira a espingarda, ergue-a acima da própria cabeça e começa a
desferir coronhadas em Anne. Com toda força e velocidade que consegue.
É como se tentasse en iar uma estaca num chão congelado.
Anne se contorce para se proteger, vira-se, desliza sobre seu sangue já
abundante e cruza as mãos sobre a nuca. O primeiro golpe chega à altura
do occipício. O segundo, mais bem ajustado, esmaga seus dedos
entrelaçados.
A mudança de método não obtém adesão unânime, pois o outro homem,
o mais baixo, agarra-se agora ao seu cúmplice e o impede de continuar a
bater, pendurando-se no seu braço e gritando. Não seja por isso; o sujeito
abandona, então, seu plano, retornando ao método tradicional. Ele
recomeça a dar pontapés pelo corpo de Anne, golpes bem distribuídos,
desferidos com um enorme sapato de couro de estilo militar. Ele mira a
cabeça. Totalmente encolhida, Anne continua a se proteger com os braços,
as pancadas chovendo sobre a cabeça, a nuca, o antebraço, as costas; não
se sabe quantos chutes, os médicos dirão pelo menos oito, o legista, nove.
Vai saber, eles vêm de toda parte.
É nesse momento que Anne perde a consciência.
Para os dois homens, o caso parece encerrado. Mas o corpo de Anne
bloqueia a porta que conduz à galeria comercial. Sem combinar, eles se
curvam, o menor apanha Anne pelo braço e a puxa para si, a cabeça da
mulher batendo e deslizando pelo piso. Assim que é possível abrir a porta,
ele larga o braço dela, que desaba pesadamente, mas ela ica numa posição
quase graciosa; as mãos de certas madonas são pintadas assim, sensuais e
indolentes. Se tivesse testemunhado essa parte da cena, Camille teria
observado sem demora a estranha semelhança do braço de Anne, tal
abandono, com o de A vítima ou A as ixiada, de Fernand Pelez, o que não
teria sido nada bom para seu estado de espírito.
A história toda poderia ter parado por aí. A história de um encontro
desafortunado. Mas o mais alto dos homens não vê as coisas assim. É ele
quem nitidamente dá as ordens e faz um rápido balanço da situação.
O que vai acontecer agora com essa mulher?
Será que ela vai acordar do desmaio e se pôr a gritar?
Ou vai voltar para a galeria Monier?

fevereiro•2022
Clube SPA

Pior: fugir pela saída de emergência sem que ele perceba e pedir
socorro?
Esconder-se em uma das cabines do banheiro, pegar o celular e ligar
para a polícia?
Então ele coloca o pé contra a porta para mantê-la aberta, curva-se
sobre Anne, segura-a pelo calcanhar direito e deixa o sanitário arrastando-
a pelo chão ao longo de mais ou menos trinta metros, como uma criança
que puxa um brinquedo, com a mesma facilidade, tamanha é a indiferença
com o que tem atrás de si.
O corpo de Anne se choca aqui e ali, o ombro topa contra o canto da
porta do sanitário, o quadril contra a parede do corredor, a cabeça balança
conforme os safanões que ela vai levando; bate contra um rodapé, contra a
quina de um dos canteiros de plantas que contornam a galeria. Anne não é
mais que um pano de chão, que um saco, um manequim amorfo, sem vida,
perdendo sangue e deixando atrás de si um largo rastro vermelho que
coagula ao passar dos minutos; o sangue não demora a secar.
Ela parece morta. Quando o homem a larga, ele abandona sobre o chão
um corpo desarticulado, para o qual nem sequer olha; não é mais
problema seu, ele acaba de carregar a espingarda com um gesto irme,
de initivo, que demonstra toda a sua determinação. Os homens irrompem
na joalheria Desfossés com gritos de ordem. A loja acabou de abrir. Um
espectador, se houvesse algum lá dentro, não deixaria de se surpreender
com a desproporção entre a brutalidade que eles demonstram desde a
entrada e a baixa quantidade de pessoas que se encontram na loja. Os dois
homens ladram suas ordens aos funcionários (nada além de duas
mulheres) e já chegam distribuindo pancadas: no estômago, no rosto; tudo
acontece muito rápido. Ouvem-se barulhos de vidro quebrando, gritos,
gemidos, respirações ofegantes de medo.
Talvez efeito da cabeça raspando pelo chão por trinta metros, dos
solavancos ao longo do percurso, há uma súbita pulsão de vida em Anne...
Chega o momento em que ela tenta se reconectar à realidade. Seu cérebro,
como um radar desmantelado, busca em desespero um sentido a tudo o
que se passa, mas não há nada a fazer, sua consciência se perdeu,
literalmente anestesiada pelas pancadas, pela brusquidão de tudo o que
está acontecendo. Quanto ao corpo, está entorpecido pela dor, impossível
mexer o menor músculo.
O espetáculo do corpo de Anne arrastado pela alameda e jazendo numa
poça de sangue à entrada da butique vai ter um efeito positivo: transmitirá
um impacto de urgência à situação.

fevereiro•2022
Clube SPA

Só estão presentes na loja a proprietária e uma aprendiz, uma garota de


dezesseis anos, magra como uma folha, que se apresenta com um coque no
cabelo para transmitir mais seriedade. Assim que ela vê entrarem os
homens armados e encapuzados, assim que percebe que se trata de um
assalto, ela abre a boca como um peixe, hipnotizada, entregue, passiva
como uma vítima prestes a ser imolada. Suas pernas não a sustentam, ela
precisa se segurar no balcão. Antes que seus joelhos cedam, ela leva o cano
da arma em cheio no rosto e desaba lentamente, como se tivesse sido
soprada. Ela passará o resto do tempo nessa posição, contando os
batimentos cardíacos, os braços protegendo a cabeça, como se esperasse
um desmoronamento de pedras.
A proprietária da joalheria, por sua vez, ica sem ar ao descobrir o corpo
inanimado de Anne sendo arrastado pelo pé, a saia erguida à altura da
cintura, deixando para trás um largo rastro de sangue. Ela tenta articular
uma palavra que ica presa em algum lugar. O mais alto dos homens
postou-se na frente da loja; ele vigia os arredores. O mais baixo precipita-
se sobre ela, o cano da arma apontado para a frente. Ele lhe en ia o cano
brutalmente no estômago, à altura do abdômen. Sua única reação é tentar
conter a náusea. Ele não diz uma palavra, não é preciso, ela já está em
piloto automático. Desativa desajeitadamente o sistema de segurança,
procura as chaves das vitrines, mas não está com todas elas, é necessário
buscar nos fundos da loja. É quando tenta dar o primeiro passo que ela se
dá conta de que se urinou toda. Entrega ao homem todo o molho de chaves
com a mão trêmula. Ela nunca dirá isso em nenhum depoimento, mas
nesse momento ela lhe murmura: “Não me mate...”. Trocaria a Terra inteira
por vinte segundos de existência. Ao dizer isso, sem que lhe comandem, ela
se deita no chão, as mãos sobre a nuca, e é possível ouvi-la murmurar
fervorosamente algumas palavras; são orações.
A julgar pela brutalidade desses homens, é de perguntar se orações, por
mais fervorosas que sejam, servem como solução prática. Pouco importa.
Durante as orações, o assaltante não perde tempo, abre todas as vitrines e
esvazia o conteúdo dos sacos de linho.
O assalto é muito bem organizado, dura menos de quatro minutos. O
horário foi muito bem escolhido, a chegada pelos sanitários bem re letida,
as funções divididas de maneira bastante pro issional: enquanto o
primeiro homem faz a limpa nas joias das vitrines, o segundo, perto da
porta, irme sobre as pernas, sólido e decidido, vigia por um lado a loja, por
outro, a galeria.

fevereiro•2022
Clube SPA

Uma câmera, situada dentro da loja, mostrará o primeiro assaltante


abrindo as vitrines e as gavetas, e fazendo a limpa no que encontra pelo
caminho. Uma segunda câmera cobre a entrada da joalheria e uma
pequena parte da galeria comercial. É nas imagens desta última que se vê
Anne estendida no chão.
É nesse instante que o assalto minuciosamente planejado começa a dar
errado. A partir do momento em que, nas imagens, é possível ver Anne se
mexer. É quase imperceptível, semelhante a um re lexo involuntário. De
início, Camille ica na dúvida, não tem muita certeza de ter enxergado
direito, mas, sim, sem dúvida, Anne está se mexendo... Ela move a cabeça,
vira-a bem lentamente da direita para a esquerda. Camille conhece esse
gesto; em certos momentos do dia, quando quer relaxar, ela arqueia as
cervicais e os músculos do pescoço, falando de um tal de
“esternocleidomastoídeo”. Camille nem sabia que isso existia. Obviamente,
desta vez o movimento não tem nem a amplitude nem a suavidade do
gesto de relaxamento. Anne está deitada de lado, a perna direita dobrada,
seu joelho toca o peito, a perna esquerda estendida, o tronco inclinado
para trás, como se ela estivesse em vias de girar sobre si mesma; a saia,
enrolada para cima, exibe a calcinha branca. O sangue escorre pelo rosto
com abundância.
Ela não está deitada, está jogada ali.
No início do assalto, o homem que permanece perto de Anne vinha lhe
lançando olhares de relance, mas, como ela não estava mais se mexendo,
toda a atenção dele se voltou para a vigilância dos arredores. Ele não se
ocupa mais dela; vira-lhe as costas e sequer percebe que um io de sangue
alcançou seu calcanhar direito.
Anne, por sua vez, emerge do seu pesadelo e começa a buscar sentido no
que se passa ao redor. Quando ela levanta a cabeça, a câmera capta
brevemente seu rosto. Vê-la assim é dilacerante.
Diante dessa imagem, Camille ica tão abalado que sem querer aperta os
botões errados do controle remoto, tenta retornar duas vezes para a cena,
pausa, consegue voltar: ele nem sequer a reconhece. Não há nada em
comum entre Anne, de tez radiante, olhos sorridentes, e esse rosto
banhado de sangue, inchado, de olhar inerte, que parece já ter dobrado de
volume e perdido suas formas.
Camille segura a beirada da mesa, sente imediatamente vontade de
chorar, pois Anne se põe diante da lente da câmera, vira quase na sua
direção, como para lhe dizer algo, para lhe pedir socorro, é o que ele
imagina na hora, e essa projeção o faz se sentir péssimo. Imagine um dos

fevereiro•2022
Clube SPA

seus próximos entre aqueles que contam com sua proteção; imagine
assisti-lo sofrer, morrer. Você vai suar frio. Agora tente ir mais longe e
imagine-o chamando por você no ápice do desespero; você vai ter vontade
de morrer. Camille se encontra nessa situação, diante dessa tela,
totalmente impotente; ele não pode fazer nada além de assistir a essas
tomadas, agora tudo isso já passou...
É uma situação insuportável, de initivamente insuportável.
Ele vai assistir a essas imagens dezenas de vezes.
Anne, por sua vez, vai se comportar como se tudo o que está
acontecendo ao redor não existisse. O assaltante poderia subir em cima
dela e apontar de novo o cano da espingarda para a sua nuca, ela faria a
mesma coisa. É guiada por um instinto de sobrevivência impressionante,
ainda que, visto do outro lado da tela, o que ela vai fazer esteja mais para
um suicídio: a menos de dois metros de um homem armado que mostrou,
alguns minutos antes, que estava pronto para atirar na sua cabeça sem a
menor comoção, Anne prepara-se para fazer o que nenhuma outra pessoa
faria. Vai tentar se levantar. Sem a mínima preocupação com as
consequências. Ela vai tentar fugir. Anne é uma mulher de personalidade
forte, mas daí a enfrentar desarmada uma espingarda calibre 12 existe
uma grande diferença.
O que vai acontecer é o desdobramento quase automático da situação,
duas energias opostas vão se confrontar. Uma ou outra terá que prevalecer.
Elas não têm saída. A diferença, claro, é que uma dessas energias tem o
reforço de uma calibre 12. Isso sem dúvida vai lhe dar vantagem. Mas Anne
é incapaz de medir a potência das forças presentes, de calcular
racionalmente suas chances; ela se conduz como se estivesse só. Reúne
toda a vitalidade que lhe resta – e, nas imagens, vê-se logo que é
pouquíssima –, ajeita a perna, apoia-se sobre os braços, faz um esforço
enorme, as mãos escorregando pela poça do próprio sangue. Ela quase se
esparrama pelo chão, recomeça, e a lentidão com que tenta se levantar dá
um teor surreal à cena. Seu corpo parece terrivelmente pesado; ela está
entorpecida, é quase possível ouvi-la arfar. Ela nos faz querer ampará-la,
puxá-la, ajudá-la a se pôr de pé.
Camille, por sua vez, teria vontade mesmo é de suplicar a ela que não
izesse nada. Mesmo que o cara demorasse um minuto para se virar, no
estado de embriaguez, de desvario no qual se encontra Anne, ela não terá
nem percorrido três metros, e o primeiro tiro de espingarda já a terá quase
cortado ao meio. Mas Camille está de frente para a tela, várias horas depois

fevereiro•2022
Clube SPA

do ocorrido; sua opinião agora não tem nenhuma importância, é tarde


demais.
O comportamento de Anne não é governado por nenhum pensamento,
trata-se de pura determinação que escapa a qualquer lógica. Isso é visto de
forma gritante no vídeo: na decisão que ela toma, não há outra causa senão
a vontade de sobreviver. É como se ela não fosse uma mulher sob a ameaça
de levar um tiro à queima-roupa, mas uma bêbada ao im da noite,
apanhando a bolsa – à qual permaneceu grudada desde o início,
arrastando-a atrás de si, e que está banhada pelo seu sangue – e
cambaleando à procura da saída para voltar para casa. Seria possível jurar
que seu principal adversário é sua consciência desorientada, e não uma
espingarda calibre 12.
Os principais acontecimentos não levam nem um segundo para ocorrer:
Anne não pensa duas vezes, levanta-se com grande custo. Consegue
equilibrar-se brevemente, sua saia ica presa e ainda descobre uma perna
até a cintura. Ela mal se põe de pé e já começa a fugir.

A partir de então, tudo vai sair do roteiro, os fatos se resumem a uma


série de incoerências, acasos e equívocos. É como se Deus, dominado pela
intensidade dos acontecimentos, não soubesse mais onde meter a cabeça;
os atores acabam tendo que improvisar e, claro, nada dá certo.
Primeiro porque Anne não sabe onde está; geogra icamente, ela não
consegue se orientar. Na verdade, está tomando o sentido totalmente
errado para fugir. Se estendesse o braço, tocaria o ombro do homem, ele se
viraria para ela e...
Ela oscila por um longo momento, zonza, atordoada. Seu equilíbrio
cambaleante parece um milagre. Enxuga o rosto ensanguentado com a
manga da jaqueta, inclina a cabeça para o lado, como para escutar alguma
coisa, ensaia dar um passo... E de repente, vai saber por que, resolve correr.
Ao ver isso no vídeo, Camille desmorona; ele sente dissolver o resto de
estrutura emocional que lhe resta.
A intenção de Anne é boa. É a concretização do seu plano que peca, pois
seus pés escorregam sobre a poça de sangue. Em outros termos, ela patina.
Num desenho animado, talvez isso izesse rir, na realidade, a cena é
patética, pois ela está patinando sobre o próprio sangue, tentando se
manter de pé, procurando avançar, mas não fazendo mais que se debater e
escorregar. Ela transmite a impressão de correr em câmera lenta na
direção de quem ela deveria estar fugindo; é angustiante.

fevereiro•2022
Clube SPA

O homem não se deu conta da situação de imediato. Anne ica a dois


dedos de desabar sobre ele, mas seus pés de repente encontram um pouco
de terreno seco, ela obtém certo equilíbrio, não é preciso mais que isso;
como se estivesse sob efeito de uma mola, ela consegue arrancar.
E vai para o lado errado.
Prescreve uma trajetória insólita de início, girando em torno de si
mesma, como uma boneca desarticulada. Vira noventa graus, avança um
passo, para, vira de novo como um caminhante desorientado que tenta
encontrar suas coordenadas e acaba miraculosamente por tomar mais ou
menos a direção da saída. Passam-se alguns segundos antes que o
assaltante veja que sua presa está fugindo. Assim que percebe, ele se vira e
atira.
Camille passa o vídeo várias vezes: não há dúvida, o atirador foi pego de
surpresa. Ele segura sua arma à altura do quadril. É o tipo de posição que
se adota para atingir com uma espingarda quase tudo o que se encontra
num raio de quatro, cinco metros. Talvez ele não tenha conseguido icar na
posição certa. Talvez, pelo contrário, ele tenha con iança demais em si
mesmo, isso acontece com frequência; pegue um grandalhão retraído, dê a
ele uma espingarda calibre 12 e a liberdade de usá-la, e ele logo vai se
encher de coragem. Ou é por causa do espanto ou uma mistura de tudo
isso de uma só vez. Fato é que o cano é apontado para cima, bem para o
alto. O tiro é um re lexo automático. Sem mira nenhuma.
Quanto a Anne, nada enxerga. Descompassada, ela avança para um
buraco negro quando a chuva de vidro cai sobre a sua cabeça, fazendo um
barulho torrencial, pois o tiro estilhaçou a claraboia que se encontra acima,
a alguns metros da saída, um vitral em forma de meia-lua de mais ou
menos três metros de base. É cruel constatar o que o destino oferece a
Anne: o vitral representava uma cena de caça. Dois cavaleiros vistosos
galopam a alguns metros de distância de uma matilha colérica que ataca
um cervo de chifres gigantescos; com a boca babando, os cães expoem seus
caninos brilhantes, o cervo está com os segundos contados... É bizarro
constatar que a galeria Monier e seu vitral em formato de lua crescente
haviam sobrevivido a duas guerras mundiais e agora bastou a irrupção de
um assaltante armado e desajeitado... Existem coisas di íceis de aceitar.
Tudo estremece, os vitrais, as vidraças, o chão... Cada pessoa, à sua
maneira, protege-se instintivamente.
– Eu en iei a cabeça no meio dos ombros – dirá o antiquário para
Camille, imitando a cena.

fevereiro•2022
Clube SPA

Ele é um homem de trinta e quatro anos (insistiu no número, não


confundir com trinta e cinco).Tem uma cabeleira muito curta para a
cabeça, que se levanta na parte da frente e atrás. Seu nariz é grande e seu
olho direito se mantém quase totalmente fechado, mais ou menos como o
personagem de capacete de Idolatria, de Giotto. Só de pensar, ele ainda ica
estarrecido com o momento do disparo.
– Pensei que fosse um atentado terrorista, claro. (Ele acha que disse
tudo.) Mas logo pensei: não, um atentado, aqui, seria ridículo, aqui não é
um alvo visado etc.
O tipo de testemunha que refabrica a realidade conforme a velocidade
da memória. Porém, não do tipo que esquece suas prioridades. Antes de
veri icar o que se passava na galeria, ele olhou de relance para a sua loja a
im de checar se havia algum estrago.
– Nada demais – diz ele, maravilhado, estalando a unha do polegar
contra o seu dente incisivo.
A galeria é bem mais alta que extensa, ela é composta de uma alameda
de uns quinze metros com lojas repletas de vitrines em ambos os lados. O
impacto é colossal para um espaço con inado como esse. Passado o
disparo, as vibrações se dispersaram na velocidade do som e retornaram
topando contra todos os obstáculos e ecoando em ondas justapostas.
O disparo, seguido dos milhares de estilhaços que desabaram como
granizo, interrompeu o percurso de Anne. Para se proteger, ela põe os
braços sobre a cabeça, en ia o queixo no peito, cambaleia, cai, desta vez de
lado, o corpo rolando sobre os cacos; porém, é preciso mais que tiros de
espingarda e estilhaçamentos de vitrais para deter uma mulher como essa.
Ninguém sabe como, mas lá está ela de novo, de pé.
O atirador errou o primeiro disparo, mas aprendeu a lição; agora ele
demora um pouco mais. Nas imagens, é possível vê-lo recarregar sua
espingarda, inclinar a cabeça; se a resolução do vídeo fosse ainda melhor,
seria possível ver seu indicador apertar o gatilho.
Uma mão aparece subitamente, com uma luva preta, é o outro homem
que o empurra pelo ombro exatamente no momento em que ele atira.
A vitrine da livraria se estilhaça em mil pedaços, cacos inteiros de vidro,
alguns grandes como pratos, cortantes como lâminas, desabam e se
despedaçam pelo chão.
– Eu estava no fundo das lojas...
Uma mulher de mais ou menos cinquenta anos, comerciante dos pés à
cabeça, baixa e atarracada, segura de si mesma, o rosto coberto com uma
fortuna de base para maquiar, que vai à esteticista duas vezes por semana

fevereiro•2022
Clube SPA

e usa um monte de pulseiras, colares, correntes, anéis, broches, brincos (é


mesmo de se perguntar por que os assaltantes não a levaram junto com o
resto do que roubaram), a voz rouca, excesso de cigarro, talvez álcool
também, Camille não tem tempo de descobrir. O incidente aconteceu
apenas algumas horas mais cedo, ele não se sente nada bem, quer saber
logo, está impaciente.
– Eu me precipitei... – diz ela fazendo um gesto abrangente em direção à
galeria.
Ela faz uma pausa, é louca por tudo aquilo que a torna o centro das
atenções. Busca causar impacto com seus preciosismos. Diante de Camille,
isso não vai durar muito tempo.
– Vá direto ao ponto! – murmura ele com uma voz rouca.
Isso não é muito educado para um policial, ela pensa consigo, deve ser
por causa do tamanho, deve deixá-lo amargo, irritado. O que ela viu, pouco
após o tiro, foi o corpo de Anne sendo propulsionado sobre os mostruários,
como se uma mão gigantesca a tivesse empurrado pelas costas; em
seguida, ela a viu topar contra a vitrine e desmoronar pelo chão. A imagem
ainda é tão forte que a livreira abandona seus trejeitos.
– Ela se esmagou contra a vitrine! Mas mal bateu no chão e já ia
tentando se levantar de novo! (Ela ica impressionada, admirada.) – Ela
estava sangrando e muito inquieta, bem agitada mesmo, com os braços
balançando para todos os lados, icava derrapando sem sair do lugar,
sabe...
No vídeo, por um breve instante, os dois homens parecem paralisados. O
que desviou o tiro, empurrando brutalmente seu cúmplice, joga os sacos
pelo chão. Ele balança os braços, como se estivesse prestes a sair na mão
com o companheiro. Sob seu capuz, é possível ver apenas os lábios
cerrados, como se cuspisse as palavras.
O atirador, por sua vez, abaixa a espingarda. Suas mãos comprimem sua
arma, nota-se que ele ica hesitante, mas en im o mundo real fala mais alto;
ele desiste. Vira-se com relutância para Anne. Provavelmente, vê quando
ela se levanta e titubeia em direção à saída da galeria Monier, mas o tempo
está passando, um alerta deve se acender em algum lugar na sua mente: o
assalto já está demorando mais do que deveria.
O parceiro apanha os sacos e empurra um deles nas mãos do atirador; a
decisão está tomada. Ambos fogem correndo e desaparecem da tela. Uma
fração de segundo mais tarde, o atirador dá meia-volta, é visto ressurgir
pela direita: ele apanha a bolsa de Anne, abandonada na sua fuga, e parte
novamente. Dessa vez, ele não voltará mais atrás. Sabe-se que os dois

fevereiro•2022
Clube SPA

homens voltaram aos sanitários e saíram alguns segundos mais tarde pela
rua Damiani, onde outro parceiro os aguardava de carro.
Já Anne, não se sabe mais onde está. Ela cai, levanta-se, mas, ainda
assim, ninguém sabe muito bem como ela ganha a saída da galeria e chega
à rua.
– Ela caminhava toda ensanguentada... Parecia um zumbi!
De origem sul-americana, cabelos negros, pele bronzeada, por volta dos
vinte anos, ela trabalha no salão de cabeleireiros, na esquina; havia saído
para buscar algumas xícaras de café.
– Nossa máquina está quebrada, temos que buscar café para as clientes.
É a proprietária que explica. Janine Guénot. Firmemente postada diante
de Verhoeven, lembra uma alcoviteira, tem todos os atributos. O senso de
responsabilidade também; ela não deixaria nenhuma das suas garotas icar
batendo papo com homens na calçada sem vigiar de perto. Mas para
Camille pouco importa a razão do deslocamento da garota, os cafés, a
máquina quebrada, ele repele isso tudo com um gesto. Na verdade, nem
tudo.
Porque, no instante em que Anne irrompe, a cabeleireira carrega uma
bandeja redonda com as cinco xícaras de cafés e caminha rápido; é que as
clientes, nesse bairro, são particularmente chatas, são cheias da grana. Ser
exigente, para elas, é como exercer um direito milenar.
– Um café morno é motivo para o maior drama – explica a proprietária
com um olhar dolente.
E, então, a jovem cabeleireira.
Já surpresa e intrigada com os dois disparos que ouviu da rua, ela corre
pela calçada com a bandeja e dá de cara com uma maluca, coberta de
sangue, que sai da galeria comercial cambaleando. É o maior choque. As
duas mulheres se topam, a bandeja voa, adeus xícaras, pires, copos de
água, uniforme do salão. Os tiros de espingarda, os cafés, o tempo perdido,
tudo isso até que vai, mas estragar um conjunto desse preço, mas que saco,
dessa vez a voz da proprietária ica estridente, ela quer demonstrar o
prejuízo. “Está bem, está bem”, diz Camille fazendo um gesto. Ela pergunta
quem vai pagar a lavanderia, a lei deve prever esse tipo de incidente. “Está
bem”, repete Camille.
– E ela nem sequer parou...! – salienta a proprietária, como se falasse de
uma colisão com uma mobilete.
Agora ela conta o caso como se tudo tivesse acontecido com ela. Toma a
frente, porque, antes de tudo, trata-se da “sua garota” e porque os cafés
derramados no salão lhe dão esse direito. A clientela sempre acaba

fevereiro•2022
Clube SPA

comentando depois. Camille a segura pelo braço, ela abaixa os olhos para
ele, como se olhasse para um monte de cocô de cachorro na calçada.
– A senhora – diz Camille com um tom bem baixo de voz –, pare de me
encher o saco.
A proprietária não acredita nos próprios ouvidos. Da parte desse anão!
Não falta mais nada. Mas Verhoeven continua a encará-la; é mesmo
impressionante. Diante desse mal-estar, a pequena cabeleireira deseja
demostrar que preza pelo seu emprego.
– Ela gemia... – explica ela, para mudar o foco.
Camille se vira para ela, querendo saber mais. Como assim gemia? Sim,
ela dava uns gritinhos, como... é di ícil explicar... não sei como dizer. Vamos,
tente, diz a proprietária, que deseja se redimir aos olhos da polícia, a inal,
nunca se sabe o dia de amanhã; ela dá uma cotovelada na garota, vamos,
responda à pergunta do policial, esses gritos, como eram? A garota olha
para eles, os olhos pestanejando, não está muito certa de ter entendido o
que estão lhe pedindo. Então, em vez de tentar descrever o som, ela tenta
imitá-lo, começa a murmurar, uma espécie de gemido, tentando achar a
entonação correta: ai, ai, ou quem sabe uhh, uhh, o mais próximo disso, ela
conta, bastante concentrada, uhh, uhh. Como, en im, encontra a entonação
certa, ela aumenta o volume, fecha os olhos, abre-os em seguida,
esbugalhados, e, alguns segundos depois, uhh, uhh. Ela soa como se fosse
gozar.
Eles se encontram na rua, há muitas pessoas pelo local (eles estão no
local onde os empregados da limpeza pública passaram distraidamente o
jato de água sobre o sangue de Anne, que escorreu até o meio- io da
calçada. As pessoas caminham sobre as manchas ainda visíveis, a angústia
que isso causa em Camille...), os transeuntes se deparam com um policial
de um metro e quarenta e cinco tendo à frente uma jovem cabeleireira de
pele bronzeada que o encara estranhamente e solta gritos agudos de
orgasmo sob o olhar aprovador da mãe alcoviteira... Meu Deus, essa é nova
por aqui. Os demais comerciantes, na frente das lojas, assistem ao
espetáculo horrorizados. Os tiros já estão longe de ser boa propaganda
para a clientela, mas agora essa rua já começou mesmo a virar uma zona.
Camille vai reunir os depoimentos, confrontá-los e tentar compreender
como as coisas terminaram.
Anne abandona a galeria Monier pela rua Georges-Fladrin, à altura do
número 34, totalmente desnorteada; ela vira à direita e sobe a rua em
direção ao cruzamento. Alguns metros mais longe, choca-se com a
cabeleireira, mas não para, continua seu caminho apoiando-se, passo após

fevereiro•2022
Clube SPA

passo, sobre as carrocerias dos carros estacionados. É possível ver as


marcas das palmas das mãos ensanguentadas no teto dos veículos, nas
portas. Para todos os que estão do lado de fora, após os disparos oriundos
da galeria, essa mulher sangrando dos pés à cabeça é como uma
verdadeira aparição. Ela caminha oscilante, vacila, mas é incapaz de parar,
não sabe mais o que está fazendo, onde está, avança, geme (uhh, uhh)
como uma mulher embriagada, mas segue em frente. As pessoas se
afastam para a sua passagem. Alguém ainda se arrisca e grita: “Senhora?”,
mas a pessoa logo ica chocada com todo o sangue...
– Vou dizer uma coisa, essa mulher me assustou... Não sabia o que fazer.
Ele está desestabilizado. Um homem de feição sóbria, pescoço
terrivelmente magro, tem os olhos enevoados, deve ser catarata, pensa
Camille, seu pai também tinha ao im da vida. Após cada frase, ele parece
imergir num sonho. Seus olhos se ixam em Camille, um nevoeiro encobre
a sua visão e, antes que ele retome sua narrativa, faz uma pausa. Ele pede
desculpas, abre os braços, também bastante magros, Camille engole a
saliva, bombardeado por emoções.
O senhor de idade a chama: “Senhora!”, mas não ousa tocá-la, ela está
como uma sonâmbula, ele a deixa passar direto; Anne anda mais um
pouco.
E, então, ela vira novamente para a direita.
Não procure o motivo. Ninguém sabe. Porque à direita se encontra a rua
Damiani. E, porque dois ou três segundos depois que Anne aparece, o carro
dos assaltantes vem em alta velocidade.
Na direção dela.
E porque, ao ver sua vítima a alguns metros, o cara que lhe arrebentou a
cara e errou seu tiro duas vezes não pode resistir à ideia de pegar a
espingarda e terminar o serviço. Quando o carro chega à altura de onde
Anne se encontra, o vidro está abaixado, a arma está de novo apontada
para ela, tudo acontece muito rápido, ela avista a arma, mas é incapaz de
esboçar o menor gesto.
– Ela olhou para o carro... – diz o senhor. – Não saberia como lhe dizer
isso... é como se ela esperasse por ele.
Ele tem consciência de estar dizendo algo muito grave. Camille entende
o signi icado. Ele quer dizer que há em Anne uma imensa lassidão. Nesse
momento, após tudo o que ela viveu, ela se sente pronta para morrer. Todo
mundo também parece estar de acordo quanto a isso, Anne, o atirador, o
senhor de idade, o destino, todo mundo.
Até a pequena cabeleireira:

fevereiro•2022
Clube SPA

– Eu vi o cano da espingarda sair pelo vidro. E a moça também, ela


também viu. Nenhum de nós tirou os olhos da arma, só que a moça, ela
estava bem na frente dela, sabe.
Camille retém a respiração. Então todos estão de acordo. Exceto o
motorista do carro. Segundo Camille – ele re letiu bastante sobre a questão
–, o motorista não sabia em que ponto do massacre eles se encontravam.
Dentro do seu veículo à espreita, ele ouviu os disparos, percebeu que o
tempo previsto para o assalto havia sido em muito ultrapassado.
Impaciente, inquieto, devia estar nervoso, tamborilando os dedos no
volante, talvez considerando fugir, quando en im viu surgirem seus
comparsas, um empurrando o outro em direção ao veículo... Morreu
gente?, pergunta-se ele. Quantos? En im, os assaltantes entram no carro.
Tomado pelo calor do momento, o motorista arranca e eis que na esquina –
eles percorreram o que, duzentos metros? O veículo teve que reduzir a
velocidade consideravelmente para atravessar o cruzamento – ele avista
na calçada uma mulher sangrando e cambaleante. Ao percebê-la, o atirador
provavelmente grita para que ele reduza ainda mais, abaixa o vidro com
rapidez, talvez até solte um grito de vitória, uma última oportunidade, não
dá para recusar, é quase um chamado do destino, é como se ele de repente
encontrasse sua alma gêmea; achava que nunca mais a veria, mas ali está
ela! Ele pega sua espingarda, ergue-a à altura dos ombros e mira. Contudo,
o motorista, por sua vez, se vê, numa fração de segundo, cúmplice de um
assassinato quase à queima-roupa diante de uma boa dúzia de
testemunhas, sem contar o que pode ter se passado na galeria, que ele
desconhece e de que acabou fazendo parte, independentemente da sua
vontade. O assalto se tornou uma catástrofe. Ele não esperava que as coisas
acontecessem assim...
– O carro freou com tudo – diz a cabeleireira. – De uma vez! Os freios
izeram um barulho...
Eles recolherão vestígios dos rastros da borracha sobre o asfalto que
permitirão de inir a marca: um Porsche Cayenne.
Dentro do veículo, todos desabam para a frente, incluindo o atirador. Seu
tiro atinge duas portas e os vidros laterais do veículo estacionado junto ao
qual Anne se encontra paralisada, pronta para morrer. Na rua, todos se
jogam ao chão, exceto o senhor de idade, que não tem tempo de esboçar o
menor gesto. Anne desaba, o motorista esmaga o pedal do acelerador, o
veículo parte em disparada, os pneus guincham de novo no asfalto. Ao se
levantar, a cabeleireira vê o senhor de idade apoiando-se com uma mão
contra a parede, a outra no coração.

fevereiro•2022
Clube SPA

Já Anne está estirada sobre a calçada, o braço caído pelo meio- io, uma
perna debaixo do carro estacionado. “Brilhando”, dirá o senhor de idade, o
que é evidente, a inal, ela está coberta de cacos de vidro do para-brisa que
estilhaçou.
– É como se tivesse nevado sobre o corpo dela...

10h40
Os turcos não icaram contentes.
Não icaram nada contentes.
O grandalhão, com ar obstinado, dirige com prudência, mas contorna a
Place de l’Étoile e desce a avenida da Grande-Armée cerrando os punhos
sobre o volante. Franze as sobrancelhas. Quer causar impacto. Ou talvez
seja cultural manifestar as emoções dessa forma.
O mais agitado é o caçula. Sangue ruim. Pele bem morena, com um
semblante impetuoso, seu temperamento sombrio pode ser sentido de
longe. Também é muito comunicativo, brande o indicador, ameaça,
consegue ser bem irritante. Não entendo nada do que ele está dizendo – o
espanhol, pra mim... –, mas não é di ícil supor: fomos incumbidos de
realizar um assalto rápido e lucrativo, e, de repente, estamos em meio a um
tiroteio sem im. Ele abre as mãos amplamente: e se eu não tivesse
interrompido você? Silêncio. Passa um anjo capenga pelo veículo. Em
seguida, ele faz a pergunta com uma insistência visível, sem dúvida
indagando o que teria acontecido se a mulher tivesse sido morta. Então, de
repente, ele não consegue se conter, a fúria o domina: a gente foi até lá para
fazer um assalto, não um massacre etc.
Ele é mesmo um pé no saco. Ainda bem que sou um homem calmo, se eu
fosse icar nervoso, as coisas sairiam dos trilhos com rapidez.
Isso não tem a menor importância, mas ele já está me cansando. Esse
moleque não para de se esbaforir de tanto reclamar, ele deveria poupar
suas forças, vai precisar das suas energias logo mais.
Nem tudo aconteceu exatamente como o previsto, mas o objetivo global
foi atingido, isso é o essencial. Dois sacos grandes de joias estão no
assoalho do carro. Serão su icientes por um tempo. E este é só o começo,
porque, se tudo der certo, vou ampliar os projetos e a quantidade de sacos.
O turco também não tira o olho deles; fala com o irmão, ambos parecem
entrar num acordo, o motorista faz gestos de assentimento. Eles têm uma
reunião em família como se estivessem a sós, devem estar calculando a

fevereiro•2022
Clube SPA

recompensa que se acham no direito de exigir. De exigir... devem estar


sonhando. De tempos em tempos, o mais novo se interrompe para se
dirigir a mim, enfurecido. Entendo duas ou três palavras: “grana”, “rateio”.
É de perguntar onde eles as aprenderam, estão na França há vinte e quatro
horas... Os turcos talvez tenham facilidade com línguas, vai saber. E
também pouco importa. De imediato, basta icar com uma expressão
confusa, curvar um pouco a espinha, concordar com a cabeça com uma
careta sem jeito. Já estamos em Saint-Ouen, quando o trânsito lui bem,
tudo vai bem.
Penetramos nos subúrbios. Mas como esse otomano berra, é mesmo
inacreditável. De tanto vociferar, quando chegamos diante da garagem, a
atmosfera no carro se tornou irrespirável, é como se estivéssemos diante
do Grande Oráculo Universal. O mais novo grita uma pergunta para mim,
várias vezes a mesma pergunta; ele exige uma resposta e, para mostrar a
que ponto é destemido, brande o indicador e o bate contra seu outro
punho com irmeza. O gesto deve ter um signi icado claro em Izimir, mas
aqui em Saint-Ouen as coisas são diferentes. Todavia, entendo claramente
a intenção global: ele quer dar uma de mandão e ameaçador, devo assentir
com a cabeça, dizer que estamos de acordo. Aliás, não estou mentindo,
logo mais entraremos mesmo num acordo.
Enquanto isso, o motorista já desceu do carro, mas, embora esteja se
matando em cima da fechadura da garagem, não chega nem perto de abrir
a porta de aço. Tenta girar a chave em todos os sentidos, ica boquiaberto,
volta-se para o carro; dá para perceber que ele está se interrogando,
quando tinha testado a chave antes, funcionava perfeitamente bem; ele
transpira enquanto o motor gira. Não corremos risco de nos acharem
nesse beco no meio do nada, mas eu não estou a im de icar demorando
aqui.
Para eles, esse é mais um contratempo, outro empecilho. E já é demais.
Desta vez, o mais novo está a ponto de ter um derrame. Nada corre como
planejado, ele se sente enganado, traído, “seu francês de merda”, devo fazer
uma cara intrigada, esse papo de porta que não abre, não estou
entendendo, a chave deveria funcionar, ontem até testamos juntos. Saio
com calma do carro, espantado e confuso.
A Mossberg 500 é uma espingarda que tem capacidade para sete
disparos a cada vez que é recarregada. Em vez de icar berrando como um
bando de hienas, esses imbecis deveriam ter contado a munição. Eles vão
aprender que, quando você não é habilidoso com fechaduras, é melhor ser
bom em aritmética, porque, uma vez de pé, a porta do carro aberta, basta

fevereiro•2022
Clube SPA

que eu avance até a porta de aço e empurre levemente o motorista para


tomar seu lugar – deixa ver... –, e, quando me viro de novo, estou na posição
ideal. Resta na espingarda apenas o necessário para mirar no motorista e
pregá-lo contra a parede de concreto com um tiro em cheio no peito.
Quanto ao caçula, é só virar ligeiramente o cano para o lado; é um
tremendo alívio espatifar a cabeça dele através do para-brisa. O sangue
jorra. O para-brisa explode, os vidros laterais icam cobertos de sangue,
não dá para ver mais nada. Tenho que me aproximar para descobrir o
resultado. A cabeça explodiu em pedaços, não sobrou nada, só o pescoço
ligado a um corpo tomado por convulsões; as galinhas também fazem isso
quando são decapitadas, elas continuam a correr. Com os turcos é um
pouco parecido.
A Mossberg é barulhenta, mas, depois do disparo, que silêncio! Agora,
não vou me precipitar. Devo colocar os dois sacos para fora do carro, tirar
do bolso a chave certa para abrir a garagem, arrastar o irmão mais velho
para dentro, entrar com o carro e o caçula dividido em dois – sou obrigado
a passar por cima do corpo do outro, mas tudo bem, ele não tem mais
como icar chateado –, fechar a portar e im de papo.
Basta, então, apanhar os sacos, ir até o im do beco e entrar no carro de
aluguel. Nem tudo está terminado, na verdade. Melhor dizer que esse é
apenas o começo. Hora de quitar as dívidas. Tirar o telefone celular do
bolso, discar o número do aparelho que ativa a bomba, dá para ouvir a
explosão daqui. Estou bem longe, mas meu carro treme sob o efeito da
rajada de vento. A mais de quarenta metros. Isso que é explosão! Os turcos
vão direto para o Jardim dos Prazeres. Esses babacas vão poder brincar
com suas virgens. Uma cortina de fumaça negra sobe por cima dos tetos
das o icinas; aqui quase todas elas são muradas, a cidade as expropriou
para reconstruir. No im das contas, acabei de dar uma mãozinha para a
comunidade. É possível ser assaltante e um bom cidadão. Os bombeiros
estarão a caminho em trinta segundos. Não há tempo a perder.
Guardar os dois sacos de joias em um depósito da Gare du Nord. É para
lá que o receptador vai enviar alguém para recolher tudo. Deixar a chave
numa caixa de correio do bulevar Magenta. E, por im, checar como as
coisas estão. Dizem que os assassinos sempre voltam à cena do crime.
Vamos respeitar a tradição.

11h45

fevereiro•2022
Clube SPA

Duas horas antes de ir ao enterro de Armand, perguntam a Camille pelo


telefone se ele conhece uma certa Anne Forestier. Seu número, que igura
no topo das chamadas mais recentes, é o último que ela discou. A ligação
lhe dá um frio na espinha: é assim que icamos sabendo da morte das
pessoas.
Mas Anne não está morta. “Vítima de uma agressão, ela acabou de ser
hospitalizada.” Pelo tom da mulher do outro lado da linha, Camille percebe
de imediato que ela está em mau estado.
De fato, Anne está em péssimo estado. Debilitada demais até para ser
interrogada. Os policiais encarregados da investigação dizem que ligarão
mais tarde, que irão ao seu encontro assim que possível. Foram
necessários vários minutos de negociação com a enfermeira do andar, uma
mulher de uns trinta anos, de lábios carnudos e um tique nervoso no olho
direito, para que Camille obtivesse o direito de entrar no quarto de Anne.
Contanto que não permanecesse por muito tempo.
Ele empurra a porta e ica um instante de pé junto à entrada. Vê-la
naquele estado é devastador.
De início, não vê mais que a cabeça totalmente enfaixada. Seria possível
jurar que um caminhão passou por cima dela. A metade direita do seu
rosto se resume a um enorme hematoma roxo, tão inchado que os olhos
desaparecem, como submersos dentro da cabeça. O lado esquerdo expõe
um longo ferimento, de uma dezena de centímetros, de contornos
avermelhados e amarelados, suturado por pontos. Os lábios estão
cortados, inchados, as pálpebras roxas e túrgidas. O nariz, fraturado,
triplicou de volume. A gengiva inferior foi atingida em duas regiões; Anne
mantém a boca levemente entreaberta, deixando escorrer pelo canto um
ilete de saliva. Sobre os lençóis, repousam os braços enfaixados até os
dedos, que trazem talas presas até as pontas. A mão direita tem um
esparadrapo que sinaliza um ferimento profundo e suturado.
Ao notar a presença de Camille, ela tenta lhe estender a mão, seus olhos
se enchem de lágrimas e, então, ela perde as forças, fecha os olhos e abre-
os novamente. Olhos de vidro, embaçados, que perderam até mesmo sua
linda cor natural verde-clara.
A cabeça virada para o lado, ela se exprime com uma voz rouca. Sua
língua, pesada, parece lhe causar muita dor; ela se mordeu com força, e
mal se entende o que diz, as consoantes labiais sem se articular por
completo.
– Está doendo...

fevereiro•2022
Clube SPA

Camille não consegue dizer uma palavra. Anne tenta falar, ele põe a mão
sobre o lençol para acalmá-la, nem sequer ousa tocá-la. Anne, por sua vez,
inquieta-se subitamente, ica agitada; ele sente vontade de fazer algo, mas
não sabe o quê. Chamar alguém? O olhar de Anne é febril; ela quer sem
dúvida exprimir algo com urgência.
– ... rrada ... orte.
A brusquidão dos acontecimentos ainda a mantém perplexa, como se
eles tivessem acabado de ocorrer.
Curvado sobre ela, Camille busca escutá-la com atenção, inge entender,
tenta sorrir. Anne parece estar mastigando um purê escaldante. Ele
entende algumas sílabas totalmente disformes, mas, de tanto se
concentrar, após alguns minutos, começa a adivinhar as palavras, a deduzir
o sentido... Mentalmente, ele passa a traduzir. É estranho como nos
adaptamos rápido. A tudo. E às vezes também deprimente.
“Agarrada”, ele entende, “espancada”, “forte”.
As sobrancelhas de Anne se erguem, os olhos se arredondam de pavor,
como se o homem estivesse diante dela de novo, como se ele se preparasse
para prensá-la contra o chão de novo a coronhadas. Camille estende a mão,
coloca-a sobre seu ombro; Anne tem um sobressalto violento, soltando um
grito.
– Camille... – diz ela.
Ela vira a cabeça da direita para a esquerda, a voz se torna quase
inaudível. Os dentes que faltam a fazem assoviar, pois, além de tudo, há
ainda três dentes quebrados, incisivos do lado esquerdo, em cima e
embaixo, quando abre a boca. Anne tem trinta anos a mais; como Fantine
numa versão ruim de Os miseráveis, ela insiste junto à enfermeira, mas
ninguém quer lhe dar um espelho.
Além disso, mesmo com di iculdade, ela tenta esconder a boca ao falar.
Com o dorso da mão. Na maioria das vezes, não consegue; a boca é um
buraco escancarado de lábios moles, arroxeados.
– ... vão me operar...?
É a pergunta que Camille acredita discernir. As lágrimas remontam, tem-
se a impressão de que são independentes ao que ela diz, surgem e
escorrem sem lógica aparente. Já o rosto de Anne não exprime nada além
de um atordoamento mudo.
– Não sabemos ainda... Acalme-se – diz Camille, bem baixo. – Vai dar
tudo certo...
Mas a mente de Anne já partiu de novo para outra direção. Ela vira a
cabeça para o lado oposto, como se sentisse vergonha. Então, o que diz é

fevereiro•2022
Clube SPA

ainda menos audível. Camille acredita ouvir: “Assim não...”, ela não queria
que ninguém a visse nesse estado. Ela consegue se virar totalmente para o
outro lado. Camille coloca a mão sobre o ombro dela, mas Anne não reage,
paralisada numa posição de recusa, apenas suas costas se contraem sob o
efeito dos soluços abafados.
– Você quer que eu ique? – pergunta ele.
Nenhuma resposta. Ele permanece ali, sem saber o que fazer. Ao im de
um longo momento, Anne faz não com a cabeça, não, não se sabe a que, a
tudo aquilo, ao que está acontecendo, ao que aconteceu, a esse absurdo
que atinge nossas vidas sem avisar, à injustiça do mundo, que é vista por
suas vítimas como uma questão pessoal. Impossível dialogar com ela. É
cedo demais. Eles não se encontram no mesmo momento. Ambos se calam.
Será que ela está dormindo? Não dá para saber. Ela se vira lentamente,
ica de frente para Camille mais uma vez, os olhos fechados. E não se mexe
mais.
É isso.
Camille olha ixamente para ela, uma mão sobre a outra, escuta sua
respiração, angustiado, tenta comparar esse ritmo ao de quando ela
dorme, conhece-o como ninguém. Já passou horas assistindo a Anne
dormir. De início, no meio da madrugada, ele se levantava só para observá-
la por um longo tempo e traçar seu per il, como o de uma nadadora, uma
vez que durante o dia ele nunca conseguia captar a magia sutil do seu
rosto. Assim, fez centenas de croquis, passou um tempo in inito tentando
traduzir seus lábios, tal pureza, suas pálpebras. Ou traçar sua silhueta
durante o banho sob o chuveiro. Do esplendor de todos os seus fracassos,
compreendeu a que ponto ela era imponente: se, por um lado, ele consegue
reproduzir com precisão quase fotográ ica os traços de qualquer pessoa
em minutos, por outro, Anne guarda algo de irredutível, inatingível, que
escapa ao seu olhar, à sua experiência, à sua observação. Porém, a mulher
ali deitada, inchada, enfaixada, como se estivesse mumi icada, não possui
mais nenhuma magia; dela não resta mais que seu invólucro, um corpo
feio, terrivelmente prosaico.
É isso o que, conforme os minutos passam, aumenta a raiva de Camille.
Às vezes, ela desperta bruscamente, solta um gritinho, olha ao redor, e
Camille descobre nela o que viu também em Armand nas semanas que
antecederam sua morte: uma feição inexpressiva, totalmente nova, que
exprime o estupor de ter chegado até ali, a incompreensão. A injustiça.
Ele nem sequer se recuperou do choque quando a enfermeira vem lhe
lembrar que seu tempo de visita acabou. Ela se faz de discreta, mas não

fevereiro•2022
Clube SPA

deixa o quarto enquanto ele não sai. No seu crachá: “Florence”. Mantém as
mãos para trás, numa posição que concentra insistência e respeito com um
sorriso compreensível que o colágeno ou o ácido hialurônico deixou
totalmente arti icial. Camille queria icar até que Anne pudesse lhe contar
o que aconteceu, ele está terrivelmente impaciente para saber como as
coisas se passaram. Mas não há nada a fazer, a não ser esperar. Sair. Anne
precisa descansar. Camille sai.
Para compreender tudo melhor, ele vai ter que esperar vinte e quatro
horas.
Porém, vinte e quatro horas é muito mais tempo que o su iciente para
um homem como Camille devastar a Terra inteira.
Após sair do setor do hospital, ele só dispõe de algumas explicações que
lhe foram fornecidas pelo telefone e ali mesmo, no hospital. Na realidade,
com exceção das informações gerais, ninguém sabe de nada, ainda é
impossível recompor com precisão a sequência dos acontecimentos.
Camille não obtém mais que a terrível imagem de Anne des igurada, o que
já é demais para um homem bastante propenso a fortes emoções, e esse
espetáculo desperta sua raiva natural.
Desde o momento em que passou pela saída, ele entrou em ebulição.
Quer saber de tudo, imediatamente, ser o primeiro a saber, ele quer...
É importante deixar claro: Camille não é vingativo. Ele sente rancores,
como todo mundo, mas, para escolher apenas um exemplo, Buisson, o
homem que matou sua mulher quatro anos atrás1, continua vivo e Camille
nunca quis fazer com que ele fosse assassinado na prisão, e, com os
contatos que ele tem, isso não teria sido nem um pouco complicado.
Hoje, no caso de Anne (ela não é sua segunda esposa, mas ele não sabe
muito bem que palavra deve usar)... no caso de Anne, não é isso o que ele
sente, não, não se trata de espírito de vingança.
É como se sua própria vida estivesse ameaçada por esse acontecimento.
Ele precisa agir porque é incapaz de imaginar as consequências de um
ato que interfere em sua relação com ela, a única coisa que, desde a morte
de Irene, devolveu sentido à sua vida.
Se isso soa como um exagero é porque você não se sente responsável
pela morte de alguém que amou. Garanto que isso faz uma enorme
diferença.
Enquanto desce apressado os degraus do hospital, ele revê o rosto de
Anne, seus olhos com as rugas amareladas, a cor horrível dos hematomas,
os tecidos da face inchados.
Ele acabou de vê-la morta.

fevereiro•2022
Clube SPA

Não sabe ainda de que maneira nem por qual razão, mas alguém quis
matá-la.
É essa sensação de repetição que o inquieta. Após o assassinato de
Irene... As duas circunstâncias não têm estritamente nada a ver uma com a
outra. Irene era pessoalmente visada por um assassino. Anne apenas
cruzou com a pessoa errada no momento errado, mas, neste instante,
Camille não faz triagem das suas emoções.
Ele é apenas incapaz de deixar as coisas seguirem seu curso sem agir.
Sem tentar agir.
Aliás, ele já teve uma primeira atitude sem nem perceber, por instinto, a
partir da conversa pelo telefone no começo da manhã. Anne foi “ferida”
num assalto à mão armada no oitavo distrito e “agredida”, disse a mulher
da delegacia. Camille adora essa palavra, “agredir”. Na polícia, eles adoram
usá-la. Eles também adoram “meliante” e “estipular”, mas “agredir” é muito
melhor, com três sílabas abarca-se uma gama que vai do simples ato de
esbarrar em alguém até a maior surra; o interlocutor entende o que quiser,
nada mais prático.
– Como assim, “agredida”?
A policial não sabia mais que isso, ela devia estar lendo um papel,
Camille se pergunta se ao menos ela entendia o que estava dizendo:
– Um assalto à mão armada. Houve tiros. A senhora Forestier não foi
atingida, mas foi agredida. Foi conduzida aos primeiros-socorros do
hospital mais próximo.
Alguém atirou? Em Anne? Durante um assalto à mão armada? Posto
dessa forma, não era fácil entender, imaginar. Anne e “à mão armada” são
duas ideias tão distantes uma da outra...
A mulher explicou a ele que Anne não estava com nenhum documento,
sem bolsa, que foram descobertos apenas seu nome e endereço no telefone
celular.
– Ligamos para a casa dela, mas não havia ninguém.
Eles se detiveram no número discado com mais frequência, o de Camille,
no topo da lista de contatos.
Ela lhe perguntou seu sobrenome para o relatório. Ela pronunciava
“verove”, Camille teve de corrigir: Verhoeven. Após um breve silêncio, ela
lhe pediu que soletrasse.
A icha caiu nesse momento para Camille. Como um re lexo da mente.
Porque Verhoeven já não é um nome muito comum, entre os policiais é
ainda mais raro. E, para completar, Camille faz parte dos comandantes de
polícia de que as pessoas se lembram. Não só por causa do seu tamanho,

fevereiro•2022
Clube SPA

mas também pela sua história pessoal, sua reputação, de Irene, do caso de
Alex Prévost, de tudo isso. Para muitas pessoas, ele leva a etiqueta “Visto
na tevê”. Fez algumas aparições famosas na televisão, os câmeras adoram
ilmá-lo de cima para baixo com seus olhos de águia e sua careca reluzente.
Mas Verhoeven, o policial, a tevê, mesmo com isso tudo, a auxiliar não fez a
conexão, ela pediu a ele que soletrasse seu nome.
Em retrospectiva, a raiva sussurra a Camille que esse desconhecimento
talvez seja a primeira boa notícia de um dia fora do comum.
– Você me disse Ferroven? – insistiu a mulher.
Camille respondeu:
– Sim, é isso. Ferroven.
E ele soletrou para ela.

14h
Assim é a humanidade, basta um acidente e todo mundo já sai pela
janela. Enquanto houver um giro lex ou um rastro de sangue, vai ter
alguém para olhar. E, desta vez, são muitas as pessoas. Também não é para
menos, um assalto e tiros de espingarda em plena Paris. Comparado a isso,
a Queda da Bastilha é uma piada.
Teoricamente, a rua está isolada, mas isso não impede os pedestres de
passarem. A ordem é iltrar apenas os residentes; perda de tempo, todo
mundo virou residente porque todo mundo quer saber o que está
acontecendo. Agora as coisas estão mais calmas, mas, segundo os
comentários, lá pelo inal da manhã, o lugar estava a maior zona. Viaturas
de polícia, vans, peritos, motos, todos aglomerados na parte baixa da
Champs-Élysées, o engarrafamento dominando os dois extremos. Em duas
horas, tudo parecia estar bloqueado da Concorde à Étoile e de Malherbes
ao Palais de Tokyo. Pensar que eu sou o autor de um tumulto como esse é
excitante.
Se você atirou várias vezes numa mulher sangrando dos pés à cabeça e
arranca numa quatro por quatro cantando pneus em posse de cinquenta
mil euros de joias, claro que voltar ao cenário causa um efeito parecido
com o do biscoito da Madeleine de Proust. É bem agradável, na verdade.
Quando as coisas caminham bem, a gente acaba icando com a alma leve.
Avisto um café, na rua Georges-Flandrin, bem na saída da galeria Monier.
Muito bem situado. Chama-se Le Brasseur. Ali as coisas ainda estão bem

fevereiro•2022
Clube SPA

agitadas! As pessoas discutem com entusiasmo. Simples, todos viram tudo,


ouviram tudo e sabem de tudo.
Sou discreto, ico longe da entrada, permaneço no canto do bar; lá, onde
há mais gente, fundo-me à massa e ico à escuta.
Nada mais que um bando de idiotas.

14h15
O céu de outono parece ter sido pintado especialmente para esse
cemitério. Muita gente compareceu à cerimônia. Essa é a vantagem dos
servidores em atividade, eles se deslocam aos enterros como uma
delegação, logo se forma uma multidão.
De longe, Camille avista os parentes de Armand, sua esposa, seus ilhos,
os irmãos, as irmãs. Todos bem asseados, eretos, tristes e sérios. Ele não
sabe exatamente com que aquilo se parece na realidade, mas o conjunto o
fez pensar numa família quaker.
A morte de Armand, quatro dias atrás, devastou Camille imensamente.
Ela também o libertou. Semanas e semanas indo vê-lo, segurando suas
mãos, conversando com ele, mesmo que ninguém fosse capaz de dizer se
ele ainda compreendia alguma coisa. Com isso, ele se limita apenas a fazer
um sinal com a cabeça, de bem longe, direcionado para a esposa. Após
aqueles longos dias de agonia, todas aquelas palavras ditas para a esposa,
para os seus ilhos, Camille não tem mais nada para eles, até poderia ter
deixado de vir, tudo o que podia oferecer a Armand ele já tinha oferecido.
Ele e Armand tinham várias coisas em comum. O fato de que haviam
começado a carreira juntos, o que constitui um laço de juventude ainda
mais precioso, considerando que nunca tiverem o espírito jovem de fato,
nem um, nem outro.
Depois, o fato de que Armand era um avarento patológico. Nesse
domínio, ninguém podia imaginar do que ele era capaz. Ele havia entrado
num combate mortal contra qualquer gasto e depois contra o dinheiro.
Camille não pode se conter de interpretar sua morte como uma vitória do
capitalismo. Evidentemente, não era essa avareza que os unia, mas ambos
tinham em si certa pequenez e a obrigação de recompensá-la com algo
mais forte que eles mesmos. Se for possível pôr nesses termos, havia uma
espécie de solidariedade entre de icientes.
E, então, os seus dias agônicos con irmaram isso; Camille era o melhor
amigo de Armand.

fevereiro•2022
Clube SPA

O signi icado que temos para os outros é capaz de criar laços


extremamente poderosos.
Dos quatro membros históricos de sua equipe, Camille é o único que
está vivo e presente nesse cemitério, algo di ícil de admitir.
Louis Mariani, seu adjunto, ainda não chegou. Não há com que se
preocupar, homem de grande senso de responsabilidade, ele sempre
chegará a tempo: na sua classe social, faltar a um enterro é como arrotar à
mesa, inimaginável.
Já Armand está desculpado por causa de um câncer no esôfago, nada a
dizer quanto a isso.
Falta Maleval, que Camille não vê há anos. Ele era um jovem policial
brilhante antes de ser afastado da polícia. Ele e Louis eram bons amigos;
apesar da diferença de classe, eram mais ou menos da mesma idade e
bastante complementares. Até que veio o terremoto: foi Maleval quem
informou o assassino de Irene, a esposa de Camille. Ele não fez de
propósito, mas, de todo modo, acabou fazendo. Na ocasião, Camille poderia
matá-lo com as próprias mãos; eles icaram a um dedo de uma grande
tragédia, quase uma Casa de Atreu versão Brigada Criminal. Mas, após a
morte de Irene, a coragem de Camille ruiu, a depressão o fulminou e,
então, nada mais fez nenhum sentido.
Armand lhe faz mais falta do que qualquer outro. Com sua morte, a
brigada Verhoeven saiu de cena. Esse enterro abre o terceiro capítulo de
uma história em que Camille tenta reconstruir sua vida. Nada poderia
estar mais fragilizado.
A família de Armand começa a entrar no crematório quando Louis
chega. Terno Hugo Boss creme, bem elegante. Oi, Louis. Louis não
responde oi, patrão; Camille o proíbe, diz que eles não estão numa série de
tevê.
A pergunta que Camille se faz às vezes sobre si mesmo é ainda mais
justi icada pelo seu adjunto: o que esse cara está fazendo na polícia?
Nasceu riquíssimo e, de cortesia, é dotado de uma inteligência que lhe
abriu as portas das melhores escolas que qualquer diletante poderia
frequentar. E, inexplicavelmente, entrou para a polícia com um salário de
professor. No fundo, Louis é um romântico:
– Tudo certo?
Camille faz um sinal de que sim, tudo certo, mas, na verdade, ele não
está presente ali. A sua maior parcela icou no quarto de hospital onde
Anne, parcialmente anestesiada pelos analgésicos, espera passar pelas
radiogra ias, pela tomogra ia computadorizada.

fevereiro•2022
Clube SPA

Louis olha para o seu chefe um segundo a mais, balança a cabeça, faz
algo como hum. É um rapaz extremamente aguçado e hum para ele é como
o afastamento da mecha, com a mão direita, com a mão esquerda; signi ica
toda uma linguagem à parte. E aquele hum diz claramente: o senhor não
está com cara de enterro, portanto, aconteceu alguma outra coisa.
E, para que nesse momento isso tenha dimensão maior que a morte de
Armand, deve ser algo grave...
– Vão nos encarregar de cuidar de um assalto que aconteceu esta manhã,
no oitavo distrito...
Louis se pergunta se essa é a resposta para a sua pergunta.
– Houve confronto?
Camille balança a cabeça, sim, não.
– Uma mulher...
– Morta?
Sim, não, na verdade, não. Camille olha para a frente como se estivesse
em meio a um nevoeiro, franzindo as sobrancelhas.
– Não... Bem, ainda não...
Louis se demonstra surpreso. Não é o tipo de caso para o qual sua
unidade costuma ser convocada, assalto não é a especialidade do
comandante Verhoeven. Pensando bem, por que não? Mas ele trabalhou
com Camille tempo su iciente para sentir quando as coisas não vão bem.
Ele expressa sua surpresa com um relance para os sapatos (modelos
Crockett & Jones perfeitamente engraxados), acompanhado de um
pigarrear seco, quase inaudível. Quando se trata de Louis, isso signi ica
mais ou menos a expressão máxima de sua comoção.
Camille aponta com o queixo a entrada do crematório.
– Assim que terminarmos aqui, gostaria que você se informasse um
pouco a respeito. Discretamente... Ainda não fomos convocados, sabe... –
Camille en im desvia o olhar para o adjunto. – É questão de ganhar tempo,
entendeu?
Em meio à multidão, ele já procura Le Guen com os olhos e o encontra
sem di iculdade. Impossível perdê-lo, ele é um mastodonte.
– Bom, temos que ir.
Quando Le Guen ainda era seu comissário, Camille só precisava levantar
o dedinho para obter o que queria, agora é mais di ícil.
Ao lado do auditor-geral Le Guen, a comissária Michard caminha
rebolando, como se fosse um ganso.

fevereiro•2022
Clube SPA

14h20
O Café Le Brasseur está passando por um dos grandes momentos de sua
existência. Mas um assalto como esse! Não haverá outro igual em menos de
um século! A opinião é unânime. Mesmo os que não viram nada estão de
acordo. Os testemunhos voam rápido. Alguém viu uma garota, depois
dizem que eram duas, ou uma mulher, armada, desarmada, de mãos vazias,
e ela gritava. Não era a proprietária da joalheria? Não, era a ilha dela! Ah,
é? Não sabia que ela tinha uma ilha, tem certeza? Eles estavam de carro?
Qual o modelo? As opiniões abrangem mais ou menos toda a gama de
carros estrangeiros vendidos na França.
Vou bebericando meu café tranquilamente, é o meu primeiro momento
de repouso num dia bem longo.
O proprietário, com uma cara que dá vontade de estapear, calcula que o
montante do roubo chega a cinco milhões de euros. Não menos que isso.
Ninguém sabe onde o homem foi achar esse número, mas ele é categórico.
Dá vontade de dar na mão dele uma Mossberg carregada e empurrá-lo pela
porta da primeira joalheria do bairro. Quando ele tiver terminado de fazer
a rapa no lugar inteiro e voltado para o seu café, vamos deixá-lo calcular o
faturamento. Se conseguir um terço do que espera, que esse palerma se
aposente, pois nunca vai conseguir mais que isso.
E o carro em que eles atiraram! Qual? Aquele! Até parece que se chocou
contra um búfalo em alta velocidade! Atiraram nele com uma bazuca ou o
quê? E então começam os comentários balísticos, assim como izeram com
os carros: todos os calibres possíveis são mencionados, dá vontade de
atirar para cima a im de obter algum silêncio. Ou dar um tiro no meio do
bando para obter um pouco de paz.
Cheio de si, o proprietário anuncia peremptório:
– Um ri le ponto 22 de cano longo.
Ele fecha os olhos ao im da frase, con iante no seu conhecimento.
Eu me divirto imaginando como seria se ele fosse decapitado por um
tiro de calibre 12, como um turco; faz bem para o meu humor. Ri le ponto
22 ou qualquer outra coisa, a clientela concorda com ele, ninguém entende
nada do assunto. Diante de testemunhas como essas, os tiras vão ter
diversão garantida.

14h45

fevereiro•2022
Clube SPA

– Mas por que o senhor quer fazer isso? – pergunta a comissária


divisional, voltando-se para ele.
Ela realiza uma longa rotação ao redor do seu eixo principal: um traseiro
gigantesco, colossal. Fora de qualquer proporção. A comissária Michard
tem, digamos, entre quarenta e cinquenta anos, um rosto que prometeu
muito e nunca cumpriu, cabelos bem escuros, mas naturalmente brancos,
dentes da frente grandes de coelho e, acima deles, óculos retangulares que
proclamam ser ela uma mulher de autoridade, de pulso irme. Uma
personalidade descrita normalmente como “enérgica” (insuportável, na
verdade), de uma inteligência a iada (o que aumenta dez vezes seu poder
de destruição), mas, em primeiro lugar, o que é mais espetacular é esse
traseiro descomunal. De um volume alucinante. É de perguntar como ele se
mantém ali, sem cair. Curiosamente, a comissária Michard (com um nome
desses, é fácil imaginar as piadas que, conforme as pessoas passam a
conhecê-la melhor, vão descendo do obsceno ao sórdido2) tem um rosto
plácido que contradiz tudo o que se sabe dela: a indiscutível competência,
o faro apurado de estrategista, conhecimentos notáveis de armas de fogo, o
tipo de chefe que trabalha dez vezes mais que os outros e sente orgulho de
sua liderança. Quando participou de sua tomada de posse, Camille
compreendeu que, se com Doudouche (sua gata, temperamental,
extremamente histérica; ele a adora) ele já tinha uma criatura azucrinante
em casa, agora também tinha uma no trabalho.
Daí a pergunta “por que o senhor quer fazer isso?”.
Diante de algumas pessoas, é di ícil permanecer calmo. A comissária
Michard se aproxima de Camille, chega bem perto. Ela sempre fala com ele
assim. Seu ísico de poltrona diante da pequenez de Verhoeven faz com que
eles se pareçam personagens de um seriado americano, mas essa mulher
não tem senso do ridículo.
Um de frente para o outro, ambos atrapalham a passagem que conduz ao
crematório; eles estão entre os últimos a entrar. Camille manipulou as
coisas para se encontrar ali naquele instante preciso. Pois, no momento em
que está fazendo o seu pedido, bem ao lado deles vai passando o auditor-
geral Le Guen, amigo íntimo de Camille, predecessor da comissária (a velha
dança das cadeiras, um ascende à subdireção, o outro se torna comissário).
Ora, todos sabem que Camille e Le Guen são mais que amigos, Camille é
nada menos que padrinho de todos os casamentos dele, um cargo de peso,
considerando que Le Guen acabou de estabelecer laços de matrimônio pela
sexta vez, voltando a se casar com sua segunda esposa.

fevereiro•2022
Clube SPA

A comissária Michard, que acabou de ser nomeada, ainda precisa “ icar


com um olho no peixe e outro no gato” (ela adora esses clichês, não perde a
oportunidade de reciclá-los), precisa avaliar as cartas dadas antes de
começar a se impor. E, se o amigo do seu superior lhe pede algo, isso
necessariamente exige que ela pare e re lita. Mas agora eles já são os
últimos a entrar. Seria preciso um tempo para amadurecer o pedido, e
Michard tem a reputação de ser alguém de espírito vivo, que toma rápidas
decisões. O mestre de cerimônia olha para eles na entrada do salão, vai
começar a cerimônia; ele veste um paletó abotoado, tem cabelos loiros
descoloridos, lembrando um jogador de futebol. Os agentes funerários não
são mais como antigamente.
A pergunta – por que Verhoeven quer cuidar de um caso como esse? – é
a única para a qual Camille havia preparado uma resposta, pois é a única a
se fazer de fato.
O assalto ocorreu por volta das dez horas, não são nem quinze horas. No
local, na galeria Monier, os peritos estão concluindo suas análises, os
colegas terminam os interrogatórios das primeiras testemunhas, mas o
caso ainda não foi atribuído a uma equipe.
– Porque eu tenho um informante. Muito bem in iltrado...
– O senhor estava sabendo do assalto?
Ela esbugalha os olhos de maneira bem teatral. Camille se lembra de
imediato dos olhares furiosos dos samurais na iconogra ia japonesa. Ela
quer dizer: o senhor está falando mais ou menos do que deveria – o tipo de
expressão corriqueira que ela adora.
– Mas é claro que não, eu não estava sabendo de nada! – exclama
Camille. Ele é bastante convincente no seu roteiro e soa mesmo como se
estivesse ofendido. – Eu não – prossegue ele –, já quanto ao meu
informante não tenho tanta certeza... Ele está prestes a pôr tudo pra fora.
Está no ponto. – Verhoeven está seguro de que esse é o tipo de imagem que
desperta a afeição de Michard. – Está querendo muito cooperar nesse
momento... Seria uma pena não tirar proveito disso.
Basta um olhar para que a conversa passe de técnica para puramente
estratégica. Um olhar de Camille para o fundo do cemitério para que a
igura tutelar do auditor-geral venha pairar com sua sombra sobre o
diálogo. Silêncio. A comissária sorri, sinal de que ela entendeu: está bem.
Por pura formalidade, Camille acrescenta:
– Não se trata apenas de um assalto, houve uma tentativa de homicídio
quali icado e...

fevereiro•2022
Clube SPA

A comissária olha para ele com estranhamento e balança a cabeça,


devagar, como se, além daquela encenação totalmente desajeitada do
comandante, ela conseguisse discernir nele um pequeno raio de luz,
inde inível; como se ela buscasse compreender algo. Ou como se já
compreendesse. Ou como se estivesse prestes a compreender. Camille sabe
o quanto essa mulher é sensitiva; quando há algo errado, seu sismógrafo
dispara histericamente.
Ele segue adiante, com seu tom mais convincente, falando com rapidez:
– Deixe-me explicar. Esse meu informante era conectado a um outro cara
que fez parte de uma quadrilha, foi no ano passado, isso não tem muito a
ver com o caso, mas tínhamos...
A comissária Michard interrompe a fala de Camille com um gesto,
expondo uma feição que expressa que ela já tem problemas o su iciente.
Que ela já entendeu. Que, de qualquer modo, ela é muito recente nesse
cargo para se meter entre seu chefe e seu subordinado.
– Está bem, comandante. Vou falar com o juiz Pereira3.
Camille não demonstra, mas era exatamente isso o que ele esperava.
Pois se ela não o tivesse interrompido tão rapidamente, ele não tinha a
menor ideia de como iria terminar sua frase.

15h15
Louis deixou o cemitério com rapidez. Camille, prisioneiro de sua
função, teve de esperar quase até o im. A cerimônia foi longa, muito longa,
durou o tempo necessário para cada um demonstrar o que sabia fazer em
matéria de discurso. Camille retirou-se discretamente assim que possível.
Enquanto se aproxima do carro, ele escuta uma mensagem que acaba de
chegar. É de Louis. Ele fez algumas ligações, já sabe o essencial:
– Encontramos apenas uma ocorrência de assalto com Mossberg 500. No
dia dezessete de janeiro deste ano. A semelhança deixa pouca dúvida. E o
caso foi bem sério... O senhor pode me ligar de volta?
Camille liga.
– Em janeiro – explica Louis –, foi muito mais violento. O assalto ocorreu
em quatro locais seguidos! Deixou um morto. O chefe da quadrilha é
conhecido. Vincent Hafner. Não tínhamos mais notícias dele desde o caso
de janeiro. Com esse novo crime, seu retorno parece querer chamar
bastante a atenção...

fevereiro•2022
Clube SPA

15h20
De repente, uma agitação no Brasseur.
As conversas são interrompidas por sirenes, todos se precipitam em
direção ao terraço, inclinam-se na direção da rua, as cores do giro lex
parecem mais intensas. O patrão é categórico: é o Ministro do Interior. Eles
tentam lembrar o seu nome, mas é em vão; se fosse um apresentador de
tevê, teria sido mais fácil. Os comentários começam novamente. Alguns
pensam que essa agitação se deve a uma nova ocorrência, foi descoberto
um cadáver ou algo assim, o proprietário fecha os olhos mais uma vez,
altivo. As contradições da clientela são como uma homenagem à sua
erudição.
– Tenho certeza de que é o Ministro do Interior.
Ele enxuga os copos serenamente com um breve sorriso, sem olhar na
direção do terraço, para realçar a que ponto ele está certo do seu
prognóstico.
Eles aguardam com fervor, retêm a respiração, como se estivessem à
espera da passagem de uma etapa do Tour de France.

15h30
A impressão é de que sua cabeça está recheada de algodão e cercada de
veias grossas como braços que pulsam, martelam.
Anne abre os olhos. O quarto. O hospital.
Tenta mover as pernas, paralisada, como uma idosa dominada pelo
reumatismo. É doloroso, mas ela consegue levantar o joelho, em seguida o
outro, as pernas dobradas lhe concedem um instante de alívio. Ela move a
cabeça lentamente para veri icar como se sente; a cabeça pesa uma
tonelada. Os dedos, cobertos de curativos, parecem pinças de caranguejo,
além de estarem repletos de sujeira. As imagens que passam pela cabeça
são um pouco nebulosas, a porta dos sanitários na galeria comercial, uma
poça de sangue, os disparos, a sirene da ambulância, latejante, o rosto do
radiologista e, em algum lugar, atrás dela, a voz da enfermeira dizendo:
“Mas o que izeram com ela?”. Ela sente um forte abalo emocional, contém
as lágrimas; respirar fundo, controlar-se, não se entregar, não desistir.
E, para tanto, levantar-se, manter-se viva.

fevereiro•2022
Clube SPA

Com um gesto, ela afasta o lençol, coloca uma perna para fora da cama,
em seguida a outra. Sente vertigem, permanece um instante equilibrada na
beirada, apoia-se sobre os pés, ergue o tronco, é obrigada a sentar-se de
novo; agora ela sente as dores de verdade, espalhadas pelo corpo inteiro e
também concentradas: nas costas, nos ombros, na clavícula. É como se
tivesse sido pisoteada. Tenta respirar, ergue-se de novo, en im se põe de pé,
se for possível assim dizer, pois é obrigada a se apoiar na mesinha de
cabeceira.
À sua frente se encontra o banheiro. Como se escalasse, ela passa de um
apoio para o outro, do travesseiro para a mesa de cabeceira, em seguida,
para a maçaneta da porta, para a pia, e agora ela está diante do espelho.
Meu Deus, essa é mesmo ela?
Os soluços lhe sobem pela garganta, ela não pode fazer nada desta vez.
Os malares roxos, os hematomas, os dentes quebrados... E o ferimento
através da bochecha esquerda, o osso malar se rompeu, a longa ileira de
pontos...
O que izeram com ela?
Anne se segura na pia para não cair.
– Mas o que a senhora está fazendo de pé?
Anne se vira, é acometida por um atordoamento, a enfermeira tem
tempo apenas para segurá-la; agora ela se encontra deitada no chão, a
enfermeira se levanta, põe a cabeça furtivamente no corredor.
– Florence, você pode me ajudar?

15h40
Camille anda a passos largos e nervosos, Louis no seu encalço. Apenas
alguns centímetros atrás do seu chefe, a distância precisa que ele mantém
de Verhoeven é o resultado de uma dosagem ponderada entre o respeito e
a familiaridade; somente ele sabe realizar combinações assim tão sutis.
Por mais que Camille esteja apressado e inquieto, automaticamente
levanta os olhos para os prédios erguidos ao longo da rua Flandrin.
Arquitetura haussmaniana, escurecida pela poluição; há tantos prédios
assim nesse bairro, ninguém mais sequer repara neles. Seus olhos avistam
de passagem o alinhamento das sacadas sustentadas em suas
extremidades por duas colunas atlantes monumentais, as tangas dos titãs
são preenchidas por uma protuberância excepcional e, sob cada sacada,
encontram-se Cariátides de seios escandalosamente generosos, que olham

fevereiro•2022
Clube SPA

para o céu. São os seios que olham para o céu; as Cariátides, por sua vez,
têm o olhar lisonjeiro e falsamente pudico das mulheres seguras de si.
Camille segue seu percurso rapidamente, mas balança a cabeça,
contemplativo.
– René Parrain, na minha opinião – diz ele.
Silêncio. Camille fecha os olhos na espera da réplica. – Está mais para
Chassavieux, não?
É sempre assim. Louis tem vinte anos a menos que ele e sabe vinte mil
vezes mais coisas. O que mais incomoda é que ele nunca se engana. Ou
quase nunca. Camille já tentou pegá-lo com uma pergunta di ícil, tentou,
tentou, não há nada a fazer, esse sujeito é mesmo uma enciclopédia.
– É – disse ele. – Pode ser.
Ao se aproximar da galeria Monier, Camille topa com o veículo que foi
atingido pela calibre 12 sendo colocado na plataforma de um caminhão de
reboque.
Ele vai descobrir mais tarde que Anne estava do outro lado desse carro
quando a arma foi apontada para o seu rosto.

É o baixote que está no comando. A polícia dos nossos dias é como a


política, o nível do cargo ocupado é inversamente proporcional à altura.
Todos conhecem esse tira aí; também, com um ísico desse... Basta tê-lo
visto uma vez e a gente nunca mais esquece. Já quanto ao seu nome, aqui
no café, os palpites variam bastante. As pessoas lembram que é
estrangeiro, mas de que tipo? Alemão, dinamarquês, lamengo? Alguém diz
russo, outro diz: “Ah, sim! Verhoeven, é isso!” Eles soltam uma gargalhada,
é estrangeiro mesmo, todos estavam certos, todos icam satisfeitos.
Ele aparece na entrada da galeria. Não mostra sua identi icação policial;
abaixo de um metro e cinquenta, você está dispensado dessas
formalidades. Atrás da vitrine do terraço, as pessoas prendem a respiração,
mas logo uma distração substitui a outra, que belo dia: acabou de entrar no
bar uma garota bem morena. O proprietário a cumprimenta ruidosamente,
as pessoas se viram para ela. É a cabeleireira do salão ao lado. Ela pede
alguns cafés, quatro, a máquina do salão está quebrada.
Ela sabe de tudo, sorri modestamente aguardando que a sirvam. Que lhe
façam perguntas. Ela diz que não tem tempo, mas ica corada, o que já diz
tudo.
Eles vão icar por dentro de tudo.

fevereiro•2022
Clube SPA

15h50
Louis aperta a mão dos colegas. Camille quer ver o vídeo.
Imediatamente. Louis ica espantado. Ele sabe do pouco apreço de Camille
por costumes e protocolos, mas uma tamanha falta de trato surpreende
bastante vindo da parte de um homem no seu cargo e com sua experiência.
Louis afasta a mecha com a mão esquerda, mas ele segue seu chefe em
direção aos fundos da livraria, requisitada como quartel provisório.
Camille aperta distraidamente a mão da proprietária, uma verdadeira
árvore de Natal; ela fuma um cigarro com uma piteira de mar im, o tipo de
coisa que não se vê há um século. Camille não para no caminho. Os colegas
recuperaram as tomadas das duas câmeras.
Assim que ele se coloca diante da tela do notebook, volta-se para o
adjunto.
– Pode deixar – diz ele –, eu assisto a isso. Você pode ir agrupando as
informações que já temos.
Ele aponta para a sala ao lado, o que dá no mesmo de ter apontado para
a porta. Sem esperar, senta-se diante da tela e olha para todo mundo. É
como se quisesse icar sozinho para assistir a um ilme pornô.
Louis adota o comportamento de quem acha aquilo tudo perfeitamente
lógico. Seu ligeiro lado mordomo.
– Vamos – diz ele empurrando os outros –, vamos nos acomodar ali.
A ilmagem que interessa Camille é a da câmera situada sobre a entrada
da joalheria.
Vinte minutos mais tarde, enquanto Louis assiste a ela, compara as
imagens com os primeiros depoimentos e monta as primeiras hipóteses,
Camille vai até a alameda central e se posiciona mais ou menos no mesmo
local onde o atirador se encontrava.
As coletas de evidências terminaram, os peritos se foram, os estilhaços
de vidro foram recolhidos, o perímetro do assalto é isolado com ita
adesiva, eles estão aguardando os inspetores de estruturas e as
seguradoras, após isso, vão levantar acampamento, contratar empresas
para cuidar dos estragos e em dois meses tudo estará de volta ao lugar, um
assaltante lunático poderá voltar a assaltar os clientes no horário de
abertura.
O local está sendo vigiado por um guarda municipal, um alto magro de
olhar cansado, maxilas inferiores proeminentes, bolsas sob os olhos.
Camille logo o reconhece, já cruzou com ele cem vezes em cenas de crime,

fevereiro•2022
Clube SPA

é como um ator de um papel periférico cujo nome nunca ninguém soube.


Eles trocam um gesto de mão.
Camille olha para a loja devastada, as vitrines estilhaçadas. Não entende
nada daquele assunto; em matéria de joias, tem a impressão de que não é o
tipo de coisa que ele escolheria se desejasse fazer um assalto. Mas ele sabe
também que as aparências enganam. Você olha para uma agência bancária
e não dá nada para ela, mas, se consegue fazer a limpa em tudo o que tem
lá dentro, vai ter quase o su iciente para comprar outra igual.
Camille se esforça para conservar a calma, mas mantém as mãos nos
bolsos do sobretudo, pois, desde que assistiu ao vídeo – ele viu e reviu o
vídeo o máximo de vezes que o tempo permitiu, e aquelas imagens o
deixaram abalado, aniquilado –, suas mãos não pararam de tremer.
Ele balança a cabeça, como se houvesse água nos ouvidos, como se
quisesse esvaziá-la do excedente de emoções; precisa adquirir
distanciamento, mas como? Aquelas auréolas ali, pelo chão, são o sangue
de Anne, ela estava aqui, encolhida no chão, o cara deveria estar ali,
Camille se afasta alguns passos, o policial alto o encara, à beira da
inquietação. De repente, Camille se vira, segura junto à cintura uma
espingarda imaginária, o policial leva a mão até o rádio, Camille dá três
passos, olha primeiro para o posicionamento do atirador, em seguida para
a saída da galeria e, de uma vez, sem aviso prévio, ele se põe a correr. Desta
vez, nenhuma dúvida, o policial apanha o rádio, mas Camille para
bruscamente, o policial suspende seu gesto. Camille, inquieto, com um
dedo nos lábios, volta pelo mesmo caminho, ergue os olhos, cruza com os
olhos do policial, eles trocam sorrisos amarelos, como se quisessem deixar
bem claro que não falam a mesma língua.
O que teria acontecido de verdade?
Camille olha para a direita, para a esquerda, para cima em direção à
claraboia destruída pelos tiros de espingarda. Ele avança, agora se
encontra na saída da galeria, na rua Georges-Flandrin. Não sabe o que está
procurando, um sinal, um detalhe, uma luz, sua memória quase fotográ ica
dos lugares e das pessoas redispõe as reminiscências em uma ordem
diferente.
Inexplicavelmente, nesse momento, ele tem a sensação de estar no
caminho errado. Sente que não há nada a procurar por ali.
Que não está encarando esse caso pelo ângulo correto.
Então deixa a galeria e volta aos interrogatórios.
Aos colegas que colheram os primeiros depoimentos, ele diz que quer
“ter o próprio ponto de vista”; ele conversa com a livreira, com o

fevereiro•2022
Clube SPA

antiquário; sobre a calçada, interroga a cabeleireira. A joalheira, por sua


vez, foi hospitalizada. Quanto à sua aprendiz, ela passou o assalto todo com
o nariz virado para o chão, protegendo a cabeça. Ela transmite certa pena,
essa criança, retraída, insigni icante, Camille lhe diz para ir para casa,
pergunta se precisa de alguém para conduzi-la, ela diz que seu amigo a
aguarda no Le Brasseur, aponta para o café do outro lado da rua, o terraço
está abarrotado de gente, todos os rostos voltados para eles. Camille diz:
“vamos, saia daqui”.
Ele escutou os depoimentos, olhou com atenção as imagens.
Aquela insistência em querer matar Anne se deve primeiro à descarga
elétrica, à tensão terrível que reina durante um assalto e, depois, ao
encadeamento das circunstâncias. Ao desdobramento das coisas.
Ainda assim, toda essa obstinação, toda essa ferocidade...

O juiz do caso foi designado, ele chegará a qualquer momento. Enquanto


isso, Camille revisa as informações. Esse assalto se parece, nos mínimos
detalhes, com um outro, realizado em janeiro desse ano.
– É isso mesmo, não é? – pergunta Camille.
– Exatamente – con irma Louis. – A única coisa que muda é a escala. Hoje
houve um assalto, em janeiro, eles realizaram quatro. Quatro joalherias
assaltadas em menos de seis horas...
Camille deixa escapar um breve assobio admirado.
– Mesmo método que hoje. Três homens. O primeiro manda abrirem os
cofres e limpa as joias, o segundo lhe dá cobertura com uma Mossberg de
cano curto, o terceiro dirige o veículo. – E em janeiro você disse que
deixaram uma pessoa morta? Louis consulta suas anotações.
– Nesse dia, o primeiro alvo deles se situa no décimo quinto distrito, no
horário de abertura da loja. Eles fazem o serviço em dez minutos
cronometrados, é o assalto mais limpo do dia, porque por volta das dez e
meia eles param numa joalheria da rua de Rennes e, quando estão
partindo, deixam para trás um funcionário inconsciente; ele demorou para
abrir o cofre dos fundos da loja, traumatismo craniano, quatro dias em
coma. O rapaz se salva, mas com sequelas, ele luta com a empresa para
obter uma pensão por invalidez parcial.
Camille ica tenso enquanto ouve. Foi disso que Anne escapou, graças a
um milagre. Ele sente os nervos à lor da pele, é obrigado a respirar fundo,
a relaxar os músculos, como era mesmo, “esterno... claudio...”, droga.

fevereiro•2022
Clube SPA

– Por volta das catorze horas – continua Louis –, no início do turno da


tarde, a gangue desce numa terceira joalheria, na Louvre des Antiquaires.
Usam de força bruta, agora estão bem treinados. Uns dez minutos depois,
eles partem deixando na calçada o corpo de um cliente que levantou a mão
um pouco alto demais... Seu estado é menos grave que o do funcionário da
manhã, mas, ainda assim, é considerado sério.
– Eles vão subindo a montanha – diz Camille, enquanto segue sua linha
de raciocínio.
– Sim e não – responde Louis. – Os caras não perdem o juízo, eles apenas
fazem o serviço à maneira deles.
– Ainda assim, é muita coisa para um só dia...
– Sem dúvida.
Mesmo para uma quadrilha bem experiente, preparada e motivada,
quatro assaltos em seis horas é algo que exige uma e iciência fora do
comum. A partir de um momento, o cansaço acaba de um jeito ou de outro
nos dominando. O assalto é como andar de esqui, o acidente acontece
sempre ao im do dia, é o último esforço que causa mais estragos.
– Rua de Sèvres – responde Louis –, o gerente da joalheria inventa de
reagir. No momento em que a gangue está prestes a partir, ele imagina que
pode tentar retardá-la, agarra a manga do assaltante que está encarregado
de recolher o roubo, tenta derrubá-lo. Antes que o homem que estava na
cobertura apontasse a Mossberg para ele, o outro já contra-atacou,
descarregando duas balas de nove milímetros em cheio no peito do
gerente.
Ninguém nunca saberá se a jornada terminava mesmo por ali ou se eles
ainda tinham outros projetos e a morte do joalheiro os obrigou a fugir.
– Se a quantidade de joalherias assaltadas no mesmo dia é algo fora do
comum, o modus operandi é bem clássico. Os novos bandidos, os mais
jovens, gritam, gesticulam, atiram para o alto, saltam por cima dos balcões,
usam armas parecidas com as que viram em ilmes, totalmente
desproporcionais, e percebe-se logo que estão morrendo de medo. Esses
nossos assaltantes são muito decididos, bem organizados, eles não
desperdiçam movimentos ou gestos. Se não tivessem topado com um
aspirante ao heroísmo, partiriam deixando para trás apenas alguns danos
de acidente de percurso, nada mais.
– Quanto foi roubado em janeiro? – pergunta Camille.
– Seiscentos e oitenta mil euros – anuncia Louis. – Que foram declarados.
Camille arqueia uma das sobrancelhas. Não que ele se espante, os
joalheiros nunca declaram a totalidade dos seus roubos, eles todos

fevereiro•2022
Clube SPA

dispõem de valores não declarados; não, Camille apenas pergunta a


verdade:
– Certamente mais de um milhão. Na revenda, seiscentos mil. Talvez
seiscentos e cinquenta. Um belo faturamento.
– Alguma ideia sobre o percurso das joias?
Para uma pilhagem como essa, ao mesmo tempo elevada e muito
diversi icada na sua composição, há muita perda na revenda, e não muitos
receptadores competentes na praça de Paris.
– Supõe-se que a mercadoria passou por Neuilly, mas, en im...
Certamente. Essa seria a melhor opção. Rumores dizem que o
receptador é um padre que abandonara sua vocação. Camille nunca pôde
con irmar, mas ele também não ica espantado, as duas funções lhe
parecem bem semelhantes.
– Mande veri icar.
Louis registra o pedido. Na maior parte dos casos, é ele quem distribui
as tarefas.

Nesse momento, chega o juiz Pereira. Olhos azuis, um nariz demasiado


longo e orelhas de cachorro. Preocupado, atarefado, ele aperta a mão de
Camille enquanto caminha, boa tarde, comandante, e, atrás dele, sua
escrivã, uma mulher deslumbrante de trinta anos, os seios fartos, os saltos
vertiginosos ressoando sobre o chão de cimento, alguém deveria lhe dar
um toque de que são excessivos para o ambiente de trabalho. O juiz sabe
que ela provoca a maior algazarra por onde passa, mas, embora caminhe
três passos atrás dele, não há dúvida, é ela quem conduz a dança. Se ela
quisesse, poderia até perambular pela galeria fazendo bolas com sua goma
de mascar. Camille acha que essa Lolita de trinta anos está mais para puta.
Todos se agrupam, Camille, Louis, dois colegas da equipe que acabaram
de chegar ao local. Louis toma a palavra. Sintético, preciso, metódico,
informado (no passado, ele passou no concurso para entrar na École
Nationale d’Administration, mas preferiu Ciências Políticas). O juiz ouve
com atenção. Estão dizendo que ouviram um sotaque do leste europeu.
Mencionaram uma gangue de sérvios ou bósnios, homens violentos, não
deixam passar o fato de terem atirado quando podiam tê-lo evitado. E há
ainda Vincent Hafner e toda a sua relação com as armas utilizadas. O juiz
balança a cabeça. Hafner com bósnios, mistura explosiva, chega a ser
espantoso que os estragos não tenham sido maiores, esses caras são uns
animais, diz o juiz, e ele tem razão.

fevereiro•2022
Clube SPA

Em seguida, ele demonstra interesse pelas testemunhas. Geralmente, no


horário de abertura da joalheria, além da gerente e da aprendiz, há ainda
outra funcionária presente, mas ela estava atrasada nessa manhã. Tendo
chegado ao im do assalto, ela apenas ouviu o último disparo. Quando um
empregado escapa por milagre de um assalto da loja ou da agência
bancária onde ele trabalha, a polícia logo descon ia.
– Ela foi levada para a Brigada para interrogatório – diz um dos policiais.
Ele não demonstra muita expectativa. – Vamos investigar, mas parece que
ela está com a barra limpa.
A escrivã, por sua vez, está terrivelmente entediada. Rebola em cima dos
saltos, apoiando-se ora num pé, ora em outro, enquanto olha
ostensivamente para a saída. Está usando um esmalte vermelho bem
escuro; os seios estão comprimidos numa camisa cujos primeiros dois
botões estão abertos, como se tivessem estourado, exibindo o vão pálido
de um decote profundamente cavado. Os olhos dos policiais espiam
febrilmente o terceiro botão, ao redor do qual o tecido da camisa se estica
como se fosse se abrir, expondo um sorriso predador. Camille a observa,
tenta desenhá-la mentalmente, ela causa impacto, mas apenas quando
vista no geral. Quando se observam os detalhes, a história é outra: pés
grandes, nariz curto, traços um tanto grosseiros, nádegas redondas, mas
excessivamente arrebitadas. Um traseiro ideal para um alpinista. Ela ainda
usa um perfume que recende a... sal marinho. Ele tem a impressão de estar
conversando ao lado de uma cesta de ostras.
– Bem... – sussurra o juiz, puxando Camille para o lado –, o senhor tem
um informante, foi o que me disse a senhora comissária...
Ele diz “senhora” com um tom obsequioso, como se estivesse treinando
para dizer um dia “o senhor ministro”. A escrivã detesta as conversas à
parte. Ela solta um longo suspiro ostensivo.
– Isso – con irma Camille. – Terei mais detalhes amanhã.
– Portanto não deve demorar muito para encerrarmos o caso.
– Não deve...
O juiz ica satisfeito. Ele não é comissário, mas mesmo assim gosta de
estatísticas favoráveis. Decide ir embora. Um olhar severo para a escrivã:
– Senhorita?
Tom autoritário. Cortante.
Pela cara de Lolita, ele vai pagar caro por isso.

16h

fevereiro•2022
Clube SPA

Nada mal o depoimento da pequena cabeleireira. Ela repete o que disse


aos tiras, baixando as pálpebras como uma noiva recém-casada. Seu relato
é o mais preciso de tudo o que eles ouviram. Bem preciso mesmo. Diante
de pessoas assim, você não se arrepende de ter usado um capuz.
Considerando a agitação que reina do lado de fora, escolho me manter o
mais longe possível do terraço; sento-me junto ao bar e peço outro café.
A mulher não está morta, foi o carro estacionado que levou o tiro. Ela foi
levada pelo Samu.
Agora, para o hospital. Setor de emergências. Antes que ela saia e que a
trans iram de lá.
Mas, primeiro, recarregar. Sete cartuchos na Mossberg.
Os fogos de arti ício estão só começando.
Vamos recolorir o cenário.

18h
Apesar do seu nervosismo, Camille não pode tamborilar os dedos no
volante. No seu carro, todos os comandos são centralizados; ele não tem
outra alternativa, a não ser os pés que balançam a vários centímetros do
chão e os braços curtos demais. E, no seu carro, equipado para de icientes,
é preciso tomar cuidado com onde se põem os dedos; um gesto
intempestivo, e você vai parar fora da pista. Para piorar, entre os defeitos
de Camille, está o de não ser muito hábil com as mãos. Exceto para
desenhar, ele é bem desajeitado.
Ele estaciona, atravessa o estacionamento do hospital repetindo suas
frases destinadas ao médico, o tipo de frase lapidada que você passa uns
quinze minutos polindo e acaba esquecendo quando a ocasião se
apresenta. Pela manhã, a recepção estava abarrotada, ele subiu direto para
o quarto de Anne. Desta vez, ele para no caminho, o balcão ica na altura
dos seus olhos (um metro e cinco, segundo Camille, que, sobre esse
assunto, raramente se engana em mais de um centímetro ou dois). Ele dá a
volta e empurra com autoridade a pequena portinhola ao lado, sobre a
qual se encontra a plaqueta “Proibido entrar”.
– Ei! – grita a mulher. – O senhor não sabe ler?
Camille mostra a carteira da polícia.
– A senhora sabe?
A mulher começa a rir, o polegar para cima.
– Essa é boa!

fevereiro•2022
Clube SPA

Ela realmente acha graça. É negra, magra, de olhos bem vivos, peito
achatado, ombros ossudos, por volta dos quarenta anos. Antilhana. Seu
crachá indica “Ophélia”. Ela usa uma camisa com babados de uma feiura
espantosa, óculos brancos enormes, hollywoodianos, em forma de
borboleta, e exala um odor forte de tabaco. Estende a palma da mão aberta
em direção a Camille, pedindo-lhe que aguarde. Ela atende uma ligação,
encerra a conversa, desliga o telefone, volta-se para ele em seguida e o
observa admirada.
– Como o senhor é baixinho! Digo, para um policial... Não há altura
mínima para entrar na polícia?
Camille não está com ânimo para aquilo, mas a mulher o faz sorrir.
– Consegui uma autorização especial – diz Camille.
– Você tinha era alguém lá dentro, isso sim!
Em cinco minutos, o gracejo vai abrir espaço para uma conversa
amigável. Policial ou não, eles vão acabar trocando tapinhas no ombro.
Camille corta logo aquilo e pede para falar com o médico que está
cuidando de Anne Forestier.
– Nesse horário, o senhor tem que procurar o médico-residente
responsável pelo andar.
Camille faz um gesto de que entendeu e se dirige ao elevador. Mas volta
atrás.
– Ela recebeu alguma ligação?
– Não que eu saiba...
– Tem certeza?
– Con ie em mim. Nesse setor, os pacientes raramente se encontram em
condições de atender ligações.
Camille se vai.
– Ei, ei, ei!
De longe, ela balança uma folha de papel amarelo, como se abanasse
alguém mais alto que ela. Camille volta. Ela lança sobre ele um olhar
fumegante.
– Um bilhetinho de amor para você... – murmura ela.
É um formulário administrativo. Camille o en ia no bolso e sobe para o
andar de cima, pergunta pelo médico, terá que aguardar.

No setor de emergências, o estacionamento está bem cheio. Ideal para se


camu lar: um carro de locadora aqui, contanto que não ique por muito

fevereiro•2022
Clube SPA

tempo parado no mesmo lugar, passa despercebido. Basta permanecer


vigilante, discreto. Ligado no movimento.
E manter sua Mossberg carregada no banco da frente, debaixo de um
jornal. Caso necessário.
E, agora, pensar, planejar o que há por vir.
Esperar que a mulher saia do hospital é uma primeira opção. É até
mesmo a mais simples. Atirar numa ambulância vai contra a Convenção de
Genebra, a menos que você esteja pouco se lixando. As câmeras de
vigilância cobrindo o hall de entrada não servem para nada, estão ali para
dissuadir eventuais aventureiros, mas nada impede de derrubá-las com a
calibre 12 antes de começar o serviço. Moralmente, nada inaceitável.
Tecnicamente, nada impossível.
Não, o lado espinhoso desse método se encontra na logística, a saída
propriamente dita. A barreira de segurança na saída é um funil. Também
seria possível meter bala no segurança e passar por cima da barreira, a
Convenção de Genebra não prevê nada quanto aos seguranças, mas essa
não seria a opção mais prática.
Outra solução, passando barreira. Eu poderia esperar a ambulância sair,
teria uma brecha, uma vez que, ao deixarem o hospital, as ambulâncias são
obrigadas a virar para a direita e aguardar o farol verde uns quarenta
metros mais à frente. Elas chegam com pressa, querendo se livrar logo da
encomenda; em contrapartida, para deixar o hospital, andam como se
tivessem sendo dirigidas por um velhinho. Enquanto a ambulância estiver
parada no farol, um atirador determinado pode chegar com tranquilidade
por trás, abrir a porta traseira num segundo, conte mais um segundo para
mirar e outro para atirar, se você levar em conta o estado de choque em
que esse tipo de situação vai deixar o motorista da ambulância e os
eventuais espectadores, isso dá mais que o tempo necessário para voltar
para o carro e partir em disparada no sentido oposto, ao longo de quarenta
metros; em seguida, um bulevar de duas mãos e, então, a via periférica.
Moleza. Caso encerrado. Tudo de volta ao normal, posso até sentir o cheiro
da grana se aproximando.
Nos dois casos, é preciso que ela saia do hospital, que volte para casa ou
seja transferida.
Se essa brecha não se abrir, será preciso estudar a questão.
Resta também a opção de entrega em domicílio. Como um lorista. Ou
um confeiteiro. Subo no quarto, bato educadamente à porta, entro,
distribuo os doces e saio. Tudo teria que ser bem calculado. Ou, pelo
contrário, chego logo quebrando tudo. Duas estratégias diferentes, cada

fevereiro•2022
Clube SPA

uma delas tendo as devidas virtudes. A primeira, a do tiro com endereço


certo, exige mais savoir-faire e dá mais satisfação, só que esse é um método
mais narcisístico, eu estaria pensando mais em mim que no outro, falta um
pouco de generosidade. A segunda, sair atirando para todo lado, é uma
abordagem indiscutivelmente mais generosa, mais grandiosa, quase
ilantrópica.
Na verdade, na maioria das vezes, são os acontecimentos que decidem
por nós. Por isso a necessidade de calcular. De antecipar. É o que faltava
aos turcos, eles eram organizados, mas, francamente, em matéria de
antecipação, ridículos. Se você inventa de deixar seu im de mundo para
tentar a sorte na capital europeia do crime, é preciso prever as coisas! Mas
não, eles chegaram pelo aeroporto de Roissy franzindo as sobrancelhas
peludas para deixar claro que eu estava lidando com terroristas... Ora, por
favor, primos de uma putinha que ica na Porte de la Chapelle, tudo o que
izeram demais foi um assalto a uma mercearia nos subúrbios de Ancara e
a um posto de gasolina em Keskin, o que você faz com isso? Para o papel
que eles iam ter na história toda, nem era preciso recrutar gente de alto
escalão, mas, mesmo assim, ter que trazer uns babacas desses, mesmo
sendo a opção mais prática, é quase humilhante.
Vamos deixar isso pra lá. Pelo menos eles viram Paris antes de morrer.
Deveriam agradecer.
A paciência sempre é recompensada. Aí vem nosso querido tira
atravessando o estacionamento com seu passinho apressado e entrando no
setor de emergências. Estou três longos passos à frente dele e espero me
manter assim até o inal. Daqui, posso vê-lo plantado diante do balcão da
recepção, a mulher deve estar vendo passar sobre o balcão apenas o topo
da careca, como no ilme Tubarão. Ele vai de um lado para o outro, é um
sujeito impaciente. Já está dando a volta no balcão.
Pequeno, mas autoritário.
Não tem problema, ele vai ter sua entrega em domicílio.
Saio do carro. Vou fazer o reconhecimento do local. O importante é agir
rápido, liquidar de vez com essa história.

18h15
Anne está adormecida. A bandagem em torno da cabeça tem manchas
amareladas e sujas por causa dos produtos cauterizantes. Isso dá ao seu
rosto uma cor branca leitosa, as pálpebras fechadas parecem inchadas com

fevereiro•2022
Clube SPA

gás hélio, e a boca... Camille registra os detalhes na memória, cada linha


que ele terá de traçar para desenhá-la, mas é interrompido, a porta se abre,
uma cabeça passa por ela e o chama, Camille vai para o corredor.
O médico-residente é um indiano sério, com óculos pequenos e um
sobrenome de sessenta letras no crachá.
Camille tem que mostrar a carteira policial mais uma vez, a qual o jovem
médico analisa por um longo momento, provavelmente re letindo sobre a
atitude a tomar em um caso como esse. Tiras em geral aparecem com
frequência no setor de emergência, mas Polícia Criminal é raridade.
– Preciso saber como está a senhora Forestier – explica Camille,
apontando com a cabeça a porta do quarto. – O juiz vai precisar interrogá-
la...
Essa pergunta só pode ser respondida pelo médico responsável;
segundo o residente, é ele quem decidirá o que é possível ou não.
– Hum... E qual é o estado da... Qual é o estado dela? – pergunta Camille.
O residente tem em mãos as radiogra ias e o resultado das análises, mas
não precisa deles, conhece o caso como a palma da mão: uma fratura no
nariz (“está em ordem”, salienta, não precisará de intervenção cirúrgica),
uma clavícula fraturada, duas costelas quebradas, duas entorses (punho e
pé esquerdos), dois dedos quebrados, eles também estão “em ordem”, um
número incalculável de cortes nas mãos, nos braços, nas pernas, na
barriga, uma incisão profunda na mão direita, mas nenhum nervo foi
atingido, ainda assim, um pouco de isioterapia será necessário, o longo
ferimento no rosto é um pouco mais problemático, é possível que ique
uma cicatriz, isso sem contar os hematomas, porém, as radiogra ias são
categóricas:
– É algo muito excepcional, mas os choques não provocaram danos ao
sistema neuropsicológico nem ao sistema neurovegetativo. Não há também
nenhuma fratura craniana, será preciso fazer uma cirurgia na arcada
dentária, ela vai precisar de gesso ainda por um tempo... Mas ainda não
temos certeza. Vai depender da radiogra ia que faremos amanhã.
– Ela está sentindo muita dor? – pergunta Camille. – Pergunto isso por
causa da conversa com o juiz, entende...
– Ela sente o mínimo de dor possível.Temos certa experiência nesse
domínio.
Camille consegue esboçar um sorriso, balbucia um agradecimento. O
médico-residente o encara com estranhamento, tem um olhar profundo. O
que é essa comoção desse homem? Ele parece pensar... como se não
achasse Camille muito pro issional, como se estivesse com vontade de lhe

fevereiro•2022
Clube SPA

pedir de novo a carteira. Mas ele prefere se servir do seu estoque de


compaixão, pois acrescenta:
– Vai ser preciso tempo para que tudo volte ao lugar, os hematomas vão
sumir, vão icar algumas cicatrizes aqui e ali, mas a senhora... – ele procura
o sobrenome no prontuário médico – ... Forestier não corre perigo e não
tem lesões irrecuperáveis. Eu diria que o problema principal dessa
paciente não são mais os ferimentos externos, mas o trauma. Vamos deixá-
la sob observação um dia ou dois. Após isso... pode ser que ela precise de
ajuda.
Camille agradece. Deveria ir embora, não tem mais nada a fazer ali, mas,
claro, para ele isso está fora de questão. Sente-se incapaz de partir.

Nada de útil do lado direito do prédio. Em contrapartida, do lado


esquerdo, as coisas são muito melhores. Uma saída de emergência. Sinto
certa familiaridade no lugar: a porta é quase igual à dos sanitários na
galeria Monier. A típica porta corta-fogo com uma grande barra horizontal
do lado de dentro, daquelas que se abrem por fora com tanta facilidade
com uma chapa maleável de metal que é de se perguntar se os engenheiros
não as inventaram especialmente para os arrombadores.
Tento ouvir algo, o que não serve de nada, a porta é muito espessa. Não
tem problema, agora é dar uma olhada de relance para os dois lados,
in iltrar a chapa de metal entre os dois batentes, abrir, e me encontro num
corredor. Ao im dele, outro corredor, alguns passos bem irmes e
propositalmente barulhentos para o caso de eu cruzar com alguém, e aqui
estou... no fundo do hall, logo atrás do balcão da recepção. Como não achar
que os hospitais foram concebidos para os homicidas?
Ao meu lado direito, o plano de evacuação de incêndio. O edi ício é
complexo, resultado de numerosos anexos, reconstruções,
remanejamentos, um quebra-cabeça para a segurança. Ainda mais
considerando que ninguém nunca vai olhar para esses planos a ixados à
parede, seria preciso improvisar num dia de incêndio, muitos sairiam
tristes, mas, quando você vê os funcionários assim, trabalhando com
frieza... principalmente num hospital, a impressão é que, mesmo eles
estando sobrecarregados, você está em boas mãos, enquanto a verdade é
que um bom conhecimento do plano de evacuação, diante de um sujeito
decidido e armado com uma Mossberg de cano curto, seria algo muito mais
útil.
En im, pouco importa.

fevereiro•2022
Clube SPA

Tiro meu celular, fotografo o plano de evacuação. Todos os andares se


parecem por causa dos elevadores e das colunas de água, somos
prisioneiros de uma mesma con iguração.
Hora de voltar para o carro. Pensar com cautela. Um cálculo errado dos
riscos corridos é exatamente o que pode fazê-lo fracassar a alguns
centímetros da sua meta.

18h45
No quarto de Anne, Camille não acende a luz, ele permanece sentado na
cadeira sob a penumbra (nos hospitais, as cadeiras são bem altas),
tentando colocar as ideias no lugar. Tudo está acontecendo terrivelmente
rápido.
Anne ronca. Ela sempre roncou um pouco, dependendo da posição em
que dorme. Quando se dá conta disso, ela se sente envergonhada. Hoje,
todo o seu rosto está coberto por hematomas, mas, em tempos comuns,
quando ela ica corada, parece ainda mais linda, sua pele se torna quase
ruiva, com pintinhas bem claras que só se manifestam quando ela está com
vergonha e em algumas outras circunstâncias.
Camille lhe diz com frequência:
– Você não ronca, você respira alto, é totalmente diferente.
Ela ica vermelha e enrola os cabelos na ponta dos dedos para disfarçar
o embaraço.
– No dia em que você encarar meus defeitos como defeitos – diz ela
sorrindo –, tudo terá terminado.
É habitual da parte dela icar fazendo menção à separação dos dois. Ela
fala sem distinção dos momentos em que eles estão juntos e dos em que
não estarão mais, como se a diferença entre ambos fosse mínima. Camille
se sente tranquilo com esse jeito de abordar as coisas. Instinto de viúvo, de
depressivo. Ele não sabe se ainda é depressivo, mas continua sendo viúvo.
Desde Anne, as coisas têm estado menos claras, menos evidentes. Eles
seguem juntos por um luxo temporal deconhecido, descontínuo, incerto,
que se reinicia constantemente.
– Camille, sinto muito...
Anne acabou de abrir os olhos. Ela articula cada palavra com esforço.
Apesar das consoantes labiais pesadas, das dentais sibilantes, da mão na
frente da boca, Camille compreende tudo, de imediato.
– Sinto muito pelo que, meu amor? – pergunta ele.

fevereiro•2022
Clube SPA

Ela aponta com a cabeça para seu corpo deitado, o quarto, e seu gesto
abrange Camille, o quarto do hospital, a vida de ambos, o mundo.
– Isso tudo...
Seu olhar perdido dá a ela esse semblante de sobrevivente que se vê nas
vítimas de atentado. Ele segura sua mão, os dedos tocam nas talas. Você
precisa descansar, nada vai acontecer, estou aqui. Como se isso izesse
alguma diferença. Embora ele esteja sendo bombardeado por sentimentos
pessoais, os instintos pro issionais voltam à tona. E a pergunta que o açoita
ainda é sobre a tenacidade com que o assassino da galeria Monier quis
matá-la. A ponto de tentar quatro vezes. Claro que havia a tensão do
assalto, o andamento automático das coisas, mas, ainda assim...
– Lá, na joalheria, você viu ou ouviu algo a mais? – pergunta Camille.
Ela não está certa de ter entendido bem a pergunta. Ela articula:
– Algo a mais... o quê?
Não, nada. Ele tenta sorrir, não é muito convincente, põe a mão sobre o
braço dela. Deve deixá-la dormir agora. Mas é preciso que ela fale com ele o
mais rápido possível. Que ela conte tudo, em detalhes, talvez haja algo que
lhe escapa. Saber o que é, tudo se resume a isso.
– Camille...
Ele se curva.
– Sinto muito...
– Mas... – responde ele com brandura. – Pare com essa conversa!
Enfaixada com todas essas bandagens, os inchaços que escurecem seu
rosto, sua boca distendida, sob a penumbra do quarto, a aparência de Anne
é hedionda. Camille pode ver a ação do tempo sobre seu corpo. Os
hematomas, terrivelmente inchados, passam insensivelmente do preto
para azulado, com nuances de roxo, de amarelo. Camille tem de deixá-la,
ele queira ou não. São as lágrimas de Anne o que mais lhe causam dor. Elas
escorrem como se saíssem de uma fonte. Até mesmo enquanto ela dorme.
Ele se levanta. Desta vez está decidido a partir.
Ali, de todo modo, não pode fazer nada. Fecha a porta do quarto com
precaução, como se fechasse a porta do quarto de uma criança.

18h50
A mulher da recepção normalmente está cheia de trabalho. Quando o
ritmo está um pouco mais calmo, ela dá uma saída para fumar. Isso é

fevereiro•2022
Clube SPA

normal nos hospitais, considera-se o câncer um colega de escritório. Ela


cruza os braços, fumando tristemente.
Essa é a oportunidade dos sonhos. Esgueirar-se ao longo do edi ício,
abrir a porta de emergência, uma olhada de relance para veri icar se a
recepcionista não voltou para o posto, posso vê-la de costas, na frente do
edi ício.
Três passos, dar uma esticada no braço até ele e aqui está, o caderno de
entradas. É só passar a mão.
Aqui, os remédios são guardados a chave, mas as ichas pessoais dos
pacientes são mantidas ao alcance da mão. Se você é uma enfermeira, vai
pensar que o perigo vem sempre das doenças e dos remédios, é uma
questão lógica, ninguém pensa nos assaltantes de passagem.

Local do resgate: Galeria Monier – Paris, 18º distrito


Ambulância: Samu LR-453
Horário de chegada: 10h44
Nome: Anne Forestier
Quarto: 224
Data de nascimento: não informado
Endereço: Rua De la Fontaine-au-Roi, 26
Transferência: não informado
Tratamento em andamento: Radiogra ias. Tomogra ias
Responsável: Aguardando a chegada
Médico encarregado: Gd-11.5

De volta ao estacionamento. A recepcionista já acendeu mais um cigarro,


deu tempo de fotografar o caderno inteiro.
Quarto 224. Segundo andar.
De volta ao carro, acaricio o cano da Mossberg como um animal de
estimação sobre os joelhos. Esperava descobrir se a paciente seria
transferida para uma unidade especializada ou se ia permanecer aqui, foi
em vão.
Ainda tem muita grana envolvida nessa parada. E comigo é tudo ou
nada. Depois de todo o trabalho que tive para chegar até aqui, não vou
correr o risco de perder tudo agora por falta de concentração.
No meu celular, a foto do plano de evacuação con irma que ninguém
mais tem nenhuma ideia geral do que representa esse edi ício, uma espécie
de estrela dobrada; olhando para ele por um lado, você tem um polígono,
se virar, como nos desenhos de criança em que devemos achar o lobo, você

fevereiro•2022
Clube SPA

vê um crânio. Acho que essa imagem não cai muito bem para um
estabelecimento como esse.
O importante não está aí. Se minhas deduções estiverem corretas, devo
ser capaz de subir ao quarto 224 pela escada; uma vez no mesmo andar, o
quarto se encontra a menos de dez metros. Para sair, vou ter que optar por
um trajeto mais complexo, é preciso embaralhar as pistas, subir um andar,
atravessar o corredor, subir de novo, depois dos quartos da neurocirurgia,
três portas duplas seguidas, dá para chegar à recepção pelo elevador
oposto, a vinte passos da saída de emergência e, em seguida, um longo
trajeto do estacionamento até o carro. Após o estrago causado, as pessoas
vão precisar ter um bom faro para encontrar você...
Resta ainda a possibilidade de ela ser transferida. Nesse caso, é melhor
esperar aqui. Conheço o nome da paciente, o mais seguro agora é buscar
saber novidades.
Procuro e, em seguida, disco o número do hospital.
Aperte 1, aperte 2, que pé no saco! Com a Mossberg, as coisas são muito
mais rápidas.

19h30
Como não pôs os pés no escritório o dia inteiro, Camille chama Louis
para atualizá-lo sobre o andamento dos demais casos. Nesse momento,
eles estão com um travesti estrangulado, um turista alemão que
provavelmente se suicidou, um motorista esfaqueado por outro motorista
durante uma briga de trânsito, um morador de rua que sangrou até a
morte no porão de uma academia, o corpo de um jovem viciado recolhido
de um esgoto do décimo terceiro distrito e um crime passional, o culpado
acabou de confessar, ele tem setenta e um anos. Camille ouve, passa as
instruções, aprova medidas, mas não está realmente ali. Louis, felizmente,
continua a se ocupar do cotidiano.
Quando Louis termina, Camille não retém quase nada do que ouviu.
Se izer um resumo do geral, só uma constatação se impõe: quanta
desgraça!
Com o recuo que tomou agora, ele examina melhor a situação. Percebe
que meteu o dedo num mecanismo di ícil de manipular. Enganou a
comissária divisional alegando um informante que não tem, mentiu ao seu
superior, passou um nome falso para a delegacia com o intuito de se
encarregar de um caso ao qual está ligado pessoalmente...

fevereiro•2022
Clube SPA

Pior, está envolvido afetivamente com a principal vítima.


Que, por acaso, também é a testemunha principal de um caso de assalto
violento, por sua vez conectado a um assalto anterior que deixou um
morto...
Quando ele pensa nesse encadeamento de circunstâncias, essa série
catastró ica de decisões imbecis que não condizem com sua experiência,
ica perplexo. Ele se sente prisioneiro de si mesmo. Dos seus impulsos. Tem
sido um completo idiota, pois está agindo como se não con iasse em
ninguém, justamente ele, que sequer tem con iança em si mesmo. No
fundo, incapaz de superar as próprias limitações, ele se vê reduzido a fazer
apenas o que sabe fazer. A intuição, que às vezes é a sua característica
singular, agora tem se tornado paixão, desregramento, cegueira.
Sua atitude é ainda mais estúpida pelo fato de o caso não ser muito
complicado de entender. Uns caras chegam para um assalto e topam com
Anne, que vê o rosto deles. Eles dão uma surra nela e a arrastam até a
frente da joalheria para o caso de ela ter a má ideia de fugir. O que, aliás,
ela acabou tentando fazer. O cara que estava na cobertura atira em sua
direção; pego desprevenido, ele erra e, quando tenta uma segunda rodada,
seu comparsa intervém. É hora de deixar o local com o que conseguiram
roubar. Na rua Flandrin, ele tem uma última chance, mas os cúmplices se
intrometem mais uma vez, o que salva a vida de Anne.
A persistência desse cara é assustadora, mas ela está vinculada à tensão
do momento; ele corre atrás de Anne porque tem uma espingarda em
mãos.
Agora Inês é morta.
Os assaltantes devem estar longe. É di ícil imaginar que eles tenham
permanecido na região. Com um roubo desses, podem ir para qualquer
lugar, têm apenas o dilema de escolher para onde.
A prisão deles depende da capacidade de Anne reconhecer pelo menos
um. Depois disso, é só seguir o protocolo. Com os meios de que eles
dispõem e os casos que vão continuar a acumular todos os dias, vão ter
uma chance em trinta de encontrá-los com rapidez, uma em cem de
encontrá-los num prazo razoável e uma em mil de encontrá-los um dia por
acaso ou por milagre. De qualquer modo, o caso já vai estar frio. Ocorrem
tantos assaltos hoje em dia que, se você não prender os autores logo e eles
forem pro issionais, terão todas as chances de desaparecer sem deixar
rastro.
Então a melhor coisa a fazer, pensa Camille, é resolver essa história
antes que ela chegue a alguém superior a Le Guen. Ele ainda pode dar um

fevereiro•2022
Clube SPA

jeito nas coisas sem maiores problemas. Uma mentirinha a mais, para Le
Guen, não é nada, ele é auditor-geral, mas, se as coisas saírem de sua
alçada, não haverá mais nada a fazer. Se Camille lhe explicar tudo, ele
trocará duas ou três palavrinhas com a comissária Michard, que icará feliz
em adquirir crédito com seu chefe, crédito esse de que ela certamente virá
a precisar um dia, ela vai até considerar isso como um tipo de
investimento. É necessário que tudo seja resolvido antes que o juiz Pereira
comece a fazer perguntas.
Camille usará como argumento a tentação, a raiva, o ofuscamento
emocional, o delírio, ninguém teria muita di iculdade em enxergar nele
todas essas características.
Ele se sente aliviado com sua decisão.
Vai abandonar logo o caso.
Que algum outro se ocupe de encontrar esses ladrões, ele tem colegas
muito competentes. Que ele possa dedicar seu tempo a ajudar Anne, a
cuidar dela, é disso que ela vai ter mais necessidade.
E, também, o que ele poderia fazer melhor que os outros?
– Com licença...
Camille se aproxima da recepcionista.
– Duas coisas – diz ela. – O formulário administrativo de internação dos
pacientes, o senhor en iou no bolso. Sei que está pouco se lixando, mas
aqui a administração é severa, se o senhor entende o que quero dizer.
Camille tira o formulário do bolso. Na ausência do seu número do seguro
social, o cadastramento de Anne não foi feito. A mulher aponta com o dedo
um cartaz desbotado cujas extremidades, coladas ao vidro com ita
adesiva, começaram a se rasgar, e ela recita o slogan:
– “No hospital, a identi icação é a chave do contrato social”. Eles até nos
obrigam a fazer cursos sobre o assunto, pra você ver a importância da
coisa. Dizem que chegam a perder milhões com isso.
Camille faz um gesto de que entende, ele vai precisar ir até a casa de
Anne. Ele faz que sim com a cabeça, como essas coisas enchem o saco...
– Outra coisa... – continua a recepcionista. Ela esboça uma expressão
convidativa, um ar de mocinha charmosa, que fracassa totalmente. – Em
relação a multas – pergunta ela –, será que o senhor poderia quebrar um
galho pra mim ou isso seria pedir demais?
Maldito trabalho que ele foi escolher.
Camille, exausto, estende a mão, resignado. A mulher não demora nem
três segundos e abre sua gaveta. Há pelo menos quarenta multas de
estacionamento lá dentro. Ela sorri, como se mostrasse um troféu. Todos

fevereiro•2022
Clube SPA

os dentes são de tamanhos diferentes. – Bem – diz ela com um tom


lisonjeiro –, eu trabalho no turno da noite, mas nem todos os dias.
– Está anotado – diz Camille.
Maldito trabalho que ele foi escolher.
As multas não cabem todas no seu bolso; ele as distribui, no direito e no
esquerdo. Cada vez que as portas de vidro se abrem, o ar que entra de fora
lhe esbofeteia, embora mal o desperte.
Camille se sente exausto.

Sem previsão de transferência. Não antes de um ou dois dias, diz a


garota ao telefone. Não vou icar plantado dois dias no estacionamento. Já
estou esperando faz tempo demais.
São quase oito da noite. Horário incomum para um policial estar ali. Ele
estava prestes a sair, mas, de repente, ica pensativo, absorvido pelos
pensamentos; olha para as portas de vidro, como se elas não lhe dissessem
nada. Em alguns instantes, vai deixar o local.
Chegou a hora.
Ligo o carro, vou estacionar no outro extremo, ninguém estaciona nesse
lugar, longe demais das entradas, bem em frente ao muro, a dois passos da
saída de emergência pela qual poderei sair, se Deus quiser. E é bom que Ele
queira, porque não me sinto de bom humor...
Deslizar para fora do carro, atravessar o estacionamento, permanecendo
bem escondido atrás dos veículos estacionados, chegar com rapidez à
saída de emergência.
Eis o corredor. Ninguém.
De passagem, avisto ao longe, de costas, a silhueta do policialzinho, que
continua a ruminar seus pensamentos.
Logo ele vai ter muito sobre o que meditar; vou mandá-lo para a
estratosfera, não vai demorar nada.

19h45
Enquanto empurra a porta de vidro que dá para o estacionamento,
Camille lembra-se da ligação da delegacia e subitamente toma consciência
que o acaso acabou de designá-lo como a pessoa mais próxima de Anne.
Evidentemente, isso não é verdade, mas foi ele que decidiu avisar, ele que
está encarregado de informar os outros.

fevereiro•2022
Clube SPA

Que outros?, ele se pergunta. Por mais que vasculhe em toda a sua
memória, ele não conhece “os outros” na vida de Anne. Cruzou com alguns
dos seus colegas, consegue se lembrar sobretudo de uma mulher de uns
quarenta anos, de cabelos pouco volumosos, olhos grandes e cansados,
caminhando com passos cadenciados, como se trepidasse. “Uma colega...”,
disse Anne. Camille tenta se recordar do sobrenome. Charras, Charron...
Charroi, é esse o nome. Eles atravessavam o bulevar, ela usava um casaco
azul, elas trocaram um breve gesto de cumplicidade, um sorriso; Camille a
achou enternecedora. Anne virou a cabeça para ele. “A maior mala...”,
sussurrou ela sorrindo.
Sempre ligava para o celular de Anne. Antes de deixar o hospital, porém,
ele procura o telefone ixo do trabalho. Já são dez da noite, mas vai saber.
Uma voz de mulher atende:
– Wertig & Schwindel, bom dia. Nossos escritórios...
Camille sente uma brusca descarga de adrenalina. Na hora, pensou que
fosse a voz de Anne. Fica abalado por ter vivido a mesma circunstância
com Irene. Um mês após sua morte, ele ligou por engano para o próprio
número e deparou com a voz de Irene: “Olá, esta é a caixa postal de Camille
e Irene Verhoeven. Não estamos em casa para...”. Totalmente estarrecido,
irrompe em lágrimas.
Vai deixar uma mensagem. Ele balbucia: estou ligando a respeito de
Anne Forestier, ela está hospitalizada e não poderá... (o quê?) voltar ao
trabalho... agora, um acidente, não muito grave, bem, na verdade, sim
(como dizer?), ela ligará em breve... se conseguir. Uma mensagem
desconexa, confusa. Ele desliga.
O ódio de si mesmo lhe sobe como uma maré de ressaca.
Ele se vira, a recepcionista olha para ele com ar zombeteiro.

20h
Eis aqui o segundo andar.
À direita, a escada. Todo mundo prefere ir de elevador, nunca se vê
ninguém nas escadas. Principalmente nos hospitais, as pessoas preferem
se poupar.
A Mossberg é equipada com um cano de quarenta e cinco centímetros e
pouco. Com um cabo de pistola, ela cabe sem di iculdade dentro de um
grande bolso interior da minha jaqueta impermeável. Isso me obriga a
andar meio ereto, como um robô, com o corpo endurecido, pois é preciso

fevereiro•2022
Clube SPA

manter a arma apertada contra o topo da coxa, mas é impossível proceder


de outra forma, tenho que estar pronto para atirar ou evacuar. Ou os dois.
Seja o que for, o mais importante é ser certeiro. E decidido.
O policialzinho desceu, ela está sozinha no quarto. Se ele não tiver
partido ainda, lá de baixo vai ouvir o estrondo, é bom que ele suba de volta
correndo, caso contrário, estará cometendo uma falha na conduta
pro issional. Eu não apostaria muito no seu futuro na polícia.
Cheguei ao primeiro andar. Corredor. Atravessar o edi ício, aqui está a
escada oposta. Subir ao segundo andar.
A vantagem do serviço público: as pessoas têm tanto trabalho que
ninguém presta atenção em você. Pelo corredor, famílias angustiadas,
namorados impacientes entram e saem dos quartos nas pontas dos pés,
como numa capela; a instituição intimida, cruzo com enfermeiras
atarefadas a quem ninguém ousa dirigir a palavra.
O corredor está livre. Um verdadeiro bulevar.
O quarto 224 está no im do corredor, idealmente situado para repouso
máximo. Aliás, quanto ao repouso, eu vou até dar uma mãozinha.
Alguns passos para o quarto.
Tenho que abrir a porta com precaução, uma espingarda de cano curto
que desaba brutalmente pelo chão de um corredor de hospital é capaz de
alarmar todo mundo imediatamente, as pessoas nem tentam entender. A
maçaneta da porta gira com uma doçura angelical, o pé direito na abertura,
a Mossberg passa de uma mão para a outra, a jaqueta totalmente aberta,
ela está deitada na cama, da entrada avisto seus pés, como os pés de uma
morta, imóveis, abandonados; ao me inclinar levemente, consigo ver o
corpo inteiro...
Nossa, mas que cara!
Eu dei mesmo um jeito nela.
Ela dorme com a cabeça virada de lado, está babando, as pálpebras
inchadas como balões de ar, não é o tipo de mulher que dá vontade de
seduzir. A primeira coisa que me vem à cabeça é a expressão “quebrar a
cara”. É uma bela ilustração, cai-lhe como uma luva. A dela está parecendo
um tijolo, uma caixa de sapatos, deve ser por causa das bandagens, mas
não há nada igual à cor dessa pele, é mesmo impressionante. Um
pergaminho. Ou uma lona. E toda estufada. Se ela tinha planos de ir para a
balada em breve, vai ter que deixar para mais tarde.
Permanecer na entrada, antes de tudo, deixar a espingarda bem à
mostra.
Deixar claro que não vim de mãos vazias.

fevereiro•2022
Clube SPA

Apesar da porta amplamente aberta para o corredor, ela continua a


dormir. Vale a pena mesmo ter vindo até aqui para ser recebido assim,
muito obrigado! Normalmente, as pessoas gravemente feridas são como
animais, elas podem sentir as coisas. Ela vai acordar, é questão de
segundos. Instinto de sobrevivência. Seus olhos vão topar com a
espingarda, elas se conhecem bem, essas duas, são quase amigas.
Assim que notar nossa presença, minha e da Mossberg, ela vai entrar em
desespero. Óbvio. Vai icar agitada, vai tentar se sentar na cama, a cabeça
vai icar se debatendo de um lado para o outro.
E ela vai começar a berrar.
Considerando as pancadas que ela levou no maxilar, não deveria ser
capaz de proferir um discurso bem articulado. Tudo o que ela poderá
berrar talvez seja “sôôôôô” ou “soooccoo”, en im, algo do tipo, mas, para
compensar a falta de clareza, ela vai aumentar o volume, gritar a plenos
pulmões, o su iciente para atrair todos os funcionários. Se isso acontecer,
antes de passar aos assuntos sérios, fazer um gesto para mandá-la se calar,
shhhhh, com o indicador colado nos lábios, shhh. Ela vai continuar a se
esguelar. Shhh, você não está vendo que estamos num hospital, cacete?!
– Senhor?
No corredor, logo atrás de mim.
Uma voz, bem distante.
Não se virar, permanecer ereto, rígido.
– Está procurando alguém...?
Aqui, ninguém presta atenção em ninguém, mas é só você surgir com
uma espingarda e imediatamente tem uma funcionária toda atenciosa às
suas costas.
Levantar os olhos para o número do quarto, como alguém que está
percebendo o próprio erro, a enfermeira vem se aproximando. Sem se
virar, com uma voz balbuciante, articular:
– Eu me enganei...
Sangue-frio, essa é a chave para tudo. Seja para um assalto, seja para
fazer uma visita a uma paciente no hospital, o sangue-frio é essencial.
Mentalmente, eu revejo com nitidez o plano de evacuação do edi ício.
Tenho que chegar às escadas, em seguida subir um andar, então é logo à
esquerda. É melhor acelerar porque, se eu tiver que me virar agora, terei
que sacar a Mossberg, atirar e privar o hospital público de uma enfermeira,
como se já houvesse funcionários su icientes, então é melhor apertar o
passo. Mas, primeiro, destravar a arma. Nunca se sabe.

fevereiro•2022
Clube SPA

Ora, para carregar a arma, é preciso pôr as duas mãos à frente do corpo.
E uma arma como essa faz um barulho bem particular, um estalido
metálico. No corredor de um hospital, isso ecoa de forma preocupante.
– Os elevadores icam ali...
Diante do estalido da arma, a voz se interrompe abruptamente, dando
lugar a um silêncio apreensivo. Uma voz jovem, irme, mas perturbada,
como se tivesse sido atingida em pleno voo.
– Senhor!
Agora que a espingarda está pronta para ser usada, basta ir com calma,
não oscilar. O importante é se manter de costas. A jaqueta permite notar a
protuberância rígida da espingarda, como se eu tivesse uma perna de
madeira. Dou três passos, a jaqueta mal se abre, uma fração de segundo
que deixa à mostra a ponta do cano da Mossberg, ligeiramente, como um
feixe de luz ou um raio de sol re letido sobre um caco de vidro. Quase nada,
indiscernível, e, se você só viu armas no cinema, é muito di ícil fazer a
conexão com o que acabou de passar pelos seus olhos. Porém, ela sabe que
viu alguma coisa, ica na dúvida em a irmar que sim, poderia ser isso, não,
impossível, mas, pensando bem...
Enquanto a enfermeira tenta chegar a uma conclusão...
O senhor aqui já deu meia-volta, passou por ela de cabeça baixa, disse
que se enganou, fechou de novo a jaqueta, partiu em direção às escadas...
Ao invés de descer, subiu. Ah, não, ele não estava fugindo, senão teria
descido. E aquela postura... É estranho. Di ícil ter certeza. O que era aquilo?
Na hora eu diria que é uma espingarda. Mas aqui? No hospital? Não. Ela
não pode acreditar.
Isso me dá tempo su iciente para correr para as escadas...
– Senhor... senhor?

20h10
Hora de partir. Policial em horário de trabalho, Camille não pode se
comportar como um adolescente apaixonado. Como imaginar o
investigador passando a noite junto à cabeceira da vítima? Ele já fez
besteira demais para um só dia.
Justamente nesse momento, seu celular vibra: comissária divisional
Michard. Ele en ia o aparelho de volta no fundo do bolso, vira-se para a

fevereiro•2022
Clube SPA

recepcionista, levanta a mão para se despedir. Ela lhe responde com uma
piscadinha de olho e um gesto com o indicador, convidando-o, venha aqui
um pouquinho. Camille hesita, inge não entender, mas mesmo assim se
aproxima, é o efeito do cansaço, já não oferece muita resistência. Depois
das multas, o que será que ela vai inventar?
– E aí, você está indo embora? Vocês não devem ir cedo para a cama na
polícia, né?
Deve haver ali algo subentendido, porque ela sorri com todos os seus
dentes desiguais. Não deve perder tempo para ouvir isso. Ele solta um
suspiro profundo, dá um sorriso amarelo, precisa dormir. Já deu três
passos quando:
– Recebemos uma ligação, acho que o senhor icaria contente em saber...
– Quando?
– Agora há pouco... Por volta das sete horas.
E, antes que Camille perguntasse:
– O irmão dela.
Nathan. Camille nunca o vira; ouvira sua voz várias vezes na caixa postal
de Anne, uma voz febril, apressada e jovem; eles têm mais de quinze anos
de diferença. Anne já cuidou muito dele, tem muito orgulho do irmão. Ele é
pesquisador num domínio impenetrável, fotônica, nanociências, algo
assim, o tipo de área de que Camille não entende sequer o título. “E, para
um irmão, ele não é muito afetuoso. Ao ouvi-lo, não acho nem um pouco
ruim ser ilha única.”
A conclusão explode no cérebro de Camille: como será que ele soube que
ela está hospitalizada?
Ele desperta de imediato, precipita-se para a porta dupla, empurra-a,
passa para o outro lado do balcão da recepção, a recepcionista não precisa
que ele lhe faça a pergunta para responder.
– Uma voz de homem e... – Ophélia revira os olhos – bem direto!
Forestier... Oras, Forestier! Como você acha que se soletra? Com dois f? –
ela imita em um tom arrogante, autoritário. – Ela tem o que exatamente? E
os médicos, o que eles dizem? – A imitação se torna caricatural. – Como
assim, ninguém sabe? – um tom de voz indignado, quase escandalizado...
– Ele tinha algum sotaque?
A recepcionista faz que não com a cabeça. Camille corre o olhar pelo
local. Está para concluir algo, sabe bem disso, espera que as sinapses se
realizem, o que se dará em questão de segundos...
– Tinha uma voz jovem?
Ela franze as sobrancelhas.

fevereiro•2022
Clube SPA

– Não era jovem, jovem... Uns quarenta anos, eu diria. Para mim, parec...
Camille não ouve o restante. Põe-se imediatamente a correr, trombando
com todos no caminho.
Chega à escada, empurra com tudo a porta do patamar, que bate com
violência atrás dele. Agora já está escalando os degraus tão rápido quanto
permite o tamanho de suas pernas.

20h15
Pelo barulho dos passos, o homem subiu um andar, pensa consigo a
enfermeira. Vinte e dois anos, a cabeça quase raspada e um piercing em
formato de argola no lábio inferior, um ar provocativo, mas, por dentro,
tudo é diferente; sensível, chega até a ser uma pessoa prudente demais e
muito simpática, di ícil acreditar. Em seguida, ela ouve a porta bater, mal
tem tempo de pensar, icar na dúvida; aquele homem pode estar em
qualquer lugar agora, no corredor, no andar superior, pode descer de volta
ou, pelo contrário, atravessar o hospital pelo setor de neurocirurgia e daí
para localizá-lo...
O que fazer? Primeiro, seria preciso ter certeza, não se pode disparar um
alarme por nada, quer dizer, quando não se tem certeza... Ela volta para o
escritório das enfermeiras. Não, não é possível, ninguém vai a um hospital
com uma espingarda. O que podia ser aquilo? Uma prótese? Alguns
visitantes vêm aqui com buquês de gladíolos longos como braços, estamos
na estação dos gladíolos? Ele se enganou de quarto, pelo que disse.
Ela permanece um pouco descon iada. Na escola de enfermagem, cursou
uma disciplina sobre agressão feminina, sabe que os maridos são
agressivos, bem capazes de seguir a esposa até um hospital. Ela volta pelo
mesmo caminho e olha de relance para o quarto 224. Essa paciente só
chora, o tempo todo, toda vez que alguém entra no seu quarto, ela está
chorando, não para de passar os dedos pelo rosto, deslizá-lo pelos lábios,
fala escondendo a boca com o dorso da mão. Duas vezes foi pega na frente
do espelho do banheiro, embora nem consiga se manter direito sobre as
pernas.
Mas, de todo modo, pensa ela consigo, deixando o quarto (uma vez que
isso continua a deixá-la inquieta), o que aquele homem podia ter debaixo
da jaqueta impermeável, que parecia um cabo de vassoura e, durante o
breve instante em que a jaqueta icou entreaberta... parecia de inox, de

fevereiro•2022
Clube SPA

metal? O que pode ser parecido com um cano de espingarda? Ela pensa
numa muleta.
Está ali imersa em suas re lexões quando, do outro lado do corredor,
surge o policial, o baixote, que está por lá desde o começo da tarde – não
tem nem um metro e sessenta, careca, um belo rosto, mas severo, não sorri
–, ele corre como um louco, quase tromba com ela, abre a porta do quarto
sem parar, como se fosse se atirar em cima da cama, ele grita:
– Anne, Anne...!
Vai entender... Ele é policial, mas, vendo assim, parece o marido dela.
Já a paciente ica toda agitada. Ela vira a cabeça para todo lado e, diante
do bombardeio de perguntas, levanta uma mão: pare de gritar. O policial
repete:
– Está tudo bem? Está tudo bem?
Sou obrigada a pedir a ele que se acalme. A paciente deixa o braço cair
de volta sobre o lençol e olha para mim. Está tudo bem...
– Você viu alguém? – pergunta o policial. – Alguém entrou? Você viu?
Sua voz está séria, angustiada. Ele se vira para mim.
– Alguém entrou?
Digo sim, bem, na verdade, não...
– Alguém se enganou de andar, um homem, ele abriu a porta...
Ele não espera a resposta, vira-se de novo para a paciente, olha
intensamente para os seus olhos, ela balança a cabeça, parece perder o io
do raciocínio. Não diz nada, faz apenas não com a cabeça. Não viu ninguém.
Agora, ela se deixa deslizar pela cama, puxa os lençóis até o queixo, chora.
Claro, o policialzinho a assusta com suas perguntas. Ele está agitado como
uma pulga. Busco intervir.
– Senhor, o senhor está num hospital!
Ele faz um sinal de concordância, mas nota-se bem que ele está
pensando em outra coisa.
– E o horário de visita já terminou.
Ele volta a si:
– Ele saiu por onde?
E, como não respondo com muita rapidez:
– O cara que se enganou de quarto, por onde ele saiu?
Veri ico o pulso da paciente. Digo:
– Pela escada, ali...
Até parece que vou dar a mínima para isso agora; o que me interessa é a
paciente. Maridos ciumentos não são problema meu.

fevereiro•2022
Clube SPA

Nem terminei minha frase e ele dispara como um coelho. Posso ouvi-lo
pelo corredor, precipitando-se pela porta, tomando as escadas; posso ouvi-
lo, impossível saber se está subindo ou descendo.
E essa história de espingarda, eu estava sonhando ou o quê?

A escada de concreto ecoa como uma catedral. Camille agarra o


corrimão, lança-se sobre os primeiros degraus. E para.
Não. Se estivesse no lugar dele, subiria.
Meia-volta. Não são degraus comuns, cada um deve ter meio centímetro
a mais que o normal; dez degraus, você ica cansado; vinte, e está exausto.
Principalmente Camille, com suas pernas pequenas.
Ele chega sem fôlego ao andar superior, hesita. No lugar dele, eu subiria
mais um andar? Sim? Não? Concentra-se. Não, eu sairia por aqui, pela
porta desse patamar mesmo. No corredor, Camille tromba com um médico
que grita:
– Mas que diabos...!
Ele mal tem tempo de olhar para ele, idade inde inida, jaleco branco que
acabou de ser passado (os vincos ainda são visíveis), cabelos
uniformemente brancos. Ele para, as duas mãos no bolso, ar perplexo por
ver surgir esse sujeito assim tão exaltado...
– O senhor cruzou com alguém? – grita Camille.
O médico respira com calma, adota uma postura decorosa, prepara-se
para seguir adiante.
– Um homem, cacete! – grita Camille. – O senhor cruzou com um
homem?
– Não... ahn...
Para Camille, isso é mais que su iciente; ele volta, abre a porta como se
quisesse arrancá-la, sobe a escada, em seguida entra no corredor, vira
primeiro para a direita, depois para a esquerda, sem fôlego. Não há
ninguém em nenhum dos dois lados, ele volta, corre, algo lhe diz (talvez o
cansaço) que ele tomou o caminho errado. Assim que você começa a
pensar isso, instantaneamente passa a correr menos; aliás, seria
impossível acelerar. Camille agora se encontra no im do corredor, um
ângulo reto, ele topa com uma parede com um painel de energia cuja porta,
dois metros de altura, está infestada de sinalizações, todas indicando:
“Perigo de morte”. Muito obrigado pela dica.

fevereiro•2022
Clube SPA

O toque de mestre consiste em sair do mesmo jeito que você entrou.


Isso é o mais di ícil, é preciso força, concentração, vigilância, lucidez,
qualidades raras num homem. É um pouco como nos assaltos, é sempre
perto do inal que você corre o risco de se dar mal. No início, você tem
intenções pací icas, daí se depara com resistência e perde a calma, de
repente está ali mandando bala na multidão com uma calibre 12 e acaba
deixando para trás a maior carni icina, só por causa de um pouco de falta
de sangue-frio.
Mas o caminho estava livre até o inal. Com exceção de um doutorzinho,
plantado na escada, que me obrigou a me esquivar. Pergunto-me que
diabos ele estava fazendo ali, não havia ninguém mais.
No térreo, saída a passos ligeiros. Por mais que as pessoas estejam
apressadas por aqui, o hospital não é um lugar onde se corre, então,
quando você aperta o passo, acaba chamando a atenção das pessoas, mas
já estou do lado de fora antes que alguém tenha tempo de reagir. Aliás,
reagir a quê?
Logo à direita, o estacionamento. O ar fresco faz bem. Manter a
Mossberg bem irme debaixo da jaqueta, não vou começar a assustar os
pacientes, ainda mais porque no setor de emergências eles já não estão
nada bem. E, também, a atmosfera aqui é bem calma.
Por outro lado, lá em cima, a coisa deve estar pegando fogo. O nanico
deve estar farejando tudo, com o focinho para cima, como fazem os cães de
caça, tentando entender o que se passa.
A enfermeirazinha, por sua vez, não deve estar muito segura, uma
espingarda... será que era isso mesmo?
Ela deve ter comentado com as colegas, fala sério, uma espingarda, tem
certeza que não era uma bazuca?
E as piadas não têm im: o que você anda bebendo durante o expediente,
o que tem fumado ultimamente?
Outra diz: de qualquer modo, você deveria conversar com a...
E isso tudo é mais tempo que o necessário para atravessar o
estacionamento, chegar ao carro, entrar, arrancar tranquilamente, entrar
na ila dos veículos que deixam o hospital, em três minutos estou na rua,
viro à direita no farol vermelho.
Agora devo conseguir a brecha que desejo.
Se não for agora, será logo mais.
É só ter determinação...

fevereiro•2022
Clube SPA

Camille sente que foi deixado para trás, mas, ainda assim, aperta o passo.
Dessa vez, ele optou pelo elevador, pode recuperar o fôlego enquanto
sobe. Se não tivesse ninguém dentro, ele poderia bater com o punho nos
anteparos. Mas tudo o que faz é respirar profundamente.
Ao despontar no hall da recepção, ele con irma sua hipótese. A sala de
espera está cheia, pacientes, funcionários, paramédicos não param de
entrar e sair; à sua direita, um corredor dá para a saída de emergência, o
outro à esquerda leva ao estacionamento.
E essa é só uma das sete ou oito possibilidades de deixar o edi ício sem
ser notado.
Interrogar quem? Colher depoimentos. Das testemunhas? Depoimentos
de quem? O tempo que ele levaria para convocar uma equipe ao local daria
para dois terços dos pacientes serem substituídos por novos.
Ele tem vontade de bater com a cabeça na parede.
Ainda assim, vai para o andar de cima, empurra a porta da sala das
enfermeiras. A garota de lábios carnudos, Florence, está concentrada num
prontuário médico. Sua colega? Não, ela não sabe, diz sem levantar os
olhos. Mas, diante da insistência de Camille:
– Nós estamos com muito trabalho – diz ela.
– Mais um motivo, não deve estar muito longe...
Ela ia responder, mas ele já não está mais lá. Dá uns cem passos pelo
corredor, en ia a cabeça dentro toda vez que alguma porta de quarto se
abre; se for preciso, ele vai entrar nos sanitários femininos. No estado em
que se encontra, nada irá detê-lo, mas isso não é necessário, a garota
aparece.
Ela expõe um ar contrariado, passa a mão no couro cabeludo raspado,
Camille o desenha em pensamento, esse corte, uniforme, dá ao seu rosto
um aspecto bem frágil, ela parece intimidada, mas isso é ilusório, na
verdade, ela é uma pessoa pragmática. Sua primeira resposta con irma
isso. Ela fala enquanto anda, Camille é obrigado a correr ao seu lado:
– O homem se enganou de quarto, ele pediu desculpas...
– Você ouviu a voz dele?
– Na verdade, não, apenas o ouvi pedir desculpas...
Mas icar correndo assim, ao lado de uma garota por um corredor de
hospital para obter informações absolutamente necessárias para salvar a
vida da mulher que ama, ver-se nessa situação, faz Camille explodir. Ele
segura o braço da garota, ela é obrigada a parar e olhar para baixo; ela é
tocada pelo impacto da determinação que os olhos de Camille transmitem,
intensi icada por sua voz calma, sombria e tempestuosa:

fevereiro•2022
Clube SPA

– Senhorita, vou ter que pedir para você se concentrar um pouco...


Camille lê o nome escrito no crachá: “Cynthia”. Os pais dela deviam ser
viciados em seriados de tevê.
– Você vai se concentrar, Cynthia. Porque preciso muito saber...
Então ela conta, um homem diante da porta aberta, que se vira, com a
cabeça baixa, provavelmente por estar com vergonha, veste uma jaqueta
impermeável, ele parece andar meio duro, mas en im... Em seguida, sobe as
escadas, mas um homem que estaria fugindo não subiria, ele desceria, isso
é óbvio, não?
Camille suspira e diz sim, com certeza, é óbvio.

21h30
– Já está vindo...
O encarregado da segurança não gosta nada dessa história. Para
começar, já é tarde, ele teve de trocar de roupa mais uma vez. E ainda por
cima em plena noite de jogo na tevê. Trata-se de um antigo guarda
municipal, bastante inquieto, barrigudo, sem pescoço, pele avermelhada,
com uma dieta baseada em carne bovina charolais. E, para completar, para
visualizar as ilmagens das câmeras, é preciso uma autorização. Assinada
pelo juiz. Como manda a lei.
– Pelo telefone, o senhor me disse que tinha a autorização...
– Não – diz Camille com irmeza. – Eu disse que ia obtê-la.
– Não foi o que eu entendi.
Do tipo teimoso. Geralmente, Camille negocia, mas dessa vez ele não tem
vontade nem tempo de icar de conversa iada.
– E o que o senhor entendeu? – pergunta ele.
– Ora, que o senhor tinha um comis...
– Não – corta Camille –, não se trata de comissão rogatória, se trata de
um cara que entrou no seu hospital, com uma espingarda de caça, o que o
senhor acha que entendeu mesmo? Que ele subiu até o segundo andar com
o objetivo de trucidar um de seus pacientes? E que, se ele tivesse
encontrado gente pelo caminho, teria provavelmente atirado em todo
mundo? E que, se ele voltar e izer um massacre, sua cabeça vai ser a
primeira a rolar e você vai parar no olho da rua?
De qualquer modo, aquelas são as câmeras que cobrem a entrada do
setor de emergências; há poucas chances de o homem, se é que ele existe,
ter passado por ali, ele não seria idiota. Se é que ele existe.

fevereiro•2022
Clube SPA

E, no intervalo de tempo em que ele poderia ter passado por ali, nada de
particular nas ilmagens. Camille veri ica novamente. O encarregado da
segurança pula de um pé para o outro e suspira com força para manifestar
sua exasperação. Camille se inclina sobre a tela, o luxo das ambulâncias,
veículos do Samu e do público geral, pessoas que entram e saem, feridas,
não feridas, andando ou correndo. Nada de relevante que possa ajudar
Camille.
Ele levanta a cabeça e se vai. Volta atrás, aperta o botão, ejeta o DVD e se
vai.
– O senhor acha que eu sou um idiota? – esguela-se o encarregado. – E o
mandato?
Camille diz com um gesto: veremos isso depois.
Ele já está de volta ao estacionamento. Se fosse eu, pensa consigo,
observando os arredores, viria pelas laterais do prédio. Pela saída de
emergência. Ele se debruça sobre a porta para vê-la mais de perto. É
obrigado a tirar os óculos. Nenhum rastro de arrombamento.
– Quando a senhora vai fumar lá fora, quem ica no seu lugar?
A resposta para a pergunta é óbvia. Camille está de volta à recepção, ele
foi até o fundo do hall e à sua esquerda ele encontrou, como por acaso, o
corredor que leva para a saída de emergência.
Ophélia sorri com todos os seus dentes amarelos.
– A gente não tem nem substituto para a licença-maternidade, até parece
que alguém vai nos dar um para as pausas-câncer!
Será que ele veio? Ou não veio?
Ao entrar no carro, ouve suas mensagens.
– É a Michard! – Tom cortante. – Me ligue. Não importa a hora, não tenho
horário. Me diga onde o senhor está. E, amanhã bem cedo, terei a inal o seu
relatório, não é?
Camille sente-se sozinho. Terrivelmente sozinho.

23h
A noite nos hospitais é algo à parte. Até mesmo o silêncio parece se
manter em suspenso. Aqui, no setor de emergências, as macas não param
de abrir caminho pelos corredores, ouvem-se gritos, por vezes distantes,
irrupções de vozes, passos precipitados, campainhas.
Anne consegue adormecer, mas seu sono é inquieto, repleto de
pancadas, de sangue, ela sente o chão de cimento da galeria Monier

fevereiro•2022
Clube SPA

debaixo da mão, sente a chuva de vidro desabar sobre seu corpo com uma
exatidão hiper-realista, revê sua queda contra a vitrine e o barulho dos
tiros pelas costas; começa a arquejar, a enfermeirazinha com o piercing no
lábio hesita em acordá-la. Nem é preciso se dar ao trabalho, ao im do
ilme, Anne sempre acorda com sobressaltos, volta a si aos gritos. Diante
dela, a imagem do homem descendo o capuz sobre o rosto, seguida da
coronha da espingarda ocupando todo o seu campo de visão, prestes a
atingir em cheio seu osso malar.
Adormecida, Anne toca o rosto com a ponta dos dedos, topa com os
pontos, em seguida os lábios, ela procura os dentes, topa com a gengiva,
pedaços de dentes quebrados que se sobressaem, como cotocos.
Ele queria matá-la.
Ele vai voltar. Ele quer matá-la.

Em Irene, livro 1 da Trilogia Verhoeven, também publicado pela


Universo dos Livros. (N.E.)
Em francês, michetounesse é uma gíria para uma mulher que seduz um
homem para tirar o máximo proveito dele, para ganhar dinheiro e receber
presentes. (N.E.)
Na França, o sistema judiciário designa um juiz de instrução para
acompanhar as investigações. Ele pode interrogar suspeitos e vítimas, bem
como contribuir na administração do processo em diversos segmentos.
Uma vez que haja evidências em torno do acusado, o caso é transferido
para o procurador. (N. T.)

fevereiro•2022
Clube SPA

DIA 2

fevereiro•2022
Clube SPA

6h
Não dormiu nada essa noite. Quando se trata do emocional de Camille,
Doudouche tem antenas.
Ontem à noite, Camille teve de passar de novo pela Brigada para dar
cabo de tudo o que não tivera tempo de fazer durante o dia, voltou para
casa exausto, deitou-se direto no sofá. Doudouche se pôs a seu lado, eles
não se mexeram mais pelo resto da noite. Ele não a alimentou, acabou
esquecendo, ela não reclama, compreende que ele está preocupado. Fica
ronronando. Camille conhece de cor as mais inas nuances desse seu
ronronar.
Pouco tempo atrás, noites como essa, em claro, tensas, nervosas ou
melancólicas, eram noites por Irene. Com ela. Ele revirava em sua memória
a vida passada que tiveram, imagens dolorosas. Não havia assunto que
tivesse maior importância para ele que a morte de Irene. Não havia outro
assunto.
Camille se pergunta o que hoje lhe causa mais dor, a inquietude que
sente por Anne, a imagem do rosto dela, o seu sofrimento, ou justamente
essa imperceptível convergência de todos os seus pensamentos em sua
direção, ao passar dos dias, das semanas. Há certa vulgaridade no ato de
passar assim de uma mulher para a outra, ele se sente num lugar
incomum. Nunca pensara na ideia de reconstruir sua vida, mas a vida está
se reconstruindo sozinha, quase a despeito da própria vontade. Porém, o
que mais persiste, talvez de maneira de initiva, são as imagens de Irene,
dilacerantes. Elas resistem a tudo, ao tempo, aos novos relacionamentos.
Bem... ao novo relacionamento, pois ele não teve nenhum outro.
No caso de Anne, ele a aceitou porque ela não é, diz ela, mais que uma
passageira. Também tem os próprios lutos, não deseja fazer planos para o
futuro. Só que, mesmo sem planos, hoje ela se encontra instalada na sua
vida. E, dentro da eterna divisão entre aquele que ama e aquele que é
amado, Camille não sabe que lugar está ocupando.
Eles se conheceram na primavera. Começo de março. Havia quatro anos
que ele perdera Irene, dois anos que havia emergido para a vida, sem
muita vivacidade, mas vivo. Levava a existência sem risco e sem desejo dos
homens destinados à solidão. Um homem do seu tamanho não encontra
mulheres assim tão facilmente, pouco importa, isso não lhe fazia mais falta.
Os momentos em que se conhece alguém sempre têm algo de milagroso.

fevereiro•2022
Clube SPA

Anne, que não é de temperamento colérico, só fez cena em restaurante


uma vez na vida (ela jurou com a mão no coração e um sorriso
enternecedor), foi justo naquele dia, no restaurante Chez Fernand, quando
Camille estava terminando de jantar duas mesas ao lado e que a discussão
em que ela entrara se tornou uma gritaria.
Coisas quebradas, xingamentos, louças, pratos espatifados, talheres
espalhados pelo chão, os clientes se levantaram, pediram o casaco, ligaram
para a polícia; o proprietário, Fernand, vocifera calculando o prejuízo em
montantes astronômicos. Anne, por sua vez, parou subitamente de gritar.
Ao se dar conta da cena, ela é dominada por uma gargalhada insana.
Seus olhos se cruzam com os de Camille.
Camille fecha os olhos por um breve instante, respira fundo, levanta sem
pressa, mostra sua carteira policial.
Ele se apresenta. Comandante Verhoeven, Brigada Criminal. Parece ter
surgido do nada. Anne para de rir, olha para ele, inquieta.
– Ah, o senhor vem bem a calhar! – grita o patrão.
E, em seguida, ele tem uma dúvida.
– É... você disse Brigada Criminal?
Camille balança a cabeça com cansaço. Ele segura o braço do
proprietário, faz com que o acompanhe para uma conversa à parte.
Dois minutos depois, deixa o restaurante em companhia de Anne, que
não sabe mais se deve rir, sentir-se aliviada, agradecer, icar preocupada.
Ela está livre e, como todo mundo, não sabe muito bem o que fazer em
liberdade. Camille percebe que, nesse instante, como qualquer outra
mulher, ela está se interrogando sobre a natureza da dívida que acabou de
contrair. E na forma de recompensar.
– O que você disse para ele? – en im perguntou ela.
– Que você estava detida.
Ele mente. Na verdade, ele o ameaçou de mandar uma batida policial por
semana ali. Até o fechamento do estabelecimento por escassez de clientela.
Abuso de poder descarado. Ele sente vergonha, mas aquele cara pelo
menos deveria tentar fazer uns pro iteroles aceitáveis.
Anne sente o faro da mentira, mas acha Camille engraçado.
Quando, ao im da rua, eles cruzam com a van da polícia lançando-se na
direção do Chez Fernand, ela lhe oferece seu melhor sorriso, o mais
avassalador, aquele com as covinhas que se cruzam suavemente, que dobra
as ruguinhas minúsculas debaixo dos olhos verdes... Consequentemente,
essa história de dívida começa a pesar dentro da cabeça de Camille. Então,
ao chegar à estação, ele toma a iniciativa:

fevereiro•2022
Clube SPA

– Você vai tomar o metrô?


Anne re lete.
– Pre iro táxi.
Camille acha perfeito. Qualquer que fosse a resposta, ele teria escolhido
o oposto. Ele se contenta em apenas acenar para ela, tchau, e se atira pelas
escadas com uma falsa lentidão; na verdade, está indo o mais rápido que
pode. Ele desaparece.
Dormiram juntos no dia seguinte.
Quando Camille saiu da Brigada, ao im do dia, Anne estava lá embaixo,
na calçada. Ele ingiu não a ver, seguiu seu caminho até o metrô e, quando
se virou, Anne estava no mesmo lugar, serena. Aquele truque o fez sorrir.
Ele icou sem saída.
Eles foram jantar. Noite clássica. Até mesmo decepcionante, se não
pairasse sobre eles essa aura de ambiguidade que se devia à tal questão da
dívida e que tornava a circunstância ao mesmo tempo excitante e
constrangedora. Quanto ao resto, o que dizem uma mulher e um homem
de quarenta e cinquenta anos quando se encontram? Tentam minimizar
seus fracassos sem mascará-los por completo, mencionar suas mágoas sem
as expor, comentar o mínimo possível sobre elas. Camille contou o
essencial, em três palavras, sobre Maud, sua mãe...
– Eu também acho... – disse Anne.
E, diante do olhar interrogativo de Camille:
– Vi algumas das suas telas. – Ela hesitou. – Em Montreal?
Camille icou surpreso por ela conhecer a obra de sua mãe.
Anne, por sua vez, falou sobre sua vida em Lion, seu divórcio, ela deixara
tudo para trás, e bastava observá-la para compreender que estava longe de
ter terminado com tudo. Camille gostaria de poder saber mais. Que
homem? Que marido? Que história? A eterna curiosidade dos homens
sobre a intimidade das mulheres.
Ele lhe perguntou se ela desejava estapear o dono do restaurante
naquele momento ou se podia pedir a conta antes. O riso de Anne foi, sem
dúvida, o que deixou Camille totalmente fora de si. Um riso extremamente
feminino.
Camille, que não tocava numa mulher havia tempos imemoriais, não
teve de fazer nada; Anne deitou-se sobre ele, o resto veio sozinho, sem uma
palavra, era, ao mesmo tempo, triste e alegre. O amor como ele é.
Não se viram mais. Na verdade, sim, de tempos em tempos. Como se eles
se tocassem com as pontas dos dedos. Anne é consultora de gestão, ela
passa a maior parte do tempo visitando agências de viagem e veri icando a

fevereiro•2022
Clube SPA

organização, as contas, todas essas coisas que Camille não faz ideia do que
são. Ela nunca passa mais de dois dias em Paris por semana. Essas
partidas, essas ausências, esses retornos davam aos encontros dos dois
uma aparência caótica, imprevisível, a impressão de estarem sempre se
encontrando por acaso. Já nessa época eles não sabiam como de inir o que
tinham, deixavam acontecer, saíam, jantavam, dormiam, e aquilo ia
crescendo e crescendo.
Camille tenta lembrar em que momento teve consciência do lugar que
essa história estava ocupando em sua vida. Nenhuma recordação.
A chegada de Anne ofereceu um distanciamento para a morte de Irene,
essa página incandescente de sua vida. Ele se pergunta se o novo ser capaz
de viver sem Irene en im surgiu nele. Sabe que esquecer é inevitável. Mas
esquecer não é se curar.
Hoje ele se sente apreensivo pelo que está acontecendo com Anne.
Sente-se responsável não pela circunstância, não pode fazer nada quanto a
isso, mas pelo seu desdobramento, que depende dele, da sua vontade, da
sua determinação, da sua competência, isso é algo sufocante.
Doudouche cessou de ronronar para dormir totalmente. Camille se
levanta, a gata desliza para o lado com um suspiro de descontentamento,
ele vai até a escrivaninha, um “caderno de Irene” está em cima dela, os
outros foram jogados fora numa noite de raiva, de desengano. Um caderno
repleto de imagens dela, Irene sentada a uma mesa, levantando seu copo e
sorrindo, adormecida, pensativa, Irene aqui e ali. Ele o abandona. Esses
quatro anos sem ela talvez tenham sido os mais duros, os mais infelizes da
sua vida, e, apesar de tudo, ele não consegue se impedir de considerá-los
os mais interessantes, os mais vibrantes. Não se distanciou do seu passado.
Foi esse passado que se tornou (ele escolhe as palavras) mais matizado?
Mais discreto? Abafado? Como o resto de uma divisão que ele nunca fez de
fato. Anne não tem nada a ver com Irene, são duas galáxias diferentes,
anos-luz uma da outra, mas ambas convergem para o mesmo ponto. O que
as separa é que Anne está ali enquanto Irene se foi.
Camille lembra que Anne também quase partiu, mas voltou. Foi em
agosto. Tarde da noite. De pé de frente para a janela, nua, pensativa, os
braços cruzados, ela diz: “Acabou, Camille”, sem sequer se virar para ele.
Em seguida, ela se veste sem dizer uma palavra. Nos romances, isso exige
um minuto. Na vida real, uma mulher nua vestindo-se leva um tempo
insano. Camille permanece sentado, não se move, parece um homem
surpreendido por uma tormenta, resignado.
E ela se vai.

fevereiro•2022
Clube SPA

Camille não esboça nem um gesto, ele compreende. Sua partida não
provoca nenhum terremoto, mas um abatimento profundo e uma dor
abafada. Ele lamenta aquela fuga, mas a entende porque a considerava
inevitável. Por causa do tamanho, há nele instintos que fazem com que não
se sinta digno dela. Ele permanece assim por um longo momento, então,
en im se vira, deita-se sobre o sofá, talvez seja meia-noite.
Ele nunca saberá o que se passou naquele instante.
Anne partiu há mais de uma hora, de repente, ele se levanta, vai até a
porta, sem a menor hesitação, impelido por uma certeza inexplicável, abre.
Anne está sentada na escada, sobre o primeiro degrau, de costas para ele,
os joelhos entre os braços.
Após alguns segundos, ela se levanta, passa a seu lado, entra no
apartamento, deita-se na cama totalmente vestida e se vira contra a
parede.
Ela chora. Camille já vivera algo parecido com Irene.

6h45
O prédio, visto de fora, não tem uma aparência tão ruim, mas, assim que
se entra nele, percebe-se a que ponto tem sido abandonado. O painel de
caixas de correio de alumínio prestes a entregar a alma parece dominado
pela degradação. A última caixa traz a etiqueta “Anne Forestier”, sexto
andar, escrita com a mão dela, com sua letra arrebatadora, no canto da
etiqueta o e e o r estão espremidos um contra o outro, para não
transbordarem, icando ilegíveis.
Camille descarta o elevador minúsculo.
Não são nem sete horas quando ele dá três batidas discretas na porta da
frente.
A vizinha abre de imediato, como se esperasse sua chegada, a mão na
maçaneta. Senhora Roman, a proprietária do apartamento. Ela reconhece
Camille na hora. É a vantagem do seu tamanho, ninguém o esquece. Ele lhe
oferece sua mentira:
– Anne teve de sair com pressa... – Ele imita o sorriso benevolente do
namorado lúcido e paciente, em busca de cumplicidade. – Com tanta
rapidez que, pra variar, esqueceu a metade das suas coisas.
O “pra variar”, de teor bastante machista, agrada bastante à vizinha. A
senhora Roman é uma mulher sozinha, perto de se aposentar, com o rosto
redondo e rechonchudo, como uma criança que envelheceu precocemente.

fevereiro•2022
Clube SPA

Ela manca um pouco ao andar por conta de uma enfermidade no quadril.


Pelo pouco que Camille já viu dela, sabe que é uma pessoa terrivelmente
ordenada, põe métodos até nos menores detalhes.
Ela imediatamente pisca os olhos com um ar de que entendeu, vira-se,
apanha a chave e a entrega para Camille:
– Mas não é nada grave, não é mesmo?
– Não, não, não... – Ele dá um amplo sorriso. – Nada grave. – Ele mostra a
chave. – Vou icar com ela até o retorno da Anne...
Impossível saber se essa é uma informação, uma pergunta, um pedido; a
vizinha hesita, Camille aproveita para fazer um sinal de agradecimento.

A quitinete é de uma organização impressionante. No pequeno


apartamento, nada se encontra fora do lugar. As mulheres e a obsessão
com a limpeza, pensa Camille... Uma ampla sala dupla cuja segunda parte
serve de quarto, o sofá se transforma em cama de casal, com um grande
buraco no meio, um fosso, eles rolam para dentro a noite toda, acabam
dormindo um em cima do outro. Não deixa de ter suas vantagens. E uma
biblioteca de uma centena de livros de bolso cuja escolha escapa a
qualquer lógica, algumas bugigangas que Camille achou bem
insigni icantes. O apartamento como um todo lhe causou uma impressão
um tanto triste.
– Eu tinha pouquíssimo dinheiro. Não posso reclamar – respondeu Anne,
desdenhosa.
Ele quis se desculpar. Ela foi mais rápida.
– É o preço do divórcio.
Quando diz algo sério, Anne olha nos seus olhos, quase com um ar
desa iador, como se estivesse pronta para qualquer afronta.
– Abandonei tudo quando deixei Lion, comprei tudo aqui, os móveis,
tudo, de segunda mão. Não queria mais nada. Não quero mais nada. No
futuro, talvez, mas hoje, isso já me convém muito bem.
O lugar é temporário. Essa é a palavra preferida de Anne. O apartamento
é temporário, a relação deles é temporária. Certamente é por isso que
estão bem juntos. Ela também diz:
– O que mais demora depois de um divórcio é fazer a limpeza.
Sempre essa questão da limpeza.
O vestuário do hospital parece uma camisola. Camille decidiu levar
algumas roupas para ela. Acha que fará bem para seu ânimo. Supõe até

fevereiro•2022
Clube SPA

que, se tudo der certo, ela poderá quem sabe sair um pouco para dar
alguns passos pelo corredor, descer à revistaria no térreo.
Mentalmente, tinha feito uma pequena lista; agora que se encontra ali,
não se lembra mais de nada. Na verdade, sim, do agasalho roxo. A partir
daí, a cadeia associativa começa a se desenrolar: tênis, aqueles que ela usa
para correr, provavelmente estes aqui, mais gastos, ainda tem areia nas
solas. Depois disso, vai icando mais di ícil. O que mais?
Camille abre o pequeno guarda-roupa, não tem tanta coisa assim para
uma mulher. Uma calça jeans, pensa ele, qual? Ele pega uma. Camiseta,
blusa, tudo é tão complicado. Desiste, soca tudo o que encontra numa bolsa
de esporte, roupas de baixo, não escolhe mais.
E os documentos.
Camille avança até a cômoda. Acima dela, um espelho na parede repleto
de manchas. Deve datar da época da construção do prédio, no canto; Anne
inseriu uma foto: Nathan, seu irmão. Ele parece ter vinte e cinco anos, um
rapaz de ísico banal, sorridente e reservado. Talvez por saber duas ou três
coisas dele, nessa fotogra ia, Camille o acha com um semblante lunático,
alheio ao que acontece ao redor. Ele é um cientista. Anne diz que é bastante
desorganizado, chega a contrair muitas dívidas, ela sempre vem em seu
socorro. Como uma mãe. “Aliás, é bem isso que eu sou”, diz ela. Desde
sempre ela veio em seu socorro. Ela ri disso, como se não fosse mais que
uma anedota, mas nota-se bem que é algo que a preocupa. O estúdio onde
ele mora, os estudos, os lazeres, é como se Anne tivesse inanciado tudo; é
di ícil saber se ela se orgulha disso ou se lamenta. Nathan foi fotografado
em uma praça, talvez na Itália, faz sol, as pessoas vestem camisas de manga
curta.
Camille abre a cômoda. A gaveta da direita está vazia. Na da esquerda,
alguns envelopes rasgados, um ou dois tíquetes de roupas, restaurantes, e
principalmente pan letos com o carimbo da sua agência de viagens, mas
nada do que ele procura, nem cartão de convênio médico nem de seguro
social; talvez dentro da bolsa dela. Debaixo dos pan letos, roupas de
esporte. Então ele volta à papelada. Esperava encontrar holerites, extratos
bancários, contas de água, de telefone. Nada. Ele se vira. Seus olhos topam
com a estatueta, a colher em formato de nadadora egípcia, uma jovem
mulher talhada em madeira escura, deitada de bruços, com seu penteado
de laterais triangulares. E um traseiro digno de antologia. Presente de
Camille. Museu do Louvre. Ele e Anne foram ver a exposição sobre Da
Vinci, Camille explicara tudo para ela, ele é inesgotável sobre esse tema,
enciclopédico, e, na butique do museu, eles toparam com essa jovem

fevereiro•2022
Clube SPA

mulher que saiu intacta da décima oitava dinastia egípcia com seu traseiro
de proporções mitológicas.
– Juro pra você, Anne, o seu é exatamente igual.
Ela sorri, uma maneira de dizer eu bem que gostaria, mas é gentil da sua
parte. Já Camille tinha certeza. Ela se perguntava se ele estava sendo
sincero ou não. Ele se inclinou na direção dela, insistente.
– Não tenho a menor dúvida.
Antes que ela pudesse esboçar o menor gesto, ele a comprou. À noite,
procedeu às comparações, como especialista. Anne riu bastante no
começo, em seguida começou a gemer, e a sequência não é di ícil imaginar.
Depois, Anne chorou; ela chora algumas vezes após fazer amor. Camille
acha que isso também faz parte do seu processo de limpeza.
E, justo nesse momento, colada contra a parede, a estatueta parece
sofrer uma punição; um espaço vazio a separa dos s que Anne dispôs
sobre essa estante. Camille lança um olhar panorâmico pela sala. É um
desenhista excepcional, graças ao seu senso de observação; sua conclusão
não tarda.
Alguém esteve no apartamento.
Ele volta à gaveta da direita, os documentos não estão lá porque ela foi
revirada. Camille se curva na direção da porta de entrada, sobre a
fechadura. Nada. Só podem ter sido eles; encontraram o endereço de Anne
e a chave do apartamento na sua bolsa, que foi levada por um dos
assaltantes ao deixar a galeria Monier.
Será esse o mesmo homem que esteve no hospital ou eles são vários e
dividiram as tarefas entre si?
A proporção que ganhou essa caça tem algo de absurdo. A persistência
em perseguir Anne parece desproporcional em relação à circunstância.
Algo nos escapa, repete-se Camille. Algo que não vimos, não entendemos.
Com os documentos pessoais que encontraram aqui, provavelmente já
sabem tudo sobre ela, onde a encontrar, seus eventuais pontos de
passagem, Lion, Paris, a empresa onde ela trabalha, de onde ela vem, onde
pode se refugiar; eles sabem de tudo.
Segui-la e encontrá-la se tornou uma brincadeira de criança.
Matá-la, um exercício de estilo.
Se Anne colocar um pé para fora do hospital, está morta.
Ele não pode falar dessa visita para a comissária. A não ser que confesse
ter uma relação íntima com Anne e ter mentido desde o começo. Ontem,
isso não era mais que um receio. Hoje, nada menos que uma suspeita.
Diante dos superiores, tal conduta será indesculpável. Podem até mandar

fevereiro•2022
Clube SPA

os peritos do laboratório cientí ico, mas, quando se trata de sujeitos como


os que entraram aqui, ninguém encontrará nada, nenhum rastro, nada.
Sendo como for, Camille entrou no apartamento sem comissão rogatória,
sem autorização; entrou porque tinha um meio de obter a chave, porque
ela o encarregou de ir buscar seus documentos do seguro social, e a
vizinha pode testemunhar que ele vem regularmente e há muito tempo...
A soma das suas mentiras começa a aumentar vertiginosamente. Mas
não é isso o que causa mais medo em Camille.
É saber que Anne corre o risco de morrer. E que ele não pode fazer nada.

7h20
– Não, não é um mau horário.
Se alguém que trabalha com você lhe responde coisa semelhante ao
telefone às sete horas da manhã, não lhe faça nenhuma pergunta, vai
correr um grande perigo. Principalmente se essa pessoa for comissária
divisional.
Camille começa a contar o que está acontecendo.
– E o seu relatório...? – corta a comissária.
– Em andamento.
– E...?
Camille começa do princípio, ele escolhe as palavras, tenta se mostrar
pro issional. A testemunha está hospitalizada e, segundo todas as
probabilidades, o assaltante foi ao hospital, subiu ao seu quarto e tentou
matá-la.
– Um momento, comandante, não estou entendendo. – Ela articula
exageradamente cada palavra, como se sua inteligência se chocasse com
uma parede intransponível. – Essa testemunha, a senhora Foresti, ela...
– Forestier.
– Como quiser. Ela disse que não viu ninguém entrar no quarto, é isso? –
Ela não lhe dá tempo de responder, não se trata de perguntas. – Por sua
vez, a enfermeira alega que viu alguém, mas, na verdade, ela não tem
certeza, é isso? Em primeiro lugar, quem é esse “alguém”? E, mesmo que
for o assaltante, ele esteve por lá ou não esteve, a inal de contas?
Não há do que se queixar. Le Guen, no lugar dela, teria a mesma reação.
Desde que Camille solicitou se encarregar desse caso, tudo parece girar no
sentido contrário.

fevereiro•2022
Clube SPA

– Eu – a irma Camille –, eu estou dizendo que ele apareceu por lá! A


enfermeira acha que viu a espingarda.
– Oh – retoma a comissária com um tom admirado. – Formidável! Ela
“acha”... Então, me diga uma coisa, o hospital prestou queixa?
Camille sabe, desde o início da conversa, aonde isso tudo pode chegar.
Ele até tenta, mas não quer entrar em atrito com sua superior. Ela não foi
promovida por acaso. E a amizade com Le Guen, se lhe serviu para quase
usurpar esse caso, não vai protegê-lo por muito tempo; na verdade, vai
acabar por prejudicá-lo.
Camille sente as têmporas formigando, uma onda de calor passa pelo
seu corpo.
– Não, não houve queixa. – Não icar nervoso, mostrar-se paciente e
ponderado, elucidativo, convincente. – Mas eu estou lhe dizendo que esse
cara apareceu por lá. Ele não tem medo de entrar num hospital com uma
espingarda calibre 12 utilizada durante o assalto e...
– “Espingarda que poderia ser, na verdade,”...
– Por que a senhora não quer acreditar em mim?
– Porque sem queixa, sem dados tangíveis, sem testemunho, sem prova,
sem nada palpável, tenho um pouco de di iculdade em imaginar que um
mero assaltante venha a assassinar uma testemunha dentro de um
hospital, eis aí o porquê!
– Um “mero” assaltante? – Camille se engasga.
– Tudo bem, eu reconheço, ele parece bem violento, mas...
– “Bem” violento?
– Ora, comandante, o senhor não vai icar aí repetindo tudo o que eu
digo acrescentando aspas! O senhor está me pedindo uma escolta policial
para essa testemunha como se ela fosse um réu a caminho do tribunal!
Camille abre a boca. Tarde demais.
– Eu lhe dou um guarda municipal. Por dois dias.
A resposta é de uma baixeza sem igual. Não conceder ninguém seria
responsabilizar-se em caso de um incidente. E oferecer um policial
municipal para deter um assassino armado é o mesmo que propor um
biombo para conter um tsunami. Só que, vendo as coisas do seu ponto de
vista, a comissária está coberta de razão.
– Que perigo a senhora Forestier pode lá representar para esses homens,
comandante Verhoeven? Ela esteve presente num assalto, que eu saiba,
não num atentado! Eles devem estar cientes de que a feriram, mas não a
mataram, e, na minha opinião, devem é sentir orgulho por isso, na verdade.
É o que seria lógico desde o começo.

fevereiro•2022
Clube SPA

Então o que não se encaixa nessa história?


– E o seu informante, a inal, o que ele tem a dizer?
O eterno mistério: como tomamos nossas decisões? Em que momento
temos consciência daquilo que decidimos? Que parte do inconsciente
contribui com a resposta de Camille, impossível dizer, porém, ela é
imediata.
– Mouloud Faraoui.
Até ele se sente surpreso com a resposta.
Como num carrossel de parque de diversões, ele quase pôde sentir no
corpo a trajetória que acabou de tomar ao proferir esse nome, uma curva
fechada que dá direto numa parede.
– Ele está em liberdade?
E, antes que Camille pudesse aproveitar a deixa:
– E, também, que diabos ele está fazendo no meio disso?
Boa pergunta. Cada criminoso tem sua especialidade. Os assaltantes, os
tra icantes, os arrombadores, os falsários, os vigaristas, os estelionatários,
cada um vive dentro da sua esfera. Já Mouloud Faraoui, seu negócio é o
proxenetismo e seria espantoso ver surgir seu nome no meio de uma
história de assalto.
Camille conhece-o vagamente, tem um calibre um pouco elevado demais
para dar uma de informante. Eles se cruzaram vez ou outra. Um sujeito de
uma brutalidade única, que conquistou seu território na base da força,
sendo a ele atribuídos diversos homicídios. Ele é um cara astucioso e cruel,
e icou muito tempo desaparecido. Ao menos até o momento em que foi
pego por causa de uma história com a qual não tinha nada a ver, uma
emboscada: trinta quilos de ecstasy descobertos no seu carro, com suas
digitais. O tipo de traição impossível de perdoar. Por mais que ele alegasse
que aquela bolsa lhe servia apenas para ir à academia, foi parar no xadrez
com uma fúria de devastar a Terra.
– O quê? – pergunta Camille.
– Faraoui! O que diabos ele está fazendo nessa sua história? E, em
primeiro lugar, ele é seu primo? Eu não sabia...
– Não, ele não é meu primo... É mais complicado, trata-se de um
conhecido de um conhecido, entende...?
– Não, justamente não estou entendendo bem.
– Eu cuido disso e depois explico melhor.
– O senhor... “cuida” disso?
– Ora, a senhora não vai icar repetindo tudo o que eu digo
acrescentando aspas!

fevereiro•2022
Clube SPA

– O senhor está tirando uma com a minha cara?!


Michard gritou, em seguida pôs precipitadamente a mão sobre o
receptor. Camille ouve um “Perdão, querida”, balbuciado, pronunciado em
voz baixa, o que o mergulha num abismo. Essa mulher tem ilhos? De que
idade? Uma ilha? Pela sua voz, talvez ela se dirigisse a uma criança? A
comissária volta à conversa de maneira mais sóbria, mas seu nervosismo
ica ainda mais perceptível. Pela respiração junto ao telefone, Camille
percebe que ela está saindo do cômodo. Até então ela estava apenas se
sentindo incomodada por Camille; agora, algo de efervescente, guardado
por muito tempo, explode na sua voz, mas as circunstâncias a obrigam a
sussurrar:
– Me conta essa sua história direito, comandante.
– Primeiro, não é “minha” história. E para mim também são sete horas
da manhã. O que mais quero é poder explicar isso tudo, mas é preciso me
dar tempo para...
– Comandante... – Silêncio. – Não sei o que o senhor está fazendo. Eu não
entendo o que o senhor está fazendo. – Não há mais o menor vestígio de
nervosismo, a comissária diz isso como se tivesse acabado de mudar de
assunto. E é um pouco o que acontece. – Mas quero nosso relatório esta
noite, estou sendo clara?
– Sem problema.
O tempo está fresco, porém Camille está encharcado. Um suor muito
particular, febril e frio gruda nas suas costas, um suor que ele não sentia
desde o dia em que se pôs a correr atrás de Irene, no dia em que ela
morreu. Naquele dia, ele estava obstinado, pensou que faria melhor que
qualquer outro... Não, ele nem conseguia pensar. Agiu como se fosse o
único a poder fazer aquilo e se enganou: quando a encontrou, Irene estava
morta.
E como vai ser com Anne, hoje?
Dizem que os homens que perdem as mulheres são deixados por elas
sempre da mesma maneira, eis o que mais lhe causa medo.

8h
Os turcos não sabem o que perderam. Dois sacos bem grandes cheinhos
de joias. Mesmo com o que o receptor vai descontar na venda, mesmo que
eles pesassem duas vezes menos, pouco importa. Tudo está no rumo certo.
E, se eu tiver um pouco de sorte, espero conseguir mais um bom lote.

fevereiro•2022
Clube SPA

Se ainda sobrar alguma grana.


Se não sobrar, vai rolar sangue.
Para descobrir, por desencargo de consciência, é preciso continuar
sendo metódico. Manter a determinação.
Enquanto isso... que as luzes se acendam: hora da leitura!
Le Parisien. Página 3.
“Saint-Ouen: Dois mortos...”
Boa! Atravesso a rua. Chego ao Le Balto. Um café, bem escuro. Cigarro.
Café e cigarro, isso que é vida. O café aqui é de péssima qualidade, parece
que você está numa estação de trem, mas são oito horas da manhã, não vou
dar uma de madame.
Abrindo o jornal. Rufem os tambores.

SAINT-OUEN
Dois mortos em incêndio misterioso

Um incêndio de grandes proporções foi anunciado ontem por


volta do meio-dia na região de Chartriers, após uma forte
explosão no local. O corpo de bombeiros de Saint-Ouen
rapidamente extinguiu o fogo, que destruiu várias o icinas e
garagens. Vale lembrar que essa área, destinada a abrigar uma
futura zona de redesenvolvimento urbano, encontra-se
atualmente abandonada em sua quase totalidade, razão que torna
um incêndio dessa amplitude ainda mais misterioso.
Nos escombros de uma das o icinas destruídas pelo fogo, os
investigadores encontraram a carcaça de um Porsche Cayenne
quatro por quatro e dois corpos totalmente carbonizados. Foi
nesse local que a explosão ocorreu: foram identi icados vestígios
de uma grande quantidade de Semtex. A partir dos fragmentos de
componentes eletrônicos recolhidos no local, os peritos acham
que a explosão pode ter sido comandada a distância pela
utilização de um telefone celular.
Dada a amplitude da explosão, o reconhecimento dos corpos
das duas vítimas tem se apresentado particularmente
di ícil.Todos os dados convergem para um assassinato
previamente planejado de maneira a impedir qualquer espécie de
identi icação. Os investigadores esperam poder de inir se as
vítimas estavam vivas ou mortas no momento da explosão...

fevereiro•2022
Clube SPA

Fim de papo.
“Os investigadores esperam poder de inir...” Faz-me rir! Posso apostar o
que quiserem que eles não chegam nem perto. E, se os tiras conseguirem
descobrir quem são os irmãos Yildiz, que não aparecem em nenhum
registro policial, deposito a parte deles no Fundo de Órfãos da Polícia.
A hora se aproxima, entrar no trem periférico, saída pela Porte Maillot,
caminho de acesso, Neuilly-sur-Seine.
Como é bela a vizinhança dos burgueses. Se fossem menos babacas,
quase teria vontade de me juntar a eles. Estaciono a dois passos do liceu,
garotas de treze anos vestem roupas que custam treze salários mínimos.
Às vezes, lamento que a Mossberg não seja reconhecida como um
instrumento de igualdade social.
Deixo o liceu para trás, viro à direita. A casa é menor que as outras dessa
rua, a entrada é mais modesta e, porém, todo ano, nas mãos do
proprietário desse lugar, passam somas de assaltos e de arrombamentos
su icientes para construir uma torre em La Défense4. Ele é um cara
descon iado, escorregadio, que muda de protocolo incessantemente.Teve
de mandar um dos seus capangas buscar os dois sacos de joias no armário
da Gare du Nord.
Um lugar para recolher a mercadoria, outro para avaliar, um terceiro
para negociar.
E ele cobra caro pela segurança da transação.

9h30
Camille está queimando de vontade de interrogá-la. O que ela viu
exatamente na galeria Monier? Mas mostrar-lhe seu verdadeiro nível de
ansiedade é admitir que ela corre perigo, aterrorizá-la, acrescentar
angústia à dor.
De qualquer modo, ele é obrigado a voltar a esse assunto.
– Ahn? – grita Anne. – Vi o quê? O quê?
Quanto ao repouso, a última noite não lhe serviu de nada, Anne saiu dela
mais exausta do que entrou. Está extremamente nervosa, constantemente
à beira das lágrimas, percebe-se pelo tremor da sua voz, mas ela se
exprime com um pouco mais de clareza que na véspera, as sílabas se
articulam melhor.
– Eu não sei – diz Camille. – Pode ser qualquer coisa.
– O quê?

fevereiro•2022
Clube SPA

Camille abre as mãos.


– É só para ter certeza, entende?
Não, Anne não entende. Mas ela aceita tentar se lembrar, inclina a cabeça
para olhar para Camille de um outro ângulo. Ele fecha os olhos; busque se
acalmar, tente me ajudar.
– Você chegou a ouvi-los falar?
Anne não se move, ele não tem certeza de que ela tenha entendido a
pergunta. Em seguida, ela faz um gesto evasivo, impossível de interpretar;
Camille se inclina.
– Sérvio, eu acho...
Camille tem um sobressalto.
– Como assim, “sérvio”? Você conhece palavras sérvias?
Ele se demonstra extremamente cético. Para ele, eslovenos, sérvios,
bósnios, croatas, cossovos... tem cruzado com eles cada vez mais, ondas
deles chegam a Paris, mas, embora tenha conhecido alguns, nunca se
preocupou em diferenciar a língua deles.
– Não, não tenho certeza...
Então ela se rende, desiste e desaba pesadamente sobre os travesseiros.
– Espere, espere – insiste Camille –, é importante...
Anne abre os olhos de novo e articula com muito esforço: – Kraj... eu
acho.
Camille não consegue acreditar; é como se ele de repente descobrisse
que a escrivã do juiz Pereira falava japonês luentemente.
– Kraj? É sérvio?
Anne concorda com um gesto de cabeça, mas não parece estar tão
segura.
– Quer dizer “pare”.
– Mas... Anne, como você sabe disso?
Anne fecha os olhos, com ar de quem diz que Camille é realmente
fastidioso, que é preciso repetir as coisas todo o tempo.
– Organizei viagens para os países do leste europeu durante três anos...
Isso é imperdoável. Ela lhe explicou mil vezes. Tem quinze anos de
experiência em viagens internacionais. Antes de trabalhar com gestão, ela
organizava viagens para quase todos os destinos do mundo.
Principalmente para todos os países do leste europeu, com exceção da
Rússia. Da Polônia à Albânia.
– Todos eles falam sérvio?
Anne limita-se apenas a fazer não com a cabeça, mas se vê obrigada a
explicar; com Camille, ela sempre tem que explicar.

fevereiro•2022
Clube SPA

– Eu ouvi uma só voz... No sanitário. A outra eu não sei... – Ela articula


mal as palavras, mas ele compreende bem. – Camille, eu não tenho
certeza...
Mas, para ele, a sua suspeita se con irma: o que grita, que rouba as joias,
que empurra seu cúmplice, esse é sérvio. E o que se encarrega da vigilância
do local: Vincent Hafner.
Foi ele que espancou Anne, ele que telefonou para o hospital, ele que
subiu até o quarto, provavelmente ele que entrou no apartamento de Anne.
E ele não tem sotaque.
A recepcionista é categórica.
Vincent Hafner.

Na hora da tomogra ia, Anne pede um par de muletas. Só para


compreender o que ela quer eles já demoram um tempo. Camille traduz.
Ela decidiu ir a pé até a sala. Os enfermeiros levantam os olhos para o teto
e se preparam sem cerimônia para carregá-la até uma cadeira de rodas; ela
grita, empurra-os e se senta sobre a cama de braços cruzados. Não é não.
Desta vez, não há dúvida, todo mundo entende a mensagem. A
enfermeira encarregada pelo andar chega; Florence, com seus grandes
lábios de peixe, segura de si; isso não é nada sensato, senhora Forestier,
vamos transportar você só até a sala de tomogra ia, no andar de baixo, vai
ser bem rápido. Ela sai sem esperar resposta, seu comportamento todo
visando demonstrar que está com a cabeça cheia de trabalho e que não vai
se deixar azucrinar por atitudes de crianças mimadas... Mas, antes que
chegue à porta do quarto, ela ouve a voz de Anne, espantosamente clara, as
sílabas ainda um tanto indistinguíveis, mas o sentido não escapa a
ninguém: nem pensar, ou eu vou a pé ou ico aqui.
A enfermeira volta até ela, Camille tenta defender a causa de Anne, a
enfermeira o fuzila com os olhos, quem é esse aí, para início de conversa?
Ele recua, encosta-se na parede, na sua opinião, a enfermeira acabou de
arruinar sua última chance de encontrar uma saída simples e pací ica. Ela
logo vai descobrir isso.
O andar inteiro começa a tremer, cabeças saem pelas portas e
despontam no corredor, as enfermeiras tentam restabelecer a ordem,
voltem para os quartos, não há nada a ver aqui, então, como esperado,
chega o médico-residente, o indiano com o sobrenome de oitenta letras,
ele trabalha no andar desde a noite até a manhã, deve fazer plantões tão
longos quanto seu patronímico, pago como uma faxineira; normal, a inal,

fevereiro•2022
Clube SPA

ele é indiano. Ele se aproxima de Anne. Escuta o que ela diz com atenção e,
enquanto inclina a cabeça na sua direção, observa seus hematomas; essa
paciente, nesse estado, está bem feia, mas isso não é nada perto do que a
aguarda dentro de alguns dias, os dias seguintes, a evolução desse tipo de
hematomas é muito assustadora. Tenta dissuadi-la com uma voz branda.
Antes de tudo, ele a ausculta, ninguém entende o que ele está fazendo, a
tomogra ia não espera pelos pacientes, horário é horário. Ele, pelo
contrário...
A enfermeira começa a icar sem paciência, os enfermeiros tentam não
perder as estribeiras. O residente, por sua vez, termina a auscultação,
então sorri para Anne e pede um par de muletas. Seus colegas se sentem
traídos.
Camille olha para a silhueta de Anne, apoiada sobre as muletas, erguida
pelos ombros por um enfermeiro de cada lado.
Ela caminha lentamente, mas caminha. É um começo.

10h
– Aqui não é extensão do comissariado...
Um escritório numa desordem indescritível. Ele é cirurgião, tomara que
as coisas sejam mais organizadas na sua cabeça.
Hubert Dainville, médico responsável pelo serviço de traumatologia.
Eles se cruzaram na véspera, na escada de emergência, quando Camille
corria atrás do seu fantasma. Visto rapidamente, ele parecia não ter idade
de inida. Hoje, ele tem cinquenta anos. No mínimo. Seus cabelos brancos
são naturalmente ondulados, nota-se que são seu orgulho, o emblema
irresistível da sua virilidade madura; aquilo não é um penteado, é uma
concepção de mundo. Unhas feitas. O tipo de homem que veste camisas
azuis de gola branca e que põe um lenço no bolso dos ternos. Um garanhão
de meia-idade. Ele deve ter tentado passar por cima de metade dos seus
funcionários e deve atribuir a seu charme conquistas que não são mais que
consequência das próprias estatísticas. Seu jaleco está sempre
impecavelmente passado, mas ele agora já não tem mais aquela isionomia
abobada que tinha ontem na saída das escadas. Pelo contrário, parece
autoritário. E ele fala com Camille enquanto se ocupa de outra coisa, como
se o assunto estivesse encerrado; não tem tempo para icar perdendo.
– Eu também não – diz Camille.
– O quê?

fevereiro•2022
Clube SPA

O doutor Dainville levanta a cabeça, as sobrancelhas franzidas. Não


entender algo o incomoda. Não está acostumado. Ele para de revirar seus
papéis.
– Estou dizendo que eu também não, não tenho tempo para icar
perdendo – continua Camille. – Vejo que o senhor está bastante ocupado.
Acontece que eu também tenho muito trabalho. O senhor tem suas
responsabilidades, e eu tenho as minhas.
Dainville faz beiço. Não se sente muito convencido pela argumentação,
volta para a sua papelada. E, como o policialzinho permanece à porta,
como não entendeu que a conversa havia terminado:
– Esta paciente precisa de repouso – diz ele, en im. – Ela sofreu um
trauma muito violento. – Nesse momento, ele encara Camille. – Seu estado
atual é um milagre, ela poderia estar em coma. Poderia estar morta.
– Também poderia estar em casa. Ou no trabalho. Veja bem, ela poderia
até ter terminado suas compras. O problema é que ela cruzou o caminho
de um cara que, também ele, não tinha tempo a perder. Um cara como o
senhor. Que acha que as preocupações dele são mais importantes que as
dos outros.
Dainville levanta bruscamente os olhos para Verhoeven. Diante desse
tipo de homem, é muito fácil entrar numa rixa; ele tem uma cabeleira
branca eriçada como a crina de um galo de briga. Irascível. Briguento. Ele
mede Camille de cima a baixo.
– Sei que a polícia se comporta em qualquer lugar como se estivesse em
casa, mas nossos quartos não são salas de interrogatório, comandante. Isto
aqui é um hospital, não uma academia de polícia. A gente vê o senhor
correndo como um louco pelos corredores, assustando os funcionários...
– O senhor acha que estou correndo pelos corredores para fazer
exercício?
Dainville elimina o argumento com um gesto.
– Se essa paciente representa algum perigo, para ela ou para o
estabelecimento, trans ira-a para um lugar mais seguro. Caso contrário,
trate de nos deixar trabalhar em paz.
– Quantas vagas vocês têm no necrotério?
Dainville, surpreso, faz um breve movimento seco com a cabeça, como
sempre, o seu temperamento de galo de briga.
– Eu estou perguntando isso – continua Camille – porque, enquanto não
pudermos interrogar essa mulher, o juiz não vai ordenar nenhuma
transferência. O senhor não faz uma cirurgia sem ter certeza do que está

fevereiro•2022
Clube SPA

fazendo, conosco é a mesma coisa. E nosso problema se parece muito com


o seu. Quanto mais tarde a gente intervém, maior é o estrago.
– Não entendo suas metáforas, comandante.
– Vou ser mais claro. É possível que um assassino esteja à procura dela.
Se o senhor me impedir de trabalhar e ele vier fazer um massacre no seu
hospital, o senhor terá dois problemas. Vagas insu icientes no necrotério e,
como sua paciente está em estado de responder a nossas perguntas, uma
acusação por obstruir uma investigação policial.
Esse tal de Dainville é um sujeito bem particular, ele funciona como um
interruptor: a corrente elétrica passa ou não passa. Entre um ponto e
outro, nada. E ali, de repente, ela passa. Ele olha para Camille, jovial, um
sorriso bem sincero, dentes de iguais proporções, bem alinhados,
porcelana de boa qualidade. E o doutor Dainville gosta de resistência; ele é
ríspido, altivo, desagradável, mas gosta de uma complicação. Agressivo, até
mesmo combativo, mas, no fundo, gosta de ser derrotado. Camille já
conheceu toneladas de homens como esse. Eles mordem até você não
aguentar mais e depois assopram.
É o seu lado feminino, talvez por isso seja médico.
Eles se olham. Dainville é um homem inteligente, ele percebe as coisas.
– En im... – diz Camille com calma. – Como podemos colocar as coisas em
prática?

10h45
– Eu não vou ser operada – diz ela.
São necessários alguns segundos para Camille absorver a informação.
Ele bem que gostaria de demonstrar entusiasmo, mas opta pelo
comedimento.
– Muito bem... – diz ele em um tom encorajador.
As radiogra ias e as tomogra ias con irmam o que o jovem residente lhe
disse na véspera. Será feita uma cirurgia dentária, mas o resto vai voltar ao
lugar naturalmente. Talvez iquem algumas cicatrizes próximo aos lábios e
principalmente na bochecha esquerda. O que quer dizer “algumas”?
Várias? Visíveis? Anne tinha se examinado minuciosamente no espelho; os
lábios incharam tanto que é di ícil saber o que vai permanecer ou
desaparecer. Quanto à cicatriz na bochecha, enquanto estiver coberta por
pontos, impossível ter uma ideia.
Questão de tempo, disse o médico-residente.

fevereiro•2022
Clube SPA

O rosto de Anne diz nitidamente que ela não acredita nisso. E tempo
também é exatamemte o que Camille não tem de sobra.
Ele foi até lá para transmitir uma mensagem essencial. Estão a sós no
quarto.
Ele espera alguns segundos, então fala:
– Espero que você consiga reconhecê-los...
Anne faz um gesto vago que pode querer dizer muitas coisas.
– O que atirou em você, você me disse que era bem alto...
Como ele era?
É ridículo tentar fazê-la falar agora.
A Perícia Judiciária vai recomeçar tudo do zero; insistir dessa mesma
maneira chega a ser até contraprodutivo. Porém:
– Charmoso – diz Anne.
Anne articula as palavras com esforço. Camille se precipita:
– O quê... Como assim, “charmoso”?
Anne olha ao redor. Camille não acredita nos seus olhos: ela acaba de
esboçar uma espécie de sorriso. Vamos chamar isso de sorriso para
resumir, pois seus lábios não izeram mais que se esticar, mostrando três
dentes quebrados:
– Charmoso... como você...
Ao longo dos dias de agonia de Armand, Camille teve essa sensação
várias vezes: o menor sinal de melhora já lhe permite manifestar o mais
inabalável otimismo. Anne mal faz uma piada e Camille já poderia ir
correndo até a recepção exigir sua alta. A esperança é mesmo uma cilada.
Ele tem vontade de responder no mesmo tom, mas foi pego
desprevenido. Ele começa a gaguejar, Anne já fechou os olhos de novo.
Camille pelo menos tem certeza de que ela está lúcida, de que entende o
que ele diz. Ele está prestes a arriscar mais uma vez, mas é interrompido
pelo celular de Anne, que começa a vibrar sobre a mesa de cabeceira.
Camille o apanha. Nathan.
– Não se preocupe – articula Anne de imediato, fechando os olhos.
Ela ganha o ar paciente da irmã mais velha, levemente excedida. Camille
discerne a voz do irmão, insistente, febril.
– Eu já disse tudo o que tinha a dizer na minha mensagem...
Anne faz bem mais esforços para ingir falar normalmente do que
quando fala com Camille. Ela quer se fazer entender, mas, sobretudo,
acalmar o irmão, tranquilizá-lo.
– Não há mais nada a saber – acrescenta ela, quase demonstrando
alegria. – E eu não estou sozinha, você não tem com que se preocupar.

fevereiro•2022
Clube SPA

Ela levanta os olhos para o alto, em direção a Camille, Nathan deve estar
pegando no seu pé.
– Mas é claro que não! Ouça, tenho que fazer uma radiogra ia agora, eu
te ligo depois. Tá, eu também...
Ela desliga totalmente o celular e o passa para Camille, suspirando.
Ele aproveita a ocasião, pois o momento íntimo dos dois não vai durar
muito tempo. Precisa dizer o essencial:
– Anne... eu não deveria me encarregar do seu caso, entende?
Ela entende. Responde: “Ahã”, balançando a cabeça, isso quer dizer sim.
– Entende mesmo?
Ahã... Camille solta um suspiro; evacuar a pressão na cabeça, para ele,
para ela, para os dois.
– Fui pego um pouco de surpresa, sabe. E depois...
Ele estende a mão até ela, acaricia-a com a ponta dos dedos. Sua mão é
menor, mas masculina, coberta de veias sobressalentes; Camille sempre
tem as mãos quentes. Para não a apavorar, ele precisa escolher bem o que
vai dizer. Não dizer: o assaltante que espancou você se chama Vincent
Hafner, ele é um animal, tentou matá-la e tenho certeza de que vai tentar
de novo.
Em vez disso, dizer: estou aqui, você está em segurança.
Evitar: minha superior não acredita em mim, mas, se eu estiver certo, ele
é completamente maluco e não tem medo de nada.
Preferir: vamos encontrá-lo com rapidez e tudo terá terminado. Para
isso, é preciso que você nos ajude a reconhecê-lo. Se puder.
Esquecer: vamos deixar um guarda municipal na porta do seu quarto
durante o dia, isso é totalmente inútil, pois eu lhe garanto: enquanto esse
cara estiver em liberdade, você corre perigo. Nada vai detê-lo.
Não mencionar: a passagem desses caras pelo seu apartamento, o roubo
dos documentos, a organização que se impuseram para encontrar você.
Nem os meios de que dispõe Camille, quase pí ios. Em grande parte por
sua própria culpa.
Dizer: tudo vai dar certo, não se preocupe.
– Eu sei...
– Você vai me ajudar, Anne, não é? Você vai me ajudar?
Anne balança a cabeça.
– Não diga a ninguém que nos conhecemos, ok?
Anne diz que sim. Porém, nos seus olhos, há um lampejo de
descon iança. Uma nuvem de mal-estar paira sobre eles.
– O guarda, do lado de fora, por que ele está ali?

fevereiro•2022
Clube SPA

Ela o avistou no corredor quando Camille entrou. Ele levanta as


sobrancelhas. Normalmente, ou ele mente com um desembaraço
surpreendente ou demonstra a ingenuidade de uma criança de oito anos. É
exatamente o tipo de homem que consegue passar do melhor para o pior
sem transição.
– É...
Uma única sílaba é su iciente. Para alguém como Anne, essa sílaba
sequer é necessária. Diante de algo diferente no olhar de Camille, diante de
um milésimo de segundo de hesitação, ela entende o que está acontecendo.
– Você acha que ele vai vir aqui?
Camille não tem tempo de reagir:
– Está me escondendo algo?
Camille hesita apenas por um segundo, quando ele pensa em responder
que não, Anne já entendeu que sim. Ela o encara ixamente. Ele se sente
totalmente inútil, sente a solidão que compartilham justo nesse momento
em que deveriam poder apoiar um ao outro. Anne balança a cabeça, parece
se perguntar: o que vai acontecer comigo?...
– Ele veio até aqui... – diz ela en im.
– Honestamente, não faço ideia.
Não é dessa maneira que responde um homem que, honestamente, não
faz ideia. Anne começa a tremer. Primeiro os ombros, os braços, o rosto
empalidece, ela olha para a porta, a decoração do quarto, como se
acabassem de lhe anunciar que esse lugar seria o último que iria conhecer,
imagine se alguém mostrar para você o seu leito de morte. Desajeitado
como nunca, Camille aumenta a confusão.
– Você está em segurança.
É como se ele a tivesse insultado.
Ela vira a cabeça para a janela e começa a chorar.

O mais urgente agora é que ela descanse. Que recupere as forças, toda a
energia de Camille está voltada para esse único objetivo. Se ela não
reconhecer ninguém nas fotos, a investigação vai se tornar uma estrada em
linha reta rumo a um penhasco. Se ela der uma pista, apenas um primeiro
passo, Camille acredita que é capaz de completar o trajeto inteiro.
E acabar com isso de uma vez. Logo.
Ele sente vertigens, como se tivesse bebido, sua pele parece crepitar, a
realidade parece lutuar ao seu redor.
Onde ele foi se meter?

fevereiro•2022
Clube SPA

Como isso tudo vai acabar?

12h
O técnico da Perícia Criminal tem um sobrenome polonês, uns dizem
Krystkowiak, outros pronunciam Krystoniak, só Camille pronuncia
correto: Kryszto iak... Um sujeito com costeletas, seu lado roqueiro
nostálgico. Ele carrega seu equipamento dentro de uma maleta com cantos
de alumínio. O doutor Dainville deu a eles uma hora, presumindo que
poderiam ultrapassar duas. Camille sabe que serão quatro. O perito, que já
fez milhares de sessões dessas na sua carreira, sabe que isso pode levar
seis horas. E chegar a dois dias.
Ele dispõe de uma pasta com centenas de fotogra ias, deve fazer uma
triagem severa. O objetivo é não mostrar imagens demais para a
testemunha porque, após dado momento, todos os rostos começam a se
parecer e o reconhecimento se torna totalmente inútil. Ele inseriu no
conjunto a foto de Vincent Hafner e de três outros sujeitos, conhecidos por
serem seus cúmplices, para ver no que vai dar. E inseriu também tudo o
que a base de dados da polícia conhece de sérvios ou parentescos.
Ele se curva para Anne:
– Bom dia, senhorita...
Ele tem uma bela voz. Branda. Gestos lentos, precisos, tranquilizadores.
Anne ajeita-se sobre a cama, o rosto túrgido de cima a baixo, um monte de
travesseiros debaixo dos quadris, dormiu durante uma hora. Para mostrar
que quer contribuir, ela esboça uma espécie de sorriso, sem abrir a boca
por causa dos dentes quebrados. Enquanto abre a maleta para dispor seu
material, o perito recita as frases usuais, que tem sempre repetido. Há
muito tempo.
– Pode ser que tudo corra bem rápido, às vezes estamos com sorte!
Ao dizer isso, ele dá um amplo sorriso, para encorajá-la. Sempre busca
trazer um toque de leveza à situação porque, quando precisa mostrar
fotogra ias a uma pessoa, ou é porque ela levou uma surra ou assistiu a
uma cena abrupta e violenta, ou porque foi violentada ou alguém foi
assassinado diante dos seus olhos, coisas desse tipo, portanto, raramente a
atmosfera é descontraída.
– Mas, certas vezes – prossegue ele com um olhar sério, ponderado –, é
preciso tempo. Então, quando a senhorita se sentir cansada, me avise, ok?
Não estamos com pressa...

fevereiro•2022
Clube SPA

Anne balança a cabeça. Seu olhar pálido se direciona para Camille, ela
entende. Faz um gesto positivo.
É o sinal, o perito diz:
– Certo, vou lhe explicar como vamos proceder.

12h15
Ao vê-lo, e embora não esteja de bom humor, Camille pensou que aquilo
era uma pegadinha ou uma provocação da comissária Michard, mas não,
nada mais sério. O policial uniformizado que lhe enviaram é o guarda com
quem cruzou na véspera na galeria Monier, o sujeito franzino de rugas
roxas sob os olhos, que parece ter saído do túmulo. Camille, se fosse
supersticioso, veria nele um mau agouro. Ora, na verdade, ele é
supersticioso. Daqueles que fazem gestos para evitar maus presságios; ele
tem receio de prenúncios negativos e, ao ver junto à porta do quarto de
Anne um guarda com a cara de um morto, tem di iculdade em permanecer
calmo.
O guarda esboça uma saudação com o indicador em direção à têmpora,
que Camille interrompe no meio.
– Verhoeven – diz ele.
– Comandante... – responde o guarda estendendo-lhe uma mão
esquelética, fria.
Um metro e oitenta e três, calcula Camille.
E bem organizado. Ele já trouxe para o corredor a melhor cadeira da sala
de espera. Ao seu lado, apoiado contra a parede, um saquinho azul-
marinho. Sua esposa deve lhe preparar sanduíches. Tem também uma
garrafa térmica, mas o que chama mais a atenção de Camille é o cheiro de
cigarro. Se fosse oito da noite e não meio-dia, ele o botaria para fora no
mesmo segundo, pois, no primeiro cigarro, o assassino à espreita
acompanha seu percurso, registra minuciosamente seu ritualzinho; no
segundo cigarro, ele calcula o tempo; no terceiro, ele o deixa sair e, assim
que o guarda se encontrar o mais longe possível, ele não precisa fazer mais
que subir ao quarto e cobrir Anne de tiros com sua espingarda calibre 12.
Foram lhe mandar o guarda mais alto, mas também o mais imbecil. Por
enquanto, isso não é tão grave assim. Camille não consegue imaginar o
assassino voltando tão rápido e em plena luz do dia.
O turno da noite é que será nevrálgico. Ele vai descobrir isso por si
mesmo. Mas, ainda assim, Camille insiste.

fevereiro•2022
Clube SPA

– Não dê um passo para fora daqui, está me entendendo?


– Sem problema, comandante! – responde o guarda com entusiasmo.
O tipo de resposta capaz de assustar qualquer um.

12h45
No outro extremo do corredor, encontra-se uma pequena sala de espera
na qual ninguém nunca entra, sua localização é inapropriada, é de
perguntar o que ela faz ali, quiseram transformá-la em escritório, mas é
proibido, explicou Florence, a enfermeira que quer beijar a vida inteira
com a boca. Parece que há normas, ela deve ser mantida tal como está,
inútil. É o regulamento. Ele é europeu. Com isso, os funcionários
começaram a estocar material dentro, pois eles têm problemas com faltas
de espaço no hospital. Quando chega a comissão de segurança, eles
armazenam tudo em carrinhos no subsolo, depois sobem tudo de volta, a
comissão de segurança ica satisfeita e carimba o formulário como devido.
Camille empurra duas pilhas de caixas de curativos e puxa duas cadeiras.
No canto de uma mesa baixa, faz uma breve reunião com Louis (terno
gra ite Cifonelli, camisa branca Swann & Oscar, sapatos Massaro, tudo feito
sob medida. Louis é o único tira da Brigada Criminal a vestir o montante do
seu salário anual). Ele mantém Verhoeven atualizado sobre o
desenvolvimento das investigações em curso, a turista alemã se suicidou
de fato, o motorista das facadas foi identi icado, ele está foragido, vão
capturá-lo em dois ou três dias, o criminoso de setenta e um anos
confessou seu motivo: ciúmes. Camille despacha os casos, eles chegam ao
que lhe preocupa.
– Se a senhora Forestier con irmar que se trata de Hafner... – começa
Louis.
– Mesmo se ela não o reconhecer – corta Camille –, isso não quer dizer
que não é ele!
Louis respira fundo e discretamente. Esse nervosismo não faz parte do
comportamento do seu chefe. Realmente, tem algo de errado. E não será
fácil lhe explicar que todos já entenderam do que se trata...
– Claro – admite Louis. – Ainda que ela não o reconheça, talvez seja
Hafner mesmo. Mas tem também o fato de que ele havia desaparecido
totalmente de circulação. Contatei os colegas que se encarregaram do
assalto de janeiro, e eles se perguntam, como quem não quer nada, por que
não foram encarregados desse caso...

fevereiro•2022
Clube SPA

Camille dispensa a questão com um gesto, que se fodam.


– Ninguém sabe onde ele se encontrava desde janeiro, os rumores
circularam bastante, foi mencionada possibilidade de ele estar no exterior,
no litoral sul. Com um homicídio nas costas, ainda mais no im da carreira,
é possível compreender por que ele tem sido tão discreto, mas até seus
contatos mais próximos não parecem saber...
– “Não parecem...”
– Pois é, eu pensei a mesma coisa, alguém deve saber, ninguém some
assim de um dia para o outro. O espantoso é esse súbito retorno. Seria
mais concebível imaginá-lo ainda fora de circulação.
– Algum informante em potencial?
A questão da informação se mantém inteiramente aberta. Bandidos que
roubam lojas e que contam com informações privilegiadas são
encontrados todos os dias, mas os verdadeiros pro issionais, quando o
roubo esperado vale os riscos corridos em caso de problemas, eles não
passam para a ação sem algumas certezas. Portanto, a fonte da informação
é sempre o primeiro alvo que interessa à polícia, o jogo começa geralmente
nesse ponto. No que concerne à galeria Monier, a funcionária que chegou
atrasada foi considerada fora de suspeita. Então, naturalmente, é de supor
que...
– Vamos perguntar também à senhora Forestier o que ela estava fazendo
na galeria Monier – diz Camille.
A pergunta será feita por pura formalidade porque, no fundo, ela nem
sequer supõe alguma resposta. Ele a fará porque tem de fazê-la, porque,
em tempos comuns, é a pergunta que faria, nada mais. Ele nunca entende
nada da agenda de Anne, quais dias ela está em Paris, quais dias não está,
tem di iculdade em memorizar suas viagens, seus compromissos e se
contenta apenas em saber se poderá vê-la essa noite ou amanhã, o dia
seguinte é uma grande incógnita.
No entanto, Louis Mariani é um policial de primeira. Organizado,
inteligente, bem mais culto que o necessário, intuitivo e... e...? E
descon iado. Muito bem! Uma das virtudes cardinais de um policial.
Por exemplo, quando a comissária Michard duvida que Hafner tenha
entrado no hospital, no quarto de Anne, com uma espingarda, ela está
apenas sendo cética, mas, quando ela pergunta a Camille que diabos ele
tem feito e exige seu relatório diário, ela está descon iada. Ou quando
Camille se pergunta se Anne não teria visto algo além do rosto dos
assaltantes, ele está descon iado.

fevereiro•2022
Clube SPA

E, quando Louis investiga sobre uma mulher agredida durante um


assalto, ele se interroga sobre a razão que ela tinha em se encontrar nesse
local, precisamente nesse instante. Em um dia de semana no qual ela
deveria estar trabalhando. No horário de abertura das lojas. Isto é, quando
não há quase nenhum outro transeunte nem outro cliente além dela. Ele
poderia ter perguntado isso a ela, mas, de maneira inexplicável, é sempre
seu chefe que interroga essa mulher; seria quase possível acreditar que ela
é seu domínio reservado.
Portanto, Louis não a interrogou. Ele escolheu outra alternativa. Camille
apresentou o problema, formalidade cumprida, ele está prestes a abordar
o tópico seguinte quando é interrompido pelo gesto de Louis, que estende
o braço para baixo e mexe com calma em seu alforje. Ele tira um
documento de dentro. Há algum tempo, tem posto óculos para ler.
Geralmente, pensa Camille, a hipermetropia chega mais tarde... Mas, en im,
que idade tem Louis? É um pouco como se ele tivesse um ilho, é incapaz
de se lembrar da sua idade de primeira, pergunta isso pelo menos três
vezes por ano.
O documento é uma fotocópia com o cabeçalho da joalheria Desfossés.
Camille coloca os óculos por sua vez. Ele lê “Anne Forestier”. Trata-se de
um fac-símile de uma ordem de compra para um “relógio de luxo”,
oitocentos euros.
– A senhora Forestier ia retirar uma encomenda solicitada dez dias
antes.
A joalheria havia requerido esse prazo para mandar fazerem a gravação.
O texto está contido na nota, em grandes letras capitais, porque não se
pode cometer erros num presente desse preço, um erro de ortogra ia no
nome, imagine só a cara da cliente... Chegam até a pedir que ela mesma
escreva, com a própria mão, assim, não tem como discutir em caso de
algum problema. O documento traz as letras grandes de Anne.
O nome a ser gravado no dorso do relógio: “Camille”.
Silêncio.
Os dois homens retiram os óculos. O sincronismo deles acentua o
embaraço. Camille não levanta os olhos, empurra levemente a fotocópia
para seu adjunto.
– Ela é... uma amiga.
Louis balança a cabeça. Uma amiga. Ok.
– Próxima.
Próxima. Ok. Louis percebe que icou para trás. Que perdeu alguns
episódios na vida de Verhoeven. Ele avalia a extensão da sua lacuna o mais

fevereiro•2022
Clube SPA

rápido que pode.


Ele parou em Irene, há quatro anos. Eles se conheciam bem, gostavam
um do outro, Irene chamava-o de “meu Loulouzinho”, ela o fazia corar até
as orelhas quando o questionava sobre sua vida sexual. Depois, após a
morte de Irene, foi a vez da clínica onde ele ia regularmente até que
Camille lhe dissesse que preferia icar só. Após isso, eles passaram a se
cruzar vez ou outra. E, meses depois, foi necessária a manipulação do
comissário Le Guen para que Camille voltasse5, coagido e forçado, aos
casos “di íceis”, casos de homicídio, de sequestro, prisão em cativeiro,
assassinato... e para que ele pedisse a Louis que voltasse para sua unidade.
Entre a época da clínica e os dias atuais, Louis não sabe o que Camille fez
da vida. Ora, na vida de um homem tão regrado quanto Verhoeven, o
surgimento de uma mulher deveria se revelar nitidamente por diversos
sinais, pequenas modi icações no comportamento, na organização do
tempo, coisas para as quais Louis geralmente tem grande sensibilidade. E
ele não viu nada, não percebeu nada. Até hoje, diria que a presença de uma
mulher na vida de Verhoeven seria apenas algo casual, porque uma relação
amorosa intensa na vida de um viúvo de natureza depressiva seria algo
excepcional. E, porém, essa exaltação de hoje, essa chama... Existe aí uma
contradição que Louis não consegue resolver.
Louis olha para os óculos sobre a mesa, como se esperasse que eles lhe
permitissem ver melhor a situação: então Camille tem uma “amiga
próxima”. Ela se chama Anne Forestier. Camille pigarreia.
– Não estou lhe pedindo que se envolva mais com isso, Louis. Já estou
envolvido até o pescoço. Não preciso que me lembrem de que estou agindo
contra as regras, isso interessa a mim e somente a mim. E você não tem por
que dividir esse tipo de risco comigo. – Ele encara seu adjunto. – Não estou
pedindo nada além de um pouco de tempo, Louis. – Silêncio. – Preciso
resolver esse caso o mais rápido possível. Antes que Michard descubra que
eu menti para me encarregar de uma investigação envolvendo uma pessoa
íntima. Se prendermos os caras logo, tudo isso se torna passado. Ou, pelo
menos, eu posso tentar dar um jeito depois. Mas se, em vez disso, o caso se
arrastar muito e me descobrirem, você conhece a Michard, ela vai armar o
maior barraco. E não há nenhuma razão para que você também seja
prejudicado.
Louis parece não estar presente, ele permanece pensativo, olha ao redor,
é como se aguardasse a vinda de um garçom para fazer seu pedido. En im,
ele sorri tristemente e aponta para a fotocópia.

fevereiro•2022
Clube SPA

– Isso não vai ajudar muito a investigação! – diz ele. Tem o tom de um
homem que esperava por uma descoberta, mas que está totalmente
desapontado. – O senhor não acha? Camille é um nome bastante comum.
Não dá nem para saber se ele se refere a um homem ou a uma mulher...
E, como Camille não responde:
– O que o senhor quer que façamos com isso... – conclui ele.
Ajusta o nó da gravata.
E afasta sua mecha, mão esquerda.
Levanta-se, deixando o papel sobre a mesa. Camille o recolhe, amassa-o
em formato de bola e en ia-o no bolso.

13h15
O técnico da Perícia Criminal acabou de recolher suas coisas e deixar o
hospital. Ele disse:
– Obrigado, acho que trabalhamos bem.
A frase que pronuncia habitualmente, qualquer que seja o resultado.
Apesar das vertigens que isso provoca, Anne se levanta, volta ao
banheiro. Ela não pode resistir à necessidade de se olhar, de veri icar a
dimensão do estrago. Agora, sem as bandagens ao redor da cabeça, vê
apenas os cabelos curtos e sujos, foram raspados em duas regiões para que
fossem feitos os pontos. É como se houvesse buracos na sua cabeça. Há
pontos também sob a mandíbula. Hoje, o rosto parece ainda mais
volumoso; os primeiros dias são assim, todo mundo repete isso, vai inchar,
sim, eu sei, você já me disse, cacete, mas ninguém chegou a descrever o
efeito real. O rosto in la como um balão, ica congestionado como o de um
alcoólatra. O rosto de uma mulher agredida evoca a degradação, Anne
padece de um violento sentimento de injustiça.
Ela passa os dedos sobre as maçãs do rosto, sente uma dor abafada,
difusa, insidiosa, que parece ter se instalado ali por toda a eternidade.
E esses dentes, meu Deus, eles a deixam com uma isionomia deplorável,
ela não sabe por que, para ela, é como se tivessem feito a remoção de um
seio; sente-se integralmente violada. Não é mais a mesma, não está mais
inteira, vão lhe colocar dentes postiços, ela nunca mais vai se recuperar
desse martírio.
Aí está. Ela acabou de proceder ao reconhecimento dos assaltantes,
dezenas de fotos passaram pelos seus olhos. Fez como lhe pediram,

fevereiro•2022
Clube SPA

demonstrou-se obediente, comportada, apontou com o indicador quando


reconheceu a foto dele.
É ele.
Como vai acabar isso tudo?
Camille sozinho não tem condições de protegê-la, porém, com quem ela
poderia contar diante de um homem que quis matá-la? Que,
provavelmente, quer terminar o serviço? Assim como ela. Cada um tenta
terminar com aquilo do seu jeito.
Anne enxuga as lágrimas, procura lenços de papel. Um baita trabalho
para assoar esse nariz fraturado.

13h20
Graças à minha experiência, acabo quase sempre obtendo o que quero.
Nesse momento, estou recorrendo a medidas drásticas porque tenho
pressa, mas também porque faz parte da minha natureza. Sou assim,
impaciente e impetuoso.
Preciso de dinheiro e não vou perder o que ganhei com tanto suor. Esse
dinheiro, para mim, é como um fundo de previdência, só que muito mais
seguro.
E não vou permitir que qualquer um venha surrupiar minhas
expectativas para o futuro.
Então vou tratar de acelerar o processo.

Vinte minutos de exame atento do local após ter percorrido os arredores


primeiro a pé, depois de carro, depois de novo a pé. Ninguém. Fico ainda
uns dez minutos observando as redondezas com o binóculo. Con irmo
minha vinda enviando um , aperto a passo e atravesso em frente à
usina abandonada, aproximo-me do caminhão, abro a porta traseira, fecho
atrás de mim.
O veículo está estacionado numa instalação industrial desativada, esse
cara sempre arruma uns lugares assim, não sei como ele consegue, deveria
ter ido trabalhar com cinema em vez de armamento.
O interior do caminhão é organizado como o cérebro de um técnico de
informática, tudo no devido lugar.
O receptor me consentiu um pequeno adiantamento, quase o máximo
autorizado pela situação. Isso a uma taxa de juros que mereceria uma bala

fevereiro•2022
Clube SPA

no meio da cara, mas não tenho escolha, tenho que liquidar esse caso de
uma vez: vou abandonar momentaneamente a Mossberg e escolher um
fuzil de seis tiros, um m40a3, calibre 7.62. Dentro do seu estojo, o
equipamento completo, o silenciador, a mira telescópica Schmidt & Bender,
duas caixas de munição para tiro a longa distância, direto e certeiro, seis
tiros antes de recarregar. Quanto à pistola de mão, eu opto por uma
Walther p99 compacta com suporte para dez tiros munida de um
silenciador de e iciência surpreendente. Para terminar, vou pegar um
punhal de caça Buck Special de quinze centímetros, vem sempre a calhar.
Aquela vadia já teve uma amostra da minha capacidade.
Agora, vamos subir um nível; ela está precisando de fortes emoções.

13h30
Foi mesmo Vincent Hafner.
– A moça é totalmente categórica. – Kryszto iak, o técnico da Perícia
Criminal, encontrou Camille e Louis na saleta. – Ela tem uma boa memória
– diz ele, satisfeito.
– Porém, ela não pôde vê-los por muito tempo... – arrisca Louis.
– Pode ter sido o su iciente, depende principalmente das circunstâncias.
Testemunhas podem ver um suspeito durante minutos sem serem capazes
de o reconhecer uma hora depois. Outras avistam um sujeito por um
minuto, mas gravam seus traços, ninguém sabe por quê.
Camille não reage, é como se estivessem falando dele: ele registra um
rosto no metrô, dois meses depois, pode restituí-lo até a menor ruga.
– Às vezes – continua Kryszto iak –, os suspeitos reprimem as
lembranças, mas, diante de um cara que te espanca e que atira em você de
dentro do seu carro quase à queima-roupa, sua tendência vai ser de se
lembrar muito bem.
Se houver algum humor nessa frase, ninguém está conseguindo discerni-
lo claramente.
– Nós fomos delimitando a seleção das fotos por faixa etária, categoria
ísica, e assim por diante. Ela não tem dúvida, é Hafner.
Na tela do seu laptop, ele expõe a foto de um homem de mais ou menos
sessenta anos, alto, fotografado de corpo inteiro durante uma prisão. Um
metro e oitenta, calcula Camille.
– Oitenta e um – diz Louis com precisão enquanto consulta a icha de
identi icação; conhece o seu chefe até sem ele dizer nada.

fevereiro•2022
Clube SPA

Mentalmente, Camille funde em um só o homem cuja imagem tem diante


dos olhos e o assaltante da galeria Monier, encapuzado, armado,
apontando e atirando, após ter dado coronhadas na cabeça de Anne, no
estômago... Ele engole a saliva.
A foto mostra um homem de ombros largos, com o rosto angular, cabelos
grisalhos e pretos, sobrancelhas brancas e inas, que acentuam um olhar
direto, inexpressivo. Um criminoso à moda antiga. Agressivo. Camille
parece hipnotizado pela fotogra ia. Louis observa as mãos do seu chefe,
elas tremem.
– E os outros? – pergunta Louis, sempre disposto a mudar de assunto
quando necessário.
Kryszto iak expõe na sua tela uma cara barbuda, foto tirada de frente,
luz antropométrica, sobrancelhas espessas, olhar obscuro.
– A senhora Forestier hesitou um pouco. É compreensível, para nós, eles
se parecem bastante, icamos um pouco perdidos. Ela passou por várias
fotogra ias, voltou a este, desejou ver outras, mas sempre voltava à mesma.
Podemos tê-lo como altamente provável. Chama-se Dušan Ravic. Ele é
sérvio.
Camille levantou a cabeça. Eles se aproximam do laptop. Louis já digitou
no seu teclado a busca na base de dados da polícia:
– Estabeleceu-se na França em 1997. – Ele folheia o arquivo com
rapidez. – Um sujeito bem malandro. – Ele deve ler na velocidade do som e
ainda tem tempo de sintetizar: – Preso duas vezes, provas insu icientes,
posto em liberdade. Estar trabalhando com Hafner não seria algo
impensável. Os arruaceiros se proliferam, mas os verdadeiros pro issionais
são raros; o meio é bastante restrito.
– E onde ele está?
Louis faz um gesto evasivo. Quanto a isso... Desde janeiro, nenhuma
notícia, totalmente desaparecido, tem um homicídio nas costas, com sua
parcela do roubo dos quatro assaltos seguidos, ele tem meios para se
esconder por um bom tempo. O reaparecimento do bando é
surpreendente, ainda mais dentro da mesma con iguração. Eles já tinham
um homicídio na icha e ainda pediram mais uma rodada... Estranho.
Eles voltam a falar de Anne.
– Qual é o grau de con iabilidade do depoimento dela? – pergunta Louis.
– Como sempre, decrescente. Elevado para o primeiro, forte para o
segundo, se fossem três, a con iabilidade continuaria a decair.
Camille não consegue mais se conter. Louis faz com que a conversa
demore porque espera que seu chefe recupere o sangue-frio, mas, após a

fevereiro•2022
Clube SPA

partida do perito, ele percebe que o esforço foi em vão.


– Preciso pegar esses caras – diz Camille, pondo suas mãos abertas
calmamente sobre a mesa. – Preciso pegá-los imediatamente. – Atitude
passional. Louis concorda, puro instinto: o que move essa energia, esse
ofuscamento?
Camille, por sua vez, olha para os dois retratos.
– Este aqui – diz ele apontando para a foto de Hafner –, eu vou dar
prioridade para ele. Ele é o perigo. Deste cuido eu.
Ele pronuncia essas palavras com tamanha irmeza que Louis, que
conhece bem o seu chefe, sente se aproximar a catástrofe.
– Ouça... – começa ele.
– Você – interrompe Camille –, você cuida do sérvio. Vou falar com o juiz
e a Michard e vou obter as autorizações. Enquanto isso, você entra em
contato com todos os colegas disponíveis. Ligue para Jourdan da minha
parte, peça a ele que nos empreste alguns homens. Tente com o Hanol
também, consulte todos, vou precisar de reforço.
Diante da avalanche de decisões, uma mais nebulosa que a outra, Louis
afasta sua mecha, mão esquerda. Camille percebe:
– Faça como eu digo – diz ele em tom mais brando. – Eu assumo a
responsabilidade em caso de problema, você não tem com o que se
preocup...
– Sei que não tenho com que me preocupar. Só acho que o trabalho ica
mais fácil quando a gente entende o que está fazendo.
– Você já entendeu tudo, Louis. O que quer mais que eu diga que você já
não sabe?
Camille continua com um tom baixo, é quase preciso inclinar a orelha.
Ele pousa a mão quente sobre a do adjunto. Não posso falhar dessa vez...
entende? (Ele está comovido, mas se contém.) Então, vamos fazer o que é
preciso ser feito.
Louis faz sinal com a cabeça, combinado, não estou muito certo de estar
entendendo tudo, mas vou fazer o que o senhor me pede.
– Os informantes – continua Camille –, os cafetões, as putas, mas, antes
de tudo, vamos começar com os imigrantes ilegais.
Camille refere-se aos imigrantes sem documentos, conhecidos e
identi icados pela polícia, que fazem vista grossa diante deles porque
representam uma fonte inigualável de informações de todo tipo. Ou botam
para fora o que sabem ou tomam o avião de volta, a ameaça é muito
produtiva. Se o sérvio tiver conservado laços com sua comunidade (e como
fazer diferente?), localizá-lo não é nem uma questão de dias, mas de horas.

fevereiro•2022
Clube SPA

Ele cometeu um assalto espetacular vinte e quatro horas atrás... Se


mesmo depois de quatro assaltos em um dia e um homicídio nas costas ele
não deixou a França, é porque tem boas razões para icar.
Louis afasta sua mecha, mão direita.
– Você prepara a operação com urgência – conclui Camille. – Assim que
eu conseguir sinal verde, ligo para você. Chegarei no meio da operação,
mas estarei sempre com o celular.

14h
Camille diante da tela do computador.
Arquivo “Vincent Hafner”.
Sessenta anos. Mais ou menos catorze anos de prisão, todas as penas
possíveis. Quando jovem, tentou várias coisas (arrombamento, extorsão,
proxenetismo), mas encontra sua verdadeira vocação aos vinte e cinco
anos, em 1972, assaltando um carro-forte em Puteaux. As coisas não
correm muito bem, a polícia chega ao local, um ferido, ele é condenado a
oito anos. Cumpre dois terços da pena e tira sua lição da experiência
vivida: é dessa pro issão que ele gosta. Ele pecou apenas por imprudência,
não vai mais cometer esse erro. Na verdade, sim, ele é preso algumas
outras vezes, mas recebe apenas condenações menores, dois anos aqui,
três anos ali. No geral, ele construiu o que se pode chamar de uma bela
carreira.
E desde 1985 ele não foi preso mais nenhuma vez. Hafner, em sua
maturidade, alcançou o apogeu de sua arte. É suspeito de onze assaltos,
mas nenhuma prisão, nunca sequer é levado a interrogatório, nenhuma
prova, arquivos e álibis de ferro, depoimentos de aço. Um artista.
Hafner é um chefe do crime, um criminoso de primeira, e seus registros
con irmam: ele é do tipo que não brinca em serviço. Está sempre
perfeitamente informado, seus ataques são preparados de forma
meticulosa, mas, uma vez em ação, a terra treme. Vítimas feridas,
agredidas ou espancadas, sequelas muitas vezes graves, ele não deixa
mortos, mas não faltam pessoas mutiladas. Depois que Hafner passa,
pessoas saem mancando, capengando, cambaleando, isso sem contar as
caras estouradas e os anos de isioterapia. A técnica é simples: se fazer
respeitar arrebentando o primeiro que aparecer, os outros logo entendem
a lição e então tudo passa a funcionar muito melhor.
A primeira a aparecer, ontem, foi Anne Forestier.

fevereiro•2022
Clube SPA

O caso da galeria Monier é coerente com seu per il. Camille desenha
rostos de Hafner na margem do bloco de notas, enquanto folheia
interrogatórios de casos antigos.
Durante muitos anos, Hafner conta com um grupo restrito de mais ou
menos uma dúzia de homens, escolhendo seus cúmplices com base na
necessidade e na disponibilidade. Camille calcula rapidamente que em
média há sempre três pessoas detidas, em prisão preventiva ou
condicional. Hafner, por sua vez, consegue escapar ileso. Mas, no ramo dos
assaltos, assim como no empresarial, é di ícil encontrar funcionários
estáveis e quali icados. A rotatividade é até mesmo superior nesse
domínio, esses homens são como artesãos. No espaço de alguns anos, nada
menos que seis membros históricos da “quadrilha Hafner” saem de
circulação. Dois pegam prisão perpétua por homicídio, dois foram postos
para dormir (irmãos gêmeos, esses aí se acompanharam do começo ao im
da vida), um quinto está de cadeira de rodas devido a uma queda de moto,
o último foi declarado desaparecido num acidente de bimotor Cessna na
costa da Córsega. Tempos duros para Hafner. Além disso, durante vários
meses, nenhum novo caso lhe é atribuído. Todos entram em acordo quanto
a uma conclusão lógica: Hafner, que deve ter feito seu pé-de-meia, en im se
aposentou. Os funcionários e clientes das joalherias podem acender uma
vela ao santo patrono.
Portanto, os quatro assaltos de janeiro são uma surpresa. Ainda mais
porque ele é, pela sua dimensão, algo totalmente excepcional na carreira
de Hafner. A produção em série é rara no ramo dos assaltos. É di ícil
imaginar quanto um único assalto exige da força ísica, dos nervos,
sobretudo com os métodos arrojados de Hafner. Também é preciso uma
organização impecável e, quando se projeta assaltar quatro
estabelecimentos em um mesmo dia, é preciso que os quatro alvos estejam
no ponto ideal nos mesmos horários, que as distâncias sejam compatíveis,
que... É preciso uma conjunção de tantas condições positivas que não é de
espantar que tenha terminado tão mal.
Camille passa as fotogra ias das vítimas.
Primeiro a do segundo assalto de janeiro. O rosto do jovem funcionário
da joalheria da rua de Rennes após a passagem dos grandes pro issionais.
Por volta dos vinte e cinco anos, espancado de tal forma... Perto dele, Anne
parece arrumada para uma festa de debutante. Passou quatro dias em
coma.
A do terceiro assalto. Um cliente. Se for possível chamá-lo assim. Ele está
mais para um soldado das trincheiras da Primeira Guerra. A icha já aponta

fevereiro•2022
Clube SPA

logo de início “estado grave”. Pela sua cara, disforme (ele recebeu várias
coronhadas no rosto, outro ponto em comum com Anne), não tem como
discordar, estado grave.
Última vítima. Essa está banhada no próprio sangue no meio da sua loja,
na rua de Sèvres. De certa forma, o método foi mais limpo, duas balas em
cheio no peito.
Esse ponto também é raro na carreira de Hafner. Até então, seus casos
não deixavam mortos. Só que, dessa vez, além da equipe tradicional, ele
precisa compor seu grupo com os elementos disponíveis no mercado. Ele
escolheu sérvios. Não estava muito inspirado. Eles são corajosos, mas têm
pavio curto.
Camille olha para a folha do seu bloco. No centro, o rosto de Vincent
Hafner, inspirado por uma foto antropométrica, e, ao redor, traçados com
rapidez, retratos instantâneos de suas vítimas; o mais impactante é o de
Anne, recomposto de memória de quando ele a avistou pela primeira vez
ao entrar no quarto de hospital.
Camille arranca a folha do bloco, amassa-a e a atira na lixeira. Em
seguida, escreve uma palavra que resume sua análise da situação.
“Urgência”.
Pois Hafner não abandonou sua aposentadoria em janeiro – ainda mais
com uma equipe improvisada – sem um motivo maior.
Com exceção da necessidade de dinheiro, é di ícil ver o que poderia ser.
Urgência também porque ele não se contenta em voltar à ativa. Para
maximizar seus lucros, ele se arrisca em quatro assaltos seguidos, cujos
resultados são incertos.
Urgência, en im, porque, após um roubo excepcional em janeiro,
deixando-lhe uma parcela individual de duzentos ou trezentos mil euros,
seis meses depois, aí está ele de volta. Hafner revival. E se, dessa vez, ele
não roubou o tanto que esperava, vai pedir mais uma rodada; inocentes
estão à sua espera, seria mais prudente capturá-lo antes disso.
Qualquer um poderia farejar algo de errado nessa história toda. Camille
não sabe onde o problema se encontra exatamente, mas está por aí. Falta
uma peça do quebra-cabeça. Um acontecimento em algum lugar.
Ele é inteligente o bastante para saber que um homem como Hafner será
muito di ícil de localizar. E que, por enquanto, o mais rápido, o mais e icaz
consiste em encontrar Ravic, seu cúmplice. Torcendo para que, por
intemédio dele, seja possível obter alguma pista que conduza a Hafner.
E, para que Anne permaneça viva, é extremamente necessário que essa
pista seja a certa.

fevereiro•2022
Clube SPA

14h15
– Isso lhe parece... apropriado? – preocupa-se o juiz Pereira pelo
telefone. O tom é de perplexidade. – O que o senhor está querendo fazer é,
na verdade, uma prisão em massa!
– Não, senhor juiz, não é uma prisão em massa!
Mais um pouco e Camille ingiria desatar a rir. Ele não faz isso porque o
juiz é ino demais para cair na armadilha. Mas ele também está
su icientemente ocupado para poder con iar nos policiais experientes
quando eles lhe propõem soluções.
– Pelo contrário – argumenta Camille –, essa será uma operação muito
bem circunscrita, senhor juiz. Conhecemos os três ou quatro contatos aos
quais Ravic pode ter pedido ajuda durante sua evasão após o homicídio de
janeiro, trata-se apenas de chacoalhar um pouco o coqueiro, nada mais.
– O que a comissária Michard acha disso? – pergunta o juiz.
– Ela concorda – diz Camille assertivo.
Ele ainda não falou com ela, mas aparenta estar seguro da resposta. É a
estratégia administrativa mais antiga que existe: dizer a um que o outro
concorda com sua proposta e vice-versa. Como todas as técnicas batidas,
essa é muito e icaz. Bem utilizada, quase infalível.
– Bem, então faça como achar melhor, comandante.

14h40
O guarda grandalhão estava jogando paciência no celular quando se deu
conta de que a pessoa que acabou de passar por ele é a mesma que deveria
estar protegendo. Ele se levanta abruptamente, sai andando atrás dela e
chamando, senhora, esqueceu seu nome, senhora, ela não olha para trás,
apenas para por um breve momento ao passar em frente à sala das
enfermeiras.
– Estou indo embora.
Seu anúncio soa de maneira causal, como tchau, até amanhã. O
grandalhão aperta o passo, aumenta o tom da voz.
– Senhora...!
É a jovem enfermeira com o piercing no lábio que está encarregada dela.
A que acredita ter visto uma espingarda, mas depois, bem, não, mas
pensando melhor... Ela se precipita sem dizer uma palavra, ultrapassa o

fevereiro•2022
Clube SPA

grandalhão, é seu estilo resolver as coisas com as próprias mãos, eles


também ensinam a ser irme na escola de enfermagem, além disso, bastam
seis meses em um hospital e você já sabe fazer tudo na vida.
Ao chegar ao lado de Anne, ela segura seu braço, bem suavemente. Anne,
que esperava por certo grau de di iculdade, se detém e se vira para ela.
Para a jovem, é a postura decidida da paciente que torna a circunstância
delicada; ela se mantém irme sobre seus pés. Para Anne, é a capacidade de
persuasão da enfermeira que complica sua decisão. Ela olha para a argola
da garota, a cabeça raspada, seus traços transmitem uma espécie de
gentileza, do tipo capaz de fazer você derreter, e ela sabe usá-los bem.
Nenhuma oposição frontal nem retaliação, nenhuma lição de moral; ela
começa com outra abordagem.
– Se a senhora deseja partir, preciso tirar seus pontos.
Anne toca a bochecha.
– Não – diz a enfermeira –, esses não, é muito cedo. Não, esses dois aqui.
Ela estende a mão em direção à cabeça de Anne e passa delicadamente
os dedos na região, com um olhar de pro issional, mas sorri e,
considerando sua proposta como aceita, com uma mão, ela a leva de volta
ao quarto, o grandalhão abre caminho; sem saber se deve avisar seu
superior ou não, ele segue as duas mulheres.
Elas param no meio do caminho, em frente à sala das enfermeiras, e
entram numa pequena sala que serve para os cuidados dos pacientes
ambulatoriais.
– Sente-se... – A enfermeira procura seus instrumentos. Ela insiste
gentilmente. – Sente-se...
O tira permanece do lado de fora, no corredor, e vira pudicamente os
olhos, como se as duas mulheres estivessem no banheiro.
– Shhhhh...
Anne tem um sobressalto. A garota, porém, não fez mais que resvalar as
pontas dos dedos na sua cicatriz.
– Isso dói?
O ar inquieto: isso não é normal, e, se eu toco aqui, e aqui, para retirar os
pontos, seria melhor aguardar, receber o médico, talvez ele peça uma nova
radiogra ia, a senhora não sentiu febre? Ela toca a testa de Anne, nenhuma
dor de cabeça? Anne se dá conta de que se encontra ali, aonde a enfermeira
queria conduzi-la, sentada, dependente, pronta para retornar ao quarto.
Daí sua revolta.
– Não, nada de médico, nada de radiogra ia, eu vou embora – diz ela
levantando-se.

fevereiro•2022
Clube SPA

O grandalhão apanha seu rádio, em qualquer ocasião, aconteça o que for,


ele liga para o chefe para pedir instruções. Se o assassino surgisse do outro
lado do corredor armado até os dentes, ele faria a mesma coisa.
– Isso não seria sensato – diz a enfermeira, preocupada. – Se
infeccionar...
Anne não sabe no que deve acreditar, se o perigo é real ou se a frase é
realmente destinada a impressioná-la.
– Ah, e a propósito – a enfermeira muda de pato para ganso –, seu
formulário administrativo ainda não foi preenchido? A senhora pediu que
trouxessem seus documentos? Vou insistir para que o médico venha vê-la
ou que façam uma radiogra ia logo, para que a senhora possa partir assim
que possível.
O tom é simples, conciliador, a proposta aparece como a solução ideal, a
solução sensata.
Anne está exausta, ela diz sim, dirige-se ao quarto a passos pesados,
quase desmaiando. Ela se cansa com rapidez, mas está pensando em outra
coisa, que acabou de lhe vir à mente. Que não concerne nem à radiogra ia
nem ao formulário administrativo. Ela para e se volta para a enfermeira:
– Foi você que viu o homem com a espingarda?
– Eu vi um homem – replica a garota –, não a espingarda.
Ela esperava a pergunta. A resposta é categórica. Desde o começo da
negociação, ela sente que essa paciente está gritando de medo por dentro.
Ela não está querendo deixar o hospital, está tentando fugir.
– Se eu tivesse visto uma espingarda, teria dito. E acho que a senhora
não estaria mais aqui, não somos um hospital de guerra. – Ela é jovem, mas
muito pro issional. Anne não acredita em uma palavra do que ela diz.
– Não – diz ela olhando-a ixamente, como se pudesse adivinhar seus
pensamentos. – A verdade é que você não tem certeza, é isso. Assim
mesmo, ela volta para o seu quarto, a cabeça gira, mediu mal suas forças,
está exausta, precisa se deitar. Precisa dormir.
A enfermeira fecha a porta. Pensativa. Mas, a inal, aquele visitante,
aquele negócio longo e volumoso debaixo da sua jaqueta... o que poderia
ser?

14h45
A comissária Michard passa grande parte do tempo em reuniões. Camille
consultou sua agenda, as séries de compromissos são ininterruptas, ela vai

fevereiro•2022
Clube SPA

de uma reunião para a outra, a disposição dos horários é perfeita. Camille


deixa sete mensagens no seu celular em menos de uma hora. “Importante”.
“Urgente”. “Prioritário”. “Inadiável”. Nas suas mensagens, ele quase esgotou
o léxico em matéria de urgência, de tanto pressioná-la, ele ica à espera de
uma reação agressiva. A comissária, pelo contrário, mostra-se bem
paciente, moderada. É ainda mais delicada do que parece. Ao telefone, ela
sussurra, teve de sair da sala e permanecer num corredor por alguns
minutos.
– E o juiz concorda com essa batida geral?
– Sim – garante Camille. – Justamente porque não são “batidas”, quero
dizer, no sentido estrito, vej...
– Comandante, o senhor tem exatamente quantos alvos?
– Três. Mas a senhora sabe como é, um alvo leva ao outro, é preciso
malhar o ferro enquanto ele está quente.
Quando Camille recorre a um provérbio, qualquer que seja, pode-se
dizer que seus argumentos acabaram.
– Ah, sim, o “ferro”... – avalia a comissária.
– Vou precisar de algumas pessoas.
Tudo converge sempre aos mesmos assuntos, a questão dos meios.
Michard suspira por um longo momento. As pessoas só pedem o que a
gente não pode dar.
– Não por muito tempo – argumenta Camille. – Três ou quatro horas.
– Para três alvos?
– Não, para...
– Eu sei, para “malhar o ferro”... mas me diga, comandante, o senhor não
teme os efeitos colaterais que isso pode causar?
Michard conhece bem a música, a batida policial faz bastante barulho, o
alvo foge; quanto mais você procura, mais as chances diminuem.
– É por isso que eu preciso de muitas pessoas.
A conversa pode durar horas. Na verdade, a comissária não dá a mínima
para o fato de se Verhoeven vai conduzir uma batida geral ou não. Seu
método consiste apenas em resistir o bastante para ter o direito de dizer
depois: eu avisei.
– Se o juiz estiver de acordo... – diz ela. – Veja com seus colegas. Se
conseguir.
A pro issão de assaltante parece muito com a de ator de cinema, você
passa seu tempo aguardando e então faz o trabalho do dia em alguns
minutos.
Portanto, eu aguardo. E calculo, antecipo, conto com minha experiência.

fevereiro•2022
Clube SPA

Se o estado de saúde da mulher permitir, os tiras devem tê-la submetido


a um exame de reconhecimento. Se não for hoje, vai ser amanhã, é questão
de horas, passam algumas fotos diante dos seus olhos, se ela for uma boa
cidadã e tiver um pouco de memória, eles partem imediatamente ao
ataque. O mais fácil para eles, de imediato, será correr atrás de Ravic. Se eu
estivesse no lugar deles, é o que faria. Essa é a estratégia mais simples
entre as mais seguras: eles espalham algumas ratoeiras no corredor e dão
uns coices em algumas portas. Fazem barulho, ameaças, um procedimento
tão velho quanto a própria polícia.
E o melhor observatório se encontra no bistrô do Luka, na rua Tanger.
Ponto de encontro central da comunidade sérvia. Os que se reúnem aqui
são na maioria ma iosos; passam o tempo jogando cartas, apostando em
cavalos e fumando cigarros que provocam nuvens de fumaça de uma
espessura fora do comum, como se fossem apicultores na hora de tirar o
mel das abelhas. Eles curtem estar sempre informados. Quando acontece
algo grandioso, o rumor chega ao bistrô na velocidade de uma ligação.

15h15
Verhoeven mandou soltarem os cães. Ficarem todos a postos. Chega a
ser um pouco exagerado.
Fortalecido pela aprovação da comissária, Camille convocou todos os
policiais momentaneamente disponíveis, ele faz ligações diante do olhar
ansioso de Louis, pede uma mão para os colegas, aqui lhe emprestam um
cara, ali dois, tudo parece meio improvisado, mas acaba resultando em um
número alto, ninguém sabe muito bem para que inalidade está ali, mas
ninguém faz muitas perguntas. Camille dá suas instruções com autoridade
e, além disso, vale dizer, eles estão se divertindo, põem o giro lex no teto
dos carros, atravessam a cidade em alta velocidade, vão chacoalhar todo
mundo, sacudir os tra icantes, os ladrões, os cafetões, os proxenetas, a inal,
eles também entraram na polícia para poder brincar de caubói, oras!
Camille disse que aquilo duraria apenas algumas horas. Basta meter o pé
na porta de todo mundo e logo todos vão poder voltar para casa.
Alguns colegas se demonstram relutantes, Camille está bem nervoso, ele
fornece toneladas de razões, mas poucas explicações. O que está
preparando não é exatamente o que eles haviam compreendido, pensavam
que se tratava apenas de cair em cima de três alvos ao mesmo tempo, nada
mais. Em vez disso, Camille organiza uma operação tão fulminante quanto,

fevereiro•2022
Clube SPA

mas bem mais extensa, a todo momento, ele deseja mais gente, ninguém
chega a saber quantos ele já arrumou, todo mundo começa a icar
preocupado.
– Se encontrarmos o cara que estamos procurando – explicou Camille –,
tudo vai icar em ordem, os superiores vão se encher de orgulho, vão
distribuir medalha de mérito a todos os líderes de equipe. E também é só
uma questão de algumas poucas horas, se trabalharmos direito, antes que
os chefes se perguntem em que bar vocês pararam para beber, já
estaremos todos de volta.
Não é preciso mais que isso para que os colegas aceitem, eles cedem
mão de obra, os tiras vão subindo nos carros, Camille à frente, Louis ao
telefone. Em matéria de discrição, a operação Verhoeven não será um
modelo. E esse é mesmo o objetivo.
Uma hora depois, não há mais, em Paris, um único criminoso nascido
entre o Zagreb e o Mostar que não esteja sabendo da procura fervorosa por
Ravic. Ele está escondido em algum lugar, eles enchem de fumaça todos os
corredores, túneis, chacoalham prostitutas, prendem todos os que
encontram pela frente com uma preferência especial por imigrantes
ilegais.
Tratamento de choque.
As sirenes reverberam, as luzes dos giro lex cobrem as fachadas, no
décimo oitavo distrito, uma rua é bloqueada de ponta a ponta, três homens
saem correndo e são capturados, Camille, de pé junto ao carro, olha para a
cena enquanto conversa com a equipe que está invadindo um hotel
pulguento do vigésimo distrito.
Se parasse para pensar naquilo, Camille poderia vir a sentir alguma
nostalgia. Outrora, em circunstâncias como essa – nos dias do Grande
Esquadrão, da brigada Verhoeven –, Armand se encerrava no meio de
arquivos e enchia grandes folhas quadriculadas com centenas de nomes
extraídos de casos que tinham pontos em comum, então, dois dias depois,
apresentava os dois únicos que podiam levar você a avançar com a
investigação. E, enquanto isso, assim que Louis virava as costas, Maleval
chutava o traseiro de qualquer coisa que se mexesse, distribuía bofetadas
em prostitutas peladas e quando você estava prestes a repreendê-lo, ele
defendia a e icácia do seu método com um depoimento decisivo que lhe
poupava três dias de trabalho.
Camille não parou para pensar. Está concentrado na missão.
Ele sobe de quatro em quatro os degraus de hotéis encardidos,
acompanhado de tiras que irrompem nos quartos durante os programas,

fevereiro•2022
Clube SPA

arrastam maridos envergonhados, com o pau na mão, levantam as


prostitutas que estavam debaixo deles; estão procurando por Dušan Ravic,
ele, sua família, qualquer parente, até mesmo um primo serve, mas não,
esse nome não lhes diz nada, eles continuam a interrogá-las enquanto os
clientes colocam as calças com rapidez e esperam sair sem serem vistos,
temendo por sua vida. As mulheres expõem os seios desnudos, pequenos,
minúsculos, é possível ver o osso do quadril; Ravic, isso não lhes diz nada.
Dušan? Uma delas pede para repetir como se nem soubesse que esse nome
existia. Mas a verdade é que elas estão assustadas, isso é visível. Camille
diz: podem levar. Ele quer botar medo em todo mundo, mas não tem muito
tempo para isso. Umas duas horas. Três horas, se tudo der certo.
Um pouco mais longe, ao norte, na frente de um sobrado dos subúrbios,
quatro policiais con irmam um endereço por telefone com Louis e, em
seguida, entram sem bater, arma apontada, jogam tudo para o alto,
encontram duzentos gramas de cannabis. Dušan Ravic, ninguém conhece,
eles prendem a família inteira, exceto os idosos, pois o número de pessoas
já está bem elevado.
Camille, cuja viatura reverberante é conduzida por um habilidoso piloto
que nunca engata uma marcha abaixo da quarta, não larga o celular. Ele
está em contato constante com Louis. De tanto transmitir ordens e fazer
pressão sobre as equipes, o comandante contaminou todos os policiais
com o seu fervor.
Eles levam três jovens kosovares ao comissariado do décimo quarto
distrito, Dušan Ravic, eles fazem gesto de que não, vamos ver se não
conhecem mesmo, enquanto isso, vá dando uma lição neles, daí, quando
forem soltos, vão anunciar a boa-nova: a polícia está à procura de Ravic.
Camille é informado de que dois trombadinhas oriundos de Požarevac
estão detidos no comissariado do décimo quinto, ele consulta Louis, que
consulta seu mapa da Sérvia. Požarevac ica no nordeste, Ravic é de Elemir,
no extremo norte, mas nunca se sabe. Camille faz sinal a irmativo, podem
levar. Causar medo. Assustar.
Ao telefone, Louis responde a todos, bem calmo, o cérebro cartografou o
mapa de Paris, classi icou as regiões, hierarquizou os moradores
suscetíveis a fornecer informações.
Alguém faz uma pergunta a Camille, apenas uma sugestão, ele re lete um
quarto de segundo, responde sim, então eles também prendem os
acordeonistas do metrô, vão buscá-los até mesmo dentro dos vagões,
fazem-nos descer das plataformas, distribuindo chutes no traseiro deles,
en iam nos bolsos seus saquinhos de pano com os trocados tilintando.

fevereiro•2022
Clube SPA

Dušan Ravic? Olhos atordoados, um tira apanha um deles pela manga.


Dušan Ravic, o sujeito faz não com a cabeça, os olhos piscando, quero que
me entreguem esse aí em domicílio, diz Camille, que sobe para fora da
estação porque lá embaixo o celular não tem sinal e porque ele quer saber
tudo o que está acontecendo; olha para o relógio, inquieto, mas não diz
nada. Ele se pergunta quanto tempo falta para a comissária Michard cair
matando em cima dele.

Há uma hora, os tiras apareceram no Luka sem aviso. Eles levaram um


terço dos caras, é di ícil de entender o critério, talvez nem eles saibam. O
objetivo é assustar. E esse é só o começo. Se meus cálculos estiverem
corretos, em menos de uma hora, a comunidade inteira vai estar do avesso
como uma meia, os ratos vão sair em disparada para todos os lados,
buscando saídas.
Para mim, um único rato já me bastaria. Dušan Ravic.
Agora que a operação começou, não há tempo a perder. Não demoro
mais que o tempo necessário para atravessar Paris e aqui estou.
Uma rua estreita do décimo terceiro distrito, entre as ruas Charpier e
Ferdinand-Conseil, quase uma ruela. Um prédio cujas janelas do térreo
foram muradas, a porta de origem se foi há séculos, substituída por uma
tábua de madeira compensada desgastada pela chuva, sem maçaneta, sem
trinco, ela não para de bater o dia todo, a noite toda, até que alguém
resolva escorá-la, isso dura enquanto pode; após a entrada do próximo
visitante ou morador, ela recomeça a bater de modo irritante. Pessoas
entram e saem permanentemente, drogas, tra icantes, trabalhadores
ilegais, famílias inteiras. Passei dias e dias (e muitas noites também)
escondendo-me aqui para nada, conheço a rua como a palma da minha
mão. Eu a odeio tanto que poderia explodi-la de uma ponta a outra com um
explosivo de demolição sem um segundo de hesitação.
Foi para cá que eu trouxe Ravic, o grande Dušan, uma noite de janeiro,
durante a preparação do Grande Assalto histórico. Ao chegar diante do
edi ício, ele sorriu para mim com seus grandes lábios vermelhos.
– Quando eu descolar uma franguinha, vou trazer pra cá.
Uma “franguinha”... Que babaca. Um francês nunca mais usaria essa
palavra, tinha que ser sérvio.
– Uma franguinha... – disse eu. – Que franguinha?
Ao perguntar isso, eu icava observando o lugar, você logo imagina que
tipo de mulher dá para trazer para cá, de onde ela vem e o que se pode

fevereiro•2022
Clube SPA

fazer com ela, típico Ravic.


– Não uma franguinha – disse Ravic.
Ele curtia dar uma de garanhão. De poder explicar os detalhes. O que
havia por entender era bem simples: esse cretino dos Balcãs utilizava um
dos pulgueiros desse prédio invadido caindo aos pedaços para comer as
vadias que podia pagar.
Sua vida sexual não deve ter rendido a ele muito nesses últimos tempos,
porque Ravic não põe os pés aqui há séculos – estive escondido aqui perto
por muito tempo para saber – e com certeza não tem a menor vontade de
voltar. Ninguém vem a esse tipo de lugar por simples prazer, franguinha à
parte, você só vem aqui quando não tem outra opção. E, justamente, se eu
tiver um pouco de sorte e os tiras izerem seu trabalho dentro dos
conformes, ele não vai ter outra opção.
Se eles chacoalharem bem a comunidade, Ravic vai hesitar, mas logo vai
sacar que não há nenhum outro lugar além desse esconderijo infame, onde
ninguém virá procurar por ele.
Desencaixei o silenciador para guardar a Walther p99 no porta-luvas,
posso ir tomar alguns cafés, mas, em menos de meia hora, devo estar em
pé de guerra porque, se Ravic tiver que voltar aqui, quero ser o primeiro a
recebê-lo.
É o mínimo que devo a ele.

Eles sentaram um sujeito alto junto a uma mesa na sala do comissariado,


seus documentos dizem que ele é de Bujanovac, Louis veri ica, ica no
extremo sul do país. Dušan Ravic, ou seu irmão, ou sua irmã? Eles não
pedem muito, tudo o que ajudar a encontrá-lo será bem-vindo, o sujeito
alto não entende nem sequer o que estão lhe perguntando, eles estão
pouco se fodendo para isso, um tira lhe en ia a mão na cara. Dušan Ravic?
Dessa vez, ele entende melhor, mas faz gesto de que não conhece, eles
en iam a mão na sua cara pela segunda vez. Camille diz: deixem para lá, ele
não sabe. Quinze minutos mais tarde, três garotas, duas delas irmãs, são de
uma tristeza, não têm nem sequer dezessete anos, documentos irregulares,
fazem boquetes na Porte de la Chapelle, sem camisinha se pagarem o
dobro, são magras, pele e osso. Dušan Ravic? Elas respondem que não
conhecem, não tem problema, decide Camille, ele lhes explica, vão mantê-
las presas o máximo de tempo autorizado pela lei, elas mordem os lábios,
sabem que os cafetões vão lhes descer uma surra proporcional ao tempo
da prisão, ninguém gosta de perder dinheiro, o capital é feito para circular,

fevereiro•2022
Clube SPA

para rodar, elas começam a tremer. Dušan Ravic? Fazem de novo sinal de
que não, elas seguem assim até a viatura de polícia... Atrás delas, Camille
faz um sinal discreto ao colega, podem soltá-las.
Nos comissariados da cidade, pessoas vociferam pelos corredores,
gemem alto, aqueles que falam um pouco francês ameaçam ligar para o
consulado, a embaixada, como se eles fossem dar a mínima. Podem ligar
até para o papa, se ele for sérvio.
Louis, sempre com o telefone na orelha, distribui as instruções, informa
Verhoeven, coordena o deslocamento das equipes. Sua cartogra ia mental
acende pontos luminosos, sobretudo ao norte, nordeste. Louis centraliza,
atualiza, despacha. Camille volta para o carro. Nenhum rastro de Ravic.
Ainda.
Todas as garotas são magras? Não, não necessariamente. Num prédio em
demolição do décimo primeiro distrito, há uma mulher que chega a ser
enorme, por volta dos trinta, os seus pivetes choram, são no mínimo oito; o
pai, de regata, magro como um palito, ele tem um bigode, todos eles têm
bigode, vai procurar seus documentos em uma gaveta da cômoda, todos
vêm de Prokuplje. Ao telefone, Louis diz que ica no centro do país. Dušan
Ravic? O homem não diz nada, ele tenta se lembrar, não, na verdade; eles o
levam, os pivetes se agarram às suas mangas, o melodrama faz parte do
trabalho deles. Em uma hora, eles estarão na rua, mendigam entre a igreja
Saint-Martin e a rua Blavière com um cartaz de papelão escrito com pincel
atômico e erros de ortogra ia.
E os jogadores de cartas, em matéria de informação, di ícil encontrar
melhor. Eles passam o dia jogando conversa fora enquanto as mulheres
labutam, as mais novas se prostituem e as demais cuidam dos ilhos.
Camille desce com três caras, ao vê-los, eles jogam as cartas na mesa, gesto
cansado, é a quarta vez em um mês que estão vindo incomodá-los, mas
dessa vez o anão está junto, fechado em seu casaco, com seu chapéu na
cabeça, ele olha nos olhos dos jogadores um a um, seu olhar lhes perfura a
retina, o ar selvagem e decidido, como se sua procura fosse pessoal. Ravic?
Sim, conhecem-no vagamente, eles se olham, você aí, você o viu? Não,
fazem beiço de desolação, a gente até que gostaria de ajudar, ah tá, diz
Camille, ele separa o mais jovem do grupo, um sujeito bem alto, como se
escolhesse justamente o mais alto, e é exatamente isso, porque basta que
ele estenda as mãos para apanhar suas bolas; ele olha para o vazio
enquanto o grandalhão se ajoelha gritando. Ravic? Esse aí, se não disser
nada, é porque não sabe mesmo. Ou porque suas bolas não funcionam

fevereiro•2022
Clube SPA

mais, arrisca um colega. Todos caem na risada. Camille não, ele deixa o
estabelecimento, todos vão em cana.
Uma hora mais tarde, os tiras descem a escada com a cabeça abaixada, o
teto é muito inclinado na descida para o porão, grande como um depósito,
mas não tem mais de um metro e sessenta de altura, vinte e quatro
máquinas de costura, vinte e quatro imigrantes ilegais. Deve fazer uns
trinta graus ali dentro, eles trabalham todos de torso nu, nenhum tem mais
de vinte anos. Nas caixas estão empilhadas centenas de camisas polos com
estampa da Lacoste, o patrão quer se explicar, eles o interrompem. Dušan
Ravic? A o icina de costura local vai ser tolerada, os policiais fazem vista
grossa porque o patrão passa muitas informações, dessa vez, ele comprime
os olhos, aparenta estar tentando se lembrar, espere, espere, um tira diz
que seria melhor chamar o comandante Verhoeven.
Enquanto Camille não chega, os tiras reviraram todas as caixas de
papelão, os jovens operários icam colados contra as paredes, como se
fossem se fundir com o concreto. Vinte minutos após a batida da polícia,
faz tanto calor lá dentro, mandaram que subissem, agora estão todos
alinhados na rua, resignados ou aterrorizados.
Camille chega alguns minutos mais tarde. Ele é o único que não precisa
abaixar a cabeça para descer a escada. O patrão é de Zrejanin, no extremo
norte, não muito longe de Elemir, a cidade de Ravic. Ravic? Não conheço,
diz ele. Tem certeza? pergunta Camille.
Dá para ver que a pergunta está lhe corroendo por dentro.

16h15
Não me afasto do local já faz muito tempo, tenho muito medo de perder
a chegada do meu amigo. Também estou acostumado demais a icar
escondido para cometer o erro de fumar ou abrir a janela para arejar o
habitáculo, mas se o grande Ravic tiver que vir se refugiar, é melhor que
venha logo porque seu velho amigo vai acabar morrendo de cansaço aqui.
Os tiras estão revirando céu e terra, não deve demorar para ele dar as
caras por esses lados.
E aí vem ele, basta falar o nome e o que vemos surgir na esquina? A
silhueta do meu amigo Dušan, reconhecível de longe, alto como uma
chaminé, sem pescoço e com os pés apontando dez horas e dez minutos,
como os palhaços.

fevereiro•2022
Clube SPA

Estou estacionado a uns trinta metros da entrada do prédio, a uns


cinquenta do lugar onde ele acabou de aparecer. Consigo examiná-lo
enquanto ele anda, ligeiramente curvado. Não sei se tem ou não franguinha
no galinheiro, mas a cara do galo não é nada boa.
Ele perdeu a valentia.
Pelas suas roupas (está vestindo um casaco canadiana que tem pelo
menos uns dez anos) e seus sapatos gastos, não é preciso ser nenhum
adivinho para perceber que está sem um tostão.
E isso é um mau sinal.
Porque, segundo a lógica, com o roubo do assalto de janeiro, ele teria
meios de comprar roupas novas. Com a boa quantia de cascalho, eu
poderia imaginá-lo comprando ternos prateados, camisas havaianas e
sapatos de couro de crocodilo. Encontrá-lo maltrapilho assim é
preocupante.
Para se esconder após o homicídio e os quatro assaltos, ele teve de viver
com os recursos provisórios que tinha. Desses recursos, sua franguinha era
uma das fontes mais importantes. Para se ver obrigado a se refugiar aqui,
deve estar mesmo no im da linha.
É que, segundo todas as probabilidades, ele também foi passado para
trás. Assim como eu. Era algo mesmo previsível, mas muito desanimador.
En im, vou ter que lidar com isso.
Sem hesitar, Ravic empurra a porta de madeira compensada que bate
violentamente, Dušan não é nada delicado, está mais para um cara
impulsivo.
Aliás, foi por causa dessa sua impetuosidade que estamos aqui, se ele
não tivesse atirado duas balas de nove milímetros no peito do joalheiro em
janeiro...
Saio discretamente do carro, chego à entrada alguns segundos depois
dele, ouço seus passos pesados, em algum lugar mais para a direita. Não
tem mais lâmpada aqui, o corredor é vagamente iluminado por feixes de
luz de apartamentos cujas portas não se fecham mais. Subo atrás dele, na
ponta dos pés, um andar, dois, três, é terrível como esse lugar fede, urina,
hambúrguer, maconha. Posso ouvi-lo bater à porta, permaneço no patamar
de baixo. Eu bem que descon iava que haveria mais gente, a abordagem
não vai ser simples, tudo depende de quantos eles são.
Acima de mim, uma porta se abre, se fecha, eu subo em seguida, essa
tem um trinco, mas de um modelo antigo, fácil de arrombar. Antes disso,
colo a orelha nela e distingo a voz de Ravic, rouca por causa do tabaco, é

fevereiro•2022
Clube SPA

estranho ouvi-lo de novo. Precisei fazer grandes esforços para achá-lo,


para fazê-lo sair da toca.
Em contrapartida, Ravic não parece contente. Ouço bastante barulho
vindo do cômodo. E também uma voz de mulher, jovem; ela fala
brandamente, soa como se estivesse se queixando, mas não muito alto,
parece estar choramingando.
Continuo à espreita, ouço de novo a voz de Ravic, quero me certi icar de
que não são mais que dois. Permaneço assim por longos minutos, ouvindo,
a princípio, apenas meu coração palpitar; acho mesmo que estão apenas
em dois. Muito bem, coloco meu gorro, empurro bem o cabelo para dentro,
coloco um par de luvas de borracha, saco a Walther, engatilho, seguro-a
com a mão esquerda enquanto destravo a porta e, quando ouço o clique
inal da cavilha deslizando, passo a pistola para a mão direita, empurro a
porta, vejo os dois de costas, inclinados sobre não sei o quê; ao
constatarem uma presença atrás deles, endireitam as costas bruscamente
e se viram para mim. A garota deve ter uns vinte e cinco anos, feia, morena.
E morta. Pois meto logo uma bala no meio da sua testa. Ela revira os
olhos, com um ar escandalizado, como se lhe tivessem proposto um preço
muito abaixo da sua tarifa ou como se ela tivesse acabado de ver entrar o
Papai Noel de cueca.
O grande Ravic, por sua vez, en ia rapidamente a mão no bolso. No caso
dele eu meto uma bala no calcanhar esquerdo, ele dá um salto para cima,
pula de um pé para o outro, como se estivesse sobre um asfalto
incandescente, depois desaba suprimindo um grito.
Agora que já celebramos nosso reencontro, vamos poder conversar.
O apartamento é composto de apenas um cômodo, bem grande, com
uma cozinha em um canto, um banheiro, mas tudo parece em ruínas e está
imundo pra cacete.
– Fala aí, meu velho, ela não era muito limpa, essa sua franguinha.
No primeiro golpe de vista, vi a mesinha sobre a qual havia seringas,
colheres, papel-alumínio... Espero que a grana de Ravic não tenha sido toda
desperdiçada em heroína.
Ao levar a bala de nove milímetros, a garota desmoronou sobre o
colchão do chão. Ela exibe braços magros com as veias picadas. Tive
apenas que levantar suas pernas para que ela se encontrasse deitada sobre
um belo leito de morte. A zona de roupas e de cobertores debaixo do seu
corpo parece um patchwork; a cena icou bem original. Ela manteve os
olhos abertos, mas seu olhar escandalizado de há pouco icou mais sereno;
parece ter se resignado com seu destino.

fevereiro•2022
Clube SPA

Já Ravic continua a gritar. Ele está sentado no chão, apoiado sobre um


lado do quadril, a perna estendida, os braços estendidos em direção ao seu
calcanhar arrebentado que urina sangue, ele grita alguns “ai, caralho, ai,
caralho...”. Quanto ao barulho, aqui ninguém dá a mínima, tem televisão
para todo o lado, casais berrando, pivetes que gritam e certamente uns
caras tocando bateria às três horas da manhã quando estão bem
chapadões... Ainda assim, é melhor que meu sérvio predileto procure se
concentrar um pouco.
Dou-lhe uma coronhada com a Walther no meio da cara, tenho que atrair
a atenção dele para a conversa, ele se acalmou um pouco, segura a perna,
mas contendo os gritos, geme de boca fechada. Está melhorando. Contudo,
não estou muito certo de poder contar com ele, com sua gentileza, ele já
não é um rapaz muito comportado por natureza, estaria mais para o tipo
que curte berrar. Enrolo em formato de bola uma camiseta largada ao chão
e lhe en io na boca. E, para conseguir mesmo alguma paz, eu amarro uma
das suas mãos nas costas. Com a outra, ele continua tentando segurar seu
calcanhar sangrando, seus braços são muito curtos, ele dobra a perna junto
ao corpo, contorce-se, está mesmo sentindo muita dor, o calcanhar, embora
ninguém considere, é muito sensível, cheio de ossinhos para todos os
lados, por si só ele já é frágil, se você torce o pé num degrau, já é um
martírio, mas explodido com uma nove milímetros, icando unido à perna
apenas por alguns ligamentos, um pedacinho de músculo e um purê de
ossos despedaçados, é mesmo agonizante. E gravemente incapacitante.
Aliás, quando dou um segundo tiro no que resta do calcanhar, vejo bem
que ele está penando, que não está ingindo.
– Fala aí, ainda bem que a sua franguinha está morta porque ela icaria
muito mal em ver você desse jeito.
Mas Ravic, vai saber por que, talvez ele não ligasse muito para a
franguinha, não parece se preocupar com ela. Pode-se dizer que ele só
pensa em si mesmo. O ar se torna di ícil de respirar, o cheiro do sangue, o
cheiro da pólvora, vou abrir um pouco a janela. Espero que ele não pague
muito caro pelo aluguel, a vista dá para um muro.
Volto, debruço-me sobre ele, o sérvio está encharcado de suor; também,
ele não consegue parar no lugar, ica se remexendo para todos os lados,
comprime a mão livre contra a perna. Sua cabeça sangra. Apesar da
mordaça, ele consegue babar pelo canto dos lábios. Eu o seguro pelos
cabelos, única forma de obter sua atenção.
– Ouça bem o que vou dizer, meu velho, não vou passar a noite toda aqui.
Vou dar uma chance para você se expressar e o aconselho a cooperar.

fevereiro•2022
Clube SPA

Nesse horário, não estou me sentindo com muita paciência. Faz dois dias
que não durmo e, se der a mínima para mim, vai responder às minhas
perguntas rapidamente, e assim todo mundo vai poder ir com
tranquilidade para a cama, sua franguinha, eu, você, todo mundo, ok?
Ravic nunca falou bem francês, suas conversas costumam ser ornadas
por um monte de erros de sintaxe, erros de vocabulário, a gente sempre
tem que se expressar cuidadosamente com ele. Escolher palavras simples,
gestos convincentes. Por exemplo, apoiado por essas belas palavras, en io a
faca de caça no que resta do seu calcanhar, a lâmina atravessa tudo e crava
no assoalho do outro lado. Um buraco no assoalho, sem sombra de dúvida
isso vai ser extraído da caução quando ele for devolver o apartamento;
pouco importa. Ele consegue gritar, apesar da mordaça, se contorce para
todos os lados, como um verme, com sua mão livre, ele abana o ar como
uma borboleta.
Agora acho que ele entendeu o essencial. Deixo a informação ser mais
bem absorvida durante o tempo necessário para ele re letir sobre a
situação. Então, explico, en im:
– A minha opinião é que no começo você combinou com o Hafner de me
passar para trás. Você também devia achar que três era demais, dois era
melhor. Claro, assim as partes do roubo icam mais gordas.
Ravic me olha através de uma cortina de lágrimas, não é por causa da
mágoa, e sim pela dor, mas eu sinto que minha hipótese é certeira.
– Mas como você é burro como uma porta... É isso aí, Dušan! Você é
mesmo muito burro! Por que acha que o Hafner escolheu você, senão pela
sua burrice? Ah, agora você está começando a sacar!
Ele faz uma careta, esse tal de calcanhar parece estar mesmo acabando
com ele.
– Então você ajuda o Hafner a me passar pra trás... e depois você é
passado pra trás também. O que nos conduz ao meu diagnóstico: você é
burro como uma porta.
O nível do seu QI não parece ser sua principal preocupação. Ravic, nesse
momento, está mais preocupado com a sua saúde, ele avalia os danos pelo
corpo. E está certo em fazer isso, porque, só de falar nesse assunto, vou
icando cada vez mais nervoso.
– Acho que você não quis ir atrás do Hafner. Ele é um cara muito
perigoso, você não se achou com peito o su iciente para cobrá-lo pelo que
ele deve, você não tem peito e sabe disso. E, além disso, você tinha um
assassinato nas costas, preferiu se esconder. Já eu preciso achar o Hafner.
Então você vai me contar tudo o que sabe para me ajudar a achá-lo: o que

fevereiro•2022
Clube SPA

foi combinado entre vocês, como as coisas aconteceram, você vai me dizer
tudo o que sabe, ok?
Minha proposta parece sensata. Eu tiro a mordaça da sua boca, mas o
seu temperamento vulcânico logo volta à tona, ele berra alguma coisa que
eu não entendo. Agarra minha gola com a sua mão livre, esse imbecil tem
uma puta mão de alicate, tem muita força, consigo escapar por milagre. É
isso que você recebe em troca de con iança.
Ele cospe em mim.
Pela circunstância, essa reação é compreensível, ainda assim, ela não é
nada amigável.
Eu percebo que não estou fazendo as coisas do jeito certo. No im das
contas, eu quis me mostrar civilizado, mas Ravic é mesmo um animal, se
você o trata com delicadeza, ele ignora. Está com muita dor para oferecer
alguma resistência de verdade, no im das contas, ele está debilitado, eu o
projeto para o chão com dois chutes na cara e, enquanto ele tenta se soltar
da faca que mantém seu calcanhar preso ao chão, eu vou pegar algo que vai
ser de grande utilidade.
Sua franguinha está esparramada sobre o colchão. Não tem problema, eu
seguro o edredom (você não pode ser uma pessoa muito nojenta para
dormir sobre ele) e puxo bem forte, a garota rola sobre o próprio corpo e
para de bruços, sua saia ica levemente erguida, ela tem pernas magras e
brancas. Também tem picadas atrás dos joelhos. De qualquer maneira, já
estava com os dias contados.
Eu me viro no instante em que meu caro Ravic consegue retirar a faca
cravada no calcanhar. Esse cara tem a força de um cavalo.
Meto uma bala no seu joelho, a reação é explosiva, se assim posso dizer.
Ele praticamente decola do chão, grita, mas antes de voltar a si, eu o viro
de bruços e o cubro com o edredon sobre o qual me sento. Busco icar na
posição certa, não quero sufocá-lo, vou precisar dele, mas quero que ele se
concentre nas minhas perguntas. E que pare de gritar.
Puxo o seu braço na minha direção; é engraçado icar sentado sobre ele,
você balança, como num parque de diversões ou num rodeio, eu apanho
minha faca de caça, abro a mão dele sobre o assoalho. Como esse animal se
mexe; é como se eu estivesse pescando um peixe de duzentas libras.
Primeiro, corto o seu dedinho. Na altura da segunda falange.
Habitualmente, você tem tempo de decepar o osso de forma bem alinhada,
mas, quando se trata de Ravic, tudo o que é minimamente delicado não faz
parte do seu mundo. Contento-me apenas em cortar de uma vez, o que é
custoso para um perfeccionista como eu.

fevereiro•2022
Clube SPA

Estou prestes a apostar que em menos de quinze minutos esse meu


Ravic vai me dizer tudo o que preciso saber. Interrogo-o, agora mais por
formalidade, porque ele ainda não está su icientemente concentrado e
porque comigo e o edredom por cima, sem contar o calcanhar, e o joelho,
não é fácil para ele se expressar em francês.
Sigo adiante com meu serviço, ataco o indicador; como ele se mexe, é
incrível, e me lembro da minha visita ao hospital.
Se minha intuição não me engana, muito em breve, meu sérvio vai me
anunciar péssimas notícias.
E a solução deverá então envolver aquela mulher. Isso está me
parecendo mesmo inevitável. Logicamente, desta vez, ela vai ter que
cooperar mais.
Para o seu próprio bem.

17h
– Verhoeven?
Nem sequer “comandante”. Está exaltada demais. Nem sequer
preliminares, formalidades inúteis. A comissária Michard não sabe mais
por onde começar, tem coisas demais a dizer. Então, o instinto de sempre:
– O senhor vai ter que prestar contas...
Os superiores sempre servem de recurso aos seres sem imaginação.
– O senhor falou ao juiz de uma “operação circunscrita”, o senhor me
enrola com “três alvos” e sai fazendo batidas policiais em cinco distritos de
Paris. O senhor está tirando sarro da minha cara?
Camille abre a boca. Como se ela pudesse vê-lo do outro lado da linha,
ela logo o interrompe:
– O senhor pode parar com essa sua demonstração de força,
comandante, isso se revelou inútil.
Um fracasso. Camille fecha os olhos. Ele acelerou no inal da corrida e
acabou de ser ultrapassado a alguns metros da linha de chegada.
Louis, a seu lado, olha ao redor, contraindo os lábios. Ele também
entendeu o que aconteceu. Camille, com um dedo, con irma que a casa
caiu, a mão faz um sinal para ele dispensar todo mundo, Louis
imediatamente disca os números no seu celular. Só o rosto do comandante
Verhoeven já basta para entender. Perto dele, os colegas abaixam a cabeça,
falsamente desapontados; vão ouvir desaforos, mas até que se divertiram.

fevereiro•2022
Clube SPA

Alguns, ao partirem de volta para as viaturas, acenam-lhe demonstrando


cumplicidade. Camille responde com um aceno vagamente resignado.
A comissária divisional apenas lhe dá um intervalo para digerir a
informação, mas esse silêncio não é mais que uma pausa teatral, insidiosa,
saturada de subentendidos.

Anne está de novo diante do espelho quando a enfermeira entra no


quarto. A mais velha, Florence. Bom, mais velha... É provável que ela seja
mais jovem que Anne, tem menos de quarenta anos, mas quer tão
desesperadamente parecer dez anos mais jovem que acaba envelhecendo.
– Está tudo bem?
Seus olhos se cruzam no espelho. Enquanto anota a hora na prancheta
a ixada ao pé da cama, a enfermeira sorri para ela. Mesmo com lábios
como os dela, nunca mais poderei sorrir assim, pensa Anne.
– Está tudo bem?
Que pergunta! Ela não quer falar, sobretudo com ela. Nunca deveria ter
cedido ao pedido da outra enfermeira, a mais jovem. Deveria ter partido,
ela se sente em perigo aqui. Ao mesmo tempo, também não consegue se
decidir, encontra tantas razões para partir quanto para icar.
E, além de tudo, ela pensa em Camille.
Quando pensa nele, é dominada por tremores; ele está só, impotente,
nunca conseguirá. E, se conseguir, será tarde demais.

Rua Jambier, número 45, a comissária diz que está a caminho. Fica no
décimo terceiro distrito. Camille estará no local em menos de quinze
minutos.
De certa maneira, a batida policial rendeu seus frutos, ainda que não
fossem os frutos esperados. A comunidade sérvia se mobilizou para
encontrar paz, a discrição de que precisa para prosperar, para viver ou
simplesmente sobreviver, ela se articulou internamente, isolou Ravic, uma
brincadeira de criança, e uma ligação anônima informou a localização do
seu corpo, rua Jambier. Camille esperava encontrar um corpo vivo, mas não
foi dessa vez.
Ao anúncio da chegada da polícia, o prédio se esvaziou num piscar de
olhos, não sobrou nem um gato pingado para contar história, ninguém
para interrogar, nenhuma testemunha, ninguém para ter ouvido ou visto o

fevereiro•2022
Clube SPA

que quer que seja. A investigação ocorre no deserto. Apenas as crianças


foram deixadas para trás; com elas, nada a temer, só a ganhar, elas
contarão tudo o que os fugitivos vão precisar saber ao voltarem, por
enquanto, os tiras uniformizados as mantêm o mais longe possível, na
calçada. Elas fazem algazarra, riem, gritam entre si; para crianças que não
vão à escola, um duplo homicídio equivale ao recreio.
Lá em cima, junto à entrada do apartamento, a comissária tem as mãos
cruzadas à frente do corpo, como em uma missa. Enquanto aguarda a
chegada dos técnicos da Perícia Criminal, ela não deixará ninguém além de
Verhoeven entrar, precaução sem convicção e certamente improdutiva;
tantas pessoas já devem ter passado pelo muquifo dessa garota que serão
coletadas, por baixo, umas cinquenta impressões digitais, cabelos e pelos
de proveniências diferentes. Vão fazer o que é preciso, mas só para não
deixarem de seguir o protocolo.
Quando Camille chega, a comissária nem sequer olha para ele, nem
sequer se vira, ela apenas entra no cômodo, com uma passada comedida,
atenciosa, precavida, Camille segue seus passos. Silenciosamente, cada um
procede com sua análise, vai enumerando suas constatações. A garota –
drogada e prostituída – foi morta primeiro. Ao vê-la deitada de bruços,
como se estivesse de mau humor, percebe-se que o cobertor que cobre
pudicamente o corpo de Ravic foi puxado de baixo dela, lançando-a com
violência contra a parede. Se houvesse ali apenas esse corpo pálido, visto e
revisto mil vezes, tomado pela rigidez cadavérica, não haveria grande coisa
a dizer, overdose ou homicídio; todas elas morrem mais ou menos na
mesma posição. Mas há também outro corpo, toda uma outra história.
A comissária avança a passos bem curtos, permanece um pouco afastada
da poça de sangue que coagulou sobre o assoalho de madeira sujo. O
calcanhar, um montículo de ossinhos despedaçados que só se mantêm
presos à perna por alguns ilamentos de pele. Cindido? Serrado? Camille
tira os óculos, ica de cócoras, examina, procura pelo chão; isolada um
pouco mais distante, a marca da bala. Volta ao calcanhar, os ossos têm o
vestígio de uma faca, de um punhal; ele se inclina bem para baixo, à
maneira de um índio à escuta do inimigo que se aproxima, localiza a marca
nítida da ponta de um punhal sobre o assoalho de madeira. Ao se levantar,
ele tenta recompor essa parte da cena. Na ordem, o calcanhar, em seguida,
os dedos.
A comissária faz o levantamento. Cinco dedos. A conta está correta, mas
não a ordem, o indicador aqui, o do meio ali, o polegar um pouco mais
longe, cada um cortado à altura da segunda falange. O toco da mão jaz,

fevereiro•2022
Clube SPA

anêmico, ao lado do colchão. O cobertor está impregnado de sangue


escuro. Com a ponta da caneta, a comissária ergue a mão caída. Surge o
rosto de Ravic, que diz bastante sobre o quanto ele sofreu.
Uma bala na nuca pôs im a tudo.
– Pois bem, e aí? – pergunta a comissária.
Um tom quase alegre, ela espera boas notícias.
– Na minha opinião – começa Camille –, os caras entram...
– Me poupe da sua conversa iada, comandante, dá pra ver muito bem o
que aconteceu! Não, o que me interessa é saber que diabos o senhor está
fazendo!

O que Camille está fazendo?, Anne se pergunta.


A enfermeira a deixou sozinha de novo, elas trocaram três palavras,
Anne foi grosseira, a enfermeira fez como se não tivesse percebido.
– A senhora não precisa de nada?
Não, nada, limita-se apenas a balançar a cabeça, Anne já estava em outro
lugar. Como todas as vezes, os exames diante do espelho arruinaram o seu
estado de espírito, ela não consegue se conter. Ela se vira, deita, levanta de
novo. Agora que já sabe os resultados das radiogra ias, tomogra ias, ela
não para no lugar, esse quarto a assombra e deprime.
Fugir. Está decidido.
Ela reagrupa a força dos seus instintos de menina para fugir, esconder-
se. Isso tudo tem algo em comum também com o efeito do estupro: ela
sente vergonha. Vergonha do que se tornou agora, também foi isso o que
ela viu há pouco no espelho.
O que Camille está fazendo? ela se pergunta.

A comissária Michard recuou para deixar o apartamento, ela põe os pés


milimetricamente de volta no lugar exato em que os colocou para entrar.
Como num balé bem sincronizado, a sua saída é coordenada com a
chegada dos peritos. Percorre uma parte do corredor como um siri, por
causa do tamanho do traseiro, en im para no patamar. Volta-se para
Camille, cruza os braços e sorri. Conte-me tudo.
– Os quatro assaltos de janeiro eram obra de uma gangue liderada por
Vincent Hafner e da qual fazia parte Ravic.

fevereiro•2022
Clube SPA

Ele aponta com o polegar o local do quarto que é violentamente


iluminado pela luz dos projetores da Perícia Criminal, a comissária balança
a cabeça, já sabemos disso, mas continue.
– A gangue voltou à atividade e atacou ontem a joalheria da galeria
Monier. A operação correu bem, mas houve um problema, a presença dessa
cliente, Anne Forestier. Eu não sei o que ela viu além do rosto deles, mas
algo aconteceu. Estamos procedendo com os interrogatórios, o máximo
que o estado dela permite, ainda não conseguimos compreender o que
aconteceu. Seja o que for, é algo importante o su iciente para que Hafner
tenha tentado matá-la várias vezes. Até mesmo no hospital... – Ele põe as
duas mãos para cima. – Eu sei! Mesmo que não tenhamos nenhuma prova
dessa sua visita!
– O juiz pediu uma reconstituição do assalto?
Desde a sua visita à galeria Monier, Camille não havia difundido mais
nada ao juiz. Ele vai ter muito o que lhe dizer de uma só vez, é melhor estar
pronto.
– Ainda não – diz ele com um tom irme. – Mas, pela rapidez dos
acontecimentos, assim que a testemunha tiver em condições de fazer...
– E o que aconteceu aqui? Vieram livrar Ravic da sua parcela do roubo?
– Seja o que for, vieram para fazê-lo falar. Talvez sobre o roubo, pode
ser...
– Esse caso está trazendo muitas perguntas, comandante Verhoeven,
mas, de toda forma, ele traz menos que sua própria conduta.
Camille tenta esboçar um sorriso, ele já tentou fazer de tudo.
– Eu talvez tenha me mostrado um pouco precipitado...
– “Precipitado”? O senhor age contra todas as regras, alega organizar
uma operação de pequenas dimensões quando, na verdade, faz uma batida
policial por todo o décimo terceiro, o décimo oitavo, o décimo nono e
metade do décimo quinto distritos sem perguntar a opinião de quem quer
que seja.
Ela aumenta o tom.
– O senhor excede claramente a autorização do juiz.
Uma hora esse momento ia chegar, mas ainda é muito cedo.
– E a da sua superior. Ainda estou esperando a primeira linha do seu
relatório; o senhor está agindo como se estivesse fora de controle. Quem o
senhor pensa que é, comandante Verhoven?
– Estou apenas fazendo o meu trabalho.
– Que trabalho?
– “Proteger e servir”. Pro-te-ger!

fevereiro•2022
Clube SPA

Camille se afasta três passos, adoraria poder pular no pescoço dela. Ele
chama a responsabilidade para si:
– A senhora subestimou o caso – disse ele. – Não se trata apenas do caso
de uma mulher que é covardemente espancada. Os assaltantes são
reincidentes, eles deixaram um primeiro morto em janeiro, na ocasião dos
quatro assaltos seguidos. O líder, Vincent Hafner, é um verdadeiro animal e
está acompanhado de sérvios que também não são nada delicados. Ainda
não sei por qual razão, mas Hafner quer matar essa mulher, e, embora a
senhora não queira ouvir isso, estou convicto de que ele tenha ido ao
hospital armado com uma calibre 12. Se nossa testemunha vier a ser
assassinada, teremos que explicar por que e a senhora vai ser a primeira!
– Muito bem, essa mulher é de uma importância estratégica
incomensurável, e, para prevenir um risco que é incapaz de comprovar, o
senhor sai por Paris prendendo todo mundo que nasceu entre Belgrado e
Saraievo.
– Saraievo ica na Bósnia, não na Sérvia.
– Como?
Camille fecha os olhos.
– Está bem – ele concorda –, não segui o procedimento à risca; quanto ao
meu relatório, eu vou...
– A discussão não é mais essa, comandante.
Verhoeven franze as sobrancelhas, seu sensor interno é ativado em
estado crítico. Ele sabe perfeitamente aonde a divisionária pode chegar se
desejar. Ela aponta com a cabeça o apartamento onde jaz o corpo de Ravic.
– O senhor o obrigou a sair da toca fazendo o maior estardalhaço,
comandante. Na verdade, o senhor facilitou o trabalho do assassino.
– Não há nada que comprove isso.
– Não, mas a questão é legítima. E, mesmo com as melhores intenções,
uma operação brutal que envolve a prisão coletiva exclusivamente
centrada numa população estrangeira, organizada sem o aval dos
superiores e transgredindo as autorizações do juiz, ela tem um nome,
comandante.
Claramente, Camille não havia previsto essa abordagem; seu rosto ica
branco.
– Isso se chama perseguição racial.
Ele fecha os olhos. Que catástrofe.

fevereiro•2022
Clube SPA

O que Camille está fazendo? Anne não tocou na bandeja; a empregada do


hospital, uma martinicana, foi franca ao trazê-la: a senhora precisa comer,
não pode se entregar, onde já se viu desperdiçar comida. Anne
instantaneamente sente uma raiva contra todo mundo subir pelo corpo.
Contra a enfermeira, há pouco, que lhe dizia:
– Tudo dará certo, a senhora vai ver...
– Já estou vendo muito bem! – respondeu Anne.
A enfermeira estava sendo sincera, ela realmente queria ajudar, não foi
nada simpático desmotivar assim sua boa intenção, sua vontade de fazer o
bem. Mas, como ela optou pelo velho e cansativo pedido de paciência, Anne
replicou:
– Você por acaso já foi espancada? Já tentaram matá-la a coronhadas de
espingarda, com pontapés? Está acostumada a levar tiros de espingarda de
caça? Vamos, me conte, tenho a sensação de que isso pode me ajudar...
Quando Florence saiu, Anne a chamou novamente, chorando; ela disse:
me desculpe, sinto muito, e a enfermeira lhe fez um pequeno aceno: não
tem problema.
Tem-se a impressão de que se pode dizer de tudo a essas mulheres.

– O senhor quis e pediu esse cargo, alegando um informante que tem


sido incapaz de trazer à tona. Além disso, como o senhor icou sabendo
desse assalto, comandante?
– Pelo Guérin.
A resposta lhe veio do nada. O primeiro colega cujo nome lhe veio à
mente. Ao tentar achar algo no cérebro, não encontrou nenhuma solução,
entregou para a providência, mas a providência é como a homeopatia, se
você não acreditar nela... o resultado é catastró ico. Vai precisar ligar para
Guérin, mas ele só vai ajudar Camille se não correr grandes riscos. A
comissária ica pensativa.
– E como o Guérin icou sabendo?
Ela reformula:
– Quero dizer, por que ele foi falar disso para o senhor?
A perspectiva que se aproxima obriga Verhoeven a aumentar as apostas,
o que ele faz sem cessar, desde o começo.
– Por acaso...
Ele está mesmo sem muitas ideias. A comissária, visivelmente, tem
demonstrado cada vez mais interesse por esse caso. Ele vai ser deposto do
caso. Pior, talvez. A ameaça de um tribunal, de um inquérito policial por

fevereiro•2022
Clube SPA

parte da Inspeção-Geral dos Serviços6 começa a se delinear com mais


nitidez no horizonte.
Durante uma fração de segundo, a imagem dos cinco dedos cortados se
interpõe entre ele e a comissária; são os dedos de Anne, ele os reconhece
perfeitamente. O assassino está a caminho.
Michard conduz seu grande traseiro até o patamar da escada,
abandonando Camille a suas re lexões.
Ele está pensando na mesma coisa que ela: não pode excluir o fato de ter
ajudado o assassino a encontrar Ravic, mas não tinha nenhuma outra
solução se quisesse agir com rapidez. Hafner quer se livrar de todas as
testemunhas e atores do assalto da galeria Monier: Ravic, Anne, talvez logo
mais o último comparsa, o motorista...
Em qualquer um dos casos, ele é a chave do problema, é o responsável
de toda essa história.
A Inspeção-Geral dos Serviços, a comissária, o juiz, isso tudo ica para
depois, pensa Camille. Para ele, sua urgência absoluta é proteger Anne.
Ele se lembra de ter aprendido isso na autoescola. Quando você entra
errado em uma curva, há duas soluções. A solução errada consiste em
frear; você vai ter todas as chances de ser jogado para fora da pista.
Paradoxalmente, acelerar é mais e icaz, mas, para conseguir fazer isso, é
preciso lutar contra um instinto de sobrevivência que o impele a parar o
carro.
Camille decide acelerar.
É a única forma de sair da curva perigosa. Ele não quer nem pensar que
essa também é a forma que se adota quando o objetivo é se precipitar
des iladeiro abaixo.
E não há muitas opções...

18h
Sempre que o vê, Camille pensa que Mouloud Faraoui não tem muito a
ver com alguém que se chamaria Mouloud Faraoui. Os traços das suas
raízes marroquinas ainda estão presentes no seu patronímico, mas, no
quesito ísico, tudo se dilui em três gerações de casamentos inesperados,
uniões ao acaso, uma mistura cacofônica cujo resultado é surpreendente. O
rosto desse cara condensa a história inteira. Castanho bem claro, quase
loiro, um nariz bem longo, um queixo quadrado atravessado por uma
cicatriz que deve ter lhe causado muita dor e que lhe deixa com uma cara

fevereiro•2022
Clube SPA

de mau, olhos de um azul-esverdeado lancinante. Sua idade deve se situar


entre trinta e quarenta anos, impossível dizer. Para desencargo de
consciência, melhor ler sua icha, na qual são descobertas evidências que
con irmam uma rara e precoce maturidade. Na verdade, ele tem trinta e
sete anos.
É calmo, quase desdenhoso, poupa gestos e palavras. Senta-se diante de
Camille sem tirar os olhos dele, tenso, como se esperasse o comandante
sacar sua arma de serviço. Está descon iado. Talvez não muito, mas, em vez
de se encontrar tranquilamente na sua cela, está ali, na sala de visitas da
Casa de Detenção: corria o risco de levar vinte anos, apanhou dez,
cumprirá sete, está lá há dois anos. Apesar da postura arrogante, Camille
sente, ao vê-lo, que o tempo tem demorado a passar.
Diante de um tira, visita inesperada, a descon iança de Faraoui passa
para o sinal vermelho piscante. Ele se senta com a postura bem ereta,
cruza os braços. Entre os dois homens, nunca nada foi dito, mas o número
de mensagens que já foram trocadas em silêncio é rigorosamente
alucinante.
Só a visita do comandante Verhoeven em si já é uma mensagem bastante
complexa.
Na prisão, os rumores voam. O detento mal entrou na sala de visita e a
notícia já corre pelos corredores. O que um tira da Brigada Criminal tem a
ver com um proxeneta do calibre de Faraoui, eis a pergunta, e, no fundo,
pouco importa o teor da entrevista, os rumores vão percorrer toda a Casa,
as teorias, das mais racionais às mais absurdas, vão se chocar umas contra
as outras, como em uma gigantesca máquina de pinball, conforme os
interesses de cada um, conforme o peso das gangues da prisão, e o novelo
vai se desenrolar sozinho.
Eis por que Camille está ali, sentado na sala de visitas, as mãos cruzadas
à sua frente, e por que se limita a olhar para Faraoui. Nada mais. O trabalho
está feito, ele nem sequer levantou o dedo mindinho.
Mas o silêncio pesa bastante.
Faraoui, sempre sentado, espera e observa, sem dizer uma palavra.
Camille não se mexe. Ele pensa na maneira como o nome desse deliquente
lhe veio à mente quando a comissária o interrogou. Seu inconsciente já
sabia o que ele ia fazer, mas Camille só entendeu mais tarde: é a via mais
rápida para Vincent Hafner.
Para chegar ao im da trilha que ele acabou de tomar, esse verdadeiro
túnel, Camille percebe que vai ter que passar por momentos muito di íceis.
A angústia lhe sobe como água pela banheira; se ele não estivesse sendo

fevereiro•2022
Clube SPA

observado de maneira tão intensa por Faraoui, ele se levantaria, abriria a


janela. Só o fato de entrar na Casa Central de Detenção já foi para ele um
golpe muito duro.
Respirar. Respirar mais uma vez. E ele vai ter que voltar...
Lembra-se da maneira como mencionou a história de “um conhecido de
um conhecido”. Seu cérebro funciona mais rápido que ele; só passou a
entender depois de ter tomado aquela decisão. Agora ele entende.
O relógio de parede conta os segundos, em breve contará os minutos; no
espaço da sala de visitas fechada, o não dito emana pelo ar como vibrações.
Faraoui equivocou-se de início, ele acreditou que se tratava de uma
prova de silêncio, em que um ica esperando que o outro fale primeiro,
uma espécie de braço de ferro inerte, uma técnica bastante vulgar, e ele
icou surpreso; conhece o comandante Verhoeven de reputação, não é o
tipo de tira que se rebaixa a métodos como esse. Portanto, há alguma outra
coisa errada. Camille o vê abaixar a cabeça, pensar o mais rápido que pode.
E, como é inteligente, ele chega à única conclusão possível; prepara-se para
levantar.
Camille o antecipa, tsc, tsc, tsc... sem olhar para ele. Faraoui, que tem
uma excelente noção dos próprios interesses, decide participar do jogo. O
tempo continua a correr.
Eles esperam. Dez minutos. Em seguida, quinze minutos. Vinte minutos.
Então Camille faz o sinal. Ele descruza as mãos.
– Bom. Não é que eu esteja entendiado...
Ele se levanta. Faraoui, por sua vez, permanece sentado. Sorriso discreto,
quase imperceptível, ele chega até a se acomodar melhor na cadeira, como
se quisesse se alongar.
– Você acha que eu sou pombo-correio?
Camille já está junto à porta. Ele bate com a palma da mão para que
venham lhe abrir, vira-se.
– De certa forma, sim.
– E o que ganho com isso?
Camille adquire um ar de indignação.
– Ora... você ajudou a justiça do seu país! Isso não é pouca coisa, é?
A porta se abre, o guarda se afasta para deixar Camille passar; ele
permanece um instante à porta.
– Diga-me, Mouloud, a propósito... O cara que te entregou, é... como ele
se chama mesmo...? Droga, que coisa, estou com o nome na ponta da
língua...

fevereiro•2022
Clube SPA

Faraoui nunca soube quem o entregou; fez de tudo para saber, mas não
descobriu nada. Ele pegaria mais quatro anos de prisão para ter esse
nome, todo mundo sabe disso. E ninguém é capaz de imaginar realmente o
que Faraoui faria com esse cara no dia em que o encontrasse.
Ele sorri e balança a cabeça. Combinado.
Essa é a primeira mensagem de Camille.
Encontrar com Faraoui é o mesmo que dizer a certa pessoa: acabei de
fazer um trato com um assassino.
Se eu der a ele o nome daquele que o entregou, ele não poderá me
recusar nada.
Em troca desse nome, posso fazê-lo sair à sua procura; ele estará no seu
encalço antes que você tenha tempo de respirar.
A partir de agora, pode começar a contar os segundos.

19h30
Camille senta-se à sua mesa, colegas en iam a cabeça pela porta, acenam,
todo mundo ouviu falar do seu caso; obviamente, ele é o centro de todas as
conversas. Sem contar aqueles que participaram da tal “perseguição
racial”, eles não terão com que se preocupar, mas o boato anda circulando,
a comissionária começou a disseminá-lo. Um assunto nada agradável. Mas
que diabos Camille está fazendo? Ninguém faz ideia. Nem mesmo Louis, ele
quase não disse nada, e então o rumor voa, um tira desse nível, deve ter
sido mesmo algo grave, alguns estão surpresos, outros espantados, é
sabido que a comissária está furiosa, e isso não é nada comparado ao juiz,
ele vai convocar todo mundo. Desde essa tarde, o auditor-geral Le Guen,
ele mesmo já está de péssimo humor e, surpresa, quando os policiais
en iam a cabeça pela porta do escritório, eles veem Verhoeven, digitando
seu relatório, tranquilo, como se aquilo tudo não fosse mais que
tempestade em copo d’água, como se não tivesse nada a ver com ele ou
como se essa história de assalto com um bando de assassinos fosse
assunto pessoal. Não estou entendendo nada, e você? Eu também não. É
muito estranho mesmo. Mas todos continuam a trabalhar, logo são sugados
para outros afazeres, é possível ouvir uma agitação lá, nos corredores,
irrupções de vozes. Por aqui se trabalha noite e dia, não há repouso.
Camille deve se concentrar nesse relatório, tentar circunscrever o
desastre que se anuncia. Ele precisa de pouco tempo, bem pouco, se sua
estratégia vingar, ele vai encontrar Hafner com rapidez.

fevereiro•2022
Clube SPA

Um ou dois dias.
É o objetivo do seu relatório. Ganhar dois dias.
Quando Hafner for localizado, detido, tudo será explicado, os nevoeiros
desse caso se dissiparão, Camille vai se justi icar, vai se desculpar, receber
a carta disciplinar com a advertência dos superiores, talvez seu
afastamento, sua promoção bloqueada até o im da carreira, talvez ele até
tenha que solicitar – ou aceitar – uma mudança de posto, pouco importa:
Hafner no xadrez, Anne ica protegida. O resto...
No momento de começar essa delicada redação (ele já não é de costume
muito inclinado para os relatórios...), ele se lembra da página do bloco de
papel que jogou no cesto, mais cedo nessa tarde. Ele se levanta, desenterra
o papel. O rosto de Vincent Hafner, o de Anne sobre seu leito de hospital.
Enquanto alisa a folha amassada sobre a mesa com a palma de uma mão,
com a outra, ele liga mais uma vez para Guérin, para lhe deixar uma
mensagem, a terceira do dia. Se Guérin não lhe responde rapidamente, é
porque não tem interesse. Já o auditor-geral Le Guen, em contrapartida,
está correndo atrás de Camille há muitas horas; todos correm atrás de
todos. Quatro mensagens sucessivas: “Que diabos você está fazendo,
Camille! Me ligue!”. Ele está a mil. E tem razões para isso. Além disso,
Camille mal inicia as primeiras linhas do relatório e seu celular vibra de
novo. Le Guen. Dessa vez, ele atende e fecha os olhos, espera a avalanche.
Pelo contrário, Le Guen fala com uma voz baixa, calma.
– Você não acha que deveríamos ter uma conversa, Camille?
Camille pode dizer sim ou não. Le Guen é um amigo, o único que lhe
resta de todos os seus naufrágios, o único capaz de modi icar a trajetória
na qual ele embarcou. Mas Camille não diz nada.
Ele se encontra num desses momentos decisivos que podem, ou não,
salvar sua vida e se cala.
Não pense que ele tenha subitamente se tornado masoquista ou suicida;
sente-se bastante lúcido. Com três riscos, num canto do papel que
permaneceu virgem, ele esboça o per il de Anne. Fazia a mesma coisa com
Irene, sempre que lhe restava um segundo, assim como outras pessoas
roem as unhas.
Le Guen tenta convencê-lo com seu tom mais persuasivo, mais
esmeroso:
– Você só fez merda esta tarde, todo mundo está se perguntando se
estamos à procura de terroristas internacionais, você ultrapassou todos os
limites. Os informantes estão gritando que foram apunhalados pelas
costas. Você fode com todos os colegas que trabalham o ano inteiro com

fevereiro•2022
Clube SPA

essas comunidades. Em três horas, destrói o trabalho de um ano e, com o


homicídio desse sérvio aí, o tal do Ravic, as coisas icam ainda mais
complicadas. Agora você tem que me dizer exatamente o que está
acontecendo.
Camille não entrou na conversa, ele olha para seu desenho. Poderia ter
sido outra mulher, pensa ele, mas é ela, Anne. Presente na sua vida como
na galeria Monier. Por que ela e não outra? Mistério. Ao retraçar, no
desenho, a forma dos lábios de Anne, Camille poderia quase os sentir
derretendo, ele reforça um traço, esse lugar, bem abaixo do maxilar, que
acha tão enternecedor.
– Camille, está me ouvindo? – pergunta Le Guen.
– Sim, Jean, estou.
– Não estou muito certo de poder tirar você dessa, sabia? Está sendo
muito di ícil acalmar o juiz. Ele é um cara inteligente e, justamente por
isso, não se deve tomá-lo por um babaca. E, claro, meus chefes caíram em
cima de mim há menos de uma hora, mas acho que é possível conter o
estrago.
Camille põe seu lápis sobre a mesa, inclina a cabeça; de tanto querer
corrigi-lo, ele arruinou totalmente o retrato de Anne. É sempre assim, o
desenho tem que vir de uma só vez, se você tenta recomeçar, já era.
Camille é subitamente acometido por uma ideia nova, totalmente
inédita, uma pergunta, por mais surpreendente que isso pareça, que ainda
não foi feita: o que vai acontecer comigo depois? O que eu quero? E, como
acontece às vezes nos diálogos dos surdos, embora eles não consigam se
escutar nem se ouvir, espantosamente os dois homens chegam à mesma
conclusão:
– Você tem algum envolvimento pessoal nisso, Camille? – pergunta Jean.
– Você conhece essa mulher? Pessoalmente?
– Claro que não, Jean, o que faz você pensar que...
Le Guen deixa pairar um silêncio doloroso. Então ele dá de ombros.
– Se as coisas derem errado, vão investigar...
Camille compreende repentinamente que toda essa história talvez não
seja somente uma questão de amor, talvez seja outra coisa. Ele tomou um
caminho obscuro e movediço, e agora não faz a menor ideia sobre aonde
isso o está levando, mas sente, sabe que não está sendo impulsionado por
uma paixão cega por Anne.
Outra coisa o impulsiona a continuar, custe o que custar.
No fundo, está fazendo com sua vida o que ele sempre faz com suas
investigações, segue até o im para entender como as coisas chegaram até

fevereiro•2022
Clube SPA

ali.
– Se você não se explicar logo – continua Le Guen –, se não izer isso,
agora, a comissária Michard vai informar o tribunal, Camille. Não
poderemos evitar um inquérito administrativo...
– O quê? Um inquérito sobre o quê?
Le Guen dá de ombros de novo.
– Ok. Faça como você quiser.

20h15
Camille bate suavemente à porta do quarto, nenhuma resposta, ele abre,
Anne está deitada, com os olhos para o teto, ele se senta ao seu lado.
Eles não se falam. Camille simplesmente segura sua mão, ela não expõe
resistência, tudo nela transmite um abandono terrível, como uma
resignação. Porém, após alguns minutos, como uma simples constatação:
– Quero sair daqui...
Ela se ajeita lentamente na cama, apoiando-se sobre os cotovelos.
– Como eles não vão operar você – diz Camille –, você vai poder voltar
para casa rapidamente. É questão de um ou dois dias.
– Não, Camille. – Ela fala lentamente. – Quero sair imediatamente, agora.
Ele franze as sobrancelhas, Anne vira a cabeça para a direita e para a
esquerda e repete:
– Agora.
– Não se pode sair assim, no meio da noite. E também é preciso obter
alta do médico, receitas e...
– Não! Eu quero ir embora, Camille, está me ouvindo?
Camille levanta da cadeira, precisa acalmá-la, ela está icando nervosa.
Mas ela toma à sua frente, passa as pernas para fora da cama e coloca-se de
pé.
– Não quero icar aqui, ninguém pode me obrigar!
– Mas ninguém quer obrig...
Ela superestimou suas forças, sente um atordoamento, apoia-se em
Camille, senta-se sobre a cama, abaixa a cabeça.
– Tenho certeza de que ele veio aqui, Camille, ele quer me matar, ele não
vai parar por aí, eu sei disso, posso sentir.
– Não, você não tem certeza, não está sentindo coisa nenhuma! – diz
Camille.

fevereiro•2022
Clube SPA

Tentar à força não é a estratégia certa porque o que conduz Anne é


pânico, inacessível à razão ou à autoridade. Ela voltou a tremer.
– Tem um guarda junto à sua porta, nada vai acontecer com você...
– Não me venha com essa, Camille! Quando não está no banheiro, ele
está jogando paciência no celular! Quando eu saio do quarto, ele nem
sequer percebe...
– Vou solicitar uma outra pessoa. De madrugada...
– O que é que tem a madrugada?
Ela tenta assoar o nariz, mas sente muita dor.
– Você sabe... De madrugada, tudo ica mais assustador, mas eu garanto
que...
– Não, você não me garante nada. É justamente por isso...
Essa palavra por si só lhes causa uma dor terrível, tanto num quanto no
outro. Ela quer ir embora justamente porque ele não pode garantir sua
segurança. Tudo é culpa dele. Ela joga o lenço no chão, de raiva. Camille
tenta ajudá-la, mas ela não quer nem saber, me deixe, ela vai se virar
sozinha...
– Como assim, “sozinha”?
– Deixe que eu me viro agora, Camille, eu não preciso mais de você.
Mas, ao dizer isso, ela se deita de novo; permanecer de pé não é simples,
o cansaço logo a derruba. Ele levanta o lençol. Deixe que eu me viro.
Então ele a deixa, senta-se de novo, tenta apanhar a mão dela, mas sua
mão está fria, inerte.
A posição em que ela se põe na cama é como um insulto.
– Pode ir... – diz ela.
Ela não olha para ele. Seu rosto permanece virado para a janela.

Área empresarial situada ao noroeste de Paris, famosa pelos seus


edi ícios modernos. (N.T.)
Em Alex, livro 2 da Trilogia Verhoeven, também publicado pela Universo
dos Livros. (N.E.)
No original, “Inspection Générale de Services”, comumente chamada de
“polícia das polícias”, é o órgão responsável pelo controle e pela
regulamentação da polícia nacional francesa. Dentre as suas funções, ela
pode abrir processos administrativos para investigar a conduta dos seus
membros. (N.T.)

fevereiro•2022
Clube SPA

DIA 3

fevereiro•2022
Clube SPA

7h15
Camille não dorme há quase dois dias. Enquanto aquece as mãos em
volta da caneca de café, ele olha para a loresta através da grande porta de
vidro do ateliê. Foi aqui, em Montfort, que sua mãe pintou durante longos
anos quase até sua morte. Depois disso, o lugar mergulhou no abandono,
foi invadido, depredado, Camille não se preocupou com isso, mas ele nunca
o vendeu, sem saber muito bem por quê.
Então, um dia, após a morte de Irene, ele escolheu não conservar nada
da mãe, nenhuma obra, era uma conta bem velha que ele tinha a quitar
com ela; é devido ao seu tabagismo que ele mede um metro e quarenta e
cinco.
Algumas telas se encontram em museus estrangeiros. Ele prometeu para
si mesmo também se desfazer do dinheiro angariado e, evidentemente,
nada fez com ele. Na verdade, sim. Quando voltou a viver em sociedade,
depois da morte de Irene, reconstruiu e reformou esse ateliê à beira da
loresta de Clamart, a antiga casa de um caseiro de uma propriedade agora
inexistente. Antigamente, o lugar era ainda mais isolado que hoje, quando
as primeiras casas não se encontram a mais de trezentos metros, mas
trata-se de trezentos metros de loresta densa. A estrada de terra termina
por ali, não vai além dela.
Camille reformou tudo, mandou colocar um piso de terracota vermelha
para substituir o anterior, que estalava a cada passo, construiu um
banheiro de verdade, montou um sótão onde fez seu quarto, toda a parte
de baixo é uma vasta sala, com uma cozinha americana, cuja parede lateral
é inteiramente envidraçada e com vista para a orla da loresta.
Assim como quando era criança, quando passava as tardes observando a
mãe trabalhar, essa loresta continua a aterrorizá-lo. Hoje se trata de um
temor adulto, que tem algo de tardio, de deleitoso e doloroso. A única
ponta de nostalgia que ele se permitiu está condensada nessa enorme
lareira de ferro fundido, plantada no centro da sala, substituindo a que sua
mãe havia instalado e que foi roubada quando a casa estava abandonada à
própria sorte.
Se você não tomar cuidado, o calor da lareira vai todo para cima, o
quarto do andar superior se torna uma estufa enquanto embaixo você tem
os pés gelados, mas esse tipo de aquecedor, rústico, lhe agrada porque é
preciso saber como lidar com ele, necessita tanto atenção quanto

fevereiro•2022
Clube SPA

experiência. Camille sabe abastecê-lo e regulá-lo para que ele dure a noite
inteira. No mais frio inverno, a atmosfera, pela manhã, é fresca, mas ele
considera essa primeira tarefa, abastecer e reacender a lareira, como uma
pequena liturgia.
Ele também substituiu uma larga parte do telhado por vidro, o céu é
constantemente visível, as nuvens e a chuva parecem estar caindo em cima
quando você levanta os olhos. Quando neva, é quase angustiante. Essa
abertura para o alto não serve de nada, ela oferece luz, mas, na verdade,
isso não fazia falta para a casa. Quando veio visitá-lo, Le Guen, homem
pragmático, obviamente se questionou. Camille disse:
– Fazer o quê? Tenho o tamanho de um poodle, mas aspirações cósmicas.
Ele vem para o ateliê sempre que pode. Vem nos dias de folga, nos ins
de semana, convida poucas pessoas. Mesmo porque na sua vida não há
muitas pessoas. Louis e Le Guen vieram, Armand também, não foi uma
decisão dele, mas esse lugar se mantém secreto, onde passa seu tempo
desenhando, sempre de memória. Nas pilhas de croquis, nas centenas de
cadernos que se amontoam pela vasta sala, encontram-se os retratos de
todos os que ele prendeu, de todos os mortos que viu e sobre os quais
investigou, juízes para os quais trabalhou, colegas com quem cruzou, com
uma predileção marcada pelas testemunhas que interrogou, silhuetas que
chegam e partem, passantes traumatizados, atordoados, espectadores
enfáticos, mulheres abaladas pelos acontecimentos, jovens garotas
submersas pela emoção, homens ainda exaltados por terem roçado a
morte, quase todos eles estão lá, dois mil croquis, talvez três mil, uma
gigantesca galeria de retratos sem igual: o cotidiano de um policial da
Brigada Criminal, interpretado pelo artista que ele nunca se tornou.
Camille é um desenhista como poucos, extremamente talentoso, ele diz às
vezes que seus desenhos são mais inteligentes que ele, o que é bem
verdade. A ponto de as fotogra ias parecerem até mesmo menos iéis,
menos precisas. Em uma visita ao hotel Salé, Anne lhe pareceu tão linda
que ele lhe disse: não se mexa, tirou seu celular do bolso, tirou uma foto
dela, uma só, para que ela aparecesse na tela quando ela ligasse para ele, e
depois, no im das contas, ele teve que fotografar um dos próprios croquis,
mais preciso, mais real, mais vivo.
Estamos em setembro, ainda não começou a fazer frio, Camille
contentou-se apenas em acender na lareira o que ele costuma chamar de
fogo de conforto.
Sua gata deveria morar aqui, Doudouche, mas ela não gosta do campo,
para ela é Paris ou nada, é o seu jeito. Ela também foi muito desenhada. E

fevereiro•2022
Clube SPA

Louis. E Jean. E Maleval, antigamente. Ontem à noite, um pouco antes de ir


dormir, ele desenterrou todos os retratos que fez de Armand, encontrou
até o croqui feito no dia da sua morte, Armand deitado sobre seu leito, com
aquele rosto comprido e, en im, calmo, que faz todos os mortos se
parecerem de um jeito ou de outro.
Diante da casa, a cinquenta metros, ao im daquilo que cumpre a função
de jardim de entrada, começa a loresta. A umidade cai com a noite, nessa
manhã seu carro está coberto de água.
Ele desenhou essa loresta com muita frequência, até arriscou pintá-la
com aquarela, porém ele não é muito dotado com as cores. O seu negócio é
a emoção, o movimento, a essência das coisas, mas ele não é um colorista.
Sua mãe, sim. Ele, não.
Seu celular vibra exatamente às sete e quinze.
Sem largar sua caneca de café, ele atende. Louis se desculpa.
– Não – responde Camille –, pode falar...
– A senhora Forestier não está mais no hospital.
Breve silêncio. Se tivessem que escrever a biogra ia de Camille
Verhoeven, a maior parte seria consagrada à história dos seus silêncios.
Louis, que sabe disso, continua a se perguntar. Essa mulher desaparecida,
que lugar será que ela ocupa de fato na vida dele? Será que ela é a
verdadeira, a única razão desse seu comportamento? Quanto de exorcismo
tem na atitude de Camille? De todo modo, o silêncio do comandante
Verhoeven diz su icientemente quanto sua vida tem andado conturbada.
– Desapareceu desde quando? – pergunta ele.
– Ninguém sabe, essa madrugada. A enfermeira passou por volta das
vinte e duas horas, conversou com ela, parecia calma, mas há uma hora,
sua sucessora encontrou o quarto vazio. Ela deixou a maior parte das suas
roupas no armário para fazer os outros pensarem que havia apenas se
ausentado momentaneamente. Com isso, elas demoraram um pouco antes
de se darem conta de que ela havia realmente desaparecido.
– E o guarda?
– Ele diz que tem problemas de próstata, que, quando se ausenta, pode
demorar bastante.
Camille toma um gole de café.
– Mande imediatamente alguém para o apartamento dela.
– Fiz isso, eu mesmo, antes de ligar para o senhor – diz Louis. – Ninguém
a viu...
Camille ixa os olhos na orla da loresta, como se esperasse socorro.
– O senhor sabe se ela tem família? – pergunta Louis.

fevereiro•2022
Clube SPA

Camille diz não, eu não sei. Na verdade, sim, ela tem uma ilha nos
Estados Unidos. Ele tenta lembrar o nome. Agathe. Mas não o diz.
– Se ela tiver ido para um hotel – continua Louis –, será mais demorado
para achá-la, mas pode também ter pedido abrigo para um conhecido. Vou
veri icar no trabalho dela.
Camille suspira:
– Não, pode deixar – diz ele –, eu faço isso. Você se mantém concentrado
no Hafner. Alguma novidade?
– Nada por enquanto, parece que ele sumiu pra valer. Último domicílio
conhecido, ninguém. Locais que costuma frequentar, nenhum rastro. Entre
as pessoas que o conhecem, ninguém o viu desde o começo do ano...
– Desde o assalto de janeiro?
– Sim, mais ou menos.
– Ele deve ter se mandado para bem longe...
– É o que todos acham. Alguns acreditam até que ele está morto, mas
com base em nada. Dizem também que ele está doente, é uma informação
que se ouve com frequência, mas, pela sua performance na galeria Monier,
eu diria que ele está bem cheio de vida. Continuamos a procurá-lo, mas não
acredito muito que...
– E os resultados do laboratório sobre a morte de Ravic, quando os
teremos?
– Nada antes de amanhã, pelo menos.
Louis deixa pairar um silêncio delicado; dentro da sua educação, esse
tipo de silêncio é muito particular, reservado a perguntas di íceis. Ele
arrisca:
– Quanto à senhora Forestier, quem avisa a comissária, eu ou o senhor?
– Eu faço isso.
A resposta irrompeu. Rápida demais. Camille coloca a caneca sobre a
pia. Louis, sempre intuitivo, espera a sequência, que não demora.
– Ouça, Louis... pre iro procurá-la eu mesmo.
Ele supõe que Louis tenha concordado, balançando a cabeça
discretamente.
– Acho que posso encontrá-la... bem rápido.
– Sem problema – decide Louis.
A mensagem quer dizer claramente que ninguém vai falar nada para a
comissária Michard.
– Estou a caminho, Louis. Bem rápido. Antes, tenho um compromisso,
mas logo em seguida eu chego.

fevereiro•2022
Clube SPA

A gota de suor frio que Camille sente descer ao longo das costas não tem
nada a ver com a temperatura do ateliê.

7h20
Ele termina de se vestir rapidamente, mas não pode ir embora assim, é
mais forte que ele, precisa se certi icar de que tudo está bem seguro, é sua
velha sensação incômoda de que tudo sempre depende dele.
Ele sobe ao sótão, caminha na ponta dos pés.
– Eu não estou dormindo...
Então ele se aproxima com mais convicção, senta-se na beira da cama.
– Eu ronquei? – pergunta Anne sem se virar.
– Com uma fratura no nariz é inevitável.
Ele sempre topa com essa posição. Já no hospital, sempre com o rosto
para o outro lado, na direção da janela, ela não quer mais me ver, sente que
sou incapaz de protegê-la.
– Você está segura aqui, não vai acontecer nada com você.
Anne balança a cabeça, di ícil saber se está dizendo sim ou não.
Está dizendo não.
– Ele vai descobrir. Ele vai vir aqui.
Ela se vira sobre as costas e olha para ele. Quase o faz duvidar de si
mesmo.
– Isso é impossível, Anne. Ninguém poderia imaginar que você está aqui.
Anne se limita apenas a balançar a cabeça mais uma vez. O signi icado é
claro: você pode dizer o que quiser, ele vai me achar, ele vai vir me matar. A
história começa a virar uma obsessão, torna-se incontrolável. Camille
segura sua mão.
– Depois do que aconteceu com você, é normal sentir medo. Mas eu
asseguro...
Dessa vez, o balanço da cabeça pode querer dizer: como explicar para
você? Ou então: deixe para lá.
– Tenho que ir – diz Camille consultando seu relógio. – Você tem tudo o
que precisa lá embaixo, eu mostrei...
Sim. Com um gesto. Ela ainda está muito cansada. Nem a penumbra do
quarto é capaz de mascarar o estrago dos hematomas e dos ferimentos.
Ele mostrou tudo para ela, a cafeteira, o banheiro, a farmácia para limpar
os curativos. Não queria que ela deixasse o hospital, quem vai acompanhar
a evolução do seu estado, retirar os pontos? Mas não havia nada a fazer;

fevereiro•2022
Clube SPA

frenética, nervosa, ela não queria mais saber do hospital, estava


ameaçando voltar para casa. Ele não podia lhe dizer que esperavam por ela
lá, que seria uma emboscada, como fazer, o que fazer, para onde a levar,
senão para cá, para esse im de mundo?
Então é isso. Aí está Anne.
Nenhuma mulher jamais esteve aqui. Camille rechaça esse pensamento
porque, na verdade, foi lá embaixo, perto da porta, que Irene foi morta. Há
quatro anos, tudo mudou; ele reformou o ateliê, mas, ao mesmo tempo,
tudo se mantém do mesmo jeito. Ele também fez uma “limpeza”. A seu
modo, nunca terminou a tarefa. Alguns trapos de vida ainda permanecem
presos aqui e ali, e, se olhar ao redor de si, ele pode vê-los por toda parte.
– Faça como eu disse – continua ele –, fech...
Anne põe a mão sobre a dele. Com as talas nos dedos, o gesto não tem
nada de romântico. Ela quer dizer: você já me disse isso tudo, eu entendi,
pode ir.
Camille se vai. Ele desce os degraus do sótão, sai, tranca a porta, entra no
carro.
A situação dele se tornou muito mais complicada, mas a de Anne muito
mais segura.Trazer a responsabilidade para si, carregar o mundo nos
ombros. Se ele tivesse uma altura normal, será que ele teria tanto esse
senso do dever?

8h
A loresta me deprime, sempre detestei. Essa é pior que as outras.
Clamart, Meudon, é o mesmo que dizer que estou em lugar nenhum. Sem
graça como um im de semana chuvoso. Um letreiro de madeira anuncia
um perímetro suburbano, di ícil saber o que pode vir a ser, algumas
residências, propriedades de novos ricos, não se trata nem de cidade, nem
de vilarejo, nem de periferia. São os arredores. Arredores do quê?, você se
pergunta. Pelo esmero que eles têm com seus jardins, seus terraços, não
sei o que é mais desanimador, a tristeza do lugar ou a satisfação que ele
parece oferecer aos seus habitantes.
Passados os conglomerados de casas, não há nada mais além da loresta
a perder de vista, passo pela rua do Pavé-de-Meudon que o GPS leva um
século para localizar e, à esquerda, a rua da Morte-Bouteille, quem foi
inventar esse nome? Sem contar que é totalmente impossível estacionar

fevereiro•2022
Clube SPA

com discrição; tenho que voltar até o im do mundo e seguir o resto do


trajeto a pé.
Estou icando enfezado, não tenho comido direito, estou cansado,
tentando fazer tudo ao mesmo tempo. Não gosto de caminhar. Ainda mais
na loresta...
A donzela só precisa aguardar quietinha no seu lugar, vou lhe dar uma
lição logo mais. Estou bem equipado para me explicar com clareza. E
quando eu tiver terminado com isso tudo, irei para um lugar onde é
proibido loresta. Não vou querer árvore a menos de um raio de cem
quilômetros de distância, quero uma praia, coquetéis infernais, algumas
boas mãos de pôquer e me recuperar de todas essas emoções. Estou
icando velho. Quando tudo tiver acabado, quero aproveitar enquanto
ainda há tempo. Para isso, tenho que recuperar o sangue-frio, caminhar
por essa loresta estúpida, atento a tudo o que acontece, ninguém poderia
imaginar, mas é insano como pode ter gente num lugar tão deserto assim,
jovens, velhos, casais, eles passam perambulando desde as primeiras horas
do dia, passeando, fazendo exercícios. Até cruzei com alguns a cavalo.
Apesar disso, quanto mais avanço, menos gente encontro. A casa está
recuada bem ao longe, a mais de trezentos metros, e a estrada de terra só
leva até ela, depois não há mais nada, apenas loresta.
Caminhar por aqui com um fuzil de precisão, mesmo dentro de um
estojo, não é muito local, ainda mais considerando que eu não pareço
muito com um cara que está à procura de cogumelos, então eu o en iei
dentro de uma bolsa de esporte.
Não tenho visto mais ninguém há alguns minutos, o GPS está perdido,
mas não há outro caminho além desse.
Vamos ter a tranquilidade necessária. Vamos poder trabalhar direitinho.

8h30
Cada porta que estala, cada metro de corredor, cada olhar para as
grades, tudo lhe é custoso e pesado. Porque, no fundo, Camille está com
medo. Quando, há muito tempo, a certeza de ter que vir aqui se impôs
certo dia, ele a rechaçou de imediato. Mas ela voltou à super ície,
continuou a se agitar, como um grande peixe na beira do rio, sussurrando
ao pé do seu ouvido que o grande encontro iria acontecer, cedo ou tarde.
Faltava apenas um pretexto para ele vir aqui, para ceder a essa
necessidade irrepreensível sem ter que sentir vergonha de si mesmo.

fevereiro•2022
Clube SPA

As portas pesadas e metálicas da Casa de Dentenção Central se abrem e


se fecham, à sua frente, atrás, ao redor.
Enquanto avança com seu pequeno passo de pardal, tão leve, Camille
contém uma vontade de vomitar, a cabeça gira.
O guarda que o escolta se mostra servil, quase protetor, como se
estivesse ciente da situação e que, por conta dessa circunstância
excepcional, Camille tivesse direito a cuidados particulares. Camille vê
sinais em todo lado.
Uma sala, outra e eis a sala de visita. Abrem a porta. Ele entra, senta-se
diante da mesa de ferro ixada ao chão, seu coração bate a uma cadência
alucinante, a garganta está seca. Ele espera. Pousa as mãos abertas sobre a
mesa e, vendo-as tremer, coloca-as debaixo da mesa.
Em seguida, a segunda porta se abre, a do fundo da sala.
De início, ele não vê mais que os sapatos, apoiados no suporte metálico
da cadeira de rodas, sapatos pretos de couro, excessivamente brilhantes;
em seguida, a cadeira desliza, lentamente, causando uma impressão de
apreensão ou descon iança. Surgem, então, duas pernas, cujos joelhos,
esticando o tecido, expõem sua corpulência. A cadeira se detém no meio do
caminho, à soleira da sala, não deixando entrever mais que duas mãos
rechonchudas, brancas, sem veias, apertando as duas grandes rodas
emborrachadas. Mais um metro e inalmente eis o homem.
Ele se detém. Assim que entra, ixa os olhos em Camille e não o
abandona mais. O guarda passa à frente, afasta da mesa a cadeira metálica
para dar lugar à cadeira de rodas e, a partir de um sinal de Camille, ele se
retira.
A cadeira avança, girando em torno de si com uma leveza inesperada.
Ali estão eles: face a face.
Camille Verhoeven, comandante da polícia judiciária, encontra-se, pela
primeira vez em quatro anos, diante do assassino de sua esposa.
O homem que ele conheceu outrora era alto, ainda magro, mas já
assombrado pela obesidade, com uma elegância fora de moda, um tom de
nobreza decadente, de uma sensualidade quase avassaladora,
principalmente centralizada na boca. O detento que ele tem diante de si é
um homem gordo e desleixado. Seus traços são perfeitamente idênticos
aos de antigamente, mas imersos dentro de um conjunto cujas proporções
mudaram. Somente seu antigo rosto se mantém o mesmo, como uma
máscara minuciosamente desenhada colocada sobre uma cabeça de um
obeso. Seus cabelos estão longos demais. O olhar é exatamente o mesmo,
cauteloso, pér ido.

fevereiro•2022
Clube SPA

– Estava escrito – diz Buisson. Sua voz treme, alta demais, estridente
demais. – E a hora é agora – conclui ele, como se a entrevista tivesse
acabado de terminar.
Já nos seus tempos de esplendor, ele adorava essas frases de efeito. Na
realidade, foi a mesma coisa que fez dele o homicida de seis pessoas, esse
gosto pela grandiloquência, essa arrogância pretensiosa. Ele e Camille se
odiaram logo de cara, assim que se conheceram. Depois, a história, como
acontece muitas vezes, con irmou que as intuições deles haviam feito
escolhas corretas. Mas não é o momento de falar do passado.
– Sim – responde Camille –, é agora.
Sua voz não treme. Ele está mais calmo agora que se vê diante de
Buisson. Tem muita experiência no face a face e percebeu que não
explodiria. Esse homem cuja morte, tortura e sofrimentos o izeram sonhar
tanto não é mais o mesmo e, ao descobri-lo assim, anos mais tarde, Camille
compreende que agora ele pode se abandonar a um rancor sereno,
de initivo, pois não tem mais a urgência passional. Durante todos esses
anos, projetou sobre o assassino de Irene todo o seu ódio, sua violência e
seu ressentimento, mas são águas passadas.
Buisson é assunto encerrado.
A história de Camille, por outro lado, não.
Sua culpa pessoal pela morte de Irene continuaria a lhe declarar guerra
para sempre. Ele nunca resolveria sua questão com ela, eis a constatação, a
certeza que esclarece tudo. Todo o resto era evasão.
Ao tomar consciência disso, Camille levanta a cabeça para o teto e
devolve lágrimas que o reaproximam imediatamente de uma Irene intacta,
encantadora, eternamente jovem, só para ele. Enquanto ele envelhece, ela,
mais radiante que nunca, não mudará; o que Buisson fez com ela não tem
mais nenhum poder sobre sua lembrança, a coleção íntima de imagens,
reminiscências, sensações que condensam o amor que Camille teve por
Irene.
E do qual sua vida carrega o vestígio como uma cicatriz na bochecha,
discreta, mas inalterável.
Buisson não se move. Desde o começo da entrevista, está com medo.
A comoção de Camille, breve, rapidamente controlada, não criou
nenhum embaraço entre os dois homens. As palavras virão, primeiro era
necessário que o silêncio tivesse sua vez. Camille volta a si, ele não quer
que Buisson veja, nesse conturbado imprevisto e no silêncio de ambos,
uma espécie de comunhão muda. Não quer compartilhar nada com ele.

fevereiro•2022
Clube SPA

Assoa o nariz, en ia o lenço no bolso, põe os cotovelos sobre a mesa, cruza


as mãos sob o queixo e encara Buisson.
Desde ontem, Buisson temia esse momento. Desde que ele soube – e isso
não demorou muito – que Verhoeven havia visitado Mouloud Faraoui, ele
compreendeu que sua hora havia, en im, chegado. Permaneceu acordado a
noite toda, virou-se e revirou-se na cama, não conseguia acreditar que
fosse sua hora. Sua morte agora é certa. O bando de Faraoui, na Casa de
Detenção Central, é onipresente, não permitiria nem que uma barata se
escondesse. Se Camille encontrou um jeito de pagar pelos serviços
prestados por Faraoui – por exemplo, oferecendo o nome daquele que o
entregou –, em uma hora, em dois dias, Buisson vai receber uma espetada
na garganta saindo do refeitório, vai ser estrangulado por trás com um io
de ferro enquanto dois isiculturistas seguram seus braços. Vai ser jogado
junto com a cadeira do terceiro andar. Ou ser as ixiado debaixo do
travesseiro. Tudo dependerá da ordem, até Verhoeven pode, se quiser,
exigir uma morte bem longa, Buisson pode agonizar uma noite inteira
amordaçado em banheiros fétidos, sangrando gota após gota amarrado no
armário de uma das o icinas...
Buisson tem medo de morrer.
Ele não achava mais que Camille se vingaria. Esse medo, que o havia
abandonado durante todo esse tempo, retorna tão mais violento, tão
aterrorizador que ele não parece merecê-lo tanto assim. Esses anos de
prisão, com tudo o que lhe aconteceu aqui, o lugar que ele soube construir
para si, o respeito que soube despertar nos outros, o poder que adquiriu,
fabricaram na sua mente uma espécie de impunidade que Verhoeven
arruinou em algumas horas. Bastou fazer uma visita a Faraoui para que
todo mundo compreendesse que o perdão era apenas aparente, que
Buisson entrara nas suas últimas horas de remissão. Falou-se muito disso
pelos corredores, Faraoui espalhou a notícia amplamente, devia fazer parte
do acordo com Verhoeven assustar Buisson. Alguns carcereiros sabem
disso, os detentos não têm mais a mesma cara que antes quando olham
para eles.
Por que agora? Eis a questão.
– Parece que você se tornou um cara in luente...
Buisson se pergunta se essa constatação é a resposta. Mas não. Camille
apenas apresentou um diagnóstico. Buisson é um homem muito
inteligente. Durante sua fuga, Louis acertou uma bala nas suas costas que o
pregou a essa cadeira, mas, antes disso, ele deu muita dor de cabeça para a
polícia. Chegou à prisão precedido de uma reputação lisonjeira, tornou-se

fevereiro•2022
Clube SPA

até mesmo uma espécie de celebridade por ter conseguido dar tanto
trabalho para a Polícia Criminal; ele soube fazer fruti icar seu pequeno
capital de simpatia com muito talento junto aos outros detentos,
conseguindo se içar para fora das guerras de gangues, fazendo favores a
uns e outros: um intelectual ali dentro, um homem que sabe das coisas, é
uma raridade. Ele teceu, ao passar dos anos, uma rede bem estreita de
relações, primeiro aqui dentro, depois fora, graças aos detentos que
saíram, para os quais ele continuou a fazer favores, apresentando pessoas,
organizando reuniões, presidindo encontros. No ano passado, ele chegou
até mesmo a intervir numa luta fratricida entre duas gangues da periferia
oeste, a esfriar a rixa, propôs os termos do acordo, negociou, um trabalho
de ourives. Ele não se mistura com nenhum trá ico interno, mas conhece
todos. E, quanto ao que ocorre do lado de fora da prisão, em matéria de
criminalidade, desde que ela seja de um alto calibre, Buisson sabe tudo o
que há por saber, é distintamente informado e, portanto, um homem
poderoso.
Apesar disso tudo, agora que Camille tomou sua decisão, amanhã talvez,
ou em uma hora, ele será um homem morto.
– Você parece preocupado... – diz Camille.
– Eu estou esperando.
Buisson imediatamente se arrepende do que disse porque soa como
uma provocação, portanto, uma derrota. Camille levanta a mão, não tem
problema, ele compreende.
– Você vai me explicar...
– Não – diz Camille –, não vou explicar nada. Vou apenas dizer como as
coisas vão acontecer, nada mais.
Buisson ica muito pálido. O distanciamento que demonstra Verhoeven
lhe parece uma ameaça suplementar. Isso o revolta.
– Eu tenho direito a uma explicação! – grita Buisson.
Fisicamente, hoje ele é outra pessoa, mas, internamente, nada mudou.
Continua com aquele ego gigantesco. Camille mexe no bolso. E põe sobre a
mesa uma foto.
– Vincent Hafner. Ele é...
– Eu sei quem é...
A reação irrompe como se ele tivesse se sentido insultado. Ela também é
o resultado de alívio. Em uma fração de segundo, Buisson percebeu que ele
ainda tinha uma chance.
Camille discerne uma espécie de euforia instintiva e involuntária na sua
voz, mas não se detém a isso. Era previsível. Buisson tenta imediatamente

fevereiro•2022
Clube SPA

dispersar essa impressão, contornar a conversa.


– Não o conheço pessoalmente... Ele não é nenhuma lenda, mas, ainda
assim, é alguém de respeito.Tem uma reputação bem... cruel. Um
brutamontes.
Alguém deveria instalar eletrodos no seu crânio para medir a velocidade
impressionante com que se operam as sinapses.
– Ele desapareceu em janeiro – retoma Camille. – Permaneceu
desaparecido por um bom tempo, até mesmo para os mais próximos, os
que trabalharam com ele. Não deu mais notícias. E aí ele aparece do nada,
de repente, como se estivesse ainda mais jovem, voltando aos velhos
métodos. Volta ao trabalho, novo em folha.
– E isso parece estranho para você.
– Tenho di iculdade para conectar seu desaparecimento, tão súbito...
com esse retorno arrebatador. Vindo da parte de um cara que está no im
da carreira, é surpreendente.
– Portanto, tem algo errado.
Camille expõe, então, um rosto preocupado, o rosto de um homem infeliz
consigo, quase enfurecido.
– Vamos colocar dessa forma, tem algo errado. Algo que não estou
entendendo.
Diante do minúsculo sorriso de Buisson, Camille se parabeniza por ter
apostado na sua altivez. Ela fez dele um assassino reincidente. Ela o levou à
prisão. É por causa dela que ele vai acabar morrendo um dia na cela. E,
porém, ele não aprendeu nada com isso, seu narcisismo, intacto, um poço
sem fundo, sempre pronto para derrubá-lo no sentido para o qual ele
pender. “Que não estou entendendo”, frase-chave, mensagem essencial
para Buisson que, por sua vez, pode entender. Não consegue esconder isso.
– Talvez por causa de alguma emergência...
É preciso ir até o im. Camille não demonstra o quanto está sofrendo por
se rebaixar a trapacear desse modo. Ele é investigador, o im justi ica os
meios. Então, levanta os olhos para Buisson, inge estar intrigado.
– Dizem que Hafner está muito doente... – articula lentamente Buisson.
Quando se optou por um estratagema, até que se prove o contrário, o
melhor é se manter nele:
– Então que morra – responde Camille.
O resultado não demora:
– Justamente, é isso que deve tê-lo movido, o fato de estar prestes a
morrer! Ele está com uma garota bem mais nova... Uma puta do mais baixo

fevereiro•2022
Clube SPA

nível, com dezenove anos, ela já tinha dado para o equivalente a uma
cidade. Ela deve gostar de apanhar, só pode ser isso...
Camille se pergunta se Buisson vai ter o atrevimento, ou a
inconsequência, de seguir até o im. A resposta é sim.
– Independentemente do que ela seja, parece que Hafner se empolgou
com essa garota. O amor, comandante, como tem poder, não é mesmo?
Você entende um pouco do assunto...
Camille não demonstra, mas está no seu limite, a alguns milímetros de
entrar em dissidência. Por dentro, ele é um homem em pedaços. Acabou de
autorizar Buisson a chafurdar na sua história. “O amor, comandante...”.
Buisson deve sentir isso, uma camada de instinto de autopreservação se
sobrepõe ao deleite da situação.
– Se está muito doente – continua ele –, talvez Hafner queira deixar sua
donzela livre de necessidades futuras. Sabe como é, os instintos mais
generosos se encontram nas almas mais obscuras...
O rumor já corria, Louis lhe contara aquilo, mas essa con irmação, que
custa caro, valia o sacri ício.
Para Camille, um feixe de luz acaba de aparecer, ali, bem no im do túnel.
Esse alívio não escapa à Buisson. Mas ele é perverso; ao mesmo tempo que
arrisca a vida, não consegue deixar de especular sobre a necessidade do
comandante Verhoeven, sobre a importância que ele atém a essa
investigação para se rebaixar a ponto de ter que se dirigir a ele. Diante
dessa sua necessidade urgente, mal tendo salvado a própria vida, ele já
está se perguntando que proveito pode tirar disso.
Camille não lhe dá tempo para isso.
– Preciso encontrar o Hafner, imediatamente. Você tem doze horas.
– Isso é impossível! – exclama Buisson, esbaforido.
Ao ver Camille se levantar, ele vê escapar sua última chance de
permanecer vivo. Bate febrilmente com o punho sobre os braços da sua
cadeira. Camille permanece imóvel.
– Doze horas, nem uma a mais. Sempre trabalhamos com mais e icácia
quando estamos sob pressão.
Ele bate com a palma da mão na porta. No momento em que ela se abre,
ele se volta para Buisson:
– Mesmo depois disso, ainda posso mandar matarem você quando eu
quiser.
Bastou que ele dissesse isso para que ambos se dessem conta de que ele
tinha de dizê-lo, mas que não era verdade.

fevereiro•2022
Clube SPA

Que Buisson já deveria estar morto há muito tempo se ele fosse mesmo
fazer isso.
Que, para Camille Verhoeven, ordenar um assassinato não condiz com o
que ele é.
E agora que sabe que não está arriscando nada, agora que entende que,
na verdade, talvez nunca tenha arriscado nada, Buisson toma a decisão de
descobrir o que Verhoeven precisa saber.
Ao sair da prisão, Camille se sente, ao mesmo tempo, aliviado e
terrivelmente abalado, como o último sobrevivente de um naufrágio.

9h
O frio me causa tantos problemas quanto o cansaço. Não dá para senti-lo
de imediato, mas, se você não começa a se mexer logo, rapidamente ica
congelado até os ossos. Vai ser fácil para atirar com precisão!
Mas pelo menos o local é tranquilo. A casa é térrea, extensa, sem andar
superior, embora tenha um telhado alto. O espaço é desobstruído na parte
da frente. Eu me preparo atrás de um minúsculo alpendre situado no
extremo do jardim de entrada, no passado isso devia ser uma coelheira ou
algo do tipo.
Deixo ali o fuzil de precissão, permaneço apenas com a Walther e o
punhal de caça, e saio do esconderijo para fazer um reconhecimento do
local.
Compreender a topologia é essencial. Os danos a se causar devem ser
bem dirigidos, nos lugares certos. Ser cauteloso. Preciso. Como dizem
mesmo? Ah, sim.“Cirúrgico”. Aqui, utilizar a Mossberg seria como utilizar
um rolo para pintar uma miniatura. Cirúrgico quer dizer fazer incisões
precisas nos locais necessários. E, como a parede envidraçada é
visivelmente à prova de muitas coisas, ico feliz por ter escolhido a m40a3
com sua mira telescópica, essa arma é muito precisa. Com grande poder de
perfuração.
Um pouco à direita da casa, encontra-se algo como um montículo. Por
cima dele, a terra deslizou com a chuva, ele é composto por materiais de
construção, gesso, blocos de cimento, que provavelmente foram separados
para serem jogados fora, o que, no im das contas, nunca foi feito. Esse não
é o posto ideal para eu me instalar, mas é tudo de que disponho. Daqui,
posso ver uma grande parte do cômodo principal, mas apenas de viés. Para
atirar, vou precisar icar de pé. No último segundo.

fevereiro•2022
Clube SPA

Eu já a vi passar uma vez ou duas, mas com muita rapidez. Sem


problema, para atirar eu teria de me precipitar. Porém é preciso fazer as
coisas direito.

Assim que se levantou, Anne foi até a porta para veri icar se Camille
havia trancado bem as fechaduras. A casa foi arrombada várias vezes, nada
espantoso para um lugar tão isolado, por isso, hoje tudo é blindado. A
grande parede de vidro é constituída por um duplo envidraçamento
reforçado, podem martelá-la, e ela sequer vai estremecer.
– Esse é o código para o alarme – disse Camille, mostrando a ela uma
página rasgada de um caderno. – Você digita jogo da velha, os números,
jogo da velha. Isso força o alarme a se ativar. Não está conectado ao
comissariado, não dura mais que um minuto, mas garanto, é bem
dissuasivo.
Os números são: 29091571, ela não teve vontade de perguntar ao que
eles correspondem.
– A data de nascimento de Caravaggio... – Ele parecia se desculpar. – Não
é uma má ideia para um código, não há muitos que o conhecem. Mas, eu
garanto mais uma vez, você não precisará dele.
Ela também visitou os fundos da casa, onde há uma lavanderia e um
banheiro. A única porta que dá para o exterior é blindada e também está
trancada.
Em seguida, Anne tomou um banho, como ela pôde, impossível lavar os
cabelos corretamente; hesitou em retirar as talas dos dedos. Não fez isso
ainda porque é muito doloroso, sempre que toca nas extremidades das
falanges, ela contém um grito. Vai ter que se adaptar a isso. Como se tivesse
patas de urso, apanhar o menor objeto se torna uma façanha. Ela faz o
máximo das coisas com o polegar direito, o esquerdo está luxado.
O banho lhe fez um bem imenso, sentiu-se suja a noite inteira, com a
impressão de carregar consigo os odores do hospital.
A água inicialmente fervente, bastante suave, acalentou-a por um longo
momento; ela abriu a janela e o ar deliciosamente fresco a revigorou.
Já seu rosto não parece mudar. No espelho, é o mesmo da noite anterior,
mas cada vez mais feio, mais inchado, mais roxo aqui, mais amarelado ali, e
esses dentes quebrados então...

fevereiro•2022
Clube SPA

Camille dirige prudentemente. Com excesso de prudência. Demasiado


lento, sobretudo considerando que o trecho da rodovia não é muito longo,
os motoristas tendem a esquecer os limites de velocidade. Camille está
com a mente em outro lugar, a tal ponto preocupado que o piloto
automático se reduziu ao mínimo: setenta quilômetros por hora, sessenta,
em seguida cinquenta, com a consequência habitual, a enxurrada de
buzinas, os xingamentos de passagem, os faróis altos, o carro se arrasta até
chegar à via periférica. Tudo isso se deve à seguinte questão: ele dormiu,
no lugar mais secreto da sua vida, com essa mulher, mas o que ele sabe
dela realmente? O que sabem eles um do outro, ele e Anne?
Fez as contas do que Anne sabe a respeito dele. Contou-lhe apenas o
essencial, Irene, sua mãe, seu pai. Sua vida, no fundo, não tinha tanta coisa
assim. Com a morte de Irene, ele teria apenas um drama a mais que a
maior parte das pessoas.
E o que ele sabe de Anne também não vai muito além disso, na verdade.
Um emprego, um casamento, um irmão, um divórcio, uma ilha.
Tendo chegado a essa constatação, Camille entra com o carro na faixa do
meio, tira o celular do bolso, conecta-o ao acendedor de cigarro, acessa a
internet, abre uma guia do navegador e, como a tela é mesmo muito
pequena, ele coloca os óculos, o telefone escapa das suas mãos, ele é
obrigado a ir buscá-lo sob o assento do passageiro, se você mede um metro
e quarenta e cinco, imagine como deve ser fácil.
Então o carro vai para a faixa da direita, aquela em que é possível dirigir
devagar, beirando a faixa que separa do acostamento, sobre a qual ele
circula por um longo momento, tempo necessário para Camille recuperar o
celular, mas, durante todo o tempo, seu cérebro segue o embalo.
O que ele sabe de Anne.
Sua ilha. Seu irmão. Seu trabalho na agência de viagens.
O que mais?
O sensor interno se manifesta por meio de um formigamento. Entre os
ombros.
Sua boca ica seca.
Uma vez o celular de volta à mão, Camille digita no teclado: “Wertig &
Schwindel”. Nada fácil de digitar, há um monte de letras impossíveis nesses
nomes, mesmo assim, ele consegue.
Ele tamborila os dedos no volante, esperando o aparecimento da página
inicial, aqui está ela en im, com palmeiras e praias dos sonhos – ao menos,
para aqueles que sonham com praias –, um caminhão semirreboque o
ultrapassa furiosamente, esbravejando até morrer, Camille dá uma leve

fevereiro•2022
Clube SPA

guinada, mas permanece curvado sobre sua tela minúscula, a organização,


a mensagem do presidente, quem liga para essas coisas? En im, eis aí o
organograma da empresa, Camille se arrasta sobre a faixa do acostamento,
ele puxa o carro de uma vez, um veículo passa raspando à esquerda, outro
grito, parece que dá para ouvir daqui os xingamentos do motorista
exaltado. A diretoria-geral e a consultoria de gestão, dirigidos por Jean-
Michel Faye. Um olho no celular, outro na pista, ele chega a Paris, Camille
aproxima ainda mais a tela do rosto; na sua foto, Jean-Michel Faye, trinta
anos, corpulento, cabelos escassos, mas com ar con iante, um típico rosto
de diretor.
Ao entrar na via periférica, Camille está passando pela interminável
página dos contatos, a que exibe o pedigree de todas as pessoas
importantes da empresa, ele procura a foto de Anne na lista dos
colaboradores, as fotos passam uma por uma, o polegar na seta de baixo,
ele passou direto pela letra F, enquanto tenta voltar para cima, ouve a
sirene atrás de si, levanta os olhos para o retrovisor, espreme-se à direita
da faixa que se encontra mais à direita, mas não há nada a fazer, o
motoqueiro da polícia o ultrapassa, faz sinal para que ele encoste, Camille
abandona o celular. Droga.
Ele estaciona. Os tiras são mesmo um pé no saco.

Aqui não tem nada de mulher. Nenhum secador de cabelo, nenhum


espelho, uma casa de solteiro. Nada de chá também. Anne encontrou
canecas, escolheu uma que tem uma inscrição cirílica:

Мой дядя самых честных правил,


Когда не в шутку занемог

Ela encontrou chá natural, mas muito envelhecido, já sem nenhum gosto.
Ela se deu conta quase de imediato de que nessa casa ela é
constantemente obrigada a desfazer seus gestos, a fazer um pequeno
esforço suplementar para cada coisa. Pois essa é a casa de um homem de
um metro e quarenta e cinco, tudo nela é um pouco mais baixo do que em
outro lugar, as maçanetas das portas, das gavetas, os objetos, os
interruptores... Um olhar panorâmico e você pode avistar por toda parte
meios de icar mais alto, escadotes, escadas, banquinhos... pois,
estranhamente, nada também é da altura de Camille. Ele não excluiu
totalmente a possibilidade de compartilhar esse espaço com alguém, tudo

fevereiro•2022
Clube SPA

está situado a uma altura intermediária entre o que seria confortável para
ele e aceitável para o outro.
Anne recebe essa constatação como uma punhalada no coração. Ela
nunca teve pena de Camille, não é o tipo de sentimento que ele provoca em
alguém, não, na verdade, ela está comovida. Sente-se culpada, mais aqui
que em outro lugar, mais agora que nunca, culpada por colonizar assim sua
vida, por arrastá-lo para a sua história. Ela se segura para não chorar,
decidiu que não vai mais se entregar às lágrimas.
Recuperar-se. Ela despeja o chá na pia com um gesto decidido, gesto de
raiva contra si mesma.
Está vestindo a parte de baixo do agasalho violeta e, na parte de cima,
uma blusa de gola alta; ela não tem mais nada que lhe pertence por ali. As
roupas que vestia quando foi para o hospital estavam cobertas de sangue,
os funcionários jogaram tudo fora, e, das roupas da sua casa que Camille
havia trazido, ele decidiu deixar a maior parte no armário para levar a
acreditarem, se alguém entrasse no quarto durante sua ausência, que ela
havia apenas saído brevemente do quarto. Ele estacionara perto da saída
de emergência, Anne serpenteou sinuosamente por trás da recepcionista,
subiu no carro e se deitou no banco de trás.
Ele prometeu lhe trazer roupas essa noite. Mas essa noite está muito
longe de chegar.
Durante a guerra, os homens deviam se fazer essa pergunta todos os
dias: é hoje que eu vou morrer?
Porque, apesar de toda a segurança de Camille, ele vai acabar vindo.
A única pergunta: quando? Agora ela está plantada na frente da grande
parede de vidro. Desde que começou a perambular pela sala, desde a
partida de Camille, ela tem se sentido sugada pela presença imponente
dessa loresta.
Sob a luz da manhã, isso parece uma alucinação. Ela se vira para ir ao
banheiro, mas volta à loresta. Algo idiota acabou de atravessar a sua
mente: em Odeserto dosTártaros, aquele posto avançado, diante do
deserto, pelo qual deve chegar o inimigo implacável.
Como alguém consegue sair vivo?

Os tiras não são nada bobos.


Assim que desce do seu carro (para sair, ele precisa saltar do banco
lançando as pernas para frente, como uma criança), o colega da moto
reconhece o comandante Verhoeven. Ele está trabalhando com seu

fevereiro•2022
Clube SPA

parceiro e tem o patrulhamento restrito a um perímetro, não pode se


afastar muito, mas propõe abrir o caminho por um trecho, digamos até a
Porte de Saint-Cloud, antes disso ele disse que, de todo modo, comandante,
celular ao volante, mesmo se temos bons motivos, é muito imprudente,
fazer parte da Polícia Judiciária não dá a ninguém o direito de virar um
perigo público, mesmo que estiver preocupado. Camille poupa uma boa
meia hora, continua a digitar no teclado do celular, discretamente. Estava
chegando ao cais quando o colega lhe faz um gesto com a mão; Camille põe
de volta os óculos, ele precisou de uns dez minutos para constatar que o
nome de Anne Forestier não igurava na lista dos colaboradores da Wertig
& Schwindel. Mas, ao checar de perto, ele descobre que a página não foi
atualizada desde dezembro de 2005... Anne ainda devia estar em Lion
nessa época.
Ele deixa o carro no estacionamento, desce do carro, está subindo os
degraus em direção ao seu escritório quando o celular toca.
É Guérin. Camille se vira, atende e desce rapidamente de volta para o
pátio de entrada, ninguém precisa ouvir o que ele tem a pedir para Guérin.
– Valeu por ter me ligado – diz ele, buscando soar amigável.
Ele explica apenas o que precisa, não alarmar o colega, mas ser honesto,
é um favor que estou pedindo, vou explicar, mas não vale a pena, Guérin já
está por dentro, também a comissária Michard deixou-lhe uma mensagem,
provavelmente pelo mesmo motivo. E logo mais, quando ele for ligar para
ela, vai ser mesmo obrigado a dizer, como está dizendo para Camille, que
ele não poderia tê-lo informado desse assalto, sob nenhuma hipótese:
– Estou de férias há quatro dias, meu velho... Estou te ligando da Sícilia.
Puta que o pariu. Camille tem vontade de bater em si mesmo. Ele
agradece, não, nada de mais, não se preocupe, sim, para você também,
então desliga. Já está com a mente longe, porque a ligação do colega não
interrompeu o formigamento na espinha nem a sequidão da boca,
sensações nada agradáveis para ele; são sinais distintivos do seu
pro issionalismo irrequieto.
– Bom dia, comandante! – diz o juiz.
Camille põe os pés de volta no chão. Há dois dias, ele tem a impressão de
estar trancado dentro de um pião gigante girando a uma velocidade
assustadora. Essa manhã está uma bagunça, o pião se comporta como um
elétron livre.
– Senhor juiz!...
Camille dá o seu sorriso mais aberto. Se você fosse o juiz Pereira,
poderia jurar que Camille estava esperando por você com impaciência.

fevereiro•2022
Clube SPA

Melhor, que estava indo encontrá-lo e que seu aparecimento lhe


proporcionou um enorme alívio, ele está com a mão bem aberta à sua
frente, balança a cabeça com um ar entusiasmado, as duas grandes mentes
se encontram.
A mente judiciária não parece tão entusiasmada quanto Camille. Ele
aperta sua mão com frieza. Camille, no seu encalço, procura a escrivã com
as pernas-de-pau, mas ele não tem tempo, o juiz já o ultrapassou, ele anda
ereto e apressado, sobe pela escada, toda a sua postura exprime a recusa
em conversar.
– Senhor juiz?
Pereira se vira, para, assume uma expressão de espanto.
– Posso conversar com o senhor por um instante, referente à galeria
Monier...

Em contraste com o calor ameno do banheiro, agora o frescor da sala


assinala duramente o retorno à vida real.
Camille deu instruções bem precisas, bem técnicas referentes à lareira
que, é óbvio, Anne logo esqueceu. Com a ajuda do atiçador, ela abre a placa
de ferro fundido e desliza na grande abertura uma tora que custa a entrar,
ela força, a tora cede, o tempo que ela demora para fechar de volta a placa é
su iciente para fazer pairar pela sala uma fumaça acre. Ela resolve fazer
uma xícara de café instantâneo.
Ela não consegue se aquecer, sente frio por dentro. Mais uma olhada
para a loresta enquanto espera que a água ique quente...
Em seguida, acomoda-se no sofá, folheia os desenhos de Camille, o único
trabalho que tem é escolher quais, eles estão por toda parte. Rostos,
silhuetas, homens de uniforme, ela reencontra com surpresa o guarda
grandalhão com a cara abobalhada e rugas amareladas, o que foi posto na
frente do quarto de hospital, que roncava tão profundamente quando ela
fugiu. Ele está de guarda em algum lugar, bastam três traços de Camille, e é
alucinante o realismo do desenho.
Os retratos são comoventes, mas sem concessões afetivas. Às vezes,
Camille se demonstra um caricaturista muito ino, mais cruel que
engraçado, sem ilusões.
E subitamente (ela não esperava por isso), em um caderno posto sobre a
mesa de centro de vidro, lá está, ela, Anne. Por várias páginas. Nenhuma
data. As lágrimas surgem de imediato. Primeiro por causa de Camille, por
imaginá-lo só ali, dias inteiros, desenhando de memória instantes que eles

fevereiro•2022
Clube SPA

compartilharam. E, depois, por causa dela mesma. Aquela não tem mais
nada a ver com a mulher que ela é hoje, os croquis remontam ao período
em que ela ainda era bela, com seus dentes intactos, sem os hematomas, as
cicatrizes na bochecha e ao redor dos lábios, o olhar perdido. Camille, com
alguns rabiscos do seu lápis, não fez mais que iscar alguns elementos do
cenário, mas Anne reconhece, quase todas as vezes, a circunstância que o
inspirou. Anne dominada por uma risada insana, a cena se passa no Chez
Fernand, no dia em que eles se conheceram, Anne de pé, na saída do
escritório de Camille, basta seguir o caderno página por página para
retraçar a história deles, aqui está Anne no Verdun, o café onde foram
conversar na segunda noite. Ela usa um gorro, sorri, está totalmente
segura de si e, ao ver a maneira com que Camille se lembra desse
momento, ela tinha bastante razão para estar assim.
Anne funga, pega um lenço. Eis sua silhueta caminhando pela rua, perto
da Opéra, ela veio se encontrar com ele, Camille tem ingressos para
Madame Butter ly, e, então, logo em seguida, Anne no táxi imitando a
protagonista. Cada página narra a história deles juntos, semana após
semana, mês após mês, desde o começo. Anne aqui e ali, no chuveiro e em
seguida na cama, por várias páginas; ela chora, sente-se feia, mas Camille,
por sua vez, projeta sobre ela um belo olhar. Ela estende o braço para a
caixa de lenços, precisa se levantar para alcançá-la.
É exatamente no momento em que ela apanha o lenço que a bala
atravessa a porta de vidro e estilhaça a mesa de centro.

Anne receava esse momento desde a hora em que acordou, ainda assim,
ica surpresa. Não pelo barulho habitual de um disparo de fuzil, mas pelo
impacto da bala, que lhe dá a impressão de que toda a fachada da casa vai
desabar. E a mesa se estilhaçando de uma só vez sob suas mãos a deixa
estupefata. Ela solta um grito. Tão rápido quanto seus re lexos permitem,
encolhe-se como um porco-espinho. No primeiro golpe de vista para fora,
vê que a porta de vidro não se estilhaçou. No local em que a bala passou há
um grande buraco brilhante do qual partem longas issuras... Quanto
tempo ela vai conseguir resistir?
Anne percebe rapidamente que ela é um alvo exposto. Onde encontra
energia, impossível dizer: com um movimento dos quadris, ela se lança por
cima do encosto do sofá.
O rolamento lateral comprime suas costelas fraturadas, deixando-a sem
ar; ela desaba pesadamente, grita, mas o instinto de sobrevivência é mais

fevereiro•2022
Clube SPA

forte. Apesar da dor, senta-se com rapidez contra o encosto do sofá e


pergunta-se imediatamente se uma bala pode atravessá-lo e atingi-la. Seu
coração bate como se fosse explodir. Ela é dominada por ondas de
tremores, da cabeça aos pés, como se estivesse com frio.
O segundo tiro passa bem rente acima dela. A bala perfura a parede, ela
abaixa a cabeça por instinto, pedaços de gesso atingindo seu rosto,
pescoço, olhos; então se deita completamente sobre o chão, pondo as mãos
na cabeça.
Quase na mesma posição em que ela se encontrava no banheiro da
galeria Monier, no dia em que ele a espancou.
Um telefone. Ligar para Camille. Imediatamente. Ou para a polícia.
Alguém precisa vir. Rápido.
Anne percebe a di iculdade da situação em que se encontra: seu celular
está lá em cima, perto da cama, e, para subir ao sótão, é preciso atravessar
a sala toda.
Exposição.
Ao atingir a lareira, a terceira bala provoca o estrondo de um gongo de
intensidade ensurdecedora. Anne começa a icar zonza; ela comprime as
duas mãos contra as orelhas. Sob o choque do ricochete da bala, um
quadro, do outro lado da sala, se estilhaça na parede. Está tão aterrorizada
que sua mente não consegue se concentrar numa ideia; ela funciona numa
espécie de entorpecimento em que se misturam imagens da galeria
Monier, outras do hospital e sempre, sempre o rosto de Camille, sério,
reprovador, como se a vida passasse diante dos seus olhos um pouco antes
do momento da morte.
É o que está acontecendo. Ele não vai continuar errando por muito
tempo. E, dessa vez, ela está totalmente sozinha, sem nenhuma esperança
de alguém vir em seu socorro.
Anne engole em seco. Não pode permanecer nesse local. Ele vai
conseguir entrar na casa, ela ainda não sabe como, mas vai conseguir.
Precisa ligar com urgência para Camille. Ele lhe falou para ativar o alarme,
mas o papel com o código está ao lado do painel de controle, do outro lado
da sala. Já o telefone está no andar de cima.
Ela precisa ir para o andar de cima.
Levanta a cabeça, olha ao redor: o chão, o tapete com pedaços de gesso,
mas não é deles que virá seu socorro, é dela mesma. Sua decisão foi
tomada. Ela rola, com o apoio das duas mãos, tira o pulôver, cujas mangas
icam presas nas talas, ela puxa, arranca-o, conta até três e, no três, ela se

fevereiro•2022
Clube SPA

senta, as costas coladas no encosto do sofá, o pulôver enrolado contra a


barriga. Se ele atirar no encosto, ela está morta.
Não demorar.
Olha para a direita, a escada a uns dez metros dela. Olha para a
esquerda, principalmente para o alto; de onde ela se encontra, através da
parede de vidro do teto, ela avista os galhos das árvores; será que ele pode
subir até lá, entrar por ali? O mais urgente é ligar para pedir socorro:
Camille, a polícia, qualquer um.
Ela não terá outra chance. Traz as pernas para baixo do corpo e joga o
pulôver para cima e à esquerda, sem tanta força. Deseja que ele plane por
um longo momento nos ares, bem alto. Mal se livrou dele e já está de pé,
correndo para a escada. Como previsto, a primeira bala que ela ouve
dispara logo atrás dela...

Aprendi isso faz muito tempo: o tiro alternado. Colocamos um alvo à


direita, outro à esquerda, é preciso acertá-los um após o outro, o mais
rápido possível.
Estou com a arma apontada, inspeciono a sala através do visor. Quando
o pulôver voa para um lado, estou pronto, atiro, se ela quiser vesti-lo de
novo um dia, vai ter que remendar, porque acertei na mosca.
Em seguida, alterno o lado, eu a vejo se precipitar em direção à escada,
miro, ela está no segundo degrau quando meu tiro atinge o primeiro, eu a
vejo desaparecer no sótão.
É hora de mudar de estratégia. Guardo o fuzil na coelheira e pego a
pistola. E, se necessário, para os retoques inais, o punhal de caça. Testei
com meu amigo Ravic. Material de primeira.
Agora ela se encontra no andar de cima. Não foi muito di ícil fazer com
que ela subisse até lá, en im, esperava por inúmeras di iculdades quando,
na verdade, era só questão de guiá-la. Agora basta dar a volta na casa. Seja
como for, vou precisar correr um pouco, nada nesse mundo vem de graça,
ela vai perceber isso cedo ou tarde.
Mas, se tudo ocorrer como o planejado, vou ser mais rápido que ela.

O primeiro degrau se estilhaça logo atrás dos seus passos.


Anne sente a escada estremecer sob os pés, ela sobe tão rápido que
acaba tropeçando e desaba para dentro do quarto, batendo a cabeça contra

fevereiro•2022
Clube SPA

a cômoda, o lugar é bem exíguo.


Ela já está de pé. Com um golpe de vista para baixo, veri ica que não
podem vê-la nem a atingir, ela vai permanecer aqui. Primeiro, ligar para
Camille. É preciso que ele venha imediatamente, que a socorra. Ela tateia
febrilmente pela cômoda, não, está em outro lugar. Sobre a mesa de
cabeceira, também não. Onde está a porra desse celular. E então ela
consegue se lembrar, havia deixado do outro lado da cama quando foi
dormir, ela o conectou ao interruptor para recarregar a bateria, procura
debaixo das roupas, consegue encontrá-lo e o liga. Está esbaforida, seu
coração palpita tão forte no peito que ela sente náuseas, bate com o punho
sobre o joelho, como demora para ligar esse celular. Camille... Finalmente,
ela compõe o número dele.
Camille, atenda, imediatamente. Eu imploro...
Chama uma vez, duas vezes...
Camille, por favor, diga-me o que devo fazer...
As mãos de Anne tremem no celular.
– Alô, esta é a caixa postal de Camille Verh...
Ela desliga, redigita o número, mas cai na caixa postal. Desta vez, ela
deixa uma mensagem:
– Camille, ele está aqui! Atende o telefone, eu imploro...!

Pereira consulta o relógio. Não parece fácil obter um momento de


conversa com o juiz. Muito ocupado. Para Verhoeven, a mensagem é nítida,
na verdade, o caso não lhe pertence mais. O juiz balança a cabeça, está
contrariado, essa agenda é infernal. Camille complementa seus
pensamentos: irregularidades demais, muita confusão, muitas dúvidas,
talvez até a equipe toda venha a ser destituída do caso. Em consequência
disso, para resistir e se proteger, a comissária Michard vai informar o
tribunal, a ameaça de um inquérito da Inspeção-Geral dos Serviços
envolvendo a conduta do comandante Verhoeven vem se delineando com
terrível nitidez.
O juiz Pereira bem que gostaria de ter tempo, ele hesita, faz uma
pequena mímica, senão vejamos, consulta o relógio, é, não dá mesmo,
impossível agora, como poderíamos fazer, ele se detém dois degraus acima
de Camille, olha para ele, icar hesitante, fugir dessa maneira, não faz parte
do seu temperamento. Ele não cede ao comandante Verhoeven, mas
manifesta um escrúpulo ético.
– Eu ligo para o senhor em breve, comandante. Esta manhã...

fevereiro•2022
Clube SPA

Camille abre as mãos, obrigado. O juiz Pereira balança a cabeça, não tem
de quê.
Esse encontro é sua última chance, Camille sabe disso. Entre a amizade e
o apoio de Le Guen e a atitude benevolente do juiz, resta-lhe uma
esperança ín ima de escapar do dilúvio. Ele se agarra a ela, o juiz pode ver
isso claramente no seu rosto. Também tem algo de curiosidade, não
consegue esconder isso, o que acontece com Verhoeven, o que estão
dizendo dele há dois dias, parece estranho a tal ponto que desperta
vontade de ir ver mais de perto, de tirar as próprias conclusões.
– Obrigado – diz Camille.
A palavra soa como uma con issão, como um pedido. Pereira faz um sinal
para ele; em seguida, incomodado, vira-se, desaparece.

Ela levanta a cabeça subitamente. Ele parou de atirar. Onde será que ele
está?
Os fundos da casa. A janela do banheiro de baixo foi deixada entreaberta.
Ela é estreita demais para a passagem de um corpo, mas não deixa de ser
uma abertura e, de agora em diante, ninguém sabe do que ele é capaz.
Sem considerar os riscos que está correndo, Anne se precipita; sem
pensar que ele ainda pode estar à espreita do outro lado da parede
envidraçada, ela se lança escada abaixo, pula por cima do último degrau,
vira à direita, quase cai.
Quando ela irrompe na lavanderia, ele já está diante dela, do outro lado
da janela.
Seu rosto sorridente aparece emoldurado pela janela como um retrato
formal. Ele passa o braço através da abertura. Tem na mão uma pistola
equipada com um silenciador e apontada em sua direção. O cano é de uma
extensão fora do comum.
Assim que a vê, ele atira.

Depois que o juiz vai embora, Camille desce correndo as escadas. No


patamar, surge Louis, belo como um astro, terno Christian Lacroix, camisa
de listras inas Savile House, sapatos Forzieri.
– Já falo com você, Louis, perdão...
Ele faz um sinal breve, estarei esperando, tome seu tempo. Ele se
esquiva, voltará depois, esse sujeito é mesmo a discrição em pessoa.

fevereiro•2022
Clube SPA

Camille entra no seu escritório, lança seu casaco sobre uma cadeira,
procura e digita o número do telefone da sede de Wertig & Schwindel
olhando para o relógio. Nove horas e quinze minutos. Alguém atende.
– Gostaria de falar com Anne Forestier, por favor?
– Não saia da linha – diz a recepcionista –, vou veri icar.
Suspiro. O aperto no peito relaxa. Mais um pouco e ele soltaria um grito
de alívio.
– Perdão... quem mesmo? – pergunta a jovem mulher. – Me desculpe –
uma voz risonha, que busca cumplicidade –, estou substituindo outra
pessoa...
Camille engole a saliva. O aperto volta ao peito, mas a dor agora se
espalha por todo o corpo, a angústia aumenta a uma velocidade...
– Anne Forestier – diz Camille.
– Em que setor ela trabalha?
– É... auditoria de gestão ou algo assim.
– Sinto muito, não estou encontrando na lista de colaboradores... Não
saia da linha, vou passar para outra pessoa...
Camille sente os ombros se contraírem. Uma mulher responde, talvez
aquela que Anne disse ser “uma mala”, mas não pode ser ela, porque Anne
Forestier, não, esse nome não lhe diz nada, não diz nada a ninguém, ela se
oferece para procurar, o senhor tem certeza do nome? Posso passar para
outra pessoa, seria a respeito de quê?
Camille desliga.
Ele tem a garganta seca, precisa tomar um copo de água, não tem tempo,
as mãos estão tremendo.
Insere sua senha.
Com um clique, abre o motor de busca: “Anne Forestier”. Existem muitas.
Simpli icar. “Anne Forestier, nascida no dia...”.
A data ele vai lembrar, eles se conheceram no começo de março e, três
semanas depois, quando ele descobriu que era o aniversário dela, Camille a
convidou para o Chez Nénesse. Ele não tivera tempo de comprar um
presente, apenas fez o convite, Anne diz rindo que, para um aniversário,
um jantar cai muito bem, ela adora sobremesas. Ele fez o retrato dela no
guardanapo e lhe deu de presente, não fez nenhum comentário a respeito,
mas icou muito orgulhoso com esse retrato, muito inspirado, muito
realista. Alguns dias são assim.
Ele tira seu celular do bolso, abre a agenda: 23 de março.
Anne tem quarenta e dois anos. Mil novecentos e sessenta e cinco.
Nascida em Lion? Não tem certeza. Busca na sua memória da noite, será

fevereiro•2022
Clube SPA

que ela mencionou seu lugar de nascimento? Ele apaga “Lion”, valida a
busca, o sistema lhe envia duas Anne Forestier, o que é comum, digite sua
data de nascimento, se o seu nome for comum o bastante, você vai
encontrar irmãos gêmeos por toda parte.
A primeira Anne Forestier não é a sua. Ela morreu no dia 14 de fevereiro
de 1973, com oito anos.
A segunda também não. Faleceu no dia 16 de outubro de 2005. Há dois
anos.
Camille esfrega os dedos contra as palmas da mão repetidamente. Ele
conhece bem a agitação que está sentindo, faz parte fundamental do seu
trabalho, não se trata mais somente de pro issionalismo irrequieto, mas da
aparição de uma anomalia. E, em matéria de anomalias, ele é campeão
incontestável, todos podem ver isso de primeira. Só que, desta vez, essa
anomalia corresponde a uma outra, à do próprio comportamento, que
ninguém está conseguindo entender.
Que nem ele mesmo consegue entender.
Por que ele está nessa luta?
Contra quem?
Algumas mulheres mentem sobre a data de nascimento. Não é do feitio
de Anne, mas nunca se sabe.
Camille se levanta e abre o armário. Ninguém nunca organiza as coisas
ali dentro. Sua desculpa para nunca se ocupar disso é a altura. Quando ela
lhe serve de algo, ele nem pensa duas vezes... São necessários alguns
minutos para encontrar o manual de instruções que está procurando. Não
pode pedir ajuda para ninguém.
– O que mais demora depois de um divórcio é fazer a limpeza – disse
Anne.
Camille pousa as mãos abertas sobre a mesa para se concentrar. Não,
impossível, ele precisa de um lápis, de um papel. Ele rabisca. Tenta se
lembrar. Eles estão na casa dela. Ela está sentada no sofá-cama, ele acabou
de dizer que esse apartamento é muito... como dizer, para falar a verdade,
ele é meio lúgubre. Ele tentou escolher uma palavra que não fosse ofensiva,
mas, independentemente do que viesse a fazer, uma frase iniciada dessa
maneira, preenchida por um longo silêncio constrangedor, está fadada ao
fracasso, é apenas questão de tempo.
– Não estou nem aí – diz Anne de forma seca. – Eu queria mesmo me
livrar de tudo.
A lembrança vem à mente. É preciso voltar ao divórcio, eles nunca
falaram dele de fato, Camille não fez perguntas.

fevereiro•2022
Clube SPA

– Faz dois anos – diz, en im, Anne.


Camille imediatamente larga o lápis. Com um indicador nas linhas do
manual, o outro no teclado, ele solicita uma busca referente a casamento
e/ou divórcio em 2005 de uma Anne Forestier, faz a triagem entre os
resultados, seleciona, elimina tudo o que foge à sua pesquisa, sobra uma
Forestier, Anne, nascida no dia 20 de julho de 1970. Trinta e sete anos...
Camille consulta: “condenada por fraude no dia 27 de abril de 1998”.
Anne está ichada.
A informação é tão desconcertante que ele não entende sua dimensão de
imediato. Solta o lápis. Anne, ichada. Continua lendo. Condenação mais
recente por falsi icação de cheques, falsi icação e uso de cheques falsos. Ele
está tão atordoado que leva um longo apanhado de segundos para
perceber: Anne Forestier está presa na penitenciária de Rennes.
Não é Anne, mas outra. Uma Anne Forestier, mas que não tem nada a ver
com a sua.
Se bem que... Essa foi libertada. Quando? A icha está atualizada? Ele
precisa buscar numa base de dados diferente para saber como encontrar a
foto antropométrica dessa detenta, estou nervoso, muito nervoso, pensa
ele, lê: “ctrl+f4, validar”. A pessoa que aparece de frente e de per il é uma
mulher bastante gorda e, inquestionavelmente, asiática.
Lugar de nascimento: Da Nang.
Fecha a janela. Alívio. Anne, a sua, não é conhecida pelos serviços de
polícia. Mas ela é extremamente di ícil de encontrar. Camille poderia
respirar um pouco, mas, não, seu peito está apertado, essa sala é muito
abafada, ele já disse isso mil vezes.

Assim que o viu diante dela, Anne se atirou no chão, a bala cravou no
batente da porta, alguns centímetros acima da sua cabeça. Depois daquela
que ricocheteou na lareira de ferro causando um estardalhaço, o disparo
da arma soa quase abafado, mas o impacto contra a madeira é
ensurdecedor.
Anne, engatinhando, remexe-se freneticamente para sair da lavanderia.
Apavorada. É bizarro, essa é exatamente a mesma cena de dois dias antes
na galeria Monier. Aí vai ela de novo patinando pelo chão, antes que ele
consiga atirar nas suas costas...
Ela rola sobre si mesma, as talas deslizando pelo piso encerado; a dor
não conta mais, não existe mais dor, apenas instinto.

fevereiro•2022
Clube SPA

Outra bala passa raspando pelo ombro direito e se crava na porta. Anne
corre como um cachorrinho, rola de novo sobre o copo para chegar à
soleira da sala. Miraculosamente, agora ela se encontra sentada e
protegida, as costas coladas contra a parede.
Será que ele consegue entrar? Como?
Curiosamente, ela não largou o celular. Ela se atirou correndo pelas
escadas, jogou-se no chão, correu até aqui sem soltá-lo, como essas
crianças que se agarram a um bicho de pelúcia enquanto o mundo desaba
ao redor.
O que será que ele está fazendo? Ela queria poder olhar, mas se estiver à
espreita, ela vai levar a terceira bala na cabeça.
Pensar. Rápido. Seu dedo já teclou o número de Camille. Ela desliga, está
sozinha.
Ligar para a polícia? Onde vai ter polícia nesse im de mundo? Explicar
para eles vai demorar um tempo insano e, se decidirem vir, quanto tempo
vão levar para chegar até aqui?
Dez vezes mais tempo do que Anne vai levar para morrer. Pois ele está
ali, muito perto, do outro lado da parede.
A solução agora se chama Caravaggio.

A memória é mesmo um instrumento estranho; agora que seus sentidos


estão a iados como lâminas, ele começa a se lembrar de tudo. Agathe, a
ilha de Anne, é estudante de administração. Ela está em Boston. Camille
tem certeza, Anne disse que ela havia passado por lá (estava vindo de
Montreal, foi até mesmo lá que ela viu a tela de Maud Verhoeven), que a
cidade é linda, bem europeia, “estilo antigo”, acrescentou ela, sem que
Camille compreendesse exatamente o que ela queria dizer, aquilo lhe
evocava vagamente a Louisiana, Camille não gosta de viajar.
É preciso recorrer a outro arquivo e, portanto, a uma outra base de
dados. Ele volta ao armário de arquivos, em seguida, a lista de instruções, a
priori, nada do que ele tem feito necessita de autorização superior à que
ele dispõe, a conexão funciona com rapidez, universidade de Boston,
quatro mil professores, trinta mil estudantes, o resultado é inexplorável.
Camille percorre a associação dos estudantes, copia todas as listas, cola
num documento que dispõe de uma ferramenta de pesquisa pelo nome.
Nenhuma Forestier. Será que sua ilha é casada? Tem o sobrenome do
pai? O mais seguro é procurar pelo nome. Algumas Agatha, mas somente
duas Agathe, uma Agate. Três currículos.

fevereiro•2022
Clube SPA

Agathe Thomasson, vinte e sete anos, canadense. Agate Leandro, vinte e


três anos, argentina. Agathe Jackson, americana. Nenhuma francesa.
Nenhuma Anne. Agora também nenhuma Agathe.
Camille hesita em lançar uma busca referente ao pai de Anne.
– Ele foi eleito tesoureiro de umas quarenta associações. Esvaziou as
quarenta contas no mesmo dia, ninguém nunca mais o viu de novo.
Ao contar isso, Anne ria, mas seu riso era estranho. Com tão poucos
dados, vai ser di ícil: ele era comerciante, o que vendia? Onde morava? A
que época remontam os fatos? São muitas as incógnitas.
Resta Nathan, o irmão de Anne.
Impossível que um pesquisador (de que mesmo? Astro ísica, algo assim)
que, por de inição, publicou artigos não seja mencionado na internet.
Camille tem di iculdade para respirar. A busca demora.
Nenhum pesquisador com esse nome, em nenhum lugar. O mais próximo
é um Nathan Forest, neozelandês, de setenta e três anos. Camille ainda
muda o iltro várias vezes, tenta Lion, Paris, agências de viagens... Quando
lança uma última busca sobre o telefone ixo de Anne, seu formigamento
entre os ombros cessou; ele já sabe. É quase uma certeza.
Esse número não está listado, ele é obrigado a contornar o sistema, isso
é fastidioso, mas nada complicado.
Nome do detentor da linha: Maryse Roman. Endereço: rua De la
Fontaine-au-Roi, número 26. Em outras palavras, o apartamento ocupado
por Anne pertence à sua vizinha e tudo está no nome dela, porque tudo lhe
pertence, o telefone, os móveis e provavelmente até mesmo a biblioteca
com a miscelânea de livros cujo agrupamento não corresponde a nenhuma
lógica.
Anne alugou o apartamento mobiliado.
Camille poderia seguir com a investigação, enviar alguém para
con irmar, mas não vale mais a pena. Nada pertence a essa fantasma que
ele conhece sob o nome de Anne Forestier. Por mais que ele vire e revire a
questão por todos os lados, chega sempre à mesma conclusão.
Na verdade, Anne Forestier não existe.
Então, atrás de quem Hafner está correndo?

Anne põe o telefone no chão, ela vai ter que rastejar, faz isso apoiando-se
sobre os cotovelos, lentamente, se ela pudesse se fundir ao piso... Completa
uma grande volta pela sala. E aqui está a pequena fruteira onde Camille
deixou o código.

fevereiro•2022
Clube SPA

O painel de controle se encontra perto da porta de entrada.


#29091571#
Assim que o alarme dispara, Anne gruda as mãos nas orelhas e
instintivamente se ajoelha, como se a sirene não fosse mais que o
prolongamento do disparo de balas reais sob uma outra forma. O alarme é
poderoso, de perfurar a cabeça.
Onde ele foi parar? Embora tudo nela se oponha a isso, ela se levanta
lentamente e arrisca olhar. Ninguém. Desgruda levemente as mãos da
cabeça, mas a sirene é muito alta, impedindo-a de se concentrar, de pensar.
Com as palmas da mão comprimindo as orelhas, ela avança até a parede de
vidro.
Foi embora? A garganta de Anne continua pregada. Seria fácil demais.
Ele não pode ter fugido assim. Não tão rápido.

Camille mal ouve a voz de Louis, que acaba de in iltrar a cabeça pela
porta do escritório; ele bateu, mas ninguém respondeu.
– O juiz Pereira está vindo falar com o senhor...
Camille ainda não saiu totalmente do seu atordoamento. Precisaria de
mais tempo, precisaria ser muito inteligente, rigoroso, racional, insensível
para entender, para extrair as lições certas, seria preciso uma série de
qualidades que Camille não tem.
– O quê? – pergunta ele.
Louis repete. Muito bem, murmura Camille se levantando. Ele apanha o
casaco.
– Tudo bem? – pergunta Louis.
Camille não ouve. Ele acabou de tirar o celular do bolso. Uma mensagem
aparece no visor. Anne ligou! Ele rapidamente aperta o botão, liga para a
caixa postal. Logo nas primeiras palavras, “Ele está aqui! Atenda, eu
imploro...!”, ele já está na porta, passa e tromba com Louis, está no
corredor, atravessa o patamar trombando com tudo, a escada, o andar de
baixo, quase tromba com uma mulher, é a comissária Michard,
acompanhada do juiz Pereira, eles estavam subindo justamente para
encontrá-lo, falar com ele, o juiz abre a boca, Camille não faz nem um
milésimo de pausa, lançando-se pela escada, ele grita:
– Mais tarde eu explico!
– Verhoeven! – grita a comissária Michard.
Mas ele já está lá embaixo, junto ao carro. A porta estala, o braço
esquerdo passa pelo vidro abaixado. No instante em que o veículo engata a

fevereiro•2022
Clube SPA

marcha a ré, para colocar o giro lex sobre o teto, a sirene já ressoa e os
faróis estão acesos; ele arranca de uma vez, um guarda apita para parar o
trânsito e deixá-lo passar.
Camille entra na faixa de ônibus, de táxis, ele tecla de novo o número de
Anne. Deixa no viva-voz.
Atenda, Anne!
Atenda!

Anne se levanta. Ela aguarda por um longo momento. Essa ausência é


inexplicável. Talvez seja um truque, mas os segundos se encadeiam e nada.
A sirene acabou de parar, dando lugar a um silêncio pulsante.
Anne avança até a parede de vidro, ela se mantém de lado, com a metade
do corpo protegida, pronta para recuar. Ele não pode ter fugido assim. Tão
rápido. Tão subitamente.
Nesse instante exato, ele surge diante dela.
Anne dá um passo para trás, apavorada.
Estão a menos de dois metros um do outro, um de cada lado da porta de
vidro.
Ele não está armado, olha para ela nos olhos, aproxima-se com um
passo. Se estendesse o braço, tocaria o vidro. Ele sorri, balança a cabeça.
Anne o encara. Dá um passo para trás. Ele mostra as mãos abertas, como
Jesus num quadro que Camille lhe mostrou certa vez. Olhos nos olhos, as
mãos bem abertas. Levanta-as e as gira devagar em torno si, como se Anne
estivesse com uma arma apontada para ele.
Veja, não estou armado.
E, quando termina de dar uma volta inteira e está de novo diante dela,
ele sorri, ainda mais abertamente, as mãos ainda expostas, convidativo.
Anne continua sem se mexer. Dizem que os coelhos são assim, icam
hipnotizados com os faróis dos carros, permanecem desse modo,
paralisados, esperando a morte.
Sem tirar os olhos dela, ele dá um passo, dois, aproxima-se lentamente
até a maçaneta da porta de vidro sobre a qual põe a mão, com muita
suavidade. Percebe-se que não quer assustá-la. Com isso, Anne continua
sem se mexer; ela olha para ele, sua respiração se acelera, o coração
retorna às suas palpitações abafadas, surdas, dolorosas. Ele não se move
mais, até mesmo seu sorriso ica paralisado, à espera.
Vamos acabar logo com isso, pensa Anne, já estamos quase no im.

fevereiro•2022
Clube SPA

Ela vira a cabeça para o chão do terraço. Não tinha visto que ele havia
posto no chão a jaqueta de couro, o cabo da pistola é visível, ostensivo, e,
saindo de outro bolso, o cabo de um punhal. Como os restos mortais de um
soldado romano. Ele en ia a mão nos bolsos e as tira devagar, exibindo o
forro da calça: veja, nada nas mãos, nada nos bolsos.
Apenas dois passos. Ela já deu tantos. Ele não moveu um cílio. Ela se
decide, en im, de uma vez, como se se atirasse ao fogo. Um passo, a
di iculdade de puxar o ferrolho com as talas, sem contar que mal consegue
fechar as mãos.
Assim que o ferrolho cede, que a porta ica livre, que não há mais que um
passo a dar para entrar, ela recua com rapidez, põe a mão na boca, como se
de repente tomasse consciência do que acabou de fazer.
Anne mantém os braços caídos ao lado do corpo. Ele entra. É mais forte
que ela:
– Seu desgraçado! – ela grita. – Seu desgraçado, seu desgraçado, seu
desgraçado...
Andando para trás, a boca escancarada, impropérios misturados a
lágrimas vindos lá do fundo, do ventre, seu desgraçado, seu desgraçado.
– Ora, vamos...
Nitidamente, ele acha isso tudo maçante. Dá três passos, com o ar
curioso e interessado de um visitante, de um agente imobiliário, nada mal
o sótão, nada mal a iluminação... Anne, esbaforida, refugia-se perto da
escada que dá para o andar de cima.
– Melhorou? – pergunta ele, virando-se para ela. – Está mais calma?
– Por que você quer me matar? – grita Anne.
– Mas... o que a faz pensar isso?
Ele se demonstra contrariado, quase ultrajado.
Anne está fora de si; todo o seu medo, toda a sua raiva são postos para
fora, sua voz é alta e aguda, ela não está mais com a mão na frente da boca,
não está mais retraída, apenas ódio, mas, ao mesmo tempo, tem medo dele,
medo de que bata nela de novo; ela recua...
– Você está tentando me matar!
Ele suspira, sente-se cansado antes de explicar... como isso é maçante.
Anne continua:
– Aquilo não fazia parte do plano!
Dessa vez, ele balança a cabeça, desesperado diante de tamanha
ingenuidade.
– Ah, fazia, sim!
Ele tem sempre que explicar tudo. Mas Anne não terminou.

fevereiro•2022
Clube SPA

– Não! Você deveria apenas me empurrar! Foi o que disse: “Vou só te dar
uns empurrões”!
– Mas... – Ele não sabe o que dizer ao ver que precisa explicar coisas tão
básicas. – Mas tinha que ser convincente! Você entende? Con-vin-cen-te!
– Você está me perseguindo por toda parte!
– Sim, mas preste atenção! É por uma boa causa...
Ele ri. A raiva de Anne aumenta dez vezes.
– Aquilo não fazia parte do plano, seu ilho da puta!
– Tudo bem, posso não ter passado todos os detalhes para vocês, é
verdade... E, depois, não me chame de ilho da puta porque senão eu vou
ter que te dar uma surra, logo, logo.
– Desde o começo você quer me matar!
Desta vez, ele é dominado pela raiva.
– Matar você? Isso com certeza não, queridinha! Se realmente quisesse
matar você, posso garantir que, com as oportunidades que eu tive, você
não estaria aqui para falar isso. – Ele levanta o indicador, a im de dar
ênfase ao que diz. – Com você, busquei causar um grande impacto, é muito
diferente! E, acredite em mim, isso é muito mais di ícil do que pensam.
Principalmente no hospital. Garanto que, para assustar o seu tira sem fazer
com que ele acabasse convocando a Guarda Nacional, deu trabalho, isso
exige habilidade!
O argumento faz sentido. Ele a deixa fora de si.
– Você arrebentou a minha cara! Quebrou os meus dentes! Você...
O rosto dele faz uma pequena careta compassiva.
– Isso eu devo admitir, você não está bonita de se ver. – Ele se esforça
para conter o riso. – Mas tudo tem conserto hoje em dia, os médicos fazem
milagres. Quer saber? Quanto aos dentes da frente, se eu conseguir a
grana, eu te dou dois dentes de ouro. Ou de prata, o que preferir, você
escolhe. Se quiser arrumar um marido, sugiro dentes de ouro para
substituir os da frente, são mais chiques...
Anne desabou, de joelhos, encolhida sobre o próprio corpo. As lágrimas
não lhe sobem mais, somente ódio.
– Um dia, eu vou matar você...
Ele ri.
– Ora, sua rancorosa, também não é pra isso... Está falando assim porque
está com raiva. – Ele caminha pela sala como se estivesse em casa. – Não,
não – diz ele com uma voz mais grave –, acredite em mim, se tudo correr
bem, vão tirar os seus pontos, você vai colocar dentes de plástico e voltar
bem-comportada para casa.

fevereiro•2022
Clube SPA

Ele se detém e olha, sobre si, o sótão, a escada.


– Nada mal, aqui. Tudo bem organizado, não é? – Ele olha para o relógio.
– Bom, você vai me desculpar... não vou poder icar.
Ele se aproxima. Imediatamente ela se espreme contra a parede.
– Não vou tocar em você!
Ela grita:
– Suma daqui!
Ele faz um gesto a irmativo, mas é absorvido por outra coisa; está ao pé
da escada. Olha para o primeiro degrau, vira-se para a marca da bala no
vidro.
– Eu sou mesmo muito bom, não sou? – Vira-se para Anne, satisfeito;
quer convencê-la. – Garanto, é muito di ícil fazer isso! Você nem imagina!
Ele se sente ofendido por ela não valorizar seu talento.
– Suma daqui...!
– Sim, você tem razão. – Ele olha ao redor. Satisfeito. – Acho que izemos
tudo o que podíamos. Formamos uma boa equipe, não é mesmo? Agora –
ele aponta para as marcas de bala espalhadas pela sala –, tudo deve andar
nos conformes, a menos que eu esteja muito equivocado.
Alguns passos decididos, e ele para na soleira do terraço.
– Fala aí, esses vizinhos não são nem um pouco corajosos! O alarme
poderia disparar o dia todo, e nenhum rato viria ver o que está rolando. Se
bem que isso não é muito di ícil de prever, é assim em todo lugar. Bom, vou
nessa...
Ele sai para o terraço, apanha sua jaqueta, mergulha a mão no bolso
interno e volta.
– Isso aqui – diz ele jogando um envelope para Anne – você usa somente
se tudo se passar como previsto. E tem boas razões para querer que as
coisas corram como previsto. Em todo caso, não saia daqui sem minha
autorização, estamos entendidos? Senão, o que você viveu até aqui pode
considerar como uma primeira parcela.
Ele não espera resposta. Desaparece.
A alguns metros, o celular de Anne toca e vibra sobre o piso. Após a
sirene do alarme, esse toque parece ridículo, como o de um telefone de
brinquedo.
É Camille. Atender.
“Faça como eu disse e tudo dará certo.”
Anne aperta o botão para atender. Não precisa ingir sua exaustão.
– Ele foi embora... – diz ela.
– Anne? – grita Camille. – O que você disse? Anne?

fevereiro•2022
Clube SPA

Camille está desesperado, sua voz não tem mais timbre.


– Ele veio aqui – disse Anne. – Ativei o alarme, ele icou com medo, foi
embora...
Camille tem di iculdade para ouvir. Ele desliga a sirene do giro lex.
– Você está bem? Estou a caminho. Você está bem, me diga...
– Está tudo bem, Camille. – Ela aumenta o tom de voz. – Está tudo bem
agora.
Camille desacelera, soltando um suspiro. A angústia dá lugar à agitação.
Ele quer estar lá naquele instante.
– O que está acontecendo, me diga!
Anne, os joelhos entre os braços, chora.
Ela tem vontade de morrer.

10h30
Camille se acalmou um pouco, ele apagou e guardou o giro lex. Tem
informações demais para sintetizar e ainda se sente bombardeado pelas
emoções, incapaz de ordenar as coisas...
Há dois dias, caminha sobre uma tábua bamba, um precipício de cada
lado. E Anne acabou de cavar outro, bem debaixo dos seus pés.
Apesar de provavelmente estar colocando sua carreira em risco, de
alguém ter tentado em dois dias matar três vezes a mulher que está na sua
vida, de ele ter acabado de descobrir que ela está usando um nome falso,
de não saber que lugar exato ela ocupa nessa história, ele deveria estar se
fazendo perguntas estratégicas, raciocinando, mas a sua mente está
monopolizada por uma única pergunta que de ine a relevância de todas as
demais: o que Anne está fazendo na vida dele?
Não, não apenas uma pergunta, ele tem uma segunda: o fato de ela ser
ou não Anne, que diferença faz?
Ele recompõe a história deles, aquelas noites em que se encontravam,
mal se tocavam e mais tarde já estavam rolando por debaixo dos lençóis...
Em agosto, ela termina com ele, uma hora depois, ele a encontra na escada,
teria sido aquilo uma simples manobra da parte dela? Um truque? As
palavras, as carícias, os abraços, as horas e os dias, pura e simples
manipulação?
Em breve, ele vai se ver diante daquela que se faz chamar Anne
Forestier, com quem ele tem dormido há vários meses e que tem mentido

fevereiro•2022
Clube SPA

desde o primeiro dia. Ele não sabe o que pensar, sente-se esvaziado, como
se tivesse saído de um espremedor.
Qual é a relação entre a identidade falsa de Anne e o caso da galeria
Monier?
E, principalmente, qual o papel dele nessa história?
Mas o que é essencial: alguém está tentando matar essa mulher.
Ele não sabe mais quem ela é, mas tem uma certeza. Cabe a ele protegê-
la.

Quando ele entra na casa, Anne continua sentada no chão, as costas


grudadas na porta da pia, os braços abraçando os joelhos.
Em meio a toda essa confusão, Camille havia se esquecido como sua
aparência havia mudado. Durante todo o trajeto, a Anne que ele tinha na
cabeça era a de antes, linda e risonha, com seus olhos verdes e suas
covinhas. Agora, com esses pontos, essa pele amarelada, esses curativos,
essas talas manchadas, encontrá-la tão des igurada assim o surpreende. O
choque é quase o mesmo que o que ele sentiu, dois dias antes, quando a
viu no quarto do hospital.
Ele imediatamente se sente fraquejar, dominado pela compaixão. Anne
não se mexe, não olha para ele, está com os olhos ixos em um ponto
escuro, como uma pessoa hipnotizada.
– Está tudo bem, querida? – pergunta Camille, aproximando-se.
É como se ele quisesse amansar um animal. Ele se ajoelha junto dela,
abraça-a como pode, com o seu tamanho, não é fácil, claro, ele coloca a mão
no queixo dela, faz com que ela levante o rosto para ele e sorri.
Ela olha para ele como se somente agora se desse conta da sua presença.
– Oh, Camille...
Ele traz a cabeça dela em sua direção, apoiando-a na curva de seu
ombro.
O mundo poderia acabar nesse momento.

Mas o mundo ainda não acabou.


– Me conte...
Anne olha para a direita, para a esquerda, di ícil saber se está
emocionada ou se não sabe por onde começar.
– Ele estava só? Havia outros?

fevereiro•2022
Clube SPA

– Não, sozinho...
A voz dela é grave, vibrante.
– Era o mesmo que você reconheceu nas fotos? O Hafner, era mesmo ele?
Sim. Anne limita-se apenas a um movimento com a cabeça, era ele.
– Me conte o que aconteceu.
Enquanto Anne conta (diz apenas palavras entrecortadas, nunca frases
de verdade), Camille recompõe a cena. O primeiro tiro. Ele vira a cabeça
para os estilhaços de vidro que cobrem o chão no lugar onde se encontrava
a mesa de centro, os estilhaços de madeira de cerejeira que parecem ter
passado por um vendaval. Enquanto escuta, ele se levanta, aproxima-se da
porta de vidro, o buraco da bala é muito alto para que consiga tocá-lo, ele
ica imaginando a trajetória.
– Continue... – disse ele.
Agora ele se encontra junto à parede, então volta para a lareira, põe o
indicador sobre o buraco da bala, levanta a cabeça, olha de longe para o
largo buraco na parede, em seguida, dirige-se para a escada. Permanece ali
um longo momento, a mão sobre o que sobrou do primeiro degrau; ele
olha para o alto da escada, pensativo, vira-se para o lugar de onde partiu o
disparo, do outro lado da sala, em seguida, ele sobe o segundo degrau.
– E depois? – pergunta ele, descendo.
Ele sai da sala, entra no banheiro. A voz de Anne agora está longe, di ícil
de ouvir. Camille continua a recompor a cena, ele está em casa, mas trata-
se de uma cena de crime. Portanto, deve proceder por: hipóteses,
constatações, conclusões.
A janela entreaberta, Anne chega à lavanderia, Hafner a espera do outro
lado, o braço inteiro passa pela brecha do vidro, ele ergue na direção dela
sua arma munida de um silenciador. Acima da própria cabeça, Camille
avista a marca da bala no batente, ele volta para a sala.
Anne se cala.
Ele vai buscar uma vassoura debaixo da escada e varre apressadamente
os pedaços de vidro e de madeira da mesa de centro para a parede. Bate
rapidamente o pó do sofá. Esquenta água.
– Venha... – diz ele. – Já passou...
Eles estão sentados, Anne encosta o corpo contra o dele, eles sorvem o
que Camille chama de chá, muito ruim, mas Anne não vai reclamar.
– Vou te levar para outro lugar.
Anne faz que não com a cabeça.
– Por quê?

fevereiro•2022
Clube SPA

Pouco importa, para ela, é não. Porém, as marcas de bala no vidro, na


porta, no degrau da escada, a mesa de centro estilhaçada, tudo exprime a
imprudência dessa decisão.
– Acho qu...
– Não – corta Anne.
Isso encerra a questão. Camille pensa consigo que Hafner não conseguiu
entrar na casa, é pouco provável que ele tente de novo no mesmo dia.
Amanhã, nós veremos. Mas pensar em amanhã quando anos já se
passaram em apenas três dias...
E o que muda também é que Camille, en im, chegou ao próximo passo.
Ele precisou de tempo, o tempo necessário para todo boxeador
estonteado se levantar no ringue, para voltar à luta.
Agora, não está muito longe de chegar lá.
Ele não precisa de mais que uma hora ou duas. Não muito mais que isso.
Enquanto isso, vai fechar a casa, checar portas e janelas, deixar Anne aqui.
Eles não se falam mais. Só a vibração do celular de Camille vem
interromper o curso do pensamento de ambos, as ligações não param. Ele
nem precisa veri icar, já sabe do que se trata.
É uma impressão estranha ter nos braços uma mulher desconhecida,
embora ele a conheça tão bem. Ele sabe que vai ter de lhe fazer algumas
perguntas, mas ica para depois. Primeiro, desemaranhar o novelo.

Camille é dominado pelo cansaço. Sob esse céu cinzento, essa loresta
que se ergue à sua frente, essa casa corpulenta e langorosa transformada
em um bunker, o fardo desse mistério nas costas, ele dormiria o dia todo
se fosse escutar os apelos do seu corpo. Mas é Anne que ele escuta, sua
respiração, o ruído da sua boca terminando de beber seu chá, o silêncio,
esse desconforto mudo que se instalou entre eles.
– Você vai conseguir achá-lo? – en im pergunta Anne, em voz baixa.
– Ah, sim.
A resposta veio sem esforço, a expressão de uma convicção tão íntima,
tão forte que a própria Anne ica impressionada.
– Você vai me contar na hora, não vai?
Para Camille, o subtexto de cada pergunta poderia compor sozinho um
romance inteiro. Ele franze as sobrancelhas: por quê?
– Quero me sentir tranquila, acho que entende isso, não é?
Anne elevou a voz e, dessa vez, não pôs a mão na frente da boca, a
gengiva com os dentes quebrados exposta, como um tapa.

fevereiro•2022
Clube SPA

– Claro...
Mais um pouco e ele pediria desculpas.
O silêncio de ambos se uni ica. Anne adormeceu. Camille não tem
palavras, ele precisaria de um lápis, desenharia, em poucos traços, a
solidão que eles têm em comum, cada um se encontra num ponto extremo
de sua história, estão juntos e separados. Inexplicavelmente, ele nunca se
sentiu tão próximo dela, uma obscura solidariedade o prende a essa
mulher. Ele se afasta com suavidade, põe delicadamente a cabeça de Anne
sobre o sofá e se levanta.
Chegou a hora. Vamos tirar essa história a limpo.
Ele sobe a escada com uma lentidão de índio, conhece cada degrau, cada
rangido, não faz nenhum barulho, além disso, ele não pesa muito.
No andar de cima, o quarto é inclinado, o teto se abaixa formando uma
curvatura vertiginosa, o extremo do cômodo só tem algumas dezenas de
centímetros. Camille deita-se no chão, rasteja até o pé da cama, até um
painel de madeira que ele puxa na sua direção e que permite chegar às
vigas do teto, uma tampa de acesso. O interior está imundo de poeira, de
teias de aranhas, passar a mão por ali é uma aventura. Camille passa o
braço, procura aos tatos, encontra o saco plástico, apanha-o e puxa. Um
saco de lixo cinza cobrindo uma pasta grossa fechada com elásticos. Ele
não a abre desde...
Essa história o confronta incessantemente com o que ele teme.
Ele procura algo ao redor, retira a fronha do travesseiro e coloca
cautelosamente dentro dela o saco plástico cuja sujeira, como cinzas, sobe
em formato de nuvem diante do menor movimento. Levanta-se, carrega o
saco, desce as escadas com mil precauções.
Alguns minutos depois, ele deixa um recado para Anne. “Descanse. Ligue
para mim quando quiser. Eu volto bem rápido.” Eu vou te proteger, não,
isso ele não ousa escrever. Em seguida, percorre a casa inteira, testa todos
os trincos, veri ica todas as fechaduras.
Antes de sair, olha para o corpo de Anne de longe, deitado sobre o sofá.
Deixá-la ali lhe dá um aperto no coração. É di ícil ir embora, mas é
impossível permanecer.
Hora de ir. Com a pasta enorme debaixo do braço, embalada pela fronha
listrada, Camille atravessa o jardim de entrada, avança em direção à
loresta, até o lugar onde estacionou o carro.
Então, ele se vira para trás. É como se aquela casa silenciosa tivesse sido
edi icada sobre um pedestal no meio da loresta, como objeto de uma

fevereiro•2022
Clube SPA

vanitas do século , uma caixinha de madeira. Ele pensa em Anne


adormecida.
Mas, na verdade, quando seu carro, em marcha lenta, se distancia da
entrada da casa e penetra na loresta, Anne, deitada no sofá, está com os
olhos bem abertos.

11h30
À medida que Paris se aproxima, a paisagem mental de Camille se
simpli ica. As coisas não icaram mais claras, mas agora ele sabe onde
colocar os pontos de interrogação.
O mais urgente é saber fazer as perguntas certas.
Durante um assalto, um assassino ataca essa mulher que usa o nome de
Anne Forestier. Ele sai na sua captura, quer matá-la e vai persegui-la até
mesmo em Montfort.
Qual será a relação entre a identidade oculta de Anne e esse assalto?
Tudo ocorreu como se ela tivesse surgido ali por acaso, como se ela
apenas tivesse ido buscar um relógio encomendado para Camille, mas os
dois acontecimentos, por mais distantes que parecessem ser, estão
interligados. Estritamente.
Existem duas coisas quaisquer que não estejam interligadas?
Em relação a Anne, Camille não conseguiu descobrir a verdade, ele
sequer sabe quem ela é na realidade. Então, ele precisa partir de outro
ponto. Da outra extremidade do io.
No seu celular, três ligações de Louis, que não deixou mensagem, o que
faz parte do seu estilo. Apenas um : “Precisa de ajuda?”. Um dia, quando
ele terminar com a história toda, Camille vai perguntar a Louis se ele o
deixa adotá-lo.
E três mensagens de Le Guen dizendo a mesma coisa. Mas o teor se
altera, a voz de Jean vai se esvaindo de mensagem em mensagem, elas são
cada vez mais curtas. E cada vez mais prudentes. “Ouça, preciso que você
me lig...”, Camille passa para outra. “En im... Por que você não...?” Camille
passa. Na última, Le Guen está sério. Na verdade, está descontente: “Se não
me ajudar, não posso ajudar você”. Camille passa.
Sua mente limpa tudo o que interfere e continua a seguir seu embalo.
Permanecer concentrado no essencial.
Tudo icou mais complicado.

fevereiro•2022
Clube SPA

A perspectiva acabou de mudar brutalmente por causa de toda essa


devastação que izeram na sua casa.
Um baita estrago, sem dúvida, mas, mesmo sem ser especialista em
balística, Camille inevitavelmente acaba se fazendo perguntas.
Anne se encontra sozinha atrás de uma parede envidraçada de vinte
metros de largura. Do outro lado, um homem decidido, hábil,
perfeitamente equipado. O fato de ele não conseguir mirar direito em Anne
pode ser mero azar. Mas depois, janela aberta, braço estendido, seis
metros, ele não consegue acertar uma bala na cabeça, isso é perturbador.
Pode-se até mesmo dizer que, desde a galeria Monier, o cara parece estar
sendo perseguido por uma maldição. Será que está encenando todo esse
azar desde o começo? É di ícil de acreditar numa zica dessas...
É até mesmo possível pensar que, para conseguir não matar Anne com
tantas chances, é preciso ser um excelente atirador. Camille não conhece
muitos.
Essa pergunta inevitavelmente conduz a outras.
Por exemplo: como conseguiram seguir Anne até Montfort?
Na noite precedente, Camille fez esse mesmo caminho, mas no outro
sentido, partindo de Paris. Anne, esgotada, adormeceu desde o começo da
viagem e acordou apenas na chegada.
Mesmo à noite, no bulevar periférico, na estrada, na rodovia nacional,
sempre há muitos veículos. Mas Camille parou duas vezes, aguardou por
alguns minutos, observou o trânsito, então terminou seu trajeto por uma
rota indireta, tomando três vias paralelas onde qualquer farol de
automóvel pode ser avistado de longe.
Existe nisso uma repetição perturbadora: ele conduziu os assassinos até
Ravic ao proceder com a prisão em massa dos sérvios; em seguida,
conduziu-os até Anne ao levá-la para Montfort.
Essa é a hipótese mais plausível. Pelo menos, é nela que esperam que ele
acredite. Porque agora que ele sabe que Anne não é Anne, que essa história
está longe de ser a mesma em que ele acreditara até o momento, as
hipóteses mais sólidas estão se tornando as menos plausíveis.
Camille tem certeza, ele não foi seguido. O que quer dizer que foram
atrás de Anne em Montfort porque sabiam que ela iria para lá.
Portanto, é preciso conceber outra resposta. E, desta vez, elas podem ser
contadas nos dedos da mão.
Cada solução é um nome, o de alguém próximo. Su icientemente
próximo de Camille para conhecer Montfort. Para saber que ele tem
intimidade com essa mulher espancada na galeria Monier.

fevereiro•2022
Clube SPA

Para saber que ele iria levá-la até lá para protegê-la.


Camille arranha a super ície, escava, mas, por mais que ele procure se
lembrar de nomes, não chega nem a vinte. Se tirar Armand, que virou
fumaça há quarenta e oito horas atrás, a lista ica mesmo bem curta.
E Vincent Hafner, que ele nunca viu, não faz parte dela.
Essa conclusão é indissolúvel para Camille.
Ele já estava seguro de que Anne não é Anne. Agora tem certeza de que
Hafner não é Hafner.
É como se toda a investigação se reiniciasse.
De volta ao começo do tabuleiro.
E, para Camille, depois de tudo o que já fez, isso é quase equivalente a
uma carta de sorte ou revés com a inscrição: vá para a prisão.

O coxinha caiu de novo na estrada, nessas idas e vindas de Paris até a


sua casa no campo, ele parece um esquilo correndo na sua roda. Um
hamster. Ele até que está se mexendo bastante, espero que isso renda algo.
Não para ele, claro, para ele eu acho que já era mesmo, já caiu na
armadilha, não vai demorar para con irmar isso. Apesar do seu tamanho, a
queda vai ser grande. Não, espero que isso tudo seja rentável é pra mim
mesmo.
Perder minha chance agora está fora de questão.
A mulher fez o que tinha que fazer, devo reconhecer que ela pagou com a
própria pele, nada a reclamar. Vai ser meio corrido, mas, por enquanto,
tudo tem luído perfeitamente.
Cabe a mim concluir. Com meu amigo Ravic, pude fazer um bom
aquecimento. Se ele ainda estivesse neste mundo, poderia dar testemunho,
ainda que, considerando o número de dedos que lhe restavam no inal, ele
não poderia jurar sobre a Bíblia.
Pensando melhor, fui gentil com ele, até demonstrei compaixão. Meter
uma bala na cabeça foi quase um ato de caridade. De initivamente, os
sérvios são como os turcos, eles não sabem agradecer. Faz parte da
natureza deles. São assim mesmo. E ainda se queixam de ter problemas.
Mas vamos falar de coisa séria. Onde ele estiver (não sei se existe
paraíso para os assaltantes sérvios, mas, com certeza, existe pelo menos
para os terroristas), Ravic vai icar contente. Ele vai ter sua revanche post
mortem porque estou com vontade de desossar esse cara vivo. Vou
precisar de um pouco de sorte, até aqui não precisei disso, devo estar com
crédito lá em cima junto às instâncias decisórias do céu.

fevereiro•2022
Clube SPA

E, se Verhoeven izer seu trabalho, isso não vai demorar muito.


Por enquanto, vou para a minha tranquila fortaleza descansar um pouco,
pois vai ser preciso agir muito rápido.
Meus re lexos estão um pouco lentos, mas minha determinação continua
intacta, é o que conta.

12h
No banheiro, Anne observa mais uma vez sua gengiva, aquele buraco
horrível. Ela entrou no hospital com um nome falso, não poderá recuperar
seu prontuário médico, as radiogra ias, análises, diagnósticos, vai ter que
fazer tudo de novo. Recomeçar do zero, em todos os sentidos do termo.
Ele alega que não quis matá-la porque precisa dela. Pode dizer o que
quiser, ela não acredita em uma palavra sequer. Anne teria cumprido sua
função morta ou viva. Ele a agrediu com tanta violência, com tanta
vontade... Podia até argumentar que aquilo era necessário para sua
encenação, mas ela não tem dúvida: tivera tanto prazer em bater nela
daquela maneira que, se naquele instante pudesse massacrá-la ainda mais,
ele o teria feito.
Ela encontra, no armário de remédios, uma pequena tesoura pontiaguda
e uma pinça de depilação. O médico, o jovem indiano, assegurou que o
ferimento era mais fundo; considerava retirar seus pontos só depois de
uns dez dias, mas ela quer fazer isso imediatamente. Também achou uma
lupa em uma gaveta da escrivaninha de Camille, mas trabalhar com duas
ferramentas improvisadas dentro de um cômodo mal iluminado para fazer
esse tipo de procedimento não é o ideal. Só que ela não quer esperar. E,
desta vez, isso não tem a ver com sua mania de limpeza. Isso era o que ela
dizia a Camille quando eles estavam juntos, que ela desejava fazer uma
limpeza. Não desta vez. Contrariamente ao que ele pensará depois, quando
tudo tiver terminado, ela mente muito pouco para ele. O mínimo
necessário. Pois se trata de Camille, para quem é di ícil mentir. Ou fácil
demais, o que dá na mesma.
Anne enxuga os olhos com a manga da blusa, já não é simples tirar os
pontos sozinha, se para completar ela estiver com os olhos molhados,
então... São onze pontos. Ela segura a lupa com a mão esquerda, a tesoura
com a mão direita. De perto, esses iozinhos pretos se parecem com
insetos. Ela desliza a ponta debaixo do primeiro nó, a dor é imediata,
aguda, pontuda como a tesoura. Em circunstâncias normais, isso não

fevereiro•2022
Clube SPA

deveria doer, mas ela sente dor porque a ferida ainda não está fechada. Ou
porque está infeccionada. É preciso empurrar a ponta da tesoura bem para
a frente para conseguir cortar os nós, Anne faz uma careta, um movimento
seco, o primeiro inseto acabou de morrer, falta só retirá-lo. Suas mãos
tremem. O io resiste, ainda colado debaixo da pele, ela precisa puxá-lo
com a pinça, apesar dos tremores. En im, ele cede, seu deslizamento sob a
ferida causa uma péssima sensação, Anne examina com a lupa em seguida,
mas ainda não consegue ver nada; ataca o segundo io, está tão tensa, tão
nervosa que precisa se sentar, respirar um pouco...
De volta ao espelho, ela comprime o ferimento fazendo uma careta, aí vai
o segundo io, agora o terceiro. É cedo demais para extraí-los, pela lupa se
vê que a ferida ainda está vermelha, não se fechou. O quarto io é mais
resistente, mais colado à pele que os anteriores, mas a vontade de Anne é
inabalável; ela o raspa com a ponta da tesoura, cerra os dentes, consegue
passar por baixo dele, segura, erra na hora de cortar, tenta de novo, a ferida
começa a sangrar, aberta. En im, o io cede, ela o puxa para cima. Agora a
ferida sangra abertamente, rosa em cima e vermelha embaixo, gotas de
sangue grandes como lágrimas; os ios seguintes se entregam, por sua vez,
e deslizam pela pele. Ela joga os cadáveres na pia e, com os últimos, faz o
procedimento meio às cegas, porque o sangue que ela enxuga logo volta à
super ície; ela só para quando todos os ios estão partidos. O sangue
escorre. E escorre. Sem pensar, ela apanha no armário o frasco plástico de
álcool com concentração a 90%. Sem querer saber de compressa, faz uma
concha com a mão, coloca o álcool dentro e o aplica diretamente na ferida.
Que dor ela sente... Anne grita e bate o punho com violência na pia, os
dedos, mal protegidos pelas talas que cedem, fazem-na gritar de novo. Mas
hoje esse grito lhe pertence, ninguém veio arrancar dela.
Uma segunda vez, a mão, o álcool diretamente no rosto com a palma da
mão. Anne se apoia com as duas mãos na beirada da pia, quase
desfalecendo, mas se mantém irme.
Então, quando a dor diminui, uma compressa embebida de álcool, bem
apertada sobre a bochecha. Quando ela o tira, o curativo exibe uma ferida
túrgida, feia, que continua a sangrar mais um pouco.
Essa é uma cicatriz que vai permanecer. Retilínea, atravessando a
bochecha. Se fosse um homem, chamariam aquilo de cicatriz de guerra.
Di ícil saber como a marca vai icar, mas não é di ícil perceber que ela
nunca irá embora.
É de initiva.
E, se fosse preciso cavar a ferida com uma faca, ela o faria.

fevereiro•2022
Clube SPA

Porque ela quer se lembrar de tudo isso. Para sempre.

12h30
O estacionamento do setor de emergências está sempre lotado. Dessa
vez, para ter o direito de entrar, Camille é obrigado a exibir sua carteira
policial.
A recepcionista desabrocha como uma rosa. Uma rosa murcha, mas que
se esforça para manifestar simpatia.
– Então quer dizer que ela sumiu mesmo?
Como se ela soubesse a importância que isso tem para o comandante
Verhoeven, ela faz um beiço, entristecida, o que aconteceu, isso deve ter
sido um choque para o senhor, isso é ruim para a imagem da polícia, não é?
Camille quer se livrar dela, mas não é tão fácil como esperava.
– E o formulário dela?
Camille volta até ela.
– Veja bem, isso não é lá da minha alçada, mas, quando uma paciente sai
pela tangente e não temos nem sequer seu número de seguro social para
debitar seu atendimento, pode ter certeza, os superiores enlouquecem. E
os patrões caem em cima de todo mundo, sendo você responsável ou não,
eles não fazem distinção, eu também já senti como é na pele... É por isso
que estou perguntando.
Camille balança a cabeça, eu entendo, com a feição de se compadecer,
enquanto a recepcionista atende ligações. É óbvio que, tendo entrado aqui
com um nome falso, Anne teria sido totalmente incapaz de fornecer um
cartão de seguro social ou convênio. Eis por que ele não encontrou
nenhum documento com seu nome na sua casa. Ela não tem nenhum, pelo
menos com esse nome de empréstimo.
Ele logo sente uma grande vontade de ligar para ela, assim, sem razão,
como se estivesse com medo de resolver esse caso sem ela, fora do seu
alcance; tem vontade de contar para Anne...
Nisso ele toma consciência de que ela provavelmente não se chama
Anne.Tudo o que essa palavra representa em seu imaginário não serve
para nada. Camille se sente desamparado; até mesmo o nome dela ele
perdeu.
– Algo de errado? – pergunta a recepcionista.
Não, tudo bem. Camille adquire um ar de preocupação; essa é a
expressão mais e icaz quando se precisa confundir alguém.

fevereiro•2022
Clube SPA

– O prontuário dela – pergunta ele –, onde está? O prontuário médico.


Anne fugiu na noite anterior, tudo ainda se encontra no seu andar.
Camille agradece. Ao chegar no andar, ainda não sabe como vai proceder,
não tem a menor ideia. Então, ele dá alguns passos para re letir. Está no im
do corredor, a alguns metros da pequena sala de espera transformada em
sala do que quer que seja, onde ele improvisou a primeira reunião com
Louis.
Ele vê a maçaneta inclinar-se devagar, a porta se abre timidamente,
como se uma criança fosse sair de dentro, tímida ou receosa.
A criança, na verdade, está mais perto da aposentadoria do que da
escola infantil: eis que surge o próprio Hubert Dainville, o mandachuva, o
médico responsável pelo serviço de traumatologia, com sua cabeleira de
neve bem alinhada sobre a cabeça, como se tivesse acabado de tirar os
bobes. E ica vermelho como um pimentão ao ver Camille. Geralmente, não
há ninguém por ali, essa sala não dá em lugar nenhum, não serve para
nada, ninguém entra nela.
– Que diabos o senhor está fazendo aí? – pergunta ele, furioso,
autoritário, prestes a morder.
E o senhor? A resposta queima na ponta da língua de Camille, mas essa
não é a abordagem certa; ele assume um ar de confusão.
– Eu me perdi... – Então, de resignação. – Peguei o sentido errado do
corredor.
O cirurgião passa do vermelho ao rosado, o embaraço se atenua, seu
temperamento volta ao habitual; ele pigarreia e sai pelo corredor a passos
decididos. Caminha bem rápido, como se tivesse sido chamado para uma
emergência.
– O senhor não tem mais nada a fazer aqui, comandante.
Camille segue-o trotando, topou com um contratempo inesperado, pensa
tão rápido quanto permite a situação.
– Sua testemunha deixou o hospital a noite passada! – continua o doutor
Dainville, como se lhe izesse uma retaliação pessoal.
– Sim, iquei sabendo.
Camille não encontra outra solução; en ia a mão no bolso, apanha o
celular e o larga. O aparelho cai no chão fazendo um barulho espalhafatoso,
um barulho de acidente doméstico.
– Droga!
O doutor Dainville, já no elevador, se vira e vê o comandante ajoelhado,
de costas, recolhendo as partes do celular. Que imbecil. As portas se abrem,
ele entra e desce.

fevereiro•2022
Clube SPA

Camille apanha seu celular intacto, inge remontá-lo enquanto refaz o


caminho em direção à saleta.
Os segundos se passam. Um minuto. Ele hesita em entrar, algo o detém.
Alguns segundos suplementares. Ele certamente se enganou. Espera. Nada.
Não tem importância. Ele se prepara para voltar. Mas muda de ideia.
A porta se abre de novo, desta vez de maneira brusca.
A mulher que sai de dentro exibe um semblante concentrado. É
Florence, a enfermeira. É sua vez de corar ao descobrir Camille, os lábios
carnudos formando um círculo perfeito. Um segundo de hesitação e é tarde
demais, ela não tem mais nenhuma chance de despistá-lo. O gesto que
con irma seu embaraço: ela afasta uma mecha para trás da orelha, olha
para Camille fechando a porta bem calmamente, de maneira expressiva,
sou uma mulher em atividade, ocupada e concentrada nas minhas tarefas,
não tenho nenhuma razão para me sentir culpada. Ninguém acredita nessa
conversa, nem mesmo ela. Se Camille não precisasse tanto aproveitar a
oportunidade, ele não se conduziria dessa forma... Ele sente ódio de si
mesmo, mas não tem jeito. Olha para ela ixamente, inclina a cabeça,
intensi ica o constrangimento: não quis incomodar vocês durante seus
pequenos afazeres, está vendo como sou discreto? Ele se comporta como
se tivesse conseguido consertar o celular enquanto aguardava no corredor
que ela terminasse seu servicinho com o doutor Dainville.
– Preciso do prontuário da senhora Forestier – diz ele.
Florence anda pelo corredor, mas não aperta o passo, como fez
deliberadamente o doutor Dainville. Ela não se retrai. E não expõe
nenhuma maldade.
– Eu não sei... – começa ela.
Camille fecha os olhos, implorando-lhe em silêncio que não o obrigue a
dizer: acho que vou perguntar para o doutor Dainville, talvez ele...
Chegam ao escritório.
– Não sei se... o prontuário ainda está aqui.
Ela não se virou nenhuma vez para ele. Abre a grande gaveta com os
arquivos dos pacientes. Sem hesitar, tira de dentro a pasta com o nome
Forestier, uma grande pasta contendo a tomogra ia, as radiogra ias, as atas
médicas, dar isso ao primeiro que pedir, mesmo que seja um policial, é algo
muito arriscado da parte de uma enfermeira...
– Eu vou pedir para trazerem o mandato do juiz ao im da tarde – diz
Camille. – Enquanto isso, posso assinar algum protocolo.
– Não – diz ela precitadamente. – Quer dizer, se o juiz...

fevereiro•2022
Clube SPA

Camille apanha a pasta, obrigado. Eles se olham. Como é doloroso para


ele, no limiar do mal-estar, não somente pela baixeza da sua chantagem
para extorquir informações sobre as quais não tem nenhum direito, mas
por saber o que essa mulher sente.
De entender que esses lábios carnudos não vêm do desejo de
permanecer jovem, mas de uma incontestável demanda de amor.

13h
Você passa pelo cercado, caminha pela alameda. À sua frente, uma
construção cor-de-rosa, acima, grandes árvores, você poderia achar que
está chegando a uma mansão, di ícil imaginar que, por detrás dessas
janelas, as pessoas agrupam cadáveres e os dissecam. Aqui, corações e
ígados são pesados, crânios são cerrados. Camille conhece o lugar como a
palma da mão, ele o detesta. É das pessoas que ele gosta, os funcionários,
os peritos, os médicos-legistas, Nguyen sobretudo. Viveu muitas
lembranças com ele, desagradáveis, duras, isso ajuda a criar vínculos.
Camille entra como de costume, ele acena para um e para outro. Sente
bem que existe certo desconforto no ar, que o rumor também chegou até
aqui. Sente isso diante dos sorrisos amarelos, as mãos que se estendem,
hesitantes.
Já Nguyen continua o mesmo, uma espécie de es inge, impenetrável, é
um pouco mais alto que Camille, tão magro quanto, a última vez que sorriu
foi em 1984. Ele aperta a mão de Camille, ouve, olha para a pasta que
recebe. Circunspecto.
– Só dê uma rápida passada de olhos. Quando sobrar um tempo.
“Uma rápida passada de olhos” quer dizer: quero sua opinião, tenho uma
dúvida, cabe a você tirar, não vou lhe explicar nada, não quero in luenciá-lo
e, se puder fazer isso o quanto antes...
“Quando sobrar um tempo” quer dizer: isso não é assunto o icial, é
pessoal – eis o que con irma o rumor segundo o qual Verhoeven está no
olho do ciclone –, e então Nguyen diz combinado, para Camille ele nunca
nega nada. Ainda mais considerando que ele não corre nenhum risco, gosta
dos mistérios, adentrar as brechas, tatear os detalhes de perto, ele adora,
a inal, é um médico-legista.
– Pode me ligar por volta das cinco?
Ao dizer isso, ele fecha a pasta dentro da gaveta, assunto pessoal.

fevereiro•2022
Clube SPA

13h30
Agora é hora de passar de novo no escritório. Diante do que está à sua
espera, ele não tem a menor vontade, mas precisa.
Pelos corredores, Camille cumprimenta os colegas, não é nem um pouco
necessário ser psicólogo para sentir o clima pesado. No Instituto Médico-
Legal, ele era abafado. Aqui, é gritante. Como em todos os escritórios, três
dias é um prazo mais que su iciente para um rumor. E, quanto mais vago
ele é, mais aumenta, o efeito é mecânico. Típico. Certos gestos de simpatia
têm o teor de condolescências.
Ainda que o interrogassem, Camille não tem a menor vontade de falar
nem de se explicar, com ninguém, ele também não saberia o que dizer, por
onde começar. Felizmente, da sua equipe, quase todos estão na rua, há
apenas dois na Brigada, Camille acena, o colega está ao telefone, ele levanta
o braço, bom dia, comandante, o outro mal tem tempo de se virar, Camille
já se foi.
Um pouco depois, chega Louis. Ele entra sem dizer uma palavra na sala
do comandante. Os dois homens olham um para o outro.
– Tem bastante gente atrás de você...
Camille se curva sobre a mesa. Uma convocação da comissária Michard.
– Estou vendo...
Marcada para as dezenove e trinta. Depois do expediente. Na sala de
reuniões. Território neutro. A convocação não cita quem vai estar presente.
O procedimento não é habitual. Quando um tira está sob suspeita, não o
convocam para se explicar, o que seria o mesmo que preveni-lo de que há
um inquérito aberto envolvendo-o. Isso signi ica que, prevenido ou não,
não faz diferença, Michard dispõe de evidências concretas que Camille não
tem mais tempo para neutralizar.
Ele não tenta entender, isso não é o mais urgente, dezenove e trinta, o
mesmo que daqui a mil anos.
Ele pendura o casaco, mergulha a mão no bolso e tira um saco plástico
que manipula com as duas mãos, como um tubo de nitroglicerina, para não
tocar com seus dedos. E coloca a caneca sobre sua mesa. Louis aproxima-
se, debruça-se com curiosidade, lê em voz baixa: Мой дядя самых
честных правил…
– É o primeiro verso de Eugene Onegin7, não?
Pela primeira vez, Camille sabe a resposta. E é sim. A caneca pertencia a
Irene, ele não diz isso a Louis.

fevereiro•2022
Clube SPA

– Gostaria que você mandasse analisar as impressões digitais.


Rapidamente.
Louis aceita balançando a cabeça, fecha o pacote plástico.
– É para já... e quanto ao caso Pergolin?
Claude Pergolin, o travesti estrangulado na sua própria residência.
– É... faça como combinamos... – aprova Camille.
É cada vez mais di ícil seguir agindo dessa maneira, sem dizer nada a
ele. Camille ica relutante em fazê-lo porque essa é uma história muito
longa, mas também porque enquanto permanecer desinformado, Louis
não corre risco de sofrer nenhuma retaliação.
– Bem, se quisermos os resultados imediatamente – diz Louis –, melhor
eu aproveitar que a senhora Lambert continua trabalhando por lá.
A senhora Lambert tem uma grande queda por Louis; ela, como o
comandante Verhoeven, também se candidataria a ado-tá-lo. É uma
sindicalista militante, sua luta é pela aposentadoria aos sessenta anos. Ela
tem sessenta e oito, encontra todos os anos um novo subterfúgio para
continuar trabalhando. Se ninguém mandá-la para a rua, ela ainda vai ter
uns trinta anos de militantismo ativo diante de si.
Apesar da urgência, Louis não se move. O saco plástico entre as mãos,
imerso em uma intensa re lexão, permanece à soleira do escritório, como
um jovem rapaz no momento de fazer seu pedido de casamento.
– Acho que perdi alguns episódios da história...
– Fique tranquilo, eu também – responde Camille, sorrindo.
– O senhor preferiu me manter afastado... – Louis levanta a mão
imediatamente. – Não é uma crítica!
– É, sim, Louis, é uma crítica. E você está coberto de razão. Só que agora...
– É tarde demais?
– Isso.
– Tarde demais para a explicação ou tarde demais para a crítica? – É
muito pior que isso, Louis. É tarde demais para tudo.
Tarde demais para entender, para reagir, para te explicar... E
provavelmente até mesmo para sair dessa com alguma honra. A situação
não é das melhores, como você pode ver.
Louis olha para o teto, as esferas superiores. Ele con irma: – Nem todos
parecem tão pacientes quanto eu.
– Você terá a informação em primeira mão – responde Camille. –
Garanto. Pelo menos eu devo essa a você. E, se tudo se passar como o
previsto, eu te reservo até mesmo uma surpresa. A maior conquista com

fevereiro•2022
Clube SPA

que podemos sonhar quando estamos na polícia: brilhar aos olhos dos
chefes.
– “A conquista é...”.
– Manda ver, Louis! Mais uma citação!
Louis sorri.
– Não – continua Camille –, deixe-me adivinhar: Essa é de Saint-John
Perse! Não, melhor: Noam Chomsky!
Louis sai da sala.
– Ah, sim... – diz ele voltando a inclinar a cabeça para dentro da sala. –
Debaixo do seu bloco de notas... acho que tem algo para você, não tenho
certeza...
Mais essa.
Um post-it. A letra grande e angular de Jean: “Bastilha, saída Roquette,
15 horas”, o que signi ica muito mais que uma simples reunião.
O fato de o auditor-geral ter preferido deixar uma mensagem anônima
debaixo do seu bloco de notas em vez de ligar para o seu celular é um mau
sinal. Jean Le Guen diz claramente: estou tomando precauções. Também
diz: sou seu amigo o bastante para correr o risco, mas encontrar com você
poderia antecipar o im da minha carreira, então vamos fazer isso
discretamente.
Com a altura que tem, Camille está um pouco habituado ao ostracismo,
às vezes basta andar de metrô para ter uma prova... Mas se ver suspeito
dentro da própria polícia, mesmo que, com tudo o que tem se passado há
três dias, isso não seja uma surpresa, ainda assim, para ele é como um tapa
na cara.

14h
Fernand é um sujeito de valor. Pode ser um imbecil, mas é
condescendente. O restaurante está fechado, ele o abriu para mim. Estou
com fome, ele me fez um ometele com champignon. É um bom cozinheiro.
Deveria ter continuado assim, mas, como sempre, o empregado sonha em
virar patrão. Ele se endividou até os ossos para quê? Para ter o prazer de
ser “o patrão”. Que babaca. Já para mim, ele vem bem a calhar, os babacas
têm utilidade. Considerando os juros abusivos que eu impus, ele me deve
mais dinheiro do que jamais poderá pagar. Durante um ano e meio, eu
inanciei seu negócio, quase todo mês. Não sei se Fernand tem mesmo
consciência disso, mas o restaurante dele me pertence, basta estalar os

fevereiro•2022
Clube SPA

dedos, e o suposto patrão vai parar no olho da rua. Evito lembrá-lo disso.
Ele me faz muitos favores. Serve de álibi, de caixa de correio, de escritório,
de testemunha, de caução, de caixa eletrônico, eu esvazio os vinhos da sua
adega e ele me prepara comida quando preciso. Na última primavera, para
garantir o encontro com Camille Verhoeven, ele foi perfeito. Aliás, todos
foram perfeitos. O escândalo se desenrolou às mil maravilhas. Na hora
certa, meu comandante favorito acabou se levantando da mesa e fazendo o
que era preciso. Meu único receio era que alguma outra pessoa se
levantasse para intervir, porque essa mulher era mesmo uma gata
naqueles dias. Agora não mais, claro. Hoje, com suas cicatrizes, seus dentes
quebrados e sua cabeça em formato de abajur, ela poderia fazer o
escândalo que fosse num restaurante, não teria lá muitos homens correndo
em seu socorro, mas antes ela realmente conseguia despertar a vontade de
sair na mão com o bom Fernand. Linda e habilidosa, ela soube lançar os
olhares certos para a pessoa certa. Bem ou mal, Verhoeven acabou sendo
atraído por ela...
Fico aqui me lembrando disso tudo porque estou com tempo. E porque
me encontro no cenário adequado.
Pus meu celular sobre a mesa, não consigo deixar de checá-lo a todo
instante. Embora eu ainda dependa do resultado inal, estou contente com
os resultados parciais. Espero que renda uma grana boa, porque senão vou
acabar icando bem puto de novo, com vontade de desossar o primeiro que
cruzar meu caminho.
Enquanto isso, saboreio minhas primeiras horas de repouso em três
dias, e Deus sabe bem que eu não tive folga.
No fundo, manipulação tem muitos pontos em comum com assalto. É
preciso muito preparo e um bom grupo para executá-la. Não sei como ela
fez o Verhoeven tirá-la do hospital e levá-la para a casa dele, no campo,
mas, pelo jeito, ela não teve muito trabalho.
Provavelmente deve ter usado o truque da crise de histeria. Com os
homens sensíveis, é o que funciona melhor.
Mais uma olhada no celular.
Quando ele tocar, terei minha resposta.
Ou terei trabalhado para nada, e, nesse caso, nada a dizer, cada um para
a sua casa.
Ou a grana é minha, e, se for esse o caso, não sei quanto tempo vou ter.
Com certeza não muito, terei que agir rápido.
E não vai ser na linha de chegada que vou perder meu prêmio. Então vou
pedir uma água mineral para o Fernand, não é hora de dar uma de imbecil.

fevereiro•2022
Clube SPA

Anne encontrou curativos adesivos no armário de remédios. Foram


necessários dois, colocados de uma ponta à outra, para cobrir a cicatriz.
Debaixo do curativo, a ferida continua a arder. Mas ela não se arrepende do
que fez.
Em seguida, abaixa-se para apanhar o envelope que ele jogou para ela,
como um pedaço de carne de animal de circo. Ela sente os dedos
queimarem. Abre.
Dentro, um maço de notas, ela conta duzentos euros.
Uma lista de números de telefone: os táxis da região.
Um mapa da área, uma fotogra ia de cima, ela vê a casa de Camille, a
trilha, os arredores da cidadezinha, Montfort.
Tudo para a quitação integral e de initiva.
Ela põe o celular ao seu lado, sobre o sofá.
Esperar.

15h
Camille, que esperava um Le Guen explosivo, encontra-o prostrado.
Sentado sobre um banco da estação do metrô, ele ita os próprios pés, um
ar de desengano. Nenhuma bronca. Na verdade, sim. Mas está mais para
uma espécie de lamentação.
– Você poderia ter me pedido ajuda...
Camille nota o emprego do passado. Para Le Guen, uma parte do caso já
está liquidada.
– Para um cara com a sua reputação – diz ele –, você gosta mesmo de
colecionar problemas...
E Le Guen nem sabe da história toda, pensa Camille.
– Você pede para cuidar do caso, só isso já é algo bem suspeito. A inal,
esse papo de informante, você vai me desculpar...
E isso não é nada. Le Guen vai saber em breve que Camille ajudou
pessoalmente a testemunha principal desse caso a sair do hospital e,
portanto, a escapar da ação da Justiça.
Camille também não sabe quem é essa testemunha, mas, se Anne se
revelar culpada de algo grave, vai saber; ele pode se ver diante de uma
acusação de cumplicidade... A partir de então, pode-se imaginar de tudo:
cumplicidade com homicídio, com roubo, com assassinato, com sequestro,

fevereiro•2022
Clube SPA

com assalto à mão armada... E ele vai ter muita di iculdade para fazer
acreditarem na sua inocência.
Ele não responde ao que Jean lhe diz, apenas engole a saliva.
– E o modo como lidou com o juiz... – diz Le Guen. – Você é mesmo muito
burro: passou por cima dele, você me dizia vou dar um jeito em tudo,
ninguém mais vai falar dessa história. Mesmo sabendo que o Pereira é um
cara com quem a gente pode conversar.
Le Guen não vai tardar para descobrir que, desde então, Camille fez
muito pior, surrupiou o arquivo médico dessa testemunha. Testemunha
que, aliás, ele está hospedando no seu próprio domicílio.
– Sua batida policial de ontem causou o maior estardalhaço! Já era algo
previsível, mas será que você se dá conta do que faz? Tenho a impressão de
que você é completamente inconsequente!
E o auditor-geral sequer imagina que o nome de Verhoeven igura em
uma folha do dossiê que ele obteve na joalheria nem que ele passou uma
identidade falsa para a delegacia. E agora é tarde demais.
– Aos olhos da comissária Michard – continua Le Guen –, você usou de
manipulação para obter esse caso porque quer acobertar essa mulher.
– Que estupidez! – diz Camille.
– Também acho. Mas há três dias você tem se comportado como se
estivesse apenas por conta própria. Então é óbvio que...
– É óbvio – admite Camille.
Os metrôs se sucedem diante deles. Le Guen olha para todas as mulheres
que passam, absolutamente todas, sem ser grosseiro, apenas
contemplativo, olha para todas, deve a elas todos os seus casamentos.
Camille sempre foi seu padrinho.
– Já eu, o que quero saber é por que você está fazendo dessa
investigação uma questão pessoal!
– Acho que é o contrário, Jean. Foi uma questão pessoal que se tornou
tema de uma investigação.
Ao dizer isso, Camille entende que acabou de dizer uma grande verdade.
Ele entra em efervescência, precisaria de um pouco mais de tempo para
extrair todas as consequências dessa constatação. Ele até busca gravar
estas palavras na memória: é uma questão pessoal que se tornou tema de
uma investigação.
A informação mergulha Le Guen em incerteza.
– Uma questão pessoal... Quem você conhece nessa história?
Boa pergunta. Há algumas horas, Camille teria respondido: Anne
Forestier. Tudo mudou.

fevereiro•2022
Clube SPA

– O assaltante – diz Camille automaticamente, continuando sua re lexão


paralela à conversa.
Le Guen, por sua vez, passa da incerteza para a preocupação.
– Você tem questões para resolver com um assaltante? Um assaltante
cúmplice de homicídio, é isso o que estou ouvindo? – Ele se demonstra
inquieto; na verdade, está icando apavorado. – Conhece o Hafner
pessoalmente?
Camille balança a cabeça. Não. Seria muito trabalhoso explicar.
– Não tenho muito certeza – começa Camille evasivamente. – Não posso
dizer por enquanto...
Le Guen junta os dois indicadores sobre a boca, sinal de uma re lexão
intensa e delicada.
– Você não parece estar entendendo por que estou aqui.
– Sei, sim, Jean, entendo muito bem.
– A Michard com certeza vai querer levar isso a tribunal. Ela está no seu
direito, precisa se proteger, não pode fechar os olhos diante das suas
maquinações e não vejo como eu poderia me opor a ela. E, nessa situação,
se estou falando com você, também estou me comprometendo. Neste exato
momento, estou me comprometendo.
– Eu sei, Jean, e agradeço...
– Não é para isso que vim falar com você, Camille! Não estou nem aí para
o seu reconhecimento! Se até agora você não está com a Inspeção-Geral
dos Serviços no seu pé, é só questão de tempo. Seu celular vai icar ou já
está sob escuta, você vai ser, ou já está sendo seguido, os seus passos estão
sendo vigiados, seu comportamento examinado... E, pelo que me faz
entender, você não está arriscando apenas seu trabalho, está correndo o
risco de parar atrás das grades, Camille!
Le Guen deixa passar outra sequência de vagões, alguns segundos de
silêncio durante os quais ica na torcida, desejando que Camille volte a si.
Ou que se explique. E, para forçá-lo a isso, ele não tem muitas cartas na
manga.
– Ouça – continua ele –, não acho que a Michard vai entrar em contato
com o tribunal sem me avisar. Ela chegou faz pouco tempo, precisa do meu
apoio, sua história rende para ela um crédito inesperado diante de mim... É
por isso que eu tomei a dianteira. Estou me aproveitando da situação,
entende? Você está convocado para uma reunião às sete e meia da noite;
fui eu que organizei.
As catástrofes se seguem uma após a outra em um ritmo atordoante.
Camille o encara, inquisitivo.

fevereiro•2022
Clube SPA

– É a sua última chance, Camille. Estaremos num pequeno comitê. Você


nos conta a sua história e vemos como podemos conter os estragos. Eu não
posso prometer que tudo acabará por ali, vai depender do que você tem a
nos dizer. O que você vai nos dizer, Camille?
– Ainda não sei, Jean.
Ele tem alguma ideia, mas como explicar, é preciso antes esclarecer
algumas dúvidas. Le Guen se sente magoado. Ele até diz:
– Isso me magoa, Camille. Minha amizade por você não está servindo
para nada.
Camille põe a mão sobre o joelho enorme do amigo; ele tamborila os
dedos nela, como se quisesse consolá-lo, assegurá-lo de sua solidariedade.
E o mundo ica às avessas.

17h15
– O que você espera que eu te diga...? Ela levou uma surra com tudo o
que tem direito.
Ao telefone, Nguyen tem uma voz bastante nasal. Ele deve estar falando
de dentro de uma sala vasta, sob um teto muito alto, sua voz ecoa, como
um oráculo. Aliás, é isso que ele é para Camille nesse momento. Daí sua
pergunta:
– Houve alguma intenção de matá-la?
– Não... não, acho que não. Houve desejo de causar dor, de punir, deixar
marcas, o que for, mas não de matar...
– Você tem certeza?
– Por acaso já viu algum médico ter certeza de algo? Eu diria apenas que,
a menos que alguém o impedisse, bastaria que o cara botasse todas as suas
forças, e o crânio dessa mulher explodiria como um melão.
Para que isso não aconteça, pensa Camille, ele teve de se controlar.
Calcular. Ele imagina o assaltante erguendo a sua espingarda, batendo com
o cabo mirando no osso malar e no maxilar em vez da cabeça, contendo
sua força no último milésimo. Um homem de sangue-frio.
– O mesmo para os pontapés – continua o legista. – O relatório do
hospital diz oito chutes, eu contei nove, mas isso não é o mais importante.
O essencial é a maneira como eles foram aplicados. O assaltante tem
vontade, sim, de quebrar as costelas, de fraturá-las, de machucar, de fazer
estrago, decerto, mas, tendo em vista o lugar em que eles foram aplicados e
o tipo de calçado que ele estava usando, se realmente tivesse desejado

fevereiro•2022
Clube SPA

matar essa mulher, teria sido muito fácil. Ele podia esmagar o baço dela,
três golpes bem endereçados e era hemorragia interna. Essa mulher
poderia até ter morrido, mas acidentalmente: deixá-la viva foi algo
voluntário.
A forma como se deu o espancamento descrito por Nguyen assemelha-se
a um primeiro aviso. O tipo de retaliação que anuncia que as coisas
poderiam ser muito piores, não o su iciente para comprometer o que há
por vir, mas violento o bastante para se fazer entender.
Se o seu agressor (agora não se trata mais de Hafner, Hafner já é assunto
passado) não quis matar Anne (também não se trata mais de Anne), isso
coloca em questão a cumplicidade de Anne (seja qual for seu nome), que
agora não é mais apenas uma possibilidade, mas quase uma certeza.
Só que, nesse caso, o verdadeiro alvo não é Anne, é Camille.

17h45
Agora é só esperar. O ultimato que Camille ixou para Buisson termina às
vinte horas, mas são apenas palavras, mera teoria. Buisson passou algumas
instruções e fez algumas ligações. Pôs sua rede de contatos para funcionar,
receptores, revendedores, fabricantes de documentos falsos, cúmplices
antigos de Hafner. Deve estar gastando todo o crédito que dispõe para
obter o que deseja. Ele pode conseguir em duas horas assim como pode
precisar de dois dias e Camille terá que esperar o tempo que for preciso
pela resposta, pois não tem outra alternativa.
Que ironia: o gongo será – ou não – soado por Buisson.
A vida de Camille agora depende da e iciência do assassino da sua
mulher.

Anne, por sua vez, está sentada no sofá da sala, não acendeu a luz, a
penumbra da loresta dominou o interior da casa. A única iluminação vem
das luzes piscantes do sensor do alarme, do seu telefone celular, que conta
os segundos. Anne não se move, repete para si continuamente as palavras
que vai dizer. Ela sente que pode lhe faltar energia, mas não pode falhar, é
uma questão de vida ou morte.
Se essa morte fosse a sua, ela cederia neste exato instante.
Não tem vontade de morrer, mas aceitaria.
Mas é preciso que ela se saia bem, esse é o último degrau a subir.

fevereiro•2022
Clube SPA

Fernand se sai no jogo de cartas como na vida em geral, é um fraco. Tem


medo de mim, perde de propósito, acha que está me adulando, é mesmo
um imbecil. Não diz nada, mas está preocupado. Em menos de uma hora,
ele deve abrir o restaurante para os funcionários, administrar a arrumação
do estabelecimento para o serviço da noite, o cozinheiro já chegou, olá,
patrão, isso deixa Fernand cheio de orgulho; por uma frase como essa, ele
vende sua vida e ainda acha o acordo vantajoso.
Já eu estou em outro lugar.
Vejo as horas passarem, as coisas podem continuar assim pelo dia
inteiro, por toda a noite seguinte. Espero que Verhoeven se demonstre
e icaz, sua competência faz parte das variáveis sobre as quais me apoiei. E
é bom que ele não me decepcione. Segundo os meus cálculos, o prazo
limite é amanhã ao meio-dia.
Se eu não tiver o que quero até amanhã ao meio-dia, o caso estará
morto.
Em todos os sentidos do termo.

18h
Rua Durestier. Sede da Wertig & Schwindel. O hall é dividido em duas
partes, à direita, os elevadores que sobem em direção aos escritórios, à
esquerda, a butique de venda de passagens. Nesses edi ícios antigos, o hall
é enorme. Para mobiliar e deixar a recepção um lugar menos frio, o teto foi
rebaixado, foram distribuídos por toda parte vasos de plantas verdes,
poltronas largas, estantes com catálogos de viagens, mesas de centro.
Camille permanece na entrada. Ele consegue imaginar Anne
perfeitamente, sentada na poltrona, com um olho no relógio, esperando a
hora de sair para encontrá-lo.
Ela assumia um semblante esbaforido ao chegar, sempre um pouco
atrasada, em cima da hora marcada, com um pequeno gesto, desculpe, iz o
que pude, e o sorriso que vinha junto, que dá vontade de dizer: não é nada,
não se preocupe.
O plano era ainda mais engenhoso do que ele pensava. Camille se dá
conta disso ao ver surgir subitamente, no canto do elevador, um
entregador apressado com seu capacete debaixo do braço. Camille avança.
Encontra outra saída, que dá para a rua Lessard. Nada mais prático. Se

fevereiro•2022
Clube SPA

Anne chegasse atrasada para encontrá-lo, ela poderia entrar por ali e, em
seguida, sair de novo pela rua Durestier.
Na calçada, encontraria Camille alegre e todos icariam contentes.

Ele deixou o bulevar para trás, sentou-se no terraço do La Roseraie, na


esquina da rua Fabourg-Laf ite. Deve esperar o tempo passar, melhor se
ocupar com algo, a inação pode matar quando você se encontra fora de
controle.
Camille olha para o celular. Nada.
É a hora da saída das empresas. Ele sorve seu café, os olhos por cima da
xícara, observando os transeuntes ocupados em atravessarem as ruas,
cumprimentarem-se de longe, trocarem sorrisos, ou já preocupados,
precipitarem-se em direção ao metrô. Pessoas de todos os tipos, os seus
olhos avistam o per il de um jovem homem, conecta-o a algumas centenas
de outros per is vivos na sua memória, ou a barriga daquele homem,
avantajada, saliente, ou a silhueta esbelta, arqueada daquela garota, porém
ainda jovem, que carrega sua bolsa com o braço estendido, sem expressão,
sem prazer, só porque uma mulher precisa ter uma bolsa. Se ele icar
observando por muito tempo, a vida perfura Camille de uma ponta à outra.
E de repente, ela surge na esquina da rua Bleue, para, os pés
prudentemente postos a quarenta centímetros da faixa de pedestres,
casaco azul-marinho. Um rosto estranhamente semelhante ao quadro
Família do artista, de Holbein, mas sem o estrabismo, é por causa dessa
associação mental que Camille deve se lembrar dela tão perfeitamente. Ele
já empurrou a porta do terraço envidraçado no momento em que ela está
atravessando a rua, ele sai e a aguarda junto ao farol vermelho, ela faz uma
pausa rápida, os olhos exprimem a curiosidade e uma vaga inquietude. O
ísico de Camille frequentemente provoca esse efeito. Sobretudo pelo fato
de ele a estar encarando, porém ela continua seu caminho, passa à sua
frente, como se já o tivesse esquecido.
– Com licença...
Ela se volta e abaixa os olhos na direção dele. Mede um metro e setenta e
um, segundo Camille.
– Desculpe – diz ele –, a senhora não me conhecia...
Ela parece querer dizer que sim, mas não o faz. Seu sorriso é menos
triste que o olhar, mas tem a mesma tonalidade benevolente e dolorida.
– Senhora... Charroi?

fevereiro•2022
Clube SPA

– Não – diz ela, esboçando um sorriso de alívio –, o senhor deve estar me


confundindo...
Mas ela permanece no mesmo lugar, percebe que a conversa ainda não
terminou.
– Nós nos cruzamos aqui uma vez ou duas... – retoma Camille.
Ele aponta para o cruzamento. Se continuar no mesmo embalo, vai se
emaranhar numa explicação laboriosa, prefere tirar o celular do bolso,
aperta um botão, a mulher se inclina, curiosa para ver o que ele está
fazendo, compreender o que ele deseja.
Ele não tinha percebido que havia uma mensagem de Louis. Direto ao
ponto: “Digitais: FAP”.
Fora dos arquivos da polícia. Anne não está ichada. Pista falsa.
Diante de Camille, estende-se um corredor cujas portas se fecham uma
após a outra. Em uma hora e meia, uma última porta, essencial, que ele
nunca imaginou ver se fechar, vai bater também, a da sua carreira.
A polícia vai expulsá-lo após um processo longo e humilhante. Cabe a ele
determinar se deseja isso ou não. Ele diz para si mesmo que não tem
escolha, sabendo bem que escolher ou não é sempre acabar escolhendo.
Pego no turbilhão, não sabe mais o que deseja, esse ciclo, essa espiral são
aterrorizantes.
Ele levanta a cabeça, a mulher continua ali, curiosa, atenta.
– Desculpe...
Camille curva-se de novo sobre o seu celular, fecha uma página, abre
outra, engana-se, recomeça, clica na lista dos contatos e en im demonstra o
aparelho com o retrato de Anne.
– A senhora não trabalha com ela?
Essa não é realmente a pergunta. Porém, o rosto da mulher se ilumina.
– Não, mas eu a conheço...
Ela se sente feliz por estar fazendo um favor. O mal-entendido não vai
demorar. Ela trabalha no bairro há mais de quinze anos, o número de
pessoas que conhece dessa maneira, de tanto cruzar com elas, é
impressionante.
– Um dia, pela rua, nós acenamos uma para a outra. Depois, quando a
gente se encontrava, sempre se cumprimentava, mas nunca conversamos.
“Uma mala”, disse Anne.

18h35

fevereiro•2022
Clube SPA

Anne decide não esperar mais por muito tempo. Independentemente do


que venha a acontecer. Não importa, já está demorando demais. E agora a
casa está lhe deixando com medo, como se, com a vinda da noite, a loresta
fosse engoli-la.
Ela percebeu em Camille uma série de rituais superticiosos que
poderiam ser os mesmos dela, eles se identi icaram em suas superstições.
Por exemplo, essa noite, para não trazer mau agouro (como se ainda
pudesse acontecer com ela alguma coisa pior), ela não acendeu a luz. Para
se orientar, limita-se à luminosidade que repousa sobre o patamar, ao pé
da escada. Ela ilumina o degrau estilhaçado pela bala, sobre o qual Camille
icou parado por tanto tempo.
Quando será que ele vai se virar para mim e cuspir no meu rosto?,
pergunta-se Anne.
Ela não quer mais esperar. Está tão perto do objetivo, isso seria
irracional, mas é justamente atingir esse objetivo que lhe parece
insuportável. Partir. Imediatamente.
Pega o celular e digita o número da companhia de táxis.

Doudouche está de cara amarrada, mas ela vai abandonar essa feição.
Basta que se dê conta de que Camille não está com ânimo para suportar
seu mau humor para que ela abaixe a bola. Um dia, Camille se pegou
sonhando com uma faxineira rabugenta, uma peste, que faria a faxina
todos os dias, limpando até debaixo dos móveis, e lhe cozinharia batatas
tristes como as próprias nádegas. Em vez disso, ele optou por essa gata,
Doudouche, dá quase na mesma. Ele a adora. Esfrega as suas costas, abre-
lhe uma lata de ração e a põe junto à janela, ela ica observando a
movimentação do canal, logo abaixo do edi ício.
Em seguida, ele vai até o banheiro, manipula com precaução o saco de
lixo para que a poeira não se disperse pelo cômodo. Depois, ele leva a pasta
com alça até a mesa de centro da sala.
Doudouche, da janela, olha para ele ixamente. Você não deveria fazer
isso.
– Tem alternativa melhor? – responde Camille.
Ele abre a pasta e vai direto ao grande envelope contendo as fotos.
A primeira é uma grande fotogra ia colorida com excesso de exposição,
que mostra os restos de um corpo estripado, as costelas quebradas
atravessando uma bolsa vermelha e branca, provavelmente um estômago e
um seio de mulher cindido e contendo inúmeras marcas de mordidas. A

fevereiro•2022
Clube SPA

segunda foto é da cabeça de mulher, separada do corpo e pregada à parede


pelas bochechas...
Camille se levanta, vai até a janela para recuperar o fôlego. Não que
essas imagens sejam mais pesadas que as de tantos outros homicídios
sórdidos descobertos ao longo da sua carreira, mas aqueles são de certa
forma os seus homicídios. Os mais próximos dele, dos quais sempre tentou
manter distância. Ele observa por um instante o canal enquanto acaricia as
costas de Doudouche.
Fazia anos que ele não abria essa pasta.
Foi assim, então, que a história começou, com um corpo de mulher
estripado num loft de Courbevoie. Ela terminou com a morte de Irene.
Camille volta para a mesa.
Teria que passar logo para o inal do dossiê, encontrar rapidamente o
que está procurando e, logo em seguida, fechá-lo e, desta vez, em vez de
enterrá-lo no telhado do seu quarto... Então ele subitamente toma
consciência de que, em Montfort, ele dormiu ao lado dessa pasta durante
meses e meses sem pensar nela e até mesmo na noite passada, com Anne
apoiada contra ele, enquanto ele segurava sua mão a noite inteira,
tentando acalmá-la, e ela não cessava de virar e se revirar.
Camille passa por um maço de fotos, para ao acaso. Esta aqui mostra um
corpo, também de mulher. Meio corpo, na verdade, a parte de baixo. Sobre
a coxa esquerda, uma parte do tecido foi arrancada e uma longa cicatriz, já
escurecida, expõe uma ferida mais profunda, indo da cintura até o órgão
sexual. Pela posição das pernas, supõe-se que foram quebradas na altura
dos joelhos. Sobre um artelho, a impressão digital de um dedo feita com
tinta de carimbo.
São os primeiros homicídios de Buisson.
Todos, ao inal, levam ao assassinato de Irene, mas, evidentemente, na
época em que Camille descobriu esses crimes, estava longe de suspeitar
disso.
Em seguida, uma jovem mulher, Camille se lembra muito bem, Maryse
Perrin, ela tinha vinte e três anos. Buisson a matou a marteladas. Camille
passa a foto.
E a pequena estrangeira, estrangulada. Foi preciso tempo para
identi icar esta. O homem que a descobriu se chamava Blanchet ou
Blanchard, o nome lhe escapa, mas Camille se lembra muito bem do seu
rosto, como sempre, cabelos brancos e ralos, olhos remelentos, Camille
sentia vontade de lhe dar um lenço, lábios inos como uma lâmina, uma
nuca rosada, regada de suor. Já a jovem mulher estava coberta de lodo, seu

fevereiro•2022
Clube SPA

corpo fora brutalmente despejado sobre o cais pela garra hidráulica na


qual ela havia sido jogada. Blanchet fora tomado por uma súbita
compaixão; como havia dezenas de pessoas assistindo à cena da ponte –
entre as quais, Buisson, que nunca perdia nem um segundo do espetáculo
–, ele havia coberto a jovem mulher nua com o próprio casaco. Camille não
consegue deixar de folhear as fotos, a mão pálida e seca da jovem mulher
que emerge debaixo do casaco, ele a desenhou vinte vezes.
Pare com isso, pensa ele consigo, vá direto ao ponto.
Ele chega a um maço espesso de documentos, mas o acaso, embora ele
não exista, é teimoso: topa com a foto de Grace Hobson. Já faz anos, mas ele
se lembra do texto, letra por letra: “Seu corpo estava totalmente coberto de
folhagens. Sua cabeça desenhava um ângulo bizarro com seu pescoço,
como se ela estivesse tentando escutar alguma coisa. Na sua têmpora
esquerda, ele viu uma pinta, aquela que ela acreditava ter acabado com as
suas chances”. Trecho do romance. William McIlvanney. Um escocês. A
garota fora violada, sodomisada. Ela fora encontrada com todas as peças de
roupa, exceto uma.
Vamos logo, dessa vez Camille está determinado, ele segura a pasta com
as mãos, vira-a totalmente e a abre de novo voltando pelas páginas a partir
do im.
O que ele não deseja é topar com as fotos de Irene. Ele nunca conseguiu
olhar para elas, nunca conseguiu enfrentá-las. Alguns minutos após a sua
morte, ele viu o corpo da sua mulher, num lampejo, mal teve tempo de
desfalecer, depois disso, mais nada, somente essa última imagem icou. Na
pasta, há todas as demais, as da Perícia Criminal, as do Instituto Médico-
Legal, ele nunca olhou para elas. Nenhuma delas.
E não é isso que ele está procurando.
Ao longo de sua longa carreira de assassino, Buisson nunca precisou de
ninguém. Ele era terrivelmente organizado. Mas, para matar Irene, para
fazer culminar seu percurso de assassino em um grand inale arrebatador,
assassinar a mulher do comandante Verhoeven, ele devia dispor de
informações muito seguras, muito con iáveis. E as obteve do próprio
Camille, de certa forma. Diretamente do seu círculo, de um membro da
equipe.
Camille volta à realidade, olha de relance para o relógio, pega o celular:
– Ainda está no escritório?
– Estou...
É raro que Louis se permita uma frase como essa, quase uma represália.
Sua preocupação é expressa com um meio sorriso. Camille não tem mais

fevereiro•2022
Clube SPA

que uns vinte minutos para ir à reunião com o auditor-geral e, logo na


primeira sílaba, Louis já percebeu que ele está longe. Muito longe.
– Não queria abusar da sua boa vontade, Louis.
– Do que o senhor precisa?
– Do dossiê do Maleval.
– Maleval... Jean-Claude?
– Conhece outro?
Camille tem diante de si a icha do dossiê referente à morte de Irene, ele
ixa os olhos na foto.
Jean-Claude Maleval, um grande rapaz, musculoso, mas muito ágil,
antigo judoca.
– Gostaria que você me mandasse tudo o que temos sobre ele. Para o
meu e-mail pessoal – completa Camille.
A foto foi tirada quando ele foi detido. Seu rosto expõe traços atraentes,
ele deve ter trinta e cinco anos, um pouco mais, Camille nunca sabe dizer a
idade das pessoas.
– Posso saber o que ele está vindo fazer no meio disso tudo? – pergunta
Louis.
Expulso da polícia após a morte de Irene por ter informado Buisson. Ele
não sabia, naquele momento, que Buisson era um assassino, não se tratava
de uma cumplicidade objetiva, o veredito levou isso em conta. Só que Irene
estava morta. Camille queria matar os dois, ele e Buisson, mas nunca
matou ninguém. Até hoje.
É Maleval que está por trás de tudo. Camille tem certeza. Ele recompõe a
história inteira desde os quatro assaltos de janeiro até a galeria Monier. A
única coisa que não sabe é qual a sua relação com Anne.
– Vai demorar muito tempo para reunir tudo?
– Não, tudo está disponível no sistema, vou precisar de meia hora.
– Bem...Também vou precisar que você ique com o celular, Louis.
– Claro.
– Consulte também o painel de escalas, você pode vir a precisar de
reforço.
– Eu?
– Quem mais poderia ser, Louis?
Camille con irma desse modo que já se considera carta fora do baralho.
Isso é um choque para Louis. Não consegue entender nada.
Enquanto isso, não é di ícil imaginar o que se passa na sala de reunião
do quarto andar. Le Guen, sentado em uma poltrona, tamborila os dedos na
mesa, evitando olhar para o relógio. À sua direita, a comissária Michard,

fevereiro•2022
Clube SPA

atrás de uma pilha impressionante de pastas, folheia documentos à


velocidade da luz, assina, rubrica, sublinha, realça, anota, toda a sua
atitude diz claramente a que ponto ela é uma mulher ativa, que não perde
um segundo, que tem total controle do... ah, merda!
– Vou ter que desligar, Louis...
Camille passa o resto do tempo sentado no sofá, Doudouche sobre os
joelhos. Esperando.
Agora a pasta está fechada.
Ele limitou-se apenas a tirar uma fotogra ia de Jean-Claude Maleval com
seu celular, em seguida, en iou todos os documentos soltos na pasta,
fechou a alça. Até a deixou junto à porta de entrada, ou melhor, porta de
saída.
Um em Paris, o outro em Montfort, Anne e Camille estão ambos sentados
sob a penumbra, esperando.
Porque é óbvio que ela não conseguiu chamar o táxi; ela desligou na
hora que atenderam a ligação.
Ela sabe desde o começo que não vai embora. Há, ainda, uma
luminosidade tênue pela sala, Anne deita-se no sofá, permanece com o
celular na mão, de tempos em tempos, olha para a tela, veri ica a carga da
bateria, ou se não deixou passar nenhuma ligação, ou o número de barras
indicando a potência do sinal.
Nada.

Le Guen cruza as pernas e desfere leves chutes no vazio com o pé direito.


Ele parece se recordar que, para Freud, o gesto que se assemelha à
impaciência não é mais que um substituto da masturbação. Que babaca,
esse Freud, pensa Le Guen, que somou, ao todo, onze anos de divã e vinte
de casamento. Lança um olhar de soslaio para a comissária Michard, que
consulta cópias de e-mails em alta velocidade. Preso entre Michard e
Freud. Le Guen não daria grande coisa pelo resto do seu dia.
Ele sofre imensamente por Camille. Nem sequer sabe para quem
expressar isso. De que servem seis casamentos em vinte anos, se não se
pode dizer algo assim para ninguém?
Ninguém ligará para Camille para lhe perguntar se ele está atrasado.
Ninguém o ajudará mais. Que desperdício.

19h
fevereiro•2022
Clube SPA

– Apaga essa luz, porra!


Fernand pediu desculpas, ele se precipitou em direção ao interruptor,
apagou a luz, grunhiu algumas desculpas, extremamente contente por
en im ter autorização para voltar para o salão do restaurante onde o
trabalho o espera.
Eu estou só na saleta dos fundos onde jogamos baralho. Pre iro icar no
escuro. Isso me ajuda a pensar.
É icar esperando assim, impotente, o que me esgota. Preciso de ação. O
ócio me deixa irritado. Quando eu era mais jovem, já era desse jeito. Com a
idade, nada melhora. Deveria morrer jovem.

Um bipe de repente tira Camille dos seus pensamentos. A tela do


computador pisca e anuncia a chegada de um e-mail de Louis.
O dossiê Maleval.
Camille coloca os óculos, respira profundamente e o abre.
Os primeiros registros de atividade de Jean-Claude Maleval são
brilhantes. Excelente desempenho ao sair da Academia de Polícia, ele
con irma ser um sujeito promissor, o que lhe rende, alguns anos mais
tarde, sua nomeação na seção da Brigada Criminal dirigida pelo
comandante Verhoeven.
A época de ouro, com casos grandiosos, de grande valor.
O que Camille lembra não está no dossiê. Maleval trabalha sem parar, ele
é muito ativo, tem muitas ideias, um tira dinâmico, intuitivo, tem dias
sobrecarregados, mas também madrugadas agitadas. Sai bastante, começa
a beber um pouco além da conta, ama loucamente as mulheres, na
verdade, não as mulheres, o que ele ama mesmo é a sedução. Camille
pensou muitas vezes que a polícia, assim como a política, é uma doença
sexual. Maleval, nessa época, seduz, não cessa de seduzir, sinal de angústia
contra a qual Camille nada pode fazer, não é da sua competência, e também
não é o registro da relação deles. Maleval rodeia as garotas, até mesmo as
testemunhas, quando elas têm menos de trinta anos; ele inicia seu dia de
trabalho pela manhã com a cara de alguém que não pregou o olho a noite
toda. Essa sua vida um tanto desenfreada preocupa Camille. Louis
empresta-lhe dinheiro que nunca mais vê. Então, o rumor começa a se
espalhar. Maleval chacoalhava os tra icantes um pouco mais que o
necessário e nem sempre passava tudo que caía do bolso deles para a
polícia. Uma prostituta alega ter sido roubada por ele, ninguém a ouve,
mas Camille leva em conta o que ela diz. Ele fala com Maleval, chama-o à

fevereiro•2022
Clube SPA

parte, convida-o para jantar. Mas já é tarde demais. Por mais que Maleval
jurasse por Deus, percebe-se que ele já garantiu sua passagem para a rua.
As baladas, as noites, o uísque, as mulheres, as boates, as más companhias,
o ecstasy.
Alguns tiras descem a ladeira com certa lentidão, uma regularidade que
permite ao ambiente se habituar, se preparar. Já Maleval é brutal, ele vai
com tudo.
Ele é preso por cumplicidade com Buisson, sete vezes homicida,
escândalo que as autoridades conseguem conter. A história de Buisson é
tão insana que ela toma conta da imprensa, abafa tudo o que encontra pelo
caminho, como o fogo numa loresta tropical. A prisão de Maleval quase
desaparece por trás das chamas.
Desde a morte de Irene, Camille, por sua vez, ica hospitalizado,
depressão severa, vai permanecer meses na clínica de reabilitação,
olhando pela janela, desenhando em silêncio, ele recusa as visitas, chegam
a achar que nunca mais vão revê-lo na Polícia Judiciária.
Maleval vai a julgamento, sua condenação é coberta pelo tempo que
passou em prisão preventiva, ele sai, Camille não ica sabendo de imediato,
ninguém deseja lhe falar sobre. Quando descobre, não diz nada, como se
tivesse passado muito tempo, como se o destino de Maleval não tivesse
mais importância, como se isso não se tratasse de uma questão pessoal.
Libertado e dispensado da polícia, Maleval desaparece. Depois,
começam a revê-lo, de passagem, imperceptivelmente. Camille cruza com
seu nome aqui e ali pelo dossiê que Louis reuniu.
Para Maleval, o im do período da vida policial coincide com o início do
período da vida de criminoso, para a qual ele demonstra uma
predisposição indiscutível, provavelmente foi essa a razão pela qual ele
havia sido, outrora, um tira tão bom.
Camille passa as folhas rapidamente, mas a paisagem vai se delineando
pouco a pouco, eis aqui as primeiras ocorrências em que Maleval
reaparece, pequenos delitos, pequenas infrações, ele estava nervoso, nada
sério, mas vê-se bem que já fez sua escolha, não se contentará, experiente
pela sua passagem pela polícia, em bater ponto numa empresa qualquer de
segurança, em vigiar um supermercado ou em digirir um furgão blindado.
Em três ocasiões, ele é interrogado e solto novamente. E chegamos, então,
ao último verão, há dezoito meses.
Uma intimação seguida de uma queixa.
Nathan Monestier.

fevereiro•2022
Clube SPA

Chegamos onde interessa, suspira Camille. Monestier, Forestier, não


foram procurar muito longe. Velha técnica: para mentir bem, permanecer o
mais próximo possível da verdade. Seria preciso saber se Anne tem o
mesmo nome do irmão. Anne Monestier? Talvez. Por que não?
O mais próximo possível da verdade: o irmão de Anne, Nathan, é
efetivamente um cientista promissor, precoce e com elevada formação, mas
ele também parece bastante angustiado.
Ele é preso uma primeira vez por porte de cocaína. Trinta e três gramas,
o que não é pouca coisa. Ele tenta se defender, entra em pânico, menciona
Jean-Claude Maleval, que teria lhe fornecido a droga ou apresentado ao seu
fornecedor, seu depoimento é vago, inconsistente, ele se contradiz.
Enquanto aguarda julgamento, é posto em liberdade. E logo vai parar no
hospital, após levar uma baita surra. Evidentemente, ele se recusa a
prestar queixa... Nota-se logo que Maleval resolve seus problemas na base
da força bruta. Já é possível discernir, nesse seu método de despacho, seu
futuro gosto para o assalto violento.
Camille não dispõe dos detalhes, mas facilmente deduz o principal. Eles
izeram um trato. Maleval e Nathan Monestier são parceiros de negócios.
Que dívida Nathan vai contrair com Maleval? Será que ele vai acabar lhe
devendo uma grande quantia de dinheiro? Que chantagem será que
Maleval vai fazer com o rapaz?
Outros nomes aparecem na esteira do antigo tira. Alguns muito
ameaçadores. O de Guido Guarnieri, por exemplo. Camille o conhece pela
sua reputação, como todo mundo, é um especialista em negociar dívidas:
ele as compra a um preço baixo e se encarrega de cobrá-las por conta
própria. Há um ano, foi indagado a propósito de um sujeito cujo corpo fora
encontrado miraculosamente num canteiro de obras. O policial legista foi
categórico, o homem fora enterrado vivo. Ele leva dias e mais dias para
morrer, a descrição dos sofrimentos pelos quais passa é inimaginável.
Guarnieri é do tipo que sabe o que deve fazer para ser temido. Será que
Maleval ameaça vender a dívida de Nathan a um homem como Guarnieri?
É possível.
Aliás, pouco importa, pois para Camille o que interessa não é Nathan,
que ele nem conhece, que nunca sequer viu.
O que lhe interessa é que tudo isso leva a Anne.
Seja qual for a dívida do irmão com Maleval, quem paga é Anne.
Ela salda a dívida. Como uma mãe, “aliás, é exatamente isso que eu sou”,
diz ela.
Todas as vezes, ela sempre saldou.

fevereiro•2022
Clube SPA

E às vezes, é quando precisamos das coisas que elas acontecem.


– Senhor Bourgeois?
Número desconhecido. Camille deixa tocar várias vezes. Até que
Doudouche levante o focinho. Uma voz de mulher. Quarenta anos. Comum.
– Não – responde Camille calmamente –, deve ter sido engano...
Mas ele nem sequer inge desligar.
– Ah é?
Ela ica chocada. Mais um pouco e ela perguntaria se ele tem certeza.
Parece estar lendo um pedaço de papel:
– O que tenho anotado aqui é Senhor Eric Bourgeois, rua Escudier,
número 15, em Gagny.
– Pois então, é um engano.
– Bem – diz a mulher lamentando-se. – Desculpe...
Ele a ouve grunhir alguma coisa, mas, até entender o quê... Ela desliga
irritada.
Aí está. Buisson prestou o serviço a Camille. Camille pode mandar
matarem-no quando bem entender.
Neste exato momento, essa informação abre um novo corredor, mas com
uma única porta. Hafner mudou de identidade. Agora ele é o senhor
Bourgeois. Nada mais apropriado para um aposentado.
Por detrás de cada decisão se delineia uma outra decisão. Camille olha
para a tela do seu celular.
Ele pode correr para a reunião: eis aqui o endereço do Hafner, se ele
estiver em casa, podemos prendê-lo pela manhã, vou lhes explicar tudo. Le
Guen solta então um longo suspiro de alívio, mas não muito forte, não quer
que essa con issão, diante da comissária Michard, soe como uma vitória,
ele simplesmente olha para Camille, direciona-lhe um aceno com a cabeça,
quase imperceptível, muito bem, você me assustou, e acrescenta, irritado:
isso não justi ica tudo, Camille, sinto muito!
Mas sua feição não chega nem perto de alguém desapontado, ele não
convence ninguém. A comissária Michard se sente enganada, ela icaria tão
feliz em pegar o comandante Verhoeven de jeito! Pagou pelo seu ingresso e
agora cancelaram o espetáculo. É sua vez de falar, ela ganha um tom sóbrio,
metódico. Sentencioso. Ela gosta das verdades retumbantes, não escolheu
esse trabalho para aparecer; no fundo, é uma mulher de princípios.
Quaisquer que sejam as suas explicações, comandante Verhoeven, saiba
que não tenho a menor intenção de fazer vista grossa. Seja o que for...

fevereiro•2022
Clube SPA

Camille levanta as mãos para o alto, não tem problema. Ele se explica.
A velha engrenagem.
Sim, ele está pessoalmente conectado à pessoa que foi agredida na
galeria Monier, tudo parte daí. Não demora a enxurrada de perguntas:
como o senhor a conhece? Que relação ela tem com esse assalto? Por que o
senhor não...?
A sequência é previsível, sem nenhuma surpresa. O importante agora é
se organizar e ir buscar Hafner-Bourgeois no seu esconderijo nos
subúrbios, prendê-lo por assalto à mão armada, homicídio, agressão ísica.
Não vamos passar a noite inteira examinando o caso do comandante
Verhoeven, vemos isso mais tarde, a comissária concorda, sejamos
pragmáticos, uma das palavras favoritas, “pragmático”. Enquanto isso,
Verhoeven, o senhor ique aqui.
Ele não participará de nada, ica apenas como espectador. Como ator, ele
já fez suas demonstrações, elas são desastrosas. E, quando estivermos de
volta, decidiremos sanções, afastamento, transferência... Isso tudo é tão
previsível que nem se trata mais de um acontecimento.
Eis o que seria possível. Camille sabe há muito tempo que não é dessa
maneira que as coisas vão acontecer.
Sua decisão está tomada, ele nem sabe mais em que momento foi
tomada.
Ela se deve a Anne, a essa história, à sua vida, tudo está dentro dela, não
há nada que outra pessoa possa fazer.
Ele pensou que havia sido atropelado pelas circunstâncias, mas, na
verdade, não.
O que nos acontece é fruto de nossas atitudes.

19h45
Na França, existem quase tantas ruas Escudier quanto habitantes. São
ruas retas, perpendiculares, com sobrados de granito ou com revestimento
de concreto, os mesmos jardins, as mesmas grades, as mesmas marquises
compradas nas mesmas lojas. O número 15 não é exceção. Granito,
marquise, grade de ferro forjado, jardim, o pacote completo.
Camille passou em frente duas ou três vezes de carro, nos dois sentidos,
em velocidades distintas. Na sua última passagem, a janela do primeiro
andar apagou-se bruscamente. Não é preciso continuar.

fevereiro•2022
Clube SPA

Ele estacionou no extremo oposto da rua. Na esquina, há um


minimercado, a única loja em quilômetros quadrados de deserto. Junto à
porta, um árabe de uns trinta anos, extraído de um quadro de Hopper,
mastiga um palito de dente.
Quando Camille desliga o motor, são dezenove e trinta e cinco. Ele bate a
porta do carro. O comerciante levanta a mão direita em sua direção, olá,
Camille acena, por sua vez, e sobe lentamente a rua Escudier. Ele passa por
casas que têm, como única variante, de ora em vez, um cão que late
frouxamente ou um gato encolhido e deitado sobre o muro, fuzilando com
os olhos quem passa, os postes de luz tingem de amarelo a calçada
irregular, os contêineres de lixo foram postos para fora, os outros gatos,
moradores de rua, começam a disputar os restos de comida.
Aqui está o número 15. Entre a grade e os degraus de entrada são mais
ou menos doze metros. À direita, encontra-se uma larga porta fechada de
uma garagem.
Uma outra luz, no andar de cima, apagou-se desde sua última passagem.
Somente duas janelas ainda se mantêm acesas, ambas no térreo. Camille
toca a campainha. Se não fosse pelo horário, poderia ser apenas um
vendedor aguardando a boa vontade da proprietária. A porta se abre pela
metade, surge a silhueta de uma mulher. Com a luz que vem de dentro, não
é possível ver como ela é, sua voz é jovem:
– Pois não?
Como se ela não soubesse; como se a dança das luzes das janelas acesas
e depois apagadas não dissesse que ele fora notado, avistado, examinado.
Essa mulher, se ele a tivesse diante de si numa sala de interrogatório, ele
lhe diria: você não sabe mentir, não vai muito longe. Ela se vira para
alguém que se encontra dentro da casa, desaparece por um breve instante.
Volta na direção de Camille:
– Já vou.
Ela desce. Jovem, o corpo arrastando o peso da barriga que cai para a
frente como a de uma mulher velha, um rosto suavemente inchado. Ela
abre o portão. “Uma puta do mais baixo nível, aos dezenove anos, ela já
tinha...”, disse Buisson. Camille a acha sem idade de inida, mas existe nela
algo muito belo, é o seu medo, visível pela maneira de andar, de abaixar os
olhos, o olhar enviesado; nada nela é submisso, trata-se de puro cálculo,
pois seu medo é corajoso, desa iador, quase agressivo, pronto para
suportar de tudo, impressionante. O tipo de mulher que pode apunhalar
você pelas costas sem a menor sombra de hesitação.

fevereiro•2022
Clube SPA

Ela continua sem dizer uma palavra, sem levantar o olhar, sua silhueta
transmite toda a sua hostilidade e determinação. Camille atravessa o pátio
minúsculo, sobe os degraus, empurra a porta que se fechara pela metade.
Um simples corredor com um porta-casacos de parede vazio. À direita,
uma sala e, a alguns metros, sentado numa poltrona, de costas para a
janela, um homem de uma magreza terrível, os olhos escavados, febris.
Embora se encontre dentro de casa, está usando um pequeno gorro de lã
que acentua a esfera perfeita do seu crânio. Seus traços são fundos, Camille
nota de imediato sua semelhança com Armand.
Entre dois homens de tanta experiência, há coisas que não precisam ser
ditas, soariam quase como um insulto. Hafner sabe quem é Verhoeven,
todos conhecem um tira do seu tamanho. Ele sabe também que, se tivesse
vindo para prendê-lo, teria procedido completamente diferente. Portanto,
a questão é outra. Mais complicada. Resta esperar para ver.
Atrás de Camille, a jovem mulher entrelaça as mãos e rodopia os dedos,
ela tem o costume de esperar. “Deve gostar de apanhar, só pode ser isso...”.
Camille permanece imóvel no corredor, espremido entre Hafner, sentado
ali, diante dele, e essa mulher, às suas costas. O silêncio pesado,
inquietante, diz bem claramente que não será fácil lidar com esses dois.
Mas, para eles, o silêncio também diz que esse policialzinho inexpressivo
traz consigo o caos. Na vida que eles levam, esse é um outro nome para
designar a morte.
– Vamos ter que conversar... – diz en im Hafner em voz baixa.
Ele está dizendo isso para Camille, para a mullher, para si mesmo?
Camille dá alguns passos, sem tirá-lo dos olhos, aproxima-se, para a dois
metros de distância. Em Hafner não há nada do animal selvagem descrito
pela sua icha policial. Isso é algo que se constata com frequência, com
exceção dos minutos em que executam a mais agressiva das suas tarefas,
os assaltantes, os ladrões, os criminosos se parecem com todo mundo. Os
assassinos são como eu e você. Mas, por certo, existe ainda outra coisa
nele, a doença, o espectro da morte. E esse silêncio, esse desconforto, que
concentram todas as ameaças que o circundam.
Camille avança ainda mais um passo pela sala iluminada fragilmente por
um lampadário que se encontra ao canto, projetando uma luz azulada,
difusa. Não ica surpreso também ao descobrir uma sala mobiliada de
forma banal, uma grande tevê tela plana, um sofá coberto com uma manta
de lã, enfeites de todo tipo e, sobre a mesa redonda, uma toalha de mesa
estampada. Os bandidos costumam ter os mesmos gostos da classe média.

fevereiro•2022
Clube SPA

A mulher deixa o cômodo, Camille não a ouviu partir, ele a imagina por
um instante, sentada na escada, com uma espingarda calibre 12. Já Hafner
não sai do seu sofá, ele ica esperando para ver de que maneira as coisas
vão evoluir. Pela primeira vez, Camille se pergunta se ele está armado, a
possibilidade não veio à sua mente antes. O que não tem nenhuma
importância, pensa ele, mas, ainda assim, procura fazer gestos lentos,
nunca se sabe.
Ele tira o celular do bolso do casaco, o ativa e abre a foto de Maleval; dá
um passo para a frente e passa o aparelho a Hafner, que se limita a contrair
os lábios, acompanhado de um ruído gutural. Ele balança a cabeça, estou
entendendo, em seguida, aponta o sofá. Camille prefere uma cadeira, puxa-
a para perto de si, põe seu chapéu sobre a mesa, os dois homens estão face
a face, como se esperassem que alguém viesse servi-los.
– Avisaram da minha visita...
– De certa forma...
Logicamente. O sujeito que foi obrigado a passar para Buisson o novo
nome de Hafner e seu endereço precisou se proteger. O que não altera em
nada o plano.
– Devo recapitular? – propõe Camille.
Ele ouve, então, vindo de algum lugar da casa, um grito agudo, distante,
e, em seguida, por cima dessa voz, passos precipitados e, então, a voz da
mulher, abafada. Camille se pergunta se esse novo fator vai complicar ou
simpli icar as coisas. Ele aponta o teto.
– Quantos anos?
– Seis meses.
– Menino?
– Menina.
Outra pessoa perguntaria o nome, mas a situação não convém nem um
pouco.
– Então, em janeiro, sua mulher estava grávida de seis meses.
– Sete.
Camille aponta para o seu gorro.
– E fugir nunca é simples. A propósito, a sua quimioterapia, posso saber
onde fez?
Hafner espera um momento e então:
– Na Bélgica, mas eu parei.
– Cara demais?
– Não, tarde demais.
– Logo, cara demais.

fevereiro•2022
Clube SPA

Hafner deixa passar um meio sorriso, quase nada, não mais que uma
sombra em algum lugar pelos lábios.
– Já em janeiro – continua Camille –, não restava muito tempo para você
assegurar o sustento da sua pequena família. Então você organiza o Grande
Assalto. Quatro alvos num dia. Uma baita grana. Os seus cúmplices de
costume estão pouco disponíveis; talvez também você tenha escrúpulos
em jogar sujo com eles. En im, você convoca Ravic, o sérvio, e Maleval, o
antigo policial. A propósito disso, eu não sabia que ele fazia assaltos à mão
armada.
Hafner leva um tempo para responder.
– Ele procurou seu ramo certo por um tempo, depois de vocês o terem
mandado para rua – disse ele, en im. – Ficou bastante no trá ico de cocaína.
– Sim, acho que ouvi dizer...
– Mas acabou demonstrando preferência pelo assalto. Combina bastante
com a personalidade dele.
Desde que descobriu a verdade, Camille tenta imaginar Maleval como
assaltante, ele tem di iculdade para conseguir. Não tem muita imaginação.
E, além disso, Maleval e Louis nasceram na sua equipe, é di ícil imaginá-los
fora desse contexto. Como os homens que nunca terão ilhos, Camille tem
um grande senso de paternidade. Seu tamanho tem muito a ver com isso.
Desse modo, ele inventou dois ilhos: de um lado, Louis, o ilho perfeito, o
bom aluno, o impecável, que retribui por tudo; e, de outro, Maleval, o
agressivo, o liberal, o obscuro, o que o traiu, que lhe custou sua mulher.
Que carrega a ameaça até mesmo no seu sobrenome.
Hafner espera a continuação. No andar de cima, a voz da mulher
silenciou-se progressivamente, ela deve estar embalando o ilho.
– Em janeiro – continua Camille –, com exceção de um morto, tudo se
passa como o planejado. – Seria preciso ser ingênuo para esperar a menor
reação de um homem como Hafner. – Você tinha planejado passar todos
para trás e se mandar com a grana. Toda a grana. – Camille aponta de novo
o teto com o indicador. – Normal, quando temos o senso do dever,
queremos assegurar o sustento dos nossos entes próximos. No fundo, o
fruto desses assaltos era uma espécie de legado testamental, se assim se
pode dizer. Eu nunca descobri, essas coisas são tributáveis?
Hafner não move um cílio. Nada o fará desviar de sua trajetória. A esse
que veio caçá-lo até aqui, esse portador de más notícias, mensageiro do
im, ele não lhe dará nem sequer a esmola de um sorriso, sequer de uma
con idência, de qualquer conivência.

fevereiro•2022
Clube SPA

– No plano moral – prossegue Camille –, sua postura é irrepreensível.


Está fazendo como qualquer bom pai de família, está simplesmente
tentando proteger sua ninhada das futuras necessidades. Mas seus
cúmplices, vai saber por que, não veem com bons olhos essa atitude. O que
é inútil, porque você preparou bem o seu golpe. Eles podem continuar
tentando colocar as mãos em você, você já antecipou tudo, comprou uma
nova identidade, cortou todos os ios que o conectavam à sua antiga vida.
Estou surpreso em saber que você preferiu não ir para o exterior.
Hafner não diz nada de início, mas ele vai precisar de Camille, pode
sentir. É obrigado a fazer pequenas concessões.
– É por causa da pequena... – diz ele.
Camille não sabe se está designando a mãe ou a criança. Na verdade, dá
no mesmo.
Os postes da rua se apagam subitamente, por causa do horário ou de
uma pane. A luz, na sala, diminui de intensidade. A silhueta de Hafner é
moldada pela contraluz, como uma grande carcaça vazia e ameaçadora,
fantasmagórica. Acima deles, o bebê volta a chorar brandamente, mais
uma vez passos precipitados e abafados, o choro cessa. Camille poderia
icar bem ali, en im. Essa meia penumbra, esse silêncio. E o que está
esperando por ele lá fora mesmo? Na verdade, ele está pensando em Anne.
Acorde, Camille.
Hafner, por sua vez, descruza e cruza as pernas, tão lentamente, que
parece que ele não quer assustar Camille. A menos que esteja sentindo dor.
Talvez seja isso. Acorde, Camille.
– Ravic... – começa Camille. (Ele constata que sua voz se sincronizou à
atmosfera da casa, um tom mais baixo, abafado.) – Ravic, não o conheci
pessoalmente, mas suponho que ele não icou nada contente em ser
passado para trás e se ver sem um centavo. Ainda mais considerando que
essa história lhe rendia uma acusação de homicídio. Sim, eu sei, a culpa é
dele, falta de sangue-frio etc. Mesmo assim. Ele havia conseguido sua parte
e você fugiu com ela. Você sabe o que aconteceu com o Ravic?
Camille acredita discernir, em Hafner, um imperceptível retesamento.
– Ele morreu. A namorada dele, ou seja lá o que ela era, foi posta para
dormir com uma bala na cabeça. E Ravic, antes de passar dessa para a
outra, teve os dez dedos decepados, um por um. Por uma faca de caça. O
cara que fez isso é um animal, na minha opinião, Ravic era sérvio, mas,
en im, a França é uma terra de asilo, não? Você acha que isso é bom para o
turismo, sair picando estrangeiros em pedacinhos?
– Você já está começando a me encher o saco, Verhoeven.

fevereiro•2022
Clube SPA

Interiormente, Camille solta um suspiro de alívio. Se não conseguisse


fazê-lo sair do seu mutismo, ele não arrancaria nada dele, estaria
condenado a um monólogo. Contudo, ele precisa de um diálogo.
– Você tem razão – diz ele –, não é hora de retaliações.Turismo é uma
coisa, assalto é outra. Ainda que, pensando bem... En im: Maleval. Ele, ao
contrário de Ravic, antes que saísse decepando mãos inteiras com punhal
de caça, pude conhecê-lo muito bem.
– No seu lugar, eu o teria matado.
– Entendo por quê, isso pouparia você de tê-lo hoje no seu pé. Pois ele
não se tornou somente um baita de um brutamontes, meu caro Maleval, ele
continua malandro como antes.Também, ele não apreciou ser traído, está
procurando por você veementemente...
Hafner concorda com a cabeça lentamente. Ele tem seus informantes,
deve ter seguido, de longe, as etapas da procura de Maleval.
– Mas, diante da sua mudança de identidade, da maneira radical de
cortar os laços com tudo e todo mundo, a cumplicidade ativa de todos
aqueles que te respeitam ou temem, Maleval pode ter revirado céu e terra,
ele não tinha os seus recursos, suas relações, sua reputação, ele teve de
encarar a verdade, ele jamais encontraria você.
Hafner franze as sobrancelhas.
– Então ele teve uma grande ideia.
Hafner espera a conclusão do raciocínio.
– Ele con iou esse trabalho à polícia. – Camille abre as mãos
amplamente. – Foi o seu humilde criado que ele encarregou da
investigação. E ele agiu certo porque eu sou um tira muito competente,
preciso de menos de vinte e quatro horas para achar um cara como você
quando estou decidido. E para dar ânimo a um homem, o que pode ser
melhor que uma mulher? Principalmente uma mulher espancada, imagine,
sensível como sou, nada mais e icaz. Alguns meses antes, ele me arranjou
um encontro, na hora iquei lisonjeado.
Hafner balança a cabeça. Por mais que ele se veja numa emboscada, por
mais que ele sinta se aproximar da sua vez de lutar pela vida, ele admira o
truque de Maleval. Talvez ali, sob a penumbra, ele esteja sorrindo por
dentro.
– Para me con iar essa investigação, Maleval organizou um assalto que
lembra inevitavelmente o seu estilo, com o seu rastro, se assim posso
dizer: a joalheria, a Mossberg cano curto, a agressividade. Para nós, sem
sombra de dúvidas, o assalto da galeria Monier tem a marca registrada de
Hafner. Eu saí do sério. O que se pode fazer, a mulher com quem estou

fevereiro•2022
Clube SPA

envolvido é espancada quase até a morte enquanto ia buscar um presente


que ia me dar, obviamente, isso me deixa maluco, então eu me entrego.
Faço de tudo para cuidar do caso e, como sou bem esperto, acabo
conseguindo. Para con irmar minha intuição, no momento do
reconhecimento do criminoso, a mulher, que é a única testemunha e que
certamente só o viu numa foto que Maleval deve ter mostrado a ela,
reconhece você com toda a convicção. Você e Ravic. Ela até alega ter ouvido
palavras em sérvio, veja só! Para nós, o assalto da galeria Monier é obra
sua, carimbada, sem sombra de dúvida.
Hafner concorda lentamente, com o ar de achar o golpe particularmente
bem re letido. E de perceber que ele tem com Maleval um adversário de
porte diante de si.
– Então eu começo a procurar por você em nome de Maleval – conclui
Camille. – Eu me torno seu detetive privado. Ele exerce uma grande
pressão sobre a testemunha, eu acelero meu ritmo. Ele ameaça matá-la, eu
dobro a velocidade. E, no im das contas, ele fez a escolha certa. Sou
e iciente. Encontrar você me custou um método muito caro, m...
– Que método? – interrompe-o Hafner.
Camille levanta a cabeça, como explicar isso? Ele permanece um instante
imerso em seus pensamentos, Buisson, Irene, Maleval, então desiste.
– Eu – continua ele quase para si mesmo – não tinha contas para quitar
com ninguém...
– Isso não é verdade. Todo mundo tem...
– Você tem razão. Porque Maleval, ele, sim, tem uma conta bem antiga
para quitar comigo. Ao informar Buisson, sete vezes homicida, ele cometeu
uma falta pro issional muito grave. Então vieram a prisão, a humilhação, o
banimento, nome nas manchetes, o juiz de instrução, o julgamento. E, para
terminar, a cadeia. Não por muito tempo, mas para um policial, consegue
imaginar como foi a atmosfera durante seu enclausuramento? Então ele
disse a si mesmo que, com isso, tinha a ocasião sonhada, que podia me dar
o troco. Dois coelhos com uma cajadada. Ele me encarrega de encontrar
você e ao mesmo tempo se encarrega de me demitir.
– Você fez isso porque quis.
– Em parte... Seria complicado explicar isso.
– Ainda mais porque não faço a menor questão de saber.
– Desta vez você está equivocado. Porque agora eu te achei, Maleval vai
vir até aqui. E ele não virá simplesmente reclamar o que lhe é devido,
acredite em mim. Ele vai querer tudo.
– Eu não tenho mais nada.

fevereiro•2022
Clube SPA

Camille inge pesar os prós e os contras.


– Sim – diz ele –, en im, você pode tentar isso, quem não tem nada não
arrisca nada. Acho que Ravic também tentou: gastei tudo, deve me sobrar
uns trocados, não muita coisa... – Camille abre um sorriso franco. – Vamos
falar sério. Esse dinheiro, você está guardando para o dia em que não
estiver mais aqui para proteger suas pequenas e, portanto, você tem, sim. A
questão não é saber se Maleval vai achar as suas economias, mas quanto
tempo ele vai demorar para achá-las. E eventualmente, quais métodos ele
vai utilizar para chegar até elas.
Hafner vira a cabeça para a janela, seria possível se perguntar se ele não
está esperando ver surgir Maleval com uma faca de caça na mão. Continua
silencioso.
– Ele virá te fazer uma visita. Assim que eu decidir. Basta que eu dê o seu
endereço para a cúmplice dele, dez minutos depois e Maleval está a
caminho, uma hora depois ele arromba sua porta com tiros de Mossberg.
Hafner inclina a cabeça ligeiramente.
– Já sei o que você está pensando – diz Camille. – Que vai derrubá-lo aqui
mesmo. Eu não quero ofender, mas me parece que você não está na sua
melhor forma. Ele tem vinte anos a menos que você, está bem treinado e é
muito esperto, você já o subestimou uma vez e se equivocou. É sempre
possível ter sorte, certamente, mas é a única esperança que te resta. E, se
quiser um conselho, não falhe. Porque ele está bem enfezado com você e,
depois de meter uma bala no meio dos olhos da jovem mamãe, quando ele
começar a desossar a sua pequena, lá em cima, os dedinhos dela, as
mãozinhas dela, se você falhar, sem dúvida vai se arrepender muito...
– Pare de falar besteira, Verhoeven, já enfrentei mais de vinte caras
iguais a ele!
– Isso é passado, Hafner, até o seu futuro está atrás de você agora.
Mesmo que tente esconder suas meninas com a grana, supondo que eu te
dê tempo, não vai adiantar de nada. Maleval conseguiu achar você, o que já
era muito di ícil. Encontrá-las vai ser como tirar um doce de uma criança. –
Silêncio. – A sua única chance – conclui Camille – sou eu.
– Vai se foder.
Camille concorda com a cabeça lentamente, ele estende a mão em
direção ao seu chapéu.Todos os seus traços do rosto exprimem um
paradoxo – mímica de aprovação, mas rosto contrariado, bem, iz o que
podia. Ele se levanta relutantemente. Hafner não esboça nenhum gesto.
– Bom – diz Camille –, vou deixá-lo em família. Aproveite bastante.
Ele se dirige para o corredor.

fevereiro•2022
Clube SPA

Não tem a menor dúvida sobre o efeito da sua estratégia, leve o tempo
que levar, até a porta da frente, até os degraus, até o jardim, talvez até a
grade, pouco importa, mas Hafner vai chamá-lo de volta. A iluminação da
rua acende novamente, os postes, bem espaçados, projetam sobre a
calçada e o im do jardim uma luz amarelada e pálida.
Camille permanece junto à porta, olha para a rua tranquila, em seguida
se volta, um gesto com a cabeça para o alto da escada.
– Como se chama a pequena?
– Ève.
Camille aprecia, lindo nome.
– Ela começou com o pé direito – diz ele enquanto se retira. – Só espero
que ela vingue.
Ele sai.
– Verhoeven!
Camille fecha os olhos.
Ele refaz o mesmo caminho.

21h
Anne icou em Montfort, incapaz de saber se está agindo por coragem ou
por covardia; ela apenas permanece ali, esperando. Mas a hora passa e o
cansaço comprime seu peito. Ela tem a impressão de ter atravessado uma
provação, de ter passado para o outro lado: não tem mais controle sobre
nada, uma concha vazia, não pode mais suportar.
Foi o fantasma de Anne que, vinte minutos mais cedo, juntou suas
coisas; não há muito o que carregar. Sua blusa, o dinheiro, o celular, o papel
com o mapa e os números de telefone. Ela se dirige para a porta de vidro,
dá meia-volta.
O motorista de táxi acabou de ligar para ela de Montfort, ele não
consegue encontrar essa bendita estrada de terra e está à beira do
desespero. Tem sotaque asiático. Ela teve de acender a luz da casa para
acompanhar o mapa e tentar guiá-lo; não há o que fazer... Ele queria dizer
depois da rua Longe? Sim, à direita, mas ela não sabe sequer em que
direção ele está indo. Ela vai ao encontro dele. Bem, vá até a igreja, não saia
de lá, me espere, ok? Ele concorda, prefere essa solução, pede desculpas,
mas o GPS... Anne desliga. Em seguida, senta-se de novo.
Só mais alguns minutos, ela promete a si mesma. Se o telefone tocar em
cinco minutos... E, se ele não tocar...

fevereiro•2022
Clube SPA

No escuro, ela passa seu indicador cansado sobre a cicatriz da bochecha,


sobre a gengiva, apanha um caderno de croquis ao acaso. Nele, é possível
passar os dedos cem vezes sem nunca topar com o mesmo desenho.
Só alguns minutos. O motorista liga novamente, está impaciente, não
sabe se deve esperar, ir embora, ele oscila.
– Espere por mim – diz ela –, estou indo.
Ele diz que ligou o taxímetro.
– Dê-me alguns minutos. Dez minutos...
Mais dez minutos. Então, tendo Camille ligado ou não, ela vai embora.
Tudo isso para nada?
E depois, o que vai acontecer?
Seu celular toca exatamente nesse instante.
É Camille.

Como é duro esperar. Eu abri o sofá-cama, mandei subir uma garrafa de


Bowmore Marine e um prato frio, mas sei que não vou pregar o olho.
Do outro lado da parede, ouço os ruídos do salão do restaurante,
Fernand está enchendo os meus caixas, isso deveria me deixar contente,
mas não é o que quero agora, o que espero. Depois de tanto trabalho...
Porém, quanto mais o tempo passa, mais minhas chances diminuem. O
maior risco que corro é Hafner já ter se mandado para as Bahamas com a
sua putinha. Todos alegam que ele está doente, talvez tenha optado por
estorricar ao sol, vai saber. E com o meu dinheiro, ainda por cima! Ele deve
estar recuperando a saúde com o salário dos seus empregados, isso me
deixa puto.
Por outro lado, se ele escolheu se enterrar por aqui, assim que eu souber
por onde anda, vou pular em cima dele antes que os tiras tenham tempo de
se organizar, eu vou arrastá-lo até o seu porão e ter uma conversa, eu, ele e
o maçarico.
Enquanto isso não acontece, vou bebericando meu uísque e tentando
icar calmo; vou pensando nessa mulher que estou segurando pelos
cabelos, em Verhoeven, que estou segurando pelas bolas; vou pensando em
Hafner, que vou cruci icar...
É preciso manter a calma.

fevereiro•2022
Clube SPA

Camille, de volta ao carro, permanece um longo momento ao volante,


imóvel. Será que é o impacto da icha ao cair? A chegada ao im do
caminho? Ele se sente frio como uma serpente, pronto para tudo.
Organizou tudo para um im dentro das regras da obra de arte. Tem apenas
uma dúvida: será ele forte o bastante?
O comerciante árabe, da entrada da sua loja, olha para ele sorrindo
gentilmente e continua mastigando seu palito de dente. Camille tenta rever
o ilme da sua relação com Anne, mas não se lembra de nada, o ilme
travou. É o efeito da provação que o espera.
Não que ele seja incapaz de mentir, longe disso, é apenas porque as
pessoas sempre acabam hesitando um pouco diante do inal das coisas.
Anne precisa se livrar de Maleval e, para isso, ela se comprometeu em
espionar Camille durante sua investigação.
Ela se comprometeu em passar para ele o endereço onde Hafner está
escondido.
Só Camille é capaz de ajudá-la a se livrar dele. Mas esse ato vai demarcar
o im da história deles. Como já demarcou o im de tantas outras coisas. Há
certo cansaço nessa hesitação inal de Camille.
Vamos, ele diz para si mesmo. Chacoalha a cabeça e volta a si; apanha o
celular, liga para Anne. Ela atende rapidamente:
– Alô, Camille?
Silêncio. Então as palavras saem.
– Localizamos Hafner. Pode icar tranquila agora.
Pronto. Acabou.
Ele tem uma voz calma, que deve exprimir a que ponto tem a situação
sob controle.
– Tem certeza? – pergunta ela.
– Absoluta. – Ele ouve ruído ao redor dela, como um suspiro. – Onde
você está?
– No terraço.
– Eu tinha dito para você não sair da casa!
Anne não parece ter entendido. Sua voz é trepidante, as palavras
precipitadas.
– Vocês o prenderam?
– Não, Anne, não é assim que as coisas funcionam. Acabamos de localizá-
lo, eu quis te avisar de imediato. Você me pediu, insistiu. Não vou poder
icar muito tempo ao celular. O importante é que...
– Onde ele está, Camille? Onde?
Camille hesita, certamente pela última vez.

fevereiro•2022
Clube SPA

– Nós o encontramos num esconderijo...


Ao redor de Anne, a loresta farfalha. O vento se ergue por sobre as
árvores, a luminosidade que clareia o terraço estremece suavemente. Ela
não se move. Deveria pressionar Camille com perguntas, reunir toda a sua
energia, dizer, por exemplo: quero saber onde ele se encontra. É o tipo de
frase que ela tinha preparado. Ou: estou com medo, você entende?! Falar
mais alto, deixá-lo preocupado, insistir: que esconderijo? Onde isso? E, se
não bastar, passar para a pura e simples agressividade: vocês o acharam...
para começar, como você tem certeza disso? Isso não quer dizer nada!
Também é possível recorrer à chantagem emocional: isso me deixa ainda
mais preocupada, Camille, preciso saber, você consegue entender?! Ou
lembrar os fatos: ele me bateu, Camille, esse homem quis me matar, tenho
o direito de saber! etc.
Em vez disso, silêncio, ela ica sem voz.
Ela viveu um instante exatamente semelhante três dias atrás, de pé na
rua, coberta de sangue, apoiada com duas mãos na carroceria de um carro
estacionado, o quatro por quatro dos assaltantes chegou, o homem sacou
sua espingarda diante dela, ela se lembra da ponta do cano apontada e não
fez nada, exausta, pronta para morrer, incapaz de reunir o menor lampejo
de energia. Sente a mesma coisa agora. Ela se cala.
Camille vai resgatá-la, mais uma vez.
– Nós o localizamos nos subúrbios da zona leste – diz ele –, em Gagny. Na
rua Escudier, número 15. O bairro é tranquilo, residencial. Ainda não sei há
quanto tempo ele está lá, acabei de saber. Está usando o nome falso de Eric
Bourgeois, isso é tudo o que eu sei.
Último silêncio.
Camille pensa consigo que é a última vez que a está ouvindo, o que não é
verdade, porque ela continua a perguntar.
– E como vocês vão fazer agora?
– Ele é perigoso, Anne, você sabe disso. Vamos estudar o local. Primeiro
é preciso veri icar se ele está em casa, tentar saber com quem ele está, eles
podem ser vários, não podemos transformar o subúrbio parisiense em
forte Álamo, vamos enviar uma unidade especializada para lá. E esperar a
hora certa. Sabemos onde o encontrar. E temos meios para deixá-lo fora de
condições de causar danos. – Ele se força a sorrir. – Está melhor agora?
– Sim, melhor – diz ela.
– Vou ter que desligar agora. Até mais.
Silêncio.
– Até mais.

fevereiro•2022
Clube SPA

21h45
Eu nem botava mais fé. Mas aí está o resultado esperado: Hafner foi
localizado!
Não é à toa que estava sendo impossível encontrá-lo, agora ele é o
senhor Bourgeois. Depois de ter conhecido esse cara no auge da glória, vê-
lo disfarçado com um nome desses é mesmo decepcionante.
Mas Verhoeven tem certeza. Logo, eu também.
Os rumores sobre sua doença tinham fundamento, só torço para que ele
não tenha gastado toda a sua grana em exames e remédios, que sobre o
su iciente para recompensar meus esforços, porque, senão, perto do que
tenho guardado para ele, as metástases do câncer não são mais que
bicarbonato de sódio. Logicamente, ele deve estar tentando poupar seu pé-
de-meia e tê-lo à mão, caso necessário.
Agora é só pular dentro do carro, devorar a via periférica, um pouco de
rodovia, os subúrbios, e aqui estou.
Um sobrado... Imaginar Vincent Hafner num lugar desses é mesmo
impossível. O esconderijo é astucioso, mas não posso deixar de pensar que,
para ele ter se reduzido a se refugiar nesse subúrbio residencial, ele deve
estar envolvido com alguma mulher, impossível de outra forma. Talvez a
pequena da qual ouvimos falar, uma paixão de terceira idade, o tipo de
sentimento que o leva a aceitar se tornar senhor Bourgeois para os seus
vizinhos.
Esse tipo de constatação faz você re letir sobre o sentido da vida: basta
que Vincent Hafner, que passou a metade da vida trucidando o próximo,
apaixone-se por alguém e já ica mole como massa de pão.
A minha vantagem é que a presença de uma garota sempre é de uma
ajuda muito preciosa nessas horas. O melhor pé-de-cabra. Você quebra as
duas mãos dela, oferecem as próprias economias, fura um olho, ganha as
economias de toda a família, e assim por diante, cada órgão vale o peso
equivalente em ouro maciço.
Claro, nada equivale a um moleque. Quando você quer obter alguma
coisa, um pivete é a arma mais poderosa. Ninguém nem sonha negar o que
seja.
Primeiro virei e revirei o bairro, bem longe da rua Escudier. Os tiras só
se acercarão bem mais tarde, na madrugada.
E, ainda assim, nada disso é certo porque eles ainda vão precisar se
preparar bem. Cercar a zona não é nada di ícil, basta bloquear todas as

fevereiro•2022
Clube SPA

ruas, mas invadir a casa será nitidamente mais complicado. Primeiro eles
vão ter que se certi icar que Hafner está em casa – é o mínimo – e que está
só. Isso não vai ser simples, não há nenhum espaço para estacionar as
viaturas das unidades e, como nesse bairro quase não há tráfego, um carro
à espreita logo chama a atenção. Eles vão ter que mandar discretamente
um ou dois tiras à paisana para averiguar a casa, e isso não vai ser feito em
meia jornada, pode ter certeza.
Nesse momento, os caras do Grupo de Operações Especiais estão
certamente fazendo planos mirabolantes, desenhando trajetórias em
mapas aéreos, traçando zoneamentos, compartimentações, não devem
estar com tanta pressa. Eles têm, no mínimo, a madrugada inteira pela
frente, nada possível antes de amanhã pela manhã e, depois, vigiar, vigiar e
vigiar... Isso pode levar um dia, dois dias, três dias. E, daqui até lá, a presa
deles não apresentará mais nenhum perigo há muito tempo porque eu
terei cuidado dela pessoalmente.
Meu carro está estacionado a duzentos metros da rua Escudier, passei
pelas grades com a mochila nas costas, duas ou três cacetadas em uns
cachorros que queriam dar uma de valentões e de grade em cerca aqui
estou, sentando num jardim debaixo de um pinheiro. Os proprietários, no
térreo, estão assistindo à tevê. Do outro lado, a trinta metros, através do
cercamento que separa as duas residências, tenho uma vista perfeita dos
fundos da número 15.
Apenas um cômodo está aceso, no andar de cima, por uma luz azulada,
intermitente, que indica um televisor.Todo o resto da casa está apagado. Há
apenas três hipóteses: ou Hafner está assistindo à televisão no andar de
cima, ou ele saiu, ou está dormindo e é a garota que está se instruindo,
vendo o canal TF1.
Se ele tiver saído, eu lhe garanto uma recepção de boas-vindas no seu
retorno.
Se estiver deitado, vou lhe servir de despertador.
E, se ele estiver na frente da tevê, vai perder os comerciais, porque vou
oferecer a ele um outro entretenimento.
Passo um tempo observando o local com o binóculo, então me aproximo
e invado. Quero tirar o máximo de proveito do elemento surpresa. Já estou
me divertindo.
O jardim é um local propício para a meditação. Faço uma análise da
situação. Quando me dei conta de que tudo ia funcionando
maravilhosamente bem, quase melhor do que esperava, eu me forcei a ser
paciente porque, de costume, sou uma pessoa impetuosa. Quando cheguei

fevereiro•2022
Clube SPA

aqui, mais um pouco, eu teria dado tiros para cima e invadiria o barraco
gritando como um lunático. Mas chegar aqui é resultado de muito trabalho,
muita re lexão e muita energia, estou a dois dedos da grana e, portanto,
preciso me controlar. E, meia hora mais tarde, como nada sai do lugar, eu
passo um tempo organizando cuidadosamente as minhas coisas e
percorrendo os arredores da casa. Nenhum sistema de alarme. Hafner não
quis chamar atenção transformando sua pací ica fortaleza em bunker. Ele é
muito malandro, fundiu-se com a paisagem, esse senhor Bourgeois.
Volto ao meu lugar, sento mais uma vez, fecho a minha jaqueta e
continuo a observar pelos binóculos.
E inalmente, por volta das vinte e duas e trinta, a tevê do andar de cima
é desligada, a janelinha do meio se acende por um minuto. Essa janela é
mais estreita que as demais, deve ser o banheiro. Eu não poderia sonhar
com uma con iguração melhor. A julgar por essa única movimentação, tem
gente em casa, mas não muita. Tomo minha decisão, levanto e passo para a
ação.
A casa é um sobrado dos anos trinta cuja cozinha foi construída nos
fundos. Dá para entrar nela por uma porta de vidro disposta depois de
alguns degraus que dão para o quintal. Subo silenciosamente, a maçaneta é
tão antiga que daria para abrir com um abridor de lata.
Daqui em diante, o desconhecido.
Deixo minha bolsa de viagem perto da porta, ico apenas com a minha
Walther munida do seu silenciador e, no estojo de couro preso na minha
cintura, meu punhal de caça.
Reina por aqui um silêncio pulsante, uma casa à noite sempre causa
certo desconforto. Primeiro preciso acalmar meu ritmo cardíaco, senão
não conseguirei ouvir nada. Permaneço aqui por um longo momento, em
estado de alerta.
Nenhum som.
Eu deslizo sobre o piso, bem devagar, porque alguns ladrilhos estalam.
Ao sair da cozinha, chego ao pé da escada. À minha direita, a escada que
liga os dois pisos. À minha frente, a porta de entrada. À minha esquerda,
uma abertura, provavelmente a sala de estar ou de jantar, cuja porta dupla
foi retirada para melhorar a ventilação do cômodo.
Todos estão no andar de cima. Por precaução, encosto na parede no
momento de passar diante da porta da sala e chegar à escada, a Walther
nas duas mãos, o cano apontado para o chão...
Sinto-me estupefato, permaneço praticamente grudado à parede: no
instante em que atravesso o patamar em direção à escada, à minha

fevereiro•2022
Clube SPA

esquerda, no outro extremo da sala, no meio de um breu quase completo,


banhado somente pela iluminação dos postes da rua, encontra-se Hafner,
diante de mim, sentando numa poltrona.
Sua aparição me deixa sem reação.
Só tenho tempo de avistar seu gorro de lã en iado até as sobrancelhas, os
olhos esbugalhados...
Hafner nessa poltrona, eu juro, é como Ma Barker8 na sua cadeira de
balanço.
Ele tem a sua Mossberg apontada para mim.
Assim que apareço, ele atira.
O barulho do disparo preenche de uma só vez todo o espaço, um tiro
como esse derrubaria qualquer um. Reajo muito rápido. No milésimo de
segundo que tive, eu me atirei ao pé da escada. Não reajo rápido o bastante
para me esquivar totalmente do tiro, que alvejou a entrada da sala, mas o
su iciente para não levar mais que um tiro na perna.
Hafner estava me esperando, fui atingido, não estou morto, já consegui
icar de joelhos, fui atingido na panturrilha.
Os acontecimentos se encadeiam tão rapidamente que meu cérebro
sofre para processar a informação. Aliás, ele já está atrasado diante de um
re lexo quase reptiliano, uma reação que vem da medula espinhal. Porque
faço exatamente o que ninguém poderia esperar: surpreso, atingido, ferido,
passo para a ação.
Eu me viro sem nem sequer ter tempo de medir as consequências, como
o bote de uma carpa, eu me lanço no vão da porta, junto ao chão, vejo pelo
rosto de Hafner que ele esperava por qualquer outra coisa, menos me ver
ressurgir assim, no mesmo lugar em que acabou de me acertar.
Estou de joelhos diante dele, o braço estendido.
Na mão, minha Walther.
Minha primeira bala atravessa sua garganta, a segunda entra no meio da
testa, ele nem sequer tem tempo de apertar uma segunda vez o gatilho, as
cinco balas seguintes arrombam seu peito. Ele é dominado por
sobressaltos furiosos, como se lutasse em desespero contra um acesso de
tosse.
Mal tomo consciência do fato de que estou ferido na perna, que Hafner
está morto e que todos os meus esforços convergem para um monumental
fracasso, quando meu cérebro me passa uma nova informação: você está
de joelho no corredor, sua pistola está descarregada e você tem o cano de
uma arma contra a sua nuca.
Congelo instantaneamente. Ponho minha Walther no chão bem devagar.

fevereiro•2022
Clube SPA

A arma está sendo segurada com uma mão irme. O cano exerce uma
leve pressão. Mensagem clara, empurro a Walther para longe de mim, ela
percorre mais ou menos dois metros e para.
Estou bem encrencado. Abro os braços para mostrar que não ofereço
resistência, viro-me bem lentamente, a cabeça baixa, evitando qualquer
movimento brusco.
Não tenho que pensar muito para adivinhar quem está prestes a me
matar. A con irmação chega em seguida; assim que vejo os sapatos,
percebo que os modelos são bem pequenos. Sapatos de anão. Meu cérebro,
que continua sua corrida brusca para encontrar uma saída, faz-me a
pergunta: como ele chegou aqui antes de você?
Mas não ico muito tempo analisando o meu iasco porque, antes de
conseguir a resposta, vou acabar levando uma bala na cabeça com total
impunidade. Aliás, o cano da arma já está deslizando pelo meu crânio para
parar no meio da minha testa, exatamente onde Hafner levou minha
segunda bala; levanto a cabeça.
– Boa noite, Maleval – diz-me Verhoeven.
Ele está de sobretudo, chapéu na cabeça, uma mão no bolso. Parece que
está prestes a partir.
O que é um mau sinal é que a outra mão, a que segura a arma com
irmeza, está com uma luva. Começo a ser dominado pelo pânico. Mesmo
que eu reaja com rapidez, se ele atirar, estou morto. E, ainda mais com uma
perna ferida, já estou perdendo muito sangue, tento pensar, não tem como
saber, se eu me apoiar sobre ela, não sei como vai reagir.
Mas Verhoeven sabe muito bem.
Por precaução, ele recua um passo, seu braço não se move, permanece
perfeitamente reto, ele não demonstra medo, está decidido, seu rosto
angular exprime uma serenidade sóbria, modesta.
Estou de joelhos, ele está de pé, nossos olhos não estão à mesma altura,
mas falta muito pouco. Talvez essa seja a minha chance, a última. Ele está
ao alcance da mão, se eu conseguir alguns centímetros, alguns minutos...
– Vejo que continua a pensar rápido, meu jovem...
“Meu jovem”... Verhoeven sempre teve esse jeito, protetor, paterno. Pelo
seu tamanho, parece ridículo. Mas ele é bem esperto. E eu, que o conheço
bem, vejo que não está num bom dia.
– Bem, vou ser rápido... – continua ele. – Como de costume. Porque, esta
noite, você está um passo atrás. Tão perto do seu objetivo, deve ser
decepcionante. – Ele não tira os olhos de mim. – Se tiver vindo procurar
uma mala cheia de dinheiro, vai fazer bem para você saber que ela estava

fevereiro•2022
Clube SPA

mesmo aqui. Há uma hora a mulher de Hafner se foi com ela. Fui eu mesmo
que chamei um táxi para ela. Você me conhece, sou um homem prestativo
com as mulheres. Seja quando elas estão com uma mala ou quando estão
armando um barraco num restaurante, estou sempre pronto para oferecer
meus serviços.
Ele não vai dar brecha para nenhum lapso, a pistola está engatilhada e
dá para ver que essa não é a sua arma de serviço...
– Pois é – diz ele como se seguisse meus pensamentos –, a arma pertence
a Hafner. No andar de cima tem todo um arsenal, você nem pode imaginar.
Foi ele mesmo que me indicou essa aqui. Para mim, nessa situação,
qualquer uma me serve, esta, outra...
Seus olhos não saem de mim, é algo quase hipnotizante. Eu já havia
reparado algumas vezes, no tempo em que trabalhava para ele, esse olhar
frio, como uma lâmina.
– Você me pergunta como cheguei aqui, mas principalmente de que
maneira vai conseguir sair dessa. Porque deve estar supondo a que ponto
estou furioso.
Sua imobilidade perfeita con irma que a saída é só uma questão de
segundos.
– E ofendido – continua Verhoeven. – Principalmente ofendido. Isso não
é bom para um cara como eu. A gente aprende a lidar com a raiva, acaba
por se acalmar, relevar, mas é terrível o estrago que o amor-próprio pode
causar. Principalmente num cara que não tem mais nada a perder, um cara
que não tem mais nada que lhe pertence de verdade. Um cara como eu, por
exemplo. Por causa de uma ferida ao amor-próprio, ele pode ser capaz de
tudo.
Não digo nada. Engulo minha saliva.
– Você – diz ele –, você vai querer se atirar sobre mim. Sinto isso. – Ele
sorri. – No seu lugar, é também o que eu faria. Tudo ou nada, faz parte da
nossa natureza. Somos muito próximos, não é? Parecemos muito um com o
outro. Foi o que tornou essa história possível, acredito.
Ele disserta, mas não perde o foco na situação.
Contraio meus músculos.
Ele tira a mão esquerda do bolso.
Sem mexer os olhos, calculo minha trajetória.
Ele segura sua pistola com as mãos, perfeitamente apontada para os
meus olhos. Vou surpreendê-lo; ele espera que eu o ataque ou que me
esquive, então vou recuar.
– Tsc, tsc, tsc...

fevereiro•2022
Clube SPA

Sua mão deixa a arma e vai em direção à orelha.


– Ouça...
Ouço. As sirenes. Elas se aproximam muito rapidamente. Verhoeven não
sorri, não saboreia sua vitória, está triste.
Se eu não estivesse nessa péssima situação, sentiria pena dele. Sempre
soube que amava esse homem.
– Prisão por homicídio – diz ele. Sua voz está bem baixa, é preciso se
concentrar muito para ouvi-lo. – Assalto, cumplicidade de homicídio em
janeiro... Quanto a Ravic, tortura e homicídio; quanto à namorada dele,
assassinato. Você vai icar guardado por um bom tempo; isso me dá pena,
sabe?
Ele está sendo sincero.
As sirenes convergem para a casa em alta velocidade; são pelo menos
cinco, talvez mais. As luzes dos giro lex passam pelas janelas e iluminam o
interior do sobrado como néons de um parque de diversões. No canto da
sala, o rosto inerte de Hafner, desmoronado na poltrona, tinge-se
alternadamente de azul e vermelho.
Passos céleres. A porta de entrada parece voar em pedaços. Viro a
cabeça.
É Louis, meu velho amigo Louis quem entra primeiro. Asseado, penteado
como no dia da primeira comunhão.
– Olá, Louis...
Gostaria muito de tomar certo distanciamento, manter o cinismo,
continuar meu esboço, mas reencontrar Louis dessa maneira, com todo
esse passado, toda essa bagunça, isso me aperta o peito.
– Olá, Jean-Claude... – diz Louis se aproximando.
Meus olhos se voltam para Verhoeven. Ele já não está mais aqui.

22h30
Todas as casas e jardins se iluminaram. Os proprietários icam sobre os
degraus de entrada, eles se interpelam algumas vezes, trocam perguntas,
alguns se aproximaram do portão; outros, mais temerosos, foram até o
meio da rua, mas, ainda assim, hesitam em se aproximar. Dois o iciais de
uniforme colocam-se nos extremos da rua para impedir as aproximações
intempestivas.
O comandante Verhoeven, com o chapéu en iado na cabeça e as mãos
nos bolsos do sobretudo, dá as costas para a cena. Ele olha para a rua toda

fevereiro•2022
Clube SPA

iluminada como uma noite de Natal.


– Peço desculpas, Louis. – Ele fala lentamente, como um homem tomado
pelo cansaço. – Eu o deixei de fora de tudo, como se descon iasse de você.
Não foi nada disso, você sabe, não é?
A pergunta não é apenas formal.
– Claro que sei – diz Louis.
Ele queria protestar, mas Verhoeven já desviou os olhos para outro lado.
É sempre assim entre eles, a conversa começa, mas raramente termina.
Desta vez, é obviamente diferente. Ambos têm a sensação de que estão se
vendo pela última vez.
Essa possibilidade dá a Louis uma temeridade excepcional... – Essa
mulher... – começa ele.
Duas palavras como essas é algo enorme vindo da parte de Louis.
Camille reage de imediato:
– Ah, não, Louis, nem pense nisso! – Camille não está bravo, mas
veemente. Como se arriscasse ser vítima de uma injustiça. – Quando você
diz “essa mulher”, tenho a impressão de que sou vítima de uma história de
amor.
Ele olha de novo para a rua, por um longo momento.
– Não foi o amor que me fez agir, foi a situação.
Ouvem-se ruídos da rua próximo à casa, barulho de motores, vozes,
instruções, a atmosfera não está turbulenta, mas calma, quase pací ica.
– Desde a morte de Irene – continua Camille –, eu acreditava que tudo
havia terminado. Na verdade, a chama ainda ardia e eu não sabia. Maleval
deve tê-la soprado na hora certa, foi isso. No fundo, “essa mulher”, como
você diz... não tem muito a ver com essa história.
– Seja como for – insiste Louis –, mentira, traição...
– Ora, Louis, são apenas palavras... Quando compreendi o que estava
acontecendo, poderia ter parado por ali, não haveria mais mentiras, não
haveria mais traição.
O silêncio de Louis pergunta: e então?
– Na verdade...
Camille se vira para Louis, ele parece procurar as próprias palavras no
rosto do rapaz.
– Eu não sentia mais vontade de parar, tinha que ir até o im, para pôr
um ponto inal. Acho que... isso é idelidade. – Ele parece espantado com
essa palavra. Sorri. – E, além disso, essa mulher... nunca me convenci de
que suas intenções fossem ruins. Se eu achasse isso, eu a teria prendido na
hora. Quando percebi, era um pouco tarde, mas podia lidar com os danos

fevereiro•2022
Clube SPA

causados, ainda podia fazer meu trabalho. Mas não. Sempre pensei que o
fato de ela passar por tudo o que passou... não podia ser por um mau
motivo. E eu estava certo. Ela estava se sacri icando pelo irmão. Sim, eu sei,
“sacri ício” é uma palavra ridícula! Não é muito usada nos dias de hoje, está
fora de moda, mas, en im... Veja Hafner, não era nenhum anjo, mas se
sacri icou pelas meninas. Anne, por sua vez, pelo irmão... Essas coisas
existem.
– E o senhor?
– Eu também.
Ele hesita, se arrisca.
– Prestes a chegar ao fundo do poço, descobri que não era ruim ter
alguém por quem eu aceitava sacri icar algo importante. – Sorri. – Nesses
tempos de egoísmo, isso chega a ser um luxo, não acha?
Ele levanta a gola do sobretudo.
– Bem, isso não é tudo, não terminei o meu dia. Tenho uma carta de
demissão para escrever. Não dormi...
Porém, ele não se move.
– Ei, Louis!
Louis se vira. Um perito o chama, a uns quinze metros na calçada, diante
da casa de Hafner.
Camille faz um sinal: pode ir, Louis, não o deixe esperando.
– Eu já venho – diz Louis.
Mas, quando ele volta, Camille já não está mais lá.

1h30
Camille sentiu uma brusca aceleração cardíaca quando viu a luz acesa
dentro da casa.
Parou o carro de imediato, desligou o motor. Permaneceu sentado ao
volante, perguntando-se como proceder. Anne está lá.
Ele não precisava de mais essa decepção, dessa provação. Precisava icar
sozinho.
Ele suspira, apanha o sobretudo, pega o chapéu, sua grande pasta com
alça e, em seguida, faz o caminho a pé lentamente, perguntando-se como
eles vão se comportar, o que ele vai dizer a ela, como vai dizer. Ele a
imaginou ainda no mesmo lugar, sentada no chão, perto da pia da cozinha.
A porta do terraço está ligeiramente entreaberta.

fevereiro•2022
Clube SPA

A luz difusa, na sala, vem apenas da claridade, debaixo da escada,


insu iciente para ver onde Anne se encontra. Camille deixa seu pacote no
chão, segura a maçaneta da porta de vidro, faz a porta correr. Sorri.
Está sozinho.Não precisa se fazer a pergunta,mas,de todo modo: –
Anne...! Você está aí?
Ele já sabe a resposta.
Vai até a lareira, é sempre a primeira coisa a fazer. Uma tora de lenha. E
abrir a placa de ventilação.
Em seguida, retira seu casaco, acende, de passagem, a chaleira elétrica,
mas logo a apaga e vai até o armário, onde guarda as bebidas alcoólicas.
Uísque? Conhaque? Vamos de conhaque.
Só uma dose.
Em seguida, volta a apanhar seu pacote fechado sobre o terraço e fecha a
porta de vidro.
Vai cuidar disso tranquilamente, bebericando alguns goles. Ele ama essa
casa. Acima dele, o telhado de vidro está coberto de folhas escuras em
movimento. Dali não se sente o vento, apenas o vê passar.
É curioso. Nesse instante – mesmo já sendo alguém bem crescido –, ele
sente falta da mãe. Imensamente. Poderia chorar, caso se deixasse levar.
Mas resiste. Não faz o menor sentido chorar sozinho.
Então deixa o copo sobre a mesa, ajoelha-se, abre o grande dossiê com
as fotos, os relatórios, as minutas, as manchetes de jornal; as últimas fotos
de Irene também devem estar ali dentro.
Não procura por elas, não olha para nada, en ia tudo metodicamente, aos
maços, na grande abertura do forno que agora ronca com tranquilidade, a
todo vapor.

Courbevoie, dezembro de 2011

Romance em versos do escritor russo Aleksandr Púchkin (1799-1837)


publicado em 1925. A tradução dos dois primeiros versos que iguram na
caneca usada por Anne para tomar chá em Montofort é: “Meu tio de
altíssimos preceitos,/ Quando icou doente à beça, [...]” (tradução de Alípio
Correia de Franca e Elena Vássina). Na cena, Louis lê apenas o primeiro
verso. (N.T.)
Arizona Donnie Barker (1873-1935), conhecida como Kate “Ma” Barker,
é considerada uma das grandes lendas norte-americanas da crônica
policial. Com seus quatro ilhos, ela teria formado a quadrilha dos Barker-
Karpis e realizado diveros crimes entre 1931 e 1935. (N.T.)

fevereiro•2022

Você também pode gostar