Rainha Carlota - Julia Quinn

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DADOS DE ODINRIGHT

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Ficha Técnica

Título: Rainha Carlota

Título original: Queen Charlotte

Autoras: Julie Cotler Pottinger e Shonda Rhimes

Edição: Carmen Serrano

Tradução: Ana Marta Ramos

Revisão: Ana Bárbara Pedrosa

ISBN: 9789892357881

Edições ASA II, S.A.

uma editora do Grupo LeYa

R. Cidade de Córdova, n.º 2

2160-038 Alfragide – Portugal

Tel.: (+351) 214 272 200

Fax: (+351) 214 272 201

© 2023, Julie Cotler Pottinger e Shonda Rhimes

© 2023, Edições ASA II, S.A.

Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor

www.leya.com

Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.


Índice
Capa
Ficha Técnica
56 anos antes…
Carlota
Jorge
Agatha
Brimsley
Carlota
Jorge
Carlota
Brimsley
Jorge
Agatha
Jorge
Carlota
Jorge
Carlota
Jorge
Brimsley
Agatha
Carlota
Agatha
Jorge
Carlota
Agatha
Brimsley
Carlota
Agatha
Carlota
Brimsley
Agatha
Carlota
Jorge
Carlota
Agatha
Jorge
Agatha
Cinquenta e Seis Anos Depois…
Carlota
Para Lyssa Keusch.

Não vou sentir a tua falta porque seremos sempre amigas.

E também para Paul. Vou dizê-lo aqui:

FOI TUDO IDEIA TUA.

– J. Q.

Para as minhas filhas. Cada uma de vocês é uma rainha.

– S. R.
Caríssimo leitor,

Esta é a história da rainha Carlota de Bridgerton.

Não é uma aula de História.

É ficção inspirada em factos.

Todas as liberdades a que os autores se permitiram foram totalmente

intencionais.

Bom proveito.
Caríssimo Leitor,

Esta gélida época do ano tornou-se ainda mais fria com a triste notícia da

morte da Princesa Real. A neta dos nossos queridos rei Jorge III e rainha

Carlota faleceu durante o parto, assim como o seu bebé.

E enquanto os nossos corações choram a perda da Princesa Real, as

nossas mentes choram mais ainda pelo futuro da própria monarquia. Pois

presentemente a Coroa vive uma crise. Uma crise que imaginamos que seja

humilhante para a rainha Carlota, após ter governado com pulso de ferro os

esforços matrimoniais da elite e a época dos casamentos.

A esta autora e a toda a Inglaterra resta apenas esperar que a rainha

Carlota canalize, finalmente, as suas energias casamenteiras para a sua

própria família. Afinal, Sua Majestade tem 13 filhos e, agora, nem um

herdeiro real entre eles. Pelo menos, um que seja legítimo.

Dá que pensar: será a mestria da Rainha em fazer bons casamentos

apenas conversa?

Crónicas da Sociedade de Lady Whistledown, 10 de novembro de 1817


56 anos antes…
Carlota

ESSEX, INGLATERRA

LONDON ROAD

...

8 DE SETEMBRO DE 1761

Tal como todos os membros da aristocracia alemã, a princesa Sofia Carlota

de Mecklenburg-Strelitz possuía uma considerável quantidade de nomes.

Sofia, em honra da sua avó materna, Sofia Albertina de Erbach-Erbach,

condessa de nascimento e duquesa de casamento. Carlota, em honra do seu

pai, Carlos Carlos Frederico de Mecklenburg-Strelitz, nascido segundo filho

e falecido antes de poder assumir o lugar de cabeça de família. Depois,

muitos e variados e hifenizados nomes das terras e propriedades que

compunham a sua herança. Mecklenburg-Strelitz e Erbach-Erbach, claro,

mas também Sache-Hildburghausen, Schwarzburg-Sondershausen e, se

avançarmos o suficiente, Waldeck-Eisenberg.

A princesa gostava de todos os seus nomes, mas o seu preferido era

Lottie.

Lottie. Era o mais simples de todos, mas não era essa a razão da sua

preferência. Afinal, os seus gostos raramente tendiam para as coisas simples.

Gostava de cabeleiras bem altas e de vestidos bem grandiosos, e estava

segura de que ninguém da sua família apreciava tanto as complexidades da

música ou da arte quanto ela.

Não se tratava de uma criatura simples.


De maneira alguma.

Mas gostava de que lhe chamassem Lottie. Gostava porque quase

ninguém o fazia. Era preciso conhecerem-na para lhe chamarem Lottie.

Era preciso, por exemplo, saberem que, na primavera, a sobremesa

preferida dela era bolo em camadas de framboesa e damasco e, no inverno,

strudel de maçã; mas a verdade era que era perdida por fruta, e por doces, e

qualquer doce feito de fruta era o seu preferido em absoluto.

As pessoas que lhe chamavam Lottie também sabiam que, em criança,

ela adorava nadar no lago junto a casa (quando o tempo estava

suficientemente quente, o que era raro). Sabiam igualmente que, quando a

mãe dela aboliu tal prática (alegando que Carlota era já demasiado crescida

para tamanha frivolidade), Carlota não lhe dirigiu a palavra durante três

semanas. A paz só foi restabelecida quando Carlota redigiu um documento

legal, surpreendentemente minucioso, delineando os direitos e os deveres de

cada uma das partes envolvidas. A mãe não se deixou convencer de imediato

pela sua argumentação, mas o irmão mais velho, Adolfo, acabou por

intervir. Carlota apresentara uma boa defesa, disse ele. Revelara lógica e

inteligência, e seguramente mereceria ser recompensada.

Fora Adolfo quem cunhara o diminutivo Lottie. E era essa a verdadeira

razão por que aquele era o nome preferido dela. Havia-lhe sido conferido

pelo irmão de quem mais gostava.

Perdão, o irmão de quem mais costumava gostar.

– Pareces uma estátua – disse Adolfo, a sorrir, como se ela não tivesse

passado as últimas três semanas a implorar-lhe que não a casasse com um

estranho.
A vontade de Carlota era ignorá-lo. Nada lhe agradaria tanto quanto

nunca mais proferir uma palavra na direção dele para sempre, mas até ela

admitia a futilidade de tal teimosia. Além disso, encontravam-se ambos

numa carruagem no sudoeste de Inglaterra, e o caminho que ainda havia a

percorrer era, tal como o já percorrido, longo.

Sentia-se entediada e furiosa, combinação que nunca dá bons resultados.

– As estátuas são obras de arte – respondeu friamente. – A arte é bela.

Isto fez sorrir o maldito do irmão dela.

– A arte pode ser bela de se ver – disse ele, divertido. – Já tu pareces-me

ridícula.

– Queres chegar a algum lado com isso? – atirou Carlota.

Adolfo encolheu os ombros.

– Não te mexes há seis horas.

Ui. Ui. Ele não devia ter ido por ali. Carlota alinhou os olhos escuros

com os dele, demonstrando uma ferocidade tal que deveria tê-lo

aterrorizado.

– O meu vestido é de seda de Lyon. Com safiras indianas incrustadas.

Coberto com uma camada de renda com 200 anos.

– E estás muito bela – disse Adolfo. Esticou o braço para lhe dar uma

palmadinha no joelho, mas encolheu-o de imediato assim que deu pela

expressão da irmã.

Uma expressão assassina.

– Parece que demasiado movimento pode fazer as safiras rasgarem a

renda. – Carlota rosnou. Literalmente. – Queres que eu rasgue a renda?

Queres?
Não esperou por uma resposta. Ambos sabiam que não era suposto ele

responder.

– Como se isso não bastasse – prosseguiu –, o vestido assenta numa

estrutura de ossos de baleia feita à medida.

– Ossos de baleia?

– Sim. Ossos de baleia, meu irmão. Morreram baleias para que eu

pudesse ter esta aparência.

Perante aquilo, Adolfo riu-se com sinceridade.

– Lottie…

– Não – avisou Carlota. – Não te atrevas a chamar-me Lottie, como se te

preocupasses comigo.

– Ora, liebchen, sabes que me preocupo.

– A sério? Porque não parece. Parece que fui pendurada como uma porca

premiada e posta num altar para ser sacrificada.

– Carlota…

A jovem mostrou os dentes.

– Deverei pôr uma maçã na boca?

– Carlota, chega. Foste escolhida por um rei. É uma grande honra.

– É por isso – cuspiu Carlota. – É por isso que eu estou zangada. As

mentiras. Tu não paras de mentir.

Não suportava as mentiras constantes. Isto não era honra alguma. Não

tinha a certeza do que seria, mas seguramente não era honra alguma.

O rei Jorge III da Grã-Bretanha e Irlanda aparecera do nada (ou melhor, o

pessoal dele aparecera; ele não se dignara a mostrar-se) e decidira


inexplicavelmente que ela, Sofia Carlota de Mecklenburg-Strelitz, seria a

sua próxima rainha.

Mecklenburg-Strelitz. Eles tinham viajado até Mecklenburg-Strelitz.

Carlota adorava a sua casa, com os seus plácidos lagos e relvados

verdejantes, mas tinha perfeita consciência de que Mecklenburg-Strelitz era

considerado um dos estados de menor importância em todo o Sacro Império

Romano-Germânico.

Já para não falar da distância. Os conselheiros do Rei tiveram de

atravessar dezenas de ducados e principados – com dezenas de duquesas e

princesas – antes de alcançarem Mecklenburg-Strelitz.

– Eu não estou a mentir, Carlota – disse Adolfo. – Isto é um facto. Foste

escolhida.

Se Carlota se conseguisse mexer dentro do seu corpete de ossos de

baleia, ter-se-ia virado para o olhar na cara. Mas não conseguia, por isso,

teve de se contentar em lançar-lhe um olhar glacial.

– E que dificuldade houve nesta escolha? – perguntou. – De que

precisavam eles? Nada de especial. Alguém que consiga produzir montes de

bebés. Alguém que saiba ler. Alguém com todos os predicados sociais.

Alguém com sangue real. Era só disso que precisavam.

– Isso não é propriamente nada, liebchen.

– Não é uma grande honra. E tu podias ter-lhes dito para escolherem

outra pessoa. Alguém suficientemente estúpido para querer isto.

– Eles não queriam alguém estúpido. Queriam-te a ti.

Santo Deus, não era possível que ele fosse assim tão burro.
– Adolfo, pensa – implorou. – Porquê eu? Ele podia ter qualquer pessoa.

Qualquer. No entanto, vieram até ao outro lado do continente atrás de mim.

Tem de haver uma razão.

– Porque tu és especial.

– Especial? – Carlota arfou perante a ingenuidade dele. Não, não era isso.

Ele não era ingénuo, estava apenas a tentar apaziguá-la, como se ela fosse

uma criança tola, demasiado cega ou estúpida para reconhecer a rede de

traição tecida em torno dela. – Eles não me conhecem – disse. – Nós não os

conhecemos a eles. Não podes pensar que eu seja assim tão ignorante.

Alguma razão haverá para que eles me queiram a mim, uma estranha. E não

pode ser boa. Eu sei que não pode ser boa porque tu não voltaste a olhar-me

nos olhos desde que me deste esta notícia.

Adolfo levou algum tempo a falar. Quando o fez, as suas palavras foram

inúteis.

– Isto é uma coisa boa, Lottie. Tu serás feliz.

Carlota olhou-o fixamente, aquele homem que ela conhecia melhor do

que ninguém. Era o irmão dela, o chefe da casa desde a morte do pai deles,

há nove anos. Ele jurara protegê-la. Dissera-lhe que ela era boa e tinha valor,

e ela acreditara nele.

Devia ter sido mais esperta. Ele era um homem e, como todos os

homens, via as mulheres como peões para movimentar pela Europa fora sem

um pingo de consideração pela felicidade delas.

– Tu não sabes nada – disse Carlota em voz baixa.

Ele não respondeu.


– Proclamas que eu serei feliz como se pudesses sabê-lo. Como se as tuas

meras palavras o pudessem fazer acontecer. Alguma vez me perguntaste o

que quero eu? Não, nunca.

Adolfo expirou uma golfada irritada de ar. Ela estava a testar a paciência

dele, era fácil percebê-lo. Mas não queria saber, e a fúria estava a deixá-la

imprudente.

– Manda virar a carruagem – anunciou. – Eu não vou fazer isto.

O rosto de Adolfo endureceu.

– Eu assinei o contrato de noivado. Tu vais fazer isto.

– Não.

– Sim.

– Irmão. – Carlota lançou-lhe um olhar obnoxiamente agradável. –

Manda virar esta carruagem ou eu salto. Queres saber o que acontece se eu

saltar?

– Tenho a certeza de que mo dirás.

– Este meu corpete, feito com os mais finos e dispendiosos ossos de

baleia, é bastante delicado. E também é muito, mas muito afiado. E, claro,

eu estou nos píncaros da moda, logo, é consideravelmente apertado. –

Carlota bateu com um dedo no torso, mas sem efeito. Perdera

completamente a sensibilidade na caixa torácica, era como bater numa

parede.

– Queres alargá-lo? – sugeriu Adolfo.

– Não, não quero alargá-lo – ciciou. – Devo chegar apresentável, o que

significa manter-me presa nesta coisa monstruosa. E se pareço uma estátua,

que aos teus olhos é ridícula, é porque não me consigo mexer. Não, não me
atrevo a mexer-me. O meu vestido é tão estilizado que, se me mexer

demasiado, corro o risco de ser fatiada e esfaqueada até à morte pela minha

roupa interior.

Adolfo pestanejou.

– Que alegria ser uma senhora – murmurou Carlota.

– Estás perturbada.

Carlota ficou capaz de o matar.

– Carlota…

– É uma opção viável. Mexer-me. Já pus essa hipótese. Escolher ser

morta pela minha roupa interior. Deve haver alguma ironia nisso, embora

confesse ainda não a ter identificado. Humor, sim. Ironia… Não tenho a

certeza.

– Carlota, estou a falar a sério, para.

Mas ela não era capaz. Tinha o cérebro em chamas. A fúria dela era justa

e ela estava assustada, e a cada quilómetro precipitava-se em direção a um

futuro que não compreendia. Sabia o que estava a acontecer, mas não sabia

porquê, e isso fazia-a sentir-se estúpida e minúscula.

– Falta o quê, uma hora? – continuou. – Creio que, se me mover com

diligência, consigo esvair-me em sangue antes de chegarmos a Londres.

Adolfo pareceu estar a conter um grunhido.

– Como disse, estás perturbada. Emotiva. Eu compreendo…

– Compreendes? A sério? Adorava ouvir isso. Porque eu não estou

perturbada. Nem emotiva. Estou zangada. E não consigo respirar. E tudo por

tua casa, irmão.


Adolfo cruzou os braços.

– Vou fazê-lo – avisou. – Vou saltar e vou empalar-me neste espartilho

ridículo e sangrar até à morte.

– Carlota!

Aquilo fê-la, finalmente, fechar a boca. Adolfo raramente lhe falava

naquele tom. Na verdade, parecia-lhe que ele nunca o fizera até então.

Diante dos seus olhos, o seu amável irmão desapareceu, substituído pelo

severo e poderoso duque de Mecklenburg-Strelitz. Foi desconcertante.

Revoltante. E fez com que a menina que ainda residia no fundo do seu

coração quisesse chorar.

– Eu sei que devia ter sido mais firme contigo quando a mãe e o pai

morreram – disse Adolfo. – Deixei-te ler demasiado e satisfiz todos os teus

caprichos e frivolidades. Por isso, assumo toda a responsabilidade pelo facto

de agora seres extremamente teimosa e pensares erradamente que podes

tomar decisões. Não podes. Sou eu quem manda. Isto vai acontecer.

– Não percebo porque não podias simplesmente…

– Porque eles são o Império Britânico e nós somos uma pequena

província na Alemanha! – urrou.

Carlota encolheu-se. Só um pouquinho.

– Não tínhamos escolha – ciciou Adolfo. – Eu não tinha escolha. Queres

uma razão? Muito bem. Não tenho nenhuma. Não há uma boa razão. Na

verdade, a razão pode ser terrível. Sei que ninguém que se pareça contigo ou

comigo alguma vez se casou com uma destas pessoas. Nunca. Mas não

posso questioná-lo! Porque não posso fazer minha inimiga a nação mais

poderosa do mundo. Está feito. – Inclinou-se para a frente, vibrando de raiva


e impaciência, e talvez até resignação. – Portanto, cala-te, cumpre o teu

dever para com o nosso país e sê feliz!

Carlota vacilou. Porque, finalmente, Adolfo não lhe mentia. Ele tinha a

pele castanha. Ela tinha a pele castanha. Castanha como o chocolate, como

madeira quente e rica. Não precisava de ver o rei Jorge III da Grã-Bretanha

e Irlanda para saber que a pele dele não seria dessa cor.

Então, porquê? Porque estaria ele a fazer aquilo? Carlota sabia o que os

europeus de pele pálida diziam das pessoas como ela. Por que «poluiria» ele

a sua linhagem com uma rapariga de ascendência mourisca? A sua árvore

genealógica remontava a África, e não eram precisas muitas gerações para

chegar lá.

Por que razão a quereria ele?

O que estava ele a esconder?

– Liebchen – disse Adolfo. Suspirou e os seus olhos suavizaram-se. Era,

de novo, apenas o irmão mais velho dela. – Lamento. Mas há destinos piores

do que casar com o rei da Inglaterra.

Carlota engoliu em seco e olhou pela janela, para a paisagem campestre

inglesa que desfilava lá fora. Era verde e profusamente viva. Campos e

florestas, pequenas aldeias com as suas pitorescas igrejas e ruas principais.

Admitiu que não era muito diferente da sua terra natal, embora não tivesse

visto um único lago.

Seria demasiado desejar um lago?

– Voltarei algum dia a Schloss Mirow? – perguntou calmamente.

Os olhos do irmão dela tornaram-se melancólicos, talvez até um pouco

tristes.
– Provavelmente não – admitiu. – Não vais querer lá voltar. Daqui a um

ano, seremos muito rústicos para o teu gosto.

Carlota teve a estranhíssima sensação de que, se estivesse noutro lugar, se

fosse outra pessoa, choraria. Na véspera, as suas lágrimas teriam fluído.

Quentes e zangadas, com toda a paixão da sua juventude.

Mas agora estava a caminho de se tornar rainha. Não chorou. O que quer

que exista no interior das pessoas, criando lágrimas, originando prantos,

havia sido desligado.

– Chega-te para lá. – Libertou as mãos das dele e pousou-as firmemente

no colo. – Estás a pôr o meu vestido em perigo. Preciso de estar perfeita

quando chegar, não é?

O palácio dela aguardava-a.


Jorge

PALÁCIO DE ST. JAMES

LONDRES

...

8 DE SETEMBRO DE 1761

Na maior parte do tempo, Jorge não se importava de ser rei. As regalias

eram evidentes. Tinha mais dinheiro do que qualquer pessoa seria capaz de

gastar, vários palácios aos quais chamar casa e uma verdadeira frota de

criados e conselheiros, todos em disputa entre si para satisfazer cada

capricho do rei.

Chocolate quente de manhã com precisamente três colheres de açúcar e

uma boa quantidade de leite? Aqui tem, Majestade, servido num pires

debruado a prata.

Uma cópia de A História das Plantas Suculentas, de Richard Bradley?

Não receie, não importa que o livro tenha sido publicado em 1739,

encontrá-lo-emos prontamente!

Um elefante pequeno? Pode levar alguns meses, mas vamos de imediato

tratar disso.

Para que conste, Jorge não pediu um elefante. De nenhum tamanho. Mas

alegrava-o saber que poderia fazê-lo.

Portanto, sim, ser rei era frequentemente agradável. Mas nem sempre, e

normalmente não se podia queixar, pois parecia idiota quando se queixava

de ser rei.
Mas havia inconvenientes. Gozava-se, por exemplo, de um grau de

privacidade perturbadoramente diminuto, por exemplo. Como agora. Um

homem normal pode desfrutar do escanhoar da sua barba pelo seu camareiro

com nada a encher-lhe os ouvidos senão o trinado dos pássaros a entrar pela

janela, mas o quarto de vestir de Jorge fora invadido pela sua mãe e por um

dos seus conselheiros.

Nenhum deles mostrava qualquer inclinação para calar a boca.

– Ela estava a ser medida para o vestido quando a deixei – disse a

princesa Augusta.

– Tudo está como deve ser – murmurou o lorde Bute.

– Ela queria usar uma qualquer monstruosidade de Paris. Paris!

Bute acenou com a cabeça, um gesto bastante diplomático que não

indicava nem acordo nem dissidência.

– Creio que a capital francesa é conhecida como um centro de moda.

Jorge fechou os olhos. Era estranho, era mesmo, mas as pessoas pareciam

falar mais livremente na presença dele quando tinha os olhos fechados,

como se de alguma forma ele não as pudesse ouvir.

Não era um truque que Jorge pudesse empregar frequentemente: não

podia, por exemplo, fechar os olhos quando sentado no trono ou a receber

chefes de Estado. Mas em momentos como aquele, reclinado, com uma

toalha quente nas bochechas e na garganta, enquanto aguardava a chegada

do seu camareiro com espuma e uma navalha de barbear, fechá-los poderia

ser bastante esclarecedor.

Pois a discussão da sua mãe com o lorde Bute centrava-se na noiva de

Jorge, o que não teria sido nada de extraordinário, não fosse o facto de Jorge
ainda não ter a conhecido e ir casar-se dentro de seis horas.

Assim era a vida de um rei. Seria de pensar que ser ungido por Deus

daria a alguém o direito de pousar os olhos na noiva antes do casamento.

Mas não, um rei casava-se pelo seu país, não por razões do coração ou da

zona pélvica. Não importava não ver Sofia Carlota de Mecklenburg-Strelitz

antes de trocarem votos. Na verdade, considerando todos os factos, era capaz

de ser melhor assim.

E, no entanto, sentia-se curioso.

– Ela vai casar com um rei inglês. Tem de usar um vestido de noiva

inglês. Viste o que ela trazia vestido hoje de manhã, quando me foi

apresentada?

– Lamento, senhora, não reparei.

– Debruns e folhinhos. Demasiado para uma visita matinal. Safiras. A

meio do dia. E renda feita por freiras. Freiras! Pensará ela que nós somos

católicos?

– Tenho a certeza de que ela só pretendia causar uma boa impressão na

sua futura sogra – objetou Bute.

A princesa Augusta resfolegou com desdém.

– Estes continentais. São uns completos convencidos.

Jorge permitiu-se sorrir. A mãe dele nascera Augusta de Sache-Gotha-

Altenburg. Não se podia estar mais no centro do continente do que em

Gotha.

Mas Augusta era já princesa da Grã-Bretanha há 25 anos. Mais de

metade da sua vida. Era suposto ter chegado a ser rainha, mas tal honra veio

a ser-lhe negada quando o pai de Jorge, o príncipe de Gales, foi atingido no


peito por uma bola de críquete e morreu pouco tempo depois. A coroa

saltaria uma geração, viajando de avô para neto, e ela ficou sem marido que

pudesse ser rei. Augusta já não podia ser rainha.

Não obstante, dedicou-se àquele país. A princesa Augusta deu à luz nove

príncipes e princesas, todos falantes nativos do inglês. Se a sua mãe se via

agora como inteiramente britânica, Jorge considerava que isso era

compreensível.

– Ela é atraente, ainda assim – disse Bute. – Tem um rosto muito

agradável. E uma excelente postura. Poder-se-ia dizer uma postura régia.

– Sim, claro – concordou Augusta. – Mas é muito castanha.

Jorge abriu os olhos, inesperadamente.

– A terra é castanha – disse.

A mãe virou-se para ela. Pestanejou.

– Resolveste aterr… – Interrompeu-se antes de concluir o trocadilho, o

que, para Jorge, representou uma pequena tragédia. Gostava muito de

trocadilhos, intencionais ou não. Adorava a forma como as palavras

encaixavam umas nas outras, e se isso significasse que, por vezes, as suas

frases tivessem 463 palavras de comprimento, isso era problema dos outros.

Ele era o rei. Frases longas eram um direito seu.

– O que – prosseguiu a mãe, após uma pausa que não pareceu ser

suficientemente longa para conter todo o raciocínio de Jorge – tem isso que

ver com seja lá o que for?

– Eu adoro terra – repetiu Jorge, considerando tal explicação bastante.

– Não adoramos todos? – murmurou Bute.


Jorge ignorou-o. Bute não o incomodava; era, sobretudo, útil, e ambos

partilhavam o amor pela filosofia natural e pelas ciências. Mas ele era

ocasionalmente aborrecido.

– A terra é castanha – repetiu Jorge. – A terra que dá origem a toda a

vida, a toda a esperança. É maravilhoso.

A mãe olha-o fixamente. Bute olha-o fixamente. Jorge limita-se a

encolher os ombros.

– Seja como for – insistiu a mãe –, ninguém nos disse que ela era tão

castanha.

– E isso é um problema? – perguntou Jorge.

Voltou a fechar os olhos. Reynolds chegara com a navalha e Jorge assim

sentia-se muito mais relaxado. Se bem que, para ser lógico, ninguém se

devia sentir demasiado relaxado com uma navalha próxima da garganta.

– Claro que não – disse a mãe rapidamente. – Eu de certeza que não me

importo com a cor que ela tem.

– Importar-te-ias se ela fosse roxa.

Silêncio. Jorge sorriu mentalmente.

– Vais arranjar-me uma enxaqueca – disse, por fim, a mãe.

– Temos vários médicos excelentes no palácio – disse Jorge, solícito.

Era verdade. Tinham muitos mais médicos do que uma pessoa poderia

precisar.

Exceto, aparentemente, um rei. Um rei precisava de muitos médicos. Este

rei em particular.
– Sabes que não vou ficar com nenhuma enxaqueca – disse a mãe, em

tom zangado. – Sinceramente, Jorge, poderias deixar-me acabar de falar?

Jorge acenou com a mão. Era um gesto régio. Ele aprendera-o em criança

e revelara-se útil.

– Nós não estamos preparados para ela ser tão castanha – disse a mãe.

– De facto – disse o lorde Bute, acrescentando absolutamente nada à

conversa.

– E aquilo não sai.

Nesse momento, os olhos de Jorge abriram-se bruscamente.

– O quê?

– Não sai – repetiu a mãe. – Eu esfreguei-lhe a bochecha para ter a

certeza.

– Santo Deus, mãe – disse Jorge, quase a levantar-se da cadeira. Reynolds

deu um salto para trás, mesmo a tempo de evitar cortar a garganta de Jorge

com a navalha. – Por favor, diz-me que não tentaste arrancar a pele da minha

noiva prometida.

A mãe irritou-se.

– Não pretendo insultar ninguém.

– E, no entanto… – Parou, apertando o cimo da cana do nariz com os

dedos. Não grites, não grites, não grites. Era importante manter-se calmo.

Estava no seu melhor quando se mantinha calmo. Era quando perdia a calma

que a sua mente começava a acelerar, e do que ele precisava agora – do que

precisava sempre – era de não ter a mente acelerada.

Calma. Calma.
Respirou fundo.

– Tu não és uma mulher desprovida de inteligência, mãe. Certamente que

te apercebes da rudeza de tal gesto.

A postura da princesa Augusta, que já era hirta, tornou-se ainda mais

impossivelmente rígida.

– Eu sou mãe do rei. Tu és a única pessoa acima de mim. Assim sendo, é-

me impossível ser rude para alguém que não tu.

– Esse teu argumento não cola – disse-lhe Jorge. – Esqueceste que, ao

cair da noite, ela se tornará rainha? Logo, certamente acima de ti.

– Bah. Em termos hierárquicos, talvez.

– E não era precisamente esse o teu argumento?

Mas a mãe nunca fora amiga da lógica quanto esta contradizia os seus

argumentos.

– Ela é uma criança – disse.

– Tem 17 anos. Deverei recordar-te que desposaste o meu pai aos 16?

– Razão pela qual eu sei exatamente de que falo. Eu não tinha nem um

vislumbre de maturidade quando me casei.

Isto levou Jorge a uma pausa. Era muito pouco usual a mãe falar de si

mesma daquela maneira.

– Ela precisará de orientação – continuou a mãe. – Que eu

providenciarei.

– Ao que ela ficará extremamente grata – disse o lorde Bute.

Mais uma vez, tão útil como sempre. Jorge ignorou-o, virando-se de novo

para a mãe.
– Estou certo de que ela ficará encantada por receber a tua ajuda e auxílio

depois de a teres tratado como uma aberração de circo.

Augusta fungou levemente.

– Tu és sempre tão lesto a enaltecer as virtudes da ciência e da inquirição.

Certamente não levarás a mal a minha curiosidade. Eu nunca tinha

conhecido ninguém da cor dela. Desconheço como a coisa funciona. Tanto

quanto sei, a aplicação de uma dupla camada de arsénico aclará-la-ia até à

minha cor de pele.

Jorge fechou os olhos. Santo Deus.

– Eu sabia que ela era um bocadinho escura.

– De facto – murmurou o lorde Bute.

Augusta virou-se para ele.

– Porque é que o Harcourt não nos descreveu a cor dela? Ele viu-a

quando assinou os papéis, não viu?

– Ele referiu algum sangue mouro – concedeu Bute.

– Algum – sublinhou Augusta. – Isso podia dizer qualquer coisa. Eu

pensei que ela seria da cor de café com leite.

– Algumas pessoas diriam que é.

– Não é da cor do meu café com leite.

– Bem, todos nós deitamos quantidades diferentes de lei…

– Calem-se! – rugiu Jorge.

Calaram-se. Vantagens de se ser rei.

– Não falarão da minha noiva como se ela fosse uma maldita chávena de

café – largou Jorge.


Os olhos da mãe esbugalharam-se perante a linguagem blasfema, mas

manteve-se calada.

– Vossa Majestade – disse Bute.

Jorge calou-o com um abanar da mão.

– Mãe – disse, esperando que os olhos dela se fixassem nele antes de

completar a pergunta –, aprovas este casamento ou não?

A mãe cerrou os lábios.

– Não importa se eu o aprovo.

– Chega de dissimulações. Aprovas?

– Aprovo – disse a mãe. Com bastante firmeza, na verdade. – Acredito

que ela será boa para ti. Ou, pelo menos, não será má.

– Não será má? – ecoou Jorge.

– Para ti. Não será má para ti. – E então, como se todos eles não

soubessem o que ela queria dizer, acrescentou: – Não creio que ela vá

exacerbar a tua… condição.

Ei-la. Aquela coisa de que nunca falavam. A não ser quando estava a

acontecer e não tinham alternativa.

A última vez fora particularmente terrível. Jorge não se lembrava de

todos os pormenores; nunca se lembrava, apenas acordava mais tarde

sentindo-se exausto e confuso. Mas lembrava-se de que tinham estado a

falar sobre ela, a sua noiva. Ela estava já a caminho dali, num barco vindo

de Cuxhaven, mas uma voz na cabeça dele alertara-o para aquela não ser a

altura certa para uma viagem. Para uma viagem segura.

Ela perderia a lua.


Que raio significava aquilo? Nem ele sabia, e as palavras haviam brotado

dos seus próprios lábios.

Não tinha a certeza do que acontecera após isso. Como habitualmente,

perdera pedaços gigantes da sua memória. Jorge via sempre aquele

fenómeno como uma neblina atmosférica, exalando da sua boca enquanto

dormia, rarefazendo-se até se dissipar com o vento.

A memória como uma neblina. Seria poético se não fosse a memória

dele.

A sua memória seguinte era de acordar no Colégio Real dos Médicos de

Londres. Sentia-se como se o tivessem arrancado de uma sesta. A mãe

estava lá, bem como uma mão cheia de médicos.

Um deles fora útil.

Uma mudança agradável.

– Posso prosseguir, Vossa Majestade?

Jorge olhou para Reynolds, que ficara imóvel durante toda a conversa, de

navalha na mão. Ergueu um dedo, indicando precisar de um pouco mais de

tempo, e voltou-se de novo para a mãe.

– Dizes-me que apoias este casamento e, ainda assim, mostras-te

apreensiva. Gostava que te explicasses.

Augusta fez uma pausa antes de falar.

– Teremos de fazer alguns ajustes – disse. – Depressa.

– Vai haver falatório – disse o lorde Bute.

– Vai haver falatório – concordou ela. – Isso é um problema. Não

queremos que pensem que nós não sabíamos.


– Que a pele dela é castanha?

– Exatamente. Têm de acreditar que nós queríamos que assim fosse.

Talvez por estarmos a querer marcar uma posição. Queremos unir a

sociedade.

– Nós já fizemos os acordos – disse o lorde Bute. – Mas podíamos

cancelá-los…

– Não podemos cancelar o casamento real no próprio dia – disse Augusta

com rispidez.

– Deuses, não – murmurou Jorge. Nem conseguia começar a imaginar a

natureza dos rumores que isso desencadearia.

– A elite poderá não a aceitar – disse Bute. – Isso é um problema.

Augusta não estava para isso.

– Nós somos o Palácio. Um problema só é um problema se o Palácio

disser que é um problema. Isto é um facto, não?

Bute aclarou a garganta.

– Sim, é.

– E o rei é o chefe soberano da Igreja Anglicana e governante desta

grandiosa terra. Logo, nada que ele faça será alguma vez um problema para

o Palácio. Ou será, lorde Bute?

– Não será.

– Então, isto terá de decorrer da forma que o Palácio quiser. Não terá,

lorde Bute?

– Sim, terá.
– Ótimo. – A voz de Augusta estava vívida, com um tom profissional. – A

escolha do rei foi inteiramente intencional. Para deixar isso claro,

alargaremos a lista de convidados para o casamento. E a corte da nova

rainha.

– Está a dizer…

– O rei está a dizer. – Pousou a mão sobre o coração, a pura imagem da

retidão feminina. – Eu sou apenas a mãe dele. Eu não digo nada.

Nesse momento, Jorge soltou uma gargalhada.

O único indício de que Augusta o ouviu foi uma ligeira tensão em torno

dos lábios dela. Mal parou antes de dizer ao lorde Bute:

– O rei deseja expandir a lista de convidados para o casamento e a corte

da nova rainha.

Jorge sorriu. Compreendia, finalmente. A sua mãe era genial.

– Claro, Vossa Alteza. – O lorde Bute olhou para Augusta, depois para

Jorge, depois de novo para Augusta. – É só que… Terá o rei consciência de

que o casamento decorre dentro de seis horas?

– O rei tem, sim – disse Jorge, com um sorriso de escárnio.

– Os Danbury, talvez – disse Augusta. – O teu avô falou neles, não falou?

– Não faço ideia – admitiu Jorge.

– Falou – disse Augusta com firmeza. – Não dos Danbury atuais, claro.

Ele não poderia tê-los conhecido. Mas conhecia o pai. Estupendamente rico.

Diamantes, creio. De África. – Olhou para Bute. – Está a tomar nota?

– Sim – respondeu Bute, apressadamente, à procura de papel.


Jorge desejou-lhe boa sorte. Não era provável que encontrasse algum

naquele quarto de vestir.

– E quem mais? – perguntou Augusta. – Os Basset?

– Excelente escolha – disse Bute, ainda à procura de papel. E caneta. –

Posso sugerir os Kent?

Augusta assentiu com a cabeça, aprovando.

– Sim, pode ser. Tenho a certeza de que há mais. Confiarei a si e ao lorde

Harcourt a tarefa de determinar quem será mais apropriado.

– Certíssimo, Vossa Alteza Real. Terei os convites prontos num instante.

– Bute aclarou a garganta. – É muito em cima da hora. Eles podem ter

outros planos.

Augusta agitou a mão no ar. Era um gesto régio e Jorge tinha a certeza de

que a mãe o considerava tão útil quanto ele.

– Outros planos? – ecoou Augusta, com incredulidade espelhada no rosto.

– Quem não quereria comparecer a um casamento real?


Agatha

PALÁCIO DE ST. JAMES

CAPELA REAL

...

8 DE SETEMBRO DE 1761

Se Agatha Danbury soubesse que iria comparecer a um casamento real, teria

escolhido um vestido melhor.

Não que houvesse algo de errado com o seu vestuário. Muito pelo

contrário, o seu vestido estava nos píncaros da moda, desenhado por

Madame Duville, uma das três modistas principais de Londres. O tecido era

seda jacquard, a cor um rico e lustroso dourado que Agatha sabia

complementar as tonalidades escuras da sua pele. O peitilho era igualmente

uma beleza – adornado ao mais recente estilo com um único laço sobre o

busto, e depois bordado com prata e um magnífico topázio nigeriano.

Portanto, sim, falando objetivamente, o vestido dela era fabuloso.

O problema era que não fora desenhado especificamente para ser usado

num casamento real e qualquer pessoa com um grama de razoabilidade

sabia que quem vai a um casamento real tem de abrir os cordões à bolsa

para levar um vestido feito à medida para a ocasião.

Mas acontecera que, quando Agatha abriu o correio daquela manhã, não

encontrou nenhum convite para a boda do rei Jorge III e da sua noiva alemã.

Nem nunca ela esperara encontrar-se um dia a dois palmos da realeza. O

lado dela e o lado deles não se misturavam.


Nunca.

Mas não se podia ignorar uma convocatória régia, logo, ela e o marido

encontravam-se sentados em lugares surpreendentemente bons de um banco

da Capela Real, trocando olhares nervosos com os restantes membros do seu

grupo.

Ela trocava olhares nervosos. O marido adormecera.

Leonora Smythe-Smith, que empregava sempre dez palavras quando

cinco seriam suficientes, torceu-se para se virar para ela.

– Porque estamos aqui? – sussurrou.

– Não faço ideia – respondeu Agatha.

– Reparaste na forma como eles estão a olhar para nós?

Agatha resistiu à tentação de ciciar, Claro que reparei na forma como

eles estão a olhar para nós. Sinceramente, era preciso ser-se completamente

estúpido para não detetar os olhares oriundos dos bancos ocupados pela

nobreza.

Nobreza que era cem por cento possuidora de pele branca como

porcelana.

E apesar de os Danbury e os Smythe-Smith – e os Basset e os Kent e

umas quantas outras famílias preeminentes – desfrutarem de uma vida de

fortuna e privilégio, era, ainda assim, uma forma muito diferente de fortuna

e privilégio daquela da aristocracia britânica tradicional.

Isso não a incomodava. Bem, só muito raramente. Na verdade, só em

momentos como aquele, em que se encontrava no mesmo espaço com

duques e duquesas e seus pares. Era tentador retribuir o desdém deles com o

anúncio de que também ela descendia de reis e rainhas, que o seu nome de
nascimento era Soma, e que nas suas veias circulava o sangue real da tribo

real Gbo Mende, da Serra Leoa.

Mas de que serviria tal coisa? Muitos nem conseguiriam encontrar a

Serra Leoa num mapa. Agatha apostaria que metade deles pensaria que ela

estava a inventar tal país.

Idiotas. O mundo estava pejado de idiotas. Havia muito que aprendera

essa verdade, a par do facto deprimente de não haver nada que ela pudesse

fazer quanto a isso.

Tal era a vida de uma mulher, independentemente da cor da sua pele.

Agatha espreitou o marido. Ainda dormia. Acotovelou-o.

– Que é? – disse ele entre perdigotos.

– Adormeceste.

– Não adormeci nada.

Veem? Idiotas.

– Nunca adormeceria na Capela Real – disse ele, escovando com a mão

um pedaço de cotão do seu colete de veludo.

Agatha abanou a cabeça. Como conseguira ele ficar com cotão no casaco

entre a casa deles e o palácio de St. James?

O marido dela era… Não era a sua pessoa preferida. Supunha que esta

era uma forma generosa de o descrever. Fazia parte da vida dela desde que

ela tinha apenas três anos, quando os pais a prometeram a ele em casamento.

Ela perguntara-se, enquanto era educada para ser a esposa perfeita para

ele, que tipo de homem aceitaria celebrar um contrato de noivado com uma

criança de três anos de idade. Herman Danbury tinha já bem mais de 30

anos quando assinara os papéis. Seguramente que, se estivesse ansioso por


herdeiros, teria escolhido alguém que os pudesse providenciar num prazo

mais curto.

Obteve as respostas que pretendia – as possíveis – após o casamento.

Tinha tudo que ver com genealogia. Danbury também descendia de sangue

real e recusava-se a misturar o dele com nada menos que a mais elevada elite

da sociedade afro-britânica. Além disso, como ele entusiasmadamente lhe

dissera, garantira com aquele noivado mais 14 anos de vida de solteiro. Que

homem não ficaria agradado com isso?

Agatha suspeitava existirem mais do que uns poucos de bastardos

Danbury espalhados pelo sudoeste de Inglaterra. Suspeitava também que o

seu marido não providenciava qualquer apoio a essas crianças.

Devia ser crime. Devia mesmo.

De qualquer forma, ele cessara a produção de descendência ilegítima

após o casamento. Agatha sabia-o porque ele lhe dissera, muito

explicitamente, que ela satisfazia todas as suas necessidades. E, com base na

frequência com que se via a satisfazer as ditas necessidades, acreditou nele.

Moveu-se ligeiramente no seu lugar. Nessa mesma manhã, encontrava-se

a satisfazer as necessidades dele quando chegou o convite real.

Consequentemente, não teve tempo para o seu habitual banho quente pós-

coital. Estava dorida. E, possivelmente, assada.

Bem, mais dorida e assada do que o costume.

Mas estava disposta a ignorar o desconforto porque, primeiro, não tinha

alternativa e, segundo, encontrava-se no casamento real.

Deslumbramentos de tal natureza não ocorriam com frequência na vida e

nunca haviam ocorrido antes na dela.


– Não deveriam ter já começado? – perguntou Mrs. Smythe-Smith.

Agatha encolheu ligeiramente os ombros.

– Não sei – murmurou, sobretudo porque seria indelicado não responder.

– O rei chegará quando o rei desejar chegar – disse Danbury. – Ele é o rei.

Esta proclamação foi proferida com uma voz pomposa, como se Danbury

tivesse, de facto, alguma experiência a lidar com reis.

Que não tinha. Disso, estava Agatha certa.

Mas o seu marido tinha razão numa coisa, concedia Agatha. Um rei

podia fazer o que um rei desejasse fazer, incluindo chegar atrasado ao seu

próprio casamento.

Ou convidar toda a elite londrina de pele escura para a cerimónia.

Agatha arriscou outro olhar para o lado oposto da capela. Nem toda a

nobreza olhava para ela. Alguns pareciam meramente curiosos.

Não olhem para mim, queria dizer-lhes. Sei tanto quanto vocês.

Pelo menos, havia muito que ver enquanto aguardava. A capela real era

belíssima, tal como ela imaginara que seria. Não tinha o estilo rococó em

voga na atualidade, o que a surpreendeu. Pensou que o palácio estivesse

mais atualizado.

Mas este estilo mais simples era adorável e, sinceramente, mais ao gosto

dela. O teto em particular era espantoso. Com um painel muito trabalhado,

pintado pelo próprio Hans Holbein. Pelo menos, ela lera isso algures.

Sempre tivera um interesse particular pela arquitetura e pelo design. Aqueles

painéis côncavos faziam-na lembrar colmeias, e cada um deles…

– Para de olhar especada – ciciou Danbury.


Agatha deslocou rapidamente o olhar de volta para a sua frente.

– Pareces uma camponesa – disse ele. – Tenta comportar-te como se já

tivesses aqui estado antes.

Agatha revirou os olhos assim que ele deixou de olhar para ela. Como se

alguém achasse que eles já ali teriam posto os pés antes daquele dia.

Mas ela sabia o que aquilo significava para Herman. A vida dele fora

repleta de «quases». Quase integrado. Quase aceite. Ele estudara em Eton,

mas deixaram-no jogar nas equipas do colégio? Estudara em Oxford, mas

convidaram-no para algum dos clubes secretos especiais?

Não, claro que não. Herman tinha dinheiro, tinha educação, tinha até uma

ascendência real africana. Mas a pele dele era escura como chocolate, logo,

nunca seria aceite pela elite.

E aqui residia a grande contradição da vida dela. Agatha não gostava do

marido. Não gostava mesmo. Mas tinha pena dele. Por todas as indignidades

que lhe feriam o coração. Às vezes, perguntava-se se ele poderia ter sido um

homem diferente caso lhe tivesse sido permitido ascender ao seu verdadeiro

potencial. Caso não tivesse sido pisado ou empurrado de cada vez que se

aproximava dos seus objetivos.

Se a sociedade o visse como o homem que realmente era, talvez ele fosse

capaz de vê-la como a mulher que ela realmente era.

Ou talvez não. A sociedade estava repleta de homens que não viam as

mulheres senão como acessórios e gado procriador.

Ainda assim, mantinha a dúvida.

– Oh! – Mrs. Smythe-Smith soltou um gritinho e Agatha seguiu o olhar

dela para o fundo da capela. Estava a chegar alguém importante.


Puseram-se todos de pé.

– É o rei? – perguntou Danbury.

Agatha abanou a cabeça.

– Não consigo ver. Não creio que seja.

– É a princesa! – disse Mrs. Smythe-Smith.

– Qual delas? – murmurou Agatha. A noiva? Uma das irmãs do rei?

– A princesa Augusta.

A mãe do rei. Agatha susteve a respiração. A princesa Augusta era,

inquestionavelmente, a mulher mais poderosa do país. Rainha em tudo

exceto no nome, era há muito considerada o verdadeiro poder por detrás do

trono.

A congregação ergueu-se em simultâneo e Agatha virou o pescoço para

conseguir ver melhor. Queria lá saber se parecia uma camponesa – mais

importante era ver a princesa. E, de qualquer forma, Danbury estava de

costas para ela e também olhava especado na mesma direção.

A princesa Augusta movia-se como uma rainha ou, pelo menos, como

Agatha imaginava que uma rainha se moveria – com delicadeza e propósito,

segurando na mão direita um leque que era uma elegante extensão de si

mesma. Trazia as costas direitas como uma seta. Se ela se sentia

sobrecarregada pelo peso evidente do vestido – só o tecido devia pesar mais

de seis quilos –, não dava quaisquer sinais disso.

Como seria ter tantos olhos pousados em si? Agatha era incapaz de

imaginar tal coisa. Estar no centro de tamanha atenção, praticamente todos

os dias. Devia ser extenuante.


Mas… o poder. A possibilidade de se fazer tudo o que se desejasse, de

ver qualquer pessoa que se quisesse ver e, mais importante ainda, de não ver

todos os que se desejasse evitar.

Infelizmente, Agatha também era incapaz de imaginar tal coisa.

Conseguiu uma melhor perspetiva da princesa assim que esta avançou

pelo corredor central da capela. Parecia não olhar para ninguém e olhar para

todos ao mesmo tempo, como se dissesse eu vejo-vos a todos, mas sois

indignos da minha atenção. Os olhos dela varreram a multidão sem se

fixarem em ninguém, até que…

Fixaram-se nela.

Agatha susteve a respiração. Não podia estar a ver bem.

A princesa Augusta prosseguiu a sua marcha régia, aproximando-se cada

vez mais, e Agatha não conseguia sequer imaginar que poderiam ela e o

marido ter feito para insultar a princesa. Que outra razão teria ela para os

fitar com tamanha tenacidade?

Ela não estava a imaginar aquilo, ou estava? Talvez a princesa estivesse a

olhar para os Smythe-Smith. Embora tal fosse igualmente improvável.

Um metro de distância, meio metro de distância…

A princesa parou. Diretamente na frente dos Danbury.

Agatha fez uma vénia. Muito profunda. Quando se ergueu, a princesa

Augusta conversava com Danbury.

– O seu pai era amigo de Sua Majestade o falecido avô do meu filho, não

era? – inquiriu a princesa.

Era verdade. O pai de Danbury conhecera o rei Jorge II. Agatha não tinha

a certeza de poder chamar-se a isso amizade, mas Sua Majestade era grande
apreciador dos diamantes provindos das minas da família em Kenema.

A princesa não parecia esperar uma resposta, porque nem fez uma pausa

antes de dizer:

– Estou muito satisfeita com a sua presença nesta celebração familiar,

lorde Danbury.

Agatha sentiu-se a inclinar-se para a frente. Teria ouvido bem?

– Lorde? – gaguejou Danbury. – Eu… eu não sei o que…

A princesa interrompeu-o e disse, com clareza:

– Receberão a proclamação oficial do rei após o casamento. Têm a honra

de ser, agora, lorde e lady Danbury.

Lady Danbury? Ela, Agatha Danbury, era agora Lady Danbury. E isso

fora concretizado em frente de dezenas de testemunhas, na capela real do

palácio de St. James.

Isto não era… Isto não podia ser real.

E, no entanto, era. A princesa Augusta colocou-se mesmo em frente a ela

e disse:

– Todos os membros da elite devem ter títulos.

– Da elite, Vossa Alteza Real? – ecoou Agatha.

A princesa Augusta deu-lhe um ligeiríssimo aceno com a cabeça.

– Está na altura de unirmos a sociedade, não está?

Os lábios de Agatha entreabriram-se, mas, mesmo que ela houvesse tido

a presença de espírito necessária para falar, não importaria, pois a princesa

Augusta avançara para o banco seguinte e cumprimentava agora o lorde e a

lady Smythe-Smith.
Que diabo acabara de acontecer?

Ao lado dela, o seu marido inchava de orgulho.

– Lorde Danbury – disse, num murmúrio reverencial. – Imagina.

– Estou a imaginar – disse Agatha baixinho. Observava enquanto a

recente lady Smythe-Smith fazia uma profunda vénia, permanecendo

curvada durante tanto tempo que a princesa Augusta acabou por lhe pedir

que se reerguesse.

– Perdão, Vossa Alteza Real – disse lady Smythe-Smith. – Quero dizer,

muito grata, Vossa Alteza Real, eu…

– Mais uma coisa – interrompeu a princesa Augusta.

Mas voltou a sua atenção de novo para os Danbury.

– Como se chama? – perguntou a Agatha.

– Eu? – Agatha apontava para si mesma.

A princesa Augusta assentiu com um curto aceno da cabeça.

– Agatha Louisa Aminata Danbury.

– É um bom nome.

– Muito obrigada, Vossa Alteza Real.

A princesa observava-a com um olhar acutilante.

– Que significa Aminata? Presumo que Louisa seja em honra das nossas

grandiosas princesas.

– Claro que sim, Vossa Alteza Real.

Era verdade. Os pais de Agatha haviam querido que a filha tivesse um

nome régio, que encaixasse em ambas as culturas, por isso escolheram


Louisa para segundo nome, por ser um nome popular na família real

britânica. Para terceiro…

– Aminata é…

Agatha aclarou a garganta. Não estava habituada a falar com alguém da

categoria da princesa Augusta e sentia-se, sinceramente, apavorada. Mas

lembrou-se de uma coisa que a sua ama lhe dissera uma vez.

Sê apavoradora.

Mesmo que ela não se sentisse apavoradora, mesmo que se sentisse

apavorada…

Conseguia imaginar-se apavoradora. Conseguia imaginar que tinha a

força e o poder para levar homens e mulheres a ajoelharem-se perante ela. E

talvez um relance deste sonho pudesse aflorar-lhe à pele.

Olhou a princesa Augusta nos olhos.

– Aminata é um nome de família. Significa fiável, fiel e honesta.

– E é fiável, fiel e honesta?

– Sou, sim, Vossa Alteza Real.

A princesa Augusta olhou-a fixamente durante vários segundos além do

confortável.

– Ótimo – disse, por fim. – Servirá a rainha como membro da sua corte.

– Eu… – O quê? A boca de Agatha moveu-se durante vários segundos até

conseguir formar palavras. – Sim. Sim, Vossa Alteza Real. Será para mim a

maior honra possível.

– Claro que será.


A princesa virou-se para Danbury, que olhava especado para ambas as

mulheres, e acenou-lhe levemente com a cabeça. E depois partiu.

– Que é que acabou de acontecer? – murmurou Agatha.

– Porquê tu? – perguntou Danbury.

– Não sei.

– É o teu nome – disse lady Smythe-Smith. – Animata.

– Aminata – corrigiu Agatha. – E não é o meu nome.

– Acabaste de dizer que era.

Agatha abanou a cabeça. Santo Deus, que tola era aquela mulher.

– O meu nome não é a razão por que ela me escolheu.

– Então, qual é?

– Não sei. Por que razão nos escolheu ela a todos? Somos todos nobres

de um momento para o outro?

– Somos – disse Danbury com petulância. – E tu és mais ainda que isso.

És membro da corte.

– Estou tão pasmada quanto tu – garantiu ela.

– É a minha família que tem uma relação com o falecido rei.

– Eu sei.

– Então, porque te querem a ti?

– Não sei. Não conheço estas pessoas.

– Ficará a conhecer – disse lady Smythe-Smith, lembrando-os de que

estava à escuta.
– Meu querido – disse Agatha, dando uma palmadinha suave no braço do

marido. – Tenho a certeza de que só me escolheram por causa de ti e da tua

reputação. Afinal, não te podiam escolher a ti para a corte da rainha. Tu és

um homem. Não te podiam ter a ti, por isso convidaram-me a mim.

– Pois, talvez – resmungou Danbury.

– Eu não sou nada sem ti, meu querido – disse ela.

Havia proferido estas palavras muitas vezes e ainda não tinham perdido a

eficácia. Danbury voltou a atenção para a frente da capela e Agatha retomou

a sua análise do teto. Gostava mesmo da forma como os octógonos e as

cruzes suíças formavam um padrão, e o…

O movimento chamou-lhe a atenção. Estava alguém lá em cima, no

balcão. Agatha olhou rapidamente em redor. Mais ninguém reparara?

Não. Mais ninguém estava a olhar para cima.

Era uma jovem mulher. Com a pele da mesma cor da de Agatha, talvez

numa tonalidade diferente; era impossível ter a certeza com aquela luz. Mas

de certeza que não era branca, e de certeza que se encontrava numa zona

restrita.

Agatha voltou a olhar para as pessoas à volta dela. Estavam todas a olhar

umas para as outras, algumas começavam a abanar-se com os leques à

medida que o espaço aquecia por estar repleto de gente.

Voltou a olhar para cima. A jovem já lá não estava.

Curioso.

Mas não tão curioso como tudo o resto que acontecera naquele dia.

Lady Danbury. Servidora da rainha.

Uau.
Brimsley

PALÁCIO DE ST. JAMES

CAPELA REAL

...

8 DE SETEMBRO DE 1761

Bartholomew Brimsley estava prestes a perder o emprego.

Ou a ser enforcado.

Ou ambos. Sinceramente, parecia-lhe plausível. Seria dispensado da sua

posição enquanto servidor real e depois enforcado, e depois, porque

acontecia trabalhar para a Casa Real de Hanôver, que possuía metade do

mundo o podia fazer tudo o que quisesse, contratariam provavelmente uma

trupe nómada de trabalhadores italianos das vindimas para pisar o corpo

dele.

Não sobraria nada dele a não ser molhos prensados de cabelo e

entranhas, e ele não merecia nada menos do que isso.

– Tinhas uma coisa para fazer – murmurou para si mesmo. – Uma. Coisa.

Infelizmente para Brimsley, essa coisa era escoltar a princesa Sofia

Carlota de Mecklenburg-Strelitz até à capela real do palácio de St. James,

onde ela deveria desposar Sua Majestade o rei Jorge III da Grã-Bretanha e

Irlanda.

Naquele preciso instante.

E ele perdera-a.
E pensar que ele considerara ter sido aquilo uma promoção. Sophronia

Pratt, a camareira da princesa Augusta, chamara-o ainda na semana passada

e dissera-lhe:

– Foi-te concedida a honra de servir a nossa nova rainha.

E, enquanto Brimsley digeria aquela perturbadora novidade, Pratt disse:

– Ele é conhecida como princesa Carlota, não princesa Sofia. Esta é a

primeira coisa que tens de saber.

– Será Carlota o seu nome real, então?

– Não sabemos. Só podemos pressupor e, no que toda à realeza, nunca se

deve pressupor.

– Sim, senhora – disse Brimsley.

Perguntou-se que tipo de uniforme lhe seria dado. Não seria aquele

vermelho brilhante dos criados de servir e dos cocheiros; seguramente seria

algo mais distinto, adequado à sua mais elevada posição. Os homens do rei

usavam azul-marinho, mas Brimsley gostava de escarlate.

– Ela chega na próxima semana – continuou Pratt. – Não sabemos o dia

exato, mas fui informada de que o casamento decorrerá imediatamente.

– Imediatamente, senhora?

– Poucas horas depois. Seguramente, no mesmo dia.

– Há alguma razão para a pressa, senhora?

Pratt espetou-o com o olhar.

– Se houver, não será para teu conhecimento.

– Claro que não, senhora – disse Brimsley, mas por dentro repreendia-se.

Pratt poderia rescindir a sua promoção tão facilmente quando lha concedera.
Então, curvou a cabeça apropriadamente e disse: – Estarei pronto, senhora.

– Ótimo. Então, caminharás cinco passos atrás dela. Sempre. Estarás

sempre com ela. Responderás às perguntas dela…

– Sempre? – perguntou Brimsley.

– Ocasionalmente. – Pratt lançou-lhe um olhar tão austero quanto

desdenhoso. – Responderás ocasionalmente às perguntas dela.

Brimsley não sabia ao certo como interpretar aquilo.

– Ela não saberá como funcionam as coisas aqui – explicou Pratt, com o

desdém agora a suplantar energicamente a austeridade. – Uma das tuas

principais funções será ajudá-la a aprender.

– E isso não requererá que eu responda às perguntas dela?

Os olhos de Pratt viraram-se para o céu e Brimsley, embora não fosse um

exímio leitor de lábios, tinha a certeza de que os dela haviam moldado as

palavras Valha-me Deus.

Que Deus lhes valha a ambos. Sinceramente. Ele estava a ser atirado aos

lobos e ambos o sabiam.

– A princesa alemã terá de aprender a viver como nós – disse Pratt.

Brimsley acenou solenemente com a cabeça.

– Compreendo, senhora.

– Nesta corte.

– Claro, senhora.

– A corte da princesa Augusta.

Brimsley abriu a boca. Com certeza seria a corte da nova rainha, não da

princesa Augusta.
Pratt ergueu uma sobrancelha impressionantemente imperial.

– Sim?

Brimsley não era estúpido. Vaidoso, talvez, mas não estúpido.

– Compreendo perfeitamente, senhora.

– Também achei que compreenderias – respondeu Pratt. – Fui eu que te

recomendei para esta posição.

– Obrigado, senhora.

Pratt lançou-lhe um olhar que dizia que o agradecimento dele não estava

à altura dela.

– Queres saber a outra razão por que te recomendei?

Brimsley não estava seguro de querer saber.

– É a tua cara – disse Pratt. – É um bocado como um peixe.

– Obrigado? – Brimsley tossiu. – Senhora.

– Esta é outra razão, creio. Acabei de te insultar e tu agradeceste-me.

Terás muito disto da parta da rainha.

Brimsley não se sentiu animado com aquilo.

– Quer dizer que ouviu dizer muita coisa sobre ela?

– Nem uma palavra – disse Pratt de supetão –, mas os membros da

realeza são todos iguais nesse aspeto. De qualquer forma, a tua cara de peixe

confere-te um ar de perpétuo desdém. Aparentas estar bastante satisfeito

contigo mesmo, quando ambos sabemos que não tens qualquer motivo para

tal.

Brimsley achou que talvez nunca tivesse sido insultado com tamanha

minúcia, e, caso não fosse ele a vítima, provavelmente admirá-la-ia por tal
feito. Era mesmo habilidosa.

– Uma última coisa – disse Pratt. – As perguntas que a nova rainha fizer

poderão não ser as mais conducentes à sua aprendizagem do modo como se

adaptar ao nosso modo de vida. Estou a ser clara?

– Sim, senhora – respondeu Brimsley, porque, a sério, aquela mulher era

mesmo assustadora.

E ele queria aquele trabalho. Que, supunha, se faria acompanhar de um

aumento salarial.

Assim, ele curvara-se e esforçara-se diante da princesa Carlota, que, isso

tinha de ser dito, não era nada como ele imaginara, e começara aquele que

supôs que seria o seu trabalho para o resto da vida – isto é, caminhar cinco

passos atrás da sua elegante silhueta real.

Acontecia que a princesa não parecia compreender como aquilo se

processava, porque, quando eles caminhavam pelo longo corredor até aos

aposentos dela, ela parou.

Logo, ele parou.

Ela manteve-se imóvel por um instante, provavelmente à espera de que

ele se juntasse a ela, coisa que ele, claro, não podia fazer, por isso ficou ali, a

sofrer, até que ela recomeçou a andar, e depois…

Voltou a parar.

Ele voltou a parar.

Ela não olhou para ele, mas ele conseguia perceber pela rigidez nos seus

ombros que estava irritada.

A princesa deu um passo. Apenas um, sem sequer transferir

completamente o seu peso de um pé para o outro. Depois virou-se


bruscamente, como se estivesse a tentar apanhá-lo a… a fazer o quê? Ele

não sabia. Os membros da família real eram criaturas estranhas, muito

estranhas.

– Porque é que não te mexeste? – perguntou ela.

– Porque não se mexeu – respondeu ele. – Vossa Alteza.

– Eu mexi-me.

– Não percorreu nenhuma distância – explicou ele. – Apenas fingiu dar

um passo.

Ela fitou-o demoradamente e ocorreu a Brimsley que, com tempo,

poderia tornar-se ainda mais assustadora do que a princesa Augusta ou Mrs.

Pratt.

– Vossa Alteza? – perguntou ele. Com muito cuidado.

– Caminha comigo – disse ela. – Tenho perguntas para te fazer.

Brimsley permaneceu quieto.

– Não é assim que se faz, Vossa Alteza.

– Que quer isso dizer?

Ele não apontou, porque nunca se apontava na presença de uma futura

rainha, mas moveu a mão na direção dos elegantemente calçados pés dela.

– Vossa Alteza caminha aí e eu – moveu a mão de novo, agora na direção

do seu muito menos elegante calçado – caminho aqui atrás.

Carlota estreitou os olhos.

– Não podes caminhar comigo?

– Eu estou sempre consigo, Vossa Alteza. – Aclarou a garganta. – Cinco

passos atrás de si.


– Cinco passos atrás de mim.

– Cinco passos atrás de si – confirmou Brimsley.

– Sempre.

– Sempre, Vossa Alteza.

Sou a sua sombra, pensou ele com uma histeria crescente. Só que eu sou

baixo e pálido e Vossa Alteza é alta e gloriosa com pele da cor de um

carvalho majestoso.

Ela era diferente, ele apercebera-se disso. Não por causa da cor da pele

ou da textura do cabelo. Era interiormente diferente. Tinha aquela qualidade

mágica e intangível que fazia com que as pessoas se quisessem aproximar

dela. Ouvir as suas palavras e respirar o ar em seu redor. Se Brimsley fosse

um homem mais criativo, teria dito que ela cintilava.

Mas ele não era criativo. Assim, descrevê-la-ia como esperta. E segura de

si mesma. E tinha noção de que haviam sido ambos atirados aos lobos

naquele dia.

– Estás sempre aí – disse ela.

Sempre, prometeu ele. Mas pareceria desadequado exprimir a emoção

fervilhante que, muito inesperadamente, lhe tomara o coração; por isso,

disse apenas:

– Sempre que precisar de mim, Vossa Alteza.

– Como te chamas?

– Brimsley, Vossa Alteza.

– Só Brimsley?

– Bartholomeu Brimsley.
– Bartholomeu. Fica-te bem. Claro que nunca te chamarei assim.

– Claro – repetiu ele. Estava pasmado por ela sequer ter perguntado.

– Brimsley – disse ela, com, na opinião dele, o grau certo de seriedade

para uma futura rainha –, fala-me do rei.

– Do rei, Vossa Alteza?

Ela olhou-o como se fosse uma criatura de inteligência inferior.

– O rei – repetiu. – Será meu marido. Gostava de saber mais sobre ele.

– O rei – repetiu ele, a adiar, desesperado. Tinha a certeza de ter entrado

num pesadelo acordado. Esta seria, seguramente, umas daquelas perguntas a

que Mrs. Pratt lhe dissera que não respondesse.

– Podes dizer-me alguma coisa sobre ele? – insistiu a princesa Carlota.

– Bem…

A princesa não cruzou os braços, provavelmente por o seu vestido ser

demasiado, e gloriosamente, debruado para o permitir, mas a expressão no

seu rosto era claramente do tipo braços cruzados.

– O rei… – disse Brimsley.

– O rei. Sabes quem ele é.

– Sei, sim, Vossa alteza. É o rei.

– Mein Gott – murmurou a princesa.

E assim sucedeu que Brimsley não lhe disse nada acerca do rei. Ao invés

disso, empregou todos os truques conversacionais que lhe ocorreram para

evitar falar-lhe do rei. Mas agora perguntava-se se isso não fora um erro.

Talvez se ele tivesse dito que o rei era bem-parecido, ou que era honrado –
em ambos os casos, verdade –, ela não tivesse fugido escassos minutos antes

de se casar.

Talvez se lhe tivesse dito que o rei se interessava por agricultura e

astronomia – igualmente verdade –, não estivesse agora a deslocar-se

furtivamente pelas alas da capela, procurando manter-se invisível até chegar

à sacristia.

Felizmente para ele, os convidados do casamento estavam muito mais

interessados uns nos outros do que num criado solitário, movendo-se um

pouco como um caranguejo assustado. Conseguiu atravessar uma porta,

depois outra, e depois…

O rei!

Brimsley tentou não molhar as calças. Consegui-o em grande parte.

Passou pelo rei a sete pés, que nem sequer reparou nele, fez uma vénia ao

arcebispo, que lhe devolveu uma espécie de aceno clerical, e finalmente

conseguiu chamar a atenção de Reynolds, o camareiro do rei.

– Há um problema – sussurrou Brimsley.

Reynolds era mais alto do que Brimsley, mais esbelto do que Brimsley e

mais bem-parecido que Brimsley. E ambos o sabiam. Ainda assim, Brimsley

tinha algumas vantagens sobre o outro.

No entanto, não naquele momento.

– Que fizeste agora? – perguntou Reynolds, condescendente, como

sempre.

Brimsley engoliu em seco.

– A noiva desapareceu.

Reynolds agarrou-lhe no braço.


– Que disseste?

– Ouviste-me bem.

Brimsley lançou um olhar de pânico ao resto dos ocupantes da divisão. O

arcebispo era claramente meio surdo, mas o rei estava a olhar diretamente

para si.

Brimsley deslocou-se para o lado. Não podia virar as costas ao rei – isso

era, se não uma ofensa digna da forca, pelo menos o suficiente para ser

expulso do palácio. Ainda que, para ser sincero, talvez o facto, atrás

mencionado, de ter perdido a noiva fosse a sua maior preocupação de

momento.

Ainda assim, sentir-se-ia muito melhor se se conseguisse posicionar de

forma a não ver o rei a olhar fixamente para si.

– Brimsley – ciciou Reynolds –, onde está ela?

– Eu não sei – respondeu Brimsley de supetão. – Evidentemente.

Reynolds emitiu um som semelhante a um rugido.

– És imprestável.

– Não te estou a ver a ti a manter debaixo de olho uma mulher infeliz.

– Não é minha função manter debaixo de olho uma mulher infeliz. A

minha função é o rei.

Ele tinha razão, maldito, mas Brimsley nunca o admitiria. Reynolds

usaria isso contra ele dias a fio.

– Agora não é altura de discutir – murmurou Brimsley, procurando

desesperadamente não olhar para o rei. Mas como é que não se olha para

um rei? Isso seria como não olhar para o sol.


Que adequada metáfora. Se ele olhasse por demasiado tempo para o rei,

queimar-se-ia na certa. No entanto, nada existia sem ele. Nem aquele

palácio, nem aquele país, nem…

– Brimsley! – largou Reynolds.

– Não sei o que fazer – disse Brimsley. Era a admissão mais dolorosa da

sua vida.

– Onde é que a viste pela última…

Mas a pergunta de Reynolds foi silenciada pelo som de uma cadeira a

arranhar o chão. O rei levantara-se.

– Vossa Majestade – disse Reynolds, e foi apenas a mão dele no braço de

Brimsley que impediu este de se prostrar aos pés do rei.

– Aparentemente não sou necessário – disse o rei. E saiu porta fora.

Brimsley fitava-o. Reynolds fitava-o. E depois olharam um para o outro.

– O que foi que acabou de acontecer? – perguntou Brimsley.

– Não sei – respondeu Reynolds –, mas não pode ser coisa boa.

– Devemos ir atrás dele?

– Tu não.

Reynolds correu pela porta atrás do rei, deixando Brimsley sozinho com

o arcebispo.

– Vossa Excelência – disse Brimsley, com um sorriso pálido.

– Estamos prontos, então? – perguntou o arcebispo.

– Hã, não propriamente.

Brimsley apressou-se a caminhar de costas para a porta – já que também

não se deve virar as costas a um arcebispo – e depois arrancou pelo corredor


afora num passo acelerado e aterrorizado.

Eles não se podiam ter afastado muito. Aquela porta dava diretamente

para o exterior, e a outra ia para a capela, o que queria dizer…

Brimsley estacou assim que dobrou a esquina. Reynolds observava o rei,

que conversava com um homem que Brimsley nunca antes vira. Não estava

suficientemente perto para ouvir o que diziam, mas o rei ouvia atentamente,

e depois o rei disse algo, e depois o homem disse algo, e depois…

O homem esbofeteou o rei.

Brimsley quase desmaiou.

Aproximaram-se dois guardas apressadamente, provavelmente para

acorrentar o homem, mas o rei impediu-os, permitindo ao estranho que

partisse. E depois dirigiu-se para o exterior. No dia do seu casamento. O rei

caminhou porta fora da capela.

Brimsley deu um passo em frente, perplexo com o que acabara de ver. E

tão imensamente curioso. A informação era uma autêntica moeda entre o

pessoal do palácio, e isto era ouro.

No entanto, foi nesse momento que Reynolds o viu.

– Não devias estar aqui – murmurou rispidamente.

O que acabou de acontecer?

– Nem uma palavra. A ninguém.

– Mas…

– Nem. Uma. Palavra.

Brimsley cerrou os lábios numa linha direita. Ele tinha perguntas. Oh, se

tinha perguntas. Mas Reynolds era o camareiro do rei, e ele não. Na verdade,
não seria nem camareiro nem nada se não encontrasse a princesa Carlota.

– Tenho de ir – disse subitamente.

Reynolds olhou-o com sobranceria.

– Trata de ir, sim.

Brimsley reconstituiu os seus passos em sentido contrário, pelo corredor

e de novo para o interior da capela. Santo Deus, detestava Reynolds.

Por vezes.
Carlota

PALÁCIO DE ST. JAMES

EXTERIOR DA CAPELA REAL

...

8 DE SETEMBRO DE 1761

Carlota analisou o muro do jardim. Era capaz de dar conta dele. Se

conseguisse agarrar-se à trepadeira lenhosa que subia pelos tijolos, apear o

pé naquela pequena reentrância por trás das flores roxas e impulsionar-se

para cima…

Daria conta do muro num instante.

Não era em vão que trepara a todas as árvores em Schloss Mirow.

Não seria fácil fazê-lo envergando o seu vestido de noiva. A escolha da

princesa Augusta era bastante simples, mas o tecido era pesado e a crinolina

muito larga. Ainda assim, era provavelmente mais fácil mexer-se naquele

vestido do que no que Carlota trouxera de Paris.

Obrigada, Augusta. Pelo menos, por isso.

Carlota cerrou os dentes, enfiou o pé na reentrância, agarrou na

trepadeira o mais alto que conseguiu e içou-se.

Sem sucesso.

– Raios partam isto – resmungou.

Poderia tentar mais uma vez. Sairia daquele maldito palácio ou morreria

a tentar. Ninguém lhe dizia nada acerca do rei. Ela perguntara à mãe dele,
perguntara àquele tonto do Brimsley, perguntara à costureira que agia como

se aquele vestido de noiva repugnante fosse, de facto, uma peça de alta-

costura, mas não, nem um entre eles lhe dissera nada de substancial.

Seria ele bem-parecido?

Seria ele gentil? Atlético? Gostaria ele de ler?

Talvez fosse feio. Talvez por isso ninguém lhe dizia nada sobre ele.

Haviam-lhe mostrado o retrato miniatura dele, mas toda a gente sabia que os

miniaturistas eram pagos para fazerem os homens parecer mais bonitos do

que eram na realidade.

Ela poderia ultrapassar o facto de ele ser feio. A beleza estava no interior

das pessoas, não era assim?

Bem, não, não era. A beleza estava mesmo muito no exterior, mas ela era

uma boa pessoa. Superaria tal coisa.

E o que tinham aquelas pessoas – Brimsley e a costureira, que,

teoricamente, trabalhavam para si – respondido às suas perguntas?

Nichts. Nada. Brimsley começara por responder que o rei era o rei,

depois dissera que ele era o governante da Grã-Bretanha e Irlanda e, em

terceiro lugar, reportara que ele era monarca desde outubro.

Rei, governante, monarca. Três sinónimos que não revelavam

absolutamente nada.

E a costureira! Quando Carlota lhe perguntou que o rei era cruel, ela

disse:

– Terão filhos maravilhosos, Vossa Alteza.

O que é que aquilo queria dizer?


Ia-se embora. Não se ralava com a travessia do oceano desde Cuxhaven,

tão desagradável que ela vomitara seis vezes para cima de Adolfo. Ia voltar

para Mecklenburg-Strelitz mesmo que isso a matasse. Além do mais, Adolfo

merecera cada gota do vomitado dela. Era por culpa dele que ela se

encontrava naquela situação.

Recuou alguns passos. Talvez se desse balanço a correr…

– Olá, minha senhorita.

Carlota quase saltou para fora da própria pele com o susto. Não fazia

ideia de que não estava sozinha no jardim. Um jovem – mais velho do que

ela, mas novo, ainda assim – atravessara a porta em que ela não reparara.

Examinou-o rapidamente e depressa concluiu não se tratar de um

empregado do palácio, ali enviado para a arrastar de volta para a capela. Era,

obviamente, um dos convidados: o fato cinzento-prateado era de demasiado

bom corte para não ser. Não usava cabeleira sobre os seus cabelos escuros,

uma escolha estética que Carlota aprovou. Tinha sobrancelhas igualmente

escuras e teria ficado ridículo com uma cobertura branca e fofa sobre a

cabeça.

Se fosse outro dia – qualquer dia que não aquele –, Carlota teria avaliado

o seu rosto como sendo bastante agradável. Mas não naquele dia. Não tinha

tempo para tais frivolidades.

– Necessita de algum tipo de auxílio? – perguntou ele.

Ela ofereceu-lhe um sorriso rígido.

– Estou perfeitamente bem. Obrigada.

Estava, claramente, a despachá-lo, mas ele manteve-se ali, a olhá-la com

uma expressão deveras indecifrável. Não que fosse hostil, só não era, bem,
decifrável.

Carlota agitou a mão na direção da capela.

– Pode voltar lá para dentro e aguardar juntamente com todos os outros

patetas.

– Voltarei, sim – disse ele. – Mas, antes disso, estou curioso. O que está a

fazer?

– Nada – respondeu ela prontamente.

– Está claramente a fazer alguma coisa – disse ele, com bastante

afabilidade, para dizer a verdade.

Carlota pousou uma mão na anca e desenhou com a outra um arco no ar

que representava absolutamente nada.

– Não estou, não.

O jovem parecia divertido e, francamente, algo condescendente.

– Está, sim.

– Não estou – disse ela bruscamente.

– Está.

Himmel, que ele era irritante.

– Se tem mesmo de saber, estou a tentar aferir a melhor forma de escalar

o muro do jardim.

– Escalar o… – Ele olhou para o muro e depois para ela. – Por que razão?

Carlota sentia-se tão frustrada que tinha vontade de chorar. Tudo o que

queria era fugir, e aquele completo estranho não parava de lhe fazer

perguntas. Pior ainda, ela tinha de ter aquela conversa em inglês, que era

uma língua medonha. Tão inútil. Em alemão, ela conseguia juntar palavras
umas às outras e formar novas palavras, deliciosamente longas e descritivas.

Em vez de dizer «vou saltar o muro para fugir ao meu casamento», ela

poderia descrever toda aquela situação como preweddingwalljumping.

Qualquer alemão saberia exatamente o que ela queria dizer.

Os ingleses? Bah.

– Por favor, deixe-me – disse ela ao estranho. – Tenho mesmo de ir.

– Mas porquê? – insistiu ele.

– Porque acho que ele pode ser um monstro – disparou ela.

Aquilo prendeu a atenção dele. As suas sobrancelhas – aquelas adoráveis

sobrancelhas escuras que teriam ficado tão ridículas sob uma cabeleira –

ergueram-se.

– Um monstro.

– Ou um duende.

Ele pestanejou várias vezes seguidas.

– De quem estamos a falar ao certo?

– Bem, isso é impertinência. E não é nada que lhe diga respeito. – E

depois, por estar claramente a enlouquecer, contradisse-se dizendo-lhe tudo

na mesma. – O rei – disse, desesperada. – Estou a falar do rei.

– Certo.

O rosto dele assumiu uma expressão pensativa. Era um belo rosto, pensou

Carlota com alguma histeria. Ao contrário do rei, que lhe estava a ser

ocultado.

– Ninguém me fala dele – disse. – Ninguém. Ele é de certeza um

monstro. Ou um trol.
– Compreendo.

Carlota devolveu a atenção ao muro do jardim.

– Veja, se eu conseguisse agarrar ali…

– Naquele sítio? – perguntou, com a mão a indicar o ponto exato.

– Sim.

Carlota olhou-o com renovado interesse. Sinceramente, era muito bem-

apessoado, esbelto e atlético por baixo das roupas. Ela tinha muitos irmãos,

e sabia que os alfaiates empregavam um sem número de truques para fazer

os homens parecerem mais fortes e mais másculos. Sabia igualmente

reconhecer tais truques, e era evidente que o alfaiate daquele homem não

empregara nenhum deles.

Era seguramente forte quanto bastava para lhe ser útil.

Sorriu, desafiadora.

– Talvez me pudesse auxiliar, erguendo-me?

– Sim, claro – disse ele, todo amabilidade e cortesia. – Tenho uma

pergunta, no entanto. Não gosta de monstros nem de duendes?

Ela lançou-lhe um olhar. Estava a perder tempo. Tempo que ela

garantidamente não tinha.

– Ninguém gosta de monstros nem de duendes.

Mas o jovem não tinha ainda dado por terminado o questionário.

– A aparência dele interessa assim tanto?

– Eu não quero saber da aparência dele – disse Carlota, praticamente a

gritar. – Só não gosto de não saber. Eu fiz perguntas sobre ele a toda a
gente. Não apenas acerca da sua aparência. Acerca de como ele é. E

ninguém me disse nada.

– Isso é um problema – murmurou ele.

– Chegue aqui – disse Carlota, fazendo-lhe sinal para que se aproximasse.

– Segure aqui. Com uma elevação, creio que conseguirei passar por cima do

muro do jardim.

– Quer que eu a erga para cima do muro para fugir.

Mein Gott, que lento era ele.

– Foi isso que eu disse, sim.

Ele olhou de relance para trás, em direção à capela.

– As pessoas repararão na sua ausência, não?

– Terei de me preocupar com isso mais tarde. Agora, se fizer favor, só

preciso de uma pequena ajuda. – Gesticulou com urgência. – Apresse-se.

Mas ele cruzou os braços.

– Eu não tenho intenção alguma de ajudá-la.

Agora ela estava irritada. Ele fora tão educado e conversador, dando-lhe

todos os sinais de ser um cavalheiro, quando, afinal, estava apenas a fazê-la

perder tempo.

– Eu sou uma senhorita em apuros – retorquiu bruscamente. – Recusa-se

a ajudar uma senhorita em apuros?

– Recuso-me quando essa senhorita em apuros está a tentar saltar um

muro para não ter de casar comigo.

Carlota ficou petrificada. De tal forma que seria capaz de jurar que o seu

sangue parara de correr. Ergueu o olhar. Para os olhos dele, que


demonstravam estar muito, muito divertidos.

– Olá, Carlota – disse ele. – Eu sou o Jorge.

– Eu… eu…

A boca dele desenhou um sorriso matreiro.

– A Carlota…

Ela dobrou-se numa vénia. Muito, muito curvada. Teria raspado com a

testa no chão se tal fosse anatomicamente possível.

– Lamento muito, muito, Vossa Majestade.

Jorge baixou-se e pegou na mão dela, puxando-a para cima.

– Vossa Majestade, não. Jorge. – A boca dele formava uma linha

estranha, e por momentos pareceu quase afogueado. – Quer dizer, sim.

Vossa Majestade. Mas, para si, Jorge.

Carlota tinha quase a certeza de não existirem palavras para descrever o

seu atual estado de devastação. Nem em inglês nem em alemão. Mas tentou,

ainda assim.

– Por favor, aceite as minhas desculpas – implorou. – Se eu soubesse que

era quem é…

– Teria feito o quê? Não me teria dito que estava a tentar fugir?

Estava a provocá-la. Ela conseguia percebê-lo no tom de voz dele. Mas

isso pouco fez para atenuar a sua completa e absoluta mortificação. E medo.

Ele parecia ser um bom homem. Não explodira de fúria perante o

comportamento dela. Mas ambos sabiam que ele podia tornar a vida dela

miserável com um simples estalar dos dedos. E ela acabara de insultá-lo da

pior maneira possível.


– Bem… – disse ela, procurando encontrar as palavras que podem, de

alguma forma, adequar-se àquela situação. – Sim, quer dizer, não, quer

dizer, eu lamento mesmo muito, Vossa Majestade.

– Jorge – disse ele. – Só Jorge.

Carlota não conseguia tirar os olhos dele. Ele era tão… gentil. Nada

como ela imaginara, mesmo antes de ter, em vão, tentado interrogar toda a

gente a seu respeito.

Não era por ele ser belo, coisa que era.

Era mesmo.

Era algo mais. Algo que ela não sabia como descrever; só sabia que sentia

um formigueiro no braço desde que ele lhe segurara na mão, e poderia jurar

que o seu corpo estava agora mais leve do que há instantes, como se fosse

capaz de começar a flutuar uns centímetros acima do chão a qualquer

momento.

Tudo lhe parecia diferente. Ela mesma parecia-lhe diferente.

Ele inclinou-se na direção dela.

– Toda a situação de ser rei… – disse ele, num tom quase conspiratório –

ensombra-nos. Um acidente de nascimento da minha parte. Mas eu pensava

que, talvez, enquanto minha esposa, pudesse ignorar isso, e eu pudesse ser

só Jorge para si.

– Só… Jorge? – ecoou ela.

Ele anuiu com a cabeça.

– Isto, claro, antes de saber que não se quer casar comigo.

– Eu não disse isso – retorqui Carlota num ápice.


– Ah, disse, sim.

– Não disse, não.

– Disse, sim.

– Não é… – Carlota abanou a cabeça, tomada pela frustração. – Eu não o

conheço.

Jorge abriu os braços.

– Eu também não a conheço. Apenas sei que é péssima a escalar muros.

– Tente escalar um muro vestido assim – retrucou ela.

Ele riu-se.

Ela esboçou um sorriso aberto.

– Que foi? – perguntou.

Ele abanou a cabeça, como se não pudesse crer nos próprios

pensamentos.

– A Carlota é incomparável. Ninguém me disse que era tão bela.

Subitamente, Carlota ficou sem saber o que fazer com as mãos. Ou com

as pernas. Todo o corpo lhe parecia estranho, como se o ar que respirava

fosse uma estranha substância borbulhante a cintilar ao vento.

– É bem capaz de ser demasiado bela para se casar comigo – prosseguiu

Jorge. – Vai haver falatório. – Inclinou a cabeça para o lado, esboçando um

sorriso matreiro. – Tendo em conta que eu sou um duende.

Carlota quis morrer ali mesmo.

– Vossa Majestade…

– Jorge.
– Jorge – obrigou-se ela a repetir. Não era fácil. Ele era o rei. Ninguém se

dirigia aos reis pelos seus nomes próprios.

– Que deseja saber? – perguntou-lhe ele.

– Não me conhece. É esse o problema, certo? Que deseja saber sobre

mim?

– Isso é deveras… Eu não…

Ele sorria, aguardando, sem tirar os olhos do rosto dela.

– Tudo – disse Carlota.

Jorge anuiu com a cabeça vagarosamente.

– Certo. Tudo, hã? Bem, eu nasci prematuro e toda a gente achava que eu

ia morrer. Mas não morri. Sou um esgrimista razoável. Sou melhor atirador.

A minha comida preferida é carneiro. Não como peixe. – Ergueu os olhos de

súbito. – Gosta de peixe?

– Eu…

– Não interessa – disse ele, claramente sem interesse na resposta dela. –

Não o comeremos. Gosto de livros e de arte e de boa conversa. Mas, acima

de tudo, gosto de ciência.

– Ciência?

– De química, física, botânica. E, especialmente, de astronomia. As

estrelas e os céus. Sou um bom agricultor, provavelmente teria essa

ocupação se não estivesse já tomado por outra.

Carlota pestanejou, procurando não perder o fio à meada.

Jorge apontou para as próprias costelas.


– Tenho aqui uma cicatriz por ter caído do meu cavalo. E outra aqui –

apontou para a mão, para a base do polegar – por ter sido apenas

extraordinariamente desastrado com uma faca de descascar. E estou muito

nervoso por ir casar com uma rapariga que estou só a conhecer minutos

antes do nosso casamento, mas não posso demonstrá-lo e galgar um muro

porque sou o rei da Grã-Bretanha e Irlanda e isso causaria um escândalo.

Mas, prometo, não sou nem um monstro nem um duende.

Fez uma pausa e Carlota viu finalmente um indício de nervosismo nos

seus olhos escuros e calorosos.

Ele olhou para ela. Olhou para ela, de facto. E disse:

– Sou apenas o Jorge.

Carlota sentiu o seu rosto mudar de expressão. Estava a sorrir. Não se

conseguia lembrar da última vez em que sorrira tão abertamente. Gostava

dele. Gostava dele. Parecia um milagre, mas gostava daquele homem com

quem fora ordenada a casar. Ele falava um bocadinho depressa quando ia

embalado, mas era… interessante. E engraçado.

E muito, muito belo.

– Jorge – disse ela, a testar o nome dele na língua. – Eu…

– Liebchen!

Carlota deu meia-volta. Adolfo vinha apressado na sua direção.

– Temos andado à tua procura em todo o lado! – disse-lhe o irmão. – Que

estás tu… – Arfou. – Vossa Majestade.

Adolfo curvou-se numa vénia. Profunda. Humilde.

– Ah! – disse Jorge, da forma mais amigável possível. – O homem

responsável pela minha possível futura felicidade.


– Ja – disse Adolfo, mostrando-se muito pouco à vontade. – As minhas

desculpas. Sim. Não. Eu…

– Bem, chegou no momento mais oportuno – disse Jorge. – Carlota está a

decidir se quer ou não casar comigo.

O rosto de Adolfo cobriu-se de uma expressão alarmada.

– Carlota está radiante por se tornar vossa esposa.

– Não – respondeu Jorge assertivamente. – Ela ainda está a decidir. –

Apontou com a cabeça para o muro. – Poderá optar por galar o muro.

A boca de Adolfo abriu-se. Depois começou a fechar-se. Depois abriu-se

de novo.

– A decisão cabe-lhe inteiramente a ela – disse Jorge.

Carlota decidiu naquele preciso instante que o amava. Tanto quanto

alguém pode decidir alguma coisa. Afinal, só o conhecia há cinco minutos.

Não era assim tão irrealista.

Jorge virou-se para ela com um sorriso ligeiramente acanhado.

– Tenho de ir, pois suspeito de que neste momento haverá uns quantos

guardas extremamente preocupados a pensar que alguém me raptou.

Carlota?

Ela olhou para ele, inteiramente sem palavras.

Jorge pegou-lhe na mão e curvou-se, tocando-lhe levemente com os

lábios nos nós dos dedos.

– Espero encontrá-la lá dentro.

Carlota nada mais conseguia fazer senão olhá-lo fixamente.


– E se assim for – prosseguiu Jorge, deixando os dedos dela deslizar por

entre os dele –, eu serei aquele ao lado do arcebispo de Canterbury.

Afastou-se a passos largos, resplandecente no seu casaco ricamente

bordado.

– Não me digas que ainda tens dúvidas – disse Adolfo.

Carlota virou-se lentamente para o irmão. Esquecera-se completamente

de que ele ali estava.

– Bem – disse-lhe, devagar, olhando para o detestável vestido que a

princesa Augusta a obrigara a usar –, primeiro tenho de ir mudar de vestido.


Jorge

PALÁCIO DE ST. JAMES

SALÃO DE BAILE

...

NAQUELA NOITE

Jorge estava assustado.

Poderia uma pessoa sentir-se assustada e exultante ao mesmo tempo?

Devia ser possível, porque ele sentia-se assim, e ainda sentia pavor.

Medo.

Não, isso era o mesmo que pavor.

Contava? Contavam ambos? Se medo e pavor eram sinónimos, isso

queria dizer que eram a mesma coisa, logo, que ele só estava a sentir uma

emoção e não duas.

Olhou para as mãos. Estariam com espasmos?

Não, mas estariam a tremer? Talvez, mas sentia-se uma corrente fria no

ar. Podia ser esse o motivo.

Seriam tremuras e espasmos sinónimos? Essa, sim, era uma pergunta

interessante. Ele teria de optar pela negativa. Não eram exatamente a mesma

coisa. Havia uma diferença considerável entre tremer e ter espasmos. Não

era como o caso do medo e do pavor. O medo era uma forma atenuada de

pavor, mas tremer não era de forma alguma o mesmo movimento do que ter

espasmos. Não são comparáveis.


Os dois pares de palavras. O fundo da questão era que ele estava a

comparar cada par no seu interior.

Respirou fundo. Para, disse a si mesmo. Acalma o pensamento.

Isto acontecia-lhe algumas vezes.

Frequentemente.

Mais do que ele desejava.

O seu cérebro parecia desatar a correr sem ele e deixava de conseguir

controlar os seus pensamentos. Essa era a pior parte, porque um homem

devia ser capaz de controlar a sua própria mente. Ele era o rei. Se não era

capaz de governar os seus pensamentos, como esperar que fosse capaz de

governar qualquer outra coisa?

E agora estava assustado. E exultante.

Tal como atrás referido.

Tudo por causa dela. A princesa Sofia Carlota de Mecklenburg-Strelitz.

Não, agora já estavam casados. Ela era a rainha Carlota da Grã-Bretanha e

Irlanda.

Era uma rainha, agora. A rainha dele.

Jorge não andava à procura dela quando se encontraram no jardim da

capela. Apenas lhe haviam dito que ela fugira, e ele sentira um alívio e uma

vergonha avassaladores – mais uma vez, uma combinação de emoções

paradoxal.

Precisara de apanhar ar.

Andava a sentir-se tão confiante ultimamente. Tinha um médico novo, um

escocês com consultório em Londres. Começara a consultá-lo apenas uma

semana atrás, mas Jorge voltara a sentir-se bastante ele mesmo, um homem
pronto para se casar. E então viera aquele verme daquele criado dizer a

Reynolds que a noiva desaparecera. Jorge olhara para as mãos, vira os

espasmos começar a aparecer, e só conseguia pensar em…

Fugir.

Sem noiva não haveria casamento. Não precisava de ficar ali.

Sempre adorara o jardim da capela. Não era propriamente como estar a

céu aberto, com campos a perder de vista e árvores majestosas, mas era

bucólico e relativamente diversificado para um espaço eclesiástico. Havia

sebes, claro, mas muitos anos antes alguém semeara flores silvestres nas

zonas amplas. Jorge escapava para lá com frequência, se precisava de

alguma privacidade.

Além disso, ninguém parecia lembrar-se de procurá-lo lá. Mais uma

vantagem.

Mas o doutor Monro aguardava no corredor, presumivelmente ali

colocado pela mãe de Jorge, que não queria correr risco algum, e não

aceitara nem as desculpas nem as explicações de Jorge. Ao invés disse,

quando Jorge alegou não estar preparado, e não estar bem, o doutor Monro

olhou-o nos olhos e disse:

– Eu examinei-o pormenorizadamente, e está perfeitamente bem.

– Parece-lhe perfeitamente bem? – perguntou Jorge, esticando as mãos

com espasmos.

Achou que aquilo poria um ponto final na discussão, porque qualquer

tolo perceberia que ele não estava bem, mas o médico urrou:

– Está perfeitamente bem.

E depois esbofeteou-o,
E… isso… resultou.

Os espasmos cessaram. Os seus pensamentos abrandaram e a mente

focou-se. Jorge pestanejou, ergueu uma mão para impedir os guardas de

arrastaram o doutor Monro para qualquer masmorra que ficasse mais

próxima, e agradeceu ao médico.

Aquilo fora revelador.

Um milagre.

Havia qualquer coisa na voz de Monro. E talvez na bofetada, também,

mas sobretudo na voz. Era suave e profunda. Tinha autoridade. Quando

Monro falou, Jorge voltou a si mesmo. Os seus pensamentos desaceleraram,

e os espasmos nas suas mãos pararam, e ele sentiu-se pronto.

Saíra para respirar ao ar livre e ali estava ela, a tentar escalar uma

trepadeira lenhosa de glicínias. Carlota. A sua princesa, em breve sua

rainha. Não tinha a certeza de ser ela antes de conversarem, mas tinha uma

forte suspeita. Ela tinha a pele escura, como a mãe lhe dissera, e envergava

um vestido muito simples cor de marfim que correspondia à descrição que a

mãe lhe dera. Tinha a idade certa e comportava-se como realeza.

Ele achou-a bonita.

Foi só isso que ele pensou, na verdade, quando a viu junto ao muro. Mas

depois ela falou.

E ele perdeu-se para todo o sempre.

Quando Carlota falou, o mundo ganhou vida. Ela era tenaz e teimosa e

chocantemente direta. A inteligência dela transformara o seu bonito rosto

em algo incandescente. A sério, ele não sabia que uma mulher podia ser

assim tão bela.


Era uma estrela. Um cometa. Era tudo o que brilha no céu noturno,

trazida à terra por forças mágicas que a igreja jurava não existirem.

Como explicar que uma pessoa é especial? Que é, de alguma forma, mais

do que qualquer outra pessoa? Teria nascido sob a asa de um anjo?

Circularia o seu sangue a uma velocidade diferente?

Durante toda a sua vida, as pessoas haviam-lhe dito que ele era tal

pessoa, mas ele conhecia a verdade. Tratava-se de um acidente de

nascimento. Nascera para ser rei, logo, era sobreprotegido e louvado.

Quando falava, as pessoas ouviam-no.

Mas ouviam o rei. Não ouviam Jorge.

Carlota era diferente. Poderia ter nascido na sarjeta e as pessoas

galgariam barricadas para ouvirem as palavras dela. O carisma dela não

podia ser fingido.

Nem aprendido.

Ela era, pura e simplesmente, magnífica. Muito mais do que ele alguma

vez poderia aspirar a ser.

Não era só pela beleza dela. Era estupendamente esperta. Era esse o

problema. Se ela fosse feia, se fosse entediante, ele poderia sentir-se à altura

da tarefa de ser seu marido.

Jorge soubera que teria de deixá-la decidir sozinha se queria aquele

casamento. Percebera, sem saber como, que o espírito dela não acatava

ordens. Sim, provavelmente ele poderia ordenar-lhe que assumisse o lugar

devido na capela, e sim, tinha praticamente a certeza de que o irmão dela lhe

ordenara que assumisse o lugar devido na capela, mas Jorge sabia que um

casamento sob coação nunca seria uma verdadeira união. Não com ela.
Carlota não podia ser domada. Seria um crime tentar tal coisa.

Assim, arriscou. Deu-lhe a oportunidade de abandonar o casamento. E

deu-se a si mesmo 30 minutos de uma hedionda ansiedade.

Tinha quase a certeza de que ela decidiria prosseguir com o casamento.

Esperava que assim fosse. A conversa deles correra bem. Talvez ela não

tivesse sido atingida em cheio pela seta de Cupido como ele fora, mas

parecera gostar dele o suficiente, o que era, muitas vezes, o melhor que se

podia esperar num casamento real.

Mas até a ver entrar na capela, cintilando num vestido com capa

pontilhado de ouro e prata, não conseguira estar seguro de que ela

apareceria.

Ela caminhou até ao altar e a cada passo dela a alegria dele aumentava.

Ao olhá-la, teve a certeza, a certeza absoluta de que aquela mulher era

perfeita e aquele casamento estava certo.

Aquela união transformaria a vida dele.

O irmão de Carlota pegou na mão dela e colocou-a na de Jorge, e este

sorriu e disse:

– Mudou de vestido.

– Pedi algo mais adequado a uma rainha – respondeu ela.

A sua rainha.

Podia jurar que o seu coração começara a cantar.

Mas agora, passada a longa e solene cerimónia e tantas horas a fazer

conversa educada com pessoas de cujos nomes nunca se lembraria, sentia

alguma coisa escura e feia a arranhar as bermas da sua felicidade.


Não era merecedor desta magnífica criatura. E, com o tempo, ela sabê-lo-

ia.

Na maior parte do tempo, ele estava bem. Normal, ou, pelo menos, tão

normal quanto um rei alguma vez era. Mas depois alguma coisa acionava o

gatilho. Não conseguia explicar – algo se acendia na sua mente e ele não

conseguia extinguir a estranha e inconcebível chama que ardia e crepitava

dentro dele.

Ficava cheio de palavras – era essa a única forma de o descrever. O seu

corpo enchia-se de palavras, normalmente acerca dos céus e das estrelas,

mas por vezes sobre o mar, os deuses e os homens comuns. As sílabas

rodopiavam e baralhavam-se dentro dele, queimando-lhe a boca e

pressionando-lhe a pele. Até ser tudo demasiado e ele ter de dizê-lo.

E o pior de tudo aquilo era ele saber que a sua cabeça não estava a

funcionar corretamente. Pelo menos, no início de um episódio. Ele percebia

que algo estava doente e podre e não sabia como consertá-lo.

Mas não agora.

Respirou fundo. Estava perfeitamente bem. Estava perfeitamente

operacional.

Aquele era o dia do seu casamento e ele estava perfeitamente bem e

operacional.

Carlota encontrava-se a apenas uns poucos metros de distância, a

conversar com o irmão e com a recente lady Danbury. Estava adorável,

régia, o seu cabelo uma nuvem perfeita encimada pela tiara mais mágica,

mais digna de uma fada, que Jorge alguma vez vira. Ocorreu-lhe que já

estava mais do que na altura de conduzir a sua noiva numa dança.


Percorreu a distância até ela e curvou-se numa vénia.

– Concede-me esta dança, Vossa Majestade?

Carlota sorriu como que iluminada por dentro.

– Muito me agradará, Vossa Majestade.

Jorge conduziu-a até ao centro do salão. Em breve, outros casais juntar-

se-iam a eles, mas estava subentendido que aquela dança seria apenas para o

rei e a rainha. E embora tivessem trocado palavras durante toda a noite,

aquela era a primeira conversa que tinham a sós desde a cerimónia.

Jorge aguardou pelo começo da música, conduziu-a ao longo dos

primeiros passos e depois perguntou-lhe:

– Qual a sensação de ser rainha?

Carlota fez uma expressão surpreendida.

– Não sei – disse. – Qual a sensação de ser rei?

– Eu mal conheço outra coisa.

– Isso não pode ser verdade. Ainda nem passou um ano desde que

ascendeu ao trono.

– É verdade – concedeu –, mas sempre soube que era esse o meu destino.

Sou o filho mais velho de um filho mais velho de um rei. Tinha apenas 12

anos quando o meu pai morreu, e tornei-me príncipe de Gales. Nunca me

trataram como um ser humano comum.

Teria ela reparado na nota melancólica da sua voz? Ele não desejava não

ser rei, mas havia alturas em que de bom grado evitaria os assuntos de

Estado para ir tratar do seu jardim.


Jorge, o agricultor. Era isso que lhe chamavam pelas costas. Mal sabiam

que ele o tomava como um elogio. Fora sincero no que dissera à mãe

naquela manhã. A terra era bela. O solo era um milagre e dele brotava toda a

vida e esperança.

– Não me respondeu – disse a Carlota, tomando-lhe a mão e erguendo-a

acima dos seus ombros para ela poder girar. – Qual a sensação de ser

rainha?

– É impossível responder a essa pergunta.

– Será? Não pensei que fosse. Será uma mudança extraordinária para

qualquer mulher, até para uma que cresceu sendo princesa.

– Talvez.

A dança afastou-os por alguns segundos e, quando estavam de novo cara

a cara, Carlota disse:

– É muito menos especial ser-se princesa da Europa. Somos uma vasta

colheita, para ser sincera.

Jorge sentiu o sorriso abrir-se-lhe.

– Não consigo decidir se essa imagem é agradável ou assustadora.

– Um campo de princesas?

– Um exército – decidiu Jorge.

– Isso seria assustador – disse Carlota. – Nunca viu a minha irmã a

disparar uma arma.

Jorge riu-se.

– Não sei quantas irmãs tem – admitiu.

– Já só tenho uma.
– Lamento.

Carlota encolheu ligeiramente os ombros.

– As outras morreram antes de eu ter nascido. Não tive oportunidade de

conhecê-las.

– Como acontece com tanta frequência.

Os próprios pais de Jorge haviam sido considerados abençoados por os

seus filhos terem sobrevivido à primeira infância. A sua irmã Elizabeth

falecera há dois anos, aos 18, e ele sofrera deveras com a perda. Mas, por

enquanto, fora a única de entre os seus irmãos a partir.

– O Jorge tem muitos irmãos e irmãs – disse Carlota.

– Tenho, sim. Espero que venha a considerá-los seus, também. Caroline

Mathilda, a minha irmã mais nova, estaria muito interessada no seu exército

de princesas, tenho a certeza.

– É boa atiradora?

– Deus, espero que não. Só ainda tem 10 anos.

Carlota riu-se. Era um som rico, não particularmente musical, mas

repleto de alegria.

– Devo confessar que eu também não sou muito habilidosa com uma

arma. Aprenderemos juntas, eu e a sua irmã.

– Uma perspetiva assustadora – murmurou Jorge. – E que eu terei de me

esforçar para evitar. Mas, mais importante, que chamaremos a esse exército

de princesas?

– É aqui que a língua inglesa nos falha – disse Carlota um enrugar

desdenhoso do nariz. – Em alemão, teríamos uma palavra para isso.

Armeeprinzessinnen. Toda a gente saberia o que queria dizer.


– Eu também falo alemão – recordou-lhe Jorge. – E não creio que seja

preciso uma palavra nova. Há algum motivo para não lhe chamarmos Armee

der Prinzessinnen?

– Pormenores – desdenhou Carlota. – Eu prefiro palavras compridas.

– Backpfeifengesicht – murmurou Jorge.

O rosto de Carlota iluminou-se com um sorriso.

– Um rosto a precisar de um punho. Que palavra tão útil. Faz falta na

língua inglesa.

– Ouso dizer que faz falta em todas as línguas – disse Jorge. – Mas a

Carlota é a rainha. Pode inventar as palavras que quiser.

Carlota sorriu.

– Fistneedingface.

– Faceneedingfist – contrapôs Jorge.

– A sua é mais precisa, mas a minha é mais satisfatória.

Jorge soltou uma enorme gargalhada, suficientemente alto para atrair

olhares curiosos.

– Cautela – disse Carlota com uma centelha desafiadora no olhar. – As

pessoas pensarão que gostamos um do outro.

– E não gostamos? – murmurou Jorge.

Mas Carlota foi salva de ter de responder pelos passos da dança. Ambos

descreveram um círculo lento antes de as suas mãos de voltarem a tocar, e

ela disse:

– Espero que sim.

– É um risco que corremos – disse ele – nestes casamentos oficiais.


Carlota concordou com um ligeiro aceno da cabeça, dizendo em seguida:

– Deverá saber que eu não tive alternativa.

– Não é verdade – murmurou Jorge. Pegou na mão dela enquanto

caminhavam por um corredor central imaginário. Os restantes convidados

ainda não se lhes haviam juntado, por isso eram só eles os dois, executando

a dança sozinhos. – Eu disse claramente ao seu irmão que a decisão lhe

cabia inteiramente a si.

– Não pode acreditar que eu tivesse, de facto, poder de decisão?

Jorge procurou ignorar as pequenas picadas de angústia no seu peito.

– Deu-me todos os sinais de acreditar ter poder de decisão ao tentar saltar

o muro do jardim.

– Isso não posso negar.

– E eu dei-lhe mesmo a possibilidade de escolher. Se não o percebeu

assim, foi inteiramente culpa sua.

Carlota ponderou por um momento antes de falar:

– Eu apreciei francamente aquilo que me ofereceu. Fiquei surpreendida

por o ter feito.

A música cresceu e depois recuou, indicando que a primeira dança a solo

estava terminada. Jorge fez um gesto régio com o braço, convidando os

outros a juntarem-se-lhes. E assim fizeram, como um enxame em torno do

casal real, uma nuvem de sedas e cetins perfumados. E embora Jorge e

Carlota ainda fossem, deveras, o centro das atenções, ele já não se sentia

tanto em exposição.

Isso era um alívio.

– Não me disseram quase nada acerca de si – disse Carlota.


– Também não me disseram grande coisa sobre si.

– Estou certa de que há menos a dizer de mim.

– Impossível. Não existem palavras suficientes para descrevê-la.

– Agora sei que está a exagerar.

Mas Carlota corou ligeiramente. Não era tão fácil percebê-lo na sua face

como seria na dele, mas ele achou aquilo extasiante. Como se ela

representasse por isso um desafio ainda maior.

Ela não seria fácil de compreender. Era um diamante. Sem mácula. Mas

ninguém sabia como é que um diamante conseguia ser isento de

imperfeições. Apenas surgiam assim, magia da terra.

– Venha – disse-lhe, apontando com a cabeça para o lado. – Deixemos a

pista de dança para os nossos convidados.

Regressaram à lateral do salão de baile. Carlota olhava para a multidão, e

Jorge olhava para ela.

– A Carlota é bela – disse. Não tencionava dizê-lo, não naquele instante,

mas escorregara-lhe dos lábios como um poema.

– É gentil da sua parte dizê-lo.

Jorge esforçou-se ao máximo para parecer descontraído.

– É apenas a verdade, mas certamente que sabe.

– Não reside a beleza nos olhos de quem a vê?

– Se assim é, então é a criatura mais perfeita alguma vez nascida, pois

sou eu que a vejo.

Carlota sorriu, um sorriso genuíno. Mas parecia estar a conter algo mais.

Riso?
– Que foi? – perguntou Jorge.

– Que foi o quê?

– Estava prestes a rir.

Carlota baixou a cabeça.

– Não estava nada.

– Permita-me que me corrija. Estava a conter o riso.

– Não é isso a mesma coisa?

– Não, de forma alguma. Mas está a evitar a minha pergunta.

– Muito bem, se quer mesmo saber…

– Quero, sim – interrompeu Jorge, abrindo um sorriso. Não se conseguia

lembrar da última vez em que se sentira assim, como se precisasse de

conquistar e cortejar e, acima de tudo, como se tivesse de merecê-lo.

– Estava a pensar – disse ela – que uma linguagem tão opulenta não faz o

seu género.

– Estava?

Carlota alterou a sua postura. Um ligeiro ajeitar dos ombros. Mostrava-se

muito satisfeita consigo mesma.

– Estava, sim.

– E como sabe isso, dado que acabámos de nos conhecer?

– Não sei dizer, a não ser que creio que o conheço.

O coração dele deu um salto. Levantou voo. E teria sido glorioso não

fosse a negra mão do terror esgueirar-se e apertar-lhe o peito. Ela não o

conhecia. Se o conhecesse, não teria casado com ele.


Jorge baixou o olhar até à sua mão. Não conseguia ver espasmos, mas

sentia como se os houvesse. Como se pudesse havê-los.

Pudesse. Era esse o problema. O que poderia acontecer. Ele não sabia.

Nunca soube. A única coisa que sabia era que não queria magoá-la.

Não podia magoá-la. Isso era o mais importante. Tinha de ser.

Tomou uma decisão.

– Tenho uma surpresa para si – disse-lhe.

– Para mim? – O deleite espalhou-se no rosto de Carlota. – O que é?

– Terá de ser paciente. E precisará da sua capa.

– É no exterior, então?

– Não propriamente. Bem, sim, propriamente. Logo verá. – Pegou-lhe na

mão e puxou-a na direção da mãe, que conversava com membros da

delegação Mecklenburg-Strelitz. – Está na hora de nos despedirmos.

Carlota olhou para os convidados, todos divertidos e a dançar.

– Já?

– Não somos necessários aqui. Ninguém pode partir antes de nós, por

isso, na verdade, estaremos a fazer-lhes um favor.

– Jorge – disse a mãe, quando chegaram ao pé dela –, estás com bom ar.

Sendo a mensagem subliminar: às vezes, não estás.

Jorge pressionou os lábios um contra o outro antes de falar.

– É o dia do meu casamento, mãe. Claro que estou com bom ar.

Augusta virou-se para Carlota e fez uma vénia.

– Vossa Majestade.
Por um instante, Carlota parecia incapaz de reagir. Ainda naquela manhã

fora ela a curvar-se perante Augusta. Por fim, acenou com a cabeça e disse:

– Vossa Alteza Real.

– Partiremos em breve – disse Jorge. – Vou levar Carlota a ver o seu

presente.

– O seu presente? – Augusta franziu o sobrolho. – Oh, refere-se a…

– Eh, eh, eh. Nem uma palavra. É uma surpresa.

– Tenho de me despedir do meu irmão – disse Carlota. – Volto num

instante.

– Ela é boa para ti – disse a princesa Augusta assim que Carlota se

afastou.

– Sim – disse Jorge.

– E claro que tu és bom para ela. És o rei. Serias bom para qualquer

pessoa.

Ele não tinha verdadeira vontade de concordar, mas fê-lo inclinando

ligeiramente a cabeça. Tinha de dar algum tipo de resposta.

– Vais levá-la para a cama esta noite? – perguntou Augusta. Mas era, na

verdade, mais uma ordem do que uma pergunta.

– Mãe!

– A cada dia que falhares a produção de um herdeiro, a posição da nossa

família enfraquece.

– Será um rei apenas isso? – contrapor Jorge. Estava tão farto daquela

conversa. Era um tema que a mãe aflorava pelo menos dia sim, dia não. –

Um garanhão real a trotar até à égua eleita?


Augusta limitou-se a rir.

– Não finjas que te ofendi. Bem vi a forma como olhas para ela.

– Não pretendo ter esta conversa com a minha mãe.

– Eu não pretendo ter esta conversa com o meu filho, mas,

aparentemente, tem de ser. As finas linhas em torno dos lábios dela

endureceram. – Não esqueças o teu dever para com este país.

– Asseguro-te, mãe, que tal nunca se afasta muito do meu pensamento.

– É tudo tão moderno, agora – disse Augusta. – No meu tempo, estavam

sete pessoas no quarto, na minha noite de núpcias, para testemunharem o ato

matrimonial. Para confirmar que eu e o teu pai fazíamos o que tinha de ser

feito.

Santo Deus.

– Agora – prosseguiu –, a moda é dar privacidade ao casal. O que não

seria problemático, normalmente. Mas o que se passa contigo, Jorge…

Jorge fechou os olhos.

– Mãe, não.

Mas ela continuou.

– É que tens uma mente muito própria.

Sendo a mensagem não dita: e que estranha é.

Jorge expirou. Sentia as mãos estranhas. Tinha de partir. E estava tão

fartinho de todas as mensagens subentendidas da mãe.

– Diz de uma vez o que pretendes dizer, mãe.

Augusta fixou os olhos nos dele.

– Faz o que tem de ser feito.


– E que se danem as consequências?

– Eu não disse isso.

– Não foi preciso.

Augusta olhou para Carlota, que ainda se estava a despedir do irmão.

– Ela é adorável. Inteligente, também. Isso é bom, apesar do que diz a

maioria dos homens. Fará bons bebés.

Jorge abanou a cabeça.

– Boa noite, mãe.

Augusta inclinou a cabeça ligeiramente na direção de um ponto além do

ombro de Jorge.

– Ela está a voltar.

– Obrigada por esperar – disse Carlota. – Estou pronta.

– Que bom ouvir isso – disse Augusta.

Jorge disparou-lhe um olhar, que, felizmente, Carlota não viu.

– Vamos – disse, com um puxão na mão da sua recente esposa.

– Não há mais ninguém de quem nos tenhamos de despedir?

– Mais ninguém.

Jorge começou a andar depressa, desejoso de sair do palácio após a

conversa com a mãe. Amava-a, de verdade, mas ultimamente ela parecia

deixá-lo sempre com os nervos em franja.

A carruagem aguardava-os na entrada e chegaram ao seu destino menos

de um minuto depois.

– Onde me leva? – perguntou Carlota. – Já chegámos?


– Não olhe. Mantenha os olhos fechados.

Carlota obedeceu. Quase. Ele viu um dos olhos dela a espreitar por entre

as pestanas.

– Estou a vê-la a espreitar – disse, desafiador. – Terei de pedir a um dos

criados uma venda?

– Não, não, prometo – disse Carlota com uma gargalhada. – Não

espreitarei.

Jorge pousou uma mão sobre os olhos dela.

– Não acredito em si.

– Não consigo sair da carruagem com os olhos fechados.

– Devia ter pensado nisso antes de me desobedecer.

– Jorge!

Quanto ele adorava o som do seu nome nos lábios dela, especialmente

daquela maneira, entrecortado pelo riso. Ela apreciaria aquele presente. Ele

sabia que sim.

Era para o bem dela.

Ela compreenderia.

Tinha de compreender.
Carlota

CASA DE BUCKINGHAM

LONDRES

– Está pronta?

Carlota anuiu com a cabeça, procurando dominar o sorriso tolo que

persistia em assomar-lhe aos lábios. Jorge pusera os dedos sobre os olhos

dela, algo de que ela nunca gostara em criança e, ainda assim, naquela noite

ela não protestou. A mão dele era grande e quente, e a força dele deixava

adivinhar algo de perverso e maravilhoso.

Como podia ela ter tido tamanha sorte? Sabia bem o que significava ser-

se arrancada da casa de nascimento e enviada para casar. Ela podia ser a

primeira da sua família a casar, mas os outros nobres alemães não viviam

muito longe e os mexericos viajavam como o vento. Negociavam-se noivas

sem qualquer consideração pela cultura ou língua destas.

Ou pelo facto de estas gostarem ou não do noivo. Ainda se falava da

união desastrosa entre Sofia Dorothea da Prússia e o «louco» margrave de

Bradenburg-Schwedt, e isso ocorrera antes de Carlota ter nascido.

Mas Jorge era perfeito. Ou talvez não perfeito, porque Carlota era sensata

e sabia que ninguém era perfeito. Mas era tudo o que ela poderia desejar. E,

pela primeira vez desde que Adolfo a informara de que deixaria

Mecklenburg-Strelitz, sentia-se feliz.

– Só mais alguns passos – disse Jorge, assim que desceram da

ornamentada carruagem Gold State Coach que os levara pelas ruas de


Londres. – Quero que tenha a melhor vista.

– Sobre o quê?

– Ora, ora, não é preciso ser tão impaciente.

Carlota deixou-se ser guiada sobre gravilha estaladiça. Uma entrada?

Devia ser; tinham chegado de carruagem.

– Estamos quase lá – disse Jorge. – Um, dois…

E ao três ele ergueu a mão para revelar uma belíssima mansão. Em estilo

neoclássico, tinha forma de U, com pilares e pilastras ao longo da fachada.

Uma passadeira vermelha descia as escadas, desde a entrada principal até

quase à carruagem.

– Que acha? – perguntou Jorge ansiosamente.

– É maravilhosa. – Virou-se para o seu recente marido, captando as

chamas das tochas refletidas nos olhos dele. – Quem vive aqui?

– Eu mandei remodelá-la para si.

Carlota sabia que aquilo não podia ser inteiramente verdade, tendo sido o

casamento deles combinado apenas há uns meses. Ainda assim, adorou. O

trabalho em pedra era muito mais ao seu gosto do que o tijolo do palácio de

St. James.

Mais importante que isso, ela seria a dona da sua própria casa. Rainha

não apenas do seu país, mas do seu lar também. Isso não seria fácil de

conseguir em St. James, onde residia a princesa Augusta.

Aqui, em…

Fez uma pausa.

– Como se chama este lugar?


– Casa de Buckingham – disse Jorge. – Mas poderá rebatizá-la, se assim

o desejar.

– Não, eu gosto. Soa a algo durável.

– Rezo por isso.

Carlota não conseguia parar de sorrir. Desconhecia-se capaz de sentir

tamanha alegria, de se sentir tão feliz graças a outro ser humano. Não

conseguia deixar de pensar na sorte que tinha. Jorge era gentil, engraçado, e

parecia ser muito inteligente. No caminho do palácio de St. James para ali,

ele falara-lhe de alguns dos seus interesses científicos. Tinha um telescópio,

ao que parecia – um telescópio enorme –, e outra coisa chamada planetário,

que previa as posições de planetas e luas.

Nunca se sentira particularmente interessada pela astronomia, mas,

quando Jorge lhe falava do assunto, ganhava vida. Ela queria saber mais.

Queria aprender.

Agora ele comprara-lhe aquilo? Olhou para ele.

– Isto é mesmo a nossa casa? Oh, Jorge…

– É a sua casa – disse ele.

Carlota pestanejou, sem saber se o ouvira corretamente.

– A minha casa. Como assim?

Ele fez um gesto na direção do enorme edifício atrás dele.

– É aqui que irá viver. Eu tratei de que todos os seus pertences fossem

trazidos para cá durante a cerimónia.

Carlota continuou de olhos fixos no edifício, como se conseguisse ver

todos os seus vestidos e quinquilharias através da pedra, presumivelmente

arrumados em roupeiros e armários.


– Não tenho a certeza de estar a perceber – disse. – Se esta é a minha

casa, não é também a nossa casa?

– Creio que, oficialmente, a nossa casa é St. James – disse, numa voz que

denunciava não ter pensado naquele assunto até então. – Mas é aqui que a

Carlota ficará.

– Oh. – Foi tudo o que Carlota conseguiu dizer.

Jorge deu-lhe uma palmadinha no braço.

– Ficará confortável aqui. É tudo muito moderno.

– E onde ficará o Jorge? – perguntou Carlota por fim. Porque ele não

pronunciara uma única palavra acerca dos seus planos.

– Tenho uma propriedade em Kew.

– Kew – repetiu ela. Tantas palavras de uma só sílaba e nada senão ecos

das proclamações dele. Sentia-se bastante estúpida, para ser sincera.

Detestava sentir-se estúpida. Na verdade, era a única coisa que não

tolerava.

– Não fica longe. A cerca de 16 quilómetros.

– Então, o Jorge viverá em Kew.

– Sim.

Carlota voltou a olhar para a Casa de Buckingham, que lhe parecera tão

gloriosa quando ele lhe destapou os olhos. Agora era só uma casa. Grande,

elegante, mas uma casa apenas.

Forçou um sorriso. Não saiu grande coisa, no entanto.

– É a nossa noite de núpcias.


– E já é tarde – disse Jorge, a sua voz algo animada, como se tivesse

estado à espera da frase certa para mudar de assunto. – Fez uma longa

viagem e eu devia deixá-la ir para dentro. Terá de conhecer o seu pessoal, e

quererá dormir.

– Não – protestou ela. – Jorge, esta é a nossa noite de núpcias. É suposto

nós…

Jorge limitou-se a olhá-la fixamente, e ela podia jurar que algo nos olhos

dele… mudou. Qual era o oposto de lampejo? Porque fora isso que

acontecera. Algo se tornou plano. Talvez até frio.

– Nós estamos casados – disse Carlota. – Não é suposto fazermos o que

fazem as pessoas casadas?

Jorge ergueu as sobrancelhas, e não em sinal de divertimento.

– Está a exigir-me que cumpra as minhas obrigações matrimoniais para

consigo?

– Não estou a exigir. Nem tenho bem a certeza do que sejam as

obrigações matrimoniais. Só sei que…

Carlota sentiu-se fraquejar. Estava insegura, confusa. Não sabia o que

estava a acontecer e, pior ainda, não tinha a certeza do que devia estar a

acontecer.

– Não passaremos esta noite juntos? – perguntou, por fim. – A minha

percetora disse que é isso que acontece na noite de núpcias. A noiva e o

noivo dormem juntos na mesma cama.

– Está bem – disse Jorge com um bufar de aborrecimento. – Eu fico.

Carlota observou-o a caminha a passos pesados em direção à casa,

completamente baralhada com a sua abrupta mudança de comportamento.


– Jorge? – perguntou, a sua voz hesitante.

Ele parou junto à entrada e, mesmo antes de se virar para ela, Carlota

sabia que lhe estava a revirar os olhos.

– Eu disse que fico – disse Jorge. – Vem?

– Eu… Sim.

Segurou nas saias e apressou-se a segui-lo. Que estava a acontecer? Onde

estava aquele homem tão querido que brincara com ela acerca de exércitos

de princesas e de saltar o muro do jardim?

Resposta: A marchar à frente dela, passando sem parar pela fila de

criados que se formara para os receber.

– Ah, olá, olá – disse Carlota, parando para acenar com a cabeça e, em

geral, ser educada, ao contrário do seu furioso marido, que já ia a meio do

hall. – Obrigada – murmurou à mulher que deduziu ser a governanta. –

Brimsley, está aqui. Claro que está.

Brimsley curvou-se.

– O seu criado, Vossa Majestade. Posso apresentar-lhe o pessoal?

Carlota deitou um olhar desesperado a Jorge, que desaparecia escada

acima.

– Talvez noutra altura.

Arrancou, avançando o mais depressa que conseguia sem desatar a correr.

– Jorge! Jorge!

Mas ele já estava no topo das escadas.

– Jorge!
Acelerou o passo, mas havia limites para o que conseguia fazer

envergando o vestido de noiva.

– Não consigo acompanhá-lo. Por favor. Abrande.

Jorge virou-se tão repentinamente que Carlota deu um passo atrás.

– Pensei que me queria no quarto – disse, sacudindo um dos braços na

direção do fundo do hall. – Não é lá que devo estar?

– Não.

– Não?

– Não, se se vai comportar desta maneira. Está zangado. Que se passa?

Que fiz eu? Seja o que for, lamento. – Mergulhou no seu interior em busca

de coragem, depois esticou-lhe um braço. Segurou-lhe na mão. – Por favor –

disse. – Perdoe-me. Eu não sei o que está a acontecer.

Sentiu a mão dele tremer na sua, ouviu a respiração dele regularizar e

depois abrandar.

– Não fez nada de que se lamentar – disse Jorge. – Eu… eu só quero ir

para Kew.

– Então, que vamos ambos para Kew.

– Não – disse ele, demasiado alto. – Eu…

Carlota compreendeu. E era terrível.

– Não quer que eu vá para Kew.

– Esta é a sua casa – disse Jorge, mas as palavras soavam como que

mecânicas, como se ele as tivesse praticado silenciosamente.

– E Kew é a sua casa – completou Carlota.

– Sim.
– Compreendo – disse ela. Mas não compreendia. Não compreendia nada

de nada.

– Compreende? – disse Jorge, animado. Voltou a pegar na mão dela. –

Ótimo. Isso é muito bom. Está tudo bem consigo, então. Irá instalar-se, e

ficará confortável, e tudo ficará bem e certo. Falarei consigo… mais tarde.

Lançou-lhe um sorriso, cuja sinceridade ela não conseguiu avaliar, e

começou a descer as escadas de regresso ao hall.

O quê?

Não.

– Não está tudo bem comigo – disse Carlota imperativamente.

Jorge virou-se.

– É assim que vai ser? – perguntou ela. – É isto o nosso casamento? Um

lá e outro aqui?

Jorge engoliu em seco.

– Sim.

– Porquê?

– Pensei que seria… – Voltou a engolir em seco e, na verdade, parecia

que algo de errado se passava com ele. – É mais fácil.

– Para quem?

– O quê?

– Mais fácil para quem? – perguntou Carlota. – Para si ou para mim?

– Não vou discutir isto consigo.

– Apenas quero compreender. Diverti-me tanto consigo esta noite. Nós

divertimo-nos tanto. Não poderá dizer-me o contrário. Terá pelo menos de


me dizer…

– Eu não tenho de fazer nada. Eu decido! – trovejou Jorge. – Eu já decidi.

Eu sou o seu rei.

– Oh – Carlota chegou-se para trás e, de alguma forma, algures,

encontrou o seu orgulho. – Engano meu – disse, com nítida indiferença. –

Pensei que era apenas o Jorge. Perdoe-me, Vossa Majestade.

Fez-lhe uma vénia.

Mas então ele proferiu o nome dela. Com arrependimento, como se se

preocupasse.

Como se ela importasse, quando ela bem sabia que não.

Quando ela voltou a falar, a soa voz soava escrupulosamente educada.

– Permite-me que me retire, Majestade, ou quer dizer-me mais alguma

coisa?

Mas se o seu tom de voz era submisso, o seu olhar não era. Manteve os

olhos fixos nos dele, recusando-se a ser ela a quebrar a ligação.

– Carlota – disse ele –, é melhor assim.

– Claro, Vossa Majestade. Como vós desejardes.

Olhou para ele. E, depois de ele ter partido, olhou para a escada.

Respirou fundo. Tentou não chorar.

As rainhas não choravam. Não fora isso que decidira naquela manhã?

Santo Deus, fora naquela mesma manhã que viajara de carruagem com

Adolfo? Parecia ter sido noutra vida.

Olhou para o longo corredor. Que quarto seria o dela? Jorge indicara-o

com a mão, mas ele estava tão zangado. Ela não conseguia lembrar-se de
para onde ele apontara.

Endireitou os ombros. Não era nenhuma inútil. Conseguiria encontrar o

seu próprio quarto. Mas quando começou a andar, sentiu uma presença.

Suspirou. Brimsley. Tinha de ser ele.

Disse o nome dele alto.

Ele materializou-se como que de fumo.

– Sim, Vossa Majestade.

– Também está aqui. Neste corredor.

– Estou onde estiver Vossa Majestade.

Ele ergueu uma vela, iluminando-lhe o caminho.

– Certo.

Suspirou, mas o ar tropeçou-lhe na garganta e o som que produziu

parecia semelhante ao de um choro iminente.

– Está…

– Estou bem, Brimsley.

Tinha cortar o mal pela raiz. Não suportaria que ele lhe perguntasse se

estava bem.

– Sim, Vossa Majestade.

– O meu quarto – disse, procurando a custo manter a coluna direita – é

por aqui?

– Sim, Vossa Majestade. A porta aberta no fim do corredor. Terei muito

gosto em mostrar-lho.

– Não precisa de me seguir.

– Mas seguirei, Vossa Majestade.


Pelo amor de Deus.

– Pare de me chamar Vossa Majestade.

Brimsley fez uma expressão de dor. Ou talvez obstipação.

– Vossa Majestade é a rainha da Grã-Bretanha e Irlanda. Não há outra

coisa que possa chamar-lhe.

Carlota suspirou. Profundamente.

– Bem, então, pare de me seguir.

– Não posso fazer isso, Vossa Majestade.

– Será considerado crime se eu o matar? – resmungou baixinho.

– Como disse, Vossa Majestade?

Carlota endireitou-se.

– Na qualidade de sua rainha, ordeno-lhe que pare de me seguir!

A expressão no rosto de Brimsley não mudou nem um milímetro.

– Jurei assumir a função de cuidar de Vossa Majestade. Sempre.

– Eu não o quero aqui.

Queria Jorge. Mas não o homem que a trouxera para a Casa de

Buckingham. Queria o homem do jardim.

Só Jorge.

Pensava que era o Jorge dela.

– Espero que, com o tempo, se habitue a mim, Vossa Majestade – disse

Brimsley.

– Maravilhoso – disse Carlota, completamente exausta. – Poderemos

passar o resto das nossas vidas juntos.


Deixou-o guiá-la até ao quarto e depois deixou a sua nova criada prepará-

la para se deitar. E depois, quando se viu, por fim, a sós, deitou-se no meio

da sua cama gigante e fixou o olhar nos belos bordados do seu glorioso

dossel.

Fechou os olhos.

– Eu devia ter saltado o muro.


Brimsley

CASA DE BUCKINGHAM

...

11 DE SETEMBRO DE 1761

Brimsley adorava o seu novo emprego.

Haviam-lhe dado um uniforme novo com um colete em brocado dourado,

e a mudança para a Casa de Buckingham significava que ele estava no topo

da hierarquia subterrânea. Quem poderia ser mais importante do que o

camareiro da rainha?

Podia não se sentar à cabeça da mesa das instalações dos criados – esse

era o lugar do mordomo –, mas ficava à direita do mordomo.

Quando comiam, era ele quem selecionava os cortes de carne para o seu

prato. Nunca tinha de temer que o pudim não chegasse para todos, pois

haveria sempre pudim suficiente para a segunda pessoa a ser servida.

Também era agora olhado de maneira diferente pelos outros. As criadas

já não olhavam de cima. Agora, era ele quem as olhava de cima, mesmo as

mais altas do que ele, que, verdade seja dita, eram quase todas elas.

Cara de peixe, o caraças. Estava no topo do mundo.

Faltava ainda que a nova rainha valorizasse as suas inúmeras virtudes,

mas, em nome da justiça, não passara ainda nem uma semana desde o

casamento. A rainha ainda se estava a adaptar à sua nova vida, exatamente

como Mrs. Pratt dissera que aconteceria. Mas pelo menos não se encontrava

encarcerada em St. James, onde a princesa Augusta ainda detinha o poder


com mãos firmes. Brimsley tinha a certeza de que a rainha seria mais feliz

ali, em Buckingham.

Assim que se adaptasse.

Se se adaptasse.

Coisa que aconteceria. Ele trataria disso.

Os dias dela decorriam como Brimsley previra:

Levantava-se da cama.

Era vestida.

O cabelo dela era penteado.

Tomava o pequeno-almoço.

Olhava pela janela para o exterior.

Almoçava.

Lia um livro.

Era conduzida de volta ao seu quarto, onde lhe trocavam a roupa e

voltavam a pentear-lhe o cabelo para o jantar, e depois dirigia-se para a

ampla e formal sala de jantar e jantava.

Nalguns dias, lia o livro antes de olhar pela janela.

Parecia estar um pouco entediada, era verdade, mas Brimsley trocaria de

lugar com ela sem hesitar. Uma vida de lazer? Com um vestuário magnífico

e penteados elaborados e apenas as suas comidas preferidas?

Ele nem conseguiria imaginar tal coisa se não a visse vivê-la todos os

dias.

Passava grande parte do tempo a seguir a rainha enquanto esta explorava

Buckingham, e foi durante uma dessas caminhadas que ela, subitamente,


parou e pronunciou o nome dele.

Brimsley deu um passo em frente.

– Vossa Majestade.

– Como está a minha agenda de compromissos para esta semana?

Brimsley pensou não ter ouvido corretamente.

– Agenda de compromissos, Vossa Majestade?

Carlota virou-se para ele.

– Presumo que terei de fazer visitas de caridade. Aos pobres. Ou órfãos?

– Não há órfãos, Vossa Majestade.

As sobrancelhas reais de Carlota ergueram-se.

– Não há órfãos, Brimsley? Em toda a cidade de Londres?

Brimsley tossiu. Algo dolorosamente.

– Na sua agenda de compromissos, Vossa Majestade.

– Não podemos pôr lá alguns?

Brimsley imaginou-se a pegar, com os seus próprios braços, em pequenos

órfãos e a depositá-los junto à rainha.

Não gostou nada da imagem.

– Não me parece que esta semana seja a melhor para órfãos, Vossa

Majestade.

A rainha emitiu um som de impaciência.

– Certo. Sei que terei de me encontrar com as minhas damas de

companhia. Isso é importante. E há tanto para ver. A arte. Visitar as galerias

de Londres. Sempre adorei teatro e música. Há algum concerto na minha

agenda de compromissos? Alguma ópera?


– Vossa Majestade.

Carlota fitou-o, esperançosa.

– Não há nada na sua agenda de compromissos, Vossa Majestade.

– Como é isso possível? – perguntou a rainha.

Brimsley sentiu os dedos dos pés encarquilharem-se dentro das botas.

Sentiu uma vontade desesperada de se mexer agitadamente, e ele nunca se

mexia agitadamente. Essa fora uma das razões por que recebera aquela

promoção. Pelo menos, assim lho dissera Reynolds, e Reynolds parecia estar

a par de tudo.

– Não há nada na minha agenda de compromissos? – perguntou a rainha.

– Nada de nada?

– Não, Vossa Majestade.

Carlota deu um passo na direção dele. Brimsley tentou recuar um passo,

mas a rainha deteve-o com o olhar, deixando como que congelado no

mesmo lugar.

– Brimsley – disse ela. – Eu sou a rainha. Tenho obrigações. Obrigações

oficiais. Não tenho?

– Sim, Vossa Majestade. Várias obrigações.

– Então, como pode ser que não haja nada na agenda de compromissos da

rainha?

Não ocorrera a Brimsley que a rainha não tivesse percebido a razão de os

seus dias estarem tão vazios.

– Vossa Majestade está de momento a gozar da privacidade dos primeiros

dias de casamento.
Carlota olhou-o fixamente.

– Estou em lua-de-mel – disse, por fim.

E pela primeira vez desde que pousara os olhos nela, Brimsley sentiu

pena da rainha.

– Sim, Vossa Majestade.

A semana seguinte foi uma sucessão de repetições.

A rainha levantava-se da cama.

Era vestida.

O cabelo dela era penteado.

Tomava o pequeno-almoço.

Olhava pela janela para o exterior.

Almoçava.

Lia um livro.

E assim sucessivamente. Sempre sozinha.

À exceção de Brimsley, cinco passos atrás dela, a toda a hora.

Ela estava infeliz, e ele não tinha a menor ideia do que fazer quanto a

isso.

Pensou em falar com Reynolds. A infelicidade da rainha era,

evidentemente, causada pelo rei, e ninguém conhecia o rei melhor do que

Reynolds.

Mas isso implicava admitir a Reynolds que estava a falhar no seu novo

cargo junto da rainha, e não havia nada pior.

Então, recebeu uma carta da princesa Augusta.


PALÁCIO DE ST. JAMES

SALA DE ESTAR DA PRINCESA AUGUSTA

...

NO MESMO DIA, MAIS TARDE

– Presumo que saiba por que razão o chamei aqui esta tarde – disse a

princesa Augusta.

Na verdade, Brimsley não sabia por que razão fora chamado. Sobretudo,

tendo em conta que Reynolds também ali estava, a par do conde Harcourt e

de lorde Bute, dois dos mais antigos conselheiros do rei.

Reynolds, com o seu cabelo louro reluzente, os seus olhos azuis

penetrantes e uma voz admiravelmente profunda. Reynolds, com o seu

metro e 80 de altura, pelo menos. Com uma aparência e um porte que

poderiam levar a confundi-lo com um duque. Brimsley detestaria aquele

homem se perdesse tempo a pensar nele.

Coisa que, claro, não fazia. Por que razão pensaria nele? Reynolds

trabalhava para o rei, e Brimsley, para a rainha; o único motivo para ele,

Brimsley, ter de visualizar o rosto absurdamente simétrico de Reynolds era

que o rei e a rainha tivessem assuntos a serem tratados em conjunto.

Ou quando ele e Reynolds tinham assuntos a serem tratados em conjunto,

coisa que às vezes tinham. Mais ou menos.

Brimsley não iria ao ponto de dizer que eram amigos, mas tinham alguns

interesses em comum. Assim sendo, encontravam-se por vezes na

companhia um do outro.

Por vezes.

Ocasionalmente.
Na verdade, só muito de vez em quando.

Certo era que nunca haviam sido convocados simultaneamente para um

encontro com a mãe do rei. Aquilo era francamente assustador. Brimsley

encontrava, contudo, alguma satisfação no facto de Reynolds também não

saber o que pensar daquela situação.

– Um relatório, por favor – pediu a rainha. – Quero saber do rei e da

rainha. Como se estão eles a dar?

Ah.

Ah.

Céus.

Brimsley engoliu desconfortavelmente em seco e mentiu com todos os

dentes que tinha na boca.

– Parecem muito satisfeitos.

Aquilo não pareceu bastar à princesa.

– Estava à espera de mais notícias do que apenas a aparência de

satisfação.

– O casal é maravilhoso – disse Reynolds com um dramatismo muito

pouco próprio dele. – O rei está encantado com a beleza dela.

– A sério? O rei Jorge está encantado? Assim tão depressa?

Brimsley quase revirou os olhos. Sabia que Reynolds estava a exagerar.

– Não me atreveria a definir as emoções do rei – pronunciou.

– Claro que não – acrescentou Reynolds rapidamente. – Apenas pretendi

dizer que me parece feliz.

– E que provas tens disso? – perguntou a princesa Augusta.


– Longas conversas – disse Brimsley.

– Conversas?

Brimsley anuiu com a cabeça.

– E caminhadas.

A rainha caminhava. Brimsley apenas deduzia que o rei também o faria.

– Riso – acrescentou Reynolds. – Há riso. Vê-los aquece-nos o coração.

A princesa Augusta pareceu inclinar-se para a frente sem, de facto, mover

um músculo.

– E quanto às relações deles?

Brimsley limitou-se a olhá-la fixamente. Por certo a princesa não se

estaria a referir a…

– Os laços matrimoniais – clarificou ela.

– Laços – repetiu Reynolds.

Brimsley lançou-lhe um olhar de relance. Reynolds parecia estar tão

horrorizado quanto ele, mas disfarçou rapidamente com um encolher de

ombros e uma expressão que parecia querer dizer Eu não sei de que é que

ela está a falar. Tu sabes de que é que ela está a falar?

Brimsley respondeu-lhe com uma expressão similar, Eu também não sei

de que é que ela está a falar. Talvez tenha alguma coisa que ver com flores.

Ou bolo.

Viraram-se para os três dignitários, todos com rostos igualmente

inexpressivos.

Lorde Bute bateu com a palma da mão no braço da sua cadeira.

– A princesa-viúva deseja confirmar se o casamento foi consumado.


Brimsley perguntou-se por quanto tempo mais conseguiria fazer-se de

estúpido.

– Sexualmente. – O conde Harcourt praticamente ladrou. Depois, ajustou

o seu plastrão. – Pergunta pelo bem do país, claro.

– Claro – disse Brimsley com a voz fraca.

– E então? – perguntou lorde Bute.

Brimsley olhou para Reynolds. Teria de ser ele a responder àquilo. A

culpa era do rei, afinal de contas. Toda a gente na Casa de Buckingham vira

o que acontecera na noite de núpcias. A rainha estava completamente

preparada para cumprir o seu dever e deitar-se com o rei. Fora ele quem

partira sem razão aparente.

Reynolds mostrou-se embaraçado.

– Certamente que sim – disse, finalmente, embora não soasse assim tão

certo aos ouvidos de Brimsley. – Quero dizer, daquilo que eu sei, diria que

sim.

– Daquilo que tu sabes? – disse a princesa Augusta.

– Eu não os acompanhei até ao interior do quarto, Vossa Alteza Real.

Brimsley ia-se engasgando a tentar conter o riso.

– Tens alguma coisa a dizer? – perguntou lorde Bute.

– Sim, Brimsley – disse Reynolds em tom de desafio –, tens alguma coisa

a dizer?

– Eu também não os acompanhei para o interior no quarto – balbuciou

Brimsley.

Reynolds rugiu.
A princesa Augusta lançou-lhes um olhar que dizia não estar acostumada

a lidar com idiotas, e depois perguntou:

– Então diriam que foi uma lua-de-mel bem-sucedida?

– De facto – disse Reynolds. – Concordas, Brimsley?

Brimsley obrigou-se a anuir com a cabeça.

– Muito bem-sucedida.

Os olhos da princesa estreitaram-se, e Brimsley sentiu voltar o seu

pesadelo – aquele em que o seu cadáver era pisado por um grupo de

trabalhadores italianos das vindimas. Só que, desta vez, havia também uma

cabra.

Mas eis que a princesa bate palmas e reluz.

– Isto é uma coisa boa! – exclamou. Olhou para os seus companheiros. –

Achamos que é uma coisa boa?

– Muito boa – disse lorde Bute.

– Excelente – acrescentou o conde Harcourt. – Verdadeiramente

excelente.

– Talvez tenhamos um herdeiro a caminho antes da próxima quinzena –

disse a princesa Augusta. – Não seria esplêndido?

– Sim, Vossa Alteza Real – disse Brimsley antes de perceber que a

princesa não se dirigia a ele.

Augusta fez um gesto em direção à porta.

– Podes ir.

Brimsley recuou um passo e depois outro, com Reynolds a imitá-lo.

Juntos, foram às arrecuas até à porta e, finalmente, escaparam para o


corredor.

– O que foi isto? – murmurou Reynolds.

Ao que Brimsley respondeu:

– Será que podemos ir parar à forca por causa disto?

Reynolds fitou-o.

– A sério? É isso que te preocupa?

– A ti não?

– És tão egoísta – disse Reynolds.

Demonstrava aquele seu jeito característico, como se estivesse sempre a

falar de cima para Brimsley, e não apenas por ser 30 centímetros mais alto.

– Acabámos de mentir à princesa Augusta – ciciou Brimsley. – Ela vai

perceber que algo está errado quando não existir promessa de um bebé na

próxima quinzena.

– Bem, eu não sei que poderemos nós fazer quanto a isso.

– Não há cá nós nem meio nós – disse Brimsley. – Só tu. Tu tens de

convencer o rei a convocá-la.

– Não posso.

Alguma coisa perpassou o olhar de Reynolds com tal fugacidade que

Brimsley mal se apercebeu. Sofrimento. Preocupação, talvez.

Acorreu à memória de Brimsley a imagem daquele homem no hall

exterior da capela real. Aquele que esbofeteara o rei.

Escolheu as suas palavras com extremo cuidado.

– Há alguma coisa acerca do rei que eu deva saber?

– Apenas que é o teu rei.


– Mas a rainha…

– A rainha chegou à posição mais elevada do país, se não do mundo. Não

pode, com certeza, ter preocupações de espécie alguma.

Brimsley estava prestes a rosnar.

– Reynolds…

– Tenho de ir – disse Reynolds subitamente. – Não gosto de deixar o rei

sem supervisão por muito tempo.

– Que poderia acontecer-lhe? – troçou Brimsley.

O rosto de Reynolds escureceu. Depois, ele foi-se embora.

CASA DE BUCKINGHAM

SALA DE JANTAR

...

12 DE SETEMBRO DE 1761

Brimsley ainda tinha aquela conversa às voltas na cabeça no dia seguinte,

quando observava a rainha a tomar a sua refeição da noite. Carlota estava

sentada ao fundo da mesa, como sempre, resplandecente num vestido

dourado de gola redonda.

Uma mesa para 20 pessoas posta para apenas uma.

Não havia muito mais para ele fazer enquanto a rainha comia. Havia seis

criados a servi-la. No instante em que acabou de comer a sopa (nessa noite,

caldo de galinha), o Criado Número Um assomou-lhe à direita com uma

pequena terrina, perguntando-lhe se desejava mais uma dose. O Criado

Número Dois mostrou-se-lhe pela esquerda para levar a taça, caso não

quisesse repetir.
– James – murmurou Brimsley ao Criado Número Três.

Chamavam James a todos. Era mais fácil assim.

James virou-se muito ligeiramente, apenas o suficiente para indicar tê-lo

ouvido.

– Ela parece-te bem hoje? – murmurou Brimsley.

– A rainha?

Brimsley teria rosnado se lhe fosse permitido fazer barulho. Claro que

era a rainha. Era a única ela na sala.

Tudo o que fez, no entanto, foi acenar com a cabeça. Era perigoso

antagonizar um James. Eles tendiam a manter-se unidos. E eram todos

bastante atléticos.

O criado limitou-se a encolher os ombros. Inútil. Brimsley inclinou-se

um pouco para a esquerda, procurando ver melhor a rainha Carlota. Ela

parecera-lhe desassossegada ao chegar ali, embora ele não conseguisse

explicar porque achava isso. Talvez fosse apenas por ele estar

desassossegado.

Ainda estava bastante preocupado com a conversa com a princesa

Augusta. Isto, se «bastante preocupado» significasse aterrorizado ao ponto

de o seu aparelho digestivo não funcionar há um dia inteiro.

Era certo que, eventualmente, a princesa se aperceberia de que o rei e a

rainha viviam em casas separadas. Era um autêntico milagre que ninguém

ainda a tivesse informado disso.

Ou será que já estaria informada?

Sentiu um refluxo ácido subir-lhe pela garganta.


Talvez a princesa estivesse apenas a manipulá-los. Talvez ela já soubesse

que o casamento real já apodrecera. Talvez a única razão para não ter ainda

despedido Brimsley fosse estar a ponderar algo pior.

Ainda levariam pessoas ao garrote?

Ou, e se – Deus nos livre – ela o despromovesse? Podia mandá-lo para os

estábulos. Bem poderia esquecer o seu lugar à cabeça da mesa. Nem o

deixariam entrar na cozinha com o fedor aos estábulos colado a ele.

E os olhares que receberia. Nem sequer seriam de pena. Apenas desdém.

Talvez fosse preferível o garrote. Ele poderia…

– Brimsley.

Voltou à realidade num salto. A rainha pousara os talheres, mas ainda

estava a comer a sopa. Não estava sequer perto do fim da refeição.

Aproximou-se rapidamente dela.

– Sim, Vossa Majestade?

– Prepara a carruagem.

Pestanejou. Aquilo era muito bizarro. Mas se era o que ela queria…

– Com certeza, Vossa Majestade. – Dirigiu-se à porta, mas depois parou

para perguntar: – Posso saber qual o nosso destino?

– Vamos visitar o meu marido.

Oh.

Oh.

Oh, Deuses.

PALÁCIO DE KEW

LONDRES
...

NA MESMA NOITE, MAIS TARDE

– Onde está ele?

Brimsley corria para conseguir acompanhar a rainha Carlota. Nunca a

vira mexer-se tão depressa. Mal ele abrira a porta da carruagem, já ela tinha

os pés assentes no chão e avançava ao longo da entrada, com a capa de um

roxo profundo a serpentear atrás dela.

Uma pequena flotilha de criados acorreu à porta do palácio, incluindo

Reynolds, que, verdade seja dita, não ostentava a sua habitualmente

imperturbável aparência.

– Que fizeste agora? – perguntou Reynolds.

– Ah, a culpa disto é minha? – atirou Brimsley em resposta.

– Tu! – disse a rainha imperiosamente, apontando para Reynolds.

Ele apressou-se a curvar-se numa vénia.

– Vossa Majestade, não a esperávamos.

– Onde está ele? – perguntou Carlota.

– No observatório, Vossa Majestade.

A rainha olhou Reynolds de cima. Brimsley adorou.

– É por ali, Vossa Majestade.

Carlota avançou na direção correta e Brimsley assumiu a posição dele,

cinco passos atrás dela.

Mas então a rainha ergueu uma mão.

– Espera aqui.

Pela primeira vez, Brimsley permitiu-lhe que saísse do seu raio de visão.
– Achas que ele se zangará com ela? – perguntou a Reynolds.

– De certeza – respondeu Reynolds, ainda a olhar na direção da rainha. –

Mas ela está a fazer-lhe frente. Talvez isto seja uma coisa boa.

– Talvez – repetiu Brimsley, sem grande certeza. – Talvez seja uma coisa

má.

Reynolds aclarou a garganta.

– Queres entrar enquanto esperamos para saber qual delas será?

– Se será uma coisa boa ou má? – perguntou Brimsley.

Estavam lado a lado, ambos olhando em frente. Brimsley deitou um olhar

a Reynolds, movendo apenas os olhos. Não queria parecer demasiado

ansioso.

Reynolds emitiu um leve murmúrio de assentimento.

– Devias entrar e aquecer-te. Está uma noite fria.

Brimsley sentiu um frisson de entusiasmo. Seria mais agradável estar lá

dentro com Reynolds.

– Agradeço-lhe, senhor – disse, permitindo-se ondear a voz com um tom

galanteador. – É muito gentil e generoso da sua parte.

Reynolds entrou, claramente esperando que Brimsley o seguisse, coisa

que ele fez. Já haviam passado por aquela situação antes – não com tanta

frequência com que ambos gostariam, mas a suficiente para Brimsley

conhecer o caminho.

Reynolds era pomposo ao exagero, mas os beijos dele eram um sonho.

– Tenho sempre inveja de o camareiro do rei ter aposentos muito

melhores do que o camareiro da rainha – disse Brimsley quando chegaram


ao quarto de Reynolds.

– Como seria de esperar – respondeu Reynolds. – Eu sou mais importante

do que tu.

Brimsley decidiu ignorar o comentário, em parte porque já encostara

Reynolds a uma parede, e em parte porque era verdade.

Mas ainda havia muito de que falar.

– Temos um problema – disse Brimsley, dedicando-se às calças de

montar de Reynolds. Os momentos deles eram sempre fugazes; tinham de

ser rápidos.

– Seguramente.

– Vamos falar sobre isso?

Reynolds puxou a camisa de Brimsley até lha tirar pela cabeça.

– Recebeste mais uma carta da princesa?

Brimsley anuiu com a cabeça e depois arqueou o pescoço para lhe dar

melhor acesso. Àquela hora da noite, Reynolds já mostrava a quantidade

certa de barba nascente para deixar a pele de Brimsley a tremer de deleite.

– O palácio pede um relatório. – Arrancou as calças a Reynolds e puxou-

o para a cama. – Que lhes vais dizer?

– Eu? – Reynolds dedicou-se às calças de montar de Brimsley. – Por que

razão devo ser eu a dizer-lhes seja o que for?

Brimsley deitou-se em cima dele e beijou-o com urgência.

– Foi o rei que se recusou a consumar o casamento.

Foi divinal até Reynolds se afastar e dizer:

– Ela podia tê-lo seduzido.


– Ela é uma senhora. Pura e educada como deve ser.

– Está bem – disse Reynolds, enrolando os dedos à volta do membro de

Brimsley. Sorriu com malícia e apertou-os. – Ainda assim, ela podia ter-lhe

mostrado um tornozelo, ou…

Brimsley apertou-o para ficarem pele com pele. Estava ereto, e Reynolds

estava ereto, e havia já semanas desde a última vez que tinham conseguido

estar sozinhos. Estava sequioso do toque daquele homem e, agora que o

tinha, queria aproximar-se mais e mais dele. Ainda assim, mesmo naqueles

poucos momentos de paixão, tinha de defender a sua rainha.

– Ela pediu-lhe que ficasse. – Brimsley beijou-o. – Ele exigiu regressar

aqui, a Kew. – Outro beijo. – Sem ela. Tal como sabes.

Reynolds rebolou para ficar ele por cima.

– Dizes isso com um certo tom acusatório.

Brimsley rebolou, invertendo as posições.

– Podias ter feito alguma coisa.

– Eu não tenho controlo sobre ele.

– Tu serve-lo. Conhece-lo. Ele tem algum problema? Alguma

deformação? – Brimsley mal conseguia enunciar a pergunta. – Há alguma

coisa de errado com as… partes dele?

Reynolds sentou-se.

– Isso é inaceitável.

– Estou só a perguntar. Temos um problema.

Reynolds soltou um grunhido, como se não pudesse acreditar que teria de

se rebaixar a tais informações.


– Acredito que esteja tudo bem com as partes do rei. Pelo que já vi, ele

tem partes grandes e saudáveis. Sem deformações.

– Então... Ela é uma beldade. Uma joia sem comparação. – Brimsley fez

uma pausa, consciente de que teria de falar com grande cautela. – Mas

talvez não lhe pareça bela a ele. Não será o tipo dele?

Reynolds olhou-o, confuso.

– Eu não me acho capaz de definir o estilo dele.

Brimsley lançou um olhar para os pénis deles, ambos ligeiramente

desintumescidos. O que era compreensível, dada a conversa.

– Feminino. O estilo dele é garantidamente feminino. Mais do que isso,

nunca prestei atenção.

– Bem. – Brimsley ponderou. – Talvez apenas precisem de passar tempo

juntos. Como estão a fazer agora.

Reynolds anuiu lentamente com a cabeça, e depois deslizou os nós dos

dedos pelo peito de Brimsley. Descendo, e descendo mais ainda, até

finalmente lhe agarrar o sexo.

– Achas que eles são capazes de passar agora 15 minutos juntos?

Brimsley tocou nos lábios de Reynolds com um dedo.

– Esperemos que sejam 20.


Jorge

PALÁCIO DE KEW

OBSERVATÓRIO

...

DEZ MINUTOS MAIS TARDE

Ela viera a Kew.

Disso ele não estava à espera.

Jorge tinha feito a coisa certa, honrada. Cumprira a sua obrigação perante

o seu país e a sua coroa e casara com a princesa alemã. Depois, deixara-a

em paz.

Ninguém parecia reconhecer o sacrifício que aquilo representara. Estava

perdido pela sua recente noiva. Talvez aquilo não passasse de uma

paixoneta, mas ele não conseguia pensar noutra coisa que não Carlota. Na

beleza dela, na argúcia dela, na forma como ela parecia acender-se na

memória dele. Nos dias que haviam passado desde o casamento, Jorge

mantivera os olhos colados ao telescópio, pois, por vezes, quando estava a

olhar para os céus, tentando calcular órbitas e distâncias, conseguia

esquecer-se de que tinha uma esposa.

Tinha medo. Não conseguia compreender a sua mente, não descortinava

porque é que às vezes os seus pensamentos aceleravam e outras vezes não.

Ele vira o olhar de terror nos olhos da mãe quando começava a ter

espasmos. Quando as palavras jorravam da sua boca, com correntes de


nomes e verbos que faziam sentido na sua cabeça mas em mais lado

nenhum.

Certa vez, pedira a Reynolds para tomar notas, para manter um registo

dos seus discursos erráticos, para ele poder tentar decifrá-los quando

estivesse com a cabeça mais no lugar. Era terrível. Não podia deixar que

Carlota ouvisse quando estava naquele estado.

Tinha de protegê-la daquilo.

Tinha de se proteger da repulsa dela.

Já os céus eram seguros. O Sol e as estrelas e os planetas. Meteoros e

luas. Não poderia feri-los. E eles nunca o olhariam com vergonha.

Assim, Jorge enclausurara-se no seu observatório no palácio de Kew,

onde passava as horas na companhia do seu gigantesco telescópio

gregoriano. Era uma obra-prima, desenhada pelo próprio James Short, sem

rival senão aquele que o rei francês encomendara recentemente a monges

beneditinos em Paris.

Haviam-lhe dito que Carlota estava a instalar-se na casa de Buckingham.

Pedira a alguns criados de sua confiança para a manterem debaixo de olho, e

estes haviam-lhe relatado que os dias dela eram pacíficos. A rainha parecia

gostar de ler e olhar pelas janelas.

Isso parecia normal.

Então, porque tinha ela de repente vindo a Kew?

Escutava. Conseguia ouvir passos a aproximarem-se. Apenas um

conjunto de passos. Estava sozinha, portanto.

Sacudiu as migalhas do jantar da sua camisa. Estaria apresentável? Não

se parecia lá muito com um rei. Estava já no observatório há dias, tendo


mesmo optado por dormir num catre ali a um canto. Os pratos da sua

refeição da noite ainda não tinham sido recolhidos da mesa. Não houvera

tempo. Reynolds subira as escadas a correr há poucos minutos para lhe dizer

que a carruagem da rainha fora avistada na ponte.

Voltou para o telescópio e encostou o olho ao engenho. Não queria dar a

ideia de estar à espera dela.

Ficou quieto. Os passos aproximaram-se ainda mais.

Por fim, a voz dela.

– Que sítio é este? – perguntou ela.

Jorge recuou, procurando fingir que não estivera a escutá-la.

– Carlota. Oh. Olá. Estás aqui.

Os lábios dela mexeram-se, mas não exatamente para formar um sorriso.

– Estou aqui.

– Isto é o meu observatório – disse ele, movendo o braço em seu redor. –

É aqui que eu olho para as estrelas. – Estaria ela interessada em tal coisa?

Ele esperava que sim. – Esta noite está perfeitamente límpida – prosseguiu,

chamando-a até ao telescópio com um gesto. – Conseguimos ver as

constelações. E eu acho que até estou a vislumbrar um planeta. Anda. Vê.

Carlota deitou um olhar na direção dele, com o sobrolho ligeiramente

franzido, enquanto observava o espaço.

– Não repares na confusão – disse Jorge, juntando várias pilhas de papel

numa só. – Não sabia que cá vinhas.

– Ou terias arrumado?

– Provavelmente, não – admitiu.


Olhou para ela enquanto ela tirava as medidas à sala. Era estranho tê-la

ali, e isso deixava-o tenso. Não gostava de ter outras pessoas no seu

observatório; era um dos poucos lugares em que ele podia estar

verdadeiramente sozinho. Nem sequer permitia aos criados que ali

entrassem. Exceto Reynolds, claro. Alguém tinha de trazer os pratos e levá-

los de volta. E Reynolds sabia quando não devia falar. Mais importante

ainda, Reynolds sabia quando ouvir. Porque, às vezes, Jorge só precisava de

que alguém o ouvisse.

Carlota deambulou até à parede do fundo, onde ele pendurara vários

desenhos. Um deles era um projeto de um novo tipo de telescópio. Outro era

um mapa de constelações mais a sul.

– É isto que tens estado a fazer? – perguntou Carlota subitamente.

Jorge pestanejou.

– Perdão?

– Desde o casamento – gesticulou na direção do mapa na parede, e depois

na direção do telescópio. – É nisto que tens passado o teu tempo desde o

casamento?

Jorge animou-se. Aquela era uma pergunta a que ele conseguia responder.

– Sim. É muito entusiasmante. Há um alinhamento…

– Nesta sala – disse Carlota, e a sua voz pareceu endurecer. – Tens estado

este tempo todo nesta sala.

– Observatório – corrigiu ele. – Mas sim. Gostarias de olhar pelo

telescópio? O céu está espantosamente limpo esta noite, como disse, e eu

tenho quase a certeza de ter encontrado Vénus. Aliás, tenho a certeza


absoluta de que encontrei Vénus, mas terei de verificar através dos meus

mapas. É o método da ciência, sabes. Devemos registar, devemos verificar.

Carlota não disse nada, e ele sentiu-se na obrigação de preencher o

silêncio, logo, fez um gesto na direção do mapa para o qual ela tinha estado

a olhar.

– Não é esse. Esse é para o hemisfério sul. Sabias que os céus austrais

não são iguais aos nossos? Veem-se constelações completamente diferentes.

Gostava de lá ir, mas duvido que alguma vez tenha oportunidade para tal.

Demasiado que fazer aqui.

Olhou para ela, esperançoso. Não previra que ela pudesse interessar-se

pela astronomia.

Mas Carlota limitava-se a abanar a cabeça.

– Que fiz eu de errado? – perguntou ela.

– Desculpa?

– Que erro cometi eu?

– Não cometeste nenhum erro.

Não lhe tinha ocorrido que ela pudesse achar que a separação era culpa

dela. Mas não sabia como corrigir esse mal-entendido sem revelar as suas

próprias deficiências.

– Disse algo que te tenha ofendido? – perguntou-lhe Carlota.

– Não.

Claro que não. Ela era perfeita. Era esse o problema.

– Fiz algo que te tenha ofendido? – perguntou ela.

– Não. Claro que não.


– Então, o que é que se passa? – gritou. – O que é que se passa de errado

comigo?

– Não se passa nada de errado contigo – disse Jorge, simplesmente.

Ela era o seu cometa, a sua estrela cadente. Ela cintilava como os céus, e

quando sorria parecia-lhe como equações matemáticas a deslizaram para o

espaço. O mundo em equilíbrio, cada lado perfeitamente nivelado.

Ela era tudo o que significava beleza, e tudo o que brilhava, e ele…

Ele não estava bem.

Ele não estava perfeitamente bem. Se tivesse um dos seus ataques à frente

dela, se ela o visse no seu pior…

Não saberia como suportar tal coisa.

Mas como se explica algo assim? Não se pode, claro. Então, repetiu as

suas palavras anteriores e esperou que fosse o suficiente.

– Não se passa nada de errado contigo, Carlota.

– Alguma coisa se passará, ou não me terias descartado tão facilmente.

Jorge não sabia como lhe falar. Poderiam as emoções exaltadas dela

espoletar as dele? Tinha de se manter calmo. Essa era a coisa mais

importante que aprendera com o doutor Monro. Como é que ele costumava

dizer? Jorge tinha de aprender a governar-se a si próprio. Como poderia ele

governar um país se não se conseguisse governar a si próprio?

Respirou fundo. Carlota era imprevisível. Inconstante. Abandonara os

seus aposentos de lua-de-mel na casa de Buckingham contra todos os bons

costumes e o decoro, já para não mencionar a ordem direta dele. Entrara por

ali adentro, pelo observatório dele, o seu santuário privado, sem se fazer

anunciar.
Quem é que fazia aquilo? Que tipo de mulher era ela?

– Porque é que me odeias? – perguntou-lhe Carlota.

– Eu não te… – Jorge murmurou uma praga. Estava a perder o controlo

da conversa. Isso não era aceitável. – Não sejas irrazoável.

– Jorge, eu pensava que tu estavas nalgum bordel!

Jorge recuou, incrédulo.

– Sabes sequer o que essa palavra significa?

– Eu sei o que é um bordel – disse Carlota, irada. – Mais ou menos.

Tenho irmãos. Mas isso não é importante. O que estou a dizer é que quase

preferia que estivesses num bordel.

– Não creio que preferisses – disse Jorge.

– Compreenderia melhor se assim fosse – disse Carlota, revirando os

olhos de frustração. – Mas isto… Preferes mesmo as estrelas à minha

companhia?

– Eu não disse que prefiro…

– Tens estado nesta sala…

– Observatório – disse ele mais uma vez. – O único do género em toda a

Inglaterra. – Sorriu, desafiador. – Posso mostrar-to, se quiseres. O

telescópio, em particular, é uma obra-prima.

Carlota fitou-o e, por amor a tudo quando houvesse de sagrado, ele não

conseguia sequer imaginar que estaria ela a pensar.

– Deixa ver se eu percebi – disse. – Tens estado neste observatório, que é

único, a comer e a dormir e a olhar para o céu e a sentires-te

entusiasmadíssimo com as constelações desde a noite do nosso casamento,


enquanto eu tenho estado encafuada naquela casa abafada, com gente a

trocar a minha roupa três vezes por dia, como se eu fosse uma boneca, sem

nenhum sítio onde ir, ninguém com quem falar, e nada para fazer.

– Tu és a rainha – disse Jorge com honestidade. – Podes fazer o que

quiseres.

– Menos estar com o meu marido.

– Vá lá, Carlota…

– Deixa de ser condescendente comigo!

– Eu não percebo de que é que te queixas.

– Tenho 17 anos, e de repente sou rainha.

Jorge deu por si a recuar enquanto Carlota falava. Não que tencionasse

fazê-lo. Nem que o quisesse. Mas começava a sentir a sua cabeça a ficar

irritada. Lançavam-se palavras pelo seu cérebro, como dados, e era muito a

custo que estava a conseguir não começar girar repetidamente a cabeça para

o lado esquerdo.

– Estou num país estranho – disse Carlota. – Com comida estranha. E

hábitos estranhos.

– Podemos pedir aos cozinheiros que preparem comida que te seja

familiar – sugeriu Jorge. – Schnitzel? Strudel? Certamente serão capazes de

aprender.

– Não é por causa da comida – disparou ela, mesmo tendo dito pouco

antes que era por causa da comida. – Tu não percebes porque foi para ser

isto que nasceste. Dizes que eu posso fazer o que quiser, mas não posso. A

rainha não pode ir à modista ou às lojas ou às geladarias. Não posso fazer


amigos. Devo manter-me afastada. Não conheço uma única pessoa aqui. A

não ser tu, e tu não queres estar comigo.

Ele não podia estar com ela. Era diferente.

– Estou completamente sozinha – disse, com a voz a minguar. – E tu

preferes o céu a mim.

Jorge não disse nada. Ficou apenas a olhar para ela. Queria que ela fosse

feliz. Que se sentisse em casa. Não conseguia ela ver que ele estava a tentar?

– Diz alguma coisa! – implorou ela.

Jorge abanou a cabeça.

– Não quero discutir contigo.

– Eu quero discutir contigo! – gritou ela. – Qualquer coisa seria melhor

do que esta… esta negligência. Este desinteresse. Não suporto isto.

Jorge permanecia quieto. Uma estátua. Era a única maneira.

– Discute comigo – implorou Carlota. – Por favor.

Ele não se mexeu. Se se conseguisse manter imóvel, talvez sobrevivesse

àquela noite sem ter um episódio. Ou, no mínimo, conseguiria adiá-lo até

ela se ter ido embora.

Vénus, Trânsito de Vénus…

Agora não. Não podia perder agora o controlo.

Vénus, Vénus, Marte, Júpiter…

– Luta por mim, Jorge – murmurou Carlota.

Jorge não queria magoá-la.

Nem sequer mexeu a cabeça. Limitou-se a virar-se para o telescópio e

dizer:
– Vai para casa, Carlota.

Jorge encostou o olho ao óculo e levou os dedos ao botão de focagem,

apesar de já estar regulado exatamente como ele queria. Tinha de fingir que

estava ocupado. Ela ir-se-ia embora. Não veria a expressão no rosto dele.

Mas ela não arredou dali, não tão depressa quanto ele esperava. Foi

obrigado a permanecer naquela posição, de olho encostado ao telescópio, a

fingir que não estava dolorosamente consciente da presença dela.

Estaria ela a observá-lo? A julgá-lo?

Olhou para as estrelas. Localizou Vénus.

Rezou para que ela se fosse.

Finalmente, foi-se.

PALÁCIO DE KEW

OBSERVATÓRIO

...

NA MANHÃ SEGUINTE

– Vossa Majestade – disse Reynolds. – Chegou o doutor Monro.

– Manda-o entrar.

Jorge mexia nos papéis enquanto se levantava. Não gostava de receber

pessoas no observatório. O médico seria a sua segunda visita no mesmo

número de dias, mas eram tempos desesperados.

– Obrigado por ter vindo tão depressa – disse Jorge assim que Reynolds

encaminhou o médico até ele.

– Com certeza, Vossa Majestade. – O doutor Monro lançou vários olhares

de admiração ao equipamento do observatório. – Uma coleção científica


deveras impressionante. Não sei se haverá outra assim em Inglaterra.

Jorge ofereceu-lhe um sorriso autodepreciativo.

– Há algumas vantagens em ser-se monarca. Uma deles é conseguirem-se

as melhores coisas.

Mas, por uma vez na vida, Jorge não queria falar da sua mesa filosofal ou

do seu microscópio. Respirou fundo. Não gostava de pedir ajuda. Mas sabia

que tinha de ser.

– Monro, eu, hã… eu preciso da sua ajuda.

– Claro. Estou aqui perto para que Vossa Majestade conte comigo sempre

que sentir um ataque a aproximar-se.

– Acontece que isso não é suficiente.

Jorge passou a mão pelos cabelos. A mãe estava sempre a dizer-lhe que

aquele hábito não era digo de um rei, mas, naquele momento, não estava

nada preocupado com isso.

– Veja, eu já aprendi uma coisa ou duas sobre ciência, e uma das coisas

que aprendi foi o seguinte: os cientistas guardam para si o melhor. Estou

certo, Monro?

– Não sei se compreendo o que quer dizer, Vossa Majestade.

– Pode levar anos até que o público fique ao corrente das últimas

descobertas. E eu compreendo isso, há boas razões para tal cautela. Imagine

que um médico é chamado para tratar um rei.

– Estamos a falar hipoteticamente? – sussurrou Monro.

Jorge estava disposto a jogar aquele jogo. Por enquanto.


– Claro – concedeu. – Trata-se de um mero exemplo. Esse médico, que

anda a tratar o rei, não pode correr o risco de falhar, nem de, Deus nos livre,

fazer mal ao seu soberano. Assim, empregará apenas os tratamentos mais

seguros e comprovados. Fará segredo dos mais inovadores métodos até que

esses estejam comprovados além de qualquer dúvida.

Jorge brinca com a magnetite da sua mesa filosofal antes de erguer o

olhar até aos olhos do médico.

– Compreende-me agora, Monro?

O médico anuiu lentamente com a cabeça.

– Acho que começo a compreender.

– Não basta curar os ataques após eles se desencadearem. Se a rainha

alguma vez me visse… naquele estado, eu não seria capaz de… – Não

conseguia imaginar tal coisa. Não se permitia.

– Devo depreender que a rainha desconhece a sua condição? – perguntou

o médico.

– Desconhece, sim.

Jorge sentiu uma necessidade súbita de pegar num dos instrumentos. Era-

lhe difícil ficar quieto, mas tinha de conseguir que o médico percebesse

quão seriamente falava.

– Se, Deus nos livre, eu a magoasse… Certamente haverá alguma coisa

que possa fazer, não? Algo que ponha fim aos ataques antes que comecem.

E depois disse palavras com as quais nunca se atrevera a sonhar.

– Para sempre?

Monro ponderou durante um momento no pedido.


– Eu tenho conduzido experiências um pouco mais… proativas.

– Por favor. Eu quero ficar bom.

– Precisaria de instalações no palácio. Acesso ilimitado a Vossa

Majestade. A qualquer hora. E autorização para tomar medidas bastante

mais – aclarou a garganta – extremas.

– Tudo o que quiser – disse Jorge com avidez. – Tudo o que tiver de fazer.

Temos ao nosso dispor o tempo e a privacidade da minha lua-de-mel.

Monro olhou em redor da sala.

– É isto a sua lua-de-mel?

– Percebe o meu problema. Não me atrevo a estar com a minha noiva.

Não posso arriscar que ela me veja quando não estou bem.

Enquanto dizia aquelas palavras, no entanto, Jorge perguntava-se se não

seria ele uma fraude. E se aquilo fosse quem ele era? E se o homem que

mergulhava num discurso sem sentido, que perdia horas do seu tempo em

ataques e convulsões de que não se lembrava no dia seguinte… E se fosse

isso o homem verdadeiro?

Talvez isto fosse a miragem. Jorge, o agricultor, Jorge, o cientista. O

homem que queria amar a sua esposa. E se fosse ele o falso rei?

– Eu estou pronto, doutor Monro – disse. Estava na altura de descobrir a

verdade.

– Podemos começar hoje – sugeriu Monro.

– Excelente. De que precisa?

– Hum… de nada, para já. Iremos simplesmente conversar. Mas terei de

montar um laboratório aqui. Pode providenciar-me homens para

transportarem o meu equipamento para Kew?


– Imediatamente – disse Jorge.

– E um banho de gelo para mais logo.

– Deseja tomar um banho de gelo? – Jorge não conseguia imaginar muita

coisa menos agradável que isso, mas se o médico gostava da sua água fria…

– Vossa Majestade tomará um banho de gelo, não eu. – Monro olhou-o

com firmeza. – Para eu o tratar, não poderá ser o meu rei. Terá de fazer o

que eu disser, quando eu o disser. Compreende?

– Sim – murmurou Jorge.

Porque queria ficar bom. E, pela primeira vez em meses, sentiu um laivo

de otimismo. Sabia-lhe bem ter tomado uma decisão, ter finalmente tomado

as rédeas do seu próprio tratamento, mesmo que fosse para passar as rédeas

para outras mãos.

– Podemos começar já? – perguntou.

Monro pestanejou, surpreendido.

– Sim – disse, com uma expressão de satisfação, ou até deleite, a

espalhar-se-lhe no rosto. – Sim, podemos. Sente-se. – Apontou para uma

cadeira de madeira de costas direitas. – Pode ser ali.

Jorge seguiu as instruções do médico e sentou-se.

– Não se mexa enquanto eu estiver a falar consigo – disse Monro.

Jorge anuiu quase impercetivelmente com a cabeça.

– O seu problema é evidente. É rei.

Jorge queria voltar a acenar com a cabeça, mas não o fez. Estava

determinado a seguir as ordens do médico.

– Nessa condição, está habituado à obediência de outros.


Jorge observava enquanto o médico começava a caminhar lentamente de

um lado para o outro. Três passos numa direção, três passos na oposta.

– Nunca aprendeu a obedecer.

Jorge perguntou-se se seria isso verdade. Muito provavelmente, era, sim.

– Acima de tudo, nunca aprendeu a submeter-se. A sua mente é uma área

aberta, indisciplinada. Sem limites, põe à prova os limites da razão. É essa a

origem dos seus ataques. Compreende?

Jorge não respondeu. Não sabia se devia ou não fazê-lo.

Monro parou abruptamente e aproximou o rosto do de Jorge.

– Compreende? – rugiu.

Jorge sobressaltou-se.

– Sim – disse. – Sim. Compreendo.

– Vossa Majestade! – Reynolds entrou a deslizar pela sala. – Que se

passa? Está bem?

– Precisamos de privacidade – disse Monro. Mal olhou para Reynolds. –

Estás dispensado.

Reynolds olhou para Jorge. Era evidente que não sairia dali sem a

confirmação do seu rei. Jorge engoliu em seco e acenou com a cabeça.

Tinha de fazer aquilo. Era a sua única hipótese.

Reynolds não parecia agradado, mas dirigiu-se para a porta.

– Espera! – ladrou Monro.

Reynolds virou-se.

– Senhor?

– O meu paciente precisa de uma mudança na sua alimentação.


– Refere-se ao rei?

A voz de Reynolds estava afiada pela insolência. Jorge não pôde evitar

sentir-se gratificado com aquilo.

– Refiro-me ao meu paciente. É isso que ele será nos próximos tempos.

Por favor, instrua as cozinhas para substituírem a sua refeição matinal por

papas de aveia.

– Papas de aveia, senhor? – disse Reynolds.

– Pouco espessas.

– Nem às copeiras damos isso a comer nesta casa, senhor.

Monro não se deu ao trabalho de responder.

– Quer dar mingau de comer ao rei – declarou Reynolds, com

incredulidade estampada no rosto.

Jorge comprimiu os lábios para conter um sorriso. Reynolds era leal. Um

amigo, até. Aquecia-lhe o coração.

Mas ele precisava da ajuda de Monro, logo, virou-se para Reynolds e

disse:

– Por favor, faz o que o médico ordena. É um novo tratamento, muito

promissor.

– Vossa Majestade.

Reynolds não estava, claramente, convencido.

– Eu tenho a certeza, Reynolds – disse Jorge. – Vai.

PALÁCIO DE KEW

OBSERVATÓRIO

...
14 DE SETEMBRO DE 1761

No dia seguinte, Jorge já tinha um pouco menos de certeza. Mas ainda

estava determinado a levar aquilo avante. O doutor Monro montara um

laboratório na cave de Kew e transferira os tratamentos de Jorge para aquele

piso lúgubre.

Jorge podia ter-se identificado um pouco com o espaço – tratava-se,

afinal, de um lugar de ciência, com mapas anatómicos nas paredes e

prateleiras repletas de livros e frascos. Mas tudo aquilo que conseguia sentir

era pavor. Ao contrário do seu observatório celestial, aquele lugar era escuro

e subterrâneo. Os archotes bruxuleantes lançavam sombras sinistras, mas,

pior do que tudo, Monro trouxera para ali gaiolas cheias de animais. Ratos,

sobretudo. Um ou dois coelhos. Até alguns cães.

Os animais não tinham muito bom aspeto.

– Isto é a cura – dissera o médico, dirigindo Jorge para uma cadeira de

costas direitas que fora aferrolhada ao chão. – Submissão. Como já lhe

disse. Se não se conseguir governar a si mesmo, não terá condições de

governar outros.

Jorge olhou a cadeira horrorizado. Era de construção simples, feita de

madeira e ferro, mas tinha alavancas e botões sinistros, e que seriam aquelas

correias que saíam do descanso da cabeça? Por certo não serviriam para lhe

serem presas à volta do rosto, não?

– Prendam-no – disse Monro aos assistentes.

Jorge tentou controlar a respiração enquanto lhe prendiam correias de

couro à volta dos pulsos e dos tornozelos.

Isto é necessário, dizia para si mesmo. Isto está certo.


Governa-te. Controla-te.

Mas o seu coração acelerara e a respiração entrava e saía dele em

golfadas mais rápidas e pesadas. Estava assustado. Aquilo era necessário, e

estava certo, mas ele estava assustado. Devia ser normal. Tinha de ser.

– Até estar capaz de se governar a si mesmo – disse Monro –, eu governá-

lo-ei. Compreende?

Jorge anuiu com a cabeça e começou a pronunciar a palavra «sim», mas

um dos assistentes de Monro enfiou-lhe uma mordaça na boca.

– Compreende-me, rapaz? – rugiu Monro.

Jorge acenou freneticamente com a cabeça.

– Estou-me nas tintas para quem era o seu pai, quantos títulos tem, ou se

é o representante de Deus na Terra. Aqui, é apenas mais um animal numa

gaiola. E, tal como a um animal, eu vou domá-lo.

Jorge fechou os olhos assim que os assistentes de Monro prenderam outra

correia de pele bem justa em volta da sua testa. Estava pronto para ser

domado.
Agatha

CASA DE BUCKINGHAM

SALA DE ESTAR DA RAINHA

...

14 DE SETEMBRO DE 1761

E agora estava a tomar chá com a rainha. Escapava à compreensão de

Agatha como chegara ela àquele momento.

Claro que ela compreendia. A rainha tinha a pele escura e o palácio

queria garantir que ela se sentia bem-vinda e em casa. Logo, haviam

decidido que outros de pele escura poderiam finalmente ser considerados

companhia apropriada. Mas Agatha não compreendia como a antiga

princesa Sofia Carlota de Mecklenburg-Strelitz fora selecionada para ser

rainha.

Circulavam rumores de que a «velha» elite, como a nobreza de pele clara

agora se intitulava, ainda se perguntava se o casamento poderia ser anulado

e uma nova rainha encontrada entre eles. Muitos, se não a maioria, ainda se

recusavam a aceitar os recentemente promovidos a seus pares. Vários novos

lordes, incluindo lorde Danbury, haviam tentado tornar-se sócios do White.

Ficaram todos à porta.

Agatha não podia deixar de suspeitar que o palácio não previra a cor da

pele de Carlota. Porque, se assim fosse, teria emitido convites de casamento

aos londrinos de pele escura mais importantes com um pouco mais de

antecedência. Não que se queixasse; quem se queixaria de um convite para


um casamento real? Mas toda a gente sabia que a velha elite recebera os

seus convites semanas antes do evento.

Assim, agora a Inglaterra tinha uma nobreza com uma grande variedade

de tons de pele. O Parlamento chamava àquilo «A Grandiosa Experiência».

Agatha concordava. Tanto com «grandiosa» como com «experiência».

Olhou para a rainha sobre o elaborado chá da tarde que fora disposto na

mesa entre ambas. Teria Carlota noção da mudança que estava a espoletar?

Apenas por existir? Agatha supunha que não, enclausurada como estava na

casa de Buckingham.

– Foi muito gentil da vossa parte ter-me convidado para um chá – disse

Agatha.

A rainha Carlota sorriu e acenou com a cabeça. Tudo muito cortês.

Agatha fez um gesto na direção da comida que tinha no prato, apercebeu-

se de não ter ainda provado nada, e deu uma dentada apressada.

– Os scones são deliciosos.

– Sim. Nunca os provara antes de vir para Londres. A nossa comida em

Mecklenburg-Strelitz é diferente.

– É? Claro. E está a gostar de comida aqui em Inglaterra?

– É deliciosa. É tudo delicioso.

Como que para o comprovar, a rainha pegou num biscoito de damasco e

deu-lhe uma dentada. Mas os seus gestos foram muito súbitos, e houve

qualquer coisa que fez com que parecessem a Agatha intrinsecamente

nervosos.

O que era muito estranho. Porque estaria a rainha da Grã-Bretanha e

Irlanda nervosa por conhecê-la a ela?


– Que maravilha – murmurou Agatha.

Bebeu um gole do seu chá, desesperada por ocupar a boca que não com

conversa de circunstância. Sinceramente, aquela situação era extremamente

incómoda. Como falar com uma rainha? Esquecendo a questão da hierarquia

(como se isso fosse possível), havia pelo menos seis criados na sala.

E um harpista. Que tocava um tudo-nada alto demais para um ambiente

propício a conversa.

– Ainda bem que pôde vir – disse a rainha.

Como se Agatha pudesse ter declinado aquele convite. Sorriu

educadamente e perguntou:

– Irá encontrar-se individualmente com cada uma das suas damas de

companhia?

– Não.

– Oh.

A rainha fez um gesto negligente na direção do seu camareiro.

– O Brimsley disse-me para convidá-la a si. Disse que seria a mais

discreta.

Aquilo espantou Agatha.

– Precisamos de discrição?

– Por eu estar em lua-de-mel.

– Em lua-de-mel?

Deuses, porque teria sido ela convocada para o palácio durante a lua-de-

mel da rainha? Lançou um olhar furtivo a Brimsley. Ele parecia alarmado.


Agatha acenou-lhe quase impercetivelmente com a cabeça, um gesto que

era possível ele nem sequer ver. Mas queria que alguém soubesse que ela

compreendia a delicadeza da situação. Não se saberia que a rainha tinha

sentido necessidade de companhia durante a sua lua-de-mel.

Companhia que não a do rei, claro.

Mas o rei não estava à vista, e antes de Agatha ter sido encaminhada para

aquela gloriosa sala de estar decorada em tons de petróleo, dourado e creme,

ouvira rumores de que o rei não se encontrava em casa.

– Está a correr maravilhosamente – disse a rainha Carlota. – Uma lua-de-

mel esplêndida. O meu marido é o melhor dos maridos. Ele é muito

inteligente. E muito belo.

– O rei sempre foi considerado agradável de se olhar – disse Agatha

cautelosamente.

– Sim.

Agatha deu mais um gole no seu chá.

– Mais? – perguntou a rainha.

Agatha acenou em agradecimento.

A rainha ergueu a mão e aproximaram-se três criados muito depressa.

Um deles voltou a encher a chávena de Agatha com chá, outro acrescentou-

lhe um pouco de leite, e o terceiro juntou-lhe um cubo de açúcar.

– A Dança das Criadas do Chá – murmurou Agatha.

– Que disse?

Pânico. Não tencionava fazer-se ouvir.


– Estava a admirar a precisão dos seus criados – disse Agatha. –

Moveram-se como que numa dança belamente coreografada.

– Foi, não foi? Mas não foi isso que disse.

– Chamei-lhe «A Dança das Criadas do Chá» – admitiu Agatha.

O sorriso da rainha expandiu-se. Não muito. Nem apenas o bastante para

revelar os seus dentes. Mas Agatha ficou com a sensação de que a monarca

poderia estar a começar a sentir-se à vontade.

Pobre mulher. Pobre rapariga, na verdade. Tinha apenas, o quê, 17 anos?

Agatha tinha uma idade semelhante quando casou com Danbury, mas, pelo

menos, não tivera de se mudar para outro país.

Aqueles seus primeiros tempos de casamento haviam sido horríveis.

Ainda hoje era tudo, em grande parte, horrível, mas pelo menos ela

compreendia o que estava a fazer. Estava inserida na sua própria cultura e,

até ter sido inesperadamente elevada até àquela posição de dama de

companhia, sempre soubera como se mover na sua sociedade.

A rainha Carlota estava à deriva.

Agatha bebeu um gole de chá. Teria sido criminoso não o beber, depois

de os criados o terem preparado com tanto requinte. Mas ela e a rainha

tinham caído noutro silêncio desconfortável.

– Gosta de música? – perguntou a rainha abruptamente.

– Gosto, sim. Não me diria uma conhecedora, mas gosto de ouvir.

– Eu sou uma grande aficionada.

– Que sorte para nós. Tenciona organizar concertos?

A rainha olhou de relance para Brimsley, que lhe respondeu com um

curto aceno da cabeça.


– Em breve – disse. – Assim que a minha lua-de-mel tiver terminado.

– Ah.

E aquilo foi o fim da conversa. Agatha foi salva de tentar introduzir outro

tópico apropriado pela entrada de um criado. Este trocou algumas palavras

sussurradas com Brimsley, sobre quem Agatha começava a perceber ser o

conselheiro de maior confiança da rainha.

Tanto quanto alguém poderia confiar em alguém apenas ao fim de duas

semanas de se conhecerem.

Brimsley aproximou-se.

– O rei enviou um presente para Vossa Majestade. Está à sua espera no

foyer. E vem com uma mensagem.

Entregou o cartão à rainha

– Uma mensagem?

O rosto da rainha iluminou-se de entusiasmo. Era quase doloroso de ver.

Agatha aguardou pacientemente enquanto Carlota quebrava o selo.

– Oh, que encantador – disse a rainha. – Não é encantador?

Esticou o braço, e Agatha precisou de uns instantes para perceber que era

suposto pegar na mensagem.

Correspondência privada entre rei e rainha, e ela, Agatha Danbury, era

suposto lê-la?

Se fosse católica, ter-se-ia benzido. Mesmo.

– Leia alto – ordenou a rainha Carlota.

– Não quero que te sintas sozinha nunca – leu Agatha. Aclarou a

garganta. – Jorge R.
– A assinatura dele.

– Sim, claro. – Agatha olhou para a elegante caligrafia uma vez mais

antes de pousar o cartão na mesa. – Não creio ter alguma vez visto a

assinatura de um monarca.

Carlota pensou naquilo por um instante.

– Nem eu. Não, espere, nós assinámos o registo na capela, não

assinámos?

Agatha assentiu com a cabeça.

– É o habitual, minha senhora.

A rainha virou-se para Brimsley.

– Mostra-me o tal presente.

Brimsley emitiu um som de ligeiro desconforto.

– Hã, esta poderá não ser a melhor altura.

– Disparate. Quero vê-lo agora.

Agatha procurou ocultar a sua apreensão. Desconfiava que Brimsley

compreendia muito melhor do que a rainha como funcionava o palácio e, se

ele não achava que este era o melhor momento para o presente do rei, tinha

provavelmente uma boa razão.

Mas não se desobedece a uma ordem direta da realeza, logo, passado

pouco tempo, foi trazido um cesto rangente.

– Que é isso? – perguntou a rainha Carlota.

Agatha inclinou-se para a frente. Tudo o que conseguia ver era uma

enorme e felpuda bola de pelo cor de caramelo.

– Eis o presente do rei, Vossa Majestade – disse Brimsley.


– Mas o que é?

– Penso que seja um cão, Vossa Majestade.

A rainha olhou para a bola de pelo, depois para Agatha, e depois para

Brimsley.

– Não – disse ela com firmeza. – Os cães são grandes e majestosos. Um

pinscher, um pastor-alemão, um schnauser. Isso é um coelho deformado.

Agatha soltou uma gargalhada pelo nariz.

– Então, concorda – disse a rainha, virando-se bruscamente para ela.

– Hmm… eu nunca gostei muito de cães – admitiu Agatha. – De espécie

alguma.

– E de coelhos deformados, gosta?

– Não, de todo.

A rainha observou o cão durante um momento.

– E tem nome?

– Pompom, Vossa Majestade – disse Brimsley.

– Pompom?

Carlota murmurou qualquer coisa em alemão.

– O camareiro do rei disse-me que foi o próprio rei a escolher o nome –

disse Brimsley.

– O camareiro do rei? Aquele que eu conheci em Kew?

– Reynolds – confirmou Brimsley.

– Ele conhece bem o rei, esse Reynolds?

– Bastante bem.
A rainha ficou pensativa.

– E o Reynolds disse que o rei queria que eu ficasse com isto?

– Exato, minha senhora. Disse que o rei se preocupa muito com a

felicidade de Vossa Majestade.

Os olhos da rainha estreitaram-se.

– Pareces conhecer muito bem esse Reynolds.

Brimsley tossiu e corou. Agatha ergueu as sobrancelhas. Olá, aquilo era

interessante!

– Tanto eu como o Reynolds já trabalhamos para a família real há muitos

anos –respondeu finalmente Brimsley.

Mas a rainha já não lhe estava a prestar atenção.

– Suponho que talvez seja uma prenda atenciosa – disse, espetando um

dedo no pelo do animal. Voltou a olhar para Agatha, com uma expressão de

felicidade determinada no rosto. – O meu marido é o melhor dos maridos.

Agatha não disse «sim, já o mencionou antes». Mas anuiu com a cabeça.

– É a nossa lua-de-mel – disse a rainha.

Engoliu, e o movimento pareceu quase doloroso na sua delicada garganta

carregada de joias.

Agatha não conseguia aguentar mais. Cautelosamente, pousou a sua

chávena de chá. Quando falou, fê-lo em voz baixa.

– Posso falar à vontade, Vossa Majestade?

A rainha virou-se para Brimsley, que conseguiu, com um simples gesto

com a cabeça, esvaziar a sala. Pegou no cesto que continha o Pompom e

dirigiu-se para a porta.


– Não estarei a mais de cinco passos de distância – garantiu à rainha.

A rainha esperou que ele saísse e depois virou-se para Agatha com algum

alívio no olhar. Ou talvez fosse desespero.

– Por favor, fale à vontade – disse. – Ninguém o faz.

Agatha imaginou que inspirava para ganhar coragem e mergulhou de

cabeça.

– Primeiro, é uma péssima mentirosa. Eu não acreditei numa palavra do

que disse acerca da sua lua-de-mel. Não tente fazê-lo em frente à sociedade.

Causará um escândalo.

Os olhos da rainha arregalaram-se.

– Oh. Não me apercebi de que…

– A minha lua-de-mel foi um desastre – disse Agatha com franqueza. –

Na minha noite de núpcias, eu não sabia o que esperar, e o meu marido era

velho e impaciente. Ele ainda é velho e impaciente.

– Lamento.

– É o que é – disse Agatha. Há muito que aceitara a vida que lhe calhara.

Luxo e riqueza, sem um vislumbre de conforto genuíno. – Tudo aquilo foi

doloroso e verdadeiramente assustador. O que eu lhe quero dizer é que é

perfeitamente normal que a sua noite de núpcias não tenha sido perfeita nem

esplêndida.

A rainha não disse nada.

Agatha aguardou.

Nada.

Santo Deus.
– Vossa Majestade – disse Agatha, muito, muito cautelosamente –,

chegou a ter noite de núpcias?

Foi como se tivesse rebentado uma barragem.

– Ele foi cruel – gritou a rainha. – E rude. E egoísta. Só se queria ir

embora. Sentia-se mal, imagino, e não parecia compreender porque é que eu

não quero que ele viva em Kew enquanto eu estou aqui presa sem ninguém

com quem falar e depois dá-me aquele animal como se fosse ficar tudo bem

por causa disso mas isso não compensa o que…

– Vossa Majestade – interrompeu Agatha.

A rainha Carlota parou de falar e acenou com a cabeça. Deuses, ela

parecia ser tão nova.

– Ainda me permite que fale livremente? – disse Agatha.

A rainha anuiu acenando de novo com a cabeça.

– Eu estou a falar da consumação do casamento. A senhora e o rei

consumaram o casamento, certo?

Mas a rainha limitou-se a ficar na mesma, com o rosto inexpressivo.

– Vossa Majestade – disse Agatha, crescentemente alarmada. – Carlota.

Se não consumaram o casamento, então não está verdadeiramente casada

com o rei. Toda a sua posição está em risco. «A Grandiosa Experiência»

está em risco. Por Deus, consumaram ou não?

A rainha não disse nada.

– Compreende o que eu quero dizer com consumar? – perguntou Agatha,

receando a resposta.

O rosto da rainha assumiu uma expressão vagamente solícita.


– Tem alguma coisa que ver com essa grandiosa experiência?

Oh, Senhor. Que Deus lhes acuda a ambos.

Agatha endireitou os ombros. Estava prestes a cimentar o seu lugar na

história, não que alguém viesse alguma vez a saber disso.

– Chamemos o Brimsley – disse, com determinação. – Precisamos de

mercadorias.

A rainha assentiu com a cabeça e virou-se para a porta.

– Brimsley!

Ele entrou num ápice.

A rainha fez um gesto em direção a Agatha.

– Tudo de que ela precisar.

– Papel para desenhar – disse Agatha. – E carvão. Ou grafite. Qualquer

um serve.

Se o pedido o intrigou, o seu rosto não o revelou. Trouxe-lhes as coisas

em menos de dez minutos.

– Eu não sou uma artista muito dotada – disse Agatha, enquanto

começava a esboçar.

– Ora essa. Tenho a certeza de que é excelente. Ainda que… – Carlota

inclinou-se para a frente. – Que é isso?

Agatha perguntou-se, e não pela primeira vez, se estaria a ter um

pesadelo acordada.

– Isto – disse – é um membro masculino.

– Um quê?

– Um…
– Minha senhora – disse Brimsley, perdendo a voz.

Agatha virou-se bruscamente para ele.

– Prefere mantê-la na ignorância?

– Sim, Brimsley – confirmou Carlota –, preferes manter-me na

ignorância?

Brimsley engoliu visivelmente.

– Claro que não, Vossa Majestade.

– É mesmo essa a forma do tal membro? – perguntou Carlota, passando

com um dedo sobre o desenho. Olhou para os dedos, cinzentos por causa do

pó do carvão, e esfregou-os uns nos outros para tentar limpá-los. – Não

parece muito prático.

– Bem, ele modifica-se – disse Agatha.

– A sério? – A rainha virou-se para Brimsley. – Tu tens um destes, não

tens?

As bochechas de Brimsley ficaram cor-de-rosa.

– Tenho, sim, Vossa Majestade.

– E modifica-se quando… – Olhou para Agatha.

– Quando o homem deseja a sua esposa – confirmou Agatha.

– Nessa altura – disse a rainha a Brimsley. – Modifica-se nessa altura?

Brimsley lançou um olhar desesperado a Agatha.

– Isto não é de todo o tipo de conversa…

– Estou perfeitamente ciente disso – interrompeu Agatha.

– O Brimsley não tem esposa – assinalou a rainha.


– Bem, sim – disse Agatha. – Não tem de ser uma esposa, no sentido

estrito. Suponho que qualquer mulher sirva.

Brimsley engoliu em seco.

A rainha voltou a olhar para o desenho.

– Que faz ele com isto?

Agatha olhou para Brimsley, que transpirava visivelmente, com os olhos

firmemente pregados ao teto.

– Põe-no dentro de si – disse Agatha.

A rainha encolheu-se, recolhendo o queixo até lhe desaparecer no

pescoço.

– Está a brincar.

– Lamento, mas não estou.

A rainha voltou-se para Brimsley para obter a sua confirmação.

– Brimsley…

– Por favor, imploro a Vossa Majestade…

Carlota voltou-se de novo para Agatha.

– Estamos a deixá-lo desconfortável.

– Bastante – disse Brimsley, com a palavra a prender-se-lhe na garganta.

– Ele põe-no dentro de si – disse Agatha de novo. – Entre as suas pernas.

Eu não… – Voltou a olhar para o papel e emitiu um pequeno resmungo. –

Não creio que consiga desenhar isso.

A rainha olhou para Brimsley.

– Conseguirás tu…
– Não! – O seu rosto era agora um perfeito tomate.

A rainha voltou-se novamente para Agatha.

– E quantas vezes é que ele o insere?

– Tantas quantas forem necessárias, Vossa Majestade.

– Quanto tempo é que isso demora?

Agatha não foi capaz de mentir.

– Às vezes, parece que nunca mais acaba.

A rainha acenou com a cabeça em silêncio, assimilando aquela

informação.

– Eu vou gostar?

– Eu nunca gostei. Mas creio que nunca pensei naquilo como algo de que

pudesse gostar. É mais uma tarefa, na verdade. Talvez seja diferente quando

se faz com alguém de quem se gosta. – Agatha encolheu os ombros. – Não

sei.

E, provavelmente, nunca viria a saber.

– Bem, eu não gosto do Jorge – disse a rainha, sem rodeios. – Portanto,

não vejo por que razão nos devemos afadigar com tudo isso.

– Não! – Agatha explodiu antes de conseguir temperar a sua reação. –

Tem de ser. Vossa Majestade, estamos na Grã-Bretanha. Ainda não há muito

tempo decapitavam-se rainhas por não produzirem descendência.

– E essa é a única maneira de engravidar? Tem a certeza?

– A certeza absoluta.

A rainha franziu o sobrolho.

– Mas não há pressa nisso.


Agatha agarrou a mão da rainha, perfeitamente ciente de aquilo ser

contra o protocolo.

– Vossa Majestade – disse, com urgência na voz –, o ato matrimonial tem

de ser executado ou não será rainha.

– Mas nós somos casados.

– Não completamente.

A rainha murmurou qualquer coisa. Pareceu a Agatha que dizia Temos

sementes em alemão, mas não podia ser.

– Minha senhora? – perguntou, hesitante.

– Eu disse que preciso do meu alemão – disse a rainha, num tom

verdadeiramente frustrado. – Preciso das minhas palavras compridas. Este

meio casamento. É absurdo. Em alemão, teríamos uma palavra para isto, e

assim eu teria sabido disto.

– Claro – murmurou Agatha, sem compreender completamente de que

falava a rainha.

Os olhos de Carlota faiscaram.

– Eu não sou estúpida. Não sou.

– Não – concordou Agatha, sobressaltada pela mudança de assunto.

Mas não estava apenas a fazer conversa. Carlota não era estúpida. Pelo

contrário, Agatha desconfiava que ela era uma das pessoas mais inteligentes

que alguma vez conhecera. Mas fora colocada numa situação impossível.

Só que não era impossível, pois não? Porque aquilo era a vida de Carlota.

Solitária. Carlota estava desesperadamente solitária, e Agatha não fazia

ideia do que fazer acerca disso.


– Eu não sou estúpida – repetiu Carlota. – Mas eles fazem-me sentir

estúpida todos os dias. Vestem-me e dizem-me onde ir e quem ver e quem

não ver, e o que posso… – Ergueu subitamente o olhar. – Nem sequer posso

comer peixe!

– Perdão?

– O rei detesta peixe, por isso eu não posso comer peixe, mesmo que não

moremos na mesma casa. Eu adoro peixe. Sabia?

– Não sabia, não.

– Arenque. Cresci perto do Mar Báltico, e lá comemos arenque. É um

hábito dinamarquês.

– Dinamarquês – repetiu Agatha baixinho.

– Estamos muito perto da Dinamarca. Mas alguém sabe isso? Não, não

sabem, porque não querem saber de mim.

– Tenho a certeza de que isso não é verdade.

– Tem? – Carlota virou-se rapidamente para ela. – Não sei como possa ter

a certeza. Esta é apenas a segunda vez que nos encontramos.

– Bem… – Agatha esgaravatava em busca de palavras. – A Carlota é a

rainha. Por definição, toda a gente quer saber de si.

Carlota arqueou uma sobrancelha.

– É evidente que sabe muito pouco sobre o que é ser rainha.

– Disso estou cada vez mais ciente.

A boca de Carlota cerrou-se numa linha fina.

– Isto – disse, gesticulando na direção dos desenhos sobre a mesa – tem

mesmo de ser feito?


– Tem mesmo. – Agatha conseguiu desenhar um sorriso aberto. – Tenho

a certeza de que existirá uma palavra para isto em alemão.

Carlota fitou-a momentaneamente e depois desatou inesperadamente a

rir.

– É engraçada. – Pressionou os lábios um contra o outro e depois

suspirou. – Bem, parece que fui mantida na ignorância em ambas as línguas.

– Lamento muito.

– A culpa não é sua.

– Não, mas lamento a sua situação. É a sina das mulheres, infelizmente.

Não é justo e não está certo.

– Não, não está, pois não? Isto – Carlota acenou com a mão sobre a

mesa, indicando os sórdidos desenhos. – A falha não é minha. É evidente

que o rei não me quer. E eu não posso obrigá-lo a querer fazer isto comigo.

E talvez isso seja bom. Se eu não for rainha, se nós não estivermos casados,

então talvez possamos pôr tudo isto para trás das costas e eu possa voltar

para casa.

– Não! – exclamou Agatha.

Charlote olhou-a com alguma surpresa pela sua súbita explosão.

– Eu espero que fique – disse Agatha, forçando-a a levar a voz a um

registo mais calmo.

Se Carlota partisse, lá se ia «A Grandiosa Experiência».

– Ele não me quer – disse Carlota.

Agatha não sabia o que responder. Por fim, disse:

– É um lulu-da-pomerânia. O seu coelho deformado.


– O Pompom?

– É um cão. Um lulu-da-pomerânia puro e muito raro. Se fosse uma joia,

seria um diamante.

Carlota levou a mão às joias no seu pescoço.

– Diamantes – disse Agatha.

– Os meus preferidos – murmurou Carlota.

Virou-se e olhou para Brimsley.

Ele anuiu com a cabeça.

– Vou buscar o cão.

PALÁCIO DE ST. JAMES

SALA DE ESTAR DA PRINCESA AUGUSTA

...

UMA HORA MAIS TARDE

Agatha ainda nem saíra de Buckingham quando um criado a intercetou com

uma convocatória. Não iria para casa. Em vez disso, dirigir-se-ia

diretamente para o palácio de St. James. A princesa Augusta requeria a

presença dela.

– Valha-me Deus – suspirou para si mesma na sua carruagem.

Era muita realeza para um só dia. O marido dela podia ter inveja da

atenção que ela estava a receber, mas, francamente, aquilo era esgotante.

– Lady Danbury – recordou a si mesma. – Lady Danbury.

Aparentemente, já fizera por merecer o título.

A princesa não a fez esperar, e Agatha foi imediatamente escoltada até à

sala de estar.
– Conhece o conde Harcourt, claro – disse a princesa Augusta.

Agatha não conhecia o conde Harcourt. O conde Harcourt nunca se tinha

dignado a dar pela existência dela antes do casamento real. Mas fez uma

vénia e disse:

– Claro que sim.

A princesa Augusta fez-lhe um gesto para que se sentasse e depois virou

na direção dela os seus gélidos olhos azuis.

– Por favor, discorra sobre o seu encontro com a rainha.

Agatha manipulou as suas feições para ocultar a surpresa. As notícias

viajavam depressa. Que rede de espiões devia ter a princesa.

– Não sei se compreendo.

– Encontrou-se com Sua Majestade – disse a princesa Augusta.

– Encontrei-me, sim.

– Estou a pedir-lhe que discorra sobre esse encontro.

Agatha fez-se de ignorante.

– Tomámos chá.

A princesa olhou para ela.

Agatha olhou para a princesa.

Por fim, Augusta disse:

– Tomaram chá.

– Sim – disse Agatha.

– E?

– Conheci o cachorro da rainha.


– O cachorro?

– Sim. – Agatha esboçou um sorriso morno. – A rainha tem um lulu-da-

pomerânia.

A princesa olhou para ela.

Agatha olhou para a princesa.

A princesa emitiu um som muito impaciente e depois olhou para o conde

Harcourt.

O conde aclarou a garganta.

– De que falou com a rainha?

Nunca na vida Agatha revelaria o conteúdo daquela conversa.

– Creio que não me lembro – disse Agatha.

As sobrancelhas do conde Harcourt uniram-se num sulco de ira.

– Eu creio que se lembra.

– Terá alguma importância o que duas senhoras discutem durante um

chá? Um chá é, muitas vezes, para falar de vestidos e arranjos florais e

bordados e mexericos da época social e, se a tal ousarmos, as mais recentes

composições musicais…

– Não me parece que a rapariga saiba – interrompeu o conde de Harcourt,

dirigindo-se à princesa Augusta.

– Ela sabe – disse a princesa com rispidez. Virou-se para Agatha. – Nós

sabemos de que se fala habitualmente durante um chá. De que se falou

durante este chá, rapariga?

– Este chá? – perguntou Agatha, toda ela inocência.


– Está a ser propositadamente obstaculizante, Agatha, e eu não o

tolerarei.

– Lady Danbury – disse Agatha tranquilamente.

– Perdão?

– Lady Danbury. É esse o meu título, Vossa Alteza Real. Aquele que tão

gentilmente me concedeu. Lady. Agatha. Danbury. E recordo-me de uma

coisa deste chá. Do momento em que me apercebi de que a nossa rainha não

tem noção de quão recentes e reluzentes são estes nossos títulos. Que tema

interessante para um próximo chá, não?

A princesa fitou-a.

Agatha fitou a princesa.

– Harcourt – disse a princesa Augusta sem olhar para ele –, talvez nós as

duas devêssemos ter uma conversa de mulher para mulher.

– Deixe-me tratar dela por si – soltou o conde Harcourt. – Se lorde

Bute…

Mas a interrupção da princesa Augusta foi incisiva.

– Creio-me capaz de dar conta do recado.

As duas mulheres aguardaram em silêncio até ele sair. Então, a princesa

Augusta olhou inquisitivamente para Agatha e disse:

– Surpreende-me. Sempre pensei que fosse do tipo calado.

– Eu não sou calada. O meu marido é que é muito barulhento.

A princesa Augusta refletiu naquelas palavras. Agatha pensou ter visto

um assomo de respeito contrariado no rosto dela. Mas era impossível ter a

certeza.
– Lady Danbury – disse a princesa. – Eu tenho de saber o que se passa na

casa de Buckingham. Preciso de um ouvido de confiança. Compreende?

– Compreendo.

– Então…

Agatha escolheu as suas palavras com extrema cautela.

– Tradicionalmente, quando um título é atribuído, é acompanhado de

rendimentos e terras. Uma propriedade. Sem tais coisas, um título é

apenas… um título. – Pousou as mãos no colo. – Todos temos necessidades,

minha senhora.

Os lábios de Augusta retesaram-se.

– Quer dinheiro.

Não, Agatha não queria dinheiro. Queria respeito. Não sabia por que

motivo se sentia, de repente, tão protetora do marido – nem sequer gostava

do homem –, mas não suportava ver a expressão no rosto dele de cada vez

que voltava para casa após mais uma desconsideração ou mais um insulto.

Haviam-no tornado lorde. Fora proclamado pelo rei como um dos homens

mais importantes naquela terra, e ninguém o tratava como tal. Ninguém

tratava nenhum dos novos lordes com a devida deferência.

Agatha obrigou-se a olhar a princesa diretamente nos olhos. Sê feroz,

disse a si mesma. Sê apavoradora. E disse:

– Esquece que o motivo por que o seu sogro, o rei, conhecia a minha

família, era por o meu sogro ser igualmente rei. E a Serra Leoa é um país

muito rico. Nós já temos dinheiro. Temos mais dinheiro do que a maioria da

elite. Aquilo de que eu preciso é que não recusem ao meu marido a entrada

no White’s. Preciso de que ele seja convidado para as caçadas. Preciso de


poder atravessar a rua para ir à melhor modista, de assegurar os melhores

lugares para assistir à ópera.

– Isso é ambicioso – disse Augusta. – Pedir tanto. Devia estar grata pelo

que já lhe demos.

Agatha lançou um olhar frio à princesa.

– Diz que precisa de saber o que se passa na casa de Buckingham.

Presumo que o motivo dessa necessidade seja que lorde Bute acredite que a

princesa tem tudo sob controlo. Porque, se não tiver, a Câmara dos Lordes

virá bater-lhe à porta. Não é assim?

– Cautela, lady Danbury – avisou a princesa Augusta.

– Limito-me a demonstrar que ambas temos necessidades. Vossa Alteza

Real precisa de saber o que se passa na casa de Buckingham. Nós

precisamos de ser membros paritários da elite. – Levou a chávena de chá aos

lábios. – Podemos demonstrar gratidão uma à outra.

– A Agatha é mais do que aparenta ser – disse a princesa após uma longa

pausa.

– Tal como a princesa.

Augusta olhou-a com sagacidade.

– Creio que temos acordo.

– Temos?

– Mas claro que um acordo é apenas isso mesmo. Um acordo. De nada

vale sem moeda.

– A moeda da informação – disse Agatha.


– Exatamente. – A cabeça de Augusta inclinou-se ligeiramente para o

lado. – Pergunto-lhe, então, lady Danbury: o que sabe? Que se passa na casa

de Buckingham?

– Não é tanto o que se passa – disse Agatha –, mas mais o que não se

passa.

A princesa Augusta fitou-a durante muito tempo.

– Compreendo.

– Acredito que sim.

– Tem a certeza? – perguntou Augusta.

– Absoluta.

A princesa Augusta tinha o género de rosto que não revela emoções, mas

Agatha passara a vida a ser arrastada para eventos em que era suposto

manter-se calada. Sabia ler as pessoas.

Augusta estava zangada.

E receosa.

E frustrada, e calculadora, e já a planear a sua jogada seguinte.

– Vá para casa, lady Danbury – disse. – Eu darei notícias.

Agatha levantou-se e fez uma vénia.

– Aguardarei instruções, Vossa Alteza Real.

No dia seguinte, chegou uma carta dirigida a lorde Danbury. Ostentava o

selo real. Agatha manteve-se absolutamente reta enquanto o marido a abria.

– Ofereceram-nos terras! – exclamou.

Agatha pousou uma mão sobre o coração.

– Não!
– Aqui mesmo, em Londres. E os rapazes têm lugar garantido em Eton.

– Têm o futuro garantido – murmurou Agatha.

– Nunca pensei ver este dia – disse Danbury. O lábio dele estremeceu.

Depois de tudo o que eu… Depois de tudo o que eu suportei… – Virou-se

para Agatha. – Sabes como é que isto aconteceu?

Ela podia ter-lhe dito. Podia dizer que firmara um acordo com a mãe do

rei, que traíra a sua própria rainha. Podia ter-lhe dito que fora a inteligência

dela, a astúcia dela, mas quando olhou para o rosto do marido, tão

maravilhado, tão satisfeito por receber, finalmente, a dignidade e o respeito

que há tanto tempo lhe eram recusados, decidiu que não valia a pena.

Ele merecia aquele momento.

Agatha sorriu e tocou-lhe na mão.

– Não faço ideia.

– Eu digo-te – anunciou Herman, erguendo o braço como numa

celebração de vitória. – O rei vê-me. Vê-me tal como eu sou. Vê o meu

valor. A minha importância. Compreende que os modos antigos já se

esgotaram, e que este é um novo mundo. Que os homens são homens,

independentemente de onde provenham.

– E as mulheres são mulheres – disse Agatha baixinho.

– Como?

– Nada, querido. – Deu-lhe uma palmadinha no ombro. – Diz-me mais

sobre a nossa nova casa.

– Tem um endereço muito prestigiante. Seremos a inveja de toda a gente.

O Basset nunca acreditará…


Mas Agatha deixara de o ouvir. Aquela vitória pertencia-lhe. Fora ela a

fazer aquilo. Tal nunca lhe seria reconhecido, mas ela via-se. Tal como ela

era. Via o seu valor. A sua importância.

Os modos antigos estavam esgotados. Era um novo mundo.


Jorge

PALÁCIO DE KEW

APOSENTOS PRIVADOS DO REI

...

15 DE SETEMBRO DE 1761

– Vossa Majestade sente-se bem?

Jorge interrompeu o seu esforço para se vestir. Reynolds estava à entrada

do quarto, segurando no seu tabuleiro do pequeno-almoço.

– Claro que sim – disse Jorge, embora, para ser sincero, estivesse a ter

muita dificuldade com um dos seus botões. – Por que razão não me sentiria

bem?

– Vossa Majestade está a tremer.

– Estou? – Jorge olhou para os braços. Estava, de facto, a tremer. – Estará

frio?

– Não – disse Reynolds –, mas é-nos entregue uma quantidade prodigiosa

de gelo todos os dias.

– Sim. Os banhos são…

Hediondos.

Material de pesadelos.

Péssimos para os testículos.

Jorge aclarou a garganta.

– Bem, tenho a certeza de que estão a ajudar.


Pelo menos, assim esperava. Durante parte do tempo que passava no

banho, os assistentes de Monro forçavam-no a mergulhar a cabeça por

completo. Era terrível, mas Jorge estava a começar a habituar-se. E tinha de

confiar na convicção de Monro de que aquilo acabaria por pôr termo aos

ataques dele.

Que alternativa havia?

Reynolds desenhou com a boca uma expressão de desagrado.

– Quanto a esta comida – disse, pousando o tabuleiro na mesa –, não

creio que a desse a comer nem ao ajudante dos estábulos com o posto mais

baixo na hierarquia. Nem sequer a daria aos cavalos.

– Estás a questionar os métodos do médico, Reynolds?

Reynolds, mantendo-se circunspecto, não disse nada.

– Eu também tenho as minhas dúvidas – admitiu Jorge. Mas tenho de

tentar. É a única hipótese de poder estar com ela.

– Com todo o respeito, Vossa Majestade é… Sua Majestade. Sua

Majestade pode fazer o que quiser. Sua Majestade podia estar com ela neste

momento.

Era tão tentador. Jorge não pensava noutra coisa. Mas sabia que não

estava pronto.

– Não posso arriscar – disse-lhe. – Especialmente com uma mulher tão

imprevisível. Tão inconstante. Dá para acreditar, na outra noite? Chegar a

Kew sem se fazer anunciar?

Sorriu com aquela recordação. Ela era mais do que beleza, mais do que

inteligência.

Era magnífica.
– Ora, é quase tão louca quanto eu – murmurou Jorge,

– Vossa Majestade – repreendeu-o Reynolds.

Jorge assentiu com a cabeça. Sabia que Reynolds não gostava de que ele

se referisse a si mesmo como louco. Estavam juntos desde a infância, desde

antes de se tornar evidente que Jorge seria rei, e que Reynolds seria, bem,

Reynolds. Haviam formado um laço de amizade e partilhado segredos.

– Muito bem – disse Jorge. – Vou reformular. Uma mulher assim é

demasiado perigosa para um homem como eu.

– Ou talvez sejam uma combinação perfeita.

– Achas?

Aquilo agradava a Jorge mais do que ele seria capaz de dizer.

– Acho que não poderemos saber enquanto Vossa Majestade não passar

mais tempo com ela.

Jorge mergulhou a colher no mingau. Era mesmo sofrível. Mas era tudo o

que ele tinha.

– Eu não posso estar com ela – disse, com um suspiro. – Mas talvez

tenhas ouvido alguma coisa? Aquele criado dela. O baixinho. Disse-te

alguma coisa?

– O Brimsley – disse Reynolds. – Falámos, sim.

– E?

Reynolds demorou-se a escolher as palavras.

– Creio que a rainha se sente sozinha, Vossa Majestade.

– Sozinha. Imagina. Eu passei a minha vida inteira desejoso de ter tempo

para mim mesmo.


– É o que tem aqui em Kew – fez notar Reynolds. – Por sua iniciativa.

– Não estou propriamente sozinho, Reynolds. O bom médico e os seus

lacaios seguem-me para todo o lado.

– Repito, por escolha sua. Que poderia muito bem reverter.

Jorge abanou a cabeça. Toda a gente parecia pensar que ser rei era fácil,

que a possibilidade de dar ordens a toda a gente transformava, de alguma

forma, a vida numa pândega. Mas dar instruções à cozinha para preparar o

nosso pudim preferido – e obtê-lo, sempre – era muito diferente de terminar

por completo o nosso tratamento médico só por o considerarmos

desagradável.

– Eu tenho de levar isto até ao fim – disse Jorge. – Esta separação…

Estou a fazer isto por ela.

Reynolds manteve-se calado, mas apenas durante um instante.

– A rainha acabou de se casar, Vossa Majestade. É a lua-de-mel dela. É

possível que sinta falta do marido.

Jorge permitiu-se esboçar um sorriso nostálgico.

– Acho que também sinto a falta dela.

Reynolds parecia ter mais a dizer, mas Jorge impediu-o com um abanar

da cabeça. Reynolds começava a repetir-se; já haviam tido aquela conversa

antes. E, além disso, o doutor Monro acabara de chegar.

Atravessou a porta sem bater, como habitualmente.

– Doutor – disse Jorge.

Reynolds curvou-se, mas muito superficialmente.

Monro parecia preocupado.


– Vossa Majestade tem confiança na sua segurança?

– Na minha segurança, doutor?

– Nos seus guardas, criados, trabalhadores. – Movia a mão furiosamente

no ar, apontado em todas as direções como se pudesse aspergir, um a um,

todos os homens de Kew. – Nestes tristes tempos, são tantos os inimigos da

Coroa que detestaria pensar que algum espião houvesse penetrado no círculo

de Vossa Majestade. Já para não falar em vagabundos, charlatães, ladrões…

– Doutor – interrompeu Jorge, porque, francamente, era impossível

acompanhá-lo –, que está a dizer?

– O meu cão desapareceu.

Oh.

– Que terrível – disse Jorge cuidadosamente. – Qual deles?

– O lulu-da-pomerânia. Comprei-o apenas há duas semanas. Nem tive

ainda oportunidade de fazer qualquer experiência com ele.

– Que pena – murmurou Jorge.

Não olhou para Reynolds, e tinha quase a certeza de que Reynolds não

olhava para ele.

– De facto. – Monro soltou um resmungo de desagrado. – Cheguei esta

manhã ao meu laboratório e encontrei a gaiola aberta e aquele animal

estúpido desaparecido.

Jorge suspirou e abanou a cabeça, transmitindo quase uma aparência

empática.

– Talvez o animal não fosse assim tão estúpido. Cão de colo ou lobo, a

dada altura qualquer animal se cansa da sua gaiola. Não concorda, doutor?
Monro olhou-o com firmeza. Jorge reconfigurou imediatamente a sua

expressão para transmitir tédio. Ou nada. Ambas lhe pareciam apropriadas.

– Vossa Majestade tem passado demasiado tempo no observatório –

decidiu Monro. – Não me agrada a palidez da sua pele, a cor em volta dos

seus olhos. Receio que esteja iminente outro ataque.

Reynolds aclarou a garganta.

– Os… hmm… episódios de Sua Majestade nunca foram precedidos de

uma mudança no aspeto do seu rosto.

Monro virou-se para ele.

– Senhor – acrescentou Reynolds.

– Eu não recebo conselhos médicos de criados – disse Monro

rispidamente, virando-se de novo para Jorge. – Perdemos de vista os nossos

objetivos. Tornámo-nos laxistas nas nossas rotinas. Mas não importa,

podemos corrigir-nos. Mandarei preparar de imediato um banho de gelo, e

depois, direito para a cadeira.

Jorge respirou fundo para se acalmar. Detestava a cadeira. Quase tanto

quanto os banhos de gelo. Mas eram necessários. Estava preparado para

fazer o que fosse necessário para ficar bom.

Mas, assim que Monro se dirigiu para a porta, chegou um criado com

uma folha de papel numa bandeja, dobrada e selada. Monro esticou a mão.

– É para Reynolds, doutor – disse o criado, desviando a bandeja.

– E ele sabe ler? – cuspiu Monro.

– Doutor – disse Jorge incisivamente –, tais insultos são desnecessários.

– Perdão, Vossa Majestade.


Jorge respondeu-lhe com um gesto da mão, e virou depois a sua atenção

para Reynolds. Não era comum que ele recebesse correspondência, ou, se

recebia, não era comum que fosse diante do rei.

– Notícias da casa de Buckingham – disse Reynolds, erguendo o olhar

assim que terminou a leitura.

Jorge iluminou-se.

– A sério?

– Sim. A rainha recebeu o seu, hã… – olhou para Monro – o seu gesto.

– Oh? – Então, falavam em código. Jorge estava muitíssimo divertido. – E

que pensou ela do meu gesto?

Reynolds hesitou.

– Diz – disse Jorge.

– Hmm… Ela chamou-lhe um coelho deformado.

Um coelho…

O quê?

E então Jorge riu-se. Riu-se como não se ria há dias. Imaginou a sua

esposa. Imaginou aquela ridícula bola felpuda em forma de cão. E riu-se, e

riu-se, e riu-se.

Era como se a luz do Sol lhe tivesse finalmente alcançado o rosto.

– Sabem que mais? – disse, pondo-se de pé. – Não há banho de gelo. Não

há cadeira hoje.

– Vossa Majestade – disse Monro, consternado. – Isso não será

permitido. Temos muito trabalho a fazer, nós os dois.


– Lamento, doutor. Hoje eu prefiro trabalhar na minha quinta. Ar fresco e

exercício serão a coisa certa para mim.

– Rapaz – disse Monro muito alto. Pôs-se em frente a Jorge, tentando

bloquear-lhe o caminho. – Ordeno-te que fiques.

Mas, pela primeira vez, a voz de Monro não impeliu Jorge a obedecer-

lhe. Ao invés disso, apresentou ao médico um sorriso rasgado e atravessou a

sala para ir buscar o casaco.

– Reynolds, a carruagem.

– Com muito gosto, Vossa Majestade.

Jorge percorreu o corredor em passo acelerado, com um ritmo e um

propósito que já quase se lhe haviam tornado estranhos.

– Ficará nos campos o dia inteiro, Vossa Majestade? – perguntou

Reynolds.

– Desde que não chova.

– Muito bem. E quanto ao jantar?

Jorge desceu alguns degraus da escada e depois parou.

– É uma boa pergunta.

– Há várias opções.

– De facto.

Jorge bateu com a mão na perna. Sentia-se tomado por uma energia

nervosa, mas não era… má. Sentia-se alerta. Expetante.

Esperançoso.

– Senhor?

Jorge tomou a sua decisão.


– Creio que irei jantar com a minha esposa.

– Excelente, Vossa Majestade. Avisarei a casa de Buckingham.

– Muito bem. Mas talvez não devas informar a rainha. Só para o caso de

eu… – Jorge não queria dizê-lo.

– Mudar de ideias? – sugeriu Reynolds.

Jorge expirou ligeiramente com alívio.

– Precisamente.

Reynolds sorriu.

– Não mudará, Vossa Majestade.

CASA DE BUCKINGHAM

SALA DE JANTAR

...

NA MESMA NOITE, MAIS TARDE

Aquilo era um erro.

Devia ser-lhe fácil. Ele era um rei, e aquele era o seu castelo.

Metaforicamente.

A casa de Buckingham era simplesmente isso, uma casa. Mas ele

comprara-a para Carlota. Era dela. Ouvira dizer que o pessoal já se lhe

referia como «a Casa da Rainha».

Ele era o intruso.

Era a primeira vez que punha os pés na sala de jantar daquela casa. Os

criados alinhavam-se contra a parede, muitos deles recentes no serviço real,

e, no meio de tudo aquilo, a cadeira vazia de Carlota.


Ela chegaria em breve. Disso, ele estava certo, quanto mais não fosse por

ela não saber da sua presença ali. Os criados haviam sido instruídos para

não lhe transmitirem essa informação. Jorge imaginava que eles supusessem

tratar-se de uma surpresa romântica da sua parte, quando a verdade era que

ele tinha medo que ela preferisse receber o jantar num tabuleiro, no seu

quarto, caso soubesse que ele a esperava ali.

Aquilo podia correr mal.

O Trânsito de Vénus estava a aproximar-se.

Trânsito de Vénus, Vénus, Vénus, Marte, Júpiter…

Agarrou-se à beira da mesa. Não era naquilo que tencionava pensar

naquele momento. Não importava. Bem, importava, sim. Claro que

importava. Era de vital importância, na verdade, mas não era importante

naquele preciso instante, razão por que não devia estar a pensar naquilo.

Devia estar a pensar em Carlota. A sua esposa. A sua noiva. Era tão bela.

Demasiado bela. Demasiado bela para ele.

Ele era um duende, não um duende, talvez um duende, ela era tão bela…

– Vossa Majestade.

Era Reynolds. Pousou uma mão tranquilizadora no ombro de Jorge.

Manteve-a lá até a respiração de Jorge se acalmar e ele conseguir beber um

gole de vinho.

– Boa cor, este vinho, Reynolds – disse Jorge.

– Transmitirei à cozinha, Vossa Majestade.

Jorge anuiu vagarosamente com a cabeça. Ele conseguiria fazer isto. Ele

queria fazer isto. Ele conseguiria…


Ela chegou. Mas ainda não o vira. Não olhava para a mesa; em vez disso,

o seu olhar parecia perdido nalguma coisa pelo ar, talvez em coisa nenhuma.

Não parecia estar no seu melhor. Parecia… desancorada.

Sentiu o coração quebrar-se. Esta não era a mulher de língua e olhos

afiados com quem ele casara.

Pôs-se de pé.

– Olá, Carlota.

Ela estacou. Mesmo só com a fraca iluminação das velas, Jorge conseguia

ver os olhos dela agitarem-se de um lado para o outro, como se estivesse a

planear a fuga.

– Olá – respondeu, talvez com alguma cautela.

Não se aproximou da mesa. Atrás dela, o seu pequeno criado admirava

toda aquela cena.

Jorge fez um gesto em direção ao festim que estava disposto à frente

deles.

– Importas-te que eu me junte a ti esta noite para uma refeição?

– Uma refeição? – repetiu ela.

Jorge começou a responder, mas Carlota ainda não terminara.

– Uma refeição? Estás… Uma refeição?!

Então, estava zangada. Mas, pelo menos, parecia-se consigo mesma outra

vez.

– Achas mesmo que eu me sentaria em frente a ti à mesa e partilharia

contigo uma refeição depois de… – Lançou os braços ao alto. – Estás louco!

Jorge encolheu-se. Reynolds avançou.


– Só pode ser essa a explicação.

Carlota falava para si própria, mas cada palavra perfurava Jorge até à

alma. Sentia a garganta estreitar-se. Tinha dificuldade em respirar.

– Vossa Majestade – proferiu a voz de Reynolds, calma e tranquilizadora.

Jorge obrigou-se a acenar com a cabeça. Depois percebeu que Carlota se

estava a ir embora.

– Carlota, por favor. Não vás.

Ela não lhe ligou.

Jorge levantou-se apressadamente para a seguir, fazendo apenas uma

pausa para apontar um dedo a Brimsley.

– Fica aqui.

Brimsley parecia tencionar desobedecer, mas Reynolds pousou-lhe uma

mão no braço.

– Carlota! – chamou Jorge mais uma vez. Ela avançava depressa, mais

depressa do que deveria ser possível a alguém envergando um vestido

daqueles. – Onde vais?

– Não sei! Apenas… para longe de ti! – Virou-se para trás somente pelo

tempo de cuspir as palavras: – Para qualquer sítio onde tu não estejas!

– Carlota – implorou Jorge. – Carlota, por favor. Se me deres uma

oportunidade para…

Não havia outra hipótese. Ele tinha de ser o rei.

– Carlota – ordenou. – Para de andar imediatamente.

Carlota parou. Mas não se virou.


– Compreendo que não tenhas razão alguma para gostar de mim – disse

Jorge para as costas dela. – Razão alguma para confiar em mim.

– Nenhuma – pensou ele ouvir.

Jorge inclinou o pescoço para o lado para o estalar, conseguindo, de

alguma forma, dominar as suas emoções com aquele movimento.

– Tens razão em sentir isso. Eu casei contigo e desapareci no meu

observatório, e agora apareço aqui para jantar como se…

Como se o quê? Nem ele sabia.

Expirou.

– Mas se me puderes conceder apenas uma noite do teu tempo. Permite-

me mostrar-te onde tem andado a minha cabeça. Não chegará para que me

perdoes, mas poderá fazer com que me odeies um pouco menos.

Carlota suspirou. Ele não ouviu o som mas apercebeu-se do ligeiro subir

e descer dos ombros dela.

– Por favor – disse.

Ela virou-se para ele.

Estendeu-lhe a mão e, milagre dos milagres, ela pegou-lhe.


Carlota

PALÁCIO DE KEW

OBSERVATÓRIO

...

UMA HORA MAIS TARDE

– Olha. Estás a ver?

Carlota ajustou a sua posição em frente ao óculo. Jorge trouxera-a para o

observatório e estava a tentar mostrar-lhe algo através do seu enorme

telescópio. Mas ela não fazia a menor ideia do que era aquilo para que

estava a olhar. Só via pequenos furos luminosos e, ocasionalmente, um

clarão.

– Assim, não – disse Jorge. Pousou as mãos nos ombros dela e

reposicionou-a. – Agora, o que vês?

– Não vejo nada.

– Ora, concentra-te.

Carlota revirou os olhos. Ou, melhor, um dos olhos. O outro ainda estava

encostado ao óculo. Mexeu os ombros, tentando que ele lhe desse espaço.

– Não me consigo concentrar contigo tão perto, a respirar para cima de

mim e a dizeres-me para me concentrar.

Jorge soprou. Aquilo aborrecia-a.

– Está bem. – Esticou a mão para a frente dela. – Deixa-me só regular o

foco um pouco.
– Podes afastar-te e deixar-me…

Arfou.

– Oh, caramba – exclamou Carlota. – Que é aquilo?

– Aquilo é Vénus – disse Jorge com um orgulho palpável.

– Vénus. Vénus.

Carlota afastou a cabeça do engenho por um instante apenas. Jorge

observava-a completamente deliciado, e talvez um pouco orgulhoso. Carlota

não imaginava sequer a multitude de emoções que lhe perpassavam o rosto.

Maravilhamento, talvez? Deslumbramento?

Voltou para o telescópio.

– O planeta Vénus. Estou a olhar para Vénus?

– Estás, sim. Eu…

– O planeta – clarificou ela, olhando para Jorge.

– Sim, o planeta.

Jorge sorriu-lhe, divertido; estava encantado com o deleite dela.

– O planeta – disse Carlota outra vez. – Estou a olhar para um planeta.

De certeza que… – Teve de fazer uma pausa para considerar todas as

ramificações. – A maravilha. Alguém inventou isto – fez um gesto na

direção do telescópio – e isto consegue permitir-nos ver a centenas de

milhares de quilómetros…

– Milhões – disse Jorge.

– Milhões?

Jorge rasgou um sorriso aberto.

Carlota manteve-se a ficar quieta por algum tempo, a pestanejar.


– Nem sequer sei como imaginar tal distância. Daqui a Mecklenburg-

Strelitz é quanto, 800 quilómetros?

– Mais ou menos. Um pouco mais, talvez.

– É… eu…

Jorge voltou a sorrir. O mesmo sorriso desabrido que lhe mostrara no

jardim da capela. Quando era Só Jorge.

– O que foi?

– Estou a tentar fazer as contas. Um milhão de quilómetros é… Acho

eu… Bem, dois milhões de vezes 500 quilómetros. Certo?

Jorge anuiu com a cabeça.

– E Vénus fica a muito mais de um milhão de quilómetros de distância.

– Mein Gott.

– Exatamente o que eu estava a pensar.

– É espantoso. É wunderbar. – Carlota abanou a cabeça, assombrada. –

Não conheço uma palavra inglesa à altura.

– Talvez tenhas de inventar uma – disse ele. – Se bem te lembras, tens

esse direito, como rainha.

Carlota riu-se. Era incrível. Estivera tão zangada com aquele homem.

Ainda estava; ele não se redimiria assim tão facilmente. Ainda assim,

conseguira fazê-la rir.

– Nem consigo imaginar o que inventarão os cientistas a seguir – disse.

– Algo em que eu penso todos os dias – disse Jorge, com toda a

sinceridade. – E se nós pudéssemos ir à Lua?

– Não sejas absurdo – troçou Carlota.


– E se conseguíssemos ver o interior dos nossos corpos sem ser preciso

abri-los?

– Isso é nojento.

– Mas e se conseguíssemos?

Carlota estremeceu de náusea.

– Prefiro observar Vénus.

– Excelente escolha.

O rosto de Jorge brilhava do entusiasmo. Na verdade, tal como todo o seu

corpo. Parecia como que eletrificado, iluminado de dentro. Era aquilo que a

paixão fazia a uma pessoa, percebeu Carlota. Era raro encontrar alguém que

se interessasse tanto por alguma coisa. Ela pensava que se sentia assim em

relação à música, mas ao ver Jorge…

Era claramente uma curiosa.

– Tenho andado a estudar Vénus – disse Jorge. Remexeu numa pilha de

mapas e pegou num, apontando entusiasticamente para uma linha

pontilhada. – Está a aproximar-se uma ocorrência rara. Faltam vários anos,

mas os cientistas precisão de tempo para se prepararem. Vénus percorrerá

um arco específico, oferecendo-nos um momento único para tirarmos

medidas muito precisas. E a partir dessas medidas ficaremos a saber qual a

distância da Terra ao Sol.

– Isso é espantoso – disse Carlota.

Jorge reluziu.

– O Trânsito de Vénus, é assim que se chama. Será um espetáculo e tanto.

– E a partir disso – Carlota ergueu um dedo, como se fosse evidente que

se referia a Vénus – consegues calcular as distâncias entre dois corpos


celestiais completamente distintos?

– É essa a ideia.

– Podes ensinar-me?

– Bem, eu… – Jorge tropeçou nas próprias palavras. Obviamente, ela

apanhara-o de surpresa. – Não vejo porque não. Estudaste matemática?

– Não do tipo que imagino que seja preciso para este tipo de cálculos –

disse Carlota algo aborrecida. – Há um fosso entre aquilo que é considerado

aceitável ensinar a uma rapariga e a um rapaz.

Jorge encolheu os ombros.

– Se tu desejas aprender algo, então deves fazê-lo.

Carlota procurou não sorrir. Eram momentos como aquele que lhe

tornavam muito difícil não se apaixonar por Jorge.

Voltou para o telescópio, levando algum tempo a localizar Vénus. O

planeta era claro e brilhante contra o céu noturno, ofuscando todas as

estrelas.

– É belíssimo, Jorge – murmurou.

– É, sim.

E Jorge soava satisfeito.

Carlota afastou-se do óculo para olhar para ele.

– É isto que tens estado a fazer? Durante este tempo todo?

Jorge anuiu com a cabeça.

– Há qualquer coisa nos céus. Neste mundo em que vivemos, em que me

é dado tanto poder e tanta atenção, é bom lembrar-me de que sou apenas um
grão de pó ou um pequeno ponto no universo. – Sorriu infantilmente. – Para

me manter humilde.

A mão dela desejava estender-se-lhe. Mas não podia. Ainda não. Ela

ainda não confiava completamente nele.

– Ser rei é um acaso – continuou. – O meu mundo gira em torno de mim.

Isso torna-me egoísta. – Desviou o olhar, brevemente, e depois arrastou os

olhos de novo até aos olhos de Carlota. – Não consigo imaginar quão

doloroso e cruel deve ter sido teres a tua noite de núpcias estragada por

mim.

– Também era a tua noite de núpcias – lembrou-lhe ela.

– Lamento muito.

– Pois, bem. – Carlota engoliu em seco. – Não te perdoo. Ainda.

– Ainda. – Havia um som de sorriso na voz dele. – Ainda é bom. Ainda é

esperança.

– Talvez – concedeu Carlota.

– Sabes – disse Jorge, dando um curto passo na direção dela –, quase não

contou como noite de núpcias.

– Não?

Jorge abanou a cabeça.

– Não chegámos a ter a parte da noite.

Carlota recordou a conversa com lady Danbury. Os avisos de Agatha

haviam-na deixado um pouco menos desejosa dos deveres matrimoniais.

Mas, ao mesmo tempo, compreendia que aquilo tinha de ser feito. A

consumação. Sem ela, não era uma verdadeira rainha.


– Podíamos recomeçar – sugeriu Jorge. – Tentar de novo?

– Parece-me uma ideia razoável – disse Carlota. Escovou da saia um pó

imaginário, a procurar por tudo parecer despreocupada. – Já estamos

casados há uma semana.

– Sim – disse Jorge, suavemente. – E eu ainda só te beijei uma vez.

– No nosso casamento.

– Tenho desejado repeti-lo.

Os olhos de Carlota encontraram os dele.

– Tens?

– A cada minuto – aproximou-se – de cada dia.

– Porquê?

– Porquê? – repetiu ele.

Carlota anuiu com a cabeça.

– Porque tu existes – disse Jorge, como se fosse a coisa mais óbvia do

mundo. – Eu vi-te, e conheci-te, e falei contigo. Estou encantado. Mal

consigo respirar de tanto te querer voltar a beijar.

Carlota experimentou a bizarra sensação de estar de alguma forma

suspensa no espaço. De o ar em seu redor se ter tornado um pouco mais

sólido, erguendo-a, mantendo-a firme enquanto a sua respiração lhe

formigava pelo corpo.

– Permites-me? – murmurou Jorge.

Carlota assentiu com a cabeça. Não sabia o que esperar, só sabia que se

achava capaz de morrer se não lhe tocasse.


Mas, ainda assim, a situação era desconfortável. E engraçada, quase.

Jorge sorriu, e Carlota apercebeu-se de ele estar tão nervoso quanto ela.

Então, sorriu-lhe também. Porque não o conseguia evitar.

E foi quando a mão dele tocou na sua bochecha.

– Carlota – murmurou.

Jorge.

Os lábios dele juntaram-se aos dela.

– Sempre.

A mão dele alcançou-lhe as costas e puxou-a para si. Carlota nunca antes

estivera assim tão perto de um homem. O calor dele, a força controlada…

deixavam-na sem fôlego.

Tocou-lhe no cabelo, macio e firme, e Jorge emitiu um leve som de

prazer.

– Gostas – perguntou Carlota, timidamente.

– Muito. Atrevo-me a dizer que não há nada que tu possas fazer de que eu

possa não gostar.

Carlota pousou a mão no peito dele.

– Gosto disso – disse Jorge.

Encorajada – e divertida –, estendeu a mão e puxou-lhe o lóbulo da

orelha.

– Disso, também.

– Já não tenho mais ideias – admitiu ela.

Os braços dele estreitaram-se em torno dela.

– Eu tenho muitas.
– Tens?

– Uhum. – Os lábios dele aproximaram-se novamente dos dela, e desta

vez a sua boca estava mais exigente. – Esta, por exemplo.

A partir daí, não houve mais palavras. Jorge beijou-a com a mesma

paixão que ela ouvira na voz dele quando falara sobre as estrelas. Beijou-a

como se ela fosse a mais preciosa das joias, rara mas indestrutível.

Sentiu-se venerada.

Adorada.

Ele era, outra vez, Só Jorge.

Mas ele fora Só Jorge no jardim da capela. E mudara. Receosa, Carlota

recuou. A mão dela desceu pelo braço de Jorge até que apenas os seus dedos

se tocavam. Ela precisava de saber o que significava aquele beijo.

– Quer isto dizer que vens para casa? – perguntou ela. – Para a casa de

Buckingham?

– Sim – disse ele. – Vou para casa, para a casa de Buckingham.

– Esta noite?

Jorge assentiu com a cabeça.

– Volta para a tua carruagem e regressa. Eu seguir-te-ei tão depressa

quanto possível.

– Não podemos viajar juntos? Fizemo-lo logo a seguir ao nosso

casamento.

Ele encolheu os ombros ao seu jeito envergonhado.

– Regras para proteger a sucessão, lamento. Logo a seguir ao casamento

não havia a possibilidade de carregares o futuro rei.


– Agora também não há essa possibilidade.

– Eles não sabem isso. – Jorge voltou a beijá-la, carregando nos lábios

uma terna promessa. – E, depois desta noite, haverá.

CASA DE BUCKINGHAM

QUARTO DO REI

...

NA MESMA NOITE, MAIS TARDE

Desde o casamento, Carlota ainda não se permitira espreitar para o quarto

de Jorge.

O que não fora fácil. O quarto dele ficava ao lado do dela e, na verdade,

estavam os dois interligados por uma sucessão de pequenas salas de estar.

Sentia-se curiosa. E talvez um pouco vingativa. Várias haviam sido as noites

em que Carlota quisera afastar de si as cobertas da cama, avançar até à suíte

dele e partir qualquer coisa. Por vezes, queria partir algo que lhe parecesse

ser importante para ele. Noutras vezes, queria partir uma coisa pequena,

algo em que ninguém reparasse de imediato. A vontade podia azedar.

Tal como ela fora deixada a azedar.

Mas tinha resistido.

A sua nova vida era uma estranha forma de existência. Era rainha da

nação mais poderosa do planeta. Se quisesse partir alguma coisa, os cacos

seriam imediatamente limpos, e os criados sentiriam provavelmente que

deviam aplaudi-la por o ter feito.

Oh, Deuses, Vossa Majestade. A vossa perícia demolidora é

incomparável.
Conseguia imaginar a cena. Facilmente. Um pequeno exército de criadas

e criados, exaltando-a por tornar as vidas deles um pouco mais duras.

Portanto, não, não iria ao quarto de Jorge partir nada. Tudo o que lhe

restava era a sua dignidade. Ou, pelo menos, era tudo o que ainda

controlava. Podia ser casmurra. Podia mesmo ser inconstante. Mas recusava-

se a ser um monstro.

Mas agora estava tudo diferente. Não sabia ao certo o que levara Jorge a

reconsiderar a decisão de viverem separados, mas decidiu que não o

questionaria. Não havia nada a ganhar em esfregar sal nas feridas. Não

quando eles tinham a oportunidade de recomeçar do zero.

E ela gostava dele.

Gostava tanto dele.

Então, ali estava ela, à entrada do quarto de Jorge. Tinha o mesmo

tamanho que o seu quarto, mas cada pormenor da decoração e cada peça de

mobiliário proclamavam a presença de um rei. Os quadros com retratos de

reis e princesas anteriores. Os tapetes sumptuosos e requintados. A

cabeceira da sua cama, de um vermelho régio, coroada com ouro.

Carlota sentia-se nervosa, mas também entusiasmada. E pronta.

Esta noite, tornar-se-ia uma esposa.

Uma rainha.

Jorge estava de pé junto à lareira, no seu robe preto, com um copo de

alguma coisa na mão. Pousou-o quando a viu entrar.

– Carlota.

Ela sorriu timidamente.

– Jorge.
Ele caminhou na direção dela. Carlota não se mexeu. Não se sentia

assustada, exatamente, mas tinha borboletas na barriga a dançarem uma

schuhplattler. Aquelas coisas que era suposto ela fazer com ele eram

novidade para ela. Nunca gostara de ser qualquer coisa abaixo de

competente. Detestava sentir-se estúpida ou desinformada.

Jorge parou junto a ela, estendeu o braço e pegou-lhe na mão.

– Estás magnífica.

Carlota apontou para a sua camisa de noite.

– É bonita, mas tem mil botões minúsculos. De repente, preocupa-me que

as minhas criadas tenham feito a escolha errada.

O sorriso de Jorge emanava promessas perversas.

– Eu tenho muito jeito para botões.

Os dedos dele confirmaram a afirmação, libertando agilmente cada botão

da sua casa de cetim. Durante todo aquele tempo, manteve-se junto a ela, a

testa quase a tocar na dela, o calor da sua respiração a ondular nos lábios

dela.

Ela desejava-o.

– Eu sonhei com isto – sussurrou Jorge.

– Creio que… talvez… também tenha sonhado.

Os olhos de Jorge reluziram, e uma das grandes mãos dele pousou na

anca de Carlota.

– Nem imaginas quanto isso me agrada.

– Gostei de me teres beijado – disse ela timidamente.

Jorge sorriu, um meio sorriso agarotado que a fez revirar-se por dentro.
– Ainda bem.

Então, o espaço entre os dois desaparecera, e ele estava de novo a beijá-

la. A boca dele estava quente e faminta e, quando ela gemeu encostada a ele,

a língua de Jorge entrou na boca de Carlota, dançando com a dela.

Era glorioso, e ela queria mais, mas ele recuou.

– Carlota – perguntou –, tu sabes o que acontece numa noite de núpcias?

– Oh, sim – disse ela, aliviada por estarem a falar sobre uma coisa que ela

conhecia. – Sei tudo. Já vi desenhos e recebi explicações detalhadas sobre o

que ocorrerá.

– Bem. – Jorge parecia surpreendido. Muito. – É bom sabê-lo.

– Eu… – Carlota mordeu o lábio. Seria apropriado fazer pedidos. Teria

ela permissão para tal?

– O que foi? – perguntou Jorge.

Carlota decidiu que não teria nada a perder por dar a conhecer os seus

desejos.

– Não gosto da parte em que a minha cabeça bate repetidamente na

parede. Há alguma forma de o evitar?

Jorge esbugalhou os olhos.

– Quem é que te instruiu?

– Não interessa – disse Carlota. Agatha partilhara as suas experiências

confidencialmente, e parecia-lhe desleal revelar a sua identidade. – É só

que…

– Sim – interrompeu Jorge. – Há formas de evitar isso.

– Tens a certeza? Porque se tiver de ser feito assim…


– Não tem. – Jorge mordeu o lábio. – Prometo.

Os olhos de Carlota estreitaram-se.

– Estás a tentar não rir?

– Não! – disse Jorge, com um pouco mais de energia do que ela julgava

necessário.

– Estás, sim.

– Não estou, não.

– Estás a mentir.

– Só um bocadinho – admitiu ele.

– Eu sabia. – Deu-lhe um murro ao de leve no ombro. – Porque é que isto

tem assim tanta graça?

– Eu… – Jorge não parecia saber como responder.

– Diz-me – insistiu Carlota.

– Não sei como poderei… Bem… – Franziu metade da boca. Era

adorável. – Suponho que seria capaz de imaginar uma forma de bater com a

tua cabeça na parede repetidamente – prosseguiu –, mas não me ocorre

nenhuma razão para o querer.

– Isso é um grande alívio!

– Carlota – pegou na mão dela –, não sei que te disseram, mas isto, a

nossa noite de núpcias, não tem de ser doloroso. Pelo menos, não após o

início. Pode ser estranho, e será, provavelmente, estranho, mas eu espero que

te traga prazer.

Carlota pestanejou. Aquilo contradizia tudo o que Agatha lhe dissera.

Jorge levou a mão dela aos lábios.


– Permites-me que tente?

– Que tentes…

Os dedos dele voltaram para os mil botões minúsculos.

– Dar-te prazer.

As palavras dele libertaram uma torrente de arrepios na pele dela.

– Acho que gostaria disso.

Jorge abriu mais alguns botões e passou os lábios pela pequena porção de

pele que acabara de revelar.

– Vem – murmurou, pegando-lhe na mão e encaminhando-a para a cama.

A roupa havia já sido puxada para trás e Carlota deitou-se nos lençóis

sedosos. Jorge deixou cair o robe pelos ombros. Carlota desviou o olhar.

Não de propósito, mas não estava à espera de que ele se despisse naquela

altura.

– Não tenhas medo – disse ele, subindo para junto dela.

– Eu não tenho.

Jorge instalou-se ao seu lado.

– Ótimo – disse, afastando-lhe do rosto uma espiral de cabelo. Durante

algum tempo, ficou apenas a olhá-la.

– O que foi? – perguntou Carlota, envergonhada com aquele escrutínio.

– És tão bela – disse ele. – Nem acredito que és minha.

Carlota sentiu-se corar de prazer. Estava habituada a elogios, mas vindos

dele pareciam-lhe diferentes. Não era mera galanteria. Era muito mais do

que isso.
A dada altura, olhá-la já não lhe bastava. Jorge puxou-a para perto de si.

Uma das mãos dele escorreu para debaixo da camisa de dormir dela,

percorrendo-lhe a perna. Subindo, subindo, até lhe contornar delicadamente

a anca.

Carlota susteve a respiração. Quando ele lhe tocou, ela sentiu-o por

dentro. Não fazia sentido, mas ela estava, devagarinho, a ultrapassar todo o

sentido. Gentilmente, Jorge tirou-lhe a camisa de dormir e Carlota ficou nua

ao lado dele.

– Há uma coisa que me esqueci de te dizer – disse ele.

Carlota ergueu o olhar, com a pergunta nos olhos. A mão dele contornou-

a e depois ele rodou-os a ambos de modo a ficar sobre ela, com os seus

olhos escuros fixos nos dela.

– Vale para os dois lados – disse. – Eu sou teu.

Beijou-a com paixão descontrolada, com um apetite que a fez sentir-se

como o tesouro mais precioso.

Isto não era nada daquilo que Agatha dissera. Era glorioso.

Jorge colocou-se entre as pernas dela e Carlota sentiu-o contra a sua

abertura.

– Espero que não te doa – disse ele –, mas se doer não será durante muito

tempo.

Carlota acenou com a cabeça.

– Confio em ti.

Jorge pressionou. Devagarinho. Depois recuou um pouco antes de

avançar de novo.

– Está bem assim? – perguntou.


Carlota acenou com a cabeça.

– É muito estranho, mas… sim.

Ele voltou a mexer-se e, estranhíssimo, parecia que ele podia estar com

dores.

– Estás bem? – perguntou Carlota, um pouco preocupada.

– Muito – disse Jorge, embora cerrasse os dentes.

– Pareces…

– Chhh… – implorou Jorge. – Estou a esforçar-me tanto.

– Para quê?

Jorge sorriu. Sorriu mesmo. Mas era o tipo de sorriso que se esboça

quando não se pode acreditar no que está a acontecer.

– Jorge!

– Estou a tentar, Carlota! – rumorejou.

– A tentar o quê?

– Ir devagar. Não te quero magoar.

Oh. Ela pensou naquilo.

– Queres ir mais depressa?

– Meu Deus, sim.

Carlota não conseguia evitar sentir-se deliciada com o desespero na voz

dele. Aquilo fê-la sentir-se ousada.

– Talvez devesses – disse.

Jorge abanou a cabeça.

– Ainda não. Em breve.


A mão dele movia-se entre os seus corpos.

– Vais gostar disto – disse ele. – Espero.

Carlota arfou. Os dedos dele desenhavam círculos delicados ao longo da

pele dela. Aquilo fazia-a sentir-se quente, e sentia-o em todo o corpo. Não

conseguia pensar em mais nada, só naqueles tentadores dedos, e então,

subitamente, ele estava completamente encaixado nela.

– Carlota – disse.

– Jorge.

Carlota não sabia que era possível sorrir uma palavra, mas foi isso que

fez.

– Aqui estou.

– Aqui estás.

E assim que ele se começou a mexer dentro dela, à medida que os

movimentos dele aceleraram e perderam o controlo, aquele era o único

pensamento ela.

Ali estavam.

Juntos.

NA MANHÃ SEGUINTE

Quando Carlota acordou, estava sozinha na cama de Jorge. Aquilo não a

incomodou; talvez ele fosse madrugador.

Ainda tinham muito que aprender um sobre o outro.

Vestiu a camisa de dormir e avançou pelas salas de ligação até ao seu

quarto. Já havia sido lá disposta uma bacia para as suas abluções matinais e,

depois de salpicar a cara com água, tocou para chamar a confraria de criadas
que a vestiam todos os dias. Mas, pela primeira vez, tal não lhe parecia uma

tarefa. Não sentia nada senão felicidade. Nada senão agrado e antecipação

em relação ao dia que a aguardava.

Quando saiu para o corredor, Brimsley aguardava-a, como sempre. Tinha

os braços ocupados com um monte felpudo.

– Pompom! – exclamou Carlota.

Se Brimsley ficou curioso com aquele acentuado aumento no entusiasmo

dela com o cão, não o manifestou.

– Vossa Majestade – disse ele, depositando o lulu-da-pomerânia nos

braços dela.

– Não achas que está uma bela manhã? – disse Carlota.

Passaram por uma janela que revelou o céu cinzento e uma chuva muito

miudinha.

– É um retrato do esplendor bucólico – disse Brimsley.

Carlota recompensou aquela mentira com um sorriso radioso.

– Viste o rei? – perguntou. – Se ele tiver saído para uma volta a cavalo ou

a pé, aguardaremos por ele para servir o pequeno-almoço. Gostava que

comêssemos juntos.

– Não me parece que tenha saído, Vossa Majestade. Creio que recebeu

uma visita.

– Uma visita?

– A mãe de Sua Majestade.

– Ah.
Carlota não tinha vontade alguma de conversar com Augusta, mas estava

desejosa de voltar a ver o marido, o suficiente para ser capaz de ir

interromper a conversa deles para o resgatar. Virou-se para Brimsley.

– Estão na sala de estar?

– Sim, Vossa Majestade.

Carlota encaminhou-se nessa direção (com Brimsley cinco passos atrás

dela, natürlich), mas, antes de dar a conhecer a sua presença, parou. A voz

de Augusta fazia-se ouvir, incisiva. Ainda mais do que o habitual.

– Não me obrigues a formular a pergunta – disse Augusta.

Carlota fez um sinal a Brimsley para que ficasse em silêncio e recuou.

Não queria que a vissem.

– Não te quero obrigar – disse Jorge. – Não tens nada que ver com isso.

Trata-se do meu casamento.

Quaisquer pudores que Carlota tivesse quanto a escutá-los evaporaram-se

instantaneamente. Estavam a falar sobre ela. Tinha o direito de ouvir.

– O teu casamento é um assunto do Palácio – disse Augusta naquele seu

sotaque terrivelmente preciso. – O teu casamento é um assunto do

Parlamento. O teu casamento é um assunto deste país.

– Mãe…

– Isto não pode correr mal – interrompeu. – Preciso de saber se a levaste

para a cama como deve ser.

Carlota levou a mão à boca.

– Não devia ter de te lembrar que o destino da Coroa assenta nos teus

ombros – disse Augusta.


– Na minha cabeça, se calhar – resmungou Jorge.

Carlota sorriu, agradada com a tirada dele.

– Não sejas tolo – soltou Augusta. – Diz-me já. Fizeram o necessário?

– Disseste-me que eu tinha de casar pela Coroa – disse Jorge num tom de

voz coberto de impaciência. – Eu casei-me. Disseste-me para lhe agradar de

modo a tornar as coisas mais fáceis para a Coroa. Eu fiz o meu melhor.

Disseste-me que não podia deixá-la conhecer-me porque devo proteger os

segredos da Coroa. Eu não deixei.

Carlota sentiu-se enregelar. Ele não a deixara conhecê-lo? Que queria

isso dizer? Olhou para Brimsley, ainda cinco passos atrás dela. Estaria ele a

ouvir aquilo?

Mas Jorge não terminara ainda. A voz dele ergueu-se ao continuar o seu

discurso.

– Disseste-me para levá-la para a cama. Assim fiz. Eu compreendo. Foi-

me demonstrado com perfeita clareza desde a minha primeira respiração que

nasci para a felicidade ou infelicidade de uma grande nação e,

consequentemente, que é meu dever agir amiúde ao contrário das minhas

paixões.

Carlota não queria ouvir mais nada, mas não se conseguia mexer. Algo

começou a morrer dentro dela.

Não, não era morte. Era apodrecimento. Aquele terrível sentimento não

desapareceria tão depressa. Ainda pioraria, um centímetro pútrido de cada

vez.

– Sou a personificação do dever – disse Jorge, e agora a voz dele

amargava de sarcasmo. – A Coroa vive em mim, incrustada como uma faca.


Não precisas do mo explicar, mãe. A Coroa sou eu.

Carlota recuou um passo. Depois outro. Então, virou-se completamente

de costas. Brimsley observava-a com uma expressão cuidadosa. Ela passou

por ele e encaminhou-se para a sala de jantar.

– Tomarei agora o meu pequeno-almoço – disse, assim que garantiu não

poder ser ouvida por Jorge ou pela mãe dele. – Não há necessidade de

esperar pelo rei.


Jorge

CASA DE BUCKINGHAM

SALA DE ESTAR PRINCIPAL

...

16 DE SETEMBRO DE 1761

Casamento. O casamento é um assunto do Palácio. Assunto do Parlamento.

Parlamento. Câmara dos Lordes, lorde, lorde, lorde Bute, lorde Bute, não,

novos lordes, tantos novos lordes…

Jorge fechou os olhos com força. Tinha o pensamento acelerado de novo.

Não era suposto. Não naquele dia, não na melhor manhã da vida dele.

Manhã, manhã. Sol da manhã, calor do Sol, o Sol é uma estrela. Não

está provado, não está provado.

Carlota. Pensar na Carlota. No rosto, no sorriso dela.

Respirou fundo.

Governa-te.

Por que razão viera a mãe visitá-lo naquela manhã? Este estava tão feliz.

Tão ele mesmo. A mãe dele fora tão exigente, tão determinada a transformar

algo belo num mero dever. A voz dela perfurava-o, e ele só se queria livrar

dela.

Teria dito qualquer coisa para a ver pelas costas.

Tudo o que ele queria era aquele dia. Apenas um dia para se sentir como

um homem. Apenas um homem.


Só Jorge.

Ouviu um aclarar de garganta atrás de si. Reynolds.

– Ela já se foi embora? – perguntou Jorge.

Só Jorge. Só Jorge.

Ele era só Jorge. Tinha de se lembrar disso.

Governa-te.

– A mãe de Vossa Majestade já partiu. Eu garanti-o.

Jorge acenou com a cabeça, embora ainda estivesse de costas para

Reynolds. Endireitou-se. Tinha de se controlar.

– E Carlota?

– A rainha está a tomar o pequeno-almoço na sala de jantar. Se pretender

juntar-se a ela…

A voz de Reynolds esvaneceu-se. Jorge olhou para as mãos. Tremiam.

Não muito.

Mas o suficiente.

Só Jorge. Só Jorge.

Carlota estava na sala de jantar. Ela não o veria. Se ele caísse, se perdesse

o controlo…

Os joelhos dele cederam e Jorge agarrou o braço da cadeira mais próxima

antes de cair no chão. Reynolds avançou lestamente até ele, ajudando-o a

sentar-se na cadeira acolchoada.

– Vossa Majestade – disse Reynolds. Segurou no pulso de Jorge,

procurando sentir-lhe a pulsação. – Tem o coração muito acelerado.

– Eu sei.
– Chamo o médico? – perguntou Reynolds.

– Não. – Não conseguiria encarar Monro. Não naquela manhã. Não

quando estivera tão feliz. – Eu estou bem. Não preciso dele.

Mas tremia. Todo o seu corpo tremia agora. E se Carlota o visse…

– Sim. Sim. Manda-o vir.

Tinha de se pôr melhor. Não podia ficar assim. Já não podia.

Olhou para Reynolds com olhos suplicantes.

– A Carlota…

Reynolds fez um único e assertivo aceno com a cabeça.

– Nunca saberá disto.

CASA DE BUCKINGHAM

CAVE

...

QUINZE MINUTOS MAIS TARDE

Fora decidido que o doutor Monro deslocaria o seu laboratório para os

níveis inferiores de Buckingham. Mas apenas em parte. Não podia levar

tudo, nem sequer a grotesca cadeira. Algumas daquelas coisas eram

demasiado esquisitas para serem exibidas numa casa bastante ocupada.

Mesmo que no canto mais recôndito da cave.

Apenas algumas pessoas estavam a par do laboratório improvisado e,

entre o pessoa da casa de Buckingham, só Reynolds conhecia a verdadeira

identidade do médico e a razão para a sua mudança para li. Não se podia

saber que o rei estava a ser tratado por causa de um distúrbio nervoso.

Seria o caos no Parlamento. Os Britânicos perderiam a fé na Coroa.


E havia Carlota. Jorge não suportaria que ela testemunhasse um dos seus

ataques. Queria ter uma coisa na vida que permanecesse pura. Livre da

mácula da posição dele, dos deveres dele.

Da loucura dele.

Se tudo corresse conforme planeado, o doutor Monro conseguiria curá-lo.

Jorge ficaria coeso de novo – o tipo de pessoa que queria ser. O marido que

uma mulher como Carlota merecia.

– Estou desejoso de começar imediatamente – disse Jorge a Reynolds

enquanto desciam para a cave.

– Desejoso, senhor?

Reynolds estava claramente cético.

Jorge permitiu-se esboçar um sorriso trocista.

– Desejoso dos resultados – esclareceu.

Não estava desejoso do tratamento. Mas, até então, Monro havia sido o

único médico a obter alguma forma de sucesso. No dia do casamento,

conseguira arrancar Jorge de volta para a realidade. Fora necessária uma

bofetada na cara, mas Jorge acalmara-se. Os seus pensamentos desenfreados

foram domados e, quando encontrou Carlota no jardim da capela, sentia-se

suficientemente ele mesmo para ser capaz de conversar com ela. Namoriscar

com ela, até.

A primeira conversa deles fora mágica e não teria sido possível sem o

doutor Monro.

Assim, Jorge estava disposto a conceder ao médico o benefício de todas

as suas dúvidas.
Cerca de uma hora após Jorge ter descido à cave, chegou o médico, com

os seus dois robustos assistentes a reboque. Jorge quase estremeceu ao vê-

los. Reynolds mostrou-se-lhes declaradamente hostil.

– Eu previ isto – disse Monro como cumprimento.

– Eu não tive um ataque – declarou Jorge.

Monro olhou-o como que dizendo Então porque estou eu aqui?

– Senti um ataque aproximar-se – disse Jorge. Depois emendou-se. –

Senti a possibilidade de um ataque aproximar-se.

– Explique.

Jorge contou-lhe a conversa com a mãe, a forma como ela o pressionara

mais e mais, e como lhe parecera que ela estava a transformar algo belo

numa tarefa.

– O Jorge não merece a beleza – disse Monro.

Jorge não soube que dizer àquilo.

– É apenas um homem. Não é especial.

– Eu não sou especial – repetiu Jorge.

– Tem de compreender que não é melhor que ninguém.

– Eu compreendo.

– Não acredito – largou Monro.

– Doutor! – exclamou Reynolds. – Não pode duvidar da palavra dele. Ele

é o rei.

– Ele não é nada! – Monro bateu com a mão na mesa. – É apenas um

homem, em nada superior a ti ou a mim. Aliás – começou a caminhar,

percorrendo a divisão como um predador –, ele é inferior a ti e a mim.


Reynolds rangeu os dentes.

– Muito inferior – prosseguiu Monro –, e tem de ser reduzido a nada

antes de poder ser reconstruído. – Olhou diretamente para Jorge. – Quando

estiveres no meu laboratório, serás chamado de rapaz.

Reynolds virou-se para Jorge, atónito.

– Vossa Majestade – implorou. – Não pode…

– Não me interrompas! – gritou Monro, soltando cuspo da boca. – Foi-

me concedido o domínio absoluto sobre ele. Cada instante que tu perdes

ameaça a sua recuperação.

– Temos de deixá-lo tentar – disse Jorge a Reynolds.

– Senhor, eu não creio que…

– Ele já me ajudou uma vez – disse Jorge. – Antes do casamento. Tenho

de acreditar que me conseguirá ajudar de novo.

Reynolds cedeu, mas estava manifestamente desagradado. Monro, por seu

lado, sorria ao dizer:

– Deduzo que iremos trabalhar em sigilo.

Jorge anuiu com a cabeça.

Monro fez um gesto na direção dos seus assistentes.

– Então, não poderão ser eles a fazer-me recados. Já que, oficialmente,

não existem.

Olhou para Reynolds.

– Não – disse Reynolds. Mas não era tanto uma recusa, era mais uma

declaração de incredulidade.

– Por favor – disse Jorge. – Eu tenho de tentar.


Reynolds concordou com um encolher de ombros e um aceno da cabeça.

Monro olhou para ele, triunfal, e depois inclinou a cabeça na direção de

Jorge.

– O rapaz precisa de um banho de gelo.

Reynolds olhou para Jorge, que assentiu com a cabeça. Só então se foi

embora.

Monro indicou aos assistentes que aguardassem atrás dele, e depois

dedicou toda a sua atenção ao seu paciente.

– Estás habituado ao esplendor – disse, percorrendo o espaço com as

duas mãos abertas em concha, encostadas uma à outra pelas pontas dos

dedos. – Ao luxo. Ao conforto. Nunca conheceste os salutares poderes dos

hábitos espartanos.

Jorge refletiu.

– Se a opulência leva a distúrbios mentais, porque não são todos os reis

loucos?

– Quem diz que não?

– Tenho a certeza de que o meu pai era mentalmente são. E o meu avô,

também. Cruel – acrescentou Jorge, como que pensando alto, pois o seu avô

nunca dava descanso à vara –, mas seguramente são.

– Não tenho como saber. Nunca os examinei. – Monro avançou,

aproximando desconfortavelmente o seu rosto do de Jorge. – Para a maior

parte do mundo, tu transmites uma imagem de sanidade mental. Só uns

poucos escolhidos conhecem a tua verdadeira natureza.

– Gostaria que as coisas se mantivessem assim.

Monro assentiu com a cabeça.


– Precisamos de simplificar. Primeiro, voltaremos à dieta de mingau e

nabos.

– Creio que não será possível – disse Jorge. Fez um gesto para cima,

indicando o resto da casa. – Como explicar isso?

– Eu disse que era má ideia deixar Kew. Não conseguiremos resultados

ótimos aqui.

– Então, teremos de dar o nosso melhor.

A boca de Monro cerrou-se num esgar zangado.

– Os meus métodos pressupõem o seu uso por inteiro. Não resultarão se

escolhermos só partes.

– Então eu escolho as partes que poderão ser levadas a cabo na casa de

Buckingham – disse Jorge. – De certeza que isso será melhor do que nada.

Monro soltou um sopro de irritação.

– Amordaça-o – disse a um dos seus assistentes.

Jorge não ofereceu resistência. Fizera-o na primeira vez. Fora puro

instinto. Agora já estava preparado.

Submeter-se-ia. Aquilo torná-lo-ia coeso.

No final daquele dia, Jorge estava exausto. E gelado. Monro recorrera duas

vezes ao banho de gelo, alegando que a duplicação era necessária para

compensar a falta da cadeira de ferro. Outubro trouxera o frio, e apesar de a

sua construção ser relativamente recente, a casa de Buckingham tinha

correntes de ar. Reynolds trouxera-lhe um cobertor, mas Jorge recusava-se a

ser visto a andar pela casa embrulhado como um bebé.


Monro queria domá-lo. Jorge percebia isso. Mas seguramente tinha

direito a manter algum do seu orgulho.

Estava desejoso de ver Carlota. Era ela, a par da ciência, que lhe trazia

alegria. Era ela a razão por que se estava a submeter àquilo.

Não sabia como havia ela ocupado o seu dia. Se os relatórios anteriores

estavam corretos, provavelmente ocupara-o a ler um livro e olhar pela janela.

Talvez tenha brincado com Pompom. Soubera que ela se havia finalmente

ligado ao cão.

Fosse como fosse, Carlota teria tido um dia muito mais agradável do que

ele.

Contava vê-la depois de comer e tomar um banho quente, mas

encontraram-se antes disso, no corredor que dava acesso aos seus quartos.

Carlota estava já vestida para jantar, usando um elaborado vestido num

profundo tom bordeaux. Trazia o cabelo penteado de uma forma que Jorge

imaginou ser enganadoramente simples.

As mulheres eram criaturas misteriosas.

– Carlota – disse.

Sorriu. Estava feliz por vê-la, mesmo não estando no seu melhor.

– Jorge.

Jorge franziu o sobrolho. Carlota não parecia agradada. Aliás, soara

bastante desagradada.

Reparou no livro que ela trazia na mão.

– Tens estado a ler?

– Sim.
Carlota estendeu para o lado a mão com o livro. Brimsley materializou-se

imediatamente e levou-o.

– Alguma coisa interessante?

– Poesia.

– E gostaste?

Carlota encolheu os ombros.

O tom daquela conversa não correspondia nada às expetativas dele.

Carlota parecia quase rabugenta. Ainda assim, ele perseverou. Olhou para

Brimsley, que olhava fixamente para ele com mal disfarçada hostilidade.

Que raio?

Jorge olhou para Reynolds, que ainda segurava o cobertor. Também ele

olhava para Brimsley. Parecia a Jorge que os dois estavam a tentar

comunicar em silêncio.

Mas eles conheciam-se?

Deixou escapar um suspiro. Estava exausto e sem paciência para intrigas

palacianas. Voltou a dedicar a sua atenção a Carlota, procurando ao máximo

manter-se animado apesar da sua soturna disposição.

– Posso perguntar-te quem é o autor?

– Shakespeare – disse ela.

– Ah. Sonetos, então.

– Sim.

Meu Deus, era como arrancar dentes. Nunca a conhecera tão pouco

comunicativa. Não que a conhecesse há muito tempo. Ainda assim, não

parecia ela.
– Tens algum preferido? – perguntou-lhe.

Carlota olhou-o nos olhos. Não zangada, apenas… sem qualquer emoção.

– Deverei comparar-te a um dia de verão? – sugeriu ele.

Não?

Tentou de novo.

– Os olhos da minha amada não são como o sol?

Carlota arqueou uma sobrancelha e recitou de cor:

– Quando o meu amor jura ser feito de verdade, eu acredito nele, apesar

de saber que mente.

Aquilo foi inesperado.

Jorge levou algum tempo a aclarar a garganta.

– Creio que alteraste os pronomes. Não é este poema escrito por

Shakespeare para uma mulher?

– Acrescentei-lhe a minha própria interpretação.

– Carlota – disse, e tirou, por fim, o cobertor a Reynolds. Sabia Deus

quanto tempo ficarias ainda naquele corredor a desconversar, raios, estava

com frio. – Passa-se alguma coisa?

Carlota sorriu, toda ela dentes e insinceridade.

– Eu estou perfeitamente maravilhosa.

Aquilo era evidentemente falso, mas ele não tinha energia para discutir

com ela. Olharam um para o outro durante algum tempo e depois ela fez um

movimento indicando que pretendia contorná-lo.

– Tenho muito que fazer – disse.

– Ainda não te tinha visto hoje.


A postura de Carlota ficou mais tensa.

– E por escolha de quem?

– Carlota, deves saber que eu tenho deveres enquanto rei.

Tecnicamente, não era mentira. Ele tinha deveres reais. Só não haviam

sido esses deveres a causa da sua ausência.

– Sim, eu sei bem dos teus deveres. – Mostrou-lhe outro falso sorriso. –

Eu sou um deles, não sou?

De onde vinha toda aquela hostilidade? Jorge abanou a cabeça.

– Tu és tudo menos um dever.

Carlota fez uma expressão de escárnio.

Jorge inclinou a cabeça para o lado, rigidamente, procurando manter o

seu temperamento sob controlo. Tinham gritado violentamente com ele

durante o dia inteiro. Fora brutalmente submerso num banho de gelo – duas

vezes. Tudo por ela.

E ela não conseguia sequer falar-lhe educadamente.

– Tenciono jantar no quarto esta noite – disse Jorge. – A ideia de ter de se

vestir a rigor era extenuante. E talvez o humor dela melhorasse quando

ficassem os dois a sós. – Fazes-me companhia?

– Tenho planos.

– Planos – repetiu ele secamente.

– Já me vesti – disse Carlota, com um gesto na direção do seu requintado

vestuário. – Jantarei formalmente.

– Eu preferia que jantasses comigo.


– Brimsley – disse Carlota rispidamente. – Sou esperada na sala de

jantar?

– Ehhh… – Brimsley olhava freneticamente do rei para a rainha.

– Brimsley – repetiu Carlota.

– Sim, Vossa Majestade. Creio que é…

– Ah, mas ela é a rainha – interrompeu Jorge. – É ela que decide o que

faz, não é?

Brimsley engoliu, refletindo.

– Sim, Vossa Majestade. É…

– Brimsley – Carlota quase ladrou –, trabalhas ou não trabalhas para

mim?

Agora, Brimsley transpirava visivelmente.

– Trabalho, sim, Vossa Majestade. Sirvo-a em tudo…

– Brimsley – disse Jorge, erguendo a voz à segunda sílaba –, quem é que

te contratou?

A cabeça de Brimsley ia de um para outro, até que se virou para

Reynolds, em desespero.

Reynolds virou o olhar para os pés.

– Fui contratado pela família, Vossa Majestade – disse Brimsley, por fim,

a Jorge.

– Família chefiada por…

– Por Vossa Majestade.

– Traidor – ciciou Carlota.

– Vossa Majestade – implorou Brimsley.


– Pouco importa – disse Jorge, já sem paciência. – Faz como queiras,

Carlota. O meu tempo é demasiado valioso para ficar aqui a discutir contigo.

Chegou-se para a esquerda, tentando contorná-la, mas estavam quatro

pessoas naquele corredor, e as malditas saias dela bloqueavam o caminho.

Jorge praguejou entredentes.

Carlota arfou.

– Que foi isso?

– O raio das tuas saias. São demasiado largas – resmungou Jorge.

Carlota encolheu o queixo. A sério. Aquilo é que a ofendia?

– Ficas a saber que estou nos píncaros da moda – disse, cortante.

– Tenho a certeza.

– Eu é que dito a moda.

– Que maravilhoso para ti. Agora, se me dás licença…

Passou de raspão pelas saias dela, e talvez fosse de facto uma pessoa

maléfica, como o doutor Monro insistia em afirmar, pois retirou algum

prazer do facto de ela se ter desequilibrado.

– Talvez tu sejas um dever para mim – soltou Carlota.

Jorge virou-se lentamente para olhar para ela?

– Ah, sim?

Carlota espetou o queixo.

– Muito bem – disse ele.

– Muito bem.

Mas, naquele instante, Reynolds interveio.


– Vossa Majestade – disse.

Estava de costas para a rainha, por isso ela não conseguiu vê-lo olhar

incisivamente para as mãos de Jorge.

Tinham começado a tremer.

– Boa noite, Carlota – disse Jorge. – Que tenhas uma boa refeição.

– Terei. Eu…

Mas Jorge já permitira a Reynolds que o apressasse a ir embora dali.


Carlota

CASA DE BUCKINGHAM

THE QUEEN’S BEDCHAMBER

...

NA MESMA NOITE, MAIS TARDE

Carlota estava aninhada na cama, depois de se ter lavado e de ter vestido a

sua camisa de noite mais antiga e mais macia, quando ouviu bater à porta.

Estranho. As criadas nunca batiam à porta. Entravam e saíam como

fantasmas. Era suposto que Carlota não reparasse nelas e, na maior parte das

vezes, não reparava mesmo.

Devia ser Brimsley. Ele nunca entraria sem se fazer anunciar depois de

ela já se ter deitado. Envergonhava-se com muita facilidade.

Bem. Teria de vê-la com a sua touca de dormir e os seus cremes para os

olhos e todos aqueles truques femininos secretos que não era suposto os

homens conhecerem.

– Entre – gritou, esperando ver entrar a diminuta silhueta do criado.

Mas foi um homem muito mais alto que entrou no quarto dela. Muito

mais encorpado.

Jorge.

Carlota sentiu os lábios abrirem com a surpresa, esfregando

apressadamente o creme que tinha no rosto. Porque estava ele ali? Ela não

passava de um dever para ele. Ele dissera-o muito claramente, e ela

lembrava-se de cada palavra com precisão cirúrgica:


Disseste-me para levá-la para a cama. Assim fiz. Eu compreendo. Foi-me

demonstrado com perfeita clareza desde a minha primeira respiração que

nasci para a felicidade ou infelicidade de uma grande nação e,

consequentemente, é meu dever agir amiúde ao contrário das minhas

paixões.

Ela era um dever. Uma tarefa. E ele nem sequer a desejara

verdadeiramente.

Ela tê-lo-ia tolerado melhor caso ele não lhe tivesse mentido. Ele fizera-a

sentir-se desejada. Adorada, até. Dissera-lhe que ela era especial,

incomparável. Uma joia rara.

Fizera-a sentir que a união deles podia ser incomum, podia ser mais do

que apenas um tratado diplomático.

Pior do que tudo, fizera-a sentir esperança.

Levara-a a crer que com ela ele poderia ser Só Jorge. E que ela talvez

pudesse ser Só Carlota.

Teria sido melhor que ele se tivesse mantido horrível. Ela não se sentiria

tão traída.

– Boa noite – disse ela.

Levando tudo em conta, estava bastante orgulhosa da sua urbanidade.

Quisera dizer: por que raio estás tu aqui?

E talvez atirar-lhe com alguma coisa.

– Boa noite – disse ele em resposta.

Trazia vestido o seu robe, o mesmo da noite anterior. Seguramente não

pensava que eles iriam fazer… aquilo… outra vez! Depois de tudo o que ele

dissera dela?
Só que ele não sabia que ela ouvira.

Aquilo era um problema. Carlota não queria admitir que escutara a

conversa dele. Tal comportamento era indigno dela, e, além disso, havia

qualquer coisa de terrível em admitir que conhecia a verdade. Como

conseguiria ela olhá-lo e dizer «Eu sei que sou apenas mais um dos teus

deveres reais»?

Era mais fácil fingir que ela não gostava dele.

– Não te vi hoje ao jantar – disse ele.

– Eu disse-te, preferi jantar formalmente.

– Gostaste da tua refeição?

Carlota fitou-o. Estaria ele de facto no quarto dela a fazer conversa de

circunstância? A que propósito?

– Não tinha fome – disse ela, por fim.

– Eu tinha – respondeu ele. Atravessou o quarto e encostou-se à beira da

cama dela. – Muita.

E ficou ali. A olhar para ela.

– Vou ler – declarou Carlota.

Lançou a mão a um dos livros que deixara na sua mesa de cabeceira e

pegou nele. Jorge não era desprovido de inteligência. Perceberia a deixa.

Visto ele não dizer nada, ela abriu o volume com mais barulho do que

seria necessário e folheou até à página do título. Era um livro em alemão.

Ótimo. Precisava de algo familiar naquela noite.

– Muito bem.

Jorge desencostou-se da cama e contornou-a até ao outro lado.


– Que estás a fazer? – perguntou Carlota quase num guincho.

– Estou a deitar-me. Pensei que seria óbvio.

Carlota arrastou-se até à ponta oposta do colchão.

– Tu não podes dormir aqui.

– Fiquei com a impressão de que o nosso casamento era um casamento

verdadeiro.

– Talvez seja – disse Carlota. – Mas não esta noite.

Jorge interrompeu os seus movimentos e olhou para ela com um ar

friamente avaliador.

– Posso saber por que não?

– Tenho de ter uma razão?

As sobrancelhas dele ergueram-se.

– Se quiseres que eu te veja como outra coisa que não uma mulher

inconstante, então, sim, tens.

– Muito bem – disse ela, fechando o livro sobre um dedo, como se

precisasse de marcar o sítio onde ia. Mais valia que ele pensasse que ela

estivera de facto a ler. – Eu não te vi o dia inteiro.

– É essa a tua razão? – O rosto dele denunciava a sua surpresa, e ele

parecia capaz de começar a rir dela. – Não me viste o dia inteiro.

Até Carlota tinha de admitir que era um argumento fraco.

– Bem… – começou a empatar.

– O dia. Este dia. Este dia específico.

Ela retesou-se.

– Agradeço que não gozes comigo.


– Não estou a gozar. Estou só a tentar compreender.

– Eu sinto-me gozada.

Jorge inclinou a cabeça para o lado como se precisasse de um tempo para

catalogar os seus pensamentos.

– Muito bem. Sim, estou a gozar contigo. Mas apenas porque tu estás a

ser ridícula.

– Se eu não tenho autonomia corporal, que me resta?

Aqui, ele riu-se mesmo. Com força.

– Nenhum de nós tem autonomia corporal. Somos ambos precisos para

fazer um bebé.

– Sim, eu sei – murmurou Carlota. – Vives para a felicidade e infelicidade

de uma grande nação.

– Ah. Então ouviste-me dizer isso.

Carlota sentiu-se gelar. Teria de admitir que estivera a escutar conversas

alheias.

Mas depois ele acrescentou:

– Já proferi esse discurso inúmeras vezes. Tantas, que receio que possa

vir a suplantar o lema oficial do soberano, «Deus e o meu direito». Mas há

algo que deves saber. Fui sincero sempre que o disse. Eu não sou dono de

mim mesmo, Carlota. A coroa pesa sobre a minha cabeça.

Pesaria também em breve sobre a dela. Literalmente. Não faltava muito

para a coroação.

– Enquanto soberano, eu tenho deveres. Tu sabes isso.

– Deveres – desdenhou ela.


Começava a detestar aquela palavra.

Jorge respirou fundo. De uma forma muito prolongada e um pouco

estranha, para dizer a verdade.

– Eu tive um dia exigente – disse por fim. Fez uma pausa e parecia estar a

fazer algo estranho com as mãos. Acabou por fechá-las em punhos cerrados

e pousar os braços ao lado do corpo. – Não me apetece discutir com a minha

esposa.

– Não tens de discutir com a tua esposa. Só tens de voltar para o teu

quarto.

– Eu quero dormir aqui – disse ele, soando como se cada palavra fosse

extraída da sua própria alma. – Estava à espera de algum conforto.

– Conforto – repetiu ela.

– Sim, conforto. Da minha esposa, por quem tenho estado… – Praguejou

impercetivelmente.

E então aconteceu uma coisa estranhíssima. A boca dele não se mexeu,

mas ela juraria que ele falava consigo mesmo.

– Tu és a minha esposa – disse ele alto, por fim.

Ela abanou a cabeça.

– Tu não podes ignorar-me o dia inteiro e depois esperar que eu me deite

aqui e… e…

– E?

– E… te sirva à noite.

O queixo de Jorge caiu-lhe.

– Me sirvas? É assim que lhe chamas?


– Foi a minha primeira vez. Nem sei como lhe chamar.

Jorge afastou a roupa da cama com força suficiente para atirar pelo ar

uma das almofadas cor-de-rosa dela.

– Tinha ficado com a impressão de que tinha sido prazeroso para ti.

– E foi… – Carlota procurou não parecer superficial. – Agradável, acho.

– Agradável.

Jorge subiu para a cama, de gatas.

Carlota tentava não olhar para ele, mas ele pairava sobre ela, e isso fazia-

a sentir coisas.

– Agradável – repetiu ela.

– Que parte achaste agradável?

– Perdão?

– Que parte – aproximou-se dela – achaste agradável.

– Eu… Bem…

O rosto dele assumiu uma expressão felina.

– Foi quando eu te beijei?

– Bem, sim, mas… – Raios. Ela não lhe queria admitir nada daquilo.

– Foi quando eu te toquei… aqui?

Carlota deu-lhe uma palmada na mão antes de ele lhe conseguir acariciar

o pescoço.

– Eu não te quero – disse ela.

– Mentirosa.
– Pronto. Eu não quero querer-te. – Tentou deslizar para longe dele, mas

ele havia, inadvertidamente, prendido a colcha de damasco em roda dela

quando se aproximara. Ela puxou-a, sem grande sucesso. – E seguramente

não te quero esta noite.

Aquilo pareceu diverti-lo.

– Não me queres esta noite ou não queres querer-me esta noite?

Carlota abanou a cabeça.

– Tu és louco.

Jorge soltou uma gargalhada sinistra.

Carlota conseguiu por fim libertar-se de algumas das roupas da cama e

afastou-se um bocadinho.

– Não podes apenas passear-te até ao meu quarto e esperar que eu cumpra

o meu dever.

– Se bem me lembro, tu gostaste do teu dever. E, já agora, passear-me?

– Não sejas pedante.

– Eu não me passeio. – Jorge sentou-se nos calcanhares, exibindo no

rosto uma expressão de incredulidade. Talvez repugnância. – Não tenho

tempo para me passear.

– E como poderia eu saber isso se nunca te vejo?

Ele revirou os olhos.

– Há coisas que eu tenho de fazer.

– Que coisas?

– Coisas privadas.

Ela revirou os olhos.


– Há coisas na minha vida que não têm nada que ver contigo.

O volume da voz dele começava a subir e ele começava a fazer aquela

coisa engraçada com as mãos que fazia quando estava nervoso.

Estranhamente, era uma das coisas de que ela mais gostava nele – que

também ele se sentisse por vezes nervoso quando estavam juntos. Isso fazia

a sentir-se menos sozinha.

– Podes ser a minha esposa – disse Jorge –, mas isso não te dá acesso a

cada recanto da minha existência.

– Então também tu não terás acesso a cada recanto da minha existência.

Não se importava que soasse infantil; tinha de deixar a sua posição clara.

– Carlota, isto tem de ser feito.

Apontou para a cama. Ambos sabiam o que ele queria dizer.

– Eu não quero – disse ela com a voz muito fraca.

Porque estava a mentir. Sabia que estava a mentir. Ela queria-o. Queria o

seu marido. Fora despejada da sua terra e enviada para outro lado do mar.

Sozinha.

Queria sentir-se próxima de outro ser humano.

Mas queria que esse ser humano fosse o Jorge que ela pensava que ele

era. Só Jorge.

Só Jorge era gentil e divertido e, quando ele a beijava, ela perdia toda a

racionalidade.

Este Jorge – que lhe chamara um dever e lhe recordara que «isto tem de

ser feito» – talvez também fosse capaz de a fazer perder toda a racionalidade

com um único beijo.


Mas o coração dela permaneceria intocado.

E ainda assim não conseguia deixar de pensar nele – na forma como

inclinava a cabeça quando sorria, no som exato do riso dele. Não conseguia

deixar de pensar no beijo que haviam dado no observatório, em Kew, e na

forma como ele lhe dissera que estava desejoso de lhe tocar. Mas, sobretudo,

não conseguia deixar de pensar na perfeita noite deles. Quando ele lhe

percorrera o corpo com a língua e…

– Arrrrrrgh.

– Isso foste tu a rosnar? – perguntou ele.

– Não.

Deus do Céu, aquilo era humilhante.

– Bem, chega-te para lá, está na altura de fazermos isto.

– Já te disse. Eu não quero.

Jorge praticamente saltou ao longo do colchão até estar a poucos

centímetros dela. Sorriu.

– Não acredito em ti.

– Então eras capaz de me obrigar?

Jorge sorriu. Como um velhaco.

– Não chegaria a tanto.

– Bem, eu não te aceito.

– Beija-me – disse ele abruptamente.

– Perdão?

– Beija-me. Uma vez. Se ainda assim não me quiseres, então irei embora.

Carlota desdenhou-o.
– Não sejas absurdo.

– Estás com medo?

– Medo? Claro que não. Eu não tenho medo de ti.

– Ótimo – disse ele. – Nunca pensei que tivesses. Tu tens medo de ti

mesma.

– Não tenho nada.

– Tens, sim.

– Não tenho, não.

– Pareces uma criança.

Parecia mesmo, e atribuía-lhe as culpas disso. Ele era a única pessoa que

despertava nela tamanha truculência. Com todas as outras pessoas, ela era

uma conversadora cintilante.

– Que dia é hoje? – perguntou ela de súbito.

Jorge pestanejou e abanou a cabeça, confundido por aquela repentina

mudança de assunto.

– Terça-feira, creio.

– A data – disse ela incisivamente. – Queria saber a data.

– É 16 de setembro.

– Dias pares, então – disse Carlota, acenando com o braço na direção do

resto da cama. – Faremos isto nos dias pares.

– Dias pares – repetiu ele.

– Foi o que eu disse.

E, se soava orgulhosa, que assim fosse. Resgatara o controlo da situação.

Ele poderia acabar por receber o que queria, mas seria nos termos dela.
Mas Jorge ainda olhava para ela como se ela estivesse confusa.

– Teremos um calendário para a copulação.

Carlota encolheu os ombros.

– Se quiseres falar disso em termos assim tão clínicos.

– Dada a ausência de sentimentos entre nós, os termos clínicos são os

únicos que nos restam para falar disto.

– Evidentemente.

– Muito bem.

Jorge apontou com um gesto da cabeça para o livro dela, ainda na sua

mão esquerda.

– Que é?

– Livra-te disso. Temos trabalho a fazer.

Carlota sentiu a cabeça baralhada. De que estava ele a falar?

– Hoje é um dia par – disse ele.

Tirou-lhe o livro da mão e atirou-o para o lado.

– Oh.

Oh.
Jorge

Aquela fora uma vitória pírrica, mas Jorge decidiu que não se importaria

com isso.

– Não são sonetos de amor desta vez? – ironizou.

– Não eram sonetos de amor da outra vez.

Afastou as cobertas para o lado e aproximou-se até ficar sobre ela, ainda

de gatas.

– Não serão sonetos de amor agora – avisou.

Estava a ser cruel, mas ela, ao rejeitá-lo, também fora cruel. Seria de

pensar que a noite de núpcias deles tivesse significado alguma coisa.

Significara alguma coisa para ele.

Olhou para baixo, perscrutando os olhos dela em busca de sinais de medo

– não se achava capaz de viver consigo mesmo caso ela tivesse medo dele.

Tudo o que encontrou foi um desafio excitado. Os olhos dela cintilavam

energicamente e a respiração dela tornava-se mais rápida e mais curta.

Tal como a dele.

– É uma pena que detestes tanto o meu toque – provocou, percorrendo a

lateral do pescoço dela com os dedos.

Ela estendeu a mão na direção do meio das pernas dele e apertou.

– É uma pena que tu detestes tanto o meu toque.

Ah, com que então era esse o jogo que ela ia jogar? Jorge fê-los ambos

rebolarem de modo a ela ficar por cima, agarrou na sua larga camisa de
dormir pela bainha e despiu-lha pela cabeça com um puxão.

– Sem botões – disse, aprovador.

Carlota arfou perante a agilidade dos gestos dele, mas se ficou

envergonhada por se encontrar nua, não o revelou. Ao contrário disso,

apertou-o com mais força.

Com um bocadinho de força a mais, para dizer a verdade.

Mas aquilo era novidade para ela. Não conhecia a fronteira entre o prazer

e a dor de um homem.

Ou, pelo menos, assim esperava ele. De outra forma, ela estaria a tentar

causar-lhe sérios danos.

– Com um pouco menos de vigor – disse ele, introduzindo a sua mão

entre a dela e o seu membro.

O seu roupão abrira-se, por isso, encontrava-se agora tão nu quanto ela.

– Assim – mostrou-lhe, demonstrando como gostava de ser agarrado e

afagado.

E, em nome do fair play, retribuiu-lhe o favor.

– Gostas disto? – Murmurou, tocando-lhe delicadamente entre as pernas.

Ela anuiu com a cabeça.

– Sim, isso. Não, isso.

Jorge sorriu felinamente. Movera os seus dedos muito ligeiramente e

parecia ter encontrado o ponto que lhe dava mais prazer.

Massajou, com delicadeza.

– Oh, sim.

E depois em círculos.
– Assim?

Carlota anuiu com a cabeça freneticamente.

– Posso fazer ainda melhor.

Ela parecia não acreditar.

– Espera e verás – murmurou Jorge, e então, antes de ela conseguir

sequer perceber que estava ele a fazer, ele virou-a e desceu por ela abaixo até

ficar com o rosto mesmo entre as pernas dela.

Carlota encolheu-se, surpreendida.

Ele lambeu.

– Jorge! Que estás a fazer? Não podes…

– Ah, posso, sim – disse ele, parando apenas por um momento para olhar

para ela. – E tu vais gostar.

– Tens a certeza?

Ele parou de novo.

– Se não gostares, diz-me.

Carlota concordou. Pelo menos confiava nele.

Jorge já fizera aquilo antes, mas não muitas vezes. A cortesã que o tio lhe

havia enviado quando ele tinha 16 anos assegurara-lhe que as mulheres

adoravam aquilo.

– Serão tuas para sempre – dissera ela, logo após lhe dar uma palmadinha

condescendente no nariz. – Desde que o faças bem.

Tinha quase a certeza de ter aprendido a fazê-lo razoavelmente bem, mas,

para dizer a verdade, aquilo sempre lhe parecera como uma espécie de tarefa

a cumprir.
Não era egoísta; preocupava-se realmente com o prazer da mulher na sua

união. Mas para ele, aquilo era, sinceramente, um pouco entediante.

Até agora.

Beijar Carlota tão intimamente era uma revelação. O sabor dela, o

calor… Os sons que ela fazia a cada pequena lambidela e mordiscadela… O

prazer dela alimentava o dele de uma forma que ele não sabia ser possível.

De cada vez que ela gemia e estremecia, ele sentia-se a ficar

impossivelmente ainda mais duro. Não sabia por quanto tempo mais

conseguiria manter tamanha excitação e, no entanto, algo no seu interior

impedia-o de parar.

Queria fazê-la explodir. Isso tornara-se a ambição da sua vida.

Penetrou-a com um dedo.

– Oh!

Carlota emitiu um gemido suspirado. Ele sorriu encostado a ela.

– Gostas disto, não gostas? – murmurou.

Passou de um para dois dedos.

As ancas dela resistiram-lhe e ela gritou o nome dele.

– Espera – arquejou. – Não consigo!

Jorge voltou a sorrir. Conseguiria e fá-lo-ia.

E ele levá-la ia até lá.

– Mais não – gemeu Carlota. – Mais não.

Jorge olhou para ela, perguntando-se se ela conseguiria ver a forma como

humedecera a pele dele.

– Queres mesmo que eu pare?


– Não – quase que gritou, enfiando os dedos nos cabelos dele e

empurrando-o de volta para baixo.

Ele riu, deliciado, e redobrou os seus esforços. Ela bem podia dizer que

não o queria, mas ambos sabiam a verdade. Ele conduzi-la-ia ao clímax e

ela nunca mais poderia dizer que não o desejava.

Podia talvez um dia decidir que não gostava dele, mas ele saberia para

sempre que ela o queria.

– Jorge – gemeu de novo. – Jorge Jorge Jorge.

Ele mexia os dedos enquanto a lambia, reproduzindo os movimentos de

fazer amor mas acrescentando um ondular, e então…

A vez seguinte em que o nome dele saiu dos lábios dela foi na forma de

um grito.

Jorge deslizou por ela acima até ao seu rosto ficar junto ao dela.

– Gostaste, não gostaste?

Ela não conseguia falar.

– Vou interpretar isso como um sim.

Posicionou-se, de modo a abrir ainda um pouco mais as pernas dela, já

afastadas.

– Estás pronta?

Carlota anuiu com a cabeça, lentamente, e ele investiu.

Ela estava gloriosamente molhada, mas aquela era apenas a sua segunda

vez e ele sabia que tinha de lhe dar tempo para o acomodar.

– Diz-me se eu te magoar – disse Jorge.

Carlota abanou a cabeça furiosamente.


Ele parou.

– Estou a magoar-te?

– Não, só quis dizer que te avisarei.

Graças a Deus. Ele teria saído dela. Teria. Mas seria como matá-lo.

Mexeu-se devagar, ou pelo menos tão devagar quanto conseguia, até estar

finalmente todo dentro dela.

– Carlota – gemeu, porque, sinceramente, naquele momento ela

compunha todo o seu mundo.

Recuou, e a fricção enviou arrepios de prazer pela sua coluna abaixo.

Os dedos de Carlota apertavam-lhe os ombros, e as ancas dela

arquearam-se, e ele mergulhou mais fundo. E outra vez, e mais outra, até

que os seus movimentos perderam todo o ritmo, e tudo o que restava era

necessidade.

A cama abanava e rangia, e ele continuava a investir contra ela, mas ela

acompanhava cada movimento, e então ele sentiu-a atingir o clímax de novo,

apertando-o com tanta força que o levou a perder o controlo.

– Carlota – gritou, derramando-se nela, em quantidades que nunca

pensou possíveis.

Por fim, soçobrou, rebolando para o lado para não a esmagar.

– Meu Deus – disse.

Carlota apenas respirava. Ruidosamente.

– Isto foi… Isto foi… – Não tinha palavras. A sério. Ela roubara-lhe o

sentido. O que era provavelmente irónico.

– Fizemos um bebé? – perguntou ela.


Jorge rodou a cabeça, sobressaltado pela pergunta.

– Levaremos algum tempo até saber.

– A sério?

Jorge sentiu o sobrolho franzir-se lhe.

– Pensei que te tinham explicado como era.

– E explicaram. Disseram-me que talvez tivéssemos de o fazer várias

vezes, mas eu assumi que saberíamos imediatamente se tinha resultado.

– É quando te faltam as regras. É assim que sabes.

– Eu sei isso – disse ela, num tom algo impaciente. – Quer dizer, eu sei o

que significa faltarem-me as regras. Apenas pensei que uma pessoa já

saberia por essa altura. Que… de alguma forma…

– Perceberias quando acontecesse?

Ela anuiu com a cabeça.

– Não – disse ele, voltando a olhar para o teto.

Carlota emitiu um som irritado. Não gostava de ser ignorante – ele já

aprendera isso acerca dela.

Para ser sincero, não podia censurá-la.

– Bem – disse ela –, talvez devesses ir agora.

– Ir?

– Estás no meu quarto.

Sim. E ele pensara que ficaria ali. Ela passara a noite no quarto dele

quando haviam feito aquilo na véspera. Mas isso fora antes de ela se ter

tornado tão fria e distante.


Carlota sentou-se na cama, encostando as roupas ao seu corpo. Para se

aquecer? Para se esconder? Isso parecia absurdo, dado o que ele lhe acabara

de fazer. As mulheres não faziam qualquer sentido para ele, e ela muito

menos.

Ele pensava que ela gostava dele. Ela dera-lhe todos os sinais de

considerá-lo um ser humano merecedor do tempo dela. Deixara a cama,

naquela manhã, reduzido a alegria. Mas quando voltou a vê-la, no final

dessa tarde, ela estava fria. Talvez tivesse percebido a verdade acerca dele.

Ou se não a verdade, uma aproximação. Ele não a merecia. Muito

possivelmente, nunca viria a merecê-la.

– Então? – perguntou ela, apontando com a cabeça na direção da porta.

– Estás mesmo a pedir-me que me vá embora? – perguntou. – Depois

de… – apontou com a cabeça na direção da cama – aquilo?

– Aquilo não muda nada.

Ele puxou as cobertas para trás, indiferente às suas nudezes.

– Aparentemente, não.

– É nosso dever fazer um bebé – disse Carlota. – Nada mais.

Jorge procurava recuperar o seu robe do fundo da cama. A atividade deles

fora tão acrobática que o robe ficara enrolado à volta do poste.

– Nada de nada – resmungou, dando puxões até libertar o raio da coisa.

– Vemo-nos daqui a dois dias – disse ela com formalidade.

Jorge apertou o cinto com um nó selvagem.

– E nem um minuto antes – resmungou.

– Será para mim um grande prazer não te ver.


– Igualmente – retorquiu ele na mesma moeda. – Quanto mais depressa

ficares grávida, mais depressa poderemos acabar com esta – fez um gesto em

direção à cama com o seu melhor desdém real – atuação.

Carlota encolheu os ombros.

– O nosso dever será cumprido. Poderás depois voltar para as tuas

estrelas e o teu céu em Kew, e eu não terei de voltar a ver a tua cara.

Ele desenhou uma vénia jocosa.

– Vossa Majestade.

Ela ofereceu-lhe um aceno régio. A ele! E depois apontou para a porta.

– Sai.

– Com prazer.

Escancarou a porta e saiu.

CASA DE BUCKINGHAM

LABORATÓRIO DE MONRO

18 DE SETEMBRO DE 1761

Os dias que se seguiram não foram melhores. Jorge continuava sem ideia

alguma da razão por que Carlota estava tão aborrecida com ele, mas,

sinceramente, estava tão zangado que não tinha a certeza de querer saber.

Mais concretamente, não tinha tempo para se preocupar com ela. Monro

havia intensificado o seu tratamento e agora Jorge passava a maior parte do

dia na cave da Casa de Buckingham.

O médico lamentava a perda da sua cadeira de ferro e estava convencido

de que o progresso de Jorge sofria por causa disso.

– E a tua dieta, também – disse o doutor Monro. – É um problema.


– Se eu pudesse comer o mingau ao jantar, comeria – disse Jorge,

receoso. – Mas daria azo a demasiado falatório.

– É um problema.

Jorge resistiu ao impulso de dizer, «sim, já o disse». Não servia de nada

mostrar-se insolente com o médico. Só lhe garantia mais tempo no banho de

gelo, e os assistentes de Monro seguravam-lhe a cabeça debaixo de água por

períodos cada vez maiores.

– Teremos de compensar estas deficiências de outras formas – decidiu

Monro. – A mordaça!

Um dos seus assistentes aproximou-se rapidamente e fez o que lhe era

ordenado. Os pulsos e os tornozelos de Jorge já haviam sido atados à dura

cadeira de madeira, por isso ele agora estava mesmo incapacitado.

– Não podes falar – disse Monro –, por isso deves pensar os pensamentos

tal como eu tos dou. Compreendes, rapaz?

Jorge anuiu com a cabeça.

– Tens de aprender a submeter-te. Tens de perceber que não és ninguém.

Não és melhor do que ninguém.

Monro caminhou até a parede, onde vários dos seus instrumentos haviam

sido pendurados em ganchos. Levou algum tempo a selecionar o adequado,

acabando por se decidir por uma fina vara.

– A cada vergastada, deverás pensar para ti mesmo: «Eu não sou

ninguém.» Compreendes?

Jorge voltou a acenar com a cabeça, olhando, trémulo, para a vara. Até

àquele momento, o doutor Monro não lhe batera com nada além da sua

própria mão.
Monro passou a vara ao seu assistente.

– Comecemos.

Acenou com a cabeça e o assistente acertou com a vara nas coxas do

Jorge. Doía, mas não tanto quanto Jorge havia antecipado.

– Pensaste no que eu te disse? – perguntou Monro.

Jorge esquecera-se. Abanou a cabeça. Tinha de ser sincero se queria que

aquele tratamento desse bons resultados.

– Com mais força – indicou Monro ao seu assistente.

A vara desceu sobre Jorge com um estampido.

Eu não sou ninguém, pensou Jorge.

– Pensaste?

Desta vez, Jorge assentiu com a cabeça.

– Acreditaste?

Jorge encolheu ligeiramente os ombros. Talvez? Sinceramente, não tinha

a certeza.

Monro olhou-o por um instante, e depois deve ter decidido que aquilo

era, ainda assim, algum progresso, porque acenou com a cabeça e dirigiu-se

ao outro lado da divisão, onde se sentou e pegou no seu caderno de notas.

Sem sequer levantar os olhos, disse:

– Outra vez.

Zás!

Eu não sou ninguém.

– Outra vez.

Zás!
Monro franziu o sobrolho.

– Ele parece estar sem reação.

Os olhos de Jorge abriram-se e ele emitiu um som por detrás da sua

mordaça.

– Passa para as mãos dele.

Jorge retesou-se. Ao contrário das suas coxas, as suas mãos estavam

descobertas. Aquilo iria…

Pás!

Jorge gritou.

– Muito melhor – rosnou Monro.

Pás!

– Estás a seguir as minhas instruções?

Jorge anuiu com a cabeça.

Pás!

Eu não sou ninguém.

Pás!

Eu não sou ninguém.

Pás!

– Cuidado para que ele não sangre – disse Monro. Franziu o sobrolho

enquanto se inclinava para o lado para conseguir ver melhor as mãos de

Jorge. – Isso levaria a perguntas.

O assistente assentiu com a cabeça, e o golpe seguinte aterrou nos braços

de Jorge, que até então haviam sido poupados.


– Embora talvez pudéssemos calçar-lhe umas luvas – disse Monro.

Eu não sou ninguém. Eu não sou ninguém.

Pás! Outra vez nas mãos.

Eu não sou ninguém.

– Estás a seguir as minhas instruções – perguntou Monro.

Jorge acenou vigorosamente com a cabeça. Haviam-lhe fugido lágrimas

dos olhos, acabando por lhe ensopar a mordaça. Estava envergonhadíssimo.

– Ótimo. Então está a resultar. – Monro voltou a olhar para o seu

assistente. – Continuemos.

Pás!

Eu não sou ninguém

Pás!

Eu não sou ninguém

Eu não sou ninguém

PASSADOS DOIS DIAS

Ele era o rei.

Repetia que não era ninguém e pensava que não era ninguém, mas

quando acordava, pela manhã, sabia que era o rei.

Era tudo o que ele nascera para ser.

Mas Jorge queria ficar bom e, de cada vez que via Carlota no corredor, o

desagrado dela estampado no rosto renovava a sua determinação em levar

aquele tratamento até ao fim.

Teria ela de alguma forma visto além da fachada dele? Teria ela detetado

a loucura por detrás dos olhos dele?


Mesmo de noite, naqueles dias pares em que eles gritavam e

barafustavam e, sim, fornicavam, não havia qualquer ternura da parte dela,

nada que indicasse que ela o visse como algo mais do que apenas uma fonte

de prazer.

E de um bebé. Não nos esqueçamos disso.

Aquilo fazia-o querer duplicar os seus esforços. Assim que conseguissem

que ela engravidasse, não teriam de voltar a ver-se, e não seria isso

maravilhoso? O fim dos insultos arremessados dos quatro cantos. O fim dos

olhares lançados por aquele irritante e diminuto criado dela. Como é que ele

se chamava? Burdock? Bramwell?

Brimsley. Era isso. Brimsley. Fartava-se de lançar olhares a Jorge, como

se fosse dele a culpa do ambiente que se vivia no palácio, uma variação

entre explosivo e já em chamas.

Era Carlota. A culpa era dela. Ele estava a ser razoável – enfim, tão

razoável quanto se poderia esperar de um louco – e, além disso, vinha-se

submetendo ao raio da tortura para se tentar curar.

Em boa verdade, ela não estava propriamente ao corrente do que ele

andava a fazer, ou de que ele ocasionalmente não batia bem da cabeça, mas

alguém algures estaria a registar os pontos, e ele estava decididamente a

fazer a sua parte.

– Raios partam – tentou dizer.

Tentou, porque, como habitualmente, havia sido amordaçado.

– Que disseste? – perguntou Monro, levantando o olhar do seu infernal

caderninho de notas. – Retira-lhe a mordaça.


Um dos assistentes, aquele a quem Jorge decidira chamar Helmut,

desatou a mordaça.

Jorge cuspiu assim que aquilo lhe foi retirado.

– Andamos nisto há dias. Quanto tempo falta?

– Tanto tempo quando for preciso para alcançarmos o nosso objetivo –

disse Monro com toda a calma. – Foi esse o nosso acordo.

– O nosso acordo foi de me restituir a mim mesmo. Muito mais disto e eu

já nem sequer terei um «eu mesmo» ao qual voltar. Será um rei domado

assim tão melhor do que um rei louco?

Monro puxou o bloco de notas e moveu a mão no ar, como se fosse um

professor a dar uma aula.

– Não é à toa que eu lhe chamo de método terrífico. O terror está na sua

base. Mas, desse terror, que resultado.

Jorge não se sentiu tranquilizado pela forma como o médico tremeu de

deleite ao dizer «que resultado».

– Os lobos da Floresta Negra alemã eram famosos – prosseguiu Monro,

pondo-se de pé. – Os mais ferozes do mundo. Não contentes com o roubo de

galinhas e gado, levavam também crianças. Velhos. Mas onde estão agora

esses lobos?

Jorge esperava mesmo que aquela pergunta fosse retórica.

– Desapareceram! – soltou Monro. – Existem apenas em lendas, contos

de fadas. Através da ciência e da força de vontade, os alemães

transformaram os seus lobos em criaturas patéticas como aquele lulu-da-

pomerânia que eu tive. Sabes, rapaz, as criaturas animais são como barro.

Com força suficiente, podemos moldá-las. Eu vou fazer-te aquilo que os


alemães fizeram aos seus lobos. Vou moldar-te. Até te tornares tão

inofensivo e obediente como o raio de um lulu-da-pomerânia.

– O lulu-da-pomerânia fugiu – murmurou Jorge.

Monro girou para olhar para ele.

– Eu já vi o novo animal de estimação da rainha, Vossa Majestade.

Jorge esforçou-se para que não lhe subisse ao rosto uma expressão

desafiadora. Não era suposto ele desafiar o médico. Ele não queria fazê-lo.

– Desobedeceste-me – disse Monro. – Pagarás por isso.

– Eu sou o rei – disse Jorge.

– Tu não és ninguém! – gritou Monro. – Tu és quem eu te disser para

seres. Compreendes?

– Eu sou o rei – repetiu Jorge.

Monro esbofeteou-o.

– Diz isso outra vez – desafiou-o.

– Eu sou o rei.

Mas a voz do Jorge estava mais fraca desta vez.

Outra bofetada.

– Outra vez.

– Eu sou… o rei.

Outra.

– Outra vez.

– Eu sou… eu sou...
Ele era o rei. Mas valeria aquilo a pena? Havia alguma razão para o

dizer? Só lhe valeria mais uma bofetada, e o doutor Monro estava a tentar

ajudá-lo, não estava?

– Quem és tu? – perguntou Monro. Com a voz baixa. Voz de comando.

– Eu não sou ninguém – disse Jorge.

Não que acreditasse naquilo, mas estava disposto a dizê-lo. Se isso o

fizesse parar.

Por isso, disse-o outra vez. E mais uma vez. Mas estava a pensar numa

coisa completamente diferente…

Aquele era um dia par.

E isso, de alguma forma, fê-lo sorrir.


Brimsley

CASA DE BUCKINGHAM

ALGURES NO ANDAR INFERIOR

22 DE SETEMBRO DE 1761

...

DIA DA COROAÇÃO

Brimsley estava nervoso.

Seria, claro, o primeiro a admitir que esse estado não era incomum nele.

Bem, admitiria a qualquer pessoa exceto a Reynolds.

O que se passava era que, normalmente, quando Brimsley se sentia

nervoso, tal devia-se a ele ter feito alguma coisa de errado. Ou estar prestes

a fazer alguma coisa de errado. Ou, possivelmente, a alguém ter feito alguma

coisa de errado e ele estar prestes a pagar as culpas por isso.

Fosse como fosse, tinha sempre que ver com coisas a correrem mal.

Naquele momento, no entanto, estava tudo a correr bem. Em teoria. O rei

e a rainha viviam na mesma casa, e ele já não tinha de temer a fúria

tempestuosa da princesa Augusta porque eles andavam decididamente a ter

relações.

Relações muito ruidosas.

Brimsley passava muito tempo a espantar os outros criados do corredor

que antecedia os quartos reais.


Ainda assim, sentia-se inquieto. Reynolds escondia alguma coisa dele, o

que significava que o rei escondia alguma coisa da rainha, o que significava

que Brimsley não estava a cumprir o seu papel de a proteger.

Que era o seu dever por juramento.

Além disso, o rei e a rainha, apesar de todas as suas relações ruidosas,

pareciam detestar-se um ao outro. Isso não augurava nada de bom para o

futuro. Para o futuro de ninguém.

E agora chegara o Dia da Coroação. O que significava que o rei Jorge e a

rainha Carlota da Grã-Bretanha e Irlanda teriam de dar a impressão de

tolerarem a companhia um do outro. Brimsley estava confiante de que a

rainha o conseguiria. Ela sabia o que era esperado dela. Era o rei quem o

preocupava mais. Os humores dele eram muito menos equilibrados do que

os dela, e, muito concretamente…

Onde raio estava ele?

Era como o casamento real de novo, só que agora fora o rei a desaparecer.

Brimsley levou as mãos à cara, usando-as para descerrar, literalmente, os

seus maxilares. O rei e a rainha haviam de ser a morte dele. Ele acabaria por

ranger os dentes até fazer deles pó. E depois não seria capaz de comer.

Morreria lentamente de fome, e não seria isso muito mais fácil para o grupo

de trabalhadores italianos das vindimas e para a sua cabra?

Aquilo tinha de acabar. Em nome da sanidade mental e dos dentes dele.

Ele tinha de encontrar Reynolds. Chegara a altura de ficar a saber o que se

estava realmente a passar.

Brimsley suspeitava que Reynolds se encontrasse lá em baixo, no

labirinto de quartos e corredores que compunha o nível subterrâneo da Casa


de Buckingham. Já o apanhara a dirigir-se para lá, esgueirando-se por uma

das escadas traseiras quando pensava que ninguém o via. E andava mesmo a

esgueirar-se. Reynolds tinha habitualmente a aparência de um homem que

esperava que o resto do mundo se afastasse do seu caminho, mas, quando

Brimsley o espiara, ele agia de um modo extremamente furtivo, olhando

para todos os lados, certificando-se de que ninguém o via a abandonar o seu

posto no andar principal.

Não havia razão alguma, de nenhuma espécie, para Reynolds – o braço

direito do rei – ter algum assunto a tratar tão ao fundo das escadas. Aquele

era o sítio onde se lavava a roupa, se armazenava a comida e se lavavam as

panelas. Era um mundo à parte do cintilante palácio acima e praticamente

ninguém cruzava aquela fronteira.

Naquele dia – o Dia da Coroação –, os corredores fervilhavam de criados,

todos vestidos com os seus melhores trajes. Nessa tarde haveria uma parada

e quase toda a gente recebera meio dia de folga para celebrar. Mas Reynolds

tinha mais de um metro e 80 e o seu cabelo tinha um tom tão brilhante e

adorável de loiro que era lhe muito difícil não sobressair.

Brimsley não precisou de mais de dois minutos para o encontrar. Ele

procurou disfarçar.

– Preciso de falar contigo – disse-lhe baixinho.

– Porque estás aqui em baixo? – perguntou Reynolds. – Tu não vens a

este andar.

– E porque estás tu aqui em baixo? – contrapôs Brimsley.

– Tenho de estar. Estou a fazer um recado.


– Então, também eu tenho de estar. Eu estou aqui porque tu estás aqui. Tu

guardas o rei. E ela está à procura dele.

– Pensei que eles não se falavam.

– É o Dia da Coroação – sussurrou Brimsley com urgência. – Não

importa se eles se falam. Têm de se reunir. Então, onde está ele?

Reynolds puxou-o para uma alcova, onde havia menor probabilidade de

serem ouvidos.

– Tu não devias vir aqui abaixo.

– Não me deixaste outra alternativa.

– Não sejas ridículo. O teu dever é para com a rainha.

– E a rainha precisa do rei.

Brimsley combateu a vontade de revirar os olhos. Ou de esmurrar

Reynolds. Estavam a andar em círculos. Tudo o que eles faziam, sempre, era

andar em círculos.

Reynolds olhou para o fundo do corredor antes de responder.

– O rei juntar-se-lhe-á bem a tempo. Ele está a estudar as suas ciências lá

em cima, na biblioteca.

Brimsley franziu o sobrolho. Ele fora à biblioteca há cerca de uma hora.

Não havia lá sinal algum do rei.

– Avança. – Reynolds disse aquilo no seu irritante tom de superioridade.

– Vai cuidar da tua rainha.

Mas ele parecia estar nervoso. Quase esquivo. E não cessava de olhar

para trás. Como se… talvez…


Estaria ele a dar-se com outra pessoa? Eles nunca haviam dito

explicitamente que não veriam outros homens…

– O que se passa? – perguntou Brimsley, com suspeição.

– Não se passa nada. – Reynolds lançou-lhe um olhar exasperado. – Tens

uma imaginação hiperativa.

Brimsley ergueu o queixo. Aquilo não podia ser tolerado.

– Ouve-me, Reynolds – disse. – Se tu andas a recolher outro passageiro,

não penses que eu me importo. Mas… – a sua boca formou um esgar irado

ao olhar para o muito pouco impressionante entorno – certifica-te de que ele

provém da estação certa.

Reynolds recuou, indignado.

– Eu não ando… Não é isso que…

Brimsley cruzou os braços. Reynolds podia ser seu superior na casa, mas

no quarto a coisa mudava completamente de figura.

– Não há outros passageiros – soltou Reynolds, por fim. – Estou

simplesmente cá em baixo.

– E, no entanto, nunca aqui estás – resmungou Brimsley.

– Como é que sabes? Tu nunca aqui estás.

– Eu estava à tua procura.

Reynolds expirou com força. Soava meio aborrecido e meio… Bem, para

dizer a verdade, Brimsley não sabia bem como interpretar aquilo.

Finalmente, Reynolds disse:

– Eu estou simplesmente cá em baixo. É só. Vai tratar da tua rainha. O

Dia da Coroação é um grande dia para ela e para o país.


Brimsley franziu o sobrolho, sentindo, estranhamente, não estar

preparado para sair dali.

– Eu não estou com ciúmes – disse.

– Claro que não.

– Não tenho razão alguma para isso. Nós nunca nos prometemos nada.

– Nada – disse Reynolds.

Brimsley engoliu em seco. Quereria ele uma promessa? Nunca antes lhe

havia ocorrido que poderia estar em posição de pedir fidelidade. Porque o

que queria tal coisa dizer? Uma promessa entre dois homens? Não poderiam

fazê-la numa igreja. Não poderiam mostrá-la a um magistrado.

Ainda assim, quando olhava para Reynolds… quando os olhos deles se

encontravam no corredor…

Aquilo significava alguma coisa para ele.

– Brimsley – disse Reynolds. E a seguir: – Bartholomew.

Brimsley ergueu o olhar. Reynolds passava as mãos pelo cabelo. A sua

aparência imperturbável estava…

Perturbada.

– Não existe mais ninguém – disse Reynolds baixinho. – Podes ficar

tranquilo quanto a isso.

Brimsley respondeu-lhe com um desconfortável aceno da cabeça.

– Para mim também não.

– Devias voltar – disse Reynolds. – Há muito que fazer hoje. Demasiado.

– Sim.
Brimsley suspirou e virou-se para se ir embora, mas então abriu-se uma

porta ao fundo do corredor. Surgiu alguém carregando equipamento médico,

e…

Estaria o rei ali dentro?

Reynolds praticamente saltou para a frente dele para lhe bloquear a visão.

– Aquilo é um médico? – perguntou Brimsley. – Porque está o rei a ser

examinado por um médico externo na cave?

– Brimsley.

– Porque não está ele a ser examinado pelo Médico Real?

– Brimsley.

Havia alguma coisa na voz de Reynolds. Brimsley calou-se

instantaneamente.

– Tu não viste nada – disse Reynolds.

Brimsley queria dizer mais alguma coisa. Queria mesmo. Mas os olhos

de Reynolds imploravam-lhe para não o fazer, e Reynolds nunca implorava.

Brimsley anuiu com a cabeça.

– Tenho de ir cuidar da minha rainha – disse.

Deu meia-volta e foi-se embora

CASA DE BUCKINGHAM

PERTO DOS APOSENTOS REAIS

...

3 DE OUTUBRO DE 1761

A coroação fora esplêndida. Toda a gente concordava. O rei e a rainha

estavam ambos gloriosos. Haviam desempenhado bem os seus papéis. De


facto, a única vez que Brimsley os vira quebrar fora imediatamente após

regressarem a casa do Buckingham. O peso das coroas era literal, e estavam

os dois exaustos.

Tão exaustos que foram para os seus respetivos quartos e lá ficaram

durante o resto da noite.

Num dia par.

– Como é que achas que se formou este pacto? – perguntou Brimsley a

Reynolds enquanto percorriam juntos o corredor, cada um carregando uma

bandeja de prata para o seu amo.

A noite começava; o Sol estava no seu percurso descendente e o ar da

Casa de Buckingham ficara dourado pelo crepúsculo.

– Referes-te aos dias pares? – perguntou Reynolds.

– Sim.

– Nem quero imaginar.

– É extremamente peculiar.

– Não me cabe questionar os modos da família real – disse Reynolds.

– Mas…? – Porque ali estava claramente implicado um mas.

– Eu não vou completar o que disse.

Brimsley olhou para cima através das pestanas.

– Não és nada divertido.

– Sou exatamente tão divertido quanto tenho de ser – disse Reynolds.

– Exato. Apenas alguém completamente desprovido de sentido de humor

proferiria tal frase.


Reynolds lançou-lhe um olhar de exasperação, mas pareceu a Brimsley

detetar algum afeto ali misturado.

– Não sorrias – disse Reynolds.

Brimsley abriu um sorriso rasgado.

– Que levas ao rei? – perguntou, apontando com a cabeça na direção da

bandeja de prata que Reynolds transportava.

– Correspondência. E tu?

Brimsley olhou para os papéis na sua bandeja.

– Ela está a organizar um concerto. Com uma criança pianista. A mim

parece-me muito estranho, mas ela insiste que o ouviu e que ele é

fenomenal.

– Ele vem do continente?

– De Viena – confirmou Brimsley.

– Como é que se viaja de Viena? – ponderou Reynolds. – Por terra? Ou

por mar?

Encontravam-se junto às portas dos quartos do rei e da rainha, e já ali

estavam pelo menos há um minuto. A conversar.

– Não tenho a certeza – respondeu Brimsley. – A rainha veio por mar.

Embarcou em Cuxhaven. Ela disse-me que foi horrível. Vomitou para cima

do irmão.

– Irmãs – disse Reynolds com um riso de conhecedor.

– Tens alguma? – Perguntou Brimsley. Apercebeu-se de repente de que

não sabia. E queria saber.


– Irmã? – perguntou Reynolds. – Tenho duas. Ambas mais velhas do que

eu. E tu?

Brimsley abanou a cabeça.

– Sou só eu. Os meus pais tiveram-me tarde. – E então, mesmo não tendo

Reynolds perguntado, disse: – Já faleceram.

– Lamento.

– Também eu – disse Brimsley baixinho.

Já estava sozinho há tanto tempo. Talvez fosse por isso que gostava tanto

da vida no palácio. Dera-lhe um sítio a que pertencer.

Mas não queria ficar pesaroso. Apontou com a cabeça na direção das

portas dos quartos.

– Achas que eles se quererão ver um ao outro?

– Hoje é dia ímpar – lembrou Reynolds.

– Então, talvez seja… um dia sossegado?

– O rei já… – De súbito, Reynolds fechou a boca.

– O rei já…

– Já tratou dos seus deveres reais.

Brimsley tinha a certeza de que não era aquilo que Reynolds estivera

prestes a dizer. Também sabia que Reynolds não diria mais nada,

independentemente da tenacidade de Brimsley a pressioná-lo.

Aquele homem era um túmulo.

– Descerá o rei para jantar? – perguntou Brimsley.

– Não sei – respondeu Reynolds. O seu rosto assumiu uma expressão

pensativa pouco habitual. – Ele está cansado. Poderá querer permanecer no


quarto.

– Se ele tomar uma decisão, por favor, informa-me para eu poder reportar

à rainha. Ela poderá querer alterar os seus próprios planos de acordo com

isso.

Reynolds virou ligeiramente a cabeça enquanto franzia uma sobrancelha.

– Então, o que estás a dizer é: se ele ficar no quarto, é mais provável que

ela coma na sala de jantar?

– Sinceramente, não sei. Eles são muito imprevisíveis.

– A realeza?

– Sim.

Aquela palavra acomodava todo um mundo de exaustão.

Reynolds riu. Depois, passados mais alguns momentos de silêncio

confortável, suspirou e endireitou os ombros.

– É melhor regressarmos às nossos deveres.

– Mais uma vez à brecha?

Reynolds ofereceu-lhe outro sorriso, o tipo de sorriso que lhe virava o

coração do avesso.

– Algo do género.

Reynolds virou na direção do quarto do rei e Brimsley virou para o

quarto da rainha, e despediram-se sem dizerem uma palavra.

Durante um breve momento, o mundo pairou em perfeito equilíbrio.

CASA DE BUCKINGHAM

SALA DE JANTAR

...
22 DE OUTUBRO DE 1761

Um dia par.

Tinha de se estar especialmente alerta em dias pares.

O rei e a rainha não haviam escolhido jantar juntos na véspera e, apesar

de Brimsley desejar que eles se reconciliassem (coisa que requeria passarem

tempo juntos), até ele tinha de admitir que era agradável ter uma noite livre

daquela tensão incansável.

Se a fúria tivesse corpo sólido, o palácio estaria submerso em leite-

creme.

Se bem que o leite-creme sabe bem. E não atira com jarras.

Mas aquele dia terminava com o número dois. Logo, Brimsley e

Reynolds estavam a postos na sala de jantar, a par de seis James e uma

imensidão de criadas, e todos observavam o rei e a rainha com algum

morder de lábios ansioso.

– Podes fazer o favor de não respirares tão alto? – disparou a rainha.

A sério? Brimsley encolheu-se. Até ele achou que ela estava a ser pouco

razoável. E ele tomava sempre o partido dela.

O rei espetou um talher num pedaço de carne e olhou para ela.

– Podes fazer o favor de não falares?

– Eu falarei se desejar falar.

– Pois então eu respirarei se desejar respirar.

Carlota soltou um suspiro prolongado e sofrido.

– Mas faze-lo de uma forma tão desagradável.


– Respirar? – retorquiu ele, com tanto de sarcasmo quanto de

incredulidade no olhar.

Carlota fez um subtil gesto régio com a mão, como que dizendo Eu disse

o que disse.

– É esse o problema da vida – proferiu o rei, como se estivesse a dar uma

aula. – Da vida humana, mais concretamente. É preciso respirar. Poder-se-ia

até dizer que também tu precisas de respirar, embora eu não esteja, neste

momento, inteiramente convencido de que sejas humana.

– Tu lá saberias.

– Que quer isso dizer?

Carlota encolheu os ombros e ergueu o olhar para um dos James.

– Não há arenque?

– Nada de peixe na proximidade do rei – lembrou Reynolds a toda a sala.

– Mais uma razão para eu preferir jantar sem ele – anunciou a rainha.

O rei deu um murro na mesa.

– Qual é exatamente o problema? Tens-te comportado como uma criança

desde a minha primeira manhã aqui e eu tenho estado…

Mas a rainha já se pusera em pé de um salto. Brimsley deu um passo em

frente. Depois viu o rosto dela e deu um passo para trás.

– Tu tens estado a respirar o meu ar! – gritou Carlota.

Santo Deus. Perderam as estribeiras. Ambos.

Brimsley lançou um olhar a Reynolds. Deveriam ir-se embora dali?

Reynolds respondeu com um daqueles acenos com a cabeça que se fazem

quando se quer que apenas uma pessoa os veja.


Não que o rei ou a rainha dessem conta de um vulcão que entrasse em

erupção mesmo ao lado deles naquela altura. O rei rosnava e caminhava a

passos largos à volta da mesa. Quando, finalmente, parou, estava a meros

centímetros da rainha.

Brimsley engoliu audivelmente. Aquilo não ia acabar bem.

– Devo ir-me embora? – disse o rei, com um tom de voz grave e

provocador.

– Sim. – A rainha espetou o queixo, desafiadora. – Vai-te embora. Agora.

E então…

Oh, Santo Deus.

A rainha havia agarrado o rei, pousando-lhe a mão na parte de trás do

pescoço, e eles estavam a beijar-se.

– Hoje é dia par – disse ele, quase cuspindo as palavras.

– Pois é – rosnou ela.

Brimsley deu um salto para trás para fugir a um prato de frango assado

que voava pelo ar. O rei varrera da mesa todos os pratos e comida e…

– Saiam – gritou Reynolds, e juntos praticamente empurraram todo o

pessoal para fora da sala.

Não olhes para o traseiro do rei. Não olhes para o traseiro do rei.

Ele olhou para o traseiro do rei.

Mas, em abono da verdade, era um traseiro maravi…

– Brimsley – chamou Reynolds, como que ladrando.

– Saiam, saiam!
Brimsley espantava os James corredor afora, juntamente com três criadas

que se haviam ali posto à escuta. Voltou para ao pé das portas da sala de

jantar no momento em que Reynolds as fechava. Encostaram-se ambos às

portas, estremecendo ao som de vidros a partirem-se.

Reynolds suspirou.

– O cristal.

Ouviu-se um embate forte. Depois um gemido. E depois um som

tremendo, cuja proveniência Brimsley não era capaz sequer de imaginar, e

depois o rei começou a rugir.

– Dia. Par.

Brimsley fechou os olhos, mortificado.

– Dia. Par.

Ele vira o traseiro do rei. Era-lhe bastante fácil imaginá-lo contra a mesa,

com a rainha…

Sentiu o rosto ficar muito quente.

– Sentes-te mal? – perguntou Reynolds.

Brimsley ajustou o plastrão. Mantendo-se a olhar em frente.

– Este dia tem sido… aquecido.

A rainha guinchou.

Reynolds aclarou a garganta.

– Concordo.

Ouviu-se outro som vindo da sala de jantar, alto e lascivo. Ambos

estremeceram.
– Será que me permitirias… hã… arrefecer-me no teu quarto, mais logo?

– perguntou Reynolds.

Brimsley endireitou-se. Há muito que não era Reynolds a fazer aquela

pergunta. Soube-lhe muito bem, para dizer a verdade.

– Talvez permita – disse. – Poderás contar-me tudo sobre o médico.

– Não existe médico algum.

Brimsley virou-se para olhar para ele. Estava farto de que lhe mentissem.

– Tu…

– Sim! Sim! Sim!

Foi forçado a voltar à realidade. A esquecer Reynolds por agora. Tinha

uma porta para guardar.

CASA DE BUCKINGHAM

LARANJAL

...

2 DE NOVEMBRO DE 1761

Acontece que é difícil manter cinco passos de distância de uma pessoa,

quando se tem assuntos a tratar com ela, por isso Brimsley permitiu-se

caminhar ao lado da rainha enquanto analisavam a agenda de compromissos

dela.

– Agora que a lua-de-mel terminou – disse ele –, temos galerias, óperas e

peças de teatro para Vossa Majestadever. Também poderá escolher

iniciativas de caridade em que deseje participar.

– Excelente.
Carlota cintilava. A sua disposição andava mais do que animada por

aqueles dias, apesar das constantes discussões com o rei. Brimsley

suspeitava que isso estivesse relacionado com as atividades dos dias pares,

mas, claro, não lhe cabia especular.

– Gostava de fazer alguma coisa no hospital em prol das mães pobres –

decidiu.

– Muito bem, Vossa Majestade. Tratarei de…

A rainha esticou o braço para arrancar uma laranja de um ramo baixo.

– Laranja – berrou Brimsley.

Logo surgiram dois serviçais. O mais rápido deles colheu a laranja e

depositou-a delicadamente na mão da rainha.

– Como eu estava a dizer – prosseguiu Brimsley –, tratarei de organizar

isso o quanto antes. Também tem um encontro com o resto das suas damas

de companhia amanhã.

– Isto é absurdo. – A rainha fez uma careta à laranja que tinha na mão, e

depois a ele. – Doravante colherei as minhas próprias laranjas.

Brimsley refletiu na delicadeza da situação. Era, de facto, absurdo que

não lhe fosse permitido colher as suas próprias laranjas. Por outro lado,

provavelmente não havia trabalho suficiente no laranjal que justificasse

empregar dois serviçais. Naquele momento, metade do trabalho deles

consistia em manterem-se por ali para colherem laranjas para qualquer

membro da família real que por ali aparecesse.

– Vossa Majestade… – começou Brimsley.

– É ridículo obrigar outra pessoa a colher a minha laranja. Colherei as

minhas próprias laranjas. Não haverá discussão acerca disto.


– Eu… – Mas decidiu não contrapor. Como poderia fazê-lo? Tratava-se

da rainha. Ao invés disso, ofereceu-lhe um gracioso aceno com a cabeça e

disse: – Sim, Vossa Majestade.

– E quanto a compromissos formais? – inquiriu Carlota, abençoadamente

alheia ao facto de ter, provavelmente, causado o despedimento de um

homem naquela manhã. – Bailes? Jantares? Com que frequência deverei eu

organizar eventos no palácio?

– O rei não permite eventos sociais no palácio. De qualquer espécie.

A rainha interrompeu a sua caminhada.

– Que coisa tão estranha. Bem, podemos sempre sair para socializar,

acho. Apenas pensei…

– Ele não socializa – disse Brimsley.

Imaginava que, por aquela altura, ela já o soubesse.

– Seguramente que com a nobreza…

– Ele não vai a quaisquer encontros da elite, Vossa Majestade.

Carlota virou-se e olhou para ele com uma expressão perfuradora.

– Porque não?

– Eu… – Brimsley pestanejou. – Sabe, eu não sei mesmo porquê, Vossa

Majestade. É apenas assim que ele é.

– E ele sempre foi assim?

Brimsley recuou mentalmente pelos últimos anos.

– Há algum tempo. Sim.

– Mas porquê? Ele não me parece inibido com as pessoas. Não gagueja.

Tem as maneiras sociais intactas. Tem um sorriso bonito. É alto e forte e


belo e cheira a… homem.

Brimsley sorriu. Aquela descrição também servia a Reynolds.

– Talvez tenha alguma coisa que ver com o médico – pensou Brimsley

alto.

– Médico? Que médico?

Raios. Ele não tencionava dizer aquilo.

– Posso estar errado – disse Brimsley de súbito. – Na verdade, de certeza

que me equivoquei.

Carlota inclinou-se para ele, imperiosa e assustadora. Depois recuou e

gritou aos restantes criados:

– Deixem-nos sós!

Brimsley recuou um passo, mas ela deteve-o com o olhar.

– Tu. Não. Agora, diz-me – interpelou –, que médico?


Agatha

PALÁCIO DE ST. JAMES

SALA DE ESTAR DA PRINCESA AUGUSTA

...

8 DE NOVEMBRO DE 1761

Agatha detestava aqueles chás.

O chá era soberbo. Os biscoitos, divinais. A companhia?

Demasiado régia.

Não se podia recusar um convite da mãe do rei. Interrompia-se tudo o

que se estivesse a fazer, vestia-se o melhor vestido de dia e seguia-se o

quanto antes para a carruagem.

Toda aquela urgência tinha uma pequena vantagem, no entanto. Lorde

Danbury andava à caça dela quando chegou a carta. Assim, Agatha

conseguira livrar-se de fazer aquilo.

Até Danbury compreendia que a mãe do rei tinha precedência.

– Que bom ter vindo – disse a princesa Augusta assim que Agatha se

instalou na sua cadeira.

– É muito gentil da sua parte convidar-me, como sempre.

Augusta foi direta ao assunto.

– Dizem-me que tem visitado a rainha com frequência.

Agatha aceitou uma chávena de uma criada. Já não precisava de dizer

como preferia o seu chá. Já o sabiam.


– Gostamos de dar passeios no jardim – disse Agatha.

A princesa Augusta inclinou-se para a frente.

– Então, ela faz-lhe confidências.

– Faz, sim.

– E?

Agatha decidiu mentir.

– A rainha e o rei estão agora muito felizes.

– A sério.

Não era uma pergunta, era mais uma declaração de dúvida.

– A sério – disse Agatha, sorvendo um delicado gole do seu chá. – Após

alguns dias iniciais difíceis, tiveram uma lua-de-mel maravilhosa. E a

coroação ainda os aproximou mais.

– Eles estavam, de facto, encantadores na abadia – murmurou a princesa

Augusta.

– Oh, de facto. A pura imagem da felicidade.

Aquilo, pelo menos, não era mentira. Fossem quais fossem os defeitos do

rei e da rainha, ninguém podia dizer que não eram bons atores. Eles haviam

sorrido e acenado, dado as mãos, tinham-se beijado… Se Agatha não tivesse

sido obrigada a ouvir todas as queixas de Carlota, até ela acreditaria que o

casal real estava perdidamente apaixonado.

– Odeio-o – dissera-lhe Carlota na véspera. – Ele enfurece-me. Faz com

que toda a gente pense que é muito bem-educado, mas é mentira. É um

mentiroso que mente…

Santo Deus, salvai-me, pensara Agatha.


– … mentiras – rematara Carlota, por fim.

Mas Agatha sabia o que era estar num casamento sem amor, por isso

procurava prestar-lhe todo o apoio possível.

– Sobreviverá a isto – disse a Carlota. – Desde que se mantenha firme no

objetivo de…

– Engravidar – interrompera Carlota bruscamente. – Por favor. Eu sei.

Agatha abrira a boca para dizer algo mais, mas Carlota não havia ainda

terminado.

– Eu estou firme – disse a Agatha. – Sou a definição de firme. Estou

standhaft. Estou inébranlable. Estarei firme numa quarta língua se me

arranjar um intérprete. É só o que eu faço. O que nós fazemos. Procurar

encher o meu útero com um bebé.

– Lamento muito – disse Agatha, porque aquilo soava verdadeiramente

terrível.

– É um pesadelo.

– É difícil, eu sei. O ato…

Agatha pensou em lorde Danbury a investir sobre ela, repetidamente. Era

esquisito. Era desconfortável e, Deus dos Céus, era entediante ao máximo.

Ela dedicava-se a compor as suas listas de compras e correspondência

enquanto ele tratava do assunto.

Carlota tinha de suportar tudo aquilo sob o escrutínio atento de um país

inteiro. Não literalmente, claro, mas ainda assim. A rainha tinha poder, mas

nenhuma privacidade. Toda a gente comentava cada gesto dela, dissecando-o

e virando-o do avesso.
Agatha nunca trocaria de lugar com ela, e isso dizia muito. Estando ela

casada com Herman Danbury.

– Detesto tudo nele – disse Carlota. – Detesto aquela cara ridícula.

Detesto a voz dele. Detesto a maneira como ele respira.

Respira? Agatha arqueou as sobrancelhas. Aquilo não era um bocado

demais?

– Vossa Majestade – disse –, não pode…

– É intolerável! – soltou Carlota. – Eu não aguento…. Ele…

Uf uf fum uf fum fum.

Agatha fitava-a, horrorizada. A rainha mexia-se como uma marioneta.

– Vossa Majestade– perguntou, cuidadosamente. – Sente-se mal?

– É assim que ele respira! – disse Carlota, praticamente a gritar.

Aquilo não era de todo como o rei respirava, mas Agatha era demasiado

sensata para procurar frisá-lo.

Tal como era demasiado sensata para partilhar fosse o que fosse destes

acontecimentos com a princesa Augusta.

– Ela mostra alguns sinais de estar já de esperanças? – perguntou a

princesa. – Podemos acreditar na chegada de um bebé em breve?

Agatha absteve-se de salientar que o rei e a rainha nem há dois meses

estavam casados. Mesmo que Carlota tivesse conseguido engravidar tão

depressa, não haveria ainda quaisquer sinais disso. Optou por dizer:

– Eu ainda não detetei nada.

– Mantenha-se atenta a isso – ordenou a princesa Augusta. – Há pressões.


Ora, aquilo era interessante. Agatha manteve o seu rosto

propositadamente inexpressivo ao perguntar:

– Por parte de lorde Bute?

– Não lhe diz respeito de onde vêm tais pressões.

Agatha aguardou. Um, dois…

– Sim, de lorde Bute – disse a princesa Augusta com impaciência. –

Precisamos de um bebé. Um bebé real é motivo de celebração para os

comuns. Para todo o país. É para todos um sinal de amor e garante a

sucessão na família.

– Claro – disse Agatha.

A princesa Augusta inclinou-se para a frente, muito ligeiramente.

– Um bebé legitima a Grandiosa Experiência. Não podemos falhar.

Agatha viu ali uma abertura à sua medida.

– Talvez – sugeriu – um baile pudesse ajudar à Grandiosa Experiência?

– Um baile?

– Sim. Eu e lorde Danbury gostávamos de organizar o primeiro baile da

época.

Isto não era inteiramente verdade. Lorde Danbury gostava mesmo muito

de ser o anfitrião do primeiro baile da época. Agatha achava que isso era

uma péssima ideia. Danbury tinha a certeza de que toda a gente

compareceria alegremente, agora que ele se tornara membro do White’s,

mas ela via as coisas como eram. Grande parte da elite – a velha elite –

declinaria um convite dos Danbury. Seriam delicados e fingiriam sorrisos e

diriam coisas como «Temos tanta pena de não poder ir», e depois juntar-se-

iam noutro sítio qualquer, ao mesmo tempo, a rir.


Agatha avisara-o de que seria pouco provável que a princesa Augusta

aprovasse a ideia. A resposta dele fora tão desanimada que quase partira o

coração de Agatha. Parecera-lhe tão triste e tão pequeno quando disse:

– Acenam com a alegria à minha frente e nunca me deixam agarrá-la.

Agatha, apesar de todas as maneiras de que desgostava do marido,

dissera-lhe:

– Tu és tão bom quanto eles em qualquer medida.

Porque era verdade. As coisas que faziam de Herman um péssimo marido

eram comuns a todos os homens, pelo menos tanto quanto Agatha percebia.

E ela não suportava que o fizessem sentir-me menos homem apenas pela cor

da sua pele.

Então, Agatha prometera que iria tentar. Talvez até tivesse sucesso.

Afinal, convencera a mãe do rei a dar-lhes uma propriedade. Quão difícil

poderia ser conseguir uma festa?

– Vossa Alteza Real – disse, com toda a devida deferência –, na qualidade

de uma das damas da rainha, faz sentido que eu seja anfitriã do primeiro

baile da época. Seria uma manifestação de união da elite tão animadora, não

seria?

A princesa já abanava a cabeça antes mesmo de Agatha acabar de falar.

– O primeiro baile da época? Vosso? Não. Isso não será aceite.

Agatha vivera uma vida muito mais protegida do que o seu marido. Não

experimentara os ferimentos diários e os insultos que, gradualmente,

desgastam um corpo, que lentamente se acumulam até as feridas abrirem e

infetarem.
Ou talvez se desse o caso de ela não ter tentado. Ao contrário do marido,

não tentara entrar em estabelecimentos que sabia que não a aceitariam. Não

frequentara escolas nas quais nunca seria tratada de igual para igual. Não

entrara em bancos que lhe recebiam o dinheiro mas não lhe ofereciam chá.

Agora, a princesa Augusta estava a interrompê-la antes mesmo de Agatha

conseguir apresentar a sua argumentação. Dizia-lhe à queima-roupa que ela

não era suficientemente boa, que os Danbury não eram suficientemente

bons, que toda a nova elite não era suficientemente boa.

Isso não era aceitável.

Agatha pousou a sua chávena. Estava na altura de ser um pouco mais

direta.

– Vossa Alteza, sei que gostaria que estes nossos chás se mantivessem.

Custar-lhe-ia muito saber da gravidez da rainha muito depois do facto, não?

A princesa suspirou.

Agatha pegou de novo na chávena. Precisava da porcelana para esconder

o seu sorriso.

– Falarei com lorde Bute – disse a princesa Augusta.

Raios. Agatha sabia o que aquilo queria dizer. Não se previa qualquer

espécie de autorização.

Tinha de tomar uma decisão.

Demorou três segundos.

Os Danbury seriam, sim, os anfitriões do primeiro baile da época. Só

tinha de se certificar de que os convites eram entregues antes de a princesa

Augusta ter oportunidade de apresentar o caso a lorde Bute.


Roxo, pensou enquanto regressava a casa. Ela sempre gostara de roxo.

Seria uma cor maravilhosa para as decorações. Roxo com prateado e branco.

Conseguia ver tudo na sua mente.

Que era onde, provavelmente, tudo ficaria. Lorde Danbury quereria

cobrir a casa de dourado. A cor preferida dele.

Não importava. Era apenas uma pequena batalha. Insignificante a longo

prazo. Herman podia achar que era ele quem detinha o controlo e Agatha

não se importava nada de lhe permitir tal fantasia.

Ela sabia a verdade. Podia não ter sido a criadora da Grandiosa

Experiência, mas era agora ela que a controlava. E não permitiria que

falhasse.

CASA DE BUCKINGHAM

...

14 DE NOVEMBRO DE 1761

Passada uma semana, Agatha já não se sentia tão confiante. As respostas aos

convites dos Danbury haviam começado a chegar e, até então, nem um

único membro da velha elite havia aceitado.

A princesa Augusta pedira-lhe formalmente que cancelasse o baile.

Bem, pedira-lhe talvez seja um eufemismo. O que Augusta dissera, na

realidade, fora:

– O vosso baile vai arruinar a Grandiosa Experiência. Cancele-o.

O pior era que Augusta não estava errada. Seria um desastre se os

Danbury organizassem o primeiro baile da época e apenas metade da elite

comparecesse. Daria razão aos céticos: a sociedade não podia ser unida e

era inútil tentar.


A rainha Carlota mantinha-se alheia a tudo aquilo. Não fazia esforço

algum para compreender a sociedade britânica para lá das bonitas paredes

de pedra do seu palácio. Agatha procurava não se zangar com isso; a pobre

rapariga pouco mais era que uma criança. Fora arrancada de sua casa,

casada com um estranho, e incumbida de mudar uma cultura inteira.

Só que ninguém lho dissera. Teria até graça, se não fosse tão sério. A

Grã-Bretanha estava à beira de algo verdadeiramente bom e engrandecedor,

e tudo porque uma rapariga de pele escura fora escolhida para ser rainha.

Mas ela não sabia. Carlota não tinha noção de que era um símbolo de

esperança e mudança para milhares de pessoas. Não, não um símbolo. Ela

era a esperança e a mudança.

Agatha tentava ser paciente. Carlota merecia ter tempo para se acostumar

à sua nova vida. Ainda só tinha 17 anos.

Mas Agatha – e o resto da nova elite – não tinham tempo. A Grandiosa

Experiência estava a acontecer agora.

A princesa Augusta gostava da importância de tudo aquilo, de como o

Palácio se devia manter firme na sua demanda para unir a sociedade, mas

Agatha sabia que Augusta não se importava genuinamente com os destinos

dos Danbury e dos Bassett e dos Smythe-Smith. Ela só não queria falhar.

Augusta desejava que a Grandiosa Experiência tivesse sucesso porque fora

ela a orquestrá-la. Nada importava mais para a mãe do rei do que a

reputação da família real.

Mas para Agatha – e lorde Danbury e os Basset e os Smythe-Smith e

tantos outros – tratava-se de mais do que reputação. Tratava-se das vidas

deles.

Agatha tinha de lutar por aquilo. Tinha mesmo.


Assim, dirigiu-se pela primeira vez à Casa de Buckingham sem ter

recebido uma convocatória. Ninguém esperava a sua chegada quando

atravessou o imponente pórtico e informou o mordomo-chefe que estava ali

para ver a rainha.

Era-lhe difícil crer que aquilo fosse a vida dela, que ela pudesse entrar

num palácio real com elevadas expetativas de ser recebida. Gostava de

pensar que a sua incredulidade nada tinha que ver com a cor da sua pele.

Certamente que qualquer pessoa ficaria espantada por se ver tão próxima da

realeza.

E, no entanto, ali estava ela.

– Lady Danbury…

Ergueu o olhar. Era Brimsley, o criado preferido da rainha.

– A rainha está na biblioteca, minha senhora – disse ele. – Levá-la-ei até

lá.

– Está a ler? – perguntou Agatha, fazendo conversa enquanto

atravessavam um dos compridos e elegantes halls da Casa de Buckingham. –

Ela disse-me que tencionava ler mais em inglês. Que ainda pensa em alemão

na maior parte das vezes.

– Eu não posso especular quanto aos seus pensamentos – disse Brimsley

–, mas não, ela não está a ler.

– Oh. Então que está a fazer?

Brimsley aclarou a garganta.

– A apreciar a vista.

– Da biblioteca?
– Dá para a horta, minha senhora.

– A horta – repetiu Agatha, porque de certeza que não ouvira bem.

– Sim – disse Brimsley com um aceno da cabeça.

– Que entusiasmante.

– Ela assim o acha.

Realeza, pensou Agatha. Nunca os compreenderia.

De facto, quando entraram na biblioteca, a rainha estava de pé, à janela,

praticamente encostada ao vidro.

– Lady Agatha Danbury, Vossa Majestade – anunciou Brimsley.

– Não estava previsto vermo-nos hoje – disse Carlota sem se virar.

– Esperava poder falar-lhe sem a presença das outras damas de

companhia – disse Agatha.

– Muito bem – disse Carlota, a sua atenção ainda plenamente focada na

vista exterior.

Fez sinal com a mão para Agatha se aproximar.

– É sobre o baile que estou a organizar – disse Agatha assim que chegou

perto dela.

– Está a organizar um baile. Que simpático.

Dito com pleno desinteresse. Ainda assim, Agatha insistiu.

– Sei que Vossa Majestade não poderá ir – disse –, uma vez que o rei não

aceita convites para eventos sociais.

– Que coisa estranha, não é? – Carlota virou-se, por fim, para olhar para

ela. – Sabe a razão?

– Não sei. Eu...


Mas Carlota já voltara para a janela. Que procuraria ela? Agatha pôs-se

ao lado dela e espreitou. Não havia nada ali. Apenas hortas e... mais hortas.

A rainha estava literalmente a ver couves a crescer.

Agatha respirou fundo.

– O baile – disse sucintamente. – Queria perguntar-lhe se poderia

encorajar as outras damas de companhia a comparecerem.

– Não as convidou?

– Convidei.

– Então, qual é o problema?

Agatha lembrou a si mesma que Carlota era nova. Que estava num sítio

novo. Num sítio estranho. Teria seguramente de ser desculpada por ser tão

incomensuravelmente burra.

– Vossa Majestade – disse Agatha, muito paciente –, elas não virão se…

– Ei-lo! – exclamou Carlota.

Agatha quase rosnou.

O rosto de Carlota ficou todo espremido contra o vidro quando ela

escorregou para a esquerda para obter uma vista melhor sobre…

Agatha espreitou lá para fora.

… o rei, aparentemente.

Agora Carlota abanava a cabeça.

– Ele está mesmo… Acho que ele está mesmo a jardinar.

– Vossa Majestade? – disse Agatha.

– É o Jorge – disse Carlota, completamente incrédula. – Está a jardinar.

Com as suas próprias mãos. Porquê? Há pessoas para isso. – Virou-se para
Agatha. – Temos pessoas para isso.

– Vossa Majestade – disse Agatha, quase a rugir –, acerca do baile…

– Pensei que talvez fosse um ardil, mas ele caminha todos os dias para

aquela horta. Que curioso.

Por amor de…

Agatha exaltou-se.

– Vossa Majestade – disse incisivamente, posicionando-se mesmo entre

Carlota e a janela. – Por favor.

– Que está a fazer?

– A princesa Augusta pediu-me que cancelasse o meu baile.

Carlota lançou-lhe um olhar impaciente.

– Não compreendo que tem isso que ver comigo. Se a princesa Augusta já

lhe pediu…

– A Carlota é a rainha – interrompeu Agatha. – E eu compreendo que isto

lhe pareça indigno de si. Mas se não fosse a rainha…

– Mas sou – disse Carlota simplesmente.

Agatha conteve a vontade de estrangulá-la.

– Mas se não fosse, a sua vida aqui seria muito diferente. Não

compreende? A Carlota é a primeira do seu tipo. Abriu portas. E fez de nós

os primeiros do nosso tipo.

Carlota imobilizou-se.

– A Carlota mudou as coisas para nós – disse Agatha explicitamente. –

Nós somos recentes nisto. Não nos vê? Não vê o que é suposto fazer por
nós? Eu digo-lhe para consumar o seu casamento. Digo-lhe para engravidar.

Digo-lhe que persista. Por uma razão.

Agatha atreveu-se a olhar de relance para Brimsley para ver se ele a

interromperia. Ela caminhava em areias movediças. Mas o homem da rainha

não fez nada e Agatha sentiu-se ainda mais ousada.

– Está tão preocupada em saber se um homem gosta de si ou não. A

Carlota não é nenhuma rapariguinha insípida. É a nossa rainha. Devia focar-

se no seu país. No seu povo. No nosso lado do seu povo. Porque é que não

compreende que detém o nosso destino nas suas mãos? Por favor, olhe além

desta sala. – Fez um gesto na direção da janela, para o rei, que, imagine-se,

estava a apanhar ervas daninhas. – Tem de olhar além esta horta.

Carlota não disse nada.

Agatha fez a única coisa que lhe restava. Uma vénia.

– Os muros do seu palácio são demasiado altos, Vossa Majestade.


Carlota

CASA DE BUCKINGHAM

LARANJAL

...

NO MESMO DIA, MAIS TARDE

Carlota não estava habituada a ser repreendida. Em criança, sim, a mãe

criticava-a quando ela não se comportava como uma verdadeira senhora,

mas isso nunca a incomodara verdadeiramente. Quando a princesa Elisabeth

Albertina ralhava com a sua filha mais nova, a sua filha mais nova

geralmente transformava aquilo num jogo.

De quantas formas estava a Mutti errada? Como poderia Carlota ser mais

esperta do que ela? O documento insistindo no seu direito a nadar no lago

fora apenas o início. Carlota era mais esperta que a sua mãe. Era mais

esperta do que qualquer outro membro da sua família, à exceção, talvez, de

Adolfo, e mesmo ele apenas se poderia considerar empatado com ela.

Mas Agatha Danbury também era inteligente. Muito. Quando ela

chamara Carlota à razão na biblioteca, aquilo doera-lhe. Porque Agatha

tinha razão. Carlota estava a ser egoísta. Não andava a prestar atenção às

pessoas à sua volta.

Tinha todas as desculpas do mundo. Estava em Londres há o quê, dois

meses? Ninguém poderia esperar que ela mudasse o mundo em dois meses.

Só que ela era a rainha.


Gostasse-se ou não, ela não era como as outras pessoas. E, ao que

parecia, as pessoas esperavam, sim, que ela mudasse o mundo em dois

meses.

Suspirou e encaminhou-se até à orla da estufa do laranjal. Chovia e a

água atingia as paredes de vidro com pancadinhas muito agradáveis. O som

era uniforme e regular, como o de um experiente percussionista numa

orquestra.

Tinha saudades da música. Trouxera até ali o jovem Mozart para um

concerto, mas, para além disso…

Carlota olhou para a sua mão. Colhera uma laranja sem se aperceber.

Virou-se e olhou para Brimsley, cinco passos atrás dela, como sempre.

– Colhi a minha própria laranja – disse.

O rosto dele permaneceu impassível.

– Colheu, sim, Vossa Majestade.

Carlota olhou em volta.

– Onde estão os homens que trabalham no laranjal?

– Já não são necessários, Vossa Majestade.

– Dispensaste-os?

– Vossa Majestade colhe as suas próprias laranjas agora – explicou

Brimsley.

– Não me disseste que eles seriam dispensados.

– Vossa Majestade não desejava discutir esse assunto.

Ninguém lhe tinha dito…

Se ela soubesse…
Brimsley devia ter-se esforçado mais para lho dizer.

Ou talvez ela devesse ter ouvido.

Olhou fixamente para a laranja que tinha na mão.

– Fica tu com ela – disse a Brimsley.

Tinha perdido o apetite.

Nessa noite, Carlota ainda se sentia contemplativa e inquieta. Aquele era

um dia par, e encontrava-se no quarto de Jorge, na cama. Pensava ainda

naquela laranja, e nos dois homens que haviam perdido os seus postos de

trabalho porque ela não se dera ao trabalho de fazer perguntas.

Lembrou-se de outra conversa que tivera com Brimsley, quando ele

mencionara o médico na cave.

Estava na altura de começar a fazer perguntas.

Sentou-se na cama, aconchegando os lençóis para cobrir a sua nudez, e

olhou para Jorge.

– Não te sentes bem?

Jorge pestanejou, visivelmente sobressaltado pela pergunta dela.

– Não estive à altura dos teus padrões? Porque a mim pareceu-me

bastante…

– Não – disse ela, interrompendo-o. – Consultaste um médico no outro

dia. Na cave.

Olhava para ele com atenção, mas o rosto dele não denunciava nada.

– Não sei a que te referes – disse Jorge. Num tom demasiado cuidadoso.

– Foi no Dia da Coroação – disse ela.

– E tu estavas na cave?
– O Brimsley estava. Ele viu-te.

– Ah.

Carlota ficou à espera de que ele dissesse mais alguma coisa. Quando ele

não o fez, ela conteve um suspiro exasperado e disse:

– Só dizes isso? Ah?

Jorge começou a apertar os dedos nos lençóis.

– Não gosto de ser espiado pelo teu criado.

– Ele não te estava a espiar. Estava lá em baixo para… Bem, não sei que

estava ele lá em baixo a fazer. Mas estava. E viu-te. Com um médico. Mas

não o médico real. Ele disse que era outra pessoa.

Jorge franziu o sobrolho. Carlota não conseguia perceber se ele estava a

tentar lembrar-se da ocasião ou a tentar decidir o que dizer.

– Dizes que foi no Dia da Coroação – respondeu finalmente. – Foi essa a

razão. A Coroa deve ser examinada no Dia da Coroação.

– Na cave?

Jorge encolheu os ombros.

– Seria de pensar que também quisessem examinar a rainha – disse ela. –

Só se preocupam com isso. Com eu ter um bebé. Seria de pensar que eu

estivesse rodeada de médicos por todos os lados.

– Tu não gostarias disso – disse ele.

– Eu não disse que gostaria. Na verdade, tenho a certeza de que

detestaria.

Jorge enrugou o nariz e deitou um olhar para a janela. Mas Carlota ficou

mais com a impressão de que ele estava a não olhar para ela do que a olhar
para alguma coisa.

Sobretudo, tendo em conta que era de noite e que as cortinas estavam

fechadas.

– E ainda assim – disse ela, como que pensando alto –, nenhum médico

para mim. Mesmo sendo eu aquela que tem de carregar o bebé.

– Não tenho a certeza…

Ela interrompeu-o.

– Em vez disso, houve médicos para ti. Na cave, imagine-se.

– Parece ser importante para ti que tenha sido na cave.

– Porque a cave soa a segredo.

– É na cave que fica o consultório dele.

– O consultório dele fica na cave – repetiu ela.

– Foi isso que eu acabei de dizer.

Carlota abanou a cabeça.

– Parece-me tão estranho. Porque haveria um médico de se instalar na

cave?

– Eu não sei quem é que atribui tais espaços – disse ele, encolhendo os

ombros.

– Não, claro que não – murmurou ela.

Ele era demasiado ocupado para assumir a responsabilidade de tarefas

assim tão mundanas. Depois, no momento em que ela, normalmente,

vestiria a sua camisa de dormir e voltaria para o seu quarto, perguntou:

– Porque é que não me deixas conhecer-te?

– O quê?
Jorge parecia surpreendido. Temeroso.

– O que é que se passa contigo? – Perguntou ela. – Recusas a corte. Não

sais.

– Eu tenho os meus deveres.

– Os teus deveres não são como os de nenhum outro rei que eu conheça.

Como é que passas os teus dias?

Jorge encolheu ligeiramente os ombros.

– Na agricultura.

– A sério?

Parecia difícil de acreditar, apesar do que ela vira com os seus próprios

olhos. Que tipo de rei escolhia passar os seus dias no meio da terra? Talvez

como passatempo, uma hora aqui, outra ali…

Ele anuiu com a cabeça.

– E sentes-te realizado com isso? A passar o dia inteiro na horta?

– Raramente lá posso passar o dia inteiro. Mas não me importaria. Já te

disse que gosto de ciência. Parte dessa ciência é a agricultura. Gosto de

cultivar.

– Então o rei Jorge é Jorge, o agricultor.

– Sim – disse ele, quase como se a desafiasse a troçar dele. – Jorge, o

agricultor. Eu sou Jorge, o agricultor. Estas são as mãos de um rei e de um

agricultor. Um rei agricultor.

Estendeu as mãos. Tinha as unhas quadradas e muito bem cuidadas, mas

uma delas mostrava uma escura linha de sujidade. Ele sorriu. Aquela unha

deve ter-lhe escapado quando tomou banho.


Ele gostava mesmo muito de trabalhar com as mãos, pensou Carlota com

alguma admiração. Nem toda a gente gostava.

Ela passou com o seu polegar por cima da linha de sujidade visível sob a

unha dele.

– Desculpa – disse ele rapidamente. – Eu...

– Não – disse ela, cobrindo a própria mão com a dele. – Eu gosto. É

honesto.

Era ele.

Só Jorge.

Que vida teria sido a dele caso não nascesse para ser rei? Teria sido mais

feliz?

O relógio soou.

Meia-noite.

– Já não estamos num dia par – assinalou Jorge.

– Já não. Já estamos num dia ímpar.

– O que é que se passa, Carlota? – perguntou Jorge. – Por que estás a

fazer tantas perguntas? Normalmente vais-te embora a seguir a… – apontou

com a cabeça na direção da cama.

– Tu vives para a felicidade e a infelicidade de um grande país – disse ela

baixinho.

– Carlota…

– Não. – Carlota pousou uma mão suavemente no braço dele. – Quero

dizer que compreendo. Tu vives para a felicidade e a infelicidade de um


grande país. Isso deve ser extenuante. E solitário. Deves sentir-te enjaulado.

Não admira que passes tanto tempo na horta.

– Na horta, sou um homem normal.

– Jorge, o agricultor.

– Não sintas pena de mim. Eu não conheço nada além disto. Eu sempre

fui isto. Uma exposição em vez de uma pessoa.

Aquilo parecia ser terrível. Era terrível. Ela sabia-o porque fora naquilo

que a sua vida se tornara. Também ela se tornara uma exposição. Nunca

estava sozinha. Mesmo quando não tinha ninguém com quem falar, quando

se sentava numa mesa de jantar com 12 cadeiras vazias, não estava sozinha.

Havia sempre uma pequena horda de serviçais atentos a ela, observando

cada um dos seus movimentos.

Quando era criança, no entanto, correra livre. Correra selvagem, até. A

ele nunca lhe fora dada tamanha autonomia.

Que ironia. Um rei sem liberdade alguma. Que vida, a dele.

Segurou no rosto dele com as mãos.

– Tu és uma pessoa para mim. Podes ser uma pessoa comigo.

Os olhos dele encontraram os dela e, pela primeira vez em semanas, ela

obrigou-se a olhar verdadeiramente para as profundezas dele. Viu cautela, e

preocupação, mas também viu esperança.

Jorge tocou no rosto dela.

– Beijas-me? – perguntou ela docemente.

Ele anuiu com a cabeça, e os lábios dele encostaram-se aos dela.

Delicado e verdadeiro.
– Acabaram-se os dias pares e ímpares – disse Carlota.

Jorge sorriu e encostou a sua testa à dela.

– Teremos apenas dias.

– Dias – murmurou ela.

Soava tão bem. Só Carlota e Só Jorge.

Ele segurou-lhe na mão, acariciando gentilmente o interior dos dedos

dela com o seu polegar.

– Posso perguntar o que despoletou isto?

– Eu colhi a minha própria laranja.

– Tu colheste a tua própria…

– Não perguntes. Não conseguiria explicar.

Jorge anuiu com a cabeça.

– Muito bem.

– Jorge – disse ela –, eu sei que não me deves nada depois da forma como

me comportei. E sei que não gostas de eventos sociais. Mas eu preciso de

que façamos uma coisa.

– De que precisas?

Carlota pensou em Agatha Danbury. E em todos os novos nobres cujas

vidas e posições oscilavam numa balança em que era ela o fiel. Não era

difícil o que ela tinha de fazer. De facto, era quase risivelmente fácil.

Virou-se para o marido e disse:

– Os muros do nosso palácio são demasiado altos.

CASA DANBURY
SALÃO DE BAILE

6 DE DEZEMBRO DE 1761

– Vossa Majestade está pronta?

Carlota virou-se para o marido e reluziu.

– Estou sim, Vossa Majestade.

Estavam vestidos com os seus melhores trajes reais, Jorge envergando um

brocado branco e prateado e Carlota num intrincado vestido drapeado do

mais pálido dos tons rosa. O tecido fora incrustado com centenas de cristais,

e ela cintilava como o céu noturno.

Jorge fez um sinal ao mordomo da Casa Danbury, que anunciou alto e

bom som:

– Suas Majestades rei Jorge III e rainha Carlota!

O salão de baile, até então uma autêntica colmeia em atividade, ficou

imediatamente silencioso. Carlota engoliu os nervos; teria de se habituar

àquele tipo de coisa. Deu um passo em frente de braço dado a Jorge.

Olhou para o lado esquerdo do salão. A velha elite.

Olhou para o lado direito. A nova elite

Completamente separadas.

– Isto não pode ser – disse Jorge baixinho.

– Não – disse Carlota. – Não pode.

Juntos chegaram ao pé dos seus anfitriões.

– Lorde e lady Danbury – disse Jorge, num tom de voz talvez um pouco

mais alto do que o necessário. – Obrigado por me receberem.

Lorde Danbury fez-lhe uma vénia.


– Vossas Majestades.

Carlota olhou Agatha nos olhos. Silenciosamente, disse Eu Estou Aqui.

Não falharemos.

Em voz alta, disse:

– A vossa casa é magnífica, Lady Danbury. Estamos muito gratos pelo

vosso convite.

– De facto. – Jorge beijou a mão de Agatha, depois virou-se e sorriu para

Carlota. – Acho que todas as épocas deviam começar com um Baile

Danbury, não achas, meu amor?

– Acho, sim – concordou Carlota. Devolveu a atenção a lorde e lady

Danbury, mas disse, suficientemente alto para toda a gente ouvir: – É uma

ordem.

Lorde Danbury parecia ter ficado mudo. Felizmente para ele, Lady

Danbury mantinha-se na posse das suas habituais dignidade e compostura e

disse:

– É uma honra para nós, vossas Majestades. Será um imenso privilégio

organizar o primeiro baile de cada época.

– E nós, claro, compareceremos – anunciou Carlota. – Nunca

perderíamos o primeiro baile da época.

Jorge inclinou a cabeça mais uma vez na direção dos seus anfitriões,

indicando a sua intenção de avançar, e estendeu a mão a Carlota.

– Vamos?

A orquestra silenciara-se à chegada do rei e da rainha, mas, quando eles

avançaram até ao meio da pista de dança, a música recomeçou. Era uma

canção lenta e ricamente romântica.


– Só Jorge – murmurou Carlota enquanto eles juntavam as mãos.

– Só Carlota – respondeu ele com um sorriso.

Pelo canto do olho, Carlota viu Agatha ser conduzida para a pista de

dança por um membro da velha elite. Carlota não tinha a certeza de como se

chamava ele, mas achava que podia ser o marido de Vivian Ledger, uma das

suas damas de companhia.

Velha elite e nova elite. Unidas.

Outro casal unido juntou-se-lhes na pista, e depois mais um. Então

chegaram os Smythe-Smith, e depois disso um casal da velha elite, e num

instante a pista de dança estava repleta. Alguns casais eram uma

combinação de velha e nova elite, outros não, mas estavam todos a dançar ao

som do mesmo minuete.

– Obrigada – disse Carlota ao marido.

– Tu nunca tens de me agradecer – respondeu ele. Tocou-lhe com um

dedo no nariz, um breve gesto afetuoso que não fazia de todo parte da

dança. – Nós somos uma equipa – disse. – Não somos?

– Somos. Faremos coisas maravilhosas.

– Juntos.

– Juntos – concordou ela. – Mas preciso de que faças uma coisa sem mim

primeiro.

– Que é?

– Tens de dançar com lady Danbury. Assim que esta nossa dança chegar

ao fim.

– Preferia dançar contigo.


– E eu adoraria ficar com todas as tuas danças para mim, mas isto é mais

importante.

Jorge fingiu suspirar.

– Esperemos que todos os meus deveres reais sejam tão fáceis quanto

convidar lady Danbury para dançar.

– De facto.

– Não sei se tens noção do que fizeste – disse Jorge baixinho enquanto

deixavam a pista de dança. – Com uma noite, uma festa, criámos mais

mudança, avançámos mais, do que a Grã-Bretanha fez no último século.

Mais do que eu poderia sonhar.

Carlota apertou a mão dele.

– Tu podes fazer tudo, Jorge.

E talvez também ela pudesse. Ela não era apenas a Carlota, não era

apenas a Lottie.

Era uma rainha.

Era mais do que uma pessoa, era um símbolo. Ela sabia-o, claro, mas não

havia compreendido completamente a importância disso até àquela noite,

quando o testemunhou com os seus próprios olhos.

Ela tinha poder. Um acidente de nascimento, como Jorge lhe chamara um

dia. Ou talvez um acidente de casamento. Fosse como fosse, ela tinha poder

e chegara a altura de o usar.

Chegar a altura de o merecer.

– Vai dançar com lady Danbury – disse ela. – Eu ficarei com a tua mãe e

parecerei deliciada com a conversa, o que terá praticamente o mesmo efeito.


– O meu é o menor dos dois sacrifícios – disse Jorge.

– Vai – disse Carlota, dando-lhe um empurrão afetuoso. – Quanto mais

depressa dançares, mais cedo poderemos ir para casa e ficar sozinhos.

– Gosto mesmo da forma como a tua cabeça funciona.

Ela reluziu para ele.

– Mas antes acho que ainda podemos fazer mais uma coisa.

– Oh? O quê?

Jorge sorriu.

– Beija-me.

– Ou tu podias beijar-me a mim.

Ele fingiu considerar a proposta.

– Não, creio que devias ser tu a beijar-me a mim.

– Oh, muito bem.

Carlota pôr-se em bicos de pés e deu-lhe um beijinho na bochecha.

Alguém arfou.

– Só uma esposa verdadeira faria isso à frente de outras pessoas – disse

Jorge baixinho.

– E eu sou uma esposa verdadeira?

– Para sempre – jurou ele.

Segurou-lhe na bochecha com uma das suas grandes mãos, depois

debruçou-se e encostou levemente os seus lábios aos dela. Era um beijo

delicado, um beijo gentil, mas era também uma promessa. De amor, de

respeito e de determinação.
Juntos mudariam o mundo.

Aquela noite era apenas o início.


Agatha

CASA DANBURY

...

NA MESMA NOITE, MAIS TARDE

– Obrigada, muito obrigada.

– Foi um prazer.

– … Claramente uma das preferidas da rainha…

– A limonada estava sublime.

– … Que casa tão bela.

A elite – a velha e a nova – encaminhava-se do salão de baile para a porta

principal. Agatha e o marido estavam no pórtico, a despedirem-se deles.

O baile tinha sido um triunfo.

Agatha dançara com o rei.

O rei!

O rei havia dançado com a rainha e depois com ela. E com mais

ninguém. Nem mesmo com a mãe dele. Não poderia ter deixado mais clara

a sua aprovação.

Os Danbury eram oficialmente favoritos dos reis.

A sociedade seria unida.

Um novo dia na Grã-Bretanha.

Houvera duas vitórias naquela noite. A primeira era gritante e toda a

gente compreendia as implicações. Os modos da velha elite haviam chegado


ao fim. A sociedade misturar-se-ia e a cor da pele de uma pessoa não mais

determinaria o seu lugar na hierarquia.

Mas a segunda vitória… Essa fora silenciosa. E pertencia-lhe a ela.

Agatha nunca a poderia partilhar com ninguém, mas ela sabia. Fora ela

quem fizera aquilo.

Ela dissera a verdade ao poder. Fizera Carlota compreender que tinha

responsabilidades, que podia usar a sua posição enquanto jovem rainha para

mudar o mundo.

Tal como Agatha podia usar a sua posição enquanto confidente da jovem

rainha.

Agatha não sabia de nenhuma sociedade ou cultura em que fosse dado às

mulheres poder explícito. Elas tinham de trabalhar nos bastidores, tinham de

manipular os seus homens para que eles pensassem que eram eles os autores

de todas as boas ideias.

Ser mulher significava nunca receber os louros pelos seus feitos.

Mas isso não se aplicava a uma rainha. Uma rainha podia agir. Podia

fazer. Podia fazer coisas acontecerem.

Seria mesmo assim? Agatha franziu o sobrolho. Ela pedira à rainha para

unir a sociedade comparecendo ao Baile Danbury, mas o que Carlota fizera

de facto fora conseguir que o rei comparecesse ao Baile Danbury.

Agatha decidiu não ser picuinhas. Merecia sentir-se orgulhosa dos seus

feitos. E tinha a certeza de que, à medida que Carlota se fosse sentindo mais

confortável no seu novo papel, aprenderia a exercer o seu próprio poder de

uma vez por todas.


– Obrigado, mais uma vez – disseram os últimos convidados enquanto

desciam as escadas frontais.

– Boa noite – gritou Agatha.

Ela e o marido regressaram para dentro de casa, onde todo o pessoal os

aguardava no hall da entrada.

O mordomo fechou a porta. Lorde Danbury ergueu uma mão e toda a

gente olhava para ele, com a respiração suspensa. Ele espreitou pela janela,

esperando que a última carruagem partisse. Então, quando era certo que

ninguém poderia ouvi-lo, soltou um gritinho de alegria.

Todos o fizeram. Danbury, Agatha, todo o pessoal – urravam de

felicidade, unidos no seu triunfo.

– Somos um sucesso – disse Agatha ao marido.

Ela não se lembrava de alguma vez ter visto tamanha expressão de alegria

e orgulho no rosto dele. Quase o abraçou.

Ele merecia aquilo. Apesar de todos os seus defeitos, e eram muitos,

merecia aquele momento de triunfo. Depois de uma vida inteira de

desconsiderações e insultos, fora nomeado favorito do rei. Era finalmente o

homem que sempre sentira que era.

Era bonito de se ver.

– O rei! – crocitou Herman. – Ele escreveu pessoalmente a toda a elite a

informar que planeava vir. O seu favor não poderia ter sido mais explícito.

– De facto, não – disse Agatha.

– Lorde Ledger Convidou-me para uma das suas caçadas – prosseguiu

Herman. – E o duque de Ashbourne mencionou uma festa em casa dele.

– É maravilhoso – disse Agatha.


– Todas estas coisas, eu esperava-as. Eles só precisavam de conseguir ver-

me.

– É verdade.

– Sou um sucesso! – celebrou Herman. – Comemoremos!

Agarrou na mão de Agatha e puxou-a em direção às escadas. Ele ria de

tanta felicidade, e Agatha queria rir também, mas – blhec – era evidente que

ele queria que ela se deitasse com ele, e essa era a última coisa que ela

queria fazer naquele momento.

Mas era esse o seu trabalho. Tal como Coral preparava os banhos e Mrs.

Buckle cozia o pão, Agatha tinha de se deitar com o marido e gerar

ocasionalmente um bebé. Já não era tão mau como dantes; já se habituara à

maior parte daquilo. Às vezes, até usava aquele tempo para programar as

suas tarefas semanais e a sua correspondência.

Mas não era daquela forma que ela queria celebrar naquela noite.

Suspirou ao entrar no quarto. Danbury estava muito excitado. Talvez não

se aguentasse durante muito tempo.

– Lá para cima – disse ele, dando-lhe uma palmadinha no traseiro.

– Claro, meu querido – disse ela. – Deixa-me só vestir primeiro a minha

camisa de dormir.

– Não é preciso. Vamos fazê-lo mesmo de vestido real – crocitou ele.

E assim ela deu por si de quatro em cima da cama, com a seda dourada

toda enrodilhada nas suas costas. Danbury estava a ter um bom momento,

movendo-se para a frente e para trás. A cabeça de Agatha estava alhures,

contando os seus parceiros de dança. Vejamos, primeiro fora lorde Ledger,


depois o rei, e depois ela dançava com Danbury pois ninguém que não o

marido era corajoso o suficiente para se seguir ao rei.

Depois, lorde Bute – Agatha suspeitava que fora a princesa Augusta a

tratar disso – e, em seguida, o amigo de Danbury, Frederico Basset. Depois,

lorde Smythe-Smith, depois, Peter Kenworthy, depois…

Que estranho.

O marido dela tinha parado.

– Meu senhor?

Virou a cabeça para trás. Não pensava que ele já estivesse despachado,

mas não estivera propriamente a prestar atenção.

– Meu senhor, já terminaste?

Ele estava calado, e pesava sobre as costas dela. Ela contorceu-se, com

dificuldade por causa do peso dele, e então ele caiu para o lado, aterrando

ruidosamente no chão.

– Meu senhor? – repetiu ela, mas daquela vez quase num murmúrio.

Gatinhou até a beira da cama e olhou para baixo.

– Herman?

Mas já não havia razão alguma para chamar pelo nome dele. Ele estava

deitado, de barriga para o ar, com os olhos esbugalhados.

Morto.

Agatha engoliu em seco. Aquilo era… Ela estava…

Cuidadosamente, contornou o corpo do marido e foi buscar o robe. Não

tinha bem a certeza do que era suposto estar a sentir.


Voltou para o pé de lorde Danbury e tocou-lhe levemente com o dedo do

pé. Só para ter a certeza.

Ele continuava morto.

Bem.

Aquilo mudava tudo.

Estava ridícula, com o robe roxo por cima do vestido de baile; ainda

assim, abriu a porta e enfiou a cabeça lá fora, no corredor. A sua criada,

Coral, aguardava numa cadeira a pouca distância.

– Minha senhora – disse Coral, pondo-se de pé. – Mandei o criado do

andar trazer água para um banho.

Agatha anuiu com a cabeça. Era aquele o procedimento habitual. Coral já

trabalhava para ela desde antes do seu casamento. Ela sabia que aquele vigor

de lorde Danbury significava muitas vezes que Agatha precisaria de um

banho quente para acalmar a sua pele.

– Obrigada, Coral – disse Agatha. Aclarou a garganta. – Hã, já não

precisas de preparar banhos com tanta frequência.

– Ora essa, minha Senhora. Não custa nada agora que temos uma equipa

completa de pessoal. Hoje até pus a nova criada a extrair óleo de flores de

lavanda. Tem um cheiro divinal e diz-se que acalma a pele…

– Coral – disse Agatha.

Coral pestanejou.

Agatha falou devagar e com clareza.

– Já não precisas de preparar banhos com tanta frequência.

Coral esbugalhou os olhos. Avançou um bocadinho ponto


– Minha senhora – sussurrou. – Estamos despachadas?

Agatha afastou-se para o lado e permitiu que Coral espreitasse para

dentro do quarto.

– Estamos despachadas.

Coral inspirou subitamente e depois ergueu um dedo a pedir silêncio.

Com um clique cuidadoso, fechou a porta.

Agatha já não se conseguia conter. Soltou um gritinho mínimo de alegria

e envolveu a outra mulher com os braços. Juntas, fizeram uma pequena

dança, saltando para cima e para baixo, e depois para os lados, porque,

Santo Deus, o lorde Danbury ainda estava ali no chão, e, sim, aquilo era

indigno e provavelmente a moral, mas ela estava LIVRE !

Agatha Danbury estava finalmente LIVRE.

Coral recuou, com os olhos a brilhar.

– Deseja mudar de roupa primeiro?

– Não, acho… Bem, talvez devesse tirar o roupão.

Agatha deixou que Coral lho tirasse dos ombros e voltasse a pô-lo no seu

lugar, sobre uma cadeira.

– Está pronta? – perguntou Coral

– Estou, sim – disse Agatha.

E estava. Estava mesmo.

– Boa sorte. Eu vou voltar para a minha cadeira.

Agatha anuiu com a cabeça e fechou a porta. Contou até três, dando a

Coral tempo suficiente para regressar ao seu posto, e depois gritou.

Santo Deus, não se sabia capaz de produzir tamanho som.


– Socorro! Socorro! Oh, não! Socorro!

A porta abriu-se de par em par. Coral parecia estar completamente em

pânico.

– Oh, minha Senhora! – gritou. – O que aconteceu?

– É lorde Danbury – gritou Agatha. – Acho que ele…

– Não! – Exclamou Coral. – Oh, não!

– Meu amor! – Agatha soluçava. – Oh, meu amor!

O corredor encheu-se rapidamente de criados e criadas, muitos deles

ainda envergando os seus uniformes da noite.

– Aconteceu alguma coisa a lorde Danbury – disse Coral. – Henry, vai

chamar o médico. Charlie, acorda o camareiro dele. Imediatamente!

– Partiu! – choramingava Agatha. – O meu amor partiu!

Coral virou-se para o resto do pessoal, ainda aglomerado no corredor.

– Aguardem aqui. Eu tenho de me certificar de que está tudo digno, pela

minha Senhora, e depois poderão entrar e ajudar.

Espreitou para dentro do quarto e deitou um olhar a Agatha.

Agatha recomeçou a chorar.

– Temos de retirá-la do quarto – disse Coral. – Não pode ficar aqui com o

corpo de lorde Danbury.

– Naaaaão! Naaaaão! Eu tenho de ficar com ele! Tem de ser!

– Venha comigo, minha senhora.

Coral pegou-lhe no braço e conduziu-a para o exterior, passando pelos

serviçais, de olhos postos nela com compaixão. Agatha sentiu uma pontada

de culpa por enganá-los daquela maneira, mas havia aparências a manter.


– Vou levá-la para o quarto de visitas – disse Coral.

– O que será de mim? – choramingou Agatha. – O que será de nós? Os

meus filhos… Os meus filhos…

– Venha, minha senhora, venha. Os outros receberão o médico quando

ele chegar.

Agatha anuiu com a cabeça, lavada em lágrimas, e deixou Coral levá-la

para um quarto de visitas.

– Trarei outra coisa para a minha Senhora vestir – disse Coral assim que a

Agatha se instalou.

– Sim.

Agatha ainda vestia o seu vestido dourado. Herman chamara-lhe o seu

vestido real. Era muito belo. Sublime, na verdade, e ficava-lhe mesmo bem.

Mas ela provavelmente não voltaria a usar aquele tom de dourado. Queria

escolher as suas próprias cores. Queria escolher os seus próprios vestidos.

Queria escolher todas as suas coisas.

CASA DANBURY

ESCRITÓRIO DE LORDE DANBURY

...

VÁRIAS HORAS MAIS TARDE

Agatha andava a deambular pela casa quase há uma hora. Não sabia bem

porquê, mas não tinha sono, e sentia-se tão estranha, e parecia-lhe de

alguma forma que devia ia olhar para as coisas do seu falecido marido.

Para as relíquias dele.

Ele fora uma relíquia.


Mas a casa era nova. As suas paredes não guardavam quaisquer

memórias. Isso era bom. Seria dela. Não dele.

Nunca dele.

Passou a mão pelas lombadas dos livros dele. Teria ele alguma vez lido

aqueles livros? Não se lembrava de alguma vez o ver a ler.

O jornal. Ele lia o jornal.

Um mordomo passava o jornal a ferro e depois dava-o a lorde Danbury.

Agatha lia-o depois de ele ter terminado. A seguir, era deitado na lareira.

Seria isso metafórico? Devia ser, mas Agatha não conseguia encontrar a

metáfora. Não naquele momento, pelo menos.

– Lady Danbury?

Agatha olhou para a porta. Era Coral.

– Minha senhora, que faz aqui?

– Nada – disse Agatha.

Tudo.

– Posso fazer alguma coisa por si? – perguntou Coral.

– Não – disse Agatha. – Espera.

– Sim?

– A ama disse que as crianças adormeceram bem.

– O Dominic fez algumas perguntas, mas isso seria de esperar. É o mais

velho. – Coral olhava para Agatha com uma expressão gentil. – Tem frio?

Ou fome?

Agatha abanou a cabeça.


– Eles não pareceram ficar muito perturbados com a morte do pai. O que,

acho, não é grande surpresa. Lorde Danbury era um estranho para eles. Só o

viam algumas vezes por mês.

Coral parecia não saber o que responder.

– Posso acordar o Charlie para que ele acenda a lareira. Ou pedir que lhe

preparem um prato frio. Ou um pequeno-almoço antes da hora.

– Pequeno-almoço?

– São quase quatro da manhã, minha Senhora.

A boca de Agatha abriu-se com a surpresa.

– Não me tinha apercebido. Desculpa. Coral, por favor volta para a cama.

– Eu não a deixo. É normal que esteja triste. Ele era o seu marido, mesmo

que…

Agatha ergueu as sobrancelhas.

– Talvez um chá – disse Coral. – Em vez de… O que está a beber?

Agatha olhou para o copo que tinha na mão.

– Vinho do Porto. É horrível. Mas é o preferido de lorde Dunbury. Era.

Era o preferido dele.

Pousou o copo. Não queria beber aquilo.

Tinha a mão a tremer. Porque estava a mão dela a tremer? Não estava

perturbada. Não sentiria saudades dele. Porque estava a mão dela a tremer?

– Minha senhora? – Coral denotava preocupação na voz.

Agatha afastou um pouco mais o copo de si.

– Eu estava presente quando os meus pais me prometeram a ele. Sabias?

Coral anuiu com a cabeça.


– Tinha três anos. Acho que não tinha compreendido quão nova era até ao

ano passado, quando o Dominic fez três anos. Ser prometida a um homem

naquela idade. Em que estavam eles a pensar?

Coral permaneceu calada.

– Fui criada para ser sua esposa – disse Agatha, de olhos fixos na parede.

– Ensinaram-me que a minha cor preferida era o dourado porque a cor

preferida dele era o dourado. Disseram-me que as minhas comidas

preferidas eram as comidas preferidas dele. Li apenas livros de que ele

gostava. Só aprendi a tocar no pianoforte as canções preferidas dele. Estou a

beber este vinho do Porto porque é o preferido dele, logo, deve ser o meu

preferido.

Olhou para Coral.

– Eu não gosto de vinho do Porto.

– Não, minha Senhora.

– Apesar de tantas vezes ter sonhado e imaginado e desejado e planeado,

nunca pensei em como seria de facto não o ter cá. Apagado da face da Terra.

Eu fui criada para ele. E agora eu sou… nova.

Agatha olhou para o vinho.

– Sou nova em folha – disse ela. – E nem sequer sei como respirar o ar

que ele não exala.

Virou-se, olhando para a porta.

– Acho que vou para a cama agora.

– Claro, minha senhora.

Coral chegou-se para o lado para lhe dar passagem, mas Agatha não

estava ainda propriamente pronta para se mexer.


– Este mundo não para de mudar – disse.

– É bem verdade, minha senhora.

Agatha anuiu com a cabeça e, por fim, foi-se embora. Era chegada a

altura de encontrar o seu lugar neste novo mundo.

Mas, primeiro, dormir.


Jorge

CASA DE BUCKINGHAM

QUARTO DO REI

...

NA MESMA NOITE

Jorge nunca compreenderia por que razão acordara meio da noite. Talvez um

som vindo do exterior da casa? O vento? Um pássaro? Ou talvez não

houvesse razão alguma.

Quem sabia porque se abriam os olhos de um homem quando a Lua

ainda brilhava? Tudo o que ele sabia era que, uma vez acordado, estava

acordado.

Sentia-se, apercebeu-se, demasiado feliz para dormir.

Também tinha fome. Apetecia-lhe… Que é que lhe apetecia? Tudo menos

mingau. Nunca mais comeria aquela mistela horrível. No dia seguinte – ou

seria já o dia seguinte? –, informaria o doutor Monro de que tudo aquilo

acabaria. Pensara que os tratamentos pouco convencionais do médico

estavam a resultar, mas agora percebia que a causa da sua melhoria fora

sempre Carlota.

Seria ela a pô-lo bom.

Veja-se o que eles haviam conseguido naquela noite no Baile Danbury. A

sociedade tinha-se transformado. E fora tão fácil. Jorge passara tanto tempo

dentro da sua cabeça à procura do que significava ser rei que esquecera o

que isso significava para todas as outras pessoas.


Era, de facto, um acidente de nascimento. Foi o que ele disse a Carlota, e

fora sincero. Mas ele podia fazer coisas boas a partir desse acidente. Com a

sua nova esposa ao seu lado, a guiá-lo, ajudá-lo...

Mas primeiro tinha de comer alguma coisa.

Com cuidado para não acordar Carlota, deslizou para fora da cama,

enfiou o robe e saiu do quarto. Não sabia que horas eram. Duas? Três da

manhã? Toda a casa dormia e ele não via razão para acordar ninguém só

porque queria alguma coisa que comer.

Quão difícil poderia ser encontrar um bocado de pão e de queijo?

Ele sabia onde ficavam as cozinhas; passava por elas todos os dias a

caminho do laboratório do doutor Monro. Se estivesse em St. James, saberia

ele aonde se dirigir? Ora, aí estava uma pergunta interessante. Achava que

nunca tinha estado nas cozinhas de lá.

Mas não importava. A sua casa agora era Buckingham. Com Carlota. Era

isso que importava.

Na cave fazia mais frio e ele arrependeu-se de não ter calçado os chinelos

quando se aproximava da cozinha. Porque seria que os pés arrefeciam mais

que o resto do corpo? Devia ser a distância do coração. O sangue já não

estaria tão quente ao chegar aos dedos dos pés.

Fez uma pausa para esfregar os pés um no outro, depois atravessou a

porta e…

Não estava sozinho.

– Monro – disse Jorge, estacando assim que entrou naquela divisão –, que

faz aqui?

Monro ergueu os olhos da panela que mexia no fogão.


– Não consegue dormir, Vossa Majestade?

– Não, é que…

– A sua insónia não me surpreende – interrompeu Monro. – Este não é o

ambiente correto para si. Estávamos a progredir muito mais em Kew.

– Eu não vou voltar para Kew.

A boca de Monro retesou-se de irritação.

– Preocupam-me os efeitos deste lugar. Desde que se mudou para

Buckingham, nunca mais voltou à cadeira. Se não retomarmos os

tratamentos em breve, nós arriscamos perder tudo o que já havíamos

alcançado.

– Nós? – Jorge quase riu. – Eu e o senhor, doutor, não alcançámos nada.

Tudo o que eu possa já ter alcançado foi graças à minha noiva. Os métodos

dela fizeram mais por mim do que o doutor e a sua cadeira alguma vez

poderiam fazer.

– Métodos – escarneceu Monro. – Bah. Ela não tem qualquer formação.

Qualquer treino. Se Vossa Majestade pensa que ela o ajuda…

– Não penso, sei – interrompeu Jorge.

Mas Monro nunca compreenderia o poder redentor da alegria. Aquela

noite – no Baile Danbury – fizera mais pela alma de Jorge do que algum

banho de gelo ou alguma vergasta alguma vez conseguiriam.

– Vossa Majestade esquece-se – disse Monro, insistente. – Tem tendência

a tornar-se descuidado. A dar rédea larga aos seus instintos mais

caprichosos.

Jorge cruzou os braços.

– Também ela.
– É exatamente isso que estou a dizer – murmurou Monro.

Jorge caminhou devagar ao longo da cozinha, deslizando os dedos sobre

um balcão de madeira.

– Quando eu era criança – disse, como se pensasse alto –, as minhas

dores de barriga nunca eram apenas cólicas. Era um desastre, um mau

augúrio, a potencial ruína de Inglaterra. Já mais crescido, a minha recusa em

comer ervilhas era a potencial ruína de Inglaterra. Uma soma errada a

matemática, a potencial ruína de Inglaterra. Vivi a minha vida inteira no

terror de agir erradamente, porque cada ação errada ameaçava a ruína de

Inglaterra. Esse terror constante quase deu cabo de mim. Encontrei lugares

onde me esconder. A minha agricultura. O meu observatório.

Voltou a olhar para a Monro, com os olhos endurecidos.

– A minha loucura.

Monro não disse nada. Jorge encontrou um pão e rasgou-lhe um pedaço.

– Pensava que o terror era o preço a pagar por ser da realeza. Mas

agora…

Pôs o pedaço de pão na boca e mastigou. Engoliu.

– Agora conheci uma mulher que nunca está aterrorizada. Que faz o que

quer. Quebra regras. Corteja o escândalo. Comete impertinências

impensáveis. E ela é a pessoa mais régia que eu alguma vez conheci.

Monro encolheu os ombros.

– Ela irá curar-me.

A voz de Jorge afiou-se. Não compreendia a ausência de reação do

médico. Aquilo perturbava-o.


– Já é tarde, Vossa Majestade – disse Monro. Tirou a colher da panela,

cheirou-a e depois continuou a mexer. – Tem de voltar para a cama. Eu não

estou disponível agora para tratamentos.

Santo Deus, será que o homem nunca ouvia?

– Talvez eu não tenha falado com clareza suficiente – disse Jorge. – O

senhor não é mais meu médico.

– Não? Que pena. – Monro continuou a mexer a panela, aparentemente

despreocupado. – Não obstante, continuo a ser o médico da rainha.

Jorge enregelou.

– O que é que disse?

Monro apontou para a panela borbulhante.

– Estou neste preciso momento a preparar para ela este cataplasma.

Jorge começou a sentir um formigueiro nos braços. Um zumbido a

crescer-lhe nos ouvidos. A sua voz, quando a conseguiu encontrar, parecia-

lhe arrancada da garganta.

– Mantenha-se longe dela.

Monro sorriu.

– Mas, Vossa Majestade, foi ela que veio ter comigo.

– Ela não faria tal coisa – disse Jorge.

Mas Monro já falava por cima das palavras dele.

– A rainha ouviu que o médico do rei se encontrava aqui e, ao que parece,

achou que para ela nada serviria que não o médico do rei. – Ergueu o olhar.

– Mulher inteligente.

Jorge ignorou o comentário.


– Porque precisaria ela de um médico?

– Bem, evidentemente, porque está grávida.

A boca de Jorge começou a tremer, os lábios a estremecer como se ele

tivesse alguma coisa para dizer. Mas apenas sentia terror.

– Ela não tinha a certeza – disse Monro. Sorria com a boca. Não com os

olhos. – Mas eu tenho.

– Não – disse Jorge. – Não.

– Mas porquê tamanha surpresa? É para isto que têm estado a trabalhar,

não é?

Sim. Não. Ainda não. Ele não estava pronto.

Monro voltou a cheirar a colher.

– Perfeito.

Bateu com o cabo da colher na borda da panela, deixando as gotas

errantes voltarem a cair para dentro da mistura a girar.

– Vamos aplicar isto diretamente na sua… bem, não quer saber

pormenores, pois não?

Jorge deu um passo para trás. Lá fora, ainda estava completamente

escuro; a única luz provinha das lanternas que ele e Monro haviam trazido

para a cozinha. A trepidação das chamas lançava sombras sinistras no rosto

do médico. Jorge imaginava que efeito teriam no seu.

Pareceria ele assustado?

Grotesco?

Insano?

Sentia tudo isso e mais ainda.


Sentia…

Sentia…

Sentia demasiado. Sentia mais que demasiado. Não sabia o que fazer com

tudo aquilo.

– Um bebé real – disse o doutor Monro. – Parabéns, Vossa Majestade.

Um dia de alegria para Inglaterra.

Lentamente, Jorge recuou até sair da cozinha. Não sabia o que dizer. Não

sabia o que pensar. Eram boas notícias. Um bebé. Deviam ser boas notícias.

Carlota. Carlota com um bebé. Carlota com um bebé com um médico. O

doutor Monro.

O doutor Monro gostava da sua cadeira. E dos seus banhos de gelo. E da

sua vergasta e das suas correias.

Carlota com um bebé.

Carlota com um bebé com o médico com a cadeira.

Não. Carlota não seria seguida pelo doutor Monro. Ele não o permitiria.

Teria de haver outra pessoa. Alguém que não soubesse…

Carlota. Carlota era uma estrela. Um cometa. Ela cintilava. Cintilava

com o bebé com o médico com a cadeira.

Jorge pestanejou. Estava outra vez no seu quarto. Como chegara ali?

Caminhara até lá? Não se lembrava de ter caminhado.

Olhou para a cama. A cabeceira era vermelha. Vermelha como o amor.

Vermelha como o sangue.

Olhou para Carlota. Ela dormia. Parecia estar em paz.

Saberia ela?
Saberia ela que estava grávida?

Saberia ela que ele era louco?

Qual seria mais forte? O amor ou o sangue?

Carlota com o bebé com o médico com o…

O que estava a acontecer? Não era a mesma coisa. Semelhante, mas não o

mesmo. Onde estavam os céus? Onde estavam as estrelas?

Vénus, trânsito de Vénus.

Correu para a janela, abriu-a de par em par.

Porque havia nuvens no céu? Ele não conseguia ver. Ele era o rei.

Ordenava-lhes que desaparecessem.

Vénus. Onde estava Vénus?

Conseguiria calculá-lo. Se encontrasse uma estrela, encontraria outra, e

então conseguiria calcular Vénus.

Vénus, trânsito de Vénus.

Carlota era uma estrela. Ela cintilava.

Uma caneta. Precisava de uma caneta. Onde estava a sua caneta?

Correu para a sua secretária. Não viu nenhuma caneta, mas tinha carvão.

Porque é que tinha carvão? Não se preocupou com isso. Não era importante.

Usaria o carvão.

Encontrou um lugar vazio na parede e começou a escrever. Contas.

Cálculo. Equações em equilíbrio.

– Trânsito de Vénus – disse para si mesmo.

Também o escreveu. Trânsito de Vénus. 1769. Um mais sete mais seis

mais nove.
Escreveu. Calculou. Escreveu mais.

Jorge, o agricultor, o agricultor Jorge, o rei agricultor, à procura de

Vénus, tenho de fazer isto bem.

Imagens. Precisava de imagens, também. Geometria. Ângulos. Isósceles

obtuso. Isósceles agudo. Agudo agudo agudo agudo.

– Jorge?

Era a voz dela, mas ela era uma estrela. Não seria capaz de falar.

Trânsito de Vénus. Rei agricultor, o agricultor Jorge, isto não está bem.

– Jorge, o que se passa?

– Silêncio, tu és uma estrela.

Ele rabiscava. Escrevia. Calculava.

Um mais sete mais seis mais nove.

– Jorge, estás a assustar-me.

– Para. Não. Eu tenho de tentar. – Somava os números. Não faziam

sentido. – Rei agricultor – lembrou-se a si mesmo. – Rei astrónomo. Volta a

calcular até encontrares. Trânsito de Vénus. Vénus, Vénus, Vénus.

Olhou para ela. Quem era ela? Era uma estrela. Porque estava ela ali?

– Tenho de ir – disse Jorge. – Tenho de ver.

Sair para o corredor. Nesta direção para o exterior. Lá poderia ver o céu.

Precisava do céu.

Alguém se pôs em frente a ele.

– Vossas Majestades. Posso ajudar?

– O Jorge está a trabalhar – disse a estrela. – Volta para o teu posto. Nós

ficamos bem.
Ele não estava bem. Precisava do céu. Porque é que não havia céu?

O céu o céu. Os céus. Vénus. Trânsito de Vénus. Um mais sete mais seis

mais nove. Um mais sete mais seis mais nove.

Por aqui. Depois, por ali. Tantas voltas e voltinhas para chegar ao

exterior. Aquilo não estava certo. Ele devia ser livre. Era um agricultor. O

agricultor Jorge. Pertencia ao ar livre.

– Jorge, está frio – disse a estrela. – Não trazes nada nos pés.

Os pés dele não eram importantes. Um mais sete mais seis mais nove. Ele

estava quase a chegar. Um mais sete mais seis mais nove.

Abriu a porta com um empurrão e correu para a noite.

– Estou a ver-te! – gritou.

Correu pelo relvado. Mais depressa. Mais depressa.

Mas a estrela continuava a persegui-lo. Ela cintilava como o céu e era

veloz.

– Eu estou aqui – disse ela. – Não te preocupes.

– Tu não és uma estrela – disse ele. Fitou-a, atónito. Sabia quem ela era.

Como é que aquilo lhe escapara? – Tu és Vénus.

– Eu sou Vénus – disse ela. – Sim, eu sou Vénus.

– Estou a ver-te! Vénus! Meu anjo! Estou aqui!

Esticou um braço na direção dela, mas ela recuou. Porquê? Porque é que

Vénus não o queria?

– Fala comigo – implorou Jorge. – Não vás! Fala comigo! Eu sabia que

virias. Eu sabia. Vénus, não vás. Não vás. Não tenhas medo. Sou eu. Não me

reconheces?
Arrancou o robe. Desnudou-se perante a noite.

– Não me vês?

– Vossa Majestade! – alguém gritou.

Jorge virou-se. Era um cabeça-dourada. Parecia quente. Tinha a cabeça a

arder. Ele não lhe deveria tocar.

Quente como o sol. Ardendo como uma estrela.

– Vossa Majestade – disse o cabeça-dourada. – Pensei que talvez se

quisesse aquecer. Lembra-se? De quando éramos pequenos? Chá quente. Ou

leite morno. Com açúcar para que fique doce como uma sobremesa.

Podíamos voltar para dentro…

Jorge abanou a cabeça. Ele não tinha frio.

– É Vénus! – disse, apontando para ela. – Consegues vê-la?

– Consigo, Vossa Majestade – disse o cabeça-dourada.

– Diz olá!

– Olá, Vénus – disse o cabeça-dourada. – Vossa Majestade…

– Agricultor Jorge! – gritou Jorge com um tom de voz radiante. Estendeu

os braços para cima, esticando-os em direção ao céu. – Astrónomo Jorge!

– Astrónomo Jorge, deixe-me tapá-lo com isto…

Jorge fitou-o assustado. O que era aquilo que o cabeça-dourada segurava?

Que estava ele a tentar fazer?

– Não, eu quero Vénus – disse. Esquivou-se para o lado. O cabeça-

dourada não o apanharia. Ele era demasiado veloz. – Só Vénus. – Olhou

para Vénus com um sorrido radioso. – Olá, Vénus.

– Jorge – disse Vénus.


Ele desviou-se para a direita. O cabeça-dourada ainda andava atrás dele.

– Jorge – disse Vénus outra vez, agora mais alto. – AGRICULTOR

JORGE!

Ele parou. Olhou para ela.

– Eu sou Vénus – disse Carlota.

– Eu sei. Olá, Vénus. Tu és Vénus.

– Sim. E Vénus vai para dentro. Tu tens de vir comigo.

– Está bem. – Gostava de Vénus. Vénus cintilava. Vénus era gentil. Mas

não era estranho que ela estivesse ali no jardim? Olhou para ela com

curiosidade. – Pensei que tu estavas no céu.

– Eu estava no céu – disse ela, pousando-lhe delicadamente uma mão no

braço. – Mas agora vou entrar na Casa de Buckingham. Vens comigo?

Ele olhou para ela, para a casa, e depois para o cabeça-dourada.

– Toma – disse ela, e pôs-lhe qualquer coisa sobre os ombros. – Isto irá

aquecer-te.

– Está frio – disse ele.

– Vem comigo – incentivou ela, e juntos caminharam para dentro do

edifício.

– Vénus está cá dentro – comentou Jorge. – Um planeta. Dentro de casa.

Tão estranho.

– É mesmo estranho – disse Vénus. – Tão estranho.

Jorge virou-se. O cabeça-dourada seguia-os, mas Vénus não parecia

importar-se com isso. Olhou para ela, depois apontou com a cabeça na

direção dele, só para o caso de ela não ter reparado.


– Ele é amigo – disse ela.

– Tens a certeza?

– Tenho a certeza. Vem. Já estamos cá dentro. Vénus está cá dentro.

Contigo. Está contigo.

Vénus.

Ele estava com Vénus.

Sorriu.

– Obrigado, Vénus.

Ela acenou-lhe com a cabeça, e por momentos ele achou que ela estivesse

a chorar, mas não, isso não era possível. Os planetas não choram.

Era uma centelha. Porque Vénus cintilava.

Vénus estava ali dentro.

Tão estranho.

Mas ela estava ali dentro.

Com ele.
Carlota

CASA DE BUCKINGHAM

...

UM POUCO MAIS TARDE

– Por aqui – disse Carlota, conduzindo Jorge com delicadeza pelos

silenciosos corredores do palácio.

– Vénus – disse ele, com um sorriso cansado.

Parecia capaz de adormecer em pé.

– Ele é pesado – disse Carlota a Reynolds, que o seguia a dois passos de

distância.

Reynolds avançou imediatamente e segurou o rei do outro lado.

– Ele é um cabeça-dourada – disse Jorge.

Carlota e Reynolds trocaram um olhar.

– Os cabeças-douradas são bons – disse Carlota a Jorge. Não sabia que

mais dizer. – São gentis.

– Eu não devia tocar naquilo – disse Jorge. Fez um risinho. – Mas vou

tocar.

Esticou a mão e deu uma palmadinha no cabelo de Reynolds.

No seu cabelo dourado e brilhante. Carlota compreendeu, por fim.

– Não estava quente – disse Jorge. – Pensei que estaria quente.

O cobertor escorregou-lhe dos ombros e Carlota parou para lho compor.

Ele estava nu sob o cobertor e encontravam-se num hall muito público da


casa de Buckingham. Era plena noite e não parecia andar por ali ninguém,

mas ainda assim.

– O Brimsley interditou esta zona – disse Reynolds.

Carlota limitou-se a olhar para ele. Não fazia ideia do que significavam

aquelas palavras.

– Ele está a garantir que ninguém vem para este lado da casa. Eu disse-

lhe para trancar os serviçais nos seus quartos, caso necessário.

– Oh. Obrigada. Acho.

As suas palavras soavam pouco mortiças. Seguramente inexpressivas.

Era estranho. Ela devia estar num estado alterado. Devia estar cheia de

raiva, ou preocupação, ou qualquer coisa exaltada e volátil, mas, ao invés

disso, sentia-se como que sonâmbula. Como se a sua mente e o seu corpo se

tivessem partido em dois.

De alguma forma, o seu corpo sabia o que tinha de fazer – levar o rei de

volta para o quarto, lavar-lhe a sujidade do corpo, deitá-lo na cama. A sua

mente, no entanto… estava alhures. Tinha perguntas.

– Há quanto tempo? – perguntou ela a Reynolds.

– Vossa Majestade?

– Há quanto tempo está ele assim?

– Eu… não sei dizer ao certo, Vossa Majestade.

Carlota ter-lhe-ia batido se tivesse energia para tal. E se não estivesse a

agarrar no rei.

– Sabes dizer sem ser ao certo?

– Há alguns anos – admitiu ele.


– Isto é habitual? Isto, esta noite?

– Foi pior do que o habitual – admitiu Reynolds.

Chegaram ao quarto do rei. Jorge bocejou.

– Estou muito cansado – disse ele.

– Estará na cama num instante – assegurou-lhe Reynolds.

– Temos de lavá-lo – disse Carlota, com a voz ainda pesada e monótona.

– Sim – concordou Reynolds. – Pode ficar com ele enquanto vou buscar

sabão e água?

Carlota anuiu com a cabeça. Qualquer que tivesse sido o demónio a

possuir Jorge, fazendo-o correr e gritar como um tresloucado, já

desaparecera, deixando um homem muito cansado. Ele voltou a bocejar e

ela e Reynolds suportaram o seu peso enquanto ele descaía lentamente até

chegar ao chão. Encostaram-no à parede – a tal agora coberta com os seus

rabiscos a carvão – e Jorge fechou os olhos.

– Está ele a dormir? – perguntou Carlota.

Ele parecia estar a dormir, mas que sabia ela? Nunca tinha visto um

homem comportar-se como o seu marido se tinha comportado naquela noite.

Tanto quanto ela sabia, dormir podia já não ser dormir.

– Acredito que sim – disse Reynolds. – É comum ele ficar muito cansado

depois de...

Carlota olhou para ele, desafiando a dizê-lo. A chamar as coisas pelos

nomes.

– Vou buscar sabão e água – disse ele.

– Vai.
Reynolds partiu, deixando Carlota sozinha com Jorge, que permanecia

encostado à parede com os olhos fechados. No entanto, balbuciava. Nada

que ela conseguisse compreender. Não conseguia sequer decifrar uma

palavra aqui ou ali. Era como se ele tivesse sido alimentado pelo fogo e a

chama maciça que o impelira lá para fora estivesse agora reduzida a uma

pequena e reluzente brasa.

Exausta, sentou-se ao lado dele no chão. Jorge tinha tremores, por isso

Carlota tomou uma das mãos dele entre as suas, esperando acalmá-lo.

– Foi por causa disto, Jorge? – disse ela em voz alta.

Ele suspirou.

– Foi por isto que me deixaste e foste para Kew? Não querias que eu te

visse assim.

Jorge balbuciou. De novo sem sentido.

Carlota fechou os olhos e depois apertou-os com força, espremendo uma

lágrima que lhe rolou pelo rosto. Estava casada com aquele homem. E

gostava dele. Até o amava.

Seria mesmo assim? O Jorge que ela amava… Será que existia? Seria ele

apenas uma fatia de um todo incognoscível, e, se assim fosse, de que

tamanho?

E se Só Jorge – o Jorge dela – fosse apenas uma migalha?

Ele falava sobre matemática. Muito bem, ela também sabia calcular

somas e produtos e percentagens. Que percentagem dele seria o Jorge dela?

Teria direito a ele em metade do tempo? Três quartos?

Menos?

– Que vou eu fazer contigo? – disse ela docemente.


Ele não respondeu. Ela não esperava que o fizesse.

Ouviu-se um suave bater à porta e Reynolds entrou sem esperar pela

resposta dela. Trazia uma bacia de água. Atrás dele, Brimsley transportava

toalhas.

Carlota olhou fixamente para Brimsley. Será que ele sabia? Será que a

servira durante todas aquelas semanas, a cinco passos de distância, e nunca

lhe dissera que o marido dela eram louco?

Brimsley engoliu em seco, desconfortável.

– Se Vossa Majestade preferir retirar-se, eu e Mr. Reynolds somos

perfeitamente capazes…

– Não me é permitido lavar o rei? – perguntou Carlota.

Brimsley parecia em sofrimento.

– Não é muito… usual.

– Confesso ter ainda muito que aprender acerca dos procedimentos do

palácio – disse Carlota irada. – Por exemplo, acabei de retirar o rei de um

buraco na horta. Onde ele estava ocupado a discursar para o céu. É isso

usual?

Brimsley não respondeu, e ainda bem. O que fosse que ele quisesse dizer,

ela não o queria ouvir. Não naquela noite.

– Nós tratamos disto – disse Reynolds a Brimsley. – Mantém-te de vigia

no corredor.

– Com certeza – disse Brimsley. Saiu, fechando a porta.

– Círculos concêntricos – disse Carlota.

Reynolds olhou para ela.


– Perdão?

– Nós somos círculos concêntricos em torno do rei. Tu e eu, os mais

próximos. Lavamos-lhe o corpo. Depois, Brimsley. Ele guarda a porta.

Depois… Bem, não sei quem vem a seguir. A mãe dele, talvez. Lorde Bute?

O conde Harcourt? Presumo que todos eles saibam.

– Sabem sim, Vossa Majestade.

Carlota mergulhou uma toalha na bacia. A água estava morna, não

demasiado quente. Com delicadeza, começou a limpar as mãos de Jorge.

Reynolds limpou-lhe os pés.

– Todos eles sabiam – disse Carlota. – Devem ter-se rido muito de mim.

– Não, Vossa Majestade. Não se riram.

– E como sabes tu? Eu vejo que és muito próximo do rei. Provavelmente,

o seu confidente de maior confiança. Mas não estás presente nas reuniões

governamentais. Não sabes o que se passa no Parlamento.

– Os serviçais ouvem mais do que se imagina, Vossa Majestade.

Carlota soltou um riso amargo.

– Então, eram vocês que se riam, o pessoal.

– Não! – disse Reynolds. Virou-se para Carlota com uma expressão

fervorosa. – Nós – eu – nunca me ri de si. Pelo contrário, Vossa Majestade é

a minha maior esperança.

Carlota olhou para ele. Sentia formarem-se-lhe lágrimas nos olhos, mas

não podia chorar. Ela era rainha. Não choraria em frente àquele homem.

– Já fez mais por ele do que eu alguma vez podia imaginar – disse

Reynolds. – Vossa Majestade faz-lhe bem.


Mas far-me-á ele bem a mim?

Uma pergunta que ela nunca poderia proferir em voz alta.

PALÁCIO DE ST. JAMES

...

NA MANHÃ SEGUINTE

Carlota não dormira.

Assim que ela e Reynolds conseguiram manobrar o rei até a cama, ela

voltara para o seu quarto. Gatinhou para debaixo das mantas, com o corpo

embrulhado nos mais macios dos lençóis, e deitou-se de costas, com os

olhos fixos no dossel.

A dada altura, o seu entorpecimento tornara-se desespero. E noutra altura

posterior, o desespero dera lugar a fúria.

Que era como ela se sentia agora.

Furiosa.

Em chamas.

E a caminho da princesa Augusta.

– Vossa Majestade…

Carlota marchava através do hall, com as botas a produzir pancadas

iradas a cada passo.

– Para de me seguir, Brimsley.

– Eu rogo-lhe, isto não vai acabar bem.

Carlota deu meia volta, com uma expressão tão feroz que Brimsley

tropeçou para trás, recuando um passo.


– Isto não vai acabar bem, dizes tu? Isto não vai acabar bem, dizes tu

agora? Onde tens estado tu ao longo destas últimas semanas? Dizes que

estás aqui para me servir. Dizes que juraste dar a vida pelo meu bem-estar.

E, no entanto, escondes-me isto?

– Eu não sabia, Vossa Majestade.

– Não sabias – disse Carlota, praticamente a cuspir. Ela tinha-o visto na

noite anterior. – Não acredito.

– Eu não sabia – gritou Brimsley, e esticou o braço, quase como se

estivesse prestes a agarrá-la. Mas claro que não o fez. – Desconfiava –

admitiu. – Não disto. Nunca poderia ter desconfiado disto. Mas sabia que

alguma coisa andava a ser ocultada. Tentei descobrir o que era. Juro que

tentei.

– Eu consigo compreender isto da parte dela – atirando o braço num

gesto violento em direção à sala de estar da princesa Augusta. – Ela é

egoísta. Só se preocupa com a Coroa. Mas era suposto tu estares do meu

lado.

– E estou, Vossa Majestade.

Carlota não respondeu. Já chegara à sala de estar. Entrou de rompante,

sem qualquer preocupação com o decoro ou o protocolo. A princesa

Augusta tomava o pequeno-almoço com uma amiga.

– Carlota? – Augusta sorriu com tanto de surpresa como de afeto. – Não

a esperava. O Baile Danbury foi um triunfo. Muito bem, minha menina.

Carlota não conseguia ouvir aquilo.

– Vossa Alteza alguma vez tentou cortar uma fatia de carneiro inglês com

uma faca romba?


A princesa Augusta imobilizou-se.

– Perdão?

– As facas da Casa de Buckingham costumavam ser suficientemente

afiadas. Até que, certo dia, ficaram todas bastante rombas.

– Não faço ideia do que quer dizer.

– Foi no dia em que o rei lá se juntou a mim.

Carlota fixou o rosto numa expressão plácida, aguardando a resposta de

Augusta.

Augusta virou-se para a sua companhia.

– Creio que teremos de quebrar juntas o jejum numa outra manhã, lady

Howe.

Lady Howe foi-se embora com a maior rapidez possível. Ainda assim,

Augusta manteve uma mão erguida durante vários segundos após a porta ter

sido fechada.

– Estava a dizer? – disse Augusta.

– As facas – recordou Carlota. – Subitamente rombas. Estranho, pensei

eu, mas seguramente uma coincidência. Também seguramente uma

coincidência que, no mesmo dia, a janelas dos andares superiores tenham

sido seladas. Isso perturbou-me um pouco. Gosto de ar fresco enquanto

durmo.

– Eu…

– Mas de repente havia fechaduras em todo o lado. Fechaduras no

armário, na cozinha, na cabana onde os jardineiros guardam as suas

ferramentas. Uma coincidência, seguramente. – Carlota avançou, com os

olhos a estreitarem-se à medida que se focaram nos olhos de Augusta. – Mas


aquilo que não consegui convencer-me tratar-se de uma coincidência, no

entanto, foi quando à coleção de livros de Shakespeare da biblioteca faltava

subitamente o Rei Lear.

– Perdoe-me – disse a princesa Augusta, de rosto impávido como pedra. –

Não sou entusiasta de Shakespeare.

– Não é? Então deixe-me educá-la. O Rei Lear é aquela peça sobre o rei

louco.

– Carlota.

Aquilo foi a gota de água. O tom condescendente de Augusta,

apaziguador, como se a Carlota estivesse a imaginar tudo aquilo. Como se

Carlota fosse estúpida, como se fosse ela quem estivesse a perder o juízo.

– Sabe de que é que eu me apercebi, Augusta?

Augusta retesou-se visivelmente ao ouvir Carlota tratá-la pelo nome

próprio.

– Estou a viver num manicómio. – Deu alguns passos para a esquerda,

procurando controlar as suas emoções. Falhou. Dando meia-volta,

praticamente gritou: – O rei é louco e eu estou a viver num manicómio.

– Está a pisar o risco – avisou Augusta.

– Ao longo de todo este tempo, eu pensava que eu é que tinha algum

problema, que eu era deficiente de alguma forma. Afinal, ele é…

– O rei não é louco – ciciou Augusta. Pousadas à sua frente, as suas mãos

fixaram-se em forma de garras, como se ela precisasse daquele momento,

daquela tensão para se acalmar. – O rei está apenas exausto por suster a mais

grandiosa nação do mundo sobre os ombros – disse, e cada palavra era um

recorte preciso de sílabas e mentiras.


– Não me…

– Isso digo eu – soltou Augusta, empurrando a cadeira para o lado

quando se levantou. – Vem aqui como se soubesse tudo. Não sabe. É apenas

uma criança.

– Sou um peão.

– E talvez seja. Qual é o problema? Vai queixar-se? Foi feita rainha da

Grã-Bretanha e Irlanda. Como se atreve a queixar-se disso?

– Ninguém me disse…

– Que importância tem isso? – cuspiu Augusta. – Eu não vejo que tenha

nenhuma. Que poderia a Carlota saber sobre isso? Que poderia ter

compreendido? O peso de uma nação sobre os ombros de um rapaz? O peso

sobre a mãe dele quando começa a ver o seu filho quebrar? Se, queira Deus,

a Carlota alguma vez carregar um herdeiro, é melhor começar a aprender, e a

sua primeira lição será isto: fará qualquer coisa para impedi-lo de quebrar.

Contratará médicos duvidosos e os seus milhares de tratamentos

repugnantes.

Olhou para Carlota diretamente nos olhos e disse:

– Percorrerá a Europa inteira à procura de uma rainha suficientemente

grata para o ajudar.

Carlota encolheu-se. Desejava não o ter feito. Queria estar forte e

orgulhosa e insensível. Mais do que tudo, queria estar insensível. Tudo

menos sentir aquilo.

– Acha que a cor da minha pele me faz grata? – disse.

– Acho que a Carlota mudou o mundo.

– Eu não pedi para mudar o mundo.


– Eu não pedi por um filho com fragilidades. Mas é isso que tenho, e

protegê-lo-ei com tudo o que puder.

– Fragilidades? – repetiu Carlota, incrédula. – Ele estava a falar com o

céu.

– E então? A Carlota não era nada. Veio de nenhures. Agora está ao leme

do mundo. Que importância tem se o seu marido tiver algumas

peculiaridades?

– Peculiaridades? Chama a isto peculiaridades? Vossa Alteza não o viu na

noite passada.

– Já o vi noutras vezes – disse Augusta em voz baixa.

– Ele pensa que eu sou Vénus.

– Então, seja Vénus.

Carlota abanou a cabeça, quase incapaz de compreender o que estava a

ouvir.

– Eu não pedi para estar ao leme do mundo. Eu não pedi um marido.

Mas, se tenho de ter um, se tenho de deixar a minha casa, a minha família, a

minha língua, a minha vida…

– O quê, Carlota? – perguntou Augusta. A sua voz estava estranhamente

inexpressiva. – O quê?

– Não poderá ser por um homem que eu não conheça. Um homem que

não me permitam conhecer.

– Agora já o conhece.

– Mentiu-me descaradamente.

– E a Carlota engoliu a mentira de bom grado.


Carlota estava capaz de rir. Que importância tinha agora se fora ou não de

bom grado? Estava casada com um rei. Não havia dissolução possível. E ela

nem sabia se queria dissolver o casamento. Queria apenas...

O quê?

Que queria ela?

Honestidade?

Verdade?

Confiança?

Não obteria nenhuma dessas coisas da princesa Augusta.

– Diga-me – disse Augusta –, está de esperanças?

– Não sei – mentiu Carlota.

Tinha quase a certeza de que sim. O doutor Monro estava bastante

convencido disso.

– Dir-me-á assim que tiver a certeza – ordenou Augusta.

– Dir-lhe-ei quando lhe quiser dizer.

– Descobrirá que não tem nada a ganhar sendo obstinada só pela própria

obstinação.

– Ah, não tenho a certeza disso – murmurou Carlota.

A expressão incomodada no rosto de Augusta fora o único raio de luz da

sua manhã.

O único raio de luz no raio de toda a sua vida.

Nenhuma das mulheres viu o homem que estava no hall mesmo à saída

da sala de estar. Nenhuma delas ouviu os passos dele a sair do palácio e


regressar para a carruagem que o levara da casa de Buckingham até ali. E

nenhuma delas soube que, dali, ele viajou para Kew, onde encontrou o

doutor Monro num laboratório.

– Vossa Majestade – disse o médico.

Estivera a empacotar as suas coisas. Não esperava ver o rei.

Jorge atravessou a divisão e sentou-se na tenebrosa cadeira.

– Amarre-me.
Agatha

CASA DANBURY

SALA DE LEITURA PRIVADA DE AGATHA

...

12 DE JANEIRO DE 1762

– O lorde e a lady Smythe-Smith estão aqui para vê-la, minha senhora.

Agatha suspirou profundamente. Não queria receber visitas, mas já

passara um mês desde que o marido morrera. As boas maneiras ditavam que

ela deveria ser deixada em paz durante as primeiras semanas do seu luto,

mas agora estava na altura de a sociedade lhe transmitir as suas

condolências.

Levantou-se, ajeitando as suas saias pretas.

– Recebê-los-ei na sala de visitas.

– Com certeza, minha senhora – disse o mordomo. – Eles já lá estão.

– Claro.

– Juntamente com o duque de Hastings.

– O quê? – resmungou Agatha. Ela já não gostava do homem quando ele

era Frederico Basset, e não gostava dele agora que era o duque de Hastings.

– E o lorde e a lady Kent.

– Estará lá porventura também o czar da Rússia?

– Não, minha senhora.


O mordomo de Danbury nunca tivera sentido de humor. Fora, claro,

contratado por Herman.

– Mas estão o lorde e a lady Hallewell.

Agatha olhou para o mordomo com um ar aproximadamente horrorizado.

– E estão todos na nossa sala de visitas?

– Mandei servirem chá, minha Senhora.

– Mas sem biscoitos – disse Agatha. – Não quero que fiquem muito

tempo.

– Claro que não, minha senhora.

Abriu a porta da sala de leitura para que ela pudesse sair e depois seguiu-

a.

– É muito gentil da vossa parte virem visitar-me – disse ela assim que

entrou na sala de visitas. A sala estava cheia como um ovo. Parecia que

metade da nova elite estava ali.

Agatha cumprimentou cada um deles separadamente, depois sentou-se no

seu novo sofá. De damasco dourado, claro. Fora encomendado antes da

morte de lorde Danbury.

– Agatha, querida – disse lady Smythe-Smith –, estamos devastados por

si. Pela sua perda. Estamos em sofrimento.

Estão?, quis Agatha perguntar. Ninguém gostara de Herman Danbury,

exceto, talvez, o novo duque de Hastings.

– Era um grande homem – disse o duque.

– Era um campeão – disse lorde Smythe-Smith.

A rematar, mais uma intervenção de lady Smythe-Smith:


– Estamos em sofrimento.

Agatha aguardou um pouco. Olhou para os Kent e para os Hallewell, de

pé atrás dos Smythe-Smith. Tinham os rostos cobertos com as suas

expressões mais compassivas, mas pareciam inclinados a deixar a conversa a

cargo dos outros.

– No entanto – disse Agatha, por fim. A atmosfera ficou visivelmente

tensa sob o peso das palavras não ditas. – Há um no entanto, não há?

Porque, seguramente, não tinham vindo ali todos juntos apresentar as

suas condolências. Este tipo de visitas era normalmente feito

individualmente.

Lorde Smythe-Smith aclarou a garganta.

– Há, de facto, um no entanto. E pedimos desde já as nossas desculpas

por virmos aqui en masse. Mas precisamos de saber. O que vai acontecer

agora?

– O que vai acontecer agora? – repetiu Agatha.

– O que lhe chegou aos ouvidos? – perguntou ele.

– O que vai ser de si? – perguntou a esposa dele.

– O que vai ser de nós? – disse o duque de Hastings em voz mais alta.

– Desculpem-me – disse Agatha, olhando de um rosto para outro. – Não

faço a mais pequena ideia de que estão a falar.

– A Agatha é um membro de confiança da corte – disse lorde Smythe-

Smith.

– É uma das favoritas da rainha – disse a esposa dele.

O duque de Hastings inclinou-se para a frente.


– Seguramente que o Palácio lhe terá dito alguma coisa. Acerca dos

procedimentos. Do que acontecerá a seguir.

Agatha pestanejou. A seguir?

– Lorde Danbury foi o primeiro de nós a falecer – disse lorde Smythe-

Smith de supetão. Limpou a testa com um lenço. – O primeiro cavalheiro

com um título do nosso lado. E vocês têm um filho.

Oh.

Oh.

Agatha compreendeu, finalmente.

– Estão a perguntar-me se o meu filho de quatro anos de idade é agora

lorde Danbury.

– Precisamos de saber se as leis da sucessão do lado deles se aplicarão ao

nosso lado. Irá o vosso filho herdar o título?

– Nunca pensei…

Santo Deus. Danbury estava já morto há um mês e nunca lhe ocorrera

pensar se eles manteriam o título. Ela apenas assumira que a posição do seu

filho estava garantida.

Ergueu o olhar. Para aquela dúzia de rostos, mais coisa menos coisa,

fixados no dela.

– Podíamos perder tudo numa geração.

– Sim – disse lady Smythe-Smith. – O que vocês perderem nós

perderemos. Vocês estabelecem o precedente. Vocês são o precedente.

O duque de Hastings olhava para ela com cara de poucos amigos.

– Continuará a ser lady Danbury ou agora é só Mrs. Danbury?


– Eu… vou tentar descobrir – disse Agatha.

Que alternativa lhe restava?

– O quanto antes, por favor – disse o duque.

Lady Smythe-Smith pousou a mão sobre a mão de Agatha.

– Contamos consigo. Todos nós.

Agatha esboçou um sorriso sumido. Mais uma vez, o destino da

Grandiosa Experiência assentava pesadamente sobre os ombros dela.

CASA DE DANBURY

ESCRITÓRIO DE LORDE DANBURY

...

NO MESMO DIA, MAIS TARDE

Agatha abriu mais uma gaveta e remexeu nos papéis. Já devia ter feito aquilo

há mais tempo, se não para esclarecer o assunto da herança, então porque

ela era agora uma mulher sozinha, e devia compreender o estado das suas

finanças.

Francamente, devia ter compreendido as suas finanças no tempo em que

lorde Danbury era vivo, mas ele nunca lhe teria concedido tal acesso.

– Raios, Herman – resmungou.

Os documentos dele não estavam ordenados de acordo com qualquer

critério. Ele não era estúpido. Devia ter feito as coisas melhor.

Coral esgueirou-se para dentro da divisão e fechou a porta.

– O camareiro dele não tinha nenhuma informação – disse. – Nem o

mordomo. Talvez lorde Danbury não tivesse advogado algum.


– O meu marido tinha um advogado – disse Agatha. – Reuniu-se com ele

numerosas vezes para tratar de… coisas.

Que tipo de coisas, isso Agatha não sabia. Não prestara atenção. Era

evidente que devia tê-lo feito.

– Só preciso de descobrir o nome dele.

Coral manteve-se junto à porta durante algum tempo, a brincar

distraidamente com o tecido do seu avental.

– Eu procuro olhar para o lado positivo, minha senhora.

Agatha ergueu o olhar, mostrando-se ou espantada ou incrédula. Nem ela

sabia bem qual das duas.

– O lado positivo? – repetiu.

Ultimamente tinha alguma dificuldade em localizar tal coisa.

– Está livre – disse Coral. – Não era isso que queria?

Agatha soltou um suspiro neutro.

– Achas que eu estou livre? Eu pensei que estaria. Pensei que a morte de

lorde Danbury me deixaria desafogada, mas afinal descubro que me deixou

sobrecarregada com o peso do que significa ser uma mulher sem homem.

– Isso não é bom?

Agatha encolheu os ombros.

– Quem sabe? Estou por minha conta, mas não tenho a vida ao meu

alcance. Não tenho quaisquer novas liberdades. Tudo aquilo com que

poderei contar é com luto, bordados e chás tranquilos com outras viúvas.

Para sempre.

Coral não disse nada. Que haveria para dizer?


Agatha fechou uma gaveta com força e abriu outra igualmente com força.

– E agora não consigo encontrar o nome do advogado! Estou incumbida

de preservar os títulos de dezenas de boas pessoas e não consigo sequer

encontrar o nome do homem que me poderá ajudar.

– Seria assim tão mau, minha senhora? – perguntou Coral. – Perder o

título.

Agatha olhou para ela.

– Sim, Coral. Seria mau. Eles vieram até aqui – todos – à procura de

respostas. Contando comigo.

– Mas isso não pode ser sua responsabilidade.

– Eu fi-lo minha responsabilidade quando insisti em organizar aquele

baile. Quando pedi ao rei e à rainha para comparecerem. Demos esperança à

nova elite. Uma amostra rara. De igualdade. Eles não serão capazes de

abdicar dela facilmente. – Folheou mais uma pilha de papéis. – E por que

razão abdicariam?

– Mas…

– Encontrei!

Agatha ergueu uma carta, triunfante.

– O advogado?

– Sim. – Olhou para o nome. – Um Mr. Margate. Ele tratará disto. Saberá

o que fazer. Vou escrever-lhe e ele virá cá.

Agatha instalou-se na secretária de lorde Danbury e começou a escrever a

carta. Mas então Coral perguntou:

– Acha mesmo que um advogado virá falar com uma mulher?


Raios.

Às vezes, detestava os homens. Mesmo.

– Assinarei a carta apenas com «Danbury». Esperemos que ele assuma

que eu sou um homem de fracas maneiras.

– Mas ele não saberá já do falecimento?

– Pensará que sou um irmão ou um primo, qualquer pessoa menos eu. É

assim que são os homens.

– Espero que tenha razão, minha senhora.

– Tenho de ter – disse Agatha com um suspiro. – Não me posso enganar.

Não nisto.

CASA DANBURY

QUARTO DE AGATHA

...

TRÊS DIAS DEPOIS

– Está aqui um cavalheiro para si.

– Um cavalheiro?

Agatha ergueu os olhos do seu livro.

– Diz que é o advogado – disse Coral. – À procura da senhora que não

assina com o seu nome completo.

– Oh, meus deuses.

Agatha saltou da cama.

– Estou apresentável? É este vestido sério o suficiente?

– É um vestido preto, minha senhora. A cor preta é sempre séria.


– Sim, tens razão. O luto é um assunto sério.

– Ele aguarda no escritório de lorde Danbury.

Agatha anuiu com a cabeça, enfiando os pés nuns sapatos.

– Deseja-me sorte.

– Não precisará disso.

Agatha ofereceu-lhe um sorriso agradecido e depois desceu as escadas

apressadamente.

– Mr. Margate – disse ela quando chegou ao escritório do falecido

marido. – Obrigada por ter vindo.

O advogado era velho, usava peruca e tinha a aparência que era suposto

um advogado ter.

Agatha dirigiu-se para o lado da secretária de lorde Danbury e fez um

gesto na direção da outra cadeira.

– Por favor, meu senhor.

– Lamento não ter boas notícias.

Agatha rangeu os dentes, mas conseguiu soar calma quando disse:

– Por favor, desenvolva.

– Não há qualquer precedente para um caso como este. Não é à toa que

lhe chamam uma experiência.

– E o meu marido foi o primeiro a morrer.

Mr. Margate Esboçou um sorriso rasgado. Agatha tinha pouca

experiência com advogados – nenhuma, na verdade –, mas até ela sabia que

aquela era uma expressão especial que empregavam quando estavam prestes

a dar más notícias.


– O problema – disse ele – é que o título e a propriedade foram atribuídos

especificamente ao falecido lorde Danbury, paz à sua alma. Não a si.

– É evidente que não – disse Agatha com impaciência. – Os títulos

raramente são atribuídos a mulheres.

– Normalmente, passaria tudo para o lorde Danbury seguinte.

– Sabe que eu tenho um filho.

Mr. Margate fez um gesto quase impercetível a indicar que sabia.

– Mas não ficou clarificado em lado algum se estes novos títulos passam

para a geração seguinte. É muito possível que revertam para a coroa.

– Deixando-me lady Nada. Com nada mais que a antiga casa do meu

marido e o dinheiro.

Mr. Margate voltou a mostrar aquela expressão no rosto.

– Oh, não – disse Agatha. – O que foi agora?

– Acontece que… – Suspirou profundamente. – Quando o seu marido

aceitou a nova propriedade, utilizou uma porção considerável das suas

posses para sustentar a vossa nova vida. Alfaiates, quotas de clubes, cavalos,

pessoal extra…

Agatha abanou a cabeça. De forma alguma acreditava no que estava a

ouvir.

– O meu marido tinha uma das maiores fortunas em todo o continente.

Alguma vez ouviu falar na Serra Leoa, Mr. Margate? Conhece as riquezas

que lá existem? As minas de diamantes?

– Lamento dizer que o seu marido pode ter exagerado na descrição da sua

fortuna. Também gastou muito para manter uma vida digna de um lorde.
– Ele não tinha o título há muito tempo.

– Mas mesmo antes disso. O vestuário dele. O seu vestuário…

Passou os olhos pela bombazina preta dela, como se fosse responsável

pela sua derrocada.

Agatha quis gritar. Quis saltar por cima da secretária e apertar o pescoço

daquele homem. Mas não o fez. Agarrou-se à sua dignidade, porque, tanto

quanto parecia, era a única coisa que lhe restava.

– Diz que ele esbanjou mais depois de ter sido feito lorde – disse Agatha.

Mr. Margate anuiu com a cabeça.

– Então, graças a este título, que talvez nem sequer possamos manter, eu

vou ficar… O quê? Sem um tostão? E a nossa antiga casa?

Não estavam há muito tempo na nova propriedade.

– Foi vendida. Os donos já a arrendaram a novos inquilinos.

– Não só fiquei sem um tostão, como fiquei sem casa, também.

Mr. Margate voltou a rasgar aquele sorriso. Agatha começava a perguntar-

se se ensinariam aquela expressão em particular nos estudos das leis. Talvez

não se pudesse obter a licença para exercer advocacia enquanto não se

dominasse o sorriso das más notícias. Precisava de uma pitada de falsa

empatia para contar.

– O que é que eu faço?

– Ora, o que fazem todas as viúvas desprovidas de meios. Procure a

bondade de um familiar masculino. Ou volte a casar.

CASA DANBURY

HALL DE ENTRADA
...

DOIS DIAS DEPOIS

Mr. Margate tinha razão. Agatha tinha de pedir ajuda a um familiar

masculino. A parte aborrecida disso era que esse familiar masculino era o

seu filho de quatro anos.

– Dominic, por favor – disse ela enquanto esperava junto à porta. – Deixa

a ama atar o teu plastrão.

– Vá lá, meu patife – disse a ama. – É só um lenço à volta do pescoço.

– Parece-me mais uma corda de enforcar – queixou-se Dominic.

Agatha revirou os olhos. Ele nem imaginava.

– Oh, não – ralhou a ama. – Que impertinência.

Dominic sorriu-lhe. Aquele era um sorriso que ele nunca oferecia aos

pais. Agatha sentiu um aperto de arrependimento. Faria alguma coisa quanto

a isso. Seria melhor mãe do que fora até então, mas hoje não era dia para lhe

caçar sorrisos.

– Dominic, para imediatamente – disse com firmeza. – Hoje é um dia

importante e tu tens de te portar bem.

O rapaz olhou para a ama à procura de orientação. Ela acenou-lhe com a

cabeça.

– Sê um bom menino – disse. – Escuta a tua mãe.

Agatha pegou-lhe na mão e conduziu-o até à carruagem que os

aguardava.

– Quando é que voltamos para a ama?

Agatha engoliu em seco.


– Dominic – disse, no tom de voz mais doce que proferira em semanas –,

lamento que não me conheças bem. Eu também não conheci bem os meus

pais e compreendo que seja muito assustador deixar assim a ama. Mas eu

sou a tua mãe, e o teu pai está com os anjos, e agora és tu o homem da

família.

Dominic olhou para ela com os olhos solenes de um rapaz de quatro

anos.

– O homem da família.

Que Deus lhes valha.

Agatha assumiu uma postura encorajadora.

– A tua família precisa de que cumpras o teu dever.

– Está bem, pronto.

Dominic pensou naquilo durante um instante e depois animou-se.

– Vamos conhecer uma princesa?

– Vamos, sim.

– Uma princesa verdadeira?

– Muito verdadeira.

– Ela usará uma coroa?

Agatha pensou naquilo. Achava que nunca tinha visto a princesa Augusta

sem uma tiara.

– Provavelmente.

– E gostará ela de mim?

– Não vejo como poderia não gostar.


Dominic sorriu. Espreitou pela janela quando arrancaram. Não seria

longa a viagem. A nova Casa Danbury estava extremamente bem localizada,

a cerca de um quilómetro e meio do palácio de St. James.

– Sabias que eu sei contar, mãe? – perguntou Dominic.

Agatha não o sabia, mas mentiu e disse:

– Claro.

– Um. Dois. Três.

A sua cabecinha abanava a cada número.

– Quatro. – Parou. – Eu tenho quatro anos.

– Eu sei.

– O próximo é o cinco – disse ele. – Que são os anos que farei em breve.

– Talvez façamos uma festa.

– Com bolo e biscoitos?

– Claro que com bolo e biscoitos.

Dominic bateu palmas e prosseguiu com a sua contagem.

– O seis vem a seguir – disse. – Depois, o sete. Oito. – Olhou de novo

para ela. – Vou precisar de ajuda a seguir ao 19.

– Eu posso ajudar-te – disse Agatha.

E foi assim que iam já no 143 quando desceram da carruagem.

Agatha segurou na mão de Dominic.

– Lembra-te de fazeres como eu te disse.

Agatha entregou o seu cartão de visita ao mordomo, apesar de ele saber

muito bem quem ela era.


– A princesa está à sua espera? – perguntou ele.

– Não está – respondeu Agatha. – Mas receber-me-á.

O mordomo fez-lhes um gesto para que aguardassem num banco, num

dos grandes corredores. Um pouco mais tarde, regressou.

Mais uma vez, Agatha pegou na mão do filho. Parecia-lhe pequena e, no

entanto, ele era já mais velho do que ela era quando lhe haviam ditado o

destino, prometendo-a a Herman Danbury.

Seguiram o mordomo até à sala de estar da princesa Augusta. A princesa

encontrava-se no seu lugar do costume, no sofá, com as amplas saias a

cobrirem quase todo o assento. Como habitualmente, lorde Bute e o conde

de Harcourt estavam de pé atrás dela, um de cada lado. Agatha ignorou-os,

dirigindo as suas palavras diretamente à princesa.

– Pensei que era já boa altura, princesa Augusta, para conhecer o meu

filho, lorde Danbury.

Apertou delicadamente o ombro de Dominic em sinal de encorajamento,

e ele executou uma vénia adorável antes de dizer:

– É um prazer conhecê-la, Vossa Alteza.

A princesa Augusta sorriu, visivelmente encantada por aquela exibição de

doçura.

– Um prazer conhecê-lo, lorde…

Lorde Bute tossiu ruidosamente.

Augusta virou as costas a Agatha e a Dominic.

– Sente-se bem? – perguntou a Bute.

– A questão da herança – sussurrou ele.


Agatha teve de fingir que não ouvira.

– Está longe de estar decidida – disse o conde Harcourt.

– As preocupações envolvidas…

Agatha não conseguiu perceber o fim daquela frase, mas ouviu muito

claramente o conde Harcourt dizer à princesa Augusta:

– Compreende as implicações?

Silêncio.

A princesa Augusta virou-se de novo para as suas visitas.

– Que belo rapaz – disse. – Espero que possam ambos visitar-nos em

breve.

Com uma torção do pulso, indicou-lhes que saíssem.

Não havia mais nada que Agatha pudesse dizer, não ali em frente a Bute,

Harcourt e Dominic, por isso fez uma vénia e recuou até à saída da sala.

– Cumpri o meu dever, mãe? – perguntou Dominic assim que chegaram

ao hall.

Não cumprira, mas tentara. Ambos haviam tentado. Agatha ajoelhou-se à

frente dele, segurando nas suas pequenas mãos.

– Mostraste-lhes quem és.

Ele olhou para ela com uma expressão solene.

– Dominic Danbury. Filho de Herman Danbury.

– Sim. És, sim. E és o lorde Danbury, e tomarás o teu devido lugar

porque tens direito a ele. E porque és também meu filho. És o filho de

Agatha Danbury, nascida Soma, da família real da tribo Gbo Mende da

Serra Leoa. Descendes de guerreiros.


– Guerreiros? – sussurrou Dominic.

– Nós vencemos. – Apertou a mão dele. – Nunca te esqueças disso.

Agora só faltava também ela não se esquecer.


Brimsley

CASA DE BUCKINGHAM

HORTAS DO REI

...

31 DE JANEIRO DE 1762

Haviam passado quase dois meses após o episódio do rei.

Episódio.

Brimsley não sabia que mais chamar àquilo, mas, por Deus, episódio

parecia demasiado benigno.

Ele não sabia se alguma vez conseguiria perdoar Reynolds por lhe

esconder um segredo de tal natureza. Sim, compreendia que Reynolds tinha

de defender o rei, mas a rainha tinha garantidamente o direito de saber.

O que significava que ele devia ter dito a Brimsley. Brimsley poderia tê-la

apoiado. Poderia tê-la preparado.

Pronto, não a poderia ter preparado. Ninguém a poderia ter preparado

para aquilo. Mas podia ter tentado. Podia ter feito alguma coisa para que

aquilo não tivesse sido tão estupendamente horrendo.

Quanto ao rei, ninguém o vira na casa de Buckingham, nem uma única

vez, desde aquele dia fatídico. Ele partira para Kew e recusava-se a receber

visitas.

Nem sequer a rainha.


Ela escrevia-lhe cartas. Escrevia tantas cartas, mas não recebia resposta

alguma.

Brimsley tentava obter explicações, mas Reynolds não lhe dizia quase

nada. Apenas que o rei havia regressado às suas demandas científicas. E que

estava a receber tratamento para a sua condição. Brimsley perguntara-lhe

que tipo de tratamento (porque, a sério, o que é que se fazia para tratar tal

coisa?), mas Reynolds dissera-lhe que não tinha nada que ver com isso.

E também que se calasse.

Por aqueles dias, Brimsley não andava contente com Reynolds.

– Está suficientemente quente, Vossa Majestade? – perguntou ele. A

temperatura estava amena para janeiro; ainda assim, era janeiro, e eles

estavam junto às hortas do rei.

– Estou – respondeu Carlota. – Não ficarei muito tempo cá fora.

Brimsley estendeu o olhar até à horta. Já não estava profusamente viva,

mas ainda lá cresciam e floriam vários vegetais resistentes. Era, de facto,

extraordinário.

– O rei é verdadeiramente talentoso – disse ele.

– Perdão?

– Por ter cultivado plantas que crescem durante o inverno.

– Ele gosta mesmo da ciência.

Brimsley procurou ver melhor.

– Que há ali? Brócolos? Pequenas couves? Tenho a certeza de que são

deliciosos.

– Manda colhê-los e dá-los aos pobres – disse ela.


– Imediatamente, Vossa Majestade.

Estava ele a decidir quem seria a melhor pessoa para contactar acerca

daquilo, quando chegou um criado apressado.

– Acaba de chegar a princesa Augusta – disse baixinho o criado.

Brimsley tentou não rugir de forma audível.

– Ele escreveu-me? – perguntou a rainha. Com esperança na voz.

Era a esperança que feria mais.

– Lamento, Vossa Majestade, mas não. É a princesa-viúva.

A rainha não fez qualquer esforço para ocultar o seu desagrado.

– Que quer ela?

Brimsley olhou para o criado.

– Vem com lorde Bute – disse o criado.

– Eu não recebo visitas – disse Carlota, e afastou-se a caminhar.

O criado agarrou no braço de Brimsley.

– Há mais – disse ele, urgentemente. – Ela trouxe o médico real.

A rainha virou-se, tendo, evidentemente, ouvido ou criado.

– Recuso-me terminantemente a ser vista pelo médico.

CASA DE BUCKINGHAM

QUARTO DA RAINHA

Passada meia hora, o médico real estava a examinar a rainha, deitada na sua

cama, de saias para cima, pernas afastadas. Brimsley estava junto à parede

mais distante, olhando escrupulosamente na direção oposta. A princesa

Augusta tentara ordenar-lhe que saísse dali, mas a rainha interveio. Não o
dissera explicitamente, mas Brimsley tinha a impressão de que ela queria

um aliado.

Assim ele esperava que ela a visse. Ela levara algum tempo a perdoá-lo

pelo que considerara uma deslealdade. Brimsley esperava que ela tivesse

compreendido que ele não tinha noção, de todo, da extensão da doença do

rei.

Ou, na verdade, de que o rei estava sequer doente.

– Está a demorar muito – disse a princesa Augusta, presumivelmente ao

médico.

– Muito, mesmo – acrescentou lorde Bute.

– Eu sou rigoroso – respondeu o médico.

A rainha suspirou. Foi mais um grunhido, na verdade.

– Vossa Majestade? – Interpelou Brimsley.

Ele tinha visto os instrumentos do médico antes de ela se deitar na cama.

Pareciam-lhe ferramentas de tortura. Muito metal brilhante e formas

estranhas. Brimsley não sabia muito acerca do corpo feminino (na verdade,

provavelmente aprendera tanto quanto a rainha com a explicação de Lady

Danbury durante aquele chá de há alguns meses), mas não conseguia

perceber onde era suposto caber qualquer daquelas horríveis engenhocas.

– Não é nada – respondeu a rainha estoicamente.

– Não diria que não é nada – disse, finalmente, o médico. – Ela está

grávida.

A princesa Augusta emitiu um som quase de euforia.

– Está feito, então?


– Tem a certeza? – perguntou lorde Bute.

– Não há qualquer dúvida – declarou o médico.

– As dúvidas são a melhor parte do interior do corpo de uma mulher –

pronunciou a princesa Augusta.

Brimsley estremeceu. Que raio queria aquilo dizer?

– Tem a certeza absoluta? – continuou a princesa Augusta.

– Sim, tenho – disse o médico. – Aliás, a gravidez de Sua Majestade já

está bastante avançada. A progredir magnificamente.

– Graças a Deus – disse lorde Bute. – Podemos anunciá-la?

– Não antes de ela sentir o bebé mexer-se na barriga – disse a princesa

Augusta, no tom de voz de quem estava a planear um assalto estratégico. –

Quando será isso?

– Dentro de um mês, creio – disse o médico.

A princesa emitiu outro pequeno trinado de excitação.

– Parabéns, Vossa Alteza – disse lorde Bute à princesa Augusta.

Ele estava radiante.

– Está tão de parabéns quanto eu, lorde Bute – respondeu ela.

Então e a rainha?, perguntava-se Brimsley. Porque é que não lhe davam

os parabéns a ela? Era ela quem tinha, de facto, um bebé a crescer-lhe no

útero. Era ela a única pessoa daquela sala a ter contribuído concretamente

para a feitura deste herdeiro real.

Brimsley olhou-a de relance. Estava mais próximo da cabeça dela do que

dos pés, por isso não viu nada desadequado. Ela olhou-o de volta e depois

virou o olhar para o teto, suspirando.


– Está a rainha pronta? – inquiriu Brimsley.

Porque, a sério, ela não parecia estar confortável.

Ignoraram-no. A princesa Augusta aproximou-se da cabeça de Carlota e

fixou os olhos nela.

– Ordenarei que enviem as minhas coisas para a Casa de Buckingham de

imediato.

Brimsley encolheu-se. A rainha não ia gostar daquilo.

Augusta deu-lhe uma palmadinha no ombro. Era provavelmente suposto

ser um gesto maternal, mas a Brimsley pareceu que aquilo tinha qualquer

coisa de monstruoso. Pobre Carlota, deitada de barriga para o ar, com

Augusta a ocupar-lhe completamente o campo de visão.

– Traz agora a Coroa dentro de si – disse a princesa Augusta. – A sua

segurança é o mais importante. Não a deixarei sozinha nem por um minuto.

Aguardaremos juntas a chegada do futuro rei.

– Juntas – disse a rainha, com a voz fraca.

– Doutor – disse a princesa Augusta –, aquela coisa ainda está dentro

dela.

– Oh, pois, peço desculpa.

Puxou qualquer coisa de dentro da rainha. Que se assemelhava a um pato

de ferro.

Brimsley desejava mesmo muito não ter visto aquilo.

Não era fácil ser um homem que gostava de homens, mas, por Deus, era

melhor do que ser mulher.

PALÁCIO DE KEW
PÓRTICO FRONTAL

...

24 DE FEVEREIRO DE 1762

– Outra? – perguntou Reynolds.

– Ela escreve-lhe pelo menos duas vezes por dia – disse Brimsley. – Não

te devia surpreender que eu esteja aqui para entregar mais uma carta.

– Costumamos encontrar-nos no parque.

– A rainha não recebeu nenhuma resposta às cartas que eu te entreguei no

parque. Achei prudente viajar pessoalmente até Kew.

– Brimsley – disse Reynolds com um suspiro. Passou a mão pelo cabelo.

– Brimsley, por favor.

– O quê?

– É que…

Mas Reynolds não acabou a frase. Nunca acabava nenhuma frase

referente ao rei.

– A rainha está a sofrer – disse Brimsley.

A voz dele soava incisiva, mais do que alguma vez soara em conversas

com Reynolds.

Reynolds limitou-se a abanar a cabeça.

– Sabes que não posso. O meu dever…

– Ela está a sofrer – disse Brimsley de supetão.

– Não posso… Não sou capaz…

– Por muito que eu adorasse ficar aqui a ajudar-te a encontrar as palavras

para dizeres, tenho os meus próprios deveres a cumprir. Entrega esta carta a
Sua Majestade.

Brimsley entregou-lhe o envelope e começou a caminhar no sentido

inverso, mas então Reynolds chamou-o.

– Espera!

Brimsley virou-se.

– Quero que saibas – disse Reynolds, agitado – que eu as entrego.

Entrego-as todas. Pessoalmente.

– E ele lê-as?

Reynolds engoliu, desconfortável.

– Não sei. Não posso responder a isso.

Brimsley suspeitava fortemente que aquilo queria dizer que não.

– Talvez haja alguma coisa que possamos fazer – disse – para os

voltarmos a juntar. Isso é, sem dúvida, o melhor.

Reynolds parecia hesitante, quase aflito.

– Já esfreguei completamente a parede – disse-lhe Brimsley. – Não resta

nenhum vestígio daquela noite. E podemos vedar o jardim. Se Sua

Majestade precisa de tempo para banhos de lua sem qualquer roupa vestida,

nós podemos construir um biombo.

– Um biombo – repetiu Reynolds, cético. – Achas que isto se pode

resolver com um biombo?

– Há outra coisa – disse Reynolds. – Sua Majestade… Ela está num

estado que eu nunca antes vi. Estou preocupado, Reynolds. Receio que a

rainha resvale para o desastre. Pergunto-me se não seria melhor que Sua
Majestade fosse àquele homem novamente. Ao médico do rei. Para analisar

a sua mente, desta vez.

– De maneira nenhuma – disse Reynolds contundentemente.

– Reynolds, ouve-me…

– Eu disse que não! – E desta vez, com um rugido.

Brimsley sentiu as bochechas aquecerem.

– Não me dás nada – disse Brimsley, numa ira contida. – Só me dizes

mentiras. Eu peço a tua ajuda e tu recusas-te a tratar-me como um parceiro

ou de igual para igual.

– Eu não te posso ajudar! – disse Reynolds com voz de trovão.

Ou seria de lamúria?

Um pouco das duas.

Mas apertou a carta de Brimsley na mão antes de se encaminhar de volta

para a porta principal.

Brimsley abanou a cabeça e dirigiu-se para a sua carruagem.

– Espera!

Brimsley deu meia-volta.

– Diz-lhe… Diz-lhe que ele tem saudades dela – disse Reynolds.

– E tem?

– Tem. Tenho a certeza disso.

– Ele disse-te isso? – perguntou Brimsley.

Reynolds não respondeu.

Era então um não.


Brimsley tinha aquilo bem presente quando voltou para a Casa de

Buckingham mais tarde.

– Alguma novidade? – perguntou-lhe a rainha.

Carlota preparava-se para posar para um retrato e vestia dos seus trajes de

casamento. Era dolorosamente irónico.

– Lamento, mas não, Vossa Majestade.

– Tens a certeza de que ele tem recebido as cartas?

Brimsley tinha a certeza de que ele não as recebia. Ou, no mínimo, de

que não as lia. Mas conseguiu evitar mentir descaradamente, dizendo:

– Eu tenho-as entregado, Vossa Majestade.

A rainha franziu o sobrolho e fixou o olhar na parede.

– Ela ainda aqui está? – perguntou, referindo-se à princesa Augusta. –

Não caiu de nenhuma escada nem se engasgou com nenhum cubo de carne?

– Lamento informá-la de que ela se mantém viva e de boa saúde, Vossa

Majestade.

A rainha rugiu.

– Está na hora de posar para o seu retrato, Vossa Majestade – lembrou

Brimsley.

Carlota voltou a rugir, embora talvez não tão alto quanto fizera a respeito

da princesa Augusta.

– É tão entediante.

– E, no entanto, uma parte indispensável da vida real, Vossa Majestade.

Uma rainha tem de ser lembrada na posteridade.


– É estranho, não é? A minha aparência ficará pendurada nestas paredes

durante séculos. E a tua, não.

Ela não pretendia ser rude. Brimsley sabia-o. Era apenas a rainha. Era

diferente.

– Também tu devias ser recordado de alguma forma – disse a rainha. –

Talvez toda a gente devesse ser.

– Isso parece quase revolucionário, Vossa Majestade.

– Parece, não parece? – Mostrou-lhe um sorriso divertido. –

Provavelmente é por a permanência da princesa-viúva cá em casa me

desgastar tão profundamente.

– Tal como a todos nós – murmurou Brimsley.

– Estás a ficar ousado, Brimsley – disse a rainha.

– As minhas desculpas.

– Não são necessárias – respondeu a rainha, avançando para o salão onde

posaria para o retrato real.

– Aqui está! – trinou a princesa Augusta.

– Fala-se no diabo… – balbuciou Carlota.

Brimsley tentou não sorrir.

– Mr. Ramsay tem estado à sua espera – disse a princesa Augusta. – Por

favor, retome a sua pose.

– Por aqui, Vossa Majestade – disse Brimsley, indicando-lhe o lugar que

lhe era destinado. – Posso trazer-lhe algo? Um refresco?

– Ela não vai aparecer no retrato a beber um copo de limonada – disse a

princesa Augusta.
– Eu fico bem – disse a rainha a Brimsley.

Brimsley voltou para o seu lugar na ponta da sala. Aquela era, pelo

menos, a quarta vez em que a rainha Carlota posava. Era dolorosamente

aborrecido, mas ela estava magnífica. O cabelo fora-lhe penteado como uma

nuvem para suportar a sua tiara nupcial, tal como no dia do casamento.

Como poderia alguém não a adorar?

– Falta muito para acabarmos? – perguntou a rainha.

– Lamento dizer que ainda não cheguei a meio – disse Mr. Ramsay.

– Ramsay – disse a rainha –, isso não pode ser verdade. Eu não sou uma

mulher assim tão grande.

– Não, Vossa Majestade, mas…

Ramsay virou a tela. Brimsley aproximou-se para ver melhor. A rainha

Carlota estava quase completa, e com uma parecença excelente. Mas ao lado

dela… nada senão um contrastante espaço vazio no sítio onde devia figurar

o rei.

– Ainda falta o rei – disse Mr. Ramsay, atrapalhado.

– Ele ainda não está disponível – disse a princesa Augusta.

– Ainda assim – disse o artista –, trata-se de um retrato do casamento. A

pedido de Sua Majestade, o rei.

– Sim – disse a rainha com acidez. – Sua Majestade, o rei, pediu um

retrato do casamento.

– Sua Majestade, o rei, é mesmo atencioso – disse a rainha.

Os olhos de Brimsley saltitavam de uma mulher para a outra.

Desenrolavam-se conversas inteiras entre as palavras que elas proferiam.


Diatribes. Guerras.

– A minha pele está demasiado clara – disse subitamente a rainha. Virou-

se para o artista. – Pinte a minha pele mais escura. Tal como ela é.

– Vossa Majestade – disse Ramsay.

Brimsley quase sentiu pena dele.

– Deixe-me ver – disse a princesa Augusta, levantando-se do seu lugar no

sofá para inspecionar o retrato inacabado. – Não – disse naquela sua voz

aguçada. – Pinte a pele dela mais clara. Pálida. Sua Majestade deseja que ela

brilhe.

A rainha e a princesa fitavam-se uma à outra.

– Eu serei pintada tal como sou – disse a rainha Carlota.

– Será pintada tal como os seus súbditos desejam que seja – disse a

princesa Augusta.

– Talvez devêssemos terminar por hoje – interrompeu Brimsley,

colocando-se entre as duas mulheres. – Vossa Majestade está cansada, não

está? – disse ele à rainha.

Os olhos de Carlota estreitaram-se de raiva.

– Eu estou…

– Cansada – interrompeu ele antes de ela poder dizer algo de que se

arrependesse.

Bem, ela não se arrependeria, disso tinha ele a certeza. Mas ele, sim,

porque depois teria de lidar com as consequências.

– Vossa Majestade está de esperanças – disse. – Merece tranquilidade. E

companhia repousante. – Olhou para Mr. Ramsay com uma expressão


crítica. – E já perdemos a luz, não já?

– Oh – disse Mr. Ramsay. – Oh, sim. As nuvens. Espalharam-se tão

depressa.

– Estamos no interior – assinalou a princesa Augusta.

– Ainda assim – disse Mr. Ramsay.

– Talvez noutro dia – disse Brimsley. Virou-se para a rainha. – Vossa

Majestade? Quererá deitar-se?

– Sim – disse ela.

Mas havia qualquer coisa no tom dela que o deixava de sobreaviso.

– Preciso de escrever outra carta.

– Mais uma, Vossa Majestade?

Brimsley estava surpreendido. Normalmente, a rainha aguardava pelo

menos um dia.

– Eu também me correspondo com outras pessoas que não o meu marido

– disse ela, saindo velozmente do salão.

A sério?

– Ah, sim? – perguntou ele.

– Para de me seguir – disse ela.

– Sabe que não posso.

– Talvez eu apenas goste de dizê-lo.

– Se assim é, eu continuarei a gostar de ouvi-lo.

Carlota parou só pelo tempo de soltar um resmungo alto e frustrado.

Brimsley aguardou pacientemente. Estava habituado àquilo. Não era a

primeira vez que ela o fazia.


Carlota marchou até ao quarto e parou à porta.

– Presumo que vás esperar aqui até que eu emerja?

– Claro que sim, Vossa Majestade.

– Ótimo. Vejo-te quando te vir.

Fechou a porta na cara dele.

Estava habituado a isso, também.

PALÁCIO DE KEW

HALL DE ENTRADA

...

NA MESMA NOITE, MAIS TARDE

– Voltaste – disse Reynolds.

– Voltei, e não por bons motivos.

– Que queres dizer com isso?

Brimsley tentou ignorar o refluxo ácido que lhe queimava a garganta.

– Trago mais uma carta.

– Já?

– Não é para o rei.

– Então porque a trouxeste para aqui?

– Ela escreveu ao duque Adolfo.

A surpresa de Reynolds estampou-se-lhe no rosto.

– Quem, o irmão da rainha? Na Alemanha? Para quê?

– Porque não pode deixar Inglaterra sem um país lhe oferecer abrigo

seguro.
– O quê? – Reynolds virou-se de costas, e depois virou-se de novo para a

frente. – Não. Ela não se iria embora.

– Iria, sim. Ela está infelicíssima, Reynolds. Já to tentei dizer.

– E tens a certeza de que ela pede…

– Tenho a certeza.

Brimsley não estava propriamente orgulhoso disso, mas recorrera a gelo

para congelar o selo, de modo a poder ser retirado sem se partir. Lera a

correspondência privada da rainha e voltara a selá-la cuidadosamente.

– Oh – disse Reynolds.

– Oh. Oh? É tudo o que tens a dizer? Reynolds, eu li a correspondência

privada da rainha. Tenho a certeza de que isso é um crime punível com a

forca.

– Eu não vou dizer a ninguém.

– Eu sei que não – disse Brimsley, para lá de frustrado. – Apenas to

contei para te demonstrar até onde estou disposto a ir para a proteger. Estou

preocupado, Reynolds. Tenho medo.

Reynolds abanou a cabeça, o movimento inexpressivo e inadvertido de

quem não tem quaisquer respostas.

– O que queres de mim?

– Ajuda-me – implorou Brimsley. – Envio a carta?

– Perguntas-me a mim?

– Sim, pergunto-te a ti. Ninguém senão tu tem acesso ao rei. Isto é… Ela

quer ir-se embora.

Reynolds desviou o olhar para um qualquer nada longínquo.


– Posso não conseguir enviá-la – disse Brimsley. – Devo não conseguir

enviá-la?

Reynolds engoliu em seco, desconfortável.

– Isso cabe-te a ti decidir.

– Não. Cabe-nos a nós… Nós trabalhamos juntos. Podes dizer a Sua

Majestade, o rei. Ele fará alguma coisa. Voltará para ela. Tudo ficará

resolvido.

Brimsley aguardou. Ainda assim, Reynolds não respondeu.

– Devo não conseguir enviar a carta? – perguntou Brimsley mais uma

vez.

Reynolds fechou os olhos. Parecia estar em sofrimento.

– Não há nada que possa ser feito. Envia a carta.

Brimsley praguejou. Praguejou àquela situação insustentável, e praguejou

àquele homem que ele talvez amasse.

– Está tudo em perigo – avisou. – E tu a guardar segredos.

– Não são segredos meus, não os posso revelar.

Retirou-se.

Brimsley pensou que também já devia estar habituado àquilo.


Carlota

CASA DE BUCKINGHAM

SALA DE VISITAS

...

22 DE ABRIL DE 1762

Carlota estava farta de ler. Estava farta de bordados, estava farta de orientar

os criados na preparação de cestas para os pobres. Estava farta de tudo.

Estava entediada, e sentia-se sozinha, e o único divertimento que tinha era

congeminar novas formas de evitar a princesa Augusta, que ela jurava ser

uma bruxa, porque, por Deus, aquela mulher estava em todo o lado.

1
Unescapablemenaceperson . Seria essa a sua nova palavra. Jorge dissera-

lhe que era um direito dela, enquanto rainha, inventar todas as palavras que

quisesse.

2
Overmotherfuss . Esta tinha uma certa elegância.

Ou talvez devesse voltar a usar a palavra com provas dadas.

Backpfeifengesicht. Um rosto a precisar de um punho.

Pronto. Aquele fora o máximo de diversão que ela tivera em semanas.

Brimsley entrou na sala com um ligeiro clique dos saltos dos seus

sapatos. Carlota pensou que talvez ele estivesse a tentar parecer um pouco

mais alemão para lhe agradar. Era muito querido.

– Vossa Majestade – disse ele. – Chegou o duque Adolfo Frederico IV de

Mecklenburg-Strelitz.
O seu irmão! Carlota sentiu-se inundada por um profundo alívio. Ele

estava finalmente ali. Ela poderia ir para casa.

Adolfo entrou na sala e fez uma vénia profundamente formal.

Carlota olhou rapidamente para Brimsley.

– Onde está… ela?

Ambos sabiam que falava da princesa Augusta.

– Creio que está com a modista.

Carlota exalou um suspiro de alívio.

– Espera lá fora, Brimsley.

Ele não se mostrou satisfeito com aquilo, mas obedeceu.

Adolfo voltou a fazer-lhe uma vénia.

– Vossa Majestade.

Carlota revirou os olhos.

– Endireita-te. Ficas ridículo.

Adolfo ofereceu-lhe um sorriso trocista.

– É bom ver-te bem, irmã.

– Não podias ter vindo mais depressa? – perguntou ela.

– Mein Gott, ser rainha assenta-te que nem uma luva.

Carlota pôs-se de pé um pouco a custo – começava a sentir-se estranha no

seu próprio corpo – e foi para o lado dele. Sorriu a olhar para aquele rosto

amado e depois deu-lhe um abraço.

– Teria vindo mais depressa, mas foi uma travessia difícil – disse Adolfo.

– Ainda não consigo manter nada no estômago.


– Isso nós temos em comum.

Carlota recuou e ajeitou o vestido, revelando a sua crescente zona central.

– Vossa Majestade! – Adolfo cintilou de satisfação. – Vou ser tio. Que

feliz novidade.

– Só que eu não estou feliz. – Carlota segurou com as duas mãos numa

mão dele. – Quero ir para casa, Adolfo.

– Para casa? Que disparate. Além disso – fez um gesto em seu redor –,

esta é agora a tua casa.

Dito com a maior pompa e condescendência. Deus, como ela detestava os

homens por vezes.

– Não te atrevas a acusar-me de dizer disparates – disse Carlota

rispidamente. – Vais levar-me para casa. Agora. E não me podes dizer que

não. Quando viemos para cá, disseste-me que não podias dizer que não ao

império britânico, e agora eu sou a sua rainha.

– Estás emotiva – disse Adolfo.

– Por favor – disse ela, arrastando as palavras –, diz isso mais uma vez e

mando decapitar-te.

– Carlota – disse ele no mais condescendente dos tons –, dentro de ti

amadurece o fruto de Inglaterra. E até esse fruto estar maduro, o teu corpo

não é mais do que…

– Não me chames flor – avisou-o.

– Uma árvore – escolheu ele dizer.

Que grande melhoria.

– És uma árvore no pomar da Coroa. E na altura em que floresceres…


– Sou uma árvore – disse Carlota monocordicamente.

Estava capaz de o matar.

– Apenas pretendo dizer que esse filho dentro de ti não é teu.

– É o meu corpo que o está a gestar.

– E?

– E? Gesta-o tu, então.

– O teu corpo não é teu – disse Adolfo com firmeza. – Deixar agora o

reino seria traição. Um rapto, um rei-pto. Um ato de guerra, possivelmente.

– Eu só quero estar em casa – disse Carlota.

Conseguia ouvir as lágrimas a marulharem por detrás das suas palavras.

Sabia que estava infeliz, mas não se tinha apercebido de quão

desesperadamente infeliz até ver o rosto do irmão.

– Quero estar em Schloss Mirow. Com a minha família – disse.

Estava a esforçar-se enormemente para não chorar.

As rainhas não choravam.

– Eu já não sou tua família – disse Adolfo.

A voz dele denotava arrependimento, mas não o suficiente para a ajudar.

– Claro que não – balbuciou Carlota. – Fui negociada como gado. Tu

vendeste-me.

– Carlota.

– É verdade. Vendeste-me, e isso significa que a minha família já não é

minha.

– O rei Jorge é agora a tua família – disse Adolfo. – A não ser… – O

rosto dele moldou-se numa expressão de pura preocupação. – Passa-se


alguma coisa, Carlota? Algo que, talvez, não pudesses pôr por escrito?

– Não – disse ela rapidamente.

Esperava não o ter feito demasiado rapidamente. Mas não podia revelar o

segredo de Jorge. Sentia-se desesperadamente infeliz, mas nunca o poderia

trair. O que fosse que estivesse a acontecer não era culpa dele.

Adolfo continuou a sondá-la.

– Ele não te faz mal, pois não?

– Não, claro que não. Está tudo bem.

Devia tê-lo convencido, porque ele disse:

– É um alívio ouvir isso. Seria tão difícil fazer alguma coisa. Eu teria

feito, claro. És a minha irmã. Mas ainda assim.

Carlota não sabia se gostava do nível de alívio revelado na voz dele.

– Que queres dizer com isso, Adolfo?

Adolfo reparou num prato de biscoitos sobre uma mesa de apoio e

aproximou-se para pegar num deles.

– Eu negociei o teu noivado de forma brilhante. Permitiu-me forjar uma

aliança entre a nossa província e a Grã-Bretanha.

– Uma aliança – disse Carlota. – Foi por isso que me deste a esta gente

em casamento?

– Foi bom para todos. – Deu uma dentada. – Isto é delicioso.

– Adolfo.

– Desculpa. – Mastigou e engoliu. – Mas, Carlota, tínhamos os leões à

porta. Esta aliança significa que Mecklenburg-Strelitz é defendida pela

poderosa Grã-Bretanha.
– Claro – disse ela.

Carlota já sabia tudo aquilo. Mas era a primeira vez que o irmão o dizia

tão explicitamente.

– Os nossos destinos estão interligados – prosseguiu Adolfo, alheio à

perturbação dela. – Razão pela qual é bom que sejas feliz aqui.

Carlota olhou-o fixamente.

Ele sorriu, incauto.

– Mas de que adiantaria? – disse Carlota com um suspiro. – O meu corpo

é dele, não é? O meu corpo pertence ao raio do país inteiro.

– Charl…

– Temos faisões tártaros agora – anunciou ela. E sorriu. Com o seu belo,

vazio, régio sorriso. – Gostavas de vê-los?

O rosto de Adolfo iluminou-se de uma ponta à outra.

– Seria maravilhoso. Mostra-me tudo. Que vida a tua, irmã.

Simplesmente gloriosa.

Gloriosa, de facto.

CASA DE BUCKINGHAM

SALA DE JANTAR

...

NAQUELA NOITE

Como sempre, era impossível escapar a Augusta. Carlota esperava poder

desfrutar de uma refeição relativamente informal com o irmão, mas, assim

que a princesa-viúva soube que ele lá estava, insistiu em juntar-se-lhes.


– É tão atencioso da sua parte vir visitar a sua irmã – disse Augusta. –

Quando eu me casei, quase nunca voltei a ver a minha família. Carlota, que

afortunada é.

Carlota olhava atentamente para o seu prato. Solha à meunière. Sem

Carlos ali presente, era-lhes permitido comer peixe.

– Carlota?

– Hmmm?

Carlota regressou à realidade. O irmão olhava-a com preocupação.

Augusta também. Ou com outra coisa qualquer que, no rosto dela, replicava

uma expressão de preocupação.

– Está exausta – disse Augusta. – É do confinamento. Lembro-me bem

disso. Carregar o futuro rei não é fácil.

– Pode ser uma menina – disse Carlota.

– E claro que isso seria perfeitamente aceitável – disse Augusta. – Eu

também tive uma menina antes de nascer o meu querido Jorge. – Virou-se

para Adolfo. – A minha filha está prestes a casar. Estamos em negociações

com a Casa de Brunswick.

– As minhas felicitações.

Carlota suspirou.

– Onde está o rei vigente? – perguntou Adolfo. – Sua Majestade juntar-se-

á a nós?

– Sua Majestade está muito ocupado – disse Augusta, limpando muito

delicadamente a boca com o guardanapo. – Carlota tem sido um grande

apoio para ele.


Carlota fixou o olhar na janela. Estava capaz de atravessar aquela janela.

Abri-la-ia primeiro; não estava assim tão tresloucada. Mas estava capaz de

atravessá-la e ir-se embora dali, simplesmente.

– Vossa Majestade? – disse Augusta afincadamente.

Carlota pestanejou.

– Perdão.

– Falávamos do apoio que Vossa Majestade tem sido para Sua Majestade.

– Ah. Sim. Claro. – Conseguiu esboçar um pequeno sorriso. – Escrevo-

lhe cartas.

– Cartas? – perguntou Adolfo.

– Ele está em Kew – respondeu Carlota.

Levou uma garfada de solha até à boca, depois voltou a pousá-la no prato.

Cheirava demasiado a peixe para o seu nariz de grávida. Não era aquilo de

uma requintada ironia? Tinha finalmente peixe na mesa e não conseguia

suportar comê-lo.

– Kew? – disse Adolfo.

– É a outra propriedade de Sua Majestade em Londres – disse

prontamente Augusta.

Lançou um olhar de advertência a Carlota.

Carlota fechou os olhos. Estava cansada.

– Fica perto da Casa de Buckingham? – perguntou Adolfo.

– Oh, sim – disse Augusta. – Muito perto. É lá que o rei gosta de levar a

cabo as suas experiências científicas. Tem um observatório.


– Sim – disse Carlota, zelosa do seu dever. – É um observatório

magnífico e inigualável. O único em Inglaterra.

– O Georgie tem uma mente brilhante – prosseguiu Augusta. – É mesmo

uma das mentes mais brilhantes do nosso tempo. E tem de ficar a coberto de

quaisquer distrações enquanto desenvolve o seu trabalho.

Adolfo olhou para Carlota. Ela anuiu com a cabeça e voltou a olhar para

a janela. O que diriam todos eles se ela se levantasse e fosse até à janela? O

que fariam?

Conseguiria ela abri-la, sequer? Nunca vira aquela janela aberta. Podia

estar perra.

Uma porta seria melhor. Não daria uma saída tão dramática, mas a

simplicidade e a facilidade também tinham o seu valor. Iria alguém impedi-

la caso se levantasse e caminhasse dali para fora? Se continuasse e

continuasse?

Libertou do garfo o pedaço de peixe que não comera e, em vez disso,

cortou ao meio uma pequena batata cozida. Não sentia fome, mas tinha de

comer alguma coisa, mais que não fosse para não ter de ouvir Augusta.

A mãe do rei tinha diversas opiniões acerca do modo como melhor gestar

um futuro monarca.

Assim sendo, Carlota comeu a batata.

E não se esgueirou por nenhuma janela nem saiu por nenhuma porta,

apesar de lhe apetecer muitíssimo fazê-lo.

Mais tarde, quando se encontravam a escutar música na sala de estar,

Augusta inclinou-se para Carlota e disse, de forma a que só ela ouvisse:


– Minha querida, a parte difícil está feita. Já cumpriu o seu dever.

Concebeu um herdeiro. Agora está livre.

Carlota não se sentia livre, mas de que adiantaria dizê-lo?

– Quanto ao meu filho – prosseguiu Augusta –, nunca mais terá de voltar

a vê-lo, se for essa a sua vontade. Bem, pelo menos enquanto não

precisarmos de outro herdeiro.

Carlota mostrou-lhe um sorriso pequeno e tenso.

– Vou deitar-me agora – disse.

– Com certeza – disse Augusta. Deu-lhe uma palmadinha no braço. –

Está cansada. Deve ir repousar.

Mas Carlota estava mais do que cansada. Era algo diferente. Mais do que

uma vontade de dormir. Queria deitar-se, não porque precisasse de

descanso, mas porque já não suportava continuar a caminhar e falar e sorrir

e fazer todas as coisas que as pessoas esperavam dela.

Apenas queria deitar-se.

Fechar os olhos.

Desaparecer.

CASA DE BUCKINGHAM

JARDINS

...

TRÊS DIAS DEPOIS

Sempre que o tempo o permitia, Carlota obrigava-se a sair de casa pelo

menos durante uma hora por dia. Sabia-lhe bem sentir o frio do ar na pele.
Às vezes, aquele choque térmico parecia-lhe a única coisa que lhe indicava

que ainda estava viva.

Sentia o cérebro como que enevoado. Não andava a exercitar a mente e

estava absolutamente cansada a toda a hora. Ainda assim, uma qualquer

porção da sua coluna vertebral forçava-a a pôr a capa nas costas e sair para o

ar livre invernoso.

Ou talvez fosse uma porção do seu corpete. Ultimamente, era difícil

distingui-los.

Como era seu hábito, deu por si a vaguear junto às hortas do rei. Não

restava lá nada digno de nota além de algumas vinhas secas e folhas caídas.

– Vamos replantar a horta para o próximo ano? – perguntou Brimsley.

– Não – disse ela. – Que morra.

Não era correto oferecer esperança, nem mesmo às plantas.

– Vossa Majestade – disse Brimsley.

Carlota olhou para ele. Os olhos dele transbordavam de preocupação. E

mágoa. Ela tentou sorrir. Brimsley preocupava-se verdadeiramente com ela,

e ela achava que não lhe agradecia com a frequência suficiente.

– Não se pode ir embora – disse ele.

– Eu sei.

Não devia ter escrito a Adolfo. No fundo, sempre soubera que aquilo não

poderia dar em nada.

– De Inglaterra – disse ele. Endireitou o seu plastrão, abanando-o como

se, de repente, lhe tivesse ficado um centímetro mais apertado. – Não se

pode ir embora de Inglaterra.


Os olhos dela fixaram-se nos dele. Estaria a compreendê-lo bem? Estava

ele a aconselhá-la a deixar o palácio?

– Não poderás vir comigo – disse ela.

– Eu tenho de ficar ao seu…

– Não – interrompeu Carlota. – Se me acompanhares, serás culpado por

isso. Tens de ficar aqui.

– Mas…

– Não permitirei que sejas castigado por minha causa. Tu fizeste… –

Engoliu em seco. Brimsley fora a sua única constante em Inglaterra, a única

pessoa que estivera sempre do lado dela. – Tens de te manter isento de

culpa.

– Sabe para onde ir? – perguntou ele.

Mas, na verdade, aquilo era uma afirmação. Ambos sabiam para onde ela

devia ir.

CASA DANBURY

SALA DE ESTAR

...

UMA HORA DEPOIS

– Vossa Majestade. A que devo o prazer da sua visita?

Carlota atravessou a sala e sentou-se na cadeira que lady Danbury indicar

a com um gesto.

– Vim oferecer-lhe as minhas condolências oficiais, claro. Os meus

sentimentos. As minhas orações.


Agatha era demasiado educada para lembrar que já haviam passado

vários meses desde a morte do seu marido. Carlota contara com isso.

– Que simpatia, a sua – disse Agatha. – Mas Vossa Majestade devia estar

deitada. A repousar em casa. Esta sua fase é muito crítica.

Os lábios de Carlota começaram a tremer. Nada de lágrimas. Não podia

haver lágrimas. Ela era rainha. Ela não chorava.

– Vossa Majestade? – Agatha estendeu um braço e pegou na mão dela. –

Carlota?

– Casa – repetiu Carlota. – Aquele sítio não é casa alguma. Deixei aquele

sítio e nunca, nunca mais para lá voltarei.

O rosto de Agatha denunciava o seu absoluto pasmo.

– Mas para onde irá Vossa Majestade?

Carlota fungou ruidosamente.

– Ora, vim para aqui.

Agatha pestanejou. Várias vezes.

– Para aqui, Vossa Majestade?

– De certeza que tem um quarto extra.

– Sim, claro, mas…

– Eu não a incomodarei.

– Seria, evidentemente, uma honra acolhê-la, mas…

– Obrigada – disse Carlota. Muito emocionada.

Agatha pôs-se de pé.

– Dá-me licença por um instante? – Dirigiu-se apressadamente para a

porta. – Ficará bem na minha ausência?


– Claro que sim – disse Carlota.

– Mandarei trazerem-lhe biscoitos.

– Isso seria ótimo.

– Hã, chá?

– Sim, por favor.

Agatha anuiu com a cabeça. Parecia um bocadinho acelerada, para dizer

a verdade. Depois fechou a porta.

Carlota suspirou e permitiu-se afundar-se na cadeira. Estava tão contente

por ter feito aquilo. Ficaria confortável ali.

Muito mais do que na Casa de Buckingham.

11 Em português poderia ser «pessoaameaçadorainescapável». (N. da T.)

22 Em português poderia ser «proteçãomaternalexagerada». (N. da T.)


Agatha

CASA DANBURY

MESMO À SAÍDA DA SALA DE ESTAR

...

25 DE ABRIL DE 1762

Tinha de se livrar da rainha.

Já.

Ontem, se possível.

Agatha fechou a porta com muito cuidado. O hall de entrada parecia

simultaneamente mais pequeno e mais grandioso com o ajuntamento de

guardas reais que haviam acompanhado a rainha. Ocupavam muito espaço,

mas os seus librés vermelho-vivos eram inconfundivelmente régios.

Viu Coral aproximar-se dela a passo rápido, com dezenas de perguntas

nos olhos. Pousando um dedo nos lábios, Agatha apontou com a cabeça para

o lado. Teriam de conversar onde não as pudessem ouvir.

– Sua Majestade tenciona ficar cá – sussurrou Agatha.

– Ficar cá? – rejubilou Coral. – Mas que honra.

– Não, não é honra nenhuma – retorquiu Agatha bruscamente. – É

aterrorizador. Ela está grávida. Do filho do rei. Carrega literalmente o futuro

do império britânico no ventre. Eu não posso ser responsável por ela.

– Mas nem durante uma tarde?


– Ela não está a falar numa tarde! Quer alojar-se num dos nossos quartos

de visitas.

– Ooooooh. – Coral estava nas nuvens.

– Para com isso. Imediatamente. – Agatha lançou à criada um olhar firme

e petrificado. Firme e petrificado e em pânico. – Isto não pode acontecer.

Compreendes? Seria dar guarida a…

– Uma rainha? – completou Coral, solicitamente.

– Coral, ela está-me a pedir que cometa traição.

– Oh. Céus. – Coral franziu o sobrolho. – Tem a certeza?

– Sim, tenho a certeza.

Não, não tinha. Mas tinha a certeza de que seria traição qualquer coisa

que o Palácio decidisse que era. E dar guarida à rainha contra a vontade

deles não seria visto com benevolência.

– Que deseja que eu faça?

– Manda um criado à Casa de Buckingham. Já.

Coral partiu velozmente. Agatha contemplou as portas para a sala de

estar, tremendo. Que devia ela fazer? Voltar lá para dentro? Esperar ali fora?

Dissera à rainha que lhe serviriam chá e biscoitos. Mas já mandara Coral

embora, e não se atrevia a sair dali para pedir à cozinheira que preparasse

um prato.

Pegou numa cadeira e empurrou-a até ficar em frente às portas da sala.

Sorriu para os guardas. Sentou-se.

Cruzou os braços.

Nada a demoveria dali.


Disso dependia o futuro de uma nação.

Passados 20 minutos, chegou Brimsley com um belo homem de pele

escura que foi apresentado a Agatha como sendo o irmão da rainha, o duque

Adolfo de Mecklenburg-Strelitz.

– Ela está na sala de estar – disse Agatha, sem saber bem a qual dos dois

homens se devia dirigir.

Ambos avançaram.

Agatha ergueu uma mão.

– Talvez eu deva anunciar-vos. Para vos preparar o caminho.

Afastou a cadeira para o lado e esgueirou-se para dentro da sala de estar,

fechando a porta.

– Não ia mandar servir chá? – perguntou a rainha.

Estava afundada no sofá de Agatha, com o ar exausto que só uma mulher

grávida poderia compreender.

– As minhas desculpas – disse-lhe Agatha. – Esqueci-me completamente.

Mas devo informá-la de que o seu criado, Brimsley, está cá.

– Tão bom que ele é no seu trabalho – murmurou a rainha.

– O seu irmão também está cá.

– Não os receberei – declarou a rainha.

Agatha aclarou a garganta, procurando descobrir a melhor forma de agir.

– Vossa Majestade, eu não ouso sequer pensar que compreendo que

problemas a esperam lá fora. No entanto, sei que não se resolverão aqui

dentro.
– Não se resolverão em lado nenhum – disse-lhe Carlota.

Agatha soltou um suspiro entrecortado.

– Gostava de me contar o que a perturba?

– Gostava muitíssimo. Mas não posso. Não posso contar a ninguém. Tudo

o que posso dizer é que toda a gente neste país me mentiu e me traiu, menos

a Agatha. A Agatha é a minha única amiga.

Só que não era. Agatha não era amiga de Carlota. Contara os segredos

dela à princesa Augusta pelo preço daquela casa, da admissão de lorde

Danbury no White’s, e agora, possivelmente, pelos direitos de sucessão para

o filho.

Agatha traíra Carlota de todas as maneiras possíveis e imagináveis.

– Vossa Majestade – disse Agatha, sentando-se em frente a Carlota –, eu

não sou sua amiga. Mas quero ser. No entanto, neste momento sou apenas

sua súbdita. E tenho agido enquanto sua súbdita. Sem consideração pelos

seus sentimentos. Via-a apenas como uma coroa, em vez de lhe permitir a

sua humanidade. E peço desculpa por isso.

Não sabia se contaria a Carlota o que tinha feito. Não sabia se haveria

alguma coisa a ganhar com essa honestidade retroativa. Mas jurou ser

melhor doravante.

– Se vamos ser amigas, teremos de começar do zero – disse Agatha. –

Porque eu também preciso muito de uma amiga.

Carlota olhou-a fixamente. Durante muito tempo. E depois, por fim,

numa voz que pertencia a uma rapariga, não a uma rainha, disse:

– Queres ser minha amiga?

Agatha anuiu com a cabeça, agradecida.


– Quero ser tua amiga.

Carlota pegou-lhe na mão e apertou-a.

– Esta não é a vida que eu queria.

– Eu consigo ver que estás muito infeliz.

– O que me aconselhas?

Agatha escolheu as suas palavras cautelosamente.

– Não te poderei aconselhar enquanto não compreender a tua situação.

A boca de Carlota tremeu. Mas os seus olhos mantiveram-se firmes

quando disse:

– Posso contar com a tua discrição?

– Podes, sim – prometeu Agatha.

– O rei… Ele…

Em menos de um segundo, passaram cem coisas diferentes pela cabeça

de Agatha. Nenhuma das quais a que Carlota acabou por dizer.

– Ele está… doente.

– O quê? – Agatha arfou. – Está a morrer?

– Não – garantiu Carlota. – Não é isso. A doença dele é… é mental.

Os olhos de Agatha esbugalharam-se. Nem sequer conseguiu responder.

– Não é sempre – acrescentou Carlota apressadamente. – Na maior parte

das vezes, ou, pelo menos, na maior parte das vezes que eu o vi, está

perfeitamente são. Mas depois… certa vez… – Segurou o lábio inferior

entre os dentes. – Foi assustador.

Agatha inclinou-se para a frente.


– Tenho de perguntar. Ele fez-te mal?

– Não – disse Carlota, e Agatha agradeceu aos Céus por ela ter

respondido com tanta firmeza, sem hesitar. – Não – repetiu Carlota. – E não

creio que alguma vez fizesse. Mas quando ele estava… assim… não me

reconheceu. Creio que nem se reconhecia a si mesmo.

– E ninguém te falou disso antes de casares com ele – deduziu Agatha.

Carlota abanou a cabeça, e a voz ficou-lhe embargada.

– Foi por causa disto que me escolheram. – Apontou para o rosto, para a

sua bela pele castanha. – Pensaram que eu ficaria tão grata por esta posição

que desculparia as peculiaridades dele.

– Peculiaridades?

Carlota soltou um riso amargo.

– É assim que a princesa Augusta gosta de lhe chamar. Não me parece

que seja termo suficiente.

– Eu… não tenho a certeza…

Agatha tinha tantas perguntas. Mas como poderia pressioná-la para obter

pormenores? O mero ato de inquirir já era, provavelmente, traição.

– Eu só vi aquilo acontecer uma vez – disse Carlota. – Eu estava a dormir

e, quando acordei, encontrei-o a dizer coisas sem sentido sobre as estrelas e

o céu e sobre mais já não sei o quê, francamente.

Agatha apertou a mão de Carlota. Faltavam-lhe as palavras; um gesto

teria de bastar.

– Ele estava a escrever nas paredes. E repetia números em voz alta. Acho

que estava a tentar compreender umas equações matemáticas, e depois…


ele... – Ergueu o olhar, que implorava. – Promete-me. Promete que não dizes

nada a ninguém.

– Juro pelas vidas dos meus filhos.

– Ele correu lá para fora e despiu-se todo.

Agatha arfou. Não conseguiu evitá-lo.

– Começou a gritar para o céu. Pensava que eu era Vénus.

– Santo Deus – sussurrou Agatha. – Quem testemunhou isso?

– Eu. O Brimsley, embora só tenha visto uma parte. E o Reynolds, o

camareiro do rei. Acho que ele sabe mais do que qualquer outra pessoa.

– O que fizeram?

Carlota encolheu os ombros com tristeza.

– Levámo-lo de volta para dentro, eu e o Reynolds. Lavámo-lo e deitá-lo

na cama. Ele estava tão cansado. Adormeceu imediatamente. E depois, no

dia seguinte…

Agatha inclinou-se para a frente.

– Tinha desaparecido.

– Desaparecido?

Carlota anuiu com a cabeça.

– Foi para Kew. Não o vejo desde então.

Agatha procurava assimilar tudo aquilo.

– E isso foi há quanto tempo?

– Há mais de quatro meses.

– Como?
Agatha não esperava aquilo.

– Ele tem estado em Kew desde então. E eu, na casa de Buckingham.

Sozinha. – Carlota soltou um riso amargo. – Bem, tão sozinha quanto se

pode estar com uma flotilha de serviçais. E a princesa Augusta. Mein Gott,

aquela mulher está em todo o lado.

Agatha acenou com a cabeça. Já estivera no palácio. Era evidente que a

rainha não tivera privacidade a sério.

– O rei está a ser tratado? – perguntou.

– Sim, há um médico. Eu conheci-o uma vez. Não gosto dele. Não sei

dizer porquê. Foi só uma impressão com que fiquei.

– E tem melhorado?

Carlota encolheu os ombros, num gesto de impotência.

– Não sei. Ninguém me diz nada. Escrevo-lhe cartas, mas não recebo

qualquer resposta. Só me resta presumir que ele não as recebe. Seguramente

que alguém me diria se ele as recebesse.

Agatha recostou-se, precisando de um momento para se acalmar. Aquilo

que a rainha acabara de lhe contar… tinha o potencial de derrubar a

monarquia. O governo. O modo de vida deles.

– Quem está ao corrente disto? – perguntou.

– A mãe dele, claro.

Claro, pensou Agatha com sarcasmo.

– O lorde Bute. O conde de Harcourt. Mas não creio que nenhum dos três

esteja ciente da severidade da situação. Eles não o viram naquela noite.

– Carlota – disse Agatha. – Posso chamar-te Carlota?


Já antes lhe chamara Carlota, mas daquela vez pareceu-lhe adequado

perguntar.

Carlota assentiu com a cabeça.

– O que é que tu queres?

Carlota olhou para ela com um rosto inexpressivo. Como se nunca lhe

tivesse ocorrido que as suas opiniões contavam. Que ela tinha alguma coisa

a dizer sobre a forma como tudo se desenrolaria.

– Nunca ninguém me perguntou isso – disse.

– Queres-te ir embora? – perguntou Agatha. – É que não podes. De

certeza que o sabes. Mas será mesmo isso que queres?

– Não – disse Carlota. – Nem tenho bem a certeza de porque é que vim

aqui hoje. Foi só que…

Carlota abanou a cabeça, e pareceu a Agatha que era a primeira vez que a

rainha pensava a sério naquela questão.

– Há coisas que não podes fazer – avisou Agatha. – Não podes sair do

país. Não te podes divorciar do rei. Mas podes, se quiseres, viver afastada

dele. Não aqui – acrescentou rapidamente.

– Isso é o que eu tenho feito – disse Carlota. – Ele está em Kew e eu

estou em Buckingham.

– Mas é isso que queres?

Agatha apenas vira o rei duas vezes. Primeiro, no casamento, em que mal

trocaram uma dúzia de palavras, e depois no Baile Danbury, em que ele

mudara o mundo ao convidá-la para dançar. Era impossível avaliar um

homem com base em dois encontros, mas Agatha sentia no seu âmago que

ele era um homem bom, um homem decente.


E, claramente, também um homem perturbado.

– Carlota – disse, segurando uma das mãos da jovem entre as suas –, que

tipo de homem é o rei? Fala-me dele. Do homem que ele é de verdade.

Quando ele é… ele mesmo.

Os lábios de Carlota tremeram a formar um sorriso.

– É divertido. E é gentil. E é tão inteligente. Eu não esperava… Sei que

muita gente pensa que os reis são apenas uns idiotas trapalhões que

nasceram já naquela posição, mas ele é verdadeiramente inteligente. Tem um

telescópio gigante. Alguma vez viste um? Não, claro que não. Ele tem o

único em toda a Grã-Bretanha.

Agatha observava Carlota com atenção. Ela tornava-se numa pessoa

diferente quando falava sobre o marido. Quando falava nele enquanto

homem, não enquanto rei.

– Ele vê-me – disse Carlota. – Ele vê-me. Vê quem eu sou, não apenas

aquilo que eu represento ou o bebé que carrego no meu corpo. Ele pede a

minha opinião. Sabias que, antes do casamento, ele disse-me que eu poderia

ir-me embora se quisesse? Ali estávamos nós, com o meu irmão, e… Oh,

Himmel. – Olhou para a porta. – Ele ainda está lá fora?

– Ele pode esperar – disse Agatha. Aquilo era muito mais importante.

– Eu tentei fugir antes do casamento – disse Carlota, com uma centelha

de diabrura no olhar.

– Eu sabia!

– O quê? Como?

– Eu vi-te. Lá em cima, no balcão. E estava tudo tão atrasado. Sabia que

alguma coisa correra mal.


Agatha inclinou-se para a frente. Aquilo acabara por se tornar numa

maravilhosa conversa de mulher para mulher, e era evidente que ambas

estavam desesperadas por se sentirem ligadas daquela forma.

– Esquece. Conta-me o que aconteceu.

– Eu tentei escalar o muro do jardim.

– Não!

– Sim! Quer dizer, tentei. Não consegui. E depois apareceu o Jorge, e eu

não sabia quem ele era e pedi-lhe que me ajudasse a galgar o muro.

Agatha guinchava de rir.

– Pois! – exclamou Carlota.

Bateram à porta.

– Está tudo bem aí dentro? – ouviu-se no sotaque alemão do irmão de

Carlota.

– Espere um pouco – disse Agatha. Apressou-se até à porta e espreitou lá

para fora. – Precisamos de mais um bocadinho de tempo.

– Nós não temos tempo – respondeu o duque Adolfo.

Agatha olhou para ele, impassível.

– Porque não?

– Porque… – Olhou para Brimsley, que encolheu os ombros. – Talvez

tenhamos tempo – disse –, desde que ela regresse ao palácio.

– Ela regressará – disse Agatha. – Mas agora precisa de uma amiga.

Fechou a porta na cara perplexa do duque Adolfo e voltou para perto de

Carlota.

– O que aconteceu a seguir? – perguntou, ansiosa.


– Nós conversamos e ele foi muito encantador.

Agatha anuiu com a cabeça.

– Ele é muito encantador. Eu dancei com ele, lembras-te?

– Sim, claro. Ora bem, depois apareceu Adolfo, que ficou horrorizado.

Agatha riu-se.

– Imagino!

– E depois o Jorge disse que seria eu a decidir se queria ou não casar com

ele, e Adolfo disse algo como «Claro que ela vai casar consigo» e o Jorge

disse «Não. Ela ainda está a decidir. Ela é que sabe.»

Agatha pensou que aquela era a coisa mais romântica que alguma vez

ouvira.

– Acho que o amo – murmurou Carlota.

– Então tens de lutar por ele.

Carlota ergueu o olhar aguçado.

– Eu disse-lhe isso uma vez. Pedi-lhe que lutasse por mim.

– Talvez ele esteja a tentar – disse Agatha. – À maneira dele.

Os olhos de Carlota tornaram-se tristes, pensativos.

– Eu nunca compreenderei a maneira dele. Nem eu nem ninguém.

Agatha não sabia o que responder àquilo.

– Mas ainda nem te perguntei por ti – disse Carlota subitamente. – Sei

que já passaram muitos meses, mas ainda estás a sofrer por uma grande

perda. E as crianças? Há alguma coisa que eu possa fazer?

Agatha abriu a boca. Sentiu o coração parar de bater. Havia tanto que

Carlota podia fazer. Ela podia erguer uma mão e todos os problemas de
Agatha desapareceriam. Dominic tornar-se-ia lorde Danbury de facto, seria

devolvida às terras Danbury uma centena de cabeças de gado e, de um

momento para o outro, teriam uma fonte de rendimento.

Ainda assim… Agatha não lho conseguia pedir. Não quando acabara de

jurar não ser nada mais que uma amiga.

– Isto – disse firmemente. – É só disto que eu preciso. De passar tempo

com uma amiga. É uma enorme ajuda.

– Ótimo – disse Carlota com aquele seu sorriso único. – Ora bem.

Perguntei ao médico real e ele diz que expelir um bebé será rápido e indolor.

Tu tens filhos. Diz-me. Dói?

– Ter um filho é a pior dor imaginável.

– Eu sabia. – A cabeça de Carlota levantou-se de súbito. – Espera. A

sério?

Agatha viu a náusea nos olhos dela e deu uma pequena gargalhada.

– Não. Só dói um bocadinho – mentiu. – E, depois de acabar, mal te

lembrarás.

– Ah – suspirou Carlota. – Ainda bem.

– Não tens nada com que te preocupar – assegurou-lhe Agatha.

– A não ser com o meu irmão do outro lado da porta e com o meu

marido lá em Kew a fazer sabe Deus o quê com aquele médico.

Agatha chegou-se para a frente e segurou nas mãos de Carlota.

– Nós somos mulheres – disse. – E os homens que controlam os nossos

destinos nem conseguem conceber a ideia de que tenhamos desejos e sonhos

próprios. Para alguma vez conseguirmos viver as vidas que desejamos,


temos de fazer com que eles concebam tal ideia. A nossa coragem, a força

da nossa vontade, será a prova de que eles precisam.

– Sim – disse Carlota.

Apenas isso. Apenas sim.

Pôs-se de pé.

Agatha imitou-a.

– Nunca te poderei agradecer publicamente por aquilo que fizeste hoje

por mim – disse Carlota. – Por quanto me ajudaste. Mas, por favor, que

saibas que no meu coração estar-te-ei sempre agradecida.

Sentindo-se honrada, Agatha fez-lhe uma vénia.

– Vossa Majestade.

Carlota fez-lhe sinal para que se endireitasse.

– Agora, para ti, só Carlota.

Depois, dirigiu-se para a porta e abriu-a. Assim que pôs o pé no hall,

transformou-se. A sua postura, o seu comportamento, até o seu olhar.

Já não era Carlota.

Era a rainha.

– Irmão – disse ela –, que simpático foste em vir buscar-me.

O duque estava claramente desgastado.

– Carlota, não podes…

Ela interrompeu-o erguendo uma mão e virou-se para Agatha.

– Por favor, agradeça ao seu pessoal pela hospitalidade, lady Danbury.

– Assim farei, Vossa Majestade.


Enquanto Agatha observava a rainha atravessar o hall até à porta da

frente, o duque Adolfo aproximou-se dela.

– Queria também agradecer-lhe, lady Danbury. Pela sua discrição e

graciosidade.

– Faria qualquer coisa por Sua Majestade – disse Agatha.

Com sinceridade.

Mas então Carlota parou. Voltou para trás e pegou na mão de Agatha.

Força, parecia ela dizer.

Agatha apertou lhe a mão também. Força.

– Estou pronta – disse Carlota.

Agatha seguiu-os até à porta: Carlota, escoltada pelo irmão, e Brimsley,

cinco passos atrás.

– A primeira responsabilidade de uma rainha não é para com a sua

vontade, mas para com o seu povo – ouviu Agatha dizer Adolfo.

Pobre Carlota. Já a ouvir um sermão.

– Incontáveis rainhas suportaram o mesmo fardo antes de ti – prosseguiu

ele – e não será pior para ti do que foi para elas. Com tempo aprenderás a

amar as tuas nobres responsabilidades. Será esse o natural desenlace do teu

nobre caráter.

Carlota parou de andar.

– Carlota? – disse o irmão.

Ela manteve-se ali quieta. Agatha esforçou-se por não deixar cair o

queixo.

– Brimsley – disse Carlota.


Ele pôs-se ao lado dela num piscar de olhos.

Carlota virou-se de novo para Adolfo.

– Terás de arranjar forma de regressar à Casa de Buckingham. Talvez

lady Danbury te possa emprestar a sua carruagem.

– De que é que estás a falar? Acabámos agora mesmo de te vir buscar.

Para onde vais tu agora?

– Vendeste-me para ser a rainha de Inglaterra – disse Carlota, imponente.

– Vou ser a rainha de Inglaterra.

Por fora, lady Agatha Danbury era a personificação da graciosidade e da

dignidade, dando instruções em voz baixa ao seu criado para que preparasse

uma carruagem para o duque alemão.

Mas por dentro… oh, como ela aplaudia!


Carlota

PALÁCIO DE KEW

ENTRADA

...

25 DE ABRIL DE 1762

Os pés de Carlota mal haviam chegado ao chão e já ela se afastava da

carruagem a passo largo. Chegara a hora de ser rainha.

– Onde está o rei? – perguntou.

Reynolds apareceu a correr. Carlota procurou lembrar-se de que ele era

um bom homem, que se preocupava muito com o bem-estar de Jorge, mas

naquele momento tudo o que ela conseguia ver era um obstáculo

enfurecedor.

Reynolds fez uma vénia e disse:

– Lamento, Vossa Majestade, mas o rei não poderá recebê-la agora.

– Que disparate. Leva-me até ele.

– Vossa Majestade, não há nada que eu mais gostasse de fazer do que…

– Ela precisa de vê-lo – interrompeu Brimsley bruscamente. – É seu

direito.

Reynolds parecia dividido.

– Gostava de poder…

Mas então surgiu outro homem em passo de corrida, limpando as mãos a

um farrapo. Era aquele médico. Aquele de quem ela não gostava.


– Vossa Majestade – disse ele, num tom de voz grave e autoritário. –

Lamento que se tenha dado ao trabalho de fazer a viagem. Mas é impossível

ver o rei.

Carlota manteve a compostura.

– É perfeitamente possível. Eu quero vê-lo. Onde está ele?

– Não – disse o médico liminarmente. – Vossa Majestade não quereria

fazer tal coisa.

Carlota teve de se obrigar a manter a pose régia. O que ela queria mesmo

era apertar o pescoço daquele homem.

– Não me diga o que quero eu, doutor. Agora leve-me até ele ou mandarei

os meus homens revistarem o palácio inteiro.

O maxilar do médico endureceu e ele deu um passo. Um movimento

mínimo, mas claramente com a intenção de lhe bloquear a passagem.

Charlote virou-se para Reynolds.

– Como é que ele se chama?

– Doutor Monro, Vossa Majestade.

– Doutor Monro – disse ela, cada sílaba delapidada como um diamante. –

Eu sou a sua rainha.

Nem assim ele se moveu.

Então, Reynolds pôs-se entre os dois, virando ostensivamente as costas

ao médico.

– Venha comigo, Vossa Majestade. Eu levá-la-ei ao rei.

– Não – protestou o doutor Monro. – Não pode. O meu trabalho…

Estamos num momento de grande precariedade.


Carlota ignorou-o. Ela e Brimsley seguiram Reynolds pelo palácio

adentro, passando as gloriosas salas públicas, passando as confortáveis salas

privadas. Percorreram um longo corredor, chegando finalmente a uma porta

bastante discreta. Monro seguia-os, cuspindo uma torrente imparável de

terríveis avisos.

– Alguém cale aquele homem – balbuciou Carlota.

– Não abram essa porta – gritou Monro, enfurecido.

Carlota empurrou a porta.

E entrou em pleno inferno.

Havia gaiolas sobre todas as superfícies. Algumas abertas, outras com

pequenos e tristes animais no seu interior. Nenhuma das gaiolas tinha

tamanho suficiente para um humano, graças a Deus, mas que estava aquilo

ali a fazer?

E sangue. Via-se sangue. Não muito, alguns salpicos aqui e ali,

juntamente com umas hediondas manchas amarelas no chão.

Viam-se cadeiras derrubadas e instrumentos de metal grotescos

espalhados por todo o lado. Chicotes. Correntes. E, no centro de tudo aquilo,

amarrado a uma monstruosa cadeira de ferro, estava Jorge.

Jorge gemia incoerentemente e a sua cabeça estava caída, com o cabelo

colado à testa em molhos transpirados. Tinha feridas no corpo, urticária

vermelha e aguerrida. E estava tão magro, tão desesperadamente,

agonizantemente magro.

– Mein Gott – sussurrou Carlota.

Não poderia ter imaginado tal coisa. Nunca poderia ter imaginado tal

coisa.
Os assistentes do médico estavam tão concentrados no seu trabalho que

não deram pela entrada dela. Apesar de Jorge estar firmemente amarrado à

cadeira, um deles agarrava-lhe os ombros enquanto o outro lhe encostava

um ferro incandescente à pele.

Jorge gritou em sofrimento.

O mesmo fez Carlota.

– Desamarrem-no – disse ela, mal capaz de pronunciar as palavras.

Os assistentes olharam para o médico à procura de confirmação.

– Desamarrem o rei – rugiu ela.

Os assistentes acorreram a desatar os nós das mãos do rei. Brimsley e o

Reynolds dedicaram-se aos dos pés. Aquilo parecia demorar uma

eternidade. Carlota olhou à volta à procura de uma faca. Os seus olhos

haviam acabado de pousar numa quando Brimsley desatou o último nó e

Jorge ficou finalmente liberto de todas as amarras. Saltou da cadeira e

correu para ela, a soluçar, encostando-se ao ombro dela.

– Toda a gente fora daqui – gritou Carlota. – Já!

Monro e os seus assistentes desapareceram, mas Reynolds e Brimsley

hesitavam em sair.

– Tem a certeza? – perguntou Brimsley. – O rei está demasiado

perturbado. E é mais forte do que Vossa Majestade.

– Tenho a certeza.

Mas, mal o disse, Jorge empurrou-a contra a parede.

– Não, sim, agricultor Jorge – choramingava ele.


Enterrou o rosto no pescoço dela e as suas palavras tornaram-se cada vez

mais incoerentes.

Brimsley acorreu para o lado dela.

– Ele é demasiado forte. Não a posso deixar sozinha com ele.

– Está tudo bem. Está tudo bem. – Carlota esticava o pescoço para

conseguir ver Brimsley por cima do ombro de Jorge. – Ele só está a tentar

fugir àquela maldita cadeira. Agora, vão-se embora! Por favor.

Brimsley e Reynolds deixaram a sala. Carlota apostaria que ficariam

apenas a cinco passos de distância.

– Ninguém ninguém. Eu sou ninguém mas vou tentar. Vou tentar vou

tentar. Vou. – As mãos de Jorge apertaram os ombros da Carlota, e os seus

olhos tornaram-se frenéticos. – Vou tentar. Vou tentar. Fá-lo parar. Eu vou

tentar. Vou sim. Vou sim.

– Jorge, para – implorou Carlota.

Aquilo não se parecia nada com a noite em que ele correra selvagem sob

as estrelas. Este homem estava em sofrimento. Completamente perdido,

quase destruído.

– Não – implorou ele. Abanou a cabeça com força. Com mais força

ainda. – Não, não. Eu faço, eu faço. Eu não fiz.

– Jorge – disse Carlota com firmeza. – Olha, Jorge, sou eu.

Os olhos dele disparavam um pouco por todo o rosto dela.

– Vénus – experimentou. – Vénus está aqui, Jorge.

Mesmo assim, ele não a reconhecia. Agarrava-se a ela, implorava-lhe,

mas não a reconhecia.


– Oh, raios partam Vénus – praguejou. – Eu sou a Carlota. Eu sou a

Carlota e preciso de que tu voltes a ser o Jorge. Preciso de que tentes.

Segurou-lhe o rosto entre as mãos, procurando acalmar o tremor.

– Tu és Só Jorge e eu sou Só Carlota. Volta para mim. Por favor, Jorge.

Volta.

Jorge choramingava. Saíam-lhe palavras murmuradas, mas ela não as

conseguia compreender. Desesperada, agarrou-lhe numa das mãos e pousou-

a na sua barriga.

– Sentes isto, Jorge? Dá pontapés. Está a crescer. É nosso.

Ele pareceu silenciar-se e os disparos alucinados dos seus olhos

começaram a abrandar e acalmar.

– Eu sou a Carlota – disse ela mais uma vez – e este é o nosso filho, e nós

precisamos de que tu sejas o Jorge. Se não, nenhum de nós é ninguém.

Os dedos dele entrelaçaram-se nos dela, e ele ergueu o olhar.

– Carlota – sussurrou. – Carlota.

– Sim – sussurrou ela. Acenou atabalhoadamente com a cabeça, e todas

as lágrimas que jurara não poder chorar começaram a rolar-lhe rosto abaixo.

– Estou contigo – prometeu ela. – Estou aqui e nunca mais me irei embora.

– Eu só estava a tentar ser bom – choramingou Jorge. – Só estava a tentar

ficar bom.

– E ficarás. Mas não assim.

Jorge anuiu com a cabeça, mas nos olhos dele ela viu uma criança

assustada.

O que lhe haviam feito? Como podia ela ter permitido aquilo?
– Aquele médico nunca mais se aproximará de ti – declarou. – Prometo-

te.

– Eu quero ficar bom. – Tocou no rosto dela, quase como se precisasse de

ter a certeza de que ela estava realmente ali. – Quero ficar bom para ti.

– E ficarás – disse ela.

Mas não sabia se havia verdade nas suas palavras. Talvez ele ficasse

sempre assim, doente. Ela não conseguia ver a mente dele; não conseguia

entrar lá e consertar o que quer que fosse que fazia com que ele se perdesse

de si mesmo.

Mas nada poderia ser pior do que aquilo que o doutor Monro tinha feito.

Carlota podia não ser capaz de curar Jorge, mas de certeza que conseguiria

fazer com que ele ficasse melhor do que estava naquele momento.

– O que é que te apetece comer? – disse ela, com o cuidado de manter a

voz baixa e suave. – Estás demasiado magro. Queres um doce? Um salgado?

– Ambos?

Jorge ofereceu-lhe um pequeno esboço de um sorriso, e nele ela viu um

laivo do homem que tanto adorava.

– E um banho – disse ela, tentando não se encolher por causa do odor

dele. – Trataremos disso também.

– Obrigado.

Carlota olhou com atenção para o rosto dele. Ainda parecia oco.

Assombrado.

Mas talvez com uma ínfima partícula de esperança.


Deu-lhe a mão e caminhou para a porta, que abriu. Reynolds e Brimsley

esperavam do lado de fora.

– Vossas Majestades – disseram ambos prontamente.

– Reynolds – disse Carlota. – Podes, por favor, tratar do rei? Ele precisa

de um banho e de qualquer coisa ligeira para comer enquanto lhe

preparamos uma refeição como deve ser.

– Tudo menos mingau – disse Jorge a Reynolds, e ambos trocaram um

olhar.

Charlote sentiu-se grata por testemunhar aquele momento. Um momento

de amizade. De humanidade.

Virou-se para Jorge.

– Voltarei num instante para junto de ti. Primeiro tenho uma coisa muito

importante para resolver.

Esperou enquanto Reynolds levava Jorge dali, depois virou-se para

Brimsley e disse:

– Anda. Temos de tratar do médico.

– Com muito gosto, Vossa Majestade.

Caminharam a passo largo pelo palácio, enganando-se uma vez no

caminho, infelizmente, até encontrarem o doutor Monro e os seus assistentes

no exterior, à entrada do edifício. O Sol começara a pôr-se e o ar estava

dourado e cintilante de promessas.

– Você – disse Carlota ameaçadoramente, apontando para o médico. –

Vá-se embora daqui e nunca mais volte.

O doutor Monro caminhou confiante na direção dela, ainda com a postura

de um homem que contava ter sucesso.


– Peço desculpa se Vossa Majestade…

– Demasiado perto! – berrou Brimsley, colocando-se em frente à rainha.

O médico deu um passo para trás.

– Não estávamos à espera de Vossa Majestade.

– Evidentemente – disse Carlota.

– Compreenda, esta não era a parte do nosso tratamento que eu teria

preferido que visse.

– O seu tratamento tem partes bonitas? – perguntou Carlota. – Que partes

serão essas? As que lhe deram urticária? Feridas?

– Vossa Majes…

Mas ela ainda não tinha terminado.

– A parte em que quase o matou à fome? – prosseguiu, com a voz a ficar-

lhe perigosamente embargada.

Monro uniu as mãos palma com palma, quase como se fosse um padre.

– Vossa Majestade tem de compreender. Embora os meus métodos sejam

perturbadores, têm provas dadas. Eu desejo a sanidade mental do rei tão

fervorosamente quanto Vossa Majestade.

– Eu não me preocupo com a sanidade dele – retrucou Carlota. –

Preocupo-me com a felicidade dele. A alma dele. Que ele seja louco se é

isso que precisa de ser.

– Está errada – disse o médico.

– Cuidado – avisou Brimsley.

Carlota esticou um dedo na direção do médico.

– Você? Está acabado.


Virou-se para os guardas, os mesmos homens que a tinham acompanhado

até ali.

– Retirem este homem daqui.

– Isto é um erro! – gritou o doutor Monro. – Um erro que irá destruí-lo!

Carlota virou-se de supetão para olhar para ele, a ferver.

– Dê graças por eu não ordenar a sua destruição.

Observou enquanto os guardas o levavam dali. Com prazer. E quando já

não o conseguia ouvir uivar de fúria, virou-se para Brimsley e disse:

– Preciso que embalem as minhas coisas. Tudo. Vamos mudar-nos para

Kew.

PALÁCIO DE KEW

OBSERVATÓRIO

...

UMA HORA DEPOIS

Charlote pensava que iria encontrar Jorge nos aposentos dele, mas depois

considerou que fazia sentido ele e Reynolds terem ido para o observatório.

Era lá que ele se sentia mais feliz.

Encontrou-o sentado a uma mesa, de banho tomado, envergando roupas

lavadas, a devorar o festim que lhe havia sido servido. Carneiro (claro),

pãezinhos de leite quentes, as batatas gratinadas preferidas dele. Também

em Kew havia um laranjal, e várias laranjas tinham sido descascadas, os

gomos separados, para ele as saborear.

– Uma refeição quente e um banho devem bálsamos – disse Carlota. –

Pareces-te mais contigo mesmo agora. Pareces melhor.


Ele olhou para ela, o garfo a pairar entre o prato e a boca.

– Sentes-te melhor? – perguntou-lhe.

Jorge pousou o garfo lentamente.

– Não devias ter vindo.

Carlota engoliu em seco. Devia saber que aquilo não seria fácil. Mas

manteve o sorriso leve e animado.

– Tive muito gosto em vir.

– Não. – Jorge abanou a cabeça. – Não. Foi um erro.

– Lamento muito, meu amor. – Começou a caminhar para ele, mas Jorge

mostrou-lhe uma expressão obstrutiva que a fez parar. Ainda assim, disse: –

Eu devia ter vindo há mais tempo. Mas não tenhas medo. Ficarei ao teu

lado…

– Não, Carlota. – Jorge levantou a voz. Carlota não sabia onde fora ele

encontrar energia para tal, mas pôs-se de pé e disse nitidamente: – Ouve as

minhas palavras. Não devias ter vindo. Eu não te quero aqui.

Carlota não acreditava nele. Recusava-se a acreditar nele.

– Volta para a Casa de Buckingham – disse Jorge. – Por favor.

Carlota não falou. Ele estava enganado. Ela sabia-o, e só precisava de que

ele também o compreendesse. Lentamente, encaminhou-se para ele.

– Estás a ouvir? Eu disse para voltares para a Casa de Buckingham. É lá

que tu vives. É lá que pertences. – A tremer, atirou com o braço, para

apontar na direção da porta. – Vai!

Ainda assim, ela não lhe obedeceu.

Jorge saiu da mesa. Atravessou a sala até chegar perto dela. Gritou:
– Eu não te quero. Não te quero ver nunca. Vai-te embora. Sai daqui!

– Não. Não, Jorge.

– Carlota…

Carlota permaneceu imperturbável.

– Não me podes obrigar. Eu não me vou embora.

– Eu ordeno-te. Vai!

Finalmente, foi Carlota quem gritou.

– Eu fico. Eu ordeno-o.

Jorge calou-se, atónito, de olhos fixos nela enquanto ela se chegava a ele.

– Por favor, Carlota. – A voz dele baixara, e soava como se estivesse

prestes a falhar. – Por favor, vai.

Carlota repetiu.

– Não.

– Carlota, não me estás a ouvir.

– Estou, sim. Ouvi-te dizer que preferias que eu não tivesse vindo, que

queres que eu me vá embora, que não me queres ver.

– Então, escuta o que disse – implorou Jorge.

– O que não te ouvi dizer é que não me amas.

Jorge ficou muito quieto.

– Eu tenho estado em sofrimento e sozinha e a acreditar que sou um

fracasso enquanto esposa e tua rainha porque tu te manténs afastado de mim

como se eu fosse uma doença. E hoje, de repente, ocorreu-me que talvez

houvesse outro motivo. Um motivo melhor. Talvez te mantenhas afastado de

mim por te preocupares comigo. Talvez te afastes porque me amas.


Chegou ainda mais perto.

– Amas-me?

– Estou a tentar proteger-te.

– Amas-me?

Jorge abanou a cabeça.

– Eu não posso… Nós não podemos… Esta conversa não é…

Ela fitava-o, de sobrancelhas erguidas.

– Não consigo fazer isto – disse Jorge.

Carlota não estava para isso.

– Amas-me?

– Eu nunca tive intenção de me casar – disse ele, abanado a cabeça. –

Nunca quis…

– Amas-me?

Implacável. Tinha de ser.

– Carlota, por favor, para.

Mas o rosto dele era o retrato fiel de um coração partido. Talvez o

coração dele tivesse de se partir para ela conseguir voltar a montá-lo num

só.

– Será que não consegues acreditar que eu te possa amar? – perguntou

ela. – Porque eu amo-te. Amo-te, Jorge. Amo-te tanto que te farei a vontade.

Ele abriu a boca para falar, mas Carlota ergueu uma mão e disse:

– Caso tu não me ames.


Carlota sentiu uma necessidade súbita de se mexer, de embalar o bebé a

crescer dentro dela, por isso deu alguns passos em direção à janela e olhou

lá para fora.

– Tudo o que tens de dizer é que não me amas e eu vou. – Virou-se de

novo, fixando os olhos nos dele com uma clareza inabalável. – Vou para a

Casa de Buckingham e podemos viver vidas separadas e eu tenho este bebé

sozinha e desenvencilho-me e preencho os meus dias e sobrevivo sozinha.

Eu faço-o. Mas primeiro tens de dizer que não me amas.

E depois:

– Tens de me dizer que estou completamente sozinha neste mundo.

Os olhos de Jorge procuraram os dela. Havia uma tensão devastadora no

corpo dele, como se ele tivesse medo de se estilhaçar. Ou talvez estivesse

inerte à espera de poder fugir. Por fim, quando o silêncio se esticou até ao

máximo possível, Jorge disse:

– Eu sou um louco. Sou um perigo.

Carlota abanou a cabeça.

– Não. Escuta. Dentro da minha cabeça, há outros mundos a emergir. Os

céus e a terra colidem, e eu não sei onde estou.

Carlota fez a única pergunta que interessava.

– Amas-me?

– Isso não é relevante – disse ele. – Tu não queres uma vida comigo.

Ninguém quer tal coisa.

Carlota estava farta de que os homens lhe dissessem o que ela queria.

Especialmente agora, quando o que estava em causa era o coração dela.


– Jorge – implorou –, eu ficarei contigo entre os céus e a terra. Eu dir-te-

ei onde estás.

– Carlota, tu…

– Amas-me? – praticamente gritou Carlota.

Pronto. Estava a implorar-lhe. Desnudara a alma perante ele, entregara-

lhe o seu orgulho e o seu coração e tudo o que ela era, e…

– Eu amo-te.

As palavras de Jorge soaram como se lhe tivessem sido arrancadas da

alma. Ele estivera a retê-las, negando o seu próprio coração. Ela podia vê-lo

nos olhos dele, à medida que se enchiam de lágrimas.

– Jorge – sussurrou.

– Não, deixa-me acabar. Desde o momento em que te vi a tentares galgar

o muro do jardim que te amo desesperadamente. Não consigo respirar

quando não te tenho perto. Eu amo-te, Carlota. – Segurou-lhe no rosto com

ambas as mãos. – O meu coração chama pelo teu nome.

O beijo dele foi um beijo de amor, de fome e de desespero. Beijou-a

como se não conseguisse aproximar-se suficientemente dela, como se nunca

se conseguisse aproximar dela quanto bastasse.

Como se nunca mais a fosse largar.

– Eu queria ter-te dito – continuou. – Queria que tu soubesses, mas esta

loucura tem sido um segredo meu durante toda a minha vida, esta negritude

é o meu fardo. Tu trazes-me luz.

– Jorge.

Carlota ergueu os olhos para ele, para aquele rosto que amava, os seus

olhos escuros e o lábio inferior que ele gostava de morder quando estava
divertido. Conhecia-o, apercebeu-se. Conhecia o homem que ele era no

interior, e se, por vezes, esse homem ficasse submerso por águas revoltas,

ela poderia ajudá-lo a regressar à superfície. Nunca o deixaria.

– Somos nós, eu e tu – prometeu. – Nós conseguiremos fazer isto. Juntos.


Brimsley

PALÁCIO DE KEW

...

8 DE MAIO DE 1762

Brimsley decidiu que gostava bastante de viver em Kew.

Ali a atmosfera era muito mais casual do que na Casa de Buckingham,

dentro daquilo a que qualquer residência real se poderia chamar casual. Ele

e Reynolds eram tratados como os serviçais mais seniores, apesar de haver

lá um mordomo e uma governanta. Mas, mais importante que tudo, Kew era

agradável porque o rei e a rainha eram agradáveis – e estavam agradados um

com o outro.

Os primeiros dias tinham sido, no entanto, difíceis. O rei levara algum

tempo a recuperar do seu tormento. Brimsley nunca se diria conhecedor da

medicina, mas não percebia como podia alguém achar que torturar o rei

ajudaria a acalmar-lhe a mente.

Começava também a compreender sob que tensão andara Reynolds,

cuidando do rei ao mesmo tempo que mantinha tudo aquilo em segredo.

Naquela primeira noite, quando a rainha havia tão magnificamente

despachado o doutor Monro, Brimsley oferecera-se para ajudar, mas

Reynolds estava tão habituado a carregar o seu fardo sozinho que tinha

dificuldade em aceitar ajuda.

Quando as coisas se tinham acalmado e o rei e a rainha estavam já

recolhidos para dormir, Brimsley e Reynolds haviam dado um passeio,


tendo ido dar aos estábulos. Chovia ligeiramente, por isso entraram para se

abrigarem. Não cheirava lá tão mal quanto Brimsley receara; os responsáveis

pelos estábulos eram claramente excelentes a fazer o que quer que fosse

preciso para manter aquilo fresco.

Os dois homens encontraram um lugar para se sentarem, encostados a um

fardo de palha. Reynolds suspirou. Brimsley achava que nunca o tinha visto

tão cansado.

– Alguma vez te contei como vim parar a este trabalho? – disse Reynolds.

Brimsley inclinou a cabeça para o lado, encostando-a levemente ao

ombro de Reynolds.

– Imagino que tenhas sido assinalado desde muito novo pelas tuas

inigualáveis afetação e soberba.

Reynolds mostrou-lhe um sorriso convencido, mas que revelava a sua boa

natureza.

– Eu e o rei crescemos juntos. Eu era o companheiro de brincadeiras de

Sua Majestade. Pescámos e trepámos a árvores e fomos crianças juntos.

Brimsley anuiu com a cabeça. Reynolds já tinha falado naquilo. Não

muitas vezes; ele tendia a ser circunspeto acerca do seu passado.

– Ainda hoje não sei como é que o Palácio permitiu tal coisa –

prosseguiu Reynolds. – Eles eram monstruosamente rígidos quando às

pessoas que podiam passar tempo com os príncipes e as princesas. Talvez

por a minha mãe ser uma criada de confiança e o meu pai um ourives do

palácio. E eu tinha a idade certa. Temos apenas dois meses de diferença.

– Quem é o mais velho? – perguntou Brimsley.


– Eu. – Reynolds fez-lhe um daqueles sorrisos de que ele tanto gostava. –

Claro.

– Claro.

– Não havia mais ninguém para ele, a não ser quando vinha cá de visita

algum dignitário ou príncipe estrangeiro, mas esses encontros eram sempre

muito desconfortáveis. Dois rapazes vestidos nos seus ridículos trajes mais

refinados, a quem era ordenado que fossem amigos um do outro.

– Não me parece que isso corresse nada bem.

– Não – recordou Reinaldo –, nunca corria. Em metade das ocasiões nem

sequer falavam a mesma língua. Por isso, era só eu. Eu e o Jorge. Na altura

ainda lhe chamava Jorge.

– Já não chamas?

Reynolds deitou lhe um olhar.

– Sabes que não. E, mesmo quando éramos pequenos, não o fazia se

estivesse mais alguém presente.

Brimsley riu-se.

– Pois, imagino que isso não correria nada bem.

– Claro que eu sabia qual era o meu lugar, mas gostava do Georgie.

Gostava dele mesmo quando havia adultos que me empurravam para o lado

na sua pressa de se curvarem e encostarem a ele.

Reynolds olhou para cima e sorriu. Era um sorriso algo sentimental, com

ligeiro toque de tristeza.

– Ele era afável – continuou. – E com um imenso sentido de humor. Não

se punha com ares. Eu terei sido talvez o primeiro a reconhecer as suas…

peculiaridades. Mas gostava dele na mesma. Eu era aquilo que ele tinha de
mais próximo de um amigo, por isso guardei o segredo dele. Cantava-lhe

canções para o distrair quando ele perdia o controlo dos seus pensamentos.

Segurava-lhe os braços quando começavam a tremer.

Olhou para Brimsley, agora mais diretamente.

– Escondi tudo do seu monstruoso avô.

– Fizeste muito bem – disse Brimsley baixinho.

Já ouvira falar de Jorge II. Não era um homem bom.

Reynolds acenou lentamente com a cabeça, o tipo de aceno que se faz

não quando se está a concordar, mas quando se está a recordar.

– Quando chegou a altura de eu seguir os passos do meu pai e ser

ourives, pedi para, em vez disso, ficar com o Jorge. Não seria tão lucrativo,

mas foi uma escolha que fiz de bom grado. Porque ele precisava de mim. E

porque…

Engoliu em seco.

– Porque também ele conhecia os meus segredos. A minha…

peculiaridade. E não se importava. Ele guardou o meu segredo tal como eu

guardei o dele. E eu tinha de o fazer. Mesmo de ti.

– Lamento ter-me zangado tanto contigo – disse Brimsley. – Foi só… a

rainha…

– Eu compreendo.

– Jurei protegê-la.

Reynolds mostrou-lhe um pequeno sorriso.

– Eu jurei proteger o rei.


– Que estranhas vidas nós vivemos – ponderou Brimsley. – Quando é que

nos podemos proteger a nós mesmos? Ou um ao outro?

Reynolds beijou-o na face.

– Espero que todos os dias. Mas nunca somos a prioridade.

Brimsley fingiu um suspiro dramático.

– Acho que, se tiver de ficar em segundo lugar, mais vale que seja por

causa do rei.

Reynolds deu uma gargalhada, mas ficou logo sério outra vez.

– O segredo dele já não é apenas nosso. Não consegui guardá-lo. Eu

tentei. Mas primeiro foi a mãe dele, depois Bute e Harcourt. Aqui, todas as

criadas cochicham acerca dele. Depois, aquele médico. – Reynolds agarrou

na mão de Brimsley. Com força. – Compreendes agora porque te implorei

que o mantivesses longe da rainha.

– Sim – respondeu prontamente Brimsley. – Nem consigo imaginar. Fico

maldisposto só de pensar nisso.

– Sua Majestade sofreu tanto. Nem conseguiria começar a descrevê-lo.

– Do pouco que eu vi… – disse Brimsley.

– Eu tentei intervir – disse Reynolds. – Acho que podia ter tentado mais.

Brimsley já não podia mais. Não suportava a dor nos olhos de Reynolds.

Só queria fazê-la desaparecer, nem que fosse apenas momentaneamente.

Esticou o braço, segurou-lhe no rosto com as mãos e beijou-o.

Com ternura.

Com amor.

Com uma promessa que ele não sabia se poderia cumprir.


PALÁCIO DE KEW

SALA DE ESTAR DA RAINHA

...

1 DE JUNHO DE 1762

A rainha estava a bordar, coisa que Brimsley estranhou. Nunca pensou que

ela tivesse feitio para um passatempo tão repetitivo, mas ela parecia estar a

gostar, e ele gostava de que ela gostasse, especialmente desde que ela lhe

dissera que se podia sentar numa cadeira junto à porta em vez de ficar em

pé, a postos, durante todo aquele tempo.

Mas depois chegou o rei, o que significou que Brimsley teve mesmo de se

pôr em pé. Reynolds chegou cinco passos depois e ficou ao lado dele.

– Vou trabalhar nos campos – disse o rei, e estava, de facto, vestido para

agricultura, sem nenhuma das suas habituais peças requintadas. – Estamos a

fazer a rotação do milho-painço. – Debruçou-se e beijou a rainha na cabeça.

– Queres vir comigo?

– Nunca – disse ela a rir. – Ficarei aqui a gestar o nosso pequeno rei.

Jorge beijou-lhe os dedos, depois tocou-lhe na barriga e virou-se para se

ir embora.

– Jorge! – Chamou a rainha de súbito. – Quase me esquecia. Recebeste

uma carta. Onde é que está?

– Aqui – disse Brimsley, dando um passo em frente. Foi buscá-la a uma

mesa de apoio e entregou-a ao rei. – É da princesa Augusta.

– A minha mãe a escrever-me?

O rei revirou os olhos e atirou a carta por abrir para a lareira. Brimsley

não sabia se se sentia horrorizado ou deliciado.


Mas não havia dúvida de que a felicidade do rei era contagiosa. Voltou

para o pé da rainha e beijou-a mais uma vez.

– És tão bela – proclamou. – A minha esposa é tão bela.

E depois lá se foi embora.

Brimsley pestanejou. Era como se uma bola rodopiante de luz do Sol

tivesse acabado de atravessar a sala. Já haviam passado algumas semanas

desde que a rainha o resgatara daquele horrendo médico, mas a diferença

não deixava de ser milagrosa.

Virou-se para partilhar um sorriso com Reynolds, que ainda não partira

para seguir o rei, mas Reynolds estava a observar a rainha com uma

expressão contemplativa.

– Querias dizer alguma coisa, Reynolds? – perguntou ela.

Brimsley observava a conversa com interesse. Era evidente que Reynolds

queria dizer alguma coisa.

A rainha voltou a erguer o olhar do seu bordado para encontrar os olhos

de Reynolds ainda pousado nela.

– Fala – disse ela.

Ele aclarou a garganta.

– Sua Majestade tem dias bons. E dias menos bons.

– Tinha – respondeu a rainha. – Mas, agora que eu estou aqui, os dias

dele são melhores. Ele está melhor. Não está?

– Ele está melhor agora – concordou Reynolds.

Mas o seu rosto dizia outra coisa. Brimsley conhecia-o suficientemente

bem para perceber a preocupação nos seus olhos.


– Mas? – pressionou a rainha.

– Talvez a prudência fosse…

– Reynolds – interrompeu ela –, deixa-o estar. Tudo de que ele precisava

era a sua esposa e uma rotina e livrar-se daquele tenebroso médico. Ele está

bem.

Reynolds não parecia convencido, mas fez uma vénia e disse:

– Com certeza, Vossa Majestade.

– Irás acompanhá-lo até aos campos? – perguntou ela.

– Sim, Vossa Majestade, a rotação do milho-painço é uma das coisas de

que mais gosto.

Brimsley engasgou-se a suster uma gargalhada.

A rainha deitou a Reynolds um olhar cúmplice.

– És um bom homem, Reynolds.

– Obrigado, Vossa Majestade.

– Bom milho-painço.

– Sim, Reynolds – disse Brimsley –, bom milho-painço.

Reynolds deitou-lhe um olhar tão furioso enquanto saía que até a rainha

se riu.

Brimsley voltou a sentar-se na sua cadeira junto à porta e sorriu. Era

assim que a vida devia ser.

PALÁCIO DE KEW

QUARTO DE REYNOLDS

...
NESSA NOITE

Era tarde, e o rei e a rainha já se tinham retirado, o que significava que

Brimsley e Reynolds estavam, teoricamente, fora de serviço.

Uma vez que Reynolds tinha uma banheira grande, tinham decidido que

ali passariam ou serão.

Um fim perfeito para um dia excelente.

– Achas que vai durar? – perguntou Brimsley .

– O quê?

– O rei. Achas que ele vai ficar assim como está?

– A esperança é a última coisa a morrer – disse Reynolds cripticamente.

Começou a ensaboar as costas de Brimsley. Era divinal.

– Reynolds?

– Hmm?

– Se durar, ter-se-ão um ao outro. Estarão juntos. Num verdadeiro

casamento. A envelhecer como um só.

Reynolds despejou água nas costas de Brimsley, enxaguando a espuma.

– Connosco a servi-los juntos – disse Brimsley baixinho.

– Uma vida inteira – murmurou Reynolds.

Era o tipo de coisa com que homens como eles nunca se atreviam a

sonhar. Tal como o rei e a rainha, também eles ficariam juntos. Numa

verdadeira parceria. A envelhecer como um só.

Brimsley virou-se para poder ver o rosto de Reynolds. Ele era tão belo,

tão nobre. Os outros serviçais gostavam de dizer, a brincar, que ele tinha os
modos de um duque, e não estavam enganados. Por vezes, Brimsley não

podia crer que um homem como Reynolds tivesse escolhido ficar com ele.

E depois lembrava a si mesmo que também Reynolds tinha sorte.

Brimsley podia não ter o rosto de um Adónis, mas não era nenhum duende.

E, mais importante ainda, era inteligente, e era confiável. Era um bom

homem, e conhecia o seu valor.

– Achas que é possível? – perguntou Brimsley.

Reynolds anuiu com a cabeça.

– Não sei. Talvez. Um grande amor pode operar milagres.

– Pois pode.

E talvez, assim quisesse Deus, isso acontecesse.


Agatha

CASA DANBURY

QUARTO DE LADY DANBURY

...

28 DE JUNHO DE 1762

Agatha estava sentada no seu toucador enquanto Coral lhe preparava o

cabelo para se deitar. Aquele procedimento podia ser complicado,

dependendo de quão formalmente ela pretendia pentear o cabelo no dia

seguinte.

Os preparativos daquela noite eram, de facto, complexos. Agatha recebera

uma convocatória da princesa Augusta. Mais um dos seus chás da tarde. Ela

sabia o que queria a princesa-viúva: informações acerca da recente mudança

da rainha para Kew.

Haviam começado a circular rumores acerca do casal real. Nada sobre as

faculdades mentais do rei; isso, pelo menos, não transpusera as muralhas do

Palácio. Mas a elite queria saber porque é que o rei e a rainha se haviam

tornado reclusos, porque é que nunca saíam de Kew.

O Parlamento começava a inquietar-se; ainda na véspera, Agatha ouvira

dizer a um homem numa loja que, se o rei não se dirigisse ao Parlamento em

breve, corria o risco de perder a sua confiança.

A princesa Augusta devia estar a ficar cada vez mais nervosa. Muito

nervosa. Daí o convite.

– O que irá dizer à princesa? – perguntou Coral.


– Nada. Que posso eu dizer?

– Decerto poderia transmitir à princesa Augusta algum pormenor. Peras.

Sua Majestade pediu peras quando aqui esteve.

Agatha não se lembrava de nada relacionado com peras, mas isso pouco

importava. Augusta não se contentaria com histórias sobre fruta.

– Eu não satisfarei a princesa – disse Agatha a Coral. – Prometi à rainha a

minha amizade.

– Se são amigas, talvez possa pedir a Sua Majestade para intervir – disse

Coral. – Ela pareceu ser tão amável. Tenho a certeza de que faria do

pequeno Dominic lorde Danbury se lho pedisse.

– Sua Majestade foi para Kew – disse Agatha com firmeza. – Eu não

posso simplesmente aparecer lá e implorar por um favor. E ela está grávida.

Com ela nesse estado, não posso fazer nada que a possa perturbar ou

preocupar.

– Ela já tem disso que chegue – disse Coral com um suspiro dramático.

Agatha virou-se de supetão.

– O que queres dizer com isso?

Coral atou uma das tiras para fazer caracóis e pegou noutro pedaço de

tecido.

– Bem, há que ter em conta os rumores.

– Rumores?

Aquilo deixou Agatha nervosa. Os serviçais ouviam sempre rumores

diferentes daqueles que ouvia a elite. E os deles eram, provavelmente, mais

acertados.
Coral desistiu de fingir que penteava Agatha e sentou-se em frente a ela.

– Tenho ouvido dizer que o Palácio não assenta em terreno firme. Que o

rei está doente ou ferido ou… bem, alguma coisa de errado se passa.

– Coral, isso são mexericos.

– Não. Eu não sou pessoa de mexericar. Se fosse – disse Coral

acutilantemente –, diria que ouvi várias criadas da cozinha referirem que os

membros da Câmara dos Lordes estão preocupados com o bem-estar do rei.

Diz-se que o Palácio está em risco.

– Mas tu não és pessoa de mexericar.

– Nunca.

Agatha soltou um suspiro muito preocupado. Aquilo apenas vinha

confirmar o que ela ouvira na loja.

– Se isso for verdade, então é que eu não posso mesmo pedir ajuda a Sua

Majestade.

– Não – disse Coral –, mas, mais uma vez, se eu fosse de mexericar, coisa

que obviamente não sou, diria que ouvi dizer que quem detém todo o poder

agora é a princesa Augusta e o lorde Bute.

Agatha olhou para o seu reflexo enquanto Coral voltava a pentear-lhe o

cabelo. Que fazer? Não podia trair a rainha. Não o faria. Mas a única forma

de garantir o futuro da Grandiosa Experiência era através da princesa

Augusta.

E ela exigia saber segredos.

PALÁCIO DE ST. JAMES

SALA DE ESTAR DA PRINCESA AUGUSTA


...

NO DIA SEGUINTE

Estava de volta.

De volta à sala de estar tão formal de lady Augusta, onde tudo era

coberto com folha de ouro e até o teto era elegante: uma cúpula oval com

uma pintura que Agatha considerou estar à altura de rivalizar com a Capela

Sistina.

– Obrigada por me receber, vossa alteza – disse Agatha.

– Eu é que agradeço por me vir visitar, lady Danbury.

– Dá-me alegria que tenha conhecido o lorde Danbury. – Agatha fez uma

pausa intencional. – O novo lorde Danbury.

– Conheci? – A princesa Augusta aguardou enquanto uma das suas

damas de companhia preparava uma chávena de chá. Fez um gesto

indicando que a entregasse a Agatha. – Sei que conheci o seu filho. Ele é

muito bem parecido. Que rapaz tão querido.

Agatha aguardou por que a princesa Augusta bebesse um gole do seu chá

antes de ela fazer o mesmo.

– Ouvi dizer – disse a princesa Augusta – que teve a honra de uma visita

de Sua Majestade a rainha.

– Isso foi há dois meses – disse Agatha.

Queria deixar bem claro que nunca mais vira a rainha desde que ela

partira para Kew.

– Sim – disse a princesa Augusta. – Eu sei.

Claro que sabia.


– Não é comum a rainha visitar as suas damas de companhia nas casas

delas – prosseguiu a princesa Augusta.

– A rainha teve a gentileza de me ir oferecer as suas condolências pela

perda do meu querido marido. O falecido lorde Danbury.

– Sim. As minhas condolências. Perder um marido é… inconveniente. –

A princesa Augusta sorriu, mas os seus lábios mal desenharam uma curva. –

A rainha deve gostar muito de si. Para sair durante o seu confinamento.

– Sim – disse Agatha

Sabia bem que jogo julgava Augusta, e recusava-se a tomar parte. Não

dessa vez. Fizera um voto no sentido de ser uma verdadeira amiga de

Carlota.

– Sim – repetiu a princesa Augusta.

Agatha olhou-a sobre a sua chávena.

A princesa Augusta fez o mesmo.

Agatha inspirou. Era agora ou nunca.

– Sendo dado adquirido – disse – que o meu filho herdará o título do seu

pai…

– É? – interrompeu a princesa Augusta. – Dado adquirido?

– Não é?

– Se a Grandiosa Experiência prosseguirá além desta geração é algo que

só Sua Majestade o rei pode determinar. – A princesa Augusta pousou a

chávena e fez um qualquer gesto com as mãos. – É um debate tão

complicado – disse com um suspiro.

– Compreendo.
– Claro – prosseguiu a princesa –, tenho a certeza de que conseguiria

acelerar a sua resposta. Se me trouxesse informação que pudesse ser útil.

– Não sei que informação poderia eu possuir que alguém tão brilhante

quanto Vossa Alteza não conseguisse obter por si mesma.

E, sinceramente, aquilo era verdade. Que sabia Agatha? Que o rei estava

doente? A princesa Augusta já o sabia. Mas talvez não soubesse da extensão

da doença. Aquilo que Carlota lhe contara era verdadeiramente ameaçador.

Ainda assim, Agatha não falaria disso. A ninguém. Jurara fidelidade a

Carlota e não quebraria essa promessa.

As mulheres tinham tão pouco poder. Tinham de se manter unidas.

Mesmo quando, como neste caso, mediam forças com outra mulher.

– Bem – disse a princesa Augusta –, creio que a questão da herança do

título será difícil de decidir. Mais chá?

– Não – disse Agatha. – Obrigada. Creio que é melhor ir embora.

– Tem muito em que pensar – disse a princesa Augusta.

– Tenho sempre muito em que pensar.

Ouvindo aquilo, a princesa riu. E não com maldade.

– É uma mulher muito inteligente, lady Danbury.

– Interpreto isso como o melhor dos elogios – disse Agatha –, sendo que

Vossa Alteza também o é.

A princesa Augusta acenou regiamente com a cabeça.

– As mulheres têm de navegar este mundo de forma diferente dos

homens. Acredito que compreenda isto.

– Compreendo, Vossa Alteza.


E era por essa razão que sentia o corpo como se fosse feito de pedra todas

as noites, enquanto tentava dormir.

– Espero que nos voltemos a encontrar em breve – disse a princesa

Augusta.

Agatha anuiu com a cabeça, fez uma vénia e saiu. Fez o que pôde para

não soçobrar de encontro a uma parede e respirar fundo, muito fundo.

– Lady Danbury!

Ela ergueu o olhar. Era o irmão da rainha, o duque Adolfo. Caminhava

vigorosamente na direção dela com algum propósito. Era um homem muito

bonito. O que não era surpresa, dado que a irmã dele era igualmente bela.

– Oh, boa tarde – disse ela com uma vénia. – Estive a tomar chá com a

princesa Augusta.

– Que simpático. São amigas?

– Algo do género – esquivou-se Agatha.

– É muito bom vê-la – disse ele.

Falava um inglês perfeito e o sotaque dele era encantador.

– Digo o mesmo – respondeu Agatha.

– Posso acompanhá-la? – inquiriu ele.

– Com certeza.

Adolfo sorriu amistosamente.

– Com a iminente nova chegada, creio que ficarei em Inglaterra mais

tempo do que o previsto.

– Que bom para si. Quer dizer, presumo que seja bom. Talvez tenha

deveres para os quais precise de voltar.


– Tenho, claro, mas nada que não possa esperar. Não é todos os dias que

um homem pode testemunhar o nascimento do seu sobrinho. – Inclinou-se

para a frente com um sorriso algo matreiro. – Que, por acaso, é um futuro

rei.

– Pode ser uma menina – lembrou Agatha.

– Verdade. E se for esse o caso, desejo ao rei Jorge toda a sorte do

mundo. O meu pai faleceu quando a Carlota tinha apenas oito anos. Tive de

me dedicar a criá-la.

– Porque estarei com a impressão de que me está a tentar dizer que ela

lhe deu muito trabalho?

– Bem mais que muito! – disse ele, rindo. – Mas a personalidade dela

beneficia-a. Creio que será uma ótima rainha.

– Creio que tem razão.

Ele voltou a sorrir-lhe. Agatha sentiu um pequeno aperto na barriga.

Quando é que um homem tão bonito havia namoriscado com ela? Fora

prometida a Herman aos três anos de idade, e os pais dela mantiveram-na

arredada da vida social até ao casamento. Não havia necessidade de debutá-

la se já tinha o seu par escolhido.

– Acha que a rainha tem saudades da sua casa em Mecklenburg-Strelitz?

– perguntou Agatha.

– Acho que sente falta de algumas coisas, sim – respondeu Adolfo. –

Espero que sinta a minha falta!

Agatha riu-se.

– Suponho que ela sinta falta de alguma da liberdade – acrescentou. –

Mas com a perda da liberdade ganhou um grande poder. Se eu bem conheço


a minha irmã, sei que ela gosta desse poder.

Agatha voltou a rir. Que divertido era aquilo. Que agradável surpresa

após uma tarde tão tensa com a princesa Augusta.

– Mas ela sente-se sozinha, por vezes – disse Adolfo. – Fico feliz por ela

a ter a si.

– É uma honra ser sua amiga.

– Para quem está no poder, pode ser difícil encontrar amizades genuínas

– disse Adolfo. – Estou certo de que encontrará outras, com o tempo. Mas

para já tem-na a si e isso é uma coisa boa.

– Obrigada – disse Agatha. – Ou, deveria dizer, danke.

Adolfo deu uma gargalhada deliciada.

– Danke shön – disse ele –, caso queira mostrar-se verdadeiramente

agradecida. – Debruçou-se em direção a ela com um brilho no olhar. –

Significa «muito obrigado». Não quero aconselhá-la a dizer uma coisa sem a

esclarecer acerca do seu significado completo.

– Bem, agora estou mesmo verdadeiramente agradecida.

Ele sorriu.

Ela sorriu.

Chegaram à porta da frente do palácio e Adolfo acompanhou-a até à sua

carruagem.

– Lady Danbury – disse ele –, uma vez que estarei em Londres mais

tempo, pergunto-lhe se a poderei visitar.

Agatha quase tropeçou nos próprios pés.

– A mim?
– Sim. Já terminou o luto, não já? Ou estou equivocado?

– Já terminei o luto – disse ela. – Ou quase. Meio-luto – explicou,

apontando para o vestido cor de lavanda.

– Ah. Nesse caso, espero que não me considere demasiado ousado.

– Não – disse ela.

– Então posso visitá-la?

– Gostaria muito.

Adolfo pegou-lhe na mão para a ajudar a subir para a carruagem. Agatha

virou-se para a frente, como era seu hábito, mas, meio minuto ou qualquer

coisa assim depois de terem arrancado, virou-se para trás.

O duque Adolfo ainda estava a olhar para ela.

CASA DE DANBURY

QUARTO DE LADY DANBURY

...

NESSA NOITE

Agatha estava sentada no seu toucador enquanto Coral lhe preparava o

cabelo para se deitar. Uma tarefa muito mais simples do que a da noite

anterior. Não tinha planos para ir a lado nenhum no dia seguinte, além da

sua sala de estar.

– Coral – disse –, creio ter resolvido o meu problema.

Coral esgueirou-se para poder olhá-la no rosto.

– Pediu à princesa Augusta? Ela vai tratar de manter o título?

– Não. Ela foi intransigente, como sempre.

– Então…
– Falei com o irmão da rainha.

– O príncipe Adolfo? Que pode ele fazer?

– Ele disse que gostava de me cortejar. Eu disse que sim.

– Um príncipe! – disse Coral.

– Tecnicamente, acho que ele deve ser duque.

– Seja como for! – exclamou Coral.

Agatha mordia pensativamente o lábio inferior.

– Creio que casarei com ele.

– Ele é alemão – apontou Coral.

– É um homem simpático. Seguramente mais simpático do que alguma

vez foi o lorde Danbury. Fez-me rir. Várias vezes.

– Bem, isso de certeza que o lorde Danbury nunca fez.

Agatha anuiu com a cabeça.

– É senhor das suas terras, e não por causa de nenhuma experiência. O

título dele é mesmo dele.

Coral pestanejou rapidamente, tentando assimilar tudo aquilo.

– Terá de aprender alemão.

– E aprenderei. – Sorriu e deu uma palmadinha no braço de Coral. – E tu

também.

– Eu? – disse Coral com alguma surpresa.

– Eu não sobreviveria sem ti. Decerto que o sabes.

– Acha que eu sou suficientemente esperta para aprender alemão?

– Claro que és. Eu já aprendi um bocadinho esta tarde. Danke schön.


– Que quer isso dizer?

– «Muito obrigada».

– É útil.

– Quase tão útil como «Onde está o penico»?

Deram as duas umas gargalhadas à conta daquilo.

– As pessoas na Alemanha são simpáticas? – perguntou Coral.

– A rainha é simpática. O irmão dela é muito simpático.

– Alemanha – disse Cora. – Imaginem só.

Agatha acenou com a cabeça.

– Imaginem só.
Carlota

PALÁCIO DE KEW

OBSERVATÓRIO

...

2 DE JULHO DE 1762

Haviam já passado vários meses desde que Carlota se mudara para Kew.

Jorge recuperara algum peso, e as suas feridas e urticária haviam sarado até

já não serem visíveis. Carlota decidira que aquela seria a verdadeira lua-de-

mel deles. Estavam relativamente sozinhos e podiam desfrutar da companhia

um do outro.

Podiam tornar-se amigos, tanto quanto amantes.

Jorge não voltara a ter nenhum episódio, mas Carlota aprendera a

identificar os sinais de quando ele estivesse em dificuldades. As mãos dele

podiam tremer. Ele fecharia os olhos de uma maneira estranha, tremente,

como se estivesse a lutar contra os seus próprios pensamentos. Por vezes,

repetiria algumas palavras em voz alta, normalmente sobre Vénus, ou o

Trânsito de Vénus, ou o ano de 1769, que ela agora sabia ser a data em que

se esperava que o Trânsito de Vénus voltasse a ocorrer.

– Pensei que fosse mais cedo – disse-lhe ela um dia, no observatório. –

Pela maneira como falavas disso.

Jorge ergueu o olhar com um sorriso. Parecia gostar de que ela lhe

interrompesse o trabalho.

– Na verdade, aconteceu no passado mês de junho.


– O quê? E não me disseste?

– Não estavas cá.

– Sim, mas é evidentemente muito importante para ti. Esperava que me

tivesses falado nisso.

Jorge ofereceu-lhe um sorriso seco.

– Durante a maior parte do tempo eu estava ocupado com outros

assuntos.

– Não sei como consegues fazer piadas sobre aquele monstro – disse

Carlota.

Ela queria ter mandado prender o doutor Monro por causa do tratamento

que ele administrara a Jorge, mas o marido convencera-a de que isso só

traria mais problemas.

Jorge encolheu os ombros.

– Às vezes, o humor é a única forma de lidar com as coisas.

– Se tu o dizes.

Carlota caminhou até ao telescópio, passando despreocupadamente os

dedos sobre o longo tudo. Tinha cuidado para não tocar em nenhum dos

botões ou em qualquer coisa que pudesse sair do lugar. Jorge costumava ter

tudo regulado com grande precisão.

– Como foi o Trânsito? – perguntou. – Foi glorioso?

– Infelizmente, daqui não o conseguimos ver por completo. É uma pena.

Não teria de viajar até muito longe. Só até à Noruega.

– E porque não foste?

Jorge olhou-a com indulgência.


– Eu sou o rei. Não posso simplesmente ir até à Noruega para ver as

estrelas.

– Pensava que isso era precisamente o tipo de coisa que podia fazer um

rei. É-te permitido algum dos prazeres da vida?

Jorge sorriu matreiramente.

– Tenho-te a ti.

Carlota deslizou para o lado dele.

– Lá isso tens. E mais de mim a cada dia.

Jorge tocou-lhe na barriga.

– Quando chega ele? O nosso pequeno rei.

– Em breve, parece-me. Muito em breve.

Ele debruçou-se e falou diretamente para a barriga.

– Olá, pequeno rei. Olá.

Carlota riu-se ao sentir um pontapé.

– Acho que ele acabou de retribuir o teu cumprimento. – Pegou na mão

dele e pousou-a sobre a barriga. – Espera só um bocadinho. Ele fá-lo-á de

novo.

– Tens a certeza?

– Ele nunca para.

Jorge sorriu.

– Um rapagão forte.

Carlota voltou a aproximar-se do telescópio.

– Posso espreitar?
Jorge seguiu-a.

– Claro que sim, embora não saiba bem o que haverá agora para ver. A

meio do dia e isso.

– Nuvens, talvez. Eu gosto de nuvens.

– Gosto de que gostes de nuvens.

Carlota revirou os olhos. Ele era incorrigível. E ela amava-o.

Espreitou pelo telescópio que, tal como ele prevenira, não revelava nada

de extremamente empolgante.

– Conseguirás ver o próximo Trânsito de Vénus? – perguntou.

– Se os nossos cálculos estiverem corretos, voltaremos a ter um

visionamento parcial.

Carlota afastou-se do óculo para olhar para ele.

– Podes viajar para uma localização melhor. Acho que o devias fazer.

– Infelizmente, isso é ainda mais difícil do que da última vez. Teria de ir

para as Américas. Ou para os Mares do Sul.

– Deuses. Devias ter ido à Noruega.

– Talvez. Mas temos a sorte de poder assistir a um visionamento parcial

de ambos os trânsitos. Não há muitas zonas geográficas com esse privilégio.

– O que acontecerá no seguinte. Em… – Carlota fez algumas contas

mentalmente. – 1787, certo?

– Errado, lamento.

– Não é de oito em oito anos?

– Infelizmente, não. Na verdade, é um ciclo de 243 anos.

Carlota olhava-o fixamente, certa de que devia tê-lo percebido mal.


– E, ainda assim, durou oito anos desta vez?

– Sim, faz muito sentido, de facto. São 105 anos, depois oito anos, depois

122 anos, depois outra vez oito anos.

– Muito sentido – repetiu ela.

– Bem, na realidade são 105,5 anos.

– Claro que são.

– Exato – disse ele, escapando-lhe o sarcasmo de Carlota. – E 121,5 anos,

também.

Carlota não conseguiu evitar sorrir. Adorava vê-lo assim, apaixonado,

mesmo que fosse por um assunto acerca do qual ela pouco sabia.

– Como é? – perguntou.

– O Trânsito?

– Sim. Dizes que pode ser observado. Como é?

– Um ponto preto a viajar ao longo do Sol. Vê. – Foi até à sua pilha de

mapas e começou a mexer neles. – Tenho algures um diagrama. Dá-me só

um bocadinho… Aqui está! – Puxou uma folha grande de pergaminho e

estendeu-a sobre uma mesa.

Carlota olhou para lá. Era exatamente como ele dissera. Um pequeno

ponto preto a viajar ao longo de uma grande esfera.

– É mais impressionante ao vivo – disse Jorge.

– Imagino que seja.

Carlota sentou-se, sentindo-se subitamente cansada de estar em pé.

– Gostava de aprender mais sobre astronomia.

– Sim, já tinhas dito.


– Mas acho que ainda gostava mais de aprender sobre outras ciências.

Coisas que não estejam tão distantes.

– Como o quê?

Ela pensou um pouco.

– Medicina, talvez. Não – decidiu. – Locomoção.

– Locomoção? – Jorge parecia surpreendido. E agradado. – O que queres

dizer com isso?

– Pensa no tempo que se demora a viajar de um lado para o outro.

Gostava de voltar a visitar a minha terra um dia. Tenho memórias muito

queridas de Schloss Mirow, e adorava mostrar-to. Mas é muito pouco

praticável. Tu és rei. Se não tens tempo para visitar a Noruega para ver o

Trânsito de Vénus, não terás tempo para viajar até Mecklenburg-Strelitz para

conhecer a casa da minha infância.

– Talvez a casa da tua infância tenha mais importância para mim do que o

Trânsito de Vénus.

– Agora sei que estás só a tentar ser um poeta romântico – repreendeu-o.

– Mas pensa… E se houvesse uma maneira de nos deslocarmos mais

depressa do que o fazemos agora?

– Melhores estradas – sugeriu ele. – Isso faria uma diferença gigante. Mas

é dispendioso.

– Talvez. Não creio que tenha alguma solução. Na verdade, tenho a

certeza de que não tenho. Mas acho que seria um assunto interessante sobre

o qual ler e estudar.

– Então temos de te arranjar livros. Eu tenho um homem que me trata

disso com frequência.


– Que conveniente é ser rei.

Jorge lançou-lhe um olhar.

– Na maior parte do tempo.

Não era exatamente a abertura por que ela esperava, mas decidiu

aproveitá-la, de qualquer maneira.

– Como te tens sentido ultimamente, meu amor?

Jorge fez um gesto na direção da cabeça, com o dedo a apontar como se

fosse uma arma.

– Referes-te a isto?

– Talvez tivesse usado um gesto diferente – disse ela.

– Melhor. – Depois pareceu mudar de ideias e disse: – Melhorado. – Foi

até à secretária remexer nalguns papéis. – Não quero falar sobre isso.

– Quem me dera que sentisses que podes falar.

Ele suspirou.

– É muito difícil explicar.

– Podias tentar.

– Não quando me estou a sentir tão bem. Porque haveria de me querer

lembrar daquilo? – Esticou os braços, apontando para a gloriosa sala

redonda do seu observatório. – Tenho tudo isto. Tenho-te a ti. A minha

cabeça anda a portar-se bem. Porque quereria eu pensar em coisas

desagradáveis se não há agora nada de desagradável?

– Para aprender a evitá-las?

– Isso não é exequível – disse ele com assertividade. – Confia em mim.

Eu tentei. Posso criar um mundo pacífico, e isso ajuda um pouco, mas não é
infalível. Não há como saber e não há como o evitar. E é por isso que eu sou

tão perigoso.

– Jorge. – Carlota esticou a mão para pegar na dele, mas ele não deixou. –

Tu não és perigoso. Tu és doce. E bondoso. És um rei maravilhoso, e serás

um pai maravilhoso. Ficaremos apenas nós nesta bolha de amor. Tu, eu e,

em breve, o bebé. Seremos felizes.

– Eu nunca fui tão feliz como sou agora – disse-lhe Jorge.

Carlota voltou a estender-lhe a mão, e desta vez ele pegou-lhe.

– Só nós os três – disse ela.

– Só nós os três.

E, durante algum tempo, assim foi.

PALÁCIO DE KEW

SALA DE ESTAR

...

8 DE JULHO DE 1762

– Chegou a princesa Augusta, Vossa Majestade.

Carlota olhou para Brimsley, sem se preocupar em disfarçar o seu

desagrado.

– Há alguma possibilidade de a convencermos de que não estamos cá?

– Nenhuma – confirmou ele. – Ela já se demonstrou extremamente

intratável.

– Bem, trá-la, então – disse Carlota com um suspiro. – Mas só aqui à sala

de estar. Em nenhuma circunstância está ela autorizada a ver o rei.


A mãe do rei não era uma presença apaziguadora, e Carlota estava

determinada a manter a vida de Jorge o mais livre de stresse e conflitos

possível.

– Vossa Majestade – disse Augusta quando entrou. – Está com bom ar.

Carlota levantou-se para a cumprimentar, embora, na verdade, não tivesse

de o fazer. Ela suplantava Augusta na hierarquia, afinal de contas. Ainda

assim, pareceu-lhe um gesto educado perante a sogra, especialmente uma

sogra que ela estava prestes a desiludir.

– Obrigada – respondeu, avançando para beijar Augusta em ambas as

faces. – Maior a cada dia, na verdade.

– Isso são ótimas notícias. É desconfortável para si, mas maravilhoso

para o país.

Carlota deu uma palmadinha na barriga.

– Faço o que posso.

– Eu fiz o que podia nove vezes – disse Augusta com notável serenidade.

– Talvez ainda me venha a ultrapassar.

Tendo em conta que Carlota já não se lembrava do número de vezes que

vomitara nos primeiros tempos da sua gravidez, não lhe apetecia imaginar-

se a alcançar os dois dígitos daquilo.

– Essa é uma corrida que eu poderei muito bem deixá-la ganhar – disse,

rindo.

– Desde que produza pelo menos um rapaz saudável – disse Augusta. –

Para já. Quererá um extra para o que der e vier. – Augusta deve ter reparado

no ar de choque no rosto de Carlota, porque acrescentou: – Não pense que

sou insensível no que toca aos meus filhos. Amo-os a todos. Muito. Não
podemos perder de vista o facto de pertencermos à realeza e de termos

deveres e responsabilidades diferentes do resto do mundo. Veja, por

exemplo, o Jorge.

– Em que sentido? – perguntou Charlote cautelosamente.

Voltou a sentar-se, indicando a Augusta que se lhe deveria juntar.

– Ora, estávamos convencidos de que ele morreria pouco depois de ter

nascido. Ele foi muito prematuro.

– Sim, ele contou-me.

– Mesmo durante os primeiros anos, era uma preocupação constante. É

sempre uma preocupação, mesmo quando os filhos nascem gordos e

saudáveis. Eu e o pai de Jorge ficámos muito mais descansados quando

chegou o príncipe Edward. Só nove meses e meio depois – acrescentou ela

com orgulho.

– Nove meses e meio? – perguntou Carlota, nauseada.

– Eu levo as minhas responsabilidades muito a sério.

– E é admirável por isso – disse Carlota.

– Ora bem – disse Augusta, focando-se no que a trouxera ali. – A razão

da minha visita. Preciso de falar com o rei.

– Ah! – disse Carlota, entrelaçando as mãos uma na outra em frente ao

peito, como se fosse uma pequena boneca. – Lamento, mas isso não será

possível.

Augusta estreitou a boca.

– Não compreendo.

– O rei não recebe visitas de momento.


– Eu não sou uma visita. Sou a mãe dele.

– Será muito bem-vinda noutra ocasião futura.

– Estou aqui agora.

Carlota moldou a sua expressão para transmitir desgosto.

– O Jorge não está disponível agora.

– Ele sabe ao menos que eu estou aqui?

Carlota encolheu os ombros.

– Ele está ocupado.

– Posso sentir-me obrigada a recear que esteja a reter o rei contra a sua

vontade – avisou Augusta. – O que seria…

– Traição – adiantou Carlota, quase alegremente.

– Sim. Podia ser considerado traição não me permitir que o veja.

– Lamento, mas o rei não deseja receber ninguém neste momento.

– Atreve-se a falar por ele? – ciciou Augusta. – Não é o rei.

– Não sou – respondeu Carlota, decidindo que estava na altura de jogo

sujo. – Mas sou a sua rainha.

Augusta arfou.

– Bem. Está garantidamente mais confortável na sua posição.

Carlota bebeu um gole do chá.

– Escolheu-me bem.

– A Carlota carrega apenas um rei no ventre – disse Augusta com nitidez.

– O outro rei? O Jorge? Eu carreguei esse rei. E se o seu rei se pode

esconder, confortável e quente no abraço da sua barriga, o meu rei não pode.
Pôs-se de pé, caminhando lentamente pela sala, até se virar com uma

expressão violenta no rosto.

– Como é que não sabe aquilo que eu sempre percebi? Desde o momento

em que um rei nasce, não há esconderijo para ele. Não há lugar para doença

ou fraqueza. Só existe o poder. Eu fiz tudo o que pude para lhe garantir o

poder dele. E a Carlota está a desfazer o que eu fiz.

– Não é isso…

– Ele nem sequer tenta – disse Augusta de supetão. – E a Carlota

permite-lho. Não pode permitir-lhe que se esconda. Ele tem um país. Tem

um povo. Tem de governar. O lorde Bute está à espera. O governo começa a

ficar inquieto. E desconfiado. O Jorge tem de lidar com o Parlamento.

– Vossa Alteza… – começou Carlota, mas, na verdade, não sabia o que

dizer. Augusta tinha razão.

– Isto agora recai sobre si – disse Augusta ao avançar a passos largos para

a porta. – Ele é seu.

Carlota sabia que Augusta não queria dizer aquilo. Ela mais depressa

deixaria de respirar do que de se intrometer.

Mas desta vez não estava errada. Jorge era rei. E não se podia esconder

para sempre, independentemente de quão Carlota quisesse mantê-lo

protegido e seguro.

Com um suspiro exausto, levantou-se e dirigiu-se ao sítio onde sabia que

o encontraria.

PALÁCIO DE KEW

OBSERVATÓRIO

...
DEZ MINUTOS DEPOIS

– Carlota – disse Jorge alegremente quando a viu entrar. – Como corre o

dia?

– A tua mãe esteve cá.

Os dedos de Jorge, que estavam a manobrar um dos seus instrumentos

científicos, imobilizaram-se.

– Eu não a quero ver.

– Eu sei. Mandei-a embora.

Jorge sorriu. Um sorriso de amor e agradecimento. Ela compreendia-o.

Protegia-o. Dava-lhe aquilo de que ele precisava. Ela sabia quão grato ele

lhe estava por isso.

Tal como sabia que agora tinha de traçar uma linha entre aquilo de que

ele precisava e aquilo que ele queria.

– No entanto – disse Carlota –, também nós temos de ir embora. De volta

para a Casa de Buckingham.

– Não – disse Jorge. – Carlota, não.

– Tu tens de falar ao Parlamento. O povo precisa do seu rei.

– Eu não estou preparado.

– Podes estar. Estarás.

– Não. – Abanou a cabeça. – Terei de fazer um discurso. De escrever um

discurso.

– E será brilhante. Eu apoio-te em tudo. Além disso, a tua horta na Casa

de Buckingham tem sido terrivelmente negligenciada. Tenho a certeza de

que agora está coberta de ervas daninhas.


– Sabes bem que os jardineiros nunca permitiriam isso – disse Jorge.

– Certo – concedeu ela –, mas nunca farão as coisas como tu farias.

Jorge sorriu ligeiramente. Prendeu o lábio entre os dentes.

– Desta vez será diferente – disse-lhe ela. – Desta vez estamos juntos.

Somos um só.

Jorge tocou lhe na barriga.

– Somos três.

– Somos três – concordou ela. – E um só. – Pôs-se em bicos de pés para

o beijar. – Tu és um excelente rei, Jorge. E um homem ainda melhor. Tu

consegues fazer isto.

Jorge anuiu com a cabeça, mas com alguma hesitação.

– Eu consigo fazer isto.

Carlota conseguiu sair da sala e atravessar todo o corredor antes de se

encolher sob o peso do alívio. Santo Deus, esperava que sim, que ele o

conseguisse.

CASA DE BUCKINGHAM

ESCRITÓRIO DO REI

...

11 DE AGOSTO DE 1762

– Consigo sentir que me estás a observar.

Carlota, envergonhada, saiu do seu posto, à entrada da porta. Já espiava

Jorge há vários minutos.

– Gosto de te observar.
Jorge ergueu o olhar e passou a mão pelo cabelo. Tinha os dedos sujos de

tinta.

– Assim dificultas-me a escrita ainda mais.

– Tenho a certeza de que te estás a sair muito bem.

– Isto é um discurso ao Parlamento. Não me posso sair bem. Tenho de ser

brilhante.

Carlota avançou até à secretária dele, que estava coberta de rascunhos

abandonados. Pegou no do topo e passou-lhe os olhos.

– Estas são claramente a palavras de um homem brilhante – disse-lhe.

Fez um gesto na direção dos outros rascunhos. – E estas também.

– Não leste essas.

– Não preciso. Tu és brilhante, Jorge. Ergo, também as tuas palavras o

serão. Tenho fé em ti.

Mas ele não parecia ter fé em si mesmo.

Carlota voltou para ao pé dele e pousou-lhe as mãos nos ombros,

massajando-lhe os músculos.

– Talvez precises de alguma distração – disse ela, com uma pitada de

atrevimento.

– Distração?

– Sim. Creio ter exatamente aquilo que te pode ajudar.

Curvou-se e beijou-o naquele ponto macio atrás da orelha.

Mas ele não se deixaria demover da sua tarefa. Nem da sua ansiedade.

– Não preciso de distração. Preciso, isso sim, de proferir um discurso

perfeito diante do Parlamento inteiro. Ou queres que eu deixe de ser rei?


– Jorge, não…

– Talvez devesse simplesmente render-me e oferecer-lhes a minha cabeça.

Pôr termo à monarquia. Deixá-los chamarem-me Jorge, o Louco, e rirem. É

isso que pretendes?

– Para.

Carlota não suportava ouvi-lo falar daquela maneira.

– Desculpa – disse ele imediatamente. – Isto tem de ser… – Fechou os

olhos com força e mexeu uma das mãos junto ao rosto, como se estivesse a

cortar fatias finas de ar. – Isto é importante. Talvez fosse melhor deixarmos

as distrações para outra altura.

Na verdade, ele tinha razão. O discurso era importante. Era crítico. E, por

muito que ela tentasse, nunca poderia compreender em absoluto o tipo de

pressão a que ele estava sujeito para fazer aquilo bem. Mas…

Encolheu-se.

Agarrou-se à barriga.

– Jorge?

– Agora não, Carlota. Tenho de regressar ao trabalho.

Sentiu outro apertão. Agora, com mais força.

– O bebé… – disse, com toda a calma de que foi capaz. – Está a chegar.

Jorge voou da cadeira.

– Agora?

– Acho que sim. – Olhou para ele com um sorriso hesitante. – É a

primeira vez que faço isto.

Jorge correu para a porta, com um pânico absoluto a tomar-lhe o rosto.


– Tens a certeza?

– Tanta quanto posso.

Abriu a porta de par em par e berrou a plenos pulmões:

– REYNOLDS!

Carlota quase riu. Quem mais chamaria ele no momento em que a sua

mulher estava a entrar em trabalho de parto?


Jorge

CASA DE BUCKINGHAM

...

ALGUMAS HORAS DEPOIS

Chegara a hora. O bebé ia nascer e Jorge jurava perante Deus que aquele

seria o parto mais fácil da história da humanidade.

Ele era rei. Isso tinha de contar para alguma coisa.

Carlota fora levada para o quarto, meticulosamente transformado numa

sala de partos. Jorge apenas o vira de relance; fora imediatamente mandado

embora por, bem, toda a gente.

Mantivera-se à escuta atrás da porta, no entanto, e de vez em quando saía

uma criada para ir buscar toalhas ou chá ou qualquer coisa do género, e a

pobre rapariga era então interrogada pelo rei.

Uma ou duas desfizeram-se em lágrimas.

Mas, pelo menos, estava a receber atualizações regulares.

Carlota estava bem.

Mas com dores.

Mas isso era normal.

Mas estava com dores.

Mas, Vossa Majestade, isso é normal. E ela está a aguentar-se como uma

rainha.

– Que raio quer isso dizer? – perguntara ele à criada.


Ela rebentou em lágrimas. E vão três.

Foi nessa altura que decidiu que o médico já há muito devia ter chegado

para assistir ao parto. Carlota era a rainha da Grã-Bretanha e Irlanda, por

amor de Deus. Deviam estar com ela todas as mentes médicas do país.

Exceto o doutor Monro. Escusado será dizer.

Avançou pelo corredor afora à procura de Reynolds. Ele era a única

pessoa em quem Jorge confiava num momento como aquele, exceto, talvez,

Brimsley, mas, por algum motivo, Brimsley fora admitido na sala de partos.

Estava há quatro horas a olhar pela janela, assim haviam dito a Jorge.

– Reynolds! – berrou Jorge.

Dois criados vinham apressados na direção dele.

– Saiam-me do caminho! – rugiu Jorge.

Os criados fugiram dali.

Jorge derrapou numa esquina, conseguindo parar mesmo antes de

esbarrar em Reynolds.

– Onde está o médico? – perguntou Jorge. – Porque é que ele ainda não

chegou? Ela não pode fazer isto sem um médico. Ópio! Precisa de ópio!

– Eu andava à sua procura para lhe dizer que o médico real já chegou. Há

momentos. Creio que já está com Sua Majestade.

Jorge demorou cerca de meio segundo a assimilar a informação, depois

deu meia-volta e correu de volta para o sítio de onde viera. Só que agora,

quando chegou ao quarto de Carlota, viu seis homens ajuntados à porta.

Santo Deus. Não havia direito à privacidade?

– Vossa Majestade! – disseram os homens em coro.


Jorge tentou cumprimentá-los a todos.

– Arcebispo. Primeiro-ministro. Lorde Bute. Olá. Obrigado por terem

vindo. Se me dão licença.

Passou por eles de raspão para se dirigir ao quarto, onde poderia

conferenciar com o médico, mas o arcebispo agarrou-lhe no pulso.

– Vossa Majestade – disse lorde Bute –, seguramente não vai entrar na

sala de partos. Estão a decorrer trabalhos femininos.

– Aguardaremos cá fora – disse o arcebispo serenamente.

– Certo – disse Jorge, batendo nervosamente com as mãos nas coxas. –

Certo.

Andou de um lado para o outro. Olhou para Reynolds em busca de apoio.

Andou mais um pouco. Estremeceu quando o ar foi rasgado por um grito.

– Carlota – murmurou, disparando para lá.

Dessa vez foi Reynolds quem lhe pousou a mão no braço.

– Isto é normal – disse, na sua voz baixa e tranquilizadora.

– E sabes isso… como?

– Hã, ouvi umas coisas.

– Ouviste umas coisas – repetiu Jorge em tom zangado.

– Eu tenho irmãs. Ambas têm filhos.

– Estiveste presente dos seus partos?

Jorge não sabia porque estava a ser tão idiota com Reynolds.

Provavelmente só precisava de se comportar como um idiota com alguém, e

não podia propriamente fazê-lo com o arcebispo.


– Não estive, não – disse Reynolds naquele seu jeito sempre calmo. –

Mas elas são ambas pródigas contadoras de histórias, e fui informado acerca

de todos os pormenores.

Mais um grito, talvez não tão perfurante como o anterior.

– Isto não pode ser normal – disse Jorge.

Reynolds abriu a boca para falar, mas nesse momento a porta abriu-se e

lady Danbury espreitou para o exterior.

Jorge olhou-a, surpreendido. Quando tinha ela chegado?

– Vossa Majestade – disse ela. – A rainha chama por si.

– Ele não pode entrar aí – exclamou o arcebispo.

Lady Danbury olhou para Jorge com um olhar firme e direto.

– Vossa Majestade…

Jorge virou-se para o arcebispo.

– Por acaso gosta de ser arcebispo de Canterbury? Gostava de

permanecer arcebispo de Canterbury?

O arcebispo recuou o queixo até ao pescoço.

– Vossa Majestade…

Jorge aproximou o rosto do dele.

– Acha que poderá permanecer arcebispo de Canterbury se desafiar o

chefe da Igreja Anglicana? SAIA DA FRENTE!

A boca do arcebispo formou um arco invertido que bem poderia figurar

numa tartaruga. Com um balbuciar de concordância, saiu da frente de Jorge.

– Por aqui, Vossa Majestade – disse lady Danbury, acompanhando-o até

ao lado de Carlota.
– Minha querida – disse ele, segurando-lhe na mão. – Estou aqui.

Carlota conseguiu formar um sorriso, ainda que torto.

– Não quero fazer isto.

– Acho que já é demasiado tarde. – Deu-lhe um sorriso dos dele,

procurando oferecer-lhe força através da boa disposição. – Mas eu estou

contigo. Ficaria com as tuas dores se pudesse.

– Talvez isso possa ser uma nova experiência científica – disse Carlota.

– Vou meter mãos à obra de imediato.

A piada que Jorge tentou fazer deu para ambos rirem um pouco, o

suficiente para os entreter até Carlota ser tomada por mais uma contração.

– Aaaaaaahhh! – gemeu.

– Não se pode fazer nada quanto às dores? – perguntou Jorge.

– Eu já lhe dei láudano – disse o médico. – Mas não arrisco a dar-lhe

mais. A dosagem tem de ser precisa.

Jorge virou-se para lady Danbury.

– Algo em que ela possa morder. O que poderia ajudar? Já passou por

isto, certo?

– Quatro vezes, Vossa Majestade – confirmou lady Danbury.

– E? O que acha?

Lady Danbury deitou um olhar ao médico e depois disse a Jorge:

– Ela está a perder sangue.

– Isso é normal?

– É – disse lady Danbury, hesitante –, mas parece ser muito.


– Doutor! – berrou Jorge. – O que é que se passa? Porque é que há tanto

sangue?

– Uma mulher tem de perder sangue durante o parto – disse o médico

condescendentemente. – Faz parte do interior…

– Eu sei anatomia – disse Jorge de supetão. – O que eu quero saber é

porque está ela a perder tanto sangue.

O médico voltou a posicionar-se entre as pernas de Carlota. Pressionou-

lhe a barriga e depois inseriu a mão nela. Jorge encolheu-se; cada

movimento do médico fazia Carlota gemer de dores.

– O bebé está na posição inversa – disse por fim o médico. – Teremos de

aguardar a evolução natural.

– Quanto tempo? – perguntou Jorge.

O médico encolheu os ombros.

– Não há como saber. É diferente consoante cada paciente.

Jorge olhou para lady Danbury. Ela abanou a cabeça.

– Tudo isto é muito natural – disse o médico. – É tudo normal.

– Doutor – disse Jorge –, se deixássemos à natureza todas as decisões…

Carlota voltou a gritar. Jorge apressou-se a voltar para ao pé dela,

limpando-lhe o pescoço e a testa com um pano frio.

– Carlota – tentou brincar –, isto não pode ser. Vais acordar os vizinhos.

– E tantos vizinhos nós temos – murmurou ela.

– Linda menina – disse ele, apertando-lhe a mão.

Conseguir brincar naquela situação… Ela era magnífica. Ele soubera-o

desde o primeiro instante em que a vira. Mas agora ela precisava da ajuda
dele.

Virou-se para o médico.

– Tive um cavalo, o meu preferido quando era miúdo. Ele ficou na

posição inversa ao nascer. Os trabalhadores dos estábulos… Já o vi fazerem

também a ovelhas, bezerros… Há formas de ajudar nesta situação. De virar

o bebé. Não há?

O médico ficou visivelmente horrorizado.

– Há métodos, sim. No entanto, com uma paciente da realeza…

– Prepare-os – ordenou Jorge. – Já!

– Vossa Majestade, ela não é nenhuma égua. Nem ovelha.

– Todos somos animais, doutor, e é evidente para mim que este bebé tem

de sair. Se conseguimos fazê-lo a um bezerro ou a um cordeiro, com certeza

que o poderemos fazer a um ser humano minúsculo.

– Em que posso ajudar? – perguntou lady Danbury.

– Nós os dois teremos de segurá-la enquanto o doutor trabalha – disse

Jorge.

Ela anuiu com a cabeça e pôs-se lestamente ao seu lado.

– Creio que precisamos de te mudar de posição – disse Jorge a Carlota. –

Só aqui para a ponta. Põe os braços à roda do meu pescoço. – A lady

Danbury, disse: – Segure-a nos ombros para mantê-la quieta.

– Estou pronto – disse o médico.

– Eu não – gritou Carlota.

– Estás, sim, meu amor – disse Jorge. – Lembras-te? Juntos. Juntos

conseguimos fazer tudo.


– É a mulher mais forte que eu conheço – disse lady Danbury.

– E conseguirias ter saltado aquele muro se não tivesses tantas saias

vestidas – disse Jorge. – Embora eu esteja muito contente por não teres

conseguido.

– Preciso de que me ensine a praguejar em alemão – disse lady Danbury.

– Como? – perguntou Carlota.

Lady Danbury olhou para Jorge e encolheu os ombros. Juntos estavam a

ser bem-sucedidos na tarefa de distrair Carlota enquanto o médico movia o

bebé.

– Ela gosta de inventar palavras – disse Jorge a lady Danbury. – Sabia?

– Sabia, sim. É uma mania alemã.

– É uma mania alemã – conseguiu Carlota dizer.

– Mais uma coisa que me poderá ensinar – disse lady Danbury.

– Para que quer aprender… AU!... alemão? – perguntou Carlota,

arquejando durante a dor.

– Oh, para expandir a minha mente. Além disso, somos amigas. Não seria

divertido termos uma língua secreta?

– Não seria tão secreta quanto isso – disse Jorge. – Metade do palácio

fala alemão.

– Está quase – disse o médico.

Graças a Deus, pensou Jorge.

– Ouviu? – disse lady Danbury. – Está quase, Vossa Majestade. Em breve

estará…

– Pronto – anunciou o médico. – O bebé foi virado.


Todos relaxaram de alívio.

– E agora? – perguntou Jorge.

– Esperamos por ele, como qualquer outro bebé.

– Está a falar a sério? – praticamente gritou Jorge.

– Tenho fé que não demorará muito – disse o médico.

E, de facto, não demorou. Trinta minutos depois, Jorge segurava nos

braços o seu filho recém-nascido.

– Ele é perfeito, Carlota. Queres pegar-lhe?

Carlota anuiu com a cabeça.

Cuidadosamente, Jorge depositou-lhe o bebé nos braços. Assim que

estavam bem instalados, virou-se para lady Danbury, em quem tinha,

sinceramente, mais confiança do que no médico.

– Parece-lhe estar tudo bem agora?

– Sim – disse ela. – Já saiu a placenta e o sangue estancou. – Olhou para

o médico e depois de novo para Jorge. – Se me permite que fale à vontade,

Vossa Majestade.

– Com certeza.

Agatha falou baixinho.

– Acredito que Sua Majestade… e Sua Majestadezinha… devem as vidas

a Vossa Majestade. Eu não sou perita em partos…

– Além de já o ter feito quatro vezes… – interpôs Jorge.

– Além de já o ter feito quatro vezes – repetiu Agatha com um sorriso –,

mas as mulheres falam. Eu ouço histórias. Uma mulher pode ficar em


trabalho de parto infinitamente com um bebé na posição inversa. Era mesmo

altura de fazer alguma coisa.

Jorge engoliu em seco. Não sabia bem se as palavras dela o inflavam de

confiança ou o enchiam de pavor. Podia ter corrido tudo tão mal.

– Obrigado – disse, por fim. – Por estar aqui. Foi um tremendo apoio para

a rainha. E para mim.

Os olhos de Agatha alargaram com o elogio, que ela aceitou com um

aceno de cabeça gracioso. Depois apontou para a porta.

– Acho que há umas quantas pessoas que gostariam de conhecer o novo

príncipe.

Jorge ergueu as sobrancelhas.

– A sua mãe – esclareceu lady Danbury – e o irmão de Sua Majestade.

– Ah. Suponho que será melhor não os deixar à espera.

– Sim – disse lady Danbury com um risinho sabedor.

– É verdade – disse Jorge. – Já conhece a minha mãe.

– Ela convidou-me várias vezes para tomar chá – confirmou lady

Danbury.

– Não nos livraremos dela enquanto não vir o bebé – disse Jorge – e não

me apetece convidá-la a entrar. A Carlota tem de descansar. Pode ficar com

ela enquanto eu levo o príncipe lá fora?

– Com certeza – disse Lady Danbury.

Jorge foi ao pé de Carlota e depositou-lhe um beijo na testa.

– Emprestas-mo um bocadinho?

– Sim – disse Carlota. – Estou, na verdade, muito cansada.


– Descansa – disse Jorge. – Lady Danbury ficará contigo enquanto eu

apresento o nosso filho à minha mãe e ao teu irmão.

Carlota anuiu com a cabeça, sonolenta, e fechou os olhos. Jorge pegou

cuidadosamente no bebé ao colo, embrulhadinho, e levou-o até ao corredor,

onde aguardavam Augusta e Adolfo.

– O meu neto! – exclamou Augusta.

– É magnífico – disse Adolfo. – Como está Sua Majestade?

– Num merecido repouso – disse Jorge.

Augusta aproximou-se.

– É saudável, o bebé? Oh, quem me dera poder contar-lhe os dedos das

mãos e dos pés.

– Garanto que tem dez de cada – disse Jorge. – E fui avisado pela

enfermeira de que em circunstância alguma devo libertá-lo deste seu

embrulhinho.

– Parece uma obra de engenharia, este conjunto de dobras – brincou

Adolfo.

Augusta espreitou o rosto do pequeno príncipe.

– Tão belo – disse baixinho. E depois, após lançar um olhar furtivo a

Adolfo, perguntou discretamente a Jorge: – Há alguns sinais de…

– De quê, mãe? – perguntou Jorge, desafiando-a a dizê-lo.

Mas Augusta estava demasiado ciente da presença de Adolfo, por isso

apenas disse:

– Estou só a perguntar…
– Ele será o nosso próximo rei – disse Jorge. Olhou a mãe nos olhos. –

Poderia ele ser qualquer outra coisa que não perfeição?


Carlota

CASA DE BUCKINGHAM

QUARTO DO BEBÉ

...

15 DE SETEMBRO DE 1762

– Vossa Majestade – disse Brimsley. – Ele precisa de si.

Carlota anuiu com a cabeça e apressou-se a sair do quarto do bebé. Já

devia estar com Jorge, mas o pequeno Jorge estivera inquieto e precisara de

um pouco mais de tempo dela do que era costume.

Chegara o dia. O discurso de Jorge ao Parlamento. Ele andara a trabalhar

tanto. Rascunho após rascunho do discurso. Carlota lera-os todos o

oferecera-lhe os seus pensamentos e opiniões, mas ainda era recente naquele

país. Havia subtilezas culturais que ela não compreendia totalmente.

– Como está ele? – perguntou a Brimsley.

– Nervoso. O Reynolds aparenta estar preocupado.

Carlota mordeu o lábio. Reynolds era tão estoico. Se ele parecia

preocupado, então Jorge estaria claramente a precisar de ajuda.

– Caminha comigo – disse a Brimsley.

– Eu caminho sempre consigo.

Aquilo fê-la sorrir.

– Lá isso é verdade.

– Se me permite que fale à vontade, Vossa Majestade…


– Também o costumas fazer com frequência.

Brimsley concordou com um aceno e depois disse:

– Creio que ele talvez apenas precise de alguma boa energia.

– Encorajamento, é isso?

– Sim, Vossa Majestade. Ele tem estado muito bem ultimamente. Não

concorda? Isto, provavelmente, são apenas nervos. Qualquer pessoa estaria

nervosa em tal situação.

– Isso é verdade – disse Carlota. – Até eu.

Brimsley conteve um sorriso.

– Não és tão estoico como o Reynolds, pois não? – murmurou Carlota.

– Perdão?

Carlota fez um gesto para encerrar a conversa. Haviam chegado à sala de

estar formal. Jorge caminhava de um lado para o outro em frente à janela,

proferindo palavras só com o movimento dos lábios e fazendo gestos com as

mãos. Reynolds observava-o com uma expressão de preocupação.

– Cheguei! – anunciou ela com uma voz animada e luminosa.

– Tenho estado à tua espera – disse Jorge.

Jorge estava magnífico no seu uniforme militar formal, mas tinha as mãos

a tremer.

– Estava com o bebé – disse Carlota. – Não estou atrasada. Ainda temos

muito tempo.

Jorge acenou com a cabeça, mas o gesto foi tremente, desajeitado.

– Estás muito bonito – disse Carlota, sacudindo um pedaço imaginário de

cotão do casaco dele. – Tens o discurso?


– Mesmo à mão – confirmou Jorge. – Embora esteja a repensar a secção

central sobre as colónias…

– O Parlamento apreciará todas as tuas ideias – garantiu-lhe Carlota. –

Trabalhaste tanto. Estás preparado.

Esticou-se para o beijar. Jorge encostou a testa à dela e o contacto

pareceu ajudá-lo a acalmar-se. Carlota deu-lhe as duas mãos. Segurou-lhes

pelo tempo suficiente para os tremores desaparecerem.

Jorge expirou longamente.

– Obrigado.

– Vai lá – disse Carlota.

Era agora ou nunca. E ambos sabiam que nunca não era uma opção.

Jorge partiu, com Reynolds imediatamente atrás dele. Carlota contou até

dez e depois virou-se para Brimsley.

– Ele vai ser brilhante – disse.

– Claro que sim, Vossa Majestade. Ele é o rei.

CASA DE BUCKINGHAM

SALA DE ESTAR DA RAINHA

UMA HORA DEPOIS

– Vossa Majestade.

Carlota ergueu o olhar e viu Reynolds à porta. Aquilo surpreendeu-a.

Não pensava que ele voltasse tão depressa.

E a expressão no rosto dele… não era boa.

O pânico começou a apertar-lhe o estômago.

– O que foi? O discurso não correu bem?


Reynolds olhou de relance para Brimsley e depois olhou para ela com um

ar sofrido.

– Sua Majestade não chegou a discursar. Nem sequer saiu da carruagem.

Carlota levantou-se.

– Como assim, não saiu?

– Sua Majestade não conseguiu sair da carruagem.

– Então, o que aconteceu? – perguntou Carlota. – O que fizeste? Ele

estava perfeitamente bem quando saiu daqui.

– Ele não estava bem! – explodiu Reynolds.

Carlota enregelou, e Brimsley, ao seu lado, soltou um arfar audível ao

ouvir o desabafo de Reynolds.

– Vossa Majestade – disse Reynolds. – Perdoe-me. Por favor. É só que…

Ele não estava bem. Não estava. Isso era apenas… esperança.

– Esperança – repetiu Carlota.

Reynolds anuiu com a cabeça. Tinha os olhos tristes e tão cansados.

– Eu tentei dizer… – começou.

– Eu sei – disse Carlota. Só não tinha querido sabê-lo. Mas agora não lhe

restava outra hipótese. – O que aconteceu? – perguntou a Reynolds. –

Conta-me tudo.

– Começou bem – disse Reynolds. – Eu fui de pé para conseguir vê-lo

através da janela traseira. Ele ia a estudar o discurso. A praticar, a dizer as

palavras em silêncio. Mas à medida que nos aproximávamos…

Carlota inspirou, tremente.

– As mãos dele começaram a tremer.


O coração de Carlota parou. Sabia o que aquilo queria dizer.

– E ele começou a… – Reynolds ergueu os olhos para ela com uma

expressão completamente torturada no rosto. – Não sei como o descrever,

Vossa Majestade, a não ser dizendo que ele começou a encolher.

– A encolher? – disse Brimsley, quando se tornou evidente que Carlota

não era capaz de o dizer.

– Era como se estivesse a recolher-se para dentro de si mesmo. –

Reynolds demonstrou, dobrando os ombros para a frente, como que

formando uma corcunda nas costas e uma concavidade na barriga. – E, num

abrir e fechar de olhos, estava no chão.

Carlota levou subitamente a mão à boca.

– No chão? Da carruagem?

Reynolds assentiu com a cabeça.

– Ele estava no chão, mas ninguém sabia, além de mim. Eu era o único a

viajar naquela posição. Quando parámos em frente ao Parlamento, não sabia

o que fazer. Desci tão depressa quando pude. Não podia deixar que mais

ninguém se aproximasse da porta.

– Obrigada – murmurou Carlota.

– Tentei abri-la, mas ele fechara-a por dentro.

Carlota fechou os olhos.

– Oh, não.

– Estava lá muita gente? – perguntou Brimsley.

– Sim – disse Reynolds, com a voz levemente tingida de histeria. – Sim,

estava lá muita gente. O Parlamento inteiro aguardava-o. Fiz a única coisa


que me ocorreu. Voltei para o meu lugar e olhei para dentro da carruagem.

Carlota e Brimsley olhavam ambos para ele, como que perguntando: E?

– Ele ainda estava no chão, mas ainda pior do que antes. Enrolara-se

numa pequena bola compacta, como se estivesse a tentar tornar-se o mais

pequeno possível. Como se estivesse a tentar desaparecer.

Carlota engoliu o choro.

– Eu disse a toda a gente que a porta estava encravada – disse Reynolds.

Olhou para Carlota com remorsos. – Acho que ninguém acreditou.

– Não podias ter feito mais nada – disse Brimsley.

Começou a estender a mão, como que para o consolar, mas depois

recolheu-a.

Reynolds engolia em espasmos. Houve um momento em que Carlota

acreditou que ele ia começar a chorar.

– Eu vou vê-lo – disse ela.

– Vossa Majestade – disse Reynolds. – Não sei…

– Eu sou a esposa dele. Vou vê-lo.

Antes de alcançar a porta, Brimsley chegou até ela, estendendo-lhe um

pequeno copo de licor.

– Schnapps de maçã – disse.

Carlota bebeu um gole. Depois outro. Sabia-lhe a casa. Não, sabia a

Mecklenburg-Strelitz. Londres era agora a sua casa.

– Estou pronta – disse.

Brimsley pegou no copo e anuiu com a cabeça.

– Eu levo-a lá.
CASA DE BUCKINGHAM

QUARTO DO REI

UNS MINUTOS DEPOIS

Quando Carlota entrou, o quarto estava escuro, as cortinas firmemente

corridas contra o sol do fim de tarde.

– Jorge? – chamou. – Jorge? Sou eu.

– Carlota?

Tinha a voz abafada. Ela olhou em volta. Não conseguia vê-lo.

– Sim, querido. Sou eu. O Reynolds contou-me o que aconteceu. Estou

aqui, Jorge.

Avançou até à janela e abriu a cortina. A luz desaguou para dentro do

quarto; ainda assim, ela não o conseguia ver.

Atrás do biombo de vestir? Não. Sentado à secretária? Debaixo da

secretária? Não.

– Jorge? Jorge, onde estás?

E então ouviu, na voz mais reduzida e triste:

– Desculpa.

Levou algum tempo. Baixou-se até ao chão e espreitou para debaixo da

cama. Ali estava Jorge, deitado de costas no chão, ainda envergando o seu

esplêndido uniforme.

De coração partido, Carlota disse:

– Jorge, meu querido. Podes sair daí, por mim?

– Eu quero – disse ele. – Mas não consigo. Por causa dos céus. Eles não

me conseguirão encontrar aqui. Estou a esconder-me.


– Estás a esconder-te – repetiu ela pacientemente – dos céus.

– Aqui debaixo não têm hipótese.

– Jorge, está tudo bem.

– Não – disse ele. – Está tudo muito, muito mal.

Carlota já não sabia como lhe continuar a mentir. Ele tinha razão. Estava

tudo muito mal. Inspirou profundamente, deitou-se de costas no chão e foi-

se chegando para debaixo da cama até ficar deitada mesmo ao lado dele. A

olhar para o lado de baixo da cama.

– Conta-me – disse ela.

– Não consegui sair da carruagem. Não conseguia sequer ler as palavras

escritas na página. Eu não sou um rei. Não sou o rei de ninguém.

– Correrá melhor para a próxima – disse ela, tranquilizadora.

– Não. Não há melhor. Não há cura. Isto é quem eu sou.

– Eu amo quem tu és – disse ela.

Ele abanou a cabeça.

– Não estás a compreender. Eu estarei presente por vezes, e noutras vezes

estarei… – Olhou para ela com um olhar torturado. – Podes deixar-me. Eu

perceberia e deixar-te-ia ir.

– Jorge – disse ela. – Eu não te vou deixar.

– Devias.

– Mas não vou.

– Tu tens meio marido, Carlota. Meia vida. Não te poderei dar o futuro

que mereces. Não te poderei dar-me completo. Nem um casamento


completo. Só metade. Metade de um homem. Metade de um rei. Metade de

uma vida.

– Se o que temos é metade, então faremos disso a melhor metade

possível. Eu amo-te. Isso é suficiente.

Esticou o braço e pegou-lhe na mão, entrelaçando os dedos nos dele.

– Eu sou a tua rainha – disse. – E enquanto o for, nunca sairei de ao pé de

ti. Tu és o rei. Serás o rei. O teu filho reinará. – Deu um aperto na mão dele.

– Juntos, somos completos.

Ficaram deitados a olhar para cima.

– Isto aqui debaixo está cheio de pó – comentou, por fim, Jorge.

Carlota soltou um risinho.

– Está mesmo.

Jorge apontou com a mão liberta.

– Aquele parece uma nuvem cumulus.

Carlota apontou com a sua mão liberta.

– E aquele parece um coelho deformado.

– Queres dizer um lulu-da-pomerânia?

– Não, quero dizer um coelho deformado. Os lulus-da-pomerânia são

régios e dignos.

Jorge sorriu. Ela não o conseguia ver, porque não estava a olhar para o

rosto dele, mas conseguia ouvi-lo no timbre da sua respiração.

Mas então a voz dele tornou-se séria. Pesarosa.

– Lamento tanto não te ter dado a oportunidade de decidires. Não te ter

dito a verdade sobre quem eu sou antes de nos termos casado.


– Disseste-me a verdade. Disseste que eras Só Jorge. E é isso que és.

Meio rei. Meio agricultor. Mas sempre Só Jorge. É só isso que tens de ser.

Deixaram-se ficar deitados durante algum tempo, provindo o único som

dos seus lábios, a alinhar-se lentamente até respirarem em uníssono.

– Não sei como reparar o que aconteceu no Parlamento – disse Jorge. –

Receio que venha a custar-me a Coroa.

– Se a Coroa não pode ir ao Parlamento, então traremos o Parlamento à

Coroa. Talvez seja chegada a hora de abrirmos a portas da Casa de

Buckingham.

– O que queres dizer com isso?

– Um baile.

– Aqui?

– Porque não?

– Ficará tudo cheio de gente.

– O Baile Danbury também estava cheio de gente – lembrou Carlota – e

tu portaste-te lindamente.

Jorge virou o rosto para ela.

– Isso foi por tu estares comigo.

Carlota virou o rosto para ele e sorriu.

– Precisamente.
Agatha

PALÁCIO DE ST. JAMES

SALA DE ESTAR DA PRINCESA AUGUSTA

...

21 DE SETEMBRO DE 1762

– Que surpresa voltar a vê-la tão depressa – disse a princesa a Agatha. –

Traz novidades?

– Novidades?

– Da Casa de Buckingham.

– Não – disse Agatha. – Não trago novidades.

Augusta ergueu as sobrancelhas, como se perguntasse Então que faz

aqui?

Agatha respirou fundo.

– Preciso de saber, Vossa Alteza Real. Já foi tomada alguma decisão?

Mas Augusta decidira claramente fazer-se desentendida.

– Uma decisão sobre o quê?

– Sobre o título. Será o meu filho lorde Danbury?

Era essa a pergunta fundamental – essa e tanto que ficou por dizer.

Teriam o lorde e a lady Smythe-Smith o direito de transmitir o seu título aos

filhos? Haveria alguma vez um segundo duque de Hastings? O destino de

muitos assentava naquela decisão.


– Tal como já lhe disse – disse a princesa Augusta –, essa decisão só Sua

Majestade o rei a pode tomar. Seria de esperar que a Agatha conseguisse

obter notícias acerca do assunto pelos seus próprios meios. É próxima do

casal real. Esteve presente no parto. No nascimento do meu neto.

– Eu não posso… – Agatha engoliu em seco, procurando manter a

compostura. – Não poderia falar ao rei ou à rainha sobre tais assuntos.

– Que pena. Poderia ser tão grande ajuda. – Houve um momento de

silêncio, e depois a princesa inclinou-se para a frente, com o olhar aguçado.

– Sua Majestade a rainha está a tentar reinar ela mesma. Tenho a certeza.

Que sabe sobre isso?

Agatha manteve-se calada. Não voltaria a trair Carlota.

Independentemente do que estivesse em causa.

– Então, o baile – disse a princesa Augusta. – Informaram-me de que eles

tencionam organizar um baile na Casa de Buckingham. O que sabe acerca

disso?

– Não sei nada – disse Agatha, com toda a sinceridade. – Não recebi

convite algum.

– Ainda não foram enviados – disse a princesa Augusta. – Tenho a

certeza de que a Agatha figura na lista de convidados. Tal como o resto da

elite… de ambos os lados, suponho?

Agatha limitou-se a abanar a cabeça.

– Eu não sei, Vossa Alteza. Já há várias semanas que não vejo a rainha.

A princesa Augusta cerrou a boca numa linha direita e irritada.

– Imagino que tenha ouvido falar do que aconteceu no Parlamento.


– Apenas que Sua Majestade não se sentia bem – disse Agatha

cautelosamente. – Dores de garganta, assim ouvi dizer.

Não ouvira dizer nada disso, mas tinha o pressentimento de que aquilo

era o que a princesa quereria ouvir. O facto de Agatha estar ao corrente da

condição do rei levara-a a todo o tipo de especulações terríveis quanto ao

que de facto acontecera. Mas nunca perguntaria à rainha. Não tinha nada

que ver com isso. E certamente que não tinha nada que discutir o assunto

com a mãe do rei.

– O que me pergunto é que pretenderão eles alcançar com este baile –

disse a rainha Augusta.

– Repito, Vossa Alteza, não seria capaz nem de começar a especular. Até

esta tarde eu nem sabia que estava a ser planeado um baile.

A princesa olhou para ela com desconfiança. Era evidente que não sabia

se devia ou não acreditar nela.

– Bem – disse –, é uma pena que não fale comigo à vontade. Tínhamos

um excelente acordo, não tínhamos? Não foram todas as suas necessidades

satisfeitas? Não seria uma pena que perdesse a bela propriedade em que

agora reside?

Agatha susteve a respiração. Não lhe ocorrera que pudesse perder a casa.

Era verdade que não tinha dinheiro algum, e que havia a possibilidade de

Dominic não herdar o título Danbury, mas nunca supusera que a Coroa

pudesse chegar e reaver a propriedade da Casa Danbury.

E então…

Oh, não…

Por Deus, não…


Rebentou em lágrimas.

Lágrimas grossas e ruidosas.

Augusta fitou-a notoriamente horrorizada.

– Chiu – disse, atrapalhada. – Pare com isso. Não faça isso. Não, não.

Mas Agatha não conseguia parar. Todos os stresses do último ano. Todos

os stresses de toda a sua vida… Tudo convergira naquele momento único e

humilhante, e ela não conseguia parar as lágrimas tanto quanto não

conseguia parar de respirar.

Chorou por todos os anos com Herman, que nunca, nem uma única vez, a

vira como uma pessoa.

Chorou por todo o trabalho que desenvolvera no sentido de apoiar a

Grandiosa Experiência, pelo qual nunca recebera nem um grama dos louros.

Chorou por todo aquele trabalho ter sido em vão, porque a princesa

Augusta e o lorde Bute e todos os outros eram demasiado egoístas para

abrirem os corações e as mentes às pessoas com uma aparência diferente da

deles.

Chorou pelo seu filho, e por si mesma, e porque tinha simplesmente

vontade de chorar e pronto.

– Saiam, saiam – dizia Augusta, fazendo sinal aos criados para deixarem

a sala. E depois voltou-se de novo para Agatha. – Tem de parar com isso.

Agatha não conseguia. Tinha anos de lágrimas dentro de si. Décadas.

Augusta puxou um pequeno cantil de baixo de uma almofada e despejou

um pouco de líquido no chá de Agatha.

– Brandy de pera – disse. – Mandei vir da Alemanha. Agora beba. E pare

imediatamente de chorar. Por favor.


Agatha bebeu.

– Peço desculpa – conseguiu dizer. – Eu…

– Não – disse Augusta com firmeza. – Eu não quero saber o que lhe

sobrecarrega o coração ou que problemas lhe assolam a vida. Nem me

interessa.

Agatha olhou para ela com os olhos lacrimosos. Que estanha criatura era

a princesa. Agindo de forma maternal e depois falando com severidade.

Agatha bebeu um pouco mais de brandy. Era bom. E ajudava mesmo.

Augusta voltou a encher-lhe a chávena.

– Quero que me escute – disse Augusta. – Quando o meu querido marido

faleceu, eu tive de me submeter à mercê do pai dele, o rei Jorge II. Creio que

não o conheceu. Era um homem cruel, maldoso. O meu marido desprezava-

o. Eu desprezava-o. Ele era terrível com o Georgie. Os ferimentos. Também

eu tinha ferimentos. Mas não havia nenhuma alternativa.

Agatha nunca pensou que poder vir a sentir alguma empatia por aquela

mulher, mas naquele momento, só um breve momento, sentiu.

– Aguentei – disse Agatha. – E com o passar dos anos aprendi que não

precisava de me contentar com a inutilidade das atividades femininas. Em

vez disso, garanti que o meu filho seria rei. Encontrei uma forma de

controlar o meu destino.

Estendeu de novo o brandy. Agatha anuiu com a cabeça, aceitando mais

um pouco.

– Eu não gosto de si – disse-lhe Augusta na cara. – Ainda assim, tem sido

até agora uma adversária admirável. Os nossos embates trazem-me

satisfação. Portanto, isto? – Abanou a mão no ar, assinalando o rosto coberto


de lágrimas de Agatha. – Não pode ser. Não lhe permito que venha para

aqui chorar. Não pode desistir. É uma mulher. Esconda as suas feridas e

aguente. Não perca o controlo do seu destino, Agatha.

Agatha assentiu com a cabeça, inspirando e expirando de modo a

recuperar o controlo. Talvez houvesse uma maneira. Talvez não tivesse de

trair Carlota. Talvez pudesse manter Augusta satisfeita com pequenos

disparates. Ou, no mínimo dos mínimos, talvez isso lhe ganhasse algum

tempo.

– Agora, diga-me – disse Augusta –, como corre a vida na Casa de

Buckingham?

Agatha ergueu o queixo. Conseguiria arranjar alguma coisa para dizer

que não comprometesse a sua devoção à rainha.

– Creio que tais notícias dependerão do que acontecerá ao título do meu

filho, Vossa Alteza.

CASA DANBURY

SALA DE ESTAR

...

23 DE SETEMBRO DE 1762

– Hoje está muito calada – disse Adolfo.

Agatha sorriu-lhe. O irmão da rainha tinha vindo visitá-la com bastante

frequência desde o nascimento do pequeno príncipe. Haviam construído

uma amizade.

– Não é minha intenção – disse Agatha.

Em abono da verdade, ainda pensava na conversa com a princesa

Augusta. Saíra-se com uma grande história sobre ter ouvido mexericar que o
rei sofria de laringite, mas não achava que aquilo fosse o suficiente para

persuadir a princesa a agir em prol dela e de Dominic. Afinal, Agatha não

lhe fornecera qualquer informação real sobre o rei e a rainha. Não passara

de mexericos, ainda por cima falsos.

– Vamos – disse a Adolfo –, conte-me as suas aventuras da semana.

– Fiz alguns progressos em acordos comerciais – disse ele com algum

orgulho. – Os Britânicos são uma gente obstinada. – Inclinou a cabeça num

gesto namoradeiro. – Não me refiro, claro, às senhoras.

Agatha acenou graciosamente com a cabeça.

– Claro.

Adolfo sorriu, mas a cabeça dela ainda estava focada na princesa

Augusta. Não gostava daquela mulher. Provavelmente, nunca gostaria. Mas

respeitava-a, isso sim. Há quanto tempo tinha já morrido o príncipe

Frederico? Mais de dez anos. Durante esse período, Augusta lutara pela sua

família e por si mesma. Estava rodeada de homens constantemente a

dizerem-lhe o que pensar e fazer e, ainda assim, permanecera

fundamentalmente independente.

Agatha não concordava necessariamente com os métodos ou as opiniões

de Augusta, mas não podia deixar de admirar a forma como a princesa

inscrevera para si um lugar naquele mundo governado por homens.

– Agatha – disse Adolfo –, os meus assuntos estão tratados. O meu

sobrinho já nasceu. Regressarei em breve a casa.

– Não pensei que ficasse – disse Agatha. – Mas espero que nos voltemos

a ver na sua próxima visita.

– Não – disse ele. – Quer dizer… Eu esperava que…


Agatha observava-o com curiosidade. Ele costumava comportar-se com

tanto estilo e confiança. Aquele gaguejar não parecia mesmo nada dele.

– Agatha – disse ele de novo –, consideraria ir comigo? Como minha

esposa?

– Eu… eu…

Não deveria ter ficado surpreendida. Ele manifestara muito claramente o

desejo de a cortejar, e ela mesma dissera a Coral que o via – e ao seu

inevitável pedido de casamento – como a solução para os seus problemas.

Mas, agora que estava a acontecer, ela não sabia o que fazer.

– Eu sei – disse Adolfo. – É muito cedo ainda. A Agatha ainda mal

deixou o luto e eu ainda mal comecei a cortejá-la. Mas acredito que

podíamos ser felizes juntos.

– Eu não sei bem o que dizer – murmurou ela.

– Para já, não tem de dizer nada – disse-lhe ele. – Eu não lhe direi

palavras com corações e flores porque sei que não é uma mulher de corações

e flores, mas acredito que temos qualquer coisa.

Sentou-se ao lado dela. Tocou-lhe no queixo.

– Há qualquer coisa entre nós os dois – disse ele.

Beijou-a, primeiro com delicadeza, mas depois com uma paixão

crescente.

– Não me responda já – disse. – Pense. Eu aguardarei a sua resposta.

Pôs-se de pé, na sua postura perfeita, e fez-lhe uma elegante vénia antes

de se ir embora. Agatha ficou ali sentada, num silêncio pasmado, durante

cerca de um minuto, até Coral entrar por ali adentro a correr.


– Vai dizer que sim? – perguntou Coral.

– Estavas à escuta atrás da porta?

– Acreditaria em mim se eu dissesse que não?

Agatha revirou os olhos.

– Ele é muito bem-parecido – disse Coral.

– Sim.

– E já não teria de se preocupar com o futuro.

– Sim.

– Nem com a questão do título.

– Sim.

– E tem algum peso que a irmã dele seja a rainha Carlota. Imagine, ficar

alojada no palácio quando viesse cá de visita.

– Sim – disse Agatha mais uma vez.

Cloral sentou-se de supetão ao lado dela no sofá, coisa que normalmente

não faria.

– Tenho andado a treinar o alemão. Ich diene der Konigin. Quer dizer

«Eu sirvo a rainha». A senhora. Seria rainha. Nunca mais se tem um

momento de preocupação quando se é da realeza…

– Para de falar, Coral – implorou Agatha.

Precisava de pensar.

Coral fez uma certa expressão de birra, levantou-se e encaminhou-se para

a porta. No último instante antes de sair, virou-se de novo.

– Vai aceitar o pedido, não vai?


– Vai-te embora, Coral – disse Agatha.

Porque ela não tinha a mais pequena ideia do que faria.


Jorge

CASA DE BUCKINGHAM

...

GALERIA

– Está muito parecido, não achas?

Jorge segurava na mão da esposa enquanto olhava para o seu retrato do

casamento.

– Um retrato para o qual eu nem sequer posei. Sou uma inserção.

– Somos nós na mesma – disse Carlota. – Tu e eu.

– Sim. Mas não é real.

E aquilo preocupava-o. Havia tanto na sua vida que não era real. Carlota

não tinha noção da extensão disso; ele tornara-se perito em esconder tudo

menos o pior das suas confusões mentais. Mas os céus nunca paravam.

Mesmo quando ele era capaz de falar e agir normalmente, sentia-os a

invadi-lo.

Mesmo agora. Mesmo com a sua amada ao seu lado, naquele palácio a

que chamava casa, havia um pequeno pedaço da sua mente que se afastava

numa direção só sua.

Vénus, chamava. Vénus.

– Jorge – disse Carlota.

Obrigou-se a focar-se de novo no momento e olhou para ela outra vez.

Estava magnífica, uma rainha da cabeça aos pés. Usava uma cabeleira – era
a primeira vez que ele a via a fazê-lo –, mas que fora tingida para parecer o

cabelo natural dela. Acrescentava-lhe quase 30 centímetros em altura,

tornando-a, até, mais alta do que ele.

– Olha para ti – disse ele. – És uma joia rara.

Estendeu o braço para lhe tocar no rosto, mas tinha a mão a tremer.

Incontrolavelmente. Não se lembrava da última vez que a vira tremer assim.

O seu olhar passou do rosto dela para a mão. Não conseguia tirar os olhos

dos seus dedos. Abanavam e abanavam, e, no entanto, era o rosto de Carlota

que parecia desfocado por detrás deles.

Não lhe tocou. Não se atreveu. Não com aquela mão.

Mas Carlota atreveu-se. Ela atrevia-se sempre. Pegou na mão dele e

segurou-a firmemente entre as suas duas mãos.

– Tu e eu – disse.

Jorge conseguiu fazer um aceno mínimo com a cabeça.

– Tu e eu.

– Preparado?

– Sim – disse.

Rezava para que fosse verdade.

Entraram no salão de baile, já repleto de convidados. Reynolds e

Brimsley seguiam-nos, pelo sim, pelo não.

Pelo sim, pelo não.

Jorge detestava aquilo. Carlota não devia ter de passar a vida com uma

pessoa que precisava sempre de um pelo sim, pelo não.

– Vossa Majestade? – perguntou Reynolds quando chegaram à porta.


Jorge acenou-lhe com a cabeça.

Reynolds avançou e anunciou:

– Suas Majestades rei Jorge III e rainha Carlota!

Vénus. Trânsito de Vénus.

Jorge agarrou a mão de Carlota. Com força.

– Estou aqui – sussurrou ela. – Eu sou a Carlota.

Ele anuiu com a cabeça desajeitadamente, mas os seus pés não se

mexiam.

A multidão ficara em silêncio ao anúncio de Reynolds, mas quando o

casal real não surgiu de imediato, começou a ecoar no ar um rumorejo.

Tantas vozes.

Tanta gente.

Vénus. Vénus.

E então, de alguma forma, ouve-se a voz de lorde Bute:

– Se ele não consegue sequer encarar o seu povo, está acabado.

– Não consigo – disse Jorge a Carlota.

– Consegues. Tu e eu – lembrou ela. – Juntos. Nós somos um só.

Ele voltou a anuir com a cabeça e, sem saber como, os seus pés

começaram a mexer-se. Entrou no salão de baile, com Carlota a seu lado.

Tanto barulho.

Tantos rostos.

– Jorge – ouviu-se a voz de Carlota. – Jorge?

Ele focou-se no rosto dela. No sorriso dela.


– Não te sintas nervoso – disse ela.

– Estou ótimo – disse ele. – Não te pareço ótimo?

– Estás a magoar-me a mão.

Jorge olhou para baixo. Santo Deus, estava a apertar-lhe os dedos como

se os seus fossem as próprias garras da morte. Largou-a de imediato.

– Carlota – disse. – Eu não queria… Isto foi um erro.

Tinha de se ir embora dali. Começou a virar-se.

Mas Carlota pegou-lhe de novo na mão. Delicadamente.

– Jorge, olha para mim – disse ela. – Só para mim. Aperta a minha mão

se precisares. Está tudo bem. Isso. Agora. Sorrir e acenar. Pronto?

Jorge sorriu. Era um sorriso forçado, mas chegava.

– Agora, acenar – disse ela.

E assim fizeram. Sorriram e acenaram e a multidão aclamou-os.

– Tu és Só Jorge. – disse Carlota. – O meu Jorge. Dancemos.

Caminharam juntos até ao centro da pista de dança.

– Mantém os olhos em mim – disse Carlota. – Não olhes para mais

ninguém. Não está aqui mais ninguém além de nós.

– Tu e eu – disse Jorge assim que a música começou.

– Tu e eu.

As primeiras notas flutuaram pelo salão de baile e, à medida que a

música crescia, Jorge nunca afastou o olhar do rosto de Carlota. Os passos

da dança estavam tão enraizados nos seus músculos como andar ou montar a

cavalo. O corpo dele sabia o que fazer. E a mente… Tudo de que precisava

era de se focar em Carlota.


Só Carlota.

As mãos deles tocaram-se e depois separaram-se. Aproximaram-se um do

outro, afastaram-se. Giraram. Acenaram com a cabeça. E à medida que a

música penetrava nele, aconteceu algo milagroso. Aquela pequena zona do

seu cérebro, a parte que era dominada pelos céus…

Silenciou-se.

Não seria para sempre; ele sabia-o. Mas para já, naquele salão, como

aquela música e, mais importante ainda, com aquela mulher…

Ele estava lá.

Inteiro.

Quando a música terminou, pegou na mão da sua rainha e beijou-lhe os

dedos. E depois, pensou…

Isso não chega. Nunca chegará.

Ali mesmo, em frente a toda a elite, em frente à mãe e a lorde Bute e

todos os outros, Jorge beijou-a. Beijou a sua esposa, a sua rainha.

A sua Carlota.

Talvez fosse louco, e talvez estivesse a piorar. Mas não deixaria aquele

momento escapar-se-lhe. Toda a gente ficaria a saber que ele a amava, que

ela era a rainha, que, se alguma coisa lhe acontecesse a ele, seria a ela que

deveriam recorrer.

– Jorge? – murmurou Carlota no final do beijo.

– Ficarei bem – garantiu ele. – Eu estou bem.

O sorriso dela expandiu-se.

– Só Jorge.
– O teu Jorge. Mas, se me dás licença, tenho algumas responsabilidades

reais de que dar conta.

– Ora essa, Vossa Majestade.

E lá foi ele. Tinha nobres para deslumbrar, membros do Parlamento para

tranquilizar. Havia muito que fazer e ele sabia que teria de tirar partido

daquele momento, uma vez que se sentia tão bem.

Passou uma hora, mais coisa, menos coisa, a desempenhar o seu papel.

Dançou com diversas senhoras – a mãe, claro, e lady Danbury, por quem

sempre demonstraria o seu favor. Conversou com lorde Bute e trocou piadas

com o irmão de Carlota e, contas feitas, agiu exatamente como um rei devia

agir.

Estava orgulhoso de si mesmo.

Mas queria Carlota. Já cumprira o seu dever; agora chegara a altura de

voltar a dançar com a sua esposa.

Ouviu-a antes de a ver. Estava prestes a dobrar uma esquina quando a

ouviu a falar com a mãe dele. Parou, ficando desavergonhadamente à escuta.

– É um belo baile – disse a mãe dele.

– É, sim – respondeu Carlota. – Gostamos de receber.

Jorge quase riu. Que mentira descarada. Ele detestava receber. Mas fá-lo-

ia. Se isso significasse mais momentos como aquele, fá-lo-ia.

– Faremos isto mais vezes.

– Ótimo – respondeu a mãe dele.

– Sim.
A conversa estava a começar a ficar desconfortável. Talvez ele devesse

intervir.

Mas então a mãe dele disse:

– Tudo o que eu sempre quis foi que ele fosse feliz.

– Ele é feliz – disse Carlota.

– A Carlota fá-lo feliz.

Jorge reprimiu um sorriso. A mãe dele não era uma mulher fácil, e era

exageradamente orgulhosa. Dedicara a vida ao reinado dele. E agora estava a

ceder o seu lugar a Carlota.

Ele espreitou para lá da esquina.

– Obrigada – disse a mãe a Carlota. Fez uma vénia, a mais profunda que

ele alguma vez a vira fazer. Ergueu o olhar para Carlota e disse: – Vossa

Majestade.

Depois endireitou-se, compôs a sua postura hirta do costume, e o

momento passou.

– Tenho de ir ter com lorde Bute – disse, e afastou-se, deixando Carlota

algo atónita.

Jorge avançou e rodeou-a com os braços.

– Viste aquilo? – perguntou Carlota.

– Vi, sim.

– Não sei bem…

– Não o questiones. – Sorriu. – Dançamos?

– Sim, mas… – Carlota olhou à sua volta.

– O que foi, meu amor?


– Dancemos uma vez só para nós. Onde ninguém nos possa ver.

– Isso quer dizer que te poderei beijar?

– Não podes estragar-me o penteado – avisou ela.

– Nunca me atreveria a tal coisa.

– Vamos para os jardins?

Jorge anuiu com a cabeça, pegou-lhe na mão e arrancou, os dois a soltar

risinhos como crianças a fugir da escola.

– Chhh – admoestou Carlota. – Alguém pode ouvir.

– Quem ouvirá? – murmurou ele.

– Não sei. Ainda assim, devíamos…

Carlota interrompeu a frase a meio.

– O qu…

Deu-lhe uma pequena cotovelada e depois apontou com a cabeça para

algo à frente deles.

Jorge acompanhou a linha de visão dela. Era outro casal, a dançar.

Reynolds e Brimsley.

Jorge pousou um dedo nos lábios e puxou Carlota para trás de uma sebe.

– Sabias? – sussurrou ela.

– Eu sabia que Reynolds preferia homens, mas não sabia de Brimsley.

Carlota espreitou-os.

– Parecem tão felizes.

Jorge puxou-a para baixo para também ele conseguir ver. Dançavam

como um casal apaixonado. Reynolds era quem conduzia, provavelmente


por ser o mais alto. Riam e sussurravam, e ocorreu a Jorge que se pareciam

muito com ele e Carlota.

Apaixonados.

Felizes.

– Vamos embora daqui – murmurou a Carlota. – Eles precisam deste

momento mais do que nós.

Ela anuiu com a cabeça e regressaram ao palácio em bicos de pés. O rei e

a rainha em bicos de pés, como ladrões.

– Ora, ora – disse Carlota, quando já não podiam ser ouvidos.

– Ora, ora.

– Isto foi… surpreendente.

– Mas bonito.

Carlota acenou lentamente com a cabeça.

– Sim, foi. É.

Jorge aclarou a garganta e deitou um olhar na direção do salão de baile.

– Talvez esteja na hora de eu fazer um brinde.

– Espera – disse Carlota. – Tenho uma coisa para te dizer.

Jorge olhou para ela, indulgente. Carlota parecia ter ficado subitamente

envergonhada, e essa não era uma emoção que ele normalmente lhe

associasse.

– Eu e tu, Jorge – disse –, nós mudámos o mundo com o nosso amor.

Mas a Coroa pode ser frágil, e os destinos de muita gente assentam no facto

de nós conseguirmos assegurar a nossa descendência.


Enquanto ele digeria aquele comentário, ela pegou-lhe na mão e pousou-

lha sobre a seda verde-pálida que lhe cobria a barriga.

– A nossa descendência – murmurou ele, olhando-a com qualquer coisa

aproximada ao maravilhamento. – Tu e eu.

– E eles – disse ela. – O pequeno Georgie e quem quer que este revele ser.

Jorge beijou-a e depois beijou-lhe os dedos e tocou-lhe na barriga.

– Esta notícia é para manter apenas para nós por agora, no entanto, não é?

– Ah, sim, decididamente.

– Gostaria muito de me ir já deitar contigo – disse ele com pena –, mas

creio que temos de voltar a ser rei e rainha.

E lá foram de volta para o salão de baile. Serviu-se vinho, e Jorge

colocou-se bem no meio da multidão. A gravidez de Carlota permaneceria

em segredo durante vários meses, mas tinham o seu pequeno filho para

celebrar.

Jorge ergueu o copo, esperou pelo cessar do barulho, e disse:

– Agradecemos a todos por se terem juntado a nós para celebrar a

chegada do nosso novo príncipe.

Toda a gente aclamou. Um bebé era, de facto, algo mágico. Um bebé real,

ainda mais.

– Sem grande surpresa, uma vez que eu sou o terceiro, decidimos

chamar-lhe Jorge IV! – Ergueu o copo de novo. – Ao nosso futuro rei!

A multidão repetiu:

– Ao nosso futuro rei!

Ao futuro.
Fosse ele como fosse.
Agatha

CASA DE BUCKINGHAM

JARDINS

...

LOGO APÓS O BRINDE

Agatha gostava muito de uma boa festa, mais ainda agora que Herman já

partira e ela não tinha de andar a tomar conta do comportamento dele. Ou

do dela, viste que ele arranjava sempre maneira de a apanhar nalguma falha

ou infração.

Mas aquela festa era esgotante. Estava cheia de segredos e de dificuldades

ocultadas. Ela vira a expressão aterrorizada nos olhos do rei quando ele e

Carlota chegaram ao salão de baile. Vira como Carlota lhe pegara na mão e

lhe murmurara palavras que nunca ninguém que não eles os dois alguma vez

ouviria.

Mas Agatha ganhara um incompreensível acesso aos seus segredos, e

tinha alguma noção de que palavras poderiam ter sido.

Sofria pela amiga.

Não poderia saber o que reservava o futuro – nenhum deles poderia –,

mas suspeitava que Carlota teria muitos anos pela frente em que teria de

abraçar o rei, mantendo-o bem e a salvo. Protegendo-o dos mexericos e das

intrigas.

A dada altura, ele quebraria, e seria ela a Coroa. Era um fardo pesado.
A festa ainda estava no auge, mas Agatha decidira que precisava de uma

pausa, por isso andava a deambular pelos jardins. Não se afastara muito –

uma senhora tinha sempre de pensar na sua reputação, mesmo as

respeitáveis viúvas como ela –, mas o ar estava fresco e perfumado e trouxe-

lhe uma bem-vinda sensação de paz.

Porém, após alguns minutos, descobriu que tinha companhia. Adolfo. Ela

pressentira que ele andaria à sua procura.

– Desagradam-lhe as multidões, tal como a mim – disse ele assim que

chegou ao pé dela. – Mais uma coisa em que somos compatíveis.

– Verdade. Precisava de uma pausa para respirar. Lá dentro está a

abarrotar.

– A minha irmã é um sucesso retumbante – disse Adolfo. – Estou feliz

por ela.

Agatha mostrou-lhe um pequeno sorriso. Carlota não partilhara nenhum

dos seus problemas com ele; disso, tinha Agatha a certeza. Adolfo nada

sabia da doença de Jorge, da força de aço que Carlota teria de ter para

navegar pelos anos que se seguiriam.

Ele via uma rainha cintilante.

E ela era uma rainha cintilante. Mas era tão mais do que isso.

Adolfo aproximou-se mais dela.

– Seria bom poder ficar também feliz por mim.

Agatha não fingiu que não o percebera.

– Como seria a nossa vida? – perguntou. – Se nos casássemos e eu fosse

consigo para a sua terra?

Adolfo sorriu abertamente, enchendo o peito de orgulho.


– Provavelmente é traição dizer isto, mas a minha província é o melhor

sítio do mundo. É belíssima, com campos verdes e lagos cintilantes. As

melhores pessoas, a melhor comida…

– Soa bem.

– Sim. Sou eu que governo, claro, mas como minha consorte a Agatha

teria também alguns deveres. Nós lá somos mais paritários.

Paridade soava bem.

– A maior parte das esposas da corte são mais velhas que a Agatha, mas

irá gostar delas – prosseguiu Adolfo. – Assim que aprender a língua.

– Claro – murmurou. Sabia que isso seria um requisito.

– E o facto de ser nova é positivo. Significa que pode ter mais filhos.

– Mais filhos – repetiu Agatha.

Santo Deus. Já tinha quatro filhos. Não queria mais. Não gostara nada de

estar grávida, e não gostara mesmo nada de dar à luz.

Não que alguém gostasse, mas ela tinha bem noção do perigo que aquilo

representava. Carlota quase morrera a dar à luz o novo príncipe de Gales.

Fora aterrorizador.

E tão comum.

– Agatha – disse Adolfo –, eu criarei as crianças Danbury como minhas.

Gostarei deles como gosto de si. Mas compreende que tenho de ter um

herdeiro meu. Talvez dois ou três.

– Dois ou três.

Agatha engoliu em seco. Mais dois ou três filhos. Ela não queria ter mais

dois ou três filhos.


– Poderá viajar comigo – disse ele alegremente. – Podemos vir a

Inglaterra de poucos em poucos anos, se receia vir a ter saudades da sua

terra. Mas não terá saudades por muito tempo. Haverá festivais e bailes e

eventos de caridade e…

– Não – soltou Agatha.

Não fazia ideia que o ia dizer. Saiu-lhe. Inadvertido, mas não por isso

menos verdadeiro.

– Agatha – disse ele, manifestamente surpreendido.

– Não posso casar consigo. – Apercebia-se da verdade daquilo ao mesmo

tempo que o dizia. – Lamento.

O rosto dele revelava o estado de confusão em que se encontrava.

– Enervei-a com tanta conversa sobre mudança.

– Não, eu não posso casar consigo. Mas apenas porque… – E foi então

que ela percebeu. – Não posso casar com ninguém.

Adolfo deu um passo para trás, com uma expressão de incompreensão no

rosto.

– O Adolfo é um homem maravilhoso – disse-lhe ela. – E quando me

cortejava, alguma coisa em mim despertava, e isso deu-me esperança. Ter-

me-ia salvado de milhares de problemas distintos. Ter-me-ia resgatado.

Ouvir-me-ia e cuidaria de mim.

– Então, deixe-me fazê-lo – implorou ele.

Agatha abanou a cabeça.

– Isso não muda o que eu sei ser verdade. Não posso casar consigo. Não

posso casar com ninguém. Não quero voltar a casar nunca mais. Adolfo, eu
passei a minha vida inteira a respirar o ar de outra pessoa. Não conhecia

outra forma. É chegada a altura de eu aprender a respirar sozinha.

– Agatha – disse ele. – Não faça isto. Está… Isto é um erro terrível que

está a cometer.

– Talvez esteja a cometer um erro terrível. Mas tenho esse direito. Espero,

sim, que me perdoe. – Sorriu gentilmente e depositou-lhe um beijo na face.

– Adeus, Adolfo.

Deu um passo. E depois outro. A andar por si mesma. Sozinha.

Era a sua própria pessoa.

Finalmente.

CASA DE BUCKINGHAM

ENTRADA DAS TRASEIRAS

...

UMA HORA DEPOIS

Estava na altura de ir embora. Fora uma noite maravilhosa, mas intensa, e

Agatha estava exausta. Dirigiu-se à carruagem, mas antes de subir ouviu a

inconfundível voz da rainha.

– Lady. Danbury.

Agatha nunca antes a ouvira falar naquele tom. Nem com ela, nem com

ninguém. Viu-a caminhar na sua direção com um propósito e uma passada

determinada que eram, francamente, perturbadores.

– Vossa Majestade – disse ela lestamente, fazendo uma vénia. – Muito

obrigada por…
– Recusa o meu irmão? – perguntou Carlota. – Dá-lhe esperanças de uma

união, de felicidade, e depois quebra-lhe o coração? No meu baile? Na

minha casa?

Claro que Carlota sabia que Adolfo cortejava Agatha. Agatha não se

lembrava de falar com ela sobre isso especificamente, mas Adolfo devia tê-

lo feito. E agora provavelmente contara-lhe que Agatha dissera que não.

Agatha sentiu o coração cair-lhe até aos joelhos. Joelhos que quase lhe

falhavam.

– Vossa Majestade, eu…

– O sentido de humor dele pode não ser muito espirituoso – prosseguiu

Agatha. – E, sim, ele é condescendente sem limites. Mas é uma pessoa de

excelente caráter e coração puro, e alguém na sua posição poderia arranjar

muito pior, não poderia?

– Sim, claro – disse Agatha de imediato. – Vossa Majestade. Por favor,

imploro-lhe que aceite as minhas desculpas. Diga-me… que poderei eu fazer

para que…

– O Adolfo sobreviverá – disse Carlota com firmeza. – O que me

preocupa é o que farei eu consigo.

– Comigo?

– Com o facto de não me ter trazido as suas preocupações. Os seus

receios quanto à sua herança. Ao seu título. Ao destino da sua família. De

todas as famílias recentemente intituladas.

– Como soube? – disse Agatha quase num murmúrio.

Carlota ergueu as sobrancelhas.

– Isso importa?
– Não, claro que não.

– Eu sou a rainha. É minha obrigação saber essas coisas. Meu dever. E

tenho de poder confiar que os meus amigos mais próximos me abordarão

com honestidade e abertura.

Agatha curvou a cabeça.

– As minhas desculpas, Vossa Majestade. Eu só não quis acrescentar o

meu fardo aos seus. Os seus, que parecem tão…

Não completou a frase, por isso Carlota incentivou-a.

– Tão…?

– Uma coroa já é pesada quanto baste – disse Agatha baixinho. – Mas

carregar duas…

Carlota não falou de imediato. Olhou fixamente para Agatha com tal

intensidade que esta se perguntou se não teria cometido um erro. Não devia

ter aludido aos problemas do rei, às responsabilidades impossíveis de

Carlota. Devia ter sido mais circunspeta.

Mas então, por fim, Carlota falou. E, quando o fez, foi com a autoridade

de uma pessoa nascida para aquele momento.

– Somos uma só coroa – disse. – O seu fardo é o meu, e o meu dele.

Uma. Só. Coroa. Reinamos para o bem-estar dos nossos súbditos. Novos e

velhos. Rivais e inimigos. Intitulados ou não. Diz-me que os muros do

palácio são demasiado altos? Eu digo que têm mesmo de o ser. Da altura do

céu, se for preciso. Para protegê-la a si, para proteger todos os nossos

súbditos.

Agatha não conseguia fazer nada senão olhá-la fixamente, sentindo que

estava a assistir ao nascimento de algo grandioso. Algo milagroso.


– Sugiro que transforme o seu medo em fé. Que nos traga as suas

preocupações – disse Carlota, com a expressão do seu rosto a suavizar-se

ligeiramente. – Diretamente. Não o fazer seria sugerir que nós não somos

capazes de dar conta do assunto. A não ser que seja essa a sua crença, Lady

Danbury?

Agatha não conseguia falar. Aquela rapariga – aquela mulher – era um

fenómeno. Ela mudaria a história. Já mudara.

– Pode ir – disse Carlota. – Mandarei chamá-la em breve.

– Vossa Majestade – conseguiu Agatha dizer, de alguma forma.

Fez uma vénia. Muito profunda.

Carlota virou-se para se ir embora, mas, após apenas alguns passos,

virou-se para trás e disse:

– Transmita os meus cumprimentos ao pequeno lorde Danbury. Dominic,

é assim que ele se chama, certo?

Esperança e, sim, alegria floresceram em Agatha.

– Sim, Vossa Majestade. Dominic.

– É um belo pequenote. Não tão belo quanto seguramente será o meu

Georgie, claro.

Agatha reprimiu um sorriso.

– Claro.

Aguardou até a rainha desaparecer, depois pegou na mão do criado como

auxílio para subir para a carruagem. Enquanto seguia para casa, para a

maravilhosa mansão que ela garantira que ficaria na família, recostou-se nas

almofadas com um suspiro e um sorriso.


A Grandiosa Experiência?

Já não era uma experiência.

Era um facto.

Verdadeiramente grandioso.
Cinquenta e Seis Anos Depois…
Carlota

PALÁCIO DE KEW

QUARTO DO REI

...

30 DE OUTUBRO DE 1818

A distância entre a Casa de Buckingham e o palácio de Kew não era muita,

mas parecia a Carlota, rainha do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda,

como se viajasse para um planeta completamente diferente.

Não fazia aquela viagem com a frequência com que devia. Custava-lhe

tanto ver Jorge. Feria-lhe o coração. Doía-lhe nos ossos. Na alma. Passara

tantos anos a vê-lo desaparecer lentamente, e agora…

Ele não a reconhecia. Talvez ela tivesse conseguido chegar até ele uma

vez no último ano. Duas vezes no ano antes. Partia-lhe o coração. Conseguir

estabelecer aquela fugaz ligação, aquele breve momento em que ela

conseguia lembrar-se de Só Jorge e de ser Só Carlota.

A alegria que daí provinha não compensava a dor que inevitavelmente se

lhe seguia, quando ele regressava para dentro da sua loucura, com os seus

céus e estrelas e equações. E, mais recentemente, as coisas absolutamente

sem sentido que dizia. Ela costumava ser capaz de compreender o que ele

dizia, mesmo que fizesse pouco sentido. Mas agora, normalmente, não eram

senão sons.

O Jorge dela era um fantasma à espera de morrer.


Mas hoje ela trazia notícias importantes. E queria dizer-lhas, quer ele

ouvisse, quer não. Ele era o amor dela, e seria para sempre o amor dela. Ela

devia-lho.

Carlota entrou no quarto e encontrou-o a escrever nas paredes, como era

frequente. Estava um assistente sentado a um canto. Fora instruído para

deixar Jorge desenhar o que quisesse, onde quisesse.

Aquilo deixava-o feliz. E isso era o que Carlota mais queria. Que ele

fosse feliz.

– Pode sair – disse Carlota ao assistente.

Ele lançou-lhe um olhar que significava Tem a certeza? Jorge tinha, por

vezes, umas explosões difíceis.

Ela lançou-lhe um olhar que significava Eu sou a sua rainha. Saia.

Ele saiu.

– Jorge – disse Carlota assim que o assistente fechou a porta.

Jorge não se virou, mas agitou a mão no ar como se a mandasse embora.

– Não me chateies no céu.

– Jorge, sou eu. A tua Carlota.

Ele continuou a ignorá-la, balbuciando palavras que ela não conseguia

compreender.

– Trago notícias, Jorge. Excelentes notícias. Avançou na direção dele. –

Jorge? Jorge?

Era como se ela ali não estivesse. Jorge continuava a balbuciar e a

desenhar na parede, e Carlota perguntou-se se não seria ela o fantasma à

espera de morrer.
Olhou para a cama dele. Não era a cama do quarto dele na Casa de

Buckingham, mas era uma cama. E ela pensou: Talvez, talvez…

Pôs-se de joelhos, aclarando a garganta tão ruidosamente quanto

conseguiu.

Ele olhou para ela e franziu o sobrolho.

Carlota deitou-se de costas no chão e arrastou-se para debaixo da cama,

um feito em nada facilitado pelo seu vestido.

– Só Jorge? – chamou. – Agricultor Jorge?

Aguardou, sustendo a respiração. E então ele apareceu. A espreitar para

debaixo da cama.

– Anda – disse ela com um sorriso. – Vem esconder-te dos céus comigo.

Ele ponderou o convite durante um instante, acenou com a cabeça, e

juntou-se-lhe.

– Carlota – disse, com a maior das alegrias. – Ora, ora, olá!

– Olá, Jorge.

Carlota não chorou porque ela não chorava. Mas sentiu os olhos bastante

esquisitos.

– Aqui está tão sossegado – disse ele.

– Jorge – disse ela –, conseguimos. O nosso filho Edward casou-se, e a

esposa dele está de esperanças.

– O Edward vai ser pai?

– Sim. A tua linhagem prosseguirá.

– A nossa linhagem – lembrou Jorge.

– A nossa linhagem – repetiu Carlota.


E então, com enorme doçura, ele beijou-a. Sabia ao passado. Sabia ao seu

próprio coração.

– Gostei de te encontrar aqui – disse Jorge.

Carlota desatou a rir. Mas depois ele olhou para ela com uma expressão

que ela já raramente lhe via no rosto. Sóbrio, sério, mas cheio de amor.

– Tu não saltaste o muro – disse ele.

Carlota sorriu.

– Não, Jorge. Eu não saltei o muro.

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