Livro Linguagem - Oral, - Escrita - e - Literatura - Versao Final

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Linguagem Oral, Escrita

e Literatura
reflexões teóricas e práticas educacionais
Reitor
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Diretoria Administrativa da EDUFRN


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Eugênia Maria Dantas – CCHLA
Ione Rodrigues Diniz Morais – SEDIS
Isabel Dillmann Nunes – IMD Diagramação
Marina Beatriz de Medeiros Santos

Capa
Laura Viana
Alessandra Cardoso de Freitas
Giane Bezerra Vieira
Maria Cristina Leandro de Paiva
Mariangela Momo
Organizadoras

Linguagem Oral, Escrita


e Literatura
reflexões teóricas e práticas educacionais

Natal, 2023
Fundada em 1962, a Editora da UFRN continua
até hoje dedicada à sua principal missão: produzir
impacto social, cultural e científico por meio de livros.
Assim, busca contribuir, permanentemente, para uma
sociedade mais digna, igualitária e inclusiva.

Publicação digital financiada com recursos do Fundo Editorial da UFRN. A seleção da


obra foi realizada pelo Conselho Editorial da EDUFRN, com base em avaliação cega
por pares, a partir dos critérios definidos no Edital n° 02/2021, para a linha editorial
Publicação Institucional.

Catalogação da Publicação na Fonte.

Linguagem Oral, Escrita e Literatura: reflexões teóricas e práticas educacionais


[recurso eletrônico] / Organizado por Mariangela Momo, Maria Cristina
Leandro de Paiva, Giane Bezerra Vieira e Alessandra Cardoso de Freitas. – Natal:
SEDIS-UFRN, 2023.
1 PDF (1.760 kb)

ISBN 978-65-5569-403-1

1. Educação infantil. 2. Linguagem oral. 3. Linguagem Escrita. 4. Literatura.


I. Momo, Mariangela. II. Paiva, Maria Cristina Leandro de. III. Vieira, Giane
Bezerra. IV. Freitas, Alessandra Cardoso de.
CDU 373.2
L755

Elaborada por Verônica Pinheiro da Silva CRB-15/692.

Todos os direitos desta edição reservados à EDUFRN – Editora da UFRN


Av. Senador Salgado Filho, 3000 | Campus Universitário
Lagoa Nova | 59.078-970 | Natal/RN | Brasil
e-mail: [email protected] | www.editora.ufrn.br
Telefone: 84 3342 2221
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ......................................................................... 07

PREFÁCIO.........................................................................................10

ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS


CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS..............................................21
Giane Bezerra Vieira

CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:


POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS ........................... 71
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

DA VELHA E SEMPRE PRESENTE DISCUSSÃO DA


ALFABETIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL .................. 125
Maria Cristina Leandro de Paiva

A BRINCADEIRA DE PAPÉIS SOCIAIS E A FORMAÇÃO DE


BASES PARA A APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA
PELA CRIANÇA PRÉ-ESCOLAR ............................................. 153
Michelle de Freitas Bissoli
Aline Janell de Andrade Barroso Moraes
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA
FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES ............................ 182
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL:


POSSIBILIDADES E LIMITES DE APROPRIAÇÃO
EM SITUAÇÕES VIVENCIADAS POR CRIANÇAS E
PROFESSORAS.............................................................................. 232
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS


PRIMEIROS ANOS DE VIDA: O PAPEL DO OUTRO MAIS
EXPERIENTE ................................................................................ 282
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

O TRABALHO PEDAGÓGICO COM A LINGUAGEM


ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL NO CONTEXTO DO
ATENDIMENTO EDUCACIONAL HOSPITALAR .............. 336
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

AS AUTORAS E ORGANIZADORAS....................................... 378


APRESENTAÇÃO

O livro Linguagem oral, escrita e literatura: reflexões teóricas


e práticas educacionais reúne produções de iniciativa da área
de Educação Infantil, Alfabetização, Linguagens e Literatura,
do Departamento de Fundamentos e Políticas da Educação
(DFPE), Centro de Educação da UFRN. Integra trabalhos de
professoras que têm um percurso consolidado no curso de
Pedagogia e no Programa de Pós-Graduação em Educação da
UFRN, no ensino e em projetos de pesquisa e de extensão na
área temática do livro. Essas produções têm também como
característica a articulação entre as professoras da área e
estudantes da graduação e da pós-graduação. A obra também
apresenta produções de professoras de distintas Universidades
brasileiras, pesquisadoras nesta área, que têm desenvolvido
estudos e pesquisas de forma dialógica sobre a linguagem
como interação social.

7
APRESENTAÇÃO

Os textos que compõem o livro visam contribuir com


a formação inicial e continuada de professoras(es), pesqui-
sadoras(es), estudantes e demais leitores/leitoras. Abordam
questões teórico-metodológicas que permitem ao público
leitor aprofundar conhecimentos sobre a linguagem oral e
escrita e a literatura na educação de crianças, em contextos
diversos, envolvendo a formação e as práticas pedagógicas.
O livro está estruturado em oito capítulos. A ordem dos
capítulos teve como critério a apresentação de textos de cunho
mais abrangente no que diz respeito a aspectos conceituais e
documentais, seguidos de textos que abordam temáticas mais
específicas. A obra não tem a pretensão de esgotar o tema,
mas seus capítulos se complementam e configuram uma
importante fonte de consulta que possibilitará a ampliação
de conhecimentos acerca da linguagem oral e escrita e a
literatura na educação de crianças.
Expressamos nossa gratidão a todas as autoras que cola-
boraram com essa primeira publicação da área de Educação
Infantil, Alfabetização, Linguagens e Literatura, do DFPE/
UFRN. Agradecemos ao Departamento (DFPE) e ao Centro
de Educação pela política de incentivo e financiamento da
publicação e à comissão editorial da Secretaria de Educação
a Distância da UFRN pelas sugestões para o aprimoramento
da obra. Nosso agradecimento especial à professora Mônica

8
APRESENTAÇÃO

Correia Baptista, pela construção do prefácio deste livro, nos


presenteando com relações entre personagem de Guimarães
Rosa e conceitos abordados nos capítulos.

As organizadoras

9
PREFÁCIO
Mônica Correia Baptista

Linguagem oral, escrita e literatura: reflexões teóricas e


práticas educacionais é um livro sobre aquilo que nos torna
humanos: a linguagem. O convite das autoras é para compre-
endermos a oralidade, a leitura e a escrita como faculdades
cognitivas exclusivas da espécie humana, graças às quais
podemos representar e expressar simbolicamente nossas
experiências como também adquirir e produzir conheci-
mentos (BAGNO, 2014, p. 20). Mas, este livro traz ainda duas
outras contribuições para o debate, igualmente complexas
e importantes. A primeira delas, a relação entre infância e
linguagem e a segunda, o papel da educação no processo por
meio do qual as crianças vão tornando-se seres de linguagem.
Quem não leu “A menina de lá”, de Guimarães Rosa,
precisa fazê-lo. Publicado no livro Primeiras histórias, no ano

10
PREFÁCIO

em que nasci, 1962, esse conto tem como protagonista uma


criança de quatro anos de idade, de nome Maria, mas que
atendia pelo apelido carinhoso de Nhinhinha. No seu coti-
diano simples, camponês, Nhinhinha vivia com sua mãe, seu
pai e Tiantônia. Uma existência prosaica, como de qualquer
família brasileira que vive de extrair seu sustento da lida na
terra, exceto por acontecimentos fantásticos que rondam a
pequena protagonista.
Nesse conto, Guimarães Rosa nos provoca e nos desequi-
libra ao tratar da nossa finitude, narrando a história de uma
criança “de lá”, cuja existência foi demasiadamente breve e
delicada. É assim que o narrador nos apresenta a personagem:
“Nhinhinha, com seus nem quatro anos, não incomodava
ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma,
imobilidade e silêncios” (ROSA, 2001, p. 68). Difícil imaginar
uma criança dessa idade que não corre, não faz birra, não tem
desejos. Dotada de uma sabedoria que lhe autoriza chamar
o pai de “Menino pidão” e a mãe de “Menina grande”, cujo
respeito por eles se parecia mais com uma “engraçada espécie
de tolerância” (ROSA, 2001, p.68). Há, portanto, no conto,
uma proximidade com a transcendência: Nhinhinha não é
deste mundo, ela é “de lá”.
Mas o que me fez trazer Nhinhinha para a apresentação
deste livro é a sua relação com as palavras. A sua maneira

11
PREFÁCIO

de dizer as coisas questiona a lógica adulta racionalista: “O


passarinho desapareceu de cantar”; “Estrelinhas pia-pia”;
“Alturas de urubuir”; “E eu? Tô fazendo saudades”. Ouso
dizer que, nesse caso, Nhinhinha é como todas as crianças do
mundo. Diz o que nunca foi dito, recupera a originalidade do
que existe e do que se pode imaginar, é enunciadora de um
discurso livre de estereótipos, portanto, inaugural. Impossível
não pensarmos o quanto as palavras que compõem os dis-
cursos de Nhinhinha questionam o trato que nós, como
adultos, temos com a linguagem. Na aflição do dia a dia, nas
urgências de nossos cotidianos, vamos transformando-a em
mera ferramenta de informação e de conhecimento. É por
isso que os adultos do conto reagem assim aos discursos da
menininha: “Ninguém entende muita coisa que ela fala...”
(ROSA, 2001, p. 67).
É, portanto, a relação entre linguagem e infância o que
quero destacar, em um primeiro momento. E, nesse caso, é
forçoso ressaltar outro elemento importante da narrativa:
tudo o que Nhinhinha falava acontecia. Uma criança cujos
desejos se realizavam pela força das palavras. Sobre isso, a força
da palavra, convém dizer também da força do infante para
dela se apropriar. Sobre esse processo, que se inicia quando
a criança chega ao mundo, Solange Jobim e Souza (2016, p.
14) o denomina de a “aventura de tornar-se emissora de suas

12
PREFÁCIO

próprias palavras”. E nos lembra: “Quando a criança está


tentando transformar sons, gestos e silêncios em palavras, ela
se torna testemunha do que ainda não é língua [...] A voz da
criança é testemunha de algo que luta para ser dito”. E mais
adiante conclui: “A infância é o momento da vida em que o
indizível pode ser experimentado como algo superlativamente
dizível”. (SOUZA, 2016, p. 14)
Infelizmente, como adultos, vamos perdendo a originali-
dade, o ineditismo, o poético, elementos característicos desse
momento inicial em que a criança vai construindo e vai sendo
construída pela linguagem. Crescer e tornar-se adulto, nas
sociedades contemporâneas, têm significado empobrecimento
da experiência, esvaziamento da memória e reificação da
vida cotidiana. Tudo isso resulta na nossa incapacidade de
absorver, sentir, incorporar aquilo que acontece no mundo.
Nós nos assujeitamos, em um processo crescente e acelerado
de esvaziamento das experiências linguísticas. A linguagem,
nessa perspectiva, assume cada vez mais o papel de mero
instrumento de intercâmbio de informações carentes de
sentido e de significados compartilhados.
É nesse contexto que o convite de Solange Jobim e Souza
(2016, p. 26) faz sentido e aponta para a segunda contribuição
deste livro: compartilhar reflexões acerca do papel da educação
(e dos/as educadores/as) no processo de significação do mundo,

13
PREFÁCIO

pela criança, por meio da palavra dita ou escrita. Um convite


para que as professoras das crianças se esforcem por conhecer
como as crianças apreendem os discursos a sua volta; como
experimentam as palavras do outro; que valores explicitam nas
suas trocas discursivas; como as crianças se articulam com os
valores culturais presentes no seu contexto social. E propõe:
“Aprender com as crianças a recuperar nossos sentimentos
essenciais é recuperar, com a ajuda delas, a crítica sobre o
mal-estar da nossa cultura” (SOUZA, 2016, p. 35).
Você encontrará, nos capítulos desta obra, fundamentos
teóricos que lhe ajudarão a compreender conceitos essenciais
para construir uma prática educativa que considere as crianças
como sujeitos ativos e que leve em conta as especificidades
dos processos de apropriação das linguagens oral e escrita
na infância.
No primeiro capítulo, “Alfabetização e Letramento: aspec-
tos conceituais e pedagógicos”, escrito por Giane Bezerra
Vieira, são retomados, por meio de uma pesquisa bibliográ-
fica, os conceitos de alfabetização e letramento presentes em
trabalhos acadêmicos, com a finalidade de refletir sobre a
relação desses conceitos com as práticas de alfabetização. A
autora conclui que a escola deve perseguir práticas capazes
de alfabetizar letrando, ou seja, práticas pedagógicas que
levem as crianças a se apropriarem do sistema alfabético, ao

14
PREFÁCIO

mesmo tempo em que desenvolvem capacidades relacionadas


aos usos sociais da oralidade, leitura e escrita.
No segundo capítulo, “Concepções de alfabetização na
BNCC e na PNA: possíveis implicações pedagógicas”, Karla
Rossana Rodrigues de Souza e Telma Ferraz Leal recuperam as
concepções de alfabetização presentes em duas propostas ofi-
ciais: a Base Nacional Comum Curricular - BNCC e a Política
Nacional de Alfabetização - PNA. Para a análise, realizou-se
pesquisa documental, empregando-se abordagem qualitativa,
na perspectiva da Análise de Conteúdo. As autoras concluíram
que, na BNCC, predomina a concepção de alfabetização na
perspectiva do letramento, ainda que tenham reconhecido
ambiguidades nas abordagens teórico-metodológicas que
sustentam esse documento normativo. Já em relação à PNA,
observaram a predominância da abordagem de alfabetização
compreendida como aquisição de um código. Constatam,
finalmente, que os documentos se contradizem, não havendo
coerência entre os pressupostos presentes na PNA e a proposta
pedagógica que perpassa a BNCC.
No terceiro capítulo, “Da velha e sempre presente discussão
da alfabetização na educação infantil”, como ressaltado no
próprio título, Maria Cristina Leandro de Paiva recupera a
antiga, mas ainda bastante presente, discussão sobre o papel
da educação infantil no processo de alfabetização das crianças.

15
PREFÁCIO

E acrescenta a reflexão sobre que papel ocuparia o brincar


nesse processo. Para dialogar com essas questões, a autora
recupera os conceitos de alfabetização e de letramento e, em
seguida, discute as relações entre leitura, escrita e o brincar
na educação infantil. Finalmente, buscando dialogar com
o desafio de aproximar as crianças do universo da escrita,
reflete-se sobre implicações pedagógicas necessárias para
assegurar simultaneamente os conhecimentos relacionados
ao letramento e à aquisição do sistema alfabético de escrita.
O quarto capítulo, “A brincadeira de papéis sociais e a
formação de bases para a apropriação da linguagem escrita
pela criança pré-escolar”, de Michelle de Freitas Bissoli e Aline
Janell de Andrade Barroso Moraes, traz contribuições sobre
a relação entre o jogo de faz de conta e o desenvolvimento
da linguagem escrita. Para fundamentar seus argumentos, as
autoras recorrem aos aportes teóricos de Vigotski, a partir dos
quais os atos de ler e escrever são tributários da capacidade de
simbolizar e do controle de conduta. Advogam que conhecer
a pré-história da linguagem escrita pode contribuir para que
professoras das infâncias desenvolvam práticas educativas
mais efetivas na formação das crianças como leitoras e autoras.
No quinto capítulo, “Repertório de leitura de literatura na
formação inicial de professores – teoria/ prática pedagógica
na formação docente”, Alessandra Cardoso de Freitas, Juliana

16
PREFÁCIO

de Melo Lima e Raquel Duarte Fernandes investigam qual


o conjunto de obras de leitura literária que constituem as
experiências de leitura de graduandas do curso de Pedagogia
da UFRN. Para conhecer o que as estudantes possuem como
repertório literário, foram aplicados questionários, realizaram-
-se atividades de formação de acervo, com livros de literatura
infantil e foram produzidas antologias poéticas. As autoras
advogam sobre a necessidade de se investir retrospectiva
e prospectivamente na formação leitora dos/as futuros/as
professores/as, considerando, sobretudo, aqueles que foram
privadas de experiências regulares e sistematizadas de leitura
de literatura.
Tomando como objeto de investigação situações em que
a linguagem oral está na centralidade da ação educativa,
o sexto capítulo, “A linguagem oral na educação infantil:
possibilidades e limites de apropriação em situações viven-
ciadas por crianças e professoras”, de autoria de Wanessa
Rafaela do Nascimento da Costa e Denise Maria de Carvalho
Lopes, analisa as interações entre professoras e crianças e das
crianças entre si, no processo de apropriação da linguagem
oral por bebês, em uma turma de 15 crianças da educação
infantil. Os dados foram coletados por meio de observações
semiparticipativas, em um Centro Municipal de Educação
Infantil de Natal, RN. Tendo como aporte teórico a teoria

17
PREFÁCIO

histórico-cultural, a investigação construiu três categorias de


análise que agruparam as situações vivenciadas no Centro.
Diante de limitações encontradas nas mediações realizadas
pelas docentes, as autoras advertem sobre a necessidade de
uma reconfiguração do trabalho com a linguagem oral e, para
tanto, dos programas de formação de professores.
No sétimo capítulo, “Apropriação da linguagem oral nos
três primeiros anos de vida: o papel do outro mais experiente”,
de Silvana de Medeiros da Silva e Mariangela Momo, são ana-
lisadas interações entre uma criança, nos seus três primeiros
anos de vida, e seus familiares. Os dados foram coletados entre
2018 e 2021, por meio de observação participante e mediadas
pelo WhatsApp. Os achados da pesquisa corroboram com
as investigações que tomam como aporte teórico a teoria
histórico-cultural, quais sejam, de que a maneira como ocor-
rem as interações entre o outro mais experiente e a criança
é determinante no processo de apropriação da linguagem e
na ampliação de suas capacidades discursivas e cognitivas.
O oitavo e último capítulo, “O trabalho pedagógico com
a linguagem oral na educação infantil no contexto do aten-
dimento educacional hospitalar”, Jacyene Melo de Oliveira
Araújo e Maria Aparecida Vieira, discute o papel fundamental
das práticas educativas relacionadas à linguagem oral, de
crianças de zero a cinco anos, desenvolvidas em ambiente

18
PREFÁCIO

hospitalar, como condição para assegurar o direito das crian-


ças pequenas à educação. Para a realização da investigação, foi
feita análise documental, análise bibliográfica e observação
participante. O contexto da Pandemia de Covid-19 implicou
em adaptações metodológicas, resultando em três momentos
que alternaram situações presenciais e remotas, de acordo com
as condições sanitárias de cada momento. As conclusões do
estudo mostraram que as práticas pedagógicas desenvolvidas
naquele ambiente hospitalar oportunizavam, às crianças,
expressarem-se oralmente durante as brincadeiras livres; nas
rodas de conversa; e nos momentos de contação e recontação
de histórias, nos quais a literatura se fazia presente.
Termino este prefácio recuperando a personagem criada
por Guimarães Rosa que, de maneira tão delicada, nos apro-
xima do universo infantil. As palavras de Nhinhinha, “tudo
nascendo… “tudo nascendo”, bem que poderiam ser o mote
para a atuação de quem exerce a profissão docente junto às
infâncias.
Que este livro possa ajudar essas pessoas a compreender
a importância das linguagens oral e escrita não apenas como
ferramentas psíquicas fundamentais para o desenvolvimento
das crianças, mas como práticas sociais que estruturam as
interações, no cotidiano das instituições educativas, e que
podem abrir ou fechar portas; nos aproximar ou nos distanciar

19
PREFÁCIO

uns dos outros, e que por tudo isso pode nos ajudar a entender
nosso papel diante da constituição das subjetividades infantis.
Finalmente, espero que a leitura dos capítulos deste livro
seja uma oportunidade para a tomada de consciência de seus
leitores acerca da honra, da alegria e do prazer de acompanhar
cotidianamente, no exercício da sua profissão, o nascer e
o renascer da nossa espécie, fadada a construir sentidos e
significados para tudo que experimenta, por meio da palavra.

BAGNO, Marcos. Linguagem. In: FRADE, Isabel Cristina Alves da


Silva; VAL, Maria da Graça Costa; BREGUNCI, Maria das Graças
de Castro (org.). Glossário Ceale. Termos de alfabetização, leitura
e escrita para educadores. Belo Horizonte: UFMG/ Faculdade de
Educação, 2014. p. 192-193.

ROSA, João Guimarães. A menina de lá. In: ROSA, João Guimarães.


Primeiras histórias. 15. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.
67-72.

SOUZA, Solange Jobin. Infância e linguagem. In: BRASIL/ SEB/MEC.


Ser crianças na educação infantil: infância e linguagem. Caderno
2. Brasil: MEC/SEB, 2016, p. 13-43. (Coleção Leitura e Escrita na
Educação Infantil).

Belo Horizonte, 26 de junho de 2022.

20
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO:
aspectos conceituais e pedagógicos
Giane Bezerra Vieira

Comecei a escrever um nome feio e pequeno, por onde


passava. Descontava minha raiva na parede da igreja ou nos
muros do cemitério. Escrevia na maior rapidez. Meu irmão,
José, ia atrás arrumando minha indecência e desrespeito.
Crescia em mim uma inveja grande de sua inteligência.
Ele puxava mais uma perninha no u e fazia uma voltinha
em outra perna e virava e. Então ele botava um acento, e
pronto! A palavra feia e imoral se transformava na palavra
“céu” (QUEIRÓS, 1997, p. 40).

A aprendizagem da língua escrita, na perspectiva das práticas


sociais letradas, vem sendo refletida no Brasil como uma
aprendizagem conceitual de grande complexidade. No entanto,
o trabalho pedagógico realizado nas classes de alfabetização,
em geral, tem se mostrado insuficiente para formar leitores

21
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

e escritores competentes. Os problemas enfrentados atual-


mente pela sociedade contemporânea têm alterado todos os
campos de vida social e, de forma significativa, a educação.
No contexto de globalização econômica, que transformou o
capitalismo num bloco monolítico internacional, aumentaram
as exigências em relação às competências que os indivíduos
devem ter para produzir e compreender o mundo.
Diante dessas transformações, a educação e, mais especi-
ficamente, a alfabetização são instrumentos indispensáveis,
tanto para o desenvolvimento dos sujeitos individuais, como
para o das sociedades. Nos meios urbanos, os usos sociais da
leitura e escrita têm sido considerados como uma via impor-
tante para que as pessoas possam transitar com familiaridade
entre diversas práticas culturais e em diferentes instituições,
conscientes de seus papéis, possibilidades e modalidades de
ação.
Neste capítulo, discutiremos os fundamentos teórico-
-metodológicos dos conceitos de alfabetização e letramento,
realçando as suas especificidades e relações e suas articulações
com a prática pedagógica. No intuito de definirmos a especifi-
cidade da alfabetização, discorreremos sobre suas dimensões,
destacando os seus fundamentos e implicações no trabalho
pedagógico com crianças. Do mesmo modo, refletiremos
sobre a dimensão específica do letramento e, num terceiro

22
Giane Bezerra Vieira

momento, buscaremos evidenciar as relações entre os dois


conceitos a partir da expressão alfabetizar letrando.
Assumimos, nesta obra, a concepção interacionista de
alfabetização e o fazemos a partir do princípio de que tanto
os estudos de Piaget (1986), quanto Vygotsky (1988), que
fundamentaram respectivamente os trabalhos de Ferreiro
e Teberosky (1985), Smolka (1991) e outros autores que são
aqui referenciados, adotam os conceitos de interação entre
sujeito/objeto e sujeito/outro/objeto como condição funda-
mental para a construção do conhecimento. Piaget (1986) dá
ênfase à interação do sujeito com o objeto, num plano mais
individual e Vygotsky (1988) realça a interação social, num
plano intersubjetivo, nas trocas sujeito/outro/objeto social,
nas quais têm origem as funções mentais superiores.

As especificidades da alfabetização

A alfabetização tornou-se uma questão central nas dis-


cussões sobre o Ensino Fundamental no Brasil e em outros
países do mundo por razões ligadas às novas transformações
tecnológicas, sociais e culturais em torno da escrita, mate-
rializadas na expansão de práticas de leitura e de escrita, na
ampliação da diversidade de textos e dos seus usos sociais.
Essas mudanças, ocasionadas por fatores históricos e culturais,

23
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

afetam diretamente a escola, que tem como principal função


possibilitar a socialização e apropriação do conhecimento
científico e a formação de sujeitos inseridos em um determi-
nado contexto sociocultural. A esse respeito, Mortatti (2004,
p. 15) afirma que:

Saber ler e escrever, saber utilizar a leitura e a escrita nas


diferentes situações do cotidiano são, hoje, necessidades
tidas como inquestionáveis tanto para o exercício pleno
da cidadania, no plano individual, quanto para a medida
do nível de desenvolvimento de uma nação, no nível
sociocultural e político.

No campo teórico-metodológico, várias produções sobre


a apropriação do sistema alfabético por crianças e sobre o
conjunto de práticas sociais relacionados aos usos, à função
e ao impacto da escrita na sociedade passaram a fazer parte
dos discursos de pesquisadores, técnicos e professores. Nesse
sentido, tem se configurado uma crescente produção científica
nessa área, com diferentes enfoques teóricos e diversas facetas
de investigação: a psicológica, a linguística, a sociolinguística,
a política, a social e a histórica (SOARES, 2003).
Considerando que a alfabetização é um processo social,
multifacetado, que tem dimensões históricas, Cook-Gumperz
(1991, p. 29) enfatiza que essa “não pode ser julgada separa-
damente de alguma compreensão das circunstâncias sociais

24
Giane Bezerra Vieira

e tradições históricas específicas que afetam o modo como


esta capacidade enraíza-se numa sociedade”.
Podemos afirmar que a alfabetização é um processo que
tem seu sentido ampliado no decorrer dos tempos. Até o início
do século XX, considerava-se alfabetizado aquele que soubesse
ler e escrever minimamente. Hoje, devido às transformações
tecnológicas e industriais, sociais e culturais em torno da
escrita, materializadas na expansão das práticas de leitura
e de escrita, questiona-se tal sentido do termo, o qual vem
sendo gradativamente ampliado. Fala-se em alfabetização
matemática, musical, artística e em outras linguagens. O
conhecimento histórico das diferentes formas de escrita e
da sua inserção na cultura em que surgiram e desenvolve-
ram-se tem nos mostrado a íntima relação existente entre a
alfabetização e a cultura.
A compreensão da alfabetização na perspectiva de letra-
mento requer o exame da complexidade e das singularidades
desses conceitos, a partir da consideração de que são rela-
cionados e específicos ao mesmo tempo. Nesse sentido, é
necessário definirmos, inicialmente, as suas especificidades.
Concebemos a alfabetização como um processo específico
de apropriação do sistema de escrita que envolve dimensões,
tais como: a aprendizagem da base alfabética da língua (seu
princípio de representação), o desenvolvimento de habilidades

25
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

de codificação/produção (escrita), produção de textos de diver-


sos gêneros, decodificação/compreensão (leitura) e oralidade.
E o letramento é um fenômeno caracterizado pelas práticas
sociais de uso da linguagem escrita; é o exercício efetivo e
competente da tecnologia da escrita (ALBUQUERQUE, 2005,
2006; LEAL, 2005, 2006; SOARES, 2003).
Em relação às dimensões específicas do processo de alfa-
betização, enfocamos, inicialmente, a apropriação da base
alfabética da língua. Pesquisas realizadas em Pernambuco,
por exemplo, (ALBUQUERQUE, 2006; LEAL, 2005; MORAIS,
2005) têm evidenciado e resgatado a relação existente entre
o desenvolvimento de práticas sistemáticas e contínuas de
alfabetização – que envolvem, por um lado, atividades de
leitura e produção de textos e, por outro, diariamente, ativi-
dades que exploram os princípios do sistema de escrita – e
a aprendizagem das crianças no que se refere a esse sistema.
A esse respeito, Leal (2006, p. 89) teoriza sobre a apropriação
do sistema alfabético, atrelando-a às “situações didáticas de
reflexão sobre os usos e funções sociais da escrita que precisam
estar presentes em todas as situações que envolvem o ensino
da língua”. Dessa forma, enumera objetivos didáticos da
alfabetização inicial relacionados à reflexão dos princípios
desse sistema:

26
Giane Bezerra Vieira

1. Compreender que são utilizados símbolos conven-


cionais na escrita, que são as letras;
2. Reconhecer as letras, percebendo os invariantes nos
traçados;
3. Traçar as letras, atendendo aos atributos essenciais
que as diferenciam;
4. Reconhecer a palavra enquanto unidade de significado
(consciência da palavra);
5. Segmentar palavras em partes sonoras (sílabas);
6. Perceber que a sílaba é constituída de unidades sonoras
menores (fonemas), distinguindo fonemas dentro da
sílaba (consciência fonológica);
7. Perceber que a cada fonema corresponde uma letra
ou mais de uma (dígrafos);
8. Estabelecer correspondências grafofônicas, perce-
bendo a frequência de uso das vogais nas sílabas;
9. Perceber as variações na estrutura das sílabas;
10. Perceber que a direção predominante da escrita é
horizontal e o sentido é da esquerda para direita
(LEAL, 2006, p. 89-90).

A compreensão desses princípios de organização da língua


não envolve questões ligadas só à memorização, mas implica
o domínio de uma série de propriedades lógicas da escrita.
Leal (2006, p. 115) defende que “alfabetizar não é apenas
aprender sobre o código, mas é também compreender um
objeto de conhecimento complexo, que exige um trabalho
pedagógico voltado para tal fim” e acrescenta que, para que

27
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

o aprendiz compreenda todos os princípios do sistema de


escrita, é necessário que sejam sistematizadas interações entre
as crianças e a escrita mediadas pelo professor e as crianças
de modo que estas possam obter informações consistentes
sobre as convenções desse sistema.
Nesse sentido, as estratégias metodológicas em uma
perspectiva de alfabetizar letrando abrangem momentos de
leitura e produção de diferentes gêneros textuais e momentos
de reflexão sobre a constituição do sistema alfabético, para
que o aluno ganhe maior autonomia nas atividades de uso
do texto escrito.
A partir dos princípios de Ferreiro e Teberosky (1985),
Morais (2005) define a escrita alfabética como um sistema
notacional e considera que a criança vivencia um percurso
evolutivo que compreende a resolução de duas questões con-
ceituais complexas: O que a escrita representa/nota? (o que
se nota, registra no papel, tem a ver com as características
físicas/funcionais dos objetos ou tem a ver com a sequência
de sons que formam os nomes dos objetos?); Como a escrita
cria representações/notações? (A letra substitui o quê? O
significado ou a ideia da palavra como um todo? Partes que
pronunciamos como as sílabas? Segmentos sonoros menores
que a sílaba?)

28
Giane Bezerra Vieira

Diante dessas questões, Morais (2005) complementa que


o ato físico de notar (registrar palavras com letras no papel
ou em outro suporte) está subordinado à compreensão, isto
é, às representações mentais que a criança elabora a respeito
das propriedades do sistema de escrita.
A criança se apropria da base alfabética da escrita quando
compreende os princípios que regem o funcionamento da
representação escrita alfabética, ou seja, da relação entre a
escrita e os sons da língua falada, bem como de outros ele-
mentos inerentes ao sistema (letras – formas e valores sonoros,
aspectos fonoaudiológicos, direcionalidade, alinhamento,
segmentação e regras ortográficas básicas).
Esses conhecimentos serão essenciais para a produção
de textos escritos que envolvem codificação – conversão de
fonemas em grafemas – e ainda as outras convenções do
sistema alfabético, bem como conhecimentos sobre o que,
para que, como se escreve.
Ainda no tocante às dimensões específicas da alfabetiza-
ção, realçamos que a criança reflete sobre os significados da
língua, mediante a atividade de produção de textos. Fundado
numa concepção social de linguagem, Geraldi (2003) afirma
que a unidade da atividade linguística é o enunciado, o texto.
Por meio do texto oral ou escrito, que pode ser uma palavra
ou uma obra completa, é que a escrita deve ser ensinada e

29
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

aprendida. Assim, o autor concebe a linguagem como pro-


dução e compreensão de textos e afirma que, para classificar
um escrito como texto, é necessário “que se tenha algo a
dizer; se tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer;
se tenha para quem dizer o que se tem a dizer; o locutor se
constitua como tal, enquanto sujeito que diz o que diz, para
quem diz” (GERALDI, 2003, p. 101). Nessa concepção, o
conceito de texto possui uma dimensão eminentemente social,
visto que, para se constituir como tal, necessita do outro no
movimento da interlocução. O outro é condição fundamental
para constituição do discurso.
Sobre essa questão, Góes (1997, p. 101) faz o seguinte
comentário: “[...] na produção de um texto, o locutor faz
uma proposta de compreensão ao interlocutor e, no processo
de produção, desenvolve ações com a linguagem e sobre a
linguagem”.
A autora argumenta ainda, com base em Vygotsky (1988),
que a linguagem se constitui de forma primária, no plano da
comunicação, e, dessa forma, envolve regulações recíprocas
entre criança e outros, e, desse processo, passa a ser orientada
para si, servindo à autorregulação. Nessa perspectiva, se faz
presente um duplo movimento de apropriação: “da interação
enunciador-enunciatário (função comunicativa), nasce uma

30
Giane Bezerra Vieira

relação do sujeito com sua própria escrita” (GÓES, 1997, p.


103).
Geraldi (2003) explicita que o texto é muito mais do que o
simples aglomerado de palavras e de frases; ele se caracteriza
pelas múltiplas relações que se estabelecem entre as partes
que o constituem, relações essas que fazem com que o texto
se apresente e se constitua como uma unidade significativa
da língua. Aprender a escrever e ler implica, além de ter o
conhecimento de letras e de suas regras de representação dos
sons da língua oral, a possibilidade de produzir escritas como
linguagem, como outro modo de expressão, comunicação e
reflexão, como formas reconhecidas, necessárias e legítimas,
em determinados contextos culturais. Consideramos que uma
diretriz pedagógica fundamental no trabalho do professor
alfabetizador é a utilização, como material para ensinar a
escrever, de “textos verdadeiros”, ou seja, textos que, nas
atividades de sala de aula, propiciem a aproximação das
crianças de formas pelas quais a escrita é vivenciada nas
práticas sociais.
Bakhtin (1986) entende que a linguagem é essencialmente
social e sua construção é influenciada pelo ambiente socio-
cultural dos indivíduos. São suas experiências cotidianas que
irão enriquecer seu repertório linguístico e lhe possibilita-
rão interações discursivas. Nesse sentido, desenvolve uma

31
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

teorização sobre os gêneros textuais, definindo-os como


instrumentos heterogêneos e flexíveis, historicamente cons-
truídos em resposta às demandas e às atividades sociocul-
turais dos sujeitos. Discute os gêneros como instrumentos
culturais que se vinculam às práticas sociais e aos processos
de apropriação da linguagem. Desse modo, caracterizados
por sempre apresentarem tema, construção composicional e
estilos específicos, os gêneros tornam a comunicação humana
possível. Além disso, a capacidade de adaptação e a plasti-
cidade fazem com que os gêneros textuais sejam construtos
históricos que se centram na ação social. Este aspecto ajuda
na identificação de muitos gêneros, com base em sua função
e intenção. (BAKHTIN, 2010; MARCUSCHI, 2002).
Os gêneros são fenômenos sócio-históricos que apresentam
um caráter de relativa estabilidade e mudam de forma para
se adaptar às necessidades humanas, aos diversos eventos de
letramento que vivenciamos a cada dia. A forma dos gêneros
é, portanto, resultado das suas condições de produção: quem
diz, o que, para quem, em que situação, por meio de que gênero
textual, com que propósito comunicativo. Porém, isso não
significa desprezar os aspectos relativos à forma porque, “em
muitos casos, são as formas que determinam o gênero e, em
outros tantos, serão as funções” (MARCUSCHI, 2002, p. 21).

32
Giane Bezerra Vieira

Nesses termos, podemos afirmar que um gênero textual


é uma combinação entre elementos linguísticos de diferentes
naturezas – fonológicos, morfológicos, lexicais, semânticos,
sintáticos, oracionais, textuais, pragmáticos, discursivos
e ideológicos – que se articulam na linguagem usada em
contextos recorrentes da experiência humana em que são
socialmente compartilhados.
Esse quadro teórico sugerido por Bakhtin (1986, 2010)
abre possibilidades para os professores alfabetizadores ajuda-
rem as crianças a desenvolver a competência discursiva por
intermédio do trabalho com gêneros textuais, associando a
leitura e a produção desses textos às atividades de linguagem
e aos lugares sociais e ambientes discursivos em que de fato
ocorre a interação social.
Ao aprender os gêneros que se constituem em um grupo
social e uma dada cultura, a criança se apropria de maneiras
de participar nas ações de uma sociedade. Assim sendo,
realizar um trabalho com gêneros textuais na sala de aula,
aliado ao contexto social ou à atividade em que a linguagem
desempenha uma função simbólica constitutiva, parece ser
o nosso desafio.
A prática de alfabetização é o lugar onde devemos analisar,
criticar e/ou avaliar as várias instâncias de interação humana
de culturas localizadas, nas quais a linguagem é usada para

33
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

mediar práticas sociais. Essa compreensão da natureza social


da linguagem é indispensável para entendermos a essência
da alfabetização e do letramento, tendo em vista que ler e
escrever são linguagens e, portanto, produzidas em situação
de interação social.
No tocante ao planejamento das atividades pedagógicas
voltadas para a dimensão da produção de textos, é impor-
tante que essas contemplem as reflexões sobre o contexto
de produção. O contexto de produção, tal como propõem
vários autores, determina não apenas o que dizemos sobre
o tema que escolhemos para escrever, mas também a forma
que escolhemos para “dizer”. Assim, um texto caracteriza-se
por elementos que configuram uma interação – uma ação
entre sujeitos: um autor (quem diz), um destinatário (a quem
diz), um motivo, um conteúdo e, em consequência desses
elementos, um modo de dizer. Esses modos constituem os
tipos e gêneros de textos com suas características diferentes
(GERALDI, 2003).
É preciso que, na escola, o professor crie situações diárias
em que a linguagem oral seja praticada efetivamente, em
que as crianças sejam desafiadas a fazerem coisas com a
linguagem e sobre a linguagem, devendo contar com a ajuda
de seus professores para isso. Situações em que elas precisem
organizar seus dizeres (e entenderem os dizeres dos outros)

34
Giane Bezerra Vieira

de modo mais elaborado (valorizando seus modos de falar


de origem e aprendendo outros modos para serem utilizados
em outros contextos), com objetivos e temas diferentes como:
conversas, relatos, contação e recriação de histórias ouvidas,
de piadas, trava-línguas, roteiros para peças teatrais, apre-
sentações teatrais, apresentação de temas em estudo para o
próprio grupo e para outras turmas, instruções para alguma
atividade, avisos, entre outros.
O planejamento de práticas de alfabetização e letramento
nos anos iniciais do Ensino Fundamental deve considerar
questões como: o lugar da produção, características de para
quem vamos escrever, a forma que interagimos com o receptor
do texto, posição social do locutor e do interlocutor, objetivo
da interação, entre outras coisas. Assim, a elaboração das
atividades deve ser orientada pelas seguintes questões: Qual
será o gênero a ser produzido? Qual será a finalidade da
produção textual? Qual será o destinatário? Como será a
produção? (individual, coletiva, em dupla, em grupo); quais
as características do gênero que vai ser produzido?
Ainda discutindo as dimensões da alfabetização, defini-
mos a leitura como uma atividade que envolve codificação e
compreensão de textos orais escritos. Solé (1998) e Colomer e
Campos (2002) abordam sua aprendizagem como um processo
cognitivo de construção de sentidos em que a compreensão do

35
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

texto não depende só de habilidades visuais, mas do emprego


de conhecimentos que são elaborados e modificados com a
leitura. Aprender a ler é aprender a linguagem escrita pela
inserção em práticas sociais que permitem à criança desenvol-
ver e utilizar, de forma integrada, procedimentos que orientam
a compreensão do texto. Nesse contexto, para aprender a ler, a
criança precisa construir conhecimentos sobre para que serve
ler; sobre os elementos que compõem o texto, sobre o tema
do texto, sobre as estratégias de leitura, sobre as inferências
do seu conteúdo explícito e implícito, sobre o funcionamento
do sistema (relação grafema-fonema – decodificação), entre
outras habilidades.
Colomer e Campos (2002) nos mostram a importância
de o professor conhecer teorias sobre a leitura e a escrita,
à medida que esses referenciais fornecem instrumentos de
análise e reflexão sobre a prática, sobre como se aprende e
como se ensina. Dessa forma, a escola tem contribuído para
inviabilizar uma formação leitora compatível com as com-
petências que devem ser desenvolvidas para a compreensão/
interação com os diversos gêneros de texto. Ser leitor é ser
produtor de significados e sentidos a partir de textos escritos
e de sua decodificação. Esta habilidade se constrói de forma
complexa por meio de inserção intencional e sistematicamente
mediada, em práticas reais de leitura.

36
Giane Bezerra Vieira

Embora envolva processamentos individuais (desenvolvi-


dos e apropriados socialmente), a leitura tem uma natureza
essencialmente cultural, vinculada aos seus usos diversos e
socialmente contextualizados. É uma atividade social com-
partilhada que se desenvolve por meio da própria atividade
de leitura; a criança aprende a ler, refletindo sobre a relação
grafema-fonema; lendo, de modo mediado, textos socialmente
significativos e diversificados em seus fins, estruturas, lin-
guagens e suportes. É importante que o professor conceba
a leitura como objeto de conhecimento, compreendendo a
sua natureza, os processos cognitivos, afetivos e culturais
envolvidos nela e os modos de ensinar/aprender essa atividade.
Compreendemos a leitura como uma interação entre o lei-
tor e o texto escrito, em que um age sobre o outro. Desse modo,
aprender a ler é um processo de apropriação de conhecimentos
diversos envolvidos no ato de ler, relativos à decodificação
e à compreensão. Ser leitor é ser produtor de significados e
sentidos a partir de textos escritos e de sua decodificação.
Essa habilidade se constrói de forma complexa por meio de
inserção intencional e sistematicamente mediada, em práticas
reais de leitura.
Os conhecimentos relativos aos procedimentos próprios ao
como se lê, ou seja, ao ato de ler/compreender o que está escrito,
requerem uma intervenção sistemática e intencional que

37
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

possibilite à criança tanto a compreensão do funcionamento


do sistema de escrita (relação grafema-fonema que possibilita
a decodificação), como o desenvolvimento de procedimentos
de compreensão – as estratégias de leitura, descritas por Solé
(1998) e por Soligo (1992) como sendo: seleção – quando se
foca partes do texto desconsiderando outras; antecipação
– quando, com base em informações explícitas no texto,
se antecipam significados e sentidos; inferência – quando,
com base em informações implícitas no texto, se deduz algo;
verificação ou checagem dos sentidos construídos, se eles são
coerentes ao texto. Além dessas estratégias, faz-se necessário
que o aprendiz desenvolva procedimentos de identificação
de informações/sentidos implícitos e explícitos no texto, a
leitura global – a partir de partes decodificadas; a fluência,
entre outras habilidades.
Outra dimensão importante da alfabetização que é pouco
trabalhada na escola é a oralidade. Os gêneros orais não são
percebidos como um objeto de ensino, ou melhor, como
um “objeto de conhecimento” mediado pelo professor no
processo de ensino-aprendizagem e, que, portanto, mereçam
ser sistematizados. O ensino do oral não corresponde ao
trabalho com a capacidade de falar do indivíduo, mas significa
desenvolver gêneros que apoiam a aprendizagem escolar de
Língua Portuguesa e de outras áreas (exposição, seminário,

38
Giane Bezerra Vieira

entrevista, debate, etc.) e, também, os gêneros da vida pública


no sentido mais amplo do termo (debate, teatro, palestra, etc).
De acordo com Goulart (2005), priorizar apenas os gêneros
escritos da língua seria ignorar a evidência de que as interações
linguístico-sociais, em sua grande parte, acontecem pela
oralidade, a qual, por sua vez, está cada vez mais presente
nas novas mídias da cultura eletrônica. Ensinar a língua
oral deve significar para a escola possibilitar acesso a usos
da linguagem mais formalizados e convencionais, que exijam
controle mais consciente e voluntário da enunciação, tendo
em vista a importância que o domínio da palavra pública
tem no exercício da cidadania.
Ao discutir a ampliação do trabalho com gêneros orais
na escola, Goulart (2005) apresenta indicações para sistema-
tização do ensino com esses gêneros:

É válido ressaltar que, ao se adotar uma perspectiva de


trabalho com a modalidade oral da linguagem, com vistas
a formar alunos para o exercício da cidadania, estar-se-ia
contemplando a diversidade de situações comunicativas e,
assim, os gêneros orais seriam tomados como instrumentos
semióticos para o ensino (GOULART, 2005, p. 58).

Nesse sentido, a autora citada apresenta alguns princípios


que normatizam o ensino dos gêneros orais, quais sejam:

39
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

1. realizar atividades que insiram os alunos em situações


comunicativas diversas como meio de conhecimento
e domínio cada vez maior da língua;
2. confrontar os alunos com situações de uso público
da língua, tendo em vista o desenvolvimento de uma
relação mais consciente e voluntária do próprio com-
portamento linguístico-comunicativo, a fim de motivar
as capacidades de escrever e de falar;
3. permitir que os alunos compreendam que o trabalho
de produção de linguagem deve se dar por meio da
inserção deles em situações cada vez mais complexas e,
por isso, é um trabalho lento e em constante elaboração.
Em suma, a compreensão das dimensões específicas da
alfabetização ratifica que alfabetizar não é apenas ensinar/
aprender um código, mas implica a interação da criança
com um objeto de conhecimento complexo que exige um
trabalho pedagógico sistemático e contínuo voltado para tal
fim. Ademais, essas atividades devem ser desenvolvidas em
situações reais de uso da linguagem, ou seja, em situações
comunicativas de fato, nas quais a interlocução é condição
fundamental para que ocorram. É preciso que as crianças,
mediadas por outros mais experientes, sejam inseridas em
situação de uso, de vivência dessa linguagem, para que
ela se configure como tal. Com base nessas colocações,

40
Giane Bezerra Vieira

compreendemos que a alfabetização não se limita só à


mecânica do ler e do escrever (codificação/decodificação),
mas configura-se na apreensão de uma linguagem; modo
de produzir sentidos.

As especificidades do letramento

Apesar do conceito de alfabetização que explicitamos


anteriormente dar conta da sua complexidade, no sentido de
abarcar duas dimensões importantes ligadas à compreensão
e organização da estrutura da língua, nos últimos 30 anos,
começamos a enfrentar uma realidade social em que não
basta simplesmente produzir textos e refletir sobre a base
alfabética da língua: dos indivíduos se requer não apenas
que dominem a tecnologia do ler e escrever, mas que saibam
fazer uso dela, incorporando-a a seu viver.
Partimos da compreensão de que o conceito de letra-
mento não pode ser estudado como um fenômeno univer-
sal, indeterminado social e culturalmente, e, sim, como um
conjunto de práticas sociais de uso da leitura e da escrita,
em contextos específicos, para objetivos específicos. Desse
modo, o letramento é um fenômeno social que é definido e
reelaborado em cada cultura, em cada grupo e, por contraste e
diferenciação, entre vários grupos, incluindo grupos de leitura,

41
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

salas de aula, escolas, comunidades e categorias profissionais


(educadores, médicos, mecânicos, administradores etc.). É
um processo dinâmico em que o significado da ação letrada
é continuamente construído pelos membros de uma deter-
minada cultura. Por conseguinte, envolve mais do que usos
individuais de leitura e escrita; envolve também os contextos
comunicativos compartilhados, nos quais o significado do que
se entende por ações letradas é definido de forma específica.
O que significa letramento em qualquer desses grupos ou
culturas torna-se visível nas ações de seus participantes,
nas diferentes formas de utilização da leitura, da escrita e
da oralidade, no engajamento que têm com textos diversos.
No intuito de discutirmos esse fenômeno, apresentaremos
uma breve síntese das visões de letramento presentes nas
pesquisas das últimas duas décadas, realçando os efeitos
que essas teorizações tiveram sobre o enfoque das relações
entre letramento e escolarização. A produção de pesquisas
sobre o letramento tem colaborado para reposicionar o papel
da linguagem na escola e atualizar os sentidos atribuídos à
alfabetização e à escolarização. Considerando esses aspectos,
estudiosos do letramento como Kleiman (1995, 2016); Soares
(2000, 2003); Goulart (2001, 2006), Terzi (2001); Mortatti
(2004); Albuquerque (2005); Colello (2005); Albuquerque e
Leal (2006) e Leite (2006) têm se preocupado em conceituá-lo

42
Giane Bezerra Vieira

a partir de suas especificidades culturais e em compreender a


sua relevância para a inserção do indivíduo em uma sociedade
letrada, a partir das práticas sociais e escolares da escrita,
presentes no cotidiano.
Soares (2000, 2003, 2006) realiza estudos sobre as relações
entre letramento e alfabetização, destacando as consequências
das práticas sociais da escrita para os indivíduos em suas
dimensões individuais e sociais. De acordo com autora:

Nos dias de hoje, em que as sociedades do mundo inteiro


estão cada vez mais centradas na escrita, ser alfabeti-
zado, isto é, saber ler e escrever, tem se revelado condição
insuficiente para responder adequadamente às demandas
contemporâneas. É preciso ir além da simples aquisição do
código escrito, é preciso fazer uso da leitura e da escrita
no cotidiano, apropriar-se da função social dessas duas
práticas; é preciso letrar-se (SOARES, 2000, p. 2).

Segundo a autora, principalmente a partir da década de


1990, o conceito de alfabetização passou a ser vinculado ao
de letramento. No Brasil, o termo letramento não substitui a
palavra alfabetização, mas aparece associado a ela.
A palavra letramento é uma tradução da palavra inglesa
literacy, que vem do latim litera - (letra), com o sufixo cy -
(condição, qualidade) que significa condição de ser letrado.
Esse termo aparece nos países de língua inglesa no final do

43
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

século XIV e, no Brasil, apesar de Mary Kato ter utilizado


esse vocábulo no seu livro No mundo da escrita, a palavra só
foi dicionarizada em 2001, no dicionário Houaiss.
As novas demandas sociais de uso da leitura e da escrita
“exigiram” uma palavra para designá-las. Isto confirma o
caráter material e histórico da linguagem e nos faz retornar
à concepção marxista de linguagem de Bakhtin (1986), que
considera a palavra como um reflexo generalizado de um
conteúdo objetivo, os significados como históricos e mutáveis
e a linguagem como um componente inseparável da cultura
material. Sua gênese e estrutura e desenvolvimento só podem
ser entendidos em relação com a evolução histórico-social
do homem.
A esse respeito, Soares (1998, p. 34) afirma que: “[...] na
língua, sempre aparecem palavras novas quando fenômenos
novos ocorrem, quando uma nova ideia, um novo fato, um
objeto surgem, são inventados, é necessário ter um nome para
aquilo [...].” Para as coisas existirem, precisamos nomeá-las,
por exemplo, denominamos “internauta - a pessoa que navega
na internet”.
O conceito de letramento traz subjacente a concepção
de língua como processo de interação entre sujeitos, na qual
os interlocutores vão construindo sentidos e significados ao
longo de suas trocas linguísticas. Nesse sentido, a língua não é

44
Giane Bezerra Vieira

mero veículo de comunicação, mas uma atividade simbólica,


cultural, discursiva e constitutiva da subjetividade. De acordo
com Soares (2000, p. 39), o letramento é definido como:

[...] resultado da ação de ensinar e aprender as práticas


sociais de leitura e escrita; o estado ou condição que adquire
um grupo social ou um indivíduo como consequência
de ter se apropriado da escrita e de suas práticas sociais.

Esse conceito apresentado por Soares é caracterizado pelas


habilidades e conhecimentos de leitura e escrita necessários
para que o indivíduo se torne engajado nas atividades sociais
nas quais elas são exigidas. Em uma sociedade letrada, essas
habilidades não podem ser desvinculadas de seus usos, nem
desligadas das formas que efetivamente assumem na vida
social.
Soares (1998, p. 29) acrescenta que o sujeito é considerado
letrado: quando é capaz de interpretar, divertir-se, seduzir,
sistematizar, confrontar, introduzir, documentar, informar,
orientar-se, reivindicar e garantir a sua memória, este se
abarca do efetivo uso da escrita, garantindo-lhe uma condição
diferenciada na sua relação com o mundo, um estado não
necessariamente conquistado por aquele que apenas domina
o código.

45
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

Além disso, a autora destaca que, do ponto de vista peda-


gógico, não é preciso alfabetizar as crianças e, posteriormente,
letrá-las.

A alfabetização – a aquisição da tecnologia da escrita – não


precede nem é pré-requisito para o “letramento”, ou seja,
para a participação nas práticas sociais de escrita, tanto
é assim que os analfabetos podem ter um certo nível de
“letramento”: sem que hajam adquirido a tecnologia da
escrita, utilizam a quem a tem para fazer uso da leitura
e da escrita, além disso, na concepção psicogenética de
alfabetização atualmente em vigor, a tecnologia da escrita
é aprendida não como em concepções anteriores com
textos construídos artificialmente para a aquisição das
‘técnicas’ de leitura e escrita, e sim por meio de atividades
de “letramento”, ou seja, de leitura e produção de textos
reais, de práticas sociais de leitura e escrita (SOARES,
1998, p. 92).

Esse entendimento rompe com os padrões do ensino da


língua com base na gramática tradicional, pois, a partir do
letramento, a criança tem a possibilidade de uso efetivo de
um conhecimento linguístico que o beneficie nas formas de
expressão e comunicação, possíveis, reconhecidas, necessárias
e legítimas em um determinado contexto cultural.
Corroborando com essa ideia, Goulart (2001) defende um
ensino calcado na noção de letramento como um horizonte

46
Giane Bezerra Vieira

ético-político para a escola à medida em que suas práticas


permitirem às crianças a interação com diferentes vozes
sociais e diferentes discursos. Nesse sentido, para a autora:

Formar pessoas letradas significa abrir as possibilidades


de entrada de outras vozes em suas vidas, histórias e dis-
cursos, outros modos de conhecer, ver e viver no mundo,
no interior de uma perspectiva crítica. Essas outras vozes
estariam em permanente tensão, compondo as orientações
de letramento dos sujeitos, como espectros fragmentares
e conhecimentos, coesamente organizados e parcialmente
partilhados, dependendo das interações de que participa
(GOULART, 2001, p. 19).

Inspirada em Bakhtin, Goulart (2001) argumenta que, no


movimento de interação social, os sujeitos internalizam seus
discursos por meio das palavras alheias de outros sujeitos, que
se tornam interiorizadas e ganham significado no seu discurso
interior e, ao mesmo tempo, se tornam contrapalavras, as
réplicas ao dizer do outro, que, por sua vez, vão interferir
no discurso desse outro. É nesse emaranhado discursivo que
os discursos sociais e individuais se constituem. Nesse caso,
falar em letramento é referir-se a esse emaranhado discur-
sivo em que os discursos sociais e individuais se constituem
no processo de interação social. Segundo Goulart (2001), o
letramento diz respeito ao conjunto de práticas sociais, orais e
escritas, “atravessados pelo poder que a língua escrita possui

47
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

na sociedade e aos conteúdos a que, histórica e culturalmente,


essa modalidade de linguagem está associada” (GOULART,
2001, p. 13).
Considerando esse ponto de vista, o papel da escola seria
ampliar as possibilidades de os alunos continuarem a aprender,
propiciando a vivência rotineira de situações comunicativas
que lhes permitam estabelecer pontes, fazer relações e gerar
novas interpretações dos diversos aspectos da realidade. Desse
modo, a sala de aula tornar-se-ia um verdadeiro espaço de
letramento, uma arena político-ideológica onde dialogam
e lutam as múltiplas perspectivas do saber e as diferentes
dimensões de participação social e dialógica. Nesse espaço,
as crianças, vão interagindo com os “outros” do discurso,
aprendendo o valor simbólico da linguagem, ao mesmo tempo
em que se apropriam dela como nova forma de linguagem.
Reafirmamos que a língua é um sistema de signos his-
tórico e social e aprendê-la é aprender não só as palavras,
mas também os seus significados culturais e, com eles, os
modos pelos quais as pessoas do seu meio social entendem
e interpretam a realidade e a si mesmos. Daí, a necessidade
urgente de se formar pessoas letradas no sentido de abrir as
possibilidades de entrada de outras vozes em suas vidas, de
outros discursos, de outros modos de ver o mundo.

48
Giane Bezerra Vieira

Goulart (2001, p. 451) ressalta ainda que:

O letramento deve ser interpretado como algo mais geral


do que a competência para a escrita – nesse sentido, ser
letrado é ser competente para participar de uma determi-
nada forma de discurso, sabendo ou não ler e escrever, e
a escolarização parece fornecer competência para falar
sobre o falar, sobre questões, sobre respostas [...].

A citação acima nos remete à ideia de que o conceito de


letramento não se restringe somente àquelas pessoas que se
apropriaram da escrita, isto é, aos alfabetizados, mas refere-se
também aos sujeitos que mesmo sem dominarem os aspectos
formais da organização da língua, têm competência para
interagir com os outros sociais e usar determinadas formas
de discurso.
Conforme Leite (2001), em uma sociedade grafocêntrica
como a nossa, em que se faz uso intenso da leitura e da escrita,
é muito difícil considerar um indivíduo totalmente iletrado,
pois isso implicaria nunca ter tido contato com a escrita. Por
isso, é importante falarmos em níveis de letramento, tanto no
caso da criança que ainda não foi alfabetizada, quanto no caso
do adulto analfabeto. Acrescenta ainda que estudar os níveis
de letramento de um grupo social significa identificar as suas
práticas de leitura e escrita e analisar as suas consequências
sociais. O nível de letramento refere-se à capacidade de uso

49
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

da língua em diferentes níveis de conhecimento e graus de


complexidade. Ribeiro (1999) afirma que, nas sociedades
letradas, encontramos indivíduos com diferentes níveis de
letramento, isto é, com diferentes capacidades/habilidades
de resolver tarefas que envolvem a oralidade, a leitura e a
escrita. Esses níveis são articulados com os diferentes modos
culturais de usar a língua em situações do dia a dia, ou seja,
com as práticas de letramento.
De acordo com Terzi (2001), práticas de letramento são
formas culturais de utilização da escrita. Porém, as práticas
de letramento não se referem só às unidades observáveis de
comportamento, pois elas também envolvem valores, atitudes
e sentimentos. Essas práticas envolvem situações específicas
com a palavra escrita e adquirem significado e concreticidade
em contextos sociais relacionados às atividades e às interações
que ocorrem no interior das culturas, especificamente nos
eventos mediados e organizados pela escrita.
Podemos verificar que na atualidade vêm se proliferando
estudos sobre o conceito de letramento e suas relações com a
cultura e a escolarização. Apesar de reconhecermos as dife-
renças existentes entre os autores citados, que ora discorrem
sobre este fenômeno numa perspectiva sociocultural, ora em
uma dimensão linguística e, finalmente, numa dimensão
pedagógica, esses estudos/concepções possuem um eixo

50
Giane Bezerra Vieira

comum à medida que postulam sobre práticas sociais de


leitura e escrita em um contexto cultural específico que é a
escola. Os seus impactos nos processos de aprender/ensinar
a língua na escola podem ser resumidos da seguinte forma:
• Têm sido usados como referência constante nos estudos
sobre as práticas pedagógicas que envolvem a leitura
e a escrita;
• Enfatizam a multiplicidade de facetas, as suas dimen-
sões sociais e individuais, suas relações com a sociedade
e a cultura, enfim, o consideram um conceito multi-
disciplinar e plural;
• Ressaltam o caráter fluido e provisório de um conceito
em construção;
• Usam a alfabetização como referência para sua
definição.
A leitura dos autores citados neste texto nos mostra que,
nas sociedades grafocêntricas, em que a escrita ocupa um
lugar central na vida das pessoas, o fenômeno do letramento
está vinculado aos usos e às funções sociais dessa linguagem.
Esse reconhecimento do letramento como fenômeno cultural,
ligado à multiplicidade de funções que a língua assume hoje
na sociedade, constitui-se uma premissa importante para

51
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

uma redefinição do lugar das práticas de alfabetização e


letramento desenvolvidas hoje na escola pública.
Consideramos que a escolarização tem um papel fun-
damental na construção de conhecimentos e habilidades
relativas à alfabetização e ao letramento à medida em que a
escola é, por excelência, a instituição social responsável pela
produção e socialização do saber. No contexto escolar, as
práticas de letramento são organizadas de forma específica
e sistemática no contexto das relações do ensinar/aprender
a língua de acordo com objetivos pedagógicos, conteúdos,
capacidades que se pretendem formar na criança. Soares
(2003, p. 89) confirma essa posição e acrescenta que:

[...] práticas de letramento a ensinar são aquelas que, entre


as numerosas que ocorrem nos eventos sociais de letra-
mento, a escola seleciona para torná-las objetos de ensino,
incorporadas aos currículos, aos programas, aos projetos
pedagógicos, concretizadas em manuais didáticos; práticas
de letramento ensinadas são aquelas que ocorrem na ins-
tância real da sala de aula, pela tradução dos dispositivos
curriculares [...] práticas de letramento adquiridas são
aquelas de que, entre as ensinadas, os alunos efetivamente
se apropriam e levam consigo para a vida fora da escola.

Nesse sentido, educação escolar e letramento são concei-


tos e práticas que têm especificidades e, ao mesmo tempo,
são complementares entre si, tendo em vista que a língua é

52
Giane Bezerra Vieira

ensinada para que a criança aprenda a problematizar o coti-


diano por seu intermédio e possa interagir de forma intensa e
consciente nas diversas esferas de participação social. A escola
deve ter como eixo do seu trabalho pedagógico na escolariza-
ção inicial a complexa tarefa de “alfabetizar letrando”, ou seja,
levar as crianças a se apropriarem do sistema alfabético, ao
mesmo tempo em que desenvolvem capacidades relacionadas
aos usos sociais da oralidade, leitura e escrita.

As relações entre alfabetização e letramento

Reconhecemos as complexas relações entre alfabetização


e letramento à medida que os dois processos se constituem
como específicos, mas, indissociáveis. Vários autores sugerem,
nessa direção de análise, a proposta de “alfabetizar letrando”
– Soares (1998); Di Nucci (2001); Leite (2001); Colello (2005)
–, que consiste em “desenvolver o processo de alfabetização
escolar simultaneamente ao envolvimento dos alunos com
as práticas sociais da escrita” (LEITE, 2001, p. 23).
Leite (2001 p. 454) faz uma reflexão sobre as relações entre
alfabetização e letramento, realçando que a disseminação
do conceito de letramento no Brasil ocorreu “impregnada
pelo conceito de alfabetização, sendo que este acabou sendo
superposto e obscurecido por aquele”. Assim, argumenta que:

53
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

Na prática, muitos educadores passaram a utilizar os


dois conceitos como sinônimos, dando, frequentemente,
prioridade ao conceito de letramento. Isso, obviamente,
produziu vários problemas para o processo de alfabeti-
zação, sendo o mais relevante a perda da especificidade
desse conceito, com várias implicações metodológicas.
Talvez, a consequência metodológica mais séria seja a
recente ideia de que a alfabetização não necessita de um
trabalho pedagógico sistemático (LEITE, 2001 p. 454).

Soares (2003) chama essa perda de especificidade de


“desinvenção da alfabetização” e evidencia que ela se deu
devido aos equívocos conceituais e pedagógicos em relação
às teses construtivistas articuladas às práticas de alfabetiza-
ção a partir dos anos de 1980 no Brasil. A autora confirma
a importância dessas teses e acrescenta a contribuição da
linguística, sobretudo porque esta oferece elementos para
uma compreensão das relações fonema/grafema no âmbito da
alfabetização. Desse modo, reitera que é preciso reinventar a
alfabetização a partir do entendimento do que a criança pre-
cisa dominar nesse processo e dos caminhos que o professor
pode/deve seguir para que ela se aproprie da base alfabética
da língua.
No nosso entendimento, o conceito de letramento foi
colocado no cenário acadêmico e educacional como possível
antítese do conceito de alfabetização, mas, concomitante a

54
Giane Bezerra Vieira

esse movimento, os avanços nos estudos da linguística con-


temporânea e o consequente reconhecimento da concepção
da escrita como linguagem, como sistema simbólico e de uso
social, revigora o conceito de alfabetização, não permitindo
que ele perca sua especificidade. As especificidades e relações
entre os conceitos de alfabetização e letramento, bem como
a expressão “alfabetizar letrando” vêm sendo realçadas nos
estudos de Soares (2000, 2003), Leite (2001), Albuquerque
(2005), e vêm sendo incorporadas pelos programas oficiais
e instrumentos de avaliação do MEC utilizados nos anos
iniciais do Ensino Fundamental para diagnosticar a situação
de alfabetização das crianças brasileiras.
De acordo com Soares (2003), alfabetizar e letrar são
duas ações distintas, mas, interligadas. Desse modo, o ideal
seria alfabetizar letrando, ou seja, ensinar a ler e escrever no
contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, além de
organizar situações de aprendizagem em que a apropriação
dos gêneros textuais é o eixo central do ensino, garantindo
o domínio do funcionamento do sistema alfabético com
vistas ao engajamento autônomo do aluno nos eventos sociais
mediados pela escrita.
Ao teorizar sobre a importância de discutirmos as meto-
dologias de alfabetização usadas nas escolas brasileiras (em
lugar de métodos), Morais (2007, p. 12) afirma que não existe

55
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

oposição em alfabetizar e letrar ao mesmo tempo. Para não


promover a exclusão da escola, o ideal é aliar um ensino
sistemático da notação alfabética com a vivência cotidiana
de práticas letradas, que permitam ao estudante se apropriar
das características e finalidades dos gêneros escritos que
circulam socialmente.
Di Nucci (2001) enfatiza que a escola deve alfabetizar
letrando, isto é, inserir a criança em diferentes práticas de
leitura e de escrita e, ao mesmo tempo, trabalhar com os aspec-
tos relativos ao aprendizado do sistema de escrita. Partindo
desses princípios, compreendemos que, para uma criança ser
considerada alfabetizada e letrada, ela tem que desenvolver,
a partir de intervenções pedagógicas sistemáticas, contínuas
e competentes, as seguintes capacidades:
• Apropriação do sistema de escrita alfabético em uso
na sua cultura;
• Apropriação de conceitos e habilidades relativos à leitura:
seus elementos, relações e convenções;
• Desenvolvimento de práticas textuais: domínio das
habilidades de compreender e produzir textos escritos
diversos em contextos culturais;
• Participação nas práticas culturais que envolvem a língua
em suas múltiplas manifestações e objetivos sociais.

56
Giane Bezerra Vieira

Pelo exposto, assumimos que alfabetizar letrando traduz-


-se, na prática pedagógica, em oferecer aos alunos oportuni-
dades de análise e reflexão sobre a língua (sempre de forma
contextualizada), que os leve à construção da base alfabética
e, simultaneamente, a promover o seu contato com diferentes
gêneros textuais, colocando-os em situações reais de leitura
e escrita, mesmo antes que dominem a leitura e a escrita na
sua forma convencional.
É de suma importância que os professores consigam
compreender a distinção entre os dois termos, que embora
sejam indissociáveis e interligados entre si, possuem suas
especificidades, limites e possibilidades. Salientamos que
é necessário alfabetizar em um contexto de letramento, é
necessário alfabetizar letrando, isto é, fazer com que a criança
se aproprie do sistema alfabético e ortográfico da língua,
garantindo-lhe plenas condições de usar a leitura e a escrita
em contextos sociais, com finalidades específicas.
Dessa forma, as atividades pedagógicas devem ser focadas
no desenvolvimento das capacidades fundamentais às práticas
da linguagem oral e escrita. No contexto da sala de aula, as
crianças precisam ouvir e falar, ler e escrever os mais variados
textos possíveis. A prática pedagógica organizada em torno
do uso da língua e sua reflexão deve visar não só ao processo
de alfabetização em si mesmo, mas também à possibilidade

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ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

de inserção e participação ativa dos alunos na cultura escrita,


nas práticas sociais que envolvem a escrita, na produção e
compreensão de diferentes gêneros textuais.
As práticas sociais e os eventos de letramento, em geral,
são mediados e efetivados por gêneros orais e escritos Estes
assumem um caráter essencial nas atividades específicas
de letramento, já que estudar os tipos de letramento é uma
parte do estudo dos gêneros de texto, para se saber como
eles são produzidos, utilizados e adaptados a cada situação
vivida pelo indivíduo pertencente a uma dada comunidade.
Marcuschi (2002) mostra que a noção de práticas sociais
de leitura e escrita diz respeito aos modos culturais gerais
de utilizar o letramento que as pessoas produzem nos seus
contextos culturais; são modelos que construímos para os usos
culturais em que produzimos significados na base da leitura
e da escrita. Na prática pedagógica de alfabetizar letrando,
não precisa seguir uma lógica linear em que primeiro se
alfabetiza a criança para, em seguida, letrá-la.
Segundo Leal e Galvão (2005, p. 14):

A escola tem desenvolvido práticas de alfabetização que se


estruturam com base em uma lógica linear e sequencial,
segundo a qual só se passa a aprender uma coisa ao se
aprender outra. Primeiro se aprende a ler e escrever, depois
é que se aprende seus usos por práticas sociais. Ou então,

58
Giane Bezerra Vieira

ao revés, as práticas alfabetizadoras mergulham direto nos


usos, esquecendo-se de considerar as especificidades do
processo de apropriação do sistema de escrita alfabético.

A alfabetização não precede o letramento porque os dois


processos podem ser ensinados-aprendidos como simultâ-
neos. Todavia, os dois termos, embora designem processos
interdependentes, indissociáveis e simultâneos, são processos
de natureza diferente, uma vez que envolvem habilidades e
competências específicas, implicando, com isso, formas dife-
renciadas de aprendizagem e em consequência, metodologias
e procedimentos diferenciados de ensino.
A alfabetização em uma perspectiva de letramento apre-
senta implicações pedagógicas importantes à medida que
o domínio do sistema alfabético não garante a capacidade
de leitura e produção de variados gêneros textuais nem o
envolvimento intenso com textos, apesar de desenvolver
conhecimentos sobre gêneros que circulam na sociedade;
não permite a apropriação da base alfabética, uma vez que
essa apropriação não é espontânea e implica reflexões por
parte dos alunos sobre as propriedades do sistema de escrita.
Nesse sentido, concordamos com Albuquerque (2005),
quando afirma que alfabetizar letrando implica que o profes-
sor e a professora que alfabetizam compreendam os processos
envolvidos na aquisição de nosso sistema de escrita alfabético

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ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

e das capacidades necessárias aos alunos para o domínio da


leitura, da produção de textos escritos e da compreensão e
produção de textos orais, em situações diferentes das que
são habituais no cotidiano da criança. A autora acrescenta
ainda que:

Sabemos que, para a formação de leitores e escritores


competentes, é importante a interação com diferentes
gêneros textuais, com base em contextos diversificados de
comunicação. Cabe à escola oportunizar essa interação,
criando atividades em que os alunos sejam solicitados a ler e
produzir diferentes textos. Por outro lado, é imprescindível
que os alunos desenvolvam autonomia para ler e escrever
seus próprios textos. Assim, a escola deve garantir, desde
cedo, que as crianças se apropriem do sistema de escrita
alfabético, e essa apropriação não se dá, pelo menos para a
maioria das pessoas, espontaneamente, valendo-se do con-
tato com textos diversos. É preciso o desenvolvimento de
um trabalho sistemático de reflexão sobre as características
do nosso sistema de escrita alfabético (ALBUQUERQUE,
2005, p. 19).

Depreendemos, da discussão feita, que habilidades/


conhecimentos devem ser construídos e trabalhados de
forma sistemática pelo professor nessas duas dimensões de
aprendizado da língua. No âmbito da alfabetização, estão
os conhecimentos específicos de apropriação do sistema de
escrita (codificação/produção), as habilidades cognitivas de

60
Giane Bezerra Vieira

leitura e produção de gêneros orais e escritos e o eixo do


letramento compreende a inserção nas práticas sociais em que
os gêneros textuais circulam. Todavia, é preciso contemplar
a intersecção entre os dois conceitos e é importante que uma
formação trabalhada nessa perspectiva construa com os
professores, encaminhamentos didático-pedagógicos que
devem proporcionar ao aluno conhecimentos linguísticos,
articulados à análise e à reflexão sobre as propriedades sonoras
da fala e aos mecanismos gráficos da escrita. Esse trabalho
não pode ser confundido com o mero treino da associação de
letras aos seus respectivos sons numa perspectiva mecanicista,
mas como uma prática que permita à criança refletir e testar
suas hipóteses sobre a escrita, de modo a construir conceitos
e regras a respeito de suas regularidades e irregularidades.
A partir das reflexões realizadas, elencamos alguns
pressupostos que julgamos indispensáveis a uma prática de
alfabetização numa perspectiva de letramento:
• A alfabetização centrada numa relação dialógica e
fundada no desenvolvimento de práticas discursivas
com a linguagem escrita como interação social que
envolve tanto a aquisição do sistema de escrita como
o desenvolvimento da habilidade de produzir e com-
preender textos escritos diversos;

61
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

• A alfabetização tem, como ponto de partida e de che-


gada, a produção de textos, visto que o texto é a forma
por meio da qual a escrita circula nas práticas sociais;
• A alfabetização é estruturada a partir da mediação do
professor;
• A alfabetização proporciona sistematicamente a apro-
priação da notação da escrita e do seu uso social real pela
criança a fim de garantir que se torne autonomamente
letrada, exercitando a capacidade de ler e escrever textos
com as características e finalidades que as pessoas
letradas utilizam em nossa sociedade.
Segundo Lopes e Vieira (2012), o trabalho pedagógico com
e para as crianças na escola, visto ser um espaço onde elas
passam parte importante de suas vidas e que tem a função
social de propiciar aprendizagens, não pode desconsiderar a
necessidade imperiosa, tanto de destinar tempos e espaços
específicos para a vivência e a aprendizagem de brincadeiras
pelas crianças, como também deve buscar impregnar de
um caráter lúdico, de imaginação e fantasia, as atividades
escolares, tornando-as significativas aos interesses infantis
e criando condições de a criança poder viver sua infância de
modo mais feliz.

62
Giane Bezerra Vieira

Compreendemos, porém, que esse conjunto de princípios


acerca da alfabetização e do letramento discutidos até aqui não
deve ser tratado à margem de preocupações com a formação
docente, de suas condições materiais e simbólicas de trabalho
na escola pública e da implementação de políticas que favore-
çam o sucesso escolar das crianças oriundas dos segmentos
populares. É necessário reconhecer que muito precisa ser feito
no sentido de assumir como política de Estado a formação
continuada dos professores, em especial, a dos que atuam na
alfabetização. Os esforços feitos nos últimos anos parecem-nos
ainda insuficientes para dar conta da gravidade da questão. É
urgente que as Universidades, além de fornecerem uma sólida
formação inicial, se aliem às escolas públicas, desenvolvendo
projetos de pesquisa-ação que garantam a construção de
conhecimentos dos professores da Educação Básica a partir
de suas reais dificuldades e necessidades de formação.
É importante realçarmos que, apesar de possuírem
dimensões específicas, a alfabetização e o letramento são
processos que se entrelaçam, à proporção que os eixos da
leitura e da escrita se configuram como a base para a estru-
turação de todo o trabalho escolar com as práticas de letra-
mento. Assim sendo, ler e escrever deve incluir diferentes
situações, nas quais se proponha a produção de textos orais e
escritos, refletindo a diversidade de práticas sociais de leitura

63
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ASPECTOS CONCEITUAIS E PEDAGÓGICOS

e escrita que existem na escola e fora dela. Além disso, para


alfabetizar letrando, é necessário vivenciar com as crianças,
simultaneamente, tanto a aprendizagem dos princípios e
convenções da escrita alfabética como as práticas de leitura/
compreensão de textos.
Considerando que, na atualidade, as exigências da vida
social requerem das pessoas mais do que o mero conhecimento
de letras e palavras isoladas, procuramos, neste capítulo,
discutir os conceitos de alfabetização e letramento, demons-
trando a viabilidade de conceber esses dois processos, de
maneira articulada, no trabalho pedagógico nos Anos iniciais
do Ensino Fundamental. A nossa intenção foi realizar uma
reflexão em direção ao equilíbrio e articulação de propostas
metodológicas que possam abarcar a complexidade da alfa-
betização e do letramento e das progressivas exigências em
torno do seu ensino.

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Giane Bezerra Vieira

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70
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO
NA BNCC E NA PNA:
possíveis implicações pedagógicas
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

Introdução

Este estudo investigou as possíveis implicações pedagógicas e


procedimentais resultantes da nova política para o ensino da
leitura e da escrita na alfabetização instituída pelo Governo
Federal em 2019 – Política Nacional de Alfabetização (dora-
vante PNA), traçando um paralelo com a Base Nacional
Comum Curricular (doravante BNCC).
Inicialmente foi realizado um levantamento bibliográ-
fico no banco de dados da CAPES, no Catálogo de Teses
e Dissertações, com o descritor “Política Nacional de

71
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

Alfabetização” (PNA). Foram encontrados três trabalhos,


mas apenas um abordava a PNA do Ministério da Educação
lançada em 2019. Na pesquisa identificada (BUOGO, 2020),
foram comparadas quatro políticas educacionais (Diretrizes
Curriculares Nacionais, Base Nacional Comum Curricular,
Política Nacional de Alfabetização (PNA) e Currículo do
Território Catarinense). Os resultados expostos foram que
as DCNs, a BNCC e o Currículo do Território Catarinense
possibilitam práticas pedagógicas educomunicativas. Quanto
à PNA, a conclusão é que:

a Política Nacional de Alfabetização impossibilita práticas


pedagógicas educomunicativas, visto que, das políticas
educacionais, é a única em que não houve participação
popular na sua elaboração, sendo produzida em gabinete
e instituída por meio de decreto. Além disso, prescreve
como, quando e o que deve ser trabalhado no processo de
alfabetização, desconsiderando o contexto em que vivemos
e que a educação é composta por sujeitos ativos, críticos e
reflexivos (BUOGO, 2020, p. 114).

Ao utilizar o descritor “alfabetização PNA” conjugados,


não foi encontrado nenhum trabalho. Com o descritor
“BNCC”, foram encontrados 852 trabalhos, e “Base Nacional
Comum Curricular”, 836. No entanto, ao conjugarmos os
termos “alfabetização BNCC” e “alfabetização Base Nacional
Comum Curricular” não foi identificado nenhum trabalho.

72
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

A PNA, como já foi dito anteriormente, corresponde


à atual política nacional de alfabetização, que é retratada
pelo Governo Federal como uma série de ações e propos-
tas pedagógicas para a formação e prática de professores
alfabetizadores. Para sua divulgação, foi lançado no site do
Ministério da Educação (MEC) um caderno de apresentação
com detalhamento da proposta e transcrição do decreto nº
9.765/2019, que a instituiu.
Quanto à BNCC, pode-se compreendê-la como um docu-
mento oficial de caráter norteador e prescritivo, que, segundo
seus defensores, contém as aprendizagens essenciais para
todos os estudantes brasileiros. Para esta pesquisa, foram
relevantes seus postulados teóricos e a concepção de alfabe-
tização predominante em tal documento.
Partindo disso, tem-se as seguintes questões norteado-
ras: quais são as concepções de alfabetização presentes na
BNCC e na PNA e quais são os possíveis desdobramentos
didático-pedagógicos?
O objetivo geral da pesquisa, portanto, foi identificar as
concepções de alfabetização subjacentes na PNA e na BNCC,
analisando os possíveis desdobramentos para as práticas
pedagógicas, por meio de análise de conteúdo baseado nos
procedimentos e princípios defendidos por Bardin (1977).

73
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

Metodologia

A pesquisa foi de abordagem qualitativa, do tipo docu-


mental, de viés analítico e interpretativo, de dois documentos
oficiais: Base Nacional Curricular Comum - BNCC – e Política
Nacional de Alfabetização - PNA, que serão comparados
quanto às concepções sobre alfabetização. Com base em
Bardin (1977), foram realizadas as seguintes ações:
a. Leitura flutuante dos documentos em estudo, para
apropriação e contorno de suas unidades de sentido
(pré - análise);
b. Definição das unidades de registro constituídas por
palavras, conjunto de palavras ou temas (exploração
do material);
c. Categorização dos conteúdos dos documentos;
d. Tratamento dos resultados (inferência e interpretação).
As definições das unidades de registro foram fruto da
discussão entre as pesquisadoras. Quanto à categorização
dos dados, foi realizada pela primeira autora deste capítulo,
passando por uma etapa de segundo julgamento pela segunda
autora, em uma abordagem crítica de documentos oficiais, par-
tindo de um viés compreensivo e descritivo, inter-relacionando

74
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

os documentos em questão com o contexto histórico-social


em que se inserem
Os documentos analisados foram selecionados a partir
de dois critérios: representarem políticas de âmbito nacional;
estarem em vigência no mesmo período de realização da pes-
quisa; terem impactos sobre as políticas das redes municipais
e estaduais de ensino brasileiras.
A PNA foi lançada no site do MEC, em 2019, organizada
em um caderno contendo a fundamentação teórica, que,
segundo seus organizadores, correspondem aos estudos que
apresentam a alfabetização com “evidências científicas”, assim
como os principais conhecimentos a serem ensinados pelos
professores; as proposições para desenvolvimento das políticas
de formação de professores e distribuição de materiais didá-
ticos. Possui 56 páginas e está organizado em três capítulos:
contextualização; alfabetização, literacia e numeracia; e polí-
tica nacional de alfabetização. Por fim, tem-se as referências
e o decreto que a instituiu.
Quanto à BNCC, a sua versão final foi homologada em
dezembro de 2017 e possui 600 páginas. Os textos introdutórios
apresentam reflexões sobre cada etapa de ensino da Educação
Básica, seguidos da apresentação das Competências Gerais.
Em seguida, são expostas as Competências Específicas de
cada área do conhecimento e de cada componente curricular,

75
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

com suas especificidades para cada etapa da escolarização.


Encontram-se ainda as Habilidades que deverão ser desen-
volvidas no decorrer da Educação Básica. Está organizada
em cinco capítulos. Entretanto, na presente pesquisa foram
analisados os capítulos que tratam da Ed. Infantil e do Ensino
Fundamental, com ênfase nos Anos Iniciais e no componente
curricular Língua Portuguesa.

Referencial teórico

As políticas educacionais, tema desta pesquisa, corres-


pondem às diversas ações públicas e sociais voltadas para os
diferentes níveis e modalidades da educação; não são neutras e
evidenciam a noção de educação e aprendizagem predominan-
tes no momento de sua execução, assim como as concepções
sobre ensino de Língua Portuguesa e, consequentemente,
alfabetização. Dados os objetivos desta pesquisa, buscamos,
inicialmente, demarcar os pontos de partida conceituais
acerca dos dois temas centrais da investigação: Currículo e
Alfabetização e Concepções de Alfabetização.

76
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

1. Currículo e Alfabetização

A palavra curriculum é de origem latina e significa “curso


ou percurso”, contemplando o modo de fazer e conceber
algo. Logo, pode-se compreender currículo como uma tra-
jetória, um caminho para se atingir determinado objetivo.
No contexto atual, vem sendo usado como um conjunto
de ações efetivamente vivenciadas no contexto escolar, tal
como proposto por Moreira e Candau (2007), que entendem
o currículo como:

[...] experiências escolares que se desdobram em torno


do conhecimento, em meio a relações sociais, e que con-
tribuem para a construção das identidades de nossos/
as estudantes. Currículo associa-se, assim, ao conjunto
de esforços pedagógicos desenvolvidos com intenções
educativas. Por esse motivo, a palavra tem sido usada
para todo e qualquer espaço organizado para afetar e
educar pessoas, o que explica o uso de expressões como o
currículo da mídia, o currículo da prisão etc. Nós, contudo,
estamos empregando a palavra currículo apenas para
nos referirmos às atividades organizadas por instituições
escolares (MOREIRA; CANDAU, 2007, p. 18).

Em sentido restrito, o termo é utilizado para fazer refe-


rência ao documento curricular, que é um texto, um discurso,
um registro do que se propõe para unidade educativa ou um

77
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

sistema educacional, constituindo-se, assim, como um texto


prescritivo.
Silva (2005) alerta que não se pode dissociar o currículo
das relações sociais de poder, ou seja, não é possível entender o
currículo prescrito e nem vivido sem compreender os valores
ideológicos hegemônico em dado momento histórico. Nesse
sentido, compreende-se o currículo, nesta pesquisa, como o
elemento que propicia a construção de sentidos e significados
no processo de ensino-aprendizagem. Nesse contexto, não
se pode conceber currículo como uma listagem de saberes e
prescrições vazias, mas sim como um norte para a execução
de um projeto pedagógico plural e em permanente mudança,
responsável ainda pela construção das identidades e repre-
sentatividades nos processos pedagógicos.
Nesse sentido, nenhum documento curricular é neutro.
Segundo Mesquita, Sá e Leal (2013), os documentos curricula-
res podem ser vistos como espaços de disputa entre as diversas
e divergentes concepções de educação e, por conseguinte, de
alfabetização. Assim, conforme pontuam Mesquita, Sá e Leal
(2013), quanto aos documentos curriculares e as instituições
de ensino:

Os sujeitos têm que ir negociando/disputando os princí-


pios norteadores do currículo no sentido de articular os
direitos de aprendizagem às premências de seus projetos

78
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

formativos. É importante não naturalizar a escola, tal como


ela se apresenta em sua generalidade, como palco daquela
“negociação”. Há, como temos argumentado, que se notar
a necessidade de se construir estruturas curriculares dife-
renciadas, que possam ser alteradas de escola para escola
e numa mesma escola ao longo do tempo (MESQUITA;
SÁ; LEAL, 2013, p. 13).

Nessa perspectiva, pode-se considerar que o currículo


não se resume ao texto documental prescritivo, nem a
particularidades cotidianas de uma instituição de ensino,
embora, ratifique-se a relevância dos postulados presentes
nos documentos curriculares oficiais para garantir, minima-
mente, algumas prescrições comuns quanto ao que deve ser
ensinado. Entretanto, sabe-se que há singularidades quanto às
concepções dos objetos de aprendizagem e aos pressupostos
pedagógicos que não podem ser ignoradas.
Sobre a BNCC e a PNA, de fato não são propriamente
documentos curriculares, entretanto, são instâncias norte-
adoras que indicam orientações gerais para as políticas das
redes de ensino, inclusive para elaboração dos documentos
curriculares. Nesse contexto, Estados e Municípios que ade-
rirem aos programas e projetos pautados em tais políticas
terão que incluir em seus documentos curriculares as orien-
tações teórico-metodológicas articuladas aos postulados ali
presentes, o que demandará reformulações e alterações tanto

79
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

na dinâmica da sala de aula quanto no documento curricular


local. Desse modo, é importante analisar as concepções pre-
sentes nos documentos, como, por exemplo, as concepções
de alfabetização.

2. Concepções de alfabetização

Ao pesquisarem documentos curriculares publicados no


início deste Século, Leal, Brandão, Almeida e Vieira (2013,
2014) mapearam três tendências nos modos de conceber o
processo de alfabetização: alfabetização como ensino de um
código; alfabetização por imersão nas práticas de letramento;
e alfabetização na perspectiva do letramento. Pode-se afirmar
que essas concepções distintas de alfabetização coexistem no
contexto atual e caracterizam alguns pressupostos gerais,
havendo diferenças entre autores adeptos em cada uma delas.
Desse modo, é uma caracterização quanto a pressupostos
gerais fundamentados em abordagens teóricas que se apro-
ximam. Também é preciso salientar que são oriundas de
processos históricos que imprimiram mudanças ao longo do
tempo. Algumas dessas concepções são mais abrangentes que
outras, desdobrando-se em diversas proposições de natureza
didático-pedagógica. Por esse motivo, cada tendência citada
será apresentada em tópico específico.

80
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

2.1 Alfabetização como aprendizagem de um código

Leal, Brandão, Almeida e Vieira (2013, 2014) discutem


que a abordagem mais tradicional de alfabetização de que se
tem notícia é a abordagem sintética. Para Macedo, Almeida
e Tibúrcio (2017), nessa perspectiva de ensino, “a escrita é
vista como um código de transcrição das unidades sonoras
em unidades gráficas” (MACEDO; ALMEIDA; TIBÚRCIO,
2017, p. 227). Assim, nessa concepção, a língua é compreen-
dida como um código e as práticas de leitura e escrita são
reduzidas a ações de codificar e decodificar, corroborando
para a ocorrência de um processo de ensino-aprendizagem
mecânico, repetitivo e descontextualizado.
As diferentes propostas de alfabetização em uma pers-
pectiva sintética (alfabética, fônica, silábica) partem do
pressuposto de que a aprendizagem desse suporto código
ocorre por meio da memorização da associação entre letras
e fonemas. Para isso, adotam materiais estruturados em que
palavras e textos criados para o ensino desse “código” são
expostos de modo repetitivo, em uma sequência linear do
que consideram mais simples para os mais complexos. Desse
modo, não são utilizados, via de regra, textos que circulam
em outros campos e esferas sociais de interação.

81
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

Silva, Arruda e Leal (2013) discutem que os diferentes


métodos sintéticos (alfabéticos, silábicos e fônicos) apresentam
procedimentos de ensino que seguem etapas fixas, padroni-
zadas, independentemente dos conhecimentos prévios dos
estudantes, desconsiderando a possibilidade de abordagem
textual simultaneamente ao trabalho com as unidades lin-
guísticas menores (letras, fonemas, sílabas).
Nessa perspectiva de alfabetização, a repetição e a memo-
rização norteiam as práticas didático-pedagógicas em sala de
aula, tendo na maior parte das vezes o uso de textos cartilhados
ou adaptados, com restrições acerca da quantidade e compo-
sição silábica das palavras, desarticulando a aprendizagem
da leitura e da escrita dos seus usos cotidianos, conforme
pontua Silva (2016):

Nessa abordagem, acredita-se que se o aluno aprender


a técnica da escrita (compreendida como um código) se
alfabetizará. Há um desprezo pelo “erro” de modo que
não há reflexão e compreensão da escrita “genuína” dos
alunos. Tais métodos propõem um trabalho a partir de
sons e letras isoladas; de padrões mais fáceis (regulares)
para os mais difíceis (irregulares) (SILVA, 2016, p. 51).

Entre os métodos sintéticos, um dos mais vivenciados no


contexto atual é o método fônico. Silva (2016) aponta que, nessa
abordagem, o docente é concebido como um instrutor que

82
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

treinará os estudantes na tentativa de desenvolver habilidades


fonológicas por meio de exercícios mecânicos de identificação
de sons e similares. Outro aspecto importante destacado por
esse autor é que nessa abordagem de ensino espera-se que o
aluno chegue à escola apto, pronto para se apropriar do código
escrito. Dessa forma, busca-se um modelo padronizado de
ensino e de aprendizagem. Segundo Leal et al. (2013), nos
métodos fônicos, a unidade inicial de ensino,

[...] não é a letra ou a sílaba, mas, sim as unidades sonoras


mínimas – os fonemas. Nos métodos fônicos parte-se do
pressuposto de que cada letra dispõe de certa autonomia
fonética e se baseia nas instituições fonéticas da criança,
e em sua capacidade de imitação de sons específicos.
Basicamente, trata-se de fazer segmentar os fonemas,
além de outras atividades de reflexão fonológica, seguida
da aprendizagem das letras que representam tais fonemas
(LEAL et al., 2013, p. 77-78).

Os pilares básicos das abordagens fônicas são basica-


mente a instrução fonética sistemática e o desenvolvimento
da consciência fonêmica, sem considerar a compreensão do
funcionamento conceitual das relações letra-som (consciência
fonológica) em prol da abordagem textual-discursiva e dos
usos sociais da linguagem.

83
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

No contexto atual, pode-se citar como referência do


método fônico a proposta da professora Leonor Scliar-Cabral,
o Sistema Scliar-Cabral de Alfabetização (SSC), que prio-
riza, entre outros aspectos, a manipulação dos fonemas e o
desenvolvimento das consciências fonológica e fonêmica no
processo de alfabetização. Outro representante atual dessa
abordagem é João Batista Araújo e Oliveira, o presidente do
Instituto Alfa e Beto, doutor em Pesquisa Educacional pela
Florida State University e autor de livros didáticos funda-
mentados nos postulados do método fônico.

2.2 Alfabetização por imersão em


práticas e eventos de letramento

Os embates com os métodos sintéticos ao longo da his-


tória foram muitos, mas, sem dúvidas, duas grandes linhas
investigativas foram potentes na refutação dessas abordagens:
os estudos construtivistas sobre a psicogênese da escrita; e
os estudos do letramento. Não há dúvidas de que o conceito
de letramento provocou mudanças nos modos de conceber a
alfabetização, visto que pôs em destaque outras dimensões do
processo de alfabetização, como a ressignificação das práticas
de leitura e escrita na escola.

84
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

Para Kleiman (2005), o letramento abarca tudo que envolve


o uso da escrita, incluindo as práticas escolares mais próximas
dos métodos tradicionais de alfabetização. A autora defende
uma concepção ampliada de letramento, ao propor que se
refere a todos os aspectos histórico-sociais dos usos e papéis
da escrita, incluindo tanto as práticas de decodificação e
identificação dos componentes de uma palavra, por exemplo,
quanto às práticas de leitura e produção de textos de diferentes
gêneros. Leal (2022) também defende que,

[...] as próprias práticas de ensino da escrita são práticas


de letramento, de modo que, segundo tal compreensão, o
ensino da leitura e da escrita ocorre por meio de eventos
de letramento situados historicamente e, assim, a apro-
priação do Sistema de Escrita Alfabética (SEA) ocorre por
meio de eventos que são situações de ensino marcadas
pelas especificidades de dado contexto social em um dado
momento histórico (LEAL, 2022, p. 166).

Duas expressões são centrais nesses debates: práticas de


letramento e eventos de letramento. No glossário do CEALE,
Street e Castanheira (2014) definem eventos de letramento
como as ações que envolvem leitura e escrita mais observáveis
e situadas, já as práticas de letramento não se referem ao
contexto imediato em que os eventos ocorrem, contemplando
uma significação mais ampla, institucionalizada e cultural.

85
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

Os estudos sobre letramento impactaram os modos como a


alfabetização era concebida, havendo um esforço de diferentes
pesquisadores para compreender as relações entre alfabetizar e
letrar. Surgiram desses esforços duas grandes tendências, que
Leal, Brandão, Almeida e Vieira (2013, 2014) denominaram de
“Alfabetização por imersão” e “Alfabetização na perspectiva
do letramento”.
Na abordagem da “Alfabetização por imersão”, concebe-se
que é papel da escola contribuir para o letramento dos estudan-
tes (ou letramentos), com prioridade ao ensino dos usos sociais
da linguagem. Um dos principais autores de referência dos
defensores dessa abordagem é Street (2014), mobilizando-se
sobretudo o conceito de letramento ideológico, que ressalta os
aspectos políticos dos diferentes modos como comunidades
e indivíduos lidam com as práticas de letramento.
Silva (2016), ao expor a abordagem da alfabetização por
imersão, ilustra com a proposta da professora Cecília Goulart,
que questiona a necessidade de sistematizar a aprendizagem
da escrita e prioriza a imersão da criança no universo da
leitura sem a abordagem das relações entre unidade sonora
e unidade gráfica de forma explícita. De acordo com Silva
(2016), para Goulart “a inserção da criança ao mundo letrado
leva à construção gradativa de sentidos sobre a leitura e a

86
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

escrita até que esta se aproprie do sistema notacional” (SILVA,


2016, p. 55).
Silva, Arruda e Leal (2013) indicam que nessa abordagem
são propostas variadas atividades de leitura e escrita, todavia,
sem prever objetivos de aprendizagem e estratégias meto-
dológicas mais específicas para a aprendizagem do Sistema
Alfabético de Escrita. Ou seja, os adeptos de tal abordagem
defendem que a apropriação do funcionamento do sistema
notacional será decorrente da inserção das crianças em práticas
e eventos de letramento.
Essa abordagem é representativa no contexto atual, tal
como foi evidenciado por Leal, Brandão, Almeida e Vieira
(2013, 2014), sobretudo porque há certo consenso entre mui-
tos pesquisadores brasileiros de que a participação ativa da
criança em práticas sociais de leitura e escrita favorece o seu
desenvolvimento linguístico. No entanto, como será discutido
adiante, e como é defendido, entre outros autores, por Silva
(2016) e Morais (2012), há propriedades e convenções no
Sistema Alfabético de Escrita que não são compreendidas
facilmente, exigindo que os estudantes tenham momentos
de reflexão acerca do funcionamento do sistema de escrita
simultaneamente às problematizações acerca das funções
sociais da escrita. A esse respeito, Frade (2005) propõe a
seguinte reflexão:

87
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

O trabalho de alfabetização hoje denominado de imersão


segue um princípio parecido com o do método natu-
ral, privilegiando a escrita e a leitura quando essas se
fazem necessárias nas situações de uso. As atividades de
alfabetização são aquelas em que são necessárias ações
autênticas em torno dos atos de ler e escrever, porque se
acredita que as crianças aprendem a ler e a escrever lendo
e escrevendo textos, em situações de uso da escrita, sem
muita diretividade. Um risco que se corre, quando os
professores não fazem intervenções pertinentes no processo
de uso -- para informar e apresentar situações problema
centradas na análise do sistema de escrita – é que se caia
num espontaneísmo que prejudica a função inalienável
da escola: a de ensinar (FRADE, 2005, p. 39).

As discordâncias de muitos pesquisadores brasileiros


acerca da desvalorização do ensino mais sistemático do
Sistema de Escrita Alfabética acarretaram a emergência de
uma terceira tendência, denominada de “Alfabetização na
perspectiva do letramento”, que será abordada a seguir.

2.3 Alfabetização na perspectiva do letramento

As discussões sobre letramento, conforme foi exposto


no tópico anterior, culminaram, no Brasil, em duas gran-
des tendências: “Alfabetização por imersão”, já discutida, e

88
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

“Alfabetização na perspectiva do letramento”, aqui exposta.


Sobre tal questão, Silva, Arruda e Leal (2013) pontuam que:

Como resultado dos estudos do letramento, tem-se


assumido que, desde o início da escolarização, é preciso
inserir os estudantes em situações em que eles tenham
que interagir por meio de textos autênticos, entrando
em contado com os diferentes usos sociais da escrita. No
entanto, muitos debates têm sido travados no tocante à
necessidade, ou não, de abordar a aprendizagem do sistema
alfabético de escrita por meio de atividades específicas
de apropriação desse sistema (SILVA; ARRUDA; LEAL,
2013, p. 251).

Uma das principais representantes dessa tendência é


Magda Soares (1998, 2004, 2015, 2016, 2020), que propõe
que a alfabetização e o letramento são dois processos inter-
dependentes, mas também interligados. Desse modo, propõe
que o processo de alfabetização esteja integrado ao desenvol-
vimento das competências e habilidades textuais-discursivas
dos estudantes. Para a autora, desarticular os dois processos,
alfabetização e letramento, resulta em uma concepção dis-
torcida e reducionista da natureza da linguagem.
Segundo Albuquerque e Santos (2007), alfabetizar letrando
consiste em propiciar aos estudantes situações de aprendi-
zagem significativas e reflexivas acerca das propriedades
do Sistema Alfabético de Escrita ao mesmo tempo em que

89
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

proporciona o contato com os mais diversos gêneros textuais


em práticas de leitura e escrita que reiteram os usos sociais
da linguagem. Assim, o docente precisaria vivenciar em
sala de aula atividades favorecedoras da aprendizagem de
habilidades de reflexão acerca do funcionamento do sistema
notacional e, ao mesmo tempo, promover situações de leitura
e produção de textos.
Morais (2014), no glossário do CEALE, ao descrever o
verbete Apropriação do sistema de escrita alfabética, afirmou
que o ensino sistemático das correspondências letra-som é
essencial para que a criança adquira autonomia para leitura
e escrita, desde que participe também de práticas letradas
com os diversos gêneros textuais que circulam socialmente.
Nessa perspectiva de alfabetização, segundo Macedo,
Almeida e Tibúrcio (2017), é imprescindível que o professor
adquira conhecimentos teóricos acerca da escrita e da orali-
dade, das possibilidades de apropriação do Sistema Alfabético
de Escrita pelas crianças e da relação entre alfabetização e
letramento.
Outro aspecto de destaque nessa abordagem refere-se ao
fato de seus adeptos defenderem que as práticas pedagógicas
dos professores alfabetizadores não podem ser restritas ao
ensino do Sistema de Escrita Alfabética, sendo necessário
contemplar a complexidade multifacetada do processo de

90
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

alfabetização, como tem sido defendido por Soares (1985,


2020). A autora faz distinção entre alfabetização e letramento,
mas defende que

a alfabetização – a aquisição da tecnologia da escrita –


não precede e nem é pré-requisito para o letramento, ao
contrário, a criança aprende a ler e escrever envolvendo-se
em atividades de letramento, isto é, de leitura e produ-
ção de textos reais, de práticas sociais de leitura e escrita
(SOARES, 2020, p. 27).

Na obra Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a


escrever, Soares (2020) fala sobre as camadas da alfabetização,
explicitando que há

aprendizagens que se superpõem constituindo o todo.


Cada aprendizagem diferencia-se das demais por processos
próprios, mas interdependentes – cada aprendizagem
depende das demais, como a aprendizagem do sistema de
escrita para que se possa ler e escrever, usando a escrita nas
situações culturais e sociais em que a escrita está presente
(SOARES, 2020, p. 19).

Essa autora, portanto, distingue os conceitos, mas defende,


como outros autores do campo da alfabetização (MORAIS,
2012, 2019; ALBUQUERQUE, 2007), que os professores con-
templem situações didáticas com intencionalidades centrais

91
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

focada no ensino do Sistema de Escrita Alfabética e situações


com foco em leitura e produção de textos de diferentes gêneros.
Também no campo da abordagem da Alfabetização na
perspectiva do letramento, Leal (2015, 2020, 2022), como
exposto anteriormente, concebe que as práticas de alfabeti-
zação são práticas de letramento situadas socialmente. Nesse
sentido, defendemos que, em diferentes momentos históricos
e em diferentes concepções, a alfabetização abarca diver-
sas dimensões do ensino. Assim, na abordagem sintética, a
dimensão central, quase exclusiva, é o ensino de um suporto
código, mas, na abordagem da alfabetização na perspectiva
do letramento em que se defende um currículo inclusivo, tal
como exposto por Leal (2022), contempla, ao menos, cinco
dimensões:

1) apropriação de um sistema de escrita alfabética; 2)


desenvolvimento das capacidades de ler e escrever em
situações sociais diversas; (3) Conhecimentos sobre as
práticas sociais de uso da escrita e oralidade e dos gêneros;
(4) Conhecimentos sobre a língua, e (5) Aprendizagem de
diferentes conhecimentos por meio da leitura, da fala e da
escrita, significativos e importantes para a participação
das crianças nas diferentes esferas sociais e fortalecimento
de suas identidades sociais.

92
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

Em suma, para Leal et al. (2015), a alfabetização na pers-


pectiva do letramento:

[...] contempla diferentes dimensões do trabalho peda-


gógico, incluindo a apropriação do sistema de escrita
alfabética e a inserção dos aprendizes, muito precocemente,
em práticas de leitura e escrita miméticas às que ocorrem
em espaços não escolares (LEAL et al., 2015, p. 4).

Considerando a relevância desse debate sobre as tendências


relativas às concepções sobre alfabetização e seus impactos
sobre o ensino e a aprendizagem da leitura e escrita nos anos
iniciais do Ensino Fundamental, dedicamo-nos às análises
dos documentos oficiais, as quais serão apresentadas a seguir.

Análise de dados e resultados

As análises dos documentos, como foi dito anteriormente,


pautaram-se nos procedimentos previstos por Bardin (1977),
no entanto, optamos por, inicialmente, listar os principais
pressupostos e princípios que caracterizam cada tendência de
alfabetização, a partir do estudo sobre o tema em diferentes
pesquisas, e mapear trechos nos dois documentos que se
aproximavam dos pressupostos e princípios. Para tanto, foram
localizados trechos dos textos de cada documento e agrupados

93
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

em um quadro de análise para, por fim, facilitar a releitura


aprofundada e a interpretação dos dados encontrados.
Assim, o estudo dos dois documentos evidenciou que a
PNA tem como base a alfabetização como código, especifi-
camente o método fônico, e a BNCC tem a predominância
da alfabetização na perspectiva do letramento. O Quadro 1
sintetiza os aspectos evidenciados na análise documental aqui
apresentada, expondo os pressupostos que fundamentam cada
abordagem dessa, com a marcação de quais estão presentes
em cada documento.

Quadro 1 - Pressupostos e princípios sobre


alfabetização explicitados na PNA e na BNCC

Princípios predominantes da Princípios predominantes da


concepção de alfabetização como concepção de alfabetização na
aprendizagem de um código perspectiva do letramento
PNA BNCC PNA BNCC
Alfabetização como
aprendizagem da leitura
Alfabetização como
e escrita, contemplando
aprendizagem das X - - X
o domínio do sistema de
relações letra-som.
escrita e habilidades de
leitura e produção de textos.
Defesa da inserção pre-
Defesa da prontidão
X - coce dos estudantes em - X
para alfabetização
práticas de letramento

94
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

Ensino organizado para


Proposições de padroni-
atendimento à heteroge-
zação da ação didática,
X - neidade dos alunos, com - -
com uniformização
diversificação de atividades
de procedimentos.
e modos de mediação.
Ensino sistemático,
organizado como sequência Simultaneidade entre o
delimitada por etapas fixas ensino do Sistema Alfabé-
partindo das unidades X - tico de Escrita e práticas - X
linguísticas menores (letras de leitura e produção de
fonemas, sílabas) para as textos autênticos.
maiores (palavras, textos).
Ênfase em dimensões
conceituais de compre-
Ênfase no treino da
ensão do funcionamento
consciência fonológica e X - - X
do SEA, contemplando
consciência fonêmica.
o desenvolvimento da
consciência fonológica.
Ênfase em objetivos de
Ênfase na memori- aprendizagem concei-
X - - X
zação e no treino. tuais sobre o Sistema
Alfabético de Escrita
Uso de textos criados ou
adaptados para alfabeti- Uso de textos autênticos,
X - - X
zação, com controle das de diferentes gêneros
palavras e do tamanho.
Ênfase na participação
das crianças em práticas e - X
eventos de leitura e escrita.
Ênfase na fluência Concepção ampliada de
de leitura tida como X - leitura, com ênfase na - X
velocidade de leitura. compreensão de textos.

95
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

Concepção de aprendiz
como ativo no processo - X
de aprendizagem.
Concepção de profes- Concepção de professor
sor como executor de como profissional res-
atividades previamente ponsável pela mediação
X - - X
formuladas e aprendi- da aprendizagem, tida
zagem como aquisição como apropriação de
de conhecimentos. conhecimentos.
Ênfase na autonomia do
Ênfase no controle do
X - professor e do direito à - -
trabalho do professor.
formação continuada.

Fonte: elaborado pelas autoras.

Conforme retrata o quadro acima, tem-se na PNA a predo-


minância dos princípios da abordagem de alfabetização como
a aprendizagem de um código e na BNCC, a predominância
da concepção de alfabetização na perspectiva do letramento,
embora possam ser identificadas algumas oscilações nesse
segundo documento. Para aprofundamento das reflexões, nos
tópicos abaixo serão discutidos os aspectos e as especificidades
de cada documento.

1. Concepção de alfabetização na PNA

Sobre a PNA, ressalta-se a concepção de alfabetização


como código, com reiteradas referências aos mecanismos

96
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

de codificação e decodificação, de modo que o ensino da


associação entre letras e fonemas seja explícito e sequencial,
em detrimento ao ensino centrado em aspectos conceituais
desse sistema e na abordagem textual, configurando a abor-
dagem de alfabetização como aprendizagem de um código. A
sistemática da alfabetização, no documento analisado, prevê
seis componentes a serem atendidos:

[...] a consciência fonêmica, a instrução fônica sistemática, a


fluência em leitura oral, o desenvolvimento de vocabulário
e a compreensão de textos. Pesquisas mais recentes, no
entanto, recomendam a inserção de outro componente, a
produção de escrita, e assim se obtêm os seis componentes
propostos pela PNA, nos quais se devem apoiar os bons
currículos e as boas práticas de alfabetização baseada em
evidências (BRASIL, 2019, p. 32).

Como será explicitado adiante, os componentes focam, de


maneira quase exclusiva, o ensino do “código”, pois, mesmo
nos componentes compreensão de textos e produção escrita,
a ênfase recai sobre a aprendizagem da codificação e decodi-
ficação. Em relação a esses dois aspectos, concordamos com
análise anterior do documento:

A quinta prescrição é “Compreensão de textos”, que consta


na lista do documento, mas não há indicativo do que de
fato é necessário para desenvolver as estratégias de leitura.

97
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

Com Certeza, não é o trabalho com textos artificialmente


criados ou modificados para alfabetizar as crianças que
os ajudaremos a desenvolver capacidades importantes de
leitura (LEAL, 2019, p. 83).

A sexta prescrição – “Produção de textos” –consta no docu-


mento com dois princípios. Para as crianças mais novas,
a escrita serve, segundo a proposta do documento, para
desenvolver a consciência fonêmica e a instrução fônica;
para os mais velhos, para entender tipologias e gêneros.
Tal afirmação fere toda a discussão feita pelos autores
que tratam dos gêneros discursivos. Desse modo, pode-se
supor que a referência a gênero entrou no documento sem
discussão sobre ao que remeteria. Além disso, não há
compreensão sobre o que realmente há a ser ensinado em
relação ao eixo de produção de textos. Quanto às crianças
mais novas, muitos estudos evidenciam a importância de
que elas tenham acesso à variedade textual desde o início
da escolarização (LEAL, 2019, p. 83).

Para evidenciar de modo mais contundente os pressu-


postos e princípios da PNA, cada categoria será abordada
de modo específico.
a) Ensino explícito das associações entre letras e fonemas;
ênfase na aprendizagem das capacidades de decodificar,
codificar e memorizar; e controle das palavras e textos a
serem lidos assim como do tempo de leitura.

98
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

Na PNA não há indicação para o uso de textos autên-


ticos que circulam em outros espaços sociais de interação.
Diferentemente, propõe-se um ensino sequenciado, em que
os textos usados são controlados quanto ao tamanho e à
composição silábica das palavras que os compõem:

Do ponto de vista operacional, alfabetizar é: no primeiro


ano do ensino fundamental, ensinar explicitamente o
princípio alfabético e as regras de decodificação e de
codificação que concretizam o princípio alfabético na
variante escrita da língua para habilitar crianças à leitura e
soletração de palavras escritas à razão de 60 a 80 palavras
por minuto com tolerância de no máximo 5% de erro na
leitura (BRASIL, 2019, p. 18).

b) Defesa de um ensino sistemático, organizado como sequ-


ência delimitada por etapas fixas, partindo das unidades
menores para as maiores e tendo a letra, o fonema ou a sílaba
como as unidades linguísticas de destaque.
A PNA, em consonância com o que é proposto por autores
defensores do Método Fônico, explicita que a aprendizagem
do princípio alfabético,

[...] que se concretiza diversamente nas diferentes línguas,


de modo que cada uma delas possui regras próprias de
correspondência grafema-fonema, deve ser ensinado de

99
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

forma explícita e sistemática, numa ordem que deriva do


mais simples para o mais complexo (BRASIL, 2019, p. 18).

Os leitores iniciantes, para serem bem-sucedidos, devem


aprender de início como funciona o sistema alfabético de
escrita: as formas, os sons e o nome das letras, como as
letras representam sons separados nas palavras e como
dividir as palavras faladas nos menores sons representados
pelas letras (BRASIL, 2019, p. 26).

c) Defesa da prontidão para alfabetização.


Na PNA, defende-se que,

antes de se iniciar o processo formal de alfabetização, a


criança pode e deve aprender certas habilidades que serão
importantes na aprendizagem da leitura e da escrita e
terão papel determinante em sua trajetória escolar. A
isso se costuma chamar literacia emergente, que consti-
tui o conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes
relacionados à leitura e à escrita, desenvolvidos antes da
alfabetização (BRASIL, 2019, p. 23).

“Não se trata de alfabetizar na educação infantil, mas de


proporcionar condições mínimas para que a alfabetização
possa ocorrer com êxito no 1º ano do ensino fundamental”
(NATIONAL EARLY LITERACY PANEL, 2009, p. 31).

100
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

No trecho transcrito, a literacia é indicada como pré-re-


quisito da aprendizagem do código escrito. O conceito de
literacia, no entanto, é bastante difuso no documento:

Literacia é o conjunto de conhecimentos, habilidades e


atitudes relacionados à leitura e à escrita, bem como sua
prática produtiva. Pode compreender vários níveis: desde
o mais básico, como o da literacia emergente, até o mais
avançado, em que a pessoa que já é capaz de ler e escrever
faz uso produtivo, eficiente e frequente dessas capacidades,
empregando-as na aquisição, na transmissão e, por vezes,
na produção do conhecimento (MORAIS, 2014) (BRASIL,
PNA, 2019, p. 21).

Em relação ao início do processo de alfabetização, indi-


ca-se que,

Na base da pirâmide (da pré-escola ao fim do 1º ano do


ensino fundamental), está a literacia básica, que inclui
a aquisição das habilidades fundamentais para a alfa-
betização (literacia emergente), como o conhecimento
de vocabulário e a consciência fonológica, bem como as
habilidades adquiridas durante a alfabetização, isto é, a
aquisição das habilidades de leitura (decodificação) e de
escrita (codificação). No processo de aprendizagem, essas
habilidades básicas devem ser consolidadas para que a
criança possa acessar conhecimentos mais complexos
(BRASIL, 2019, p. 21).

101
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

Com base no que é dito no documento, pode-se inferir


que o vocabulário e a consciência fonológica são tomados
como etapas iniciais do processo de alfabetização, havendo,
portanto, ênfase no ensino da consciência fonológica.

d) Ênfase no desenvolvimento da consciência fonológica e


consciência fonêmica.
A PNA explicita o foco central da alfabetização: consci-
ência fonológica e consciência fonêmica, que são dois pilares
da alfabetização. Os conceitos expostos são:

A consciência fonológica é uma habilidade metalinguística


abrangente, que inclui a identificação e a manipulação
intencional de unidades da linguagem oral, tais como pala-
vras, sílabas, aliterações e rimas. À medida que a criança
adquire o conhecimento alfabético, isto é, identifica o nome
das letras, seus valores fonológicos e suas formas, emerge
a consciência fonêmica, a habilidade metalinguística que
consiste em conhecer e manipular intencionalmente a
menor unidade fonológica da fala, o fonema (ADAMS
et al., 2005; CAPOVILLA, A.; CAPOVILLA, F., 2000;
CARDOSO-MARTINS, 2006 apud BRASIL, 2019, p. 30).

O ensino do conhecimento fônico se mostra eficaz quando


é explícito e sistemático (com plano de ensino que contem-
ple um conjunto selecionado de relações fonema-grafema,
organizadas em sequência lógica) (CARDOSO-MARTINS;

102
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

CORRÊA, 2008). Assim, as crianças aplicam na leitura de


palavras, frases e textos o que aprendem sobre as letras e
os sons. Portanto, a instrução fônica sistemática e explícita
melhora significativamente o reconhecimento de palavras,
a ortografia e a fluência em leitura oral (MULDER et
al., 2017; CARDOSO-MARTINS; BATISTA, 2005 apud
BRASIL, 2019, p. 33)

Em relação à ênfase em atividades de desenvolvimento


da consciência fonêmica, Morais (2019) atenta que

[...] a PNA tem uma visão bastante simplista de consciência


fonêmica. Temos evidências de que muitas das habilidades
que um método fônico típico treina não são necessárias
para uma criança compreender o sistema alfabético e que,
quando os aprendizes conseguem resolver, por exemplo, as
tarefas de segmentação de uma palavra em fonemas ou as
de adição ou subtração de fonemas no início de palavras, o
que eles fazem é pensar sobre a sequência de letras (e não de
fonemas das palavras), porque já alcançaram uma hipótese
alfabética e já dominam várias relações fonema-grafema.
Ou seja, tal como nós, adultos, aqueles alfabetizandos já
lançam mão de uma “consciência gráfica” e não apenas
ficam “manipulando fonemas” para resolver aquelas tarefas
esdrúxulas.

Em segundo lugar, temos evidência de que as crianças


podem ser ajudadas a compreender o princípio alfabético
sem já serem massacradas com aulinhas sistemáticas sobre
relações entre grafemas e fonemas, de modo repetitivo

103
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

e controlado. O que os defensores da PNA chamam de


“instrução fônica sistemática” nos parece uma camisa de
força, fundamentada numa perspectiva associacionista de
aprendizagem. Dizem que aquela instrução é baseada numa
“sequência lógica” e retrucamos que aqueles especialistas
a enxergam como tal (“lógica”), porque tratam a criança
como mera receptora e reprodutora de informações prontas
e não querem investigar o que ela, nossa criança-aprendiz,
pensa sobre letras, sílabas, palavras e textos (MORAIS,
2019, p. 68).

Vale ressaltar também que tal documento está referendado


por um quadro de agentes composto por, entre outros nomes,
Carlos Nadalim, Secretário de Alfabetização do Ministério
de Educação no período de lançamento do documento;
João Batista Araújo e Oliveira, presidente do Instituto Alfa
e Beto; Roger Beard, professor do Instituto de Educação da
University College London; Luiz Carlos Faria da Silva, doutor
em Educação pela Universidade Estadual de Campinas e
professor adjunto da Universidade Estadual de Maringá; Elizeu
Coutinho de Macedo, doutor em Psicologia Experimental
pela Universidade de São Paulo, além de outros teóricos e
docentes nacionais e estrangeiros, que foram selecionados
para propor uma política de alfabetização nos moldes que
tais grupos almejavam. Muitos desses autores pautam-se
nos postulados da Psicolinguística e das Neurociências,
compondo o arcabouço teórico que ilustraria a proposta de

104
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

“alfabetização baseada em evidências científicas”, difundida


pelos idealizadores da PNA.
Logo, observa-se que conceber a alfabetização como
um processo conceitual e contínuo, desenvolvido de forma
simultânea, ou seja, dentro e fora da instituição de ensino, e
indissociável das práticas e eventos de letramento se distancia
do proposto no documento em análise: “A PNA, com base
na ciência cognitiva da leitura, define alfabetização como o
ensino das habilidades de leitura e de escrita em um sistema
alfabético” (BRASIL, 2019, p. 18).
Todavia, segundo o MEC, a PNA surgiu com a fina-
lidade de melhorar a qualidade da alfabetização no país,
combatendo o analfabetismo absoluto e funcional, entretanto,
como assegura Micarello (2019), ao indicar um único método
para alfabetizar os estudantes, o método fônico, tal política
exclui a produção científica acumulada no Brasil ao longo dos
anos e negligencia a diversidade brasileira. Mendes e Gomes
(2019) também questionam a supervalorização de apenas
um método no texto da PNA, defendendo que não se pode
garantir igualdade de oportunidades educacionais, tampouco
equidade, se reduzir a problemática da alfabetização no país
a questões de métodos.
Outros pontos negativos acerca de tal documento envol-
vem o fato de essa política se caracterizar por apresentar

105
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

diretrizes e orientações acerca do processo de alfabetização


no país norteadas por uma perspectiva reducionista, funda-
mentada em uma única vertente científica e em uma visão
positivista de ciência, desconsiderando a amplitude dos estu-
dos já consagrados na área veiculados e priorizando apenas
os argumentos dos teóricos pautados em sua concepção de
estudo científico.
Além disso, tem-se também que os componentes do
processo de alfabetização seriam: instrução fonêmica siste-
mática, consciência fonêmica, fluência de leitura oral, ensino
de vocabulário, compreensão textual e produção textual.
Entretanto, ao pontuar o processo de alfabetização desse
modo, observa-se uma tentativa de controlar ou direcionar
a atuação do professor, pondo em evidência a figura docente
e indicando uma concepção de aluno como “receptor de
instruções”, favorecendo a pedagogia transmissiva e a ideia de
aprendizagem como aquisição de conhecimento. Vale reiterar
que os componentes da compreensão e produção textual
não se configuram como abordagens centradas na leitura e
produção de diversos gêneros textuais orais e escritos, pois
a PNA prioriza uma sequência delimitada (e limitadora) de
ensino: fonema, letra, palavra, frase e texto, sendo esse último
em geral textos escritos para alfabetizar, distanciados dos
que circulam nas outras esferas sociais de interação, ou seja,

106
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

textos artificiais, criados especificamente para o ensino das


relações entre letra e som.
Por fim, o fato de não apresentar a nomenclatura “letra-
mento”, substituindo-a pelo termo “literacia”, a PNA conota,
segundo Bunzen (2019), um silenciamento impositivo e
autoritário, corroborando para uma estratégia discursiva
na realidade de apagamento de tudo que já se publicou acerca
da relação entre alfabetização e letramento no país.

2. Concepção de alfabetização na BNCC

Quanto à BNCC, há predominância de princípios relativos


à abordagem da alfabetização na perspectiva do letramento, tal
como evidenciado no quadro anteriormente exposto, havendo,
no entanto, algumas oscilações sobretudo em relação a aspec-
tos não contemplados, como a explicitação da necessidade de
ajustar o ensino à heterogeneidade das turmas, à necessidade
de favorecer a aprendizagem de produção de textos escritos
contemplando a complexidade desse processo e a impor-
tância do desenvolvimento de habilidades metacognitivas,
as orientações de condução de um ensino problematizador
acerca do funcionamento do Sistema Alfabético de Escrita e
das aprendizagens acerca da oralidade, leitura e produção de
textos, assim como a defesa da autonomia do professor e do

107
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

direito à formação continuada. Apesar dessas lacunas, como


foi dito, são mais frequentes no documento os princípios
pertinentes à abordagem da alfabetização na perspectiva do
letramento.
Primeiramente, é relevante destacar que, como destaca
Morais (2019), a redução do ciclo inicial de alfabetização para
dois anos pode indicar um possível retrocesso, pois implica
em reduzir a amplitude da alfabetização.
Outro ponto relevante acerca da BNCC é o apagamento das
vozes de autores e pesquisadores em prol de uma pluralidade
de conceitos e abordagens que, de certo modo, compromete
também a consistência do documento, embora seja plausí-
vel justificar essa característica considerando o teor legal e
normativo da BNCC.
Os dados evidenciaram que há oscilações, mas há princí-
pios que aproximam o documento de perspectivas contrárias à
abordagem da alfabetização como um código. Encontra-se na
BNCC, por exemplo, que o letramento é condição para o pro-
cesso de alfabetização e vice-versa, conforme se observa nos
trechos a seguir, considerando os princípios de tal perspectiva.

a) Ensino centrado no texto, com a defesa do uso de textos


autênticos de diferentes gêneros e simultaneidade entre o

108
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

ensino do sistema de escrita e práticas de leitura e produção


de textos autênticos.
Na BNCC, há indicação de habilidades a serem apren-
didas de diferentes tipos, desde o primeiro ano do Ensino
Fundamental, englobando tanto o eixo de ensino que agrega os
conhecimentos sobre o Sistema Alfabético de Escrita, quanto
o eixo de leitura e de produção de textos escritos, tais como
os listados a seguir.

EF15LP02 (1º ao 5º ano) Estabelecer expectativas em relação


ao texto que vai ler (pressuposições antecipadoras dos
sentidos, da forma e da função social do texto), apoiando-se
em seus conhecimentos prévios sobre as condições de
produção e recepção desse texto, o gênero, o suporte e o
universo temático, bem como sobre saliências textuais,
recursos gráficos, imagens, dados da própria obra (índice,
prefácio etc.), confirmando antecipações e inferências
realizadas antes e durante a leitura de textos, checando a
adequação das hipóteses realizadas.

EF35LP01 Ler e compreender, silenciosamente e, em


seguida, em voz alta, com autonomia e fluência, textos
curtos com nível de textualidade adequado.

EF12LP02 (1º e 2º anos) Buscar, selecionar e ler, com a


mediação do professor (leitura compartilhada), textos
que circulam em meios impressos ou digitais, de acordo
com as necessidades e interesses.

109
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

EF15LP05 (1º ao 5º ano) Planejar, com a ajuda do profes-


sor, o texto que será produzido, considerando a situação
comunicativa, os interlocutores (quem escreve/para quem
escreve); a finalidade ou o propósito (escrever para quê);
a circulação (onde o texto vai circular); o suporte (qual é
o portador do texto); a linguagem, organização e forma
do texto e seu tema, pesquisando em meios impressos ou
digitais, sempre que for preciso, informações necessárias
à produção do texto, organizando em tópicos os dados e
as fontes pesquisadas (BRASIL, 2018, p. 95; 99; 113).

Essas são algumas habilidades, entre outras, que eviden-


ciam que se propõe tanto o ensino de leitura quanto a produção
de textos e análise linguística em todos os anos do Ensino
Fundamental e que, tal como é defendido na abordagem da
alfabetização na perspectiva do letramento,

[...] assume a centralidade do texto como unidade de


trabalho e as perspectivas enunciativo-discursivas na
abordagem, de forma a sempre relacionar os textos a seus
contextos de produção e o desenvolvimento de habilidades
ao uso significativo da linguagem em atividades de leitura,
escuta e produção de textos em várias mídias e semioses
(BRASIL, 2018, p. 67).

[...] o conhecimento metalinguístico e semiótico em jogo –


conhecimento sobre os gêneros, as configurações textuais
e os demais níveis de análise linguística e semiótica – deve

110
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

poder ser revertido para situações significativas de uso e


de análise para o uso (BRASIL, 2018, p. 85).

b) Ênfase em dimensões conceituais de compreensão do fun-


cionamento do SEA; concepção de professor como mediador
e de aprendiz como sujeito ativo no processo de aprendizagem
(aprendizagem enquanto construção do conhecimento).
A BNCC, diferentemente da PNA, concebe que o ensino
das propriedades do nosso sistema notacional é complexo.
Desse modo, não prevalece a noção de ensino de um código,
tal como aparece na PNA. Há explicitação de habilidades
focadas na aprendizagem de como “construir o conhecimento
do alfabeto da língua em questão” (BRASIL, 2018, p. 91):

EF01LP01 (1º ano) Reconhecer que textos são lidos e


escritos da esquerda para a direita e de cima para baixo
da página.

EF01LP02 (1º ano) Escrever, espontaneamente ou por


ditado, palavras e frases de forma alfabética – usando
letras/grafemas que representem fonemas

EF01LP05 (1º ano) Reconhecer o sistema de escrita alfa-


bética como representação dos sons da fala

EF01LP06 (1º ano) Segmentar oralmente palavras em


sílabas.

111
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

EF01LP08 (1ºano) Relacionar elementos sonoros (sílabas,


fonemas, partes de palavras) com sua representação escrita.

EF02LP02 (2º ano) Segmentar palavras em sílabas e remo-


ver e substituir sílabas iniciais, mediais ou finais para
criar novas palavras.

Na BNCC, não é proposta sequencialidade entre as uni-


dades linguísticas e nem treinamento fonético.
c) Alfabetização como domínio do sistema de escrita e como
um processo de desenvolvimento de habilidades linguísticas
que ocorre por meio da inserção dos estudantes em práticas
de letramento.
Como ilustrado anteriormente, há, na BNCC, habilidades
que focam nas aprendizagens relativas ao Sistema Alfabético
de Escrita e habilidades relativas aos eixos de leitura, produção
de textos e oralidade. Defende-se, portanto, a garantia de

[...] amplas oportunidades para que os alunos se apropriem


do sistema de escrita alfabética de modo articulado ao
desenvolvimento de outras habilidades de leitura e de
escrita e ao seu envolvimento em práticas diversificadas
de letramentos (BRASIL, 2018, p. 59).

Entre outras habilidades, pode-se destacar a que propõe


que as crianças aprendam a:

112
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

(EF15LP01) Identificar a função social de textos que


circulam em campos da vida social dos quais participa
cotidianamente (a casa, a rua, a comunidade, a escola) e
nas mídias impressa, de massa e digital, reconhecendo para
que foram produzidos, onde circulam, quem os produziu
e a quem se destinam (BRASIL, 2018, p. 95).

d) Conceito amplo de leitura.


Na BNCC, a leitura é um dos eixos priorizados, sendo
concebida,

[...] em um sentido mais amplo, dizendo respeito não


somente ao texto escrito, mas também a imagens estáticas
(foto, pintura, desenho, esquema, gráfico, diagrama) ou
em movimento (filmes, vídeos etc.) e ao som (música),
que acompanha e cossignifica em muitos gêneros digitais
(BRASIL, 2018, p. 72).

O trecho transcrito salienta o pressuposto de que é


necessário ensinar os estudantes a lidar com as diferentes
linguagens, e, portanto, os diferentes gêneros discursivos
em diferentes portadores de textos. Por exemplo, uma das
habilidades previstas é:

EF12LP04 (1º e 2º anos)


Ler e compreender, em colaboração com os colegas e com
a ajuda do professor ou já com certa autonomia, listas,
agendas, calendários, avisos, convites, receitas, instruções

113
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

de montagem (digitais ou impressos), dentre outros gêneros


do campo da vida cotidiana, considerando a situação
comunicativa e o tema/assunto do texto e relacionando
sua forma de organização à sua finalidade (BRASIL, 2018,
p. 103).

Dessa maneira, a BNCC tem pontos positivos a se destacar


e representa um avanço para a educação no país, pois, ao
mesmo tempo que a alfabetização é concebida como o domínio
do Sistema de Escrita Alfabética, partindo do desenvolvimento
de habilidades e competências linguísticas, busca-se considerar
o uso de diferentes gêneros textuais em sala de aula, além de
tratar a leitura de forma ampla e enfatizar a construção dos
conhecimentos acerca da escrita, partindo do pressuposto de
que as crianças são seres ativos nesse processo.

Conclusão

Este estudo evidenciou as concepções de alfabetização


apresentadas na BNCC e na PNA, considerando suas relações
com as práticas e os eventos de letramento, além de pontuar
as possíveis práticas didático-pedagógicas decorrentes das
prescrições e recomendações presentes em tais documentos
oficiais.

114
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

Segundo análises feitas, a PNA parte de uma concepção


de alfabetização como ensino de um código e a BNCC tem
influência mais marcante da alfabetização na perspectiva
do letramento. Há, assim, um descompasso entre os dois
documentos nacionais, o que evidencia as tensões presentes
neste campo.
Vale destacar que a BNCC foi construída em um processo
tenso, de disputas políticas, mas, sobretudo, até a finalização
da primeira versão, houve participação de representantes de
diferentes instituições ligadas à educação, além de ter passado
por consulta pública. Na segunda versão, houve mudanças
provocadas por uma equipe convocada pelo Governo Federal,
mas não foi possível desconstruir totalmente o que foi ante-
riormente estabelecido, sobretudo porque foi um documento
que precisou ser aprovado no Conselho Nacional de Educação.
A PNA, no entanto, é um documento que foi produzido
no âmbito restrito do Governo Federal sem participação de
outras instâncias, sem consulta pública e sem discussão com
outros setores educacionais. Tal processo pode explicar, em
parte, as contradições entre os dois documentos.
Na PNA desconsidera-se a complexidade do processo de
ensino da leitura e da escrita e que os problemas de aprendi-
zagem em turmas de alfabetização exigem a busca de soluções
oriundas de diversos debates multidisciplinares, evitando

115
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

a unilateralidade, a imposição e o autoritarismo. Destarte,


observa-se que a proposta teórico-metodológica defendida
na e pela PNA opõe-se sobremaneira ao aprofundamento do
debate acadêmico e sugere uma padronização das práticas de
ensino do Sistema Alfabético de Escrita, desconsiderando a
criança aprendiz e sua evolução individual. Sobre esta questão,
Morais (2019) afirmou o seguinte:

Como acabamos de justificar, as evidências de nossas


pesquisas mostram que, do ponto de vista teórico, a pers-
pectiva assumida pela PNA é muito inadequada, porque
desconsidera o modo como a criança funciona, não leva em
conta como suas concepções evoluem. Do ponto de vista
didático, ela é desastrosa por diversos motivos. Além de
praticar um ensino padronizado, que ignora o que a criança
pensa e que não enfrenta a diversidade de conhecimentos
dos alfabetizandos que estão numa mesma sala de aula
(MORAIS, 2019, p. 73).

Isto posto, articuladas às concepções de alfabetização


e de criança estão as concepções de língua/linguagem nos
documentos em análise: na BNCC a língua é um fenômeno
cultural, historicamente construído, dinâmico e submetido
à situação comunicativa, já na PNA a língua é tratada como
um código que deve ser aprendido para os indivíduos se
comunicarem entre si.

116
Karla Rossana Rodrigues de Souza
Telma Ferraz Leal

Assim, a partir do presente estudo, pode-se afirmar que o


conceito de alfabetização não é homogêneo, inclusive em se
tratando de documentos prescritivos, uma vez que o currículo
em geral é um espaço de disputas e tensionamentos. Sendo
assim, parafraseando Cagliari (2010), apesar das prescrições,
se o docente se debruçar sobre a realidade de cada estu-
dante, acompanhando o desenvolvimento de suas hipóteses
e aprendizagens acerca da linguagem, encontrará as melhores
estratégias e métodos de ensino porque buscará os caminhos
mais adequados para a sua turma, sem desconsiderar a hete-
rogeneidade e as peculiaridades de cada caso, sem priorizar
modelos e propostas preestabelecidas. Por fim, além disso,
confirma-se a importância de se discutir democraticamente
currículos e políticas públicas educacionais, principalmente
no tocante ao processo de alfabetização e letramento, reco-
nhecendo a indissociável relação entre linguagem, sociedade
e escola.

117
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA:
POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

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124
DA VELHA E SEMPRE PRESENTE
DISCUSSÃO DA ALFABETIZAÇÃO
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Maria Cristina Leandro de Paiva

As crianças – todas as crianças,


garanto – estão dispostas para
a aventura da aprendizagem
inteligente. Estão fartas de serem
tratadas como infradotadas ou
como adultos em miniatura. São
o que são e têm direito a ser o que
são: seres mutáveis por natureza,
porque aprender e mudar é
seu modo de ser no mundo
Emília Ferreiro

125
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA: POSSÍVEIS
IMPLICAÇÕES DA VELHA E SEMPRE PRESENTE DISCUSSÃO DA
ALFABETIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL PEDAGÓGICAS

Esse trecho da fala de Ferreiro nos faz refletir sobre o papel


da educação e da instituição de educação infantil na apren-
dizagem da criança pequena. A criança vive um processo de
aprendizagem intenso; ávida por explorar o mundo é, muitas
vezes, podada pela “autoridade” do adulto/professor que lhe
impõe regras e normas-padrões sociais/educativas, ao nor-
matizar suas ações dentro do espaço escolar, ora subjugando
sua capacidade, ora exigindo além de suas possibilidades. Tais
procedimentos distanciam a criança do seu potencial criador,
imaginativo e construtor de conhecimentos.
Na educação infantil, as professoras se veem, muitas vezes,
sem saber que rumo tomar na educação/cuidado das crianças,
uma vez que as concepções que prevalecem, na maioria das
vezes, evocam a premissa destacada por Ferreiro – adulto em
miniatura ou seres a serem moldados, lapidados pelo adulto,
a criança indefesa. Neste emaranhado de indeterminações,
acrescida a mudança em relação à ampliação do ensino fun-
damental de 9 anos, a reestruturação do atendimento na
educação infantil para 0 a 5 anos e, recentemente, o retro-
cesso em relação à educação infantil como preparatória para
o Ensino Fundamental, emanada da Política Nacional de
Alfabetização – PNA (2019), é retomada a antiga (ou atual?)
discussão acerca da relação entre alfabetizar e brincar na
educação infantil.

126
Maria Cristina Leandro de Paiva

Os discursos se misturam e a insegurança se instala, de


forma que perpassa a ideia de que ou a educação infantil se
destina a alfabetizar as crianças ou é um local para desenvolver
a capacidade lúdica por intermédio do brincar. Acentuam-se
as distorções acerca do conceito de alfabetização e do papel
do brincar na prática pedagógica nessa etapa da educação
básica, o que traz duas perguntas inquietantes: alfabetiza-se
ou não na educação infantil? Que lugar ocupa o brincar no
espaço-tempo da educação infantil? Esse capítulo se propõe a
discutir tais questões trazendo elementos que possam servir
de reflexões acerca da tão conclamada dicotomia alfabetizar
x brincar. Ressaltamos que não temos o propósito de esgotar
a questão, mas possibilitar um olhar reflexivo, a partir de
vários pontos de vistas que ora se cruzam, ora se distanciam
no pensar e propor alternativas à prática pedagógica com a
linguagem escrita na educação infantil.
Inicialmente discutiremos aspectos da alfabetização e da
relação entre alfabetização e letramento. Em seguida, abor-
daremos a relação entre alfabetizar e brincar, entrelaçando
aspectos pedagógicos e conceituais acerca da temática.

127
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA: POSSÍVEIS
IMPLICAÇÕES DA VELHA E SEMPRE PRESENTE DISCUSSÃO DA
ALFABETIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL PEDAGÓGICAS

Alfabetização e letramento – alguns aportes

O ato de ler e escrever só tem sentido e significado se


for útil para o indivíduo no seu dia a dia, como pessoa que
brinca, diverte-se, estuda, trabalha, pois destituí-lo de sua
funcionalidade é torná-lo artificial e sem valor social.
Para Ferreiro (2001, p.3),

há uma diferença fundamental entre a concepção tradi-


cional, que considera que o primeiro passo na aquisição
da língua escrita é a aquisição de uma técnica de codifi-
cação/decodificação, e a caracterização desse processo de
aquisição como a compreensão de um modo particular
de representação da linguagem.

A alfabetização escolar, muitas vezes vista como a meca-


nização da leitura e a transposição da escrita pela cópia,
incute a ideia de que uma coisa é estar alfabetizado para
os meios escolares, como reprodutor do conhecimento, de
modo que abstrai “a alfabetização das diferentes práticas
sociais em que ela se realiza e das condições concretas que
a viabilizam” (KRAMER, 1986, p. 16), e outra coisa são os
saberes necessários para viver em sociedade, como a neces-
sidade de uma prática cotidiana de leitura. É como se o saber
escolar não tivesse nenhum vínculo com o cotidiano, como
se o fato de, na escola, ao traçar letras, reproduzir leituras,

128
Maria Cristina Leandro de Paiva

escrever ortograficamente correto, mesmo sem saber o que


está escrevendo, levasse à compreensão e, a posteriori, o aluno
estabeleceria as devidas relações, o que espelha a ideia de
que, na escola, a vida é outra coisa, desconsiderando que ler
e escrever são construções individuais/sociais com funções
individuais e culturais das mais diversas.
Decerto que, se há um aprendiz que pensa, precisamos
escutá-lo. Além disso, é preciso considerar o objeto de conhe-
cimento. O ensino da leitura e da escrita como uma trans-
missão menospreza sua capacidade intelectual, ao impedir
o contato com o objeto de conhecimento e com os modos de
realização da língua, desconsiderando os esforços cognitivos
desse aprendiz para compreendê-la.
Ferreiro e Teberosky (1985) buscavam descobrir como as
crianças conseguem aprender a ler e a escrever e quais as suas
ideias a respeito da escrita, mesmo antes de se alfabetizarem.
Os resultados dessas pesquisas tiveram uma repercussão
enorme nos meios educacionais, pois mudaram o enfoque do
“como o professor ensina” para o “como o aluno aprende a ler
e a escrever”, o que fez entrar no cenário das preocupações
relativas à alfabetização: o sujeito cognoscente – a criança e
o objeto de conhecimento – a língua escrita.
A perspectiva psicogenética do conhecimento, defendida
por Ferreiro, está no “como a criança aprende” para, a partir

129
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA: POSSÍVEIS
IMPLICAÇÕES DA VELHA E SEMPRE PRESENTE DISCUSSÃO DA
ALFABETIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL PEDAGÓGICAS

dessa concepção, pensar no “como o professor deve ensiná-la”.


Desse modo, o professor que fizer opção por essa perspectiva
terá que repensar a sua prática a partir de um outro prisma,
com vista a oportunizar a criança a vivenciar diversas expe-
riências de leitura/escrita, como sujeito da cultura letrada e
como aprendiz em potencial.
Ao contrário do caminho escolhido por Ferreiro e
Teberosky, Luria (apud AZENHA, 1997) realizou seus estu-
dos tendo como base os princípios da teoria sócio-histórica
vygotskyana, em que as funções superiores são construídas
nas condições sociais da vida humana historicamente situadas.
Nesse sentido, o sujeito é sujeito da cultura e constitui-se em
sujeito psicológico por meio da interação.
Luria dirigiu suas investigações a observar como as
crianças pré-escolares usam linhas, rabiscos e desenhos para
recordar um conteúdo, além de tentar perceber como utilizam
sinais, marcas, etc. Nessa linha de pensamento, sua pesquisa
apresenta a pré-história da escrita e demonstra como a criança
constrói a relação funcional com os signos, o que implica na
inserção da escrita como solução para um problema real de
memorização − ganho psicológico da memória apoiado em
recursos auxiliares externos.
Azenha (1997) e Gontijo (2002) apontam acordos entre
Ferreiro e Luria que merecem ser destacados, uma vez que

130
Maria Cristina Leandro de Paiva

ambos se contrapõem à ideia mecanicista da aprendizagem


da linguagem escrita, uma técnica dependente de métodos.
Para ambos, a aprendizagem da escrita implica uma história
anterior do desenvolvimento individual da criança, mesmo
antes de sua escolarização, ou seja, do contato formal com
as letras, reconhecendo que as ações de ler e escrever não
se iniciam na escola nem se restringe a ela. Além do mais,
valorizam as tentativas de escrita da criança antes do ensino
formal.
Smolka (1991) amplia e ratifica essa discussão ao afirmar
que a alfabetização, numa visão sócio-histórica, pressupõe
uma mudança conceitual para a qual nem sempre os pro-
fessores estão preparados. Consiste numa relação interativa
entre os componentes pedagógicos, de forma que a função
de ensinar estabeleça uma relação com o aprender; a media-
ção do professor ocorra tendo como premissa um contexto
sociocultural real, de forma que a criança passe a interagir
com o objeto do conhecimento.
Atualmente, concebe-se a alfabetização numa perspectiva
de letramento, qual seja, a ampliação da visão de aquisição do
código escrito ou da compreensão do funcionamento de sua
dimensão de sistema para práticas sociais de leitura e escrita.
Ferreiro (2001, p.71) e Ferreiro (2002, p. 55), mesmo ciente
da insuficiência das designações do termo alfabetização, que

131
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA: POSSÍVEIS
IMPLICAÇÕES DA VELHA E SEMPRE PRESENTE DISCUSSÃO DA
ALFABETIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL PEDAGÓGICAS

leva a muitos contrassensos, chama a atenção para o fato


de que “nada solucionamos com um letramento que está
ancorado em “letra’”. A autora sugere que devemos utilizar
a expressão “cultura letrada”, que nos aproxima do termo
literacy que, em outros contextos, significa alfabetização.
Encontramos em Soares (2002, p.17) a designação semân-
tico-etimológica do termo literacy – do latim littera, que
significa letra, com o sufixo – cy, que denota qualidade,
condição, estado, fato de ser. Literacy, para esta autora, seria
então “o estado ou condição que assume aquele que aprende
a ler e escrever”.
Na perspectiva apontada por Soares (2002, p. 39-40),

alfabetizado é aquele indivíduo que sabe ler e escrever; já


o indivíduo letrado, o indivíduo que vive em estado de
letramento, é não só aquele que sabe ler e escrever, mas
aquele que usa socialmente a leitura e a escrita, pratica a
leitura e a escrita, responde adequadamente às demandas
sociais de leitura e de escrita.

As mudanças ocasionadas pela demanda social, em que


apenas aprender a ler e a escrever não é suficiente, trouxe para
o campo da alfabetização “o desenvolvimento de habilidades
para o uso competente da leitura e da escrita nas práticas
sociais e profissionais” (SOARES, 2003, p. 16).

132
Maria Cristina Leandro de Paiva

Soares (2003), ao tratar sobre a ressignificação do conceito


de alfabetização, expõe que a inserção no mundo da escrita
se dá via dois processos:
• alfabetização no sentido restrito → aprendizagem do
sistema de escrita – sistema alfabético e ortográfico;
• alfabetização funcional ou letramento → uso efetivo do
sistema – alfabético e ortográfico – em práticas sociais
que envolvem a língua escrita; desenvolvimento de
competências: habilidades, conhecimentos e atitudes.
A referida autora considera esses dois processos indis-
sociáveis, simultâneos e interdependentes: “não se trata de
primeiro aprender a ler e a escrever para só depois usar a
leitura e a escrita, mas aprende-se a ler e a escrever por meio
do uso da leitura e da escrita em práticas reais de interação
com a escrita” (SOARES, 2003, p. 16).
A alfabetização tem o papel de tornar o indivíduo capaz de
ler e escrever, fazendo uso frequente e competente da leitura
e da escrita. Há uma diferença entre saber ler e escrever e
fazer uso da leitura e da escrita; ou seja, há pessoas que sabem
ler e escrever, porém não são letradas, uma vez que não são
suficientemente competentes para as práticas sociais de leitura
e de escrita (SOARES, 2002).

133
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA: POSSÍVEIS
IMPLICAÇÕES DA VELHA E SEMPRE PRESENTE DISCUSSÃO DA
ALFABETIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL PEDAGÓGICAS

Alfabetizar deixa de ser concebida “apenas” numa dimen-


são micro - domínio do código - para assumir uma condição
de formação do sujeito na sua totalidade, como ser que neces-
sita compreender com autonomia o que lê e escreve, fazendo
uso social da leitura e da escrita. Nesse sentido, é pertinente
centrar esforços para tornar o ambiente escolar fonte de
contato permanente com o mundo do conhecimento letrado,
ao mesmo tempo em que ocorre a aquisição do sistema de
escrita.
Os estudos de Ferreiro e Soares nos indicam que a alfa-
betização, como prática social, preconiza para a criança sua
formação como cidadão da cultura, de maneira que o domínio
das habilidades e procedimentos básicos do ler e escrever
devem ocorrer em situação de uso e interação social.
Para o docente que atua na educação infantil, entender a
complexidade do ato de ensinar a ler e a escrever não é tarefa
fácil. Por outro lado, é imprescindível indagarmos se há ques-
tionamentos desse porte quando as professoras se referem às
pré-escolas oriundas da classe média. Nesta classe, a situação
já está resolvida, não há controvérsias, mesmo que essa prática
redunde em situações disciplinadoras de cerceamento da
infância; para as crianças das classes populares essa é uma
pedra de toque, um assunto na pauta do dia.

134
Maria Cristina Leandro de Paiva

A discussão seria pertinente caso estivesse assentada


sobre as possibilidades de contato inicial das crianças com a
escrita, como uma das linguagens a que deveriam ter acesso,
principalmente se o seu meio sociocultural for privado de
aportes textuais. É fato que as crianças que não vivem em
ambientes alfabetizadores precisam aprender na escola a
importância da escrita, ao conservar o que a memória pode
esquecer.
A educação infantil não deve ter o objetivo de alfabetizar
as crianças, mas também não pode negar-lhe o acesso ao
mundo letrado. No decorrer dessa etapa, deve-se estar lendo
e escrevendo com as crianças, ou seja, dar início a exploração
da linguagem escrita, de maneira a atender as crianças à altura
da sua curiosidade. Nesse sentido, não se negaria o acesso da
criança ao mundo da leitura e da escrita, mas reconstituiria a
falsa dicotomia entre alfabetização e letramento, reafirmando
a posição desses aspectos como dois processos simultâneos,
indissociáveis e interdependentes, de forma que se aprende
a ler e escrever fazendo uso efetivo da leitura e da escrita
em contextos sociais reais – práticas sociais de escrita na
interação entre pessoas.
Como diz Smolka (1991), a alfabetização se constitui em
uma atividade discursiva, em que “a criança aprende a ouvir,
a entender o outro pela leitura; aprende a falar, a dizer o que

135
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA: POSSÍVEIS
IMPLICAÇÕES DA VELHA E SEMPRE PRESENTE DISCUSSÃO DA
ALFABETIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL PEDAGÓGICAS

quer pela escrita” (SMOLKA, 1991, p. 63). Quando estamos


nos referindo à perspectiva do ouvir, queremos dizer que esse
ouvir expressa interpretação e compreensão dos sentidos e
significados expressos nos textos, a partir do estabelecimento
de relações com outras situações e objetos, uma vez que o ato
de ler e ouvir a leitura pressupõe, além da decodificação, a
antecipação, a seleção, a inferência e a verificação. Quanto à
escrita, as crianças precisam ter oportunidade de expressar
seu pensamento e comunicar suas ideias por meio do registro
escrito, vivenciando atos reais de produção de textos, tais
como: carta para uma colega doente, convite para outra turma
assistir a uma peça encenada pelo grupo, cardápio da semana
para apresentar aos pais, agenda das atividades realizadas no
dia, lista das comidas que gosta, entre uma diversidade de
outras possibilidades. Lembramos que escrever pressupõe
produção/elaboração, portanto, difere de copiar e tirar do
quadro.
Concordamos com Baptista (2022) quando diz que a
questão não está nos conceitos de letramento e alfabetiza-
ção, ou alfabetização, mas o fato que une a discussão sobre
alfabetização é a noção de que alfabetizar ou alfabetizar-se
é um processo multifacetado, como afirmou, há mais de 30
anos, Soares (1985). Assim, exige conhecimentos conceitu-
ais, perceptuais, atitudinais que envolvem várias áreas do

136
Maria Cristina Leandro de Paiva

conhecimento humano – psicologia, psicolinguística, socio-


linguística e linguística – além da compreensão da dimensão
individual e social do ato de ler e escrever.

Do alfabetizar e do brincar

A exigência em torno da alfabetização na educação infantil


gera crianças estressadas, haja vista que, ao enfatizar o ler e
o escrever, esquece-se de oferecer à criança a oportunidade
de brincar. Também, se só brinca, nega-se o direito de ela ter
contato com a leitura e a escrita. Esse extremismo nega as
coisas que a criança tem direito de vivenciar.
Brandão e Leal (2011) chamam atenção de alguns percursos
da leitura e escrita na educação infantil, destacando o impacto
dos discursos nas políticas públicas, a exemplo do predomínio
da maturidade para alfabetização, que culminou, na década
de 1970 e 1980, em propostas com ênfase em pré-requisitos –
desenvolvimento de habilidades de coordenação viso-motora,
memória visual e auditiva, orientação espacial, entre outros – ,
de modo a evitar o contato das crianças pré-escolares com
a leitura e a escrita. As propostas de prontidão, vazias de
significado e sentido, retardavam o contato das crianças com
a leitura e a escrita e não trouxeram os resultados esperados
na posterior alfabetização.

137
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA: POSSÍVEIS
IMPLICAÇÕES DA VELHA E SEMPRE PRESENTE DISCUSSÃO DA
ALFABETIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL PEDAGÓGICAS

A partir do fracasso dessas propostas, novas perspectivas


foram apontadas, das quais Brandão e Leal (2011) apontam
três: 1) “a obrigação da alfabetização”, no qual ocorre a subs-
tituição do período preparatório, pelo trabalho exaustivo
com letras e sílabas, do “simples para o complexo”, ou seja
parte-se de uma proposta gradativa das vogais, consoantes,
sílabas simples, sílabas compostas e frases, com ênfase na
memorização e transcrição do oral para o escrito e vice versa;
2) “o letramento sem letras”, que parte da premissa de que a
alfabetização não é objeto do trabalho educativo, de modo
que a linguagem escrita não deve fazer parte da prática com
crianças, mas, sim, outras linguagens como a corporal e a
musical, por exemplo; 3) “Ler e escrever com significado na
educação infantil”, perspectiva contrária às anteriores, propõe
o ensino da escrita de forma sistemática, desde a educação
infantil, com a introdução de aspectos relativos à apropriação
do sistema alfabético da escrita, sem desconsiderar aspectos
do letramento e as vivências da infância.
Essa terceira vertente é defendida pelas autoras como
uma possibilidade do convívio com a escrita não se tornar
um fardo para as crianças, mas que, por meio do brincar, seja
proporcionado seu acesso à cultura escrita. Ao brincar, as
crianças apreendem modos de ser, agir e pensar, participando
do mundo adulto, de modo que também podem fazer parte

138
Maria Cristina Leandro de Paiva

da cultura escrita, vivenciado e interagindo socialmente com


textos, a partir de ações de leitura, produção de textos e
reflexão sobre a língua (BRANDÃO; LEAL, 2011).
Nesse sentido, as autoras propõem dois eixos de trabalho,
que devem ser compreendidos em um contexto funcional e
significativo, quais sejam: apropriação do sistema alfabético
de escrita e o letramento. Defendem, portanto, a alfabetização
na perspectiva do letramento desde a educação infantil. Para
tanto, indicam cinco blocos de atividades:
a. Atividades que promovam práticas de leitura e escrita
significativas e semelhantes às vivenciadas no contexto
extraescolar;
b. Atividades que promovam a escrita e a leitura pelas
próprias crianças;
c. Atividades e jogos que estimulam a análise fonológica
de palavras com e sem correspondências com a escrita;
d. Atividades e jogos que estimulam a identificação e
escrita de letras e o reconhecimento global de certas
palavras;
e. Atividades e jogos que estimulem a discriminação
perceptual e coordenação viso-motora.
Em relação a esse último aspecto, vale uma ressalva: não
se trata de repetir os enfadonhos e cansativos exercícios de

139
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA: POSSÍVEIS
IMPLICAÇÕES DA VELHA E SEMPRE PRESENTE DISCUSSÃO DA
ALFABETIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL PEDAGÓGICAS

cobrir pontinhos e repetir palavras, mas de proporcionar


o desenvolvimento das habilidades motoras com o uso de
jogos, quebra-cabeças, construção de brinquedos de sucata,
desenho, pintura, modelagem, entre outros.
Para Brandão e Leal (2011), o espaço da educação infantil
deve ser permeado por uma intencionalidade pedagógica,
não no sentido conteudista, mas na perspectiva da inserção
da criança na cultura letrada, com objetivos claros relativos
às práticas de leitura e produção escrita.
Baptista (2010) assevera o direito da criança à cultura
letrada, reconhecendo-a como produtora de cultura, que nas
interações e articulações com diferentes manifestações, modos
de ser, tradições sociais, enfrenta os desafios do saber e do
conhecer, vivenciando experiências. Nessa imersão cultural,
cria estratégias para conhecer e conviver no mundo, com a
linguagem escrita, como um dos aspectos primordiais da
sociedade contemporânea. Nesse contexto, interessa-se pelo
modo de funcionamento da escrita, como exposto anterior-
mente na discussão sobre a psicogênese da linguagem escrita
(FERREIRO; TEBEROSKY, 1985).
Para essa autora, a linguagem escrita é instrumento de
interação social, que não se limita ao desenvolvimento de com-
petências para a escrita, mas aproxima-se de práticas culturais
letradas. Integra um processo mais amplo de constituição

140
Maria Cristina Leandro de Paiva

da linguagem, além de ser um instrumento discursivo. A


partir dessa perspectiva, a prática com a língua escrita – nos
seus usos e funções – deve possibilitar, na educação infantil,
processos de interlocução, reflexão e interação com/entre os
participantes, tendo a criança como ator social.
A partir dos pressupostos assumidos, Baptista (2010)
aponta três parâmetros para a prática com a linguagem escrita
na educação infantil:
1. Considerar a literatura infantil como arte;
2. Ensinar aquilo que a criança deseja saber e incentivá-la
a saber mais sobre a linguagem escrita;
3. Assegurar as condições materiais adequadas.
Os pressupostos assumidos não podem perder de vista uma
visão de criança como ator social e a influência da linguagem
escrita na sociedade, de modo que o trabalho pedagógico seja
coerente com as especificidades e singularidades do universo
infantil (BAPTISTA, 2010).
A brincadeira, como nos diz Wajskop (1999), como
atividade social infantil, vincula-se à função da educação
infantil e pode constituir-se em um espaço de interação social
e construção de conhecimento pelas crianças. Como bem
coloca Vygotsky (1991), o brinquedo é o mais alto nível de
desenvolvimento na criança, por possibilitar agir numa esfera

141
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA: POSSÍVEIS
IMPLICAÇÕES DA VELHA E SEMPRE PRESENTE DISCUSSÃO DA
ALFABETIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL PEDAGÓGICAS

cognitiva, fornecendo uma estrutura básica para mudanças


das necessidades e da consciência; sua essência está na criação
de uma nova relação entre significado e percepção visual –
situação de pensamento e situação real –, o que se constitui
um modo de assimilar e recriar a experiência sociocultural
dos adultos, compreendendo o mundo e as ações humanas.
No dizer de Wajskop (1999), a superação da dicotomia
socialização/escolarização e brinquedo/trabalho dá-se no
âmbito da integração educação e cuidado. É imperioso
considerar, em se tratando da função da educação infantil,
o desenvolvimento da criança e sua cultura de origem, de
forma que trabalho – representação e experimentação pelo
brinquedo – e brincadeira sejam concebidos como práticas
sociais, complementares, na infância.
A discussão que impôs a dicotomia alfabetizar/brincar na
educação das crianças encontra em Hall (2006) uma possível
resposta. Para esse autor, parte da experiência infantil com
o letramento deve estar inserida em atividades lúdicas. O
brincar baseado em experiências da vida real e o letramento
permitem:
• Que as crianças experienciem uma grande variedade
de situações em que o letramento está adequadamente
inserido;

142
Maria Cristina Leandro de Paiva

• Que as crianças tenham experiências holísticas de


letramento – o letramento ocorre por ser necessário
no contexto do brincar, não porque o ensino exige;
• Que as crianças controlem as maneiras pelas quais o
letramento é usado e experienciado;
• Que as crianças demonstrem o que sabem e não o que
copiam;
• Que as crianças cooperem ao aprender sobre o
letramento.
A inter-relação proposta por esse autor estimula-nos
a pensar ambientes escolares alegres e estimulantes, que
possibilitem a diversidade de experiências significativas, de
forma que as crianças possam interagir com outras crianças e
com adultos com prazer, desejo, sonho, imaginação, criação,
cognição, ludicidade.
É mister salientar que o brincar, como uma experiência
essencialmente lúdica, faz parte da vida da criança, seja no
âmbito familiar, entre colegas, seja na instituição educacional,
e não tem um objetivo educativo, mesmo sendo indispensável
à ampliação da inteligência e ao desenvolvimento do pensa-
mento; é fruto da necessidade da criança de conhecer a reali-
dade e agir sobre ela (VYGOTSKY, 1991). É no brinquedo que
a criança assimila as funções sociais das pessoas e os padrões

143
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA: POSSÍVEIS
IMPLICAÇÕES DA VELHA E SEMPRE PRESENTE DISCUSSÃO DA
ALFABETIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL PEDAGÓGICAS

de comportamento social (LEONTIEV, 2001). Nesse momento,


ela se porta além da sua capacidade real, desenvolve ações
que na realidade não conseguiria, por meio da imaginação
ativa e da imitação dos fenômenos e relações humanas. A
brincadeira possui uma relevância social e cultural, além dela
própria ser conhecimento e linguagem: ao brincar a criança
descobre a riqueza da linguagem e apropria-se dela.
Por outro lado, é preciso considerar que, quando a brin-
cadeira é utilizada como um meio para se conseguir deter-
minados objetivos, deixa de ter uma finalidade em si mesma
para servir como pretexto para o ensino da matemática, da
leitura, entre outros fins. Friedmann, ao defender a cultura
do brincar, diz que cabe ao educador a percepção do brincar
como atitude lúdica a ser assumida na prática, o que difere
do brincar para ensinar “conteúdos escolares”. Para essa
autora, o brincar precisa sair do espontaneísmo inconsciente
à consciência do brincar como linguagem simbólica, essencial
ao desenvolvimento do ser humano; uma visão do brincar
permeando as práticas.
Wajskop (1999) enfatiza que o professor, como adulto
mediador entre as crianças e o conhecimento, deve ser inte-
grante das brincadeiras: observador, organizador, personagem,
elo de ligação entre as crianças e os objetos. Ser aquele que
desfruta com humor das perguntas, ideias e palavras das

144
Maria Cristina Leandro de Paiva

crianças, sem se sentir obrigado a dar respostas certas, mas


construir outras novas perguntas a partir das indagações dos
seus alunos, como assinala Fernández (2001). Enfim, ser aquele
professor que consegue entrar no mundo infantil, desfrutando
do prazer de imaginar, criar e fantasiar, sem perder de vista sua
responsabilidade de mediador no processo de aprendizagem,
que estimula, questiona, organiza e amplia os conhecimentos
das crianças. Fazer-se criança, sem deixar de ser adulto, eis
o desafio docente para inter-relacionar brincar e alfabetizar.
Se a clareza do professor em relação ao seu papel é funda-
mental, a prática pedagógica não pode prescindir de aspectos
que façam aparecer a brincadeira e que possibilitem a potência
criativa do brincar e do aprender. Sobre esse aspecto, Wajskop
(1999) pontua:
• que a rotina contemple espaços livres entre as atividades
dirigidas para que as crianças se sintam livres para
brincar;
• que os materiais sejam variados e organizados
pelo adulto de forma a facilitar o aparecimento das
brincadeiras;
• que o espaço de sala de aula tenha uma configuração
visual e espacial de forma a facilitar a imaginação
infantil;

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CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA: POSSÍVEIS
IMPLICAÇÕES DA VELHA E SEMPRE PRESENTE DISCUSSÃO DA
ALFABETIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL PEDAGÓGICAS

• que a rotina contemple um tempo para que crian-


ças e adultos possam conversar sobre as brincadeiras
vivenciadas;
• que a brincadeira seja incorporada no currículo como
um todo.
Quanto à leitura e à escrita, Vygotsky (1991) afirma ser o
melhor método de ensino aquele em que as crianças descobrem
essas habilidades durante situações de brinquedo. Sua defesa
consiste no fato que se deve ensinar às crianças a linguagem
escrita e não a escrita de letras, o que pode ser perfeitamente
adequado no brinquedo.
Nessa discussão, é pertinente trazermos a visão de Ferreiro
(2001), para quem a questão não está no ensino da leitura e da
escrita na educação infantil, mas em proporcionar a criança
aprender sobre a língua, de forma que não se pode proibir as
crianças de entrarem em contato com objetos e problemas que
desafiem suas possibilidades. Dessa feita, a alfabetização como
uma proposta de inserção da criança no mundo da leitura
e da escrita – convivência ativa em atos de ler e escrever –,
o lúdico como aspecto constituinte da essência humana e o
brinquedo como atividade principal da criança1 pré-escolar
merecem conviver de forma “harmônica”.

1 Por atividade principal, compreendemos ser aquela em que, a partir dela,


emergem outras funções, nas quais ocorrem as principais mudanças no

146
Maria Cristina Leandro de Paiva

A criança na educação infantil está aprendendo sempre,


em todas as situações que vivenciar, principalmente, sobre
si mesma, sobre as outras pessoas, sobre seu mundo, sobre
o relacionamento entre/com as pessoas. Essa compreensão
pode garantir um atendimento pré-escolar que ultrapasse
as dicotomias referidas e avance no sentido de consolidar
uma pedagogia da infância coerente com os princípios de
qualidade requeridos nessa etapa da educação básica. Uma
pedagogia que não perca de vista a sensibilidade – estética e
interpessoal, a solidariedade – intelectual e comportamen-
tal e o senso crítico – autonomia, pensamento divergente
(OLIVEIRA, 2002).
Assim como não se pode perder de vista a dimensão de
educação e cuidado que envolve a educação infantil, de forma
a privilegiar um aspecto em detrimento do outro – educar
ou cuidar –, também não se deve desconsiderar a ludicidade
que envolve essa etapa educacional e a necessidade de brincar
intrínseca à criança pequena, que não deve ceder espaço a
propostas tradicionais de alfabetização (atividades de discri-
minação perceptiva, o treinamento da coordenação motora,
as cópias sem sentido, a repetição de sílabas, entre outros)

desenvolvimento psíquico da criança e desenvolvem-se processos psíquicos


que preparam o caminho de transição para um nível mais elevado de desen-
volvimento. O brinquedo constitui-se na principal atividade da infância
pré-escolar (LEONTIEV, 2001).

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CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA: POSSÍVEIS
IMPLICAÇÕES DA VELHA E SEMPRE PRESENTE DISCUSSÃO DA
ALFABETIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL PEDAGÓGICAS

que visem, tão somente, o ensino da leitura e da escrita, mas


considerar esse processo como uma das linguagens a serem
contempladas nessa etapa: uma aprendizagem real básica. É
pertinente ressaltar a formação para a vida, em que se faça
presente, no cotidiano pedagógico, ações condizentes com a
formação de valores básicos da convivência humana.
O ato de Alfabetizar precisa deixar de ser concebido
“apenas” numa dimensão micro - domínio do código - para
assumir uma condição de formação do sujeito na sua totali-
dade, como ser que necessita compreender com autonomia
o que lê e escreve, fazendo uso social da leitura e da escrita.
Nesse sentido, é pertinente centrar esforços para tornar o
ambiente escolar fonte de contato permanente com o mundo
do conhecimento letrado, ao mesmo tempo em que ocorre
a aquisição do sistema de escrita, o que é completamente
possível por meio da brincadeira.

Considerações

Eu gostaria de uma escola onde a


criança não tivesse que saltar as
alegrias da infância, apressando-se,
em fatos e pensamentos,
rumo à idade adulta.
Georges Snyders

148
Maria Cristina Leandro de Paiva

Encerramos provisoriamente a discussão com esse pensa-


mento de Snyders, que pode nos ajudar a apreciar as especifi-
cidades da criança na fase em que se encontra, afastando-nos
da visão de preparação para o futuro para uma perspectiva
de um espaço institucional em que predominem as alegrias
do presente (SNYDERS, 1996). Tal aspecto nos aproxima
do adjetivo pedagógico que traz a ideia de que a educação
infantil tem um papel a desempenhar frente à escolaridade
da criança, um compromisso com o ensino fundamental, o
que não significa uma prevenção dos problemas educativos
futuros (KRAMER, 2003b, In: Bazilio; Kramer, 2003).
A alfabetização como uma proposta de inserção da criança
no mundo da leitura e da escrita – convivência ativa em atos
de ler e escrever –, o lúdico como aspecto constituinte da
essência humana e o brinquedo como atividade principal da
criança pré-escolar merecem conviver de forma ‘harmônica’.
Tal constructo indica a necessária compreensão da discussão
sobre alfabetização e brinquedo na formação docente desti-
nada aos professores da educação infantil, de forma que fique
clara a necessidade de as crianças vivenciarem contatos reais
com a leitura e escrita por intermédio do brinquedo.
Isso posto, destacamos: as crianças são capazes de descobrir
a função simbólica da linguagem escrita; o ensino da leitura
e da escrita tem que ser relevante para a vida – necessário/

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CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA: POSSÍVEIS
IMPLICAÇÕES DA VELHA E SEMPRE PRESENTE DISCUSSÃO DA
ALFABETIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL PEDAGÓGICAS

significativo –, para as crianças; a escrita deve ser ensinada


naturalmente, não como treino.
Podemos dizer que muito temos a aprender sobre os pro-
cessos que envolvem a leitura e a escrita, porém muito mais
temos a mudar no nosso saber-fazer docente com crianças.

150
Maria Cristina Leandro de Paiva

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151
CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA: POSSÍVEIS
IMPLICAÇÕES DA VELHA E SEMPRE PRESENTE DISCUSSÃO DA
ALFABETIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL PEDAGÓGICAS

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WAJSKOP, G. Brincar na pré-escola. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1999.


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152
A BRINCADEIRA DE PAPÉIS
SOCIAIS E A FORMAÇÃO DE
BASES PARA A APROPRIAÇÃO
DA LINGUAGEM ESCRITA PELA
CRIANÇA PRÉ-ESCOLAR
Michelle de Freitas Bissoli
Aline Janell de Andrade Barroso Moraes

Introdução

Brincar é essencial. Trata-se de um direito de toda criança.


Embora seja muito comum, em nossa sociedade, o discurso
sobre a necessidade de brincar na infância, sabemos que
nem sempre o que se diz reverbera na garantia dos direitos
dos meninos e meninas, mesmo na Educação Infantil. E,
quando refletimos sobre as realidades do brincar nas creches

153
A BRINCADEIRA DE PAPÉIS SOCIAIS E A FORMAÇÃO DE BASES PARA A
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA PELA CRIANÇA PRÉ-ESCOLAR

e pré-escolas, é preocupante perceber que, em nome da apro-


priação precoce e eficiente do ler e do escrever, essa atividade
é, muitas vezes, relegada a segundo plano, sendo substituída
por treinos de escrita que também não contribuem para que
a criança se torne autora e leitora de textos.
Ora, temos então um duplo equívoco: desconsideramos
a importância da brincadeira – e o fato de que ela é, ao lado
das interações, um dos eixos das práticas pedagógicas na
Educação Infantil (BRASIL, 2010) – e, ao mesmo tempo, ao
nos depararmos com um entendimento, baseado no senso
comum, de que a linguagem escrita se desenvolve a partir do
treino de mãos e dedos, como criticou Vygotsky (2012) no
início do século passado, percebemos que as crianças não se
tornam leitoras e autoras.
Muitas pessoas não percebem que escrever é mais que
copiar; ler é mais que decifrar. Não entendem que ler é com-
preender o mundo pela mediação dos textos e que escrever
é enunciar ideias, sentimentos, dúvidas e descobertas por
intermédio da linguagem escrita. Trata-se de capacidades que
envolvem, por um lado, a necessidade de integração da criança
em uma sociedade letrada e, por outro, a expressão da criança,
de seus modos de perceber a realidade – constituindo-se,
pois, como direitos de todas as pessoas e função precípua
das escolas. Mas, vale recordar que a formação de leitores e

154
Michelle de Freitas Bissoli
Aline Janell de Andrade Barroso Moraes

escritores é tão necessária quanto complexa e, em cada idade,


possui especificidades que precisam ser respeitadas.
Alguém somente se expressa se tem o que expressar, se tem
para quem e para que dizer (ou escrever) o que se lhe afeta. No
entanto, se meninos e meninas, nas escolas da infância, são
impedidos de ampliar suas experiências infantis porque sua
rotina é marcada pela repetição infindável de letras e sílabas;
se não têm oportunidade de interagir, brincar, tatear, movi-
mentar-se, conversar, falta-lhes certamente o que escrever. Se
não vivem a cultura escrita como parte de suas experiências
mais genuínas, não reconhecem a linguagem escrita em seu
uso social e como algo que integra a própria vida.
A leitura do mundo precede a leitura (e a escrita) da pala-
vra (FREIRE, 1989) e, na Educação Infantil, deve ser ela – a
leitura do mundo – o objeto principal de atenção. À escrita
destina-se o lugar especial de uma entre tantas outras formas
de manifestação humana com as quais as crianças entram em
contato e aprendem a se expressar, em situações significativas
e envolventes e com o apoio de professores e professoras.
Para nós, a ideia de que a linguagem escrita possui uma
pré-história (VYGOTSKI, 2012), formada pelo desenvol-
vimento de atividades que a antecedem, precisa ser mais
bem conhecida pelos professores e professoras da Educação
Infantil e, também, dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental,

155
A BRINCADEIRA DE PAPÉIS SOCIAIS E A FORMAÇÃO DE BASES PARA A
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA PELA CRIANÇA PRÉ-ESCOLAR

afinal, a criança que adentra o primeiro ano da segunda


etapa da Educação Básica é – e será ainda – uma criança por
muitos anos. Compreendê-la, então, pode contribuir para
que a função da Educação Infantil na formação de leitores e
escritores fique evidente e se torne o fundamento das práticas
com as crianças.
É importante perceber que as atividades que compõem
a pré-história da escrita – os gestos, os desenhos e outras
atividades plásticas e artísticas, a fala e o faz-de-conta –
desenvolvem as bases necessárias para que a criança
apreenda essas capacidades, que são tão complexas quanto
fundamentais para o desenvolvimento da sua inteligência
e da sua personalidade: a leitura e a escrita. Possibilitam
práticas que respeitam o ritmo e as especificidades das crianças
pequenas, valorizando cada momento do desenvolvimento
em suas máximas possibilidades.
Neste texto, propomo-nos discutir a relação entre o brin-
car, mais especificamente a chamada brincadeira de papéis
sociais, jogo de papéis ou faz-de-conta – que aqui são tomados
como sinônimos, com base na perspectiva histórico-cultural
–, e a apropriação da linguagem escrita, esperando contribuir
para a ampliação desta reflexão.
Nosso texto se organiza da seguinte forma: em um
primeiro momento, trazemos as contribuições da Teoria

156
Michelle de Freitas Bissoli
Aline Janell de Andrade Barroso Moraes

Histórico-Cultural para explicar como o brincar interfere


no desenvolvimento humano das crianças, que papel desem-
penha e qual a sua importância. Em um segundo momento,
tratamos mais especificamente da relação entre a brincadeira
de papéis e a apropriação da linguagem escrita, buscando
mostrar o motivo pelo qual podemos afirmar que o brincar
é uma das atividades que integra chamada pré-história da
escrita. Passamos, então, às considerações finais, refletindo
sobre diferentes aspectos que influenciam a presença ou a
ausência do brincar na Educação Infantil.

O papel do brincar no desenvolvimento humano

De acordo com os estudos de Leontiev (2014), cada estágio


do desenvolvimento da criança é marcado por uma atividade
principal. A atividade principal – também conhecida como
atividade dominante ou guia – é entendida como aquela
em que “[...] ocorrem as mais importantes mudanças no
desenvolvimento psíquico da criança dentro da qual se
desenvolvem processos psíquicos que preparam o caminho
da transição da criança para um novo e mais elevado nível
de desenvolvimento” (LEONTIEV, 2014, p. 122). Não se
trata necessariamente da atividade para a qual as crianças
dedicam mais tempo, mas daquela que apresenta resultados

157
A BRINCADEIRA DE PAPÉIS SOCIAIS E A FORMAÇÃO DE BASES PARA A
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA PELA CRIANÇA PRÉ-ESCOLAR

mais profundos e significativos para o seu desenvolvimento


integral e para as mudanças globais de sua personalidade em
cada idade (VYGOTSKI, 2006).
Leontiev (2014) esclarece que, por intermédio da atividade
principal, vários processos psíquicos tomam forma e são
reorganizados. Na idade pré-escolar, a atividade principal
da criança é a brincadeira de papéis sociais. Ao brincar de
faz-de-conta, meninos e meninas se apropriam de valores,
dos usos dos objetos e dos costumes do meio cultural a que
pertencem. A característica estruturante dessa atividade é a
de que o motivo do brincar se encontra no próprio processo,
em seu conteúdo e não em seu resultado, o que dá a ela um
caráter de atividade lúdica (LEONTIEV, 2014).
Isso revela a forma específica pela qual a criança se rela-
ciona com o mundo a sua volta nesse momento da vida.
Assim, a criança brinca sem qualquer outro objetivo que
não seja o próprio brincar e nele aprende sobre as pessoas e
suas relações, sobre o mundo que a cerca e sobre si mesma. O
motivo que mobiliza os seus fazeres durante essa brincadeira
são as sensações, sentimentos e conhecimentos mobilizados na
e pela própria atividade. Isso significa que não estamos aqui
nos referindo a brincadeiras organizadas didaticamente para
que as crianças aprendam quaisquer conteúdos, sejam cores,
nomes ou números. Referimo-nos ao brincar de faz-de-conta,

158
Michelle de Freitas Bissoli
Aline Janell de Andrade Barroso Moraes

em que as crianças são livres para escolher seus papéis e as


formas de desempenhá-los.
Considerando essa premissa, qual a relação entre a
brincadeira de papéis e os processos que constituem a base
para a apropriação da linguagem escrita? Embora exista um
entrelaçamento entre eles, ainda percebemos que existe um
certo desconhecimento sobre essa relação quando se trata do
trabalho pedagógico desenvolvido com as crianças pré-escola-
res. Para responder a essa questão, apoiamo-nos, neste artigo,
principalmente nos estudos de Vygotsky (VYGOTSKI, 2008;
VYGOTSKI, 2012, 2014), Leontiev (2014) e Elkonin (1987).
Queremos ressaltar que, apesar de alguns desses estudos não
tratarem diretamente sobre a relação entre brincar e o processo
de apropriação da linguagem escrita pela criança, eles nos
oferecem subsídios para compreendermos as conexões entre
a atividade principal dos meninos e meninas pré-escolares
e a possibilidade de se tornarem autores e leitores de textos.
Sentimos necessidade de refletir sobre essa relação
considerando dois motivos: primeiramente, em razão de a
brincadeira de papéis ser a atividade que mais desenvolve a
criança pré-escolar, como já mencionamos. Sabendo disso,
é contraproducente não garantir um lugar de destaque para
essa atividade na prática pedagógica. Em segundo lugar, temos
percebido que tarefas comumente propostas nas escolas para

159
A BRINCADEIRA DE PAPÉIS SOCIAIS E A FORMAÇÃO DE BASES PARA A
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA PELA CRIANÇA PRÉ-ESCOLAR

a apropriação da linguagem escrita – treinos de escrita e de


decodificação e codificação – não têm sentido, mas ocupam
grande espaço no seu cotidiano em detrimento do tempo para
brincar, como se a escrita fosse a atividade mais importante
deste momento, e, talvez, da vida da criança.
A discussão que trazemos aqui é um recorte da nossa
pesquisa de mestrado (MORAES, 2015), na qual analisamos
a atividade pedagógica do professor e sua relação com o
processo de apropriação da linguagem escrita pela criança
pré-escolar, a partir da abordagem histórico-cultural.
Muitos são os estudos que evidenciam o papel e a impor-
tância do brincar na Educação Infantil. Entre eles, destacamos
as pesquisas de Bomfim (2012), Lazaretti (2016) e Marcolino
(2013), que também assumem o referencial teórico histórico-
-cultural. Trata-se de pesquisas que contribuem para reforçar
a importância do brincar na pré-escola, como preconizam
os documentos oficiais que norteiam a Educação Infantil em
nosso país (BRASIL, 2010).
Acreditamos que, embora exista o consenso, ao menos no
discurso, sobre a importância do brincar na Educação Infantil,
a sua desvalorização se dá, em grande medida, pelo fato de que
muitos conceitos e suas implicações para a prática pedagógica
são, ainda, naturalizados pelos professores e professoras.
Prevalece uma ausência de conhecimentos conceituais que

160
Michelle de Freitas Bissoli
Aline Janell de Andrade Barroso Moraes

esclareçam quais são as especificidades da aprendizagem e


do desenvolvimento das crianças nessa etapa e que orientem
os fazeres docentes.
Tal fato pode ser justificado pela relação de obviedade que
os professores estabelecem com o conhecimento científico, que
deveria ser o fundamento para o seu trabalho: muitas vezes,
essa relação é mediada pela espontaneidade, pela naturalização
e pelo economicismo (MELLO, 2000), próprios de atividades
que não exigem um nível elevado de consciência. No tocante à
questão conceitual e a seus desdobramentos, essa postura, que
provém de pouco aprofundamento teórico e de pouca reflexão,
cria uma falsa sensação de clareza conceitual, levando muitos
professores e professoras a acreditarem que “tudo sempre
foi assim” e por isso deve continuar a ser assim (MELLO,
2000). Nesse sentido, de acordo com Mello (2000, p. 71), “ao
tratar os conceitos de forma óbvia, ao tomá-los naturalmente,
acaba-se por dispensar a busca de seu sentido e significado”.
Acaba-se, pois, por assumir uma prática pedagógica que toma
por base o senso comum e não os conhecimentos acumulados
pela ciência – que permitem uma relação consciente com os
objetivos do trabalho de educar e com as formas de alcançá-
-los. E isso valida a reprodução inquestionada de um modus
operandi que, depois de tantos anos, continua a caracterizar
o trabalho de professores e professoras da Educação Infantil.

161
A BRINCADEIRA DE PAPÉIS SOCIAIS E A FORMAÇÃO DE BASES PARA A
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA PELA CRIANÇA PRÉ-ESCOLAR

Ao nosso ver, essa ausência de inquietação para entender


os fenômenos para além da aparência externa afeta também
o entendimento sobre o porquê as crianças brincam, sobre
quais são os impactos da brincadeira de papéis para o desen-
volvimento das crianças e, ainda, entre outras questões, sobre
como esse brincar contribui para que se apropriem da escrita.
Embora os professores sejam profissionais que exercem
forte influência sobre o desenvolvimento psíquico da criança,
muitas vezes eles não notam que, em seu trabalho, mobilizam
os processos de formação das capacidades cognitivas, afetivas
e da personalidade infantis (BISSOLI, 2006). Falta-lhes a
mediação de conceitos que os ajudem a tomar consciência da
dimensão formativa de seu trabalho e essa ausência tem suas
raízes em diferentes aspectos que envolvem o ser professor no
Brasil, hoje: as condições de formação inicial e continuada,
nem sempre dedicadas às especificidades do ensinar e do
aprender na Educação Infantil; a realidade de carência material
em que desenvolvem seu trabalho nas escolas brasileiras; e a
desvalorização profissional (BOTH, 2016).
Conforme a abordagem histórico-cultural, na brincadeira
de papéis encontram-se as bases para a percepção que a criança
pré-escolar tem do mundo a sua volta, que envolve os objetos
e as relações humanas, e é justamente essa percepção que
alimenta o conteúdo de suas brincadeiras (LEONTIEV, 2014).

162
Michelle de Freitas Bissoli
Aline Janell de Andrade Barroso Moraes

Nesse contexto, as relações sociais da criança são sofisticadas


pelo brincar, como assevera Elkonin (1987, p. 93, tradução
nossa):

No jogo [de papéis, a criança] não só incorpora os conhe-


cimentos infantis sobre a realidade social, mas também
os eleva a um nível superior, transmitindo um caráter
consciente e generalizado. Por intermédio do jogo, o
mundo das relações sociais, muito mais complexas que
as acessíveis à criança em sua atividade lúdica, introduz-se
em sua vida e a eleva a um nível significativamente mais
alto. Nisso consiste um dos traços essenciais do jogo, nele
radica uma das significações mais importantes para o
desenvolvimento da personalidade infantil.

A criança brinca de faz-de-conta porque tem necessidade


de operar com o mundo dos adultos, de fazer o que eles fazem,
de usar os objetos que eles utilizam e de viver o que eles vivem,
embora não tenha condições para isso. O brincar é a atividade
que permite que a criança consiga imitar a vida adulta e, assim,
experimentá-la e compreendê-la. Pela brincadeira de papéis,
a criança sente que tem domínio da realidade e vai tomando
consciência de si e das relações humanas, desenvolvendo suas
capacidades físicas, cognitivas e afetivas. Podemos dizer que,
nesse processo, ela vai se humanizando. Segundo Lazaretti
(2016, p. 132), “brincar é representar o homem”.

163
A BRINCADEIRA DE PAPÉIS SOCIAIS E A FORMAÇÃO DE BASES PARA A
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA PELA CRIANÇA PRÉ-ESCOLAR

O brincar não desenvolve isoladamente os processos


psíquicos das crianças, como o pensamento, a memória, a
imaginação e a voluntariedade. Por sua abrangência, essa
atividade contribui para o desenvolvimento omnilateral da
criança. Para Elkonin,

sua importância para o desenvolvimento da personalidade


do pré-escolar não reside em que nele se exercitem proces-
sos psíquicos isolados; inversamente, os processos psíquicos
isolados se elevam a uma escala superior graças à qual o
jogo desenvolve toda a personalidade da criança pré-es-
colar, sua consciência. No jogo [de papéis] a criança toma
consciência de si mesma, aprende a desejar e a subordinar
o seu desejo, seus impulsos afetivos passageiros; aprende a
atuar subordinando suas ações a um determinado modelo,
a uma norma de comportamento (ELKONIN, 1987, p. 99).

A criança aprende a antecipar os resultados de suas ações,


a avaliá-los, desenvolvendo um domínio sobre si mesma que é
bastante complexo (e necessário para atividades intencionais e
conscientes como a leitura e a escrita). Assim, há um equívoco
na ideia, ainda presente em muitas escolas da infância, de que
o brincar deve acontecer em momentos esporádicos ou para
preencher um tempo que sobrou das atividades de rotina.
Primeiramente, porque a finalidade da Educação Infantil é
propiciar experiências significativas de descoberta do mundo
cultural por intermédio das diferentes formas de manifestação

164
Michelle de Freitas Bissoli
Aline Janell de Andrade Barroso Moraes

humana, contribuindo para a formação integral das crianças, e


a brincadeira de papéis contribui para isso. Em segundo lugar,
porque a atividade principal da idade pré-escolar, o brincar de
faz-de-conta, é condição para o desenvolvimento da atividade
principal da etapa posterior: a atividade de estudo (ELKONIN,
1987). Por isso, ao retirar tempo, espaço e condições para
brincar, em busca de antecipar a aprendizagem de conteúdos
e, supostamente, o desenvolvimento cognitivo das crianças,
demonstra-se, mais uma vez, a falta de conhecimento sobre
essa atividade e sobre o próprio desenvolvimento infantil.
Nesse sentido, a brincadeira de papéis é uma das ativida-
des estruturantes do fazer pedagógico na Educação Infantil
também porque abre para a criança inúmeras possibilidades
de refletir sobre a realidade e de querer saber mais, base funda-
mental para as suas aprendizagens nos anos iniciais do Ensino
Fundamental. Na pré-escola, o brincar não é “só” brincar, mas
é ampliar ao máximo as possibilidades de desenvolvimento
infantil – da percepção, da atenção, da memória, do pensa-
mento, da linguagem, da imaginação, do planejamento, da
convivência com os outros, por exemplo –, construindo as
bases para novas e mais complexas aprendizagens. Brincando,
a criança desenvolve, ainda, o domínio da conduta e aprende
a se autorregular, já que, para representar os papéis sociais,
ela precisa ter autocontrole de suas ações, aderindo à normas

165
A BRINCADEIRA DE PAPÉIS SOCIAIS E A FORMAÇÃO DE BASES PARA A
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA PELA CRIANÇA PRÉ-ESCOLAR

de comportamento que, fora do faz-de-conta, ainda lhe são


difíceis de compreender e praticar. Em consequência desse
domínio da conduta, a criança se subordina a regras – ini-
cialmente implícitas, no faz-de-conta e, mais tarde, explícitas,
nos jogos com regras – que estão presentes no brincar, mesmo
que não tenha consciência disso (VYGOTSKI, 2008); amplia
o vocabulário e a capacidade de comunicação, à medida que
dialoga e argumenta com seus pares; vivencia e expressa
sentimentos e emoções.
O brincar de faz-de-conta nos oferece a oportunidade
de perceber os significados e sentidos que a criança atribui
às relações e aos papéis sociais representados; possibilita
que a criança faça antecipações de ações tendo em vista o
comportamento de seus colegas, estimulando a cooperação
e o desenvolvimento da capacidade de planejar e de ajudar o
outro; permite variadas interações com as pessoas e com os
objetos; desenvolve a consciência corporal e a função simbólica
da consciência da criança à medida que permite que ela atue
simbolicamente, utilizando objetos em lugar de outros nos
momentos de representação – capacidades essenciais para
a leitura e a autoria de textos, em que a escrita se apresenta
como signo que representa e que permite pensar sobre as
ideias, os objetos, as relações não imediatamente presentes
no entorno da criança.

166
Michelle de Freitas Bissoli
Aline Janell de Andrade Barroso Moraes

A brincadeira de papéis e sua contribuição


na pré-história da linguagem escrita

Como já discutimos, Vygotsky (2012) afirma que a lin-


guagem escrita possui uma pré-história fundamental para o
seu desenvolvimento. Segundo o autor, o desenvolvimento
da linguagem escrita apresenta diferentes momentos, que
se constituem pelos gestos, pela fala, pelo desenho e pelo
brincar de faz-de-conta. Tais momentos se unem de maneira
única por sua essência: embora com características próprias,
todas essas atividades desenvolvem a capacidade simbólica
da consciência da criança – ou a capacidade de representar a
realidade a partir de signos. Por seu intermédio, as crianças
podem pensar sobre e representar o que está ausente de seu
campo de percepção imediato, suas memórias, suas ideias,
seus afetos. Trata-se de uma capacidade bastante sofisticada,
especificamente humana. Vygotsky (2012, p. 184) enfatiza
que “o domínio da linguagem escrita significa para a criança
dominar um sistema extremamente complexo de signos sim-
bólicos” e o exercício da representação por intermédio de
outras atividades de sua pré-história prepara o caminho para
a escrita propriamente dita.
No tocante ao brincar, especificamente, Vygotski (2008,
p. 31) admite que “o significado se emancipa do objeto a que,
antes, estava diretamente unido. [...] na brincadeira, a criança

167
A BRINCADEIRA DE PAPÉIS SOCIAIS E A FORMAÇÃO DE BASES PARA A
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA PELA CRIANÇA PRÉ-ESCOLAR

opera com o significado separadamente do objeto, mas o


significado é inseparável da ação com o objeto real”. Assim,
uma caneta, para a criança que não está brincando, é apenas
uma caneta. Na brincadeira, ela passa a representar um avião,
por exemplo. Então, mesmo sabendo que se trata de uma
caneta e agindo sobre ela segundo suas propriedades físicas,
a criança atribui um sentido diverso ao objeto e o denomina,
durante a ação lúdica, como avião. Tal emancipação da palavra
em relação ao objeto separa significado e sentido. Vygotski
adverte, entretanto, que:

[...] Separar a ideia (significado da palavra) do objeto é uma


tarefa tremendamente difícil para a criança. A brincadeira
é uma forma de transição para isso. Nesse momento em
que o cabo de vassoura, ou seja, o objeto, transforma-se
num ponto de apoio (pivô) para a separação do significado
‘cavalo’ do cavalo real, nesse momento crítico, modifica-se
radicalmente uma das estruturas psicológicas que deter-
minam a relação da criança com a realidade (VYGOTSKI,
2008, p. 30).

Para além disso, “Do ponto de vista do desenvolvimento,


a criação de uma situação imaginária pode ser analisada
como um caminho para o desenvolvimento do pensamento
abstrato [...]” (VYGOTSKI, 2008, p. 36).

168
Michelle de Freitas Bissoli
Aline Janell de Andrade Barroso Moraes

Ora, a emancipação das palavras em relação aos objetos


ocorre também quando falamos e escrevemos: atuamos com os
significados e sentidos das palavras e não mais com os objetos
que elas representam. Para escrever, entretanto, isso se dá de
forma mais sofisticada que na fala. Combinamos palavras,
expressões próprias do texto escrito, uma linguagem diferen-
ciada para expressar ideias, conhecimentos, sentimentos, em
um nível avançado de abstração. Ao escrever, atuamos, como
no brincar, a partir da criação de uma situação que pode ser
considerada fictícia, em que imaginamos um interlocutor,
suas enunciações e desejos, e produzimos o texto tendo em
vista nos comunicar com esse alguém ausente.
Mais um elemento nos permite perceber os vínculos entre
a brincadeira de papéis e a escrita:

Na brincadeira da idade pré-escolar temos, pela primeira


vez, a divergência entre o campo semântico e o ótico.
Parece-me ser possível repetir o raciocínio de um pes-
quisador que diz que, na brincadeira, a ideia separa-se
do objeto e a ação desencadeia-se da ideia e não do objeto
(VYGOTSKI, 2008, p. 30).

Temos, assim, um pressuposto que demonstra o quanto


o brincar exercita uma capacidade necessária ao escrever e
ao se tornar autor: a escrita desencadeia-se das ideias e não
dos objetos, é abstrata por natureza. De acordo com Vygotski

169
A BRINCADEIRA DE PAPÉIS SOCIAIS E A FORMAÇÃO DE BASES PARA A
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA PELA CRIANÇA PRÉ-ESCOLAR

(2014), a linguagem escrita tem uma função toda especial para


o desenvolvimento da criança e se diferencia da linguagem
oral tanto por sua estrutura como pelo seu funcionamento.
Para o domínio da linguagem escrita, a criança necessita
de um alto grau de abstração, já que se “[...] trata de uma
linguagem sem entonação, sem expressividade, sem nada do
aspecto sonoro. É uma linguagem no pensamento, nas ideias”
(VYGOTSKI, 2014, p. 229). É, também, como vimos, uma
linguagem marcada pela ausência de um interlocutor: não
acontece um encontro físico de quem escreve com a pessoa
para quem a escrita está sendo dirigida; toda a relação entre
autor e leitor é mediada pelo texto. Essas características da
linguagem escrita são suficientes para “[...] modificar por
completo todo o conjunto de condições psicológicas que se
dão na linguagem oral” (VYGOTSKI, 2014, p. 229). O autor
enfatiza que “[...] a linguagem escrita introduz a criança num
plano abstrato mais elevado da linguagem, reestruturando
com ele o sistema psíquico da linguagem oral estabelecido
anteriormente” (2014, p. 230, tradução nossa).
Leontiev (2014) também destaca a capacidade de generali-
zação e a separação entre significado e sentido como essenciais
à brincadeira de papéis. De acordo com ele, o brincar é sempre
uma atividade generalizada. Ao brincar de faz-de-conta,
ao representar cada papel social, a criança não imita uma

170
Michelle de Freitas Bissoli
Aline Janell de Andrade Barroso Moraes

única pessoa, mas toda uma classe ou grupo de pessoas que


desempenham esse papel.
Podemos dizer que a brincadeira de faz-de-conta, ao reque-
rer a atividade generalizada e a separação entre significado
e sentido, promovendo o desenvolvimento do pensamento
abstrato, coloca em ação capacidades fundamentais para a
formação da criança como leitora e autora. Ora, ler é pensar
abstratamente sobre realidades apresentadas pela media-
ção da escrita, fazer generalizações que permitem ao leitor
compreender outras realidades a partir daquela que o texto
revela. Escrever é, igualmente, elaborar com a linguagem
escrita um pensamento a ser expresso para um interlocutor
abstrato, que não responde direta e imediatamente ao que
comunicamos. É preciso lidar abstrata e generalizadamente
com ele, imaginando as interlocuções possíveis. E o que mais
fazem as crianças quando criam situações fictícias e, muitas
vezes, brincando sozinhas com os objetos, imaginam diálogos
completos entre personagens que não existem na realidade?
Ler é, também, perceber que, para além dos significados
convencionais das palavras, elas têm sentidos que expressam as
ideias, o humor, a ironia, as intenções do autor. É atribuir-lhes
sentidos próprios, complementando o texto, interagindo
discursivamente com ele. Escrever, por seu turno, é produzir
enunciados (VOLÓCHINOV, 2017) que, pela mediação das

171
A BRINCADEIRA DE PAPÉIS SOCIAIS E A FORMAÇÃO DE BASES PARA A
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA PELA CRIANÇA PRÉ-ESCOLAR

palavras, expressem os sentidos que o autor atribui à rea-


lidade. Assim, a brincadeira de papéis é fundamental para
que capacidades essenciais aos processos de leitura e escrita
possam ser exercitadas.
Embora o estudo da pré-história da linguagem escrita
nos permita perceber que ler e escrever possuem uma base
simbólica, e que, portanto, essa base deveria ser priorizada ao
serem planejadas as atividades que visam a contribuir para o
desenvolvimento de leitores e escritores desde a pré-escola,
notamos que, nas escolas, as técnicas de escrita das letras se
sobrepõem à linguagem escrita como uma forma de repre-
sentação e de expressão, de diálogo.
Se a escrita tem como função servir de meio para que
nos comuniquemos, para que recordemos fatos, para que
expressemos sentimentos e ideias, são essas as funções que o
contato com a linguagem escrita nas escolas deve privilegiar e
engendrar e não os treinos de coordenação motora, discrimi-
nação visual e auditiva e a repetição de letras e sílabas isoladas,
como se se tratasse de um código. É importante ressaltar que,
ao contrário do que preconiza o senso comum, as crianças vão
se apropriando da linguagem escrita não porque já conseguem
traçar letras com habilidade, mas porque exercitam a função
simbólica brincando, desenhando, pintando, construindo,
modelando, conversando e, também, lendo e escrevendo

172
Michelle de Freitas Bissoli
Aline Janell de Andrade Barroso Moraes

textos reais a destinatários reais, pela mediação da voz e das


mãos de seus professores e professoras (MORAES, 2015;
MORAES; BISSOLI, 2018). É Vygotsky quem indica que “o
fator muscular, a motricidade da escrita, desempenha, sem
dúvida, um papel importante, mas é um fator subordinado”
(VYGOTSKI, 2012, p. 202) a uma atividade do pensamento
verbal. Trata-se de uma capacidade complexa desenvolvida
à medida que a função social da linguagem escrita pode ser
apropriada pelas crianças.
A apropriação da linguagem escrita e a formação das
capacidades de leitura e de autoria de textos exige, portanto,
uma convivência com textos reais, vivos, lidos e produzidos
com e pelas crianças em situações em que são necessários. É
preciso que as crianças brinquem, conversem, desenhem e
convivam com os textos reais, presentes na sociedade letrada,
apreendendo suas funções e características.
Compreendemos, assim, que a Educação Infantil pode
contribuir para o desenvolvimento da linguagem escrita
criando novas necessidades nas crianças, entre elas, a de
exercitar a função simbólica por intermédio de diferentes
atividades, como o desenho, a pintura, a música, a dança, a
modelagem, a construção e a escrita. Podemos considerar o
desenvolvimento da função simbólica da consciência uma
das mais importantes formações nessa etapa da escolarização.

173
A BRINCADEIRA DE PAPÉIS SOCIAIS E A FORMAÇÃO DE BASES PARA A
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA PELA CRIANÇA PRÉ-ESCOLAR

O contato significativo com os textos que ampliam os refe-


renciais de experiência das crianças – e que, dialeticamente,
contribuem também para ampliar e enriquecer suas diferentes
formas de expressão, como é o caso do desenho e do próprio
brincar de faz-de-conta –, são elementos fundamentais para
um trabalho que contribua para que as crianças pré-escolares,
sem que precisem se apropriar, nesse momento, das leis que
regem o Sistema de Escrita Alfabético, estabeleçam um contato
com a linguagem escrita que contribua efetivamente para
se tornarem leitoras e autoras de textos. Afinal, as crianças
podem produzir oralmente seus textos escritos, registrados,
então, por professores e professoras e podem tomar contato
com os textos pela proferição (MODESTO-SILVA; SOUZA;
STEVENSON, 2021) feita pelos adultos. Para aprender a ler e
a escrever, é preciso aprender a simbolizar e entendemos, com
base no exposto, que o brincar é uma das formas privilegiadas
para essa aprendizagem.

Considerações finais

A brincadeira de papéis tem um papel essencial no


desenvolvimento da criança pré-escolar. Embora tenhamos
destacado as capacidades desenvolvidas pelo brincar que
contribuem para a apropriação da escrita, nosso objeto de

174
Michelle de Freitas Bissoli
Aline Janell de Andrade Barroso Moraes

reflexão neste texto, é preciso ressaltar que todas essas capa-


cidades e processos que o brincar desenvolve na criança não
se limitam a esse objetivo, mas são importantes para o seu
desenvolvimento omnilateral.
Cabe salientar que, para que o brincar contribua para o
desenvolvimento das crianças em todo o seu potencial, con-
dições materiais para que ele aconteça e se amplie precisam
ser garantidas nas escolas, além das reflexões contínuas dos
professores e professoras. É necessária uma prática intencio-
nal em relação ao brincar na pré-escola, o que requer não o
didatizar, tornando todo brincar um recurso para aprender
conteúdos escolares, nem o relegar ao espontaneísmo.
O brincar das crianças precisa ser objeto de reflexão por
professores e professoras. E, para isso, precisa ser observado
com cuidado e atenção. Brincar demanda espaços que per-
mitam a livre circulação das crianças, a presença de objetos
não estruturados, que possam ser livremente explorados, o
contato com a natureza, o diálogo entre e com as crianças.
Brincar pressupõe escolhas, pelas crianças, do conteúdo
das brincadeiras, dos tempos, espaços e companheiros de
atividade. Brincar exige um tempo que não se mede crono-
logicamente, mas pelo envolvimento que possibilita, por isso
requer liberdade.

175
A BRINCADEIRA DE PAPÉIS SOCIAIS E A FORMAÇÃO DE BASES PARA A
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA PELA CRIANÇA PRÉ-ESCOLAR

Essas concepções sobre o brincar se opõem frontalmente


ao que observamos, empiricamente e na pesquisa (MORAES,
2015) que desenvolvemos. É como se o lúdico não encontrasse
espaço na Educação Infantil, mesmo que esteja suposto em
todos os documentos oficiais que norteiam o seu funcio-
namento (BRASIL, 2010; BRASIL, 2017). Trata-se de um
outro paradigma de organização curricular para a Educação
Infantil brasileira, em que as experiências, como fazeres que
nos atravessam (SILVA, 2021), precisam encontrar seu lugar.
Entendemos que as professoras e os professores têm papel
fundamental nesse contexto, por serem aqueles que medeiam
as situações vivenciadas pelas crianças, oferecendo recursos
materiais e organizando tempos, espaços e relações. Em seu
trabalho, eles também podem observar as referências que
meninos e meninas já têm sobre os papéis sociais que repre-
sentam e podem ampliá-los. É nessa ampliação de referências
que está a centralidade do papel do professor no tocante ao
desenvolvimento do brincar. E, para essa ampliação, as visitas
a diferentes espaços da comunidade (padaria, salão de beleza,
restaurante etc.), como evidencia Marcolino (2013), são uma
possibilidade para que as crianças estendam cada vez mais
o que sabem sobre os diferentes papéis sociais, seus fazeres,
seus instrumentos.

176
Michelle de Freitas Bissoli
Aline Janell de Andrade Barroso Moraes

A leitura literária, por seu turno, também constitui uma


forma de ampliar os modos de percepção da realidade pelas
crianças, além de possibilitar o contato significativo com a
escrita (MORAES, 2022). As personagens e suas vivências
podem compor os argumentos do brincar das crianças, enri-
quecendo sua imaginação e suas possibilidades de criação
de situações fictícias. Essa e outras possibilidades podem ser
engendradas a partir do conhecimento aprimorado sobre a
atividade principal da criança pré-escolar.
Porém, é importante reconhecer que não cabe somente
aos professores garantir as condições para que o brincar
realmente aconteça. É preciso que as secretarias de educação
municipais conheçam a importância do brincar e garantam
recursos financeiros para que sejam adquiridos os materiais
necessários para a criação de espaços para o brincar, além de
incentivarem que o tempo para o faz-de-conta seja assegurado.
E isso não significa apenas comprar brinquedos prontos, mas
materiais diversos que possibilitem o exercício da imaginação
e exploração, além de recursos para a criação de espaços de
contato com a natureza, de livros literários.
Além disso, cabe salientar a importância de que profes-
sores e professoras tenham garantido o direito à formação
continuada, de modo que possam discutir o que observam e
suas possíveis dificuldades; estudar coletivamente; pesquisar e

177
A BRINCADEIRA DE PAPÉIS SOCIAIS E A FORMAÇÃO DE BASES PARA A
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA PELA CRIANÇA PRÉ-ESCOLAR

planejar. Sem formação docente contínua, o brincar se limita a


pretensos momentos de distração e não contribui efetivamente
para o desenvolvimento amplo que pode promover.
Infelizmente, é comum ouvirmos que não há recursos
para ampliar espaços, materiais e nem para formações de
professores e professoras que admitam o brincar como centro
dos processos vividos na Educação Infantil. Porém, é possível
constatar, contrariamente, a disponibilidade de recursos
financeiros para a aquisição de sistemas apostilados de ensino
e livros didáticos para essa etapa, mostrando incoerência em
relação às especificidades das formas de aprender nesta etapa
e ao que preconizam os documentos oficiais.
Finalmente, em vez de dedicar tempo para os treinos de
escrita – como se isso garantisse a apropriação da linguagem
escrita pela criança –, insistimos que, diante de tudo o que
discutimos sobre as capacidades essenciais que os pequenos
desenvolvem no faz-de-conta, o brincar deve ser assegurado
nas práticas pedagógicas das pré-escolas. É preciso estabelecer
uma relação coerente do discurso com as práticas, atribuindo
à formação humana e ao desenvolvimento da expressão das
crianças por intermédio de todas as linguagens e, também,
pela escrita o espaço que merecem.

178
Michelle de Freitas Bissoli
Aline Janell de Andrade Barroso Moraes

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181
REPERTÓRIO DE LEITURA DE
LITERATURA NA FORMAÇÃO
INICIAL DE PROFESSORES
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

Aquilo que consideramos indis-


pensável para nós é também
indispensável para o próximo.
Antonio Candido

A epígrafe com que iniciamos as reflexões neste capítulo foi


expressa por Candido (2017), em Direito à Literatura, texto
em que o autor defende a literatura como direito humano,
destacando o seu papel humanizador como construção de
objetos autônomos como estrutura e significado; forma

182
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

de expressão de emoções e visões de mundo; e forma de


conhecimento. A literatura, assim concebida, nos permite
afirmar/reafirmar a necessidade da sua presença nos espaços
formativos. Pressupomos que, se o professor não tem acesso
à literatura, nem a conhecimentos teóricos e metodológicos
para abordá-la, não irá assegurar o direito desta ao aprendiz.
Entender a literatura como direito humano pressupõe
ações políticas, educacionais e pedagógicas, que viabilizem o
acesso dos leitores aos textos literários, de gêneros distintos, em
diferentes espaços, meios e suportes, de modo a constituir um
conjunto de referências de/sobre literatura, a que chamamos
repertório de leitura. Neste capítulo, objetivamos realizar uma
reflexão sobre o repertório de leitura de literatura do professor
em formação inicial, em específico no Curso de Pedagogia.
Frequentemente, a palavra repertório é associada à lista.
Pressupomos que essa associação tenha origem na etimologia
do termo, haja vista que em latim a palavra repertorium
significa inventário. Assim, é comum observarmos pessoas
se referindo ao repertório de leitura no tocante à quantidade
de histórias e poemas lidos pelo leitor.
Apoiados numa visão sociointeracionista de conhecimento,
língua/linguagem, definimos o repertório de leitura numa
perspectiva que inclui aspectos quantitativos e qualitativos,

183
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

assim como evidenciamos a sua natureza móvel, pelo fato de


ele estar sempre em processo de atualização, a cada (re)leitura.
O repertório do leitor, assim concebido, compreende o
conjunto das leituras, lidas e/ou ouvidas, individual ou cole-
tivamente, desde as etapas iniciais da sua vida, envolvendo
conhecimentos possíveis de serem retomados pelas provoca-
ções que o texto faz, em termos de lembranças sobre: as his-
tórias lidas/ouvidas (títulos, personagens, enredos, ambientes,
conflitos etc.); os gêneros lidos (cantigas de ninar, contos,
fábulas, mitos, poemas, trava-língua, romance, novela etc.);
as autorias (escritor/escritora, ilustrador/ilustradora, aspectos
da vida e obra etc.); o tempo das obras (clássicas, contem-
porâneas, nacionais ou internacionais); as circunstâncias nas
quais as leituras aconteceram (sujeitos envolvidos, espaço,
tempo, propósitos); procedimentos e recursos utilizados (com
o uso ou não do livro; contada ou lida etc.); as provocações
que o texto suscitou em consonância às singularidades do
leitor (emoções, sentimentos e ideias); dentre outros aspectos.
Nesses termos, o repertório de leitura constitui um con-
junto de aspectos plurais e multifacetados. O seu estudo
configura sempre uma possibilidade de aproximação, um
devir, de modo que a tentativa de objetivação, em termos de
sim ou não, pode resultar numa perspectiva restritiva.

184
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

Situando essa reflexão sobre repertório de leitura no con-


texto da formação inicial do docente, defendemos o direito
à literatura pelo professor em contexto de formação inicial.
Amarilha é enfática ao afirmar que a literatura deve se fazer
presente na formação dos primeiros professores de nossos
aprendizes:

Entendemos que o elo Literatura e Educação é funda-


mental, que a riqueza de saberes e as delícias da literatura
precisam ser compartilhadas com todos os aprendizes
de leitura e, para tanto, é preciso que a Literatura esteja
presente na formação dos primeiros professores: porque
Literatura é, sim, coisa de Pedagogia! (AMARILHA, 2021,
p. 460).

Compreendemos que assegurar esse direito implica em


apropriação de saberes literários e pedagógicos visando o apri-
moramento e a expansão do repertório de leitura do professor.
Nesse sentido, Saldanha e Amarilha (2016) defendem que:

Diante da potência linguística, social, cultural e humanís-


tica da literatura, é imprescindível introduzir sua presença
nos cursos de Pedagogia como forma de propiciar ao
docente, em formação inicial, uma vivência teórica e prática
sobre seu ensino, cujo intuito seja de contribuir para sua
atuação como futuro mediador de leitura (SALDANHA;
AMARILHA, 2016, p. 395).

185
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

Tal defesa ainda não se constitui uma realidade nos cursos


de formação inicial. Segundo o levantamento realizado por
Saldanha (2018), nos currículos dos cursos de Pedagogia
de 27 universidades federais, localizadas, prioritariamente,
nas capitais do país, apenas 11 (41%) apresentam disciplina/
componente obrigatória(o) com foco na literatura. Por sua
vez, Macedo (2021) destaca que, nos currículos dos cursos de
Pedagogia e das demais licenciaturas, a dimensão estética, a
partir da leitura literária, não é priorizada:

O que se ensina nesses cursos é, quando muito, formas e


estratégias de mediação de leitura, sem, contudo, permitir
que os professores leiam ou tenham acesso à leitura de
obras literárias escolhidas por eles ou indicadas pelo curso
(MACEDO, 2021, p. 52).

A pesquisadora supracitada, em 2019, divulgou os dados


de uma investigação que teve como objetivo traçar o perfil
sociocultural das professoras da educação básica da Rede
Municipal de Recife (1º ao 5º ano do ensino fundamental),
por meio de questionário, com a participação de 340 docen-
tes. No que se refere aos dados sobre as práticas de leitura,
72,1% afirmam gostar muito de ler para se distrair. Nenhum
docente assumiu não gostar de ler e os 27,9% que afirmam
gostar pouco de ler, em sua maioria, não lê livros literários.
A leitura de livros literários (romance, contos e poemas)

186
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

foi mencionada por 181 professores (55%). No que se refere


ao gosto pela leitura, de 322 respostas, 30,7% dos docentes
afirmam que advém da mãe e 22,7% afirmam que de algum
professor. Um dado significativo é o de que 17,4% dos docentes
não reconhecem nenhuma pessoa influente na sua formação
leitora. De acordo com as análises, Macedo (2019) aponta que:

Esse resultado evidencia quão decisivas são a família,


na figura da mãe, e a escola, na formação do gosto pela
leitura e alerta para a importância de políticas públicas
que contribuam para a ampliação das práticas de leitura
na sociedade e na escola. Mas o Brasil, nestes últimos
cinco anos, caminha na contramão, excluindo as exíguas
políticas existentes, como o PNBE (Programa Nacional da
Biblioteca Escolar) e deixando de implementar de forma
eficaz o Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL),
criado pelo Decreto Nº 7.559/2011, que prevê a criação de
bibliotecas públicas em todos os municípios para atender
à população (MACEDO, 2019, p. 369).

Os resultados dessa pesquisa são pertinentes para pen-


sarmos sobre as trajetórias de formação do professor leitor,
como também sobre a importância das políticas públicas de
acesso aos livros nas escolas e a necessidade de outros espaços
formativos voltados às práticas de leitura literária. Para que
o docente possa assumir a condição de mediador de leitura,
de modo a abordar a dimensão estética das obras, é mister

187
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

ter repertório. Amarilha (2010), de modo enfático, destaca as


contribuições (ou funções) que o repertório de leitura pode
oferecer ao professor:

possibilita ao professor exercer continuamente sua capa-


cidade de refletir e inovar sobre sua prática, justamente
porque traz as marcas de sua formação pessoal e as rela-
ciona às necessidades do contexto pedagógico em que atua
(AMARILHA, 2010, p. 87).

Cientes da relevância do repertório de leitura literária para


os primeiros professores de nossas crianças (o pedagogo),
a reflexão aqui proposta contempla dados constituídos em
nossas experiências no Curso de Pedagogia Presencial, da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tais dados
provêm da aplicação de questionários e de procedimentos de
intervenção pedagógica, mediante atividades de formação de
repertório. Iniciamos a reflexão analisando os dados obtidos a
partir dos questionários e, em seguida, focalizamos a análise
dos dados resultantes das intervenções pedagógicas, que
contemplam a leitura de histórias e poemas.

188
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

Indícios da formação de repertório de


leitura de literatura na educação básica

Na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no


Curso de Pedagogia Presencial, dois componentes no currí-
culo abordam conhecimentos sobre Literatura, em especial
a Literatura Infantil: Teoria e Prática da Literatura I (obri-
gatório) e Teoria e Prática da Literatura II (optativo), ambos
com carga horária de 60 h e ofertados nos turnos vespertino
e noturno. Esses componentes surgiram da necessidade de
formação teórica e metodológica em literatura de professores
do ensino fundamental, verificada por meio de pesquisas
desenvolvidas pela Professora Marly Amarilha: O ensino de
literatura da 1ª a 5ª séries do 1º grau nas escolas da rede estadual
do Rio Grande do Norte (1991, 1993) e o Ensino de literatura
na escola: as respostas do aprendiz (1994). Essas pesquisas
constituíram o nascedouro da disciplina que passou a fazer
parte do currículo do Curso de Pedagogia, a princípio em
caráter optativo (1993) e, em seguida, obrigatória (1996). Em
sua origem, a disciplina foi denominada Literatura Infantil
e com a reforma do currículo de Pedagogia, no ano 2009
passou a ser intitulada Teoria e Prática da Literatura I e II.
Desde o início da implantação desses componentes nos
currículos do Curso de Pedagogia da UFRN, a preocupação
com o repertório de leitura tem sido considerada, conforme

189
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

podemos ter conhecimento por meio do memorial para cargo


de Professor Titular da Professora Dra. Marly Amarilha:

Embora a disciplina seja literatura infantil, tem-se como


pressuposto que o professor deva ter repertório de litera-
tura para si além de ter um repertório que sirva às suas
aulas. Para formar esse repertório mínimo, fazemos a
“degustação” de textos de literatura, em geral, e também
incluímos textos de literatura infantil.

Ao mesmo tempo em que os pedagogos em formação inicial


são familiarizados com as possibilidades da linguagem
literária, a “degustação” é uma oportunidade de aumentar
o repertório literário e demonstrar uma possível prática
pedagógica, orientando, portanto, a didática dos futuros
docentes (AMARILHA, 2010, p. 65).

No contexto atual, para dar continuidade a essa formação


de repertório em leitura de literatura dos professores em
formação inicial, elegemos como prática inicial a aplicação
de um questionário, estruturado em blocos temáticos, com
perguntas abertas e fechadas, que focam as experiências de
leitura dos aprendizes em diferentes contextos e etapas da
formação como leitor de literatura.
Nesta reflexão, a título de demonstração da aplicação
do questionário com vistas à identificação do repertório
de leitura dos aprendizes, selecionamos dados da turma de
Teoria e Prática da Literatura I, no semestre letivo 2021.1. Do

190
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

total de 42 alunos matriculados na turma, 29 responderam


ao instrumento. Esse dado nos chama a atenção, sobretudo
pelo fato de alguns alunos demonstrarem-se sensíveis por
não ter experiências tão significativas a registrar, entre outros
aspectos.
Em relação aos blocos temáticos que constam no ques-
tionário, verticalizamos a nossa apreciação no Bloco II –
Experiências com a literatura na escola (Educação Infantil,
Ensino Fundamental e/ou Médio, incluindo EJA). Esse bloco
apresenta duas perguntas, sendo a primeira: Você lembra de
experiências com textos literários na escola? Em suas respos-
tas, 26 alunos afirmaram lembrar de experiências com textos
de literatura na escola, enquanto 2 mencionaram, de forma
constrangida, não ter lembrança alguma: “Pode parecer que
eu estou preenchendo de má vontade, mas eu realmente não
tenho lembranças de ler, partilhar leituras na escola” (SALU,
2021) e “Não lembro, mas hoje em dia tenho uma filha de
7 anos que possui uma vasta biblioteca com livros infantis
de temas variados” (MENDONÇA, 2021). Em específico,
em relação à resposta de Mendonça, é importante explicitar
que a falta da literatura em sua vida escolar repercute na sua
preocupação com a presença do literário na vida de sua filha.
A apreciação das respostas afirmativas revela dados sobre
as experiências de leitura dos alunos na educação básica

191
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

que nos possibilitam indícios sobre os seus repertórios. Em


seus relatos, destacam-se a brevidade e a justaposição de
informações que dão margem a um conjunto de categorias
relativas aos gêneros dos textos lidos; aos autores, aos títulos
das obras; às temáticas contempladas; aos espaços de leitura na
escola; aos procedimentos/atividades, contemplando, ainda,
os efeitos das experiências de leitura.
Uma breve apreciação dos dados nos faz perceber que as
categorias procedimentos/atividades (41%) e gênero (31%) são
as mais expressas, em detrimento das categorias autores (13%)
e títulos de obras (10%). Essa comparação nos leva a concluir
que as atividades e os procedimentos têm forte impacto nas
lembranças dos alunos. Revela, de sobremaneira, que conheci-
mentos fundamentais à constituição do repertório de leitura,
a exemplo do (re)conhecimento dos títulos dos textos, nomes
dos escritores e ilustradores, informações sobre personagens
ou cenas, não se fazem presentes nas lembranças dos alunos
como professores em formação inicial.
O uso do repertório de leitura do/pelo professor constitui
uma ação que articula literatura, cultura, conhecimento,
interação social, dentre outras dimensões. É um convite ao
professor para valorizar e utilizar, com criatividade, o seu
capital cultural, suas experiências de leitura e ressignificá-las
mediante o compartilhamento de histórias e poemas com os

192
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

seus aprendizes, tornando a sala de aula uma comunidade


de leitores (YUNES, 2003).
Ainda sobre os procedimentos/atividades, é importante
considerar o fato de que os estudantes não delimitaram as
etapas de ensino em suas respostas, embora o título do bloco
chamasse atenção para esse aspecto, Experiências com a
literatura na escola (Educação Infantil, Ensino Fundamental
e/ou Médio, incluindo EJA).
Não obstante, considerando a natureza dos procedimentos
e atividades e o modo como os estudantes a eles se referiram,
inferimos que, nas etapas iniciais da educação básica, princi-
palmente na educação infantil, o prazer se faz mais presente
na interação do aprendiz com a literatura: “eu amava histórias
ilustradas, poemas e poesias” (SILVA, 2021); “Eu gostava
muito das histórias diferentes que as professoras traziam”
(JUNIOR, 2021).
Em compensação, em etapas posteriores à educação
infantil, constatamos respostas que indicam ausência de
um trabalho com a literatura que possa dar continuidade
ao prazer provocado pelo texto literário:

Em todo o meu percurso escolar, a relação com textos


literários estava voltada para o processo de análise tex-
tual, interpretação de texto, embora eu gostasse muito,
não consigo me lembrar de uma leitura que não estivesse

193
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

voltada para a resolução de questões que viriam depois


do texto (SANTOS, 2021).

Como disse anteriormente, na minha escola tinham leitu-


ras obrigatórias, e os livros normalmente eram clássicos.
Por serem obrigatórios e não éramos nós que escolhíamos
acabava não me interessando tanto, e o objetivo de ser de
deleite também não era atingido, pois só lia para fazer as
provas (ARAÚJO, 2021).

Em suas respostas, os estudantes recorrem a palavras


carregadas de sentidos que denotam insatisfação, como:
leituras obrigatórias, provas, leitura para resolução de ques-
tões. Eles tornam visível a função instrucional ou utilitária-
-pedagógica atribuída à literatura infantil e juvenil (PALO,
OLIVEIRA, 2006). Esta função desconsidera a literatura
como uma manifestação de arte pela palavra, que mobiliza
afetos. Atividades pautadas na função utilitária-pedagógica
da leitura de literatura não favorece que o leitor assuma a
condição de sujeito ativo e responsivo (BAKHTIN, 2015)
diante das provocações do texto literário, cuja linguagem
simbólica favorece a experiência estética (JAUSS, 1979). Entre
os procedimentos/atividades, a leitura oral aparece como
atividade que causa mais insatisfação, “o que menos gostava
era ter que ler para a turma” (OLIVA, 2021).
Em nossas pesquisas, a leitura oral ganha outras signi-
ficações. Ela objetiva intensificar a relação do leitor com o

194
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

texto, não consiste em teste de pronúncia correta de palavras


ou de percepção dos sinais de pontuação no texto escrito.

Entendemos que a leitura oral é também um processo de


andaimagem à compreensão mais sofisticada da língua
escrita, visto que no silêncio das palavras estão implícitas
diferentes sonoridades
[...] a exploração da modalidade oral que está implícita na
composição do texto contribui para a significação do que
se lê (AMARILHA; FREITAS, 2016, p. 48).

Duas crianças, do 5º ano do ensino fundamental, partici-


pantes de nossas investigações, elaboraram comentários sobre
a leitura oral que sintetizam a nossa compreensão, colocando-a
no plano da satisfação do leitor: “Quando a professora leu eu
entendi melhor” e “Em voz alta o som é diferente é melhor
de ouvir” (AMARILHA; FREITAS, 2016, p. 49).
Outros aspectos, ainda, se fazem necessários mencionar
no contexto desta reflexão: o fato de as leituras de textos
literários não serem frequentes e a falta de menção, pelos
estudantes, a títulos de obras e a autores da literatura infan-
til. Como professoras do Curso de Pedagogia, esses dados
nos revelam demandas formativas a serem contempladas
na formação inicial. Entre essas demandas, destacamos a
necessidade de instituir leituras literárias frequentes, que
considerem a dimensão do prazer estético, como também

195
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

o (re)conhecimento de autores clássicos e contemporâneos


da Literatura Infantil Nacional, mediante práticas em que
o estudante tenha direito a assumir o estatuto de leitor de
literatura. Acreditamos que tais demandas excedem o contexto
de formação inicial e são necessárias, ainda, no chão da escola.
Os investimentos que fazemos na atividade de formação de
repertório nos componentes curriculares em que atuamos,
almejamos que reverberem nessa direção.
Aqui focamos a nossa apreciação na análise de apenas um
bloco do questionário. Em seu conjunto, podemos afirmar
que reconhecemos a pluralidade das experiências de leitura
literária dos estudantes e que a formação de seus repertórios se
constitui de formas variadas, incluindo experiências positivas,
mas também limitadoras.

Formação de repertório: leitura de


literatura infantil na acadêmica

Nos componentes Teoria e Prática da Literatura I e II, são


realizadas leituras de obras de literatura infantil, de modo que
os discentes ampliem seu repertório de leitura literária, pois o
conhecimento desse repertório é imprescindível nas práticas
pedagógicas dos pedagogos, com crianças principalmente,
sendo esse um produto cultural direcionado para as infâncias.

196
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

As leituras literárias ocorrem a cada aula e acontecem


preferencialmente como última ação da rotina de atividades,
sendo essa uma estratégia docente no sentido de fazer com
que os estudantes concluam a aula com gosto de literatura,
que retornem aos seus lares pensando nas histórias e nos
poemas lidos, ampliando, assim, o alcance da literatura para
além do espaço acadêmico. Esses momentos são denominados
“Formação de Repertório”.
Como abordagem metodológica para as formações de
repertório, recorremos à Experiência de Leitura por Andaime
(scaffolding), desenvolvida por Graves e Graves (1995). Essa
abordagem envolve duas grandes fases: a fase de planejamento
e a fase de implementação.
A primeira fase, planejamento, considera os leitores que
participarão da mediação, o texto a ser lido e os propósitos da
leitura. Em nosso caso, os participantes são adultos, estudantes
do curso de Pedagogia. É comum iniciarmos as formações
com textos que fizeram parte do primeiro repertório destinado
à infância, como os contos de fada. Também são realizadas
formações de repertório com obras de autores nacionais cuja
produção são “referências da maioridade da literatura para
a infância no Brasil” (AMARILHA, 2002, p. 136), como
Monteiro Lobato, Cecília Meireles, Ruth Rocha, Sylvia Orthof,
Ana Maria Machado, Ziraldo, Lygia Bojunga, Joel Rufino.

197
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

Livros de literatura infantil de autores contemporâneos tam-


bém são selecionados, a exemplo das produções de André
Neves, Roger Mello, Celso Sisto, entre outros.
Um fato marcante nas formações de repertório é que,
concluída a oralização do texto, feita principalmente pela
docente com atenção à prosódia, os estudantes expressam
desconhecer, em parte ou integralmente, as histórias ou poe-
mas lidos, assim como os seus escritores e ilustradores. Não
obstante, conseguem recuperar algumas informações sobre
os textos lidos a partir de memórias de programas televisi-
vos, como o do Sítio do Pica-Pau Amarelo, ou de narrativas
fílmicas inspiradas nos contos de fadas, com destaque para
as produzidas por Walt Disney. Memórias do texto em sua
integralidade, físico ou digital, são casuais. Nessa travessia, nos
sentimos como Penélope, a tecer, fio a fio, um grande tapete,
à espera do retorno das lembranças do leitor de literatura
infantil, ou, em última instância, a constituição desse leitor
esperado em nosso tear.
A segunda fase da experiência de leitura por andaime é a
de implementação, dividida em três momentos: pré-leitura,
que objetiva motivar e ativar a curiosidade do leitor em relação
à leitura do texto, por meio de predições ou mobilização de
conhecimentos prévios; a leitura, que consiste na interação
efetiva do leitor com o texto, mediante a leitura em voz alta,

198
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

silenciosa, com ou sem recurso; a pós-leitura, que envolve


a retomada do texto lido por meio do compartilhamento
de percepções, sensações, ideias e sentimentos provocados
no leitor a partir da leitura do texto. O eixo integrador das
atividades de pré-leitura e de pós-leitura é o texto literário.
Além de possibilitar de forma sistemática a interação do
leitor com o texto, essa abordagem metodológica possibilita
aos futuros professores o conhecimento de estratégias que
podem ser implementadas nas sessões de leitura na educação
básica, tendo como principal finalidade a recepção estética dos
textos pelos leitores. A formação de repertório ainda inclui
a abordagem do livro de literatura como objeto cultural e
suporte de leitura. Nessa direção é que refletimos sobre os
contextos históricos de publicação de algumas obras, o que
possibilita conhecer os modos de produção e circulação dos
livros destinados às infâncias. Assim, fazemos o possível para
que, durante a leitura, os estudantes tenham o livro em mãos.
Em nossas pesquisas, constatamos que esse aspecto repercute
positivamente na relação do leitor com o texto.

A metodologia de que cada sujeito tenha um exemplar do


livro em suas mãos revela o aproveitamento pedagógico
desse suporte de leitura, enfatizando o que temos defendido
por muito tempo, de que na formação do leitor, o acesso

199
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

livre ao material de leitura é de fundamental importância


(AMARILHA; FREITAS, 2016, p. 40).

Temos o ponto de vista de que garantir o acesso ao livro


é condição que viabiliza o direito do leitor à literatura. Ter
familiaridade com o livro de literatura infantil, principal-
mente o impresso, de modo a manuseá-lo segundo o seu
ritmo, faz parte do processo de acercamento do texto pelo
leitor. Observar a multimodalidade constitutiva do livro
de literatura infantil, aqui considerado na perspectiva de
linguagem bimodal, contemplando o texto escrito e o visual,
as narrativas escrita e visual no tempo do leitor, com suas idas
e vindas, perceber como as ilustrações estão dispostas, suas
cores, formas das ilustrações, o projeto gráfico desenvolvido
e demais informações técnicas pressupõem maior intimidade
com esse objeto cultural, necessário ao professor em formação
inicial.
No componente Teoria e Prática da Literatura II, do semes-
tre letivo de 2022.1, foi desenvolvida uma sessão de formação
de repertório com o livro Romeu e Julieta, escrito por Ruth
Rocha e ilustrado por Mariana Massarani.
Recorremos a alguns dados dessa sessão para dar visibili-
dade às contribuições da formação de repertório, evidenciando
conhecimentos sobre a natureza do livro de literatura infantil,

200
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

edições e suportes; sobre a recepção da leitura literária, abor-


dada conforme a experiência da leitura por andaime.
A etapa de pré-leitura com o livro Romeu e Julieta (ROCHA,
2009) contemplou perguntas voltadas ao levantamento de
conhecimentos prévios sobre o título da obra e às autoras,
como também à elaboração de previsões sobre o enredo e os
personagens. A capa do livro foi muito recorrida nesta etapa.
Em seguida, foi realizada a leitura oral da narrativa pela
professora, sem interrupções. A pós-leitura, momento final da
sessão, contemplou perguntas com foco na recepção estética,
voltadas à reflexão sobre aspectos fundantes da narrativa
(personagens, conflito, enredo, tempo e espaço) e sobre o
livro abordado (projeto gráfico, narrativa escrita, ilustrações),
de modo a conhecer as sensações que o texto provocou no
leitor, a verificar se as previsões se confirmaram, a identificar
e compartilhar diferentes relações estabelecidas pelos leitores,
a exemplo da relação texto-vida e da intertextualidade.
Após a sessão de leitura, foi realizada uma exposição
sobre as diferentes publicações do texto de Romeu e Julieta,
desde 1969, quando publicado na Revista Recreio, até 2009,
ano de sua última publicação, pela Editora Salamandra. Essas
informações possibilitaram aos estudantes conhecerem os
contextos históricos e sociais de produção da obra. Outra ação
bastante significativa foi a análise comparativa de duas edições

201
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

da história em suporte livro, de modo que os estudantes


pudessem refletir sobre as mudanças de autoria (ilustradores),
os projetos gráficos, as editoras e algumas diferenças em
relação aos enredos. Após esses procedimentos, os discentes
responderam uma atividade escrita, via formulário Google,
que abarcava o registro da recepção estética da obra.
Dos 85 alunos matriculados nas duas turmas, 63 desen-
volveram a atividade. Apenas 5 discentes (7,9%) conheciam
alguma publicação de Romeu e Julieta, com autoria de Ruth
Rocha. Dos que conheciam a obra, 4 tinham conhecimento
da edição reformulada da Editora Salamandra (2009) e 1
da Editora Ática (1992). Nenhum dos discentes teve acesso
à obra na escola, na condição de estudante da educação
básica. Todavia, houve aqueles que revelaram conhecer a
obra mediante a prática de estágio supervisionado, o que
aponta a influência dessa prática na formação de repertório
de literatura dos estudantes. O acesso à obra nos espaços
das escolas públicas ocorre por meio de políticas públicas
de leitura como o extinto Programa Nacional Biblioteca da
Escola (PNBE). A obra Romeu e Julieta foi inserida no referido
programa no ano de 2012.
Visando conhecer a recepção de Romeu e Julieta, pergun-
tamos quais ideias, sentimentos, reflexões a história provocou

202
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

nos estudantes. De modo geral, os discentes apresentaram


reflexões sobre o enredo:

A história me fez logo de cara elevar os meus sentimentos


sobre as relações humanas, no que se diz respeito às dife-
rentes culturas e aos comportamentos existentes nessas
sociedades, como também destaco as resistências para
com as mudanças, o medo do pensar e agir “diferente”
(QUEIROZ, 2022, grifo nosso).

O texto faz uma reflexão sobre o preconceito. As bor-


boletas eram separadas por cores, viviam em sociedades
diferentes (SOUZA, 2022, grifo nosso).

A questão da diversidade e do preconceito, além das


questões de gênero e aceitação/comportamentos sociais
aceitáveis (FERNANDES, 2022, grifo nosso).

Em seus registros, os estudantes demonstram atenção à


temática, destacando temas como: relações humanas, culturas
diferentes, resistência, separação, diversidade, aceitação, pre-
conceito e gênero. Eles demonstram relacionar o texto com
a vida, explicitando problemáticas sociais contemporâneas.
Nesse processo, o leitor lê o texto com as lentes do seu contexto,
atualizando-o. O texto em si, não muda, mas a interação do
leitor com o texto é sempre um devir.
Chama a atenção a predominância que a temática apre-
senta nos registros dos estudantes. Em relação a esse aspecto,

203
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

é importante salientar o fato de que é comum as pessoas


pensarem que a literatura atua sobre nós “porque transmite
uma espécie de conhecimento, que resulta em aprendizado,
como se ela fosse um tipo de instrução” (CÂNDIDO, 2017,
p. 179). Daí a referência à temática se sobressair nos registros
dos estudantes. Esse dado nos leva a concluir que os estu-
dantes respondem ao texto conforme foram provocados em
suas experiências anteriores, em especial na escola. A forma
como eles recorrem aos seus repertórios de leitura evidencia
as práticas que marcaram o seu modo de se relacionar com
os textos literários. Resulta desse dado a compreensão de
que o repertório de leitura de literatura, assim como o modo
como o utilizamos ao ler, tem relação direta com a mediação
desenvolvida pelo professor entre o texto e o aprendiz.
Nossa argumentação caminha no sentido de reconhecer
a literatura como uma forma de conhecimento, mas também
como forma de expressão e, sobretudo, como objeto de arte,
cujo efeito depende da articulação consistente desses aspec-
tos, como afirma Candido (2017). Somos do ponto de vista
de que a literatura favorece a reconstrução do horizonte de
expectativas do leitor em função da experiência estética, em
especial pela aisthesis, quando alarga o conhecimento que o
leitor tem do mundo (ZILBERMAN, 2004). Esse arejamento
sobre a realidade é possível quando o texto abre horizontes,

204
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

sem implicar na repetição do que o leitor já sabe. A literatura


como forma de conhecimento equivale a:

Estar com quem se ama e pensar em outra coisa: é assim


que invento que tenho os meus melhores pensamentos,
que invento melhor o que é necessário ao meu trabalho. O
mesmo sucede com o texto: ele produz em mim o melhor
prazer se consegue fazer-se ouvir indiretamente; se, len-
do-o, sou arrastado a levantar muitas vezes a cabeça, a
ouvir outra coisa (BARTHES, 2015, p. 32).

Nessa perspectiva, a literatura como forma de conhe-


cimento é aquela que desafia o leitor, incomoda-o, lhe faz
levantar a cabeça, muitas vezes, para ouvir outras coisas,
além do que é perceptível a olho nu, na referencialidade do
texto. A maneira como o texto literário é construído pelo
escritor é fundamental para o efeito que as produções lite-
rárias provocam no leitor (CANDIDO, 2017). Todavia, nem
sempre, esse aspecto é apreciado com a devida atenção, seja
pelo mediador, seja pelo próprio leitor.
Para abordar a obra Romeu e Julieta, considerando o
texto escrito e as ilustrações, de modo a ajudar os discentes
a perceberem as seleções feitas pela escritora e pela ilustra-
dora, foram encaminhadas perguntas em relação à dimensão
simbólica na representação dos personagens Romeu, Julieta,

205
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

Ventinho, contemplando também as ações das mães de Romeu


e Julieta e a ambientação dos jardins.
Também foi empreendida uma discussão sobre a marcação
do tempo no enredo, relacionado à estação da primavera, e o
que ela simboliza, pois a mudança de perspectiva das ações dos
personagens e a dinamicidade do enredo também são marca-
das temporalmente, a exemplo das seguintes partes: “Um dia,
na primavera, seu amiguinho Ventinho falou… (ROCHA,
2009, p. 14)” e “E quando chegou de novo a primavera tudo
estava diferente naquele reino” (ROCHA, 2009, p. 36).
As intervenções sobre a maneira como o texto está estrutu-
rado foram retomadas pelos estudantes, que as reconheceram
como importantes para o alargamento de conhecimentos
sobre o texto literário selecionado:

Analisar as facetas da história, para esmiuçar detalhes


que podem passar despercebidos: as cores, os personagens
(psicológico e construção de suas histórias) e os símbolos/
elementos presentes nas histórias com suas respectivas
representações (NASCIMENTO, 2022).

Gostei muito dos personagens escolhidos, borboletas que


remetem a processos de mudança e transformação. Amei
as ilustrações (SOUSA, 2022).

Esses registros tornam evidente a contribuição das inter-


venções durante a formação de repertório, sobretudo quanto

206
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

ao modo de composição dos textos lidos. Nesse processo,


aspectos como personagem e ação ganham destaque em ter-
mos do que eles simbolizam. O aspecto da plurissignificação
passa a ser mais contemplado.
Observamos também que os alunos trouxeram relatos que
demonstram um envolvimento maior com as suas emoções.
Trata-se de um envolvimento afetivo. Os temas presentes
na obra Romeu e Julieta fizeram com que alguns discentes
refletissem sobre alguma situação vivida.

Ao escutar a história, me lembrei da época de criança, a


imaginação de ver as imagens e escutar os sons, sentimento
de saudade das histórias contadas na escola. (LIMA, 2022).

O livro me fez refletir socialmente, estimulou minha


imaginação, empatia e memórias da minha infância
(ROSENDO, 2022).

A história me provocou sentimentos de liberdade, sair de


algo cômodo para algo desconhecido e não necessaria-
mente ruim [...] (MACEDO, 2022).

Em relação à literatura, como manifestação de emoções


e visão de mundo, é preciso considerar a declaração de Jauss:
“[...] a recepção representa um envolvimento intelectual,
sensorial e emotivo com uma obra [...]” (ZILBERMAN, 2004,
p. 50). A saudade, a empatia, a recuperação de memórias
de infância e o sentimento de liberdade foram algumas das

207
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

emoções descritas, também, no momento de pós-leitura da


obra de Ruth Rocha.
Os discentes estabeleceram relações intertextuais com a
obra de William Shakespeare, Romeu e Julieta, com alguns
contos de fadas, com outra personagem de narrativa escrita
por Ruth Rocha e com cantigas de rodas, em que destaca-
ram memórias da infância e algumas emoções sentidas no
momento da leitura.

No primeiro momento me remeteu a obra de Shakespeare,


devido ao nome do livro. Fui estabelecendo relações por
serem famílias diferentes, as figuras de menino e menina,
as ações “proibidas” (BEZERRA, 2022, grifo nosso).

Fiz relação também com a história original de Shakespeare,


que de certa forma despertou meu interesse para manter
atenção a contação, pois é um autor do qual sempre gos-
tei e li outras obras no período da minha adolescência
(NASCIMENTO, 2022, grifo nosso).

Eu achei parecido com chapeuzinho vermelho, pois ela


desobedeceu a mãe e foi por outro caminho e as borboletas
também desobedeceram aos pais (ROCHA, 2022, grifo
nosso).

Me relembrou a “contação” de histórias no chão da sala


de aula que aconteciam na minha infância (SILVA, 2022).

208
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

A formação de repertório com a obra Romeu e Julieta


nos permitiu visualizar como os estudantes recorrem aos
seus repertórios de leitura de modo a estabelecer relações
com o texto em foco, considerando aspectos pontuais, como
autores, no caso Shakespeare, título da obra, cenas e conflitos
narrados. Seus registros revelam como de uma história outras
podem ser lembradas, sendo, possivelmente, o contar/ouvir
histórias um procedimento que pode reconstituir e fazer
ampliar o repertório de leitura de literatura.
Enredados na trama de uma história, os estudantes
demonstram mais mobilização para retomar suas memórias
como leitor, revelando-nos indícios mais precisos de seus
repertórios de leitura já constituídos. Sendo assim, o fato
de eles não demonstrarem lembrar dos títulos das obras e/
ou dos autores na aplicação de instrumento, como o ques-
tionário, pode não ser um indicador de falta ou restrição de
repertório, mas a necessidade de um expediente que favoreça
essa lembrança. Nessa experiência, concluímos que a leitura/
contação de histórias constitui instrumento significativo
nessa direção, seja em função dos temas, da configuração de
seus personagens ou da jornada que eles desenvolvem para
resolver os conflitos.
Como afirma Vygotsky (1994, p. 58), “a verdadeira essên-
cia da memória humana está no fato de os seres humanos

209
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

serem capazes de lembrar ativamente com a ajuda de signos”.


Parodiando o autor, podemos afirmar que os leitores são capa-
zes de lembrar ativamente sobre suas experiências de leitura
com a ajuda de histórias. Esse dado precisa ser refletido tanto
em relação à estrutura da narrativa quanto em relação à obra
trabalhada. Com relação ao primeiro aspecto, é importante
ressaltar que a estrutura narrativa “atinge o receptor do ponto
de vista emotivo e cognitivo” (AMARILHA, 2003, p. 19), em
função de constituir uma sequência de fatos conexos, cujo
enredo apresenta/representa aspectos do destino humano,
levando o leitor a se identificar com os personagens, seus
conflitos e modos de solucioná-los. Esse jogo ficcional expe-
rienciado pelo leitor evidencia “que as estruturas organizadas
em narrativa são construtoras de sentido” (AMARILHA, 2003,
p. 20) e, por extensão, construtoras de lembranças, sobretudo
lembranças que revelam aspectos de nossos repertórios de
leitura:

Lembro de ter me identificado bastante com as constantes


indagações de Marcelo em relação aos nomes das coisas e as
respostas nem sempre satisfatórias ou com sentido pra mim
dada por parte dos adultos. Também fiz relação com um
desenho que eu assistia quando criança chamado “Kika”,
em que ela sempre estava perguntando aos adultos e eles
nem sempre tinham as respostas (LIMA, 2022, grifo nosso).

210
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

Sobre o segundo aspecto, isto é, a obra Romeu e Julieta


(ROCHA, 2009), primeiro conto publicado por Ruth Rocha
na revista Recreio (1969), é necessário considerar o princípio
intertextual que estrutura a sua narrativa assim como as
escolhas da autora em relação aos personagens e ao núcleo
dramático do enredo. A obra de Ruth Rocha convoca o leitor
a ativar suas lembranças sobre histórias já conhecidas, a
começar pela tragédia escrita por William Shakespeare, entre
1591 e 1595, sobre dois adolescentes cuja a morte une suas
famílias, antes separadas, cujo o título Ruth Rocha recorre
também em sua obra, Romeu e Julieta. Estabelece intertexto,
também, com cantigas de roda, referenciadas literalmente no
texto escrito “apareceu a margarida, olê, olê, olá…” (ROCHA,
2009, p. 22); poemas, como “As borboletas”, publicado por
Vinicius de Moraes, em 1970, na obra A arca de Noé.
Há outros intertextos possíveis de o leitor considerar
nas diversas camadas do texto. A perspectiva intertextual
convoca o leitor a fazer uso da memória, no sentido de ele
lembrar ativamente desse e de outros textos que compõem o
seu repertório. Não obstante, é necessário abordar também
o repertório de leitura na perspectiva do devir, anunciado no
início deste capítulo. Nessa direção, Romeu e Julieta (ROCHA,
2009) é um convite para o leitor que ainda não conhece as

211
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

produções literárias mencionadas vir a conhecê-las, ampliando


seu repertório.
Nisso, confirma-se o sentido de mobilidade/plasticidade
atribuído ao repertório de leitura de literatura neste texto,
com o acréscimo de que as histórias constituem expedientes
fundamentais para ativá-lo. Daí que a seleção de histórias
ou poemas deve ser um princípio norteador das práticas de
leitura. Além da seleção em si, a percepção da intertextuali-
dade como característica singular aos textos literários deve
ser considerada, pois “ler algo como literatura é considerá-lo
como um evento linguístico que tem significado em relação
a outros discursos” (CULLER, 1999, p. 40). Acrescentamos,
ainda, que a atenção a esse aspecto pressupõe uma mediação
que contemple ações que conduzam o estudante a observar a
literatura como uma construção, um de objeto de arte com a
palavra, com estrutura e significado(s), em que os textos se
abrem para um mar de histórias.

Antologias poéticas: possibilidade


de ampliação de repertório

A palavra antologia vem do grego Anthologia, que significa


coletânea de textos escritos, em prosa e/ou em verso, tendo
em geral autores variados. Esse significado é empregado na

212
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

atividade de produção de antologias poéticas no componente


Teoria e Prática da Literatura I, com os objetivos de favorecer:
a formação e ampliação do repertório de leitura dos estudantes
em relação ao gênero poema; o conhecimento acerca da vida
e obra de poetas, clássicos e contemporâneos; e a abordagem
das qualidades constitutivas da poesia.
Na produção das antologias poéticas, os estudantes
assumem a condição de organizadores, curadores, editores,
ilustradores e revisores, experienciando as etapas de produção
de um livro, confeccionado de forma artesanal ou digital. Esse
processo possibilita a compreensão do livro de literatura como
artefato multimodal, que integra diferentes profissionais e
cuja composição articula diferentes linguagens. Sobretudo,
demanda uma série de definições e escolhas, de modo a
originar um todo coerente e coeso.
Uma das primeiras definições a serem tomadas pelos
estudantes é quanto ao tema. Estrategicamente, solicitamos
que essa definição seja de livre escolha. Isso favorece a maior
implicação dos estudantes com a tarefa, assim como permite
a reflexão sobre a relação entre poesia e vida, explicada nos
versos do poeta Elias José: “A poesia/ é só abrir os olhos e
ver/ tem tudo a ver/com tudo” (JOSÉ, 2003).
Em nossas experiências docentes com esta atividade,
constatamos que as escolhas dos temas indicam motivações

213
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

pessoais e sociais. Tais motivações, dão margem à aborda-


gem de diferentes temas e poemas. A título de exemplo, no
semestre letivo de 2021.1, foram produzidas 29 antologias,
sendo 6 antologias sobre aspectos geracionais (infância,
velhice, juventude), 15 sobre sentimentos e emoções (amor,
amizade, medo, vida, morte, saudade), 4 sobre identidades
sociais (nordeste, mulher, maternidade), 2 sobre natureza e
2 sobre tempo.
Selecionado o tema, o estudante desenvolve um levanta-
mento bibliográfico, buscando identificar poemas e poetas
que farão parte de sua antologia. O levantamento dos poemas
é realizado considerando-se os aspectos sonoros (diferentes
sons, ritmos, rimas etc.), imagéticos (relativos à elaboração
de imagens mentais a partir do texto escrito) e semânticos
(compreendem às camadas de sentido do texto em decorrência
da linguagem em função estética, com a presença de metáforas,
metonímias etc.), de acordo com Pound (1997).
Esses critérios adotados para a curadoria dos poemas
provoca o arejamento do repertório de leitura do professor em
formação inicial, além de favorecer o conhecimento de dife-
rentes autores, obras e modos de composição poética. Mobiliza
também um olhar mais atento sobre a diversidade de livros de
poemas presentes no mercado editorial, oferecendo-lhe um

214
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

referencial pautado nos aspectos constitutivos da linguagem


poética (som, imagens e sentidos).
A cada poema selecionado, há também a reflexão acerca
de sua relação com o tema. É nessa dinâmica investigativa que
os estudantes constroem as antologias e, consequentemente,
ampliam os seus repertórios. Nesse sentido, observamos
que a atividade de elaboração da antologia pode auxiliar na
construção de uma relação significativa entre discentes e o
texto literário.
De posse dos poemas, assim como de dados biográficos
dos respectivos poetas, o estudante investe esforços na confec-
ção do livro artesanal ou digital, abordando o projeto gráfico
e as ilustrações que serão inseridas na antologia.
Concluída a feitura das antologias, é realizado o Sarau
Literário, evento em que cada estudante apresenta a sua pro-
dução, informando as justificativas para seleção do tema e
mostrando o projeto gráfico constituído. Além da apresen-
tação das suas produções, os discentes declamam/leem um
poema de sua curadoria, explorando sons, ritmos, pausas,
intensidade e duração da voz.
Essa leitura é carregada de emoção e sensibilidade, aspecto
que demonstra a função humanizadora da literatura, reve-
lando “o empenho em co-mover as experiências mais pessoais

215
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

do aprendiz no resgate do texto e da palavra do outro, de


modo a lograr que a intimidade a ser partilhada supere seus
limites e alcance uma dimensão que seja a um só tempo
singular e plural” (YUNES, 2003, p. 13). Singular porque a
antologia revela aspectos da intimidade do estudante com o
tema, os poemas, os autores e o projeto gráfico. Plural porque
o sarau se converte em espaço de com-partilhar experiências
de leitura, trazendo à tona a diversidade de autores, leitores
e leituras. Assim, o Sarau Literário se converte em espaço de
comunidade de leitores de poemas, que mobiliza uma série
de consequências sobre o repertório de leitura de literatura
dos professores.
Tendo feito essas considerações, selecionamos duas anto-
logias poéticas, elaboradas no ano de 2020 e 2021, com o
propósito de evidenciar contribuições pontuais da produção
de antologias poéticas para o repertório de leitura de literatura
dos estudantes.
A primeira antologia aborda o tema Gatos, sendo a justi-
ficativa para esta seleção o prazer da sua organizadora pelos
felinos, expresso na apresentação de sua produção:

A presente antologia destina-se especialmente aos que são


apaixonados por gatos. Sim, no plural mesmo, porque é
impossível encantar-se por apenas um felino. Eles possuem
uma alma linda, sincera e charmosa. Apresentam um ar

216
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

de superioridade capaz de cativar os que, ainda, não se


apaixonaram por eles (LEITE, 2020).

No trecho em destaque, constatamos a dimensão estética,


sobretudo os afetos que respaldam a escolha do tema da
antologia. A leitura dos dados biográficos da organizadora
também oferece indícios do seu envolvimento afetivo com o
tema, principalmente em função da sua primeira formação ter
sido em ciências biológicas. Outrossim, a própria estudante
afirma que “não é escritora, mas uma pessoa apaixonada por
gatos e que viu a oportunidade para expressar seu amor pelos
felinos” (LEITE, 2020).
A psicanálise nos ensina que os nossos interesses e desejos
movem nossas ações. Nesse caso, evidenciamos a importância
de se considerar o interesse do leitor na seleção de textos a
serem lidos, no caso os poemas, para mobilizar a ampliação do
seu repertório de leitura. Se um dos princípios fundamentais
a ser assegurado no exercício da prática docente é o de que o
professor conheça o seu aprendiz, incluindo seus interesses,
necessidades e singularidades, a elaboração de antologia
colabora para a prática desse princípio.
A produção da antologia poética com o tema Gatos se
consolidou como oportunidade de a estudante exteriorizar
seus afetos por meio de poemas para outros leitores, revelando
sua intimidade com o tema. Neste sentido, há uma troca de

217
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

leituras e afetos, mobilizada pela poesia. Essa troca nos leva


a considerar que a formação de repertório de leitura requer
tempo, esforço e, sobretudo, envolvimento pessoal do leitor.
A relação de poemas e de autores também indica apren-
dizagens a serem consideradas:

Quadro 1 - Relação de poemas e dados biográficos dos autores

POEMA/TÍTULO AUTORIA LOCALIDADE


Vinicius de Moraes Rio de Janeiro,
O gato
(1913-1980) RJ, Brasil.
O gatinho ficou Rio de Janeiro,
Rose Arouck
livre ao final RJ, Brasil.
Dois gatos Helil Lourenço São Paulo, SP, Brasil.
Teu nome é gato Cida Souza Brasil.
Vinicius de Moraes Rio de Janeiro,
Soneto do gato morto
(1913-1980) RJ, Brasil.
Um gato Carlos Nóbrega Ceará, CE, Brasil.
Carlos Neuton Pernambuco,
Gato
Júnior (1966) PE, Brasil.
Jorge Luis Borges Buenos Aires,
A um gato
(1899 - 1986) Argentina.
Lição de um Ferreira Gullar Maranhão,
gato siamês (1930 - 2016) MA, Brasil.
Millôr Fernandes Rio de Janeiro,
Gato ao crepúsculo
(1923 - 2012) RJ, Brasil.
Gato que Fernando Pessoa
Lisboa, Portugal.
brincas na rua (1988-1935)

218
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

Alexandre O’Neill
Gato Lisboa, Portugal.
(1929- 1986)
Os gatos Manuel António Pina Sabugal, Portugal.
Na dúvida uma
Mariana Leite (1988) Brasília, Brasil.
certeza
Pablo Neruda
Ode ao gato Parral, Chile.
(1904 - 1973)

Fonte: elaborado pelas autoras.

Nesse quadro, temos uma relação de títulos de poemas


elaborados por poetas de origens e tempos distintos, nacio-
nais e internacionais, clássicos e contemporâneos, de estilos
diversos, em termos de composição literária. Esses desdobra-
mentos da antologia evidenciam uma particularidade dessa
atividade. Como ela reúne poemas de diferentes autores,
acolhe a diversidade, ou seja, a produção literária de tempos
distintos transita lado a lado, nas páginas das antologias.
A reflexão sobre a diversidade nas antologias com foco
no atributo tempo nos permite evidenciar a relação dessa
atividade com a memória, função psicológica fundamental
quando falamos sobre repertório de leitura. A memória, nesse
contexto, é compreendida como a capacidade do leitor lembrar
de um texto já lido. Se entendermos que as lembranças sobre
os textos lidos têm função dialética, pois movem o nosso
repertório de leitura, ao mesmo tempo que impulsionam o
seu desenvolvimento, o modo como sistematizamos as leituras

219
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

realizadas é fundamental. Sendo assim, afirmamos que as


antologias poéticas se configuram em um procedimento que
torna a memória cada vez mais volitiva (VYGOTSKY, 1999).
Vemos que a relação das antologias com a memória precisa
também levar em conta a perspectiva individual e coletiva
dos sujeitos. Individual em termos de constituir um acervo
de poemas marcado por uma seleção temática de interesse
particular, movido por questões afetivas, sociais ou de outra
ordem, mas sempre uma escolha do seu organizador. Coletiva,
no sentido de, em função de reunir, em um só produto, auto-
res distintos, em termos temporais, culturais, históricos e
estéticos, as antologias contribuem para a preservação de
nossa memória literária coletiva. “A memória situa-nos do
ponto de vista tanto da história social quanto individual,
somos marcados por acontecimentos que tiveram impacto e
eloquência para que deles nos lembrássemos” (AMARILHA,
2003, p. 77).
A segunda antologia que selecionamos foi produzida por
Oliveira e Silva (2021), intitulada Mulheres: um ato revolu-
cionário, que dá visibilidade às mulheres, considerando as
suas lutas e facetas. No texto de apresentação da antologia,
as organizadoras trazem uma carta direcionada ao leitor:

220
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

Querida(o) leitora(o), você já pensou como é difícil para


as mulheres serem quem são nessa sociedade?

Os poemas encontrados nessa antologia, de escritoras


nacionais e internacionais de diferentes épocas, refletem a
luta das mulheres e como essa discussão não é algo recente
e, sim, de muitos anos. Muitas temáticas importantes serão
levantadas ao longo da nossa antologia, como padrão de
beleza, empoderamento, gênero, espaço social, relações
de poder e diversidade feminina.

Considerando a trajetória histórica de desigualdade, silen-


ciamento e exclusão social vivenciados pelas mulheres
ao redor do mundo, sentimos a necessidade de abordar
essa temática para dar vez e voz a todas as mulheres.
Esperamos que através dessa antologia as pessoas que
lerem, consigam identificar os pontos abordados pelas
autoras e sintam a força transmitida por elas.

Aos leitores homens, não se sintam excluídos dessa discus-


são, muitas vezes vocês farão parte da temática. Por isso,
façam do momento de leitura uma aprendizagem. O nosso
intuito não é afastar vocês, só precisam entender que este
é um espaço seguro para nos colocarmos como mulheres,
então pedimos que leiam com cuidado, pesquisem sobre
o que está sendo falado nessas poesias, percebam o lugar
de vocês e sejam aliados à nossa luta. (grifo nosso)

Como texto de apresentação, as organizadoras anunciam


uma seleção de poemas predominantemente marcada pela
perspectiva social, de cunho feminino, em que a literatura se

221
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

assume como modo de contestar a realidade e de arejamento


intelectual. Os poemas selecionados evidenciam a busca por
escritoras mulheres, sendo essa uma escolha intencional, que
demonstra coerência discursiva entre temática e finalidade
da antologia. No quadro 02, explicitamos as informações
referentes a essa antologia.

Quadro 2 - Relação de poemas e dados biográficos das autoras

POEMA/TÍTULO AUTORIA LOCALIDADE


Cecília Meireles Rio de Janeiro
Mulher ao Espelho
(1901 – 1964) - RJ, Brasil.
Florbela Espanca
A Mulher Vila Viçosa, Portugal
(1894 – 1930)
Conceição Belo Horizonte,
Eu – Mulher
Evaristo (1946) MG, Brasil.
Maya Angelou San Luis,
Mulher Fenomenal
(1928 - 2014) Missouri, EUA.
Divinópolis,
Com Licença Poética Adélia Prado (1935)
MG, Brasil.
Cacos Eva Potiguar (1966) Natal, RN, Brasil.
Rio de Janeiro,
Amor Revolucionário Rafaela Chor (1995)
RJ, Brasil.
Meu Problema com
o que consideram Rupi Kaur (1992) Hoshiarpur, Índia.
bonito

222
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

Quero Pedir
Desculpas a Todas Rupi Kaur (1992) Hoshiarpur, Índia.
as Mulheres...
Regina Azevedo
Em Pleno Século XXI Natal, RN, Brasil.
(2000)
Quando Você Olhar Regina Azevedo
Natal, RN, Brasil.
Para Essas Pernas (2000)
Afrotopia Bianca Chioma São Paulo, SP, Brasil.
Cachoeira Bruna Escaleira (1988) São Paulo, SP, Brasil.
Espelho De Uma
Arleide Nascimento São Paulo, SP, Brasil.
Mulher Gorda

Fonte: elaborado pelas autoras.

As escritoras selecionadas são de diferentes países (Brasil,


Portugal, Índia, Estados Unidos), predominando mulheres
brasileiras, que nasceram/vivem em regiões diferentes, como
sudeste (RJ, SP, MG) e nordeste (RN).
Nos poemas selecionados para a antologia, os leitores
podem ter contato com nomes mais jovens presentes nas
publicações de livros/textos, a exemplo de Rupi Kaur, Regina
Azevedo, Rafaela Chor, Bruna Escaleira, Bianca Chioma, Eva
Potiguar, contribuindo para arejar o repertório de leitura com
as produções mais recentes. Tal aspecto pode ser inspirador
para encorajar às novas gerações a escreverem e divulgarem
seus textos.

223
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

Por meio da antologia também é possível conhecer ou


revisitar nomes já consagrados da literatura, como Cecília
Meireles, Florbela Espanca, Conceição Evaristo, Adélia Prado,
contribuindo para o conhecimento de seus estilos, suas formas
de retratar as mulheres em seus textos.
As biografias das escritoras dos poemas presentes na anto-
logia são produzidas pelas organizadoras, o que implica em
seleção de aspectos relevantes para serem inseridas no livro,
de forma breve. “Falar em biografias é falar em histórias de
vida ou em indícios de uma existência individual concebida
como narrativa. A escrita [...] baseia-se na intenção de dar
sentido aos eventos, constituindo significados entre eles e
sistematizando uma identidade” (RAMOS; SCHENKEL;
RELA, 2020, p. 5).
Na antologia Mulheres: um ato revolucionário, percebemos
que as informações biográficas das escritoras dão visibili-
dade a diferentes facetas de suas vidas, dialogando com a
intencionalidade da produção apresentada na carta ao leitor
e nos demais paratextos, inclusive os visuais (imagens que
representam mulheres com características físicas diferentes).
A produção das biografias das escritoras nessa antologia
contribui para que o leitor conheça muitas facetas de suas
vidas, como as suas diferentes experiências profissionais (pro-
fessora, pesquisadora, filósofa, artista plástica, arte-educadora,

224
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

produtora cultural, slammster, jornalista, pintora etc.) e os


prêmios literários que algumas receberam, o que dá uma maior
visibilidade e prestígio às suas obras. O conhecimento sobre a
vida e a obra das escritoras potencializa as leituras que os estu-
dantes podem desenvolver dos poemas, podendo contemplar
relações de identidade quanto ao gênero. “As biografias [...]
possuem grande representatividade sobre o auxílio dedicado
ao leitor no reconhecimento e na aproximação com a obra,
ao permitir que o criador seja reconhecido e aproximado do
leitor” (RAMOS; SCHENKEL; RELA, 2020, p. 5).
Esse dado indica o quanto o tema selecionado repercute
na atribuição de sentidos do corpus de texto que compõe
a antologia, sobretudo, que a leitura de textos biográficos
e autobiográficos possibilita ao leitor conhecer, de forma
breve, aspectos da vida das pessoas, colaborando assim para
a recepção e a significação da leitura dos textos. O acesso a
essas informações pode despertar no leitor o interesse para
conhecer outras produções dos escritores. Desse modo, a
leitura dos paratextos trazem implicações positivas para
o repertório de leitura. “São responsáveis por convidar o
leitor para um contato íntimo com o texto [...] contribuem
para que um texto se torne livro e oferecem para cada leitor
a possibilidade de encontrar e explorar, ou não, aquilo que
está escondido” (RAMOS; SCHENKEL; RELA, 2020, p. 3).

225
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

As autobiografias das organizadoras revelam a seleção


de dados significativos de suas vidas e de seus repertórios de
leitura, inclusive relacionados à temática da antologia:

Apaixonada por histórias de grandes romances e aventuras.


Na literatura e na poesia feminista encontra seu refúgio
(OLIVEIRA, 2021).

Conheceu a poesia feminista através do grupo Sarau


Mulheres (UFRN) em 2019 (SILVA, 2021).

Os trechos em destaque confirmam que o repertório de


leitura tem relação com a identidade do sujeito leitor, de modo
a se constituir em apoio para suas escolhas sobre o que lê,
como lê e aquilo que pode ser criado ou praticado a partir
das leituras desenvolvidas, como o fato de estar num grupo
para ler poesias feministas.
É em função dessa relação com a vida que a leitura de
literatura se faz necessária, se constitui direito. Em sendo
assim, a formação de repertório de leitura de literatura passa
a ser uma ação que consolida a implementação desse direito,
pois “Aquilo que consideramos indispensável para nós é
também indispensável para o próximo” (CANDIDO, 2017,
p. 174), sendo este próximo o professor em formação inicial
como também o aprendiz leitor, que será o seu aluno na
escola básica. Diante disso, é necessário investir de maneira

226
Alessandra Cardoso de Freitas
Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

retrospectiva e prospectiva ao formar os primeiros professo-


res, em especial aqueles que foram privados de experiências
regulares e sistematizadas de leitura de literatura.
Por fim, se entendemos que o fato de ler consolida a iden-
tidade do sujeito como leitor, investir em processos formativos
com e sobre a literatura é dar condições para que no encontro
do aluno com o professor, o repertório de leitura possa ser
ponte cuja travessia será sempre um horizonte sem fim de
leituras.

227
REPERTÓRIO DE LEITURA DE LITERATURA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

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Juliana de Melo Lima
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230
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Juliana de Melo Lima
Raquel Duarte Fernandes

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231
A LINGUAGEM ORAL NA
EDUCAÇÃO INFANTIL:
POSSIBILIDADES E LIMITES DE APROPRIAÇÃO
EM SITUAÇÕES VIVENCIADAS POR
CRIANÇAS E PROFESSORAS
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

O presente texto tematiza o trabalho com a linguagem oral no


contexto da Educação Infantil, tendo como base da discussão
um recorte de pesquisa realizada em curso de mestrado com
o objetivo de analisar o trabalho desenvolvido em instituições
dessa etapa concernente à oralidade das crianças. Partimos
da concepção da linguagem como prática cultural e interação
social, como atividade constitutiva do psiquismo humano
(VIGOTSKI, 1998) e, desse modo, como dimensão fundante
da educação das crianças e que precisa integrar as práticas

232
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

pedagógicas e os currículos dessa etapa, reconhecida em sua


função de caráter social, político e, sobretudo, pedagógico
junto às crianças e suas famílias, com a finalidade de edu-
car-cuidar das crianças de zero a cinco anos com vistas ao
seu desenvolvimento integral.
Ao tempo em que concebemos as crianças como sujeitos
capazes de interagir, aprender e produzir cultura desde os
primeiros dias de vida, igualmente, reconhecemos suas neces-
sidades de cuidado e de mediação por parte do meio social,
considerando o desenvolvimento infantil como processo
essencialmente social e cultural, o que põe em destaque a
dimensão pedagógica das práticas desenvolvidas nas creches e
pré-escolas e seu papel mediador no aprendizado e desenvolvi-
mento das crianças em todas as suas dimensões (DHALBERG,
MOSS, PENCE, 2003; PINO, 2005, SARMENTO, 2007).
Assim, podemos entender que em meio às interações que
são vivenciadas diariamente pelas crianças, desde bebês, no
contexto das instituições de educação infantil, com os adultos
e com as outras crianças, muitas aprendizagens são – podem
ser – propiciadas, entre elas, a da linguagem oral que, dife-
rentemente de uma visão naturalista-inatista ainda corrente
mesmo nos meios educacionais entre os profissionais que
atuam com as crianças, resulta de processo de apropriação,

233
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

por cada criança, a partir das condições que lhes são opor-
tunizadas nos contextos sociais em que estão inseridas.
Essa perspectiva tem sido assumida nos documentos
oficiais orientadores das propostas e práticas pertinentes à
educação de crianças de zero a cinco anos, nomeadamente
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil – DCNEI (BRASIL, 2009) e o documento curricular
mais recente, a Base Nacional Comum Curricular – BNCC
(BRASIL, 2017), produzido após a realização de nosso estudo,
cujas definições e proposições abrangem a linguagem oral
como direito das crianças e responsabilidade das propostas
pedagógicas institucionais.
Foi, portanto, da confluência de estudos das teorizações,
da análise de documentos e de experiências como/com/entre
docentes que atuam com crianças de zero a cinco anos que
emergiram questões acerca de como é desenvolvido o trabalho
com a linguagem oral no dia a dia, considerando o papel
primordial da mediação social-pedagógica para sua apro-
priação. As questões que nos mobilizaram foram motivadas,
especialmente, pelo (re)conhecimento de que a aprendizagem
da linguagem ocorre nas interações entre os sujeitos e se inicia
desde os primeiros meses de vida (VIGOTSKI, 2007; LURIA,
1986), o que nos conduziu a investigar situações vivenciadas
em instituições de educação infantil em que a linguagem

234
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

oral é vivenciada-experimentada-explorada por crianças e


professores como oportunidades de sua apropriação.
E compreendendo ainda que os professores são os princi-
pais responsáveis pela estruturação dessas experiências, ainda
que não sejam os únicos, pois as crianças também participam,
ou seja, organizam-desorganizam atividades, também nos
indagamos sobre o papel dos professores nas situações que
podem favorecer-propiciar o processo de aprendizagem da
linguagem pelas crianças.
A abordagem do aprendizado da linguagem oral está
presente em pesquisas com focos e abordagens distintos, o
que foi possível constatar mediante levantamento1 realizado
na perspectiva de situarmos nosso estudo no conjunto das
produções existentes.
Enquanto alguns privilegiam o contexto familiar e a figura
da mãe nos processos de desenvolvimento da linguagem oral
(CHAVES, 2004; SERVILHA, 2009; CANTO, 2011), outros
focalizam esses processos em contextos escolares, como Góes
(2000), Bertoluzzi (2005), Bressani (2006), Oliveira e Freitas
(2008) e Cruvinel (2010) que analisaram dinâmicas entre
professoras e bebês/crianças com vistas ao desenvolvimento da

1 Sites da ANPED (23ª a 35ª Reunião anual – 2000 a 2012) e do Instituto de


Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP); Banco de Teses e Dissertações
da CAPES.

235
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

linguagem focalizando nas interações. Nos estudos desenvol-


vidos por esses autores, é destacado o papel da professora na
mediação/significação do mundo para a criança a partir das
experiências vivenciadas, bem como as capacidades infantis
de comunicação e interação com os outros, não se limitando
à linguagem verbal.
Além das produções citadas, destacamos as pesquisas de
Schimitt (2008) e de Ramos (2012) que priorizam as relações
estabelecidas com e entre os bebês no contexto da Educação
Infantil. Foi possível, portanto, verificar que poucos estu-
dos privilegiam as interações estabelecidas no contexto da
Educação Infantil visando à aprendizagem e desenvolvimento
da linguagem oral de bebês e crianças bem pequenas, o que
aponta, ainda, para a necessidade de investigações que pri-
vilegiem a temática.

A pesquisa – aportes e
procedimentos metodológicos

O estudo foi orientado por premissas da abordagem qua-


litativa de pesquisa (BOGDAN; BIKLEN, 1994), bem como
por proposições de L. S. Vigotski (1998) e de M. Bakhtin
(2003) para os estudos acerca dos processos humanos. A
partir da aproximação construída por Freitas (2007) entre as

236
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

proposições da pesquisa qualitativa e da abordagem sócio-


-histórica, a investigação considerou como fonte dos dados
o próprio contexto de sua emergência – uma instituição
de educação infantil – em seu conjunto de relações, bem
como as significações dos sujeitos envolvidos acerca do tema
considerando-as em suas vinculações aos contextos, a busca
de compreensão e o papel ético do pesquisador em diálogo
com os participantes.
Orientadas por essas premissas, a inserção no campo
foi feita gradualmente de modo a estabelecer vínculos de
confiança com todos os sujeitos envolvidos, considerando
que não estávamos diante de um “objeto” de estudo pronto,
mas que estávamos participando de sua construção.
Levando em consideração o pressuposto de Jobim e Souza
(2007), de que o olhar do outro, principalmente de “um outro”
não conhecido e que ocupa uma posição socialmente privi-
legiada, produz modificações nas relações cotidianas de um
grupo e de que, a “neutralidade” não é possível, procuramos
adentrar no espaço das crianças e dos professores com muito
cuidado e respeito, a fim de que sua rotina não fosse reconfigu-
rada de modo a comprometer as possibilidades de atingirmos
os objetivos da nossa pesquisa. Gradativamente, já não éramos
“um outro” tão estranho ao contexto, passando a fazer parte
dele de modo mais integrado, embora em posição diferente.

237
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Ao mesmo tempo, fomos igualmente afetadas por nossa


entrada/estada em campo. Embora no lugar de pesquisadora-
-observadora, também éramos partícipes das situações diárias,
das interações, o que produziu novas significações também
em nós, visto que o vivido-observado nos instigou a pensar,
agir e falar de modos específicos para aquela situação. Não
permanecemos do mesmo modo que entramos.
Para atingirmos nosso objetivo, construímos nossos dados
empíricos junto a uma turma de crianças de Berçário II de um
Centro Municipal de Educação Infantil – CMEI localizado
em Natal/RN, mediante a realização de observações do tipo
participativo com registro em diário de campo.
As observações participativas nos possibilitaram uma
visão mais ampla do nosso objeto de pesquisa. Éramos, assim
como os sujeitos pesquisados, sujeitos falantes e ativos, o que
nos permitiu mais compreensão dos eventos que observamos.
Junto às observações, também fizemos registros por meio da
videogravação, uma vez que:

Ver e ouvir são cruciais para que se possa compreender


gestos, discursos e ações. Esse aprender de novo a ver e
ouvir (a estar lá e estar afastado; a participar e anotar;
a interagir enquanto observa a interação) se alicerça na
sensibilidade e na teoria e é produzida na investigação, mas

238
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

é também um exercício que se enraíza na trajetória de vida


no cotidiano (SILVA; BARBOSA; KRAMER, 2008, p. 86).

As videogravações se mostraram imprescindíveis para a


análise da dinâmica diária da turma, com a multiplicidade e
concomitância de acontecimentos, pois nos possibilitaram (re)
ver cenas e enriquecer os registros, a análise e a compreensão
do que foi vivenciado-observado durante onze dias ao longo
de cinco meses – entre abril e agosto de 2014 – acrescidas das
visitas iniciais à instituição. Esclarecemos que o tempo foi mais
estendido em decorrência de um período de suspensão das
atividades devido à paralisação da categoria dos professores
em suas lutas sindicais.

O campo e os sujeitos da pesquisa

O CMEI pesquisado está situado em um bairro da Zona


Sul da cidade de Natal. As crianças que o frequentam são
oriundas do próprio bairro e da vizinhança. Seus pais tra-
balham como diaristas, em pequenos comércios ou como
prestadores autônomos de serviços. A localização da insti-
tuição em uma avenida movimentada e por onde transitam
transportes públicos contribui, segundo informações obtidas,
para a assiduidade das crianças ao berçário. O horário de

239
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

funcionamento era, à época da pesquisa, de tempo integral,


para as turmas de berçário – das 07h às 17h – e, para as
outras turmas, de tempo parcial, das 07h às 11h, no turno
matutino, e das 13h às 17h, no turno vespertino. Nossas
observações na turma do Berçário II aconteceram com mais
frequência no turno matutino em virtude de disponibilidade
de tempo-espaço.
Na turma observada, com funcionamento em tempo
integral, e considerando o número de crianças atendidas, havia
três professoras por turno – uma titular e duas auxiliares. O
tempo de trabalho das profissionais era de seis horas diárias,
trinta horas semanais. As duas professoras titulares tinham
formação em nível superior, uma em Pedagogia e outra em
Letras. Todas as auxiliares estavam cursando Pedagogia.
Das quinze crianças, nove eram meninos e seis meninas,
com idades entre 17 e 27 meses.

As vivências diárias da turma – a rotina

A rotina diária vivenciada na turma observada assume


importância porque as rotinas configuram-circunscrevem
as condições que as crianças e suas professoras têm de con-
vivência-interação (BARBOSA, 2009). No caso da turma
observada, a rotina diária envolvia, quase que invariavelmente,

240
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

os seguintes momentos-situações: após a chegada com seus


pais ao CMEI, a partir das 7 horas da manhã, as crianças vão
entrando e sendo recebidas pelas professoras presentes à sala.
E se envolvem com brinquedos deixados pelo chão. Pouco
antes do café da manhã, às 7h30, elas são encaminhadas a
fazerem uma fila para ida ao refeitório. Para isso, as professoras
as envolvem com um elástico para que não se dispersem.
Nesse momento, geralmente as professoras vão entoando
uma canção do “trenzinho”. Ao chegarem no refeitório, elas
ajudam as crianças a sentarem nas cadeiras. Antes que o
lanche (café da manhã) seja servido, a professora titular faz
sempre uma “oração de agradecimento pelo alimento”. Em
seguida, ela e as professoras auxiliares distribuem a comida
entre as crianças, incentivando-as a comer.
Concluída a refeição, as crianças retornam à sala e vão
sendo encaminhadas para a “roda” que se realiza sempre nas
cadeiras previamente organizadas em círculo pelas professo-
ras auxiliares, o que demanda, novamente, ajuda, visto que
algumas crianças não conseguem se organizar sozinhas. A
“roda” é sempre conduzida pela professora titular enquanto
as professoras auxiliares saem da sala e vão juntas tomar café.
Essa situação chama atenção por dar indício de pouca atenção
às demandas das muitas crianças justamente em um tempo
que sugeriria maior interação verbal, maior participação.

241
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Nessa roda, é entoada uma série de cantigas infantis que, por


serem repetidas, dia a dia, são memorizadas pelas crianças
que, inclusive, antecipam movimentos que acompanham as
canções.
Em seguida, na quase totalidade dos dias, as crianças
permanecem nas cadeiras e assistem vídeos infantis na TV
– Patati Patatá, Galinha Pintadinha, Xuxa... – As crianças
demonstravam interesse, por alguns minutos, pelo con-
teúdo dos vídeos apresentados se movimentando. Após o
“momento de ver TV”, e à medida em que as crianças iam se
dispersando, as professoras já se dirigiam ao centro da sala e
“derramavam” brinquedos que ficam guardados nas caixas,
espalhando-os pelo chão. As crianças se envolvem com esses
brinquedos durante uns minutos, todos os dias, interagem
entre si, disputam brinquedos. Nesses momentos, há pouca
intervenção por parte das professoras que se envolvem em
organizar armários ou materiais.
Somente em três dias, dos onze observados, foi regis-
trada, após o momento da roda, a realização de atividades
de produção gráfica: uma colagem com papel picado para
compor um cartão para o Dia das Mães, um desenho em
papel ofício com giz de cera que seria utilizado para a con-
fecção de bandeirinhas das festas juninas; e uma atividade de
colorir um desenho já feito a ser entregue aos pais pelo seu

242
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

dia. Essas atividades, alusivas às datas comemorativas dos


meses observados, foram encaminhadas com as professoras
chamando duplas de crianças a cada vez para a realizarem,
enquanto as outras eram mantidas esperando nas cadeiras.
Nos demais dias, após brincarem por alguns minutos com
os brinquedos, as crianças eram chamadas para guardá-los
nas caixas e eram conduzidas ao banho que se realizava em
uma sequência de ações: organizar as cadeiras em semicírculo
em frente à porta do banheiro, pegar as mochilas, sentar as
crianças, levar cada uma ao banho, enxugar, vestir e pentear.
Quando todas as crianças estão “prontas”, as professoras as
encaminham, novamente, para sentarem nas cadeiras e verem,
na TV, vídeos como os já citados. Em seguida, as crianças são
conduzidas, na fila “trenzinho”, ao almoço. Após a oração
de agradecimento pelo alimento, o almoço é servido a todas
e as professoras oferecem ajuda a algumas que demonstram
necessitar.
Ao voltarem à sala, após o almoço, as crianças são, mais
uma vez, postas pelas professoras, em um semicírculo de
cadeiras já arrumado próximo ao banheiro de modo a ficarem
esperando a vez de, uma a uma, serem chamadas para a higie-
nização dos dentes. Quando todas concluem essa atividade, são
conduzidas à sala de repouso, que já foi previamente preparada
por uma das professoras. É hora de repousar-dormir. Para

243
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

isso, a professora ajuda as crianças a deitarem em colchões


dispostos no chão e se dividem intervindo para que todas
adormeçam ao mesmo tempo: acariciam as que demoram a
dormir; sussuram canções, põem “paninhos” sobre seus olhos,
põem no colo. Até que, em pouco tempo, todas dormem.
Não foram registradas, durante as manhãs de observa-
ção, atividades ao ar livre. Nos dias observados, as crianças
permaneceram todo o tempo no interior do espaço, na sala
ou no refeitório.
Durante o tempo do sono, acontece a troca de professo-
ras que se encontram e trocam informações rapidamente e,
enquanto as do turno da manhã se despedem e saem, as da
tarde preparam-se para assumir o grupo. No turno da tarde,
a rotina segue uma estrutura semelhante: após acordarem,
pouco a pouco as crianças vão saindo da sala de repouso e
se dirigem às professoras que, por sua vez, verificam as que
precisam trocar as fraldas, que são retiradas, dobradas e
entregues às próprias crianças para que as levem à lixeira do
banheiro. As crianças vão, aos poucos, sendo levadas à sala de
referência e ficam sentadas no chão com brinquedos enquanto
esperam que todas retornem para serem encaminhadas a
sentarem numa roda que, no turno da tarde, é realizada com
as crianças sentadas no chão e cantando cantigas de roda.

244
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

Por volta das 14h, as crianças são encaminhadas nova-


mente em fila para o lanche da tarde, no refeitório. Em um
dos dias, após o lanche, as crianças foram levadas ao pátio
para brincarem em um “pula-pula”, brinquedo ao qual têm
acesso, segundo informações de uma das professoras, uma vez
por semana. Enquanto umas pulam nesse brinquedo, outras
brincam com velocípedes providenciados pelas professoras.
Finalizado esse momento, as professoras levam as crianças
para a sala e já começam a organizá-las para o banho que
antecede o jantar e é a última atividade antes da espera pela
chegada dos pais, às 17h.
Destacamos que, durante as observações, foram raros os
momentos em que as professoras desenvolveram atividades de
leitura de história, embora haja, na sala, um acervo de livros
acessível a elas que, em diversos momentos, pegam os livros,
andam com eles pela sala, disputam-os com os colegas como
um outro material, mas não são sistematicamente mediadas
em relação a essa prática.
Do observado, ressalta-se que o “movimento” da turma
é “muito estável” e apresenta pouca diversificação, o que vai
de encontro ao que está disposto, tanto em teorizações sobre
a rotina na Educação Infantil (ZABALZA, 1998; BARBOSA,
2007, MOURA, 2012, entre outros) como nos documen-
tos oficiais destinados a orientar a organização de práticas

245
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

nessas instituições, tais como os Parâmetros de Qualidade da


Educação Infantil (BRASIL, 2006) e as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009) que
apontam a necessidade de rotinas estáveis, mas ricas e diver-
sificadas em suas experiências/atividades, como requisito
básico de um trabalho que vise propiciar o desenolvimento
das crianças. Como já registrou Moura (2012), a rotina é
necessária como estrutura do dia a dia de crianças e de pro-
fessores, assegurando que as atividades aconteçam, dada sua
preparação prévia, bem como uma relativa autonomia das
crianças, que podem antecipar momentos e orientar-se no
tempo e no espaço. Mas, ao mesmo tempo, pode também
trazer imobilidade e acomodação dos sujeitos que a viven-
ciam e, desse modo, empobrecimento de suas experiências e
possibilidades de aprendizagem, inclusive da linguagem oral,
cuja compreensão precisa ser objeto de discussão e fonte de
definição nas propostas e currículos.

A linguagem e seu desenvolvimento na criança

A linguagem pode ser compreendida de diferentes formas,


entre as quais Geraldi (1997) destaca: “expressão do pensa-
mento”; “instrumento de comunicação” e “forma interação”,
concepções que, segundo o autor, têm implicações nos modos

246
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

como se pensa sua função no psiquismo humano, sua apren-


dizagem e seu ensino. A primeira concebe a linguagem com
função de externalizar conteúdos já existentes no psiquismo.
A linguagem, portanto, materializa-se como ato monológico
e é regida pelas “leis” do pensamento, do qual é um reflexo. A
segunda concepção afirma a linguagem como código-sistema
de signos que é meio pelo qual se estabelece comunicação entre
o sujeito que fala, o emissor, e o sujeito que ouve, o receptor.
Para as duas concepções, a linguagem é uma faculdade inata
e o contexto não tem interferência em sua realização.
Na concepção de linguagem como forma de interação,
vinculada principalmente aos estudos interacionistas, mais
que uma coisa/instrumento, a linguagem é concebida como
ação que se realiza entre sujeitos interlocutores – interação
social – por meio da qual/na qual se produzem sentidos
que se materializam em textos. Fundado nas proposições
de Bakhtin, Geraldi (1997) afirma que a linguagem implica
uma espécie de jogo de interlocução, pois ao dirigir a fala
a outro sujeito, o falante já está estabelecendo uma relação
de trocas, visto que o sujeito a quem se dirige define o que
e como dizer. Linguagem é, portanto, troca, diálogo, ainda
que não harmônico, pois as ações de um sobre o outro não
são neutras, mas marcadas pelas posições que cada um ocupa
nas relações sociais e do valor que essas posições têm na

247
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

sociedade. Assim, nossa palavra sempre se direciona para


um determinado interlocutor, que tem papel essencial na
elaboração da palavra, pois é a partir dele/para ele que ela
se constitui. Ao mesmo tempo, pela palavra, podemos nos
distinguir do outro e de toda coletividade.
Mas, além de ação sobre o outro, a linguagem é, nessa
perspectiva, ação sobre si mesmo, visto que é pelo signo que é
possível internalizar significações do mundo e de si mesmo e
regular a própria ação, a vontade, a consciência. A palavra não
tem a função apenas de designar coisas ou fatos. Para Vigotski
(2007), a linguagem verbal assume funções comunicativas e de
generalização-categorização. Além de substituir-representar
um objeto, por exemplo, a palavra também introduz esse
objeto em sistemas complexos de relações, ou seja, torna
possível categorizar, generalizar e analisar determinada coisa,
ação ou relação. A palavra é, portanto, meio de comunicação
e instrumento do pensamento, de constituição do mundo
objetivo e subjetivo (VIGOTSKI, 2007).
É pelo signo, pelas significações, que o pensamento, os
modos de conhecer e de se perceber, de sentir e valorizar,
vão sendo tecidos nas tramas das relações sociais, marcadas
pelas contingências de classe, que regem as significações do
real produzidas pelos sujeitos e em meio às quais, com as

248
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

quais ele também é significado, constituído (LOPES, 1999;


LOPES; VIEIRA, 2012).
Dessa perspectiva, a linguagem é interação e o próprio
sujeito é essencialmente interativo, esta passa a ter um papel
fundamental na formação de seu desenvolvimento como
sujeito, de seu psiquismo, visto que sua consciência, sua sub-
jetividade, suas possibilidades de se relacionar com o mundo
social e consigo mesmo são constituídas pelos signos, pelas
significações, pela linguagem. Vigotski (1998) considera que
todas as funções especificamente humanas, como a atenção,
a memória, o raciocínio, a conceituação, a vontade, a cons-
ciência, são mediadas pela linguagem, pela atividade com
signos, pela apropriação e emprego do significado das palavras,
sendo esse elemento primordial no desenvolvimento de cada
indivíduo e, portanto, de cada criança.
Os estudos sobre como as crianças se apropriam da
linguagem situam-se, de modo mais estruturado, nos
campos da psicologia do desenvolvimento e da linguística.
Consideramos que nossas preocupações em relação a esse
processo que, segundo Bakhtin (1992), não pode ser concebido
como “aquisição” de algo que está “fora” do sujeito, mas,
como sua inserção em um movimento de ações e interações
simbólicas, são essencialmente de cunho pedagógico, pois
pensamos em como se aprende a linguagem e qual o papel que

249
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

instituições e sujeitos podem, com suas práticas pedagógicas,


e têm nesse processo. Portanto, nosso aporte teórico com
relação ao aprendizado e desenvolvimento da linguagem
situa-se nas abordagens da psicologia de caráter interacionista,
que concebem o desenvolvimento da criança – em todas as
suas dimensões – a uma interação entre fatores orgânicos
e socioculturais. Compreendemos, a partir das teorizações
de Vigotski (1999, 2008) e de Wallon (apud GALVÃO, 1995),
que o desenvolvimento de todas as funções psicológicas da
criança resulta de interações entre esta enquanto sujeito e o
meio sociocultural em que vive.
Para Vigotski (1998), tudo que é específico do ser humano,
origina-se em função da sua vida em sociedade. O indivíduo
já nasce num mundo repleto de objetos e significados que são
deixados pelas gerações anteriores. Desse modo, é a partir
das relações sociais que a criança se apropria dos produtos
culturais do seu meio e desenvolve sua linguagem.
Dessa perspectiva, a linguagem oral, como todas as outras
funções psíquicas propriamente humanas, não é inata ao ser
humano, sua emergência se dá nas relações sociais, como
inserção e apropriação das significações culturais compar-
tilhadas nas relações entre pessoas que, gradativamente,
por um processo de internalização, de conversão de funções
intermentais em funções intramentais, mediado pelo outro

250
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

e pelo signo, são apropriadas e se transformam em funções


individuais, em modos próprios, singulares, de cada um
(VYGOTSKI, 1998).
Dessa forma, como afirma Pino (2005), mesmo que nosso
organismo possua aparatos biológicos para desenvolver-se,
sem a presença de um outro (do meio social e da cultura) e
dos signos, não há como esse desenvolvimento acontecer. É
no encontro e no diálogo com os sujeitos que nos apropriamos
do nosso contexto e, consequentemente, de nós mesmos.
No plano do indivíduo, da ontogênese, segundo Luria
(1986), a linguagem oral se desenvolve a partir do momento
em que a criança começa a assimilar/perceber a fala/voz do
adulto e, progressivamente, a emitir palavras que se referem
a estas comunicações. “As primeiras palavras da criança,
diferente dos seus primeiros sons, não expressam seus estados,
mas sim estão dirigidas ao objeto e o designam” (LURIA,
1986, p. 30). Mesmo que, a princípio, a emissão da palavra/
som pela criança tenha um caráter simpráxico, vinculada à
situação imediata, às práxis humanas – ao contexto, às ações,
à entonação, aos gestos e movimentos – na próxima etapa de
desenvolvimento, esta palavra vai se desprendendo das ações
práticas e ganhando independência, ou seja, a palavra vai se
convertendo em signo para a criança.

251
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Ao nascer, a fala, ou sons emitidos pelo bebê são mani-


festações desarticuladas do pensamento, é o que Vigotski
(2007) chama de fala pré-intelectual, mas isso não significa
dizer que a criança não “pensa”, mas esse pensamento ainda
é pré-verbal, ou seja, não há nenhuma relação entre ele e a
palavra. É somente com o tempo e, por meio da interação e
mediação que estabelece com outras pessoas mais experien-
tes do seu convívio, que essas duas linhas que têm origens
diferentes vão se cruzarem e o pensamento se torna verbal e
a fala intelectual. Para que haja significação na comunicação
entre os sujeitos, faz-se necessário que os significados das
coisas sejam comuns aos envolvidos.
Sobre isso, Vigotski (2007, p. 5) nos diz que “[...] é no
significado da palavra que pensamento e fala se unem em
pensamento verbal”. Assim, não podemos tratar pensamento
e fala como aspectos isolados ou independentes, pois não há
como separar o som do seu significado. A palavra é, dessa
forma, uma generalização, pois não se refere apenas a um
objeto, antes, refere-se a um grupo ou classe de objetos. Tendo
em vista que uma palavra não é neutra, ao pronunciarmos uma
palavra, somos imediatamente, remetidos ao seu significado,
ou, a sua generalização. O significado da palavra é, nesse
sentido, uma ação do pensamento. Pensamento e fala, estão,
assim, inter-relacionados.

252
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

Segundo os estudos de Luria (1986, p. 30), “o início da


verdadeira linguagem da criança e a aparição da primeira
palavra, que é o elemento desta linguagem, está sempre ligado
à ação da criança no meio social e à sua comunicação com os
adultos”. Desse modo, as primeiras palavras das crianças têm
um caráter simpráxico, ou seja, estão relacionados com suas
ações, expressão de estado, sem, contudo, haver, realmente,
uma designação dos objetos. “Um tempo depois da aparição
dessas primeiras palavras difusas, elementares, simpráxicas
(aproximadamente aos 1,6 – 1,8 ano), a criança começa a
adquirir a morfologia elementar da palavra” (LURIA, 1986,
p. 31).
Para isso, é essencial a inserção da criança em relações
de comunicação, de uso e produção de linguagem, pois “a
transmissão racional e intencional de experiência e pensa-
mento a outros requer um sistema mediador, cujo protótipo
é a fala humana, oriunda da necessidade de intercâmbio”
(VIGOTSKI, 2007, p. 7). Para que haja, de fato, um diálogo,
é preciso uma significação, uma generalização, sendo neces-
sário, portanto, que na relação com os bebês e crianças bem
pequenas haja uma preocupação dos adultos com respeito ao
pensamento e palavras usadas durante o diálogo com elas,
pois mesmo que eles estejam familiarizados com algumas

253
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

palavras, pode ser que o conceito generalizante ainda lhes


seja ausente (VIGOTSKI, 2007).
Nessa perspectiva, entendemos que a criança é inserida,
desde o momento que nasce, em um ambiente repleto de
objetos e fenômenos sociais, os quais precisam ser incorpo-
rados por ela para que possam se relacionar com os sujeitos,
bem como participar das atividades e práticas culturais de
sua sociedade. É nas relações sociais que as crianças vão
construindo sua forma de ser e de atuar sobre o mundo em
que vive.
Nesse processo de aprendizagem e desenvolvimento
da linguagem, destacamos que a imitação ocupa um papel
essencial, tendo em vista que, no plano do “faz de conta”, as
crianças usam objetos e falas de uma maneira muito singular.
Elas atribuem ao que vivenciam no dia a dia com outras
pessoas um significado diferenciado. Ao imitar, ela não está
simplesmente copiando tal qual como ver algo acontecendo,
mas transforma a “cena”, configurando-a conforme a situação
imaginária que deseja.
O contexto social e cultural onde a criança cresce é respon-
sável por seu desenvolvimento, processo que, segundo Vigotski
(1998), é impulsionado pela aprendizagem, não se confundido
com ela, mas sendo por ela constituído, mediante as expe-
riências de vida em sociedade, nas instituições organizadas

254
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

socialmente e nas relações, nas experimentações que lhes são


propiciadas nesses contextos, das quais ela também participa,
não apenas ativamente, mas, interativamente. Nesse processo,
não é apenas a criança que está aprendendo, mas também
seus pares estão aprendendo com elas. As crianças aprendem
e ensinam nas vivências diárias.
O(s) outro(s) com quem a criança tem mais convívio se
torna(m) responsável (eis) na constituição de suas apren-
dizagens e, consequentemente, de seu desenvolvimento. É
nas relações dialógicas com esse(s) outro(s) que a criança
vai ouvindo e reconhecendo seu próprio nome, também vai
ouvindo a denominação de partes de seu corpo, de emoções e
estados internos relacionados a ela e com isso vai, aos poucos,
apropriando-se do significado que tais palavras produzem
em determinadas situações.
A linguagem desenvolve-se na criança de maneiras espe-
cíficas. As crianças são sujeitos singulares e, por isso, cada
uma tem uma experiência diferente nesse desenvolvimento.
Elas se apropriam dessa linguagem de forma particular e
isso depende muito do grupo familiar e social do qual fazem
parte. Contudo, ela não absorve o que este outro lhe apre-
senta, pelo contrário, ela também regula/conduz o diálogo a
partir de suas ações, bem como no modo que pronuncia suas

255
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

primeiras palavras. São as interações e situações imediatas


que produzem a linguagem.
Considerando, portanto, essas premissas, destaca-se o
papel dos contextos de vida e de interação em que as crianças
são inseridas desde o início de suas vidas e, portanto, o papel
das instituições de Educação Infantil, dos professores e de
suas práticas junto às crianças, como criação de condições
para seu desenvolvimento integral como pessoas.

A linguagem na turma observada –


possibilidades e limites das situações

Ao buscar identificar “marcas do humano” no processo


inicial de desenvolvimento de crianças nos primeiros meses
de vida, Pino (2005) aponta que existem “indicadores”
desse processo que são como formas de expressão externa
de processos que se encontram em vias de internalização
mediante o movimento de interações externo-interno: o choro,
o movimento, o olhar e o sorriso. Para o autor, a partir desses
indicadores, é possível apreender como o sujeito-criança
está integrando e processando o que apreende do ambiente
externo, quando ainda não dispõe da fala. Em suas pala-
vras, essas manifestações são indicadoras da conversão do
biológico em cultural por intermédio da mediação do(s)

256
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

outro(s) e corrobora as proposições de Vigotski, afirmando


que embora essas funções tenham, em sua origem, uma base
biológica, é nas relações sociais, mediadas pelos outros e pela
linguagem – pela significação – que vão se constituindo em
práticas culturais e propriamente humanas. Ele nos lembra de
que é o adulto quem significa – dá significado e sentido – ao
choro, aos movimentos, aos olhares-expressões, ao sorriso,
interpretando-os e respondendo, reagindo conforme suas
próprias experiências sociais e culturais.
Assim, nas interações, constituem uma “linguagem” inicial
que precede a emergência da linguagem oral propriamente
dita, como elementos que compõem o significado e o sentido
das falas das crianças – e dos outros com quem interagem – e
ainda permanecem e evoluem, constituindo “outras lingua-
gens” – as expressões, os movimentos e gestos, o sorriso, o
olhar, pelas quais também “dizem”, comunicam e interagem.
Mas, para que seus dizeres, ou tentativas de dizer assumam
essa função, precisam ser “captados”, interpretados, respondi-
dos, expandidos pelos outros que a cercam. Com base nesses
fundamentos e, mediante a análise de nossos registros, tanto
em vídeo, como em diário de campo, agrupamos os indícios
em eixos ou categorias que nos possibilitam responder à
nossa questão.

257
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

De partida, consideramos que na dinâmica da turma


observada, nas interações que são mantidas entre professoras
e crianças em torno das atividades, há muito pouco investi-
mento na linguagem oral, concebida como atividade simbólica
e constitutiva do psiquismo humano, como interação social,
ação de uns sobre outros, como produção de sentidos, de
efeitos de uns sobre outros, e não apenas, embora também
o seja, meio de expressão e comunicação (GERALDI, 1996;
FONTANA, 2000; LOPES, 2011). As manifestações verbais
das professoras são pouco diversificadas, na verdade, são
muito repetitivas na rotina diária, como pudemos registrar
nos momentos sucessivos de observação e registro.
Mediante a análise dos registros das situações em que
percebemos produção de linguagem das crianças – de sua
aprendizagem e desenvolvimento –, destacamos:
1. Situações desencadeadas pelas próprias crianças
1.1 Eventos entre as próprias crianças
1.2 Eventos entre as crianças e as professoras
2. Situações propiciadas pelas professoras
2.1 Eventos integrantes da rotina - Momento da
Roda

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1. Situações desencadeadas pelas próprias crianças

Ao analisarmos situações de emergência-produção de


linguagem desencadeadas pelas próprias crianças, tanto entre
elas, como com as professoras, consideramos que as crianças
são sujeitos não apenas dependentes e incapazes, mas compe-
tentes e produtores de cultura, como nos apontam Vigotski
(1998, 2007) e também Sarmento (2007) e participam, ativa-
mente, da criação de situações de interação e experimentação
de materiais, ações e relações, como pudemos verificar nas
situações observadas.

1.1 Eventos entre as próprias crianças –


quando elas “falam” de diversos modos

Sarmento (2007, p. 33) afirma que “[...] a infância não


é a idade da não fala: todas as crianças, desde bebês, têm
múltiplas linguagens (gestuais, corporais, plásticas e verbais)
porque se expressam”.

Algumas crianças estão deitadas no chão da sala. Jul (mas,


22 meses) se aproxima de Nay (fem, 29 meses) que está
sentada no chão. Jul deita-se de bruços e Nay começa a
niná-lo balançando o bumbum dele por muitas vezes. Ele
aceita entrar na “brincadeira” e participa sem recusa. Nay

259
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

ainda olha a fralda dele como se procurasse saber se ele


estava com cocô! (Diário de campo).

Em um determinado momento da roda, Val (fem, 22 meses)


está observando a fala da professora. Um de seus colegas
Mat (masc, 20 meses) está desinteressado e começa a tocar
nela, como se quisesse provocá-la. Ela mostra-se inco-
modada e responde às provocações de Mat com tapinhas
e gesticula com a boca algo que não é audível, mas, sua
expressão facial demonstra que está chateada (Registro a
partir de videogravação).

No primeiro episódio, ficam claras a importância e a


possibilidade de interação entre as crianças, que conseguem
escapar das linhas definidas pela rotina e inventam, com
base no que vivenciam, modos de agir com os outros, visto
que uma das crianças imita as ações realizadas diariamente
pelas professoras durante o momento do repouso e acabam,
a partir disso, estabelecendo uma brincadeira, mediante a
qual podem dizer algo uma a outra, por exemplo, que estão
“cuidando” dela, colocando-se no papel de professora. Essa
situação nos lembra do papel conferido por Vygotsi (1998) em
relação à imitação e à brincadeira de faz de conta que, segundo
o autor, é uma atividade fundamental no desenvolvimento
das funções psicológicas, pois possibilita à criança agir em
nível superior ao que consegue no real e por meio da qual

260
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

ela vai internalizando as ações. Nessa perspectiva, Carvalho,


Pedrosa e Rosseti-Ferreira (2012) se pronunciam:

A imitação é um componente fundamental desses processos


interacionais. Ao imitar, é como se criança dissesse: “Estou
gostando disso...” Por sua vez, o parceiro recebe o recado e
prolonga a imitação, imitando a criança... (CARVALHO;
PEDROSA; ROSSETI-FERREIRA, 2012, p. 30).

Como afirmam as autoras, a imitação, no caso citado, é


quase um jogo de faz de conta, é um modo de dizer, ou seja,
uma linguagem que cria condições para a emergência da
linguagem oral.
No segundo episódio, percebemos que Mat (masc., 20
meses), que está ao lado de Val e que por parecer não estar
envolvido com a situação oferecida no coletivo, tenta desen-
volver outro tipo de atividade com Val (fem., 22 meses), que
é a colega mais próxima nessa ocasião. Mas, a resposta de
Val à tentativa de Mat é de desagrado. Ela não quer “falar”
com ele e demonstra/diz isso, tanto pelos movimentos de
bater, empurrar, como por meio de palavras de negação que,
embora não audíveis, podem ser interpretadas pelas expressões
faciais, pela “cara feia”.
Como aponta Luria (1996), as primeiras palavras das crian-
ças têm seus significados e sentidos compostos e interpretados

261
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

também por meio da relação com o contexto em que são


pronunciadas/ouvidas, da entonação, das expressões faciais,
dos gestos e movimentos que as acompanham.
As crianças encontram meios próprios de estabelecer
trocas e diálogos entre si e estes podem ser desencadeados
pelos mais diversos motivos, como o não interesse no que
está sendo vivenciado, o que desvia a atenção para outro foco,
que pode ser o que está mais próximo. E reagem, dentro de
suas possibilidades, às propostas dos adultos, principalmente,
quando estas não lhes captam o interesse, a curiosidade. É
o que vemos no exemplo quando Mat busca outro entrete-
nimento diferente do proposto pela professora Esmeralda.
Como afirmam Vigotski (2007) e Luria (1986), o desen-
volvimento da linguagem da criança começa muito antes das
primeiras palavras pronunciadas. Começa desde que ela, ainda
bebê, começa a “reagir” à voz humana, diferenciando-as de
outros sons, e evolui em articulação com outras manifestações,
como os gestos e o sorriso. Sua emergência, portanto, está
no encontro entre parceiros – adultos e/ou outras crianças.
“A fala emerge em um cenário que se apoia no corpo e no
movimento” (CARVALHO, PEDROSA; ROSSETI-FERREIRA
2012, p. 31). É o que podemos observar no episódio a seguir:

262
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

Ped (masc. 25 meses) observa Eri (masc., 31 meses) que


acabou de tomar um objeto que estava em suas mãos, mas
parece não se incomodar com o fato e sai pela sala como
que à procura de outra coisa, até que encontra Dan (masc.,
27 meses) girando no ar um brinquedo feito de lata de leite
e tenta tomá-lo para si. Dan rapidamente puxa o brinquedo
e sai correndo para o outro lado da sala. Ped sai novamente
em busca de algo, observa um pouco a movimentação e
vê Lau (fem., 22 meses) próxima à mesa. Ped chega perto
dela e a abraça. Ela sorri para ele e ele torna a abraçá-la.
Ela se afasta, sai caminhando com os livros que tem nas
mãos e Ped a acompanha sorridente. Lau não mais lhe dá
atenção e ele sai novamente a caminhar pela sala (Registro
a partir de videogravação).

Percebemos que apesar de Ped não pronunciar nenhuma


palavra ou qualquer balbucio, revela, com suas ações, o que
deseja. Ele está explorando o ambiente, o que por vezes não
tem tanta liberdade de assim fazer e, ao mesmo tempo, parece
buscar uma interação. No momento que é correspondido ao
abraçar Lau, mostra satisfação ao sorrir.

Lau (fem., 22 meses) entra na sala após o banho e logo corre


para um grupo de crianças que está fazendo uma movi-
mentação, envolvidas com coisas diversas do ambiente.
Ela pega para si uns livros que estão em cima da mesa.
Olha mais para a frente e vê uma mochila-carrinho de
alguma criança, vai até lá e a levanta pela alça. Ao levantar

263
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

e movimentar a mochila ela faz um barulho “bruuuu” e


depois diz: “a naane” (Registro a partir de videogravação).

Lau, que no início das observações era muito quieta e


silenciosa, mostra avanços, ainda que tímidos, no desenvolvi-
mento da linguagem. Ao pegar a mochila e fazer movimentos
com ela, emite sons de um carro – a onomatopeia junta-se ao
movimento e produz um significado novo: a mochila vira um
carro. Ao mesmo tempo, permanece sendo mochila, o que é
evidenciado quando Lau, ao olhar a mochila, a reconhece e
fala, de forma compreensível, o nome da criança a quem esta
pertence. As verbalizações ajudam a compor o significado
das coisas.

Após o momento de atividade com brinquedos no chão,


a professora fala que eles ajudem a guardar as peças de
montar. Val (fem., 17 meses) vai para debaixo de uma das
mesas e, ao sair, com algumas pecinhas na mão, diz: “assô”!
(achou?). Ninguém lhe responde. (Diário de Campo).

A situação é flagrante de produção de linguagem oral


contextualizada, de movimento de apropriação das palavras,
no caso, a palavra “achou”, que é enunciada com expressão
e entonação que expressam sua apropriação de acordo com
seu significado social. Embora a criança não elabore uma
frase completa, sua única palavra representa o que Piaget
(2011) chamou de palavras-frase, indicativas de apropriação

264
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

da linguagem pela criança pois, ainda que seja apenas um


vocábulo, equivalem-podem ser interpretadas como uma sen-
tença inteira, em função do contexto, de gestos, movimentos,
expressões e entonações.
Compreendemos que essas manifestações iniciais podem
ser ampliadas quando há adultos atentos e preocupados em
auxiliar as crianças a avançar em suas produções e aprendi-
zagens, interagindo com elas, interpretando, fazendo ques-
tionamentos, elogiando, complementando suas tentativas
de pronunciar palavras, o que faria com que esses eventos
pudessem despertar ainda mais possibilidades de interações
e de aprendizagens, pois,

O outro é lugar da busca de sentido, mas também, simul-


taneamente, da incompletude e da provisoriedade. Esta
perspectiva apresenta a condição de inacabamento per-
manente do sujeito, o vir – a – ser da condição do homem
no mundo [...] (JOBIM; SOUZA, 2011, p. 35).

Somos, nesse sentido, sempre reconfigurados, interpre-


tados pelo olhar de um “outro”, que é alheio a nós. Ele nos
vê de um jeito que nós próprios não podemos ver. Assim, é
nos espaços de trocas sociais que vamos nos constituindo.
É a partir do compartilhamento de significações culturais
que somos inseridos no ambiente social e passamos a nos
compreender como sujeitos desse contexto. As interações

265
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

podem ser enriquecidas e tornarem-se mais potencializadoras


de aprendizagens e de desenvolvimento da linguagem quando,
intencionalmente, os sujeitos mais experientes, no caso, os
adultos-professores assumem esse papel e fazem intervenções
mais significativas e sistemáticas, o que observamos que falta,
em diversas situações registradas no campo investigado,
quando as crianças estão buscando interagir umas com as
outras.

1.2 Eventos entre as crianças e as professoras –


quando as crianças buscam envolver os adultos

Ant (masc., 27 meses) pega uma pequena bola feita com


papel que se encontrava no chão da sala. Assim que Jul
(masc., 21 meses) o percebe tenta, de imediato, puxar a
bola da mão dele. Começa uma disputa entre os dois. Jul
consegue tomar a bola e se afasta correndo. Ant chora e
olha na direção do banheiro, onde estão as professoras. A
Professora Titular percebe seu choro e seu olhar e pergunta:
“o que foi?” Em resposta, ele aponta para o local onde Jul
está. (Registro a partir de videogravação).

O episódio mostra situações de interações entre as


crianças e a tentativa de uma delas de envolver a professora
na relação, pedindo sua ajuda. Na disputa, o choro de Ant
(masc. 27 meses), pareceu-nos uma tentativa de expressão

266
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

de descontentamento e de comunicação, de pedido de ajuda,


juntamente com o seu olhar na direção das professoras. Além
disso, ele também fez uso do gesto de apontar para melhor
dizer o que queria quando questionado pela professora sobre
o que estava acontecendo. O olhar também é um elemento
de destaque nessas interações. Os olhares delas nos dizem
(podem nos dizer, desde que estejamos atentos e dispostos a
interpretá-los e respondê-los) muito, permitindo que possamos
interagir verdadeiramente, não apenas estarmos no mesmo
ambiente. A esse respeito, Ramos (2012), nos diz que:

Apesar de ainda não ter estruturado a fala, a criança


expressa seus interesses e motivações através de seus
recursos motores, vocais, da expressividade de sua fisio-
nomia, de seus movimentos e no fluxo de um conjunto de
informações que ela captura, principalmente, do parceiro
[...]. (RAMOS, 2012, p. 44).

Poderíamos pensar que a criança “fala” o tempo todo


por ela mesma. Mas, com base no que nos diz M. Bakhtin
(1992), a “fala” não é um evento monológico, individual. A
linguagem, a palavra é sempre dialógica, envolve sempre outro
a quem dirigimos nosso dizer e que nos mobiliza a enunciar
as palavras. Por isso que o autor considera a linguagem como
interação, uma ação entre pessoas.

267
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Man (fem., 20 meses) dirige-se para uma das professoras


auxiliares e faz gestos que são interpretados pela professora
como o desejo de ter sua chupeta. A professora pergunta:
“a chupeta”? “Onde está a chupeta”? Man aponta para
sua mochila e a professora vai buscar para ela (Diário
de campo).

Nesse episódio, fica evidente a relevância da atenção e


interpretação do sujeito mais experiente às ações da criança.
Nesse caso, a criança manifesta suas necessidades e desejos por
meio de gesticulações. A linguagem oral emerge nas interações
entre crianças e crianças, crianças e professoras, entremeada
com “outras linguagens”, mas, suas manifestações só se tor-
nam “linguagem” quando são interpretadas-respondidas por
outros. Consideramos que a professora envolvida no episódio
poderia enriquecer o momento, ampliando a verbalização,
dizendo verbalmente o que Man disse em gestos e também o
que vai fazer, envolvendo mais a criança na linguagem oral.
Mas, isso não acontece, a professora limita-se a interpretar
e atender à criança.

Lau (fem., 19 meses) puxa a bolsa de uma das professoras


que se encontra na parte superior de uma bancada da
sala. Ela puxa e olha para as professoras, como a suscitar
uma reação de aceitação ou negação. A professora a vê e a
repreende, falando: “não puxe, a bolsa pode cair em você”.
Lau demonstra entender a fala da professora balançando a

268
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

cabeça como sinal de não e sai para outro local. Mas, logo
em seguida, torna a repetir a cena, como se para manter
a interação. (Diário de campo).

As situações em que as professoras se dirigem às crianças


para contê-las ou repreendê-las em seus movimentos são
comuns. Embora compreensíveis, pois denotam cuidado,
como no caso registrado, tais manifestações são em maior
número que outras que apresentam um caráter de positividade.
Chama atenção, no episódio, a demonstração de “entendi-
mento”, pela criança, da fala da professora, o que certamente
deve-se ao contexto, à entonação, à expressão da professora,
bem como a experiências anteriores. Por outro lado, a criança
retorna e passa a repetir, demonstrando, igualmente, que o
“entendimento” é temporário e que a atenção dispensada pela
professora ao dirigir-se a ela é, por sua vez, algo a ser buscado
novamente. Como todas as aprendizagens, a da linguagem
oral está entremeada por questões afetivas, dada a inteireza da
criança como sujeito (ZABALZA, 2002), o que se manifesta
em todos os eventos.

Após brincar no “pula-pula”, Let (fem., 22 meses) começa


a chorar. Após alguns instantes, a Professora que está
próxima pergunta-lhe: o que foi? Let diz: vovó. A Professora
responde: “De cinco horas sua avó chega, Let”. (Diário
de campo).

269
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Nesse evento, chamou nossa atenção, tanto a resposta


verbal da criança, informando, novamente com uma “pala-
vra-frase” (vovó) o motivo do seu choro, como a resposta
da professora, considerando-se as necessidades específicas
infantis de atenção, aconchego, afeto, segurança, o que pode
refletir-se em respostas adequadas às suas solicitações em
determinadas situações. A fala da professora, embora tenha
a afirmação necessária para ajudar a criança a recuperar sua
segurança, seu bem-estar – “sua avó vai chegar” – a referên-
cia à hora, sem outros indícios compreensíveis à criança,
pareceu-nos indicar falta de envolvimento com a criança e
de respeito às necessidades infantis.
Os episódios trazidos mostram que as crianças conse-
guem instaurar eventos de interação, de linguagem, mas que
estes dependem dos professores para serem enriquecidos e
ampliados.

2. Situações de emergência-produção de
linguagem propiciadas pelas professoras

A partir das concepções da abordagem histórico-cultural,


o professor tem um papel primordial na apropriação, pela
criança, das práticas da cultura, de conhecimentos que são
essenciais ao seu desenvolvimento; ele é um dos mediadores

270
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

principais desse processo, por seu papel de organizador da


prática pedagógica que envolve as atividades, as experiências
através das quais cada criança vai desenvolvendo suas funções
psíquicas. O professor, com suas ações, mediadas pela lin-
guagem, ajuda as crianças a compreenderem seu significado
e a atribuírem sentido às coisas, pessoas e situações que as
rodeiam, inclusive a si mesmas.
Nosso estudo possibilitou perceber que, tanto pela pre-
sença, como pela ausência, esse papel é fundamental para
que a linguagem, entre outros conhecimentos, possa ser
experimentada pela criança, para que ela possa como nos
diz Bakhtin (1992) não “adquirir” a linguagem como algo
que está pronto e fora dela, mas, penetrar no mundo da lin-
guagem, da produção de sentidos, o que é propiciado quando
se considera a criança como sujeito que ouve, fala e age pela
linguagem. No CMEI, identificamos alguns eventos iniciados
pelas professoras em que a linguagem se torna objeto de
produção e de aprendizagem pelas crianças, ainda que em
situações não tão diversificadas e ricas em possibilidades.
Como afirmamos ao descrevermos a dinâmica do ber-
çário, as atividades diárias são muito pouco diversificadas
e as atividades desenvolvidas estão estruturadas dentro dos
momentos da rotina. Foi, portanto, nesses momentos, que

271
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

identificamos alguns eventos que envolviam a linguagem


de modo mais específico, como passamos a discutir agora.

2.1 Situações de produção de linguagem pelas crianças


nos diversos momentos da rotina - Momento da Roda

[...] A Professora Titular começa a convidar as crianças


para fazerem a rodinha inicial. Ela organiza as cadeiras
em círculo (pela manhã é sempre dessa forma) e algumas
crianças vão sentando sozinhas, enquanto outras vão
sendo colocadas por ela nas cadeiras. A Professora fala
para as crianças: “o dia está com sol” e começa a cantar
a música “Bom dia”. A professora diz: “Bom dia” seguido
do nome de cada criança. Terminada essa canção, canta
outras. As crianças acompanham com pequenos movi-
mentos, expressões faciais, pronúncia de algumas partes
de palavras. Algumas crianças (Lau e Val), através de
gestos e repetições de partes de palavras tentam chamar a
atenção da Professora e “dizer” qual a música que querem
cantar na roda. Val (fem, 22 meses) faz, repetidas vezes,
um movimento tocando com o dedo indicador na palma
da mão. A Professora olha para ela e diz: Ah, a música do
pintinho amarelinho!? Lau (fem, 22 meses) começa a movi-
mentar-se abrindo e fechando os braços. A Professora olha
para ela e diz: Ah, a música do “puxa-puxa”!? A Professora
começa a cantar as duas músicas, uma seguida da outra.
As crianças ficam animadas e acompanham com os movi-
mentos repetidos, com movimentos dos lábios e emissão

272
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

de sons de partes finais das palavras que compõem a letra


da canção. (Diário de campo).

No momento da roda, a atividade mais presente, todos os


dias, é o encaminhamento de canções infantis. Quase sempre,
com exceção de poucas ocasiões observadas, o momento da
roda resume-se às cantigas. Como no episódio, as questões
feitas pelas professoras às crianças, ou mesmo as afirmações
(“o dia está com sol”) não são exploradas com mais detalhes,
ficam soltas; são apenas para “introduzir” a canção que ela
cantará; não são perguntas verdadeiras dirigidas a nenhuma
criança em particular, nem ao grupo, no sentido de introdu-
zi-las em um diálogo, mesmo dentro de suas limitações. Por
outro lado, mesmo dentro desses limites, a partir da iniciativa
da professora, cria-se a possibilidade de as crianças partici-
parem ativamente da atividade tentando “dizer”, com gestos,
que canções querem cantar. A professora, por sua vez, embora
não explore de modo mais rico, respeita as manifestações das
crianças, as interpreta e verbaliza o que elas só conseguem
dizer, nesse momento, por gestos. Desse modo, ela assume seu
papel de mediadora e amplia as possibilidades das crianças.

É início da manhã. Na sala está apenas a Professora Titular.


As Professoras Auxiliares estão na cozinha tomando o
café da manhã. A Professora, como de costume, forma
um círculo com as cadeirinhas e senta todas as crianças

273
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

(pegando cada uma, sem falar) para começar o momento


da roda. Feito isso, pergunta e afirma, ao mesmo tempo,
às crianças: “vamos cantar a da piaba, vamos?!” E começa
a cantar. As crianças, apesar de não cantarem com
vocalizações audíveis, participam, cada uma de uma forma
diferente, quase todas com movimentos ou olhares. Val
(fem., 22 meses) está sentada de frente para a Professora.
Essa posição permite que ela olhe bem para as expressões
da professora e atenda, com movimentos, aos “comandos”
da professora quando esta pede, por exemplo, para “colocar
a mão na cabeça” (conforme o que vai dizendo a música).

Ao concluir a música “da piaba”, a Professora pergunta:


“cadê a borboleta?”. Val (fem., 22 meses) logo olha para trás
e aponta para umas borboletas decorativas que há na sala.
A Professora começa a cantar a música “da borboletinha”.
Val acompanha a canção com movimentos dos lábios e
também repetindo as gesticulações que a professora faz,
antecipando, inclusive, alguns movimentos da canção, pois
antes mesmo da professora cantar a parte “perna de pau”,
ela já levanta a perna. (Registro a partir de videogravação).

O episódio confirma o que já comentamos anteriormente.


O momento da roda consiste, quase em sua totalidade, em
tempo de cantar canções. Reconhecemos a importância dessa
atividade enquanto prática cultural altamente significativa,
por suas diversas dimensões cognitiva, linguística, lúdica,
artística, corporal, bem como afetiva, pois envolve as tradições
culturais, e ainda linguísticas, visto que abrangem palavras

274
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

e seus significados, sua composição sonora, as rimas, e tam-


bém os temas das canções e suas relações com o mundo das
crianças, com as tradições culturais. Mas, entendemos que
esse momento poderia transformar-se em tempo de experi-
mentação, pelas crianças, de uma linguagem enriquecida,
proposta por Zabalza (1998).
Ao mesmo tempo, percebemos que, por meio de sua
inserção na atividade de cantar, junto com a professora, as
crianças participam das relações estabelecidas [...] por meio
de seu olhar, suas vocalizações, seus gestos e expressões, aos
quais o ambiente social responde e que, por intermédio dessas
respostas, diferenciam-se em comportamentos culturalmente
ajustados (CARVALHO, 2012, p. 30). Como vemos, na roda,
as crianças vão aprendendo a ajustar seus comportamentos
ao que lhes é proposto e solicitado na “cultura do CMEI, da
turma”. Esses eventos, muito simples, demonstram, também,
a possibilidade de propiciar às crianças situações em que
possam experimentar a linguagem oral, seja produzindo
ativamente, enunciando, falando, seja compreendendo o que
outro diz, pergunta, em situações significativas.
Esse conjunto de eventos registrado no CMEI nos mostra,
ao mesmo tempo, limites e possibilidades da emergência da
linguagem de bebês no berçário, intimamente relacionada
às condições de mediação, à participação dos outros, com

275
A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

destaque para o papel do professor, inclusive para criar situ-


ações em que as crianças possam aprender com as interações
com outras crianças.
Acreditamos que o ambiente social é, sim, responsável
pelo desenvolvimento motor, cognitivo, emocional e sim-
bólico-linguístico da criança, no qual o adulto é o outro, o
mediador entre essa criança e a cultura da qual ela faz parte.
Portanto, sendo o contexto da Educação Infantil espaço em
que muitas crianças vivem parte importante de suas vidas,
são os professores os sujeitos mais experientes e responsá-
veis por propiciarem situações diárias que favoreçam esse
desenvolvimento.

276
Wanessa Rafaela do Nascimento da Costa
Denise Maria de Carvalho Lopes

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281
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM
ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS
ANOS DE VIDA:
o papel do outro mais experiente
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

Introdução

É fácil observar que a criança, ao chegar ao mundo, é imersa


em universos de sons, de gestos, de imagens, de expressões
e significados construídos historicamente que antecedem
a sua existência. Assim, desde muito pequena, ela escuta,
observa e imita gestos e conjuntos de sons, buscando dar
sentido ao mundo e à comunicação, com os membros do
grupo com quem convive. Desse modo, é na interação com
o outro, atravessada pela cultura, que a criança se apropria

282
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

gradativamente da linguagem e amplia as suas capacidades


discursivas.
Sendo assim, este capítulo tem como objetivo analisar um
conjunto de interações de uma criança com seus familiares,
evidenciando alguns aspectos da apropriação da linguagem
oral nos três primeiros anos de vida e o papel do outro mais
experiente. Apesar de o foco ser uma criança, ao longo da
construção das informações, inserimos três interações com
outras duas crianças, na faixa etária correspondente ao estudo.
Fizemos essa inserção por considerarmos que os dados que
construímos com a primeira criança não contemplavam aspec-
tos observados nas interações com as outras duas crianças.
Nosso referencial teórico está ancorado em autores como
Bakhtin (1997, 2006), Bruner (1986, 1997) e Vygotsky (1998,
2008), por meio do qual descrevemos a concepção de lin-
guagem adotada neste capítulo. Com este referencial teórico
também abordamos o desenvolvimento da linguagem na
filogenia e dialogamos com os nossos dados empíricos, carac-
terizando aspectos da apropriação da linguagem na ontogenia.

283
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

1. Concepção dialógica da linguagem

A necessidade de interação, oriunda da natureza social


da nossa espécie, faz com que a linguagem esteja presente
desde os primórdios da humanidade, constituindo-se como
mecanismo imprescindível nas práticas, com vista ao inter-
câmbio social. Segundo Harari (2015), essa capacidade do
homem de se comunicar com seus semelhantes por meio de
movimentos, gestos e sons, pode ter garantido a cooperação,
reprodução, sobrevivência e, por conseguinte, a expansão do
homo sapiens pelos continentes.
Todos os animais têm alguma forma de linguagem. Os
chimpanzés, por exemplo, possuem uma linguagem própria
muito rica, mas literalmente arraigada aos fatores emocionais,
de sobrevivência e de reprodução (VYGOTSKY, 2008, p. 49)
e, portanto, caracterizada não por fatores racionais. Portanto,
existe uma grande diferença entre a linguagem empregada
pelos animais e a linguagem usada pelos animais da espécie
humana.
Com efeito, tal distinção reside na função semiótica da
linguagem humana. Tal função diz respeito ao fato de que
com a linguagem conseguimos designar objetos, fatos, ações,
como também, representar, demonstrar e generalizar o mundo
físico, social e emocional. Em contrapartida, os gestos e os

284
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

sons usados pelos outros animais são em si manifestações


instintivas/emocionais de medo, agressão, satisfação em con-
textos imediatos que são percebidas pelos outros membros da
espécie (LURIA, 1991). Nas palavras de Vygotsky (2008, p.
7), a linguagem usada pelos animais “[...] é mais uma efusão
afetiva do que comunicação”.
Nós, humanos, combinamos uma profusão de sons, gestos
e expressões para produzir uma infinidade de enunciações e
significações — com a linguagem, podemos produzir, arma-
zenar e comunicar uma grande quantidade de informação
sobre o mundo e sobre nós. Também podemos, com o uso
da linguagem, narrar, planejar, prever, dialogar, e, princi-
palmente, pensar, fantasiar, criar e disseminar convicções
sobre a vida, sobre as relações humanas e sobre o mundo
(HARARI, 2015).
Com a linguagem, temos a capacidade de instituir,
mediante a cultura, uma rede de compartilhamento, de
verdades discursivas, a partir de grandes narrativas, como
as religiosas, as ideológicas, as científicas, as midiáticas e as
legislativas, o que faz com que haja certa ordem e lógica na
organização das sociedades. Assim, podemos inferir que,
pela linguagem, o homem ordena o mundo e se constitui
enquanto tal.

285
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

Nessa perspectiva, compreendemos que a linguagem é


muito mais que um instrumento de comunicação e expressão
do pensamento; a linguagem é interação, pela qual o homem
cria um universo simbólico e nele se realiza. Portanto, como
forma de interação, a linguagem não é pura representação do
pensamento, como também não se resume ao uso mecânico
de códigos estáveis para emitir uma mensagem do emissor
ao receptor (BAKHTIN, 2006; FUZA, 2011).
A linguagem é, sobretudo, interação, uma vez que “[...] a
verdadeira substância da língua é constituída pelo fenômeno
social da interação verbal, realizada através da enunciação
ou das enunciações” (BAKHTIN, 2006, p. 125). Convém
explicitar que a enunciação, ou o enunciado compreende
a unidade básica da língua. Pode ser materializado numa
palavra, frase ou conjunto de frases, no entanto, o que difere
o enunciado de uma oração é o fato deste ser endereçado a
alguém. Portanto, o enunciado tem autor e destinatário e
implica em interlocução (BAKHTIN, 2006).
Sendo assim, podemos dizer que a linguagem se efetiva
por meio da construção dos enunciados em interações, nos
contextos práticos da vida. Desse modo, a importância recai
sobre a significação possível, em determinado cenário e não na
utilização da norma da língua, nem nos significados estáveis
do léxico.

286
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

Consequentemente, para o falante “[...] a forma linguística


não tem importância como sinal estável [...], mas somente
enquanto signo sempre variável e flexível [...]” (BAKHTIN,
2006, p. 94), cuja significação está atrelada aos contextos da
enunciação. Por outro lado, a compreensão da palavra não
corresponde ao reconhecimento do sinal, ou seja, a uma
associação direta com uma identidade, mas a “[...] apreensão
da orientação que é conferida à palavra por um contexto e
uma situação precisos [...]” (BAKHTIN, 2006, p. 95).
Desse modo, a compreensão do enunciado que se efetiva
por meio da construção da significação nem está na mente
do ouvinte, nem no texto emitido pelo falante, mas se realiza
na interação entre eles, mediante a elaboração coletiva dos
significados. A esse respeito, Bakhtin (2006, p. 135) sinaliza
que: “só a corrente da comunicação verbal fornece à palavra
a luz da sua significação”.
Em outras palavras, a compreensão do que é dito exige
postura responsiva, ou seja, posicionamento, aceitação, discór-
dia, acréscimo, questionamento, o que implica em interação,
pois, como afirma Bakhtin (2006, p. 135), “compreender a
enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela,
[...] cada palavra da enunciação que estamos em processo de
compreender, fazemos corresponder uma série de palavras
nossas, formando uma réplica”.

287
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

Importante ressaltarmos que a atitude responsiva pode ter


implicações na expressão do próprio enunciado, na escolha do
estilo, dos recursos linguísticos, entonações e na modulação
do discurso. Isso nos diz que os enunciados não são determi-
nados apenas pelo conteúdo, pelas ideias e pensamentos do
falante, mas, sobretudo, pelo próprio destinatário, enquanto
sujeito que tem determinada compreensão do tema abordado;
enquanto sujeito com quem o falante tem intimidade, ou não;
enquanto postura valorativa adotada no discurso.
Além do mais, os enunciados não são expressões com-
partimentadas de discursos, mas estão imbricados em uma
cadeia de enunciados pertencentes a uma esfera comunicativa.
Assim, entrelaçam-se com outros que antecederam, como
resposta, não no sentido de responder a um questionamento,
mas no sentido de atitude responsiva, de posicionamento
diante o dito (BAKHTIN, 1997).
Nessa perspectiva, concebemos a linguagem a partir das
teorizações de Bakhtin (2006) como um fenômeno social da
interação, dinâmico, em movimento e transformação. Tal
interação é possibilitada pelas infinitas e múltiplas práticas
sociais experienciadas pelos humanos em suas esferas comu-
nicativas contextualizadas historicamente.
Nessa perspectiva, pode-se dizer que a linguagem é
intrínseca às relações e práticas da vida humana, tais como

288
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

práticas familiares, religiosas, laborais, educativas, artísticas,


de lazer, de esporte, de entretenimento e administrativas.
Nas palavras de Bakhtin (1997, p. 280), “todas as esferas da
atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sem-
pre relacionadas com a utilização da língua”. Nesse sentido,
convém destacarmos que a linguagem não só se realiza nos
contextos sociais, mas também se constitui como parte desses
contextos e, por conseguinte, pode criá-los e modificá-los
num processo dinâmico (BLANCAFORT; VALLS, 2002).
Dada a proeminência e a importância da linguagem oral
na vida individual e coletiva dos sujeitos, cabe questionar:
como a linguagem contribui para a constituição do homem
enquanto ser histórico-cultural? Para responder, ainda que
sucintamente essa questão, buscamos apoio em Luria (1991) e
Vygotsky (1998; 2008), que nos ajudam na compreensão sobre
a gênese da linguagem e a sua relação com o desenvolvimento
humano.

2. Breve história da linguagem oral: filogenia

Inicialmente, é importante dizermos que o nascimento do


homem enquanto sujeito histórico-cultural se dá mediante
a ruptura com o modo de funcionamento, baseado nos
esquemas biológicos instintivos. Isso está relacionado com

289
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

a construção do que Vygotsky (1998) chama de funções psi-


cológicas superiores, como a linguagem, a memória, a atenção
e o pensamento.
A psicologia histórico-cultural atesta que a passagem do
homem, do ser natural para o histórico-cultural, processo no
qual ocorre a tomada da consciência, emanou no momento
em que o homo sapiens começou a manipular elementos da
natureza para atender às suas necessidades de sobrevivência,
não mais de forma imediata, mas com um propósito futuro.
Tais ações foram, provavelmente, empregadas na fabricação
de instrumentos, processo durante o qual a linguagem teve
papel fundamental. Nessa lógica, durante a fabricação dos
instrumentos, o homem conseguiu antecipar ações, empregar
certos tipos de conhecimento na produção e também se pro-
jetar no futuro quando se daria a utilização do instrumento
(LURIA, 1991).
Nessa perspectiva, o cerne das primeiras atividades
conscientes humanas encontra-se não no desenvolvimento
natural da espécie, mas no interior das relações humanas, nas
circunstâncias práticas da vida. Assim, foi a ação prática do
homem sobre o meio, em contextos históricos e sociais que,
de forma dialética, modificou o meio e o próprio homem
fomentando novas estruturas mentais, o que lhe possibilitou
outros modos de agir no meio (LURIA, 1991).

290
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

Entramos em um ciclo infinito, no qual nos encontramos


até hoje, cada vez mais criando e operando instrumentos diver-
sos e mais sofisticados na nossa interação com o mundo e com
nossos pares. Nesse processo, modificamos continuamente o
meio físico, natural, social, a produção da nossa existência e
a nós mesmos. Na pós-modernidade (período compreendido
por alguns autores, iniciado após a segunda guerra mundial),
essas transformações acontecem de forma tão intensa e veloz
que o sociólogo Bauman (2001) cunhou o termo modernidade
líquida. O uso desse termo pelo autor faz alusão à fluidez dos
líquidos para caracterizar as sociedades contemporâneas,
marcadas por sua inconstância e transitoriedade.
Retomando a discussão da gênese da consciência, ressal-
tamos que, ao mesmo tempo em que manipulava a natureza,
o homem como espécie que vive em grupo, deparava-se
constantemente com um conjunto de necessidades, entre as
quais a necessidade de comunicação com seus membros nos
contextos da atividade prática (LURIA, 1991). Nos primórdios,
a comunicação se dava através dos próprios atos do trabalho,
por meio de gestos e sons emanados na interação imediata,
cuja construção dos significados só era possível no contexto
em que acontecia, uma vez que podia significar muitas coisas
(LURIA, 1991).

291
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

É importante reiterar que as palavras que surgiam nas


interações entre os homens não possuíam significado estável,
de modo que a sua significação era inseparável do cenário
concreto no qual se dava. No entanto, ao passo em que a
linguagem foi sendo ampliada, ganhando novos sons, gestos
e expressões, as significações começaram a se diferenciar
e adquirir relativa estabilidade. Conforme Bakhtin (2006,
p. 134), “[...] as significações começaram a estabilizar-se
segundo as linhas que eram básicas e mais frequentes na vida
da comunidade para a utilização temática dessa ou daquela
palavra”.
De acordo com as demonstrações de Luria (1991), muitos
milênios foram percorridos para que os sons se desmem-
brassem das ações nas situações imediatas e passassem a
evocá-las. Palangana (1995), apoiada nas ideias de Luria
(1979), descreve o processo de cisão entre a linguagem e a
ação imediata, atestando que a construção dos significados
e sentidos na comunicação forçou um processo de abstração.
Essa abstração, por sua vez, provocou, paulatinamente, a
internalização desses significados.
Dessa maneira, as estruturas mentais de significação,
internalizadas no processo de comunicação em situações
imediatas, possibilitaram, posteriormente, o uso dos sons
para evocar situações/objetos em suas ausências. A partir

292
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

desse momento, a linguagem fonética passou a ser utilizada


de forma simbólica, ou seja, desmembrada da ação imediata
e, portanto, capaz de representá-la (PALANGANA, 1995).
Foi esse o contexto que fomentou o surgimento da língua
tal como conhecemos hoje, no que tange à sua constituição
fonética e semântica. Segundo Luria (1991, p. 80), “[...] a língua
consiste em um sistema de códigos compartilhados pelo grupo
que designam objetos, ações, qualidades, relações, emoções
e servem como meio de transmissão de informação”. Nesse
sentido, Bakhtin (2006) assevera que a língua, enquanto
sistema de normas, não é imutável, mas encontra-se em uma
evolução ininterrupta e sua realidade é a interação verbal.
O desenvolvimento da linguagem, assim como do tra-
balho — entendido como ação do homem sobre a natureza
— constituiu o berço da formação da consciência humana.
Portanto, o trabalho e a linguagem foram determinantes para
a composição do homem enquanto ser histórico e cultural,
para a intensificação da interação social e para uma relação
com o mundo que avança dos limites da sensorialidade para
o infinito da racionalidade.
Partindo da concepção de que a “[...] consciência só pode
surgir e se afirmar como realidade mediante a encarnação
com signos” (BAKHTIN, 2006, p. 32), e que a linguagem
desempenha o papel de organizadora da atividade mental,

293
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

podemos considerar que, na medida em que o homem amplia


o domínio da linguagem, mudanças na atividade consciente
vão se configurando como: a) a capacidade de operação com
os objetos em sua ausência, mediante o processo de simboliza-
ção; b) a organização do pensamento a partir do processo de
generalização, pois as palavras congregam, de forma abstrata,
as características dos objetos/conceitos, o que possibilita rela-
cioná-los em categorias e c) a transmissão de informação que
possibilita aos membros mais jovens assimilar a experiência
do grupo e avançar (VYGOTSKY, 2008).
Além do mais, a linguagem altera os mecanismos da
percepção humana, tendo em vista que as funções psicológicas
superiores como atenção, discriminação, memória, imagina-
ção e pensamento são operadas pela linguagem. Ademais, o
domínio da linguagem provoca mudanças profundas nos
aspectos afetivos e sociais (LURIA, 1991).
É necessário mencionarmos, ainda que brevemente,
que o desenvolvimento das funções psicológicas superiores,
inclusive a linguagem e o pensamento, efetiva-se pelo
processo denominado por Vygotsky (1998) de internalização.
A internalização diz respeito ao processo de reconstrução
interna/mental que se efetiva por meio da significação
das ações externas, construídas na interação no mundo e
com outras pessoas. Em outras palavras, as nossas funções

294
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

mentais são construídas a partir da experiência social e são


reconstituídas internamente no plano da mente. Portanto,
têm origem no âmbito interpessoal e são posteriormente
transformadas em plano intrapessoal (VYGOTSKY, 1998,
p.75).
A partir do referencial teórico por nós escolhido, pode-se
dizer que foi esse o caminho, descrito de forma breve, que o
homem percorreu na construção e evolução da linguagem oral
e da consciência, dando “[...] saltos quantitativos da psicolo-
gia animal para a psicologia humana” (VYGOTSKY, 1998,
p.76), tornando-se sujeito de linguagem e histórico-cultural.
Histórico-cultural porque a partir do momento que o homem
ultrapassa as margens do instinto natural, passa a carregar as
marcas do seu tempo histórico e a agir no mundo social de
acordo com as significações compartilhadas em sua cultura.
Portanto, as ações e posturas do homem no mundo são
direcionadas por suas funções psicológicas tipicamente huma-
nas e por um conjunto não estático de crenças, valores, regras,
saberes e habilidades constituídas na linguagem e no seio da
sociedade transmitidas de geração para geração. Contudo,
a experiência social é internalizada por cada indivíduo de
forma singular. Isso porque cada indivíduo vive uma expe-
riência com/no mundo a partir da sua corporeidade e das
suas percepções que determinam que, mesmo em contextos

295
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

socioculturais e em condições genéticas parecidas, os sujeitos


se tornem diferentes.
O que significa dizer que nem as condições inatas nem as
determinações do contexto cultural modulam os sujeitos, mas
eles se constituem nas interações sociais nas quais interagem
aspectos da filogênese, ontogênese, sociogênese e microgênese
(VYGOTSKY, 1998), o que faz de cada indivíduo um ser
único. Sendo assim, convém questionarmos: de que forma
cada indivíduo que chega ao mundo se apropria da linguagem
e das formas de ser humano no seu tempo e lugar?

3. Aspectos metodológicos

A pesquisa possui elementos de um estudo longitudinal,


uma vez que acompanhamos uma criança durante o período
de dois anos e nove meses. A metodologia para a construção
dos dados empíricos se insere em um estudo de campo de
natureza qualitativa, na qual fizemos uso de procedimentos
de inspiração etnográfica, como a observação e registros
escritos, em contextos familiares (VELHO, 1994). Também
nos aproximamos da etnografia virtual (HINE, 2004), já
que lançamos mão de conversas e compartilhamentos de
vídeos em grupos de WhatsApp da família. Utilizamos como
instrumentos um diário de campo, para os registros das

296
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

interações familiares, gravação de vídeos e áudios e vídeos


compartilhados via WhatsApp. O recorte das observações e
registros foi o surgimento e o envolvimento da criança em
situações de interações verbais com adultos ou crianças mais
experientes.
Os sujeitos de nossa investigação foi uma criança e seus
familiares, sobrinha de uma das pesquisadoras. Essa criança
foi escolhida em virtude da proximidade de uma das pesqui-
sadoras com a família. No início das coletas dos dados, em
agosto de 2018, a criança tinha três meses e, no término, em
maio de 2021, estava com três anos. Apesar de o estudo ser
sobre uma criança especificamente, usamos na construção
dos dados três interações com outras duas crianças, com faixa
etária correspondente ao estudo, igualmente sobrinhas de uma
das pesquisadoras. A opção por inserir interações com essas
outras duas crianças se deu por considerarmos que os aspectos
observados nessas interações não foram contemplados nos
dados construídos com a primeira criança. A fim de garantir
o anonimato dos sujeitos, optamos por usar nomes fictícios.
Salientamos que as crianças, assim como os demais
participantes de nossa pesquisa, são consideradas sujeitos
integrantes deste estudo, aliás, os principais sujeitos e não
objetos a serem conhecidos (CRUZ, 2008). Em outras palavras,
o que queremos dizer é que as informações construídas para

297
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

as análises são fruto de relações de reciprocidade entre todos


os sujeitos envolvidos na pesquisa.

4. A importância da interação verbal com o


outro mais experiente para a apropriação da
linguagem oral nos três primeiros anos de vida

Nesta seção, apresentamos os dados empíricos, dialogando


com o aporte teórico já discriminado anteriormente.
Cada sujeito que chega ao mundo inaugura um jeito novo
de nele estar (BÁRCENA, 2004). Chega transformando o
mundo em seu entorno, os espaços, os objetos, os sons que
circulam. Os sujeitos que recebem a criança como mãe/pai/
irmãos/avós são imersos nessa atmosfera que cada novo nasci-
mento traz e no desafio de inserir o novo membro na cultura
humana. Sobre esse aspecto, Bárcena (2004, p. 5) escreveu:
“Nascimento: um desafio à pretensão de fabricar o humano.
[...] Nada pode ser previsto, ninguém sabe o que vai acontecer
a seguir: estamos nas mãos [...] da ação criativa e da palavra”.
Sabemos que os sujeitos da nossa espécie nascem pro-
fundamente dependentes dos membros mais experientes do
grupo e seus mecanismos instintivos de expressão, como o
choro, são fundamentais para sua sobrevivência. Pelo choro,

298
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

são estabelecidos os primeiros elos de comunicação entre o


recém-nascido e os sujeitos mais experientes do seu convívio.
Portanto, o choro e, posteriormente, o balbucio, as risadas, as
primeiras palavras presentes nos primeiros meses de vida são
em si manifestações com vistas ao contato social (VYGOTSKY,
2008). Corroborando essa ideia, Bakhtin (2006, p. 117) assevera
que “[...] mesmos os gritos de um recém-nascido são orientados
para mãe”, ou seja, tem intenção socialmente dirigida.
Nesse processo, os sujeitos mais experientes do grupo
familiar desempenham papel fundamental na vida do bebê,
não somente porque atendem às suas necessidades, mas,
sobretudo, porque insere-o no mundo cultural dos signos e
objetos, pois, os sujeitos mais experientes na interação com o
bebê, geralmente, apresentam e nomeiam objetos, conversam,
cantam e brincam fazendo uso das expressões da sua cultura,
do afeto e do cuidado, ao mesmo tempo em que procuram
significar as expressões manifestadas pelo bebê.
Vamos observar no exemplo de número um, a interação
entre o bebê Via (três meses) e sua irmã mais velha Lia, e, no
exemplo número dois, outra interação entre o bebê (quatro
meses) e sua mãe.

299
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

Exemplo Nº 1
Lia — Conversa, meu amor. Conversa, meu amor!
Via — Umaa.
Lia — Conversa, meu amor. Ii iêiêiê, Conversa,
Lia — Conversa, minininha linda.
Via — Ummm ééaaaa.
Lia — Conversa, minininha linda.
Via — Ummmmm éééaaaaaaa.
Lia — Que minina linda!
(Transcrição de vídeo compartilhado em WhatsApp,
ago. 2018).

Exemplo Nº 2
Via — Ôôôôôôô éééééé ô áá humm ummmmm
Mãe — O que? (A mãe se aproxima da criança que está
em um carrinho interpela)
Mãe — Ááááámm hummmm, tá conversando com quem?
Via — Ááááá hummmmmmm.
Mãe — Ah, tá conversano!
Via — Áááá hum hummmm.
(Transcrição de vídeo compartilhado em WhatsApp,
set. 2018).

300
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

Percebemos que essas interações são banhadas de afeti-


vidade pelos sujeitos que cuidam do bebê, ao mesmo tempo
em que buscam inseri-lo no universo da linguagem por
meio das suas intervenções verbais. Na primeira interação,
a criança mais velha instiga o bebê a se expressar por meio
de um conjunto de sons, e a própria criança mais velha emite
esse conjunto de sons (não significados), colocando-se como
referência para o bebê. Percebemos que o bebê olha para ela
atentamente e, após algumas investidas, começa a interagir,
emitindo uma sequência de sons, atendendo a interação
iniciada pela irmã.
Já no segundo exemplo, a produção de sons é iniciada
pelo bebê que está deitado em um carrinho e pronuncia uma
sequência longa de sons, alternando-os e voltando a repeti-los.
É perceptível, ao revermos a gravação, que o bebê se esforça
intencionalmente para produzir esses sons, obtendo resultados
de um esforço físico do aparelho fonador. Um adulto (mãe)
se aproxima e interage com a criança, dando significados aos
sons produzidos pelo bebê, por meio do questionamento e
em seguida da afirmação: Ah, tá conversando!
O bebê participa ativamente dessa interação, olhando,
observando, imitando, produzindo sons, risos, buscando
dar sentido ao mundo à sua volta, tendo como ponto de
apoio a mediação do outro mais experiente. Nesse sentido,

301
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

a apropriação da linguagem oral começa antes da criança


pronunciar suas primeiras palavras, de acordo com Bruner
(1986, p. 21)

[...] começa antes da criança expressar sua primeira palavra


léxico-gramatical. Começa quando a mãe e a criança criam
uma estrutura previsível de ação recíproca que pode servir
como um microcosmo para comunicar-se e para constituir
uma realidade compartilhada.

Esse jogo de interação profunda, no qual bebê e o outro


mais experiente se movimentam com vista à construção da
comunicação, faz com que ambos “[...] combinem elementos
para extrair significados, atribuir interpretação e inferir
intenções” (BRUNER, 1986, p. 30). Nesse ponto, é interessante
destacar que, geralmente, a mãe/adulto cuidador consegue
dar significados diferentes aos choros dos bebês e, por outro
lado, os bebês começam a produzir choros diferentes em con-
sonância com suas necessidades. Assim, é possível identificar
diferentes tipos de choro da criança associados a estar com
fome, com dor, querer sair do berço etc. Além disso, convém
salientar que o bebê, na construção dos significados se apoia
nas expressões faciais, gestos e tons de voz aplicados pelo
outro (FONTANA, 1997).
Nesse contexto, o bebê vai sendo inserido no fluxo contí-
nuo da comunicação e se apropria de forma ativa e gradativa

302
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

dos significados sociais da linguagem, ao passo que começa


a produzir suas primeiras palavras. Vejamos no exemplo
três um jogo oral entre um bebê (oito meses) e a avó e, no
exemplo quatro, outra interação do mesmo bebê (um ano e
um mês) com uma tia.

Exemplo Nº 3
Avó — Cadê o bocão? Cadê o bocão? Cadê o bocão?
Mel — (Abre a boca, mostra a língua e sorri).
(Transcrição de vídeo compartilhado em WhatsApp,
jun. 2020).

Exemplo Nº 4
Tia — Cadê a barriga, titia? Cadê a barriga?
Mel — (Levanta a camiseta, olha a barriga e bate três vezes
com a mão na barriga, sorrindo simultaneamente).
Tia — E o umbigo, cadê?
Mel — (Coloca o dedinho indicador no umbigo e sorri).
Tia — Cadê os cabelos, titia?
Mel — (Levanta os dois braços e segura os cabelos com
as duas mãos).
Tia — E as mãozinhas?

303
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

Mel — (Junta as duas mãozinhas, entrelaça os dedos e


sorri).
Tia — Dá tchau pra titia.
Mel — (Levanta o braço direito, balança e sorri).
(Diário de campo, nov. 2020).
Observamos nessa interação que consta no exemplo de
número quatro que o adulto, a tia, vai nomeando as partes
do corpo para o bebê, ao mesmo tempo em que pergunta
onde estão essas partes, em um jogo oral no qual a criança
se insere de forma lúdica, rindo, tocando o corpo, brincando
com os sons e dando significados. Nos dois exemplos (três e
quatro) de interação, as crianças já conseguem significar os
sons que escutam, ou seja, associando-os às partes do corpo,
tocando-os na medida em que os adultos falam, contudo,
a criança ainda não pronuncia nenhuma das palavras que
ouviu. Esses exemplos demonstram, nesse caso, que o bebê
começou a entender e dar significados aos sons, antes de
conseguir pronunciá-los, discriminadamente. Além disso, os
jogos orais direcionam a atenção dos bebês por meio do seu
envolvimento, em uma sequência de ações e do uso sistemático
da linguagem (BRUNER, 1986).
Bruner (1986) destaca o importante papel dos pais/cui-
dadores na inserção da criança na corrente interativa da
linguagem. O autor demonstra que os adultos mais experientes

304
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

têm um papel muito mais ativo, pois “[...] falam em nível


que as crianças podem compreendê-los e se movem com
acentuada sensibilidade e respeito aos progressos de suas
crianças” (BRUNER, 1986, p. 40). Portanto, é com os pais,
cuidadores ou pessoas próximas que as crianças ensaiam
suas primeiras palavras e são apoiadas na construção dos
significados. Posteriormente, a criança estende a fala adquirida
nessas interações para outros contextos.
Vejamos o exemplo de número cinco. A criança (um ano
cinco meses) brinca empilhando alguns cubos e com outros
brinquedos ao seu redor. A mãe acompanha a brincadeira.

Exemplo Nº 5
Via — (Coloca um cubo em cima de uma pilha com dois
cubos, e acaba derrubando-os)
Mãe — Ôôô
Via — (Tenta novamente empilhar os três cubos e
consegue)
Mãe — Êêê (ri)
Via — (Pega um cubo coloca no chão, depois coloca dentro
da bolsa onde estão outros cubos)
Mãe — Tá guardano?
Via — Hummm

305
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

Via — (Pega outra bolsa de pelúcia, coloca a alça da bolsa


no braço e nomeia)
Via — Bosi, Bosi.
Mãe —Bolsa.
Mãe — (Pega um cachorrinho, aperta-o e emite um som)
Via — Au au au, au au au, au au au?
Mãe — É au au.
(Transcrição de vídeo compartilhado em WhatsApp out.
2019).

Nessa interação, podemos verificar os sentidos que a


mãe vai dando, por meio das suas expressões vocais e faciais
às ações do bebê ao explorar os seus brinquedos. Podemos
perceber que o adulto vai atribuindo significados não somente
aos objetos que estão presentes no local, mas também às ações
no mundo em congruência com a cultura — não conseguiu
— ô, conseguiu — ê. Em seguida, o adulto atribui palavras
para a ação da criança — Tá guardano! Quando a criança
nomeia um objeto, a mãe reforça nomeando novamente de
forma convencional. No entanto, na interação seguinte, a mãe
aceita a nomeação da criança para o cachorro que denomina
de — au au au — demonstrando a sensibilidade com o pro-
cesso de apropriação da linguagem pela criança, elucidada
por Bruner (1986).

306
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

Na construção da comunicação, entre criança e adultos,


o gesto desempenha papel fundamental. Vygotsky (1998),
ao descrever o processo de internalização, ilustrando-o por
meio do gesto de apontar, revela também a importância que
os movimentos do bebê têm na construção dos significados
e, portanto, na apropriação da linguagem.
Para elucidar esse processo, exemplificamos que a repetição
da experiência na qual a criança levanta os braços em direção
a um adulto na intenção de alcançá-lo, sendo apanhado pelo
adulto em seguida, leva a criança a significar que, ao levantar
os braços, o adulto irá pegá-la no colo, uma vez que foi essa a
significação construída pelo adulto. Nessa dinâmica, a criança,
paulatinamente, internaliza esse gesto e passa a usá-lo de
forma deliberada na sua intenção comunicativa, tornando-a
uma linguagem gestual (VYGOTSKY, 1998). Posteriormente,
o gesto passa a apoiar a linguagem oral da criança.
As primeiras palavras das crianças são ensaios nos quais
ela tenta emitir sons, aprendidos nas interações verbais para
nomear os objetos e pessoas ao seu redor, sendo que os sig-
nificados dessas vocalizações, para as crianças, são difusos
e variados. De modo que, a mesma palavra pode designar
várias coisas. Por isso, nessa etapa da apropriação da lingua-
gem, a construção dos significados está atrelada às situações
imediatas e aos gestos. A internalização gradativa da função

307
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

denotativa da palavra vai aos poucos ganhando estabilidade,


consequentemente, começa a se diferenciar e ganhar signifi-
cados distintos (FONTANA; CRUZ, 1997).
No exemplo seis, a criança (onze meses) no braço da mãe
observa um quadro na parede com imagens de frutas.

Exemplo Nº 6
Via — Mã, uuu (Aponta para o quadro que está a certa
distância dela)
Via — U u, uti (Aponta novamente)
Mãe — Uti o quê?
Mãe — (Aproxima a criança do quadro)
Via — (Toca nas imagens das frutas)
Via — Uti (Bate na maçã)
Mãe — (Se afasta do quadro)
Via — (A criança estica o corpo e os braços em direção
ao quadro)
Mãe — (Volta e coloca a criança em uma base, a criança
fica em pé, sendo segurada, e consegue observar o quadro)
Via — (Toca no quadro, passando o dedo indicador nas
frutas)
Via — Uti, uti.
Mãe — Uva, é a uva?

308
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

Via — Uti.
Mãe — Uva, é? é uva que cê tá dizeno?
Via — Uti.
Mãe — Uva, é? Uva.
Via — Uti (Aponta o dedo indicado na imagem da uva)
Mãe — Ah entendi, é uva!
Via — Uti (Bate o dedo indicado na imagem da uva).
(Transcrição de vídeo compartilhado em WhatsApp,
abril, 2019).

Nessa cena, observamos mais uma vez o comprometi-


mento do adulto na interação da criança com o objeto quadro,
mediado pela linguagem. O adulto significa os sons que a
criança emite e devolve para a criança a sua significação em
forma de pergunta e afirmação posteriormente, ela, também
pronuncia a palavra de forma convencional. É possível que
a criança não tivesse a intenção de se referir à uva. Também
é possível que a criança use o som — Uti — para se referir
a qualquer fruta do quadro, uma vez que essas primeiras
manifestações linguísticas podem designar qualquer coisa. No
entanto, o adulto dá um significado estável ao som produzido
pela criança e reforça-o, nomeando convencionalmente a
fruta. Isto é, o adulto significa o som e devolve para a criança
a significação. Nesse exemplo, vemos o que aponta Vygotsky

309
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

(2008), sobre como a construção dos significados se dá pelo


outro. Ainda podemos perceber o uso do corpo pela criança
como intenção comunicativa, a criança se estica na direção
do quadro comunicando a sua intenção de observá-lo. Tal
linguagem é compreendida pela mãe, que atende ao interesse
da criança.
A criança se aproxima do significado de cada signo pela
significação realizada pelo outro nas interações (VYGOTSKY,
2008; BAKHTIN, 1997). Com efeito, é o outro que vai dando
significado ao conjunto de ações, gestos e a linguagem pro-
duzido pela criança, sendo que tais significados estão ligados
às convenções sociais do contexto. É a partir das interações
sociais que a criança vai se apropriando, à sua maneira, da
linguagem, dos significados e sentidos construídos social
e historicamente e vai, gradativamente, instaurando-se no
universo semiótico.
Vejamos no exemplo sete a criança (dois anos) dando bom
dia no grupo de WhatsApp da família a e intervenção da mãe.

Exemplo Nº 7
Via — Boa note! É quem?
Mãe — É bom dia.
Via — Boa note.

310
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

Mãe — É bom dia. Ó o sol.


Via — Bom dia, já côdo de de cotiano um, famila.
(Transcrição de áudio compartilhado em WhatsApp,
maio, 2020).

Nesse diálogo, podemos verificar, mais uma vez, a cons-


trução do significado, sendo realizado pelo outro mais expe-
riente, dessa vez, para uma expressão de saudação comum na
cultura. Percebemos que a criança fica confusa ao elaborar seu
enunciado. Possivelmente, ela confronta a sua fala com suas
experiências anteriores, nas quais a expressão foi aplicada.
Assim, busca apoio no adulto para reelaborar a sua fala. A
mãe corrige afirmando que é bom dia e usa um elemento
empírico — Sol— para reforçar o significado da expressão.
Em seguida, a criança entende e volta a enunciar, agora em
conformidade com os significados da cultura. Assim, podemos
afirmar que aprender a falar é, também, aprender a transitar
na cultura.
Corroborando essa ideia, Bakhtin (1997, p. 294) aponta que
“[...] a experiência discursiva individual de qualquer pessoa se
forma e se desenvolve em uma interação constante e contínua
com os enunciados individuais dos outros”. Isso quer dizer
que as palavras são apropriadas pela criança, ou apanhadas

311
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

por ela no discurso do outro e não da língua, enquanto um


sistema de léxico e normas linguísticas. Assim, ao elaborar
seus enunciados, a criança busca selecionar as palavras nas
experiências discursivas, nos modelos enunciativos que dispõe.
No exemplo oito, a criança (um ano e cinco meses) brinca
manuseando brinquedos, a mãe acompanha a brincadeira.

Exemplo Nº 8
Via — (Pega uma casinha, e tira um gatinho pequeno de
dentro, olha, aponta-o para a mãe e diz)
Via — Ó datu, mamãi ó datu (Entrega o gato à mãe)
Mãe — É o gato, gatinho, gato, ò o gato (Devolve o gato)
Via — (Se levanta, pega o gato)
Via — Datu (Coloca-o em cima de uma pilha de cubos)
Via — Êêê (Bate palmas e sorri)
Mãe — Êêê (Fala simultânea a da criança)
(Transcrição de vídeo compartilhado em WhatsApp,
out. 2019).

Nessa brincadeira, observamos que a criança faz uso


da função denotativa da palavra nomeando o animal de
brinquedo de forma ainda não convencional, mas já se
aproximando bastante da forma convencional. No entanto,

312
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

em seguida, a mãe interage apresentando a palavra correta,


repetindo três vezes, reforçando essa nova referência para a
criança que, provavelmente, em breve se apropriará desse
formato fonético.
Neste exemplo, devemos explicar que a criança tem em
sua casa um gato de estimação e que as relações da família
com um gato possibilitaram à criança se apropriar desse
vocábulo. Outro ponto também observado nessa mesma
criança, em um período anterior a essa faixa etária, é que ela
usava esse vocábulo – Datu – para designar qualquer animal,
demonstrando que o significado da palavra ainda era difuso
e instável, contudo, essa ação também revela que a criança já
conseguia agrupar (distinguir) animais de outros elementos
do seu cotidiano, uma vez que o vocábulo — datu — não era
aplicado a qualquer elemento do contexto. Tal observação foi
verificada quando a criança manuseava um livro com várias
imagens de animais que ela apontava e dizia Datu e em outras
situações cotidianas quando se referia a algum animal.

5. As expressões das crianças e a


organização da atividade consciente

É interessante evidenciarmos o papel que a linguagem


tem na organização da atividade consciente e na constituição

313
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

da subjetividade e pensamento. Para isso, lançamos mão


das ideias de Bakhtin (2006, p. 121), quando sinaliza que
“[...] a expressão exerce um efeito reversivo sobre a atividade
mental: ela põe-se então a estruturar a vida interior, a dar-
lhe uma expressão ainda mais definida e mais estável”. Ou
seja, a linguagem das crianças ao passo em que comunica
suas intenções, interesses, desejos, necessidades, também os
sistematiza mentalmente.
É na interação que a criança se constitui enquanto tal,
na medida em que é sendo para o outro que ela se constitui
narrativamente para si mesma. No sentido de que “tomo
consciência de mim, originalmente, através dos outros: deles
recebo a palavra, a forma e o tom que servirão para a forma-
tação original da representação que terei de mim mesmo”
(BAKHTIN 1997, p. 378).
Ratificando esse pensamento, Bárcena (2004) pontua
que cada sujeito, cada criança é uma presença singular no
mundo, uma voz autêntica, forjada na voz do outro, que “[...]
dirigida para nós, para cada um, parece nos humanizar, e ao
mesmo tempo pode expulsar-nos do círculo do humano cada
vez que o nascimento da palavra é impedido” (p. 16-17). Em
outras palavras, a voz do outro em seus diferentes matizes
dá contorno à voz da criança e a suas identidades, ao mesmo

314
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

tempo em que este outro também é afetado e modificado


pela criança.
Vejamos o exemplo nove no qual a criança (um ano e dez
meses), enquanto brincava, manuseando brinquedos, entoava
em um ritmo a sequência de sons transcritos a seguir:

Exemplo Nº 9
Via — Ummm jimi a ummm jimi a buuu (Percebe a mãe
filmando se levanta e diz)
Via — Mainha, cantano.
Mãe — Quê? (Fala simultânea a da criança)
Mãe — Tá cantano, eu tô veno, tá linda cantano!
Via — Tícia, cantano (sai andando na direção da irmã)
Lia — Tá cantando.
(Transcrição de vídeo compartilhado em WhatsApp,
mar. 2020).

Nessa interação, observamos que a criança se intimida


ao perceber que a mãe observava e filmava a sua brincadeira
cantada. Parece-nos que ter alguém observando a levou a
tomar consciência da sua ação. E, ao se tornar consciente, a
criança se levantou e explicou à mãe o que estava fazendo.
A mãe interagiu no sentido de reforçar positivamente o

315
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

comportamento da criança, além de aplicar o adjetivo —


linda, provavelmente visando fortalecer a sua autoestima.
A irmã também interagiu no mesmo sentido, acentuando a
ação da criança.
O domínio da linguagem dota à criança da capacidade de
narrar seu mundo, suas experiências e de se constituir sujeito
de uma cultura falada. Também possibilita formatar a sua
experiência no mundo por meio das suas interações com os
outros, mediante as respostas, isto é, aos posicionamentos
do outro perante ela e mediante o modo como a criança se
põe em narrativa no mundo. Vejamos o que Bárcena (2004,
p. 12) descreve:

[...] as palavras moldam a nossa experiência humana com


o mundo. [...] Aprender a nomear nossas experiências com
as palavras certas é um ato poético em que a palavra é um
evento. E tantas vezes nos confundimos com nomes que
damos ao que nos acontece!

É na interação dialógica com as pessoas e com o mundo


que a criança se apropria da linguagem e se desenvolve como
sujeito pensante. A partir desse ponto, buscamos evidenciar
essa relação da fala com o pensamento, nos apoiando no que
teoriza Vygotsky (2008).

316
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

Vygotsky (2008) concebe a fala como uma unidade


complexa, por isso pode ser compreendida a partir de dois
planos. Um plano interior, relativo aos aspectos semânticos
e significativos, e ao plano exterior, que se relaciona com os
aspectos fonéticos, ou seja, a fala. Para ele, o desenvolvimento
desses planos ocorre de forma dependente, mas em direções
opostas.
Nesse sentido, o desenvolvimento da fala exterior começa
das partes para o todo. Isto é, a criança começa pronunciando
uma palavra e vai aos poucos adicionando outras palavras até
que consiga formular uma frase complexa. Com a fala interior
— significados — acontece o inverso. O desenvolvimento se
dá do todo para as partes, ou seja, o significado comporta uma
unidade completa de sentido — uma frase — que é expressa
por meio de uma única palavra. Portanto, quando um bebê
emite uma palavra, o seu significado corresponde a uma frase
inteira. Sobre esse aspecto, Vygotsky (2008) discorre que:

Semanticamente a criança parte do todo, de um complexo


de significados, e só mais tarde começa a dominar as uni-
dades semânticas separadas, os significados das palavras, e
a dividir o seu pensamento anteriormente indiferenciado,
nessas unidades (VYGOTSKY, 2008, p. 157).

É justamente nessa diferença de desenvolvimento da fala


e do pensamento que se encontra a ligação entre a fala e o

317
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

pensamento, uma vez que o pensamento da criança bem


pequena não é claro, sendo mais um todo homogêneo que
encontra expressão em uma palavra. Na medida em que o
pensamento vai se tornando mais distinto, diferenciado,
ocorre também, que a criança vai se apropriando de novos
vocábulos, o que lhe permite compor pequenas frases para
construir as unidades de sentido (VYGOTSKY, 2008).
Outro ponto importante para elucidar nessa discussão é
o fato do desenvolvimento da linguagem e do pensamento
terem raízes genéticas diferentes. Embora esses processos
tenham pontos de incidência, ambos têm desenvolvimentos
diferentes. Vygotsky (2008) ilustra esse processo afirmando
que o progresso dos dois se dá por linhas que correm para-
lelamente, mas que em determinados pontos se cruzam e
voltam a se separar.
Nessa perspectiva, o desenvolvimento da fala passaria por
um período no qual se caracterizaria por ser pré-intelectual.
Isso quer dizer, sem vínculo com o pensamento. A criança
fala, mas ainda não tem plena consciência sobre o que fala. E
o pensamento teria uma fase denominada de pré-linguística,
caracterizada por sua função prática, instrumental, pela
capacidade da criança agir no ambiente sem a mediação da
linguagem. Trazemos no exemplo dez a interação de uma

318
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

criança (um ano e seis meses) no meio, na busca da resolução


de problema usando o pensamento instrumental.

Exemplo Nº 10
Sol queria atravessar da sala para um corredor, sendo
que entre esses espaços tinha uma cozinha que estava sendo
lavada por sua avó. Na primeira e na segunda tentativa ela
põe o pezinho, percebe que escorrega, sente medo e recua. Em
seguida começa a chorar, indicando o seu desejo de atravessar
a cozinha, no entanto ninguém se dispõe a ajudá-la. Após o
episódio do choro, ela sai andando pela sala e percebe o seu
triciclo. Ao percebê-lo, imediatamente ela pega-o e atravessa
a cozinha sentada no triciclo, embora empurrando-o com os
pezinhos, pois não sabia pedalar, rindo bastante.
(Diário de campo, março de 2020)

Nesse exemplo, verificamos que a criança se depara com


um problema — atravessar um espaço molhado — faz uso do
choro (linguagem) para pedir ajuda. No entanto, a postura
do adulto presente foi de não a auxiliar. Após alguns ins-
tantes, a criança percebe o seu triciclo e usa para atravessar.
Contudo, fica claro que a criança só conseguiu resolver seu
problema porque o triciclo estava no seu campo de visão.

319
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

Dessa maneira, inferimos que ela, provavelmente, ainda não


seria capaz de pensar nele e procurá-lo, uma vez que, nesse
caso, seria necessário planejar a ação mediante a linguagem
egocêntrica ou interiorizada, funções que a criança ainda não
tinha desenvolvido nesse período. Ou seja, a criança agiu no
meio fazendo uso do pensamento pré-linguístico, uma vez
que ainda não falava (VYGOTSKY, 2008).

É no cruzamento das duas linhas de desenvolvimento da


fala e do pensamento, naquilo que elas coincidem, que as
estruturas mentais dessas funções distintas se modificam.
A criança passa a ter consciência da fala — fala racional — e
o seu pensamento ganha a propriedade verbal — pensa-
mento verbal (VYGOTSKY, 2008, p. 53-54).

Em outras palavras, “[...] a fala começa a servir ao intelecto


e o pensamento começa a ser verbalizado” (VYGOTSKY,
2008, p. 53). A partir de então, a criança inicia um novo modo
de funcionamento psicológico, mais elaborado, mediado
pelo simbolismo da linguagem, o que vai lhe proporcionar
a ampliação da socialização e da sua ação no ambiente que
está inserida.
Vejamos o exemplo onze em que Via (dois anos e quatro
meses), brincando com uma bexiga, percebeu que, se a bexiga
caísse no chão, o vento levava-a e ela teria dificuldades para
apanhá-la. Nessa brincadeira, elabora a seguinte frase rimada.

320
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

Exemplo Nº 11
Via — Minha bola perfeitinha que não caia no chão!
Lia — (Irmã 10 anos, percebe a rima e diz)
Lia— Cante!
Via — Minha bola perfeitinha que não caia no chão! (rir)
Lia— Cantou?
Via — Não, cantei não!
Via — Minha bola perfeitinha que não caia no chão! (Pula,
segurando a bola enquanto entoa a enunciação)
Via — Agola dinovo, minha bola não vai simbola.
Via — Minha bola perfeitinha que não caia no chão!
(Segura a bola com as duas mãos).
(Transcrição de vídeo compartilhado via WhatsApp,
set. 2020).

Nessa brincadeira, podemos observar que a criança se


envolveu em uma problemática que era brincar com a bola e,
ao mesmo tempo, impedir que ela caísse no chão e fosse levada
pelo vento. Diante do problema, a criança elabora uma frase
com a possível resolução do problema que seria não deixar
a bola cair. Podemos inferir que, ao elaborar o enunciado, a
criança coordenou melhor o seu comportamento em relação
ao problema de a bola voar, pela mediação da sua palavra,

321
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

demonstrando o que teorizou Vygotsky (2008). Já o fato de ter


emitido o enunciado, imprimindo um ritmo, fez com que sua
fala fosse transformada em uma brincadeira pela irmã mais
velha, ao solicitar que ela cantasse. No final da brincadeira, na
qual ela recita a frase três vezes, ela elabora outro enunciado
reiterando que a bola não vai embora.
Como já discutido, o pensamento e a fala são funções
psicológicas superiores distintas. Portanto, a fala não é a
mera expressão do pensamento, pelo contrário (VYGOTSKY,
2008, p. 161). “O pensamento tem a sua própria estrutura, e a
transição dele para fala não é uma coisa fácil” (VYGOTSKY,
2008, p. 185), tendo em vista que o pensamento é uma unidade
de sentido e não encontra “[...] equivalente imediato nas
palavras” (VYGOTSKY, 2008, p. 186).
Contudo, fala e pensamento estão de certa forma conec-
tados. Pelas teorizações de Vygotsky (2008), essa conexão
está no significado. Dessa maneira, é no significado que se
encontra a unidade básica entre a palavra e o pensamento
verbal, visto que o significado é parte inerente da palavra,
assim como elemento do pensamento. Corroborando essa
ideia, Bakhtin (2006, p. 48) assinala que “[...] o que faz da
palavra uma palavra é a sua significação. O que faz da ati-
vidade psíquica uma atividade psíquica é, da mesma forma,
sua significação”.

322
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

No exemplo doze, a criança (dois anos e sete meses) inte-


rage com a irmã mais velha, manuseando um conjunto de
canetas hidrocor.

Exemplo Nº 12
Lia — Que cor é essa?
Via — Cor de morango. (Mostra a canetinha vermelha)
Via — Cor de banana. (Mostra a canetinha verde)
Lia — Banana verde, né?
Via — Banana verde (ri)
Via — É azul e rosa, rosa de morango (pega nas canetinhas
azul e rosa).
(Diário de campo, dez. 2020).

Nesse excerto, depreendemos que a criança nomeia algu-


mas cores convencionalmente, no entanto, necessita se apoiar
em elementos concretos do seu contexto, no caso as frutas,
para a elaboração dos significados das cores. Possivelmente,
nesse exemplo, as cores das frutas oferecem uma referência
estável, no âmbito das suas experiências, por meio da qual
ela consegue construir a ideia das cores revelando o modo
de pensamento denominado por Vygotsky de pensamento
por complexos (VYGOTSKY, 2008), aquele no qual a criança

323
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

busca associações com os elementos do contexto concreto


(FONTANA, 1997).
É importante destacar que os significados não
correspondem diretamente aos objetos, mas a um corpo de
conceitos abstratos evocados na mente. Melhor dizendo, a
palavra condensa uma generalização do objeto, e a capacidade
de generalizar é um ato do pensamento (VYGOTSKY, 2008).
Portanto, os significados se concretizam no pensamento,
de modo que não existe sentido nenhum nos conjuntos de
fonemas pronunciados desvinculados do pensamento.
Nessa perspectiva, quando uma criança aprende uma
palavra, a construção dos significados apenas iniciou. Sendo
que o avanço no grau de conceitualização, de generalização
dessa palavra, vai depender das suas experiências sociais com
o uso dessa palavra e, posteriormente, da construção dos
conceitos científicos aprendidos na escola (VYGOTSKY, 2008).
Importa lembrarmos que, para Bakhtin (2006), a palavra
comporta um leque de significações potenciais, cuja acepção é
dependente dos contextos das enunciações e só é concretizada
no processo de interação verbal, por meio da “compreensão
ativa e responsiva” (BAKHTIN, 2006, p. 135). Portanto, a
construção da significação se efetiva na interação dialógica,
a partir dos processos de enunciação e compreensão nas

324
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

situações práticas da vida. Vejamos no exemplo treze um


trecho de um diálogo entre a criança (três anos) e a sua mãe.

Exemplo Nº 13
Via —A mulher morreu, morreu de côvid mãe (faz expres-
são facial, franzindo a testa e curvando a boca)
Mãe — Você desenhou uma mulher morta? Ai ela morreu
de quê?
Via — De côvid, que ela num foi po meni, nem tomou
bacina, nem nem ne nem nada, nada, ela bebeu
Mãe — Foi, coitada! Cadê a mulher?
Via —Tá aqui (aponta com o dedo garatujas que rabiscou
em um livro)
Mãe —Você desenhou?
Via — Desenhei, poque ela num tomou nada [...]
(Transcrição de vídeo compartilhado via WhatsApp,
maio de 2021)

Nesse trecho, a criança elabora uma narrativa na qual


relata a morte de uma mulher por covid apoiada em um
desenho que ela fez. A criança replica um enunciado que,
provavelmente, escuta com alguma frequência. Nesse diálogo,
ela faz uso de palavras como morte, vacina, covid, cujos

325
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

significados ela começou a se apropriar, provavelmente, por


meio das notícias veiculadas pela televisão e por conversas
que escuta em seu contexto. Em sua narrativa, a criança
consegue elaborar significados coerentes com os significados
convencionais. Podemos ver essa construção quando ela se
refere à morte usando tons de voz e expressões faciais em que
podemos captar que ela significa como algo ruim e triste,
embora a criança de fato não consiga conceber o que é a morte.
A interação da mãe ao dizer — “Foi, coitada!” — reforça
os significados que a criança elabora para o vocábulo “morte”.
Já no enunciado no qual ela diz que — “ela num foi po meni,
nem tomou bacina nem nem ne nem nada, nada, ela bebeu” —
percebemos que ela se aproxima do conceito de vacina como
algo que protege contra a doença, relacionando também as
suas experiências à ida ao médico e a tomar medicação. A
construção desses primeiros significados possibilita a criança a
manejar essas palavras nas narrativas que elabora e a ampliar,
gradativamente, a apropriação desses conceitos a partir das
experiências que tem no contexto em que está inserida.

6. Desenvolvimento da fala interior da criança

Durante os primeiros anos de vida, a fala da criança é


direcionada às outras pessoas, é uma fala estritamente social.

326
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

Contudo, por volta dos três anos de idade, surge uma fala
que se difere da social, pois se direciona à própria criança.
Essa fala que a criança pronuncia direcionada a ela mesma
é denominada por Piaget (1999) e assumida por Vygotsky
(2008) de fala egocêntrica.
A fala egocêntrica apresenta a função de planejamento das
ações e da resolução de problemas, o que quer dizer que tem
o papel de reorganizar a ação de forma que a criança possa
agir intencionalmente no meio, por isso se diferencia da fala
socializada (VYGOTSKY, 2008). Vejamos o exemplo quatorze,
a criança (dois anos sete meses), manuseando papel ofício e
canetinhas coloridas, fazendo círculos no papel. Enquanto
desenhava, falava.

Exemplo Nº 14
Via — Vô desenha uva roxa, é é é bacaxi, é é morango.
(Enquanto fala faz círculos no papel) bacaxi amalelo, ainda
não desenhei tá faltando a cor [...] essa cor não tá prestano
mais, mas essa aqui tá boa, nem essa, nem essa, nem essa,
nem essa. Essa aqui não é muito boa, não é muito boa, não é
muito boa. Tícia escondeu! Vô pegar (sai correndo à procura
das canetas) (Diário de campo, dez. 2020).

327
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

Nesse exemplo, compreendemos que os enunciados da


criança têm a intenção de planejar as suas ações. Primeiro a de
planejar os seus desenhos, mas em seguida ela se depara com
o problema das canetinhas não estarem funcionando. Nesse
momento, ela percebe que a irmã escondeu as canetinhas que
estavam funcionando e, na medida em que diz que a irmã
escondeu, sai para procurar dizendo que vai pegar. Aqui
também podemos evidenciar a fala planejando a ação de ir
à procura das canetinhas para pegá-las. Portanto, admitimos
que esse excerto apresenta característica de uma fala egocên-
trica conforme descreve Vygotsky (2008).
Para Vygotsky (2008), a fala egocêntrica corresponde a
uma fase de transição entre a fala puramente social para a
fala interior, aquela direcionada ao próprio sujeito. A esse
respeito ele esclarece que “[...] fala interior não é um ante-
cedente da fala exterior, nem a sua reprodução na memória
[...]” (VYGOTSKY, 2008, p. 164), mas a interiorização da fala
exterior em pensamento.
O desenvolvimento da fala interior se dá de forma gra-
dual, por meio de mudanças em suas estruturas, que faz
com que, em certo momento, haja uma ruptura com a fala
exterior egocêntrica. Essa fala internalizada passa a compor
as funções mentais, manifestando-se através do “pensar para
si próprio” (VYGOTSKY 2008, p. 22), ou seja, “[...] torna-se

328
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

a estrutura básica do pensamento” (VYGOTSKY, 2008, p.


62), do pensamento verbal. A partir da internalização, a fala
interior passa a conduzir pensamentos e comportamentos
do sujeito por toda sua vida. São os discursos internos que
orientam e planejam os fazeres, a resolução dos problemas,
que refletem sobre questões que lhe dizem respeito. Vejamos
as palavras de Vygotsky (1998, p. 117):

A linguagem surge inicialmente como um meio de comu-


nicação entre a criança e as pessoas em seu ambiente.
Somente depois, quando da conversão em fala interior,
ela vem a organizar o pensamento da criança, ou seja,
torna-se uma função mental interna.

Portanto, a partir da internalização da fala, a criança passa


a dispor do instrumento do pensamento verbal. Esse discurso
interior (pensamento verbal) está a todo tempo acompanhando
o sujeito e chega, algumas vezes, a ser exprimido, como que
de forma involuntária.
Ademais, o domínio da linguagem incide de forma direta
no processo de socialização do sujeito e nos aspectos da afe-
tividade da criança. Isso quer dizer que o desenvolvimento
da linguagem não promove mudanças somente no campo
cognitivo, mas também modifica as condutas sociais e afetivas
da criança. Aliás, convém destacar que não existe um cogni-
tivo desvinculado do afetivo e do social, mas esses campos

329
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

estão imbricados e materializados na corporeidade de cada


sujeito. Para Vygotsky (2008, p. 9): “É no sistema dinâmico
dos significados que o afetivo e o intelecto se unem”.

Considerações finais

A partir do que foi discutido, compreendemos que a apro-


priação da linguagem oral pelas crianças está diretamente
atrelada ao acesso às experiências mediadas pela linguagem.
Assim, é participando da teia dialógica, ouvindo, mas, sobre-
tudo, fazendo uso da linguagem, nomeando, conversando,
planejando suas ações, questionando, resolvendo problemas,
narrando, cantando e brincando que as crianças ampliam as
suas capacidades discursivas e de pensamento.
Nesse processo, fica claro que é o outro mais experiente,
parceiro do diálogo, que vai possibilitar, ou não, que as crian-
ças tenham oportunidades de interagir com a palavra por
meio do uso que esses sujeitos mais experientes fazem da
linguagem em interação com o bebê ou criança bem pequena.
Além de ser referência de linguagem para o bebê e criança
bem pequena, é o outro mais experiente que dá significados
às expressões das crianças, aos choros, aos balbucios, aos
gestos, às palavras. No movimento de significação, o outro

330
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

devolve para criança uma unidade de sentido, possibilitando a


entrada da criança nos significados das palavras e na cultura.
Assim, explicitamos que o modo como o outro mais
experiente interage verbalmente com a criança — fazendo
uso de um amplo vocabulário, dando sentido às expressões
das crianças, problematizando suas falas, instigando-as a
falar, ouvindo-as e dialogando com elas é determinante nesse
processo. Consequentemente, ações como conversar com as
crianças em momentos de cuidado, alimentação, higiene,
brincadeiras são de fundamental importância, como também
os jogos orais, brincadeiras cantadas, contação de histórias,
entre outras situações nas quais as crianças e o outro mais
experiente possam se envolver.
Portanto, é mediante a inserção da criança na corrente
ininterrupta da linguagem, e pela interação que ela gradativa-
mente se apropria da linguagem oral e vai, simultaneamente,
ampliando a sua capacidade discursiva nas complexas intera-
ções verbais, nas quais o outro mais experiente desempenha
papel crucial, como verificamos em nossas análises.
Por fim, convém reiterar que ao dominar a fala as crian-
ças desenvolvem um funcionamento psicológico que lhes
possibilita agir no meio de forma mais elaborada, pois a fala
a) potencializa todos os campos da percepção sensorial; b)
possibilita a capacidade de pensar; c) aperfeiçoa a comunicação

331
APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ORAL NOS TRÊS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

e, por consequência, a interação social; d) suscita a apropriação


da experiência social por meio da educação e e) propicia a
projeção no tempo (passado e futuro), pela capacidade de
planejar a ação futura e retomar o passado por meio das nar-
rativas. Nesse processo, as crianças vão constituindo as suas
subjetividades e se forjando como seres histórico-culturais.

332
Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

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Silvana de Medeiros da Silva
Mariangela Momo

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335
O TRABALHO PEDAGÓGICO
COM A LINGUAGEM ORAL
NA EDUCAÇÃO INFANTIL NO
CONTEXTO DO ATENDIMENTO
EDUCACIONAL HOSPITALAR
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

1 Introdução

O atendimento pedagógico educacional hospitalar, deno-


minado pela Política Nacional de Educação Especial-MEC/
SEESP como classe hospitalar (BRASIL, MEC/SEESP, 1994),
é destinado às crianças e adolescentes que se encontram hos-
pitalizados e visa à continuidade e acompanhamento dos seus
processos de desenvolvimento e aprendizagem. Essa moda-
lidade oportuniza o atendimento pedagógico-educacional

336
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

das necessidades do desenvolvimento psíquico e cognitivo


de crianças ou jovens e promove a continuidade do ensino
dos conteúdos da instituição escolar de origem do aluno, ou
trabalha-os de acordo com a sua faixa etária e necessidades
de aprendizagem.
Diante disso, considerando que o atendimento peda-
gógico educacional hospitalar assegura o direito à educa-
ção das crianças e adolescentes que por questões de saúde
são afastadas da escolar regular, a presente pesquisa tem
como objetivo principal discutir as práticas pedagógicas
que estimulam a linguagem oral de crianças de zero a cinco
anos de idade, desenvolvidas em uma classe hospitalar do
Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL/EBSERH/
UFRN. Acreditamos que, por meio da linguagem oral, as
crianças interagem socialmente, expressam seus sentimentos,
pensamentos e ideias, orientam suas ações, desenvolvem o
pensamento, constroem conhecimentos, aprendem sobre si,
sobre a natureza e a sociedade e conhecem diversos gêneros
textuais orais. Portanto, a ampliação da linguagem oral é de
suma importância para o desenvolvimento dos educandos
hospitalizados.
A escolha da temática deste capítulo é fruto da nossa expe-
riência no projeto de pesquisa PVN14388-2017 – “Linguagem
Oral e Escrita na Educação Infantil: analisando práticas

337
O TRABALHO PEDAGÓGICO COM A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO
INFANTIL NO CONTEXTO DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL HOSPITALAR

pedagógicas no âmbito de uma classe hospitalar”, coordenado


por Jacyene Melo de Oliveira Araújo. Pudemos investigar o
atendimento educacional hospitalar de crianças de zero a cinco
anos de idade e o trabalho pedagógico com a linguagem oral
em uma classe hospitalar situada na Unidade de Pediatria do
Hospital Universitário Onofre Lopes (HUOL), desde março
de 2020 até 07 de março de 2022. Assim, nesse tempo de
pesquisa, foi possível vivenciar o atendimento educacional
hospitalar durante o período anterior à pandemia da covid-191
e durante o período pandêmico.
Dessa forma, este trabalho surgiu a partir do nosso contato
com o ambiente educacional hospitalar. Além disso, perce-
bemos que essa modalidade de atendimento ainda é pouco
conhecida pela sociedade em geral e, por vezes, podem ser
negligenciados pelos setores educacionais e de saúde, conforme
Fonseca reitera:

Você sabia que a atenção à escolaridade da criança doente,


esteja ela hospitalizada ou não, não se constitui em uma
área nova entre as áreas do conhecimento nem na prá-
tica profissional? Mesmo assim, as questões referentes ao
acompanhamento do ensino de crianças nessa condição

1 A covid-19 é uma doença infecciosa respiratória causada pelo coronavírus


SARS-CoV-2. Em 11 de março de 2020, a OMS declarou a covid-19 uma
pandemia. Fonte: https://www.publico.pt/2022/03/11/sociedade/noticia/
dois-anos-covid19-sabe -nao-sabe-pandemia-1998401.

338
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

são ainda muitíssimo desconhecidas pela sociedade em


geral e chegam até mesmo a ser negligenciados pelos setores
educacionais e de saúde (FONSECA, 2011, p. 14).

Atualmente, Fonseca (2020) enfatiza que ainda há des-


conhecimento desta modalidade de ensino e negligência
por parte dos setores educacionais. Para a devida implanta-
ção e adequado funcionamento, é preciso mais divulgação
e empenho de todos, principalmente pela administração
pública. Dessa forma, além de contribuirmos para a difu-
são dessa informação tão importante, consideramos que
a presente pesquisa possui relevância acadêmica, social e
profissional, uma vez que também contribui para promover
o conhecimento da importância dessa modalidade de ensino,
que assegura a continuidade da aprendizagem de crianças
e adolescentes afastados da escola regular por questões de
internação hospitalar.
Ademais, quanto ao atendimento educacional hospitalar
de crianças que estão na etapa da Educação Infantil, Fonseca
(2008) afirma que são poucas as escolas hospitalares que
dispõem de atendimento para esse público. Destacamos
a necessidade da atenção à Educação Infantil também na
modalidade da Educação no contexto hospitalar, tendo em
vista que “cerca de 60% das crianças que se hospitalizam em
idade escolar já tiveram períodos de internações anteriores, e

339
O TRABALHO PEDAGÓGICO COM A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO
INFANTIL NO CONTEXTO DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL HOSPITALAR

é por isso que a Educação Infantil, até mesmo no hospital não


deve e não pode ser negligenciada” (FONSECA, 2008, p. 91). O
atendimento educacional de crianças de zero a cinco anos de
idade contribui para o seu desenvolvimento e aprendizagem,
sendo assim, para os pequenos hospitalizados, ele é necessário,
uma vez que em decorrência de sua condição de saúde deixa
de conviver ou se afasta da escola, familiares e amigos.
A doença não pode ser um impedimento para a con-
tinuidade das aprendizagens das crianças. Corroboramos
com Fonseca, ao afirmar que “a criança é, antes de qualquer
coisa, um cidadão que, como qualquer outro, tem direito ao
atendimento de suas necessidades e interesses mesmo quando
está com sua saúde comprometida” (FONSECA, 2008, p. 17).
Além disso, segundo Rocha (2012), a hospitalização, muitas
vezes, sufoca a criança com suas rotinas e procedimentos
invasivos. Diante disso, a classe hospitalar é um lugar que
proporciona conforto e ludicidade para os infantes, ela se
caracteriza como “um refúgio que permite vivenciar uma
pluralidade de atividades e sensações que podem sucumbir,
por alguns momentos, o infortúnio da dor e do sofrimento”
(ROCHA, 2012, p. 123).
Quanto ao ensino da linguagem oral na etapa da Educação
Infantil, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil – DCNEI (BRASIL, 2010) propõem em suas práticas

340
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

pedagógicas experiências que possibilitem às crianças narra-


rem, apreciarem e interagirem com a linguagem oral e escrita,
bem como conviverem com diferentes suportes e gêneros
textuais e orais (BRASIL, 2010). Com relação à importância
da oralidade na Educação Infantil, a Base Nacional Comum
Curricular – BNCC (BRASIL, 2017), em seu campo de expe-
riência intitulado “Escuta, fala, pensamento e imaginação”,
aponta que são nas experiências em que a oralidade está
presente que as crianças se constituem como sujeito singular
e pertencente a um grupo social, vejamos:

Na Educação Infantil, é importante promover experiências


nas quais as crianças possam falar e ouvir, potencializando
sua participação na cultura oral, pois é na escuta de his-
tórias, na participação em conversas, nas descrições, nas
narrativas elaboradas individualmente ou em grupo e nas
implicações com as múltiplas linguagens que a criança se
constitui ativamente como sujeito singular e pertencente
a um grupo social (BRASIL, 2017).

Nesse sentido, o presente capítulo está estruturado em


oito tópicos, tematizados da seguinte maneira:
1. Introdução com a apresentação do tema, definimos o
objetivo, a justificativa e relevância do trabalho.
2. Na metodologia, apresentamos a abordagem e os pro-
cedimentos utilizados para realizar a investigação.

341
O TRABALHO PEDAGÓGICO COM A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO
INFANTIL NO CONTEXTO DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL HOSPITALAR

3. A importância do atendimento educacional hospitalar.


4. A relação da criança com a linguagem oral.
5. A Classe hospitalar do Hospital Universitário Onofre
Lopes. Este tópico está subdividido em dois: o pri-
meiro caracteriza o ambiente educacional hospitalar
e o segundo discute o trabalho pedagógico com a
linguagem oral.
6. Concluímos com a exposição das nossas considerações
finais.
7. Por fim, trazemos as nossas referências bibliográficas.

2 Metodologia

Nossa pesquisa insere-se na Abordagem Qualitativa da


Pesquisa Educacional que, de acordo com Bogdan e Biklen
(1994), caracteriza-se pela recolha dos dados por meio do
contato direto do investigador com o ambiente e contexto
a ser investigado. Nessa abordagem, a investigação se dá de
forma descritiva, ou seja, os dados recolhidos são em forma
de palavras ou imagens e não números, além de haver um
interesse maior pelo processo do que pelos resultados ou
produtos e os investigadores preocupam-se com a perspectiva
dos participantes. Os dados recolhidos, de acordo com essa

342
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

abordagem, não objetivam confirmar ou negar hipóteses


construídas previamente, mas, sim, construir abstrações à
medida que os dados particulares que foram recolhidos vão
se agrupando; assim, as questões importantes são percebidas
após efetuar a investigação.
Dessa forma, considerando o objeto de estudo e pres-
supostos dessa abordagem, utilizamos como procedimento
para o processo investigativo a análise documental, a análise
bibliográfica e a observação participante. A análise documen-
tal aconteceu por meio da leitura de planejamentos e projetos
de pesquisa elaborados pelas docentes da Classe Hospitalar
do HUOL, documentos oficiais, leis e dados secundários do
projeto de pesquisa, tais como entrevistas e questionários.
A análise bibliográfica ocorreu por meio da leitura de livros
e artigos sobre o tema. Já a observação participante se deu
pelo contato com a Classe Hospitalar do HUOL de forma
pessoal, assim como por meio de recursos digitais, tais como
videochamada por WhatsApp e Google Meet. A adoção do
uso de recursos digitais se fez necessária devido ao contexto
imposto pela pandemia causada pela covid-192.

2 Devido à pandemia da covid-19, o governo do Rio Grande do


Norte suspendeu as aulas presenciais no dia 17 de março de
2020. Em caráter emergencial, foi instituído o ensino remoto.
Nesta modalidade, alunos e professores desenvolvem ativida-
des pedagógicas não presenciais que podem se dar por meio
de recursos tecnológicos ou envio de atividades. Para mais

343
O TRABALHO PEDAGÓGICO COM A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO
INFANTIL NO CONTEXTO DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL HOSPITALAR

3 Importância do atendimento
educacional hospitalar

A classe hospitalar, em sua prática educacional diária,


proporciona o atendimento e a intervenção pedagógico-e-
ducacional das necessidades do desenvolvimento psíquico e
cognitivo da criança ou adolescente, visa dar continuidade
ao ensino dos conteúdos da sua escola de origem e operam
com conteúdos programáticos próprios à sua faixa etária, o
que os oportuniza a adquirir novos aprendizados ou a sanar
dificuldades de aprendizagem (FONSECA, 1999).
O atendimento educacional realizado nas classes hospi-
talares possibilita ao professor detectar “dentre as crianças
que frequentam a classe hospitalar aquelas que, apesar de
estarem em idade de obrigatoriedade escolar, já abandonaram
ou nunca chegaram a frequentar a escola” (FONSECA, 2008,
p. 18). Em pesquisas realizadas por Ceccim (1999) em classes
hospitalares no ano de 1998, foi detectado que muitas crianças
apresentavam evasão e defasagem escolar de até três anos.
Dessa forma, o atendimento realizado na classe hospitalar
além de servir à manutenção das aprendizagens escolares,

informações, acesse: https://novaescola.org.br/conteudo/20374/


ensino-remoto-nao-e-ead-e-nem-homeschooling#:~:text=O%20
ensino%20remoto%2C%20em%20que,com%20as%20propostas%20e
ducacionais%20mesmo.

344
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

possibilita o retorno e reintegração da criança ou adolescente


à escola regular:

A possibilidade de atendimento em classes hospitalares


serve à manutenção das aprendizagens escolares, ao retorno
e reintegração da criança ou jovem ao seu grupo escolar
e como acesso à escola regular, uma vez que algumas das
crianças hospitalizadas em idade de frequência escolar não
estão formalmente matriculadas na rede de ensino. Quando
a ausência da criança à escola decorre de sua história de
adoecimento e tratamento hospitalar, a frequência à classe
hospitalar incentiva a criança e a família a buscarem a
escola regular após a alta hospitalar (FONSECA, 1999,
p. 14).

O afastamento da criança ou adolescente de sua escola


regular, em decorrência da hospitalização, pode desmotivá-la
a continuar estudando, conforme Fonseca destaca:

Se a criança se vê ou se sente obrigada pela problemática


de saúde a um afastamento, mesmo que temporário, de
sua escola, tal fato pode levá-la não apenas a “perder o
ano”, mas pode tanto desmotivá-la a continuar os estudos
quanto fazê-la considerar-se incapaz de aprender porque
é doente (FONSECA, 2008, p. 18).

Segundo Fonseca, “para o aluno hospitalizado, as relações


de aprendizagem numa escola hospitalar são injeções de

345
O TRABALHO PEDAGÓGICO COM A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO
INFANTIL NO CONTEXTO DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL HOSPITALAR

ânimo, remédio contra os sentimentos de abandono e isola-


mento, infusão de coragem, instilação de confiança no seu
progresso e em suas capacidades” (2008, p. 34). O contato da
criança ou adolescente hospitalizado com a classe hospitalar
é o lado saudável do estar doente, e “essa interferência gera
uma energia positiva no corpo da criança, o que colabora
para uma recuperação mais rápida da condição de saúde”
(FONSECA, 2008, p. 95).
Desse modo, a escola, no ambiente hospitalar, é uma
oportunidade extra de resgate da criança para a escola. Essa
modalidade de ensino não interfere apenas no desempe-
nho acadêmico da criança, mas também “na visão que essa
mesma criança possa ter de sua doença e das perspectivas de
cura” (FONSECA, 2008, p.19). O atendimento educacional
Hospitalar e o contato com o professor é uma oportunidade
de aproximar as crianças dos seus padrões cotidianos de vida.
Para Ceccim (1997), a manutenção do encontro peda-
gógico educacional favorece a construção subjetiva de uma
estabilidade de vida:

A escolarização constitui o mais potente agenciamento da


subjetividade (excluída a família) na sociedade contempo-
rânea e a manutenção do encontro pedagógico-educacional
favorece a construção subjetiva de uma estabilidade de
vida (não como elaboração psíquica da enfermidade e da

346
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

hospitalização, mas como continuidade e segurança diante


dos laços sociais da aprendizagem (CECCIM, 1997, p. 35).

Ademais, em um estudo feito por Ceccim e Fonseca


(CECCIM, 1999), no Rio de Janeiro, que investigou um grupo
de crianças que tiveram atendimento pedagógico educacional
e outro grupo que não teve esse atendimento (todos os grupos
tinham motivos da internação e características semelhantes),
detectou que o tempo de hospitalização das crianças que
receberam atendimento educacional hospitalar foi 30% mais
curto do que as crianças que não tiveram o mesmo tipo de
atendimento. O autor cita que a possibilidade de saída do
leito, a proposição de atividades motivadoras, e a observação
de outras crianças que vivenciaram as mesmas experiências
contribuíram para “um melhor desenvolvimento e a mais
rápida recuperação de saúde das crianças” (CECCIM, 1999,
p.44).
Dessa maneira, Ceccim, por meio das suas pesquisas,
constatou que a oferta do atendimento educacional hospitalar,
mesmo que por um curto período,

[...] tem caráter de atendimento educacional e de saúde


para a criança hospitalizada, uma vez que esta pode
atualizar suas necessidades, desvincular-se, mesmo que
momentaneamente, das restrições que um tratamento
hospitalar impõe e adquirir conceitos importantes tanto à

347
O TRABALHO PEDAGÓGICO COM A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO
INFANTIL NO CONTEXTO DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL HOSPITALAR

sua vida escolar quanto pessoal, acolhendo um outro tipo


de referendamento social à subjetividade e podendo sentir
que continua aprendendo e indo à escola, portanto, reno-
vando seu ser criança e renovando potências afirmativas
de invenção da vida (CECCIM, 1999, p. 44).

Rocha (2012), em sua dissertação de mestrado, na qual


teve como foco as narrativas de crianças hospitalizadas com
doenças crônicas, concluiu que a classe hospitalar é um local
de conforto e ludicidade, em que as crianças se sentem seguras,
à vontade e continuam desempenhando atividades que faziam
antes da internação. Desse modo, foi percebido que essas
ações diminuem o estresse causado pela hospitalização por
ser um lugar de conhecimento, no qual promove esperança
de vida, alegria, interação e retorno de ações cotidianas de
vida das crianças.
Por fim, assim como Rocha (2012), consideramos que o
atendimento educacional hospitalar vai além da garantia da
continuidade das aprendizagens das crianças em tratamento
de saúde. Por meio das narrativas das crianças hospitalizadas,
a autora concluiu que o atendimento educacional hospitalar
contribuiu para:

a construção de estratégias de enfrentamento ao adoeci-


mento e à hospitalização. Sobretudo porque as vivências
nesse espaço propiciam a produção de subjetividades, o

348
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

que leva, inevitavelmente, à (re)construção de identidades e


maneiras de viver e compreender a infância hospitalizada,
fortalecendo os aspectos emocionais, sociais e cognitivos
(ROCHA, 2012, p. 141).

4 A criança e a linguagem oral

De acordo com Vygotsky, a apropriação da linguagem,


que ocorre por meio da interação com o outro, é o processo
mais importante do desenvolvimento humano. Para ele,
“a fala tem um papel essencial na organização das funções
psicológicas superiores” (VYGOTSKY, 1984, p. 25). Vygotsky
considera que a linguagem ocupa papel central na relação
dos indivíduos com o mundo, pois possibilita o intercâmbio
entre os sujeitos e oportuniza a eles abstrair e generalizar o
pensamento (FELIPE, 2001).
Para Vygotsky, “todo contato que a criança estabelece com
o mundo é sempre mediado pela linguagem” (VYGOTSKY
apud AUGUSTO, 2011, p. 53) e essa relação supõe uma intera-
ção com o outro. Quanto à aprendizagem da linguagem pela
criança, Vygotsky (1984) diz que por meio da fala o indivíduo
infante organiza o seu comportamento, sua ação, assim como
controla seu próprio comportamento. Acerca da organização
do comportamento, o filósofo aponta, ainda, que “antes de

349
O TRABALHO PEDAGÓGICO COM A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO
INFANTIL NO CONTEXTO DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL HOSPITALAR

controlar o próprio comportamento, a criança começa a


controlar o ambiente com a ajuda da fala. Isso produz novas
relações com o ambiente, além de uma nova organização do
próprio comportamento” (VYGOTSKY, 1984, p. 27).
Ademais, o autor afirma que a fala também controla
o comportamento da criança, pois com a ajuda da fala as
crianças adquirem a capacidade de ser tanto sujeito como
objeto de seu próprio comportamento (VYGOTSKY, 1984).
Segundo ele, com relação à organização da ação, as crianças
resolvem suas tarefas práticas com a ajuda da fala e é por
meio desta que ela planeja como solucionar o problema e,
dessa forma, executa a solução elaborada por meio de uma
atividade visível.
A aquisição da linguagem é de suma importância para a
construção do pensamento da criança. Por meio da interação
e do diálogo com o outro, a criança desenvolve a inteligência
verbal que permite constituir o seu pensamento. Essa inte-
ligência, instrumentalizada pela linguagem, permite que a
criança aja em um plano mental, e passa a comparar, classi-
ficar, deduzir e inferir. Assim, o pensamento infantil torna-se
mais concreto à medida que a criança amplia seus recursos
de linguagem (OLIVEIRA et al., 2011). Acerca disso, Felipe
(2001) destaca que na teoria vygotskiana “o uso da linguagem
como instrumento do pensamento supõe um processo de

350
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

internalização da linguagem, que ocorre de forma gradual,


complementando-se em fases mais avançadas da aquisição
da linguagem” (2001, p. 29).
Segundo Fontana e Cruz (1997), a linguagem não é algo
estranho para a criança que ainda não fala, ela aprende a
falar por meio da imitação e repetição do ritual das relações
sociais cotidianas. Desse modo, para desenvolver a linguagem,
a criança depende das possibilidades que tem dentro de suas
relações sociais “de se aproximar, de compartilhar e de elabo-
rar os conteúdos e as formas de organização do conhecimento
histórica e culturalmente desenvolvidos e materializados nas
palavras” (FONTANA; CRUZ, 1997, p. 85).
Acerca disso, Augusto (2011) aponta que não precisamos
esperar que os bebês cresçam para conversar com eles, pois
a criança nasce com capacidade para ser um sujeito falante e
pode compreender, do seu modo, o que se passa ao seu redor
antes de desenvolver a linguagem. A autora diz que é por
meio das oportunidades de ouvir e participar de situações
comunicativas cotidianas que as crianças ampliam referências
para aprenderem sobre os usos da linguagem. Assim, por meio
da observação da fala do outro, a criança passa a imitá-lo na
tentativa de se comunicar.
Ademais, o documento “Campos de experiências: efe-
tivando direitos e aprendizagens na educação infantil”,

351
O TRABALHO PEDAGÓGICO COM A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO
INFANTIL NO CONTEXTO DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL HOSPITALAR

publicado pelo Ministério da Educação/MEC, em 2018, e que


dá orientações sobre as maneiras de organizar as atividades
pedagógicas nas unidades de educação infantil, expõe que
o professor pode proporcionar experiências que as crianças,
desde bebês, brinquem com a linguagem oral e a utilizem em
situações criadas em diferentes contextos em que convivem.
Estes momentos são referências para o desenvolvimento da
fala (BRASIL, 2018).
Diante disso, destacamos a importância de a oralidade ser
trabalhada com as crianças desde pequenas no contexto edu-
cacional. Para Leal, Albuquerque e Morais (2007), a linguagem
ocupa um papel central nas relações sociais protagonizadas
por adultos e crianças. Além disso, é por meio da oralidade
que “as crianças participam de diferentes situações de inte-
ração social e aprendem sobre elas próprias, sobre a natureza
e sobre a sociedade” (LEAL; ALBUQUERQUE; MORAIS,
2007, p. 69). Os autores afirmam que as crianças ampliam
suas capacidades de compreensão e produção de textos orais
na instituição escolar e isso favorece a sua convivência com
uma variedade maior de contextos de interação e promove
sua reflexão sobre essas situações.
Segundo os linguistas Marcuschi e Dionísio (2007), a
língua é uma prática social que produz e organiza as formas
de vida, as formas de ação e as formas de conhecimento, e

352
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

nos torna diferentes dos animais, pois nos permite cooperar


intencionalmente. Ademais, mais do que um comportamento
individual, “ela é uma atividade conjunta e trabalho coletivo,
contribuindo de maneira decisiva para a formação de iden-
tidades sociais e individuais” (MARCUSCHI; DIONISIO,
2007, p. 14).
Marcuschi conceitua a oralidade como “uma prática social
interativa para fins comunicativos que se apresenta sob varia-
das formas ou gêneros textuais fundados na realidade sonora;
ela vai desde uma realização mais informal à mais formal nos
mais variados contextos de uso” (MARCUSCHI, 2010, p. 25).
Com relação ao ensino da oralidade no contexto escolar,
Marcuschi e Dionisio (2007) defendem que é necessário
estudar as questões relacionadas à oralidade como ponto de
partida para entender o funcionamento da escrita. Para os
linguistas, a linguagem oral influencia a escrita, sobretudo
no período inicial da alfabetização:

[...] a criança, o jovem ou o adulto já sabe falar com pro-


priedade e eficiência comunicativa sua língua materna
quando entra na escola, e sua fala influencia a escrita,
sobretudo no período inicial da alfabetização, já que a fala
tem modos próprios de organizar, desenvolver e manter as
atividades discursivas. Esse aspecto é importante e permite
entender um pouco mais as relações sistemáticas entre

353
O TRABALHO PEDAGÓGICO COM A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO
INFANTIL NO CONTEXTO DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL HOSPITALAR

oralidade e escrita e suas inegáveis influências mútuas


(MARCUSCHI; DIONÍSIO, 2007, p. 15).

Sobre o trabalho com a oralidade na etapa da educação


infantil, o Referencial Curricular Nacional para a Educação
Infantil (RCNEI), em seu 3º volume, aponta que umas das
tarefas dessa modalidade de atendimento é “ampliar, integrar
e ser continente da fala das crianças em contextos comu-
nicativos para que ela se torne competente como falantes”
(BRASIL, 1998, p. 135), já que o maior contato de situações
comunicativas e expressivas resultam no desenvolvimento
das capacidades linguísticas infantis. O documento também
reconhece a importância do discurso oral no processo de
letramento das crianças.

5 Classe hospitalar do Hospital Universitário


Onofre Lopes – HUOL/EBSERH/UFRN

5.1 Funcionamento da classe hospitalar do Hospital


Universitário Onofre Lopes – HUOL/EBSERH/UFRN

A classe hospitalar do HUOL funciona em uma sala


situada no setor de pediatria. Ela possui uma pequena mesa
colorida com cinco cadeiras; uma mesa grande com 4 cadeiras;
um armário que armazena diversos jogos, livros e materiais

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Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

didáticos e escolares variados; uma escrivaninha que comporta


o computador e gavetas onde são guardados materiais esco-
lares diversos; e um mural em que as atividades das crianças
ficam expostas. Na sala, também há diversos brinquedos.
Em relação aos recursos tecnológicos, há um televisor e um
computador.
Importante destacar que a mesa pequena em que, normal-
mente, são feitos os atendimentos, tem tamanho adequado
para a altura das crianças. Assim, os livros, jogos, materiais
didáticos, atividades realizadas por elas e brinquedos são
dispostos ao seu alcance. Com isso, as crianças têm autonomia
de pegar esses materiais e manuseá-los, assim como também
podem escolher livros, jogos ou brinquedos e pegá-los como
empréstimo. A equipe multidisciplinar da classe hospitalar do
HUOL é formada por duas professoras, ambas com formação
em Pedagogia, e uma psicóloga.
As docentes da classe hospitalar do HUOL trabalham com
um currículo flexibilizado, pois o hospital atende crianças de
diferentes faixas etárias. Silva e Chagas (2018) ressaltam que
além do atendimento educacional hospitalar se caracterizar
por ser constituído por turmas multisseriadas, também há
uma grande diversidade social, cultural, curricular e emo-
cional, assim como há diferentes patologias. Desse modo, o
planejamento deve considerar as necessidades pedagógicas

355
O TRABALHO PEDAGÓGICO COM A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO
INFANTIL NO CONTEXTO DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL HOSPITALAR

e especificidades de cada aluno. As professoras trabalham


com um planejamento coletivo, mas fazem adaptações de
forma que respeite as individualidades, especificidades e
necessidades de cada aluno.
A rotina diária da classe hospitalar do HUOL é iniciada
com a impressão e consulta do censo, no qual as docentes
podem ver o quantitativo de crianças internadas na ala de
pediatria, os seus leitos, nomes e data de nascimento. No censo,
que é emitido diariamente, as docentes também têm como
saber quais crianças não podem receber atendimento, como,
por exemplo, as que estão em situação de isolamento. Logo
após a consulta do censo, as professoras passam nos leitos
para convidar as crianças para assistirem a aula. Importante
destacar que as crianças sempre são consultadas se querem
assistir à aula, e sua vontade é respeitada pelas docentes. No
entanto, durante as observações, notamos que as crianças
apresentam grande interesse em participar das aulas e, quando
elas não têm condições clínicas de irem para a classe hospitalar,
o atendimento é realizado no leito.
Por meio das observações, foi possível perceber que os
momentos que constituem a rotina da classe hospitalar não
apresentam diferenças marcantes do dia a dia de uma sala de
aula regular. A aula normalmente é iniciada com a acolhida,
roda de conversa, momento da aula expositiva, atividades e

356
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

brincadeiras livres. A maior diferença diz respeito às condições


clínicas das crianças, que às vezes têm que interromper o
atendimento para realizar procedimentos médicos ou, em
decorrência do seu estado de saúde, precisam permanecer
por pouco tempo no local.
Antes de relatar as práticas pedagógicas realizadas com a
linguagem oral desenvolvidas na classe hospitalar do HUOL,
faz-se necessário contar o percurso da pesquisa. Nesse con-
texto, a investigação teve três momentos distintos mediante as
condições impostas pela pandemia da covid-19. Inicialmente,
as observações foram feitas no período anterior à pandemia,
assim, o atendimento se dava de forma presencial; no período
pandêmico, o atendimento passou a ser feito de forma remota;
e, após a vacinação, houve a retomada gradual das atividades
presenciais. Importante destacar que, durante todo o período
da pesquisa, tivemos encontros formativos com as classes
hospitalares do Rio Grande do Norte, em sua maior parte
de forma remota devido ao período pandêmico.

357
O TRABALHO PEDAGÓGICO COM A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO
INFANTIL NO CONTEXTO DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL HOSPITALAR

5.2 Práticas pedagógicas com a linguagem oral


desenvolvidas na classe hospitalar do Hospital
Universitário Onofre Lopes –HUOL/EBSERH/UFRN

No primeiro momento, antes do período pandêmico, no


início do mês de março em 2020, pudemos observar quatro
aulas realizadas na classe hospitalar. Esses encontros eram
iniciados com as docentes passando nos leitos para convidar
as crianças para as aulas. Algumas crianças ficavam na porta
da classe hospitalar aguardando entusiasmadas o início do
atendimento. Antes do início da aula, as crianças brincavam
livremente, logo após, era realizada a roda de conversa seguida
da produção das atividades.
A classe hospitalar recebia alunos de faixas etárias diversas
(havia crianças com idade correspondente à etapa da educação
infantil e outras que correspondiam a turmas de 1º e 2º ano do
Ensino Fundamental) e, muitos deles, iam acompanhados das
mães ou outros familiares. Desse modo, as crianças pequenas
interagiam com as maiores, com os seus familiares, com as
docentes e com os profissionais de saúde do hospital (em
momentos em que algum procedimento era possível de ser
realizado na classe hospitalar).
Essas interações eram sempre mediadas pela oralidade.
Acerca do papel do outro no processo de aprendizagem da

358
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

linguagem pela criança, Fontana e Cruz (1997) afirmam que


as interações verbais com os adultos, crianças mais velhas e
produtos culturais (livros, revistas, jornais, televisão, propa-
gandas etc.) produzem mudanças nas formas de utilização e
de compreensão das palavras ao longo do desenvolvimento
infantil. São nessas relações que “a criança integra-se ao
fluxo da comunicação verbal, adquirindo novas palavras e
ampliando as possibilidades de significação daquelas que já
conhece” (FONTANA; CRUZ, 1997, p. 101).
Assim, quando a criança interage com adultos ou crianças
mais velhas na classe hospitalar do HUOL, são apresentados
a elas significados estáveis ou sentidos possíveis de determi-
nadas palavras em seu grupo social, desse modo, a palavra do
outro contribui para que ela possa elaborar o significado de
novas palavras (FONTANA; CRUZ, 1997). Ainda segundo as
autoras, é nesse movimento interativo que a criança organiza
e transforma seus processos de elaboração do significado
das palavras, desenvolvendo-se. Desse modo, o desenvolvi-
mento da elaboração conceitual da palavra não é resultado
de um processo individual, intelectual ou cognitivo, mas
sim o resultado da prática social da criança nas diferentes
instituições sociais.
Durante as brincadeiras livres, pudemos observar que as
crianças tinham autonomia para escolher do que queriam

359
O TRABALHO PEDAGÓGICO COM A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO
INFANTIL NO CONTEXTO DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL HOSPITALAR

brincar. As crianças menores de cinco anos de idade brinca-


vam de encenar que eram médicas, donas de casa e também
utilizavam jogos diversos. Um dos jogos que mais despertava o
interesse era o de mímica, no qual as crianças falavam bastante
ao tentarem adivinhar o que o outro estava gesticulando ou
dar pistas sobre o que estava imitando.
Para Leal e Silva, as brincadeiras de encenar possibilitam
a vivência de papéis em que a linguagem verbal reveste-se de
importância, pois:

Nessas situações as crianças representam os papéis sociais


mobilizados nas situações encenadas e, entre outras
características sociais imitadas, está o “modo de falar”,
incluindo-se o vocabulário e o estilo do texto, assim como
o grau de formalidade ou polidez. Nessas situações as
crianças falam ou tentam falar como se fossem médicos,
professores, mães, entre outros. Elas, assim, brincam de
falar “como se fossem outras pessoas” (LEAL; SILVA,
2010, p. 59).

Desse modo, ao exercer esses papéis sociais durante


as brincadeiras de encenar, as crianças aprendem que há
variações no modo de falar e refletem sobre o papel da lin-
guagem nas variadas situações (LEAL; SILVA, 2010). Acerca
das brincadeiras com os jogos que exploram as palavras, os
autores consideram que essas brincadeiras possibilitam que

360
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

as crianças possam desenvolver a consciência fonológica e


refletir sobre as unidades sonoras.
Além dos momentos privilegiados de diálogo, é perceptível
que as falas das crianças pequenas, suas opiniões e sugestões
são consideradas na classe hospitalar do HUOL. Podemos citar
como exemplo o dia em que as docentes decidiram realocar
os brinquedos que ficavam na sala da classe hospitalar para o
corredor da enfermaria. Como a classe hospitalar funcionava
apenas pela manhã e muitas crianças sentiam necessidade de
brincar, as docentes decidiram organizar uma brinquedoteca
no corredor para que todos pudessem ter acesso. Toda a
atividade foi realizada em parceria entre as docentes e as
crianças atendidas na classe hospitalar, que davam opiniões
e sugestões sobre como organizar o espaço e os brinquedos,
assim como ajudavam a organizá-los. O mais interessante
desse momento foi a interação e os diálogos entre as crianças,
as docentes e alguns familiares que presenciaram o momento.
Com o avanço da pandemia, as atividades presenciais da
classe hospitalar tiveram que ser interrompidas. Esse novo
cenário trouxe desafios para a continuidade do atendimento
educacional hospitalar, que foram ampliados pelas condições
socioeconômicas das famílias das crianças, entre eles, pode-
mos destacar a falta da oferta de Internet livre no hospital, a
falta de acesso ou limitação de Internet móvel pelos familiares,

361
O TRABALHO PEDAGÓGICO COM A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO
INFANTIL NO CONTEXTO DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL HOSPITALAR

a desmotivação dos estudantes, dificuldades dos familiares


com o uso de recursos digitais e a falta de retorno das escolas
de origem das crianças (ARAÚJO; OLIVEIRA; VIEIRA, 2021).
Para o enfrentamento desses desafios, foram elaboradas
estratégias como kits de atividades, vídeos e comunicação
por meio de plataformas digitais (WhatsApp e Google Meet).
As atividades elaboradas pelas docentes eram impressas e
levadas ao hospital para serem entregues para as crianças pela
equipe de psicologia, já que estes permaneciam atuando no
hospital. Cabe destacar que, por recomendações dos órgãos
oficiais de saúde, as docentes não tinham contato presencial
com as crianças.
Nesse sentido, o nosso contato com as docentes da classe
hospitalar se dava por meio de conversas pelo WhatsApp,
assim como chamadas de vídeos e reuniões no Google Meet.
As docentes mantinham contato por meio de conversas de
WhatsApp ou videochamada com as crianças que tinham
acesso aos recursos digitais, com as demais o contato era
intermediado pela equipe de psicologia que atua no hospital.
Nós realizamos, de forma colaborativa e em parceria com as
docentes da classe hospitalar, o planejamento e a confecção de
kits de atividades, direcionadas à etapa da educação infantil,
que foram baseadas no artigo 5º do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) (ARAÚJO; OLIVEIRA; VIEIRA, 2021).

362
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

Os kits contemplaram atividades que exploravam a lingua-


gem oral por meio de vídeos de contação de histórias, livros
de literatura infantil em formato pdf e contos impressos, que
podem ser lidos pelos familiares das crianças que ainda não
dominam a escrita alfabética. As atividades e leituras dos livros
podem ser realizadas com o auxílio de seus familiares. Assim,
quando a criança ainda não domina a escrita alfabética, mas
envolve-se em práticas de leitura e escrita através da mediação
de uma pessoa alfabetizada, elas podem desenvolver uma série
de conhecimentos sobre os gêneros que circulam socialmente,
sobre a língua e os textos lidos (ALBUQUERQUE, 2005).
Ademais, nesse tipo de prática as crianças se familiarizam
com a linguagem literária e ampliam seus repertórios textuais
(LEAL; SILVA, 2010).
Com o avanço da vacinação no país, um plano de retomada
das atividades presenciais da classe hospitalar do HUOL
foi elaborado de acordo com as orientações de prevenção
à covid-19 dos órgãos oficiais de saúde e da Secretaria de
Estado da Educação, da Cultura, do Esporte e do Lazer do
Rio Grande do Norte (SEEC/RN). Foi definida a adoção de
aulas híbridas, com regime presencial e remoto. As atividades
presenciais foram retomadas por volta do mês de agosto de
2021, seguindo todos os protocolos de segurança. Nosso

363
O TRABALHO PEDAGÓGICO COM A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO
INFANTIL NO CONTEXTO DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL HOSPITALAR

retorno presencial para observação das aulas ocorreu no mês


de novembro de 2021.
Por questões de segurança, os atendimentos estavam
sendo feitos individualmente, nos leitos ou na sala da classe
hospitalar. No entanto, quando as crianças estão na mesma
enfermaria são atendidas juntas na classe hospitalar. Nesse
período, havia poucas crianças internadas. Pudemos observar
dois atendimentos de uma criança de cinco anos de idade,
que chegou a ser atendida na sala da classe junto com outra
de nove anos de idade, já que estavam na mesma enfermaria.
Acompanhamos a professora na visita aos leitos para convidar
as crianças, desse modo, pudemos perceber que o diálogo
já se inicia nesse ambiente. Nesse momento, as docentes
identificam-se e conversam com as crianças, seus familiares
ou acompanhantes sobre o atendimento realizado na classe
hospitalar e as atividades a serem desenvolvidas no dia.
Durante a observação participante, observamos que
antes de iniciar as aulas, as docentes sempre explicam para
as crianças quais as atividades a serem realizadas. A rotina
diária das aulas se deu com a roda de conversa, seguida de
alguma contação de história ou exibição de vídeo, realização
de atividade e brincadeira livre. Percebemos, também, que no
momento da roda de conversa as crianças discutem, expõem
suas opiniões, ideias, pensamentos e sentimentos.

364
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

Desse modo, o momento da roda de conversa na classe


hospitalar do HUOL é um momento privilegiado de diálogo e
intercâmbio de ideias. Acerca disso, o Referencial Curricular
Nacional para a Educação Infantil aponta que a roda de
conversa é uma oportunidade para que a criança amplie suas
capacidades comunicativas:

Por meio desse exercício cotidiano as crianças podem


ampliar suas capacidades comunicativas, como a fluência
para falar, perguntar, expor suas ideias, dúvidas e descober-
tas, ampliar seu vocabulário e aprender a valorizar o grupo
como instância de troca e aprendizagem. A participação
na roda permite que as crianças aprendam a olhar e a
ouvir os amigos, trocando experiências (BRASIL, 1998).

A roda de conversa, além de uma oportunidade para


que a criança se expresse oralmente, também contribui para
que ela aprenda a conversar, o que faz da própria conversa
um conteúdo de aprendizagem (AUGUSTO, 2011). Nesses
momentos, a criança pode aprender a “ouvir o outro atenta-
mente voltando o seu olhar para quem está falando, aguardar
a troca de turnos de fala, saber ocupar seu lugar na interação”
(AUGUSTO, 2011, p. 59).
A linguagem oral foi explorada por meio de diferentes
recursos, tais como vídeos de desenhos educativos e leitura
realizada pelas docentes em voz alta de livros de literatura

365
O TRABALHO PEDAGÓGICO COM A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO
INFANTIL NO CONTEXTO DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL HOSPITALAR

infantil. A prática de contação de história realizada em voz


alta pelas docentes ou exibição de vídeos, seguida pelo reconto
feito pela criança é comum na prática pedagógica diária da
classe hospitalar do HUOL.
Para Leal e Silva (2010), quando as professoras leem para
a turma são oportunizadas aprendizagens sobre os textos,
a linguagem escrita e sobre as interações sociais mediadas
pela escrita. Assim, são nessas experiências culturais com
práticas de leitura e escrita, na maioria das vezes mediadas
pela oralidade, que as crianças vão se constituindo sujeitos
letrados (LEAL; ALBUQUERQUE; MORAIS, 2007).
Essas experiências incentivam as crianças a desenvolverem
o prazer pela leitura, pois elas se divertem ouvindo histó-
rias lidas ou contadas. Acerca disso, Brandão e Rosa (2010)
pontuam que, para que a vontade de ler seja despertada na
criança, é preciso que ela entenda o que é ler, assim, o seu
contato com a leitura em voz alta mediada pelas docentes faz
com que ela descubra o que é ler.
Desse modo, a leitura de histórias para crianças, além de
ampliar seu repertório de palavras, faz com que ela se fami-
liarize com a linguagem escrita e as convenções linguísticas
dos gêneros textuais. Brandão e Rosa destacam que a leitura
de histórias contribui para o processo de alfabetização, já que

366
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

as crianças aprendem conhecimentos importantes durante


esses momentos:

[...] a leitura de histórias permite ainda que as crianças


aprendam sobre a direção da escrita, sobre a existência
de outros sinais gráficos diferentes das letras, como os
sinais de pontuação, podendo também localizar letras e
palavras já conhecidas ou perceber rimas e a presença de
palavras “dentro” de outras, conhecimentos importantes
no processo de alfabetização (2010, p. 41-42).

É perceptível que a literatura infantil se faz presente


no cotidiano da classe hospitalar do HUOL. A literatura é
usada para auxiliar no ensino de conteúdos, assim como para
despertar o prazer na leitura. A literatura, além de mobilizar
diversos aspectos, tem um papel curativo e de evasão da
realidade, conforme destacam Brandão e Rosa:

Ao ouvirem histórias, as crianças são mobilizadas em


vários aspectos, envolvendo seu corpo, suas ideias, sua
linguagem, seus sentimentos, seus sentidos, sua memória,
sua imaginação. Além disso, a imagem que associa a experi-
ência de quem ouve histórias a um estado de contemplação,
de fruição, de “viagem”, de evasão da realidade, revela
apenas parcialmente o que é o contato com histórias e
seus impactos na infância (2010, p. 39).

367
O TRABALHO PEDAGÓGICO COM A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO
INFANTIL NO CONTEXTO DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL HOSPITALAR

De acordo com Amarilha, a literatura mediada pela


oralidade é atrativa na sala de aula pois “cria um clima de
comunidade em que todos estão envolvidos na mesma expe-
riência imaginária” (2012, p. 3). A oralização da narrativa
fornece à criança a possibilidade de ampliar sua capacidade
de antecipação sobre as estratégias da linguagem literária e
da construção de sentido. Assim, a oralização de uma história
enriquece a bagagem antecipatória do leitor, de modo a fami-
liarizá-lo com as estratégias da narrativa e, por conseguinte,
com as convenções da escrita, assim, essa prática introduz a
criança na leitura da literatura (AMARILHA, 2012).
Segundo Teberosky e Cardoso (1989 apud AMARILHA,
2012, p. 4), é por meio da “narração de contos que as crianças
começam a seguir o fio argumental da narração, a memorizar
os começos e os fins [...] Todos esses aspectos ajudam as
crianças a serem capazes de narrar por si só as histórias e,
mais para frente, facilitam-lhes a escrita”.
Ademais, o RCNEI pontua que a criança aprende a narrar
por meio dos jogos de contar e de histórias. Augusto (2011)
também faz uma importante consideração sobre o papel da
leitura de histórias pelo professor na construção da narrativa
infantil. Inicialmente, a criança assume o papel de ouvinte,
em seguida, por meio das perguntas mediadas pelo professor
e apoiada em seu discurso, a criança vai construindo suas

368
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

ideias e falas e, com isso, ela passa a utilizar recursos como a


colagem de trechos de histórias conhecidas ou memorizadas.
Desse modo, a criança passa a narrar de forma autônoma.
Durante a realização das atividades, o diálogo também se
fez presente. As crianças são convidadas a expressarem suas
ideias e dizerem o que vão produzir, assim como têm a oportu-
nidade de expor suas produções. Desse modo, quanto mais as
crianças puderem falar em diferentes situações, mais poderão
desenvolver suas capacidades comunicativas de maneira
significativa (BRASIL, 1998). A promoção de experiências na
educação infantil em que as crianças têm a oportunidade de
falar, descrever, narrar e explicar-se é requisito fundamental
para a construção e ampliação de saberes, assim como para
o fortalecimento da sua autonomia (BRASIL, 2018).
No decorrer da pesquisa, também tivemos acesso aos
planejamentos das aulas e projetos de pesquisa elaborados
pelas professoras. Nesses documentos, percebemos que as prá-
ticas pedagógicas com a linguagem oral são contempladas. O
projeto de pesquisa tem como objetivo proporcionar diálogos
problematizadores que auxiliam no posicionamento crítico
dos educandos. Como forma de metodologia, o projeto prevê
momentos de diálogo na roda de conversa, aulas expositivas
dialógicas, leitura e contação de histórias. A avaliação rea-
lizada pelas professoras se pauta em um processo contínuo,

369
O TRABALHO PEDAGÓGICO COM A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO
INFANTIL NO CONTEXTO DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL HOSPITALAR

em que são realizadas atividades orais e escritas de forma


individual ou coletiva. Ademais, nos planos de aula sempre
estão presentes os momentos da roda de conversa e contação
de história. Desse modo, percebemos que as práticas peda-
gógicas com a linguagem oral além de serem efetivadas, são
intencionais e planejadas pelas docentes.
Posto isso, apesar dos imprevistos acarretados pela pan-
demia da covid-19, que não nos permitiram vivenciar mui-
tos momentos presenciais no ambiente hospitalar, podemos
afirmar que as práticas pedagógicas com a linguagem oral na
classe hospitalar do HUOL sempre tiveram lugar privilegiado
no fazer pedagógico das docentes, uma vez que Wendos
(2020) e Araújo (2019), que já foram bolsistas de iniciação
científica do projeto de pesquisa que culminou na realização
do presente trabalho, observaram a efetivação do trabalho
com a oralidade. As pesquisadoras notaram que, na classe
hospitalar do HUOL, o diálogo com as crianças era constante,
elas tinham oportunidade de expressar seus pensamentos,
ideias e opiniões em vários momentos. A oralidade era cons-
tante durante a prática da roda de conversa e atividades de
contação de histórias (realizadas por meio da leitura em voz
alta pelas docentes), reconto e recriação de histórias (feito
pelas crianças).

370
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

6 Considerações finais

O presente trabalho nos permitiu perceber a importância


e o papel da classe hospitalar. A vivência na pesquisa nos
fez perceber que o trabalho realizado na classe hospitalar
do HUOL vai além da garantia do acesso ao atendimento
pedagógico educacional das necessidades do desenvolvi-
mento psíquico e cognitivo da criança. O espaço da classe
hospitalar do HUOL, além de garantir a continuidade do
processo de ensino, aprendizagem e desenvolvimento da
criança hospitalizada considerando as especificidades de
cada uma, também é um ambiente de alegria, de interação,
de diálogo e de afetividade.
Notamos em diversos momentos a alegria e entusiasmo
das crianças, que por diversas vezes já aguardavam a aula
começar na porta da classe hospitalar. Também observamos
a alegria delas quando as docentes vão aos leitos lhes con-
vidar para assistir a aula, em todas as vezes que estivemos
presente as crianças nunca se recusaram a participar. Assim,
constatamos que a classe hospitalar do HUOL é um lugar de
aprendizagens, sorrisos, afetos e alegria.
As vivências durante a pesquisa também nos permitiram
observar que criança atendida é pensada em sua integralidade,
ou seja, seus aspectos educacionais, emocionais, psicológicos,

371
O TRABALHO PEDAGÓGICO COM A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO
INFANTIL NO CONTEXTO DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL HOSPITALAR

sociais, familiares e econômicos são considerados. Posto


isso, cabe destacar que, apesar dos desafios impostos pelo
período pandêmico que foram ampliados pelas condições
socioeconômicas das famílias, as docentes do HUOL não
mediram esforços para buscarem estratégias que garantissem
a continuidade do atendimento educacional hospitalar.
É perceptível que o trabalho com a linguagem oral tem
lugar privilegiado e intencional no fazer pedagógico das
professoras da classe hospitalar. As aulas são dialógicas, as
crianças têm oportunidade de falar em todos os momentos das
aulas, se expressarem por meio da oralidade nas brincadeiras
livres e na roda de conversa em que podem expor suas opiniões,
ideias, pensamentos e sentimentos.
Os momentos de contação de histórias, mediadas pela
oralidade das professoras, é um momento rico de contato
com a linguagem oral, pois, além de ouvir as histórias, as
crianças podem recontá-las. Ademais, nesses momentos, as
crianças entram em contato com o universo da literatura.
Essas experiências mobilizam conhecimentos e favorecem a
aprendizagem e ampliação da linguagem oral, assim como
promovem o letramento das crianças e contribuem para
o seu processo de alfabetização. Desse modo, é nítido que
as atividades com a linguagem oral são essenciais para o
desenvolvimento infantil.

372
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

Acreditamos que o presente estudo pode contribuir para


a divulgação do atendimento educacional hospitalar, que
ainda é pouco conhecido pela sociedade, e pode favorecer o
desenvolvimento de futuras pesquisas sobre o tema, assim
como sobre o trabalho com a linguagem oral na educação
infantil. Desse modo, consideramos que este estudo tem
relevância acadêmica e social, uma vez que pode fazer com
que estudantes de Pedagogia ou outras licenciaturas, assim
como a sociedade em geral, possam conhecer as especifici-
dades e importância do atendimento educacional hospitalar
e do trabalho com a linguagem oral e suas implicações no
desenvolvimento de crianças menores de cinco anos de idade.

373
O TRABALHO PEDAGÓGICO COM A LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO
INFANTIL NO CONTEXTO DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL HOSPITALAR

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Psicologia e trabalho pedagógico. São Paulo: Atual, 1997. p. 77-106.

LEAL, Telma Ferraz; ALBUQUERQUE, Eliana Borges; MORAIS,


Artur Gomes. Letramento e Alfabetização: pensando a prática
pedagógica. In: BRASIL. Ministério da Educação. Ensino
Fundamental de nove anos: orientações para inclusão da criança de
seis anos de idade. Brasília: Ministério da Educação; Secretaria de
Educação Básica, 2007. p. 69-83.

376
Jacyene Melo de Oliveira Araújo
Maria Aparecida Vieira

LEAL, Telma Ferraz; SILVA, Alexsandro da. Brincando as crianças


aprendem a falar e a pensar sobre a língua. In: BRANDÃO, Ana
Carolina Perrusi; ROSA, Ester Calland de Sousa (org.). Ler e Escrever
na Educação Infantil. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 53-71.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de


retextualização. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2010.

MARCUSCHI, Luiz Antônio; DIONISIO, Ângela Paiva. Princípios


gerais para o tratamento das relações entre a fala e a escrita. In:
MARCUSCHI, Luiz; DIONISIO, Angela Paiva. Fala e escrita. Belo
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ROCHA, Simone Maria da. Narrativas infantis: o que nos contam as


crianças de suas experiências no hospital e na classe hospitalar. 2012.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Natal, 2012.

SILVA, Andréia Gomes da; CHAGAS; Ilanna Márnea Araújo.


Atendimento Educacional Hospitalar e Domiciliar no estado do
Rio Grande do Norte. In: MARTINS, Lúcia de Araújo Ramos;
MAGALHÃES, Rita de Cássia Barbosa Paiva. Processos formativos
e desafios atuais da educação especial: olhares que se intercruzam.
Fortaleza: EdUECE, 2018. p. 305-322.

VYGOTSKY, L. S. A. Formação social da mente. São Paulo: Martins


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WENDOS, Vanessa da Rocha Oliveira Baier. Desenvolvimento da


linguagem oral na Educação Infantil: práticas pedagógicas em
contexto hospitalar. 2020. 48 f. Trabalho de Conclusão de Curso
(Monografia) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal,
2020.

377
AS AUTORAS

ALESSANDRA CARDOZO DE FREITAS


Graduada em Pedagogia (1995) pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN), com Mestrado (2002)
e Doutorado (2005) pelo Programa de Pós-graduação em
Educação (PPGEd/UFRN). Experiência nas áreas de Educação
Básica e Ensino Superior. Professora do Centro de Educação
e do PPGEd da UFRN, pesquisadora vinculada ao grupo de
pesquisa Ensino e Linguagem (UFRN). Pesquisa na área de
Educação com interface em Letras e Psicologia, investigando
temas relacionados à formação do leitor, literatura infantil,
linguagem, leitura, argumentação, mediação pedagógica,
contação e recontação de histórias na educação infantil e
ensino fundamental.

ALINE JANELL DE ANDRADE BARROSO MORAES


Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do
Amazonas (UFAM), tem Mestrado e cursa Doutorado em
Educação pela mesma Universidade, com bolsa CAPES. É
professora da Secretaria Municipal de Educação (SEMED/
Manaus). Tem experiência na área de Formação de Professores
e Educação Infantil, com pesquisa nos seguintes temas: Teoria

378
Histórico-Cultural; Literatura Infantil; Formação de leitores;
Formação de professores para a Educação Infantil.

DENISE MARIA DE CARVALHO LOPES


Graduada em Pedagogia, Mestrado e Doutorado em
Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN). Pós-Doutorado em Educação pela Universidade de
Coimbra. Experiência nas áreas de Educação Básica e Ensino
Superior. Professora do Centro de Educação e do PPGEd da
UFRN. Coordena Grupo de Pesquisa Crianças, Infâncias,
Cultura e Educação (UFRN). Investigações privilegiam
processos de aprendizagem, desenvolvimento e educação
de crianças (Educação Infantil e anos iniciais do Ensino
Fundamental) e de adultos (Formação de Professores - inicial
e continuada) com foco na aprendizagem e desenvolvimento
da(s) linguagem(ens) oral e escrita, e implicações para as
práticas pedagógicas.

GIANE BEZERRA VIEIRA


Graduada em Pedagogia, Mestrado e Doutorado pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Experiência
nas áreas de Educação Básica e Ensino Superior. Professora
do Centro de Educação da UFRN. Tem experiência na área

379
de Educação, com ênfase em Educação Infantil e Ensino
Fundamental, atuando principalmente nos seguintes temas:
Alfabetização e Letramento; Aprendizagem da linguagem;
Fundamentos da Psicologia; Prática Pedagógica; Ensino-
aprendizagem e relação teoria-prática.

KARLA ROSSANA RODRIGUES DE SOUZA


Graduada em Pedagogia e Letras pela Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE). Pós-graduada em Linguística
Aplicada ao Ensino da Língua Portuguesa pela Faculdade
Frassinetti do Recife (FAFIRE). Mestre em Letras pelo
Mestrado Profissional em Letras - PROFLETRAS (UFPE).
Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação
Literária (UFPE). Membro do Grupo de Estudos Práticas de
Leitura e Escrita na Educação Infantil (UFPE).

JACYENE MELO DE OLIVEIRA ARAÚJO


Graduada em Pedagogia, Mestrado e Doutorado pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Experiência nas áreas de Educação Básica e Ensino Superior.
Professora do Centro de Educação da UFRN. Tem
ministrado disciplinas na graduação em Pedagogia, como
também nas Licenciaturas e no Programa de Pós-graduação

380
em Educação Especial (PPGEEsp//UFRN). Atua na pes-
quisa e na extensão, principalmente nas seguintes temáticas:
Formação Docente; Educação a Distância; Educação Infantil;
Alfabetização e Letramento; Atendimento Educacional
Hospitalar e Domiciliar.

JULIANA DE MELO LIMA


Graduada em Pedagogia, Mestrado e Doutorado em
Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação
(PPGEdu) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Experiência nas áreas de Educação Básica e Ensino Superior.
Professora do Centro de Educação da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN). Membro do Centro de
Estudos em Educação e Linguagem (CEEL/UFPE). Membro
do Grupo de Pesquisa Ensino e Linguagem (UFRN). Pesquisa
na área de Educação, investigando temas relacionados à alfa-
betização, formação do leitor, literatura infantil, formação e
prática docente.

MARIA APARECIDA VIEIRA


Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN). Durante a licenciatura atuou
como bolsista voluntária de iniciação científica no projeto de

381
pesquisa intitulado “Linguagem Oral e Escrita na Educação
Infantil: analisando práticas pedagógicas no âmbito de uma
classe hospitalar”, coordenado pela Professora Doutora Jacyene
Melo de Oliveira Araújo. Servidora Pública do Município
do Natal.

MARIA CRISTINA LEANDRO DE PAIVA


Graduada em Pedagogia, Mestrado e Doutorado pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Experiências nas áreas de Educação Básica e Ensino Superior.
Professora do Centro de Educação da UFRN. Atua nos cur-
sos de Pedagogia presencial e a distância, no Programa de
Pós-graduação em Inovação em Tecnologias Educacionais
(PPgITE) e no Programa de Pós-graduação em Educação
(PPGEd). Os estudos versam sobre Formação Docente nas
áreas de Educação Infantil, Alfabetização, Tecnologias
Educacionais e Educação a Distância.

MARIANGELA MOMO
Graduação em Pedagogia, Especialização em Educação
Infantil e Doutorado em Educação pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Pós-doutorado em Educação
pela Universidade de Brasília. Experiência nas áreas de

382
Educação Básica e Ensino Superior. Professora do Centro
de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Crianças, Infâncias,
Cultura e Educação. Suas atividades em pesquisa concen-
tram-se nos Estudos Culturais em Educação, contemplando
temas como Educação Infantil, infâncias, crianças, culturas
locais, mídia, tecnologias e consumo na contemporaneidade.

MICHELLE DE FREITAS BISSOLI


Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP/Campus Marília),
tem Mestrado e Doutorado em Educação pela mesma
Universidade. É professora/pesquisadora da Universidade
Federal do Amazonas (UFAM). Tem experiência na área de
Formação de Professores e Educação Infantil, com pesquisa
nos seguintes temas: Teoria Histórico-Cultural; Literatura
Infantil; Formação de leitores; Formação de professores para
a Educação Infantil.

RAQUEL DUARTE FERNANDES


Graduação em Letras Português/ Inglês pela Universidade
Paulista. Graduação em Administração pela Faculdade de

383
Ciências Cultura e Extensão do Rio Grande do Norte, com
especialização em Gestão Estratégica de Pessoas. Graduação
em Pedagogia, Mestrado em Educação pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Membro do Grupo
de Pesquisa Ensino e Linguagem (GPEL/UFRN).

SILVANA DE MEDEIROS DA SILVA


Graduada em Pedagogia, especialista em Educação Infantil
e mestra em Educação pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN). Experiência na Educação Básica
nas etapas da Educação Infantil, Ensino Fundamental Anos
Iniciais e Finais e no Ensino Médio. Atualmente, docente na
rede municipal de ensino de Natal e suporte pedagógico na
rede estadual de ensino do RN. Atuou no Grupo de Pesquisa
Crianças, Infâncias, Cultura e Educação do Programa de
Pós-graduação em Educação da UFRN, pesquisando temas
relacionados à educação de crianças em contextos familiar
e escolar; infâncias; linguagem oral; narrativas; Educação
Infantil no contexto da pandemia e educação em ambiente
virtual.

384
TELMA FERRAZ LEAL
Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), com Pós-doutorado em Educação
pela Universidad de Buenos Aires. Atua como professora da
(UFPE), no Centro de Educação. Tem experiência na área de
Educação, com ênfase em ensino e aprendizagem, pesqui-
sando, principalmente, os seguintes temas: prática pedagógica,
produção de textos, leitura, alfabetização, oralidade. É membro
do Centro de Estudos em Educação e Linguagem (CEEL/
UFPE), onde desenvolve atividades de formação de professores,
produção e análise de materiais didáticos (livros e jogos) e de
propostas curriculares. Atua no Programa de Pós-graduação
em Educação da (UFPE), orientando dissertações e teses no
Núcleo de Educação e Linguagem.

WANESSA RAFAELA NASCIMENTO DA COSTA


Pedagoga pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN) e mestre em Educação pelo Programa de Pós-
graduação em Educação da UFRN. Professora da Educação
Infantil da rede municipal de Parnamirim/RN. Desenvolve
atividades de Coordenação Pedagógica em instituições da
rede. É integrante do Grupo de Estudos sobre Crianças,
Infâncias, Cultura e Educação (CRIANCE/UFRN). Seus

385
estudos e produções envolvem temáticas relativas ao Trabalho
Pedagógico, à Educação Infantil, Ludicidade, Aprendizagem
e Desenvolvimento da Linguagem Oral de crianças de 0 a 5
anos de idade.

386

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