Valescaborges, 484-493
Valescaborges, 484-493
Valescaborges, 484-493
judicial
Introdução
O
estudo da decisão judicial requer uma compreensão do instituto da interpretação
judicial. Trata-se de tarefa indispensável para o aplicador do direito estudar como
funciona a relação entre texto e norma, assim como o direito e fato social.
Atualmente na Teoria Geral do Direito, afirma-se que a solução dos problemas jurídicos
não está pré-pronta no ordenamento jurídico, carece de construção de sentido por meio
do intérprete. Diante da vaguidade, ambiguidade e carga emotiva dos signos linguísticos,
o aplicador do direito teria várias escolhas valorativas e opções teóricas e dogmáticas para
impor sua decisão.
Com base nesta percepção, muitos juristas passaram a questionar a liberdade criativa
conferida aos juízes no momento de aplicação do direito. Passaram a questionar se haveria
alguma forma de controlar a atividade judicial e impedir a discricionariedade do julgador.
1
Mestrando em Direito Processual pela Universidade Federal do Estado do Espírito Santo (UFES) e
Pós-Graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Bolsista pela
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Neste trabalho iremos ver estas questões sobre a perspectiva pós-giro linguístico e como
a linguagem e o conhecimento interferem na produção da decisão judicial. Demonstraremos
que não existe uma resposta correta ou errada no direito, apenas uma resposta mais adequada,
diante do contexto sociocultural de cada sociedade.
2
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 1.
3
BARROSO, Luiz Roberto. Grandes Transformações do Direito Contemporâneo e o Pensamento de Robert
Alexy. In: Universidade Federal de Minas Gerais. 2014, Belo Horizonte. Congresso Brasil-Alemanha de
Teoria do Direito e Direito Constitucional: Conceito e Aplicação do Direito em Robert Alexy. Disponível em:
http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2014/02/Conferência-homenagem-Alexy2.pdf.
Acesso em 27 de maio de 2016.
4
MARINONI, Luiz Guilherme. Aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law e a
necessidade de respeito aos precedentes no Brasil. In: Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiva, n.
49, 2009. p. 27.
5
ARONNE, Ricardo. O princípio do livre convencimento do juiz. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
1996. p. 19.
6
MARINONI, Luiz Guilherme. Aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law e a
necessidade de respeito aos precedentes no Brasil. In: Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiva, n.
49, 2009. p. 28.
7
ZANETI JR, Hermes. O valor vinculante dos precedentes: teoria dos precedentes normativos formalmente
vinculantes. Salvador: JusPodivm. p. 169
8
MORAIS, Fausto Santos de. Hermenêutica e pretensão de correção: uma revisão crítica da aplicação do
princípio da proporcionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. 2013. 346 f. Tese (Doutorado em Direito) –
Programa de Pós Graduação em Direito. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo. 2013. p. 21.
9
CARNELUTTI, Francesco. Como nasce o direito? Trad. OLIVEIRA, Hiltomar Martins de. Belo Horizonte:
Cultura Jurídica, 2001. p. 64.
intérprete, várias escolhas valorativas e opções teóricas e dogmáticas que podem influenciar
no resultado de aplicação do direito.
Nesse sentido, Tárek Moysés Moussallem10 destaca que, “a linguagem, como instrumento
de saber, é saturada de vícios, a ponto de, não raramente, em determinadas circunstancias,
aniquilar o processo comunicacional”. Compreendeu o autor que, por ser o direito parte de
um processo comunicacional, decorrente da linguagem, é preciso estreitar os conceitos dos
signos linguísticos, para que haja uma coerência na aplicação do direito.
Com a superação dessa ideia, por meio do giro-linguístico, o conteúdo dos textos
jurídicos deixa de ter um sentido preexistente, para ser algo que é construído pelo intérprete
e vinculado com sua noção de mundo, eis que o ser humano está inserido em um contexto
histórico-social. Dessa forma, o sentido das normas deve ser construído por meio de valoração
do intérprete. Sobre este ponto, Paulo de Barros Carvalho11 afirma que “segundo os padrões
da moderna Ciência da Interpretação, o sujeito do conhecimento não extrai ou descobre
o sentido que se achava no oculto do texto. Ele o constrói em função de sua ideologia e,
principalmente, dentro dos limites de seu mundo, vale dizer, do seu universo de linguagem”.
Para alcançar o sentido das prescrições jurídicas, partimos do texto, e, através de um
processo hermenêutico, construímos a norma jurídica atribuindo sentido aos enunciados do
direito positivo, o qual esta precisa ser devidamente fundamentada, para ter validade no
sistema de direito positivo.
Somado a esse fator, os cientistas do direito passaram enxergar a decisão judicial como
instrumento de efetividade e justiça, buscando a aproximação da ideia de concretização do
direito, com base em uma moldura constitucional12. Aquela compreensão de direito apenas
como um conjunto de normas formais e abstratas, sem carga valorativa, afastou o processo da
ideia de direito como produto de universo cultural13, que prejudicaram os objetivos essenciais
do direito.
A aproximação dessa ideia de que o direito é cultura trouxe uma carga valorativa
para o direito, que exprime uma evolução da sociedade, através da busca de construção do
ordenamento por meio de uma atuação coletiva, social. Por este motivo, o direito passa a
ser concebido como movimento histórico-cultural, que por meio da constitucionalização do
processo, permite a relação circular o qual concretiza o direito material através do processo1415.
No Brasil, é a partir da Constituição de 1988 que a forma de enxergar a sociedade e
ordenamento jurídico sobre uma mudança metodológica, o qual o novo Código de Processo
Civil é reflexo dessa mudança. Com base no Estado Democrático de Direito, as decisões judiciais
10
MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do Direito Tributário. 2 ed. São Paulo: Noeses, 2006, pg. 32
11
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2008. p. 194.
12
ZANETI JUNIOR, Hermes. A Constitucionalização do Processo. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 8
13
MITIDIERO. Daniel. A colaboração como modelo e como princípio do processo civil. 3 ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2015. p. 25.
14
ZANETI JUNIOR, Hermes; GOMES, Camila de Magalhães. O processo coletivo e o formalismo-valorativo
como nova fase metodológica do processo civil. In: Revista de Direitos Difusos. v. 53. mar/2011. p. 18.
15
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvador. O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo. In:
Revista de processo. v. 137/2006
16
ABBOUD, Georges; LUNELLI, Guilherme. Ativismo judicial e instrumentalidade do processo. In: Revista de
Processo. v. 242, 2015.
17
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O Processo Civil na Perspectiva dos Direitos Fundamentais. In:
Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir./UFRGS, Porto Alegre, v. 2, n. 4, ago. 2014.
18
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2008. p. 193.
Essa ideia gera uma sensação de arbitrariedade, pois confere ao intérprete a possibilidade
de valorar o direito, sem, em tese, possuir qualquer controle. Por causa disso, há uma certa
resistência por parte da doutrina em conceber a norma jurídica como construção do intérprete
(significação), pois essa visão revelaria a carga subjetiva do julgador19 20. Porém, não há como
compreender de outra forma. Inclusive, a aplicação prática do direito apenas comprova
essa linha de raciocínio. Se o direito fosse tão exato, como propõem alguns autores, que
acreditam haver uma resposta única para o direito, não haveria discrepância nas diversas
teses doutrinárias e nas jurisprudências. Nem mesmo na aplicação da norma jurídica ao caso
concreto, por meio da decisão judicial, deveria haver essa pluralidade de entendimentos.
O direito é um instrumento suscetível de valoração, bem como é utilizado como meio
para implementar valores na sociedade. No entanto, justamente pela sua intertextualidade,
esta valorização, pelo intérprete, está restrita à certos limites, como bem ressalta Aurora
Tomazini de Carvalho21: i) plano de expressão dos textos jurídicos; ii) limites culturais do
intérprete; iii) contexto que está envolvido.
Ora, interpretar não é apenas extrair o sentido que contém cada frase ou sentença. A
significação é atribuída pelo intérprete e não está atrelada em seu suporte físico. Caso fosse o
contrário, a interpretação de cada palavra deveria ter um sentido unívoco, o que não é verdade.
Da mesma forma, em uma atuação processual, as decisões judiciais, em casos semelhantes,
não poderiam ser conflitantes, eis que se baseiam em um mesmo texto normativo. A verdade
é que a interpretação está no intérprete e por isso, deve estar condicionada aos referenciais
linguísticos. Não é por outro motivo que Aurora Tomazini de Carvalho22 sustenta que:
Justamente essa valoração do direito causa desconforto para parcela dos juristas, pois
afasta a objetividade na construção normativa. Ora, não existe limite para a interpretação,
pois há abertura no suporte físico. O que permitirá a comunicação jurídica entre legislador e
aplicador do direito é a vivência em um mesmo contexto histórico. Neste sentido, Hans-Georg
Gadamer23 sustenta que para haver um diálogo entre o legislador (emissor) e o intérprete
(receptor), bem como o entendimento mútuo, deve haver um consenso prévio, produzido por
tradições comuns. Afirma ainda que “a pré-compreensão que um intérprete leva para o texto
19
ALVIM, Teresa Arruda. Há vários caminhos para o juiz? In: Revista Judiciária do Paraná. Ano IX, n. 7, 2014.
20
PELEGRINI, Ada. O controle do raciocínio judicial pelos tribunais superiores brasileiros. In: Revista Ajuris,
n. 50, 1990.
21
CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do direito. São Paulo: Noeses, 2016. p. 247.
22
CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do direito. São Paulo: Noeses, 2016. p. 238.
23
HABERMAS, Jünger. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Trad. MOTA, Milton Camargo. São Paulo,
Loyola, 2004. p. 87.
que cumpre interpretar já é, quer ele queira quer não, impregnada e marcada pela história
dos efeitos do próprio texto”. Assim, quando utilizamos o contexto para justificar a valoração
interpretativa, ao mesmo tempo estamos construindo o nosso contexto, servindo este como
justificação ou legitimação da significação que é produzida.
Por isso, sob esse viés, não é possível dizer que existem interpretações certas ou erradas.
Essa afirmação já seria uma valoração do próprio intérprete. É possível falar em interpretações
mais aceitas ou menos aceitas, com base no contexto histórico-social de cada sociedade, que
possa ser mais adequada ou não na aplicação do caso concreto.
Contudo, é necessário ressaltar que nessa subjetividade interpretativa não se pode
deixar de considerar a existência de sentidos válidos, o qual Hans Kelsen denomina como
“interpretação autêntica”. Trata-se da interpretação proferida por órgão competente na
aplicação do direito positivo. É autêntica pois neste caso há a criação de direitos, por
meio de uma pessoa credenciada pelo próprio sistema de direito positivo, através de
linguagem jurídica.
Como bem destaca Flávio Cheim, a sentença é um ato de autoridade, mas não um
ato de arbitrariedade24. Por isso, a construção de sentido no direito possui algumas regras.
O direito positivo, cada vez mais, tem criado mecanismos para uniformizar os conteúdos
significativos, e com isso, impor uma objetividade na interpretação, como ocorre com as
súmulas vinculantes, precedentes normativos vinculantes, etc. Contudo, nunca será possível
determinar um sentido unívoco para cada enunciado prescritivo, isso seria uma visão utópica.
Atualmente, diante das diversas alterações na forma de enxergar o direito após o giro-
linguístico, bem como pela adoção do Estado Democrático do Direito, tem-se voltado uma
atenção especial aos sujeitos do processo e contraditório, também como forma de delimitar a
atuação do magistrado. Atualmente, entende-se que o provimento judicial deve ser construído
“em conjunto” com as partes, para que seja controlado eventuais abusos no ato decisório e
possibilite a realização da democracia participativa, conferindo justiça substancial.
Tem-se abandonado a ideia de um direito processual individualista, o qual o juiz
construí a decisão em um ato solitário, e passou-se a adotar uma concepção publicista do
processo. Passou-se a compreender que o Estado tem interesse na satisfação da demanda,
para que possa cumprir com seus objetivos sociais e políticos, garantindo a concretização de
um processo democrático.
Com isso, as partes do processo passaram a obter maior espaço neste processo
democrático, obtendo amplitude em sua participação, o qual segue a ideia de legitimação
por meio do discurso25. Logo, o princípio do contraditório passa a obter uma dimensão
substancial, o qual deve garantir a participação efetiva das partes, com possibilidade de
influenciar na formação da decisão judicial, da mesma forma que serve como controle da
atuação do Poder Judicial.
24
CHEIM, Flávio. Sentença cível. In: Revista de Processo. v. 104, 2001.
25
CABRAL, Antônio do Passo. Contraditório. In: TORRES, Ricardo Lobo; KATAOKA, Eduardo Takemi; GALDINO,
Flavio (Org.). Dicionário de princípios jurídicos. Rio de Janeiro: Elsevier. 2011, p. 198
Para que isso ocorra, é necessário que as partes sejam ouvidas e que o magistrado
tome nota de suas falas e considere seus argumentos ao proferir a sua decisão (right to be
heard). Não se adequa ao Estado Democrático de Direito a ideia de que o juiz constrói a
decisão sozinho em seu gabinete, sem levar em consideração todos os fundamentos arguidos
e discutidos no teor dos autos. A atual concepção de processo impõe uma comparticipação
cidadã, que confere os sujeitos do processo parcela de contribuição na tomada de decisão e
na busca por direitos26.
Portanto, para que haja um processo compatível com o Estado Democrático de Direito,
o contraditório deve ser forte, dinâmico e substancial27. É justamente por meio desse processo
democrático, que a população e as partes podem exigir uma resposta analítica do Estado ao
caso apresentado. A carga valorativa da sentença não é atribuída livremente pelo magistrado,
mas é fruto de uma construção exercida pelos sujeitos do processo, em conjunto, de forma
colaborativa, em um contraditório substancial.
Conclusão
Muito embora, após o giro-linguístico, a decisão judicial sofra pela valoração interpretativa
do juiz, na prática, não é possível dizer que o magistrado tem o livre-arbítrio para conceder o
provimento. O direito é um objeto cultural, fruto de um sistema linguístico, por isso, deve ser
interpretado para que seja aplicado. Contudo, isso não significa que exista discricionariedade
nos atos do Poder Judiciário.
Justamente pelo fato de que o direito pertence à um mundo cultural, suas respostas
devem seguir coerência com a realidade o qual está inserido. Portanto, deve observar o
contexto histório-cultural que se encontra inserido, para saber se a decisão encontrada é
adequada ou não ao sistema jurídico.
Nesse sentido, é possível falar em interpretações mais aceitas ou menos aceitas, com
base no contexto histórico-social de cada sociedade, que possa ser mais adequada ou não
na aplicação do caso concreto. Entretanto, não é possível dizer que existem interpretações
certas ou erradas, pois essa afirmação já seria uma valoração do próprio intérprete e já estaria
imputando uma carga axiológica no discurso.
Todavia, o sistema de direito positivo cria outros mecanismos para minimizar e valoração
por parte do juiz. O direito positivo, cada vez mais, tem criado mecanismos para uniformizar
os conteúdos significativos, e com isso, impor uma objetividade na interpretação, como
ocorre com as súmulas vinculantes, precedentes normativos vinculantes, etc.
26
NUNES, Dierle. Teoria do processo contemporâneo: por um processualismo constitucional democrático.
In: Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, edição especial, 2008.
27
CÂMARA, Alexandre Freitas. Dimensão processual do princípio do devido processo constitucional. In:
Revista Iberoamericana de Derecho Procesal. v. 1, 2015.
Além disso, a valorização dos sujeitos do processo também possui importante atuação
na decisão judicial, pois, em um Estado Democrático de Direito, o princípio do contraditório é
elevado a patamar constitucional, o qual exige a participação substancial das partes para que
possa ser proferida uma decisão judicial efetiva e justa.
Referências