Relatorio Whatsapp Termos de Uso
Relatorio Whatsapp Termos de Uso
Relatorio Whatsapp Termos de Uso
FORÇADO?
Uma avaliação sobre os novos termos
de uso do WhatsApp e as colisões com
o Marco Civil da Internet.
22/9/2016
“Consentimento forçado? Uma avaliação
sobre os novos termos de uso do WhatsApp
e as colisões com o Marco Civil da Internet”
Autor:
Rafael A. F. Zanatta
***
Coordenação executiva: Elici Mª Checchin Bueno. Conselho Diretor: Amaury Martins de Oliva,
Hélio Cesar Oliveira da Silva, Marcelo Gomes Sodré, Marcos Pó, Marilena Lazzarini, Marijane Vieira
Lisboa, Mário Scheffer e Ricardo Morishita. Gerência Técnica: Carlos Thadeu Couceiro de Oliveira.
Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-
SemDerivações 4.0 Internacional. Para ver uma cópia desta licença, visite
http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/.
Sumário
1. Apresentação ............................................................................................................................2
2. Por que uma enquete sobre privacidade e termos de uso do WhatsApp? ............................5
2.1 Resultados: idade e tempo de uso .........................................................................................7
2.2 Resultados: percepção de justiça e compreensão ..............................................................11
3. A colisão dos termos de uso com o Marco Civil da Internet................................................18
3.1 Ausência de consentimento livre para fornecimento de dados pessoais a terceiros .......18
3.2 Informações confusas sobre coleta, uso, tratamento e proteção de dados pessoais .......20
4. Recomendações do Idec .........................................................................................................22
1
“Tornou-se clichê na era digital: se você não está pagando por um
serviço online, então você é o produto sendo vendido”1.
1. Apresentação
Quando o WhatsApp2 foi comprado pelo Facebook Inc., em 2014, pela bagatela de 22
bilhões de dólares (algo entorno de 60 bilhões de reais), muitos especialistas questionaram até
quando a empresa manteria sua política de "não coletar dados pessoais" e "proteger a
privacidade" dos seus usuários, garantindo a manutenção de um aplicativo leve, rápido, seguro
e prático de usar.
Em 25 de agosto de 2016, tornou-se evidente que o Facebook Inc. tem novos planos
econômicos para o WhatsApp. Ao anunciar uma grande mudança nos termos de uso3 do
aplicativo – o contrato de adesão que define as relações jurídicas entre o consumidor de um
serviço de tecnologia e o prestador deste serviço, definindo os direitos e deveres de cada parte
–, ficou claro que o modelo de negócios que está sendo construído para o WhatsApp envolve o
desenvolvimento de tecnologias de comunicação direcionadas à relação "empresa-
consumidor", saindo da lógica tradicional de comunicações "pessoa-a-pessoa" e o modelo que
atualmente conhecemos (grupos ou conversas particulares com contas criadas pelo aparelho
celular).4
1 YAKOOB, F. Paid Attention: Innovative advertising for a digital world. London: Kopan Page, 2015, p. 59.
2 O “WhatsApp Messenger” foi criado em 2009, na Califórnia (EUA), por Jan Koum e Brian Acton com um
investimento de US$ 250.000. O aplicativo de comunicação foi desenvolvido para funcionar em diferentes
plataformas e aparelhos celulares (iPhone, BlackBerry, Android, Windows Phone e Nokia). Em 2011, a empresa
recebeu o investimento da Sequoia Capital no valor US$ 11 milhões. Na época, o aplicativo era usado por quase 100
milhões de pessoas. Ver CrunchBase (2016).
3 “Termos de uso " é usado aqui como sinônimo de “Termos de Serviço” ou “Termos de uso de condições”. Em língua
peticionaram ao FTC alegando que a coleta de dados de um bilhão de usuários por meio dos novos termos de uso
configura violação do FTC Act, por “ato enganoso” e “injusto”.
2
Para os cidadãos brasileiros, a mudança dos termos de uso do WhatsApp tem enorme
impacto e emaranha-se em outro contexto jurídico, diferente dos EUA. O Brasil é um dos
maiores mercados do aplicativo, com 100 milhões de usuários – o equivalente a 10% de toda
base de consumidores do WhatsApp, que hoje possui 1 bilhão de usuários no mundo.6 É,
também, um país com uma das legislações mais avançadas do mundo para uso da Internet e
proteção do consumidor. A combinação do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.070/1990)
com o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) criou um forte aparato jurídico que protege a
vulnerabilidade dos usuários, o direito à transparência e clareza das informações, a proteção
dos dados pessoais e a boa-fé nas relações de consumo.
Os resultados da enquete trazem dados importantes para o debate brasileiro. 61% dos
respondentes utilizam o WhatsApp há mais de 3 anos. Das 2.463 pessoas que participaram da
enquete, 63% afirmaram que os termos de uso "são injustos", pois acretivam que "o WhatsApp
protegia a privacidade" e não tem "como escolher o que quero compartilhar com o Facebook".
25% afirmaram que os novos termos de uso "são confusos", pois não sabem "exatamente o que
será coletado e se o Facebook pode ler minhas mensagens no WhatsApp". Apenas 2,8%
concordaram que os novos termos "são justos", pois "se o aplicativo é gratuito, a empresa pode
coletar todos os dados que quiser". Ou seja, para 88% dos respondentes, os termos de uso não
são claros ou não são justos – o que colide com normas do Marco Civil da Internet7 e do Código
de Defesa do Consumidor8, como será explicado adiante.
3
e contatos da agenda telefônica " (68%). Curiosamente, quase metade dos respondentes (48%)
acredita que o conteúdo das conversas – individuais ou em grupo – serão compartilhados com
o Facebook a partir de setembro.
As pessoas que responderam a enquete também parecem mostrar uma postura reativa
ao Facebook e WhatsApp. Apenas 12% aceitaram os termos de uso sem ler. 26% dos
respondentes adiaram a escolha ao clicar em "agora não" e estão pensando a respeito até o
prazo de 25 de setembro. 37% dos respondentes rejeitaram o compartilhamento de
informações com o Facebook Inc. e apenas 4% dos respondentes escolheram compartilhar
informações com o grupo de empresas controlado por Mark Zuckerberg de modo consciente.
Quase 20% afirmam que não foram notificados.
Não há pretensão de cientificidade nos dados produzidos pelo Idec – não usamos o
termo pesquisa, mas enquete –, porém eles sugerem que há algo muito errado acontecendo no
Brasil. As pessoas estão descontentes com o nível de proteção à privacidade garantido pelo
WhatsApp no país. Há enorme confusão e falta de clareza na exposição dos novos termos. No
entendimento do Idec, essa percepção reforça a tese de que há violação ao Marco Civil da
Internet na imposição dos novos termos de uso aos usuários do WhatsApp no Brasil.9
Este relatório está dividido em três partes. Na primeira, detalhamos o modo como a
enquete foi realizada e apresentamos seus resultados. Na segunda parte, discutimos quais as
violações ao Marco Civil da Internet e ao Código de Defesa do Consumidor que estão ocorrendo
neste caso específico (que afeta 100 milhões de brasileiros). Na terceira, sugerimos melhores
práticas para o setor privado e estratégias de regulação para o setor público.
O Idec entende que a polêmica em torno dos novos termos de uso do WhatsApp é um
caso único para testar a efetividade das regras de proteção dos dados pessoais asseguradas em
2014 no Brasil e apontar para as falhas da abordagem dominante de proteção de privacidade
online baseadas em termos de uso "pegar ou largar" e na lógica da notificação e
consentimento.10
9"Mudança de privacidade do WhatsApp é contra lei, dizem especialistas", UOL Tecnologia, 20/09/2016.
10As falhas desse modelo dominante, bem como as tentativas de melhorá-lo por meio da mudança do opt-out para
o opt-in e a apresentação parcial da política de privacidade para que o consumidor efetivamente a compreenda, são
amplamente discutidas em NISSEMBAUM, H. A Contextual Approach to Privacy Online, Daedalus, 140(4),
October, 2011, p. 32-36.
4
2. Por que uma enquete sobre privacidade e termos de uso do
WhatsApp?
Tais perguntas foram inicialmente levantadas pela mídia,12 porém geraram pouco
debate na esfera pública. Rapidamente, surgiram narrativas de que a mudança de termos de
uso se limitava ao compartilhamento de informações da agenda telefônica com o Facebook Inc.
e que o usuário tinha plena liberdade de escolher não compartilhar tais dados (opt-out). Em
31 de agosto, por meio de um vídeo, o Idec explicou para seus associados qual era o modelo de
negócio por trás do compartilhamento de dados dos usuários do WhatsApp com a “família
Facebook” e as possíveis colisões da mudança unilateral dos termos de uso com o artigo 7º do
Marco Civil da Internet, que define que é “direito do usuário de Internet no Brasil o não
fornecimento a terceiros de seus dados pessoais, inclusive registros de conexão e acesso a
aplicações, salvo mediante consentimento livre, expresso e informado”13.
A enquete não tem a pretensão de ser uma pesquisa científica, tampouco quer inferir a
percepção dos brasileiros sobre a privacidade do WhatsApp. Não há um grupo amostral
previamente definido ou métodos estatísticos para garantir que os 2.500 respondentes sejam
representativos do todo. O Idec não pretender afirmar que os resultados da enquete mostram
a percepção geral dos brasileiros. O objetivo do Idec foi a de realizar uma enquete que tivesse
Consumidor, 31/08/2016.
14 Ver Título VI (“Do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor”) da Lei 8.078/1990.
15 "Idec lança pesquisa sobre privacidade no WhatsApp", O Globo, 09/09/2016.
5
objetivos pedagógicos e políticos. O fato do usuário responder uma enquete sobre seus direitos,
sobre sua percepção de justiça com relação à coleta de dados em uma tecnologia cotidiana e
sobre o funcionamento do WhatsApp já tem um potencial transformador de criação de
"consciência jurídica"16. Isso importa muito em um contexto onde luta-se há cinco anos, sem
sucesso e sem ampla participação popular, para criação de uma lei geral de proteção de dados
pessoais no Brasil.17
A enquete sobre os novos termos de uso do WhatsApp ficou online por um período de
14 dias. Ela foi primeiramente divulgada pelo próprio aplicativo por meio das redes de contato
dos colaboradores do Idec, em um método não controlado de fluxos livres (colaboradores
enviaram para seus grupos de amigos e familiares, que repassaram para seus contatos sem
qualquer tipo de monitoramento ou estudo controlado dos caminhos pelos quais a mensagem
circulou). Além das notas de divulgação feitas pelo Globo e pelas mídias especializadas, a
enquete foi comentada em uma matéria da Revista Época (14/09)18 e uma reportagem do UOL
Tecnologia (20/09)19. A campanha de divulgação da enquete também contou com apoio do
Procon Paulistano.
"O WhatsApp é o aplicativo de troca de mensagens mais popular do Brasil, com quase
100 milhões de usuários. O serviço é gratuito, gerenciado pela empresa Facebook Inc.
desde 2014.
Em agosto de 2016, ao anunciar seus novos termos de uso, o Whatsapp quebrou sua
promessa original de não coletar informações pessoais dos usuários. Entre outras
16 COWAN, D. Legal consciousness: some observations. The Modern Law Review, v. 67, n. 6, p. 928-958, 2004
(explicando a consciência jurídica enquanto percepção subjetiva do direito e de justiça/injustiça em questões
cotidianas).
17 Sobre os argumentos em defesa de uma lei específica de proteção de dados pessoais no Brasil, ver: DONEDA, D.
A proteção de dados pessoais como um direito fundamental, Espaço Jurídico: Journal of Law, 12(2), 2011, p. 91-
108. VENTURINI, J.; LOUZADA, L. A regulamentação da proteção de dados pessoais no Brasil e na Europa: uma
análise comparativa, 3º Simpósio Internacional LAVITS, Rio de Janeiro, Maio, 2015, p. 22-39. MONCAU, L.;
MACIEL, M. Contribuição do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio ao debate público sobre o
Anteprojeto de Lei de Proteção de Dados Pessoais. Fundação Getulio Vargas, 2015. GPOPAI, Xeque-mate: o tripé
da proteção de dados pessoais no jogo de xadrez das iniciativas legislativas no Brasil. GPOPAI/USP. 2016.
ZANATTA, R. A Proteção de Dados Pessoais entre Leis, Códigos e Programação: os limites do Marco Civil da
Internet, in Direito & Internet III: Marco Civil da Internet. Quartier Latin, 2015, p. 447-470. BIONI, B.;
MONTEIRO, R. O Brasil caminha rumo a uma Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais?, Carta Capital,
25/05/2016.
18 Paula Soprana, "Poder Público pode, em última hipótese, suspender atividades do Whatsapp", Revista Época,
14/09/2016.
19 "Mudança de privacidade do WhatsApp é contra lei, dizem especialistas", UOL Tecnologia, 20/09/2016.
6
coisas, a nova política prevê o compartilhamento de dados com o Facebook. Clique
aqui para saber mais detalhes.
A mudança tem sido criticada no mundo todo por quebra de expectativa legítima do
consumidor.
Você acha isso correto?
O Idec preparou esse questionário para entender a percepção dos usuários brasileiros
sobre o tema. É anônimo e leva dois minutos para respondê-lo. São apenas 6
perguntinhas."
A enquete foi formada por cinco perguntas, a partir das quais o respondente deveria
escolher sua resposta a partir de uma lista de opções. Tais perguntas eram:
As opções para cada pergunta e as respostas serão detalhadas a seguir. Elas podem
fomentar inúmeros debates sobre a confusão dos termos de uso do WhatsApp, a desconfiança
dos usuários com relação às promessas do Facebook e o desconforto dos brasileiros com
relação à escolha limitada do que compartilhar proporcionada pelos novos termos de uso.
O primeiro dado coletado pelo Idec refere-se à idade do respondente. A divisão entre
ciclos de 7 anos permite uma análise mais adequada das variações de percepção de justiça por
segmentação de idade – investigar, se existe uma variação significativa entre jovens (14 a 20
anos) e idosos (mais que 70 anos), por exemplo.
7
(15%). Jovens e idosos são os que menos participaram da enquete, com 132 respostas (5%) e
57 (2%), respectivamente.20
2% 5%
5%
14 a 20 anos
13%
10% 21 a 27 anos
28 a 35 anos
36 a 42 anos
15% 43 a 49 anos
23% 50 a 56 anos
57 a 63 anos
64 a 70 anos
12%
Mais que 70
15%
20A base de associados do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – fundado há 30 anos em São Paulo – é de
pessoas com mais de 50 anos de idade. Essa informação sugere que a enquete circulou para um público diverso dos
associados do Idec. No entanto, como não houve possibilidade de rastreamento das respostas, não há como
comprovar tal hipótese.
8
Gráfico 2. Tempo de utilização do WhatsApp dos respondentes (2.463)
4%
17%
Há 1 ano (2015)
45%
Há 2 anos (2014)
26%
Há mais de 5 anos (2011)
8%
9
Gráfico 3. Faixa etária dos respondentes que usam o WhatsApp há 1 ano (205)
5% 3% 4%
11%
15% 14 a 20 anos
21 a 27 anos
13%
28 a 35 anos
12% 36 a 42 anos
43 a 49 anos
50 a 56 anos
24% 13% 57 a 63 anos
64 a 70 anos
Mais que 70
10
2.2 Resultados: percepção de justiça e compreensão
O dado mais relevante da enquete do Idec é a percepção dos respondentes com relação
aos novos termos de uso do WhatsApp. A pergunta feita pelo Idec no questionário online foi:
O que você achou dos novos termos de uso do WhatsApp?
O questionário colocava como primeira opção a resposta “são justos, pois se o aplicativo
é gratuito a empresa pode coletar todos os dados que quiser” – um raciocínio de senso comum.
A segunda opção era “são confusos, pois não sei exatamente o que será coletado e se o
Facebook pode ler minhas mensagens no WhatsApp”. Somente a terceira opção de resposta
propunha uma percepção de injustiça, ao dizer “são injustos, pois acreditava que o WhatsApp
protegia a privacidade e não tenho como escolher o que quero compartilhar com o Facebook”.
As últimas opções – quarta e quinta – eram “não tenho opinião formada, mesmo sabendo do
conteúdo” e “ainda não li e não sei do que se trata”.
Os dados mostram uma percepção generalizada de injustiça por parte dos respondentes
com relação aos novos termos de uso do WhatsApp. 63,5% afirmaram que os termos são
injustos e que não há opção de escolha do que compartilhar, precisamente, com o Facebook
Inc. 25,7% afirmaram que os termos são confusos, indicando que a empresa não soube
explicar, de forma didática e compreensível, o que será compartilhado a partir de setembro.
11
Surpreendentemente, apenas 2,8% dos respondentes afirmaram que os termos são
justos. Isso reforça a crítica feita por pesquisadores como Helen Nissembaum de que a escolha
do “uso gratuito” em troca da “livre coleta” não é uma troca comercial livre e de agentes
racionais, como diz a teoria econômica aplicada ao campo da privacidade. As pessoas sentem-
se compelidas a aceitar os termos de uso em razão da pressão social em torno do uso de uma
tecnologia (grande uso por outros, perdas de oportunidades e exclusão pela não utilização) e
frustram-se pela ideia de que, sozinhas, não podem fazer nada a respeito, a não ser clicar e
aceitar os termos.23
No caso dos novos termos de uso do WhatsApp, o dado da enquete sugere frustração
por parte dos usuários brasileiros e quebra de expectativas legítimas com relação à
privacidade.24 Apesar da inexistência de uma teoria robusta sobre “expectativas legítimas”
aplicada ao campo da privacidade no Brasil – tal como existente nos EUA e nas decisões da
Federal Trade Commission –, o Superior Tribunal de Justiça tem construído uma
interpretação de que a proteção da legítima expectativa, pauta-se, entre outras, pela
vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I, do CDC), que pode ser agravada pelo
desconhecimento das condições do contrato; e pela boa-fé (art. 4º, IIII, do CDC). Em uma
decisão recente, de maio de 2016, envolvendo a Google Brasil Internet Ltda., o ministro
Marco Aurélio Bellizze (STJ) afirmou que “não se pode olvidar a cediça incidência do CDC
[Código de Defesa do Consumidor] aos serviços prestados por meio da internet. (...) Desse
modo, ainda que se trate de fornecimento de serviços sem contraprestação financeira direta
do consumidor, o fornecedor do serviço virtual não se exime da entrega da prestação em
conformidade com a legítima expectativa consumerista, atraindo por analogia a incidência do
art. 20 do CDC”25. Para o ministro do Superior Tribunal de Justiça, “não se ignora que as
regras do CDC, pensadas no início dos anos 1990, têm redação por vezes imperfeitas para a
compreensão imediata de questões da dinâmica era digital, no entanto, sua interpretação
teleológica fornece instrumentos suficientes para sua adequada aplicação”. Diante de
expectativa legítima frustrada do consumidor, o fornecedor tem “obrigação de entregar
23 NISSEMBAUM, H. A Contextual Approach to Privacy Online, Daedalus, 140(4), October, 2011, p. 35-36.
24 Nos EUA, esse pode ser um dos fundamentos fáticos para comprovar um deceptive act. Para acadêmicos como
Daniel Solove e Woodrow Hartzog, existe uma robusta jurisprudência construída pela Federal Trade Commission
com relação às expectativas legítimas do consumidor com relação à privacidade: “The FTC has developed a theory
of deception that not only includes broken promises of privacy and security, but also a general theory of deception
in obtaining personal information and deception due to insufficient notice of privacy-invasive activities”. SOLOVE,
D.; HARTZOG, W. The FTC and the new common law of privacy. Columbia Law Review, v. 114, 2014, p. 628.
25 Superior Tribunal de Justiça, REsp 1582981, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze. 10 de maio de 2016.
12
serviço adequado à sua finalidade como o dever de reexecução para correção das falhas
existentes”26.
O dado sobre o número de pessoas confusas (25% dos respondentes) – que entra em
colisão com a afirmação do WhatsApp de os “Termos e Política de Privacidade atualizados
estão mais fáceis de compreender”27 – tem conexão direta com a pergunta 4, que investigou a
percepção dos respondentes sobre quais dados seriam coletados pelo WhatsApp. A pergunta
dizia: A partir de setembro, o que você acha que será compartilhado pelo WhatsApp com o
Facebook? Para essa pergunta, o respondente podia marcar várias respostas.
26 Idem.
27 https://www.whatsapp.com/legal/?l=pt_br#key-updates
28 ZANATTA, R. Nota Técnica sobre Criptografia do WhatsApp, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor,
2016.
29 Diz o novo termo de uso (25/08/2016): “Coletamos dados sobre a localização do dispositivo caso você utilize os
recursos de localização, tais como quando você decide compartilhar sua localização com seus contatos, conferir
locais próximos a você ou os locais que foram compartilhados com você e também com o intuito de diagnosticar e
solucionar problemas, por exemplo, se houver problemas no recurso de compartilhamento de localização de nosso
aplicativo”.
30 Os novos termos de uso passam a coletar todo esse conjunto de dados: “Coletamos dados específicos sobre o
dispositivo quando nossos Serviços são instalados, acessados ou utilizados por você. Isso inclui dados como modelo
de hardware, dados do sistema operacional, dados sobre o navegador, endereço de IP, dados sobre a rede móvel,
incluindo o número do telefone, e identificadores do dispositivo”.
13
Gráfico 5. Percepção dos respondentes sobre quais dados serão coletados
pelo WhatsApp (2.463)
0 200 400 600 800 1000 1200 1400 1600 1800 2000
14
comportamental e segmentação de clientes para revenda dessas informações para terceiros
(setor de comércio e serviços que passará a utilizar o WhatsApp de forma massiva):
A enquete, por fim, avaliou a reação dos respondentes diante dos termos de uso do
WhatsApp. A quinta pergunta dizia: O que você fez ao ser notificado sobre os novos termos de
uso?
31Um relatório da American Civil Liberties Union é esclarecedor nesse sentido: “Limited privacy protections for
metadata may have made sense decades ago when technology to collect and analyze data was virtually nonexistent.
But in today’s “big data” world, non-content does not mean non-sensitive. In fact, new technology is demonstrating
just how sensitive metadata can be: how friend lists can reveal a person’s sexual orientation, purchase histories can
identify a pregnancy before any visible signs appear, and location information can expose individuals to harassment
for unpopular political views or even theft and physical harm”. American Civil Liberties Union. Metadata: piecing
together a privacy solution. ACLU, California, 2014.
15
A primeira opção de resposta era “cliquei em aceitar, mesmo sem ler”. A segunda era
“cliquei em agora não e estou pensando a respeito”. A terceira opção dizia “escolhi
compartilhar minhas informações com Facebook e aceitei”. A quarta era “rejeitei compartilhar
minhas informações com Facebook e aceitei”. Por fim, havia a opção “ainda não fui notificado”.
Os resultados mostram 25,9% dos respondentes não decidiram o que fazer e estão
evitando a escolha até o prazo final. O número de pessoas que escolheu compartilhar
informações com o Facebook e aceitou o termo de uso é baixo: apenas 4,4% dos respondentes.
Dos 2.463 respondentes, 37% optaram por rejeitar o compartilhamento de informações e
aceitar o termo de uso. 12,6% admitiram que não leram os termos de uso e aceitaram os novos
termos contratuais impostos pelo WhatsApp. Curiosamente, 20,3% dos respondentes
afirmaram que não foram notificados.
Não pretendemos afirmar, com os dados da enquete, que os brasileiros estão rejeitando
massivamente os termos de uso do WhatsApp como forma de protesto. É evidente que o
respondente que opta, conscientemente, em responder um questionário online sobre o assunto
já demonstra algum interesse sobre a questão e provavelmente tem algum grau de
conscientização sobre seus direitos digitais.
16
Os dados da enquete, no entanto, reforçam ideia de que existe algo errado com os
termos de uso do WhatsApp – algo perceptível para os respondentes da enquete do Idec. O
problema mais grave é o fato de o WhatsApp não garantir a escolha livre e informada sobre os
processos de coleta, processamento e repasse para outras empresas de dados relacionados ao
modo de uso do WhatsApp, registros de conexão e geolocalização. No termo de uso anterior, o
WhatsApp deixava claro que não coletava tais dados.32 Mas agora a decisão empresarial mudou
e a única escolha dada ao consumidor é limitada: restringe-se à escolha do compartilhamento
dos dados de agenda telefônica – o que não é o ponto principal dos novos termos de uso. Para
todos os outros dados, não há escolha. O que há é um consentimento forçado. É “pegar ou
largar” – o que deve ser coibido se formos levar a sério a ideia de um “direito fundamental à
proteção de dados pessoais”33.
32 MILAGRE, J. Questões jurídicas sobre a mudança nos termos de uso do WhatsApp, Jornal JCNET, 31/08/2016:
“Na antiga política do WhatsApp este deixava claro em uma seção 'Informações que o WhatsApp não coleta', o dados
que não capturava como e-mails, endereços, dados de localização dentre outros. Na nova política, esta seção foi
suprimida, sendo que agora a aplicativo não tem mais nenhuma restrição para coletar outros dados e metadados de
usuários”.
33 MENDES, L. O direito fundamental à proteção de dados pessoais, Revista do Direito do Consumidor, ano 20, n.
controlado, ele demonstrou que “quando uma política de privacidade é apresentada por default, participantes
tendem a ler de modo mais cuidadoso, ao passo que quando a opção de aceitar sem ler o termo de uso é apresentada,
a maioria dos participantes pula a leitura da política”. STEINFELD, N. “I agree to the terms and conditions”:(How)
do users read privacy policies online? An eye-tracking experiment. Computers in Human Behavior, v. 55, 2016, p.
992-1000.
36 “A ideia de privacy by design impõe uma cooperação tecnológica e boas práticas para implantar um sistema de
informação que assegure o conhecimento sobre a coleta, tratamento e transferência dos dados, colhendo o
consentimento do usuário”. LIMA, C.; BIONI, B. A proteção dos dados pessoais na fase da coleta”, in: Direito &
Internet III: Marco Civil da Internet, Quartier Latin, 2015, p. 279.
17
Na próxima seção, enfrentaremos rapidamente essa questão: o que há de ilegal com o
modo como os novos termos de uso do WhatsApp foram impostos aos 100 milhões de
brasileiros?
Diferentemente dos Estados Unidos da América e do Reino Unido, o Brasil possui uma
legislação extremamente avançada para definição de direitos para uso da Internet, incluindo
os direitos fundamentais daqueles que utilizam provedores de aplicações de Internet como o
WhatsApp.37 O que torna o caso dos novos termos de uso do WhatsApp especialmente
interessante no Brasil é a colisão frontal com dispositivos do Marco Civil da Internet (Lei
12.965/2014), mesmo que não exista uma lei geral de proteção de dados pessoais aprovada no
país.
Há, em especial, duas colisões que merecem ser investigadas por autoridades públicas
– incluindo a Secretaria Nacional do Consumidor e o Ministério Público Federal. Uma
relacionada à ausência de consentimento livre e outra relacionada à falta de clareza das
informações sobre tratamento e proteção de dados pessoais.
O Marco Civil da Internet tem uma estrutura lógica bem construída. Em sua base
principiológica, no artigo 3º, ele concilia a promoção da livre iniciativa com a proteção do
consumidor. Combina, também, a liberdade de expressão com a proteção da privacidade.
Estabelece, também, a “proteção dos dados pessoais” como princípio do uso da Internet no
Brasil (Art. 3º, III). No Capítulo II, o Marco Civil da Internet define os “direitos e garantias dos
usuários”. No artigo 7º, assegura-se o seguinte direito:
37 “O Marco Civil é hoje reconhecido no Brasil e no exterior como um modelo promissor para a relação entre direito
e tecnologia”. LEMOS, R. Uma breve história da criação do Marco Civil, in: Direito & Internet III: Marco Civil da
Internet, Quartier Latin, 2015, p. 100.
18
internet, salvo mediante consentimento livre, expresso e
informado ou nas hipóteses previstas em lei;”
Por trás deste artigo reside uma teoria do direito civil do “direito à autodeterminação
informativa”, disseminada no Brasil a partir dos estudos pioneiros de Danilo Doneda.38 Essa
teoria, também divulgada na Europa por Stefano Rodotà, defende uma visão de liberdades
positivas e ampliação da autonomia do sujeito no conhecimento, controle, endereçamento e
interrupção de fluxos de informação relacionados a sua pessoa. A tutela da privacidade ganha
então outro sentido do que tradicionalmente pensado no século XX: ao invés de ser oferecer
remédios jurídicos para violações da vida íntima, ela passa a configurar molduras regulatórias
de limitação do tratamento de dados e “atribuição de poder ao indivíduo para que possa
controle o fluxo desses dados”39.
No caso do WhatsApp, a violação do Marco Civil parece ocorrer justamente neste ponto.
O WhatsApp pretende fazer o repasse de dados pessoais a terceiros. Isso está expresso nos
textos oficiais da empresa. Ela circulará os dados dos usuários do WhatsApp para empresas
especializadas em publicidade comportamental e outros negócios. Independentemente das
empresas fazerem parte de um mesmo conglomerado empresarial (Facebook Inc.), devemos
interpretar esse repasse como para terceiros – pois as próprias finalidades do tratamento de
dados serão outras (não mais relacionadas à “melhoria da experiência de uso”, mas outros usos
comerciais no campo de “análise de dados”).
38 DONEDA, D. Considerações iniciais sobre os bancos de dados informatizados e o direito à privacidade: in:
TEPEDINO, G. Problemas de Direito Civil-Constitucional. Renovar, 2000, p. 127-129.
39 MENDES, L. Privacidade, Proteção de Dados e Defesa do Consumidor: linhas gerais de um novo direito
19
registros de conexão de aplicativo, entre outros. Para a coleta desses dados não há
“consentimento livre”, mas sim “consentimento forçado”.
Por mais que o WhatsApp e o Facebook argumentem que as informações estão “claras”
nos termos de uso de 25 de agosto, é discutível se todos os esforços foram feitos para tornar
essas informações claras.
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A enquete do Idec mostra que, dos 2.463 respondentes, 25% consideram os termos de
uso “confusos”. Não há clareza, pois o WhatsApp insistiu na narrativa de que a grande
mudança que está acontecendo é o uso de informações da “agenda telefônica” para
compartilhamento com o Facebook.
40 Art. 12. Sem prejuízo das demais sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas
nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções, aplicadas de forma isolada ou cumulativa:
I - advertência, com indicação de prazo para adoção de medidas corretivas;
II - multa de até 10% (dez por cento) do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício,
excluídos os tributos, considerados a condição econômica do infrator e o princípio da proporcionalidade entre a
gravidade da falta e a intensidade da sanção;
III - suspensão temporária das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11; ou
IV - proibição de exercício das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11.
Parágrafo único. Tratando-se de empresa estrangeira, responde solidariamente pelo pagamento da multa de que
trata o caput sua filial, sucursal, escritório ou estabelecimento situado no País.
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4. Recomendações do Idec
A enquete realizada no mês de setembro de 2016 pelo Idec – da qual participaram 2.463
pessoas – tem por objetivo subsidiar o debate e ilustrar um sentimento difuso de insatisfação
com os termos de uso. Em especial, ela sugere que há grande confusão sobre quais dados são
efetivamente coletados e há um sentimento de injustiça/quebra de expectativa com relação à
privacidade do WhatsApp.
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Recomendamos aos órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e ao
Ministério Público Federal:
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