Alto Da Barca

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Segundo Ivan Teixeira (1996), a obra é uma sátira social e moral, tendo duas

figuras paradoxais em cena: o Anjo (personagem sem graça, moralista e calado) e o


Diabo (libertino, alegre e irônico). A peça inicia-se com o Diabo preparando sua
embarcação para logo partir, apenas esperando as almas que estão para ir com ele.
 Vamos agora conhecer um pouco das figuras que surgem para ir ao céu ou
ao inferno, onde destacaremos quatro fragmentos das estrofes para análise.
O Diabo (como mencionado anteriormente): se torna um dos melhores personagens
criados por Gil Vicente, tendo falas irônicas e muita euforia na conversa com seus
passageiros;
O companheiro: ajudante do Diabo na embarcação;
O Anjo: que tem poucos argumentos, é inflexível e autoritário ao apresentar suas ideias;
A primeira alma, o nobre D. Anrique: que traz consigo um pajem que segura seu manto
e uma cadeira, representando as insígnias de sua vida fútil e desonrosa. O diabo é quem
dirige a palavra ao homem, afirmando que ele precisa embarcar com ele para o inferno,
pois sua vida de roubos e momentos de presunção e tirania o aviam condenado. O nobre
não aceita e tenta ir com o Anjo, que soberbo e quase indiferente, não lhe dá resposta
positiva. Por fim, para terminar de convencê-lo, o Diabo conta que sua mulher ficou
muito feliz com a sua partida, pois vivia em adultério e consequentemente não o amava
mais como marido. O nobre, derrotado e com profunda tristeza, fica a mercê da
quentura daquela barca infernal;
O onzeneiro: um agiota que carrega uma grande bolsa vazia. Mesmo tendo sido tão rico
em vida a riqueza de nada lhe valeu, pois foi parar junto com a primeira alma;
Joane: um rapaz muito bobo que não aceita a proposta do Diabo e começa a insulta-lo.
O Anjo vendo aquilo, percebeu que seus pecados decorriam de sua inocência, por isso
aceita que ele fique em sua barca aguardando o julgamento final. Joane é um
personagem de linguagem popular, moldada de acordo com sua ocupação em vida,
repleta de simplicidade. Gil Vicente era mestre em captar os diversos níveis de fala
social para apresentar em suas obras;
O sapateiro: este traz nas costas um carregamento de formas de sapato, com as quais
usava para roubar os clientes. Em meio ao vazio que a morte lhe causou, se agarra as
formas e não quer deixa-las, o que lhe impede de ir para o céu, pois apesar de ir a igreja
e ter um lado humano, não se desapega dos valores materiais que adquiriu em vida,
valores esses que o autor considerava supérfluos e ilusórios;
O frade e sua namorada Florença: além da mulher, o religioso tem como insígnias a
espada, o escudo e o capacete, que representam o amor a vida libertina e ao esporte,
figurando um caso de vocação desencontrada:
Vem um frade com uma moça pela mão e um
broquel (escudo) e uma espada na outra, e um casco (capacete) debaixo
do capelo (capuz); e ele mesmo fazendo a baixa (dança popular no séc. XVI) (...)
Vemos que apesar de cometer um desvio em vida, ganha a simpatia dos leitores ao se
mostrar respeitoso e preocupado com sua mulher, além de ser uma figura alegre e cheia
de vida:
Frade
Pardeus! Essa serie´la! (sentença)
Não vai em tal caravela
Minha senhora Florença.
Como? Por ser namorado
e folgar com uma mulher
se há um frade de perder com tanto salmo rezado?!

Porém, como dito, o Anjo é inflexível e não vê as boas qualidades do frade,


importando-se apenas com sua dúvida entre o sacerdócio e os prazeres. Com a
condenação deste homem, percebemos o excesso de moralidade que Gil Vicente
acreditava, e ainda, sabia “representar as inclinações que caracterizam os
temperamentos e os tipos sociais” (TEIXEIRA, 2016, p. 22).
A alcoviteira Brísida Vaz:
Diabo
Que é que haveis de embarcar?
Brísida
Seiscentos virgos portiços.
Luís Francisco Rebello, seguindo Marques Braga, informa que a censura de
1624 cortou este verso. Em rigor, virgos é termo latino para virgem. No sentido do
texto, de virgindade, é um palavrão. Seria como se Brísida dissesse, em termos atuais,
que traz por bem seiscentos cabaços. Isto é, seduziu seiscentas virgens sob encomenda.
Percebemos também a presunção da mulher ao dizer que tinha feito boas ações,
servido a religião, pois supria os desejos carnais desses padres. O Diabo demostra
respeito, uma face humana, como observamos no seguinte trecho ao chama-la de
senhora, como nas cantigas românticas:
Diabo
Ora entrai, minha senhora,
E sereis bem recebida...
Se vivestes santa em vida,
vós o sentireis agora...
Brísida representa uma porta de entrada para a realização dos desejos de
terceiros, sem amor e sem realizações. Seduzia as moças através de encatamentos e
feitiços, que pela ética atual, realmente não teria salvação após a morte.
O judeu: queria ir para o inferno, mas o diabo não lhe aceitou. Vejamos o porquê:
Diabo
E o bode há de cá vir?
(...)
Que escusado (desnecessário) passageiro!...

Fica nítido um caso de intolerância religiosa. O Diabo não o aceita por ele não
abrir mão de sua religião (que se representa por meio do bode, insígnia da religião
judaica), na barca do anjo é acusado de desrespeitar a religião católica. Por fim, acaba
indo a reboque na embarcação que vai para o inferno.
Diabo
Sus! Sus! Demos à vela!
Vós, judeu, irei à toa,
Que sois mui ruim pessoa.
Levai o cabrão na trela! (coleira)
Ou seja, de acordo com Ivan Teixeira, essa última fala do Diabo remete ao mito
de Ahasverus, “o judeu errante, cujo destino é vagar sem paradeiro por causa de sua
ofensa a cristo” (2016, p. 26).
O corregedor, o procurador e o enforcado: ao trazer suas insígnias (autos jurídicos,
livros e a corda no pescoço). Os dois primeiros representam o roubo por vias legais, e o
enforcado representa um homem bobo usado apenas pelos mais espertos, que o
manipulam e o fazem pagar com a vida;
Os quatro cavaleiros: são recebidos pelo anjo, pois lutaram defendendo a igreja e
cantavam hinos dando glória Deus (representando o desejo de ganhar a vida eterna),
vistos agora como mártires:
Anjo
Ó cavaleiros de Deus,
A vós estou esperando,
Que morrestes pelejando
Por Cristo, Senhor dos céus!
Sois livres de todo o mal,
Mártires da Madre Igreja,
Que quem morre em tal peleja
Merece paz eternal.
Apesar de toda magnificência, são personagens que não nos remetem a
realidade. Guerreavam pensando no céu, viviam pensando no céu... uma beatitude
impossível visto pelos olhares de hoje. Por isso, podemos concluir que o melhor da
vida, segundo o autor, estava nos prazeres, o interessante nasce daquilo que foi
condenado em suas personagens, tanto que vemos os cavaleiros como figuras até
irrelevantes, além de que o Diabo se torna superior na trama, dialoga mais, se mostra
mais piedoso.
Portanto, segundo Teixeira (1996), as personagens de Gil Vicente pertencem à
categoria de tipos, espécie de personagens mais própria para simbolizar as diversas
camada da sociedade – nobreza, clero e povo. Onde o Diabo só leva em consideração a
essência das pessoas. Se bons, ao céu; se maus, ao inferno. Assim, por seu caráter
moralizante, a crítica literária sempre exaltou seu zelo, esquecendo-se de que isso
poderia ser tão ofensivo quando a hierarquia do poder, que o dramaturgo não cansava de
criticar.

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