Questões de Género e Da Escrit

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 520

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

QUESTÕES DE GÉNERO E DA ESCRITA NO FEMININA


NA LITERATURA AFRICANA CONTEMPORÂNEA E DA
DIÁSPORA AFRICANA.

SUNDAY ADETUNJI BAMISILE

DOUTORAMENTO EM ESTUDOS LITERÁRIOS ESP. LITERATURA


COMPARADA

LISBOA 2012
UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

QUESTÕES DE GÉNERO E DA ESCRITA NO FEMININO


NA LITERATURA AFRICANA CONTEMPORÂNEA E DA
DIÁSPORA AFRICANA.

SUNDAY ADETUNJI BAMISILE

DOUTORAMENTO EM ESTUDOS LITERÁRIOS ESP. LITERATURA


COMPARADA

ORIENTADORA
DRª MANUELA RIBEIRO SANCHES
PROFESSORA CATEDRÁTICA DA FLUL

LISBOA 2012
Black women are called, in the folklore that so aptly identifies
one’s status in society, “mule of the world,” because we have
been handed the burdens that everyone else –everyone else-
refused to carry. We have also been called “Matriarchs,”
“Superwomen,” and “Mean and Evil Bitches.” Not to mention
“Castraters” and “Sapphire’s Mama.” When we have pleaded for
understanding, our character has been distorted; when we have
asked for simple caring, we have been handed empty inspirational
appellations, then stuck in the farthest corner. When we have
asked for love, we have been given children. In short, even our
plainer gifts, our labors of fidelity and love, have been knocked
down our throats. To be an artist and a black woman, even today,
lowers our status in many respects rather than raises it: and yet,
artist we will be . ( Alice Walker 1983, p.237)

SILENCE
Silence can be a plan / rigorously executed / the blueprint to a life
/ It is a presence / It has a history a form / do not confuse it / with
any kind of absence. Adrienne Rich, “Cartographies of Silence”
(1975).

i
AUTORIZAÇÃO DE CÓPIA

AUTOR: BAMISILE Sunday Adetunji

TÍTULO: QUESTÕES DE GÉNERO E DA ESCRITA NO


FEMININO NA LITERATURA AFRICANA CONTEMPORÂNEA E
DA DIÁSPORA AFRICANA.

DOUTORAMENTO EM LITERATURA COMPARADA

Eu, BAMISILE Sunday Adetunji, venho por este meio autorizar os

Serviços da Biblioteca de Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa

a copiarem esta tese, no seu todo ou em parte, em resposta a pedidos de

investigação individual ou colectiva, para fins de estudo ou

investigação privada.

------------------------- --------------------------------
Data Assinatura

ii
AGRADECIMENTO

Concluída a realização deste meu trabalho, não posso deixar de expressar o


meu penhor para como todos aqueles que contribuíram para a sua
realização, de uma forma ou de outra, designadamente:
- À minha orientadora, Profª Drª Manuela Ribeiro Sanches, agradeço a
disponibilidade com que me acompanhou ao longo deste trabalho, as
inúmeras sugestões e ideias que me foi dando, o cuidado com que leu e
releu as sucessivas versões da organização e passos desta tese. Esta
dissertação não teria sida realizada sem o seu apoio estimulante a quem
agradeço, além de tudo o mais, o rigor das suas críticas e a riqueza das suas
sugestões;
- À Fundação para a Ciência e a Tecnologia pelo apoio financeiro
disponibilizado;
- Aos membros da minha família- Rebeca Bamisile, Amando
Bamisile, Dorcas Bamisile, Desiré Bamisile e Ventura Bamisile, os
"pilares" emocionais e de esperança durante o período de elaboração do
trabalho, designadamente quando o texto e a pesquisa tiveram momentos
de impasse;
- De Rosa Maria Lopes Pereira lembro o inestimável encorajamento
final e as palavras de arrimo que me deixam em dívida gratificante.
- Estou também grato ao meu amigo, António Borges que partilhou
longas horas de estudo na biblioteca da Faculdade de Letras, pelo
encorajamento, apoio moral e até financeiro com que pontualmente me
beneficiou.

Finalmente, agradeço a Deus, que me tem dado saúde e força para


nunca esmorecer, permitindo que este trabalho chegasse ao fim.

Bamisile Sunday Adetunji

Lisboa, 15 de ………. de 2012

iii
COMPROMISSO DE HONRA

Para os devidos efeitos declaro sob compromisso de honra que nenhuma parte do
trabalho referido nesta dissertação foi usada anteriormente como suporte de candidatura
a qualquer outro grau de qualificação desta universidade ou de qualquer outra.

DECLARAÇÃO DE DIREITOS DE AUTOR

Os direitos de autor do texto desta dissertação são propriedade do seu autor. Quaisquer
cópias (feitas por qualquer via) de modo integral ou parcial, podem ser obtidas de
acordo com as instruções dadas pelo autor, à guarda da biblioteca da Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa. Detalhes para esse procedimento serão facultados
pelos Serviços da Biblioteca. Esta página interdita, necessariamente, qualquer
reprodução por cópia que venha a ser feita deste trabalho. Quaisquer cópias (por
qualquer processo) tratadas em conformidade com estas instruções, não poderão ser
feitas sem a permissão escrita do autor.

A propriedade de quaisquer direitos de autor relativos a esta dissertação fica atribuída à


Faculdade de Letras de Lisboa, salvo qualquer outro acordo posterior e não pode ser
disponibilizada para uso por terceiras partes, sem a permissão escrita da Faculdade, a
qual estipulará os termos e condições para isso.

Mais informação sobre as condições de divulgação e aproveitamento do conteúdo desta


tese será disponibilizada pelo Bibliotecário Chefe ou pelo Cento de Estudos
Comparatistas da Faculdade de Letras, da Universidade de Lisboa.

iv
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a todos aqueles que querem a paz; a todos os oprimidos. Quero
ainda dedicar este trabalho ao amor, a todos aqueles que renegam ódio e apesar de
sofridas humilhações continuam a ser capazes de amar. Com este pensamento
homenageio aqui as gerações de mulheres (escravos, de um modo geral) que sofreram
sob o peso da colonização e continuam a sofrer em qualquer parte do mundo onde haja
vítimas da opressão e injustiças, por razões de género, sob regimes de índole totalitária
patriarcal, com procedimentos denotadamente sexistas. Ao povo, em qualquer canto do
mundo onde houve vítimas da opressão e injustiças por parte de governos totalitários e
indivíduos de má-fé.
A Deus que me deu a grande oportunidade de estudar até este nível.

v
RESUMO

Este trabalho aborda questões de género e de escrita feminina na literatura


africana contemporânea e da diáspora africana. No tratamento desta temática, são
abordadas as relações entre as personagens femininas e as masculinas em cinco
romances de cinco escritoras de origem africana: duas africanas e três representantes da
diáspora africana: Niketche: Uma História de Poligamia (2002), de Paulina Chiziane
(Moçambique), So Long a Letter,(1980) de Mariama Ba, (Senegal), Second Class
Citizen (1974), de Buchi Emecheta (escritora nigeriana na diáspora africana), The Color
Purple (1982) de Alice Walker (afro-americana) e Quarto de Despejo (1960) de
Carolina Maria de Jesus (escritora afro-brasileira e, como tal, também participando da
diáspora africana). Mostramos ainda o modo como a obra destas escritoras foi decisiva
para o processo de conquista de um discurso próprio, permitindo-lhes assim definirem-
se como sujeitos da escrita feminina.
Esta tese baseia-se nas teorias feministas de Julia Kristeva, Luce Irigaray,
Hélène Cixious, Katherine Frank, Harry Blamires, Elaine Showalter, Rosalind Coward,
entre outras, e ainda nas ideias womanistas e feministas afro e eurocêntricas, defendidas
por feministas africanas e euro-americanas, tais como Catherine Acholnu, Alice Walker,
Chikwenye Ogunyemi, Clenora Hudsson-Weems, Molara Ogundipe. Os ideários destas
autoras fornecem a base teórica para a análise de vários temas - que vão da pobreza e
marginalização aos maus-tratos, violência e opressão, à discriminação e inferiorização
das mulheres a nível social -, ao mesmo tempo que se consideram as suas lutas para
alcançarem liberdade de expressão e vencerem o pesado jugo das tradições patriarcais,
conseguindo assim a sua auto-determinação e plena realização.
Através da análise das representações de mulheres, nos diferentes contextos
sociais, históricos e político, em que estas escritoras produziram as suas obras
ficcionais, é dada uma atenção particular à precária situação da mulher e aos problemas
associados à sua condição em África, na Europa, na América do Norte e do Sul e em
outras partes do mundo.

Através da análise do modo como as mulheres se representam a si mesmas, esta


tese procura contribuir para a causa da mulher e para o conhecimento da sua luta, na
tentativa de resgatar da obscuridade a sua voz silenciada e de restaurar a sua dignidade,
vi
RESUME

Ce travail met en exergue la question du genre et de le l’écrit féminin dans la


littérature contemporaine et de la diaspora africaine. Le traitement de cette thématique a
permis d’élucider les relations qui existent entre les personnages masculins et féminins
en cinq (05) romans d’écrivains d’origine africaine : deux d’origine africaine trois qui
représentent la diaspora africaine : Niketche : Uma História de Poligamia (2002), de
Paulina Chiziane (Moçambique), So Long a Letter, (1980) de Mariama Ba, (Sénégal),
Second Class (1974), de Buchi Emecheta (écrivain nigérian de la diaspora), The Color
Purpl (1982) de Alce Walker (afro-américaine) et Quarto Despejo (1960) de Carolina
Maria de Jesus (écrivain afro-brésilien et comme tel faisant partie de la diaspora
africaine). Dans le même volet, nous montrons dans quel aspect les œuvres de ces
auteurs ont été décisives dans le processus de conquête d’un discours propre, leur
permettant de se définir comme sujets de l’écrit féminin.
Cette thèse se base sur la théorie féministe de Julia Kristeva, Luce Irigaray,
Hélène Cixious, Katherine Frank, Harry Blamires, Eliane Showalter, Rosalind Coward,
entre autres, et aussi dans les idées humanistes et féministes afro et euro centriques
défendues par des féministes africaines et euro-américaines, telles comme Cathérine
Acholnu, Alice Walker, Chikwnye Oguyemi, Clenora Hudson- Weems, Molara
Ogundipe. L’idéologie de ces auteurs constitue la base théorique qui permet l’analyse
de plusieurs thèmes qui vont de la pauvreté et la marginalisation aux mauvais
traitements, violence et oppression, à la discrimination et à l’infériorisation des femmes
au niveau social et qui dans le même temps leur a permis de luter pour l’obtention de la
liberté d’expression, boostant ainsi les pratiques anciennes pour asseoir leur auto-
détermination et sa pleine réalisation.
L´analyse des représentations des femmes, dans des différents contextes sociaux,
historiques et politiques, en quoi ces femmes écrivains ont produit leurs œuvres de
fiction, permet d’attirer une attention particulière à la situation précaire de la femme et
aux problèmes associés à leur condition de femme en Afrique, en Amérique du Nord et
du Sud et autres parties du monde.
A travers de l’analyse du mode de comment les femmes se représentent en elles
mêmes, cette thèse a pour objectif de chercher à contribuer à la cause de la femme ainsi
qu’à la connaissance de sa lutte, dans la tentative de ressortir de l’obscurité sa voix
silencieuse et de restaurer sa dignité.

vii
ABSTRACT

The objective of this academic investigation is to analyze the question of gender


and female writing in contemporary African literature and literature in the African
Diaspora. For the evaluation of this subject matter, we highlight the inter-relationship of
masculine and feminine characters in five novels by five black female writers –
Niketche: Uma História de Poligamia (2002) by Paulina Chiziane (Mozambique), So
Long a Letter (1980) by Mariama Bâ, ( Senegal), and Second Class Citizen (1974) by
Buchi Emecheta, (Nigerian writer based in England since 1960), The Color Purple
(1982) by Alice Walker (black American writer), and Quarto de Despejo (1960) by
Carolina Maria de Jesus (black Brazilian writer). We also show how the work of these
writers was instrumental in women gaining access to a discourse of their own and
defining themselves as female writing subjects.
This thesis is informed by feminist theory, as developed by Julia Kristeva,
Luce Irigaray, Hélène Cixious, Katherine Frank, Harry Blamires, Elaine Showalter,
Rosalind Coward among others, as well as Afro and Eurocentric feminist and womanist
ideas as defended by African and euro-American feminists such as Catherine Acholnu,
Alice Walker, Chikwenye Ogunyemi, Clenora Hudsson-Weems, Molara Ogundipe,
Werewere Liking. These theories serve as the backbone in the process of cross-
examination of the various themes of abject poverty and marginalization, violent
brutalization and oppression, discrimination of women in their society, as well as their
struggles for liberation from the heavy yoke of patriarchal burdens and their struggle for
auto-determination and realization.
Through the analysis of representations of women in different social, historical
and political contexts in the above mentioned writers’ fictional work, particular
attention is paid to the precarious conditions of women and the problems associated
with these situations in Africa, Europe, North and South America.
Through the analysis of representations of women in female fiction produced in
Africa and in the African diaspora, this thesis hopes to contribute to foster knowledge in
these domains and to make these stories and their struggles more visible, thereby
rescuing them from obscurity.

viii
Palavras-Chave

i. Questões de género
ii. Escrita no feminino,
iii. Representações da mulher negra em África e na
diáspora africana
iv. Opressão, marginalização, auto-afirmação
v. Funções das escritoras na sociedade.

Mots- clés
i. Question du genre
ii. Ecrit au féminin
iii. Femme nègre, représentations en Afrique et
diaspora africaine
iv. Oppression, marginalisation, auto-affirmation
v. Fonctions de la femme dans la société.

Key-words

i. Gender Politics
ii. Feminine writing
iii. Representation of black women in Africa e
diaspora
iv. Oppression, Marginalization and auto-
determination
v. Roles of female writers in society.

ix
AGRADECIMENTO III

COMPROMISSO DE HONRA IV

DEDICATÓRIO V

RESUMO VI

ÍNDICE XI

CONTEXTUALIZAÇÃO: 14-37

PRIMEIRA PARTE

INTRODUÇÃO: A POLÍTICA DA REPRESENTAÇÃO PATRIARCAL E A


BUSCA DA VOZ FEMININA NA LITERATURA AFRICANA E AFRO-
AMERICANA. 38-70

i. A escrita feminina ou no feminino 39


ii. Política da representação patriarcal da mulher 50
iii. Presença da mulher africana na literatura 55
iv. Representação literária feminina e a sua acção formadora 58
v. Papéis das mulheres como personagens. 61

SEGUNDA PARTE

ABORDAGEM TEÓRICA: A PROCURA DE UM PARADIGMA


ESPECÍFICO: DO FEMINISMO, AO AFRO-FEMINISMO 71-110

i. Feminismo – conceptualizações 73

ii. Complementaridades e divergências entre feminismos africanos e euro-


americanos 82
iii. O dilema de ser ou não ser feminista 83
iv. Conceitos africanos alternativos ao feminismo ocidental 87
v. Complexidades, diversidades e afinidades feministas com e em África 105

x
TERCEIRA PARTE
O CONTEXTO SOCIAL DA ESCRITA FEMININA EM ÁFRICA E NA
DIÁSPORA 111-133

i. A mulher na sociedade africana. 113


ii. O contexto social da escrita feminina na diáspora – o caso do Brasil. 123
iii. O contexto social da escrita feminina na diáspora –o caso dos E.U.A. 128

QUARTA PARTE

ESCRITORAS NEGRAS NA DIÁSPORA E A QUESTÃO DA ESCRITA


FEMININA 134-318

1. Apresentação das escritoras em Estudo:


i. Alice Walker 135
ii. Carolina Maria de Jesus 140
iii. Buchi Emechita 146

2. Representação da opressão da mulher na comunidade afro-americana e


da sua conquista da liberdade, em The Color Purple. 151

i.a - A procura de uma definição do género epistolar 152


b - A escrita do romance epistolar 154
c- Cartas e diários ficcionados 155
d - Ambiguidades decorrentes do tratamento dado à narrativa
epistolar em The Color Purple. 157

e. O uso da forma epistolar em The Color Purple 159


ii. Representação da opressão da mulher em The Color Purple 170
iii. Personagens masculinas em The Color Purple. 178
iv. A fraternidade entre mulheres e o seu papel no
processo de emancipação de Celie. 189

vi.a A relação de fraternidade entre Celie e Nettie 192


.b A relação de fraternidade entre Celie e Sofia 194
.c A relação de fraternidade entre Celie e Shug 196
v. Os resultados benéficos desta fraternidade no feminino 200
vi. Notas conclusivas 205

xi
3. Representação da pobreza, dos excluídos e marginalizados e da revolta
feminina negra em Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus.

i.. Diário como forma de escrita no feminino 212


ii. Conflitos em Quarto de Despejo 217
iii. Carolina M. Jesus, porta-voz dos marginalizados da favela 231
iv. Estilo, linguagem e estratégias da escrita de Carolina M. Jesus 255
v. O lugar de Carolina Maria de Jesus na literatura brasileira. 264

iv. Representação da opressão e auto-determinação femininas em Second


Class Citizen, de Buchi Emechita.

i. Representações da condição de mulher na Nigéria 273


ii. Conceito e importância da autobiografia, dificuldades associadas a
este género na escrita de Buchi Emecheta 277
iii O mundo ficcional de Emecheta e suas preocupações 281
a. Discriminação por razões de género 282
b. A atração e consequências da cultura ocidental 290
c. Imigração – dificuldades, diferentes categorias de cidadãos 293
iv A análise de personagens em Second Citizen Citizen 301
a. Adah, a personagem feminina em Second Class Citizen 301
b. Francis, a personagem masculina em Second Class Citizen 307

v. Aspectos conclusivos deste capítulo - 315

QUINTA PARTE

ESCRITORAS AFRICANAS EM ÁFRICA E A QUESTÃO DA ESCRITA


FEMININA 319-441
1. Apresentação das escritoras aqui em estudo
i. Mariama Ba 319
ii. Paulina Chiziane 325

2. Falsidade, maus-tratos e auto- determinação da mulher em So Long a


Letter, de Mariama Ba. 331
i. Contexto social da obra 332
ii.a Autobiografia e processo narrativo em So Long a Letter 333
.b Conceito e papéis do diário e da carta em So Long a Letter 339

xii
iii.a Acção das personagens principais em So Long a Letter 347
.b. A dualidade de perfil das personagens masculinas em So Long a
Letter 358
iv. Os temas abordados 366
v. Visão e compromisso assumidos por Mariama Bâ. 381

3. Tradição e relação de géneros - a afirmação da mulher em Niketche, de


Paulina Chiziane 385
i. O valor da mulher na cultura e na tradição moçambicana 386
ii. Tony, representação do género masculino da tradição patriarcal 391
iii. Rami, da passividade à contestação da violência patriarcal 403
iv Niketche, a contra-dança ou recuperação da autoestima no
feminino. 418
v. O género feminino na tensão entre tradição e modernidade. 429
vi. A unidade no feminino em contestação contra a tradição
patriarcal 437

SEXTA PARTE:

CONCLUSÃO 442-467

1. Papéis das escritoras negras nas sociedades africanas e africanas na


diáspora; 442
2. Sumário, Conclusão e Sugestão 453
i.. Para uma nova representação da mulher em África e na diáspora
africana. 462
ii. Para uma nova abordagem do contributo das feministas africanas.
465

BIBLIOGRAFIA 467 -515.

DADOS DO AUTOR 516

xiii
CONTEXTUALIZAÇÃO:

QUESTÕES DE GÉNERO E DA ESCRITA NO FEMININA NA LITERATURA


AFRICANA CONTEMPORÂNEA E DA DIÁSPORA AFRICANA.

I believe a woman, as mother in her society, as the first


teacher of her children and also as an ordinary member
of society, is in a very good position to communicate
with people she writes for. The usage of simple
domestic language can be very effective as it will be
easily understood. (Manoko Mchwe citado em
Owomoyela 1993, p.338).

O estudo aqui presente, em termos formais, é um trabalho para tese de


doutoramento em estudos literários no âmbito da Literatura Comparada /Estudos
Compratistas. Aqui se enunciam e debatem imparidades decorrentes das questões de
género, as quais afectam e dificultam uma mais plena afirmação da escrita feminina na
literatura africana contemporânea e na da diáspora africana1. Para o tratamento desta
temática iremos abordar as relações entre as personagens femininas e as masculinas, em
romances de cinco escritoras de origem africana: duas africanas e três representantes da
diáspora africana: Niketche: Uma História de Poligamia (2002) de Paulina Chiziane

1
É importante afirmar desde já que a definição e classificação da literatura feita por mulheres africanas
em África e na diáspora tem dado lugar a uma série de argumentações e contra argumentações por parte
de diversos pesquisadores, editores e críticos desta produção literária, designadamente Brenda Berrian
(1995), Chinua Achebe e Lyn Innes (1985) e Bamisile (2010). No meu ensaio intitulado “A Influência do
Conceito de Universalismo e Póscolonialismo na Literatura Africana Contemporânea” publicado no
Jornal Babilónia p.27-47, eu discuti aprofundadamente este assunto. Contudo, quero afirmar que existem
opiniões declaradamente contrárias à minha. Alguns dos que se posicionam de modo diferente do meu
são, por exemplo: Brenda Berrian (1995) que na lista que elaborou sobre autoras negras africanas em
África e na diáspora, incluiu escritoras europeias casadas com negros, mas omitiu Nadine Gordimer . Por
sua vez, Chinua Achebe e Lyn Innes (1985) na Antologia de Contos Africanos que realizaram incluíram
Nadine Gordimer e Alifa Rifaat. Esta diferença na escolha de autoras serve para sublinhar que na
elaboração de qualquer critério de selecção é necessário evitarem-se posicionamentos simplistas ou
ambíguos. Embora Gordimer seja uma africana descendente de colonos europeus, o seu trabalho deu um
grande contributo para o entendimento da realidade africana. Apesar disso, pelo facto de ela não ser negra
decidi não discutir aqui esse seu contributo, tendo optado, em vez disso, por privilegiar o trabalho das
cinco escritoras negras e afro-americanas que são o objecto de estudo desta tese. Por razões semelhantes,
excluí Rifaat que é uma escritora de relevo do Norte de África e faz parte do cânone africano, mas é de
etnia árabe. Deste modo, fica devidamente esclarecido que este trabalho se vai cingir a escritoras negras
em África e na diáspora

14
(escritora moçambicana) e So Long a Letter, (1980) de Mariama Ba (escritora
senegalesa) e Second Class Citizen (1974) de Buchi Emecheta (escritora nigeriana na
diáspora africana), The Color Purple (1982) de Alice Walker (afro-americana) e Quarto
de Despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus (escritora afro-brasileira), e como tal
também participando da diáspora africana.

Questionar-se sobre o que é a escrita feminina2 ou escrita no feminino é o tipo


de interrogação que exige a maior concentração de pensamento e de sensibilidade por
parte de alguém que se intitule feminista e, por isso, necessariamente interessado nesta
prática de escrita. Contudo, esta interrogação é a mesma que, de modo quase inevitável,
é feita também pelo leitor comum quando este se depara, pela primeira vez, com a
expressão “escrita feminina”. Assim, face às interrogações levantadas pela dificuldade
de se definir escrita feminina, ou no feminino, será oportuno termos em conta, desde já,
a opinião de três feministas, Julia Kristeva (1974), Luce Irigaray (1975) e Hélène
Cixious (1976). Estas conhecidas autoras, apesar de muito versadas em conceitos
ligados ao feminismo e à escrita feminina, afirmam que se consideram incapazes de
explicar o que é o feminismo.

2
- O significado de “feminino” a que aqui se alude é o que deriva de um certo tipo de escrita que, pela
primeira vez, foi produzido há cerca de quarenta anos, em França, e que também, no início dos anos
oitenta, foi motivo de discussão nas academias literárias inglesas e americanas, sob a designação de
feminismo francês e escrita feminina – “French feminism” e “écriture feminine”. No entanto, qualquer
um destes termos é em si mesmo insatisfatório: o primeiro sugere que o feminismo produzido em França
é homogéneo, decorrente de uma base de cariz nacional e completamente distinto de outros feminismos; o
segundo termo implica que haverá algo que poderemos identificar como escrita ”feminina” e que terá a
ver com o que todas as mulheres fazem, quando escrevem. Mas, na verdade, as feministas que mais têm
sido associadas à escrita feminina são precisamente aquelas que frequentemente têm manifestado extrema
relutância em definir o que é a escrita femina, como é o caso de Hélène Cixious.
Outras feministas têm sido indiscriminadamente colocadas no campo da escrita feminina, embora elas
mesmas tenham expressado reservas quanto à escrita feminina, de um modo geral, e quanto à sua ligação
a mulheres, especificamente. Neste contexto, há que ter ainda em conta, por um lado, as ligações entre
escrita feminina e a repressão exercida pelos elementos de uma cultura de dominação masculina,
designadamente sobre aspectos como o corpo feminino, os desejos próprios e a voz da mulher. Por outro
lado, importa estarmos também cientes de que as associações geradas entre escrita feminina e inovação
ou vanguardismo têm sido feitas de modo tendencialmente redutor. Nalguns casos, o escritor ou escritora
que se refira, mesmo se de modo passageiro, às necessidades da mulher, empregando, por exemplo, uma
metáfora suave mas invulgar, passará a ser referido/a como o último expoente da escrita feminina. Talvez
haja aqui algum exagero de apreciação, da minha parte, mas creio que não.
Um outro problema radica no estatuto de quase talismã que é atribuído ao feminismo francês e, em
particular, ao trabalho que foi desenvolvido por Julia Kristeva, Luce Irigaray e Hélène Cixious no âmbito
de estudos académicos, tanto em Inglaterra como na América, particularmente durante os anos oitenta. E
não pode deixar de ser notada aqui uma clara ironia, uma vez que grande parte da escrita produzida por
estas autoras é um profundo questionamento acerca do modo como se constrói o conhecimento e como se
exercem e se afirmam influências e outras formas de poder. Assim, para não se incorrer nessa ironia, seria
bom que estas escritoras passassem a ser estudadas por outros com o espírito aberto, atento e inquisitivo
que é característico delas próprias.

15
Num dos seus ensaios, sintomaticamente intitulado “Woman Can Never Be
Defined”, Julia Kristeva (1974) afirmou que: “na mulher vejo algo que não pode ser
representado, algo que é indizível, algo que escapa e está para além de restritas
nomenclaturas e ideologias”3( Kristeva 1974, p.76). De notar também que há um
crescente número de homens que estão familiarizados com esta singularidade e é isso
mesmo que alguns textos modernos buscam incessantemente, para serem capazes de
significar devidamente, testando nas suas formulações os limites da linguagem e da
sociabilidade que ela veicula – mediante a contraposição entre lei e transgressão, ou a
mestria na forma de dizer e com referência inclusiva ao prazer sexual, sem reservas
distintivas para com o género masculino ou feminino e não as invocando sequer,
especificamente (1975:78)

Luce Irigaray (1975:78) no seu conhecido artigo, intitulado “The Power of


Discourse and the Subordination for the Feminine”, exprime a opinião de que “falar-se
de ou sobre a mulher pode tender a ser visto como uma mera recuperação do que se
entende por feminismo, dentro daquela lógica que o mantém sob repressão, censura e
não-reconhecimento” (Irigaray:1975, p.78).

Hélène Cixious (1976, p. 253), por sua vez, defendeu em “The Laugh of the
Medusa” que “é impossível definir-se uma prática feminina da escrita e que esta
impossibilidade se irá manter, pois tal prática jamais poderá ser teorizada, enclausurada,
codificada – o que não quer dizer que ela não exista. E tal prática virá a sobrepujar
sempre o discurso que vem regulando o sistema falocêntrico de comunicação. A prática
feminina da escrita ocorre e ocorrerá sempre em âmbitos que são distintos daqueles que
estão subordinados à dominação teórica vigente. E ela só será concebida por quem se
assumir disposto a quebrar automatismos, o que nos remete para figuras portadoras de
discursos da periferia, as quais, nenhuma autoridade conseguirá alguma vez submeter”.

Em análise sumária a estes diferentes posicionamentos, podemos dizer que


tentar definir o feminismo é um acto que exige um conhecimento profundo desta
questão, de modo que, quem a tal se abalançar, terá de ser capaz de conjugar a
diversidade de entendimentos que este assunto tem suscitado e fazer também a

3
Traduzido da língua inglesa para a língua portuguesa. Todas as traduções aqui efectudas são da
responsibilidade de Sunday Bamisile, autor desta tese.

16
divulgação do feminismo, tornando-o em algo mais fácil de abordar e entender. Deste
modo, aquilo que nos ocorre, após termos lido o que Irigaray nos propõe, é
perguntarmo-nos, para que outros se interroguem também – “porque é que o feminino é
impossível de definir e/ou representar?” Em suma, e em jeito de resposta, aquilo que
pode ser aduzido de imediato, da breve referência feita a estas três escritoras é que,
qualquer uma delas propõe uma significação de feminino que não pode ser contida na
ordem corrente das formulações dominantes. E isto porque tal significação não só “testa
os limites” da ordem convencionada (Kristeva), como também porque essa
singularidade de significação está para além do discurso que regula as habituais
formulações (Cixious).4

Para Kristeva (1974), por sua vez, o feminismo não é um lugar para os
defensores da ordem social estabelecida, mas o sítio daqueles que se posicionam como
autores marginais ou “figuras periféricas”, homens incluídos, e que não têm interesse
em se identificarem com o centro, com a autoridade vigente.

A nossa perspectiva, recorre, contudo, ao conceito de feminismo, no


reconhecimento das posições acima enunciadas, mas também da sua vantagem - menos
epistemológica do que estratégica - para em termos de conteúdo, se proceder ao exame
das formas de opressão impostas às mulheres, tal como entrevistas na obra destas cinco
escritoras. Por esta forma, pretendemos acrescentar um contributo de encorajamento ao
desejo de todas as mulheres que ainda vivem sob o jugo de variadas formas de opressão,
designadamente em África. O estudo a desenvolver sobre o trabalho destas cinco
escritoras será apoiado e minuciosamente investigado à luz do que é preconizado pelas
ideologias feministas de pendor afro e eurocêntrico. Deste modo, esperamos que esta
questão de grande actualidade no conjunto dos anseios e preocupações das mulheres
africanas, tal como nos é testemunhado no legado literário destas escritoras, ganhe uma
visibilidade crescente, para materialização de uma maior paridade de géneros.

As mulheres precisam de se opor activamente a todas as formas de opressão e de


exploração política e social baseada no género. O estudo e divulgação desse
empenhamento pela via literária ou outras formas serão imperativo de todos, mulheres e

4
Tal como H. Cixious alude no passo acima, a impossibilidade ou a falta de vontade para se reduzir o
feminino a uma lista precisa de características não significa que o feminino não exista. Para maior
informação consulte os seguintes ensaios desta autora “The Laugh of the Medusa” e “Castration or
Decapitation?”.

17
homens. Neste sentido, esperamos que esta investigação académica seja também um
contributo acrescido para uma maior tomada de consciência do modo como tem vindo a
fazer-se o desenvolvimento da condição da mulher em África, através dos níveis de
escolaridade e de educação que (ela) vai adquirindo, o que, por sua vez, são factores que
levarão à melhoria da situação sócio-económica e política das mulheres, em África. No,
entanto, devemos começar por referir que, apesar de veementes protestos, um pouco por
toda a parte, as mulheres continuam a ser discriminadas em todo o mundo e, em
particular, no âmbito da acção educativa em África, como ficará patente nos capítulos
em que se abordará esta importante questão. Mas é importante afirmar, desde já, que
quase todos os escritores que são aqui objecto da nossa investigação dão apoio altruísta
e todo o encorajamento para que a mulher em África obtenha a sua própria
independência. E, na verdade, este caminho de auto-afirmação progressiva parece ser o
único meio que permitirá à mulher equipar-se, de modo adequado para os desafios que
os africanos de amanhã exigirão dela.

Embora a maioria das escritoras africanas, incluindo Buchi Emecheta, Paulina


Chiziane ou Mariama Ba tenham negado, por várias vezes, em conferências, entrevistas
e ensaios, serem feministas, neste nosso estudo tentar-se-á evidenciar que os seus
trabalhos literários são essencialmente feministas. De facto, estas cinco escritoras
exibem tendências feministas dada a forma como desenvolvem os seus temas ou
representam as suas personagens e, sobretudo, o modo positivo como abordam a
condição da mulher. De acordo com Akachi Ezeibo, o receio de ser designado
feminista, com todo o cortejo de possíveis consequências adversas daí advindas, no seio
de sociedades essencialmente patriarcais ou falocêntricas, levou a que algumas
escritoras nigerianas e de outros países de África negassem ser feministas e se
demarcassem da ideologia do feminismo (Akachi 1996, p.1).

Motivação:

A motivação principal que subjaz a este estudo é, entre outras, o desejo de


responder às críticas pouco animadoras de alguns estudiosos africanos e ocidentais que
analisam as obras das escritoras negras de forma preconceituosa, sem ver nelas qualquer
valor criativo ou literário, no conteúdo, na forma ou nos temas destas obras. Outra razão
para este estudo tem a ver com a falta ou escassez de trabalhos críticos sobre as
escritoras africanas, e ainda, a contestação da passividade de que, frequentemente,

18
enfermariam as personagens femininas dos textos da literatura produzida por autoras
negras. Além disto, as autoras que apresentam personagens femininas mais empenhadas
em resgatarem a dignidade da mulher não têm ainda a divulgação merecida.

Porque esta temática, que tem a ver com uma longa luta das mulheres pelos seus
direitos, é uma questão que a todos diz respeito, homens e mulheres, realizamos este
estudo que nos permitirá também rever e dar ênfase à vida de várias mulheres no seu
papel de mães, esposas, viúvas e suporte essencial da família em África, apesar dos
inúmeros abusos de ordem vária de que ali são vítimas. Grande parte desta
mundividência pejada de sofrimento havia sido longamente obliterada ou
intencionalmente omitida, mas hoje, ela é progressivamente mais visível, através do seu
retrato ficcionado no texto literário das muitas autoras, e de alguns autores, de pendor
feminista. Neste sentido, este trabalho, será mais um contributo visando uma pretendida
maior consciencialização dos leitores para o facto de haver bilhões de mulheres no
mundo que se encontram secularmente marginalizadas e continuamente oprimidas por
discriminações tradicionalmente arbitrárias do poder patriarcal. É preciso, pois, dar voz
à multidão de mulheres africanas iletradas e sem recursos, deprimidas e desfavorecidas,
privadas dos direitos sociais mais básicos, que continuam a sofrer em silêncio, também
por não haver ainda maior sensibilização e audiência para a arte que as tematiza, nos
seus anseios, frustrações e conquistas. Este número imenso de mulheres está a deixar de
viver de modo silenciado, à medida que um número crescente de autoras africanas e
africanas na diáspora, recriam e divulgam as suas provações. Mas esta grande fatia da
humanidade, que são as mulheres silenciadas, ainda é a parte maior de todos nós e
mantém-se marginalizada dos seus direitos, arredada de uma paridade plena com o
homem. Sobretudo nas designadas sociedades pós-coloniais, as mulheres africanas estão
longe de alcançar condições de vida equiparáveis às das suas homólogas ocidentais,
designadamente, as de países mais desenvolvidos, como os Estados Unidos, Inglaterra,
França, ou até Portugal. E não é menos verdade que a maior parte das mulheres
marginalizadas vive no interior da África, a trabalhar de sol a sol, com os filhos atados
às costas, nos campos ressequidos que os seus maridos nunca cultivam, e tendo ainda de
caminhar, ao anoitecer, longas distâncias até às suas aldeias, acartando penosamente
grandes trouxas à cabeça. Com todo este esforço que raramente era reconhecido, elas
são a principal razão da subsistência da família em África, mas são, ainda, o elo

19
esquecido numa relação de forças que se conjuga para as manter deliberadamente
enfraquecidas.

Objectivos deste trabalho:


O objectivo deste trabalho, em termos estruturais, é comparar5 e contrastar o
modo como Paulina Chiziane, Buchi Emechita, Mariama Ba, Carolina Maria de Jesus e
Alice Walker usam a sua escrita de um modo comprometido com as questões feministas
nos seus respectivos países, pertencentes a quatro diferentes continentes. A escolha por
nós feita, circunscrita aos cinco romances já mencionados, permite nos, no entanto,
obter um entendimento alargado do papel e da acção das escritoras em África e na
diáspora, que até certo ponto é, necessariamente ideológico e revelador da relação
intrínseca entre romance (s) e sociedade(s), estado da(s) sociedade(s) e sua(s) formação,
hibridismo e outras ideias incorporadas, vindas do mundo exterior para África. Estes
romances, publicados entre 1960 e 2003, recolocam a questão do género e das
preocupações feministas no contexto da produção literária que utiliza a sociedade
africana e negra na diáspora como pano de fundo essencial dos seus trabalhos.

A fim de fazer uma avaliação da acção de personagens femininas, de carácter


forte ou fraco, e verificar como é que estas se relacionam com a noção da questão e da
escrita no feminino, esta análise radicou no estudo dos cinco romances das autoras
negras anteriormente mencionadas. Os contextos sociais, que enquadram os cinco
romances escolhidos para estudo nesta tese são aqui examinados com o fim de se
5
Entrar no espaço da literatura comparada é afoitar-se por trilhas diversas do pensamento humano. É não
ter em conta fronteiras precisas e invadir outros territórios para perceber que “o outro pode ser o
“Mesmo” ou “Eu-mesmo” ou até “um outro”; é servir–se da possibilidade de pairar a distância para
chegar mais perto ao modo como o Outro fala, de que fala e pensa, onde vive e como vive; é, em fim
estabelecer comparações. O exercício comparatista leva-nos assim ao “entendimento do outro”
(Carvalhal, 1997, p.9). Ainda, de acordo com D’Angelo, a “metodologia comparatista” está “interessada
na passagem da “cultura às culturas” (2005, p.141). A “ comparabilidade” conforme a Guillén, não é
resultado de um idealismo nobre, (…) é antes o reconhecimento de que a diversidade cultural da
experiencia humana é algo tão inevitável como criativo, lugar de enriquecimento de vidas e de
imaginários poéticos. D’Angelo, (2005, p.142-143) importante salientar que a Literatura Comparada tem
sofrido muitos desenvolvimentos recentes. A título de mero exemplo considere apenas os seguintes
ensaios; “Entre Elitismo e Populismo. Para onde vai a Literatura Comparada?” ‘ de Elizabeth Fox-
Gonovese, ‘Literatura Comparada e Teoria da Literatura: Relações e Fronteiras’ de Helena Carvalhão
Buescu, ‘Da Literatura enquanto Construção Histórica de Manuel Gusmão e “O cânone na Teoria
Literária Contemporânea” de José Pozuelo Yvancos Veja ainda A Floresta Encantada ed. por Helena
Buescu e João Ferreira Duarte.

20
avaliar a importância que eles podem ter para a(s) sociedade(s) de que emanam e até
que ponto são uma forma de arte comprometida e ajustada aos anseios dessa(s)
mesma(s) sociedade(s). A análise aqui feita cingiu-se ao estudo do texto de romances,
tendo em conta a ideologia que eles professam e o modo como as personagens
femininas reflectem as ideologias centradas na mulher. Deste modo, as personagens
femininas de carácter forte ou passivo serão consideradas no contexto das respectivas
sociedades, através dos micromundos que são os textos literários em que essas
personagens surgem inscritas.

Além disso, este estudo procurará sublinhar a necessidade de se dar relevo ao


trabalho de escrita no feminino na nossa sociedade. Também procuraremos apresentar
um suporte teórico reconhecido que sustente o tipo de análise aqui feita a estes
romances. Teorias e críticas de texto sobre estas problemáticas foram tidas em conta
tanto quanto possível, tendo-se comparado o ponto de vista de diversos autores sobre as
questões de género e feminismo no texto contemporâneo de autoras africanas e na
diáspora, para assim podermos clarificar melhor a área de estudo. A consideração desta
diversidade de textos críticos procura também sublinhar as diferentes alterações e
mudanças que têm sido vivenciadas pelas mulheres, ao longo dos anos, e que estes
textos apresentam e contextualizam.

Para além de tudo isso, este estudo procurará salientar o modo como têm surgido
crescentes representações de personagens femininas de carácter forte. Efectivamente, as
cinco autoras aqui estudadas criaram um maior número de personagens femininas fortes
do que fracas. Isto é um facto que, por si só, é digno de registo e elogio, tendo em vista
o incentivo que isso constitui para a luta que busca maior paridade de direitos entre
mulheres e homens. Em África há já hoje uma segunda e uma terceira geração de
autoras, mulheres negras, cujos romances, escritos em solidariedade com as vivências
das mulheres comuns, dão visibilidade a essa experiência particular e impulsionam o
conjunto de ideologias que propõem a autonomia e a auto-afimação da mulher, em
todos os aspectos do mundo actual. Esta crescente tomada de consciência do papel e
função da autoria feminina é bem patente na característica própria através da qual se
expressa a criatividade feminina que tende a assumir-se como porta-voz das mulheres
nos meios literários e também fora deles, embora as autoras literárias tenham
consciência de que pertencem ao mundo académico e que, por isso, aquilo que

21
escrevem é mais apreciado no âmbito restrito deste grupo menor. Contudo estas cinco
romancistas, independentemente da classificação que as associa a uma identidade de
classe, pugnam, nos seus trabalhos, tanto pela causa da mulher africana moderna, como
da tradicional. Esta atitude de defesa da mulher de qualquer condição tem-lhes
granjeado bastante notoriedade em África, como no exterior, no âmbito das actuais
preocupações relativas à condição de tratamento desfavorável para com a mulher, em
todo o mundo.

O tema da(s) identidade(s) feminina(s) que subjaz a estes cinco romances


merecerá também o nosso estudo, para averiguarmos até que ponto a abordagem desta
problemática é tratada especificamente, em associação com e na crítica das sociedades
em que as autoras vivem e cujas vivências sociais ficcionam. Ao longo deste estudo,
procuraremos ver também, até que ponto estes romances, que enfatizam as questões
femininas, tendem para um cunho de marcado protesto engajado. Assim, não
deixaremos de dar a nossa melhor atenção ao relevo que merecem as questões de género
e as ideologias feministas nestes cinco romances, bem como a contextualização que
fazem da vivência das mulheres negras em África e na diáspora.

Um outro grande objectivo, que perpassa no desenvolvimento deste estudo, é a


necessidade de sublinharmos que qualquer ideologia relativa a estas questões e que seja
transferida da Europa e da América para o espaço do romance africano contemporâneo
é relevante para África. Em vez de se defender que essas ideologias, só por que vêm de
fora, são alienadoras, devemos considerar que elas comportam contributos que fazem os
povos prosperar e que, por isso, são relevantes para as vidas das pessoas, em qualquer
área geográfica ou meio social onde vivam ou se encontrem ocasionalmente.

Neste estudo pretende-se pois avaliar a importância dos cinco romances em


causa, tendo em conta o impacto do que ali é ficcionado relativamente às implicações
motivadas pela condição de género em África e na diáspora, num tradicional e habitual
desfavor das mulheres. Concentraremos ainda a nossa atenção nas estratégias e estilos
de escrita a que estas escritoras recorrem, bem como a animosidade que enfrentam
devido ao seu empenho ideológico em prol das mulheres, no contexto das polémicas daí
decorrentes.

22
Implicitamente, outro aspecto que acentuaremos é a condição da mulher num
mundo dominado pelo homem, situação de imparidade a que urge trazer mais equilibro.
Por esta razão, não nos limitaremos a apresentar um perfil uniforme ou uma imagem
monolítica e passiva das mulheres africanas, mas procuraremos, antes, equacionar temas
comuns de insubmissão que devem ser considerados relevantes para as expectativas
decorrentes da experiência sofrida, que se deseja alterar, da maioria das mulheres
negras, em várias partes do mundo. Ao longo dos últimos anos, estes temas têm vindo a
ser tratados em encontros académicos sobre a situação das mulheres negras na
sociedade tradicional, histórica e contemporânea, e devido à sua relevante temática estes
estudos serão trazidos à colação e até certo ponto reavaliados no decorrer desta
pesquisa. Vamos abordar ainda a importância da mulher negra no que toca à mudança
de papéis tradicionalmente atribuídos ao sexo masculino e feminino. Vamos denunciar a
exploração económica e a discriminação social com efeitos sobre o género em África e,
acima de tudo, vamos enaltecer o contributo da mulher, neste continente, para a
sobrevivência humana, através do seu instinto de coesão familiar. Vamos, em suma,
associar-nos à busca de uma mais justa visibilidade para o mérito e desenvolvimento de
um feminismo africano assumido, confiante, determinado e até certo ponto distinto das
motivações feministas do Ocidente europeu. Acima de tudo, esta tese visará dar atenção
à vida das mulheres negras oprimidas em todo mundo, seja na vida privada, seja na vida
pública, onde enfrentam problemas de opressão e discriminação de toda a ordem e, mau
grado, se mantêm o vínculo maior e permanente da sustentabilidade e agregação
familiar. Numa perspectiva mais alargada do nosso trabalho, propomo-nos integrar as
ideias que serão apresentadas em seis partes, num conjunto de temas recorrentes e inter-
relacionados entre si. Do nosso ponto de vista, estes temas são da maior importância
para o estudo do percurso e das expectativas de vida da maioria das mulheres negras,
para que esta análise passe a fazer-se numa perspectiva intercultural devidamente
enquadrada à luz dos mais recentes afloramentos da luta das mulheres em África, como
em todo o mundo.

23
Pontos de unidade dos principais temas:
O primeiro grande tema que une a vida das mulheres que são objecto de estudo
desta tese é a sua comum herança africana. Este trabalho centra-se no estudo da
mundividência, desafios, dificuldades e esperanças das mulheres negras africanas de
diferentes regiões e da diáspora, designadamente na América do Norte e do Sul e na
Europa para, com esta expansão, fazermos notar aspectos de diversidade, mas que são
partes de um todo que se debate com idênticos problemas, seja qual for a latitude
considerada. As questões aqui tratadas prendem-se com os esforços e com uma
crescente tomada de consciência das mulheres por uma maior reivindicação dos seus
direitos. Pela nossa parte, pretendemos associar-nos à necessidade que sentimos de lhes
ser dada uma maior visibilidade. Com pequenas diferenças, as mulheres em África ou as
emigradas/(traficadas) para o mundo ocidental enfrentam problemas semelhantes, pelo
que o testemunho de diferentes autoras circunscreve realidades de diversos países, mas
o esforço de denúncia e condenação que é emitido na África do Sul, do Este ou do
Leste, ganha eco em todo o espaço onde há mulheres negras discriminadas. Não
abordamos aqui o trabalho de nenhuma autora do Norte de África, não porque eles
sejam escassos, mas por razões de limitação de espaço e tempo e também por
entendermos que o conjunto de textos de autoras africanas em África e na diáspora,
convocados para esta dissertação, é suficientemente representativo das comuns
dificuldades e anseios das mulheres africanas.

O segundo grande tema unificador é a denúncia que todas as autoras estudadas


fazem da marginalização e exploração de que África e as mulheres, em particular, foram
e continuam a ser vítimas, por via de formas de escravatura, colonização mental e seus
ideários patriarcais, cuja força discriminatória para com as mulheres ainda vigora na
persistente formatação de certos papéis sociais, em que diferentes géneros gozam de
diferenciados/distintos direitos e obrigações. Assim, a par da exploração económica que
delapidou África e da colonização que introduziu processos de vivência em África,
podemos dizer que a marginalização da mulher africana, decorreu, em parte, do
alargamento a África de estereótipos negativos para com a mulher, que já existiam no
mundo ocidental. Em África, ao contrário do que acontecia no mundo ocidental, a
economia familiar sempre esteve muito baseada no contributo da mulher. O homem
partia, mas a mulher ficava com os filhos e, através da lavoura ou de outros serviços,
garantia o sustento da família. Esta capacidade de sustentação das suas famílias deu às

24
mulheres um certo grau de autonomia e independência, relativamente ao homem, facto
que estas autoras salientam como prova da capacidade das mulheres para se
autonomizarem da tutela patriarcal.

Assim, também, todos os textos aqui considerados devem ser vistos como um
apelo à unidade de todas as escritoras ditas feministas, independentemente de diferenças
decorrentes de vivências mais regionais, seja na Nigéria, em Moçambique, no Senegal,
no Brasil ou nos Estados Unidos. O womanism de Alice Walker e de Chikwenye
Ogunyemi, o womanism africano de Clenora Hudsson-Weems dos E.U.A., o stiwanism
de Molara Ogundipe-Leslie da Nigéria e ainda o motherism de Catherine Acholonu,
todos estes posicionamentos feministas são distintos no modo como procuram defender
a mulher, aceitando ou excluindo o contributo dos homens; mas, em essência, todos
pugnam pelo objectivo primeiro que é o resgate da dignidade da mulher, objectivo que
tem presidido ao empenho literário de qualquer feminista, independentemente da
definição que cada uma defenda como a mais ajustada ao seu particular engajamento.
Um texto literário escrito por uma autora negra africana tem o valor próprio que é
devido a qualquer criação artística de mérito, além do facto de poder e dever ser tido
como prova da capacidade intelectual e criativa de todo o conjunto das mulheres,
secularmente menorizadas pelos estereótipos da tradicional ideologia patriarcal.

Estrutura do trabalho:

Este trabalho é constituído por seis partes interligadas e relacionadas entre si. Na
primeira parte, procuraremos dar uma visão geral sobre o que é ser mulher em África e
na diáspora, assinalando aí o contexto social onde se gera a criatividade das mulheres
africanas, em diferentes partes do vasto continente. A nossa preocupação aí é a de
sublinhar o surgimento da mulher negra como escritora, personagem e leitora, a
complexidade da escrita feminina e o lugar da mulher na literatura africana e na
diáspora.

Na segunda parte desta tese faremos uma análise de importantes questões


teóricas do nosso trabalho. Procuraremos analisar o conceito de feminismo, a partir das
perspectivas ocidentais e consideraremos ainda as posições contra esse feminismo
ocidental defendidas pelas feministas negras, nomeadamente, o womanismo de Alice

25
Walker, o womanismo de Chikwenye Ogunyemi, e o womanismo africano de Clenora
Hudsson-Weems dos E.U.A., o stiwanismo de Molara Ogundipe-Leslie da Nigéria e
ainda o motherism de Catherine Acholonu. O nosso objectivo aqui será ponderar se é
possível termos um paradigma de feminismo que seja aceitável, tanto para os estudiosos
ocidentais como para os africanos. A terceira e quarta partes deste trabalho contêm o
que entendemos ser o cerne da nossa tese. Aí, centraremos a nossa atenção nas questões
de género na literatura africana e africana na diáspora, tendo em vista as injustiças e
formas de opressão sofridas pelas mulheres bem como as suas realizações, as quais lhes
permitem aumentar o seu espaço de afirmação e vencer os problemas com que se
deparam nas sociedades em que se encontram, tal como isso é recriado nas cinco obras
em estudo. Detalhando, veremos que a terceira parte deste trabalho se compõe de três
secções que sublinham a importância do papel tradicional da mulher na sociedade
africana, desenvolvendo depois o contexto social da escrita feminina na diáspora (Brasil
e E.U.A,.).

Na quarta parte, numa primeira secção, será dado particular relevo ao percurso
literário das três escritoras africanas na diáspora aqui em estudo, a saber, Alice Walker,
Carolina Maria de Jesus e Buchi Emecheta, com indicação das obras por nós
seleccionadas e analisadas.

Na segunda secção deste passo do trabalho fazemos a análise dirigida


exclusivamente à mundividência de uma comunidade afro-americana, tal como ela nos
é apresentada e ficcionada em The Color Purple, de Alice Walker. Esta obra serve para
examinarmos as dificuldades e a marginalização imposta à mulher, numa comunidade
negra americana, para sublinharmos, em reprovação, práticas recorrentes de abuso
sexual (incesto), bem como formas de resistência que foram possíveis no seio privado
dessas famílias. Neste momento da nossa investigação, a nossa preocupação será a de
demonstrarmos de que maneira a história de Celie, uma personagem marginalizada no
romance em estudo, protesta contra as construções mentais de índole patriarcal, pugna
pela afirmação da subjectividade e sexualidade feminina e, desta maneira, faz, por si só,
a representação do desfavorecimento a que são votadas, ali, todas as mulheres,
independentemente da sua orientação sexual. The Color Purple serve-nos assim, para
fazermos a apresentação das dificuldades com que se confrontaram as personagens

26
femininas negras no passado recente e os seus esforços para terem voz e serem ouvidas
num contexto social que persistentemente lhes era desfavorável.

Na terceira secção da quarta parte deste trabalho faremos, em simultâneo, a


representação da pobreza e da voz dos excluídos e marginalizados, bem como daremos
expressão à indignação e à revolta feminina negra em Quarto de Despejo, de Carolina
Maria de Jesus. Isso será feito mediante o estudo do diário desta autora, Carolina Maria
de Jesus, que é também personagem principal na sua própria obra. Este diário tem um
pendor crítico para com as acções do governo brasileiro nos idos de 1955 – 60 e
assume-se, assim, como um texto com engajamento sócio-político, visando a alteração
das degradantes condições de vida nas favelas de Canindé, em São Paulo. O
desemprego que gera a fome, a pobreza e outras formas de degradação social como a
prostituição infantil, o alcoolismo, o roubo e os conflitos entre os moradores da favela,
torna a favela num local de marginalizados da sociedade, ignorados pelos políticos que
só se lembram deles em época de eleições. Para sublinhar este aspecto de deserdados da
sociedade, a autora apresenta-nos um duro contraste entre a vida de bem-estar e
conforto na cidade e a continuada carência de quase tudo nos bairros de lata da periferia
da grande urbe paulista. O Brasil, por extensão, é também todo aqui retratado através
deste microcosmos em que alguns muito têm e muitos, pouco ou nada, além de que
quase ninguém se preocupa com isso, pois essa realidade não é tão visível, não surge
com frequência nas páginas dos textos mais lidos.

Na quarta e última secção desta quarta parte da nossa tese, trataremos a questão
da opressão e da autodeterminação feminina em Second Class Citizen, de Buchi
Emechita. O nosso objectivo aqui é examinarmos a situação da condição feminina na
Nigéria, procedendo a uma investigação sobre as suas três principais etnias - a saber, a
Igbo, a Yoruba e a Hausa. Aqui, vamos tentar percepcionar os diferentes modos de
vivência das mulheres destas etnias, as suas obrigações e os seus esquecidos direitos,
decorrendo esta situação do ascendente da estrutura tradicional patriarcal ainda vigente
naquele país, independentemente da região em causa, com ligeiras diferenças. Nesta
fase deste nosso trabalho, daremos relevo a diferenças de direitos que persistem entre
homens e mulheres em África, como na Europa, à política de género e suas
discriminações, à influência nefasta da educação ocidental, na acentuação que fez de um
papel de dominação do homem, à discriminação racial e condições dos africanos na

27
Europa, à diferença das práticas e costumes entre a África e a Europa, ao mito
prevalente da superioridade dos brancos, o que no seu conjunto leva à promoção de
atitudes que conduzem a um tratamento desigual de homens e mulheres, conforme fica
patente na obra Second Class Citizen.

A quinta parte desta nossa dissertação está dividida em três secções, a saber: Na
primeira secção fazemos a apresentação da vida e obras das escritoras africanas em
estudo - Mariama Ba e Paulina Chiziane, a fim de familiarizar o leitor com textos em
que autoras africanas denunciam tratamentos discriminatórios para com as mulheres, em
diferentes sociedades africanas, e pugnam com a arte da sua escrita por um maior
reconhecimento do valor das mulheres e, objectivamente, pela alteração do tratamento
de desfavorecimento de que elas têm sido vítimas.

Na segunda secção deste passo do texto, abordamos vivências matrimoniais


desfeitas por relacionamentos inquinados de infidelidades no masculino, que servem
para uma nova tomada de consciência e de da auto-definição no feminino em So Long a
Letter6, de Mariama Ba. O objectivo principal que aqui se desenvolve é a denúncia do
abuso de confiança por parte de uma personagem masculina, Modou, marido de
Ramatoulaye e a maneira como esta consegue a sua libertação emocional, através do
acto de escrita de uma longa carta. Com o intuito de abordarmos a questão da afirmação
da mulher, através do acto de escrita, chamamos aqui a atenção para a importância da
carta como modo de escrita acessível às mulheres alfabetizadas e uma via capaz de
ajudar, neste caso, a personagem principal a libertar-se do duplo jugo da opressão
masculina e da sociedade tradicional, denunciando-o. Através do procedimento de
algumas personagens deste romance evidenciaremos que, na sociedade africana, muitas
mulheres, sentindo-se incapazes de se oporem às formas de opressão que as limitam,
vêm a trair os seus anseios gerais mais legítimos e, resignadamente, desistem das suas

6
A obra original tem como título Une si longue lettre e foi publicada em 1979, tendo levado ao
reconhecimento da autora a nível mundial quando ganhou o prémio NOMA para o livro com maior
edição em África, no prazo imediato à sua publicação. Este romance, num curto espaço do tempo, passou
a estar disponível em dezasseis edições ou traduções diferentes, incluindo a versão em inglês , So Long a
Letter (1981), que rapidamente passou a ser objecto de estudo nos currículos das universidades africanas
anglófonas e, por esse facto, o título em inglês passou a ser o mais divulgado. Por esta razão também o
adoptamos aqui.

28
aspirações de auto-realização, na expectativa de um suposto proveito próprio, que seria
assim alcançado por submissão e não por reivindicação.

Seguidamente, agora analisando o testemunho do romance Niketche, de Paulina


Chiziane trataremos o modo como a tradição condiciona e enforma as relações de
género na sociedade moçambicana. O estudo deste romance sublinha o contributo de
mais este olhar feminino na busca da equiparação/igualdade de géneros em
Moçambique, mediante uma atitude de confronto e não de resignação, entre as mulheres
e a tradição africana, que a seu tempo, veio a ser influenciada por traços patriarcais de
índole colonial. Em Moçambique, a tradição, em certos contextos e regiões, valoriza a
mulher, mas usualmente concorre para a sua subjugação (na sociedade africana). É
neste contexto que Niketche pode e deve ser visto como sinal de uma nova tomada de
posição e indício ou testemunho de uma progressiva consciencialização das mulheres
contra as desigualdades de que têm sido vítimas. A análise e denúncia do
comportamento opressor que discrimina a mulher serão feitas mediante o estudo atento
da personagem Tony, exemplo e personificação de procedimentos condenáveis da
tradição patriarcal que Paulina Chiziane combate, investida na sua função de arauto da
luta recente e desejavelmente crescente das mulheres na sociedade moçambicana
contemporânea.

Finalmente na sexta parte deste trabalho, daremos realce ao papel das escritoras
negras na sociedade africana e africana na diáspora, enquanto porta-vozes de uma
consciência crescente das mulheres, dos direitos que as sociedades patriarcais têm vindo
a sonegar, escoradas na tradição que, um pouco por todo o mundo, secularmente as
favorece.

Enquadramento teórico:

Vamos apoiar-nos no lastro conceptual das teorias feministas afro e euro-


cêntricas, para darmos curso ao estudo sobre as “questões de género e da escrita
feminina na literatura africana contemporânea e da diáspora africana”. Este escopo
teórico será a base de partida para o exame que faremos das formas de opressão e abuso
que se exercem sobre as mulheres, denunciadas nas cinco obras literárias aqui em
estudo. A análise pontual destas teorias ajudará a mostrar a necessidade de se fazer o
estudo destas cinco escritoras, procurando provê-lo com estratégias de desenvolvimento
positivo que, por sua vez, encorajem e permitam a plena afirmação da mulher e abram

29
espaço à promoção da igualdade de géneros. Com este tipo de abordagem, esperamos
também que esta investigação ajude a motivar as mulheres a lutar por uma vida mais
realizada, sem o receio de inibições sociais ou de condenação ao ostracismo por parte da
dominação patriarcal. De acordo com Valerie Bryson:

Há um ponto de partida teórico muito claro que distingue o


feminismo de qualquer outra abordagem e isso dá-lhe um
enquadramento unificador, dentro do qual se
desenvolveram ideias divergentes. Mas, antes de mais, o
feminismo é essencialmente uma teoria sobre as mulheres,
feita por mulheres e para as mulheres; e portanto, ele
baseia-se na própria experiência das mulheres... Além
disso, o feminismo considera que a opressão das mulheres
tem sido a principal via para a sua opressão à escala
universal, pelo que o seu grande objectivo é o entendimento
desta situação, para lhe pôr fim. (Bryson 1992, p. 81).

Em conformidade com o pensamento de Valerie Brison aqui expresso, é


importante pugnarmos pela melhoria da condição da mulher, partindo de uma base
teórica concertada. E para isso é preciso entendermos, antes de mais, como se exerce a
dominação sobre as mulheres e estarmos todos de acordo quanto à necessidade urgente
de se pôr termo a essa forma universal de dominação. Neste sentido, este nosso estudo
pretende contribuir para esse fim, levando o leitor a um mais fácil entendimento das
mensagens que as cinco escritoras, de modo tão ardente, veiculam nos seus textos aqui
aduzidos. Essas mensagens são, inequivocamente, as seguintes, por esta ordem: as
mulheres em África têm sido explorada há já tempo demais e, admitidamente, têm
contribuído para a própria opressão de que são vítimas; a reabilitação das mulheres
africanas pode ser conseguida através de uma mais determinada e esclarecida tomada de
consciência de si mesmas e dos seus direitos; todo o ser humano e, neste caso particular,
as mulheres, têm de ser tratadas com equidade e justiça, na distribuição dos benefícios e
responsabilidades decorrentes de uma inserção plena na vida social e económica de que
façam parte. Assim, para se pôr fim ao chauvinismo e à opressão masculina sobre as
mulheres, entende-se ser agora necessária uma determinação feminista agressiva e um
método mais vigoroso de afirmação do eu feminino, em vez de um passivo e continuado
apoio aos ditames patriarcais. E esta atitude de afirmação positiva das mulheres é,
claramente, a opção que nos é proposta por estas cinco escritoras, através da acção e do
tipo de personagens por elas criadas nos seus romances.

30
Niara Sudarkasa (1996), por exemplo, tem sublinhado a importância do
contributo económico, social e político da mulher em África para a libertação e melhor
qualidade de vida dos povos africanos. Mas, apesar disso, as ideologias vigentes de
pendor patriarcal têm minado, de modo insidioso, a auto-estima da mulher, corroendo
continuamente o apreço e o lugar a elas devido em sociedade. De modo semelhante, à
sua maneira, a ficção literária de Mariama Ba, em particular o seu romance So Long A
Letter (1981), é um eloquente apelo dirigido a todas as mulheres, para que estas cessem
de se auto-destruírem. Bâ propõe que todas as mulheres passem a ser vistas como seres
produtivos (e não dependentes, o que de facto não são), seres que dão uma notável
contribuição para o desenvolvimento dos seus respectivos países.

Um dos méritos dos movimentos feministas ou movimentos de mulheres é o


facto de a sua acção conjunta ter vindo a preparar o caminho para o reconhecimento da
dignidade devida às mulheres. As actividades feministas e o estudo dessa acção têm
sido uma fonte de inspiração para as mulheres, uma via para uma nova tomada de
autoconfiança, além de as ter ajudado a lutar afincadamente pela libertação total e pela
ascensão político-social e económica. Nawal el Saadawi (1980), distinta escritora
feminista egípcia, considerando as consequências da exclusão das mulheres no plano do
desenvolvimento dos diversos países afirma que “já não é possível ignorar que a
menoridade de estatuto atribuído às mulheres, o seu atraso em relação ao homem,
conduz ao atraso intrínseco de uma sociedade, no seu todo” (Saadawi, 1980, p.1).

Vivemos num milénio de mudanças rápidas e radicais que, necessariamente,


virão a afectar positivamente a condição e o estatuto da mulher, no mundo. É um facto
conhecido que os homens escritores têm denegrido e marginalizado, de modo
deliberado e constante, a capacidade intelectual das mulheres. E esta é a razão porque
raramente encontramos personagens de mulheres fortes e determinadas em textos
literários escritos por homens, em África. Tradicionalmente, muitos homens escritores
retrataram, no passado, as mulheres como fracas, insignificantes e predispostas a aceitar
a vida tal como ela lhes é imposta, particularmente a sua condição de seres menores da
sociedade. Contudo, recentemente, alguns autores - escritores como Ngugi Wa
Thiong´o, Ayi Kwei Armah ou Luandino Vieira, entre outros - têm escrito sobre as suas
personagens femininas com grande compreensão e simpatia. Têm dado grande atenção
à denúncia da subjugação em que se encontram as mulheres nos seus labores e, nessa

31
medida, encorajam-nas a que se insurjam contra as condições sociais que tendem a
rebaixá-las. Obras como A Grain of Wheat de Nguigi , Two Thousand Seasons de
Armah e Anthills of The Savannah, de Achebe, A Vida Verdadeira de Domingos Xavier,
de Vieira Ualalapi, de Ba Ka Khosa, God’s Bits of Wood, de Sembene Ousmane
exprimem a sua solidariedade para com as mulheres e, implicitamente, advogam uma
mudança social7 que dê às mulheres a devida equidade relativamente aos homens. Os
autores que acabámos de mencionar também têm evidenciado um desejo de
emancipação das mulheres que é comparável àquele que é manifestado por parte das
mulheres escritoras que seleccionámos para o estudo que aqui estamos a desenvolver.

Mas, a par destes exemplos, o que é mais frequente é depararmo-nos com


romances e novelas de enredo falocêntrico, em que as mulheres são descritas como
espectadoras passivas, mulheres submissas, prostitutas ninfomaníacas ou mulheres
mesquinhas e conflituosas.

A queixa que por vezes se ouve, a este propósito, é a de que a maior parte dos
escritores são homens e, por via disso, o seu trabalho escrito tenderá a ser parcial.
Assim, numa tentativa de reequilíbrio de julgamentos, a maioria das escritoras
feministas também tem procurado retratar nos seus trabalhos a presença de personagens
femininas positivas. Buchi Emecheta, por exemplo, tem a reputação de criar
personagens femininas que recusam deixar-se ser ridicularizadas ou controladas pelos
seus maridos. Paulina Chiziane é uma das mais famosas escritoras moçambicanas e é
conhecida a preocupação que ela mantém com vista à libertação da mulher das
estruturas sociais que a têm marginalizado. Procura atingir esse objectivo de libertação
da mulher, colocando mulheres na situação de personagens centrais e veiculando,

7
Vemos que em A Grain of Wheat, a atitude estóica assumida pelas mulheres não deixará que elas
cedam, mesmo tendo em conta as duras condições de vida com que têm de se haver. Em Two Thousand
Seasons, estamos também em presença de personagens femininas que militam em defesa da sua condição
e direitos, mulheres fortes e resilientes por natureza. Além disso, são dotadas com a capacidade de
sensibilizar as outras mulheres para a causa comum e levá-las a enveredar também pelo caminho justo da
sua acção revolucionária. Em Anthills of The Savannah, Beatrice, a heroína de Achebe, é recorrentemente
referida como uma mulher muito forte e inteligente. Tem “beleza e cérebro”, uma combinação rara de
qualidades que os autores homens dificilmente atribuem às mulheres. Em a Vida Verdadeira de
Domingos Xavier, Maria, a mulher do militante preso, que é a personagem central deste romance, ousa
criticar e desafiar abertamente a autoridade colonial e os seus agentes por estes oprimirem inocentes
africanos. Em Ualalapi, Dormia, a filha de Mputa, também desafia abertamente a autoridade do rei que
matara o seu pai. Nunca abandona o rei, Ngungunhane, e luta até à morte a fim de defender a sua
dignidade. Por sua vez, em Gods Bits of Wood, as mulheres senegalesas mostraram bem a força e
determinação de que são capazes ao organizarem uma greve contra a organização colonial no seu país e
em protesto contra a marginalização que, em tal sociedade, sofrem.

32
através delas, uma nova tomada de consciência da mulher moçambicana. Esta estratégia
de escrita é bem evidente em Niketche, como veremos de seguida.

Contudo, este afrontamento do status quo nem sempre é tão deliberado ou


evidente. E isto faz com que, à superfície, nos pareça, por vezes, que as cinco escritoras
em causa não estão a desafiar com os seus textos as leis que, nos seus respectivos
países, oprimem as mulheres. Esta contestação, nem sempre frontal, também nos
permite observar que Celi, em The Colour Purple, ou Lu, Ju e Rami em Niketche são
personagens que ainda precisam muito da colaboração narrativa das personagens
masculinas. Apesar disto, é de salientar que, de facto, a maioria das personagens
femininas nos cinco romances em estudo são mulheres de forte personalidade,
assertivas nas suas pretensões e determinadas em redimir o valor da matrilinearidade,
não mais se prestando a serem apoiantes passivas do universo patriarcal.

Considero que o posicionamento feminista destas autoras é prova de que elas são
mulheres verdadeiramente libertas de constrangimentos devidos à condição de género e
isso tem um notório reflexo directo no que elas escrevem e no modo como o fazem. E,
hoje, uma mulher deliberadamente libertada de constrangimentos antes impostos pela
condição género, já não pode ser vista como um ser excêntrico, mas antes como
exemplo de uma nova ordem ou equidade entre homens e mulheres – uma nova e justa
afirmação cultural. As personagens que representam esta nova tomada de posição da
mulher são, em si mesmas, um novo tipo cultural, face à tradição. Este tipo de mulher,
em crescente afirmação e proliferação incorpora a assertividade como traço marcante do
seu carácter e personifica alguém que afirma a ambição e o desejo de sucesso mediante
uma carreira pessoal independente da alçada do homem. Adah e Faith são exemplo
ilustrativo desta nova postura da mulher, também em África.

Metodologia:
Este nosso trabalho representa, na sua estratégia e formalização, uma análise
qualitativa não-empírica, uma vez que se baseia em mundividências literariamente
recriadas e contextualizadas. Nos cinco romances que seleccionámos para estudo, a
grande ênfase centra-se na avaliação do carácter e da correspondente acção de
personagens de mulheres dominadoras ou de índole passiva. Neste sentido, todos estes
romances representarão a capacidade criativa das suas autoras para darem relevo ao

33
papel e às consequências de determinados comportamentos da mulher no tecido social.
O método que vamos utilizar para esta investigação parte da análise da temática de cada
um dos romances convocados para este estudo, bem como do modo como essa temática
é abordada pelas diferentes autoras. Em termos operativos esta nossa análise contrasta
os diferentes romances entre si, fazendo a avaliação dos seus respectivos enredos, da
temática subjacente e do encadeamento de episódios em que mulheres estão
predominantemente envolvidas, são condutoras das sequências de acontecimentos ou
são levadas pelo curso dos acontecimentos. Para chegarmos a um melhor entendimento
do modo como as diferentes autoras urdiram o seu ficcionamento discursivo, visando
uma reavaliação da condição da mulher, daremos uma atenção central à caracterização
das personagens femininas, às suas condições particulares de vida, e aos desafios que
elas enfrentam ou a que se submetem. O modelo teorético por que nos orientamos
convoca, necessariamente, a consulta revistas académicas, além de toda a atenção para
com a crítica especializada existente sobre a escrita no feminino, suas marcas eventuais,
a condição de género, suas dificuldades tradicionais, seus permanentes desafios e
questionamentos.

Sempre que nos pareça adequado, buscaremos apoio teórico nas teorias
feministas afro e euro-cêntricas, para um entendimento das causas e também das acções
a desenvolver para se pôr cobro às formas de opressão de que as mulheres ainda
padecem, em termos de discriminação social. Na indicação de apoios teóricos
pertinentes para este estudo, tomaremos também como referência o tipo de
metodologias propostas por Maxwell (1996), Charmaz (2000), Babbie 2001, Neumann
(2003) e Schutt (2001, 2006) e que se afiguram úteis para a análise de questões como as
que respeitam aos problemas que afectam as mulheres, vítimas de discriminação por
razões de género. Uma dessas metodologias e que foi adoptada nesta pesquisa tem
como base de trabalho o estudo das condições históricas e da história de vida dos
autores em estudo. Este método permite e recomenda que o investigador explore as
experiências de vida dos autores em estudo e que, mediante uma recensão crítica das
incidências daí decorrentes, ele fique apto a defender uma determinada tese, cujo
propósito será a busca de entendimento daquilo em que se estrutura o pensamento e as
perspectivas de vida de um determinado autor ou autora, após ter sido devidamente
considerado o tipo de comunidade em que essa pessoa se formou, o meio social onde a
sua vida desenvolveu. O conhecimento de tais experiências de vida pode ser usado para

34
análise crítica de certas referências contidas nos textos dos diversos autores, sobretudo
quando eles se filiam na militância, decorrente de uma resposta imperiosa a problemas
comuns. Deste modo, o estudo da obra destas cinco escritoras não seria tão profícuo se
tivesse sido feito de modo isolado. A literatura não ocorre no vácuo, como se sabe, e
como Ngugi wa Thiongo (1986), tem sublinhado, com pertinência ao presente contexto.
A literatura acolhe e desenvolve o ímpeto que lhe é dado pelas condições políticas e
sociais que se interligam e se plasmam na vida e obra de quem escreve sobre aquilo que
é o “seu” lugar.

Limitações:

Este é um estudo feito por um homem sobre a condição da mulher e seus anseios.
Lamentavelmente, o acervo de documentação a consultar não é ainda tão vasto como
seria desejável e justificado. A maioria dos investigadores (homens) desta problemática
dedicaram, a partir dos anos 1970 e mais nitidamente a partir de 1980, menos interesse e
esforço na pesquisa, estudo e sensibilização dos problemas ligados à desigualdade de
tratamento dado às mulheres, pertinazmente discriminadas por razões exclusivas de
género. Há, portanto, a necessidade urgente de se preencher esta lacuna e procurar
recentrar o empenhamento e o interesse dos académicos no estudo da condição de
desigualdade das mulheres, bem como na denúncia que elas próprias têm feito dessa
situação, mediante os trabalhos literários que têm produzido no espaço das literaturas
africanas8.

8
. A este propósito, devo dizer que Este trabalho tinha de início com objectivo a análise de seis
romances. Mas depois decidiu-se omitir a obra Merchants of Flesh, da autoria de Chinwuba Ifeoma, uma
escritora nigeriana, que através deste seu romance traz a lume vários temas como a pobreza e a opressão
das mulheres que são forçadamente usadas como traficantes de droga, e vítimas directas do tráfico
humano e da prostituição. Esta autora também dá relevo à luta das viúvas na situação de desfavor de uma
sociedade regida pelos valores da tradição patriarcal. São tudo questões muito importantes, e cujo
desenvolvimento merece um tratamento à parte, que proponho como motivo para trabalho próprio de pós
doutoramento, também porque o estudo desta autora exige uma pesquisa exaustiva, uma vez que são
escassos os estudos críticos sobre a sua produção literária. .Após esta explicação, devo dizer que optei por
fazer agora um estudo sobre Second Class Citizen, de Buchi Emechita, outra autora africana com
preocupações idênticas às de Chinwuba Ifeoma. Emechita é uma escritora que vive fora de África desde
1960, contudo, os temas que aborda na sua obra, como neste caso, referem-se à realidade nigeriana e
inglesa, simultaneamente. Tendo isto em consideração, pareceu-me que seria vantajoso preferir agora
uma autora que pode ser analisada segundo duas pespectivas – a de autora africana em África e, ao
mesmo tempo, a de autora africana na diáspora

35
Reconhecemos que pode ser apontado a este trabalho a limitação de não ter sido feita,
da nossa parte, uma entrevista directa às cinco autoras em estudo. Isso deve-se, antes de
mais, à escassez de recursos materiais para tal empreendimento, e que implicaria
deslocação e estadia nos diferentes países onde aquelas escritoras vivem, além de que,
duas delas Mariama Ba e Carolina Maria de Jesus já faleceram. Apesar disso, cumpre-
nos dizer que fizemos contactos indirectos com estas escritoras, através de entrevistas
pessoais que elas concederam a outros e também por meio dos ensaios críticos, jornais e
publicações académicas elaboradas por diferentes estudiosos e investigadores que se
interessaram pelas suas respectivas obras. Mas a ausência deste contacto directo e
pessoal com estas escritoras não pode ser vista como imposição de qualquer limitação à
avaliação crítica do seu trabalho. Em defesa desta nossa posição socorremo-nos da
afirmação de Udenta O Udenta (1993), onde fica patente que a avaliação de um autor é
um julgamento que decorre essencialmente do trabalho por ele publicado e não do que
esse autor comenta a propósito das intenções da sua própria obra:

O ponto de vista que um autor expressa em entrevistas e


comentários críticos nem sempre corresponde à intenção
alcançada pelo seu trabalho. Um escritor é essencialmente
avaliado pela força do seu empenhamento criativo e não
pelas intenções verbalizadas fora do acto criativo. Mas isto
não obscurece o facto de que um comentário firmemente
assumido por um escritor acerca do papel do artista na
sociedade, bem como das condições sociopolíticas e
ideológicas existentes e do processo criativo,
frequentemente dão-nos um melhor entendimento sobre as
tensões em jogo na obra ficcionada. ( Udenta 1993, p.134).

Mas como Udenta também aqui salienta, o testemunho proferido por um autor de mérito
reconhecido contribui positivamente para um melhor entendimento dos propósitos do
trabalho criativo realizado e que emana de um determinado contexto ideológico e social.

Contributo desta tese para o conhecimento:

Elaborámos esta tese não apenas como um contributo para quem estiver
interessado no estudo do género e dos diferentes modos de se conceptualizar o género
na literatura contemporânea africana e na diáspora, mas também como estímulo para o
debate sobre esta questão no mundo académico. O desenvolvimento das nossas ideais,

36
tal como as expressamos nesta tese, foi ocorrendo com o evoluir do tempo, em
consequência das nossas interacções e trocas de pontos de vista em conferências,
colóquios e investigações. Reconhecemos de antemão, esperadas dificuldades que terão
de ser vencidas para o devido enquadramento, a correcta abordagem e o suficiente
desenvolvimento das ideias enunciadas ao longo deste trabalho, mas esperamos que o
levantamento e tratamento de questões aqui feito venha a ser de boa utilidade para
estudiosos e críticos interessados na questão do género, como motivo de prazer para
todos quantos procuram “ler África” nos seus mais actuais questionamentos e anseios
de uma sociedade igualitária, com paridade plena entre homens e mulheres.

Esta tese é um projecto que pretende dar um contributo de pendor feminista no


âmbito da literatura comparada e literatura africana contemporânea e africana na
diáspora, apresentando ao mesmo tempo uma visão intercultural e intercontinental das
mulheres negras. Os estudos (literário e científico) levados a cabo nos últimos anos,
comprovam dentro de uma perspectiva intercultural e transnacional, que situação das
mulheres negras é muito diversidade em termos da sua nacionalidade, da sua afiliação
de classe, da geração a que pertence e da sua experiência histórica.

O entendimento que temos da morosidade que é inerente a uma alteração de


mentalidades longamente condicionadas por tradicionalismos atávicos leva-nos a
reconhecer a dificuldade de afirmação dos propósitos emancipatórios da escrita
feminina na literatura africana contemporânea e da diáspora africana. Mas também
estamos cientes de que só a sua maior divulgação levará a uma crescente visibilidade e
apoio dos legítimos anseios de maior equilíbrio nas relações de género. O trabalho de
pesquisa e divulgação que aqui elaboramos será mais um contributo de quem, sendo
parte do Outro, se junta à busca dessa ansiada paridade do Eu conjugada no feminino.

37
PRIMEIRA PARTE

POLÍTICA DE REPRESENTAÇÃO
PATRIARCAL E BUSCA DA VOZ
FEMININA NA LITERATURA
AFRICANA E AFRO-AMERICANA.

38
INTRODUÇÃO
POLÍTICA DE REPRESENTAÇÃO PATRIARCAL E BUSCA DA VOZ
FEMININA NA LITERATURA AFRICANA E AFRO-AMERICANA.

O título deste capítulo pretende analisar a política da representação da mulher e a


busca da voz feminina na literatura africana e africana na diáspora. Este objectivo será
concretizado, primeiramente, pela análise que faremos de vários maneiras conceitos de
escrita feminina, tendo em conta a formulação deste conceito, os temas que ele
pressupõe e que consubstanciam as preocupações da escrita feminina no que toca à
busca da liberdade e da autodefinição da mulher. Em segundo lugar, iremos analisar o
modo como as personagens femininas são projectadas/representadas nas obras literárias
escritas por homens, já que têm sido eles quem tem definido o que é normativo, por
contraste com uma assinalada/suposta passividade das mulheres escritoras, é decorrente
de constrangimentos sócioculturais (menor escolaridade, determinações religiosas,
superstições, além de um domínio patriarcal prevalecente) que impedem a sua maior
afirmação. Nesta parte do presente trabalho a nossa preocupação será a de enumerar os
factores sócioculturais e políticos que inibiram as mulheres de terem voz mais audível.
Num terceiro momento apresentaremos o surgimento da mulher como escritora e as
várias fases em que se tem vindo a afirmar a sua voz, através da escrita, sobretudo desde
1920 até à presente data. Todo o trabalho que tem sido feito por estas escritoras,
designadamente, criando personagens femininas fortes e assertivas levou a que a
invisibilidade da mulher tenha vinda a ser paulatinamente contrariada.

i. Escrita feminina ou no feminino

É um facto reconhecido que a literatura feminina foi ganhando notoriedade e


forma assumida, à medida que se foi desenvolvendo a luta feminista pelos direitos das
mulheres e se verificou a entrada destas no espaço público, deixando de estar
confinadas a uma esfera predominantemente doméstica e subalterna, em relação aos
homens. Quando a mulher assumiu que a escrita literária era também um espaço seu,
isso significou uma revolução no âmbito sociocultural e psicológico da mulher, antes de
mais, e até certo ponto também uma intromissão num espaço de expressão cultural que
anteriormente sempre fora dominado pelos homens. No entanto, a afirmação do
elemento feminino na escrita, não ocorreu abruptamente, mas sim de modo tenazmente

39
progressivo. Assim sendo, nesta parte do nosso trabalho, começaremos por referir as
concepções iniciais de “escrita feminina”, para verificarmos subsequentemente o modo
como esta se foi afirmando paulatinamente. Na busca de elucidação do modo como esta
luta de equiparação de géneros se foi travando, interessará referir, desde já, que o
próprio termo feminino está ab initio, por força da tradição patriarcal, associado a uma
certa conotação semântica que invariavelmente remente para algo delicado, romântico
ou sentimental, isto é, trivial, superficial. Mas a verdade é que, se ignorarmos este tipo
de mistificação que nos foi sendo inculcado ao longo dos tempos, “feminino” é um
termo apenas denotativo de que algo, livro ou acção, é de autoria feminina, escrito ou
feito por uma mulher e esta, de acordo com a sua personalidade, tanto pode ser mais ou
menos romântica, pragmática ou até ríspida, mas não necessariamente delicada ou
pueril e com interesses cingidos ao sua ambiente doméstico e familiar.
A mulher alfabetizada e escolarizada sempre escreveu sobre as suas vivências,
embora o testemunho desses exercícios de escrita tenha sido em grande parte
negligenciado pela sobranceria patriarcal ou porque, face às circunstâncias que tolhiam
as suas aspirações, tais textos eram mesmo destinados a uma leitura de âmbito mais
restrito, como no caso da tradição epistolar em que as mulheres estavam como que
acometidas à responsabilidade de irem dando notícias à família, de quem se teriam
afastado para irem viver junto com o seu marido, noutra terra, por exemplo.
Na cultura europeia, era frequente este tipo de labor por parte das mulheres que
haviam tido acesso à educação e dispunham de tempos de lazer. Tal ócio, que era
privilégio das famílias de classes mais abastadas, também lhes permitia a elaboração de
diários registando as suas vivências íntimas, triviais ou mundanas, tais como o registo
de festividades e eventos de maior interacção social. Em todos estes textos estamos em
presença de uma escrita das mulheres sobre si mesmas e as circunstâncias das suas
vidas, ou seja, estamos perante um testemunho escrito de cunho marcadamente
autobiográfico.
Mas o que é então esta escrita de autoria feminina? Será uma obra escrita
somente por mulheres ou por simpatizantes da causa das mulheres? Como é que
podemos avaliar a obra escrita por uma mulher que luta a favor da continuação da
subjugação das mulheres ou de um homem que quer pôr fim à opressão das mulheres
através das suas obras? O que é feminismo e o que é preciso para que alguém seja
considerado feminista? E o que vem a ser uma feminista negra? E, de um modo geral, o

40
que é que faz com que alguém seja participante da causa feminista? Estes reparos 1 serão
as linhas de orientação seguida ao longo desta investigação.
Mas sobre esta questão, há diversos posicionamentos e pronunciamentos que
importa referenciar e documentar. Rosalind Coward no seu ensaio “ Are Women’s
Novel Feminist Novels?” (1986) e Lúcia Castelo Branco na sua obra O que é escrita
feminina (1992) corroboram o nosso entendimento de que o ponto de vista feminino é
independente do facto de o autor de determinados textos ser homem ou mulher. No
entanto, segundo Branco (1992), Carole Spedding (1994, p.45), Sara Maitland (1979) e
Michèle Barrett (ano) pretendem que a escrita feminina sirva, exclusivamente, para
significar escrita produzida especificamente por mulheres e que, por isso, apresenta
características próprias, a nível temático e discursivo. Por sua vez, Luce Irigaray (1977;
1985) não admite a hipótese de uma escrita feminina que se apresente como mera
alternativa ao monopólio masculino. Para esta autora a escrita feminina tem de ser mais
do que isso. E por isso, defende que a escrita feminina é radicalmente uma construção
subversiva que evolui no lastro do discurso patriarcal para o minar e modificar
progressivamente, almejando patentear uma linguagem diferente no discurso vigente.
Outros autores como Hélène Cixous, (1976, p.253), Sandra Gilbert e Susan Gubar
(1988), e Rita Felski (1989, p.14) e Joyce Carol Dates afirmam liminarmente que “a
escrita não tem sexo2”. Este posicionamento implicaria que ao lermos um texto não
seriam identificadas peculiaridades de género na escrita do/a autor/a, em termos
temáticos, formais ou estilísticos.

1
Uma análise feita à literatura ocidental sobre o feminismo, nos anos mais recentes, ainda não nos revela
uma posição bem definida sobre este conjunto de questões. Artigos como os que estão incluídos em
Feminist Criticism: Essays on Theory, Poetry and Prose, editados por Cheryl L. Brown e Karen Olsen
(1978), Feminist Criticism: Women as Contemporary Critics, de Maggie Humm (1986) e até mesmo A
Feminist Dictionary, da autoria de Cheris Kramarae e Paula A. Treicher (1985), dão-nos definições q
conflituantes, pois elas apresentam alguns aspectos conciliáveis entre si, mas também outros que se
confrontam em termos de tom e agenda de propósitos. Esta conflitualidade de definições ainda se torna
mais nítida quando se pretende saber quem é que pode ser caracterizado como feminista negra.
Exemplificam bem esta indefinição os casos de Barbara Christian (1985) e Patricia Hill Collins (1990),
sobre as quais os estudiosos destes assuntos ainda se mantêm divididos quanto a saber se as devem
designar como feministas negras ou, simplesmente, como feministas.
2
Nesta fase inicial, é importante salientar que não se pode considerar que um escritor é um apologista do
sexo masculino ou que uma escritora é feminista só porque pertence ao género masculino o feminino. O
feminismo não reside no género do autor, mas no conteúdo e no contexto do princípio ou linha de
orientação literária. Assim, existem zelosos escritores feministas entre escritores homens e muitas
mulheres escritoras não têm qualquer pejo em apoiar a autoridade patriarcal. Os ensaios de Roland
Barthes ‘The Death of the author’ e de Michel Foucault ‘What is an author’ são uma importante
contribuição nesta matéria. Para mais informação sobre este tema, ver, David Lodge. ed., Modern
Criticism and Theory: A Reader, London, Longman, 1988 e Paul Rabinow.ed.,.The Foucault Reader.
New York: Pantheon Books, 1984, p111-126.

41
Por nossa parte tendemos a concordar com o grupo mais numerosos de teorizadores
para quem a escrita feminina é aquela em que uma mulher com a sua particular
mundividência constrói a sua própria história, independentemente de haver homens que,
pela sua sensibilidade e abertura de espírito, também conseguem captar um conjunto de
preocupações que incorporam o ponto de vista feminino. A escrita feminina não tem
características fixas inflexíveis, embora os traços que expressam o ponto de vista
feminino sejam detectáveis, designadamente a nível temático, pois há um conjunto de
questões em que os resquícios do patriarcalismo ainda persistem, mesmo que de forma
mais encapotada. Usando a escrita, as escritoras com preocupações feministas são
aquelas que, pelo que escrevem, chamam a atenção dos leitores para situações que
prejudicam ou enaltecem a vivência das mulheres, e às quais ainda não foi dado o
devido relevo e que, sendo de maior interesse para as mulheres, a todos interessam,
igualmente3. Neste sentido a escrita feminina não é imediatamente identificável pelas
suas notações líricas, poéticas, memorialistas ou epistolares, como acontecia
anteriormente quando se configurava como expressão unívoca de um género ou
subespécie. A escrita feminista pode hoje valer-se ainda destes géneros de escrita, mas
vale sobretudo por apontar para a presença inequívoca da mulher, no espaço de que
estivera sempre ausente para agora se afirmar como narradora da sua própria história, já
que outros a haviam omitido das suas histórias, ou apenas contavam as suas supostas
histórias, visto que, verdadeiramente, nunca as haviam vivenciado directamente.
Após estas considerações gerais sobre esta questão, é importante sublinhar que a
larga maioria dos investigadores e teóricos que se dedicam a esta problemática são,
naturalmente, mulheres. A elas, mais do que a ninguém, interessa a resolução de
problemas que continuam a ser mais delas do que de todos. Também por isto é de
mulheres a autoria da maior parte dos textos com marcas de feminino. Deste modo,
partiremos para uma discussão mais alargada deste assunto, com referenciação a autoras
feministas e suas obras, sabendo que alguns homens têm também uma escrita com

3
Noutro ensaio salientei, através da análise de duas obras de Ungulani Ba Ka Khosa, Ualalapi e Orgia
dos Loucos, a posição feminista assumida por este conceituado escritor moçambicano, mediante a
apresentação e defesa que ele faz da condição das mulheres moçambicanas, nos seus papéis de mães,
esposas, filhas, vítimas de violação sexual e da opressão patriarcal, sofrendo ainda as consequências da
fome durante os períodos de seca ou de recorrentes inundações em Moçambique. Este escritor manifesta,
de modo claro, que é possível a um homem realizar também os propósitos que são comuns a qualquer
escritora de orientação feminista. Para informação pormenorizada, veja Sunday Bamisile “Female bodies
in Ualalapi and Orgia dos Loucos, de Ungulani Ba Ka Khosa em Prophet, Trickster, and Provocateur:
Emerging Perspectives on Ungulani Ba Ka Khosa, edited by Niyi Afolabi, Trenton, Africa World Press,
2010: p.307-328.

42
marcas femininas, mas que a escrita feminina é uma narrativa essencialmente produzida
por mulheres, isto é, ela é, maioritariamente, uma literatura de autoria feminina.
Historicamente, a escrita feminina, ou feita por mulheres, teve um percurso inicial
colado aos moldes da produção de autoria masculina, mas progressivamente veio a
metamorfosear-se ou transmutar-se, em decorrência de uma experiência particular de
vida e com propósitos de subversão do discurso patriarcalmente instaurado. Na
actualidade, será defensável admitir que algumas escritoras feministas africanas, tais
como Ifeoma Chinwuba, Mariama Ba, Buchi Emecheta, Paulina Chiziane, entre outras,
sejam mais radicais do que as ocidentais, visto que também será necessária uma maior
militância em África, onde a dependência das mulheres face ao jugo patriarcal
tradicional é maior do que no Ocidente. Este é precisamente o posicionamento assumido
por Katherine Frank em “Women Without Men: The Feminist Novel in Africa” (Jones
1987:15), onde ela sublinha a vitalidade do romance feminista em África: o romance
feminista em África não está apenas vivo como também se recomenda e, em geral, é
mais radical e até mais militante do que o seu contraponto ocidental (Jones 1987:15).
Relativamente às transmutações/transformações ou metamorfoses por que
passaram a mulher e a escrita feminina, mais recentemente, Harry Blamires (1991) e
Elaine Showalter4 e Castelo Branco e Brandão (1989, p.7), defendem que existiram três
fases : i) a escrita feminina de 1840 a 1880; (ii) a escrita feminista de 1880 a 1920; iii)
escrita feminista assumida – de 1920 até à actualidade, mas com um impulso redobrado
a partir de 1960.
Na fase inicial da escrita feminina, a mulher, como já se referiu, imitava a escrita
masculina, pretendendo afirmar-se de forma semelhante à do homem. (Por via disso,) a
imitação foi levada ao ponto de mulheres que escreviam terem adoptado pseudónimos
masculinos, como foi o caso de George Eliot em Inglaterra e Georges Sand em França.
No caso de George Sand, essa imitação foi levada ao ponto de ter passado a usar
vestuário masculino, para que a sua aparência induzisse a que ela fosse tida como
alguém, em tudo, sem ligação ao universo feminino. A fase da dita escrita feminina é
contemporânea do movimento de luta das chamadas sufragistas pelo direito de voto que
4
Elaine Showalter (1986) analisa as escritas femininas e define a arte feminina desta maneira: “its own
unique character whether because it draws on female body images, uses a ‘woman’s language’ expresses
the female psyche or reflects women’s cultural position (14)” . A quarta característica de escritas
femininas enumerada por Showalter no texto citado – a utilização da ‘imagem do corpo feminino ’; ‘a
linguagem das mulheres ’, ‘exprimindo o espírito feminino’ mostra uma posição cultural das mulheres
que contém alguns traços importantes de auto-determinação e auto-afirmação. Ao utilizar estes
elementos, o jugo do silêncio é vencido, sendo o acto de falar e escrever é encorajado

43
ocorreu nesse período de tempo. A mulher assume então uma atitude de maior
confronto com os homens, lutado pelos seus direitos. A terceira fase, designada de
escrita feminista assumida desenvolveu-se a partir de 1920 até aos dias de hoje. É a fase
de maior afrontamento por parte da mulher ao reduto dos valores patriarcais. Este
momento já longo testemunha uma viva tomada de consciência da mulher pelos seus
direitos e teve um impulso crucial a partir dos anos de 1960, quando o edifício patriarcal
foi posto em causa por outras contestações, designadamente as que surgiram com os
movimentos de juventude no pós-guerra.
A confrontação progressiva que as mulheres desencadearam face ao domínio
tradicional dos homens motivou que estas tivessem de assumir responsabilidades novas,
pois passaram a desempenhar também tarefas profissionais que até então eram
exclusivamente executadas por homens. Muitos homens tinham morrido na guerra e na
sua ausência de casa e do país, elas, na retaguarda, tinham tido necessariamente de os
substituir em variadas actividades profissionais. Foram estas que lhes deram autonomia
económica e assim as possibilidades de realização pessoal em áreas como a cultura, a
literatura e outras artes.
Quando se verificou que tinha conseguido alargar a sua participação na
literatura, na decorrência das suas conquistas como membro activo da sociedade, a
mulher sentiu também a necessidade de formular uma estética dita de cunho feminista
que operasse o levantamento e análise daquilo que era específico do seu próprio fazer
literário. Segundo Cheri Register (1975), são as seguintes as principais funções da
literatura de autoria feminina: “ (i) serve as a fórum for women; (ii) help to achieve
cultural androgyny; iii) provide role-models; iv) promote sisterhood; e v) augment
consciouness-raising. Luiza Lobo (2006), por sua vez, entende que as principais
características da literatura de autoria feminina são o subjectivismo, o sentimentalismo
místico e o erotismo que encontramos em formas autobiográficas ou memorialistas.
Quanto aos temas, eles são em geral diferentes dos tratados por autores
masculinos. As autoras tendem a escrever sobre aspectos ligados à maternidade, ao
próprio corpo em várias fases da vida, a actividades domésticas e relacionadas com o
tempo da infância, à sua inserção na vida urbana, a eventos sociais, isto é, ao mundo
exterior, ao eu, com omissão frequente de situações de guerras e de negócios, de que
geralmente estavam arredadas por razões da organização social vigente. E como aqui já
se indicia, uma observação de cunho sociológico confirmará que estas preferências são
facilmente justificadas por razões históricas. As mulheres, como qualquer autor que

44
escreve para ser lido, escreviam sobre aquilo que melhor conheciam. Por esta razão
fazia todo o sentido que não se abalançassem a escrever textos de sagas épicas, já que o
teatro de guerra era um espaço que lhes era alheio. Já o profundo conhecimento da vida
no lar e do papel que a mulher ali tinha, permitiam-lhe maiores desenvolvimentos
visando a criação de uma escrita de cunho intimista (Blamires 1991, p.375).
A narrativa feminista seria, portanto, uma escrita que permitia divulgar aspectos
da vivência pessoal no espaço do lar, ali onde é mais forte a interacção dos afectos, dos
amores, das alegrias ocasionais e das dores de perdas definitivas que a sensibilidade e o
carinho das mulheres ajudam a aplacar.
Além dos aspectos temáticos, Castelo Branco e Brandão (1989, p.113), assinala
que o texto feminino emana de uma prática secular oralizante através da qual as
mulheres mais velhas, as avós, transmitiam conhecimentos através de histórias e
cantigas que passavam de geração em geração. Este traço de oralitude gerava no texto
feminino um ritmo, modo e tempo de contar que o afastariam da narrativa tradicional.
Este pendor oral implicava rupturas, pausas e descontinuidades que são próprias do
discurso oral. Isto levaria a que o ritmo da frase na narrativa feminina fosse mais
circular, por vezes repetitivo ou entrecortado, com a precipitação de uma frase menos
elaborada, para corresponder à pulsão do imediatismo que é a condição natural da
comunicação oral. Estas características que apontam para periodicidades e
descontinuidades são as mesmas que dão forma ao registo de escrita feito diariamente e
que se designa, geralmente, por texto autobiográfico. A falta de linearidade deste tipo de
registos faz com que o mesmo fio de pensamento possa ser aflorado em
descontinuidade, resultando daqui uma narrativa que o ponto de vista masculino ou
patriarcal e tradicional pode interpretar e apodar de escrita prolixa, implicando com isso
uma sugestão de menoridade. Na verdade, o que fica em confronto não é mais do que
diferentes ritmos de expressão e de escrita.
No entanto, a narrativa de autoria feminina ao gerar-se na vivência e na
expressão da óptica feminina vem a ser vista pelo convencionalismo da tradição de
pendor masculino como um texto diferenciado do normativo e, portanto, marginal. Mas
esta marginalidade não deve ser vista como secundarização. A escrita feminina, no seu
maior intimismo ou confessionalismo, com exposição circular ou repetitiva,
corresponde a uma forma de se definir como diferença que testemunha uma vivência
diferenciada, cuja abordagem de temas e utilização de formas é, ipso facto,

45
implicitamente distintiva. Assim, a mulher representa o mundo de forma diferente
porque também vive uma condição especial, distinta5.

Julia Kristeva (1974, p.37-38) acredita que definir ou escrever um texto


feminino é um acto dificil e complicado.
In “women” I see something that cannot be represented, something that is not
said, something above and beyond nomenclatures and ideologies. There are certain
“men” who are familiar with this phenomenon; it is what some modern texts never stop
signifying: testing the limits of language and sociality – the law and its transgression,
mastery and (sexual pleasure – without reserving one for males and the other for
females, on the condition that it is never mentioned.
Seguindo a mesma linha de pensamento, Bahia (2000, p.70) afirma que,
“Escrever como mulher” é lançar-se num horizonte para além do que o movimento
histórico lhe vinha permitindo”. Isto significa que a escrita feminina trouxe à luz a
vivência marginalizada das mulheres, enquanto “minorias” tendencialmente invisíveis e
afónicas, e que agora nos apresentam cenários de vida que apontam para um lugar
outro, um lugar que antes não era visto ou para onde não se olhava no espaço do texto
literário. O percurso para trazer a singularidade do texto de autoria feminina, da
marginalidade para o centro, virá a ser encetado, necessariamente, por uma pequena
elite de mulheres que dispõem de condições culturais e económicas que lhes permitem
desenvolver uma actividade intelectual, sem preocupação de subsistência. Entre o
número de autoras pioneiras, nesta luta pela instauração de um cânone que inclua a
narrativa feminina, citam-se habitualmente Virginia Woolf, Simone Beauvoir, Clarice
Lispector, Hilda Hislt, em Portugal, Ana de Castro Osório, Maria Lamas e Adelaide
Cabete, e em África, Bessi Head, Ama Ata Aidoo, Flora Nwapa Ifeoma Chinwuba,
Mariama Bâ ou Paulina Chiziane, entre outras.

5
Como veremos a seu tempo, as autoras que fazem parte deste estudo apresentam-nos um mundo
diferente daquele com que habitualmente contactamos. Elas trazem-nos a surpresa ou a novidade de um
ponto de vista que é, habitualmente, menos divulgado ou até omitido, por razões que têm a ver com
imposições vigentes na sociedade patriarcal, geradora de determinadas expectativas editoriais e /ou de
recepção por parte do público leitor. Em nenhum texto de autoria masculina ou até feminina ocidental,
seria possível encontrar o testemunho de uma condição de vida tão específica como a que nos é dada, por
exemplo por Carolina Maria de Jesus (mulher, negra, pobre, com vivência na favela, pouco escolarizada
mas com uma pulsão para a escrita e com a intuição e a esperança de que a escrita dê voz a silêncios
longamente sufocados, a vivências insistentemente marginalizadas.

46
O que é essencial e distintivo na narrativa com preocupações feministas é a
percepção e a intenção de uma escrita que se tece por um viés feminino em que a
mulher se torna sujeito da história que vai sendo narrada nas vicissitudes do dia-a-dia e
da comunidade de que ela é parte, mesmo estando geralmente confinada à, mas não
conformada com, a marginalidade social. Num sistema social persistentemente
falocêntrico como aquele que tem prevalecido em quase todo o mundo, a mulher tem
sido, por isso, sistematicamente afastada do centro, das organizações políticas, sociais e
culturais, onde se tomam as decisões que modelam a actividade social e suas normas de
comportamento. Assim, durante muito tempo, esperou-se que as mulheres fossem
“femininas” e isso implicava que mantivessem uma postura simpática, sorridente. Um
comportamento adequadamente feminino exigia solicitude permanente, discrição,
submissão, decoro e contenção ou mesmo apagamento, designadamente na esfera da
intervenção pública. Todas as autoras que pugnam pelo fim desta marginalização que
cerceava o espaço de intervenção da mulher terão de romper com os valores e
comportamentos que tradicionalmente dela só esperavam que viesse a ser boa esposa e
mãe. A mulher, desde criança, brincava com bonecas, entretinha-se com cantiguinhas de
roda, bordados e bolos, como parte de uma educação que procurava prepará-la para a
sua função de “fada do lar”.
As autoras que pugnam pelo fim da marginalização da mulher fazem-no
chamando a atenção da sociedade para a necessidade inalienável de esta ter acesso, em
partilha plena com o homem, a todos os espaços e áreas de decisão e vivência político -
cultural. E, para ultrapassar o confinamento a que a mulher estava tradicionalmente
votada, estas autoras têm consciência de que é preciso minar, por dentro, as estruturas
dos poderes estabelecidos. E assim, para esse fim, a escrita literária que elas forem
capazes de produzir será implicitamente uma forma de afirmação ou dignificação do seu
género de escrita e da sua autoria.
Mas, como a narrativa feita por mulheres tem preocupações específicas,
enquanto a paridade de direitos não for naturalmente reconhecida, a escrita de autoria
feminina terá de superar uma grande questão que o convencionalismo tradicional lhe
porá de imediato, a saber: a escrita para dignificação de um género é produto de
mulheres que escrevem ou é o produto de mulheres que escrevem como mulheres?
A distinção entre o que são estes dois modos de escrita é fundamental para se
avaliar o esforço de afirmação através da escrita literária feita pelas autoras africanas
subsaarianas, brasileiras e americanas negras, bem como quaisquer outras que

47
apresentem na sua escrita preocupações que são designadas como feministas. Essas
considerações remetem necessariamente para o debate cultural que se iniciou em França
nos anos 1970 e que entroncam na teorização do que é escrita feminina (ecriture
féminine) na concepção de Hèlene Cixous onde ela explorou as relações entre mulher,
feminilidade e feminismo relacionadas com a produção de texto. Nesta teorização,
Cixous parece posicionar-se contra a significação de ecriture féminine (termo que ela
própria cunhou), uma vez que este tipo de designação, à semelhança de “feminino” e
“masculino” promoveria um certo aprisionamento discursivo de lógica binária,
decorrente da visão clássica e estereotipada da oposição de sexos e isso implicaria a
ideia de uma escrita de homens e outra de mulheres, em permanente oposição. Para
superar essa tendência catalogadora tradicional, Cixous defende a possibilidade de
criação de uma escrita onde se esbatam pensamentos e teorias que, por isso, não possam
ser pertença de nenhuma categoria radicalmente diferenciada por razões de sexo.
Um outro aspecto importante do conceito de ecriture féminine constante da
teoria de Cixous (1976, p.245-50) é a alegação que ela faz da existência de um elo
essencial entre escrita de autoria feminina e a função da mãe da mulher que escreve,
como fonte e origem da voz que será ouvida em todos os textos femininos que virão a
ser produzidos. Cixous defende que a feminilidade na escrita é detectável no modo
particular como essa escrita ecoa no seu texto a voz vinda da mãe da autora que escreve.
Deste modo, a autoria feminina nunca deixaria de estar em contacto com a voz do seu
primeiro amor, aquela sonoridade que dominou e guiou o bebé na fase da sua total
dependência. (Ibid). O primeiro amor é sempre a voz e o corpo da mãe. Neste sentido, a
voz da mãe continuará a representar, por associação, o leite materno que a criança
deixou de poder mamar, a certa altura, e que assim seria, deste modo, um nutriente
primordial recuperado. Cixous (1986) acredita que a mulher que escreve é pujante, já
que a pujança feminina derivará directamente da mãe6, fonte de vida, cuja dádiva de
existência por ela concebida vem infundida de toda a sua própria fortaleza geradora.
A autora feminina podia ser assim comparada ao feto que, rodeado pelas águas
do ventre materno, tem liberdade para mudar de posição sem receio de perigos externos.

6
Refiro-me aqui implicitamente ao conceito de “Mãe-Africa” em que a mulher é o símbolo associado a
terra ou um lugar de refúgio permanente. A origem da expressão provem da designada poesia da
negritude, um movimento cujo poema que lhe dá origem é “Femme noire” , de Léopold Sédar Senghor.
A imagem da Mãe-África é tomada com o símbolo para a libertação do homem africano das mãos dos
colonizadores permitindo-lhe crescer abrigado por ela.

48
Uma escrita identificável com este tipo de movimentações geneticamente sem temor,
torna-se naturalmente um poderoso instrumento de luta, capaz ecoar7 às preocupações
das mulheres e as injustiças sociais de que elas são vítimas recorrentes. E assim, a
escrita de autoria feminina sente-se imune a riscos, localizada num espaço onde imagina
segura a sua intervenção, o que lhe permite lutar pela abolição de todas as diferenças
que lhe são negativamente discriminadoras.
Para podermos entender como é que certas idiossincrasias podem ser negociadas
e mudadas através da escrita, é importante considerarmos duas questões centrais que
subjazem anos textos literários africanos em geral e os textos devotados às mulheres,
em particular. Primeiro que tudo, é importante ter-se um entendimento claro do modo
como se processou o encontro das culturais tradicionais da África subsaariana com os
valores do ocidente europeu.
A história da cultura da África subsaariana evidencia uma transmissão fluida de
conceitos e valores próprios, por um lado, e por outro, a apropriação de modos de dizer,
pensar e agir trazidos e impostos pelos colonizadores europeus. De acordo com Bryce
(1992), a existência de uma literatura africana contemporânea escrita em línguas
europeias, é sinal bem evidente e resultado directo da educação, em moldes ocidentais,
introduzida em África pelos missionários e pelas autoridades da administração colonial.
Mas os colonos não trouxeram apenas uma outra língua de comunicação. Eles
trouxeram, nos textos que escreveram e divulgaram em África e sobre África, todo um
conjunto de valores patriarcais a que as sociedades africanas não foram imunes e a que,
de modo imposto ou deliberado, vieram a anuir e a adoptar. E assim como aconteceu no
Ocidente, também em África, o espaço de intervenção cultural dado às mulheres foi
inicialmente periférico, e só de modo esforçado e persistente é que a presença feminina,
em autoria, personagens e acção, começou a ser vista e valorizada em paridade com a
do homem.

7
Como se verá no desenvolvimento da nossa argumentação, a capacidade de ter voz, logo que as
circunstâncias o permitiram às mulheres, e veio a ser associada ao conceito de voice-throwing da
senegalesa Sani Baat, faculdade de que as mulheres, na verdade, nunca abdicaram e logo que puderam
não deixaram de exercer, assinalando as suas próprias perspectivas, dentro do discurso existente, através
da projecção da sua voz.

49
ii. Política da representação patriarcal da mulher

A questão da representação literária da mulher como “o outro” feita por críticos


literários e estudiosos tem vindo a ser discutida como um assunto de grande actualidade
e eminente importância em fóruns literários, há bastante tempo, gerando sempre acesas
polémicas.
Tendo isso em conta e partindo de algumas contribuições críticas como as de Abdul R.
JanMohamed (1983), Eustace Palmer (1979), Little Kenneth (1980), David Cook
(1977), Lloyd W. Brown (1981), Gerald Moore (1980), Gareth Griffiths, e Helen Tiffin
(1989), como também de posições veiculadas por revistas académicas, designadamente
a “African Literature Today”-, “Women Writers in Black Africa Today” e “Female
Novelist of Modern Africa”, entre outras -, iremos discutir nesta secção a politica da
representação patriarcal das mulheres escritoras e o modo como têm sido retratadas as
personagens femininas nas literaturas africanas e africanas na diáspora.
Sobre a questão da representação da mulher no texto literário, Ojo-ade (1983)
afirma que a literatura africana é essencialmente gerada e orientada para o homem,
sendo por isso uma arte chauvinista/ masculinista. Se listarmos as obras dos nossos
autores mais consagrados veremos que o seu conteúdo se inscreve nesta perspectiva que
coloca o homem no centro e a mulher na periferia. Os homens escritores são uma
maioria, relativamente às mulheres que escrevem. E as personagens representadas por
homens também são uma maioria, relativamente ao conjunto de personagens femininas.
Ojo-ade entende que as minorias deviam ser inscritas no texto literário, não tendo em
conta a sua quantidade mas com a preocupação de se resgatar, com a devida ênfase
literária, a parte que tem sido dominada, excluída, explorada e que por isso está numa
situação de desvantagem que deve ser combatida. (Ojo-ade 1983, p.158-9)

Apesar de não serem numerosos, deve assinalar-se a existência de alguns


trabalhos importantes dedicados ao estudo de escritoras africanas e à representação das
mulheres, no âmbito das literaturas africanas e africanas em diáspora. Alguns desses
estudos têm sido feitos por expatriados, facto que parece justificar a afirmação de G.D.
Killam , de que “os expatriados têm dado e continuarão a dar contributos úteis para a
interpretação e entendimento das escritas africanas” (1984, p296). Um desses trabalhos
é o que tem por título The Sociology of Urban Women’s Image in African Literature.
Contudo, o trabalho deste autor enferma de um pecadilho/ problema, na medida em que
ele define as mulheres, quase exclusivamente, com referência ao tipo de relacionamento

50
que elas têm com os homens: namoradas, raparigas de programa, ii) esposas, iii)
mulheres livres, iv) mães, v) cortesãs ou prostitutas e finalmente, vi) mulheres com
careira política e operárias. ( Kenneth 1980, p.26.)
A análise que Lloyd W. Brown (1981) faz dos textos seleccionados em Women
Writers in Black Africa é de grande perspicácia e discernimento. Contudo, este seu
trabalho enferma de algumas limitações, entre as quais se conta o facto de o seu autor
centrar os seus estudos, quase exclusivamente, em escritores de língua inglesa e os
autores por ele selecionados terem, entretanto, publicado outras obras literárias
importantes, cuja análise fica omissa. Por exemplo, Aidoo publicou dois romances: Our
Sister Killjoy e Changes: A Love Story. Além disso, publicou depois o ensaio, “The
Woman’s Voice in African Literature”, que não será considerado neste estudo. O
próprio Brown pode ser visto como uma vítima da sua própria abordagem crítica, isto é,
da assinalada tendência dos homens para definirem as mulheres com relação a eles
mesmos. Por exemplo, no estudo que ele fez ao romance Kalasanda, da escritora
ugandesa Barbara Kimenye, Lloyd W. Brown (1981) afirma que: “as mulheres
desempenham uma grande variedade de papéis na vida do povoado que é Kalasanda.
Surgem-nos ali mulheres proeminentes, esposas de líderes comunitários. Mas também
aqui, as mulheres são definidas em relação aos homens com quem são casadas e não
parece que tenham alguma identidade própria”. (Brown 1981, p.66)

Para devida referenciação, o estudo mais abrangente, primeiramente feito por


um crítico (homem) sobre escritoras africanas, representativas do labor literário destas
mulheres tem por título Female Novelists of Modern Africa e é da autoria de Oladele
Taiwo. Taiwo (1984) não só dá grande atenção à sua colega nigeriana, Buchi Emecheta,
como também inclui neste seu trabalho de análise crítica uma amostragem mais
alargada de autores, do que a que foi apresentada por Lloyd W. Brown. Mas a análise
crítica de Taiwo também não está de acordo quanto aos méritos literários do trabalho
desenvolvido por Aidoo, mulher independente e escritora africana. Num tom de censura
Taiwo diz-nos o seguinte, a propósito de Our Sister Killjoy, de Aido:
It may be the intention of the author to prove that women
can do without men in their private relationship ... Ms.
Aidoo is quite entitled to put women at helm of affairs in
her novel. But it is an error to think that they can live a full
life without men. If such a situation is tenable in Europe,
it has no chance of succeeding in Africa (Taiwo 1984,
p.26).

51
O desencanto manifestado por Taiwo, relativamente ao trabalho de Aidoo,
baseia-se no seu entendimento de que o feminismo é importado da Europa, pelo que não
tem lugar no âmbito da sociedade africana. O que o melindra é a independência
resultante da ascensão das mulheres a situações de poder. E na sua crítica a Aidoo,
Taiwo insinua que nunca houve mulheres líderes em África, apesar de isso não ser
verdade. A título de exemplo, citemos apenas três notáveis mulheres africanas, que
foram lideres dos seus povos e combateram heroicamente a presença colonial de
ingleses, franceses e portugueses, designadamente, Yaa Asantewa8 no Gana,
Sarraounia9no Níger e Nzinga10 em Angola.
A obra, Ngambika: Studies of Women in African Literature, editada por Carole
Boyce Davies e Anne Adams Graves, é a primeira contribuição crítica realmente
importante sobre a participação das mulheres nos estudos literários africanos. Esta
antologia composta de dezoito ensaios tem uma orientação editorial e ideológica que
não é apenas dirigida aos trabalhos de mulheres escritoras e estudiosas da produção
literária, mas inclui também uma nova leitura da produção literária, escrita por homens.
Na sua introdução, Davies (1986) concorda com o posicionamento defendido por Sheila
Rowbotham em Women’s Consciousness, Man’s World, segundo a qual “ um
movimento feminista que esteja confinado à análise específica da opressão da mulher
não poderá, isoladamente, pôr fim à exploração e ao imperialismo. (Davies 1986, p.123-
124). Argumentando que um feminismo africano deveria observar a correlação entre
raça, classe e género, Davies sugere que o feminismo africano reconheça e acolha a luta
comum dos homens africanos, para a remoção do jugo imposto pela exploração euro-

8
A rainha-mãe Yaa Asantewaa do Ashante (1840 – 17 de Outubro de 1921), ficou na história do Gana
como uma mulher corajosa que arriscou a sua vida, liderando uma guerra (conhecida como War of
Golden Stool) contra as forças coloniais britânicas. Ela procurava evitar que a cadeira doirada, o símbolo
do seu povo, caísse nas mãos dos ingleses. Dessa maneira, ela impedira também a sua submissão do seu
povo. Contudo, a desproporção de forças e de meios não foi suficiente para se opor aos invasores
britânicos. Ela era irmã do Rei Nana Akwasi Afrane Okpese, que ao ser derrotado, veio a ser deposto e
exilado pelos ingleses, já que se recusou a colaborar com a administração ocupante. Como o seu irmão,
ela também foi forçadamente exiliada para as ilhas Seychelles, onde acabou por falecer em 1921.

9
Sarraounia era a rainha do povo Logou, da etina Hausa, no leste do Níger, por altura do último quartel
do século XIX. Tornou-se uma verdadeira heroína pelo modo destemido como combateu e derrotou as
tropas colonias francesas, impedindo assim a subjugação deste reino africano, numa época em que a
desproporção de meios era claramente superior por parte das forças ocupantes.
10
A rainha Nzinga ou Ginga (1624-1663) foi a indomável e astuciosa soberana da Matamba e Ngola, da
região a norte do Rio Quanza, onde ainda hoje é aí predominante o grupo ético Umbundo, da Angola
actual. Foi ela quem opôs feroz resistência à ocupação colonial portuguesa e ao tráfico de escravos no seu
reino, por cerca de quarenta anos, quando, em meados do século XVII os portugueses procuravam fixar-
se mais no interior daquele território.

52
americana. A posição defendida por Davies é a de que o feminismo africano reconheça
as suas afinidades com o feminismo internacional e que, a par disso, se proponha atingir
objectivos particulares resultantes das realidades concretas da vida das mulheres em
África. Resumidamente, esta é uma proposta com objectivos híbridos, pois procura
conciliar preocupações africanas com anseios feministas mais gerais, designadamente o
duplo compromisso visando a emancipação das mulheres e a libertação de África. Esta
definição concorda com o posicionamento assumido por Alice Walker, mas também
com a crítica nigeriana Chikwenya Okonjo Ogunyem na sua definição de Womainism11
.
Ngambika, estudo importante sobre as mulheres na literatura africana tem
recebido, no entanto, críticas contundentes como a que nos vem da parte de K. Harrow.
Ele afirma que este trabalho enferma da debilidade resultante da rejeição da teorização
ocidental, dos receios de que a aceitação dessas posições essenciais enfraqueceriam as
pretensões das mulheres com vista à obtenção de uma maior equidade ou autoridade na
sociedade africana e ainda do receio de que as preocupações feministas ocidentais sobre
o género pudessem obstruir pretensões concorrentes ligadas a raça, classe ou opressão
política (174).
A principal crítica feita por Kenneth Harrow (1998) a Ngambika é a de que este
trabalho propõe uma acção que se cinge a uma estrita representação Harrow (1998,
p.173). Como que em resposta a esta crítica Mineke Schipper (1985, 1987) faz o
seguinte comentário: “na verdade, as reacções masculinas aos esforços de libertação das
mulheres na sociedade africana são alarmantes, especialmente quando o futuro da
sociedade, como um todo, parece em risco ou até sem esperança. Na literatura africana a
mulher ainda quase não tem voz. A imagem que nos é dada da mulher na ficção literária
ainda é, em grande parte, construída por escritores homens e é, frequentemente, uma
imagem estereotipada, o é de lamentar. Ngambika, quando foi elaborada, procurou
responder à imagem negativa das mulheres, no âmbito de uma literatura dominada pelos
homens. (Harrow 1998, p.182)

11
No seu posicionamento sobre este conceito de womanism, Ogunyemi em “Womanism: The Dynamics
of the Contemporary Black Novel in English” define o conceito de Womanism do seguinte modo: O
Womanism negro é uma filosofia que celebra as raizes negras, os ideias de vida dos negros, ao mesmo
tempo que busca apresenta-nos uma forma equilibrada do modo de ser mulher negra. O Womanism está
tão preocupado com a disputa e como se exerce a dominação sexual nas comunidades negras como com a
estrutura dos poderes à escala universal que subjugam os negros. O ideal do Womanism é uma verdadeira
unidade entre os negros numa relação semelhante à que se estabelece entre irmão e irmã, pai ou mãe.
(Ogunyemi 1985, p.72)

53
Um outro trabalho sobre a acção literária das mulheres africanas é o estudo feito
por Janet Zollinger e Audrey Chapman Smocke, intitulado Women: Roles and Status in
Eight Countries. Aqui, os países estudados incluem o Gana e o Egipto, em África. Em
termos de propostas ligadas à libertação das mulheres, há a salientar o seguinte conjunto
de teorizações, as nossas opções de vida incluem sermos nós a decidir se e com quem
nos vamos casar; decidirmos pôr fim a uma união com outrem; termos controle sobre a
nossa liberdade sexual, antes e fora do casamento; sermos donas da nossa liberdade de
movimentos; termos acesso à educação; desfrutarmos da efectiva partilha do governo de
uma casa; termos acesso à política e à expressão cultural. Muitas destas opções de vida
são utopias, não só para a mulher africana, mas também para o homem africano.
Contudo, a situação da mulher africana é inquestionavelmente pior que a do homem. A
mulher africana, de acordo com a representação que dela é feita em muitos textos
produzidos por homens, nem sequer devia sonhar em vir a ter acesso à maioria destas
opções.
Assim, algumas das representações recorrentes das mulheres, tal como
usualmente apresentadas em textos literários produzidos por homens, incluem: mulheres
como dependentes, deusas, esposas, donas de casa ou prostitutas. Contudo, tal como
Kathleen Mcluskie e Lynn Inness (1988) observam no seu pertinente ensaio “Women
and Literature”, seja como esposas, seja como donas de casa ou prostitutas, as mulheres
africanas só raramente nos são apresentadas no texto literário ( além da sua relação com
os homens) como tendo uma vida independente da deles p.4). Por isso, raramente
temos um vislumbre de mulheres em acção independente, apesar de as mulheres, na
maioria das regiões de África terem sido, no passado, donas das suas terras, das suas
colheitas, dos seus lugares de venda de produtos. No Gana, por exemplo, grupos de
mulheres, tais como as vendedoras dos mercados, tinham as suas próprias organizações
e elegiam as suas representantes, as quais detinham um considerável poder económico e
político. Apesar da preocupação existente para com a reavaliação do passado histórico e
da confrontação que elas corporizaram face ao poder colonial, em nenhum texto da
literatura nigeriana encontramos referência à sublevação das mulheres no ano de 1929 e
que aterrorizou a administração colonial britânica, levando-a a deixar de nomear
capatazes colaboracionistas e a suspender a taxação de impostos sobre as mulheres. No
Quénia, tal como Muthoni Likimani regista em Passbook Number F. 47 927: Women
and Mau Mau in Kenya, as mulheres enfrentaram muitas dificuldades para proverem ao
sustento das suas famílias ou na ajuda que davam às suas comunidades empenhadas nas

54
lutas políticas pela independência. Hoje, as mulheres em África são professoras,
enfermeiras, advogadas, Ministras do Estado, embaixadoras, pescadoras e agricultoras.
E desde que Ngambika foi publicado, as mulheres já elaboraram um bom punhado de
estudos críticos sobre o trabalho desenvolvido pelas mulheres escritoras. Entre esses
trabalhos de crítica literária salientam-se os seguintes: Recreating Ourselves: African
Women & Critical Transformation, de Ogundipe Leslie, Gender in African Women’s
Writing de Nfah-Abbenyi e Africa Wo/Man Palava, de Ogunyemi.

iii. Presença da mulher africana na literatura

A participação das mulheres africanas na literatura africana e na diáspora e a sua


produção literária vêm de longa data. Desde o surgimento de obras distinguidas pela
crítica, de escritoras africanas de renome como, The Dilemma of a Ghost (1964), de
Ama Ata Aidoo, My Father’s Daughter (1965), de Mabel Segun, e Efuru (1966), de
Flora Nwapa, e When Rain Clouds Gather (1968), de Bessie Head, Caís do Sodré té
Salamansa (1974), de Orlanda Amarilis, Dumba Nengue (1987), de Lina Magaia, entre
as outras, regista-se o aparecimento de grande número de escritoras africanas da África
anglófona e francófona, sendo menor o número de autoras da África lusófona, onde a
massificação da escolaridade também foi mais tardia e o processo de descolonização
também foi posterior. Quanto à produção anglófona, devemos registar três fases com
datação histórica sequencial.
Na primeira fase, contam-se as primeiras gerações de escritoras que incluem
nomes como Flora Nwapa, Mabel Segun, (Nigéria) Ata Aidoo, Efua Theodora
Sutherland (Gana) Grace Ogot, Hazel Ogot, Charity Waciuma (Kenya); Bessie Head,
Nadine Gordimer (África do Sul), cujas obras foram publicadas antes da independência
dos seus respectivos países.
A segunda etapa histórica é constituída por escritoras africanas que escreveram
as suas obras no período pós-independência, até um período de crise política que
desencadeou a guerra civil em todos esses países e de que resultou na morte de milhares
de africanos . Cingindo-me apenas à Nigéria, o meu país natal, refiro neste contexto os
testemunhos de Buchi Emecheta, Zaynab Alkali, Zulo Sofola, Tess Onwueme, entre
outras.
A terceira geração é constituída pelas escritoras que surgiram após essas guerras
civis, e que continuam a escrever, até a data. Entre outras razões, elas utilizam as suas

55
obras para darem relevo à questão feminina e aos problemas das mulheres, seja na vida
privada, seja na vida pública para que os seus leitores possam ter uma informação de
primeira-mão sobre as realidades femininas que até agora têm sido descritas
predominantemente por escritores masculinos. Mariama B, Aminata Sow Fall
(Senegal), Micere Githae Mugo, Joyce Ochieng, Asenath Odaga (Kenya) Penina
Muhande (Tanzânia), Jane Bakaluba, Sindiwe Magona e Lauretta Ngcobo (Africa do
Sul), Paulina Chiziane, Noémia de Sousa, Lina Magaia, Lília Momplé (Moçambique)
entre outras, são algumas das escritoras que se encontram no continente africano. É
importante notar que algumas escritoras africanas conceituadas como Mabel Segun,
Ama Ata Aidoo, Flora Nwapa, entre outras, atravessaram duas dessas três fases
históricas, visto que as suas obras saíram durante a primeira e a segunda fase histórica
da produção literária literária.
Através das suas obras, que se inserem em diferentes tipos de escrita - ficção
narrativa, autobiografia, poesia e peças de teatro, as escritoras em todas essas fases
demonstraram a necessidade de dar resposta a um conjunto de leitores muito concretos
nas suas sociedades. Mais ainda, é provável que essas escritoras tenham começado a
escrever para que as suas obras literárias pudessem coexistir lado a lado com as dos
escritores africanos. Além disso, havia um grande desejo de satisfazer a aspiração de um
público mais vasto, dentro e fora do continente africano, para que se publicassem obras
com que este pudesse identificar-se mais facilmente.
No entanto, no domínio da ficção, a escassez de escritoras africanas em
comparação com o número de escritores africanos romancistas é notória. Não obstante,
estas poucas mulheres romancistas tentaram, nos últimos tempos, alcançar a
importância, a celebridade e a proeminência que as suas personagens não apresentavam
no passado em romances e no drama. As suas obras põem em causa as representações
negativas das personagens femininas por parte de escritores e escritoras.
A necessidade de uma produção feminina decorre da necessidade de se
contrariar as ideias patriarcais de alguns escritores. O resultado, muitas vezes, é uma
produção que tende a identificar-se com algumas correntes como o feminismo em geral,
de inspiração ocidental, ou com formulações novas12 como o womanismo, o
motherismo, o stiwanismo entre outros, e que se torna predominantemente contestária e
assertiva, relativamente aos papéis das mulheres na sociedade. Estas obras literárias

12
Estes conceitos ou formulações de afro-feminismo estão explicitados na parte teórica deste trabalho.

56
procuram lutar pela igualdade das mulheres para com os homens e, acima de tudo,
lutam contra todos os pontos de vista patriarcais na literatura e na sociedade que
relegam os interesses femininos para posição ou situação inferior.
Por este motivo, e como foi demonstrado através da sua produção, as escritoras
reconhecem a necessidade de libertação das mulheres do jugo da marginalização sócio-
económica e política. Através do seu ofício, empenham-se esforçadamente em desafiar
as normas e as tradições que oprimem as mulheres, quer nos textos que as representam
quer nos contextos em que aqueles emergem, para que haja uma mudança no ambiente
social em essas mulheres marginalizadas se encontram localizadas. Em alguns desses
locais, as escritoras perceberam que a sua feminilidade pode condicionar, de certa
maneira, a mulher. Desta forma, as romancistas, por sua parte, dão-se a
responsabilidade de efectuar algumas transformações bem como usar os seus romances
como um veículo para despertar a consciência das mulheres. Em rigor, o principal
objectivo desta forma de produção é o de corrigir as imagens negativas das mulheres na
literatura. Foi isso que levou Rolf Solberg (1983, p.248-9) a justificar a necessidade da
criação literária feminina. Solberg acredita que uma das maneiras de corrigir a imagem
negativa da mulher africana seria através das produções das obras literárias pelas
mulheres africanas como forma de projectar as suas vidas privadas e públicas, bem
como os seus problemas.
Além de correctiva, a criação feminina procuraria, segundo Driver Dororthy
(1982, p.203-211), incutir nas mentes dos leitores, uma consciência feminina genuína,
ou seja, criada por mulheres. Driver postula que a literatura escrita por mulheres deve
constituir um meio de libertação da mulher a vários níveis

Literature as means of giving autonomous value to


women’s experience by helping woman perceive the
political, economic and social oppression to which
women were subjugated as well as to bring about new
standards against which women would be measured
and of dispensing with the old standards.(Driver: 1982,
p.203).

Driver considera que a criação literária feminina é aquela que mais se adequa ao
pensamento e sentimento femininos que são totalmente diferentes dos homens,
transmitindo, assim, de forma mais eficaz as suas visões e ideias ao público leitor. Por
consequência, o papel de uma mulher como escritora é importante e o acto de escrever é

57
uma forma de fortalecimento desse papel, uma vez que, por via disso, a mulher que
escreve pode confrontar as forças do universo beligerante masculino que tentam, de
uma maneira ou de outra, silenciar a sua voz. Através das suas obras literárias, as
escritoras criam personagens, principalmente personagens femininas, papéis e
acontecimentos, que as ajudam a afirmar a sua existência no tempo e na história.
No caso da Nigéria e de vários países africanos, onde a produção de obras
literárias foi dominada por escritores (homens) devido à escassez de escritoras, parece
haver poucas autoras que tentam enfatizar o pensamento no feminino na sua escrita,
defenderem a dignidade da mulher, a feminilidade, e afirmarem a beleza feminina. Esta
ideia de afirmação no feminino decorre do surgimento da liberdade para as mulheres
que, crescentemente, conseguiram resolver a quase inexistência da sua participação nas
esferas de acção e decisão e, dessa forma, corrigiram a influência negativa que tal
situação tem sobre elas. Isso acontece porque essas obras afirmam, sem
constrangimentos, os problemas, os anseios e experiências mais íntimas das mulheres.

iv. Representação literária feminina e a sua acção formadora

Como afirmámos anteriormente, a produção literária feminina representa as


mulheres através de imagens diversas e situações diferentes que as podem influenciar de
modo positivo ou negativo. Dada a força das tradições patriarcais, o papel da mulher
como leitora ou crítica não é muito activo, e esta passividade relativa deve-se ao facto
de, de uma maneira ou doutra, ela não controlar a produção literária que, muitas vezes,
afecta a sua sobrevivência e a sua maneira de ser.
Assim, para a grande maioria das escritoras, a apresentação de imagens
positivas é um aspecto decisivo, o que, segundo Omolara Ogundipe-Lislie (1987)
implica fornecer uma informação mais adequada aos leitores do papel da mulher na
sociedade.
Este compromisso entre escritor(a) e leitor(a) é socialmente construído, e é
fundamental, visto que cada escritora tem, na respectiva sociedade em que se integra, os
leitores alvo a quem procura dirigir-se. Espera-se que as leitoras de qualquer texto
criado por escritoras respondam às questões levantadas no texto - quer estas afectem
principalmente as mulheres quer não. Embora a leitora possa ser passiva, é muito
importante e imprescindível que ela esteja ao corrente e se sinta identificada com a
percepção geral da luta das mulheres.

58
Douglas Atkins (1989) identifica em termos hermenêuticos o que é uma leitora e
interroga-se se sobre a autoridade e a competência da leitora e se o prazer que esta
obtém quando ler deriva de uma leitura em que estejam implícitas razões de género e
sexo (Atkins 1989, p.81-116). Sobre esta questão, a nossa resposta é a de que uma
leitora feminina é uma alternativa ou contra-leitora à decifração masculina das
actividades das mulheres. Nesta perspectiva, Raman Selden (1989) sublinha as
vantagens de uma leitura a partir de uma perspectiva feminina:
If we think positively in terms of reading as women, we
immediately see that for a long time reading has assumed
a male perspective and that there is a real difference of
view when the experiences and values of women become
central in the act of reading. (Selden 1989, p.142).

Para qualquer universo de leitores, um texto é escrito e criado para ser lido e
analisado em todos os seus significados, menos ou menos explícitos ou possivelmente
intuídos. Contudo, é distinta a diferença de perspectiva de um acto de leitura feito por
homens ou por mulheres.

Na avaliação dos papéis dos leitores ou leitoras, Raman Selden (1988) perfilha a
ideia de que “um texto não tem uma significação auto-formulada” (Selden 1988, p.108).
É ao leitor que compete agir sobre o material textual, para que este produza significado.
É o acto de leitura que ao realizar-se compreende e avalia a obra literária, dando-lhe um
sentido. (Selden 1988, p.108). O significado de qualquer texto é assim algo que está
ocultado, até que uma leitura o desvende.
É a realização desta ligação entre leitor e texto que leva Robert Scholes (1979) a
formular a seguinte observação sobre o que considera uma união simbiótica, “um
verdadeiro casamento de pensamento” ente texto e leitor/a:

The reader…studies to mate with the writer’s view, to


point fully to terms with the sensibility and intelligence
that have informed this particular work…When the
writer and reader make a ‘marriage of true mind’ that
the act…is perfect and complete. Scholes 1979, p.27).

Neste sentido, o prazer derivado pelas leitoras na leitura de textos com


preocupações sobre a condição da mulher decorre de um certo grau de empatia. No
entanto, nessa leitura, nenhuma leitora está obrigada a aceitar a intenção explicita ou
diversamente preceptivel da escritora. O significado textual é alargado pelas leituras que

59
são feitas, o que dá ao texto literário uma natureza elástica, com significação
diferenciada de um suposto ponto de vista da escritora.
Embora a leitura de uma perspectiva feminina não seja uniforme, pode surgir
uma convergência entre o acto da narração e o da leitura (Showalter, 1986:3).A leitora
poderá ver nalgumas personagens femininas uma representação da sua experiência,
podendo, assim, compartilhar os seus sentimentos com elas, sobretudo quando se trata
de temas ligados à sua auto-realização. Contudo, Cheri Register (1975) adverte contra
uma apresentação excessivamente idealizada da figura feminina:

Although female readers need literary models to


emulate, characters should not be idealized beyond
plausibility. The demand for authenticity supersedes all
other requirements (Register 1975, p.21).

Uma leitora informada e esclarecida será capaz de reagir criticamente a


personagens femininas retratadas de modo negativo.
Mas leitoras menos esclarecidas poderão sofrer de alguma forma de alienação
podendo acentuar-se, nesse caso, a sua quase passividade como leitoras. Sandra Gilbert
(1979), e Susan Gubar chamam a atenção, em The Mad-woman Writer and the
Nineteenth Century Literary Imagination. (1979), para “o modo como a leitura pode ser
determinada pelas críticas dos leitores anti-feministas (Gilbert 1979, p.60), promovendo
assim um antagonismo para com todos os textos escritos por mulheres. Catherine Shuler
(1990:131) observa que, esta falta de compreensão pode levar a que a leitora menos
esclarecida atribua sentidos erróneos ao texto, o que, necessariamente, dificulta a sua
compreensão.
Contudo, em nosso entender o entendimento da mundividência de um texto pode
ser facilitado se, a autora basear a sua escrita na sua experiência, no seu corpo, na sua
individualidade, sexualidade e feminilidade partilháveis pela perspectiva comum das
suas potências leitoras.
Juliet Mitchell (1974), em Psychoanalysis and feminism, analisa a sexualidade e
a maneira como esta afecta a feminilidade, apontando para um lugar próprio e de direito
na sociedade. Helene Cixous (1981) defende uma posição análoga quando nos diz que a
escrita feminina é e deve ser elaborada mediante perpectivas e preocupações
diferenciadas das dos homens, em cujos textos o lugar da mulher tem sido periférico ou
omisso. Para ela, a mulher precisa de se pôr dentro do texto e passar a ser parte do
mundo e da história mediante acção própria.

60
Woman must write about and bring women to writing
which they have been driven away as violently as from
their bodies…woman must put herself into the text – as
into the world and into history – by her own
movement. Cixous (1981, p. 245)

Do nosso ponto de vista, ao relacionar a escrita feminina com o corpo feminino,


e consequentemente, com a sexualidade feminina e a essência feminina, o público
feminino dificilmente ficará alheio ao texto.
Contudo, Raman Selden (1989) adverte para o perigo de se pressupor que toda a
experiência feminina implique uma leitura como mulher. Para que isso suceda a leitura
tem de tomar consciência do modo como não só ela constrói um sentido, mas como o
próprio texto a constrói como leitora feminina.

Being female and therefore having female life


experience does not mean that one reads as a woman.
In order to bring into play female experience at all,
women have to actively question the way in which texts
construct them as reader. (Practising Theory: 142)

A produção literária feminina que busca dar maior expressão à mundividência


da mulher no mundo e sensibilizar o mundo para a causa das mulheres, naturalmente, dá
relevo a personagens femininas que veiculam os seus anseios próprios e afirmam os
seus questionamentos face a este mesmo mundo, que ainda não lhes outorgou o justo
espaço de representatividade. Sublinhar o papel destas personagens vai servir-nos
também para acentuarmos o modo como a produção literária africana e afro-americana
se tem assumido como voz de denúncia dos desmandos dos sistemas patriarcais face às
mulheres, um pouco por tudo o mundo.

v. Papéis das mulheres como personagens.

Referimos, anteriormente a escassa produção literária por parte das escritoras


africanas, em comparação com o número de romancistas africanos. Também chamámos
a atenção para o facto de que, até há muito pouco tempo, no continente africano, o
número de escritoras era muito reduzido, o que levou Katherine Frank (1987) a afirmar
que “as escritoras estão pouco representadas entre os escritores africanos, apesar de elas

61
terem contribuído crescentemente para o desenvolvimento da literatura em África
(Frank 1987, p.15)”. Embora esta carência possa ser atribuída a factores vários, como o
nível de escolaridade, o papel subalterno da mulher no seio da família e na sociedade,
ela também pode ser explicada pelo facto de a crítica literária ser predominantemente
praticada por homens.

Confrontadas com este problema, as escritoras feministas consideram, no


entanto, que a criação de uma obra literária tem um papel preponderante na sua
afirmação e auto-realização. Através da actividade literária, elas pretendem dar voz às
suas alegrias e descontentamentos e, desta maneira, corrigir as representações
tendenciosas e distorcidas das mulheres em obras escritas por autores sexistas. Mais,
esforçam-se não só por descrever as experiências das personagens femininas a fim de
melhorar as suas condições, mas também por trazer à luz os contextos socioculturais,
económicos e políticos que caracterizam as comunidades em que se inserem.

No seu conjunto, a produção literária feminina visa corrigir preconceitos que nos
textos insistem na imagem de uma suposta inferioridade das mulheres. Alem disso, a
criação de textos feitos por mulheres estabelece, com frequência, a existência de figuras
femininas como personagens principais, ajudando assim a que se cumpram os
objectivos de J. K. Gardiner (1982) no seu ensaio "On Female Identity and Writing"
onde afirma que a escritora feminista, se a protagonista for feminina, é apresentada
como portadora das ideias e aspirações de vida da autora (Gardiner 1982, p. 187). Por
sua vez, Femi Ojo-Ade (1983) afirma e reconhece a necessidade por parte das escritoras
em focalizarem os temas das suas obras em personagens femininas. Segundo este
crítico, isso é ' natural ' e acima de tudo, pretermite que as personagens femininas
possam assumir a função de porta-vozes das respectivas autoras. (p.161). Uma opinião
semelhante é expressa por Carole Boyce Davies (1986), ao afirmar que a as escritoras
têm toda liberdade e capacidade para representar as personagens femininas nas suas
obras. Ao construir uma realidade no feminino, Boyce (1986), defende que as escritoras
“têm melhores condições para apresentar as funções das mulheres, tanto como elas eram
no passado, mas também como são agora ou serão no futuro (Ibid p.86). Atendendo ao
ponto de vista de Boyce, poderíamos dizer que foi a discriminação ou falta de liberdade
das mulheres no passado que levou essas escritoras a criarem ' novas realidades’ Mary
Linton-Umeh (1985) defende que, no passado recente, a sociedade patriarcal não via
com bons olhos as contribuições levadas a cabo por mulheres nas sociedades

62
tradicionais africanas. Por isso afirma que "a representação de figuras femininas
heróicas na literatura africana, feita por homens, é insignificante" (Umeh 1985, p.45).

Nos últimos anos, as escritoras têm-se preocupado em apresentar personagens


femininas afirmativas e seguras, cuja identidade não depende do que os homens delas
digam para instilar ou introduzir um sentido positivo da identidade feminina. Esta
perspectiva mostra-nos como a produção literária feminina tem vindo a dar um papel
crescentemente importante no domínio político, económico e social. Mas essa
ampliação de fronteiras abrange não só uma cultura “mas também o mundo imaginário
da arte nas suas diversas expressões criativas ”. (Jill Conway et al, 1987, P. XXII).

Além disso, no ensaio "The Concept of Gender" (1987), o sistema e o conceito


binários do género revelam uma oposição instituída segundo uma determinada ordem
hierárquica (p.XXXIX). Neste sentido, Alix Kates Shulman (1980) relaciona a condição
de género com a apropriação do poder e como ele se exerce, podendo no entanto ser
alterado. A sua preocupação quanto ao corpo feminino e quanto à sexualidade está
relacionada com o poder que estes aspectos têm para darem às mulheres a capacidade
de assumirem a beleza e a grandeza do seu próprio corpo e controlá-lo, em vez de
darem aos homens essa prerrogativa. Shulman também afirma que através das leis,
costumes e outras instituições patriarcais, os homens se têm apropriado do domínio do
corpo feminino e da sua sexualidade (1980, p.596).

A atenção dispensada à importância do corpo feminino proporciona às


escritoras uma oportunidade para, através das suas personagens, analisarem os êxitos
das mulheres na produção e reprodução de significado que seja tendencialmente
relacionado com o seu sexo. Nesta tentativa de superar as limitações de género, as
romancistas terão de criar personagens que sejam plausíveis e verosímeis, para serem
também as protagonistas de uma história tão credível como representativa da
mundividência, tanto das mulheres como dos homens, num determinado espaço e
tempo. Mas também por isso, Peter Prescott (1978), na sua recensão crítica dos
romances escritos por mulheres, tem vindo a declarar que: "a capacidade de escrever
uma boa história duradoura está relacionada com o género" (Prescott 1978, p. 112).
Contudo, a abordagem da arte feita por mulheres não deve ser unívoca,
analisada somente a partir do ponto de vista feminino. A atitude e ou a posição para
com obras de arte feitas por mulheres e a acção das suas personagens deve ser plural e

63
multifacetada, tal como Annette Kolodny (1975) defendeu nos seguintes termos:

The struggle to create a form, a means of articulation is shared by


artist, male or female, in every medium. But it is a struggle
apparently, with qualitatively different components for a woman.
(85).

Qualquer literatura que avalia ou especifica de modo relativamente diferente


quando se dirigir a leitores masculinos ou femininos, é levada a utilizar pontos de vista
e abordagens que são diversos entre si. Onde a arte feminina é considerada, o efeito só
pode ser acentuado na forma positiva e isso torna-se viável através da técnica, da
linguagem e da caracterização das personagens femininas, em particular nos romances.
Este facto pode ser aduzido à circunstância de o homem existe fora do mundo da
mulher, e isso remeter para ideias e experiências muito próprias que são diferentes das
existentes no mundo masculino. Na apresentação feita por Kate Millett a propósito do
seu ensaio “ Male and Female are really two cultures”, esta autora afirma que ‘as
experiências de vida de ambos os sexos "são completamente diferentes - e cruciais"
((1970:53). Entre ambos os sexos, existe o binário do 'eu' e do 'outro' o que foi analisado
por escritores conceituados tais como Simone de Beauvoir em “The Second Sex” e
Rudolph Otto in “The Idea of the Holy”. Simone de Beauvoir considera o homem como
'o Eu ' e a mulher como 'a outra ', porque a mulher é vista em referência ao homem
devido à influência das tradições antigas que perpetuaram tais crenças. Mas para ela, a
mulher não é inferior ao homem. Segundo Simone de Beauvoir, o ‘Eu’ (o homem) é
importante na experiência e relação humana, uma vez que " a humanidade é masculina
e o homem define a mulher não em relação a si própria mas em relação ao próprio
homem. Desta maneira uma mulher não é considerada como um ser autónomo"
(1952:XVIII). Esta observação de Simone de Beauvoir também remete para o hiato
entre o homem (o Eu ) e a mulher ( a Outra) em que, por sua vez, o homem não é
dependente da mulher mas sim autónomo. Além disto, para o homem, o carácter da
mulher é uma entidade não familiar, negativa e dependente do homem, que é
dominante relativamente à mulher.
Por sua vez, para Rudolf Otto (1975), ‘ o outro ' é referido como aquele que
“está para além da esfera habitual do que é inteligível e familiar". Alargando as suas
considerações sobre o outro, Otto afirmou que ele é aquilo que está fora dos limites do
que é usual e por contraste, essa excentricidade resulta num grande espanto” (26).
Assim, essa condição de algo exterior e não incomportável reduz a possibilidade de

64
quem vê de fora, poder conhecer e experienciar os fenómenos da mesma maneira que o
sujeito.
A personagem feminina criada pela escritora pode ser, por isso, considerada
como sendo o (Eu) que representa as mulheres. Com efeito, a romancista exerce
influência decisiva sobre à caracterização feminina. Através da sua ficção, ela pode
definir-se a si mesma, utilizando o texto ao mesmo tempo, que cria as diferentes
personagens dentro da obra literária " que são as representações de si própria e das suas
ideias. (Gardiner 1981, p.37). Atendendo às afirmações acima proferidas, as
romancistas escrevem os seus romances que podem vir a ser representados em filmes
(como The Color Purple) por personagens masculinas e femininas, mas a personagem
feminina ao desempenhar o papel prescrito por uma escritora, acentua a realidade
feminina a partir de uma perspectiva comum de vida. Na opinião de Koenig, a diferença
na caracterização de personagens femininas são debatidas enquanto " semelhança" e
"afinidade" se tornam palavras fundamentais. Por outro lado, uma vez que o escritor
masculino, por não ser do sexo feminino, escreve fora das vivências de um corpo
feminino, a apresentação que ele faz das personagens femininas e da condição de ser
mulher, fica tendencialmente repleta de ideias erradas e falsas. É devido ao ponto de
vista acima mencionado que os papéis estereotipados e negativos atribuídos às mulheres
nas obras escritas pelos homens, (onde aí invalidam a igualdade feminina em sentido
geral e impedem a afirmação de superioridade feminina na descrição das suas próprias
vivências), foram criticados pelos simpatizantes da luta de afirmação das mulheres e
foram também alvo da critica feminista.
De acordo com Blamires (1991) “a estereotipização dos papéis femininos na
literatura feita por homens tem influências negativas nas mulheres ao impor-lhes papéis
tradicionais. A estereotipização dos papéis femininos nas obras produzidas por
escritores brancos leva-os a apresentá-las como anjos ou diabos, como a personificação
do bem e do mal, como objecto sexual, como pacientemente sofredoras, sedutoras ou
perversas, bruxas, esposas e mães. Para apoio do seu ponto de vista, Blamires cita a
opinião de Josephine Donovan que refere a frequência e o modo como as personagens
femininas são representadas, "somente em relação às personagens masculinas, em vez
de serem vistas como ‘uma identidade de conhecimento em si mesma” (ibid, p.375).
Blamires acrescenta que Donovan pôs em causa a necessidade de a mulher se identificar
com a identidade masculina (ibid).

65
No seu ensaio intitulado “From Orality to Writing” Nnaemeka elogia a maneira
como os contos e as representações tradicionais do folclore africano retratam as
personagens femininas apresentando-as como sendo fortes, corajosas, modelares,
radicais, assertivas, simpáticas, orientadoras, guerreiras e assim por diante. Mas esta
autora criticar as escritoras africanas por elas não terem seguido as formas da oralidade
e acima de tudo, pela ausência, nas suas obras literárias, de personagens de carácter
exemplar, ao contrário do que é bem manifesto nas formas da cultura oral.
If modern African women writes claim to be
descendants of great female story tellers in the oral
tradition (in which, strong, radical women and symbols
of womanhood are visibly recognized), why is there
such dearth of similar materials in the written
literature? How can one explain the pervasive
marginality and subalternity of radical women
characters who symbolize change? Why do female
protagonists consistently remain what I would call
‘characters of reaffirmation’ in the sense that they
reaffirm the commonly accepted notions of women and
women’s reality. (Nnaemeka 1994, p.143).

Sabemos como que estas personagens fortes são preponderantes no enredo e na


intriga dos contos do folclore tradicional. Podemos acrescentar ainda que, em contraste,
na literatura escrita, algumas personagens femininas desempenham papéis
subservientes, agindo em conformidade com as convenções sociais, enquanto as
personagens revoltadas desempenham somente funções marginais nestas obras
literárias. Contudo, devemos afirmar que há muitos outros exemplos que negam a tese
de Nnaemeka, já que a mera presença ou ausência de personagens femininas fortes não
pode ser o único critério para se categorizar uma obra como sendo feminista ou não.
Nnaemeka, parte da suposição que a não criação de personagens femininas fortes, por
parte das escritoras africanas modernas nos seus romances, denota que elas estarão a
escrever simplesmente ‘literatura doméstica ’ ou ‘literatura de maternidade’. E a partir
desta perspectiva, chega à conclusão discutível de que “as escritoras africanas
contemporâneas não têm o espírito feminista dos seus antepassados”. O passo seguinte
sublinha o dilema das escritoras face à busca de liberdade e à afirmação de feminismo:
The marginalization of non-conformist characters
might reflect the dilemma of women writers who are
still trying to understand who they are, especially in
relation to liberation and feminism. It might also
reflect a conscious effort to express a sense of cultural
solidarity. These ‘nervous conditions’ reflect the fact

66
that these women writers are not just on the margin but
on the edge (literally ‘edgy’) because they remain
intensely conscious of the gaze of the usually male
reader / critic (Nnaemeka 1994, p.151).

Na Literatura Africana, a representação das personagens femininas feita pelos


romancistas masculinos mostra uma tendência para se orientar para um público
masculino, insistindo em estereótipos que diminuem a mulher, como é reprovado por
Donovan e Blamires. E qualquer tentativa de apresentar uma ideia contrária é vista por
eles como um desvio óbvio da tradição onde as mulheres são relegadas ao segundo
plano, como personagens dóceis e sem importância. Muitos escritores africanos de
renome como Wole Soyinka, Luandino Veira, Câmara Laye, Mbogo Beti, Nkem
Nwankwo, Cyprian Ekwensi, Koroma, etc., retrataram as mulheres sob perspectivas
negativas, por exemplo como prostitutas (a personagem Jagua Nana no romance Jagua
Nana de Cyprian Ekwensi, Simi e Iriyise nos romances The Interpreters e Season of
Anomy de Wole Soyinka), como mulheres crédulas e frágeis (a personagem de Tuere no
romance The Voice de Gabriel Opara), bruxas e poderosas (tais como a personagem
recorrente da corajosa caçadora africana e Simbi nos romances Super Ladies e Satyr of
The Jungle, de Amos Tutuola, bem como a personagem de Chielo na obra Things Fall
Apart de Chinua Achebe), de assinalar também o retracto que recorrentemente
apresentam amulheres interesseiras como a personagem de Aina no romance People of
the City, de Cyprian Ekwensi e Gloria no romance My Mercedes is Bigger Than Yours
de Nkem Nwankwo. Além dos romances aqui mencionados, há outras obras literárias
que referem outros aspectos negativos da mulher como a inércia e a incapacidade, por
elas tantas vezes patenteada, de se mobilizarem na sua luta de emancipação. Algumas
dessas personagens tipo encontram-se em Queen Ojuola em The Gods Are Not to be
Blame, e Sikira em Our Husband Has Gone Mad Again. Aqui essas personagens são
recorrentemente frágeis e desorientadas.
A apresentação mais recente das personagens femininas como sendo positivas,
feita por escritores masculinos, é a prova de que com maior participação das mulheres
na produção literária a situação pode melhorar. Sendo assim, a escritora deve escrever
obras literárias de qualidade, que possam alterar o retrato negativo de mulheres onde e
quando for possível. Esta tarefa de afirmação através das obras literárias implica uma
ascensão das mulheres ao poder através da escrita, (Bamisile 2006, p. 45) – da sua
caneta (Sartre 1948, p.31). Através de peças teatrais, poesias e romances, as escritoras

67
podem usar as suas obras para reflectir constantemente sobre a sociedade em que
vivem, reflexão que frequentemente tem como objectivo dar ao leitor uma visão mais
ampla desta sociedade. Através de uma caracterização dominantemente positiva,
assertiva, segura e forte, tendem a excluir personagens menores das suas obras,
apresentando, em contrapartida, personagens poderosas. A exclusão de pessoas frágeis,
débeis e de mau carácter, poderá ser considerada não realista pelo público leitor no
entendimento de se tratar de um universo truncado e de que assim, tais obras não
retratam a vida como ela é. No entanto, as escritoras, ao escreverem as obras com
intenção de promover mudança social, dão uma atenção especial à criação de
personagens femininas fortes de modo a contrariar a corrigir a tradicional passividade
feminina na literatura é corrigida.
Numa perspectiva histórica, podemos dizer que a crítica em relação à produção
literária feminina foi tendencialmente negativa, mas é hoje progressivamente positiva.
Em nosso entender, a produção literária feminina precisa do apoio continuado de crítica
positiva, apesar de a produção literária negativa também ter acicatado a produção
literária das mulheres escritoras. Estes críticos contra quem elas se bateram têm
geralmente uma ideia preconcebida para com as escritas femininas, talvez por serem
críticos de sexo masculino, mas revelando todos, incluindo algumas mulheres, uma
predisposição contra as ideias feministas. Esta tendência levou Toril Moi (1986) a
definir crítico feminista como aquele que "se preocupa principalmente com a mudança
social e política" (23). Esta é de facto a razão que motiva as escritoras, e sobretudo os
seus apoiantes. Moi enfatiza esta sua ideia afirmando que quando um crítico de um
texto literário escrito por uma mulher procura imprimir um papel específico dentro do
referido texto, faz isso numa tentativa de alargar a sua acção ao âmbito político e trazê-
la para o domínio cultural geral" (23). Segundo Adrienne Rich (1979), esta acção
implicaria a interpretação e a reinterpretação de textos ( Rich 1979, p.35). Por sua vez,
Moira Monteith (1986) confirma que alguma discriminação atribuída às escritas
femininas pelos críticos do sexo masculinos (3). Foi esta atitude que conduziu L. M.
Anderson (1983) a identificar a importância da presença feminina nas obras das
escritoras (1983, p.60). Possivelmente as visões precedentes incitaram Dorothy Driver
(1982) a exortar as escritoras a não "sucumbirem" à crítica chauvinista que não aceitava
o facto de as preocupações femininas serem igualmente dignas de expressão literária
(Driver 1982, p.209).
Face ao exposto, consideramos que a crítica baseada nas questões das mulheres

68
poderia ter ganho alguns impulsos devido à necessidade de se mudar o rumo da crítica
fora de uma área que anteriormente era prerrogativa do poder patriarcal. Importa
salientar, no entanto que, de acordo com Simone de Beauvoir (1974, p.32), existem
alguns homens que simpatizam com a causa das mulheres. Mas algumas das críticas
masculinas no sentido tradicional da palavra, incluem desagrado e repugnância para
com “as actividades literárias" e "as obras" das mulheres como sendo uma "actividade
falida, sem excelência" (Umeh: 1985, p.195). Ojo-ade (1983, p. 161) por sua vez,
considera as escritoras como sendo uma raça desgraçada. No seu ensaio “Female
Writer: Male Critics”, Ojo-Ade afirmou que as mulheres escritoras sofrem em vão e que
as suas obras literárias caiem no esquecimento porque os críticos não lhes prestam a
devida atenção (1983, p.158-179). Numa outra publicação intitulada “Still a Victim?
Mariama Ba’s Une Si Longue Lettre”, Ojo-Ade critica não só o romance de BA, mas
também formula uma pergunta mais geral e irritante – será que na realidade as mulheres
são vítimas ou estão a fazer queixas desnecessárias? (1982, p.78-87). A análise crítica
levada a cabo por Afam Ebeogu sobre a obra A Hen Too Soon de Tess Onwueme pode
ser considerada condescendente para com as mulheres. Ele comenta o texto
objectivamente, é um facto, mas resume a sua apreciação definindo esta obra como
sendo um texto inoportuno de uma escritora imatura (1984, p.54). Towhe Esubiyi
(1984), no seu artigo intitulado “ Feminism in African Literature? Blah !” consta na lista
dos críticos machistas que usam palavras pouco abonatórias para qualificar as obras de
mulheres escritoras. Este crítico ataca de modo contundente o ponto de vista
desenvolvido por Ogundipe – Leslie no seu ensaio “ The Female Writer and Her
Commitment” e afirma que "o ensaio é indigno de ser literário”. Outro crítico de
renome, Chidi Amuta (1983), condena a obra Never Again de Flora Nwapa; Chinweizu
(1982) censura o romance Destination Biafra de Buchi Emecheta, enquanto Olu
Obafemi por sua vez, ridiculariza o teatro de zulu Sofola.
Apesar de os críticos pró-feministas serem poucos, eles conseguiram obter uma
atenção crescente para a importância da produção literária e do género, através das suas
críticas construtivas. Citam-se neste caso críticos de nomeada como Ezenwa Ohaeto
(1987), que fez uma crítica positiva a Double Yoke de Buchi Emecheta, Oladele Taiwo
(1984) pela sua análise motivadora de obras de romancistas africanas Rueben Abati's
(1990) é outro exemplo importante da crítica favorável feita por um homem de letras
em prol da escrita no feminino, através da elogiosa resenha crítica que fez da obra
Legacies de Tess Onwueme. Assim podemos afirmar que todas estas críticas positivas

69
ajudaram a projectar e a promover devidamente a produção literária feminina. Este
conjunto de opiniões críticas favoráveis veio a associar – se de forma construtiva ao
empenhamento das mulheres escritoras em África, para dar voz e espaço cada vez mais
visível à produção literária feminina que assim tem vindo a afirmar-se como uma forma
de expressão cada vez mais digna e crescentemente poderosa.

70
SEGUNDA PARTE
A PROCURA DE UM PARADIGMA
ESPECÍFICO: DO FEMINISMO,
AO AFRO-FEMINISMO

71
ABORDAGEM TEÓRICA
A PROCURA DE UM PARADIGMA ESPECÍFICO: DO FEMINISMO, AO
AFRO-FEMINISMO

Na secção anterior afirmámos que há ausência de mulheres na produção literária,


que nesta área da criação artística a presença feminina é pequena em comparação com a
dos escritores masculinos. Mostrámos também que, até recentemente, o número de
romancistas femininas em África era escasso, comparativamente ao número de
romancistas masculinos. Foi esta discrepância que incitou Katherine Frank (1987) a
argumentar que as escritoras " não estão bem representadas entre os escritores africanos,
apesar de elas terem questões importantes para tratar na escrita, decorrentes da sua
particular experiência de vida" (Frank 1987, p.15). A escassez e passividade das
mulheres africanas tem sido atribuída por críticos feministas a factores como idade,
educação, género, sexo e acomodação às imposições do matrimónio (Ogundipe-Leslie,
1987; Okonjo-Ogunyemi, 1988).
Mas enfrentando todas estas dificuldades, um punhado aguerrido de escritoras
africanas considera que a escrita de uma obra literária é uma actividade crucial para a
resolução dos problemas das mulheres em África. Através desta actividade, elas aspiram
a projectar as suas visões do mundo, seus cometimentos e descontentamentos, a fim de
corrigirem a deturpação da imagem das mulheres nas obras escritas feitas por muitos
autores do sexo masculino ou feminino.
As escritoras de África, com preocupações feministas, serão levadas a tratar
questões específicas que envolvem a mundividência tradicional da mulher africana.
No entanto, a desigualdade de tratamento dado à mulher é uma questão global,
pelo que muitos dos ideais do chamado feminismo ocidental têm emanações afiliadas e
objectivos comuns, seja em que continente for. Assim sendo, importa que se faça aqui,
antes de mais, uma referência breve à história do movimento feminista, para
destacarmos os propósitos iniciais da luta das mulheres que foram prosseguidos no
Ocidente e para desenvolvermos depois o estudo às particularidades do feminismo
africano.

72
i. O feminismo - conceptualizações

O Feminismo é um movimento ou uma tomada de consciência relativamente à


situação de desigualdade da mulher, bem como à necessidade de participação na luta
que leve à paridade da condição de tratamento entre homens e mulheres, a todos os
níveis da actividade humana, seja no plano social, político, artístico ou familiar e
individual. Os valores defendidos pelo feminismo são cada vez mais visíveis a todos os
níveis da comunicação oral e escrita e, também por isso, os sinais da sua presença são
indício de uma nova mentalidade e instrumento para a análise ou estudo da literatura
contemporânea africana e da diáspora africana. Enquanto teoria, atitude ou
posicionamento, o feminismo surge hoje com recorrência crescente em todas as formas
de interacção cultural. O posicionamento feminista visa, sumariamente, a emancipação
das mulheres da opressão política, económica, cultural, social, física e fisiológica. O
feminismo não começou hoje. Tem uma longa história de luta contra a opressão,
reivindicação de vitórias obtidas em épocas passadas e de renovação de uma velha
tradição do pensamento emancipador e da acção das mulheres, que se encontra inscrita
nas várias obras1 das suas importantes mentoras.
Por sua vez, Bunch (1993, p.249), já no seculo vinte, identifica dois principais
objectivos no feminismo; (i) a necessidade de libertação das mulheres, libertando-as da
opressão a que têm sido sujeitas e envolvendo não apenas a conquista de igualdade, mas
também o direito de escolherem livremente o seu destino e serem donas da sua vida,
dentro e fora de casa. A partir do momento em que as mulheres forem donas do seu
destino e do seu corpo, ser-lhes-á possível assegurar a dignidade e a autonomia
económica. (ii) O segundo objectivo do feminismo é a remoção de todas as formas de
desigualdade e opressão, o que será conseguido através da criação de uma ordem

1
Entre essas obras incluem-se as seguintes: A Vindication of the Rights of Woman (1792) de Mary
Wollstonecraft; Women and Labour (1911) de Olive Schreiner , A Room of One’s Own (1929) de
Virgínia Woolf ou, mais recentemente, O segundo sexo (1949), de Simone de Beauvoir. Estas obras
retrataram vividamente o mau tratamento e a opressão exercidoas sobre as mulheres que procuravam uma
melhor educação, bem como alternativas para a inevitabilidade da maternidade e do casamento que
prejudicavam os seus interesses; faz uma análise à imagem das figuras femininas retratadas nos romances
de D.H. Lawrence. Entre os textos precursores do movimento feminista, constam, entre outras, obras de
escritores de renome como The Subjection of Women (1869), de John Stuart Mill e The Origin of the
Family (1884), de Friedrich Engels. e A mulher e o socialismo de August Bebel.

73
nacional e internacional mais justa para as mulheres, em termos sociais e económicos.
Isto implica que a mulher se envolva em lutas de libertação à escala nacional, em planos
para o desenvolvimento do seu país e em lutas pela mudança da sua situação, a nível
local bem como à escala global.
Do nosso ponto de vista e no contexto desta tese, os objectivos mais importantes
da agenda feminista são os seguintes:
i. Dar a conhecer e desenvolver a tradição da escrita feminina;
ii. Interpretar o simbolismo da escrita feita por mulheres, para que essa
especificidade não se perca nem seja ignorada por uma perspectiva de dominação
unilateral dos homens;
iii. Contribuir para que a escrita feita por mulheres mantenha e amplie um lugar
expressivo no âmbito da actividade literária, de cunho tradicionalmente patriarcal;
iv. Promover a dignidade da mulher escritora e a sua escrita, partindo da
perspectiva das mulheres e da sua visão do mundo;
v. Impedir a existência e manifestação de sexismo nos textos literários;
vi. Denunciar, cada vez mais, usos preconceituosos de linguagem relacionados com
o sexo, bem como o modo tendenciosamente machista como certas abordagens a este
assunto são feitas.
Como forma de reivindicar o seu direito a terem uma voz em paridade, algumas
escritoras adoptaram uma ideologia e uma postura centradas na reivindicação do
reconhecimento desse direito de igualdade, contra a alegada dominação dos homens.
Uma dessas escritoras é Susan Griffin (1982) para quem o feminismo, para as mulheres,
é algo que ela define deste modo:
Holds the premise that one may control reality with the
mind, assert the ideal as the more real than reality, or
place as an authority above nature, and even above our
sensual experience of nature: what we see, what we
hear, what we feel, taste, smell (Griffin 1982, p.278).

Tendo em conta a afirmação acima proferida, podemos dizer que o feminismo2 tem
como base os princípios, as convicções, as ideias e os conceitos primordiais que
orientam as preocupações dos seus seguidores. Desde que Griffin (1982) sugeriu que "a

2
O termo feminismo derivou da palavra francesa feminista, que depois passou a ser usado com
regularidade na língua inglesa, para significar e advogar o desejo de se alcançarem direitos iguais para as
mulheres, com base na ideia da igualdade de sexos. A actividade feminista, com este objectivo, tem-se
multiplicado e diversificado, designadamente desde meados do séc. XIX até à promulgação da Décima
Nona Emenda à Constituição dos E.U.A, em 1920.

74
realidade" deveria ser também julgada pelo pensamento das mulheres, as ideologias
feministas tentam tornar conhecidas as visões da realidade entrevistas pelas mulheres,
através das obras que elas mesmas produzam. Isto tem como consequência o surgimento
de vários pontos de vista sobre o feminismo, tornando-o algo multilateral e não
unívoco. Várias definições de feminismo também evoluíram, e a larga maioria destas
definições dificilmente desfruta de um consenso entres as feministas – o que, a nosso
ver, é uma das maiores desvantagens para o movimento feminista global. Porém, as
diferentes definições comprovam a dimensão e diversidade de pontos de vista do
feminismo, globalmente considerado. Mais ainda, as diferentes manifestações destes
pontos de vista ideológicos revelam a necessidade de ser reiterado de modo diverso o
lugar e a riqueza de imagem da mulher, para que esta esteja constantemente presente na
literatura, na sua devida dimensão.
Contudo existem alguns pontos de convergência que se tem procurado englobar
em formulações genéricas. Por exemplo, Elaine Showalter (1986) em The New Feminist
Criticism classifica o conceito em causa através de três categorias, a saber: o modelo
inglês, o modelo francês e o modelo americano. Segundo ela, o movimento feminista
inglês é " essencialmente marxista " e destaca a opressão das mulheres, enquanto o
francês é " psicanalítico " na sua abordagem dos problemas das mulheres e oferece-nos
uma interpretação que enfatiza " a repressão ". Do seu ponto de vista, a versão
americana é " textual " pois analisa " a expressão literal " das ideias das mulheres (The
New Feminist Criticism; Showalter 1986, p.249). Mas, apesar destas classificações há
que considerar a posição de Carmen Vazquez (1983) segundo a qual, "há tantas
definições de feminismo como há de feministas " (Vazquez 1983, p.11).
Por seu turno, Marilyn French (1985) procura definir este conceito mediante
uma abordagem dos aspectos implícitos da Medicina, da Psicologia, do Direito, da
Educação, da História e também da Antropologia, tendo traçado com base neste apoio
pluri-disciplinar a natureza matriarcal de algumas sociedades. (French 1985, p.441) É
importante salientar que esta obra apresenta o feminismo como uma alternativa
filosófica universal ao pensamento patriarcal.

Feminism is the only serious, coherent, and universal


philosophy that offers an alternative to patriarchal
thinking and structures…Feminists believe that women
are human beings, that the two sexes are (at least) equal
in all significant ways, and that this equality must be
publicly recognized. They believe that qualities

75
traditionally associated with women – the feminine
principle – are (at least) equal in value to those
traditionally associated with men – the masculine
principle – and that this equality must be publicly
recognized (French 1985, p.442).

Seguindo algumas das doutrinas acima referidas, vemos que o feminismo,


enquanto conceito, em prol das mulheres, tenta conseguir para elas um estatuto de
reconhecimento de igualdade. Este reconhecimento pode ser concebido como
consequência das doutrinas feministas presentes em obras literárias, em que as mulheres
desempenham os papéis predominantes, usando uma linguagem que promove o
esclarecimento, em resultado de uma maior consciência sobre as realidades socio-
políticas. As feministas reivindicam uma ligação à criatividade artística, porque desse
modo põem fim a alegadas invocações de menoridade que, hipoteticamente,
justificariam a subjugação das mulheres. Uma das feministas que se identifica com esta
reivindicação é Nancy Hartstock (1985). Defende que deveria pôr-se fim à falocracia,
ao pensamento patriarcal que tão nefasto foi para as mulheres e para com a sua escrita.
Para Hartstock em Money, Sex and Power:

A feminist standpoint can allow us to descend further


into materiality to an epistemological level to which we
can better understand both why patriarchal institution
and ideology take such perverse and deadly forms and
how both theory and practice can be redirected in more
libratory directions. (Hartstock 1985, p.23).

Hartstock considera que o objectivo do feminismo é conseguir um entendimento


correcto da condição das mulheres no mundo e mudar as ideologias opressivas que as
têm oprimido, enquanto que Judith Bardwick (1990), uma psicóloga feminista, prefere
uma rejeição total de noções falsas. Na sua contribuição para o movimento de libertação
das mulheres e seu impacto nas suas vidas, Bardwick denuncia de forma clara as
normas sociais que contribuem para a passividade e ausência da mulher (Bardwick
1990, p.35). Para ela o feminismo corresponde a "uma rejeição explícita do estilo de
vida criado por normas fortemente coercivas, que definem e restringem o que as
mulheres devem ser e podem fazer" (5). Bardwick salienta a ideia de que a ideologia
feminista criativa é "uma revolução psicológica baseada na insistência das mulheres, de

76
que têm o direito básico de fazer escolhas e ser julgadas como indivíduos" (Bardwick
1980, p.12).
Através da rejeição feminista dos conceitos literários patriarcais restritivos e dos
preceitos sociais inibidores, as feministas condenam a inferiorização do papel das
mulheres, das personagens que as representam e da imagem que delas se dá nos
romances e na teoria crítica. Por seu turno, Catherine McKinnon (1982), seguindo a
mesma linha de pensamento, considera o feminismo como "uma teoria da vida, do
ponto de vista de uma mulher" (McKinnon 1982, p.21).
Uma outra representante da teoria feminista é bell hooks que defende que a
teoria funcionou durante muito tempo segundo o eixo masculino, declarando que a
ideologia feminista deveria tentar pôr um fim a esta "opressão machista" (hooks 1984,
p.31 e Keohane et al, 1982) no seu livro, Feminist Theory : A Critique of Ideology,
defendem uma postura política de feminismo. Para elas, "o feminismo tenta conquistar
para as mulheres direitos e poderes totais, tanto no contexto de classe como no sistema
político dominante (Keohane et al 1982, p. 57).
Esta maneira de ver não é a única nos estudos feministas. É semelhante à visão
sugerida por Marilyn J. Boxer´ no seu ensaio " For and About Women", onde afirma
que o feminismo corresponde a uma visão do mundo liberto de preconceitos em relação
a minorias:

A vision of a world free not only from sexism, but also


from racism, class-bias, ageism, hetero-sexual bias-
from all the ideologies and institutions that have
consciously or unconsciously oppressed and exploited
some for the advantage of the other (Boxer 1982,
p.238).

Por sua vez, Catherine Simpson (1981) identifica vários tipos de feminismo, tais
como o radical, o burguês, o cultural, o marxista, o negro e o lésbico. Os seis tipos
mencionados por Simpson esclarecem muitas dúvidas relativamente à natureza da
ideologia feminista em diferentes contextos e situações. Diz-nos esta estudiosa que:

In theory and practice, the new feminism consists of


several linked movements: radical feminism, which
sees man’s oppression of women as a central historical
event; bourgeois feminism, which seeks to eliminate
sexual discrimination and sex roles; cultural feminism,
which hopes to embody a special, enhancing female

77
sensibility; Marxist feminism which integrates a class
and feminist analysis; black feminism which organizes
the women who must endure both sexism and racism
that white women too often act out; lesbian feminism,
which finds central bonds between women. However,
they share a special balancing of politics and culture.
(Simpson 1981, p.66)

As escritoras preocupadas com esta problemática destacam frequentemente as


variedades do feminismo enumeradas por Simpson. Outras escritoras salientam também
estas várias formas de feminismo. A primeira classe identificada por Simpson é o
feminismo radical, que Cellestina Ware descreve no seu livro, Woman Power: The
Movement for Women´s Liberation. Ware realça o papel que as mulheres negras
representaram nos movimentos feministas na América nos anos setenta e destaca que os
romances das escritoras feministas radicais desempenham papéis importantes com vista
à cessação de situações de dominação e elitismo, em todo o tipo de relações humanas:

For the eradication of domination and elitism in all


human relationships. This would make self-
determination the ultimate good of society as we know it
today. (Ware 1970, p.3)

Uma outra feminista, Juliet Mitchell, em Women’s Estate, debruça-se


extensivamente sobre duas feministas radicais, Kate Millet e Shulamith Firestone,
advogando o predomínio das mulheres em lugares de trabalho e sublinhando, com esse
fim, a noção e a importância do radicalismo feminista, em todas as esferas da vida.
Mitchell (1971) defende, contudo, que, não se deve deixar de ter em conta a
especificidade histórica apesar do empenhamento na libertação de todas as mulheres:

As radical feminist demand, we must dedicate


ourselves to a theory of the oppression of all women
and yet, at the same time, not lose sight of the historical
specificity in the general statement. (Mitchell 1971, p.
99).

O ponto de vista acima exposto, radical como efectivamente é, exige uma


mudança total no tratamento das mulheres, tanto no texto literário como noutros
contextos.

78
Não obstante esta posição extrema, outras autoras feministas advogam
posicionamentos mais moderados. Por exemplo, Maren Lockwood Carden (1974), uma
socióloga feminista, acredita que " certos comportamentos e ideias a que os não-
iniciados chamam de radicais, podem ser considerados por um membro assumido do
movimento feminista como normais ou até mesmo conservadores, porque na sua
opinião, algo que é considerado radical numa data pode, em alguns meses ou alguns
anos, vir a ser aceite na generalidade " (“The New Feminist Movement: 47). Isto é o que
tem acontecido com algumas tomadas de posição inicialmente radicais do feminismo,
que posteriormente vêm a ser consideradas conservadoras. A postura radical de Millet e
Firestone contra o machismo já não é vista tal como acontecia anteriormente.
Próximo da ideia radical de feminismo está o modelo do pensamento burguês, já
que este tipo de feminismo se encontra principalmente entre elementos da classe
dominante. Uma feminista latino americana, Heleith I.B. Saffioti, contrasta o ponto de
vista burguês com a postura socialista em Women in Class and Society (1978). Para ela,
o capitalismo tem, até certo ponto, procurado enfraquecer a participação da mulher na
produção e por isso, ela defende a ideologia socialista, como sendo mais vantajosa para
a mulher. A definição de feminismo burguês que nos é dada por Saffioti mantém-se
válida. Ela enfatiza a importância que a classe média tem para a ascensão social da
pequena burguesia, escondendo as contradições da sociedade de classes:

Whatever revolutionary content there is in petty –


bourgeois feminist praxis, it has been put there by the
efforts of the middle class strata, especially the less
well-off, to move socially… in this sense, petty-
bourgeois feminism is not feminism at all; it has helped
to consolidate class society by giving camouflage to its
contradictions (Saffioti 1978, p.232).

O apoio dado por Saffioti ao feminismo socialista prende-se com a evidência de


que as mulheres, enquanto seres humanos, deveriam ser livres da opressão inerente aos
sistemas burgueses e capitalistas.
Com respeito à aproximação feminista marxista, a historiadora Berenice Carroll
(1980) vê as feministas de tradição marxista e as novas percepções feministas, à luz de
considerações tais como classe e sexo, produção e reprodução, esfera pública e privada.
A principal atenção de Carroll está tipicamente centrada no labor da actividade
reprodutiva, bem como na actividade doméstica em prol da família (Carroll 1980,
p.455).

79
A ideia feminista marxista funde as ideias que relacionam as origens de classe
com a estratificação nas relações familiares e económicas (Meehan 1990, 191). São
concepções associadas à ideologia neo-marxista que levam M. Godelier a parafrasear,
de modo claro, as ideias de Karl Marx e Friedrich Engels na Ideologia Alemã, onde se
defende que " as ideias da classe dominante são as ideias dominantes” ao longo dos
tempos (1963, p.39) Adoptando este postulado, parte para a afirmação de que, na
maioria das sociedades, "as ideias dominantes são as ideias do sexo dominante,
associadas e entrosadas às da classe dominante” (New Left Review: 1982:61). Sendo
assim, as feministas marxistas acreditam que as ideias masculinas ou patriarcais são
dominantes na sociedade, enquanto que as ideias femininas estão subordinadas às
masculinas porque os homens controlam a produção. Nas palavras de Elizabeth Meehan
(1990), o patriarcal prende-se "com o domínio absoluto do pai" e para ela, isto significa
a "dominação por/ dos homens não só na família, mas também colectivamente nos
assuntos públicos” Meehan (1990, p.191). Face ao exposto, as feministas marxistas
consideram a hegemonia patriarcal como a maldição do feminismo, movimento cuja
força contudo, não decorre apenas das condições de trabalho e de classe.
Através da defesa da homossexualidade, as feministas buscam também lutar
contra as ideologias egoístas que enfatizam somente a vida sexual heterossexual. Este é
o feminismo lésbico, aquele que encoraja as relações entre o mesmo sexo, que as
feministas lésbicas consideram como “identificação das mulheres" e que nós
testemunhamos nos trabalhos de Alice Walker, Rita Mae Brown, Barbara Gelpi entre
outras autoras. Para estas feministas lésbicas, as mulheres que compartilham tal
afinidade entre elas, como indivíduos iguais, deveriam entrar livremente em relações
homossexuais.
O movimento feminista pode corresponder então a duas das três fases que Harry
Blamires (1991) identifica em relação à criatividade feminina. Estas são a postura
“feminina" e a " feminista ". Assevera que, geralmente, "as feministas estão insatisfeitas
com a situação social e cultural", pelo modo como estas afectam e relacionam as
mulheres entre si (Blamires 1991, p.373). Assim, a fase feminina é dominada pela ideia
da criatividade feminina que se rebela contra as estéticas vitorianas tradicionais.
Algumas destas formas estéticas são para Blamires "a representação da condição
feminina pura, desinteressada", a imagem da mulher como o " anjo auxiliar” e também
a representação de " inibições de delicadeza feminina no que toca à sexualidade e
paixão " (ibid. p.374).

80
Blamires reconhece o papel do grupo de Bloomsbury nesta fase, ao iniciar e
liderar a revolta contra a feminilidade vitoriana. A fase feminina corresponde a uma
revolta contra "o que se assumia ser o papel feminino " (Blamires, p.376); a isto se
opuseram outras escritoras onde quer que ela aparecesse, nomeadamente em trabalhos
literários levados a cabo, quer por autores masculinos ou femininos. A fase "feminista,"
mais recente (1980-1990) do que a " fase feminina " (1840-1880), exibiu uma " maior
positividade e firmeza" por parte de mulheres. Blamires (1991) reconhece nela a
determinação com que as mulheres se esforçaram para ter igualdade política e social". A
este respeito afirma que "as produções literárias das mulheres podem contestar o
tratamento injusto das mulheres " (Blamires 1991, p.376).
Porém, Adele King (1985) assevera que mesmo nesta fase o "feminino tem
conotações de feminilidade, passividade, suavidade ..." (xi). A hipótese que Adele King
sugere está baseada na análise que fez a cinco romances de cinco autoras francesas -
Colette Guillaumin, Nathalie Sarraute, Marguerite Yourcenar, Marguerite Duras e
Monique Wittig. Para Adele King o feminismo assenta em dois aspectos principais,
definindo-o do seguinte modo:

Feminine’ then is used to mean ‘related to the


experiences of women and to the qualities of character,
language use, and imagination that critics and theories
have identified as more typical of women as a cultural
group than men’. ‘Feminine’ also, however, may mean
an approach differing from the socially dominant one
(normally identified as ‘masculine’), but not reserved to
those of the female sex. King 1985, p. xi-xii).

Desta forma, Blamires (1991) reconhece que este modelo de literatura "ficou
dependente da estética masculina predominante, mediante uma forma de protesto, que
por ser imitativa não é autónoma mas parasitária, " (Blamires 1991, p.376). A
categorização feita por Blamires refere-se, até certo ponto, aos trabalhos literários de
algumas mulheres brancas3.

3
Vale a pena sublinhar que algumas feministas negras de renome como bell hooks, Gloria Joseph,
Barbara Smith, Toni Morrisson, Alice Walker, Ntozake Shange e outras criticaram nas suas obras o
racismo e o machismo, assim como os preconceitos de classe. Por sua vez, as escritoras negras têm
sempre na sua agenda algo semelhante, mas para Catherine Clinton (1987), o feminismo, enquanto
ideologia, atrai as mulheres europeias e ocidentais de modo diferente e leva-as a diferentes prioridades de
luta. bell hooks, por sua vez, diz-nos que as feministas ocidentais consideram-se as legítimas percursoras
deste movimento. Por isso, com indisfarçada arrogância, elas apenas toleram as feministas negras, mas

81
ii. Complementaridades e divergências entre feminismos africanos e euro-
americanos

As posições anti-feministas são bastante comuns em África e na diáspora


africana e levaram à conceptualização de alternativas4 ao feminismo euro-americano.
Cite-se como exemplo disso o Motherism proposto por Catherine Acholnu, o
Womanism de Alice Walker, nos E.U.A., o Womanism de Chikwenye Ogunyemi, e
Mary Kolawole da Nigéria, o Womanism Africano de Clenora Hudsson-Weems dos
E.U.A., e o Stiwanism de Molara Ogundipe-Leslie da Nigéria, o conceito de Misovire,
cunhado por Werewere Liking, o conceito de Femalism de Chioma Opara, o de Gynism,
cunhado pela filósofa e feminista africana, Pauline Marie Eboh, e o conceito de
Gynandism de Chinweizu e Barnabe Bilongo.
A grande preocupação formulada por todas estas designações e seus conceitos é
a busca e apresentação de um movimento autónomo das mulheres negras africanas, que
seja um contraponto ao feminismo euro-americano e dê corpo à crítica que as africanas
pretendem fazer ao feminismo ocidental, exclusivamente dependente da divisão binária
de género, e suas consequências em termos da menorização da mulher. Contudo,
nenhum daqueles conceitos euro-americanos, ou mesmo africanos, conseguiu até agora
ser suficientemente conhecido e aceite em toda a África. Por esta razão, seria mais
apropriado falar-se de feminismo africano, independentemente das nuances de cada um

não deixam de as considerar meras imitadoras. Por isso, não estão irmanadas por uma noção recíproca de
solidariedade entre iguais.
4
Contudo, neste nosso estudo iremos concentrar a nossa atenção apenas nos cinco principais conceitos,
nomeadamente o motherism proposto por Catherine Acholonu, o womanism de Alice Walker, nos
E.U.A., o womanism de Chikwenye Ogunyemi, o womanism africano de Clenora Hudsson-Weems dos
E.U.A., e stiwanism de Molara Ogundipe-Leslie da Nigéria que, do nosso ponto de vista, foram bem
desenvolvidos e são relevantes para a abordagem deste tema. Embora nos pareça importante referir que
existam mais conceitos, por razões de limitação temáticas não os citamos. Tal opção não quer dizer que
estejamos a desvalorizar a importância desses conceitos. Mas, não sendo relevantes para nós, esses
conceitos alternativos de feminismo, que hoje se invocam em África, devem ainda assim ser observados,
tendo em conta o esforço particular de cada uma das saus proponentes para o estabelecimento de um
movimento que contextualize a crítica às relações de género, visando garantir uma assinalável autonomia
para com o feminismo ocidental. Deste modo defendemos que a nitidez com que é formulada a
demarcação entre o feminismo ocidental e africano varia conforme cada uma das teorizadoras aqui
consideradas.

82
destes conceitos, uma vez que todos eles se opõem activamente à existência de
estruturas sociais que promovem a discriminação e a opressão das mulheres, com base
em preconceitos de género. Nesta busca de traços distintivos para o feminismo africano,
importa salientar que, neste caso, os homens são considerados potenciais aliados na luta
contra a opressão sexista.

iii. O dilema de ser ou não ser feminista


Convirá vermos resumidamente o modo como as feministas africanas discutem
alternativas para superarem a situação de opressão das mulheres. Mas, sejam quais
forem as diferenças perceptíveis entre feminismo negro e branco, não pode haver
dúvida de que ambos partilham certas atitudes estéticas e idênticos propósitos . A
escritora nigeriana Flora Nwapa é um bom exemplo para tipificar a posição da mulher
africana face ao feminismo euro-americano. Só porque ela escreve sobre mulheres, - a
realidade que melhor conhece - ela tem sido acusada de ser feminista. Mas Nwapa tem-
se demarcado do feminismo, porque este assume e alardeia uma posição anti-homens.
Quando muito, admite identificar-se com o termo womanist, de Alice Walker, um
feminismo de âmbito mais lato que propõe a unidade de homens e mulheres, para
sobrevivência de todos. Mas, por outro lado, se o feminismo é a luta por novas
possibilidades de afirmação da mulher, então, nesta perspectiva, ela não teria pruridos
nenhuns em considerar-se feminista. Globalmente, todas as mulheres que sentem
precisam umas das outras, são feministas, uma vez que se juntam num esforço comum
de afirmação. Mas em Dezembro de 1992, quando Katerine Frank, uma renomada
feminista americana, conhecida pela sua atitude crítica para com as autoras negras
africanas, considerou que Flora Nwapa era uma feminista radical, esta escritora
nigeriana refutou que alguém pudesse considerá-la feminista e muito menos radical. Era
apenas uma mulher comum, que escrevia acerca do que conhecia. (Nwapa citado em
Nnaemeka, 1995, p.82-83).

Tal como Nwapa, a maioria das mulheres africanas, que nos seus textos lançam
um olhar crítico sobre as relações de género, estão indecisas em considerar-se
feministas e, também por isso, não se deve permitir que outros as refiram como
feministas. Esta indecisão de teor terminológico reflecte o facto de a questão do
feminismo ser muito controversa em África. Esta constatação convida-nos a explorar
83
numa breve referência as posições anti-feministas de muitas autoras africanas e como
isso levou à pouca aceitação do feminismo em África. E como contraponto será também
útil investigar, descrever e definir a natureza peculiar do feminismo africano.
Para entendermos as posições anti-feministas africanas será vantajoso
começarmos por identificar aspectos comuns5 entre elas e que dão corpo a uma atitude
de identificação global com idênticos propósitos, sabendo nós, no entanto, que a
pluralidade étnica de muitos países africanos como a Nigéria, por exemplo, justificaria
que se assinalassem feminismos com nuances regionais - Yoruba, Ibo ou Hausa,
designadamente-, ou que se apontassem diferenças entre o feminismo de países
geograficamente afastados, como o nigeriano e o sul-africano.
Mas a heterogeneidade de África será relativamente esbatida pela vantagem de
argumentarmos com base em generalizações que são assumidamente consensuais, não
deixando de ter em linha de conta particularismos mais relevantes. Um aspecto que é
comum, de facto, é a posição anti-feminista de muitas escritoras africanas, embora,
como já referimos, elas próprias revelem alguma incerteza quanto à atitude a tomar face
ao termo feminismo. Mas esta reacção conjunta anti-feminista deriva de um
entendimento estereotipado do que é o feminismo ocidental, o qual, na verdade, também
é heterogéneo. No entanto, ele é habitualmente equiparado, de modo geralmente
abusivo, ao feminismo radical e às suas posições extremadas (ódio aos homens, rejeição
do casamento e da maternidade com preferência pelo amor lésbico), num
empenhamento que apenas visa inverter as relações de poder relativas ao género. O
feminismo, assim encarado, é obviamente algo que é estranho aos impulsos sociais de
África. Além disso é rejeitado por manter o alheamento das tradições e preocupações
especificamente africanas. Mas temos de admitir que há aqui algum equívoco por parte
das escritoras africanas, ao adoptarem uma abordagem crítica que também é redutora do
que é o feminismo ocidental, tomado como um todo, de modo restrito e estereotipado.
Isto leva a que o feminismo euro-americano, tal como acontece com outros movimentos
políticos e culturais, seja olhado em África com o receio e a reserva que temos para com

5
Foi isso que levou bell hooks em Feminist Theory: From Margin to Centre, a citar Barbara Berg, em
cujo livro The Remembered Gate: Origins of American Feminism (1984 se afirma que as mulheres negras
ou africanas? deveriam bater-se, de maneira clara, por uma posição feminista forte, a favor das mulheres
afro-americanas. Para esta autora era preciso deslocar a mulher da margem para o centro dos seus espaços
de existência, numa progressão por etapas, tendo em mente que o feminismo envolverá várias fases de
emancipação das mulheres afro-americanas. Berg afirma decididamente que a mulher negra é quem irá
decidir os seus papéis, deveres e esferas de operação que, em todo o caso, estão fora das determinações
machistas (Berg, em Hooks 1984:23). Ou seja, na opinião de Berg, uma mulher é livre; livre para falar e
livre para agir e deve ser consequente com isso, nesse propósito.

84
tudo o que não nos é familiar ou nos é apresentado de modo truncado e com acentuação
de aspectos que fazem recear a alteração da ordem vigente e das estruturas sociais nos
moldes em que estes sempre foram conhecidos. Assim, em consequência da
multiplicidade de receios que se levantam sempre que o status quo é posto em causa,
tanto homens como mulheres são levados a desenvolver linhas de argumentação contra
aquilo que, por afrontar a tradição (como o feminismo de procedência euro-americana),
é factor desestabilizador “da paz social”, isto é, de uma convivência que embora tendo
declarados favorecidos e desfavorecidos, em África, se apresentava como “
harmoniosa”, para muitos.
O posicionamento assumido por Leopold Senghor, que fez escola a seu tempo,
representa um dos pontos de vista que continuou dominante entre estes analistas sociais
como Ogunyemi (1997), Stratton (1994), Chukwuma (1994) e Amadiume (1987). Na
sua obra Contemporary African Literature and The Politics of Gender, Florence
Stratton (1994) citando a autoridade do posicionamento de Senghor, afirma que,
“contrariamente ao que frequentemente se pensa hoje, a mulher africana não precisa de
ser libertada: ela é livre há muitos milhares de anos (Senghor 1965, p.45).” De acordo
com esta linha de pensamento, não existiria no passado da vivência africana a opressão
resultante da estrita divisão binária do género, que impõe tarefas diferenciadas entre
homens e mulheres, reservando para os homens o papel de decisores da vida pública e
deixando para as mulheres a responsabilidade individual de terem e cuidarem dos filhos.
Outros críticos do feminismo argumentam que, se há homens e mulheres
africanos que simpatizam com o feminismo, eles são traidores que se venderam às
ideais do ocidente. Este tipo de observação representa o receio de quem acha que o
feminismo é algo que foi importado por África e que levará à ruína do tipo de relações
existentes em África entre homens e mulheres. Esta forma de pensar insinua que quem
se assumir como feminista estará a negar implicitamente a sua identidade africana e a
ser vítima da colonização de pensamento. Se é verdade que a existência do feminismo
em África é hoje influenciada pelo feminismo ocidental, não devemos esquecer-nos de
que a força das mulheres em África - através do modo como, há muito tempo, se
organizam as estruturas familiares com linhagens matriarcais - é um exemplo de
afirmação de poder das mulheres, que deve ser tido como inspirador das possibilidades
de mudança por que se bate o feminismo euro-americano. E nesta perspectiva o
feminismo não pode ser encarado como algo que é importado e, pela mesma razão, a
identificação com o feminismo por parte das mulheres africanas não significará que elas

85
estejam a negar a sua identidade própria (Amadiume:1987). Ambos os movimentos
estão necessariamente irmanados por propósitos comuns.
Outra censura que se nos afigura justa para com os detractores do feminismo é a
negação de que este seja um movimento elitista e que apenas tenha a ver com a mulher
da cidade de classe média (Chukwuma 1994, p.xiii-iv). A verdade é que a defesa da
condição da mulher se justifica onde quer que ela viva, independentemente do grupo
social a que pertença, sabendo-se que a repartição binária do poder a relega
tendencialmente para posições de desvantagem.
De entre o conjunto de argumentações para rejeição do feminismo europeu
também se invoca frequentemente que, em África, a discriminação racial e as questões
de classe e linhagem familiar, por exemplo, são bem mais importantes do que os
problemas suscitados pela ordem binária do género. Todas estas razões, em boa
verdade, têm muito a ver com um continente que ainda sente na pele as marcas da
imposição colonial e que procura resguardar-se de novas investidas externas, pelo que,
por isso, luta sempre um pouco instintivamente contra todas as formas de um verdadeiro
ou aparente imperialismo cultural. E, uma vez que certos procedimentos que levam à
discriminação da mulher em África não são defendidos nem apoiados pelo feminismo
europeu, devemos concluir que este movimento cultural, embora emanado, em parte, do
ocidente, não é uma ameaça nem é impeditivo da existência e accionamento de posições
feministas ocidentais em África. Proceder de outro modo seria adoptar as mesmas
atitudes que se criticam e são característica da opressão patriarcal: a ignorância que se
recusa a ver as razões do outro lado e se mantém arrogante, marginalizando os
problemas específicos do outro, da mulher, neste caso.
Relativamente ao alegado distanciamento das feministas ocidentais para com os
problemas das mulheres em África e ao facto de aquelas, ao expandirem para outros
continentes a sua visão do mundo estarem a promover uma forma de imperialismo
cultural, importa-nos fazer notar que esse entendimento é controverso e também
discutível, pois é redutor considerarmos que só há uma forma de feminismo ocidental.
Além disso, mesmo em África, há formas de organização da sociedade com repartição
binária do poder que não foram decalcadas do modelo ocidental, havendo ainda
escritoras africanas cuja escrita se desenvolve em torno de questões de género, tal como
ele existe, sem contestaram as suas implicações gravosas para a mulher.
Outra alegação habitualmente feita por críticos africanos é a de que as feministas
brancas ocidentais, pelo seu comportamento e modos como acabam por se integrar na

86
sociedades em que vivem, vêm a personificar formas de aceitação de papéis e funções
que configuram modos de opressão que as mulheres africanas depois terão de enfrentar
também. É neste contexto que Ogunyemi (1997) manifesta a sua oposição contra as
feministas ocidentais – centrando a sua crítica no facto de elas se declararem
desprovidas de poder “ disempowered”: “quando nós consideramos o poder que as
feministas ocidentais têm relativamente às africanas, o feminismo euro-americano
torna-se um verdadeiro motivo de chacota em alguns aspectos. E por isso, todas as
feministas, subentendidas pelo posicionamento ideológico occidental, são parte do
problema das mulheres africanas, uma vez que elas se aproveitam de nós continuarmos
numa posição inferior”. (Ogunyemi 1997, p.33). Assim as feministas europeias seriam
parte do problema e não da solução para a afirmação das mulheres africana.
Pelas razões que acabámos de referir, os diferentes modos de expressão de
hostilidade anti-feminista conduziram à rejeição do termo “feminista” em África e à
procura de alternativas de designação terminológica para se definir, de modo
considerado mais adequado, o empenhamento concertado de emancipação das
mulheres, em África.

iv. Conceitos africanos alternativos ao feminismo ocidental

O conceito de Motherism, proposto por Catherine Acholonu, não pode deixar de


ser mencionado neste contexto em que nos estamos a referir a concepções afrocêntricas,
que sejam alternativas ao dito feminismo de origem ocidental. Esta possibilidade de
uma concepção afrocêntrica de pensamento em defesa da condição da mulher, não tem,
nem pretende ter nada a ver, com aquilo que é denominador comum no feminismo
tradicional. Assim também, na sua obra Motherism, a estudiosa Acholonu, de origem
nigeriana, defende que, nas sociedades tradicionais africanas, as mulheres não estavam,
de modo algum, em desvantagem relativamente aos homens. (Acholonu: 1995: p.4, 68,
103). Segundo esta autora e crítica literária, a noção de que as mulheres são inferiores
aos homens foi importada para África, por via do colonialismo ocidental e árabe, e em
resultado do impacto de posicionamentos discriminatórios provindos da ideologia cristã
e do islão. (Acholonu 1995, p.10-11, 44-45, 69-79). Acholonu considera mesmo que a
deliberada marginalização das mulheres foi uma das principais estratégias do
colonialismo. Isto por que os colonialistas sabiam bem da importância e da influência

87
das mulheres e também não ignoravam que a força das sociedades africanas derivava da
coesão de um tecido social em que os sexos coexistiam em complementaridade. Deste
modo, para que África pudesse ser conquistada, o poder das mulheres tinha de ser
quebrado. (Acholonu 1995, p.79).
Tendo em conta o valor desta convicção, Acholonu rejeita liminarmente o
feminismo, tanto o ocidental como o africano. Segundo ela, o feminismo ocidental é
“anti-mãe, anti-criança, anti-natureza e anti-cultura africana” (Acholonu 1995, p.80).
Nesta linha de pensamento, ela acusa o feminismo radical, de procedência ocidental, de
ser responsável pelo desmembramento da família, pela alienação das crianças, pelo
desrespeito pela lei e pela ordem, pelo aumento das taxas de criminalidade e de
consumo de droga e pelo crescimento exponencial dos sem-abrigo nas cidades do
ocidente. (Acholonu 1995, p.108-108). Acholonu insinua mesmo que as feministas
africanas confirmam, nos seus procedimentos, estereótipos ocidentais acerca de África e
aplicam ideias do ocidente às condições de vida em África, apenas para singrarem nas
carreiras intelectuais que estão a desenvolver no ocidente. Diz-nos ainda que as
feministas africanas se socorrem de estratégias como o exagero, a falsificação de
normas tradicionais da sociedade, alegações censuráveis acerca das suas próprias
experiências pessoais e da vivência das mulheres rurais nas aldeias onde, por serem
analfabetas, seriam incapazes de testemunhar devidamente as suas próprias experiências
de vida (Acholonu 1995, p.87-88).
Acholonu (1995) considera ainda que o feminismo ocidental favorece o amor
lésbico e exclui os homens e, neste aspecto, ela faz coro com Ogunyemi, 1988 que
também desaprova totalmente este posicionamento. Este é um aspecto que Acholonu
também critica em Alice Walker (p.89-90). Acima de tudo, Acholonu reprova o
feminismo africano por ele fazer uma adopção escrava e não pensada das teses do
feminismo ocidental, segundo o qual as mulheres africanas são oprimidas e
discriminadas por razões de género. Para ela, em vez disso, “a verdade é que aquilo que
determina o estatuto social em qualquer parte da África é, antes de mais, o poder
económico de cada um, e só, muito secundariamente, o género …”( Acholonu 1995,
p.51, 108). Para ela, não faz qualquer sentido as mulheres africanas adoptarem as
ideologias feministas ocidentais, sem terem em conta, a especificidade cultural e
histórica da sua peculiar experiência de vida em África e da visão do mundo daí
decorrente.

88
It is impracticable, almost suicidal, for African women
to adopt western feminist ideologies without regard for
the basic and fundamental historical, cultural and
ideological differences, world view and raison d’etre of
both cultures…African feminism, unable to identify
with the extremes of Western Feminism must carve out
its own identity; must search out its own poetics and
find a name adequate to describe its own
idiosyncrasies; its peculiar origin, its subject matter, its
raison d’etre, its Weltanschauung. (Acholonu 1995, p.
103-104).

Para Acholonu, o aspecto central do feminismo africano haveria de ter como


objectivo conseguir uma reconhecida complementaridade de sexos e não a sua
igualdade. Para ela, a propalada igualdade de sexos, tal como a expressão é usada no
ocidente e surge reflectida em inúmeras palavras de ordem dos países integrantes das
Nações Unidas, é uma mera “igualdade mecânica”. Usada deste modo, esta expressão
contém em si o potencial para destruir a base de uma relação complementar, como a que
é própria das relações de género em África. A igualdade é confrontacional e auto-
destrutiva, enquanto que a complementaridade tem um cariz de entendimento para
apoio mútuo, numa dinâmica de entreajuda. (Acholonu 1995, p.106-109.
De acordo com Acholonu (1995), um outro aspecto muito importante para uma
adequada conceptualização de um feminismo africano será a aceitação e inclusão da
condição de mãe (Acholonu 1995, p.104). E, ao assumir e defender este
posicionamento, Acholonu propõe que “ a alternativa africana ao feminismo ocidental
seja o que ela mesmo designa por Motherism, conceito que congrega e incorpora as
noções de maternidade, natureza e sustento” p.110. Acholonu, no desenvolvimento
desta argumentação, afirma que a “[c]ooperação com aquilo que é a natureza é essencial
para o entendimento do que é o Motherism e que a tarefa da Motherist é a de cuidar e
proteger a coesão natural e essencial da família, da criança, da sociedade e do ambiente
onde ela coexiste”. (Acholonu: 1995, p. 93-95). Em seu entender, tantos homens como
mulheres podem ser Motherists. O que é importante é que eles estejam preocupados
com as ameaças de guerra no mundo, a falta de alimentação adequada, a fome, a
exploração política e económica, o abuso de crianças, os índices de mortalidade, a
dependência de drogas, a proliferação de lares destruídos e de populações sem-abrigo
em todo o mundo, a degradação do ambiente e a destruição da camada de ozono, devido
à poluição (p.106).

89
Com preocupações idênticas, o conceito de feminismo de Alice Walker,
Hudson-Weems, Ogunyemi e Ogundipe advoga ainda a ideia de que a noção de género
e as suas implicações só devem ser discutidos em contexto com outras questões de
relevância política. Mas o conceito de Motherism de Acholonu é apresentado como um
princípio humanista que, portanto, é superior e independente de quaisquer
considerações contextuais. Para Acholonu, a questão do género, em si mesmo, não tem
um papel explícito ou implícito (p.110-116). E assim, precisamente por esta razão,
podemos dizer que este conceito não apresenta uma natureza feminista no sentido em
que a estamos a problematizar, neste estudo. E também, por isto, podemos dizer, em
última análise, que o conceito de Motherism de Acholonu não se presta a ser tomado
como uma alternativa viável em favor das mulheres africanas empenhadas na defesa de
questões que lhes são próprias, mas que têm dificuldades na adopção integral do termo
“feminismo”. No entanto, Acholonu é convicta e intransigente na denúncia de que a
relação de sexos existe em desfavor das mulheres e que é necessário superar este
desfavorecimento.
Outra alternativa recente ao conceito eurocêntrico de feminismo é o que nos é
proposto por outra nigeriana Molara Ogundipe-Leslie, e que ela designa por Stiwanism,
a partir do acrónimo STIWA, por ela criado, para designar Social Transformation
Including Women In Africa. Segundo ela própria, este termo permite chamar atenção
para a luta contra as necessidades prementes das mulheres africanas na actualidade,
mantendo também o respeito pela tradição dos costumes indígenas e pelo espaço que aí
é conferido à mulher enquanto ser social. STIWA bate-se pela inclusão da mulher
africana no processo de transformação social e política que decorre no continente
africano. Ela considera imperioso que as mulheres partilhem com os homens a
condução do processo de transformação social ali em curso e espera não ter a oposição
da maioria dos homens africanos neste seu intento:

STIWA is about the inclusion of African women in the


contemporary social and political transformation of
Africa. I am sure there will be few African men who
will oppose the concept of including women in the
social transformation of Africa, which is really the
issue. Women have to participate as co-partners in
social transformation (Ogundipe 1994, p.229-230).

90
Como aqui se vê, para Molara Ogundipe-Leslie (1994), as questões de género
assumem uma função crucial na reestruturação social que é necessário operar. E, de um
modo mais explícito do que Ogunyemi, considera que as relações de género só podem
ser objecto de inovação no contexto de transformações sociais levadas a cabo com a
participação de todos, homens e mulheres.
O Stiwanism de Molara Ogundipe-Leslie (1994), à semelhança do que é
proposto pelo Womanism de Ogunyemi, representa algo que é originalmente africano e
com o mesmo tipo de exclusões implícitas: as mulheres brancas e também as afro-
americanas, ao serem omitidas como participantes deste movimento de transformação
social, ficam implicitamente excluídas de uma luta que respeita directamente à mulher
africana. Além disto, o Stiwanism demarca-se claramente do feminismo, tendo em conta
a sua desaprovação geral em África, onde é visto como causa alheia e com tendências
de imposição imperialista ou neo-colonial (Sanches 2005, 8-9), (Aschroft, 1989:2)6. Ao
ter criado uma designação nova para corporizar a luta das mulheres africanas, neste
modo de auto-afirmação e maior participação social, Molara Ogundipe-Leslie espera
contornar as resistências que poderia ter, se a vissem como alguém que estivesse a
imitar o feminismo ocidental, distanciado, para ela, das condições com que se defronta a
mulher em África:
The creation of the new Word is to deflect energies
from constantly having to respond to charges of
imitating Western feminism and, in this way, to avoid
being distracted from the real issue of the conditions of
women in Africa (…) This new describes my agenda
for women in Africa without having to answer charges
of imitativeness or having to constantly define our
agenda on the African continent in relation to other
feminisms, in particular, white Euro-American
feminisms which are unfortunately under siege by
everyone. (Ibid 1994, p. 229-230).

6
Vijay Mishra & Bob Hodge num ensaio intitulado “What is Post-colonialism?” in New Literary History
(Critical & Historical Essays) Volume 36, Number 3, Summer 2005, pp. 375-401, afirmam que o “Pós-
colonialismo” (post-colonialism), termo que passou a incluir o seu outro substantivo sem o hífen
“(póscolonial)”, é um vocábulo problemático, quer visto de perto, do interior da área que ele designa e
que tem apenas vinte e seis anos, quer visto de longe. Dentro da sua área o termo é tão omnipresente que
parece existir desde sempre; e no entanto, é visivelmente difícil defini-lo, assente como está naquele
poderoso hífen. Para um entendimento mais aprofundado da pós-colonialidade, como lugar de dissolução
e de contestação das “próprias classificações e divisões que produziram” o género e as suas leis, ver Peter
Hitchcock, “The Genre of Postcoloniality”, New Literary History, 34, 2003, p. 299 -330.

91
Molara Ogundipe-Leslie (1994) é omissa quanto à eventual participação de
homens no seu Stiwanism. Contudo, a ideia que nos fica, a partir da definição que ela
nos dá da envolvência deste seu conceito é a de que, claramente, ela admite a
necessidade de cooperação de homens e mulheres7.
A alternativa mais conhecida ao conceito de feminismo é a designação de
womanism proposta e adoptada por Alice Walker. Contudo, para esta escritora afro-
americana, o feminismo busca o engrandecimento da condição da mulher, é algo que
irmana e engloba todas as mulheres, brancas ou negras, de qualquer condição
económica e de diferente orientação sexual (Walker 1983).
Mas apesar de considerar que o feminismo é algo que diz respeito a todas as
mulheres, Walker defende que há necessidade de um conceito específico focado na
identidade das mulheres negras e no agrilhoamento particularmente imposto a elas pelas
questões do género. Para explicar melhor este seu posicionamento, Walker socorre-se
de uma alegoria – “womanism is to feminist as purple to lavender”, procurando ilustrar
os aspectos de semelhança com que se identificam todas as mulheres e a especificidade
de tonalidade de cor que será própria da mulher, em África e na diáspora.
A diferença entre estas duas cores (púrpura e lavanda) não sendo gritante é
nítida. E assim como a cor púrpura é de um tom mais vivo que a lavanda, também o
womanism é mais prometedor e efectivo do que o feminismo, por partir de uma
conceptualização mais abrangente: “a womanist is commited to survival and wholeness
of entire people, male and female” (Walker 1983, p.xi). Estas definições implicam que
as womanistas estão empenhadas em superar a discriminação sexista e também a
discriminação baseada na identidade social ou socioeconómica das pessoas. Para além
destas diferenças de tonalidade e abrangência, fica entendido que, para Alice Walker, o
feminismo é um movimento de mulheres brancas (contudo, não hostil), mas que a

7
A este respeito, podemos dizer sumariamente que Ogundipe-Leslie tem um posicionamento bastante
liberal para com as reivindicações gerais do feminismo, enquanto que Hudson-Weems é a mais
determinada ou radical, até pela exclusão que faz do contributo dos homens. A diferença mais decisiva
entre diferentes posicionamentos manifesta-se precisamente na questão que equaciona se todas as
mulheres negras ou apenas mulheres africanas (e homens) devem ser tidos em conta no estudo que
contextualiza as relações de género. Entre o posicionamento diferenciado de feminismos diversos, foi
possível assinalarmos diferenças quanto ao contributo permitido ou desejado da colaboração dos homens.
A aceitação, favorecimento ou reprovação do amor lésbico foi outro factor de diferenciação em vários
posicionamentos feministas. Após considerações de todos estes factores, e tendo presente que a
concepção de feminismo de Walker é a única que não solicita a cooperação dos homens, parece-nos
legítimo afirmar que o feminismo defendido por Alice Walker assume uma postura mais radical do que
qualquer uma das outras quatro teorizações feministas por nós aqui abordadas.

92
representante do womanism será, necessariamente, uma feminista negra ou de cor não
branca (Walker 1983, p. xi).
Deste modo, ao excluir assim as mulheres brancas, da luta particular das
mulheres negras, Walker contradiz a sua própria reivindicação de que as womanistas
não são separatistas. Outra contradição com o seu declarado anseio de não ser
separatista e assumir uma atitude mais abrangente é o facto de ela, por omissão, excluir
os homens, a quem assim também é negada a possibilidade de terem um papel activo,
como womanistas. Walker encontra-se assim incapaz de superar uma certa indefinição
ou indecisão quanto ao seu posicionamento. De facto, é controverso e problemático
defender a participação de todos “wholeness”, reinvindicar que as womanistas lutam
pela sobrevivência de todos, “ entire people, male and female”, e depois pretender
exclusividade de representatividade deste movimento para a mulher negra.
A nigeriana Chikwenye Okonjo Ogunyemi defende um conceito de womanism
semelhante ao de Alice Walker, em termos gerais, mas diferente em questões de
detalhe. Ogunyemi também descreve o womanism como uma emanação negra do
feminismo, admitindo desse modo que há similitude entre os dois movimentos, pois
ambos pugnam pela liberdade e independência das mulheres. Contudo, para Ogunyemi,
esta aspiração comum às mulheres do Norte branco e do Sul negro, tem de ser posta em
prática de modo diferente. Isto porque, para ela, o womanism é uma forma de
feminismo expandido que vai para além das questões de género e também supera o
âmbito das preocupações adicionais de raça e classe social já aduzidas por Walker.
Ogunyemi menciona, como parte desta expansão do womanism, nada menos que dez
aspectos principais8 com que uma womanista tem de lidar.
Comparando o seu posicionamento com o de Walker, vemos que Ogunyemi9
também se distancia do feminismo radical, mas se aproxima do feminismo marxista.

8
Em 1997, numa palestra proferida em Berlim sobre a escrita feminina, onde ela apresentou o seu ensaio
intitulado “Did Anybody Disappear? Covering Womanist Sights” Ogunyemi refere estes dez aspectos
principais e que aqui são listados: i) o capitalismo global e o consumo que empobrece os pobres; ii), as
questões da política de raça e da economia, iii). Feminismos e outras formas de imperialismo – a atitude
pós-colonial em conivência com uma fraternidade global no feminino? iv), confrontos inter-étnicos, v),
fundamentalismos religiosos – religiões tradicionais em África, o Islão, a Cristandade, vi), elitismo,
militarismo e feudalismo, vii). a questão da língua, viii), as restrições impostas pelo género, ix), a
gerontocracia, x) a questão das afinidades parentais e outros constrangimentos culturais.
9
. Por exemplo, numa entrevista dada a Susan Arndt em 1997, após de uma conferência em Berlim,
Chikwenye Ogunyemi declarou, gerando forte reacção, que o modelo afro-americano de womanism
"ignora as peculiaridades africanas, pelo que, consequentemente, havia necessidade de se definir o
womanism africano (3). Na sua opinião, esta necessidade é gritante porque as "feministas ocidentais ou
ignoram completamente os problemas das mulheres africanas ou falam em nome de todas as mulheres

93
Contudo, ela também exclui a mulher branca do womanism e fá-lo de modo explícito,
apresentando razões para afirmar que é necessária e inevitável a demarcação para com o
feminismo ocidental. A mulher negra carrega um fardo próprio. Ela vê-se privada dos
seus direitos pelas atitudes sexistas que pontificam na vida doméstica dos negros e por
força da atitude patriarcal euro-americana que prevalece na esfera pública. A escritora
negra não pode juntar-se de corpo e alma às feministas brancas contra o patriarcado, já
que estas se declaram sitiadas, sem poder e com pouca auto-estima para serem capazes
de reverter o pendor de forças poderosas, de conceitos e preconceitos longamente
arreigados na sociedade patriarcal do ocidente. Ogunyemi sublinha, para que não haja
equívocos, que o que faz dela uma womanista é a consciência da desfavorável condição
racial e sexual da mulher negra (Ogunyemi1985/86, p.63, 69, 1998: 79). Contudo, à
semelhança do feminismo radical, ela admite que o womanism é exclusivista, separatista
a nível racial, enquanto o feminismo o é a nível sexual. Para ela, é necessário que a
mulher negra, por força da sua experiência peculiar enquanto grupo social, se organize
de forma separada. Por esta razão, a acção do movimento womanista em África nunca
se identificou totalmente com os preceitos da womanista americana, Alice Walker. Um
aspecto onde esse afastamento é bem nítido é na obsessão por ter filhos, por parte das
mulheres africanas. Além disto, Walker sublinha que as womanistas amam outras
mulheres, com envolvimento sexual ou não (Walker 1983, p. xi), e que o womanism de
Ogunyemi rejeita o amor lésbico em consequência da intolerância que existe em África
contra o lesbianismo (Ogunyemi 1996,p.133). Para esta estudiosa nigeriana a
dissociação dos propósitos de Walker é natural, pois não se pode tomar à letra o
womanism afro-americano, com as suas peculiaridades, e impô-lo em África, onde há
particularismos próprios da diversidade cultural de um extenso continente. Entre os
aspectos que contribuem para a dissociação de experiências culturais na América e em
África não se podem omitir questões relacionadas com a pobreza extrema em muitos
países africanos, ou diferenças relativas a leis tradicionais africanas, em que mulheres
mais velhas podem oprimir as mais novas, bem como as segundas mulheres do seu
homem, e onde os homens tradicionalmente oprimem as mulheres. Para Ogunyemi10,
este tipo de questões tão próprias da realidade em África só podem ser devidamente
abordadas numa perspectiva womanista africana.

sem estarem suficientemente informadas sobre as situações e problemas das mulheres de diferentes países
ocidentais" (2-3). Este é um problema derivado das ideologias centradas nas mulheres.
10
Posição assumida por Ogunyemi numa entrevista concedida a Susan Arndt para a revista ANA Review
de Outubro - Dezembro de 1998.

94
Por sua vez, a escritora sul-africana Zoë Wicomb critica tanto o conceito
womanista de Walker como o de Ogunyemi. Para Wicomb, Ogunyemi e Walker não
estariam a relacionar adequadamente as questões de raça e género com o contexto
africano. Elas estariam a fazer uma teorização demasiado liberal, o que levaria ao
reforço do poder dos homens, e esta adaptação das estruturas do género ocidental em
África prejudicaria a mulher africana, necessariamente. A crítica de Wicomb aqui
formulada não parece sustentável, já que Walker exclui os homens da possibilidade de
serem womanistas e aponta as mulheres como aquelas que tornarão o mundo melhor
para ambos os géneros. Por sua vez, Ogunyemi refere que pretende vencer as
hierarquias patriarcais existentes e que, para isso, conta com os homens para operar essa
transformação. Seja como for, Wicomb pretende demarcar-se de Walker e Ogunyemi
afirmando que o womanism delas não se adequa ao contexto da África do Sul, pois ele
não interrelaciona as categorias político-sociais de raça e género, aspectos essenciais,
segundo ela, para o devido entendimento do que foi a resistência ao apartheid e do
modo como e por que as mulheres se engajaram nessa luta:
Many women are drawn into the conflict as mothers
defending their homes and their children. This
politicization of women’s domestic role is indeed a
departure from the Euro-feminist view of motherhood as a
condition of passivity and confinement but, whilst
recognising such difference, one can think of no reason
why black patriarchy should not be challenged alongside
the fight against apartheid. (Wicomb 1996, p. 47-48).

Para Wicomb, a politização da mulher africana, com o empenhamento que se


verificou na luta contra a segregação racial na África do Sul, é algo bem distinto da
passividade da mãe euro-feminista. O reconhecimento deste diferente modo de
actuação e os resultados conseguidos por esta participação activa deveriam ser tomados
como via para se destronar o patriarcalismo, ao mesmo tempo que se combatia o
apartheid que então vigorava naquele país.
O posicionamento de Wicomb tem o mérito de insistir na necessidade de uma
teoria que incorpore género, raça e classe social como factores que não podem ser
observados de modo separado, mas sim interligado. E foi no entendimento da
necessidade de uma abordagem mais complexa, que conjugasse a articulação destes
factores, que a afro-americana Clenora Hudson-Weems desenvolveu o conceito de

95
Africana womanism11 “ uma ideologia criada e destinada a todas as mulheres de
ascendência africana” (Hudson-Weems 1993, p.24).
Mais do que a distância que já fora estabelecida entre o feminismo e o
womanism de Walker e Ogunyemi, este womanism africano é frontalmente exclusivista,
separatista. Esta demarcação, sem qualquer compromisso com o feminismo de raiz
europeia, é a marca distintiva e o ponto de partida da teoria de Hudson-Weems. Ela
justifica esta atitude separatista por estar convicta de que o feminismo foi gerado por
mulheres brancas e para responder directamente às suas necessidades próprias. Para ela,
o feminismo, nesse sentido, também é exclusivista. As mulheres negras não foram
aceites nem convidadas a fazerem parte dele:

Feminism was a term created, designed and defined by white women


(…) it was exclusionary. Black women were not accepted; they
were not invited to be part of it; (…) when I think of strong black
women from Africa, from the total Diaspora, I never think of them as
feminist, because I know what feminism means to me, I know that it
means get back” (Hudson-Weems 1995, p. 82).

Para Hudson-Weems esta atitude de distanciamento para com a luta das


mulheres do ocidente europeu justifica-se porque a verdadeira história do feminismo
revelaria um fundo de evidente racismo que, desde logo, estabeleceria uma
incompatibilidade com as mulheres africanas. Assim, o seu posicionamento não só a
diferencia do feminismo, como exclui qualquer possibilidade de conciliação e
solidariedade. Para esta autora, aquilo que é a ideia base do womanism africano e que o
distingue do feminismo são as questões relacionadas com a raça e os preconceitos
ligados à classe social. E, ao indicar estes dois aspectos, como sendo mais importantes
do que as questões do género, ela também se demarca do womanism de Walker e de
Ogunyemi. Por outro lado, num claro contraste com Ogunyemi, Hudson-Weems faz
uma abordagem que não vai além das questões relacionadas com o género, raça e

11
Este modelo aceita no seu meio as mulheres brancas que partilhem as suas ideias. Nas suas palavras, o
womanism africano é uma ideologia, "criada e projectada para todas as mulheres de descendência
africana. Ela é baseada na nossa cultura africana, e desta maneira, centra-se necessariamente nas
experiências únicas, necessidades e desejos das mulheres africanas" (6). Hudson-Weems afirma que este
conceito "não é nem uma consequência natural nem uma adenda à corrente dominante do feminismo" (5).
Na sua crítica contra o feminismo negro, Weems acusa as feministas negras de “difundirem uma agenda
feminista que é oposta à agenda da comunidade africana, que inclui (dezoito) propósitos claros e
específicos" (9).

96
classe, mas é pormenorizada ao enumerar dezoito características12 positivas de
womanism negro, com que advoga a prática desta sua ideologia; uma delas é a
irmandade e o prazer da presença e da companhia masculina, assim como a
espiritualidade, o respeito para com os mais velhos, a maternidade e a educação e o
sustento dos mais novos e mais velhos. Por outras palavras, Hudson-Weems declara
firmemente que o womanism africano é:

Neither an outgrowth nor an addendum to feminism,


Africana Womanism is not black feminism, Africana
Womanism… Africana Womanism is an ideology created
and designed for all women of African culture, and therefore,
it necessarily focuses on the unique experiences, struggles,
needs and desires of African women, …The primary goal of
African women, then is to create their own criteria for
assessing their realities both in through and in action (Weems
1993, p25 & 30).

A juntar à expressão que surge nas definições dos feminismos africanos que
postulam a auto-afirmação (self-namer, self-definer, strong, whole, authentic),
sobressaem outras que se referem à busca de um esforço consertado com os homens (a
flexible role-player, male compatible, adaptable). Mas ao mesmo tempo que proclama a
necessidade desta cooperação entre homens e mulheres, Hudson-Weems também
acentua a sua diferença de posicionamento relativamente a Walker, já que, ao contrário
de Walker, Weems não aceita nenhum compromisso com os pressupostos do feminismo
ocidental.
Seguindo esta linha de pensamento, Gladys Laoye 13 (1992:4) declara que " as
mulheres negras buscam uma experiência significativa diferente daquela das mulheres

12
Estas dezoito características são explicitamente as seguintes: i) terminologia própria, ii), auto-definição,
iii), a centralidade da família, iv), uma genuína irmandade no feminino, v), fortaleza, vi), colaboração
com os homens na luta de emancipação, vii), unidade, viii), autenticidade, ix), flexibilidade de papéis, x),
respeito, xi), reconhecimento pelo outro, xii) espiritualidade, xiii) compatibilidade com o homem, xiv)
respeito pelos mais velhos, xv), adaptabilidade, xvi) ambição, xvii) maternidade, xviii), sustento dos
filhos.
13
. É importante mencionar ainda aqui a opinião da crítica literária Mary. E. Modupe Kolawole (1997:15-
19, 34-35) que também defende que é necessário conceber-se uma alternativa ao feminismo, que defenda
os interesses das mulheres negras contra o imperialismo cultural das feministas ocidentais, centradas na
questão do género. Para ela, a necessidade de uma designação autónoma para essa ideologia alternativa é
absolutamente decisiva. Contudo, ela virá a usar, um pouco aleatoriamente, tanto a designação de
womanism de Walker, como Africana womanism, de Hudson-Weems ou ainda African womanism em
sentido lato e abrangente, mas de um modo mais impreciso do que as duas outras ideologias precedentes.
De facto, para Kolawole (1997: 67) womanism é a acção que qualquer mulher consciente da sua luta
emergente trava no seio das realidades culturais africanas, visando uma auto-recuperação empenhada da
mulher africana, mediante um lato movimento de engajamento solidário das mulheres negras (67-68).
Outro aspecto conflituante do womanism de Kolawole é o facto de ela, na sua proposição para acções

97
brancas ". Dado que assim é, esta dificuldade de significar diferenças depara-se a
qualquer ideologia, logo que esta pretenda propagar e definir as suas experiências. Não
é de admirar que Gloria Anzaldua (1981) acautele as escritoras de cor para se absterem
de assimilar as ideologias euro-feministas, que podem ser aliciantes, mas que não têm
dado visibilidade à mulher negra.

For the third world woman, who has, at best, one foot in
feminist literary world, the temptation is great to adopt the
current feeling -fads and theory – fads, the latest half truths in
political thought, the half digested new age psychological
axioms that are preached by the white feminist
establishment…it takes tremendous energy and courage not
to acquiesce, not to capitulate to a definition that still renders
most of us invisible (Anzaldua 1981, p.167).

Após a análise das posições destas defensoras de um movimento autónomo para


reabilitação da condição da mulher africana, podemos concluir que todas elas confluem
na preocupação de se demarcarem do feminismo ocidental e de definirem um conceito
novo, que esteja mais ajustado às realidades das tradições e dos valores da vivência da
mulher em África. A alternativa ao conceito de feminismo euro-americano deve ser
expressamente identificada por uma designação nova, que corporize o modo diferente
como as mulheres africanas se relacionam com a questão do género. Em resposta à
resignação e ao desajustamento que vêem no feminismo ocidental e a um discutível
universalismo dos seus postulados, os womanisms africanos são tendencialmente ou até
claramente anti-feministas, mesmo porque há em África um entendimento pouco aberto
ou relutante para com intenções que se receiam ser imperialistas ou de imposição
pós/neo-colonial14.
Para além desta posição anti-feminista genericamente comum e assim
fundamentada, estes movimentos, visando a maior autonomia e afirmação da mulher
em África, diferem em alguns outros aspectos ligados ao modo como propõem
conseguir esse almejado resgate de uma condição de tendencial subalternidade (Spivak:

práticas, excluir os homens de uma participação neste seu projectado movimento de recuperação da
condição das mulheres, ao mesmo tempo que os inclui no seu postulado teórico, onde apela à
solidariedade de todos os despojados, e onde explicitamente refere também os homens. Tendo em conta
algumas imprecisões ou incongruências que anteriormente foram detectadas na definição de Africana
Womanism de Kolawole, devemos sublinhar que a sua teorização do que deveria ser este movimento de
afirmação das mulheres é a mais abrangente, mas também a mais vaga ou imprecisa, quando comparada
com o que é defendido por Ogunyemi, embora Kolawole tenha superado as restrições de raça e classe
inscritas nas abordagens de Walker e Hudson-Weems.
14
nota sobre pós-colonialismo literário aqui ou no passo anterior.

98
1988, p.271-313) da mulher relativamente ao homem. Essas nuances de
posicionamento são nítidas, por exemplo, quando comparamos a maior ou menor
veemência com que estas autoras africanas ou afro-americanas se demarcam do
feminismo ocidental. Neste cômputo, a nigeriana Molara Ogundipe-Leslie adopta uma
atitude mais conciliadora ou liberal, enquanto que a afro-americana Hudsson-Weems é
mais intransigente e radical ou exclusivista. Contudo, a divergência de posições entre
estas womanistas africanas torna-se ainda mais nítida quando se aborda a questão de
definir se todas as mulheres negras ou apenas as mulheres africanas podem ser parte
destes movimentos de reabilitação da condição social da mulher. A questão do género
também é por elas abordada considerando a diversidade das situações e dos povos em
África, devendo estas situações serem contextualizadas, de acordo com as relações de
poder existentes nas sociedades africanas de pendor patriarcal, ou até com redutos de
poder matriarcal que não existem no Ocidente.
Também é importante assinalarem-se as diferenças de atitude que estas
estudiosas das culturas africanas manifestam e protagonizam relativamente ao amor
lésbico e à relação que mantêm com os homens, enquanto grupo de confronto ou parte
mais ou menos aliada ou alheada da sua luta que busca, essencialmente, uma força
solidária (no feminismo). No que toca à necessária conjugação de esforços, o conceito
de womanism de Walker é o único que não solicita explicitamente a cooperação dos
homens. Por esta razão o seu conceito apresenta-se como mais radical na comparação
com os outros que aqui foram considerados. Por outro lado, é importante referir que
estes conceitos e o alcance por eles proposto ainda não está muito difundido em África.
Na verdade, o designado Africana Womanism da afro-americana Hudsson-Weems
ainda não teve grande penetração em África. E o womanism de Kolawole bem como o
stiwanism de Molara Ogundipe-Leslie, ambas nigerianas, é pouco conhecido no seu
próprio país, onde a população se debate com problemas de sobrevivência diária bem
mais prementes. A versão africana de womanism, da também nigeriana Ogunyemi, é
outro exemplo de um conceito que não conseguiu radicar-se com grande espectro em
África, ou em qualquer outro lugar, onde as mulheres lutam pela afirmação dos seus
direitos. Curiosamente o conceito de womanism mais presente em África é o de Alice
Walker que, contudo, não gera consenso e não permite assim que se encontre um
referencial terminológico e de conteúdo que seja alternativo ao feminismo ocidental e
às suas imposições eurocêntricas.

99
Como foi por nós referido num passo recente da nossa argumentação, a antipatia
para com o feminismo ocidental, por parte das autoras e críticas literárias africanas -
empenhadas na oposição à opressão decorrente da hierarquia imposta pelo género
patriarcal - tem mais a ver com uma intenção, até certo ponto compreensível, de
rejeitarem um alegado imperialismo cultural do Ocidente, do que com um desacordo
frontal para com o que é proposto pelo feminismo eurocêntrico em sentido lato. E, se é
verdade que uma certa estreiteza de horizontes por parte das feministas brancas merece
crítica, também não se pode concluir que há uma única visão feminista do mundo e que
essa é a eurocêntrica, tendencialmente exclusivista, e, nesse sentido, segregadora ou
racista, culturalmente sobranceira e imperialista. Tomadas de posição em prol da
melhoria da condição da mulher têm surgido um pouco por todo o mundo e, mesmo no
seio de uma mesma cultura, é possível existirem variantes no modo como mulheres e
também homens pugnam pela abolição das desigualdades vigentes nas sociedades
patriarcais. Por isso não parece útil responder-se à ignorância ou restrição de horizontes
de muitas feministas ocidentais, cunhando-se um novo termo e fundando-se um
movimento completamente dissociado da luta mais geral das mulheres, à escala global.
Mais do que a preocupação com uma designação terminológica diferenciada, o que é
verdadeiramente importante é que as mulheres africanas não se auto-excluam e
participem na definição do que é o feminismo, das acções que ele deve propor, e
promover, sem perder de vista que a luta das mulheres contra a opressão é um
engajamento à escala global. A posição assumida pela historiadora afro-americana
Cherye Johnson-Odim é bem representativa da atitude de quantos se batem por uma
unidade de esforços de todas as mulheres, que evite dissensões num movimento global
que ainda está numa fase de consolidação, sobretudo a nível internacional.
I am more concerned with the participation of the Third
World women in defining feminism and setting its agenda
than with changing the terminology […] Since ‘modern-
day’ feminism is still in a process of incarnation, especially
at the international level, I question whether the coining of
a new term simply retreats from the debate, running the risk
of losing sight of the fair amount of universality in
women’s oppression (Cheryl: 1991:316)15

15
Citando o estudioso nigeriano Ezeigbo Adimora, Akachi, Josephy e Yakubu na obra que conjuntamente
produziram, Problems of Women Writers sublinharam a este respeito, o facto de as disputas e cunhagem
de terminologias, tais como feminismo ou womanism, serem para ele, irrelevantes. O que Ezeigbo
considerava importante era o modo como as pessoas demonstravam a sua crença na possibilidade de
mudança da condição das mulheres e como elas se ajudavam umas às outras, assegurando deste modo a
sua emancipação.

100
Uma vez que em diferentes culturas há, necessariamente, diversidade de
posições, admitimos que o que seria útil era que os feminismos de todo o mundo
desenvolvessem mais uma espécie de diálogo interno e estabelecessem um espaço
comum onde se ouvisse também o pulsar próprio da cada cultura das mulheres negras,
em África ou na diáspora.
Tal diálogo levaria a um melhor entendimento do que é o feminismo, tanto por
parte de todas as feministas, como das não feministas, e ao reconhecimento de que as
questões impostas pelo género patriarcal eurocêntrico não são integralmente
transferíveis ou aceites em todas as culturas. O melhor entendimento do que é o
feminismo à escala global levaria a uma orientação de atitudes mais solidária, em que a
mulher ocidental também tomaria parte activa. Só assim o feminismo conseguiria
afirmar-se tendo como resultado último o estabelecimento da igualdade social do
género masculino e feminino, com o fim da opressão decorrente da hierarquia
patriarcal, a nível mundial.
Ao referirmos esta aspiração a um feminismo universalmente solidário,
devemos considerar então que o feminismo africano, atendendo à sua perspectiva de
particular autonomização e à sua ainda pequena implantação é, sobretudo, um modelo
teórico. E, a par de um grande variedade étnica, cultural, social, económica, política e
religiosa, verifica-se que na imensidão do continente africano coexistem numerosas
variedades de feminismo africano. Esta heterogeneidade de povos e culturas faz com
que o núcleo de valores que é comum aos feminismos africanos não seja
suficientemente lato para poder ser globalmente aglutinado por uma só terminologia ou
por um conjunto único e consensual de propósitos. As nuances de posições dos
feminismos africanos, decorrentes de vivências particulares que se detectam num
grande espaço territorial e humano, acabam por motivar assim a existência de
terminologias específicas, numa tentativa para se definir experiências particulares no
seio de diferentes povos ou etnias que fazem parte de um mesmo país, com fronteiras
que os europeus arbitrariamente criaram. Incluem-se neste contexto o conceito de
womanism africana de nigeriana Ogunyemi ou o termo stiwanism da sua compatriota
Ogundipe-Leslie, que embora sendo cidadãs do mesmo país, propõem particularidades
essenciais para identificação dos seus feminismos.
Esta linha de argumentação serve para sublinhar que é consensual dizermos que
o feminismo é uma visão do mundo, uma atitude comum de homens e mulheres que, na

101
sua condição de pessoas individuais ou organizadas em grupos, se opõem activamente
às estruturas sociais decorrentes da ordem patriarcal responsável pela opressão das
mulheres, baseada na discriminação imposta a um dos dois géneros biológicos,
masculino e feminino. Assim, as feministas de todo o mundo têm consciência de quais
são os mecanismos que levam à subalternidade das mulheres e visam pôr fim a essa
situação de desigualdade, mediante mudanças que, globalmente, propõem o fim da
discriminação social das mulheres. Reconhecem que os papéis atribuídos aos membros
da família tradicional levam à situação de opressão ou desvantagem da mulher na
esfera familiar e política e concordam em fazer cessar esta situação de injustiça social,
lutando pela correcção do persistente conceito patriarcal do que é ser-se homem ou
mulher. Uma definição muito básica de feminismo e seus propósitos, como esta já está
bastante divulgada e aceite no Ocidente. Contudo, isso não acontece em África onde
não há ainda uma consciencialização tão ampla de como se exerce a discriminação
oficial pública ou familiar e privada, baseada nos ditames da organização patriarcal. Em
África, as concepções de género predominante e suas hierarquias também não são tão
fixas como no Ocidente. E, assim, a par de preocupações universais como a crítica à
marginalização das mulheres, cuja tomada de consciência é mais viva na sociedade
ocidental, há de facto um conjunto de preocupações que são específicas dos feminismos
em África, por exemplo, na esfera pública, a busca de igualdade em termos de acesso
ao dinheiro ou na avaliação de pedidos de crédito. No seio da organização familiar, os
feminismos africanos também sublinham preocupações específicas ligadas à
desigualdade de género, patentes em tradições como a aceitação da poligamia, a
excisão, os casamentos impostos pelos pais às filhas ainda menores, o preço para
compra de noivas, o levirato (obrigação de casar com a viúva de um irmão) e outras
práticas que fazem parte de uma herança misógina prevalecente.
E a maternidade em África, se é valorizada, não é suficientemente defendida.
Quanto a esta questão, as feministas africanas insistem, tal como as ocidentais, no facto
de que as mulheres deviam ser capazes de se afirmar para além da sua condição de
esposa e mãe. Outro aspecto em que há concordância de objectivos é na necessidade de
se tornar mais fácil a vida diária e o peso das tarefas acometidas à mulher. Por outro
lado, uma preocupação que é particular e central ao feminismo africano é a atitude
crítica que este tem para com a violência que em África é exercida de mulher para
mulher, sobretudo a discriminação ou afrontamento exercido pela mãe do filho para
com a sua nora.

102
Tudo isto nos leva a considerar que, se procurarmos uma característica comum
aos feminismos africanos, ela se encontra, unicamente, nas manifestações de oposição à
opressão patriarcal. A este traço comum do feminismo africano podem associar-se
depois certas características opcionais relacionadas com o facto de em África, em
muitos aspectos, as mulheres e também os homens sofrerem sob o jugo de uma
ordenação sexista patriarcal e serem, além disso, vítimas de racismo, neo-colonialismo,
imperialismo cultural, fundamentalismo religioso e de mecanismos de opressão
socioeconómica regidos por sistemas de governação corrupta e ditatorial. Isto faz com
que a crítica feita pelas feministas africanas às estruturas patriarcais seja diferente da
que é desenvolvida pelas feministas eurocêntricas, já que em África existem
segregacionismos adicionais a serem ali combatidos e abolidos. Por outro lado, as
feministas africanas tendem a dar ênfase às instituições tradicionais que favorecem a
mulher ou àquelas tradições que mais discriminam a mulher e que por isso impõem
como necessidade mais urgente a sua abolição mais imediata.
Mas também não há consenso entre as feministas africanas quanto ao que é
prioritário fazer-se em termos de estratégia a adoptar para um fim comum que é,
reconhecidamente, o desagrilhoamento da mulher em África. E assim, enquanto
algumas feministas africanas rejeitam frontalmente a poligamia e consideram que essa
é a instituição patriarcal mais perniciosa, outras consideram que a alteração mais
premente seria uma mais equilibrada divisão do trabalho que tornasse menos penosa a
vida diária da mulher. Estes dois diferentes posicionamentos servem para mostrar que
muitas feministas africanas ainda não conseguem distanciar-se das implicações de
alguns aspectos da tradição que continuam a ter grande aceitação social, preferindo
centrar os seus esforços na abolição de aspectos que lhes pareçam mais rapidamente
alcançáveis e com benefícios possivelmente mais imediatos, a favor das mulheres. Será
consensual dizermos, no entanto, que a maioria das feministas africanas critica a
opressão e a discriminação da mulher, como consequência directa da violação
veiculada pelas normas da tradição. E há ainda certos aspectos da tradição que as
feministas africanas preferem omitir ou não comentar pois, por exemplo, um ataque à
tradicional autoridade do conselho dos homens mais velhos desencadearia uma
insuperável oposição na comunidade. A par de um procedimento relativamente
cauteloso, as feministas africanas também sentem necessidade de se posicionarem de
modo diferenciado perante as influências vindas do Ocidente e que exercem forte acção
descaracterizadora no presente curso de modernização das sociedades africanas. Por

103
isso, enquanto muitas delas criticam os aspectos de modernização das sociedades que
alteraram a hierarquia social anteriormente vigente e trouxeram desvantagens para a
mulher, outras sublinham os efeitos de modernização que vieram a ser vantajosos para
as mulheres16. Uma posição crítica que também é assumida de modo comum pelas
feministas africanas é dirigida às próprias mulheres e também aos homens por não
mostrarem vontade nem serem capazes de acompanhar as transformações do mundo
moderno, facto que tem penalizado sobretudo às mulheres17.
Numa outra perspectiva, verifica-se que também é habitual as feministas
africanas combinarem a crítica que fazem às consequências nefastas do patriarcalismo,
com a denúncia de outros mecanismos latentes na estrutura social, política, económica
ou cultural, que concorrem para uma situação de desfavor das mulheres. E,
considerando que, em África, tanto homens como mulheres se batem contra as mesmas
formas de opressão social, as feministas africanas advogam com frequência que todos
se deviam aliar na luta contra à opressão decorrente da estrutura social patriarcal que
afecta tanto as mulheres como os homens. Ao fazerem este apelo à solidariedade dos
homens para com a luta das mulheres, as feministas africanas sensibilizam-nos para a
discriminação de que as mulheres são vítimas em consequência da ordem patriarcal
prevalecente e, ao mesmo tempo, fazem com que homens tomem consciência de que o
seu comportamento individual se conforma, habitualmente, com a situação de
desigualdade social em que vivem as mulheres em África. Adimora-Ezeigbo (1995:12)
refere-se a esta desejada solidariedade de sexos como uma complementaridade
necessária. Para ela, a confrontação que existe no Ocidente entre feministas e homens
não deve ser transferida para África, pois, além de esta confrontação ser parte de uma
outra realidade, ela também não seria a solução para os problemas da mulher africana.
Pelo contrário, a solidariedade em complementaridade será benéfica para todos,

16
Para um conhecimento mais alargado sobre os efeitos negativos da modernização social e do
colonialismo, sobre a situação das mulheres em África, veja-se Bamisile (2007) Inocência Mata (2007),
Ogundipe-Lesilie, Molara, “ African Women, Culture and Another Development” em Re-creating
Ourselves. African Women and Critical Transformations, Trenton, NJ; Africa World Press, 1994, 29-31,
Ezeigbo, Theodora Akachi, “Tradition and the African Female Writer: The Example of Buch Emecheta”,
in Marie Umeh, (ed), Emerging Perspectives on Buchi Emecheta, Trenton, Asmara, Africa World Press,
1996, 15-18. Ezeigbo, Theodora Akachi, “Women and Politics in Nigeria” in Id., Gender Issues in
Nigeria, A Feminine Perspective, Lagos, Vista Books, 1996, 68-70.
17
Para estudo mais aprofundado do modo como o feminismo africano tem vindo a fazer uma abordagem
diferenciada no tratamento da tradição, do modernismo e da modernidade, veja-se a comunicação
apresentada por Arndt, Susan no dia 9 de Junho de 19997, intitulada “Frauenräume:
Transformationsprozesse und Geschlechterverhältnisse. Tradition, Modernisierung und Moderne aus
dem Blickwinkel des afrikanischen Feminismus” na universidade Humboldt em Berlim, no decurso de
um colóquio sobre Modernismo em África.

104
homens e mulheres. Esta ideia de complementaridade solidária tem afinidade com o
que Gloria Chukukere (1998, p.138) designa por comunidade em luta irmanada com as
feministas africanas, na afirmação que estas fazem de que os homens não são apenas
beneficiários, mas também co-autores da opressão das mulheres (Ibid:138-139). Nesta
ordem de ideias, eles são também e, antes de mais, produto da socialização patriarcal
dominante. As feministas africanas contam com o contributo dos homens e consideram
que ele será determinante, quando eles forem capazes de se libertar do próprio
comportamento discriminatório activo, ou por omissão, que mantêm para com as
mulheres. Só os homens que se alhearem deste esforço de emancipação das mulheres
ou até se opuserem a ele é que devem ser considerados inimigos e como tal combatidos.
A análise de textos que vamos realizar procurará enfatizar procedimentos
relativamente diferenciados ou alternativos das feministas africanas no seu
empenhamento para a superação da discriminação de que as mulheres são vítimas nas
sociedades patriarcais. E, neste âmbito, interessa-nos sublinhar que, em África, esta
busca de estratégias próprias passa por uma solidariedade que é uma espécie de
irmandade de todas as mulheres e também pelo reconhecimento de que a independência
económica e social que as mulheres venham a obter, será um factor decisivo para a sua
emancipação e obtenção de paridade social relativamente aos homens.
Esta discussão acerca das alternativas africanas ao feminismo eurocêntrico é
ainda, principalmente, um discurso essencialmente teórico de estudiosos e intelectuais
africanos, que discutem até que ponto as questões decorrentes das imposições do
género patriarcal são transferíveis para África. Mas depois, já em contexto africano,
estes intelectuais interrogam-se sobre a aceitação que estas questões têm em culturas
urbanas ou no meio rural, onde, particularmente, subsiste uma solidariedade no
feminino ou até uma ordem hierárquica diferente em alguns aspectos, com direitos
decorrentes de tradicionais estruturas matriarcais. Para estas populações rurais, com
uma organização social ainda ancorada numa secular tessitura de solidariedade das
mulheres, que sentido farão os conceitos defendidos pelo womanism ou pelo stiwanism,
das feministas africanas urbanas?
Por outro lado, interessará, interrogarmo-nos ainda quanto às implicações que
estes movimentos terão no desenvolvimento da literatura feminista africana. Até que
ponto é que mesmo aqui, na exercitação de um nível mais elevado de preocupações
intelectuais e sociais, tais conceitos alternativos de feminismos são instrumentos
adequados para a análise e descrição do contributo de pendor feminista nas literaturas

105
africanas e africanas na diáspora? Estas interrogações têm a ver sobretudo com o facto
de estes conceitos alternativos, propostos pelas feministas africanas, serem muito
estritos e a sua falta de elasticidade não permitir que eles tenham uma abrangência que
possa contemplar a heterogeneidade das culturas africanas.
Por tudo isso, devemos partir do princípio que será mais apropriado falarmos de
literatura africana feminista em sentido amplo, tal como falamos de feminismo africano
em termos gerais, sem a restrição implícita de conceitos alternativos tão específicos de
uma determinada região ou país, como womanism ou stiwanism sem grande expressão
na extensão geográfica e humana de um continente com as dimensões de África. No
entanto, o processo de descrição e definição das motivações feministas em África terá
um curso que se espera crescente e gradualmente mais participado ou abrangente. Este
processo de afirmação e as formas literárias em que estes movimentos de emancipação
da mulher se reflectirão ainda estão a dar os primeiros passos, facto que, no entanto,
esta tese saúda e encoraja, desde logo, pelo facto de o estudo aqui realizado ser a
mostra de um interesse aqui confessado e exposto, que anseia por maior divulgação.

v. Complexidades, diversidades e afinidades feministas com e em África

Como já referimos ao longo deste capítulo, existem diversos posicionamentos


quanto ao que é o feminismo e esse facto, só por si, suscita uma interrogação crucial e
que é esta: pode ser-se feminista de uma forma diferenciada e isolada? As
reivindicações de cunho feminista, em África, questionam a teoria da dicotomia de
géneros, que é um traço essencial do feminismo ocidental. O feminismo em África
procura afirmar-se em termos de um compromisso próprio, consigo mesmo, com a sua
particular circunstância. Isso leva a que em África, mais do que discursos inflamados
sobre as desigualdades existentes na sociedade patriarcal, o importante para que a
mulher africana, seja ou pense como feminista, é que o seu comportamento equivalha a
agir como tal, no seu dia-a-dia. Isto porque não há um posicionamento geral discursivo
que imediatamente enquadre ou uniformize o modo de ser feminista em África.
Efectivamente, o espírito feminista que existe e toma forma no continente
africano é tão complexo e difuso que é difícil apreendê-lo e caracterizá-lo distintamente.
Isto acontece, porque a maioria das mulheres africanas, de facto, não se preocupa em
formular, discursivamente, o seu feminismo, elas são feministas no seu procedimento
natural, sem que a sua atitude social se revista de propósitos de intenção

106
deliberadamente assumidos. É o dinamismo da acção social que leva as mulheres
africanas a compromissos de comportamento de grande efervescência, em defesa de
direitos que lhes são próprios. Mas, como esses comportamentos, em África, não estão
moldados por um conjunto de princípios unificadores, não é possível falar-se ali, com
rigor, de parâmetros feministas orientadores. E, como não há um edifício organizativo
das ideias defendidas pelas feministas africanas, também é difícil fazer-se a
desconstrução de um engajamento que é complexo e diversificado. Por tudo isto, o
feminismo africano não deve ser encarado como algo monolítico, mas antes como algo
plural que captura e vive da fluidez e dinamismo de diferentes imperativos culturais,
impulsos históricos e realidades locais que condicionam o activismo e os movimentos
das mulheres pelos seus direitos, em África. Entre esses factores condicionantes
distinguem-se as variantes das organizações sociais indígenas e as configurações
próprias da era pós-colonial que continuam a ser apoiadas pelos estados e regimes de
governação africanos.
Deste modo, será sempre aconselhável falar-se de feminismos e não de
feminismo, atendendo à heterogeneidade do pensamento feminista em África, que
comporta formulações e estratégias, umas vezes complementares e partidárias de
princípios comuns, outras vezes divergentes e até oponentes. Contudo, apesar das
diferenças e conflitos existentes entre os feminismos africanos e afro-americanos de
Alice Walker dos E.U.A, de Chikwenye Ogunyemi, de Clenora Hudsson-Weems dos
E.U.A., de Molara Ogundipe-Leslie da Nigéria e ainda o motherism de Catherine
Acholonu da Nigéria, existem ainda assim, assinaláveis traços de identificação entre
eles, crenças partilhadas, que lhes dão sustentação comum. E é só, no reconhecimento
de certos traços de afinidade e por razões de conveniência terminológica que é
admissível usar-se, no singular, a expressão feminismo africano. Além disto, só por
razões de conveniência discursiva é que feminismo é palavra usada para significar o
espírito pouco definível do engajamento das mulheres em África, continente onde,
literalmente se falam milhares de línguas, com sentidos que a língua inglesa
dificilmente terá a veleidade / variedade de querer representar.
O argumento acerca do pluralismo do feminismo africano é igualmente aplicável
ao feminismo ocidental, embora existam alguns traços comuns nos feminismos
ocidentais, contra os quais se rebelam os feminismos africanos. E, uma vez que os
feminismos ocidentais e africanos são distintos, eles não devem ser definidos na
assunção dos mesmos pressupostos. Por isso, uma grande falha do feminismo, como

107
termo geral, tem sido a de tentar domar e nomear o espírito feminista em África, com
base em pressupostos ocidentais, em vez de permitir que o feminismo africano se defina
nos seus próprios termos. O feminismo africano, propondo uma contextualização
própria, defende que, por exclusão de partes, ele é aquilo que o feminismo ocidental não
é. Por outras palavras, o feminismo africano estabelecerá a sua identidade através da
resistência à descaracterização – ele existe, porque resiste. Mas é importante saber, de
modo claro, contra o que é que esta resistência identificadora existe e se afirma. Antes
de mais, esta resistência revela-se contra os feminismos radicais – o feminismo africano
não se identifica com feminismo radical. Além disto, essa resistência identificadora
insurge-se contra a estridência do feminismo radical que se desenvolve a propósito da
maternidade – o feminismo africano não desvaloriza a condição materna, nem ataca as
políticas ligadas à maternidade, considerando-as não-feministas. De notar também que a
linguagem da militância feminista em África (suas formas de colaboração e
entendimento) se opõe à linguagem da formação escolar feminista ocidental e do seu
engajamento (desafio, protesto, ruptura, desmembramento, etc) – o feminismo africano
desafia pela negociação e pelo compromisso. Finalmente, o feminismo africano define-
se pela resistência que oferece à excessiva, inflexível ênfase dada à sexualidade pelo
feminismo ocidental. No feminismo ocidental, a sexualidade humana é um factor
omnipresente, que condiciona, por exemplo, a natureza e o modo como o feminismo
ocidental se insurge contra a circuncisão em África e no mundo árabe, não tendo em
conta os valores de culturas diferentes da sua.
Entre o feminismo ocidental e o africano há, pois, uma diferença de
preocupações e de perspectivas. Exemplo paradigmático disso é a importância dada à
sexualidade no feminismo ocidental, a qual não tem idêntica relevância no contexto das
preocupações feministas africanas. Este tipo de constatações permite-nos dizer que a
diferença entre o feminismo africano e ocidental é, sobretudo, uma questão de gradação
ou de prioridades. Enquanto o discurso feminista do ocidente trata abundantemente das
relações de classe, raça e orientação sexual, por exemplo, estes aspectos não merecem a
mesma atenção por parte das mulheres africanas, visto que elas têm de se haver com
aspectos mais básicos da sobrevivência diária. Isto não quer dizer que as questões de
raça e classe não sejam importantes para as mulheres africanas e que elas não
experimentem também os conflitos decorrentes destas questões. O que acontece é que,
antes de mais, elas têm de fazer face àqueles aspectos mais imediatos da vida do dia-a-
dia, a busca de lenha, de água potável e alimentos para ela e para os seus. Por isso, o

108
aparecimento em África de mulheres vindas do ocidente para pregarem ali as
concepções feministas ligadas a questões como raça e condição de classe, só pode ser
tido como futilidade feminista. A abordagem feminista em África, com este tipo de
preocupações, só terá cabimento, quando as mulheres em África entenderem que a falta
de alimentos e de água potável, que tanto as afecta, tem a ver com o facto de elas serem
uma categoria humana particular.
Uma outra diferença entre o feminismo ocidental e o africano é a resistência que
este último opõe à exclusão dos homens das questões das mulheres; ao contrário do que
acontece no ocidente, em África, os homens são convidados a serem parceiros na
resolução dos problemas que afectam as mulheres, através do seu contributo para as
necessárias mudanças sociais, com vista a esse fim.
Um último e importante aspecto, definidor do feminismo africano, é a
resistência que este oferece à universalização das noções e conceitos provindos do
ocidente. A este propósito, é oportuno referirmos duas ocorrências acontecidas em
África. A que vamos referir primeiro é a que ficou conhecida como a Guerra das
Mulheres Igbo, de 1929. As duas diferentes interpretações desta ocorrência são
elucidativas quanto a pressupostos que se assomam em oposição, na caracterização dos
factos então vividos. Alguns académicos feministas, para quem os direitos humanos são
parte da agenda feminista, pretendem que a Guerra das Mulheres Igbo foi uma
sublevação não feminista porque, para eles, o que gerou essa guerra não foi a exigência
da igualdade de géneros, mas sim outras considerações de ordem económica. Seja como
for, é importante lembrarmos como essa guerra começou, para se acentuar a falta de
atenção que o ocidente tem para com as diferenças culturais de outros espaços
geográficos. O agente da autoridade colonial que se dirigiu à mulher que começou esta
sublevação, quis saber quantas pessoas e quantas cabeças de gado existiam em sua casa
e no seu cercado. Indignada com tal pergunta, ela ripostou-lhe aos gritos, que fosse ele
contar a sua gente e, a partir daqui, desenvolveu-se a história conhecida desta
ocorrência. Uma pergunta como esta, num meio, onde contar pessoas é tabu, foi sentida
por aquelas mulheres africanas como uma clara afronta e mesmo uma violação dos
direitos humanos. E o facto de este tipo de questionamentos não ser culturalmente
inaceitável para aquilo que são as noções de violação dos direitos humanos no ocidente,
não significa que a pergunta tenha sido menos ofensiva para com aquelas mulheres, em
África. Por isso, desta ocorrência, devemos inferir o seguinte: esta guerra apresenta-nos
elementos de resistência próprios do que pode ser entendido como violação dos direitos

109
humanos, derivando desta ocorrência uma clara afirmação de nacionalismo cultural por
parte de quem fez esta guerra. A Guerra das Mulheres Igbo, assim interpretada, mostra-
nos que é necessário repensarmos os contornos e as designações do que são direitos
humanos, em geral, como também nos propõe um debate renovado sobre o que é ser ou
não feminista.
A universalização de noções ocidentais, por exemplo, o entendimento do que é
assédio sexual, também seria problemático em culturas como as africanas, onde o toque
físico entre pessoas é mais admissível e natural. O que pode ser tido por assédio sexual
num escritório de Nova Iorque, Londres ou Lisboa, não será tido como tal nos campos
agrícolas de uma aldeia em África. O modo como nós, africanos, pegamos, acariciamos,
nos abraçamos aos nossos filhos, pode ser visto como “impróprio”, por olhos
ocidentais.
Todas estas formas de diferenciações e resistências contribuem para a definição
e explicitação do que é a especificidade inerente ao feminismo africano. Contudo, o que
é ainda mais importante, será percebermos estas especificidades na vivência da sua
contextualização própria. O entendimento pleno do que é o fenómeno chamado
feminismo africano não radica no feminismo ocidental, mas na vivência africana de
onde ele se gera e emana. Por outro lado, o feminismo africano não é reactivo, é
proactivo. Tem vida própria por estar enraizado na mundividência africana. O seu
particularismo único emana, necessariamente, da especificidade cultural da sua própria
proveniência. A valorização que o feminismo africano faz da maternidade e do respeito
dado à condição de mãe, não deve ser atacada pelo feminismo radical do ocidente, o
qual desvaloriza a maternidade e as políticas que a favorecem. Pelo contrário, o valor e
o papel da mãe deveriam ser investigados e aprofundados, pela importância que isso
tem no contexto da vivência africana. Esta mesma argumentação é valida para a questão
da linguagem. A linguagem do feminismo africano é menos uma resposta ajustada à
linguagem do feminismo ocidental e, muito mais, uma manifestação das características
próprias (equilíbrio, contenção, reciprocidade e compromisso, etc.) da visão do mundo
africano.

110
TERCEIRA PARTE

O CONTEXTO SOCIAL DA
ESCRITA FEMININA EM
ÁFRICA E NA DIÁSPORA

111
O CONTEXTO SOCIAL DA ESCRITA FEMININA EM ÁFRICA E NA
DIÁSPORA.

Woman is the instrument of the Devil. In most of her states


she is stupid. But Satan lends her his head when she acts
under his order. Tolstoy, Memoir, 2 August 1898.

Sometimes when you look at her, you feel as though you are
in the company of a playful child opening its innocent eyes
with all the simplicity, astonishment and naïveté of
spontaneous nature, without artifice or deceit. Then, after a
while, you look at her again, maybe on the same day, only to
find yourself faced by an old and cunning creature who has
exhausted her life in daily practice of conspiracy hatched
against other women and men. She laughs and presents to
you a face that is meant for nothing else but passion. Then
she laughs once more – maybe just a few moments later –
and you are in the presence of a mind imbued with humour,
and intellAigence sharp with sarcasm, a mind which is that of
philosophers, and wits which belong only to those who have
the experience of a long embattled life. Abbas Mahmoud El
Akkad, Sarah, p.115, quoted in Nawal El Saadawi 1980.

Neste capítulo iremos debruçar-nos sobre a relação entre escritoras negras de


África e a sociedade em que elas se inserem. A nossa expectativa, é acima de tudo,
focalizar a nossa atenção nas cinco escritoras em estudo, Paulina Chiziane , Mariama
Bâ, Buchi Emecheta, Alice Walker e Carolina Maria de Jesus-, três africanas, uma afro-
americana e uma afro-brasileira.
O objectivo principal deste capítulo será o de se examinar o contexto
sociocultural e político da condição de mulher e da luta feminina, em que estas cinco
escritoras negras se encontram implicadas, e como, a partir daí, elas produziram as suas
obras literárias. Cremos que esta é relevante considerar-se devidamente a natureza das
sociedades em que as suas personagens e as suas ideias se manifestam, e o seu
quotidiano complexo se desenrola.
Com este pressuposto, apresentaremos este capítulo num desenvolvimento
feito de três secções interligadas. Na primeira, a nossa atenção será focalizada na atitude
das sociedades africanas para com as mulheres. Na segunda parte, examinaremos a
atitude da sociedade brasileira e norte americana para com as mulheres, e finalmente
observaremos a atitude que se detecta para com as mulheres, no conjunto dos seis
romances em estudo, com referência ao contexto social em que elas surgem,
nomeadamente a sociedade patriarcal. Podemos dizer que esta nossa abordagem

112
representa um movimento que se desenvolve numa análise que parte do geral para o
particular. Este capítulo vai procurar clarificar a condição das mulheres em África e em
outros continentes, as semelhanças que existem nas suas respectivas sociedades, bem
como fazer a comparação entre as diferenças que fazem de cada sociedade uma entidade
única independente, possuidora de direitos e obrigações próprias. Com este propósito,
vamos começar por visionar o lugar da mulher na sociedade africana.

i. Mulher na sociedade africana.


Na maior parte das sociedades africanas tradicionais e contemporâneas, as
mulheres estavam envolvidas no sistema da administração social e na tomada de
decisões importantes dentro e fora de casa. Algumas mulheres eram mais influentes no
seio familiar e vieram, por isso, a controlar muitas propriedades e riquezas, o que
influenciava o modo como a família era dirigida, circunstância essa que, no decorrer dos
acontecimentos ficcionados por estas autoras, ainda afecta a maneira como as
sociedades por elas retratadas, são efectivamente administradas. A influência assim
alcançada por muitas mulheres tomou a forma de um poder de exercício indirecto, na
administração das respectivas comunidades. No seio familiar, tais esposas ou mães
controlavam outros membros das suas casas, inclusivamente os seus maridos,
principalmente quando os recursos materiais ao seu dispor eram maiores do que os do
seu marido ou os de qualquer outro membro do agregado familiar.
Assim, além da autoridade que algumas das mulheres possuíam em casa, elas
ainda tinham e exerciam muita influência e autoridade fora dela. À medida que o
número de mulheres que exerciam poderes ao nível doméstico e comunitário aumentou,
especialmente na actividade comercial, a influência da mulher tornou-se institucional .
A existência das situações acima mencionadas viria a ter como consequência uma
sociedade que, com alguma frequência, era controlada pelo poder tradicional feminino.
Esse é o entendimento da situação que Peggy Reeves Sanday (1987) descreve a
propósito das circunstâncias que permitiram acesso ao poder por parte das mulheres:

Females achieve economic and political power or


authority when environmental or historical circumstances
grant them economic autonomy and make men dependent
on female activities. Female economic and political
power or authority is ascribed as a natural right due to the
female sex, when a long-standing magico-religion
association between maternity and fertility of the soil

113
associates women with social continuity and the social
good. The rights and duties attached to this emphasis give
women formal power and control at the local level as well
as the right to influence male actions and decision making
beyond the local level Sanday (1987, p.114).

Em tais sociedades tradicionais, onde o homem é somente o chefe de cerimónias


do clã, as mulheres, ao terem autonomia económica desempenham um papel
preponderante na subsistência de toda a família, seja a família imediata ou a alargada.
A associação mágico-religiosa que se estabelece entre maternidade e fertilidade do solo
é outro factor que faz depender a continuidade social da acção reprodutiva da mulher,
núcleo agregador da família e provedora do bem-estar social. Tudo isso faz com que a
mulher se torne poderosa. Udobata Onunwa (1988) afirmou que na maioria dos países
do terceiro mundo ainda existe esse poder tradicional feminino, em comunidades de
pendor patriarcal ou matriarcal:

Women held considerable authority and influence over


their sons and brothers. The influence had some economic
base because most families were (still are) polygamous
and each woman inevitably provided the basic need of her
own ‘nuclear’ family. (Onunwa 1988, p.46).

Esta autoridade da mulher, decorrente da sua acção fundamental como provedora do


sustento familiar, estendia-se também a quase todas as posições sociais da comunidade.
De facto, constam da história e da tradição oral africanas as façanhas de um punhado de
mulheres heróicas que, conscientes da operação a que estavam sujeitas pela sua
condição de género, foram capazes de levantar a voz contra o opressor, o poder
masculino. Isso mesmo nos é afirmado por Toril Moi (1986) na sua obra intitulada
Sexual / Textual Politics:
Throughout history, a few exceptional women have indeed
managed to resist the full pressure of patriarchal ideology,
becoming conscious of their own oppression and voicing
their own opposition to male power (Moi 1986, p.26).

Em África, tem sido notada a acção de mulheres valentes e corajosas como a rainha
Ginga Mbandi de Angola, Ama Zingha, Rainha de Metamba da Africa Central, Kathilili
do Quénia, Nawal El Saadawi do Egito, Funnmilayo Ransome Kuti, Rainha da Nigeria,
Winnie Mandela da África do Sul, Yaa Asantewa do Gana, Graça e Josina Machel em
Moçambique, entre outras mulheres de renome que lutaram de modo determinado

114
contra os poderes patriarcais, nas suas respectivas sociedades, defendendo
intransigentemente os direitos das mulheres positivamente dentro e fora das suas
famílias.
Christine Qunta (1985) retratou a imagem das mulheres sul-africanas, tendo-nos
dado uma perspectiva abrangente das diferentes comunidades que fazem parte deste
país. Na sua opinião, as mulheres sul-africanas enfrentam as suas dificuldades de vida
com notável abnegação, conscientes de que são uma parte particularmente oprimida da
sociedade:

Given the backwardness of her society…she never


speaks of herself but is always spoken
about…African women came to be perceived in this
way not because they are women but because they
constitute a section of an oppressed race (11).

Por outro lado, nalgumas sociedades africanas há reconhecimento pleno do poder das
mulheres nas várias áreas de vida da comunidade. Seguindo a mesma linha de
pensamento de Udobata Onunwa (1988), que chamou a atenção para a persistência do
poder atribuído às mulheres nas sociedades tradicionais africanas, Bohannan e Curtin
(1971) afirmam que a mulher em África não faz parte de um grupo que tenha sido
desapossado dos seus direitos, como aconteceu na Europa:
African women, by and large, have a high social position:
legal rights, religious and political responsibility,
economic independence…Women in Africa are not, in
short, a deprived group as they were in the nineteenth
century western world. (Bohannan & Curtin, 1971, p.
107-8)

Baseado nas referências aqui feitas, podemos dizer que a mulher africana detém
poderes tradicionais, mas que ela também é discriminada por razões de género. E é
neste sentido que Qunta, Bohannan e Curtin fazem aqui uma apreciação ambivalente da
situação das mulheres africanas, já que também, durante longos anos, a atitude por elas
assumida em interacção social tem alternado entre o desejo de dominância e a
acomodação à passividade. Em algumas comunidades havia proeminência das
mulheres, em certas áreas de actividade, e noutras essa participação era passiva. Em
certas comunidades foi possível verificar que a passividade e a proeminência estavam
presentes em diferentes grupos de mulheres, dentro da mesma comunidade. Na sua
apreciação sobre a sociedade sul-africana, Qunta considera que as mulheres se

115
encontram ali desapossadas dos seus direitos. Este facto não pode ser separado daquilo
que são os traços característicos da situação sócio-politico desta sociedade, feita de
tensões, tal como é reconhecido e Qunta sublinha. Por seu turno, Elizabeth Gordon
(1981) fala sobre o ambiente e as condições de vida marginalizada das mulheres do
Lesoto. Esta crítica faz notar que as mulheres do Lesoto vivem as suas vidas
condicionadas pela migração massiva dos seus homens para o exterior, designadamente
para a África do Sul, em busca de trabalho bem remunerado que não encontram no seu
próprio país (59). Por sua vez, vivendo uma vida assim condicionada, as mulheres sul-
africanas ficam escravas de uma situação que não lhes permite uma existência
autónoma. Esta situação das mulheres sul-africanas é tão patética que leva Júlia Wells
(1982) a declarar que “as mulheres desta região são ficam restritas aos empregos mais
mal pagos” (125). A combinação da situação acima descrita por parte de Elizabeth
Gordon, e a realidade observada por Júlia Wells, têm como consequência a existência
da situação que Wells (1982) define como a de “ uma relação familiar insegura” (125).
De acordo com Wells, a situação das mulheres é ainda pior pelo facto de, em
conformidade com as leis sul-africanas de então, as mulheres serem legalmente
consideradas menores, perante as leis” (125).
Não é, pois, de admirar que alguns escritores desta região de África retratem as
personagens femininas nas suas obras como seres que suscitam compaixão. Contudo,
podemos dizer que, recentemente, obras literárias oriundas desta parte do continente
africano apresentam as personagens femininas como fortes e assertivas, capazes de
lutarem, determinadas, ao lado dos homens, para corrigirem injustiças raciais e as
formas de opressão que particularmente se exercem sobre elas.
Não obstante, Wells dá-nos duas imagens das mulheres sul-africanas –
nomeadamente as mulheres que vivem nas zonas suburbanas e as que vivem nas
cidades. Segundo Julia Wells (1992), as que vivem nas aldeias estão presas às
dificuldades da ruralidade circunscrita onde habitam. Nesses locais “não há empregos
para elas, não há terras de volutas nem há a possibilidade de saírem dali para as cidades
a procura de emprego. E por sua vez, as mulheres que as mulheres que já residem nas
cidades ainda não desfrutam da segurança de vida que esse espaço oferece” (Wells:
1992, p126. Como consequência desta dupla forma de cerceamento de iniciativas, as
mulheres sul-africanas jovens, adultas, solteiras ou casadas, estiveram e continuam a
estar sob uma enorme pressão discriminatória. Isto faz com que estas mulheres, numa
busca de superação do acantonamento marginal que a tradição lhes impõe, deixem de

116
respeitar as práticas tradicionais dos seus antepassados. São frequentemente forçadas e
aceitam ter sexo sem protecção antes do casamento, com homens desconhecidos, a fim
de sobreviver, resultando daqui, inevitavelmente, gravidezes indesejadas, doenças
venéreas e anulação da sua auto-estima. Sentem-se também envergonhadas por não
corresponderem à responsabilidade e ao valor que as suas famílias delas esperavam,
visto que, com tais comportamentos, “deixam de ser tidas como valor de dote a ser pago
às suas famílias”.(Wells:126).
Alguns escritores sul-africanos, como Bessi Head em When the Cloud Begins to
Gather e Athol Fugard em Sizwe Bansi is Dead, têm-se dedicado a apresentação das
dificuldades de vida deste tipo de personagens femininas. A obra Shanti, de Mthuli
Shezi, retrata a vida turbulenta e sofrida de uma personagem feminina, sempre em
desvantagem pela sua condição de género e pela cor da sua pele. É importante referir
ainda que, nas noutras regiões do continente africano, onde existe um aparente traço de
liberdade política, a existência sofrida das mulheres, não é muito diferente daquela que
elas enfrentam na África do Sul.
A situação acima descrita é agravada na África Oriental, onde a discriminação
contra as mulheres é ainda mais evidente. Nesta região subsiste uma ideia sectária e
preconcebida contra as mulheres na vida económica, política e cultural, bem como na
vida literária. Todavia, alguns escritores tais como Ebrahim Hussein, (Tanzânia), Grace
Ogot, Micere G. Mugo e Nguigu Wa Mirii (Quénia), Luis Bernardo Honwana, Rui
Nogar, José Craveirinha, Mia Couto, Lília Momplé, Lina Magaia e Paulina Chiziane
(Moçambique) tratam da situação das mulheres na literatura africana oriental,
apresentando-nos personagens femininas fortes e determinadas a conseguirem a
alteração da situação de desvantagem das mulheres, nos seus respectivos países. Por
exemplo, de acordo com John Ndisi (1974), “ no Quénia, as mulheres, virtualmente, não
eram proprietárias de nada, sendo-lhes apenas permitido o usufruto da terra, para
proverem ao sustento das suas famílias” (15). Para combater esta tradição e esta atitude
cultural discriminatória, Christine Obbo (1980) deu o seguinte conselho às mulheres
quenianas “ se vocês querem ter poder, estatuto e riqueza comparáveis ao do homem,
adquirir independência económica é uma condição básica para se conseguir melhoria da
condição social”. (144).
O ponto de vista de Obbo salienta o facto de, por detrás do pensamento de
qualquer mulher, estar o desejo ardente de elevar a sua condição, afirmar a sua própria
individualidade e identidade, e deixar também a marca da sua passagem no curso da

117
história. Esta realização e auto-libertação das mulheres, uma vez obtida, irá permitir que
elas exerçam uma acção efectiva dentro e fora das suas casas. Na avaliação da situação
das mulheres de Mombaça, no Quénia, Margaret Strobel (1979) afirma que “o véu
islâmico afastou as mulheres da cena política e económica, em constante evolução”
(73). De acordo com esta autora , estas mulheres “ dispunham de muito pouco, dentro
da sua condição, cultura ou ideologia do Islão que as encorajasse a entrar numa
actividade comercial. Também não podiam recorrer aos maridos ou à herança de
familiares” (Strobel: 1979, p. 73). No que toca à posse da propriedade por parte das
mulheres, Strobel destaca os problemas que elas enfrentam perante as leis islâmicas em
Mombaça, afirmando que apesar de o Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos,
proporcionar às mulheres, sejam elas solteiras ou casadas, o direito de adquirirem
propriedade por via hereditária, esse direito não é respeitado na África Oriental: “this
right was easily thwarted in East Africa…The Koran can declare women’s right to
inherit, but it cannot quartantee enforcement ofhese rights (58). Strobel vê na função e
no uso do véu islâmico, a condenação à quase invisibilidade das mulheres, a
materialização da ideologia da assimetria sexual do povo Swahili e a manifestação da
dominação masculina responsável pela anulação das mulheres e pelo seu afastamento da
causa pública (Strobel:1979, p.76).
Uma feminista queniana, Rose Adhiambo Arungu-Olende (1984), reitera o problema da
marginalização das mulheres do seu país. Para ela, a maioria das mulheres, na sua
sociedade, letradas ou não, não sabe, nem reivindica os seus direitos. O facto de elas
não terem direito de herança ainda fragiliza mais os seus poderes, nesse país, devido aos
efeitos das tradições consuetudinárias (397). Olende (1984) relata-nos a este propósito
que: “as mulheres não herdam de modo igual ao dos homens, apesar da lei da sucessão
de 1981 que, no seu articulado formal, atribui direitos de herança iguais,
independentemente do sexo” (397). Como consequência de todo um conjunto de
restrições que continuam a existir, mesmo que já não inscritos na lei, Olende afirma
que, lamentavelmente, as mulheres quenianas acabaram por aceitar o jugo resultante da
dependência dos homens, para sobreviver (Olende, 1984: p.397). Entretanto, a tomada
de consciência da necessidade de lutar para conseguir obter a sua independência da
opressão do homem, faz com que elas se esforcem pelo reconhecimento e compreensão
da situação real do que é ser-se mulher num ambiente hostil e desfavorável. Este
empenhamento, crescentemente consciente, faz com que exijam agora de modo mais
determinado uma mudança imediata de atitude da “sociedade dos homens” para com

118
elas. Só assim, elas mesmas e as futuras mulheres poderão passar a sentir-se seres
humanos de pleno direito (398). Apesar destas declarações positivas, Strobel (1979)
assevera que a tentativa de saber a origem dos problemas de algumas mulheres africanas
orientais esbarra com a resistência das próprias mulheres, quando elas mesmas negam
estar a ser discriminadas, ou então, invocam outro tipo de razões ancestrais para
sancionar a opressão que sobre elas se abate:

Some will deny that women suffer any disadvantages. Others


will charge that Islam places women in a subordinate
position. Still others will locate the roots of women’s
oppression in colonialism or in the commercial interactions
of which the Swahili coast gave rise to class development,
specifically, slavery. (Strobel: 1979, p.1).

É lamentável verificar que, de certa maneira, a situação dessas mulheres na África


Central/Ocidental não é totalmente diferente da das mulheres na África do Sul. De certo
modo, e tal como as mulheres quenianas, as mulheres desta região são autónomas.
Desde tempos remotos até à actualidade, o papel das mulheres tem sido preponderante
na organização social e económica do Gana, da Nigéria entre os outros países desta
região de África. No caso do Gana, há visibilidade das mulheres, sobretudo entre os
membros da tribo Ashanti, que foram e ainda são governados em conformidade com as
regras da via matriarcal, onde o chefe de família e do clã é, por tradição, uma mulher.
Um notável exemplo é a senhora Yaa Asantewa, que é recordada pela sua liderança
exemplar durante a guerra entre o povo Ashanti e os colonizadores britânicos, no ano
de 1990. Em outras tribos do Gana como a de Ewe e a de Ga, prevalece o domínio
patriarcal. Apesar de serem lideradas por via paterna, as mulheres de Ga do Gana são
bem conhecidas pelas funções importantes que desempenham nos actos religiosos que
ali se celebram.
Uma socióloga e feminista italiana, Maria Rosa Cutrufelli (1985) tece, neste
contexto, oportunas observações sobre o controle de mulheres e o controle feito por
mulheres, nas sociedades africanas. Quanto ao controle sobre as mulheres, Cutrufelli
afirma que o controle sobre os meios que levam à posse das mulheres, como uma
propriedade de que o homem dispõe, é o fundamento do sistema que as oprime. Neste
sentido, a mulher é essencialmente vista como um ser gerador de vida, através da
procriação. Tendo em conta os seus papéis, como mãe, ela desempenha as funções de
reproduzir e criar vida humana e de, deste modo, dar continuidade a novas gerações de

119
homens e mulheres. Nesta linha de pensamento, Cutrufelli declara que “ o controle
sobre as mulheres significa o controle da unidade de produção e reprodução. Em termos
políticos, o controle sobre às mulheres é aquilo que legitima a hierarquia social,
designadamente a autoridade do “mais velho sobre o mais novo,” a indicação clara de
quem são aqueles que fazem parte de uma linhagem dominante ou dominada, de uma
casta mais poderosa sobre outras e assim sucessivamente”. (Cutrufelli: 1985, p.41).
Para apoiar o presente argumento, esta estudiosa italiana cita o exemplo da tribo
Ashanti do Gana, afirmando que, nesta comunidade, “ as mulheres gozam de certos
direitos de sucessão e propriedade, além de serem as zeladoras dos tesouros da
comunidade ” (ibid, p.68). Com isto, se confirma claramente que as mulheres desfrutam
de uma notável autoridade e poder que exercem no seio da sociedade Ashanti.
Cutrufelli resume a importância da condição da mulher Ashanti, sublinhando que ela é
sempre tida em conta e arbitra, necessariamente, na tomada de decisões importantes da
sua comunidade.
A situação é totalmente diferente entre outras tribos de Akan, no Gana. Aí,
embora as mulheres pudessem ser chefes e mulheres titulares, elas foram e ainda hoje
são vítimas de discriminação e opressão. As viúvas são proibidas de voltar a casar, ao
abrigo de leis tradicionais, e o processo da colonização e o neocolonialismo subsequente
ainda pioraram o estado de fragilidade dos seus direitos (Morgan: 1986, p.225-257;
Ruby R.Leavitt: 1975, p.4). Este entendimento penalizador para as mulheres merece um
comentário de Cutrufelli, para quem também “a administração colonial intensificou a já
habitual subordinação da mulher” (57). Apesar dos argumentos favoráveis a favor da
matrilianidade, Cutrufelli (1985) afirma que “esta, só por si, nunca dera à mulher um
verdadeiro poder social, apesar de lhe ter permitido obter um melhor estatuto do que
aquele que a patrilianidade alguma vez lhe conferira (57). È importante salientar que as
obras de algumas escritoras ganesas de renome, como Ama Ata Aidioo e Efua
Sutherland, foram baseadas e influenciadas pela cultura e tradição das tribos do povo de
Akan.
No Norte da África, sobretudo no Egipto, as mulheres estão sob as leis islâmicas
que as tratam de forma opressiva, diferente da dos homens. De acordo com Ruby
Rohrich-Leavitt (1975), “ as mulheres islâmicas estão entre as que sofrem maior
opressão no mundo”( Leavitt: 197, p.53). Esta revelação de Leavitt aproxima-se da
proferida por Strobel (1979), na sua obra Muslim Women in Mombassa:

120
Female vulnerability and the need to protect a woman’s
respectability provided the rationale for purdah. Veiling
and seclusion, the twin manifestations of purdah, were
practised with varying degrees of strictness, depending on
the historical period and status of the woman involved.
(Strobel 1979, p.73).

Embora a situação, acima citada, prevaleça em Mombaça, ela não é diferente da


situação lamentável das mulheres daquele país do Norte de África. Ruby Rohrich-
Leavitt (1975) afirma que o sistema de imposição do véu islâmico implica a segregação
e a opressão das mulheres dessa comunidade religiosa. Do seu ponto de vista, “ o uso da
purdah reduz as mulheres a um estado de quase completa subordinação e dependência.
Os muçulmanos, quer sejam de países de organização tradicional ou de regime
socialista opõem-se, por norma, intransigentemente a todas as tentativas de libertação
das mulheres ou até mesmo à melhoria dos direitos a elas anteriormente
atribuídos”(Leavitt 1975, p.3). A marginalização feminina por via religiosa foi o factor
que levou Nawal ed-Saadawi, uma feminista, escritora e médica egípcia a lutar contra
este tipo de discriminação e o mau tratamento dado às suas homólogas. Saadawi
(1984), nesta sua tomada de posição, defende que “ as mulheres do antigo Egipto
haviam desfrutado de um estatuto elevado em várias áreas de actividades relacionadas
com a vida política, económica, administrativa, religiosa e cultural das suas
comunidades” (Saadawi 1984, p.200). Este posicionamento está inteiramento de acordo
com o pensamento de Leavitt (1975) relativamente à independência das mulheres no
continente africano. Segundo Leavitt, “ as mulheres, na maior parte de África, tinham
um estatuto melhor e maior autonomia do que a maioria das mulheres no Sul e no leste
asiático e até na Europa” (4). Numa outra perspectiva, Nawal ed-Saadawi, no livro The
Hidden Face of Eve ( 1989), recorda-nos que muitas mulheres valentes, tais como
Nessiba Bint Kaab, Om Solayem Bint Malhan e Hind Bint Rabia foram parceiras de
profeta Maomé no campo de batalha (Saadawi 1989, p.125). Cita esse exemplo para
refutar a existência de subjugação sobre as mulheres, por parte da religião islâmica e
dos seus seguidores.
Os exemplos expostos demonstram bem até que ponto, entre o passado e a
actualidade, houve mudanças substanciais respeitantes à situação e direitos das

121
mulheres no continente africano. A sociedade moderna de hoje, em África, tem sofrido
muitas mudanças no que toca aos papéis desempenhados pelas mulheres – sobretudo
uma mudança notória nas suas funções, relativamente ao que eram os seus direitos
decorrentes da tradição. Como se sabe, os papéis tradicionais das mulheres estão
maioritariamente circunscritos à sua acção dentro de casa, enquanto os não tradicionais
são exercidos fora do seio familiar. Do nosso ponto de vista, alguns factores que são
responsáveis por estas mudanças são a educação ocidental, a vaga de modernização,
urbanização e migração que ocorre vinda de África e para África. Ida F. Rosseau (1975)
é uma das estudiosas desta problemática que reconhece o efeito positivo da educação e
formação das mulheres. Neste contexto afirma que “ a educação é capaz de levar à
reestruturação da sociedade, ao mesmo tempo que permite à mulher adquirir novas
qualificações profissionais. De modo ostensivo, a crescente qualificação profissional
das mulheres faz com que a presença feminina surja em estruturas económicas e
políticas, até aqui monopolizadas pelos homens. ” (p.41). Esta melhoria da qualificação
das mulheres tem levado a um ‘avanço notável’ do seu anterior modo de vida. Neste
âmbito Kenneth Little (1973), por sua vez, também considera que as novas
competências das mulheres e as das que ambicionam ter acesso à cultural ocidental
euro-americana, foram adquiridas por via da educação ocidental que lhes foi dada na
escola (p.15). É importante acrescentar que a mudança verificada nas funções e na
situação das mulheres africanas tem produzido um efeito significativo nas suas vidas, ao
atribuir-lhes um papel preponderante nas actividades sócioculturais, económicas e
políticas. Além disso, esta mudança tem-lhes proporcionado um crescente ascendente
social e novas oportunidades de afirmação devido ao conhecimento que elas agora
detêm e à necessidade e possibilidade que agora têm de “participar nas actividades
económicas e de terem voz na tomada de decisão política em todas as situações onde,
desejavelmente, nunca devia ter havido uma separação e discriminação com base no
sexo” Ida F. Rosseau (1975, p.41).
As autoras que vamos analisar são, naturalmente, exemplo dessa afirmação no
feminino que, paulatinamente, se vai registando nas mais diversas áreas de actividade.
Nos E.U.A., a intervenção de Alice Walker desde os anos 1970 tem sido um contributo
decisivo para o reposicionamento do lugar da mulher na sociedade americana. No
Brasil, o contributo de Carolina Maria de Jesus, no início dos anos 1960, quando o
regime de ditadura militar estava em pleno curso, foi um sinal notório da força de
vontade e da coragem das mulheres negras comuns, não letradas, para também terem

122
voz entre os seus pares masculinos da escrita e da leitura, até então predominantemente
masculina.
Buchi Emecheta que se afirmou como voz da mulher negra da África anglófona pugnou
ao longo de três décadas pela liberdade da mulher, designadamente através da educação.
A sua primeira obra datada de 1972, In the Ditch, é desde logo, pelo título que ostenta,
denunciadora do muito que havia a fazer para que a mulher ganhasse dignidade, lutando
contra toda a falta de meios e de oportunidades que as condenavam a uma situação de
subalternidade. Mariama Bâ, escritora negra da África francófona, chamou, no início
dos anos de 1980, a atenção do mundo para a desigualdade de poderes entre homens e
mulheres. Ela propôs, através do que escreveu, uma necessária ascensão das mulheres,
para o reequilíbrio e relançamento das condições sociais vigentes no seu país. No que
escreveu, ela denunciou o facto de a tradição e os costumes acorrentarem então as
mulheres à situação de subjugação. Para fazerem face a isso, as mulheres tinham de
adquirir novas competências a fim de, desse modo, saberem fazer-se ouvir e serem
autónomas, livres. Paulina Chiziane denuncia as poucas expectativas de liberdade
económica da mulher em Moçambique, tendo em conta um conjunto de tradições como
a poligamia, em que a mulher, com relação ao homem é mais uma, e não a companheira
do homem em paridade de direitos. Com Balada do Amor ao Vento, 1990, ela foi a
primeira mulher moçambicana a publicar um livro, sendo por isso, referência
assinalável no espaço da África lusófona, dessa afirmação das mulheres pela via do
conhecimento reflectida na capacidade de escrita.

ii. O contexto social da escrita feminina na diáspora – o caso do Brasil.

Relativamente ao contexto social das mulheres na sociedade brasileira, parece-


nos oportunos referirem, antes de mais, no início desta parte, a imagem geral que nos é
dada da presença do negro (homem ou mulher) na literatura brasileira, nos séculos XIX
e XX. Ao contrário do posicionamento de alguns estudiosos como Gilberto Freire
(1979), nunca terá havido verdadeiramente uma integração progressiva da raça negra na
sociedade brasileira. No entanto, G. Freire, entre outros, defendia o contrário disto
afirmando que “ (i) embora pudessem existir certos preconceitos raciais, não haveria
racismo no Brasil”; (ii) a sociedade brasileira era uma sociedade cordial e tolerante onde
não existiam as formas de racismo e discriminação que tinham marcado a sociedade
norte-americana e sul-africana” (Freire: 1979, p.46). Assim, o desenvolvimento do

123
modelo luso-tropicalista descrito por este sociólogo, a partir dos anos 1935, seria uma
feliz excepção no plano social mundial, o que permitiria aos brasileiros evitarem
conflitos mortíferos que ocorreriam noutras partes do mundo, em países com
populações de várias procedências e etnias.
Se no Brasil, nesse tempo, se verificava um aparente apaziguamento social,
decorrente de governos de cariz ditatorial, também é verdade que ao longo do século
XX, nos mais diversos quadrantes, incluindo no próprio Brasil, surgiram ou mantiveram
actividade clandestina ou pública, um certo número de movimentos políticos, sociais e
culturais que denunciavam os limites ou até a impostura da democracia propaladamente
multirracial, na alegação contestável do regime de então, de estar a dar igualdade de
direitos a todos.
Esta discrepância entre grandes princípios teóricos e práticas efectivas de
governação levaram a que a situação do/as negro/as no Brasil viesse a estar cada vez
mais presente nos estudos sócioculturais, literários e políticos. Na verdade, tanto
estudiosos não brasileiros, como David Brookshaw, Gregory Rabassa e Raymond
Sayers, quanto brasileiros, como Elisa Larkin, Paulo Leminiski, Regis de Morais, Roger
Bastide, Thales de Azevedo e Zilá Bernd dedicaram trabalhos à questão e situação dos
negros na literatura brasileira. Um dos pontos de interesse é a verificação da presença
ou ausência de literatura sobre negros ou de autores negros no cânone brasileiro. A este
propósito Roberto Reis (1992) observa que ali não há “quase nenhum não-branco e
muito provavelmente escassos membros dos segmentos menos favorecidos da pirâmide
social” (Reis: 1992, p.73). Esta exclusão, segundo o autor, serve (justamente) para
evitar a circulação de ideias que expressem os seus valores, com o objectivo de fazer
com que obras dotadas de capacidade crítica não sejam lidas por um público mais
amplo.
Assim, a presença do negro na literatura brasileira, ao longo da história, foi
marcada ou pelo silêncio, como no período anterior à abolição, ou pela afirmação da sua
suposta inferioridade, tanto biológica como cultural, a qual, dependendo do autor,
variava de grau. Tendo em conta os pontos acima sublinhados, vamos procurar dar aqui
o necessário testemunho do modo como a mulher negra foi e tem vindo a ser
apresentada em várias fases da história, na sociedade brasileira.
Não há dúvida de que não existe a figura do negro na literatura brasileira, antes do ano
de 1840, isto é, antes da abolição do tráfico de escravos. De acordo com Brookshaw
(1983), isso é surpreendente, se for considerada a função diária desempenhada pelos

124
escravos durante esta época. Três das possíveis justificações deste silenciamento são:
(i). Os escritores brasileiros de então não consideram o escravo como ser humano; (ii).
A maioria desses escritores como José de Alencar (1872), Castro Alves (1869) e
Fagundes Varela (1860) não ousaria afrontar o poder dos senhores de escravos; (iii).
Alguns deles dependeram da ajuda das instituições escravocratas para sobreviverem.
Por esta razão, eles trabalharam em prol dos opressores e não podiam prestar a devida
atenção aos oprimidos.
As consequências da abolição do tráfico humano em 1850 obrigaram os
escritores brasileiros dessa época a estarem mais atentos à situação dos escravos,
sobretudo à maneira como eles eram maltratados. Segundo Castilho (2004), “nos textos
literários desse período, os escravos eram descritos com desgosto, piedade e de forma
desumana”. Nesse sentido, em 1856, surge, O Comendador de Pinheiro Guimarães o
primeiro romance a abordar esta temática
Resumidamente, a imagem dos negros na literatura brasileira pode ser analisada
a partir dos seguintes períodos ou fases: - (i), antes do tráfico humano e da escravatura;
(ii), durante a escravatura; (iii), depois da escravatura; (iv), no período romântico1 (v),
no decorrer do movimento abolicionista2 (vi), a fase naturalista / realista3 (1881 –

1
Importa sublinhar que nessa fase, a preocupação dos escritores brasileiros se centrou na construção da
identidade nacional que passou a ser representada nas obras literárias pela imagem do índio. No período
final dessa fase, aparece também o negro a contracenar com o índio. Porém, se o índio, por natureza, era
apresentado como corajoso e orgulhoso de sua independência, ao negro era apontada uma índole escrava,
humilde e resignada. Tais características estão retratadas no romance Til (1872), de José de Alencar que
abordou a questão da identidade nacional
2
Ao tempo do movimento abolicionista, havia duas escolas de pensamento – a escola que apresenta a
personagem negra positivamente, por exemplo, através de Bernardo Guimarães, e aquela que a apresenta
de forma negativa, como Castro Alves e Fagundes Varela. Embora Castro Alves tenha lutado pela causa
dos escravos no Brasil, também a apresentou de forma negativa. De acordo com Brookshaw (1983),
Castro Alves considerou a raça negra como uma raça maldita, os descendentes de Caim que tinham sido
expulsos do “paraíso” e remetidos para “o inferno “ de África. Deste modo, C. Alves reproduzia na
literatura brasileira o mito que considerava o continente africano como desafortunado e abandonado pela
civilização. Fagundes Varela, por sua vez, retratou o negro como imoral, um ser demoníaco, por vezes, ou
resignado e fiel. A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães é o primeiro romance brasileiro onde, a
heroína escrava é apresentada positivamente. Importa sublinhar que, apesar de essa personagem ser
mulata, ela é retratada com características de mulher branca. Isso veio a demonstrar a dificuldade dos
escritores brancos daquela época em apresentar personagens negras positivamente.
3
Nessa fase houve a presença de muitas personagens negras na literatura brasileira mas,
lamentavelmente, a maioria dos escritores continuou a reforçar a imagem dos negros com estereótipos
claramente racistas e com um exagerado tom sensual. Em termos gerais, a imagem do negro era
representada pela díade: imoral e demónio. Entre as obras de renome que apresentaram personagens
negras contam-se as seguintes: O Mulato (1881) e O Cortiço (1890), de Aluíso de Azevedo, Motta
Coqueiro, de José do Patrocínio, Bom Crioulo, de Adolfo Caminha; A carne, de Júlio Ribeiro.

125
1883); (vii.), a literatura pós-escravidão4 (viii), a fase literária modernista5, desde 1922 e
a fase pós-modernista6

4
A literatura pós-escravidão foi influenciada por duas correntes de pensamento transplantadas da Europa:
a saber, o darwinismo social e o positivismo, de Auguset Comte. (i). O darwinismo social era uma escola
de pensamento que postulava a existência de raças superiores e inferiores, sendo superiores as raças
brancas (europeus) e inferiores as escuras (índios, negros e mestiços) – tanto cultural como
biologicamente, e que estas “raças” não teriam boas perspectivas de desenvolvimento. Existiria apenas
uma saída para o progresso do Brasil: o branqueamento das populações através da miscigenação com as
“raças mais desenvolvidas” (os brancos europeus), até se extinguir a “raça negra inferior”. No Brasil, os
maiores seguidores dessa escola foram Nina Rodrigues, Miguel Reale, Gustavo Barroso, e Oliveira
Vianna. Oliveira Vianna via a presença dos negros como uma grande fragilidade e formulou a ideia de
que o aperfeiçoamento social seria possível graças a um processo de branqueamento racial. Do seu ponto
de vista, com menos negros, o Brasil ficaria mais forte. Seguindo esta concepção preconceituosa do seu
tempo, procurou demonstrar que a mestiçagem deveria caminhar no sentido da diminuição do coeficiente
de negritude do país, para que a nação se tornasse politicamente fortalecida. O estudo de Vianna
influenciou alguns estudiosos brasileiros como Nina Rodrigues e Sílvio Romero, entre outros, que
defenderam e procuraram justificar esta ideologia da discriminação, marginalização e inferiorização dos
negros. (ii). Os seguidores do pensamento positivista eram liderados por Auguste Comte. É importante
afirmar que esta escola estava particularmente propensa a explicar a inferioridade dos negros, através da
ênfase das diferentes qualidades que via como características das ‘raças’. Por exemplo: a raça negra era
afectiva; o ameríndio, activo - ou seja, os negros tinham os seus defeitos, mas também tinham qualidades
e era possível melhorá-los. Alguns escritores negros foram atraídos pela corrente positivista, entre eles
Giberto Freyre4, Lima Barreto e Manoel Querino. Estes autores procuraram exaltar nos seus romances as
qualidades dos negros, como a capacidade para o trabalho pesado, a fidelidade ao patrão e a afectividade.
5
Esta fase começou no princípio de 1922 e, nessa altura, houve muitos questionamentos radicais ao cerne
da cultura brasileira – o que estimulou uma ampla valorização das suas raízes mais autênticas. Oswald de
Andrade lançou então o movimento da antropofagia, cujo lema era: os selvagens brasileiros podem e
devem devorar os valores europeus. Com Jorge Amado, por exemplo, o negro passou a ocupar um lugar
destacado na literatura brasileira, com uma afirmação positiva e apaixonada. Porém, a sensualidade da
mulher mulata continua ali exacerbada, reforçando o estereótipo da mulher negra, como alguém
particularmente propenso a práticas sensuais e sexuais. Um outro escritor dessa época que promoveu a
temática do negro na literatura brasileira foi Monteiro Lobato. Na opinião de (Brookshaw, 1983),
Monteiro Lobato foi o autor que mais declaradamente atacou os negros de forma cortante e
preconceituosa: considerava-os ora como animais selvagens, ora como resignados. No conto Bocatorta ,
especificamente, a personagem representada por um negro é tão feia que a filha do fazendeiro morre só de
olhar para ele.
6
Nesta fase regista-se o surgimento de um novo e diverso protagonismo da personagem negra. Constam
ainda desta fase as actividades de um movimento em prol da auto-representação de um grupo paulistano
de escritores de afro-brasileiros chamado o Quilombhoje Literatura que iniciou a publicação dos
chamados cadernos negros, criados em 1978, para dar visibilidade à produção de autores que não
conseguiam espaço no mercado editorial dominado por autores e editores brancos. Estes cadernos tinham
como objectivos principais: (i) Denunciar o preconceito social e cultural contra os negros na sociedade
brasileira; (ii) Dar testemunho da sua história e da sua cultura; (iii) Representar os homens negros com
dignidade; (iv), Resgatar a história de escritores negros do passado; (v) Incentivar o hábito da leitura e
promover a difusão de conhecimentos e informações, bem como desenvolver e incentivar estudos,
pesquisas e diagnósticos sobre literatura e cultura negras (vi). Discutir e aprofundar a experiência afro-
brasileira na literatura.
Houve formação de diferentes movimentos negros e também foi notório o crescimento do número das
escritoras negras que promoveram a sua visibilidade, através de participações em revistas, como a Raça
Brasil, e por meio de livros ou filmes, como foi o caso de Joel Zito Araújo com o seu , A Negação do
Brasil, O Negro na Telenovela Brasileira. Essa presença passa a ser uma constante, mas não ocorre pelas
melhores razões. Foi Carolinha Maria de Jesus, “ favelada” e semianalfabeta, quem iniciou no Brasil o
que viria a ser uma nova tradição narrativa, mediante a denúncia da sociedade e do governo brasileiros,
que não tomavam conta das necessidades dos marginais e dos menos privilegiados. Esta obra de Carolina
Maria de Jesus influenciou decisivamente alguns escritores contemporâneos e incentivou-os nos seus
romances. Em obras como Cidade de Deus, de Paulo Lins, Mulheres de Tijucupapo de Marilene Felinto ,
de Esmeralda do Carmo Ortiz Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, já se encontram

126
Constatamos que desde o período do tráfico humano e da escravatura até a fase
literária modernista, há registos frequentes de preconceito social e racial na literatura
brasileira. Quanto à representação de mulheres negras na literatura brasileira desse
tempo a figura central é a da mulata. Ela é uma figura "triplamente" subalterna, porém
desejável e acessível, para o olhar hegemónico do homem; por ter fragilidades e
dependências decorrentes da condição de ser mulher (menor escolarização, baixo
salário, etc) pela sua condição social e pela sua cor. Assim, o tipo de preconceitos
vividos por uma personagem são retrato da ideologia prevalecente na sociedade em que
ela vive, e esta assume predominância no pensamento dos indivíduos, reafirma o seu
ascendente geral utilizando mecanismos que surgem da própria consciência colectiva. E
essa mesma consciência colectiva é, também por isso, responsável pelos mitos e
símbolos que são acometidos às identificações impostas às figuras femininas. Tais
mitificações mudam e ajustam-se de acordo com as épocas e as circunstâncias, e é
naturalmente através da linguagem que se reproduz e dissemina e inculca todo o tipo de
descriminações e de ideias preconcebidas sobre os papéis vividos pelas mulheres.

Deste modo podemos dizer que a construção das personagens negras, no Brasil
como noutras realidades sócioculturais se ajusta aos estereótipos repetidamente
referidos a propósito das circunstâncias de vida historicamente impostas à mulher -
escravas, objectos sexuais, donas de casa, mães confinadas à actividade doméstica,
além da função de procriadoras-, estando os homens, por seu turno, em situações de
permanente autoridade e de dominação sobre as mulheres. Assim, a imagem da negra na
literatura brasileira, desde os primórdios, vem sendo tratada e retratada com inequívoco
preconceito de género e cor.
Apesar de os negros terem desempenhado papéis importantes na cultural
brasileira como no desenvolvimento económico deste país, designadamente através de
duro trabalho braçal que mais nenhuma comunidade tinha aptidão física para realizar,
esta participação ainda está relativamente silenciada ou, preconceituosamente, não está
suficientemente divulgada, excepto nas áreas do desporto e da música, práticas
geralmente consideradas de mero entretenimento. E, se o homem negro na sociedade
brasileira tem uma remuneração salarial inferior à da mulher branca, este indicador é, só

representações de mulheres negras construídas por escritoras negras e que têm características de
assertividade muito diversas das dos estereótipos do passado.
.

127
por si, enunciador do ainda muito menor reconhecimento que é atribuído à mulher negra
no Brasil. Ser mulher e ser negra na sociedade brasileira significa estar inserida num
contínuo ciclo de marginalização e descriminação social, em resultado de um contexto
histórico que precisa de ser expurgado de antigos estigmas e dogmas. A discriminação
para com as mulheres negras brasileiras leva a que a taxa de analfabetismo entre elas
seja duas vezes superior à registada entre as mulheres brancas. Assim, o mercado de
trabalho reserva para elas as posições menos qualificadas, os piores salários, a abusiva
informalidade de tratamento e até o desrespeito mais ostensivo. Apesar de tudo isso,
hoje, como no período da escravatura, foram elas as mantenedoras da família e das
tradições culturais transplantadas de África para o Brasil, neste caso.

iii. O contexto social da escrita feminina na diáspora – o caso dos E.U.A.

Por razões que não carecem de ser aqui explicadas, até


recentemente, e a despeito da “raça” dos autores, assumia-se
que os leitores de virtualmente toda a ficção americana e
europeia eram brancos. Mas afinal, quando é que a
“inconsciência” racial ou a consciência de “raça” são um
factor de enriquecimento ou de empobrecimento da língua?
Quais são as implicações de um posicionamento do eu, por
forma escrita, em sociedades tão “racializadas” como as dos
Estados Unidos e da Europa? O que é que acontece à
imaginação expressa em forma escrita, por parte de um
autor negro que, a certo nível, está sempre consciente de
estar a representar a sua própria raça, ou que escreve, como
o faz, sabendo que a “raça” dos seus leitores o considera
universal ou livre da consciência de “raça”. Por outras
palavras, como é que a literatura se torna “branca” e quais
são as consequências dessa construção?
(Morrison, prefácio a In the Dark, 1992,p. V)

De acordo com Morrison (1992, p.V) no seu prefácio a Playing in the Dark, até
data recente, os escritores e leitores têm-se posicionado e têm sido geralmente
considerados como homens brancos da classe média, atendendo ao tipo de preconceitos
por eles evidenciados e ao padrão de imaginação que revelam, e que são formatados de
uma determinada maneira, por razões derivadas de certas imposições raciais e de
dinâmicas próprias do poder instituído7. As personagens corporizadas por homens e

7
É importante sublinhar-se aqui que Morrison não diz que todos os leitores são broncos, mas sim que
eles, tradicionalmente, têm sido “posicionados” como brancos e têm-se assumido como brancos, ou

128
mulheres negras8, em obras escritas por autores brancos, são, em consequência disso,
tendencialmente negativas ou ficam substancialmente menorizadas pelas funções
subservientes ou marginais a elas atribuídas.
Desde sempre que a voz negra teve que vencer inúmeras dificuldades para obter
espaço na cena literária. Assim, os temas que essa voz mais procurou articular foram,
naturalmente, aqueles que faziam a denúncia de situações de desigualdade. É
sintomático que Robert Hayden, um dos primeiros grandes autores afro-americanos dos
E.U.A tenha vivido e escrito no período da escravatura. Escreveu importantes poemas
sobre os primeiros escravos e sobre a acção de pessoas como Harriet Tubman e
Frederick Douglas que se bateram com grande determinação e arrojo pela igualdade
entre brancos e negros nos E.U.A.
O início da escrita feita por mulheres negras está necessariamente ligado a
Phillis Wheatley. Nascida na Senegâmbia em 1753, ainda menina, ela foi vendida como
escreva e trazida para os E.U.A.. Ali, os seus dotes de inteligência e a sua capacidade de
escrita fizeram com que ela fosse a primeira poetisa afro-americana com obra publicada,
Poems on Various Subjects, Reiligious and Moral (1773). Sojourner Truth (1797-1883)
é outra mulher negra, ex-escrava e analfabeta, cuja expressão frequentemente proferida,
e que veio a tornar-se a sua marca identificativa, era nem mais nem menos “Ain’t I a
Woman?”. Aquilo que ela disse em intervenções públicas ao longo da vida foi registado
por outros e mais tarde o seu discurso oral veio a ser adaptado à poesia, nos finais do
século vinte.

Outra antiga escrava que escreveu sobre as suas experiências de vida foi Harriet
Jacobs, cujo conjunto de textos narrativos veio a ser crucial para a consciencialização da
sua própria circunstância, por parte das mulheres de cor. Contudo, foi uma mulher

interessados naquilo que interessa ao leitor branco, do mesmo modo que, até data recente, se assumia que
a maioria dos leitores era do sexo masculino ou interessados naquilo que interessava aos homens.
8
Na América, as mulheres de cor foram tradicionalmente excluídas de cargos directivos bem como dos
processos de preparação, através da educação e do ensino, que as poderiam levar a ocupar postos de
decisão ou até a assumir uma carreira política. Assim podemos dizer que as mulheres negras na E.U.A
sofreram de uma tripla opressão - racial, de classe e de género - ao longo da história daquele país. Em ,
Women, Culture And Politics (1984 ) e Women, Race and Class (1981), Angela Davis desenvolveu estas
questões, suscitando interrogações fundamentais acerca da mundividência/ condição das mulheres afro-
americanas. Desde então, esta área de discussão abriu-se ao patamar de discussão em que se agora se
encontra, e é comum considerar-se a dinâmica do potencial opressivo destes três factores quando
considerados em conjunto. E, sobretudo, quando estamos a falar da história ou da literatura das mulheres
negras, particularmente nos E.U.A, com todo o seu legado de escravatura, estes factores, mesmo que
polémicos, são necessariamente convocados para o propósito procurar explicar a condição de desfavor da
mulher negra naquela região do mundo.

129
branca Harriet Beecher Stowe quem, com o seu romance, Uncle Tom’s Cabin (1852),
divulgou ao grande público, através da literatura, a experiência de vida dos escravos e
ex-escravos. Esta obra veio a ser, ao seu tempo, o livro mais vendido e a postura
abolicionista da sua autora (Stowe) influenciou decisivamente várias outras escritoras
americanas brancas, incluindo Bronson and Louisa Alcott. (Braxton, 1989)
Alguns anos mais tarde, a escrita afro-americana começou a ver reconhecido o
seu desenvolvimento literário. A primeira Renascença Negra ou Harlem Renaissance
começou a manifestar-se por volta de 1925. De acordo com Bigsby (1980) este
movimento foi “uma breve, mas poderosa explosão da cultura negra que colocou o
negro, por um espaço de tempo, na coração da mitologia nacional e deu de si mesma
uma imagem própria bem diferente daquela que a sociedade americana,
tradicionalmente, apontava como uma descrição adequada da vida dos negros
americanos. (Bigsby, 1980, p.3)9 . Este momento de afirmação cultural foi um tempo de
rápida mudança e de desenvolvimento literário, tanto como os anos de 1970 vieram a
ser para as mulheres escritoras. A “Segunda Renascença Negra” é uma expressão que é
usada para descrever um posterior desabrochar de trabalhos literários dos escritores
afro-americanos. Começou com o trabalho literário de Richard Wright, autor de muitas
obras importantes incluindo Uncle Tom’s Children (1938) e Native Son (1940), que
veio a gerar um surto de produção literária por parte de autores negros, incluindo muitas
mulheres escritoras.
Nella Larsen, escritora de primeira Renascença de Harlem é uma figura
importante na história da escrita das mulheres negras. O seu trabalho foi em grande
parte ignorado até à revolução literária feminista dos anos 1970, mas no seu próprio
tempo (anos 1920) foi saudada, tanto por críticos brancos e negros, homens e mulheres,
como uma escritora de talento. Larsen foi a primeira afro-americana a ganhar o
prestigioso galardão de membro da sociedade literária Guggenheim, em 1930, pelo
mérito e força dos seus dois primeiros romances Quicksand e Passing. Posteriormente,
Larsen foi publicamente acusada de ter feito plágio, acusação que ela negou
veementemente e de que veio a ser absolvida. Mas tal acusação foi contundente e a sua

9
Para mais informação e introdução a este assunto, veja Kiernan, American Writing, desde
1945, 1983); Washington, Mary Helen, ed. 1987. Invented Lives: Narratives of Black Women, 1860-
1960. New York: Doubleday; Smith, Jessie C., ed. Notable Black American Women. Detroit: Gale
Research, 1992 e Smith, Jessie C Notable Black American Women, Book II. Detroit: Gale Research,
1996.

130
carreira literária nunca recuperou desse revés. Larsen veio a morrer em Nova Iorque, em
1963, em relativa obscuridade10.
Mas a grande maioria de trabalhos escritos por autores não brancos teve o seu
desenvolvimento nos finais do século XX. Os movimentos cívicos e feministas dos
finais dos anos 1960 e 1970 levaram à inclusão de grupos anteriormente silenciados e
marginalizados, no tradicional cânone literário dos autores brancos. Estes movimentos
ocorreram primeiro na América do Norte mas estenderam-se depois a outros países de
língua inglesa. A primeira tentativa para a inclusão da escrita de mulheres em currículos
literários centrou-se em autoras tais como Charlotte Perkins Gilman, Emily, Dickson e
Louisa May Alcott. Mas escritoras negras do gabarito de Harriet Jacobs e, mais tarde,
Phillis Wheatley, Nella Larsen, Zora Neale Hurston, e ainda posteriormente Maya
Angelou, Paule Marshall, Jamaica Kincaid, Gloria Naylor, Toni Kade Bambara, etc.,
vieram também a ser incluídas no novo cânone em desenvolvimento. De acordo com
Shockley (1988), “o impacto destas mulheres negras escritoras foi, em grande parte,
conseguido por elas próprias, pois os autores negros masculinos limitavam-se a negar
uma conexão com os patriarcalismos reprováveis daqueles seus pares que os tinham
antecedido” (Shockley, 1988, P.XXIIV).
Por causa desta posição de relativo alheamento dos escritores homens, podemos
dizer que as escritoras negras sentiram a necessidade de se confrontar com as vozes
masculinas dos autores negros, uma vez que os homens, não representavam
adequadamente a grande variedade de experiências e as ideias próprias das mulheres
negras11. Como se sabe, a dificuldade da representação de um grupo por um indivíduo é
sempre algo complexa e ligada a questões de género e de raça.
Mas hoje, graças aos esforços de muitos estudiosos, é já possível e relativamente
fácil ter conhecimento de um conjunto substancial de autores negros em qualquer dos
três géneros literários. Por exemplo, obras como Black Women’s Writing, de Wisker

10
Para informação adicional veja o ensaio de E. McDowell, “It’s not safe. Not safe at all” em Halperin,
The Lesbian and Gay Studies Reader 1993,.616-27.
11
Por exemplo, não é difícil reconhecer-se que Virginia Woolf escreveu um ensaio importante e várias
histórias que expressavam ideias e experiências comuns a muitas mulheres. Mas também é evidente que
Woolf, pela sua condição relativamente privilegiada de mulher branca da classe média, não podia ser tida
como representante de muitas outras mulheres suas contemporâneas, o que levava a que fosse acusada de
“elitismo”, apesar de se ter esforçado por representar na sua escrita, tudo quanto ela apreendia da vida. De
modo similar, Harriet Beecher Stowe deu um contributo importante para o desenvolvimento da história
literária dos negros, com o seu romance Uncle Tom’s Cabin. Mas Stowe era também uma burguesa
branca que se movia nos mesmos círculos sociais frequentados por famílias como a Emily Dickinson.
Por isso, o contributo de Beecher tem sido criticado por ser considerado, em parte, uma apropriação
reinventada e até mal interpretada das experiências de vida dos negros, por parte de uma autora branca.

131
(1993), Sister Outside, de Lorde (1984) e Home Girl, de Smith (1983), são realizações
empenhadas num processo de pesquisa dos seus precursores e no estabelecimento do
seu trabalho com parte de uma tradição e isso é tão importante, como não
surpreendente, por decorrer de uma necessidade de afirmação. E também não é de
surpreender que uma boa parte da escrita mais influente e poderosa de autores negros na
América não seja ficção, mas recorra, antes, a várias formas autobiográficas, pelo que
isso representa de afirmação e testemunho de uma boa parte da América que, apesar de
ser “gente de cor”, não possuía a visibilidade merecida.
***

Como começámos por indicar, o objectivo principal deste capítulo é o de


examinar o contexto sóciocultural e político da condição de mulher e da luta feminina
na literatura africana e africana na diáspora. Apresentámos a situação da mulher em
várias sociedades e países africanos como a África do Sul, Moçambique, Gana e Egipto.
Seguidamente, retratámos a situação da mulher negra tanto no Brasil como nos E.U.A.
Através deste estudo demonstrámos que na sociedade africana tradicional, apesar de as
mulheres desempenharem alguns papéis preponderantes na sociedade - estão envolvidas
no sistema da administração social e na tomada de decisões importantes dentro e fora de
casa, quer como mães, esposas, irmãs, filhas,- quer como líderes religiosas, defensoras
da comunidade, representantes da actividade comercial, administradoras e até rainhas
de clã – elas foram sempre marginalizadas e oprimidas. Durante a colonização, as
mulheres foram das maiores vítimas da política opressiva de regimes coloniais. Depois
da colonização, as mulheres continuaram a sofrer um triplo jugo de dominações
decorrentes do preceitos e práticas religiosas muçulmanas, cristãs e tradicionais, já que
em qualquer uma dessas religiões as mulheres são consideradas seres de condição
inferior. No entanto, hoje em dia, conforme é patente no afrontamento protagonizado
pelas “novas” personagens femininas, as mulheres estão a conseguir libertar-se de jugos
ancestrais e, na literatura, estão a conseguir afirmar também um crescente espaço de
representatividade e visibilidade. Tivemos também oportunidade de sublinhar que, na
sociedade brasileira e americana, as mulheres negras foram e ainda são vítimas de forte
preconceito social e racial.
Por tudo isso, esperamos que o estudo das respectivas sociedades africanas e
africana na diáspora, aqui feito, venha a ser um contributo útil para um melhor
entendimento e contextualização das obras de seis escritoras: três africanas e três

132
representantes da diáspora africana: Niketche de Paulina Chiziane (escritora
moçambicana), So Long a Letter de Mariama Ba, (escritora senegalesa) e Merchants of
Flesh de Chinwuba Ifeoma (escritoras nigeriana), Quarto de Despejo de Carolina Maria
de Jesus (escritora afro-brasileira), The Color Purple de Alice Walker (escritora afro-
americana) e Second Class Citizen de Buchi Emechita, (escritora afro-inglesa), que
abordam, com intenção de afirmação, as questões da criatividade e do género na
literatura africana moderna e da diáspora africana, dando assim à mulher um novo e
maior espaço de reconhecimento.

133
QUARTA PARTE

ESCRITORAS NEGRAS NA
DIÁSPORA E A QUESTÃO DA
ESCRITA FEMININA

134
1. APRESENTAÇÃO DAS ESCRITORAS EM ESTUDO - ALICE
WALKER, CAROLINA MARIA DE JESUS E BUCHI EMECHITA.

i. Alice Walker
Alice Walker nasceu em Eatonton, Geórgia. É a filha mais nova de Willie Lee e
Minnie Tallulah Grant Walker, que eram agricultores rendeiros. Quando tinha oito anos,
enquanto brincava com os seus dois irmãos mais velhos, um pequeno estilhaço de cobre
acertou-lhe num olho. O efeito desse acidente foi traumático, pois levou-a a mudar de
comportamento, e a expor-se menos, apartando-se do convívio com outras crianças. E
assim, de menina irrequieta, autoconfiante e diligente, passou a uma criança solitária,
tímida e reservada. Walker dedicou-se então vigorosamente aos seus estudos e obteve
êxito extraordinário ao nível escolar. Após a graduação, ganhou uma bolsa de estudos
para frequentar o Spelman College, uma prestigiada escola superior destinada a
mulheres negras, situada na cidade de Atlanta, Geórgia. Depois de dois anos de estudos,
passou a frequentar o Sarah Lawrence College, em Bronxville, Nova York onde se
licenciou em 1965, em Letras, tendo-se dedicado então, em particular, ao estudo da
poesia, do Latim e da História. Walker foi uma participante activa no movimento dos
direitos cívicos, trabalhando não só na inscrição dos eleitores da Geórgia para o
programa Head Start no Mississipi, mas também para o Welfare Department, na Cidade
de Nova York. Ensinou na Universidade Estadual de Jackson, nos anos sessenta, e na
Universidade de Tougaloo, Universidade de Wellesley e Universidade de Massachusetts
em Amherst, na Universidade da Califórnia em Berkeley e ainda na Universidade de
Brandeis, por vários períodos de tempo, nos anos setenta.
Em 1965 publicou uma coletânea da poesia, Once: Poems. O seu primeiro
romance, The Third Life of Grange Copeland foi publicado em 1970.
Nessa altura, trabalhava como jornalista na revista feminista americana MS
Magazine, onde beneficiou da oportuna assistência de Gloria Steinem, co-fundadora e
chefe da redacção dessa revista, que divulgou as actividades literárias, os esforços
intelectuais e as ideias feministas de Alice Walker. Em 1976, Walker publicou o seu
segundo romance Meridian, que trata da história de uma mulher que luta pelos direitos
cívicos no sul dos E.U.A . Em 1968, casou-se com Mel Levanthal, um conhecido
defensor dos direitos cívicos e tiveram uma filha, Rebeca. No início dos anos 1970
divorciaram-se.

135
Ganhou vários prémios, destacando-se entre eles o Pulitzer Prize, em 1982 para
a ficção e o Prémio do Livro Nacional, em 1983, ambos premiando The Color Purple.
Ao longo da sua actividade, Walker publicou uma variedade de obras literárias e
não literárias, como romances, contos, poesias e obras não ficcionadas, mas foram os
seus romances que promoveram a sua reputação literária junto do grande público leitor:
The Third Life of Grange Copeland (1970), Meridian (1976), The Color Purple (1982),
The Temple of My Familiar (1989), e Posessing the Secret of Joy (1992). Os seus
contos foram coligidos em dois volumes – In Love & Trouble (1973) e You Can`t Keep
a Good Woman Down (1982). É importante notar a capacidade criativa de Alice Walker
que conseguiu publicar cerca de sete antologias de poemas, a saber: Once (1968), Five
Poems (1972), Revolutionary Petunias & Other Poems (1973), Good Night, Willie Lee,
I`’l See You in the Morning (1979) e Horses Make a Landscape Look More Beautiful
(1984). Também publicou algumas obras não ficcionadas e ensaios - In Search of Our
Mother`s Gardens (1983) e Living by the Word (1988); uma colectânea importante dos
textos de Zora Neale Hurston e uma biografia de Langston Hughes.
Alice Walker é, sem dúvida, uma escritora prolífica e talentosa e as suas
realizações manifestam uma versatilidade surpreendente, sentindo-se perfeitamente à
vontade para escrever tanto poemas como obras não-ficcionadas. É interessante
assinalar que, no princípio da sua actividade literária, era mais conhecida como poeta e
não como romancista ou escritora de ficção. Contudo, foi a sua produção em prosa
(romances e ensaios) aquela que, pouco a pouco lhe deu um lugar de destaque como
escritora, nas letras americanas. (Gate Jr 1998, p.67) É, de facto, surpreendente a
sensibilidade e rigor com que ela desenvolve o conceito de " womanism " nos seus
romances, procurando transcender as falhas que ela própria detecta nessa
conceptualização e condena nalgumas correntes feministas.
Mas, apesar dos seus trabalhos como poetisa e ensaísta, Alice Walker é mais
conhecida pelos seus romances, onde a sua visão veio a ter uma expressão mais
divulgada. Como Hurston, incorpora elementos do folclore tradicional na sua ficção.
Utiliza algumas características do romance gótico inglês, bem como do romance que
retrata a migração dos negros do sul para o norte dos E.U.A e ainda do romance
sentimental do século XVIII.
A publicação do seu terceiro romance The Color Purple, um romance epistolar,
foi claramente decisiva para o seu reconhecimento público como escritora conceituada,
sobretudo através da exposição pormenorizada da angústia e sofrimento de Celie que,
136
neste conhecido texto, representa a marcada evolução de uma personagem feminina,
tradicionalmente submissa. De início, Celie é uma mulher completamente subjugada
pelo marido, mas no fim, apresenta-se como uma mulher autónoma, libertada do jugo
patriarcal. Mas o êxito desse romance expôs a autora às criticas dos escritores
masculinos que, de algum modo, contemporizam ou dão continuidade a estereótipos de
violência contra as mulheres e, em vista disso preferem, implicitamente, que esses
maus tratos também tenham menor divulgação no seio da literatura escrita por mulheres
negras.

É importante salientar o facto de o tema da opressão ser uma das maiores


preocupações da Black Fiction”, desde que a forma do romance foi utilizada,
primeiramente por William Wells Brown e Harriet E. Wilson. O relato da opressão dos
Negros exercida por outros Negros não tem uma história longa como tema dos
romances americanos, pelo que The Color Purple também foi uma importante denúncia
desse facto.

A história de Celie, que seguidamente se sumariza, narrada na forma epistolar,


enfatiza a vitória da pura força da vontade sobre as forças opressivas, forças que
pareciam ser omnipotentes, irresistíveis. Convém dizer que a discriminação praticada
pelos brancos, com uma excepção notável, foi relegada para o segundo plano neste
romance. A atenção centra-se na subjugação de mulheres negras por parte de homens
negros, sendo este do nosso ponto de vista, o eixo de dominação que estrutura The
Color Purple. A luta e esforço de Celie contra a opressão e a sua vitória final sobre a
dominação a que esteve submetida, está ligada a uma consciência crescente dos seus
direitos e dignidade, que se vai manifestando nas cartas que escreve.
O romance apresenta ainda a história atribulada de outras personagens femininas
corajosas e determinadas, empenhadas em sobreviver perante as dificuldades. Recusam
ser derrotadas e subjugadas pelo poder patriarcal da sociedade. Neste romance é fácil
identificarmos mulheres com diferentes tipos de comportamentos. Mas, é a atitude
contida e crescentemente determinada de Celie aquilo que mais nos cativa, por
representar a admiração por alguém que resiste estoicamente à violência de que é
vítima.
Este romance inicia apresentando-nos a história da personagem principal, uma
rapariga analfabeta e pobre de 14 anos que é sexualmente abusada pelo pai (na verdade,
137
pelo padrasto, como ela só depois saberá), de quem terá dois filhos. Celie é órfã, o seu
verdadeiro pai tinha sido dono de uma loja e fora morto por linchamento por brancos
que levaram mal o sucesso do seu sucesso comercial. Por sua vez, a sua mãe estava
doente e acabou por falecer, tendo ela ficado órfã, ainda menor.
Virá depois a ser obrigada a casar-se com Mr…… (Senhor!, isto é, a designação
de alguém que se reverência,). Estamos assim em presença de um homem que
inicialmente é uma personagem sem nome próprio expresso, apenas designado por
“MR” (Senhor), o que sublinha a conotação que estas duas letras têm. Esta forma de
tratamento é, desde logo, indício do distanciamento que existe entre esta mulher e o
marido que lhe é imposto, de acordo com a tradição, em que a mulher tem de aceitar os
ditames de uma organização falocêntrica.
Durante anos Celie virá a suportar a brutalidade e os maus-tratos deste marido,
que nem sequer respeita o seu direito a comunicar-se por carta com a sua irmã Nettie, a
qual havia saído da casa onde vivia com Celie, para não ser também violada pelo
marido de Celie. Após o afastamento físico de Nettie, Mr. (Albert) esconde todas as
cartas que esta escreve a Celie, de África, para onde foi viver. Passados vários anos,
quando Celie descobre esta sonegação da sua correspondência, por porte do seu marido,
verifica que a baixeza de Albert, o seu marido, é tal que o tornar capaz de qualquer
indignidade para com ela. Revoltada, Celie amaldiçoa o marido, desprezando-o, a partir
daí e passa a viver em Memphis com Shug, (que era a amante do seu próprio marido). A
descoberta da usurpação de correspondência, para além da total falta de respeito que
evidencia, tem o mérito de mostrar a Celie que a sua irmã Nettie tinha morrido. Por
muitos anos, Celie lutara para não se deixar abater, agarrando-se à grata memória da sua
querida irmã e agora tinha a prova de que ela estava viva. Ficamos assim rendidos à
coragem de Celie e ao seu amor incondicional por Nettie. A retoma deste contacto será
um grande alento para Celie, cuja irmã voltará de África, posteriormente. A ligação que
Celie estabelece com Shug permitirá a Celie a descoberta de outra fora de amor. Essa
relação de afecto entre duas mulheres permitirá também que Celie volte a ter auto-
estima e ganhe confiança suficiente para enfrentar, finalmente, um marido violento e
que sempre a desrespeitou.
No fim do romance, observamos que Celie é uma personagem consciente dos
seus direitos e do direito ao prazer, é alguém que aprende a amar-se e a compartilhar o
amor, apesar das dificuldades contínuas com que é confrontada ao longo da vida. No
desenvolvimento da narrativa, vemos que Celie passa por um longo sofrimento, mas
138
supera-o, tendo aprendido a lutar e a tornar-se auto-suficiente economicamente, passo
necessário para a sua libertação e afirmação pessoal.
O título do romance encerra uma simbologia importante. A cor púrpura remente
para sofrimento e dor. A púrpura é também a cor das partes mais íntimas do corpo de
Celie, o lugar que foi repetidamente violado pelo seu susposto pai e usado pelo seu
marido, como um objecto de prazer ao seu dispor. Por isso, a cor púrpura é
continuadamente assinalada no romance com conotação de sofrimento e dor.
Sumariamente, o romance The Color Purple enfatiza o tema do racismo, a
questão da desigualdade por razões de género, a violência masculina contra as
mulheres, a experiência da vivência africana, a fraternidade no feminino, a dificuldade
de acesso à escolaridade para as mulheres, as consequências do sexismo sobre a
condição da mulher, o afrontamento do papel tradicional do género masculino e o poder
da carta como meio de comunicação, entre outros temas.

139
ii. Carolina Maria de Jesus
Carolina Maria de Jesus é a escritora cujo livro causou polémica no Brasil nos
anos sessenta, ao divulgar a história da sua vida, uma mulher negra vinda do nada e que
conseguiu ser bem-sucedida, num tempo em que um negro não podia esperar ter algum
sucesso no mundo das letras, o qual, nessa altura, era predominantemente dominado
pelos brancos.
Carolina Maria de Jesus, neta de escravos alforriados e filha de negros pobres,
tinha mais oito irmãos que, provavelmente, migraram de um lugarejo, o Desemboque,
para a cidade de Sacramento, devido a mudanças na economia, quando, da extracção de
ouro se passou a privilegiar as actividades agro-pecuárias. Segundo Nei Lopes s (2004),
Nasceu no dia 14 de Março de 1914, num subúrbio de Sacramento, no interior de estado
de Minas Gerais. Quando tinha 7 anos, iniciou a escola primária, o que se pode
considerar um relativo privilegio para uma negra do interior.

Carolina Maria de Jesus frequentou o Colégio Allan Kardec, o primeiro Colégio


Espírita do Brasil, fundado em 31 de Janeiro de 1907, por Eurípedes Barsanulfo.
Segundo a própria Carolina, (Jesus 1960, p.33) ao princípio não gostava de andar na
escola, mas quando se apercebeu de que, após três meses de escolaridade, já sabia ler,
ganhou gosto pelos livros e pelo estudo, o que lhe deu uma grande satisfação interior e
exterior. Carolina também foi influenciada pelo seu avô paterno, a quem ela chama
“Sócrates Africano”, pelo facto de ele ter sido a sua grande fonte de inspiração e
modelo. Com o objectivo de ajudar os seus pais a tomarem conta dos seus irmãos mais
novos, deixou de estudar no terceiro período do segundo ano da escola primária e
começou a trabalhar, ainda em tenra idade, a fim de arranjar dinheiro.
Devido às dificuldades de subsistência e com o intuito de melhorar a sua vida,
quando já tinha 16 anos, Carolina e a sua mãe foram para a vila de França, no Estado de
São Paulo, tendo vivido então no bairro pobre do Canindé, hoje já extinto, na zona
norte, da grande cidade, onde a sua mãe veio a morrer na miséria.

Com 33 anos, Carolina seguiu os passos da maioria dos emigrantes ali


residentes, isto é, foi viver para a cidade de São Paulo. Ali chegada, não conhecendo
ninguém e sem qualquer ajuda, tornou-se mais uma “sem abrigo”, dormindo ao relento,
sob pontes, em estradas e outros lugares sem qualquer comodidade.. Para sobreviver,
140
fazia qualquer trabalho, tal como empregada de limpeza em hotéis, auxiliar de
enfermagem, vendedora de cerveja e empregada doméstica. Mas devido à discriminação
racial e ao preconceito sexual relativamente à mulher negra no Brasil, naquela altura, e
acima de tudo, por causa do seu baixo nível de escolaridade, nunca conseguiu arranjar
um trabalho dignificante.
Em 1948, ficou grávida do seu primeiro filho, de um marinheiro português que
logo a abandonou. Devido à gravidez, perdeu o emprego e foi forçada a ir morar na
favela do Canindé, à beira do Rio Tietê1. Sem meios de subsistência nem a ajuda da
família ou amigos, Carolina passou a recolher papéis e ferro velho, actividade que veio
a ser a sua fonte de rendimento para criar os seus três filhos de pais diferentes, os quais
nunca a ajudaram a sustentá-los. Um dia, quando andava à cata de papéis e ferro velho,
viu no lixo um caderno que apanhou e passou a utilizar para anotar a sua experiência
quotidiana, enquanto moradora de um bairro de lata. Carolina de Jesus era então alvo de
inveja dos seus vizinhos, devido ao facto de saber ler e escrever. Sendo uma mulher
determinada e corajosa, nunca aceitou o perfil da “coitada da favela” e trabalhou sempre
para melhorar a sua vida. Como meio de se abstrair da sua vida, no dia 15 de Julho de
1955, começou a escrever um diário onde anotava as suas experiências de vida, as
dificuldades e os desafios da vida quotidiana na favela.
A história de Carolina Maria de Jesus é semelhante às histórias tristes e às
situações deploráveis de muitas mulheres brasileiras negras que vivem em favelas e não
têm meios de subsistência. O que distingue a vida desta mulher da de outras é a sua
coragem, determinação e o seu amor pela leitura e escrita de obras literárias e não
literárias. Apesar de dedicar todo seu tempo a apanhar papéis e ferro velho, Carolina
Maria de Jesus conseguia arranjar tempo para cuidar dos seus três filhos e ainda
escrever sobre a vida miserável e a relação com os residentes desses bairros de lata,
abandonados pelo governo brasileiro de então.
Em 1958, aparece a primeira reportagem sobre Carolina no jornal Folha da
Noite. No ano seguinte, é a vez da revista O Cruzeiro divulgar o retrato da favela feito
por Carolina. O seu encontro com o jornalista Audálio Dantas, repórter da Folha da
Noite, que visitou a favela do Canindé com o intuito de efectuar um estudo sobre o
desenvolvimento do local, em meados da década de 1960, foi um ponto de viragem na

1
Os moradores da favela de Rio Tietê são constituídos por emigrantes que chegaram à capital paulista.
Estima-se que, no final dos anos 1940, existiam cerca de 50 mil pessoas a viver em favelas nos arredores
de São Paulo,
141
vida desta escritora. Foi durante esse encontro que Carolina lhe entregou os manuscritos
de seu diário. O jornalista seleccionou algumas histórias dos cadernos de Carolina que
foram então publicadas no jornal Folha da Noite e, mais tarde, na revista O Cruzeiro.
Deste modo, Carolina começou a despertar a curiosidade e atenção dos leitores e da
comunicação social. Como consequência da publicação de partes do seu diário, revisto
por aquele jornalista, surgiu o seu primeiro livro, intitulado Quarto de Despejo. Este
livro-diário mereceu ser prefaciado pelo escritor italiano Alberto Moravia e trata,
naturalmente, das dificuldades profundas vividas pelos moradores das favelas
brasileiras.
Segundo Magnabosco (2002) e Lopes (2010), mesmo diante de todo o
sofrimento, das perdas e discriminações que sofreu em Sacramento por ser negra e
pobre, Carolina revela, através da sua escrita, a importância do testemunho pessoal
como meio de denúncia sócio-política de uma cultura hegemónica que exclui aqueles
que não fazem parte do estrato dominante.
Esta obra teve grande êxito, pelo que foi editada oito vezes, registando-se mais
de 70 mil cópias vendidas naquela altura. No espaço de um ano, este livro-diário era o
constituía livro mais vendido, superando nas vendas a obra do próprio Jorge Amado.
Nos cinco anos seguintes, Quarto de Despejo foi traduzido para 14 idiomas e divulgado
em mais de 40 países, como Inglaterra, Estados Unidos, Rússia, Japão, Polónia,
Argentina, França, Alemanha, Suécia, Itália, a Roménia, Hungria Dinamarca, Holanda,
e Cuba.
O tema da miserável vida das favelas também tinha o impacto de ser
“novidade”, uma vez que não era um assunto habitualmente versado pela elite da
sociedade letrada do Brasil. E, durante algum tempo, enquanto o regime populista de
Getúlio Vargas imperou no país, os textos escritos por Carolina tiveram apreciável
divulgação em jornais e revistas. Mas, com a imposição do regime militar em 1964, as
denúncias feitas por Carolina passaram a ser omitidas ou sufocadas. No que toca à
crítica social veiculada por esta obra, podemos dizer que Quarto de Despejo retrata o
descaso social a que estavam votadas as favelas, em consequência de falsas promessas
políticas que agora eram denunciadas por um livro gerado no interior do caos que era a
vida dos marginalizados. O regime militar não estava interessado em acolher vozes que
faziam corajosas críticas sociais e, certamente por isso, as editoras receando represálias,
passaram a recusar-se a publicar as novas obras de Carolina.

142
Carolina Maria de Jesus teve assim de confrontar-se com a censura2 de um regime
ditatorial, tendo sido também vítima de discriminação por parte dos escritores
brasileiros que não a aceitavam no seu meio, como seu par. A sua escrita continha todas
as características de uma expressão marginal pelo que, como era de prever, não foi bem
acolhida pelo formalismo e convencionalismos dos rigores canónicos. Exemplo dessa
discriminação foi o facto de, em 1961, ela ter participado no II Festival de Escritores do
Rio de Janeiro, e os organizadores desse evento terem boicotado a promoção da venda
do seu livro, para darem toda a atenção à obra de Jorge Amado, Gabriela, Cravo e
Canela, que era claramente uma melhor aposta comercial. No que toca à crítica social,
podemos considerar que a obra Quarto de Despejo retratou, a partir de dentro, o descaso
social da favela, as falsas promessas políticas, as dificuldades de um povo esquecido,
marginalizado, fruto de políticas nada sociais.

A obra de Carolina de Jesus, desde que surgis, apareceu sempre acompanhada


do epíteto de “escritora negra e favelada”, mas este texto merece toda atenção, uma vez
que se trata de uma obra ímpar na literatura brasileira. Em 1961, o livro foi adaptado
como peça teatral por Edi Lima, no Brasil e foi à cena nesse mesmo ano. A obra
também serviu de base para um filme, produzido pela televisão alemã, que utilizou a
própria Carolina de Jesus como protagonista de uma longa-metragem que se intitulou
Despertar de um Sonho. A notoriedade e o interesse dos estrangeiros pela obra de uma
“favelada foi um facto até então inédito no Brasil.
Após o lançamento do livro Quarto de Despejo Carolina tornou-se a porta-voz
dos pobres e dos mais desfavorecidos, reclamando mudanças drásticas na sociedade
brasileira, bem como no mundo inteiro. Deste modo, ela tornou-se a estrela e a rainha
dos jornalistas, tendo então dado inúmeras entrevistas na televisão, onde sempre falou
de importantes questões sobre a vida dos pobres, questionou atitudes políticas, e, acima
de tudo, deu a conhecer a literatura esquecida que se fazia na favela, assim como
chamou a atenção para a condição de ser negra, marginalizada na sua própria terra, o
Brasil.
Devido ao sucesso do seu livro, Carolina conseguiu comprar uma pequena casa
em Santana, um bairro de classe média da capital paulista. Nessa nova morada, a sua

2
Segundo Levine e Meihy (1994), a obra de Carolina não sofreu censuras no período de governação
militar iniciado em 1964, apesar de a sua escrita estar carregada de crítica social e mostrar a realidade de
pessoas que eram esquecidas pelo poder público. Talvez, por causa da desabrida crítica social de
Carolina, as editoras, nesse tempo, se tenham recusado a publicar novas obras desta autora.
143
privacidade passou a ser perturbada pelos jornalistas, sendo muitas vezes alvo de
ataques preconceituosos e racistas, por partes dos jornalistas e da sociedade em geral.
Isto fez com que Carolina se mudasse de Santana para uma modesta casa de campo
situada nos palheiros, onde passou a viver afastada da grande cidade, para não ser
importunada, lendo e cultivando milho e outras plantas, para sustentar a sua família.
Mas apesar de se ter retirado para a periferia, continuou a ser alvo de críticas pouco
simpáticas da classe média, da comunicação social e da elite intelectual de S. Paulo.
Carolina publicou mais dois romances Casa da Alvenaria, em 1961, e
Provérbios e Pedaços da Fome, em 1963, e uma obra póstuma Diário de Bitita, que foi
publicada em 1982, pela editora francesa A. M. Métailié). Estudiosos da sua obra, tal
como Maria Paula Galdino Muyashiro (1999), consideram que há indícios de ela ter
tido acesso a obras de grandes escritores brasileiros, provavelmente nas casas em que
trabalhou, o que explicaria as menções em suas obras a poetas como Casimiro de Abreu
e Castro Alves. Sendo negra e não alfabetizada, encontram-se nas suas obras erros de
gramática, ortográficos, sintácticos e de pontuação, bem como reflexos decalcados da
linguagem oral, a par de um emprego por vezes desajustado de termos específicos da
linguagem escrita culta.
Uma outra característica das obras de Carolina Maria de Jesus é o seu
compromisso e engajamento político e social. Ao fazer-se um estudo atento dos seus
romances, notamos que a escritora estava sempre a par do que acontecia não só em São
Paulo, mas também em outros estados, provavelmente através de notícias lidas em
jornais que via nas bancas. Isto demonstra que Carolina foi uma escritora engajada,
atenta aos acontecimentos que eram noticiados no meio onde vivia, tendo sempre o
objectivo de melhorar a vida dos mais humildes através do que escrevesse.
Carolina viria mais tarde a cair no esquecimento do público e voltaria a viver na
miséria. Depois da fama, fase da sua vida narrada em Casa de Alvenaria, Carolina sofre
o desencanto com a literatura e com o sucesso:
9 de Dezembro de 1962. Hoje eu estou triste. Não tenho
dinheiro para comprar pão para os filhos. […] Na favela eu era
mendiga, pedia e ganhava. Mas, agora se vou pedir esmola:
ouço – Você é rica ! Se vou procurar trabalho ouço: você é
rica! Há os que me invejam o que eu sei dizer é que tenho
inveja dos favelados. Que podem procurar o que comer no lixo.
- E eu? – Que pavor me inspira a palavra – escritora. Só agora
compreendo como fui muito feliz quando fui favelada. Eu
voltaria fitando o solo e pensando: onde conseguir dinheiro

144
para comprar pão? Será que eu vim ao mundo destinada a
passar fome? Que vida a minha!

Apesar de ter sido a escritora do livro mais vendido naquela época, no Brasil, e
de ter merecido nessa altura grande reconhecimento público pelo seu cometimento
literário, Carolina viria a morrer no dia 13 de Fevereiro de 1977, aos 62 anos de idade,
portanto ainda relativamente nova, mas envelhecida pela pobreza e pela existência
difícil que levou.
Mesmo depois da sua morte, continuou a ser alvo de ataques injustos por parte
dos estudiosos e críticos da Academia Brasileira, que não viam com bons olhos os seus
esforços literários. Foi acusada de não ter sido capaz de se adaptar ao novo estatuto de
estrela e de não ter tido a capacidade de se relacionar com a classe, a que por momentos
passou a pertencer, mas onde nunca se integrou plenamente, o que ditou o seu fracasso.
Além disso, alguns jornais daquela época acusaram-na de arrogância devido à sua
ideologia e postura avessa às normas da vivência social mundana.
Na celebração dos trinta anos da morte de Carolina Maria de Jesus, o Instituto
Moreira Salles destacou a vida e a obra desta escritora tão pouco conhecida, mas de
grande importância para a literatura brasileira. Em 1977, durante uma entrevista
concedida a jornalistas franceses, Carolina viria a entregar-lhes os seus apontamentos
biográficos, onde narrava a sua infância e a adolescência. Em 1982, este material foi
publicado postumamente em França e em Espanha, tendo sido lançado no Brasil em
1986, com o título Diário de Bitita, pela editora Nova Fronteira. Carolina foi uma das
duas únicas brasileiras incluídas na Antologia de Escritoras Negras, publicada em 1980
pela Random House, em Nova York. Além disso, como prova da sua importância, está
incluída no Dicionário Mundial de Mulheres Notáveis, publicado em Lisboa pela Lello
& Irmão.

145
iii. BUCHI EMECHETA,

Buchi Emecheta, a escritora afro-inglesa, nasceu a 21 de Julho de 1944 em


Lagos. Os seus pais eram Alice Okwuekwuhe Emecheta e Jeremy Nwabudinke, da tribo
Ibo, da parte oriental da Nigéria. O seu pai era operário nos caminhos-de-ferro,
enquanto sua mãe trabalhava como ajudante de enfermeira no hospital e, mais tarde
como vendedora.
Naquela altura, devido ao preconceito e à discriminação contra o sexo feminino,
os seus irmãos foram inscritos na escola oficial, mas Buchi, por ser menina, foi
preterida. Buchi só veio a iniciar a sua instrução numa escola missionária para
raparigas. Muito cedo, viu-se privada do seu pai, que morreu quando ela tinha apenas
nove anos, o que veio a complicar a sua vida na comunidade e também o seu futuro
imediato na escola. Frequentou depois o ensino secundário e mais tarde recebeu uma
bolsa de estudos para frequentar a escola missionária secundária para meninas. Foi aí
que continuou os seus estudos até se casar com Sylvester Onwordi, um estudante com o
qual estava comprometida, desde os onze anos. Na altura do casamento tinha apenas
dezasseis anos. Em 1960, no ano do casamento, Onwordi foi para Londres a fim de
frequentar a universidade, com o intuito de ser contabilista. Só dois anos mais tarde,
Buchi se juntou a ele. Num casamento agitado, cheio de pontos altos e baixos,
Emecheta Buchi aguentou-se com a responsabilidade de dar à luz cinco filhos em seis
anos. Para manter o seu equilíbrio, Emecheta escrevia no seu tempo livre. Contudo,
invejoso e desconfiado da sua actividade criativa, o seu marido queimou os seus
primeiros manuscritos. Depois de seis anos de vida matrimonial em que sofreu insultos
e violência doméstica, e já com vinte e dois anos, Emecheta teve a coragem para deixar
o marido e conseguiu sustentar os seus cinco filhos trabalhando como bibliotecária no
Museu Britânico. Dedicou-se aos estudos, licenciando-se em sociologia, na
Universidade de Londres. Buchi trabalhou em várias áreas como professora,
bibliotecária, socióloga, voluntária, jornalista, entre outras actividades.
Escritora de renome e professora, Buchi Emecheta trabalhou em algumas
universidades tais como a Universidade do Estado da Pensilvânia, a Universidade de
Rutgers, a Universidade da Califórnia, Los Angeles, e a Universidade de Illinois em
Urbana-Champaign, nos Estados Unidos da América. De 1980 a 1981, foi professora de

146
Inglês na Universidade de Calabar, Nigeria. Entre 1982 e 1986, cumpriu funções
semelhantes nas Universidades de Yale e de Londres.
Buchi Emecheta é uma personagem com vivência intercultural. A grande
maioria das suas obras foi influenciada simultaneamente pela cultura tradicional e pela
sua vivência afro-europeia. A seu tempo, foi considerada uma das melhores e mais
jovens escritoras britânicas. As suas obras literárias apresentam as aspirações e as
dificuldades dos africanos que vinham para a grande cidade que é Londres e, acima de
tudo, mostram o que significa ser mulher e mãe na sociedade africana e europeia. Desta
maneira, as suas obras podem ser consideradas como um ponto de referência para obras
literárias da autoria de escritoras negras em África e na diáspora. As suas obras não só
põem em causa a dominação que tem sido exercida pelos escritores masculinos, mas
também dão voz às mulheres negras em África e na diáspora. Sendo uma escritora que
se dedicou à questão feminina, Buchi critica, através das suas obras, as práticas
patriarcais que subjugam as mulheres.
Buchi é uma escritora prolífica, tendo publicado obras ficcionais e não ficcionais
sobre a vida dos imigrantes africanos na Europa, em vários jornais e revistas nigerianas
e estrangeiras. Da lista das suas obras literárias, constam as seguintes : The Bride Price
(1976), The Slave Girl (1977), Titch the Cat (1979) Nowhere to Play, (1980), The
Moonlight Bride (1980), The Wrestling Match (1980) On Our Freedom (1981),
Destination Biafra (1982), Naira Power (1982), Double Yoke (1982), The Rape of Shavi
(1983) Adah's Story (1983), A Kind of Marriage (1986), Family Bargain (1987),
Gwendolen (1990), Kehinde (1994), The New Tribe (1996). Entre as suas obras não
literárias contam-se importantes ensaios, como por exemplo: “Observations of the
London Poor” (1971), que influenciou a escrita da sua primeira obra biográfica In The
Ditch (1972), e “Black Scholar”, com edições de Novembro e Dezembro de 1985; que
foram ensaios prévios a Head Above Water, (1986) uma segunda obra biográfica
publicada em 1986, além de “Criticism and Ideology”, publicado em 1988. De 1982 a
1983 Emecheta, juntamente com o seu filho jornalista, Sylvester, geriram a Ogwugwu
Afor Publishing Company, com a intenção de promover e dar apoio aos artistas negros.

Vale a pena acrescentar que segundo Davidon Umeh e Marie Umeh:1985 e


Lindfor (1990), Emecheta faz parte de um número restrito de escritoras africanas tais
como Bessie Head, Mariama Bâ, Flora Nwapa, Grace Ogot’s que foram galardoadas
pelas suas obras. Em 1975, recebeu o prémio literário Daughter of Mark Twain Award,
147
e no ano de 1977 foi contemplada com o prémio de Jock Campbell –New State Award.
Foi considerada a melhor escritora do Terceiro Mundo entre 1976 -1979 e, em 1977 foi
ainda galardoada com o prémio The Afro-Caribbean Post’s Golden Sunrise, tendo
também recebido em 1980 o prémio Best Black Writer in Britain Award. Devido à sua
capacidade literária e ao seu posicionamento face à condição feminina africana, as suas
obras receberam sempre uma grande atenção por parte da crítica literária e comentários
geralmente favoráveis. Emecheta foi uma das escritoras mais lidas dessa década.

Os principais temas das suas obras centram-se na vida e nas dificuldades das
mulheres africanas. Os protagonistas dos seus romances mostram o que significa ser
mulher e mãe na sociedade africana e europeia. Emecheta observa como a sexualidade e
a capacidade para procriar crianças podem, às vezes, ser o único meio de definir a
feminilidade e o feminismo, em África e na diáspora.
O seu primeiro romance intitulado In The Ditch, que é um romance semi-
autobiográfico centra-se na luta de Adah, protagonista do romance, que tem de viver no
espaço de um só quarto, enquanto trabalha como bibliotecária para sustentar a sua
família.
Este primeiro romance dá ênfase à determinação para sobreviver e às
dificuldades que Adah enfrenta, depois de se ter divorciado do seu marido, para
sustentar sozinha os seus cinco filhos em Pussy Cat Mansions, um bairro pobre no
subúrbio de Londres, onde teve de aceitar a assistência de um Instituto de Caridade, o
que veio a ferir o seu orgulho.
Second Class Citizen, segundo romance de Emecheta, uma das obras aqui em
estudo, é também uma obra autobiográfica. Trata das dificuldades de vida de Adah, a
sua personagem principal em África e na Europa. Aqui o romance apresenta Adah como
sendo uma personagem corajosa e determinada, que luta contra a discriminação e os
preconceitos para com a mulher, que numa sociedade patriarcal, tente obter educação
ocidental. O tema central do romance é a determinação desta personagem em lutar para
vencer todas as dificuldades que se lhe deparam, incluindo um casamento difícil, a
hostilidade da família do marido e os maus tratos deste. Na sociedade africana aqui
apresentada, a protagonista mulher é discriminada simplesmente por ser mulher. E na
sociedade europeia entrevista neste romance, a mesma protagonista é vítima do racismo,
por ser negra. Finalmente o romance retrata as duras condições de vida dos africanos

148
que tinham vindo para a Europa, nos princípios dos anos 1960 e até o fim da década de
1980, altura em que havia um forte preconceito racial contra os negros.

The Joys of Motherhood, é um romance que nos apresenta o fardo da vida de


uma mulher na sua condição simultânea de mãe e esposa, e que também retrata a
vivência da sexualidade e maternidade, do ponto de vista da cultura tradicional africana.
O romance de 1986 de Emecheta, Head Above Water, igualmente
autobiográfico, descreve também a sua luta para criar sozinha a sua família. Para o
efeito, Adah arranja trabalhos precários. Mais tarde obtém uma licenciatura em
sociologia, conseguindo ainda encontrar tempo para escrever. Head Above Water
descreve as condições sociais dos negros em Londres e assinala o progresso da
personagem como romancista. O livro termina com duas grandes conquistas-a aquisição
de casa própria e a transformação da autora em escritora a tempo inteiro.
Emecheta (1982) descreveu uma vez as suas histórias como “histórias do as
mulheres enfrentam os problemas universais da pobreza e opressão, qualquer que seja a
sua origem social, pois os problemas que todas elas enfrentam as tornam iguais.”
(Emecheta 1982, p.177)

Numa entrevista, quando foi interpelada aquando de uma entrevista sobre a sua
relação com as escritoras femininas da primeira geração, tais como Flora Nwapa, Grace
Ogot, Christina Aidioo e Bessie Head, Emecheta sisse que se consideravae como uma
“irmã mais nova” dessas escritoras (Umeh and Umeh, 1980,p.25), tendo reconhecido
então os esforços literários dessas escritoras e a influência que elas tiveram na sua
escrita. Deste modo irmanou-se com a tradição literária de que aquelas autoras foram
promotoras e prioneiras.
Verificamos que na sua obra, Emecheta presta homenagem a essas escritoras,
principalmente a Flora Nwapa, que considera como modelo na sua formação e com
influência directa na sua actividade literária, sobretudo no que toca à escrita do seu
segundo romance, Second Class Citizen (1974). São evidentes as semelhanças de
caracter e de forte personalidade entre Adah, a personagem principal em Second Class
Citizen e Efuru em Efuru, de Flora Nwapa .
Emecheta faz parte de um grupo restrito de escritoras africanas que beneficia do
reconhecimento dos críticos, quer em África, quer no mundo ocidental.

149
Em termos conceptuais Emecheta apresenta as personagens femininas de uma
maneira realista. São geralmente personalidades complexas, cujo comportamento é
definido e determinado pela sua interacção com a sociedade. No romance em estudo,
iremos verificar quer perante as dificuldades, Adah, a protagonista, corresponde às
expectativas dos seguidores da ideologia feminista, que pugnam por uma mulher forte e
autossuficiente.
É importante salientar que, pelo contrário, a representação da personagem do
sexo masculino suscita reacções acaloradas de críticos e estudiosos, um pouco por todo
o mundo literário e académico. Segundo Eustace Palmer (1983) a visão desta autora
relatando o homem como irresponsável é exagerada:“ a determinação da autora em
apresentar a personagem masculina como irresponsável e pouco razoável, e ao acabar
por não ser isenta, já que a irresponsabilidade atribuída aos homens, genericamente,
afigura-se é exagerada ao ponto de se tornar irrealista. (Palmer 1983, p.117)
Em vários encontros literários Emecheta distancia-se categoricamente das ideias
defendidas pelo feminismo ocidental afirmando que não era feminista. Mas mais tarde
declarou que, se era considerada feminista, então seria uma feminista africana
moderada, nascida e criada dentro do contexto da tradição africana3.“ (Palmer 1983,
p.111).
Numa entrevista dada em Londres a Denish Kirsten Holst-Petersen, Buchi
Emecheta afirma abertamente e sem rodeios o seguinte:
“É tão simples como isto. Eu não aceito ser chamada feminista porque
isso é um termo europeu e fico ressentida quando se referem a mim
usando essa expressão. Por outro lado, se tiverem em atenção aquilo que
eu faço, isso é o mesmo que as feministas fazem; a questão é que
feminismo vem da Europa ou de mulheres da Europa e eu não gosto de
ser definida por outras. Mas em quase tudo, excepto talvez em aspectos
da organização familiar, os meus livros tratam das mesmas questões que
elas. A questão é que se trata de algo que vem de fora e não gosto que
ninguém me imponha o que eu devo ser.
(Emecheta in Granqvist, Raoul; John Stotesbury: 1989, p.19)

3
Este ponto de vista será desenvolvido e discutido desde o início até ao fim do romance, principalmente
na parte teórica do nosso ensaio, onde apresentaremos as várias posições dos críticos e estudiosas
feministas no que toca à questão do feminismo na Europa e no continente africano.
150
2. REPRESENTAÇÃO DA OPRESSÃO DA MULHER NA COMUNIDADE
AFRO-AMERICANA E DA SUA CONQUISTA DA LIBERDADE, EM
THE COLOR PURPLE.

Este capítulo tem como objetivo examinar as representações feitas em The Color
Purple, pela escritora afro-americana Alice Walker, sobre questões como a opressão e
os abusos sexuais (incesto) sofridos por mulheres negras no seio da própria família, bem
como assinalar a resistência e a solidariedade no feminino, que visam pôr cobro a tais
situações. Este romance epistolar retrata o sofrimento das personagens femininas numa
sociedade dominada e controlada pelo poder patriarcal (Mitchell 1975), (Hartmann
1981), Christine Delphy (1977, 1984), através dos comportamentos sexistas e racistas
que ali nos são apresentados. Nesta obra, a autora escreve para dar voz activa às
mulheres negras e também para lhes apontar uma via que as conduza à emancipação,
libertando-as assim do jugo da opressão e da brutalização, a que, por força da tradição
estavam há longo tempo submetidas. Walker centra a acção deste romance no trajecto
de consciencialização de Celie, a personagem principal que, progressivamente, deixará
de ser uma personagem passiva, uma vítima oprimida e abusada sexualmente, para se
afirmar como uma mulher emancipada. É a partir desta perspectiva que exploraremos,
enquanto tema, a problemática da representação da raça, da opressão e da liberdade em
The Color Purple.

Para abordarmos criticamente este romance, na perspetiva acima referida,


dividiremos este capítulo em cinco partes. Numa primeira parte, apresentaremos a
definição de género epistolar e a razão pela qual Alice Walker o usa e incorpora na sua
estratégia de escrita. Num segundo momento, problematizaremos o tema da opressão, a
fim de o relacionar com a subjugação da mulher na sociedade americana retratada por
esta autora, de cariz patriarcal e que, por isso, busca preservar privilégios
tradicionalmente favoráveis ao homem, em detrimento da mulher. Daremos ainda
atenção às razões que levam a personagem principal a escrever as suas cartas que são o
corpus essencial do texto. Num terceiro momento, apresentaremos o retrato das
personagens masculinas no romance. Seguidamente, sublinharemos os laços de
fraternidade e companheirismo entre as mulheres, condição da sua emancipação e

151
autodefinição, no contexto deste romance. E finalmente, em notas conclusivas, num
quinto momento, trataremos do posicionamento ideológico de Alice Walker

i.a. A PROCURA DE UMA DEFINIÇÃO DO GÉNERO EPISTOLAR


The Color Purple, de Alice Walker é escrito em forma epistolar, tendência
comum no romance sentimental, como é o caso de Cartas Portuguesas de Gabriel
Joseph de Lavergne, em 1669, de Clarissa ou The History of a Young Lady de Samuel
Richardson, publicado em 1748 e Errors of Innocence de Harriet Lee, publicado em
1786. O romance epistolar1 foi muito cultivado ao longo dos séculos XVIII e XIX , mas
já não tanto no século XX, pelo que a opção por este tipo de escrita é surpreendente em
Alice Walker. Contudo, esta autora viria a ser elogiada por alguns críticos como Daniel
(1988), Sadoff (1985), Thadious (1984) e Namhata (2011) precisamente pela
reutilização e reinvenção deste género. Ao fazer uso deste estilo, Walker está a dar
liberdade às suas personagens para desabafarem sobre os seus problemas e partilharem
as suas alegrias com os leitores. Este género também permite que, através das suas
personagens, a autora vá mudando o estilo de escrita e o modo de apresentar os vários
acontecimentos, acções, consoante os diferentes quotidianos apresentados. Deste modo,
o romance consegue estabelecer uma comunicação mais directa com os leitores, ao
mesmo tempo que lhes fornece perspectivas múltiplas. Por sua vez, o recurso ao
anonimato é uma técnica tradicional usada no romance epistolar. Mas essa utilização
evidencia que Alice Walker tem formação literária e também que, embora esta forma de
escrita possa parecer muito simples, ela implica, na verdade, uma complexa técnica de
escrita.

Para Alice Walker (1983) The Color Purple é um romance histórico, que, em
vez de contar a história da “conquista de terras ou de nascimentos ilustres, de grandes
batalhas ou do falecimento de grandes homens”, começa com a história de “uma mulher

1
O termo “romance epistolar” está tradicionalmente associado à mais antiga e conhecida forma do que se
entende por ficção, aquela que é feita através de cartas pessoais. Contudo, há que considerar,
adicionalmente, um certo número de estratégias narrativas intimamente ligadas a este género, como sejam
os diários, as crónicas de jornais e revistas, cartas de leitores, e mais recentemente, o correio eletrónico e
blogues de carácter confessional. Todas estas variantes de comunicação têm várias características em
comum: consistem de documentos que são registos descarregados por quem a eles acede, e não narrativas
de uma pessoa para outra. Ao contrário da autobiografia (real ou ficcional), estes documentos podem ser
comentários feitos intervaladamente por várias pessoas, a propósito de ocorrências que sejam importantes
num determinado momento e quando ainda não se sabe como terminarão.

152
que pediu a uma outra a sua roupa interior” (1983, p.356). Por outras palavras, Walker
escreveu esta sua obra, prestando uma atenção particular às vidas e às várias situações
de mulheres comuns, sem história heróica nem façanhas, como era comum nos relatos
da História escrita pelos tradicionais detentores do poder patriarcal.

A personagem de Celie é inspirada na experiência de vida da própria avó da


escritora, uma escrava que fora violada pelo seu senhor quando só tinha apenas doze
anos de idade. Walker diz-nos que, ao transformar essa história de vida em ficção,
realizou um propósito de redenção e de reconciliação, pois, ao expor sob forma literária
o sofrimento da avó, pôde fazer a necessária catarse desses padecimentos, como que
redimindo assim o sofrimento da avó. (Tate 1994, p.118). Podemos dizer que Walker,
ao designar esta obra por romance histórico, procede também ao descentramento do que
são os objectivos tradicionais da história, dando menos ênfase à exactidão dos factos
históricos, a datas significativas, aos eventos ou pessoas ilustres de uma nação, do que a
relações interpessoais e à vida quotidiana num dado momento temporal. Ou seja: a
escritora considera as referências históricas somente na medida em que estas apoiam e
dão credibilidade ao que é improvável ou carece de datação para ter verosimilhança.
Walker põe assim em causa a noção de verdade histórica, sugerindo que esta está
subordinada ao mito, e que o que é mítico não se sedimenta em permanência na nossa
consciência. Este propósito parece-nos que fica amplamente evidenciado neste romance.
Efectivamente, alguns documentos e factos referenciados neste texto têm validade
histórica e específica. É o caso de jornais e artigos que, por exemplo, apresentam
depoimentos autobiográficos sobre a experiência e o modo de vida dos missionários
negros do século dezanove, em África. Vale a pena acrescentar ainda que Walker não
está preocupada com a correspondência entre o conhecido facto histórico de os
missionários afro-americanos terem feito um regresso a África e de terem fornecido um
registo ficcional dessas viagens que fosse minimamente plausível2. Elena
3
Shakhovtseva , por sua vez, no seu ensaio “The Heart of Darkness in a Multicolored
World”, afirmou que um dos aspetos mais marcantes em The Color Purple era a

2
Walker usa o facto histórico básico como estrutura para optimizar o realismo social do seu texto, a que
sobrepõe uma perspectiva contemporânea incontestável. A exactidão histórica é alterada para servir os
objectivos didácticos – que são, ensinar história ao leitor, não como ela foi, mas como ela devia ser.

3
Veja Shakhovtseva, Elena ““The Heart of Darkness” in a Multicolored World: The Color Purple by
Alice Walker as a womanist text” 1999-2000.http://spintongues.vladivostok.com/Shakhovtseva2.htm

153
combinação da história e do mito.

Também a evolução que se vai verificar na atitude de Celie é resultante de um


estreitamento de solidariedade no feminino que tem semelhança com o facto histórico
relativo à vivência das mulheres da tribo africana de Olinka, aspecto que abordaremos
adiante com mais detalhe.

i.b. A ESCRITA DO ROMANCE EPISTOLAR


Mesmo com uma definição que não está sempre bem estabelecida, há um certo
número de atributos que caracterizam as cartas particulares, mas que não se encontram
nos diários e que, em muitos casos, determinam a narração dos romances epistolares,
dando-lhes características particulares que os distinguem de outras formas de
testemunhos pessoais escritos de modo fragmentado.

Altman (1982) defende que há uma variedade de estruturas temáticas e


narrativas que são particularmente salientes nos romances epistolares, podendo a sua
presença ser assinalada através do modo como as cartas estabelecem a comunicação
entre pessoas. Há características nas cartas pessoais que vão determinar o modo como
os romances epistolares são escritos e interpretados/lidos. O modo como trocam ideias e
exprimem sentimentos não é um aspecto formal meramente ornamental, uma vez que
pode ser tido como uma forma estruturante do romance epistolar: “In numerous
instances the basic formal and functional characteristics of the letter, far from being
merely ornamental, significantly influence the way meaning is consciously and
unconsciously constructed by writers and readers of epistolary works” Altman 1982,
p.4). A partir deste enunciado, esta autora e crítica literária assinala uma série de
motivos narrativos contraditórios, relacionando-os com a própria natureza das cartas,
enquanto modo de comunicação. Neste seu estudo Altman define a comunicação
epistolar pelo modo como esta gera ou não significação através das características
inerentes à carta, enquanto via de comunicação. Dá-nos muitos exemplos de relatos de
histórias escritas em cartas, em que estas não são apenas veículos que transportam
palavras, mas entendidas, enquanto objectos físicos de comunicação, avaliando ainda o
modo como nessa qualidade elas determinam a relação entre emissor e destinatário,
nomeadamente o modo como o leitor interpretará a história. Perry (1980) sublinha, por
sua vez, a importância dada nas cartas à situação de separação entre duas pessoas e ao

154
desejo de se voltarem a encontrar, facto que é frequentemente apresentado nos
romances epistolares.

Por norma, esta situação de separação não é desejada, mas é imposta por alguma
força exterior ou, nalguns casos, por alguma razão decorrente de procedimentos ilícitos.
Assim, a privacidade da carta não é apenas uma convenção, mas uma necessidade. O
isolamento físico ou social é o que leva o autor solitário de uma carta a pôr no papel a
intimidade do seu sentimento. Se a correspondência é secreta, acontece frequentemente
que estas cartas não se limitam a ser meras convenções relativas ao modo de contar uma
história, mas são elas mesmo parte da história dos acontecimentos num enredo, que tem
outro desenvolvimento caso elas sejam depois roubadas ou extraviadas e, de alguma
forma, venham a ficar na posse de quem não as deveria ler (Perry: 1980, p.99) Tanto
Perry como Altman referem que, com frequência, as cartas, enquanto objeto físico, são
tratadas como algo que substituiu a ausência de um escritor no romance epistolar.
(Perry: 1980, p.99; Altman 1982, p.22) Tal como foi mencionado anteriormente, Perry
acredita que a falta de comunicação directa leva a que, na ausência de contacto directo,
o narrador seja levado a fazer projeções do destinatário das cartas, baseadas na memória
e nas reacções às suas cartas. Além disso, pode também dizer-se que, ao escrever sobre
os seus amores, os autores de correspondência epistolar estão “a seduzir-se a eles
mesmos” Perry:1980, p.123. Deste modo, o acto de alguém escrever sobre o seu amor
para com uma outra pessoa é um factor que auto alimenta o desejo amoroso para com
essa mesma pessoa.

i.c. Cartas e diários ficcionados

Se convencionarmos que “ficção epistolar” é “ficção narrada através da forma de


documentos escritos” (Abbot, 1984, p.9) há obviamente outras distinções a serem feitas
e que se incluem entre as variantes deste género.

The Color Purple é por vezes descrita como um romance em forma de diário.
Isso não é surpreendente dadas as condições em que Celie escreve as suas cartas a Deus,
em particular, mas também a Nettie. Neste texto, estas cartas são escritas sem uma
expectativa de resposta e ao mesmo tempo até sem esperança de serem lidas. Celie vê as
suas cartas apenas como documentos escritos falando de coisas que ela deseja
comunicar a outrem, no caso a Nettie ou a Deus, destinatários com quem não consegue

155
falar pessoalmente. Mas, independentemente dos presumidos pensamentos de Celie,
sobre este assunto, o senso comum e os estudos feitos sobre os estilos usados em ficção
sugerem que há diferença entre uma carta dirigida efetivamente a outros, íntimos ou
não, e um diário que se dirige a quem o escreve, mesmo que sem total consciência
disso. Contudo, estabelecer uma linha distintiva que separe a comunicação por carta ou
por diário não é fácil. A propósito desta dificuldade Abbot (1984, P.10) diz-nos o
seguinte:

The letter strategy and the diary strategy are so similar


that what can be said analytically about the one is
frequently transferable to the other. (…) the difference
then, between a study of epistolary fiction and a study of
diary derives not from a strict semantics distinction
between ‘letter’ versus ‘diary’ but from a difference in
focus or emphasis. (Abbot: 1984, p.10).
Assim, ao começar a discutir esta questão sobre as peculiaridades e as diferenças de
estilo entre cartas e diários, Abbot considera que os romances baseados em cartas são
tradicionalmente considerados epistolares, isto é romances feitos a partir de cartas. O
que se deve assinalar como traço distintivo entre cartas e diários (ou romances baseados
em cartas) é sobretudo uma questão de diferença de focalização e não tanto se o texto
tem remetentes ou destinatários expressos. Nesta ordem de ideais o que deve ser
destacado é se ao destinatário é dada uma vida independente e um papel activo no
desenvolvimento da obra. (Abbot, p.10)4.

Em observação similar, Martens (1985) diz-nos sumariamente que o que


distingue a escrita de um diário é que, quem o faz, escreve para si mesmo, enquanto que
quem escreve uma carta tem em mente um destinatário que fica expresso. Em
consequência disto, um romance baseado num diário é escrito na primeira pessoa, sendo
o narrador o protagonista dos acontecimentos que regista (Martens 1985, p.26). Deste
modo, cartas e diários são escritos sob forma e conteúdo decorrentes de circunstâncias

4
No caso de The Color Purple, as cartas de Celie têm destinatários, Deus e depois Nettie, sua irmã. E o
mesmo acontece em So Long a Letter, onde Ramatoulaye escreve a sua longa carta à sua amiga Aissatou.
No entanto, em Quarto de Despejo, o diário escrito por Carolina Maria Jesus, não tem destinatário
expresso, excepto o potencial público leitor. Deste modo, vemos que nestes romances que genericamente
consideramos epistolares ou autobiográficos, podem ter uma focalização comum e que, neste caso, é a
denúncia de situações de desigualdade por razões de género.

156
distintas, pelo que essas formas incorporam, romances respectivamente designados por
epistolares e autobiográficos.

i.d Ambiguidades decorrentes do tratamento dado à narrativa epistolar em


The Color Purple.
Numa primeira observação vemos que The Color Purple é uma obra que nos
apresenta os aspectos formais de um romance epistolar. Ele é narrado com base em
cartas escritas na primeira pessoa, que são dirigidas a um destinatário identificado pelo
seu nome. A linha narrativa é entrecortada e fragmentada, porque as cartas são trocadas,
no caso das cartas a Nettie, entre dois interlocutores que estão separados por forças que
escapam ao seu controlo, mas o enredo é linear e a história termina quando as duas
partes que haviam sido separadas voltam a estar juntas.

Mas numa segunda abordagem, mais atenta, apercebermo-nos de que esta


obra, afinal, distorce e subverte as marcas características do romance epistolar. Se é
verdade que há duas partes envolvidas, um remetente e um destinatário, não há
nenhuma troca de cartas, porque elas nunca são recebidas por ninguém. A principal
razão por que as cartas são a parte mais importante na identidade do romance epistolar é
que aí as cartas funcionam como meio de comunicação, quando todos os outros canais
estão fechados. Mas esta razão está significativamente alterada em The Color Purple,
onde nem sequer as cartas são o meio capaz de levar a uma troca de palavras entre Celie
e Nettie. Em consequência disto, Celie, assim como o leitor, só vêm a saber o que
aconteceu no passado, vários anos depois, uma vez que as cartas de Nettie, quando
chegam a Celie, são recebidas em vários conjuntos, ao mesmo tempo. Deste modo, as
histórias de Celie e de Nettie são-nos relatadas a ritmos diferentes do que seria esperado
neste tipo de forma literária. É como se estivéssemos em presença de duas partes que
trocam entre si pedaços desgarrados das suas vidas. E também é importante ter em
mente que a maior parte das cartas de Nettie não interferem no desenvolvimento da
evolução narrativa, enquanto que assumimos que todas as cartas de Celie são parte do
discurso narrativo. Aqui também, e ao contrário do que acontece noutros romances
epistolares, não é a reunião de Celie e Nettie, (após longa separação física), aquilo que
desencadeia a resolução do enredo narrativo, o qual ocorre algumas páginas antes desse
momento. Outra ambiguidade é que o romance opera com duas pessoas que escrevem
cartas, mas há três destinatários possíveis (Deus, Nettie e Celie) a partir de dois
interlocutores (Celie e Nettie ). A relação de comunicação não se cinge assim apenas a

157
um eu e um tu, como é a situação mais comum. Além do mais, esta ambiguidade fica
ampliada pelo facto de Celie não se preocupar em deixar claro a quem é que ela se
dirige quando escreve5

Celie começa a sua narrativa dirigindo-se a Deus, para lhe perguntar se Ele
lhe pode dar um sinal do que lhe está a acontecer, para entrar depois no relato dos
acontecimentos que a levam a formular esta pergunta. Este passo, logo no primeiro
parágrafo do texto, é uma das únicas três vezes em que Celie se dirige a Deus
directamente, isto é, com a utilização implícita do pronome pessoal “you”, além do uso
do tratamento formal “Dear God,” no início da página. A segunda vez em que se refere
uma relação de Celie com Deus é quando ela recebe resposta ao que lhe está a
acontecer, através da revelação que lhe é feita por Nettie de que Alphonso não é o pai
delas. É nesta altura e com esta informação que Celie escreve a carta mais curta deste
romance, terminando-a sintomaticamente com a frase “you [God] must be sleep.”
(Walker 1982, p.151). A partir deste momento de desapontamento para com a inacção
de Deus, ela passa a escrever a Nettie, em vez de se dirigir a Deus, visto que este,
aparentemente, nunca a ouviu. A terceira vez que Celie se dirige a Ele directamente é na
última carta do romance em que lhe agradece (agora sob a forma de um espírito
animista e já não da figura patriarcal e convencional da Bíblia) por lhe ter trazido Nettie
de volta. Antes da discussão crucial que terá com Shug e que a levará a rever a sua
imagem de Deus, Celie dirige-se, assim, pela última vez a um Deus que nunca atendeu
aos seus pedidos, desde a primeira carta, e que, supostamente, nunca lhe responderá. Por
sua vez, Celie nunca mais pedirá a Deus que abençoe as cartas que lhe escreve, pois a
partir daí, limitar-se-á a contar-lhe a sua história. Quando deixa de se dirigir a Deus e
passa a dirigir as suas cartas a Nettie, também o faz com uma idêntica ausência de
destinatário explícito. Esta mudança de destinatário de Deus para Nettie parece tão
natural que Celie nem se dá ao trabalho de recontar a Nettie a parte da sua história desde
a separação de sua irmã.

Neste sentido, devemos dizer que há uma grande diferença no modo como
Celie e Nettie se dirigem uma à outra. Frequentemente, Nettie, dirige-se a Celie
directamente, como quando lhe diz nas suas cartas, que “nunca pensou que ela fosse tão
5
Tendo em conta a teorização de Perry (1980 ) sobre a importância das relações existentes em muitos
romances epistolares (Perry 1980, p.93) e ainda as considerações de Altman sobre o modo como um eu e
um tu influenciam o próprio processo da retorica narrativa (Altman 1980, p. 118), esta indefinição sobre
quem “fala” com quem, merece ser observada com todo o cuidado.

158
ignorante” (Walker 1982, p.123). Noutros passos, Nettie menciona coisas que Celie
tinha dito antes ou lamenta a ausência da irmã, interrogando-se sobre o modo como ela
estará a passar os seus dias. Em claro contraste com tudo isto, Celie raramente se dirige
a Nettie utilizando o pronome pessoal na segunda pessoa, “you”. Por sua vez, Nettie
dirige-se a um “you”, Celie, em quase todas as cartas. Na verdade, o tom que Celie usa
nas suas poucas cartas dirigidas a Nettie é muito semelhante àquele que utiliza nas suas
esparsas cartas endereçadas a Deus. E quando Celie nos diz que as cartas que havia
escrito a qualquer um destes destinatários lhe foram devolvidas, ainda por abrir, fica
então claro que ela não estabeleceu comunicação com Nettie, tal como acontecia com
Deus, a quem se dirigia e que nunca lhe respondia. Deste modo, em termos objectivos,
para Celie, não há diferença entre escrever para Nettie ou para Deus. E também não é
por dever para com eles que ela escreve. Celie escreve para si mesma. As suas cartas
são confissões que não serão lidas pelos seus destinatários, excepto talvez por Shug, já
que esta tem conhecimento de que Celie as escreve. Além disso, Celie só começa a
dirigir-se a Nettie, mais directamente, nas suas últimas cartas, após Shug a ter deixado e
ela se sentir privada da única pessoa com quem podia falar de certas coisas.

Em consequência do que já referimos, The Color Purple, embora escrito em


tom confessional, não é um romance que se baseia na correspondência entre várias
pessoas, dado que também não regista nenhuma interacção ou comunicação efectiva
entre Celie e Nettie.

Outro aspecto que distingue as cartas deste romance e outras é que,


habitualmente, as razões porque as pessoas trocam correspondência têm a ver com a
necessidade de darem e receberem notícias. E isso não é nada do que acontece na troca
de correspondência que ocorre entre Nettie e Celie. Em The Color Purple, a
correspondência por carta não obedece a essa função básica que é comunicar. Aqui a
correspondência por carta é claramente uma estratégia narrativa para a criação de várias
vozes, através dos diversos registos do diário de uma personagem, neste caso, de Celie.

i.e O uso da forma epistolar em The Color Purple

Alice Walker é uma das primeiras escritoras afro-americanas que recorreram à


forma epistolar. Emprega esta técnica para gerar interacção a várias vozes, e também
por razões de afirmação identitária, como seguidamente veremos. A forma epistolar é o

159
meio que permite que Celie, personagem pobre, analfabeta afro-americana possa ser
apresentada como sendo dotada de voz. É através do processo de escrita que Celie
conseguirá reestruturar a sua identidade e adquirir maior autorrespeito. De acordo com
Harold Bloom, ao escrever as suas cartas, Celie ganha capacidade para exprimir os seus
pensamentos e sentimentos, o que vem a denotar o seu crescimento espiritual e faz com
que venha a conquistar a sua liberdade6. Deste modo, a estrutura das cartas e os anseios
nelas explicitados estão directamente relacionados com os temas da opressão, da busca
de identidade e liberdade, da regeneração e sobrevivência e, ao mesmo tempo, reforçam
a importância destes temas no contexto de uma personagem em busca de afirmação.

Ao adoptar esta forma de escrita e ao pretender reformular a história, Alice


Walker recorre, contudo, a algumas estratégias do género epistolar utilizadas por
escritores dos séculos XVIII e XIX, tais como a utilização da recorrente história
sentimental do sofrimento de uma donzela que veio a ser traída pela personagem
masculina, após ter sido seduzida. Mas, salientando o modo como Walker subverte esse
estilo, Henderson 1985 observa o seguinte:

In adopting the epistolary novel, Walker draws on certain codes


and conventions of the genre, but revises them in such a way as
to turn the sentimental novel on its head. Like the typical
sentimental heroine, Celie is orphaned early in the novel. Like
the Pure but Betrayed Maiden of the sentimental story,
Walker’s heroine is a victim of sexual abuse. (Henderson 1985,
p.14
No caso de The Color Purple, não há qualquer sedução e traição, mas sim a
violência e a prepotência do marido de Celie, a que esta conseguirá finalmente opor-se
através da aliança estabelecida com outras mulheres.

O uso da forma epistolar também permite que Walker ligue a educação


ocidental à tradição oral afro-americana. De acordo com o que Bloom (1989, p.68)
teoriza sobre esta questão, as cartas que Celie escreve fazem a associação entre a
tradição oral de África e a tradição epistolar, por forma escrita, do Ocidente. A
utilização que Walker faz da forma vernácula, nomeadamente o uso que falantes afro-
americanos fazem do inglês dá um novo cambiante a uma forma de comunicação, até

6
(1989), “the progress of The Color Purple can easily be considered as the process of Celie’s writing
herself into being and consciousness, of her growing power and control as a writer” (1989, p.185).

160
certo ponto, cristalizada e carecida de inovação7. Com efeito, a maior parte dos diálogos
nesta obra está escrita em forma idiomática e coloquial. A autora usa o discurso directo
sem o uso de aspas simples, o que leva os leitores a ficarem a par dos pensamentos e
sentimentos íntimos das personagens, ao mesmo tempo que assegura a intimidade
dramática entre eles.

Do nosso ponto de vista, dado que o romance se reporta explicitamente às


experiências traumáticas da vida de mulheres, a forma epistolar, que, neste caso,
também corresponde a uma forma de diário, adequa-se perfeitamente ao registo dessas
experiências. Esta estratégia de escrita possibilita aos leitores aperceberem-se das
mudanças na vida e na personalidade da personagem principal, através das
transformações que também vão ocorrendo no seu estilo da escrita. Estas
transformações discursivas permitem ainda que a narração contenha a apresentação de
diferentes pontos de vista, mas sem recurso ao típico narrador omnisciente, que detém o
total conhecimento do fluxo dos acontecimentos e das motivações não confessadas das
várias personagens, relatadas na terceira pessoa. Como a narração é feita na primeira
pessoa, essa possibilidade fica desde logo excluída.

Como é fácil de entender, Celie, a personagem principal tem uma relação


íntima com as outras personagens da narrativa, pelo que a sua maneira de contar a
história será marcada pelas características subjectivas e emocionais de quem fala na
primeira pessoa. Deste modo, a narradora e os leitores também se sentirão mais
próximos, já que a narrativa está necessariamente impregnada pelo ponto de vista do
narrador. No caso de The Color Purple esta proximidade com o narrador leva os leitores
a um envolvimento que tenderá a que eles busquem e até antecipem o desenvolvimento
das histórias que entretecem os destinos de Celie, Nettie, Shug, Alberto e Sofia, ao
longo deste romance.

Outra chave para o entendimento da técnica narrativa de Alice Walker pode ser
encontrada numa entrevista que esta autora deu a Mary Helen Washington (1982) e em
que a escritora distingue e descreve três tipos de mulheres negras: o primeiro tipo é o da

7
Celie’s letter transposes a black and oral mode into a Western epistolary tradition. Walker’s use of the
vernacular (Black English) has invested an old and somewhat rigid form with the new life” (Bloom 1989,
p.86)

161
mulher suspensa, caracterizado principalmente pela sua imobilidade; o segundo tipo é o
da mulher assimilada, uma mulher ainda frustrada, mas já pronta a mover-se, embora
sem ter ainda espaço para isso; e o terceiro tipo, o da mulher emergente, a mulher que já
está a dar passos em direcção a uma região, cujo terreno também já está assinalado num
mapa aonde ela pretende chegar. (Washington1982, p.213-14). Em The Color Purple,
Alice Walker parece incorporar estes conceitos para nos dar uma narrativa onde se
assiste à evolução de uma mulher que se vai identificando sucessivamente com os três
modelos aqui tipificados – suspensa, assimilada e emergente. Através deste processo de
evolução, no percurso da narrativa, a mulher ascende assim de um estágio de auto
negação ao de uma afirmação deliberada. Vejamos como esta evolução é apresentada
pela autora.

As duas irmãs separadas por anos, no princípio da narrativa escrevem para um


vácuo. Contudo, apesar desta incapacidade de comunicação, as suas cartas – as que
Celie escreve a Deus, as que Nettie escreve a Celie (e são retidas por Albert) e aquelas
que Celie escreve a Nettie (e regressam de África ainda por abrir) significam a
afirmação de um texto escrito por uma mulher negra onde as vozes destes estágios de
autodeterminação se conjugam.

Para isso, este texto subverte, de modo deliberado, as tradicionais noções


eurocêntricas de autoridade patriarcal que dominaram as convenções literárias dos
romances epistolares. Ao usar e ao apropriar-se desta forma criada e controlada pelo
poder dominante, Alice Walker também faz valer a sua autoridade e direito à autoria no
feminino. Assinando como “A. W., author and Medium” Walker informa-nos que “o
seu objetivo não era apenas criar e controlar as imagens literárias das mulheres, das
mulheres negras em particular, mas também o de dar voz e representação a estas
mulheres, que haviam sido silenciadas e confinadas a um espaço menor, na vida real
como na literatura”. (Whitaker 1992)8

Uma das outras razões que poderão ter influenciado Alice Walker a usar a
forma epistolar e diarística para escrever esta obra terá sido a leitura de algumas

8
Whitaker, Charles.Alice Walker: 'Color Purple' author confronts her critics and talks about her
provocative new book – Interview, Embony, May.Website visited:
http://findarticles.com/p/articles/mi_m1077/is_n7_v47/ai_12290929/?tag=

162
narrativas de escravos,9 tal como a Narrative of the Life of Frederick Douglass (1845),
onde os escravos libertados ou fugitivos contam as suas experiências de vida, do tempo
em que foram escravos. Neste sentido, The Color Purple evoca alguns dos primeiros
textos da escrita autobiográfica que, no decorrer dos últimos anos, têm influenciado a
escrita das obras de ficção afro-americana, da dita " slave narrative.10" As narrativas de
escravos são relatos pormenorizados que desvendam a história da luta e do sofrimento
do povo afro-americano. Por outras palavras, são uma maneira utilizada pelos afro-
americanos para escreverem a sua história e criarem uma literatura que constitua o
corpus de um povo que se auto-define. Ao contrário do que acontece com a personagem
Celie, o escravo(a) que regista a sua história, não está a seguir as ordens dos seus donos
e opressores. Essencialmente, esse acto de escrita constitui uma espécie de desafio e
protesto, uma afirmação que reivindica a mudança da situação dos oprimidos, de um
estado de silêncio à formulação de discurso, o que é em si mesmo um acto de liberdade.
Nestas narrativas de gente escravizada, a capacidade de ler e escrever é considerada
como uma via essencial para se atingir a liberdade. Vale a pena assinalar que Celie, a
personagem principal do romance The Color Purple, não só escreve, fazendo desse
gesto um acto de afirmação ou libertação, mas também um modo de superação das
humilhações sofridas.

Note-se que Nettie recorda o seguinte: "I remember one time you said your
life made you feel so ashamed you couldn´t even talk about it to God. You had to write
it." (Walker 1982, p.110). Face ao ponto de vista acima referido, podemos dizer que o
acto de escrever não é só um processo que permite a Celie fazer de si mesma um sujeito

9
.Uma componente importante da tradição literária dos escravos negros, a qual, na sua forma discursiva,
ao usar um narrador principal na primeira pessoa, promove a recuperação da subjectividade do
enunciador, pela utilização constante que faz do pronome pessoal de sujeito “eu”. É isso que, no
entendimento de Susan Willis, resgata do anonimato o sujeito enunciador negro, retirando-o de um
patamar de inferioridade ou de um brutal desdém (p.213).
10
A publicação de autobiografias de escravos fez com que os afroamericanos oprimidos tenham mudado
de objecto para sujeito, do silêncio para criação de uma literatura revolucionária – uma literatura que veio
a mudar a natureza e o conceito da história afroamericana e que serviu de base para o desenvolvimento de
uma distinta tradição literária no seio das letras americanas. As autobiografias de escravos têm o
objectivo de transmitir, com tanta exactidão quanto possível, a história da escravatura tal como ela foi
experimentada e interpretada pelos escravos, sem apologia ou exagero. Esta ênfase em contar a verdade
tinha dois objectivos, em primeiro lugar, fazer a apresentação de fontes fidedignas, e seguidamente, gerar
um discurso radical sobre a escravatura, que depois veio a servir como uma arma correctiva e, acima de
tudo, como um desafio para com a perspectiva da supremacia cultural dominante.

163
de enunciação, mas também lhe permite obter um distanciamento em relação às suas
experiências. Contudo, Celie não vê nem compreende o acto de escrever como um acto
de poder, ou auto-legitimação. Ela sente-se fortalecida não pela palavra escrita, mas
pela palavra dita, ao contar a sua história a Shug. Mais tarde, depois de ter conseguido a
mudança do seu estado - de objecto a sujeito, Celie deixa de escrever a Deus e endereça
as suas cartas a Nettie. Isso sim, equivale a um acto de autoafirmação consciente,
através da escrita.

Neste romance, o acto de escrita é, para Celie, essencialmente, uma via para a
sobrevivência e afirmação ou recuperação da sua identidade. Por ter sido violada, Celie
sente-se uma mulher vencida, o que faz dela uma prisioneira desse mesmo estado de
espírito. A sua irmã Nettie e a sua nova amiga, Shug, designadamente, incitam-na a
lutar contra Mr. Albert, dizendo-lhe que terá de ser ela própria quem, por essa via, terá
de resgatar a sua dignidade. A luta que se trava entre Celie e os homens que dela
abusaram não é uma questão de afirmação de identidade de ‘raça,’ uma vez que esses
homens são parte da mesma “raça” e “nação. Mas Celie precisa de afirmar a sua
identidade enquanto mulher, pois a sua liberdade só virá quando ela recuperar a sua voz
e for capaz de gritar bem alto a individualidade da sua existência, face ao género que a
subjuga e lhe recusa a sua individualidade.

Além de ser um acto de sobrevivência, o acto de escrita na pessoa de Celie é um


gesto de rebelião. No princípio da narrativa, Celie é apresentada como um objecto
passivo que não é capaz de reivindicar os seus direitos, nem pela sua acção, nem pelas
suas palavras. Uma situação que Trudier Harris (1984) considera estranha. Este crítico
não consegue entender por que razão uma jovem mulher negra tão violentada, se
mantém, de início, tão passiva. Por isso, Harris reprova a falta de coragem de Celie para
desafiar os seus opressores, citando o caso de alguns escravos que fugiram,
prejudicaram, lutaram ou até ousaram envenenar os seus senhores (Harris 1984, p.157).
Para nós, esta crítica é desajustada pois parece que Haris não tem em consideração a
diferença entre acometer contra a vida de um amo esclavagista, sem qualquer ligação
familiar, ou fazer isso contra o marido ou o suposto pai. Além do mais, a rebelião
nunca foi muito comum entre os escravos trazidos de África, porque eles haviam sofrido
várias formas de castigos violentos, desde que foram capturados e transportados para
outros continentes, onde ainda ficaram separados daqueles com quem tinham

164
afinidades, o que lhes quebrou o ímpeto para a rebelião e os levou a um comportamento
mais submisso, isto é à aceitação da identidade de escravos. Por sua vez, as mulheres
eram frequentemente violadas pelos seus patrões, e essa desonra produzia o mesmo
efeito de submissão. A este propósito, bell hooks (1990) afirma que, para que pudessem
vender os seus escravos, os traficantes de escravos quebraram primeiro o seu espírito e a
sua personalidade. “The prideful, arrogant, and independent spirit of the African people
had to be broken so that they would conform to the white colonizer’s notion of the
proper slave demeanor (hooks: 1981, p.20). Tal como os escravos de então, Celie é
vítima de abuso e desonrada pelo seu pai e marido.

Apesar de ser obrigada a ficar em silêncio num mundo de barbaridade e


violência machista, Celie não se cala completamente, pois decide escrever cartas a
Deus, o que, por si só, foi uma forma de reagir e resistir. Alguns críticos como Harris
(1984), Saddof (1985) e Campbell (2011) não consideram verosímil que fosse possível
que uma jovem negra analfabeta escrevesse. Segundo as próprias palavras de Harris: “I
can imagine a black woman of Celie’s background and education talking with God …
but writing letters to God is altogether another matter”. (Harris 1984,p.156). Mas
embora seja pouco verosímil imaginar-se que uma jovem analfabeta negra pudesse
começar a escrever, tal não é totalmente impossível. É importante salientar-se também
que, apesar de Celie ser obrigada a deixar a escola, ela consegue adquirir competências
básicas que a ajudam, mais tarde na sua escrita.

Como é sublinhado no princípio do romance, Celie é proibida pelo “pai” de


mencionar o abuso sexual a que ele a submte. Deste modo, Celie é privada da sua voz e
mais tarde, dos seus dois filhos. Ao escrever, porá, assim, em causa, antes de mais, a
autoridade desse pai que a violenta. E, por esta razão, o processo de escrita assume-se
como um acto de rebelião contra o violador que quer esconder o seu crime. Deborah
Mcdowell (1987) reconhece que o uso das cartas por parte de Celie não só serve para
realçar o meio que ela encontrou para escapar ao isolamento a que está confinada, como
isso também lhe permite exprimir legitimamente o seu descontentamento.
(Mcdowell:1987, p.285). Assim, podemos inferir que as cartas são uma espécie de
refúgio através das quais Celie se resguarda da violência do mundo patriarcal, que a
interdita de denunciar o drama da sua vida. Por este motivo, as cartas quebram o

165
silenciamento que lhe havia sido imposto e simbolizam, ao mesmo tempo, o seu
incontido desejo de ser livre e viver sem constrangimentos.

Uma outra razão que pode levar Celie a escrever as suas cartas tem a ver com a
sua falta de confiança para falar livremente sobre os seus sofrimentos e também porque
não tem ninguém junto de quem possa desafogar as suas mágoas. A sua mãe, doente,
vem a falecer. A sua professora não a pode ajudar porque Celie é obrigada a abandonar
a escola devido à gravidez. Nettie, a sua irmã, é forçada a sair de casa, para evitar ser
violada por Mr. Albert. Deste modo, a única saída que Celie tem é desabafar as suas
dores em segredo com Deus, até à entrada em cena e na sua vida, das suas duas graças
salvadoras, Sofia e Shug. O acto de escrita servirá pois como terapia
fundamental para a recuperação de Celie do estado de submissão em que se encontrava.
Podemos dizer que através da escrita destas suas cartas, Celie foi capaz de exorcizar os
seus medos e, a partir daí sentiu uma nova paz de espirito: “When I don’t write too you
(Nettie) I feel as bad as I do when I don’t pray.” (Walker 1982,p.110).

Apesar de a sua escrita não apagar as más memórias que persistem no


pensamento de Celie, o acto de escrever permitir-lhe-á controlar e superar os momentos
difíceis por que passou e, por esta via, conseguirá distanciar-se da angústia que a
lembrança de tais momentos acarreta. Nas palavras de Wendy Wall (1988), a escrita das
cartas actua como projecção de um corpo dominado e como um meio de libertação de
um eu com vivências que, tendo sido recalcadas, são agora libertadas: “The process of
writing letters acts as a second memory, a projected body that precariously holds a
hidden self”. (Wall 1988, p. 83)

Segundo Valerie Babb (1986), através da escrita, Celie é capaz de


recapitular e compreender o que lhe aconteceu e isso vai ajudá-la a dar coerência aos
acontecimentos da sua vida (“writing will fix the events of her life, thereby lending
them coherence” (Babb 1986, p.111). E ao mesmo tempo, com a escrita, Celie consegue
reanalisar e reflectir maduramente sobre todos esses acontecimentos. (Babb 1986,
p.111). Wall defende ainda que a escrita tem uma outra função para Celie. Na opinião
desta crítica, “a escrita é simbólica e literal”, o que permitir que Celie se defina contra o
poder patriarcal, o causador das marcas e feridas corporais que lhe foram infligidas. …”
reinscribe those traces and wounds upon her body inflicted and imprinted by others.”
(Wall 1988, p.86).

166
Reflectindo também sobre os benefícios do acto de escrever, Toni Morrison
(1984), afirma que no processo de escrita um escritor faz uso da sua memória para
estimular a sua imaginação, relembrando os acontecimentos e as recordações do
passado, mas realçando a importância do elemento de identificação subjectiva nesse
processos de evocação: (“it is the subjective emotional identification of the writer that is
important; factual information is secondary and often times not even desired”
(Morrison:1984, p.385). Por isso, segundo Morrison, é necessário que a autora recupere
e recrie fragmentos da sua memória pessoal relativamente a acontecimentos passados e
integre esses pedaços de vida num todo, realizando assim uma elaboração escrita que
corresponde ao próprio acto da criação literária11. Além disto, esta autora considera que
é importante para o escritor ter em conta o contexto social específico em que a história
decorre e saber muito bem que tipo de sentimentos e impressões pessoais ela evoca.
Este entendimento leva Toni Morrison a definir o termo memória como sendo um acto
deliberado de evocação, uma forma de criação voluntária12. Isto vai permitir que o
escritor se demore na análise do modo como determinadas circunstâncias ou obstáculos
surgiram e porque assumiram configurações particulares num determinado curso de
vida: "to dwell on the way it [the circumstance/obstacle] appeared and why it appeared
in that particular way" (Morrison 1984, p.385).

Celie escreve por desespero, com o fim único sobreviver. Nas diferentes
situações de tristeza por que passa, Celie escreveu sempre para se aliviar e subsistir,
perspectiva que se conjuga inteiramente com os motivos referidos por Walker, quando
esta autora alude às razões que a levaram a escrever: “ I have written to stay alive…I’ve
written to survive”; writing poetry is my way of celebrating with the world that I have
not committed suicide the evening before. “ (Citado em McConkey 1996, p. 214).

A propósito deste tipo de méritos do acto de escrita, McDowell observa que,


apesar de Celie estar consciente de que não tem a ajuda de ninguém, ela tenta afirmar-se
através da sua escrita, dando assim voz à sua consciência e ao repúdio das violentações
já sofridas. Nas palavras de McDowel , “everything we learn about Celie is filtered
through her own consciousness and rendered in her own voice (McConkey: 1996, p.
285). Por isso, podemos dizer que Celie, através da sua escrita, faz uma longa reflexão

11
" The process by which the recollections of these pieces coalesce into a part (and knowing the
difference between a piece and a part) is creation" (Morrison:1984, p.386).
12
“"The deliberate act of remembering [which] is a form of willed creation" (Morrison 1984, p.385).

167
que a leva à reformulação da sua vida, a partir de um entendimento mais esclarecido do
contexto que a rodeia. Ao divulgar a sua experiência através das cartas que
laboriosamente escreve, Celie está a dar, ao mesmo tempo, um sentido ao seu
sofrimento, o qual, uma vez vertido em forma escrita, permite que compreenda melhor a
sua situação e lhe dê sentido. Esta estratégia e motivações para a escrita revelar-se-ão
decisivas na preservação do equilíbrio mental de Celie.

Celie nunca recebe nenhuma carta de Nettie porque Albert as intercepta, mas
quando, com a ajuda de Shug, Celie descobre e lê essas cartas, sente-se então como que
renascida13, pois aquelas cartas são portadoras de um novo sentido para a sua vida.
Mesmo sabendo que Nettie está ausente fisicamente, Celie passa a sentir a presença da
irmã através da leitura das suas cartas, das quais nunca se separará: “This the letter I
been holding in my hand” (Walker 1982, p.112); “ the first letter Say” (Walker 1982,
p.119); e “ Next one, fat, dated two months\, say” (Walker 1982, p.112). Importa referir
que as cartas de Nettie também proporcionam a Celie informações decisivas sobre o
passado de ambas, designadamente a divulgação da morte por linchamento do seu
verdadeiro pai. O facto de o seu violador não ser afinal o seu pai, mas o padrasto, é
também uma informação relativamente apaziguadora.

A transformação pessoal de Celie é surpreendente, mas ela não acontece num


ápice ou de ânimo leve, leva tempo e exige grande esforço. Linda Tate (1994) afirma
que a chave para essa autotransformação decorre da capacidade que a protagonista
adquirirá para se definir e autonomear-se, enquanto pessoa dotada de identidade própria.
(Tate 1994, p.131). De facto, na fase inicial da narrativa da sua história de vida, Celie é
um ser desprovido de identidade; ela é “ninguém”, tal como Mr______ refere, ao dizer-
lhe: “quem é que tu pensas que és? És negra, pobre, feia e mulher! Deus te valha, tu não
és mesmo nada” (Walker 1982, p.204). Nesta fase da narrativa Celie é ainda totalmente
incapaz de se definir e de se afirmar. Vê-se a si mesma, em termos físicos e emocionais,
como um “fragmento de vida irreconciliável consigo mesmo (Tate 1994, p.194). É

13
Alice Walker na sua dedicatória a The Color Purple referiu que esta obra tinha sido uma emanação do
espírito, sem o qual nada se criava ou existia. “To the Spirit: Without whose assistance / neither this book
/ nor I / would have been / Written”. Por isto, para ela, um escritor é um criador de vida, através daquilo
que ele consegue ficcionar. Terá sido isso que Celie sentiu através das suas cartas. Ela sentiu-se renascida
por ter conseguido escrever. Deste modo, a escrita de Celie permitiu-lhe ressuscitar e experimentar uma
nova vida.

168
sintomático que inicie a sua narrativa escrevendo “ eu sou” (I am), afirmação que depois
não sustenta, já que, de imediato, refere a sua falta de confiança e a dificuldade em
aceitar-se, a si mesma. Celie é um ser fragmentado -“Celie has been fragmented into
pieces which are given away to other” (Tate 1994, p.164). Na verdade, até então, toda a
sua vida, não fora mais que uma série de sacrifícios para satisfazer alguém ou para
evitar que outros sofressem. Sacrifica-se para aplacar os desejos libidinosos de Pa e com
isso poupar Nettie. Inicialmente, por idênticas razões, aceita submeter-se à brutalidade
de Albert. Este processo continuado de sacrifícios impostos e aceites leva a que ela seja
desfeita em pedaços, desde a infância. Nessa fase da sua vida, e por todas as razões já
antes explicitadas, Celie não tem nada a que possa agarrar-se, algo que possa identificar
como parte do seu “eu” e também por isso, naturalmente, não se sente parte do mundo
em que se encontra.

Com o desenvolvimento da narrativa, fica claro que Celie terá de evoluir no


sentido da sua própria aceitação, para que possa autodefinir-se como indivíduo e
afirmar-se, como mulher. Este processo de auto-afirmação começa no dia em que ela
anuncia que vai deixar Mr. Albert, para passar a viver com Shug, em Memphis. Sobre
esta decisão radical e que mudará completamente o curso da sua vida, Celie afirma que,
apesar de tudo o que não a favorece, tem o direito a persistir e a existir “ I’m poor, I’m
black, I may be ugly and can’t cook…But I’m here” (Walker 1982, p.205). E mais
tarde, numa carta que escreve a Nettie, de Memphis, podemos ver como Celie já nos dá
uma nova e mais positiva visão de si mesma, afirmando que é feliz, é amada, tem
independência económica, amigos e tempo disponível para desfrutar dessa felicidade, e
que espera voltar a ter junto a si aqueles que lhe são mais queridos: “ I am so happy. I
got love, I work, I got money, friend and time. And you alive and be home soon. With
our children” (Walker 1982, p.213).

O sinal mais evidente da autodeterminação desta mulher ser-nos-á dado


imediatamente a seguir. Celie que, anteriormente, nunca assinara as suas cartas, passa a
fazê-lo agora e de modo decididamente enfático, definindo e afirmando a sua nova
identidade através das suas novas relações familiares e da sua acção como mulher de
negócios bem-sucedida, condição que, conjuntamente com o amor que agora vive, lhe
confere um novo posicionamento e um novo lugar no mundo, devidamente reconhecido

169
e identificado: “ Your sister, Celie, Folkpants, Unlimited Sugar Avery Drive, Memphis,
Tennessee” (Walker 1982, p.212).

Finalmente, sublinhe-se que, através das suas cartas, Celie consegue criar um
mundo totalmente diferente do mundo de opressão em que ela até então vivera. Neste
novo mundo, gerado pelas cartas, Celie é capaz de testemunhar e formular tudo o que
mais deseja, designadamente uma vida liberta de escravidão. O gosto e o sabor da
liberdade de que Celie começará a desfrutar farão com que ela, de modo gradual,
repudie a vida a que até então fora submetida e anseie por uma mudança imediata da sua
condição. Assim, podemos dizer que a escrita desempenha um papel preponderante na
evolução da vida de Celie, porque lhe abre a mente e a torna numa pessoa com uma
nova consciência dos seus direitos e do caminho a seguir para a sua autoafirmação como
mulher, num mundo regulado pelos homens. É oportuno sublinhar aqui, por exemplo, a
rejeição que Celie fez do Deus cristão, como exemplo da sua nova consciencialização,
após ter percebido que esse Deus é branco e que ficara de braços cruzados face aos seus
problemas. É então e por esta razão que passa a endereçar as suas cartas
prioritariamente a Nettie, sua irmã, e já não a um Deus tão indiferente aos seus
infortúnios e apelos.

Devemos dizer, em nota conclusiva sobre esta questão, que a escrita, para Celie,
é o meio que lhe permite estruturar a sua identidade, a qual, de personagem passiva, se
irá transformando na recusa que faz da submissão, o que a torna mais afirmativa e
reivindicativa dos seus direitos, como pessoa e como mulher.

ii. Representação da opressão da mulher em The Color Purple


Nesta parte do nosso ensaio, a nossa preocupação será a de demonstrarmos de
que maneira a história de Celie, apresentada neste romance como uma personagem
marginalizada, virá a ser capaz de protestar contra os ditames da estrutura patriarcal e,
desta maneira, propor também a denúncia e uma representação de preocupações que
diga respeito a todas as mulheres, independentemente da sua etnia e/ou orientação
sexual. Tendo em conta os pontos desenvolvidos na parte teórica desta tese, e
relativamente aos discursos teóricos feministas sobre a questão do género e da
feminilidade, vamos passar a abordar a problemática das implicações racistas e sexistas

170
e os preconceitos opressivos que limitam a liberdade das mulheres em The Color
Purple.

A palavra opressão não deve ser aqui vista num sentido tão restrito e preciso
como muitas outras palavras. A sua origem e sentido não começam em nenhum lugar
determinado, nem findam num ponto único. Por isso, resulta daí uma ampla gama de
significações que abrangem o sentido literal, figurativo, etimológico, metafórico e
epistemológico desta palavra. A opressão pode exercer-se pela violência física, por
disparidades e segregacionismos que incluem o racismo, o sistema de castas, a
intolerância religiosa, a escravatura, o linchamento e ainda outros modos de exclusão
social, como o preconceito de género. A história da opressão tem deixado marcas ao
longo de toda a história da humanidade. A questão que permanece é saber se cabe
apenas ao género humano a responsabilidade por estes actos ou se factores externos,
actuando conjuntamente, têm fortalecido o nível de opressão nas diferentes culturas. As
formas de opressão que actualmente existem, tanto nas sociedades mais avançadas
como nas menos evoluídas decorrem do ambiente económico e político predominante
em que vivemos e interagimos, o que promove diversas formas de opressão. Segundo
Pat Brewer, em On the Origin of Women’s Opression, “há certas desigualdades de raça,
de etnia, de classe social, de cor e particularmente de género que têm exponenciado as
diferenças e deixado cicatrizes no seio das classes sociais” (Brewer 2004, p.23). Esta
autora diz-nos ainda que “ as nossas variantes sociobiológicas, a nossa composição
genética, a psicologia evolutiva, bem como os genes que determinam o nosso
comportamento sexual e tradicional opressão contra as mulheres concorrem para a
manutenção dos sistemas de exploração existentes, da opressão e dominação, do ódio
classes e outras imparidades, como algo inevitável e inultrapassável.

No contexto do estudo que desenvolvemos sobre o tema da opressão em The


Color Purple, é importante salientarmos que a maior parte dos conflitos que se geram
neste romance não têm a sua origem na relação interpessoal tensa que ocorre entre as
diversas personagens, mas sim entre indivíduos de posição social diferente, a que não é
ocasional a diferença de género. Nesta obra é notório que a base do conflito e da
opressão social têm a ver com o abuso do poder pelos mais poderosos sobre os mais
humildes. Alphonso, no seu papel do pai e chefe de família, Albert no seu papel de
marido, Samuel e Corrine no desempenho das suas funções de representantes do poder

171
colonial, ou Eleanor Jane e Doris Baines que simbolizam a classe alta e privilegiada, e
que usam essa sua posição para oprimirem os mais desfavorecidos. Na linha de sentido
desta ordem de opressões e subjugações, os brancos oprimem os negros e os homens
abusam das mulheres, de uma forma sistemática

Neste romance, a personagem de Celie é, simbolicamente, a representante


da mulher violada e oprimida, privada da sua sexualidade, despojada dos seus filhos e
da liberdade e capacidade para reagir e revoltar-se contra os seus opressores. De facto, a
sua história de vida é o retrato pungente de várias formas de sofrimento por que
passaram as mulheres. No seu diário Celie regista em pormenor as diferentes formas de
opressão a que ela tem sido sujeita, mas também os padecimentos de outras personagens
femininas, designadamente de Sofia veio a ser agredida e presa, só por se ter recursado
a servir como criada da mulher do Mayor.

Segundo Morgan Winifred (1997, p.183), o tema da opressão e as suas várias


representações neste romance devem ser vistos como uma alegoria das condições de
escravidão sexual, social e económica da mulher. Todas as experiências iniciais de
Celie, no princípio do romance, são prova desta afirmação. O caso que relata o abuso
sexual de que ela foi vítima por parte do seu suposto pai, dá relevo à experiência
infamante da “posse do corpo de uma pessoa por outra” (Walker 1982,p. 235), Também
o caso do “rapto ” dos filhos de Celie entregues a outra pessoa está ligado com a prática
que era comum do afastamento de crianças das suas mães, para que essas fossem
vendidas no mercado de escravos. O próprio casamento de Celie com Mr. Albert
configura-se como uma espécie de leilão de mercado em que os escravos eram obtidos
pelo lance mais favorável. Neste caso, o comprador foi tomado pelo marido prepotente
e, neste sentido, Mr. Albert é equiparável ao colono esclavagista14. Mais ainda, o
trabalho árduo de Celie, tanto no campo como em casa, e a sua continuada violação
14
Um elemento de identidade que simboliza e logo indicia a imagem negativa de Mr. Albert, é o facto de
ele, surgir inicialmente designado apenas por duas letras seguidas de reticências “MR……..” para indicar
alguém que é do sexo masculino e nada mais.. Esta espécie de sigla “Mr”, pode ser vista na perspectiva
de uma negação intencional de identidade. De facto, considerando que estas duas letras “MR” constituem
uma palavra proferida por Celie, tal formulação pode ser, efectivamente, a maneira que Celie encontra
para negar e apagar a identidade de “Mr------”, por causa da sua agressividade e brutalidade, como se ele
não merecesse ter nome. Uma outra maneira de ver “Mr……” pode ser relacionando-a com a escravatura,
um tema que perpassa neste romance desde o início até ao fim da narrativa. Como é óbvio, durante o
período da escravatura na América, os escravos dirigiam-se aos seus donos tratando-os por “Mr…”. E
como é mostrado neste romance, Celie é tratada como escrava, tanto pelo pai, como pelo seu marido. Esta
sigla com tratamento impessoal denota o distanciamento que se pretende atribuir à apresentação das
personagens masculinas, dando-nos delas a imagem de insensibilidade de quem oprime as suas mulheres,
tal como elas haviam sido oprimidas pelos seus donos e senhores, durante a época da escravatura.

172
sexual, física e psicológica, trazem-nos à memória relatos recorrentes da escravidão no
sul dos E.U.A, mas onde esses maus-tratos eram infligidos por um amo branco
esclavagista contra um servo negro.

Do mesmo modo, os esforços de Celie e Nettie para serem capazes de ler e


escrever tem um paralelismo óbvio com a relação entre iliteracia e escravidão ou
literacia e via para a liberdade, avanços que andaram emparelhados durante a época da
escravatura. Por isso, a este propósito, Tate (1994, p.115) afirma que Alice Walker
transformou a história de Celie numa alegoria da luta dos negros pela libertação
espiritual e pela reconciliação com a sua pátria. Deste modo, é lícito considerar-se The
Color Purple como “uma obra realista e fundada num momento histórico e
sociocultural específico, e ao mesmo tempo, vê-la como um espaço mágico ou mítico,
com um significado que transcende o momento particular do tempo e espaço que ali são
representados. Tate (1994, p.115).

Os sistemas específicos da opressão que operam na vida da personagem


principal simbolizam, de uma maneira geral, as subtis operações do poder patriarcal que
subjugam as mulheres em toda a parte, independentemente da sua orientação sexual
(Daly 1978; Rich 1993 e MacKinnon 1983). Perante um grave problema de incesto,
vemos que ainda é a norma da “heterossexualidade obrigatória” que impõe a
marginalização de outras formas de relacionamento e apaga a possibilidade de qualquer
outra opção sexual. A vida de Celie representa de uma maneira viva e sofridamente
vívida esta situação. Desde do início da narrativa, ela apresenta-se numa situação
desfavorável pela cumplicidade forçada que lhe é imposta, de guardar o vergonhoso
segredo do incesto, de que é vítima. Nesta posição, sem fim à vista, Celie faz um apelo
timorato a Deus: “Maybe you can give me a sign letting me know what is happening to
me.” (Walker 1982, 3). Mas a pergunta que se aqui se nos põe é esta. Como pode ser
dado um sinal a Celie, quando ela mesma é um sinal, um mero objecto de troca entre os
homens, um utensílio sem valor relevante? Defendemos a opinião de que o tal Deus
menor que ela contextualiza, é um ser cruel cuja identidade se funde sinistramente com
a do seu pai. Quando perguntada sobre a paternidade do bebé de que ela está grávida,
Celie responde desta maneira: ““I say it God’s. I don't know no otherman or what else to
say” (Walker 1982, 3).

Quando Celie se casa com Mr. Albert, um homem que por longo espaço de

173
tempo se apresenta sem nome, este torna-se parte do sistema da opressão masculina,
aliando-se a esse Deus, o patriarca15e o pai, numa trindade ímpia de poder que afasta
Célia da sua identidade. O pacto de casamento é exclusivamente celebrado entre o
suposto pai e o marido. Celie é entregue pelo padrasto ao marido como um animal de
carga, semelhante à vaca que a acompanha. Celie não tem estatuto de sujeito de acção
devido ao facto de ter sido vítima de duplo abuso, físico e psicológico, por parte do
padrasto e do marido. A opressão por ela sofrida é de tal ponto que a sua sexualidade e
os seus órgãos reprodutivos são controlados pelo homem, os filhos são-lhe retirados, e a
sua submissão se faz através da violência que a leva a submeter-se à brutalidade
masculina. Deste modo, Celie retrata, metaforicamente, todas as mulheres na sua
condição de dependência e implícita submissão16.

Ao dar voz a esta vítima de continuada violação sexual, vemos como


Walker problematiza e amplifica, através do seu reconhecido mérito como autora, a
questão da opressão da mulher. Vale a pena sublinhar que esta mesma situação de
injustiça já fora denunciada por autores como Octave Mannoni (1950),em Prospero e
Caliban e Aimé Cesaire (1972), em Discourse on Colonialism. Do ponto de vista de
Walker, a vítima de violação encontra-se perturbada e traumatizada, e esse trauma só
pode ser superado por uma transformação no modo de encarar essa violentação. No
romance aqui em estudo, os “colonizadores” e opressores são os homens, enquanto as
mulheres são as suas vítimas, o que não será uma ocorrência fortuita. Note-se que
durante o tempo de escravatura, os corpos dos escravos pertenciam aos seus donos

15
Em dois ensaios diferentes, nomeadamente “A Posição e o Problema das Mulheres na Sociedade
Nigeriana relativo as obras The Gods Are Not To Blame, Hopes Of The Living Dead e Our Husband Has
Gone Mad Again de Ola Rotimi” publicado em 2007 e ainda “Female Bodies and Motherhood In
Ualalapi e Orgia Dos Loucos” de Ungulani Ba Ka Khosa” editados em 2009, desenvolvi deste conceito
de forma detalhada. Veronica Beechey (1979) e Sheila Rowbotham (1982) têm-se mostrado muito
críticas relativamente à utilidade desde conceito dentro da análise feminista. Rowbotham, por exemplo,
defende num artigo para o New Statesman, em 1979, que “ o patriarcalismo implica uma estrutura que é
fixa e não permite a visão caleidoscópica de formas segundo o qual homens e mulheres se
interrelacionam. O patriarcalismo não contém nenhuma noção quanto ao modo como as mulheres
poderiam actuar para transformarem a situação devida à sua condição de género e sexo. Para mais
informação sobre este conceito, vejam (Daly 1978; Rich 1973; Mackinnon 1983), (Hartmann 1981),
Christine Deephy (1977, 1984), Michele Barret e Mary MeIntosh (1979), Veronica Beechey (1979) e
Sheila Rowbotham (1982).
16
. Celie representa a situação lamentável de muitas outras mulheres que, mesmo economicamente mais
privilegiadas, também são vítimas de tiranias sociais, tais como o rapto dos seus próprios filhos, e a
intervenção do Estado na família e na orientação sexual individual.

174
como se fossem corpos de animais. Assim “os colonos brancos podiam exercer
livremente uma agressiva luxúria sobre as negras, e não raro sobre os negros” (Mott,
1988, p.127). E “o mais penoso de todos os preconceitos rácicos”, de acordo com Roger
Bastide (1955) “é o estereótipo que toma os negros, unicamente, como fonte de prazer,
como um animal feito para a volúpia” (p.165). Mas, no contexto do presente romance,
importa salientar que no fim da narrativa, se assiste a uma evolução da situação de
desigualdade inicialmente retratada. A propriedade das oprimidas é-lhes devolvida e ao
mesmo tempo passa a haver uma melhor relação interpessoal entre todas as
personagens. Deixa de haver um grupo exclusivo que dá ordens e outro que se limita a
obedecer – as mulheres agora também têm opinião sobre o que deve ser feito e, as
personagens brancas passam a trabalhar em harmonia com as personagens negras, como
acontece na loja de Celie, onde Sofia e uma personagem branca trabalham lado a lado,
sem qualquer constrangimento.

Dar voz a Celie foi, simbolicamente, dar voz à infinidade de mulheres que, anos
a fio, eram violentadas e sofriam em silêncio, eram humilhadas e atemorizadas, ficando
assim impossibilitadas de proferirem uma denúncia libertadora. Num ensaio publicado
no jornal MS (1985: 71), Alice Walker afirma que está consciente do silenciamento da
mulher no mundo e que foi por causa disso que criou a personagem de Celie, com o
intuito de lhe dar uma voz17. Walker salienta o horror a que Celie é sujeita e o que a
levou a escrever sobre essa experiência tão traumatizante que, uma vez relatada por
forma escrita, não deixa de ser chocante, não permitindo que ninguém fique indiferente
ao que lhe é contado.

17
Numa das suas reflexões, no ano de 1973, Walker afirma que, enquanto escritora, a sua intenção e
dever foram a de chamar a si a defesa das causas dos negros, especialmente as das mulheres. Estava
preocupada com a sobrevivência espiritual do seu povo como um todo e, além disso, totalmente
empenhada na denúncia de todas as formas de opressão que se exerciam sobre a mulher, bem como em
afirmar e divulgar todas as realizações e triunfos conseguidos pelas mulheres negras. (Garden 250). Numa
outra entrevista em 1984, Walker revela que, desde a infância se viu como a escritora que queria corrigir
o que estava mal e indicar o que devia passar a ser feito. “I was brought up to try to see what was wrong
and right it. Since I am a writer, writing is how I right it” (citado de Bradley 36). Por tudo isto, a ficção de
Walker confronta- os com as mais diversas formas de tratamentos discriminatórios que vitimizam as
mulheres, designadamente, preconceitos racistas e procedimentos sexistas, neocolonialistas e
imperialistas, que formatam persistentemente tanto as sociedades como os indivíduos. Contudo, desde
que assumiu a defesa das mulheres através da escrita, em 1973, passou a exprimir sempre o seu
empenhamento e esperança numa mudança da situação de exploração sexista em que tem sido mantida a
mulher negra.

175
(I) describe the brutal sexual violence done to a nearly illiterate black
woman child who then proceeds to write down what has happened to her
in her own language, from her own point of view. She does not find rape
thrilling; she thinks the rapist looks like a frog with a snake between his
legs. How could this not be upsetting? Shocking? How could anyone
want to hear this? (Walker 1985, p.71-72).
Neste passo, como na generalidade dos textos de Alice Walke18, a sua grande
preocupação é, efectivamente, a constante denúncia do sofrimento de que as mulheres
continuam a ser vítimas, em consequência de uma pertinaz discriminação por razões de
género. Mas em contrapartida, ela também pretende celebrar os pequenos triunfos que a
mulher negra progressivamente vai conseguindo.

Sendo evidente que The Color Purple faz a denúncia da discriminação por razões
de género, de que são vítimas as mulheres afro-americanas nos E.U.A., a dimensão
racial aqui envolvida é algo que não pode ser ignorado. O texto, no seu todo, sublinha as
dificuldades de vida de cada uma das personagens e dá a maior atenção à luta de cada
uma delas pela afirmação e pelo reconhecimento dos seus direitos, em paridade com os
dos homens. Por exemplo, uma cena bem característica desta tendência, bem como das
dificuldades a vencer pelas personagens femininas, são as vicissitudes por que passa
Sofia. Esta tem de se enfrentar as três formas de opressão anteriormente referidas e
Walker, no desenvolvimento da narrativa, mostra-nos que o racismo e as diferenças de
classe são os grandes inimigos dos negros e que, ao contrário do que aconteceu com os
posicionamentos sexistas, que foram atenuados, aqueles dois inimigos continuam a
promover insidiosas formas de abuso sobre as mulheres.

Now Millie (the mayor’s wife), he say. Always going on over


colored…finally (she) took at Sofia and the prizefighter. She
look at the prizefighter car. She eye Sofia wristwatch. She say to
Sofia, All your children so clean, she say, would you like to
18
Numa entrevista concedida ao crítico John O’Brien 18, em 1973, Alice Walker sublinha que esse é, de
facto, o seu grande compromisso enquanto escritora: “I am committed to exploring the oppressions, the
insanities, the loyalities and triumphs of black women” . Nessa mesma entrevista, verifica-se que Walker
sustém a expectativa de que, num futuro próximo, uma nova geração de homens e mulheres tenha
oportunidade de ler e avaliar o valor dos esforços que foram precisos para a elaboração desta obra. Não só
por esta ser o testemunho do entendimento que ela, enquanto autora, tem do que é a vida e o sofrimento
das mulheres, no espaço temporal que é reportado, mas também pela esperança de que esta obra seja um
contributo decisivo para afirmação das mulheres afro-americanas, designadamente, para uma maior
tomada de consciência do seu valor próprio “ it is a true account of my feeling, my perceptions and my
imagination, and because it will reveal something to them of their own selves.” No fim deste depoimento,
concluiu que a solidão a que as mulheres têm sido votadas leva-as, por vezes, a assumir uma visão radical
sobre a sociedade, a qual é constituída por quem, afinal, nunca as teve em devida conta. “ The gift of
loneliness is sometimes a radical vision of society or one’s people that has not been previously taken into
account”.

176
work for me, be my maid? Sofia say, Hell no… Mayor look at
Sofia, push his wife out the way. Stick out his chest. Girl, what
you say to Miss Millie? …He slap her…Sofia knock the man
down. The polices come, start slinging the children off the
mayor, bang they heads together. Sofia really start to fight. They
drag her to the ground…He (Sofia’s companion) want to jump
in…Sofia say No, take the children home. Polices have they
guns on him anyway. One move, he dead (Walker: 1982, p. 86).
No passo acima citado, Sofia encontra-se na firma gerida pelo seu novo
companheiro, quando a mulher do Mayor lhe propõe que seja sua criada. Sofia recusa
porque considera uma humilhação aceitar trabalhar como serviçal na casa de uma
mulher branca. Mas para a mulher do Mayor, o seu preconceito de superioridade racista
leva-a a formular aquela pergunta com naturalidade. As consequências da não-aceitação
de Sofia de um comportamento de esperada humilhação, levam a que os representantes
e executores da lei predominante na organização social vigente a espanquem
brutalmente e a façam passar alguns anos na cadeia, para aprender a ser menos
orgulhosa e a aceitar a superioridade dos brancos. A condição da sua libertação passará
pela aceitação de Sofia em trabalhar em casa de Miss Millie. Deste modo, os
preconceitos racistas e de classe levam a que seja castigado severamente quem pretenda
rebelar-se contra a ordem estabelecida por um regime fundado em tais preconceitos
racistas e sexistas.

Vemos assim como, uma vez mais, o clássico preconceito racista emerge nas
situações mais comuns do dia-a-dia. No diálogo acima citado fica bem claro que,
logo à partida, Miss Millie trata Sofia com a sobranceria de patroa, apenas porque ela
é negra. É a primeira vez que elas se vêem, mas a mulher do Mayor assume de
antemão que Sofia é sua subalterna, pois, se Sofia fosse uma mulher branca (a cor
daqueles que são gente de posses), Miss Millie nem sequer lhe teria feito a proposta
para ela ser sua criada. Desta forma, Alice Walker mostra-nos como os preconceitos
racistas e de classe são postos em prática, a todo tempo, pelos dominadores
coadjuvados pelos legisladores, mesmo que Walker não desenvolva tanto esta
questão como o faz na denúncia do sexismo, contra o que ela arremete mais
sistematicamente. Mas é notório que o racismo e o classismo são duas condicionantes
que pairam constantemente, e de modo articulado, sobre as vítimas.

177
iii. Personagens masculinas em The Color Purple.

Em The Color Purple, o romance aqui em estudo, Alice Walker apresenta-nos as


personagens masculinas de uma maneira acentuadamente negativa, o que veio a originar
controvérsia entre estudiosos e investigadores literários, tais como Trudier Harris,
(1984), Angela Davis, (1981), bell hooks (1981), Thomas Cripps (1980) Clenora
Hudson-Weems (1989) Lindsey Tucker (1988), Molly Hite (1989), e Patricia Harris
Abrams (1985), Cynthia Hamilton (1988) e J. Charles Washington, designadamente.
Através dos seus procedimentos para com as mulheres, das suas atitudes e das suas
relações interpessoais com as outras personagens neste romance, cada uma das
personagens masculinas simboliza e representa diferentes tipos de homens com
comportamentos sociais que a escritora pretende apresentar ao seu leitor, de modo
crítico. Até certo ponto, é fácil concordar com os críticos segundo os quais o retrato
feito por Walker das três principais personagens masculinas, Alphonso, Albert e Harpo,
peca por ser excessivo. Estas personagens são-nos apresentadas como sendo
essencialmente violentas, maníacas sexuais e egoístas como a seguir se passa a
apresentar.

Começando por Alphonso. É o segundo marido da mãe de Celie. Casou-se com


a mãe de Celie logo após a morte do pai desta, por linchamento. Como padrasto,
apresenta uma imagem que não é nada abonatória junto dos leitores. É caraterizado
como um pedófilo sem remissão, pois viola repetidamente Celie, sua enteada de apenas
catorze anos. A violação de Celie por Alphonso também se configura como um
condenável acto incestuoso, uma vez que Alphonso é tido por ser o pai de Celie. Para
encobrir este crime que se vai repetindo e de cuja gravidade Alphonso está
perfeitamente consciente, dá uma ordem que é, ao mesmo tempo, uma ameaça à vítima,
Celie: “ You better not never tell nobody but God. It´d kill your mammy”. (Walker:
1982,p.1).

Esta violentação continuada, no entanto, é algo que não silencia a vítima, pelo
contrário, será o elemento que estimula Celie buscar uma voz própria. Quando é
ordenado a Celie que se cale, quanto ao estupro de que foi vítima, ela decide dizer tudo
nas cartas dirigidas a Deus e posteriormente a sua irmã, Nettie. Nessas cartas, Celie dá
início à criação de uma forma de resistência que consiste na coragem para fazer o relato
dos acontecimentos que a traumatizam. Isto leva à preservação da sua voz e à busca de

178
afirmação de individualidade, cuja dignidade nunca aceitará as humilhações a que
Alphonso a sujeita:

He never had a lone Word to say to me. Just say You gonna do what
your mammy wouldn’t. First he put his thing up gainst my hip and sort
of wiggle it around. Then he grab hold of my titties. Then he push his
thing inside my pussy. When that hurt, I cry. He start to choke me,
saying You better shut up and git used to it. But I don’t’s never git
used to it. (11).
É evidente o horror desta experiência, mas também se torna claro que Celie
narra os acontecimentos dolorosos das situações em que é abusada pelo seu suposto pai,
como uma forma de resistência passiva a algo que é impróprio de um pai e que ela se
recusa a aceitar. Ao escrever sobre a sua violação, Celie também exterioriza as suas
experiências, para que elas não fiquem só consigo mesma e a destruam. Interessa notar
que Celie resiste pela escrita e é pela descrição que faz nas cartas do que lhe vai
acontecendo, que conseguirá libertar-se, em parte, do seu sofrimento e sobreviver às
vivências traumatizantes a que é constantemente submetida.

Susan Griffin (1986) descreve, do seguinte modo, o efeito traumático do


estrupo na sua vítima: “more than rape itself, the fear of rape permeates our lives and
the best defence against this is not to be, to deny being in the body, as a self to avert
your gaze, make yourself, as a presence in this world, less felt” (Griffin1986, p.83). O
medo permanente da violação pode levar uma mulher a desejar não ser o corpo que
potencialmente será violentado. E assim entendemos melhor a surpresa que
experimentamos, quando Celie afirma que se transforma, em madeira (em algo
insensivel) quando é violada e espancada. Deste modo, torna-se evidente que Celie
adopta a postura de negar a sua presença e o seu corpo, a fim de, com isso, evitar o
sofrimento prolongado e a dor física da sua violação. Por sua vez, Jean Toomer compara
o sofrimento e a capacidade de resistência de Celie ao de uma escrava que consegue
resistir a repetidas violações sexuais e físicas, de modo indiferente. Celie descreve-nos
este mesmo sentimento: It all I can do not to cry. I make myself wood. I say to myself,
Celie you a tree. That’s how come I know that trees fear man (Walker 1982, p.30).

Alfonso é retratado como uma reencarnação do diabo numa sociedade


predominantemente patriarcal. É uma personagem insensível e cruel. Em casa, revela-se
um homem de má índole e nunca virá a demonstrar sentimentos de culpa pela sua

179
crueldade. Acima de tudo, é apresentado como um ser hedonístico e um predador
sexual, que anda sempre à procura da sua próxima vítima – e neste caso, o seu alvo
seguinte é. Mas para evitar tal ocorrência Celie oferece-se a si mesma, tal cordeiro
sacrificial, para aplacar o desejo libidinoso de seu “pai”.

Como consequência da violação continuada por parte de Alphonso, Celie


engravida duas vezes e dá à luz dois filhos que imediatamente lhe são retirados e
oferecidos a missionários, sem que Celie seja sequer ouvida nessa decisão. E quando
sua mãe lhe pergunta pelos dois filhos, respondeu: I say God too kit. He too kit while I
was sleeping. Kilt it out there in the woods. Kill this one too if he can (Walker
1982,p.12).

Sendo Alphonso uma personagem insensível ao sofrimento alheio, não


hesita em oferecer Celie a Mr. Albert, e por este ter aceitado Celie, em vez de Nettie,
(que era quem Albert mais desejava), Alphonso dá a Albert uma vaca como gesto de
agradecimento. Antes de falecer, Alphonso casa-se duas vezes, com duas raparigas
menores. E, apesar de ser uma personagem sem contributo relevante para a sociedade
em que vive, virá a ser elogiado quando falece. Na sua lápide é inscrito um texto de
homenagem que o considera como “ um marido às direitas e um bom pai”.
Relativamente à má índole com que Walker caracteriza Alphonso, importa acrescentar
que este, além violar Celie repetidamente, e de a ter obrigado a um casamento forçado,
ainda trapaceia Celie e Nettie na herança delas, vivendo em casa que é delas e gastando
a sua renda a seu belo prazer. Só depois da sua morte é que a casa e o terreno são
devolvidos a Celie e a sua irmã, podendo então elas viver aí com os restantes membros
da sua família.

Ficamos com uma impressão negativa de “Mr-----”, conhecido mais tarde por
Mr. Albert, logo que ele nos é apresentado por Alice Walker. Albert é inicialmente
caracterizado como uma personagem violenta, insensata, vingativa, exploradora, pouco
afectuosa, preguiçosa e sexualmente agressiva. Walker, como já se referiu virá a ser
duramente criticada por estudiosos e críticos literários, inclusivamente pela comunidade
negra nos E.U.A devido à representação alegadamente distorcida e excessivamente
negativa que fez dos homens negros. Isto levou a que esta obra fosse tida como a
continuação da usual representação negativa da comunidade negra, feita por escritores
não negros.

180
Albert é também uma personagem com um carácter titubeante, alguém que foi
criado sob a autoridade de um pai opressivo, rígido e exigente, o qual, numa
demonstração de continuada autoridade sobre um filho adulto, não concordou e se opôs
ao com o relacionamento do seu filho com Shug, a mulher que ele verdadeiramente
amava. Albert, não tendo uma personalidade forte e sendo submisso ao pai, vai acatar
acatou esta decisão, mas outros, mais tarde, serão vítimas desta humilhação. Este
recalcamento não deixará de ter consequências posteriores. À primeira oportunidade,
Albert irá deixar de ser vítima no ciclo da opressão, para passar a ser opressor. Assim,
logo que se casou, Albert assumiu o papel de um homem insensível às necessidades dos
membros da sua família. Então, de imediato, ele passará a proceder de modo idêntico ao
do seu pai, que maltratava os seus filhos e castigava as mulheres com quem mantinha
relacionamento. Quando se casou com Celie, Albert já se transmutara num homem
violento, antipático, desagradável e indolente. Ele esperava que a sua mulher fizesse
todo o trabalho doméstico, tomasse conta das crianças sozinhas e satisfizesse todas as
suas exigências de sexo.

Além disso, ele obrigou a sua mulher e o filho a trabalho duro no campo, para
tirar partido deste esforço pessoal para seu próprio lucro. Para subjugar a sua mulher e
sentir-se dominador e importante, Albert batia nela com frequência. Uma das razões que
fazem com que os leitores sintam repúdio e raiva para com Alberto foi a resposta que
ele deu ao seu filho, sobre as razões que o levaram a bater em Celie: Mr---say, Cause
she my wife. Plus, she stubborn. All women good for – he don’t finish” Este passo
evidência, sem margem para dúvidas, a sua falta de consideração para com as mulheres.
E demonstra ainda que para Albert (e os homens que ele personifica) a violência para
com as mulheres, é uma norma aceitável, pelo que, deste modo, Alberto sente-se mais
homem e mais realizado, ao alardear um comportamento inquestionavelmente machista.

Em consonância com este modo de pensar, Albert também aconselha seu filho,
Harpo, a bater na mulher, Sophia: “wives is like children, “ You have to let ‘em know
who got the upper hand. Nothing can do that better than a sound beating”. (Walker
1982, p.42.). Além do pai, Celie também é violada física e simbolicamente pelo seu
próprio marido, Mr. --- (Albert), uma vez que este se serve dela como de um objecto de
prazer ao seu dispor. Na sua angústia, Celie equipara a perversidade e maldade do seu

181
suposto pai à do seu marido, e medita na lamentável situação vivida às mãos destes
homens, para quem as mulheres pouco representam em termos de afecto, já que eles
apenas se servem delas, para aliviarem as suas tensões sexuais: “He just tuck his chin
over the paper like he do. Remind me of Pa” (Walker 1982,p.30). A este propósito,
Celie salienta repetidamente nas suas cartas que a relação sexual que tem com Albert é
equivalente à violação:

He git up on you, heist you nightgown round your


waist, plunge in. Most time I pretend I ain’t there. He
never know the difference. Never ast me how I feel,
nothing. Just do his business, get off, go to sleep”
((Walker 1982, p.79, e p.109).
Sendo uma personagem vingativa, Albert esconde as cartas que Nettie
escrevera a Celie, por Nettie se ter recusado a dormir com ele. E será precisamente a
descoberta dessa maldade por parte de Celie que servirá como catalisador da sua revolta
e a levará a ser capaz de deixar Albert.

Em resultado do seu desfasamento para com o respeito devido à condição da


mulher, e a sua incapacidade de a respeitar, Albert chega mesmo a imaginar ser um bom
marido, alguém que faz Celie feliz, independentemente do modo violento como a trata.
Esta visão distorcida dos direitos de homens e mulheres é bem denotadora da razão que
o leva a nunca ser capaz de entender os motivos por que Celie o abandonou. No entanto,
com a saída da sua mulher de casa, é obrigado a mudar de comportamento. Tendo
ficado sozinho, Albert vê-se forçado a dar mais atenção aos outros, à vida dos seus
filhos e tem de aprender a trabalhar para ganhar a vida, pois a sua mulher já não o
sustentará. Não se pode dizer que, tendo mudado as circunstâncias da sua vida, Albert
tenha começado a ser capaz de amar e respeitar os outros, mais ao menos foi forçado a
repensar a sua relação com os outros e, em certa medida, a valorizar pequenas coisas da
vida, a que anteriormente não era sensível. Essa evolução no procedimento de Albert é
nítida quando Celie regressa à Georgia. Tinham transcorrido alguns anos, e então Mr.
Albert, numa atitude muito mais conciliadora do que anteriormente, pede desculpa a
Celie pela agressividade e brutalidade que tivera para com ela, admitindo que isso
acontecera porque não soubera dar valor às boas qualidades de Celie. Agora, pede-lhe
que fiquem amigos e ajuda-a desenhar os modelos de camisas e de calças, no seu
trabalho de costura. Mas, apesar da sua mudança de atitude, observamos que o seu
comportamento continua a ser influenciado pelos desmandos da postura patriarcal, pois

182
nunca consegue entender por que razão Celia preferiu uma relação íntima com uma
mulher (Shug) em vez de se manter ligada a ele (homem).

Harpo, o marido de Sofia, é o filho que permanecerá imaturo, por nunca ter sido
bem-educado pelo pai, no respeito para com as mulheres. Por isso esta personagem,
com todo o seu desajustamento, virá a desempenhar um papel importante na abordagem
do tema do direito à igualdade no casamento, entre homens e mulheres, como também
na questão do preconceito racial, designadamente no caso de Sofia que é maltratada por
se ter recusado a trabalhar para uma família branca de classe privilegiada.

Por natureza, Harpo é um homem pacífico e caseiro, que ama a sua mulher,
gosta de tomar conta das crianças e brincar com elas, mas detesta fazer trabalhos duros,
ao contrário da sua mulher, Sofia, que também faz os trabalhos convencionalmente
atribuídos aos homens.

Pelos seus actos e comportamentos, Harpo simboliza uma espécie de


esperança de que em qualquer sociedade há sempre homens e maridos conscientes da
situação da mulher e que prestam atenção ao bem-estar e à felicidade dos membros das
suas famílias.

Mas, ao ver a maneira como os outros homens tratam as suas mulheres e


também por ter seguido o conselho e o mau exemplo do seu pai, Harpo quer dominar a
sua mulher e torná-la submissa. Em vez de manter a sua natureza de homem respeitador
e procurar viver em harmonia com a sua mulher, vai passar a querer afirmar a
autoridade convencionalmente atribuída ao homem, numa sociedade tipicamente
patriarcal. Mas estes seus intentos serão gorados, pois Sofia, enquanto representante de
uma nova atitude das mulheres perante a vida, não se irá sujeitar a um marido
dominador ou violento. Por isso, Sofia deixa Harpo e casa-se com outro homem que
tem uma diferente atitude para com as mulheres, apesar de ser um homem de grande
força física, pois é um pugilista profissional.

Pela sua natureza passiva e afectuosa, Harpo não é uma personagem violenta,
insensível e cruel como Alphonso ou Mr. Albert, o seu pai e seu avô, respectivamente.
Pela sua maneira de ser, seria de esperar que Harpo viesse a ter uma vida matrimonial
tranquila e feliz, em bom entendimento com a sua mulher. Contudo, o desejo de Harpo
de se mostrar à altura do que se espera de um homem na sociedade em que vive,

183
desencadeia nele a adopção de um comportamento violento. E é a instigação decorrente
dessas condenáveis expectativas que desencadeiam o fim da boa relação matrimonial
que, ao princípio, existe entre Harpo e Sofia.

Para Alice Walker, as personagens masculinas deste romance são o espelho de


uma sociedade ainda feita à medida dos homens, que, com o mando tradicional ao seu
favor, continuam a humilhar e a subjugar as mulheres. Há, no entanto exagero na
pretensão desta autora em generalizar estes protótipos de homens a toda a sociedade
afro-americana aqui ficcionada. Mas esse extremar de julgamentos sobre as personagens
masculinas será a via que sublinhará a necessidade de se reverter a situação de
imparidades que têm tolhido a plena afirmação das mulheres nos vários quadrantes do
mundo de hoje, de África às Américas. Assim o contraponto feito por Walker, entre
personagens masculinas, violentas e ignorantes, e personagens femininas, subjugadas
mas progressivamente conscientes dos seus direitos, poderá motivar controvérsia, como
aconteceu. Contudo, esta estratégia de escrita de Walker permitiu-lhe reforçar os
propósitos da ideologia womanista e o seu próprio empenhamento em mostrar que as
mulheres são capazes de lutar, em pé de igualdade com os homens e, deste modo,
ganharem auto-confiança e ficarem livres do jugo pesado da sociedade patriarcal, tal
como se verifica neste romance, em que as personagens buscam vias alternativas de
fraternidade, de que são exemplos os relacionamentos entre Celie e Shug, Celie e Nettie
e Celie e Sofia.
Podemos concordar que, até certo ponto, Alice Walker retrata as personagens
masculinas, nesta sua obra, de uma maneira negativa - as três personagens masculinas
analisadas e os seus respectivos comportamentos representam ideias e situações
diferentes entre si. Alphonso é pedófilo, egoísta, e insensível, Mr.-- é bruto, Harpo é o
bobo. Estas personagens desempenham papéis que têm correspondência com
estereótipos masculinos e raciais usuais. Como é sabido, ao longo dos anos, a imagem
do “violador negro e bruto” sedimentou-se no imaginário como um estereótipo, tanto ao
nível racial como sexual. Sendo assim, as personagens de Walker não podem ser
isoladas num vácuo como se não fossem parte destes discursos que têm sido usados não
só para denotar uma suposta e particular violência do homem negro, como também para
denunciar que a dominação do homem negro, em sociedades atavicamente
conservadoras, se socorre da subjugação sexual.

184
No contexto do retrato que é feito das personagens africanas masculinas neste
romance, Trudier Harris (1984) que, como já aludimos, tem uma posição crítica
relativamente a Alice Walker, afirma, tal como Angela Davis (1981), que a
representação feita por Walker, contém imagens estereotipadas e racistas e, por isso
desaprova a posição desta autora que, segundo ele, reforça as imagens negativas
propagadas por alguns escritores ocidentais sobre a promiscuidade e a existência do
grande número de famílias não estruturadas em África. O seguinte passo de Harris
exemplifica bem essa sua crítica:

“The book simply added a freshness to many of the ideas


circulating in the popular culture and captured in racist
literature that suggested that black people have no morality
when it comes to sexuality, that black family structure is
weak if existent at all, that black men abuse black women,
and that black women who may appear to be churchgoers
are really lewd and lascivious.” (Harris 1984, p.157)
O desacordo de Harris para com Walker tem a ver basicamente com a
incapacidade evidenciada neste texto, por parte das personagens negras, para viverem
de acordo com as normas e os princípios estabelecidos pelos brancos, e pelo facto de
muitas destas personagens serem estereótipos depreciativos dos negros. Importa
acrescentar que, em defesa de Alice Walker, ela protesta contra as virtudes cristãs, dado
que esta religião é apresentada como sendo hierárquica e falocêntrica. A crítica mais
desajustada de entre as que são feitas por Harris, é que a relativa à contradição que vê
em alguém ser lascivo e ao mesmo tempo frequentador assíduo da igreja. Ora, não é por
alguém ir muitas vezes ou poucas vezes à igreja que, necessariamente, deixará de ter
determinadas pulsões e comportamentos.

Sendo assim, julgamos que, no seu todo, a crítica de Harris relativamente às


personagens afro-americanas também é questionável. E importa afirmar que a alusão à
promiscuidade e à homossexualidade, como exemplo de fraqueza da estrutura familiar
(e que de acordo com Harris, apoiam as imagens negativas da gente negra), é algo que
aqui está fora de propósito, pela simples razão de que a relação amorosa entre Shug e
Celie é precisamente aquilo que contribui para o seu fortalecimento mútuo. De acordo
com Harris, pelo seu comportamento e acção no romance, Shug representa a ‘
imoralidade ‘, no seu papel de mulher solteira, mãe de três filhos, que canta à noite
numa discoteca. É através desta personagem que Harris critica o acto sexual com

185
carácter de promiscuidade e também o facto de Shug apontar para uma nova visão de
Deus, diferente do Deus cristão tradicional. É ainda através de Shug que Celie vem a
entender que a sexualidade feminina não é pecado nem algo feio. – “ God loves all them
feelings (Walker 1982, p.197). Apesar destas críticas de Harris, o que sobressai
inquestionavelmente é que Shug nos é apresentada como símbolo da resistência
feminina, estando na vanguarda da luta pelos direitos das mulheres, pela afirmação de
personalidade e de uma sexualidade própria ou alternativa.

Se a manifesta intenção de Alice Walker no romance The Color Purple era a de,
por meio da escrita, fazer a afirmação do espaço devido à mulher, e conseguir assim
suavizar a opressão exercida pelos homens negros sobre as mulheres negras, a questão
que imediatamente nos ocorre formular é perguntarmo-nos a quem é que, afinal, esta
obra se dirige. Será que ela tem em vista interpelar os homens negros, ou as mulheres
negras, separadamente, ou fala tanto para homens como para mulheres, ao mesmo
tempo? E, além disto, quem é que deve assumir a responsabilidade de pôr fim à
exploração sexual, e mais, quem é que irá decidir os meios para este fim? O modo como
Alice Walker reage a este tipo de críticas que são feitas a The Color Purple, mostra-nos
também que ela não entende as motivações das respostas críticas por parte do público
leitor. É como se a escritora esperasse que toda a gente estivesse muito interessada nas
razões que causam a opressão das mulheres no seio das comunidades negras afro-
americanas. Para ela, foi uma surpresa verificar que muitos homens negros não estavam
nada interessados que ela falasse nestas coisas. (Bradley: 1984,p. 36). Assim, o
desapontamento que Alice Walker sentiu, ao receber esta crítica dos homens negros
americanos, sugere-nos que ela está fora da realidade se esperava que o público leitor se
sentisse tocado pela sua realização literária, ao ponto de adoptar um procedimento mais
igualitário, para com as mulheres. Deste modo, podemos dizer que se verifica uma
nítida discrepância entre a suposta intenção da autora e a reacção do público leitor.

De facto, várias evidências mostram-nos que a violência sexual é uma via


para o controlo sexual que se exerce sobre as mulheres. E, também por isso, o único
meio para solucionar este problema residirá na eliminação dos factores que permitem o
exercício dessa função de controlo. Mas Walker, na sua ligação de factos, não vai tão
longe na busca de uma explicação para esta evidência. Apenas se socorre do acto da
vitimização da mulher porque, enquanto observadora da sociedade, não tem a lucidez

186
para encontrar outras causas da discriminação das mulheres, além das condições de raça
e de género. As imediatas implicações deste modo de pensar, por parte de Alice Walker,
são uma proliferação e um uso de estereótipos sobre as mulheres negras, que mais
parecem as imagens preconceituosas elaboradas pelos homens acerca do que são
mulheres “boas” e “más”. Numa tentativa de se demarcarem deste tipo de estereótipos
depreciativos engendrados pelos homens e encontrarem as razões históricas que levaram
à subordinação das mulheres, muitas escritoras negras, incluindo Walker, têm vindo a
explorar a ideia de que as mulheres são vítimas da sua própria indignação e frustração,
da sua baixa autoestima e afastamento de padrões dominantes de beleza ou da adopção
de uma atitude indiferente ao género, num mundo dominado por actores cujos papéis
têm guiões determinados por razões de género. Nalgumas instâncias e de acordo com
Thomas Cripps (1980, p.15), frequentemente, até tem sido considerado que as mulheres
negras têm adoptado “contra –estereótipos” como estratégias estéticas e políticas que
aumentam a consciência dos seus direitos ou chamam a sua atenção para determinados
ganhos e objectivos a obter de acordo com determinados procedimentos que venham a
adoptar. No caso de Walker, afigura-se que ela criou ou ressuscitou intencionalmente
velhos estereótipos, e pressupomos que o terá feito para aumentar a consciência geral
das pessoas sobre certas questões. Mas como nos diz Thomas Cripps (1980) “se é
verdade que algumas das condições sociais que mantêm estes estereótipos existem na
realidade actual, é questionável que já existissem nos anos 1900s, época para que
remete o tempo da acção deste romance”(p.16). Este crítico ainda nos dá outro exemplo
do uso destes estereótipos e a razão por que eles são frequentemente utilizados pode
servir para nos explicar por que também eles nos surgem em The Color Purple. Isto é,
os estereótipos suscitam imagens que, mesmo sendo preconcebidas, ingénuas ou
desajustadas, são um bom reflexo do modo vigente de pensar e, por isso, são uma via
útil para o aliciamento, do público leitor.

Black political usage of stereotypes requires images


that disturb thing as they are. Though many of the
creators of these formulaic figures appear politically
naïve or thoughtless, the result of their work reflects
current political ideologies, if for no other reason than
they are intended to attract a large and profitable
audience. ( Cripps 1980, p.16).
Também se pode argumentar que Alice Walker não recorreu ao uso
simplista destes estereótipos correntes, mas produziu “metáforas” que lhe permitiram

187
assinalar com ironia aquilo que outros refeririam como “progresso de um grupo social”.
Por exemplo, podemos considerar que Alice Walker usa Sofia com esta intenção –
mostra-nos que aquela mulher negra que assumiu uma posição forte no início do
romance virá a ser completamente quebrada, porque pretendeu fazer uma defesa
intransigente dos seus direitos. A destruição da sua força de carácter virá a ser
consumada através dos esforços conjuntos de brancos e negros, de homens e mulheres,
indistintamente.

As invectivas contra a ideologia patriarcal formuladas por Alice Walker


dirigem-se indistintamente a todos os homens, negros ou brancos, unidos por
procedimentos e práticas sexistas. Segundo o entendimento desta autora, os homens têm
estado despojados de quaisquer sentimentos , que não sejam o desprezo tradicional para
com as mulheres. E é esta atitude comum e continuada que enforma o tipo de relações
que o senhor patriarcal estabelece com o outro (a mulher). bell hooks (1981, p.102) que
tem descrito as consequências destes sentimentos e relações na América, desde sempre.
Diz-nos que os homens brancos, enquanto grupo, têm desenvolvido uma continuada
exploração das mulheres, tratando-as como meros objectos sexuais. Por sua vez, os
homens negros têm expressado um antagonismo similar para com as mulheres negras,
mediante formas de brutalidade doméstica e procurado diminuir as mulheres, dizendo
que elas têm de ser violentamente afrontadas por serem dominadoras, por natureza, ou
pessoas de má índole.

As a group, white men expose their hatred by increased


exploitation of women as sex objects to sell products
and by their wholehearted support of pornography and
rape. Black men expose their hatred by increased
domestic brutality (white men also) and their vehement
verbal denouncement of black women as matriarchs,
castrators and bitches. bell hooks (1981, p.102)
Tendo em conta o posicionamento ideológico que determina este tipo de
relacionamentos, hooks concluiu que terá sido natural o processo que levou a que os
homens negros começassem a ver as mulheres negras como suas inimigas e que esse
pensamento, uma vez inculcado, viria a tornar-se a própria estrutura do sistema de
dominação patriarcal bell hooks (1981, p.102).

De acordo com esta linha de pensamento, as mulheres não conseguiram furtar-se


à lógica do sistema patriarcal e fazer melhor do que os homens. Tal como eles, ao

188
menos aparentemente, elas aceitaram os pressupostos da organização patriarcal. O que
isto significou para as mulheres negras foi que elas assimilaram a noção do que eram os
papéis dos homens que, por sua vez, as consideravam como objectos, que em muitas
circunstâncias, as “elevavam” à condição de imagens inertes destinadas a serem postas
num pedestal. bell hooks (1981, p.102) acrescenta mesmo que, ao aceitarem o papel que
lhe foi designado pelo sistema patriarcal, as mulheres foram cúmplices da opressão
sexista que a nível social teve consequências nefastas sobre elas.

By completely accepting the female role as defined by


patriarchy, enslaved black women embraced and
upheld an oppressive sexist social order and became
(along with their white sister) both accomplices in the
crimes perpetuated against women and the victims of
those crimes.
Neste sentido podemos dizer que The Color Purple encena o típico
melodrama da vitimização, onde os oprimidos tanto são alvos como promotores e
perpetuadores da opressão. Mas, enquanto vítimas que aspiram a substituir-se ao
opressor, verifica-se que no final do romance esse intento é conseguido, pois elas vêm a
assumir o papel de donas e de opressoras, alardeando igual orgulho por bens materiais e
pelos mesmos valores de que se orgulhavam os seus antigos opressores. É como se a
saída para as situações de opressão da mulher, num ciclo redutor, passasse pela adopção
dos valores e dos estilos de vida burgueses, por parte das próprias mulheres.

iv. A fraternidade entre mulheres e o seu papel no processo de


emancipação de Celie.
A rivalidade entre as mulheres por causa de um mesmo homem surge como um
tema clássico, ao longo dos tempos em inúmeros livros e outras produções da sociedade
ocidental, tradicionalmente patriarcal. Nesse sentido, a existência das mulheres era
referida com relação necessária a um homem, de quem dependiam e de quem
“precisavam” para serem parte das histórias que eram contadas. Alice Walker, em The
Color Purple, é mais uma autora que se opõe com veemência a este entendimento de
situações, afirmando que é possível e desejável a unidade das mulheres na luta por uma
causa comum. Efectivamente, neste romance, as personagens femininas manifestam um
comprometimento e uma solidariedade no feminino que virão a ter um papel
determinante no processo de emancipação de Celie. Com o apoio desta solidariedade,

189
que se estende da sua irmã Nettie à sua nora Sofia e a Shug, amante do seu marido,
Celie conseguirá transformar gradualmente a sua vida e libertar-se da escravidão, tanto
no plano da sua vida corporal, como espiritual. Os laços familiares que aqui são
determinantes para a evolução da personagem de Celie decorrem de diversas ligações:
algumas são de carácter maternal ou fraternal, outras representam a relação entre mentor
e pupilo, algumas são de âmbito estritamente sexual e outras inscrevem-se num plano
de simples amizade. Sofia afirma que a sua personalidade combativa deriva dos laços de
relacionamento que estabeleceu no seio de uma família de homens em que cresceu. O
relacionamento de Nettie com Celie permitirá que esta, ao longo de anos, se mantenha
em contacto com a cultura de África, que não lhe era familiar. Samuel, uma personagem
de The Color Purple (especificamente caracterizada como afro-americano,
heterossexual e protestante) assinala que os fortes laços de solidariedade entre as
mulheres da tribo de Olinka são a única coisa que faz com que a poligamia seja algo
tolerável para elas. A estrutura da família em Olinka é tradicionalmente hierárquica e
falocêntrica, numa sociedade de organização patrilinear africana em que as mulheres,
tradicionalmente, só existem, desde tenra idade, com relação ao homem a que ficam
prometidas em casamento, pelos seus respectivos pais. Contudo, já casadas, as várias
mulheres de um mesmo homem estabelecem relações de entreajuda que as aproximam
umas das outras. Assim, o homem que naquela região de África, de acordo com a
tradição, tem o poder de vida e de morte sobre a esposa - basta que ela seja acusada de
feiticeira ou infidelidade - (Walker 1982, p.184), acaba por ter um papel menorizado na
esfera privada do dia-a-dia das suas mulheres. Daí, a pertinência da referência à situação
comparativa das mulheres de Olinka com o que veio a acontecer com Celie. Tal como
as mulheres desta tribo, Celie encontra apoio entre as outras mulheres que passarão a ser
parte de uma espécie de família alternativa, designadamente Nettie, Shug e Sofia.

Neste contexto, importa acrescentar que Samuel e Corrine são os dois


missionários a quem Pa Alphonso entregou os dois filhos de Celie, como forma de a
humilhar e também como modo de esconder os seus crimes de incesto, enviando para
bem longe da vista a prova física dos seus condenáveis actos. Já em Olinka, na África
do Sul, foram também estes dois missionários que acolheram Nettie, quando, mais
tarde, esta se juntou a eles, naquela tribo onde estes prestavam serviço de evangelização.
Nettie constatou então que embora não houvesse discriminação racial entre os africanos
daquela tribo, havia ali formas de discriminação por razões de género. As mulheres

190
desta tribo não tinham direito a tratamento igual ao dos homens e não lhes era permitido
frequentarem a escola. Mas foi com a viagem para este lugar remoto, em África, que
Nettie conseguiu paz de espírito, ao ficar fora do alcance do seu padrasto e de Mr
Albert, que com insistência a tinham pretendido violar. Em Olinka, Nettie descobriu
rapidamente a identidade dos dois filhos de Celie, Adam e Oliva, então os filhos
adoptivos de Samuel e Corrine. Nettie também percebeu, de imediato, a semelhança da
opressão por que passavam as mulheres de Olimka (sociedade de forte estrutura
patriarcal) e o sofrimento de sua irmã Celie, às mãos de Pa e Albert.

The Olinka men listen just long enough to issue instruction.


They don’t even look at women when women are speaking.
They look at the ground and bend their heads toward the ground.
The women also do not “look in a man’s face” as they say. To
“look in a man’s face” is a brazen thing to do. They look instead
at his feet or his knees. And what cant I say to this? It is our own
behavior around Pa. (Walker 1982, p.163).
Só uma união solidária entre mulheres poderia tornar suportável a vida, tanto
para as mulheres de Olinka, como para Celie, facto este que, em comparação não
fortuita, fica sintomáticamente assinalado no desenvolvimento da narrativa em The
Color Purple.

De modo particular, a ligação que se estabelece entre Shug e Celie, fará com que
esta, gradualmente, ultrapasse os seus condicionamentos e alcance uma plena e nova
consciência de si mesma. Este é um exemplo de como Walker, ao longo da sua obra,
sublinha sempre a importância da fraternidade, com vista à emancipação das mulheres
negras. Para ela, as mulheres negras serão capazes de afirmar a sua identidade e
autonomia se criarem uma “comunidade de irmãs” que seja capaz de alterar a
compartimentação não natural que hoje em dia ainda preside à definição da condição de
homem ou mulher. Smith (1982, p.181) considera que o laço unificador existente entre
as mulheres negras se estabelece por via das suas relações de amizade e de amor, bem
como em resultado das formas de opressão conjuntamente experimentadas. É esta
experiência comum de sofrimento que as une e fortalece, dando-lhes força para serem
capazes de se afastar da servidão do passado e conseguirem aceder, conjuntamente, a
uma existência de plena igualdade, para elas e para aqueles que elas amam. Os homens
tendem a ver esta fraternidade como uma rejeição ou retaliação das mulheres contra
eles. E estes fortes laços de irmandade entre as mulheres são realmente actuantes e

191
consideráveis, pois exercem-se a todos os níveis, espiritual, físico e material, sendo por
isso, uma via efectiva para a remoção de obstáculos que se entrepõem à emancipação e
afirmação das mulheres.

No contexto da acção deste romance, esta entreajuda natural entre as


mulheres será incompreensível para os homens. Samuel por exemplo, fica confuso
porque as mulheres partilham um marido, mas o marido não partilha a amizade delas.
(Walker, 1982, p.141). Não entende esse procedimento que é também uma forma de
retaliação ou de exclusão dele. Mr--- também confessa a Celie que nunca compreendeu
como é que a sua mulher e Shug se entendiam tão bem. Isto mostra como, de facto, esta
irmandade entre as mulheres é algo muito especial e que só elas podem entender e
partilhar, verdadeiramente.

v.a. A relação de fraternidade entre Celie e Nettie.


Neste romance, surgem muitos exemplos da fraternidade entre mulheres. As
primeiras evidências dessa ligação particular entre irmãs ou “irmandade” surgem na
relação de solidariedade entre Celie e Nettie. As duas irmãs vivem no seio de uma
família onde o afecto é algo totalmente ausente, em que o pai é um violador violento e a
mãe uma mulher doente e incapaz de lhe fazer frente. Nessa situação o apoio solidário
de Nettie é a única coisa que dá a Celie o conforto moral e a força de ânimo de que ela
precisa para sair da letargia em que vive. Quando Nettie repara que o marido de Celie
lhe bate com frequência, instiga Celie a lutar, e também a estimula a bater-se contra os
filhos do marido, Mr. Albert, e a dar-lhes uma boa lição, mostrando-lhes “quem manda
ali” (Walker 1982,p.25).

Uma vez que Nettie recebeu uma educação formal, vem a ser muito influenciada
pela sua professora, a senhora Beasley que tem ideias próprias de uma mulher
independente, manifestadas numa consciência rebelde, o que ajuda Nettie a formar a sua
própria consciência. De modo idêntico, para Celie, Nettie também será sempre uma
professora. Ajuda-a a soletrar e a ler e transmite-lhe a sua forma de pensar. Nettie nunca
deixa passar a oportunidade de informar Celie do que está ’ a acontecer no mundo. No
curto período de tempo que vive com Celie, na casa de Alberto, Nettie presenceia a
brutalidade boçal de Albert e, sabendo bem que Celie estará perdida caso se mantenha
submissa, não deixa nunca de actuar para alterar essa situação. E, por isso, empenha-se

192
por todas as formas e meios em dizer a Celie o que tem de ser feito. Consciente da
importância de ensinar Celie a ler, Nettie escreve palavras em cartões e coloca-os nos
lugares correspondentes aos respectivos objectos, para que Celie aprenda as letras das
palavras e deixe de ser analfabeta. Será esta capacidade para ler e escrever que depois
permitirá a Celie verbalizar a sua amargura para com um Deus que sempre a ignorou.
Também será através da escrita que Celie virá a sentir um pequeno consolo na sua luta
desesperada, quando Nettie está ausente. Agora, a sua nova condição de alfabetizada irá
permitir-lhe ler as cartas que Nettie lhe envia de África e que lhe alargam os seus
horizontes de conhecimento do mundo e da vida. Isso acontece, por exemplo, quando
Nettie diz à sua irmã que na Bíblia se vê que Deus não é branco, mas negro, já que o
cabelo de Jesus é encaracolado como o dos negros. Através de Nettie, Celie também
fica a saber que o primeiro ser humano não foi um branco, mas um negro e que, no
passado, os africanos tiveram uma civilização mais avançada do que a dos europeus.
Este tipo de informações é, ao princípio, um choque para Celie, pois abalam as bases do
conhecimento por que se regia e forçam-na a colocar-se fora dos valores instilados pelos
brancos e em que ela tinha sido educada desde infância. Isto levará a que proceda uma
reestruturação do seu pensamento e assuma uma nova autoconsciência de si e do
mundo.

Contudo, para Celie, as notícias mais importantes que recebeu de Nettie têm a
ver com o destino dos seus dois filhos. Através da irmã, Celie fica a saber, pela primeira
vez, que os seus dois filhos, de quem ela tinha sido separada logo após o parto, estão
agora com Nettie, em África, com quem têm uma vida feliz e estão a ser bem-educados.
A boa notícia sobre os seus dois filhos dá a Celie, então uma mãe sem ânimo, a força
espiritual de que precisa e que a levará a superar e sobreviver às agruras de uma vida
penosa. Além disso, Nettie é sempre a figuração da esperança na vida de Celie, uma
espécie de rapariga modelo, inteligente e meiga, entre outras qualidades. Celie descreve
Nettie a Shug, do seguinte modo “Smart as anything. Read the newspapers when she
was little more than talking. Did figures like they was nothing. Talked real well too.
And sweet. There never was a sweeter girl. Eyes just brimming over with it” (Walker
1982, p.101).

Vivendo com o exemplo desta irmã de excelência no coração, Celie sente um


pouco de conforto que vem suavizar a dureza dos seus dias. E, assim, embora não tenha

193
recebido notícias de Nettie ao longo de anos, Celie acalenta a esperança de que a sua
irmã esteja viva e de que virão a reencontrar-se um dia. Celie, por sua vez, é também
uma grande ajuda e apoio a Nettie. Não havendo afecto dos pais, Celie não desempenha
apenas o papel de irmã, mas também o de mãe substituta. Celie oferece-se ao seu
padrasto, impedindo assim que Nettie seja abusada sexualmenteQuando, mais tarde, as
duas irmãs são separadas uma da outra, esta carinhosa fraternidade continua a unir as
duas irmãs, dando-lhes sempre a esperança de serem capazes sobreviver aos momentos
mais duros da sua existência.

v.b. A relação de fraternidade entre Celie e Sofia.

Sofia Butler, mulher do enteado de Celie, é outra mulher que se torna um bom
modelo de vida para Celie. É uma mulher possante, com pernas enormes, que cresceu
numa família de homens e que aprendeu que só lutando se pode sobreviver. “All my life
I had to fight. I had to fight my daddy. I had to fight my brothers; I had to fitht my
cousins and my uncles. A girl child ain’t safe in a family of men (Walker 1982, p. 38).
Ao contrário de Sofia, Celie, ao princípio, não luta, mantém-se silenciosa, quando sofre
violência familiar. Chega a aceitar a ideia de os homens serem superiores às mulheres.
Contudo, Sofia recusa-se a aceitar esta imposição social injusta que subjuga as mulheres
e ao mesmo tempo que impõe papéis tradicionais às mulheres. Chega a admitir que
prefere o trabalho árduo do campo. Harpo, seu marido, é que é dado a trabalhos
domésticos, mostrando-nos este passo, até que ponto, ambos constituem um casal em
que se verifica uma sintomática inversão de papéis:

I rather be out in the fields or fooling with the


animals. Even chopping wood. But he love cooking
and cleaning and doing little things round the house.
(Walker 1982,p.63).
E, de modo determinado, vemos que Sofia, não se deixará humilhar por
ninguém na vida, nem por negros nem por brancos. Não hesitará em repudiar a oferta
“degradante” para trabalhar como criada da mulher do Mayor e riposta a soco quando
ele a esbofeteia. Deste modo, com este espírito de rebeldia, Sofia exerce um efeito
crucial no despertar da nova Celie.

O primeiro encontro entre as duas ocorre quando Sofia vem pedir permissão a
Mr. Albert para casar com Harpo. Logo à primeira vista, Celie fica surpreendida com a

194
aparência forte e confiante de Sofia. “She not quite as tall as Harpo but much bigger,
and strong and ruddy looking, like her mama brought her upon pork” (Walker 1982,p.
30). Quando Mr. Albert rejeita este pedido e insulta Sofia por ela estar grávida, é com
surpresa que Celie verifica que Sofia não se submete. Virando-se para Harpo, diz-lhe
“Naw, Harpo stay here. When you free, me and the baby be waiting” (Walker
1982,p.38). Esta coragem demonstrada por Sofia exercerá uma grande influência em
Celie. Sofia será para Celie como um ser do outro mundo que se afirma em total
oposição com a imagem da mulher que até então era familiar a Celie. E Sofia casa-se
com Harpo, independentemente das objecções postas pelos pais dele. Ao princípio, o
casal vive em harmonia. Partilham o trabalho de casa e desfrutam da sua felicidade
familiar, cada um entregue às suas tarefas : She making some sheets. He take the baby,
give it a kiss, chuck it under the chin.” ((Walker 1982, p. 33). Numa demonstração da
sua atitude de insubmissão, Sofia alardeia a todo o momento as suas características de
mulher independente: “If she talking when Harpo and Mr.------come in the room, she
keep right on. If they ast where something at. She say she don’t know. Keep talking.” (
(Walker 1982,p.34). Mas este tipo de relacionamento entre mulher e marido não é
permitido num sistema social dominado pelos homens. Mr. Albert não pode tolerar que
Sofia se afirme demasiado e, por isso, instiga Harpo a pô-la no seu lugar, batendo-lhe.
Até Celie, que cresceu no meio de maus-tratos, estando até então ainda inconsciente da
opressão de que fora vítima, também sugere que Harpo bata em Sofia, quando este lhe
pede conselho sobre o que fazer para que a mulher lhe obedeça. E quando Sofia sabe
que Celie instigou Harpo a bater-lhe, Sofia mostra-se completamente desapontada
perante esta atitude de traição da parte de Celie, mulher como ela. Em resposta, Celie
apenas é capaz de dar uma explicação frouxa: “I say I ‘m a fool, I say it cause I’m
jealous of you. I say it cause you do what I can’t. (Walker 1982,p.38) . Isto revela que
Celie tem consciência de não ter procedido como devia e também mostra a admiração
que tem por Sofia.

Depois de Sofia saber que Celie guarda em silêncio os seus sofrimentos e só os


confessa a Deus, Sofia sugere-lhe uma atitude mais enérgica: “ to bash Mr… head open,
Think about heaven later.” (Walker 1982,p.39). E, assim, após esta troca de pontos de
vista, quaisquer equívocos que existissem entre as duas são desfeitos e aquilo que são as
experiências comuns das suas famílias tornam-nas cada vez mais próximas. Desde
então, Celie e Sofia passam a ser amigas que confiam uma na outra, como se verifica na

195
narração do resto deste romance. Sofia é quem faz Celie perceber que as mulheres
podem ser independentes, fortes e corajosas, e será isso que livrará Celie da sua posição
de humilhação e preparará o caminho da sua própria libertação.

v.c. A relação de fraternidade entre Celie e Shug

Outra mulher que ajuda Celie a ser livre é Shug Avery, a cantora de blues.
Contudo, a relação de solidariedade no feminino que une estas duas mulheres é
totalmente diferente daquela que aproxima Nettie e Sofia. Se, de facto, Netti é
considerada a esperança que mantém Celie viva e Sofia, por sua vez, é o espirito rebelde
que encoraja Celie a lutar, Shug é vista como a mãe afectuosa e a mentora sexual de
Celie. Shug Avery começa por ser, uma amiga de Celie, sendo mais tarde sua amante.
Mas consegue sempre, de modo subtil, orientar Celie com os cuidados de uma mãe. Isso
permitirá que Celie evolua e se torne numa mulher independente e actualizada, que já
não aceita as condições que a tinham escravizado.

Celie sempre fora privada de afeto maternal e Shug, como uma mãe, protege
Celie dos espancamentos do seu marido, Mr.Albert. Shug decide permanecer em casa
de Albert e não se ir embora, até ter a certeza de que ele nunca mais pensará sequer em
bater em Celie. Assim, Shug torna-se o anjo que ao lado de Celie a ajuda nos primeiros
passos para a independência. “ I won’t leave, she says, until I know Albert won’t even
think about beating you.” (Walker 1982,p.79).

A primeira vez que Celie tem conhecimento de Shug, a mulher que o seu marido
verdadeiramente ama, é através de um fotógrafo. Para Celie, na sua imaginação, Shug é
a mulher mais atraente que ela alguma vez viu. Chega a dizer que Shug é mais bonita do
que a própria mãe. Depois de durante vários anos ter ouvido falar de Shug, ter pensado e
sonhado com essa fantástica mulher, Celie vê-a pela primeira vez, quando Albert a leva
a casa. Na verdade, nesta altura, Shug está muito debilitada devido ao excesso de
consumo de álcool. Celie dedica-se por inteiro a cuidar dela, até ela recuperar. Shug fica
de tal modo sensibilizada com toda esta ternura que compõe uma canção para expressar
a sua gratidão para com Celie e que intitula com o significativo nome de “Miss Celie’s
Song”. É através deste contacto com Shug que, Celie toma, pela primeira vez,
consciência de ser uma criatura digna de respeito. “first time somebody made something
and name it after me.” (Walker 1982, p.65). Esta canção também se torna num

196
catalisador do desenvolvimento da relação lésbica que se estabelece entre elas. De facto,
as duas mulheres abraçam-se e beijam-se longamente, selando com isso esta relação
particular entre elas. No princípio do romance, pudemos ver que Celie não tem na sua
vida nenhum modelo feminino que a ajude a afirmar os seus direitos. Contudo, através
do modelo que Shug lhe fornece e da interação que entre ambas se estabelece, Celie
consegue ganhar a força de espirito de que necessita para reestruturar a sua identidade.

Vale a pena acrescentar que é com a ajuda de Shug que Celie descobre as cartas
de Nettie, que o seu marido, Mr. Albert, escondeu por muitos anos devido ao facto de
Nettie ter recusado todas as tentativas de Albert para que tivesse relações sexuais com
ele. Esta descoberta serve como agente catalisador da resistência de Celie. A partir de
então, ganha a sua voz e deixa de escrever a Deus. E, deste modo, consegue a
determinação que lhe permitirá desafiar a autoridade do marido:

I curse you … Until you do right by me, everything


you tough will crumble … everything you even
dream about will fail. I give it to him straight, just
like it come to me. And it seem to come to me from
trees …Every lick you hit me you will suffer twice
… You better stop talking because all I’m telling
you ain’t coming just from me. Look like when I
open my mouth the air rush in and shape words
…The jail you plan for me is the one in which you
will rot … A dust devil flew up on the porch
between us, full my mouth with dirt. The dirt say,
Anything you do to me, already done to you. I ‘m
pore, I ‘m black I may be ugly and can’t cook, a
voice say to everything listening. But I ‘m here.
(Walker 1982,p.187)
Como se depreende do parágrafo anterior, a relação íntima entre Celie faz com
que Celie deixe de sentir-se inexistente num enredo masculino. A este propósito,
Catharine Mackinnon (1982) defende que “A woman is a being who identifies and is
identified as one whose sexuality exists for someone else, who is socially male”
(1982,p.533) e, deste modo, se entende melhor a razão da insistência de Celie no seu
desejo por Shug. Celie relata pormenorizadamente a sua atração sexual por Shug
(Walker 1982,p.53) e, ao mesmo tempo, formula de modo claro o seu desejo e paixão
por ela: “All the men got they eyes glued to Shug’s bosom. I got my eyes glued there
too Shug, I say to her in my mind, Girl, you looks like a real good time, the Good Lord
knows you do” (Walker 1982,p.82). Esta proclamação do seu desejo torna-se o tema

197
principal da carta em que Celie narra a Nettie o seu amor para Shug (Walker
1982,p.221). Na nossa opinião este amor declarado de Celie por Shug é uma afirmação
clara de afrontamento no feminino. Esta vontade de Celie em dar voz a este seu novo
amor e as cartas dirigidas à sua irmã demonstram que recriou a tradição do texto
epistolar para, desta forma, afirmar a sua determinação e o seu desejo19,
posicionamentos até então jugulados inaceitáveis.

Ao ajudarem-se mutuamente, numa cumplicidade muito particular e exclusiva,


as personagens femininas em The Color Purpe deixam de se identificar com o ponto de
vista androcêntrico. Seguindo a ideia defendida por Tucker, Eva Boesenberg (1999)
afirma que: “The women increasingly recognize each other’s centrality in their lives and
modify their earlier exclusive focus on their male partner” (Boesenberg 1999, p.228). E,
enquanto isto acontece, os homens, por sua vez, não se apercebem que deixaram de ter
um papel tão preponderante na vida daquela comunidade como até então tinham.

Por seu turno, Linda Abbandonato (1991) reconhece o papel e a afirmação


conseguida pela via de uma orientação sexual alternativa, neste romance. Segundo esta
estudiosa, a opção pelo lesbianismo é claramente afirmada, apesar de politicamente
condenada:“ It provides an alternative to the heterosexual paradigm of the conventional
marriage plot: her choice of lesbianism is politically charged” (Abbandonato, 1991,
p.1107).

A não-aceitação do prazer do pénis para se atingir, em alternativa o prazer


erótico com outra mulher, pode ser vista como um acto de deliberado afrontamento da
mulher para derrotar o poder patriarcal e o mundo falocêntrico.

Para além de dar a Celie uma consciencialização e uma voz que lhe permitem
uma mudança de atitude e uma melhoria da sua situação, Walker recria e oferece ao
leitor um enunciado inovador do texto feminino

19
Para comprovar a esta linha de raciocínio veja-se a argumentação de Abbandonato (1991) que afirma
que “ ao conseguir vencer o tabu da homossexualidade Celie, simbolicamente, deixou de ser identificada
com a master narrative da sexualidade feminina, pois repudiou a posição que lhe fora inicialmente
atribuída dentro dessa ordem simbólica” (Abbandonato: 1991,p.1111-12). A propósito de um ponto de
vista alternativo, veja-se a opinião de hooks que afirmou que o “desejo sexual que foi inicialmente
utilizado nesta narrativa como uma força destrutiva e transformadora vem depois a ser suprimido,
tornando-se inexistente – o que foi um meio para justificar uma intenção, não chegou a ser uma intenção
em si mesma (217). Pensamos que nesta narrativa o desejo, em si mesmo, não é intrinsecamente
subversivo, o que é subversivo é a vontade de Celie de formular o seu desejo, tanto no seio privado como
na esfera pública.

198
Verifica-se também que esta obra de Walker cria ainda uma nova metodologia
na abordagem da língua. A língua é aqui utilizada como um instrumento de subjugação
e domínio que, muitas vezes, serve para silenciar as mulheres na sociedade patriarcal.
Um caso demonstrativo desta utilização é aquele em que Albert priva Celie da sua voz:
“Who you think you is? He say. You can’t curse nobody. Look at you. You black, you
pore, you ugly, you a woman. Goddam, he say, you nothing at all”. (Walker
1982,p.176), bem como um outro passo em que Albert tenta apagar a identidade e o ego
de Celie ao referir explicitamente: “Shit, he say. I should have lock you up. Just let you
out to work”. (Walker 1982,p.176). No decorrer do texto, e como foi demonstrado,
através da ajuda preciosa de Shug, Celie é capaz de “virar o feitiço contra o feiticeiro”,
pagando ao marido, Albert, na mesma moeda, através do uso de uma expressão
semelhante para o subjugar: “the jail you plan for me is the one in which you will rot,”
“You better stop talking”. (Walker 1982, p.176). Celie aprende assim a retribuir a
Albert os seus desmandos, usando uma linguagem semelhante contra ele.

Em The Color Purple, é importante salientar o facto de Walker relegar para


segundo plano o tema da rivalidade entre os sexos masculino e feminino, preferindo pôr
em evidência a fraternidade entre as mulheres, e reduzindo desta forma a importância
tradicionalmente conferida ao falocentrismo e às implicações nefastas desta
idiossincrasia. No dizer de Lindsey Tucker (1988) “since a rivalry exists only when the
male is the central figure, the establishment of female bonding has the effect of
nullifying that rivalry and uniting everyone” (p.87). E o que nesta obra se evidência é
que a rivalidade entre elementos do sexo feminino deixa de existir quando as mulheres,
conjuntamente, não confiam nos homens para a sua manutenção e sobrevivência.

A este propósito, Tucker (1988) justifica esta sua posição com uma ilustração do
modo como funciona o laço de antagonismo e companheirismo entre elas. Inicialmente,
Squeak e Sophia rivalizam uma com a outra a fim de conquistarem o mesmo homem,
Harpo Mas, mais tarde, ajudam-se uma à outra para tomarem conta dos seus filhos.
Squeak vem a ganhar proeminência no momento em que decide ajudar Sophia, a ser
libertada da cadeia. De acordo com Tucker, “antes dessa altura, Squeak era uma
personagem silenciosa e dócil, cuja identidade estava ligada à sua aparência suave,
denotada pela sua pele clara.” (Walker 1982,p.89). Sabemos que foi seu marido, Harpo,
quem se arroga o direito de dar-lhe o nome de Squeak mas, ao conseguir ultrapassar o

199
jugo do silêncio, ela repudia o nome que lhe fora arbitrariamente atribuído e assume o
seu nome real, Mary Agnes, afirmando com insistência o seu desejo de ser assim
chamada, dali em diante.

vi. Os resultados benéficos desta fraternidade no feminino,


Tendo em conta os resultados benéficos desta fraternidade no feminino, que, por
via de diferentes solidarizações, levam Celie a ser uma “nova” mulher, vamos
considerar seguidamente três tipos de liberdade que fazem parte da vida de mulheres
que venceram a opressão existente em sociedades feitas e regidas à imagem do homem
–a liberdade física e sexual, a liberdade espiritual e a liberdade económica.

Celie é objecto de repetidas violações e espancamentos. Por isso, ela não tem
nenhum desejo de conhecer bem o seu corpo. A única noção que Celie tem do seu corpo
é que ele é feio. E para se proteger dessa fealdade, de início, ela não assume aquele
corpo como parte integrante de si mesma, da sua identidade. Contudo, para se
emancipar, uma mulher deve conhecer-se não apenas física, como também
psicologicamente. A importância de recuperar o controlo do seu próprio corpo para
afirmar o seu “eu” é sublinhada por Daniel Ross (1998) no seguinte modo:

One of the primary projects of modern feminism


has been to restore women’s bodies. Because the
female body is the most exploited target of male
aggression, women have leaned to fear or even
hate their bodies. Consequently, women often
think of their bodies as torn or fragmented, a
pattern evident in Walker’s Celi. To confront the
body is to confront not only an individual’s abuse
but also the abuse of women’s bodies throughout
history, as the external symbol of women’s
enslavement, this abuse represent for women a
reminder of her degradation and her consignment
to an inferior status. (Ross 1998, p.70)
Com os encorajamentos de Shug, Celie vê os seus órgãos sexuais ao espelho
pela primeira vez e grita. “ It mine” (Walker 1982,p.97) Nesta expressão, está contido o
prazer e o interesse que ela vai passar a ter com o seu próprio corpo, desfrutando da sua
beleza.

200
De acordo com a formulação de Jaques Lacan acerca do “eu”, o sujeito toma
consciência pela prime ira vez da sua identificação através da mãe, “embora essa figura
possa ser qualquer pessoa que o alimenta e cria”. (Citado em Ross77). Assim também,
este olhar-se ao espelho juntamente com Shug serve para a identificação de Celie.
Deste modo, Entre Celie e Shug virá a estabelecer-se uma relação que semelhança entre
mãe e filha.

Celie já dera à luz duas crianças mas, na realidade, nunca tivera um orgasmo.
Shug, pelo contrário, tem uma vida sexual activa e está plenamente orgulhosa do seu
corpo, o que lhe permite viver a vida sem qualquer espécie de tabu sexual. Shug inicia
Celie nos prazeres do sexo e depois de terem feito amor, Celie sente o prazer do amor
pela primeira vez. Ross faz notar que este primeiro orgasmo de Celie sugere um
renascimento ou talvez um outro nascimento, para entrar no mundo do amor, uma
reedição do primeiro prazer sentido pela criança no peito da mãe. (Citado em Ross 69).
Quando Celie acorda na manhã seguinte, sente-se transformada; fora a primeira vez que
ela tinha sido amada: Walker 1982,p. 98). Celie só toma consciência da sua sexualidade
e do seu corpo depois desta relação lésbica com Shug.

Esta relação não lhe parece reprovável, apenas natural, pelo afecto mutuamente
envolvente que comporta. Celie nunca fora amada por nenhum homem, quando muito
fora atormentada e abusada e, se levarmos em conta seu o passado, veremos que seria
ilógico ela optar por ter sexo com um homem. Deste modoa relação lésbica que se
estabelece é, antes de mais, uma preferência, do que a consequência de uma orientação
genética. A relação homossexual que se desenvolverá entre Celie e Shug é uma primeira
experiência para ambas, natural e libertadora, o corolário do amor que cada uma nutre
pela outra. Para Shug, por sua vez, esta é uma última dádiva do amor, que a vida lhe
concede. Para Celie, fazer amor e ser amada por alguém completa a viagem espiritual
rumo à sua autoafirmação. Quando Celie acorda no dia seguinte, ao lado de Shug, diz
que se sente como no céu. Esta é a primeira vez em que Celie acordou sentindo-se
segura e amada. Nesta fase, a iniciação de Celie ao seu corpo é um dos passos principais
para a sua emancipação como mulher. Ao descobrir e depois ao aceitar o seu próprio
corpo, Celie está finalmente em condições de dar curso à afirmação do seu eu.

Quando contempla o seu corpo ao espelho, vê abrirem-se as portas para a


aceitação de si mesma, com a sua nova identidade agora descoberta. Celie torna-se

201
então capaz de se libertar da dominação masculina e ser parte de uma comunidade de
mulheres que a apoiam. Ao escutar os problemas de Celie, Shug faz com que Celie se
abra emocionalmente e se liberte da pressão e das dores que a emuderam, tanto na
infância, como na idade adulta. Tal como escreve numa das suas cartas, a sua vida tinha
parado quando saira de casa, quando fora viver com Mr. Albert, mas recomeçara com
Shug: “My life stop when I left home, I think. But then I think again. It stop with Mr----
----maybe, but start up again with Shug.” (Walker 1982,p.85). A relação de amizade e
intimidade que Celie agora inicia com Shug será uma união para toda a vida e que a
acompanhará nas lutas que ela travará tanto com Mr------, como com as lembranças
pessoais da sua infância.

Quando Shug regressa a casa de Mr---- com Grady, o seu novo marido, Shug e
Celie desenvolvem então uma ligação mais estável e íntima. E quando Shug sente frio
na cama, na ausência de Grady, ela dorme com Celie e, como duas colegiais, falam das
suas experiências sexuais. Shug fica então chocada ao saber dos abusos sexuais a que
Celie fora sujeita e, como uma mãe, envolve Celie nos seus braços, procurando
confortá-la e levá-la a superar os seus traumas do passado. Pela primeira vez, vemos
como, neste passo do romance, Celie se sente desinibida, ao ponto de responder com
naturalidade, sem reprimir as lágrimas. Ao relatar a história de pavor que até então fora
a sua vida, Celie confessa que nunca ninguém a tinha amado e é então que Shug
reafirma a Celie o amor que tem por ela, ao mesmo tempo que a enlaça e a beija: “I
(Shug) love you, Miss Celie. And then she haul off and kiss me on the mouth” (Walker
1982,p.97).

Liberdade espiritual como factor de autoafirmação:

Neste romance Walker mostra-nos que a liberdade espiritual é uma componente


importante para a autodefinição. De facto, com o desenvolvimento da acção, vemos que
a ingénua fé inicial de Celie passará por muitas mudanças e revisões, que lhe darão uma
visão mais amadurecida do mundo. No início da acção, temos uma Celie condicionada
pela crença de um Deus que se configura com as interpretações mais formais da Bíblia.
E assim, nessa fase, para ela, Deus é como aqueles brancos de barbas que ela via nos
bancos. “ God is a white and old like some white man at the bank…big and old and tall
and gray bearded and white. He wear robes and go barefooted”. (Walker 1982,p.165).
Nessa altura, além da aceitação desta figuração de Deus, Celie é totalmente obediente às

202
imposições desse Deus. Faz tudo o que julga que ele lhe ordena que seja feito e nunca o
que ela própria gostaria de fazer. Quando passa pelo sofrimento de ter sido abusada
sexualmente e violentada fisicamente pelo seu padrasto, não é capaz de contar isso a
ninguém, porque “Deus manda que se honre pai e mãe, independentemente do que eles
façam” (Walker 1982,p.39). E com esta atitude de total aceitação sem contestação,
torna-se escrava deste Deus, ao mesmo tempo que espera algum auxílio vindo dele,
louvando-o e invocando-o constantemente em expressões recorrentes tais como “with
God help”. Ironicamente, o facto de Celie se ter mantido sempre silenciosa e obediente,
será a sua experiência mais dolorosa e sofrida, enquanto ela vive com o seu “pai” e
depois com o seu marido. E será este mutismo imposto pela mordaça da proibição, que
depois será impossível de manter por mais tempo e a levará à necessidade de falar do
que por tanto tempo a atormentou e a iniciar assim o seu percurso de contestação dos
abusos de que fora vítima. Infelizmente para Celie, este Deus branco em que tem tanta
fé, também a tem “em conta pouca”, nos seus planos. É o representante dos homens e da
sociedade patriarcal que por longo tempo a oprimira. O facto de o Deus cristão ser
figurado por um homem branco é algo que se tornará insuportável para Celie, já que
para conseguir a independência espiritual terá de libertar-se mentalmente deste Deus
que não a defende.

Essa libertação espiritual virá a ocorrer gradualmente. Primeiro, por meio das
cartas de Nettie que lhe mostram que o Jesus em que ela acreditava era afinal mais
parecido com ela do que com um homem branco “com cabelos como lã de cordeiro e
“branco é que ele não era”! (Walker 1982,p.167) Depois, a alteração da percepção que
Celie de Deus é completada pelas interpretações de Shug sobre Deus e os seus
propósitos. Shug recusa as interpretações muito fechadas da igreja e as suas percepções
muito truncadas e até falsas, preferindo optar por uma religião mais pessoal em que
Deus não figura como um “ele” ou “ela”, mas como um ser sem género. Shug partilha
esta revelação com Celie – o Evangelho segundo Shug - segundo o qual, “para se adorar
a Deus, uma pessoa só precisava de reclinar-se e admirar toda a matéria” (Walker
1982,p.167) E com isso seria feliz! Assim Shug (e depois também Celie) admiram o
mundo natural e a sua beleza, em toda a sua riqueza e variedade, incluindo a
sexualidade. O conceito que Shug tem de Deus fará com que Celie entenda que o mais
importante na vida é o amor, a capacidade de admirarmos e desfrutarmos a beleza e a
felicidade. E agora, com um novo entendimento do mundo e de Deus, Celie sabe que é

203
preciso livrar-se da sujeição dos homens e ter uma visão mais ampla do sentido da vida,
antes de a podermos desfrutar devidamente: “ Now that my eyes opening, I feels like a
fool…Still, it is like Shug say, you have to git man off your eyeball before you can see
anythng a tall.” (Walker: 1982,p.168). E, assim, Celie livra-se do velho Deus patriarcal,
embora continue a acreditar num ente superior. E porque os seus desígnios nem sempre
são entendíveis, a devoção de Celie para com Deus é agora partilhada pela admiração da
natureza e a exaltação do valor da vida. Assim, Celie inicia a sua última carta, dirigindo-
a a Deus, mas também e simultaneamente às estrelas, às arvores, aos céus, às pessoas,
enfim, a tudo o que existe. E esta sucessão de destinatários revela que a noção que tinha
de Deus já mudara. Celie tem agora um novo conceito de Deus, de um Deus que está
presente em tudo o que existe, e este entendimento abre-lhe os olhos para o vasto
mundo exterior, e isso leva-a a iniciar uma nova vida. Com este novo conceito,
compreende que Deus também existe e vive nela mesma, como um poder espiritual e
uma força interior que a apoiam e socorrem constantemente. Quando Celie descobre
que, deste modo, “é parte da criação divina,” da ordem natural do mundo, essa
constatação torna-se uma verdadeira redenção. Finalmente, está em condições de
proceder a uma autoavaliação com reconhecimento da importância do seu valor próprio.
A partir de então, Celie será capaz de amar-se a si mesma e de amar os outros.

A liberdade económica da mulher como factor de auto-realização

Virgina Woolf diz-nos no seu ensaio A Room of One’s Own que se quiser
escrever romances, uma mulher precisa de ter dinheiro e um espaço próprio (Woolf:
1985, p. 52). O que equivale a dizer que a liberdade económica é a via que permite que
uma mulher faça coisas, de acordo com os seus desejos. Essa independência económica
é uma condição crucial para a sua emancipação total.

Mas, neste romance vemos, pelo contrário, que a pobreza de Celie é chocante.
Quando já é adolescente, ainda anda quase nua, não que não quisesse andar bem
vestida, mas porque nada tem para vestir: “He say why dont you look decent? Put on
something. But what I ‘m suposed to put on? I don’t have nothing” (Walker 1982,p.5).

Depois de ter trabalhado dia e noite a fazer a lida da casa e a lavrar os campos,
ao longo de décadas, Celie não tem nada de seu. E, quando já é uma mulher casada,
continua a ser ela e o seu enteado Harpo quem trabalha nos campos, mas o produto

204
desse trabalho fica nas mãos do chefe de família, Albert. Depois, ao anunciar que se vai
embora, o marido tira-lhe tudo o que tem. A pobreza de Celie faz com que se tivesse
mantido numa posição inferior, dentro da família. Gosta de usar a sua cor favorita, a cor
púrpura, ou algo em tom de vermelho, mas isso não lhe é permitido, já que o seu marido
não paga essas despesas. Felizmente, Celie, embora seja uma mulher negra sem
nenhuma educação formal, tem talento para a costura, sabe fazer calças. E assim, com a
ajuda de Shug, Celie parte para Memphis e aí começa a aprender como se ganha
dinheiro a fazer roupa. Aceita o conselho de Shug e abre a sua própria firma de
vestuário – Folkpants Unlimited Company. Então, Sofia também não hesita em ajudar
Celie no seu novo negócio. Este exemplo de Walker serve para mostrar que quando as
mulheres adquirem independência económica, elas ganham liberdade de pensamento,
pois deixam de depender dos homens para poderem realizar os seus planos. O trabalho
manual de Celie virá a tornar-se até numa atividade artística, através do qual
desenvolverá o seu saber e os seus dotes artísticos, o que lhe permitirá afirmar
progressivamente a sua autoconfiança e a sua independência económica e social. Ao
contemplar as peças de vestuário que ela própria fez, Celie começa a acreditar na sua
criatividade e na sua existência enquanto pessoa, como um membro útil à sociedade. A
sua independência económica vai ser um ponto de viragem na sua vida, dado-lhe um
novo sentido, além de lhe conferir uma posição autónoma como membro activo da
sociedade. Além do mais, os lucros que obterá como gestora da sua firma, Folkpants
Unlimited, permitir-lhe-á sair do meio restrito a que, até então, se encontrara confinada
e descobrir o mundo por si mesma.

Por tudo isto é bem evidente que a relação de apoio mútuo, no feminino, que
Celie estabelece com Shug, Sofia e Nettie, permite que ela fosse capaz de aceitar o seu
corpo, libertar-se em termos espirituais e económicos e, deste modo, conseguir a sua
independência.

vi. Notas conclusivas

Em conclusão deste capítulo, importa sublinhar que The Color Purple é um


romance escrito com o propósito de denunciar e condenar os fundamentos da sociedade
patriarcal, apresentando-nos com mestria literária o processo de formação gradual de
uma nova mulher negra, Celie, que antes vivia subjugada pela opressão da sociedade
feita à imagem dos homens e que depois acorda para uma tomada de consciência dos

205
seus direitos, o que a leva à afirmação de independência relativamente a um marido que,
por si mesmo, é a personificação da organização social que discrimina as mulheres e as
mantém numa situação de imparidade, apenas por razões de género.

Walker é uma escritora para quem a escrita implica um claro compromisso em


favor da luta das mulheres pela sua autodeterminação contra o jugo secular a que têm
sido sujeitas, às mãos dos homens. Assim, Walker rejeita o conceito de arte pela arte. E
isto é muito evidente em The Color Purple onde a sua preocupação central é a denúncia
dos males do racismo e do sexismo que têm vitimado as mulheres afro-americanas o
que a leva à procura empenhada de uma solução para esta situação de desfavor, à busca
de um caminho que as coloque a salvo dos desmandos do patriarcalismo e lhes permita
aceder em a uma vida digna. Nettie, Shug e Sofia serão coadjuvantes de Celie na busca
de emancipação das mulheres, visando alcançar um patamar de vida sem sujeição.
Nettie é a irmã, a professora, que motiva Celie a pôr no papel o sofrimento da sua vida.
Sofia, por sua vez, actua como uma mentora de Celie, já que o seu espírito de rebeldia
exerce um efeito determinante na nova tomada de posição de Celie, perante a vida. É
Sofia quem faz Celie perceber que as mulheres podem ser independentes, fortes e
corajosas, contribuindo assim para resgatar Celie da condição humilhante em que se
encontrava e preparando o caminho para um eu novo e livre. A iniciação de Celie por
Shug para que aquela aceite o seu corpo é um passo decisivo na emancipação de Celie.
Ao descobrir e aceitar o seu próprio corpo, Celie estará apta a iniciar o seu processo de
autoafirmação. A amizade e a força que Celie recebe das outras mulheres que estão
aliadas a ela na mesma luta de autoafirmação serão o suporte essencial que fará de Celie
uma mulher mais confiante e disposta a lutar pelo fim da submissão.

Celie, neste sentido, personifica o conjunto das mulheres de todo mundo que
precisam de assumir, em suas próprias mãos, a iniciativa de contestação das condições
que as têm subjugado. Neste sentido, através de Celie, Walker faz o elogio do conceito
de womanism20, tal como ele foi apresentado nque sendo próximo do de feminismo tem
uma tonalidade mais prometedora e um propósito mais abrangente

20
Tenha-se em consideração o que ficou referido na parte teórica desta tese sobre as diferenças de
tonalidade e abrangência que a própria Alice Walker formula na destrinça que estabelece entre womanism
e feminism. Ela destaca duas diferenças nítidas: “Just as purple is much more vivid than lavender,
womanism is more promising and effective than feminism, because it is design much more broadly. …. a
womanist is commited to survival and wholeness of entire people, male and female”. Walker, 1983, p.XI

206
A emancipação de Celie, bem como, por extensão, das mulheres de todo
mundo, não se poderá fazer sem o esforço conjugado e solidário de quem tem sido
ostracizado por razões meramente sexistas. Neste caso, a solidariedade das mulheres
personificada por Shug, Nettie e Sofia na ajuda que dão a Celie é determinante,
libertando-a espiritualmente e fazendo com que mude a sua visão de Deus, tal como o
processo de escrita já vinha sendo libertador para ela, levando-a a fazer perguntas sobre
esse Deus que nunca respondia às suas cartas.

Assim, torna-se evidente que o processo de escrita destas cartas acabou por ter
uma função terapêutica em Celie. Carta após carta, começa a interrogar-se e a entender
o que lhe está a acontecer. As cartas permitem que entenda melhor o que foi a sua vida e
permitem também que Celie, ao relatar os sofrimentos por que passou, assuma um
distanciamento necessário, relativamente aos traumas que vivenciou e que agora nos
relata como um observador. A experiência que este relato da vida de Celie testemunha
termina num verdadeiro triunfo. A sua luta de emancipação do jugo patriarcal é um
exemplo de sucesso para as outras mulheres que ainda vivem subjugadas em sociedades
de dominação patriarcal. Com este final feliz Alice Walker pretende sublinhar e dizer a
todas as outras mulheres negras ou não, ainda oprimidas em qualquer parte do mundo,
que é possível encontrarem um caminho de libertação, o qual terá de ser feito, antes de
mais, pelas próprias mulheres.

The Color Purple aponta para um caminho de libertação em que homens e


mulheres deverão estar irmanados numa ampla solidariedade. A sua mensagem
inequívoca é a de que as mulheres devem sublevar-se contra o tratamento injusto que
recebem na sociedade e que precisam de o fazer através de um processo de mútua ajuda.
Neste romance, é elucidativo deste empenhamento da autora o facto de as mulheres de
um mesmo homem se terem apoiado, em vez de se hostilizarem. Por tudo isto, este
romance é um exemplo da exortação à acção que leve todas as mulheres oprimidas à
luta pela libertação do jugo patriarcal, o que será conseguido quando tiverem alcançado
uma vida independente, em termos de autonomia física e económica. Este caminho de
autonomia e de libertação da dominação patriarcal propõe uma relação harmoniosa
entre homens e mulheres, o que significará que também os homens, em consequência
desta luta, ficarão livres de preconceitos que, mesmo quando os beneficiam, também os
menorizam.

207
Quanto a nós, tendo em conta o sofrimento de que Celie era vítima, o final feliz
da sua história deixa-nos extremamente confortados. Contudo, a revolta e a libertação
social e financeira da personagem Celie são consideradas não credíveis por Boesenberg,
(1999, p.216). E por sua vez, Hooks em Gates, (1990,p 469), declara que a história de
Celie, no seu todo, pode ser vista como irreal ou um conto de fadas, pois todas as
personagens da história alcançam a felicidade e ficam, sem sentimentos de má vontade
ou inveja de umas para com as outras. Para justificar este raciocínio Boesenberg (1999,
216), Hooks (2000,p. 469) e Harris (1984, p. 157) fazem referência à declaração
proferida por Walker numa entrevista concedida à Newsweek: “I liberated Celie from
her own story. I wanted her to be happy”. (Harris (1984, p. 157)

Verificamos que Celie é, inicialmente, uma personagem diligente mas submissa.


Contudo, ao fim de muito sofrimento e tendo adquirido uma maior consciencialização
dos seus direitos, ultrapassa as suas dificuldades através da determinação e readquire
auto-estima. Mas embora Celie venha a alcançar um estatuto superior na sociedade em
que vive, ela não consegue mudar essa mesma sociedade nos seus permanentes
atavismos. Isto quer dizer que a opressão do “sexo mais fraco” vai continuar a ocorrer, o
que leva Hook 1990 (Hook em Gates 469) a condenar esta postura:

“[…] Walker creates a fiction wherein an oppressed black


woman can experience self-recovery without a dialectical
process; without collective political effort; without radical
change in society. […] a fiction where struggle- the
arduous and painful process by which the oppressed work
for liberation- has no place. This fantasy of change
without effort is a dangerous one for both oppressed and
oppressor. It is a brand of false consciousness that keeps
everyone in place and oppressive structures intact.” (Hook
1990, citado em Gates 469).

Para terminar este capítulo, nós gostaríamos de acentuar que a posição


ideológica de Alice Walker enfatiza o valor da rebelião, com vista à libertação das
mulheres negras. E esta autora faz isso por diversas formas, seja recorrendo ao seu
envolvimento no movimento dos direitos cívicos, (uma participação em que ela se
considera como " revolucionária), seja defendendo o ponto de vista de que as suas obras
literárias têm que focalizar a sua atenção na “sobrevivência da raça negra, ” ou lutando
em prol do crescimento do seu conceito de womanist. Como já referimos ao longo deste

208
capítulo, The Color Purple e as outras obras de Walker analisam e desenvolvem temas
políticos e sociais específicos que ela sucintamente enuncia no seguinte passo na sua
obra In Search of our Mothers’ Garden:

“ I am preoccupied with the spiritual survival, the whole of my


people. but beyond that, I am committed to exploring the
oppression, the insanities, the loyalties, and the triumphs of black
women…For me, black women are the most fascinating creations in
the world. Next to them, I place the old people –male and female –
who persist in their beauty in spite of everything. How do they do
this, knowing what they do? Having lived what they lived? It is a
mystery, and so it lures me into their lives (p.250-251).

209
3. REPRESENTAÇÃO DA POBREZA, DOS EXCLUÍDOS E
MARGINALIZADOS E DA REVOLTA FEMININA NEGRA EM QUARTO DE
DESPEJO, DE CAROLINA MARIA DE JESUS.

Ser negra num mundo dominado por brancos, ser


mulher num espaço regido por mulheres, não
conseguir fixar-se como pessoa de posses num
território em que administrar o dinheiro é mais
difícil do que ganhá-lo, publicar livros num
ambiente intelectual de modelos refinados, tudo
isto reunido fez da experiência de Carolinha um
turbilhão (Meihy & Levine 1994, p.64)
Aqui na favela quase todos lutam com
dificuldades para viver. Mas quem manifesta o que
sofre é só eu. E faço isto em prol dos outros.
(Jesus 1960, p.36).
Vou escrever um livro referente a favela. Hei de
citar tudo que aqui se passa. E vocês com estas
cenas desagradáveis me fornecem os argumentos
(Jesus 1960, p.21).
Carolina, já que você gosta de escrever, instiga
o povo para adotar outro regime (Jesus 1960,
p.110).
Este capítulo tem como objectivo principal analisar a obra Quarto de Despejo,
pondo em destaque as dificuldades da experiência de vida da sua autora, Carolina Maria
de Jesus, negra da favela, mulher pobre, que neste romance é simultaneamente escritora,
personagem e narradora. Neste capítulo faremos uma amostragem documentada,
mediante citações anotadas, da denúncia que a autora fez da sociedade em que viveu, a
qual promovia a discriminação social e racial, o que levava à marginalização dos mais
desfavorecidos, designadamente a mulher negra no Brasil. Esta denúncia comporta uma
incontida indignação que se assume consonante como uma crescente atitude de revolta
das mulheres, à medida que estas vão tomando consciência da situação de desfavor para
que são remetidas por força de tradições secularmente acolitadas pelos valores
patriarcais. A autora usa este seu livro para fazer uma crítica aberta ao governo do seu
país e às iniquidades da organização social que não criam empregos para os
marginalizados, nem lhes dão esperança de se livrarem da miséria e da degradação a
que estão interminavelmente acorrentados. De facto, a condição de marginalizados
decorre de um ciclo conhecido de causas e efeitos, sem escapatória aparente. O

210
desemprego gera a fome, a pobreza e outras formas de degradação social, tais como a
prostituição infantil, o alcoolismo e o frequente recurso ao roubo. A eclosão constante
de conflitos entre os moradores da favela é bem denotadora das tensões permanentes
que grassam nos locais onde estão acantonados os marginalizados da sociedade,
eternamente ignorados pelos políticos que só se lembram deles em épocas de eleições.
Atendendo a este conjunto de preocupações, esta obra pode ser vista como um texto
com engajamento sociopolítico, visando uma alteração das degradantes condições de
vida nas favelas, como a do Canindé, em São Paulo.

Em termos estruturais, este capítulo começa por desenvolver três temáticas inter-
relacionadas: Num primeiro momento, consideramos essencialmente a noção de diário,
através de conceitos e pontos de vista apresentados por alguns críticos e estudiosos de
renome como Piggot, (2003, p.85), Katherine Barber (1989), Betty Jane Wylie (1995),
Kathryr Carter (2002). Neste contexto, salientaremos a importância e o papel dos
diários, enquanto repositório ou registo abrangente e com qualidade literária dos mais
diversos problemas e acontecimentos correntes da vida das pessoas, com referência a
aspectos de maior ou menor intimidade. Buscaremos ainda as razões ou motivos
particulares por que tantas mulheres fazem ou fizeram dos diários uma importante via
para expressão dos seus sentimentos mais íntimos, e como deram ali espaço ao relato de
esperanças, de críticas e desapontamentos ou à mera anotação dos mais diversos
eventos.

Num segundo momento deste capítulo, passaremos à análise de Quarto de


Despejo, de Carolina Maria de Jesus, tendo em conta a conjugação de temas nele
abordados, a referência aos conflitos constantes entre os moradores da favela e as razões
desses desentendimentos, em grande parte decorrentes da situação de grande carência e
de fome que a todos afecta.

Num terceiro momento deste capítulo, daremos atenção à acção de Carolina


Maria de Jesus, tendo em conta o modo como ela nos apresenta as dificuldades vividas
por essas populações tão carenciadas, escorraçadas sem qualquer alternativa para a
precariedade de vida nas favelas das grandes cidades; este contexto será ocasião para
salientaremos o compromisso da autora, o seu engajamento político e social e o modo
assumido como ela desempenha o papel de porta-voz das gentes marginalizadas das
favelas.

211
No final deste capítulo, que será um quarto momento nesta parte da nossa
exposição, sublinharemos o valor estético e de denúncia de um testemunho como este,
vivido no interior de uma comunidade de que a própria autora faz parte. Essa
circunstância dá-lhe legitimidade para criticar todo um rol de preconceitos sociais e
raciais com que se debatem os favelados, as discriminações sexistas que se abatem
sobre as mulheres e a necessidade de auto-valorização, a par da dificuldade de
afirmação com que ainda se debatem muitas mulheres negras, tanto no Brasil como
noutras partes do mundo. Este enquadramento analítico vai permitir que abordemos
com maior detalhe, o estilo, a linguagem e as estratégias de escrita que darão a Carolina
Maria de Jesus um lugar particular na literatura brasileira.

i. Diário como forma de escrita no feminino

O diário foi considerado um género menor ou não-canónico por parte de críticos


e estudiosos como Massaud Moisés (Moisés 1974, p.148) porque nele se veria apenas
uma subcategoria do discurso histórico pelo facto de os diários terem sido
tradicionalmente considerados uma produção segmentária, essencialmente feminina,
além de usualmente restrita à esfera privada. Mas ultimamente tem-se assistido a um
processo de reordenação e revalorização de práticas discursivas que anteriormente eram
remetidas para a margem da maioria dos estudos literários. Entre essas práticas conta-se
a produção escrita sob a forma de diários.

Os diários, de facto, geralmente escritos por mulheres, têm sido uma grande
fonte de informação para os historiadores e estudiosos académicos, porque eles contêm
detalhes da vida do dia-a-dia, em diferentes épocas e lugares, que, de outra maneira,
poderiam ter ficado por registar (Sarbin, 1985; Feldman et al., 1990; Allport, 1955;
Kelly, 1955). Os diários têm sido designados por diversos nomes - livros de cabeceira,
jornais, livros de lugares-comuns – e essa diversidade de designações também tem
concorrido, implicitamente, para uma certa variedade de definições. Neste capítulo
vamos apresentar algumas dessas definições de diário e a sua relação com outros
géneros de registo literário, procurando estabelecer-se assim uma definição de diário
que seja consensual para utilização na breve análise que faremos da obra Quarto de
Despejo de Carolina Maria de Jesus.

Há várias razões para que as pessoas escrevam um diário. Isso faz com que
esses registos assumam formas relativamente diferenciadas e que também as acções que

212
neles ficam registadas tenham funções diferentes para quem os escreveu ou os lê,
posteriormente. A primeira questão que se põe de imediato a quem aborda este tema é
definir o que é afinal um diário. E a resposta a esta pergunta não é simples. De acordo
com Michael Piggot (Piggot 2003,p.85) a razão por que os diários não têm recebido
grande atenção por parte de quem procede à catalogação e arquivo deste tipo de registos
escritos é a dificuldade que há em definir-se aquilo que é intrínseco à forma que se
designa por diário, de modo a que esta não se confunda com outros tipos de registos,
como por exemplo, jornais, álbuns com recortes de jornais ou autobiografias. No
Dicionário Oxford editado por Katherine Barber (1989) define-se diário1 como “a daily
written record of events, feelings, or thoughts” e jornal como “ a daily record of events;
a diary”. Estes termos derivam directamente das palavras latinas diarium e diurnalis, e
ambas contêm a raiz da palavra “dia” (Barber 1989, p.88). Alguns autores tais como
Betty Jane Wylie (1995), Kathryr Carter (2002), entre outros, optam por usar estes
termos alternadamente, enquanto outros usam “journal” para significar um tipo de
registo pessoal, mais sofisticado do que aquele que é registado por um diário.

Após termos uma ideia relativamente definidora do que é um diário, a questão


que logo se torna pertinente, em termos de abordagem literária, é averiguarmos até que
ponto o diário tem capacidade para fazer um registo de qualidade dos problemas e
acontecimentos diários, durante um certo período de tempo num determinado lugar e
circunstância. Sue McKemmish (1996) lança luz sobre esta questão dizendo-nos que o
potencial de capacidade que o diário tem para ser um registo de acontecimentos reside

1
. Irina Paperno (2004), por sua vez, define diário como “ a text written in the first-person, in separate
installments, ideally on a daily basis, and ostensibly for the purpose of giving an account of the writer’s
personal experience in a given day, which is not necessarily addressed to someone other than the diarist”
(Paperno 2004, p.562). Mas também defende que não podemos deixar de ter em conta o facto de o diário
não ser apenas um género, mas um artefacto cultural que existe no seio de um determinado contexto
social e que, por isso, uma ênfase exclusiva na forma e no género obscurece as possibilidades/capacidades
dos diários enquanto registos íntimos ou testemunhos de um Eu específico, no contexto de uma história
pessoal e do seu tempo (Paperno 2004,p.569). Neste contexto, é importante referir que alguns diários
abrangem todo o espaço de uma vida, enquanto outros se cingem de modo mais restrito a um tempo
específico de vida, um período circunscrito de actividade ou lazer, tal como o faz, o relato de uma
viagem. Na opinião de Cazarotto (2006, p.8), a narrativa autobiográfica ou diário é um lugar de
singularidade pela sua atmosfera emocional, relacional e significativa. Como afirma o autor, emocional,
porque, ao narrar-se a própria vida, dá-se sentido ao que se viveu ou ainda se está a viver ou se deseja
viver. Relacional, porque a história passa a ser vista como uma história compartilhada – ninguém surge
do nada, não se vive sozinho nem no isolamento. E, por fim, é significativa porque implica um processo
de reflexão.

213
na possibilidade que ele captar a realidade do tempo2 e do lugar que estão implícitos no
contexto do que é narrado (McKemmish1996, p.44-45).

Um aspecto importante, que não podemos omitir no estudo do que é a génese do


diário, é a ligação que este género tem com a escrita feita por mulheres. Há duas razões
principais para que se faça o estudo de diários escritos por mulheres 3, com maior ou
menor escolaridade. A primeira é que, desde os anos 1970 este género de registo se
tornou um importante meio para análise histórica, uma vez que os registos pessoais
escritos por mulheres passaram a ser reconhecidos como uma fonte legítima de estudos
literários4, onde se evidencia a desigualdade de poder decorrente da noção de género
binário, masculino e feminino. A segunda razão que faz com que hoje os diários das
mulheres sejam um importante motivo de estudos é que estes documentos haviam sido
duplamente negligenciados no passado, apenas por que eram obras de mulheres. Os
diários, numa apreciação tradicionalmente patriarcalista, eram depreciativamente
considerados como registo menor, escrita feminina.

Há um conjunto de explicações para o facto de o diário estar associado à escrita


predominantemente feita por mulheres. Thomas Mallon (1984), autor de A Book of
One’s Own, que é um trabalho seminal sobre o que são os diários, sublinha que o diário
é um género pelo qual a mulher se sentiu sempre particularmente atraída. Isto aconteceu
porque o diário era uma forma de escrita acessível ou “própria” para as mulheres,
enquanto que a expressão da sua criatividade em novelas ou peças de teatro, formas

2
. Adrian Cunningham (1996) tem uma opinião contrária sobre a capacidade que os diários têm para
serem o registo de um determinado lapso de tempo pois, segundo ele, se considerarmos que o diário é
apenas validado como forma de registo, isso limita a possibilidade que ele tem de contemplar a natureza
instável de observações pessoais e, por isso, excluir tais potencialidades como parte significativa dos
diários é truncar-lhe uma área importante de acção e testemunho.
3
Carolina Maria de Jesus é exemplo de uma mulher negra, pobre e semi-analfabeta que não deixa de
fazer registos da sua circunstância de vida diária.
4
A este propósito, a historiadora Joan W. Scott (1986) define género como “a constitutive element of
social relationships based on perceived differences between the sexes” and “a primary way of signifying
relationships of power” (Scott 1986, p.1065). Ao examinar-se a história segundo uma perspectiva baseada
na diferença de poderes atribuídos aos géneros, os estudiosos têm assinalado uma natureza
tendencialmente repressiva para com a mulher, decorrente da usual fixação no modelo de organização
patriarcal. E, como também evidenciam os estudos de análise social, interligados com as noções de poder
e representações do género, estão aqui implicadas questões ligadas à identidade da mulher. Por isso Scott
considera ser necessário que os historiadores, escritores, académicos e os críticos literários examinem
atentamente os modos segundo os quais as identidades baseadas no género são uma construção social,
bem como as representações culturais específicas que tal processo implica (Scott 1986, p.1066-1068).

214
literárias de maior fôlego, teria sido considerada presunçosa e inadequada (Mallon
1984, p.19). Além disso, os diários são também formas práticas de as mulheres fazerem
o registo imediato de acontecimentos. O tipo de tarefas diárias repetitivas que são
geralmente acometidas às mulheres na lida caseira e as frequentes interrupções dessas
tarefas, por razões diversas, fazem com que o rápido registo de notas num diário seja o
modo lógico que permite às mulheres escreverem apontamentos breves sobre a história
das suas vidas. Deste modo, verifica-se que a natureza dos diários, enquanto registos
privados de ocorrências diárias, está intimamente relacionada com o tipo de
disponibilidade de tempo, curta e com interrupções, que caracteriza a actividade
feminina tradicional. Bunkers e Huff (1996) confirmam esta apreciação, afirmando que
“a construção do género, enquanto parte da epistemologia do pensamento ocidental,
promove a separação da actividade das mulheres, remetendo-as para o âmbito de uma
acção circunscrita à esfera doméstica e diária, por oposição à situação do homem,
associado à esfera pública, num plano de âmbito nacional e universal (Bunkers & Huff
1996, p. 5). Estas observações permitem-nos considerar que a feminilidade corresponde
também um conjunto de características que, tal como o género, decorre de razões
culturais e do tipo de organizações sociais predominantes, já que à mulher é exigida
uma disponibilidade em duas frentes. Tem de estar atenta a tudo o que ocorre na esfera
doméstica, não se alheando contudo do que se passa na sociedade. Rebecca Hogan
(1991, p.95), que fez estudos sobre o género autobiográfico, examinou as características
estruturais e a linguagem dos diários, bem como as motivações das mulheres que os
escrevem, visando constatar que o diário é um tipo de registo feminino. Hogan (1991,
p.98) verificou que os diários privilegiam os detalhes e que frequentemente incluem
pequenos momentos juntamente com grandes acontecimentos, sem que dêem, a estes
últimos, maior relevo que àqueles. Esta atenção ao detalhe faz com que o diário assuma
uma forma que tem uma estrutura e uma perspectiva própria, a qual, em termos culturais
e históricos, tem sido vista como feminina.

As mulheres têm tido múltiplas motivações para continuamente escreverem os


seus diários, mas, independentemente do seu conteúdo, eles são geralmente vistos como
uma via para expressão de sentimentos mais íntimos, dissabores, impressões,
esperanças, frustrações, críticas e sonhos. As diferentes maneiras segundo as quais os
diários estão associados ao feminino levaram alguns académicos que fizeram estudos
sobre a produção literária das mulheres, como foi o caso de Judy Nolte Lensink (198,

215
p.40), a defenderem que “tanto na forma como no conteúdo, o diário é a versão
feminina mais próxima do que é o texto autobiográfico”. Outra académica, Geneva
Cobb-Moore (1986), considera que muitos estudiosos, sobretudo homens, excluíram os
diários do âmbito dos estudos autobiográficos, porque estes seguem um padrão de
escrita não masculino, isto é, fragmentário e esporádico. Quem escreve um diário não
tem em vista um padrão de escrita coerente e linear, pois aquilo que urge registar é a
fugacidade do momento, enquanto que o autor de uma autobiografia, no verdadeiro
sentido da palavra, procura dar aos acontecimentos uma ordem coerente, isto é,
“masculina” (Moore 1986, p.140). Os relatos de vida feitos por mulheres não obedecem
a uma estrutura individualista, de narrativa linear “masculina”, desenvolvem-se antes
por meio de uma subtil sequência de ciclos Lensink (1987, p.40). Por sua parte, Jull ker
Conway (1989, p.1-2), que também escreveu autobiografias e estudou esta forma como
género, formulou uma observação que propõe a mesma questão. “Uma vez que as
formas da narrativa e da linguagem ocidental se desenvolveram para fazer o registo de
vida no masculino, como é que uma mulher pode escrever uma autobiografia quando,
fazer isso, requer o uso de uma linguagem que deprecia o feminino e implica o uso de
um género que celebra a experiência exclusivista do herói ocidental no masculino?”
Outra diferença óbvia salientada por Harriet Blodgett (1996) é que, enquanto o autor de
uma autobiografia pode invocar outros momentos, se assim o entender, quem escreve
um diário só pode cingir-se ao momento presente e não a outro, Blodgett (1996, p.168).
Também a autobiografia ou memória é um texto que conta uma história num tempo,
após os acontecimentos terem ocorrido (Amy Wink 2001). Mas o diário, ao contrário
disso, é algo que é criado para registar o momento presente. O autor da autobiografia
sabe o que vai acontecer seguidamente e dirige a apreciação do leitor em cada
momento, enquanto que o diário consiste numa série de eventos que tanto são surpresa e
motivo de registo para quem escreve como para quem lê. Romance autobiografias e
outras formas de literatura são vistas como formas artísticas completas, enquanto que os
diários sempre vistos como algo que está em processo de evolução fragmentária.

Uma última diferença entre autobiografia e diário, e que é determinante, é o


propósito com que uma e outra são escritas. Conway (1989, p.16), afirma que a força
motivadora que leva à produção de uma autobiografia é a de persuadir os outros a
ficarem a saber como foi a sua vida, convencer os seus leitores a empenharem-se
nalguma causa importante ou a defender determinados pontos de vista, ou sentidos de

216
moral5. E se é verdade que em alguns casos quem escreve diários tem motivações
semelhantes, em muitas outras situações, um registo de acontecimentos diários não é
uma forma de compromisso escrito, mas apenas um meio destinado a realizar o desejo
de quem escreve e está apostado em explorar o mundo através da escrita (Conway 1989,
p.31).

Nessa perspectiva, em Quarto de Despejo, Carolina Maria de Jesus decidiu


escrever sobre a favela do Canindé em São Paulo. E pelo facto de esse registo incluir
observações constantes à vida da própria autora, este romance pode e deve ser
considerado uma autobiografia em forma de diário. Também, segundo Maciel et al.
(2005, p.3), a narrativa em forma de diário inclui-se na escrita autobiográfica por ser
“uma escrita voltada para um ‘eu’ que se revela e difere das demais formas
confessionais”, uma vez que a autobiografia é escrita em decorrência do que foi
acontecendo, ou melhor, ela atende e relata os factos retrospectivamente, mas num
espaço de tempo muito menor, comparativamente com o diário. E isso também acontece
em Quarto de Despejo.

ii. Conflitos em Quarto de Despejo

Esta obra de Carolina Maria de Jesus foi escrita em folhas soltas, entre 1954 e
1959, em forma de diário, género que, no verdadeiro sentido da palavra, pertence ao
espaço da escrita autobiográfica, como acima também se argumentou. Para Lejeune
(1998), a identidade entre autor, narrador e personagem é condição indispensável de

5
Nesta tentativa de diferenciação entre autobiografia e diário, devemos considerar também o seguinte:
uma vez que os diários são geralmente vistos como um registo imediato de impressões, há uma tendência
para considerá-los como um texto menos elaborado do que a forma autobiográfica. As pessoas são
usualmente tentadas a acreditar que os diários revelam uma verdade não adulterada acerca da vida das
mulheres. Esta tendência é observada num artigo de Lensink (1987, p. 44) em que este fala de diário
equiparando-o a autobiografia no feminino. Na análise que aí faz, esta autora compara a leitura de um
diário à observação que fazemos perante uma criança a brincar, para dizer que, se observamos alguém
que não tem consciência de estar a ser observada, ela mostrará o seu verdadeiro eu. Pelo contrário, se nos
sentirmos observados, a voz e o procedimento intuitivo passam a estar adulterados. É evidente que este
juízo de valor apresentado nesta comparação por Lensink é questionável, já que não se poderá dizer que,
em rigor, alguma forma escrita represente uma reflexão pura e verdadeira da realidade. Tal como Cuyler
(1983, p217) contrapõe, não podemos esquecer-nos de que diários, jornais e autobiografias são textos,
isto é, construções feitas por palavras e assim também, em qualquer um dos casos, o leitor não pode
deixar de considerar-se como parte de um auditório e que qualquer um destes textos obedece,
implicitamente, a uma certa forma e estrutura e que estas, por sua vez, implicam um modo narrativo
específico, uma voz e uma imagística que são parte inerente das expectativas do leitor.

217
uma escrita autobiográfica, consubstanciada no que ele designa por pacto
autobiográfico6.

Essa escritora brasileira negra, moradora numa favela e que ganhava a sua vida
através da recolha de latas e de papéis nas lixeiras, que depois vendia para reciclagem,
esteve assim inicialmente envolvida na luta contra a indigência que é travada
diariamente por muitas mulheres brasileiras e esse é um aspecto que, sem inibições, o
seu diário muito claramente expôs. E, nessa linha de testemunhos desinibidos, o seu
relato embebe-se menos da vertente de uma política explícita, e mais do mergulho no
intimismo e das memórias individuais. Deste modo, Quarto de Despejo: Diário de uma
Favelada, como o próprio subtítulo patenteia, centra-se no dia-a-dia das vivências
pessoais e colectivas da favela do Canindé, onde a autora sobreviveu e a espaços
escreveu, anotou reparos, anseios e sonhos - teve naquela favela o palco de suas
vivências, locus esse que foi também o contraponto à ‘sala de visitas’, a cidade de São
Paulo com “aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As
casas, com seus vasos de flores e cores variadas”, (Jesus 1960, p.84). “ Eu classifico
São Paulo Assim: O Palácio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade
é o jardim. E a favela é o quinto onde jogam os lixos (Jesus 1960, p.33).

O título desta obra é por si só uma metáfora poderosa relativamente ao conteúdo


do romance “Quarto de Despejo”. Um quarto de despejo é, por definição, o lugar para
onde atiramos tudo o que é imprestável. Neste caso, o que não presta são os moradores
de uma parte da cidade, a favela. Quarto de Despejo é, deste modo, metáfora de “cidade
decadente”, o lugar onde está bem patente toda a desordem de políticas sem sentido que
aproximaram e equipararam a vida dos homens à chafurdice dos animais, dos corvos,
porcos, ratos, gatos famintos e outros quadrúpedes que ali habitam: “os moços foram
embora e disse que queriam jogar sanduíches no lixo que gente de favela são estúpidos
e quadrúpedes que estão precisando de ferraduras” (Jesus 1960, p.63).

6
O pacto autobiográfico realiza-se quando a identidade entre autor, narrador e personagem é assumida e
se torna explícita, tal como se verifica na obra Quarto de Despejo, onde o nome escrito na capa, Carolina
Maria de Jesus (equivalente a uma assinatura autoral) é igual ao nome da narradora e da personagem
principal, acrescida da indicação no subtítulo de que se trata de um diário, um tipo de texto
autobiográfico. A priori, essa referencialidade transmite a ilusão de que se está em presença de um
conjunto de factos reais: uma história transcrita pela própria autora, que acumula os atributos de narradora
e de sujeito de uma acção assumidamente não-fictícia, reproduzindo a sua própria história. Nada mais
credível do que a vida de uma pessoa contada por ela própria.

218
As incidências deste testemunho da vida de Carolina, feito pela própria, vieram a
ser motivo de análise por parte de muitos críticos e estudiosos, relativamente ao tema
das desigualdades sociais e das relações raciais, as quais se configuram como ponto
central deste capítulo. Carolina Maria de Jesus, tendo o contexto histórico-geográfico
como paisagem real do seu “depoimento” olha para si, “acentua incidências da sua vida
individual, faz a história do trajecto da sua personalidade”, segundo a definição de
autobiografia defendida por Lejeune (1998, p.50); porém, ela olha também para todos
os outros que consigo interagem: “Eu escrevo porque preciso mostrar aos políticos as
péssimas qualidade de vocês” (Jesus 1960, p.164,). Desta forma, a escritora consegue
fazer um retrato da comunidade favelada, vendo-se personagem de si mesma, e
tornando-se simultaneamente “voz da intimidade e porta-voz da colectividade”
(Perpétua 2003, p.82).

Carolina Maria de Jesus, a autora e personagem principal de Quarto de Despejo


representa-se assim como a porta-voz dos desfavorecidos que viviam no Brasil, num
período de tempo que, com dificuldades semelhantes, se estendeu entre os anos de 1940
a 1970. Era mulher, negra e pobre, residente na favela do Canindé, situada nas margens
do rio Tietê. Mãe solteira com três filhos para criar, sem meios nem recursos suficientes
para tomar conta deles, recorria à busca de alimentos, entre outras necessidades, nas
imensas lixeiras da grande cidade. Esta obra, sendo uma crónica dos eventos reais da
vida de uma escritora que também é personagem principal da sua própria narrativa,
retrata as dificuldades e os desafios por que passou para poder sobreviver (os seus
esforços para ganhar a vida e a permanente falta de dinheiro). As críticas que faz
envolvem a dureza de vida nas grandes cidades, a indiferença, a incompetência e o
cinismo dos políticos e também os preconceitos que os favelados sofrem por parte da
classe dominante, sem omitir a violência dentro das favelas e o desejo dos favelados de
saírem da favela, terem uma vida melhor e escaparem ao permanente flagelo da fome:

“Dizem que o Brasil já foi bom. Mas eu não sou da época do


Brasil bom…Hoje eu fui me olhar no espelho. Fiquei
horrorizada. O meu rosto é quase igual ao de minha saudosa
mãe. E estou sem dente. Magra. Pudera! O medo de morrer de
fome.” (Jesus 1960, p.167).
Sendo porta-voz dos desfavorecidos, Carolina utiliza a sua obra para criticar a
política do governo e consciencializar o mundo inteiro sobre os problemas dos pobres
na sociedade brasileira daquela época. Faz uma denúncia contundente, através deste

219
diário, das estruturas sociais e políticas que oprimem os menos privilegiados (os
marginais) e que não lhes oferecem qualquer oportunidade de melhorar a sua vida. É
dentro destas considerações que se percebe uma nova representação desta classe
subalterna na literatura brasileira, a chamada “literatura marginal”, em que o escritor se
coloca ao lado dos dominados e adopta e comunga dos sentimentos destes em relação às
classes abastadas7.

Nós somos os pobres, viemos para as margens do rio. As


margens do rio são os lugares do lixo e dos marginais.
Gente da favela é considerado marginais (Jesus 1960, p
p.55).
Vale a pena salientar que a literatura, entendida como documento escrito e
publicado, apresentava-se como actividade de uma elite intelectual, onde se incluíam
mulheres da classe média e alta que haviam tido condições de acesso à escrita, à leitura,
à escola. No entanto, lentamente, mulheres subalternas8, “mulheres comuns”
começaram a ser resgatadas, “trazidas para o centro”, pois a literatura tem-se inclinado
progressivamente para a alteridade, dando espaço e lugar ao interesse para com a voz
das minorias9. E é dentro desta busca de representação da classe subalterna na literatura
brasileira que se deve encaixar o livro Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus,
porque esta escritora tem mostrado claramente que a sua obra literária serve como um

7
Em relação ao passado recente, percebe-se que o escritor moderno tem mudado de orientação.
Anteriormente as personagens das camadas subalternas eram marginalizadas por um narrador pertencente
à elite. Importa afirmar que há dois tipos de escritores modernos que querem fazer das suas vozes um
protesto contra a opressão das classes marginalizadas, a saber – os que fazem parte da classe subalterna,
como foi o caso de Carolina e os outros, que pertencem a outros grupos sociais, mas que lutam a favor
das classes marginalizadas.
8
O subalterno, termo adoptado por Antônio Gramsci (1891-1937), é o “sujeito de categoria inferior” e
refere-se à pessoa que na sociedade é objecto da hegemonia das classes dominantes (Bhabha, 1998, p.
103). Gramsci afirma: “O subalterno não é simplesmente um grupo oprimido, mas alguém sem autonomia
e sujeito à influência ou hegemonia de outro grupo social, não possuindo por isso sua própria posição
autonómica” (Gramsci, apud Bhabha, 1998, p. 97). Situado neste contexto, o subalterno não tem
liberdade de expressão nem voz, tornando-se totalmente deslocado da política de informações e alvo de
manipulação por parte do grupo dominante. Por outro lado, Spivak (apud Ashcroft et al., 1998, p. 218)
afirma que o “sujeito subalterno não existe enquanto categoria que tem voz própria e, desse modo, não
pode ser ouvido no discurso dominante, além de não ter nenhum espaço a partir do qual possa falar”. Há
assim grande dificuldade em atribuir ao subalterno uma voz que já não tenha sido usada antes, uma vez
que ele apresenta características, identidades e vozes já usadas por outros grupos. Contudo, alguns
escritos pós-coloniais revelam a voz e a reacção dos subalternos mostrando ser possível vencerem-se os
obstáculos que têm dificultado o resgate da sua identidade.
9
Este posicionamento de Carolina é bem revelador da determinação e afrontamento de que esta autora foi
capaz , até por ele ser contrário à opinião de críticos como Gayatri Spivak (1988), para quem “! ao
subalterno não é dado a possibilidade de se fazer ouvir”, vide Can The Subaltern Speak.

220
meio de emancipação, de que ela se apropriou para fazer ouvir uma parte da população
sem voz. E acima de tudo, a relevância desta obra, sobretudo ao tempo da sua
publicação, decorre em grande medida do facto de a autora ter exposto ali, de modo tão
cru e frontal os temas, ainda um tanto tabu, das dificuldades (violência, fome, pobreza
entre outras) que enfrentavam os pobres e marginalizados, em São Paulo,
designadamente nos finais dos anos 1950, quando o livro foi escrito.

Porém, embora deslocada socialmente, Carolina Maria de Jesus, leitora e


observadora do mundo em Quarto de Despejo, ocupa um espaço de auto-realização, um
“lugar de fala”, podendo por isso denunciar a situação sub-humana da favela e
contrariar assim, a afirmação de Spivak de que a mulher, enquanto ser subalterno
dificilmente tem voz”: “The subaltern as female cannot be heard or read” (1988, p.104).
Carolina Maria de Jesus ouve, lê, lembra e também escreve outras vozes que reporta no
seu diário. A escritora torna-se, desse modo, sujeito da sua própria história, narrando as
suas actividades quotidianas e incluindo nessa narração os relatos de outras vivências.
Traçando com a sua narrativa a inscrição de si mesma, ela mostra-nos ao mesmo tempo
como é a vida na comunidade e quais as dificuldades que uma mulher marginalizada10
pela sua condição social, em grande parte devida ao género e à cor da pele, é obrigada a
enfrentar.

Observamos assim que o texto de Carolina evoca vários acontecimentos que


mostram a degradação da condição humana e que abraçam, ao mesmo tempo, inúmeras
outras histórias de um quotidiano onde se busca uma vida mais digna. A autora anseia
assim por que essa maior dignidade se afirme, seja a que nível for, denunciando um
gritante défice de cidadania, seja no seio na família, seja na profissão, seja nas relações
pessoais, seja na relação com o mundo. E assim, com o objectivo de atacar a raiz desses
problemas, que entroncam na governação distanciada da hegemonia branca no Brasil,
ela questiona também, com o informalismo da sua escrita, os valores impostos pelo
cânone elitista, o qual é sempre avesso à concessão de igualdade de representação entre
centro e periferia. Importa salientar ainda que esta obra, em todo o seu espectro de
interpelações, traz à luz, de modo abrangente, os problemas sociais constitutivos da
sociedade brasileira, mostrando-nos também que a experiência vivida e divulgada por

10
Sobre esta questão veja-se o ponto de vista de Martin Lienhard (1990, 1996) em Vozes Marginalizadas
e Literatura Marginalizada onde dá relevo às narrativas dos descendentes de índios e negros nas
Américas, cujas relações com a cultura escrita são marcadas pela continuidade de formas peculiares à
cultura oral.

221
um grupo social específico é relevante por corresponder aos valores e anseios desses
grupos de desfavorecidos que são quem, antes de mais, deve mostrar o seu
inconformismo.

Logo no princípio deste testemunho, observamos as actividades diárias dos


moradores da favela, principalmente as da personagem principal - os afazeres de todos
os dias, tais como a sua ida e volta a buscar água, as conversas com os seus vizinhos e
os seus hábitos de trabalho como catadora-de-papel. Com a publicação desta obra e com
os desenvolvimentos temáticos que privilegiou a autora, além de se assumir como porta-
voz do inconformismo da favela, pretendeu adicionar à causa dos desfavorecidos o
contributo da sua solidariedade. Essa atitude de irmanamento está patente na
identificação que Carolina assume com os problemas e pretensões dos favelados, seus
pares, e pelo modo determinado como luta contra o sentimento egoísta que reina
naquela favela.

A personagem principal afirma que: “A única coisa que não existe na favela é
solidariedade” (Jesus 1960, p.17). Está farta da vida que leva naquele bairro, ao ponto
de querer deixá-lo e mudar-se para outro. “Oh! Se eu pudesse mudar daqui para um
núcleo mais decente.” (Jesus 1960, p.15). Se eu pudesse mudar desta favela! Tenho a
impressão que estou no inferno (Jesus 1960, p.28), Favela, sucursal do inferno, ou o
próprio inferno (Jesus 1960, p.158). As brigas entre os moradores são frequentes e
desestabilizadoras e Carolina sabe, sente no seu dia-a-dia, que a fome é a principal razão
dos desentendimentos na favela.

A estética da fragmentação é muito nítida aqui e isso decorre, naturalmente, da


oscilante memória na escrita de um diário que, por natureza, ora destrói, ora restaura, re-
faz, re-forma, re-memora a experiência quotidiana. Pela experiência corporizada na
palavra diária, o escritor tem a possibilidade de tecer a sua própria história. Carolina
Maria de Jesuss, por exemplo, não existe antes do seu relato. Ela nasce com Quarto de
Despejo – através deste relato, Carolina nasce como escritora para o mundo e como
sujeito no seu texto – na medida em que, constituindo ali uma imagem, é através dessa
linguagem que ela sobrevive.

O diário de Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo, coloca-nos em contacto


com a miséria da grande mancha de populações que vive na periferia da grande S.
Paulo. São populações que lutam contra uma constante penúria e isto apesar de esta

222
obra ter sido escrita num período de intensificação do processo de desenvolvimento do
capitalismo no Brasil, quando se verificava um forte incentivo à industrialização e à
“modernização dos homens, tornando-os cada vez mais urbanos. Moderniza-os nos seus
pensamentos e hábitos, tornando-os consumistas” (Rodrigues 2003, p.31). Pode dizer-se
que o problema central que Carolina Maria de Jesus expôs no seu diário tem a ver com
essa penúria constante, a miséria endémica e a pobreza que afectam a maioria das
pessoas no mundo, e de que a favela do Canindé é um exemplificativo microcosmo.
Segundo a própria Carolina, “a pior coisa do mundo é a fome” (Jesus 1960, p.180),
noutras palavras, a fome é a maior aflição da favela, e por isso ela procurou evidenciar,
através do relato da sua experiência de vida e da observação quotidiana, como as
dificuldades de subsistência eram tão gritantes que levavam as pessoas a proceder como
animais, chafurdando no lixo em busca de comida.

Importa dizer que na época em que este livro foi publicado, havia cerca de
cinquenta mil favelados em São Paulo e a autora foi, precisamente, uma das muitas
pessoas que passaram pelo sofrimento de carências continuadas, designadamente dias e
dias de fome prolongada. Nas suas palavras, quando ela não tinha comida, sentia essa
carência como uma insidiosa forma de escravatura:

Levantei nervosa. Com vontade de morrer. Já que os pobres


estão mal colocados para que viver? Será que os pobres de
outros países sofrem igual aos pobres do Brasil? …Chegou
um caminhão aqui na favela. O motorista e seu ajudante
jogam umas latas. É linguiça enlatada. Penso: É assim que
fazem esses comerciantes insaciáveis. Ficam esperando os
preços subir na ganância de ganhar mais. E quando apodrece
jogam fora para os corvos e os infelizes favelados …. Vejo
as crianças abrir as latas de linguiça e exclamar satisfeitos: --
-Hum! Tá gostosa! A Dona Alice deu-me uma para
experimentar. Mas a lata está estufada. Já está podre. (Jesus
1960, p.34).
E assim no dia 13 de Maio de 1958, eu lutava contra a
escravatura atual…a fome! (Jesus 1960, p.32).
Através deste passo, entendemos que a vida dos moradores da favela era
extremamente dura. Passavam fome todo dia e tinham que comer na lixeira. O seu
sofrimento era por vezes tão grande que alguns deles até pensavam em suicidar-se, em
autodestruir-se. Tal é o caso de senhor Tomas (Jesus 1960, p.154), e de uma senhora
sem nome e os seus três filhos que se suicidam (Jesus 1960, p.63) A fim de vencerem o

223
fardo da fome, as diferentes personagens usam também diferentes meios de
sobrevivência, - algumas passam a vida a pedir esmola, outras procuram comer no lixo,
há quem faça qualquer tipo de trabalho para sobreviver. Este é o caso de Carolina que
passa vida a catar papel e ferro nas ruas, e depois vende esses materiais de pouco valor
para sobreviver e para manter os seus três filhos. A maioria da população das favelas
sobrevivia através da caridade das igrejas e da assistência social.

A grande preocupação de Carolina, quer como personagem, quer como autora, é


a questão da sobrevivência diária da gente das favelas. Em busca de algo para pôr na
boca, a gente humilde das favelas sujeita-se a vasculhar interminavelmente as enormes
lixeiras da periferia da grande cidade. E tudo isto porque a dor da fome é
verdadeiramente excruciante, insuportável, leva a um estado de debilidade física tão
grande que gera tonturas ainda maiores que as de alguém que esteja bêbado. E esta
provação da fome parece ser o destino inescapável de quem nasce pobre.

A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do


álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer.
Percebi que é horrível ter só ar dentro do estomago.
Comecei sentir a boca amarga. Pensei: já não basta as
amarguras da vida? Parece que quando eu nasci o destino
marcou-me para passar fome. (Jesus 1960, p.45).
Mas até a fome, infelizmente, parece ter uma consequência “bem aceite” por aqueles
que não têm boa comida para por na mesa. É que então ninguém reclama do que lhe é
servido, até as crianças aceitam melhor tudo o que lhes dão. “Os meus filhos estão
sempre com fome. Quando eles passam muita fome eles não são exigentes no paladar”.
(Jesus 1960, p.31)

Tira barriga cheia ou vazia fará toda a diferença. O grande objectivo de quem mora na
favela é ter na barriga outra coisa que não seja apenas ar. Quando a barriga está vazia o
corpo fica sem energia, qualquer esforço será penoso, nenhuma tarefa será feita com
entusiasmo. Mas ter o estômago cheio ou estar perante o alimento que encherá o
estômago é equiparado ao maior espetáculo do mundo, para quem passa privações
diárias.

A comida no estomago é como o combustível nas


máquinas. Passei a trabalhar mais depressa. O meu corpo
deixou de pesar. Comecei andar mais depressa. Eu tinha
impressão que eu deslisava no espaço. Comecei sorrir

224
como se estivesse presenciando um lindo espetáculo. E
haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer?
Parece que eu estava comendo pela primeira vez na vida
(Jesus 1960, p.45).
Aqueles que nem sequer têm o mínimo para comer sentem que Deus os castiga
injustamente e por isso se sentem revoltados. Para viver assim, desabafam blasfemando,
teria sido melhor nem ter nascido, já que a sobrevivência só é conseguida andando a
importunar os outros, permanentemente: “Tem hora que eu revolto contra Deus por ter
posto gente pobre no mundo, que só serve para amolar os outros”. (Jesus 1960, p.57)

Carolina lança também um aviso a quem governa. É que o povo pode revoltar-se
com tantos sacrifícios. Por isso é bom que eles saibam o que é passar fome e estejam
assim precavidos para aquilo que as pessoas são capazes de fazer quando estão com
fome: “O que eu aviso aos pretendentes a politica, é que o povo não tolera a fome. É
preciso conhecer a fome para saber descrevê-la” (Jesus 1960, p.30).

Outra “boa” consequência da fome é que aqueles que já a sentiram aprendem


sempre algo com ela, sobretudo a serem menos egoístas, a pensar nos outros quando
estão bem de vida e a valorizarem a importância da solidariedade que se deve ter para
com os mais desvalidos. Por isso a fome no Brasil pode ser equiparada a uma
professora, pois ela pode prepara os dirigentes, ao levá-los a saberem o que é o sentir do
povo em dificuldades: “ O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou
fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e
nas crianças. (Jesus 1960, p.31).

Na leitura desta obra assoma que a fome é uma circunstância tão constantemente
referida que ela se torna, dessa forma, numa espécie de personagem desta narrativa.
Carolina equipara a fome a uma forma de escravidão que tem de ser vencida. Para ela, a
fome é uma realidade tão presente que se torna personagem real, ela é “alguém”, tem
nome e cor: Segundo a autora, ela viu a cor da fome, e esta cor é a amarela, apesar de
esta cor, noutros contextos ter associação à riqueza, ao brilho do ouro:

Pensei guardar o dinheiro para comprar feijão. Mas, vi que não


podia porque o meu estômago reclamava e torturava-
me…Resolvi tomar uma média e comprar um pão. Que efeito
surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de
comer via o céu, as árvores, as aves, tudo amarelo, depois que
comi, tudo normalizou-se aos meus olhos. (Jesus 1960, p.27).

225
As cores assumem nesta obra de Carolina de Jesus simbologias muito
específicas e recorrentemente referidas. Por exemplo, na experiência de vida retratada
por Carolina, a cor roxa está associada ao sofrimento: “vi as flores roxas. A cor agrura
que está nos corações dos brasileiros famintos” (Jesus 1960, p.123). Por sua vez, a cor
preta é o mundo dos negros, aquele que é também o seu: “Comeram e não aludiram a
cor negra do feijão. Porque negra é a nossa vida. Negro é tudo que nos rodeia.” (Jesus
1960, p.44); A minha {vida}, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o
lugar onde eu moro”. (Jesus 1960, p.147). A cor amarela, ao contrário da riqueza que
ela simboliza no centro da bandeira do Brasil, para Carolina, é a cor da fome e é com
esta cor que a fome é personagem em Quarto de Despejo. A fome é como uma pessoa
que faz companhia, a todo tempo, à família de Carolina e aos outros moradores da
favela. Quando a narradora refere a fome como amarela, pretende que ela seja vista
como uma anomalia que precisa ser curada: “ Que efeito surpreendente faz a comida no
nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves, tudo amarelo,
depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos” (Jesus 1960, p.40).

Ela faz companhia permanente à família de Carolina e aos outros moradores da


favela: “os meus filhos estão sempre com fome” (Jesus 1960, p.27). Para poder obter
comida, a autora recorre a tudo, aproveita os ossos no frigorífico, busca restos de carne
e de legumes nos caixotes do lixo, vende papéis, latas, panos e ferro velho que recolha
nas ruas. A falta de comida é o que mais a deixa deprimida, ao ponto de chegar a pensar
em suicidar-se com os seus filhos quando não tem nada para lhes dar de comer. Para ela,
lutar contra a fome equivale a lutar contra a escravatura: “E assim no dia 13 de Maio de
1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome (Jesus 1960, p.27). As maiores
tristezas e alegrias da escritora e dos filhos são, respectivamente, a falta de comida e /ou
a presença dela. No dia em que consegue servir para os seus filhos arroz, feijão, repolho
e linguiça, emociona-se e sente-se “mais gente”, apreciando a cena com deleite: “como
se eu estivesse assistindo um espetáculo deslumbrante: “Que espetaculo deslumbrante!
As crianças sorrindo vendo a comida ferver nas panelas. Ainda mais quando é arroz e
feijão, é um dia de festa para eles” (Jesus 1960, p.43). “E haverá espetáculo mais lindo
do que ter o que comer?” (Jesus 1960, p.40). Assim, o fogo no fogão e a gordura
fritando na frigideira são os maiores enfeites do barraco negro cujas tábuas são negras e
podres, “igual a minha vida!” (Jesus 1960, p.154), reitera a autora, sempre explicando
por meio de comparações, o universo que a rodeia.

226
Pela referência frequente à fome neste diário de Carolina, a falta de comida, além
de se tornar em personagem , assume-se mesmo como “figura” preponderante e trágica.
Efectivamente, desde o início até ao fim da narrativa, há sempre relatos das condições
miseráveis das personagens que passaram fome. Carolina diz-nos no seguinte passo que
a fome compelia as pessoas da favela a comerem de tudo o que encontravam na lixeira,
mesmo alimentos deteriorados, com risco de vida:

Um dia eu ia vender ferro quando parei na Avenida Bom


Jardim. No Lixão, como é denominado o local. Os lixeiros
haviam jogado carne no lixo. E ele escolhia uns pedaços.
Disse-me: - Leva Carolina. Dá para comer. Deu me uns
pedaços. Para não maguá-lo aceitei. Procurei convencê-lo a
não comer aquela carne. Para comer os pães duros ruídos
pelos ratos. Ele disse-me que não. Que há dois dias não
comia. Acendeu o fogo e assou a carne. A fome era tanta
que ele não pode deixar assar a carne. Esquentou-a e
comeu…No outro dia encontra o pretinho morto. Os dedos
do pé abriram. O espaço era vinte centímetros. Ele
aumentou-se como se fosse de borracha. Os dedos do pé
parecia leque. Não trazia documentos. Foi sepultado como
um Zé qualquer. Ninguém procurou saber seu nome.
Marginal não tem nome. (Jesus 1960, p.40-41).
Fica assim, ainda mais suficientemente denotado que o maior tema deste romance é a
fome, as razões por que tanta gente passava fome nas favelas e de que modo a falta de
comida era para Carolina um factor de tensão constante, já que os conflitos entre os
esfomeados flavelados eram ocorrência diária:

Duro é o pão que nós comemos. Dura é a cama que dormimos.


Dura é a vida do favelado. (Jesus 1960, p.40-41).
O egoísmo ou falta da solidariedade é o traço mais visível de quem usa a comida como
negócio e recorre a todas as estratégias para que os bens de consumo essenciais tenham
preços tão altos quanto possível:

…Os preços aumentam iguais as ondas do mar. Cada qual


mais forte. Quem luta com as ondas? Só os tubarões. Mas
o tubarão mais feroz é racional. É o terrestre. É o
atacadista. (Jesus 1960, p.60)
No entanto, a ganância também tem custos altos. A natureza, por vezes, encarrega-se de
lembrar ao comerciante sem escrúpulos que quem tudo quer, num instante o pode
perder. Neste mundo de egoísmo e de falta de solidariedade, Carolina não deixa de
criticar violentamente quem não pensa nos outros e se mantém assim indiferente ao

227
sofrimento alheio “…os bons eu enalteço, os maus eu critico. Devo reservar as palavras
suaves para os operários, para os mendigos, que são escravos da miséria” (Jesus 1960,
p.61). A crítica neste caso centra-se nos comerciantes que armazenavam os bens
alimentares a fim de inflacionarem os preços. Mas veio uma grande uma grande chuva
que causou inundação e eles tiveram de atirar tudo ao rio, tendo assim um grande
prejuízo: “Vi os homens jogar sacos de arroz dentro do rio. Bacalhau, queijo, doces.
Fiquei com inveja dos peixes que não trabalham e passam bem” (Jesus 1960, p.60).

Eram sacos de arroz que estavam nos armazens e


apodreceram. Mandaram jogar fora. Fiquei horrorizada
vendo o arroz podre. Contemplei as traças que circulavam,
as baratas e os ratos que corriam de um lado para outro.
(…) Porque é que o homem .. é tão perverso assim? Ele
tem dinheiro, compra e põe nos armazens. Fica brincando
com o povo igual gato com rato (Jesus 1960, p. 142).

Este tipo de comportamento demostra a falta de amor e piedade para com o próximo
por parte destes comerciantes. E mostra também como a sociedade se encontra dividida.
Como Carolina afirmou neste passo: “as pobres querendo ganhar e os ricos não queriam
dar”. (Jesus 1960, p.61)

Ao lermos este diário, constatamos que Carolina Maria Jesus o escreveu à noite,
naquelas horas em que a favela era mais calma e quando ela se debatia com as suas
preocupações sobre o modo como ela mesma e os seus filhos iriam vencer o jugo da
pobreza e da fome. No passo seguinte, ela fala-nos precisamente sobre a sua escrita e
como a encadeava com outras tarefas: quando trabalhava à tarde como catadora de
papel, já tinha vivido um longo dia, desde que se levantara, de madrugada, para
escrever, fugir da miséria e acalentar sonhos, olhando as promessas do céu:

“deixei o leito as 4 horas para escrever. Abri a porta e


contemplei o céu estrelado. Quando o astro-rei começou a
despontar eu fui buscar água (Jesus 1960, p.22)
“Eu gosto da noite só para contemplar as estrelas …, ler e
escrever. Durante a noite há mais silêncio. (Jesus 1960,
p.37).
Antes de sair de casa, ainda precisava de deixar comida feita e roupa
lavada para os seus filhos. Um esforço a mais, num longo dia de

228
canseiras, mas que lhe dava a gratificação de se sentir alguém de quem
outros dependiam: .

Quando eu faço quatro pratos penso que sou alguém.


Quando vejo meus filhos comendo arroz e feijão, o
alimento que não está ao alcance do favelado, fico
sorrindo atôa. Como se eu estivesse assistindo um
espetaculo deslumbrante. Lavei as roupas e o barracão
(Jesus 1960, p.50)
Hoje eu não lavo as roupas porque não tenho dinheiro para
comprar sabão. Vou ler e escrever (Jesus 1960, p.94).
Como foi salientado na apresentação da vida e obra desta escritora, Carolina
Maria de Jesus é analfabeta. O que faz com que ela seja destituída da possibilidade de
ser reconhecida como uma autora de pleno direito. Ela é uma mulher comum, negra
favelada. E, considerando que apenas escritores canónicos teriam o privilégio de falar
em nome dos sujeitos subalternizados, ou quaisquer outros, a sua voz seria,
supostamente, irrelevante na tarefa de se escrever sobre aqueles problemas com que se
defrontava sociedade brasileira.

No que toca a esta questão, Carolina Maria de Jesus manifesta a consciência de


que escrever é um exercício do poder. O facto de ela ser uma negra semi-alfabetizada a
viver na favela desperta tensões e até o rancor das outras moradoras: “ as rascôas
(pessoas) da favela estão vendo eu escrever e sabe que é contra elas” (Jesus 1960, p.22).
Mas ela está decidida a assumir o poder e o risco do acto de escrever: : Vou escrever um
livro referente a favela. hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês fazem. Eu
quero escrever o livro, e você com estas cenas desagradáveis me fornece os
argumentos” (Jesus 1960, p.21).

Reforçando esta ideia de que quem escreve e lê na favela é um ser diferenciado e que
isso é obstáculo a outro tipo de entendimentos, Carolina define o acto de escrever como
o seu ideal de vida, que já não comporta a ideia de casamento, da plena partilha de vida
com um homem:

Ele (o senhor Manoel ) disse-me que quer casar comigo. Mas


eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um
homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar
sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e
papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver
só para meu ideal. (Jesus 1960, p.131).

229
Neste seu diário, Carolina descreve o momento em que escreve como a fuga para um
lugar de fantasia, que a compensa da miséria do dia-a-dia:

Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando


que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol.
Que as janelas são de prata e as luzes são brilhantes. Que a
minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de
todas qualidades. (…) É preciso criar este ambiente de
fantasia, para esquecer que estou na favela. (…) As horas que
sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginários
(Jesus1960, p.59-60)
Nessas horas de felicidade veiculadas pelo acto de escrever Carolina oferece-nos, nos
seus escritos, pedaços relevantes da sua vida, algum momento ou pessoa que deram um
sentido maior a alguns dos seus dias. Sendo assim, a sua obra é um registo único,
composto por experiências singulares que, independente da forma, carregam uma
história, e são por isso, um autentico escrito biográfico.

Alfred Bosi (2002,) num ensaio “ A escrita e os excluídos” no seu livro


intitulado Literatura e Resistência, indica dois caminhos para considerar o acto de
escrever como um acto de cidadania para aqueles que estão alijados do processo de
produção simbólica: o primeiro consiste em ver o excluído social ou marginalizado
como o objecto da escrita. Ser objecto compreende ser tema, personagem e situação
narrativa. O segundo é entender esse mesmo sujeito como enunciador do processo
simbólico. Essa última proposição parte da “hipótese de que é possível identificar, na
dinâmica dos valores vividos em contextos de pobreza, certas motivações que levem à
actividade social da leitura e da escrita. Trata-se de descobrir o leitor potencial (Bosi
2002, p.261). ” Por sua vez, Pereira (2002), considera o termo literatura silenciosa como
a literatura a que o cânone literário não dá expectativas de diálogo. Na sua opinião:

A literatura silenciosa constitui lugar a partir do qual os


indivíduos destituídos de voz, por força das desigualdades
sociais e raciais, estabelecem a sua auto-representação. Ao
tecerem as estratégias dessa literatura, realizam-se como
sujeitos da comunicação, isto é, manejadores de códigos,
através dos quais respiram e colocam em prática seus
projectos de superação da exclusão social (…) a expressão
literatura silenciosa adquire um significado paradoxal, pois
indica uma textualidade que está ausente dos espaços
literários legitimados, mas que ao mesmo tempo, insinua-

230
se como uma presença em potencial. Trata-se de uma
situação que resulta da construção de uma ausência e de
uma presença incompletas, ou seja, os discursos que
debatem essa textualidade fixam-se numa faixa, sem negar
de todo a outra (Pereira 2002, p.38-42).

Por tudo quanto aqui fica dito, Quarto de Despejo configura-se como uma acto
de escrita através do qual Carolina M. Jesus busca o reconhecimento da cidadania para
os excluídos da favela do Canindé o que, simbolicamente, representa todos os lugares
onde vivem em exclusão social tantos outros milhares e milhões de pessoas de todas as
favelas do Brasil e do mundo. E, tendo em conta a noção aqui presente de literatura
silenciosa, veremos como Carolina dá voz, neste texto, a todos quantos se mantinham na
marginalidade e estavam por isso destituídos de voz.

iii. Carolina M. Jesus, porta-voz da gente marginalizada da favela

Assim, neste/na terceiro/a momento/parte deste capítulo, em que analisaremos


com particular atenção a representação da voz dos excluídos em Quarto de Despejo,
veremos como Carolina faz da vivência marginalizada da favela o sujeito enunciador do
processo narrativo, com toda a simbologia de tomada de consciência por parte dos
deserdados deste mundo que isso comporta. Neste gesto em que a vivência marginal da
favela é trazida para o centro de uma representação literária, Carolina está,
assumidamente, a afirmar o seu compromisso enquanto autora, para ser a porta-voz das
gentes excluídas dos subúrbios da cidade, cujas reivindicações nunca foram ouvidas
nem atendidas. O engajamento da autora será total, no sentido de conseguir mudanças
político-sociais que venham ao encontro de melhores condições de vida para os
deserdados das favelas. Carolina M. Jesus abraçará esta causa com todo o
empenhamento, também porque ela é uma de tantas mulheres que sentiram na pele todo
o tipo de discriminações sociais, raciais e sexistas com que se debatiam as faveladas dos
subúrbios das grandes cidades.

Uma das situações que irá pôr à prova a determinação do engajamento de


Carolina, na sua luta contra o rol de preconceitos que estigmatizam os favelados será a
ausência de um espírito de solidariedade entre os moradores da favela, tão necessário

231
para uma tomada de posição colectiva que represente uma unidade de corpo e de
reivindicações conscientemente assumidas. Efectivamente, entre os habitantes das
favelas as rixas são constantes, seja entre marido e mulher, seja entre filhos ou vizinhos.
Além das tensões provocadas pelas situações de fome, conforme já referido, o clima de
violência e hostilidade vivido nas favelas é uma constante, por um conjunto adicional de
razões. E as mulheres são sempre quem mais sofre, dependentes que estão do sustento e
dos maus tratos e humores de maridos violentos. Não é esse o caso de Carolina que,
com todo o sacrifício pessoal que isso comporta, já se decidira por uma alternativa de
vida independente de um marido. Entre as mulheres casadas, por sua vez, há sempre
trocas de palavras agressivas e as brigas são constantes, tal como permanente é o mau-
estar em suas vidas:

As mulheres saíram, deixou-me em paz por hoje. Elas já


deram o espetáculo. A minha porta atualmente é theatro.
Todas crianças jogam pedras, mas os meus filhos são os
bodes expiatórios Elas aludem que eu não sou casada. Mas
eu sou mais feliz do que elas. Elas tem marido. Mas são
obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associações
de Caridades .Os meus filhos não são sustentados com pão
de igreja. Eu enfrento qualquer trabalho para mantê-los. E
elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A
noite, enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu
barracão ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebra
as tábuas do barracão, eu e meus filhos dormimos
socegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que
levam a vida de escravas indianas (…) Não casei e não estou
descontente. Os que preferiu me eram soezes e as condições
que eles me impunham eram horríveis (Jesus 1960, p.17-
18).
Podemos deduzir que a maioria dos maridos na favela é muito violenta para com
as suas esposas.

Há diversos exemplos retratados na obra aqui em estudo. São as mulheres que


mantêm o lar sem nenhuma contribuição dos seus maridos. Mas em vez de serem
elogiadas pelos seus esforços, são brutalmente espancadas pelos seus maridos,
transformadas num saco de pancadaria ou num batuque onde o homem faz a percussão
das suas frustrações diárias. Carolina nunca consegue entender a razão por que estas
mulheres continuam a viver com esses maridos violentos e, ao insurgir-se contra isso,
bem como contra a situação de passividade dessas mulheres, está a dizer à comunidade
de mulheres que há alternativas à escravidão, mas que para elas sejam possíveis é

232
necessário uma tomada de posição delas próprias. Carolina já fez a sua opção, escolheu
viver sozinha, para poder ter a sua autonomia e manter o compromisso de dizer,
escrevendo, aquilo que deve ser dito para que a mulher supere uma vida de sujeições.

A escritora parece sentir-se grata por não se ter casado, pois, por mais
preconceitos que sofra por ser mãe solteira nos anos de 1950, tranquiliza-a o facto de
não ter de sofrer as agressões domésticas a que tantas outras mulheres estão sujeitas.
Dessa maneira, na maioria das vezes, sente-se vitoriosa por ter um viver independente
de um marido. Além disso, ela mesma afirma que homem nenhum aguentaria viver com
uma mulher que acorda e dorme com um lápis na mão. Importa sublinhar que há passos
do texto que reforçam a ideia de que Carolina sente alguma hostilidade por parte das
outras mulheres da favela, até pela sua postura perante a vida, com diferentes ideais e
objectivos. Por exemplo, Carolina é acusada pelas mulheres casadas de tentar conquistar
os maridos delas. É outro exemplo de hostilidades que denotam o mal-estar e a falta de
solidariedade que campeiam entre a comunidade de marginalizados. Mas Carolina não
alimenta esses desentendimentos, busca na escrita uma solução para a difícil situação
que todas vivem:

Ela odeia me. Diz que sou preferida pelos homens bonitos e
distintos. (Jesus 1960, p.17).
Aqui, todas impricam comigo. Dizem que falo muito bem.
Que sei atrair os homens (…) Quando fico nervosa não
gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo.
Sento no quintal e escrevo” (Jesus 1960, p.24)
Apesar de Carolina querer ter a sua independência, aceita o pesado fardo de
desempenhar, ao mesmo tempo, o papel do pai ausente e de mãe sempre presente. Mas
às vezes queixa-se da sua situação de ser chefe da família e dona da casa: “ como é
pungente a condição de mulher sozinha, sem um homem no lar” (Jesus 1960, p.24).
Assim, por não ter essa figura masculina no lar, a mulher favelada teve de transmutar-se
em papéis considerados masculinos, para poder continuar a sua história de luta e de
sobrevivência na favela onde morava.

Nas entrelinhas deste seu diário, notamos que a autora não tem a mínima pena
ou consideração para com as mulheres casadas da favela que são oprimidas pelos
maridos. Será justo dizer que esse seu posicionamento é uma forma de insensibilidade
ao espírito de solidariedade feminista (irmandade em identidade de propósitos) ou às

233
políticas de género? Certamente que não. Ela apenas se recusa a submeter-se às
humilhações por que passam as outras mulheres casadas, incapazes de afrontar a falta de
respeito dos maridos. E este posicionamento diferenciado, que aqui temos vindo a
registar, é precisamente o que mais importa relevar, nesta parte deste capítulo, como
denúncia das situações que menorizam a mulher. O compromisso que Carolina quer
assumir como porta-voz do quem tem sido silenciado, passa muito claramente pelo
combate determinado a este tipo de aviltamentos de pendor sexista, perpetrados pelos
homens, no interior dos próprios lares. A defesa intransigente do que são os direitos da
mulher passa por um procedimento de independência relativamente ao homem. O seu
engajamento político-social vai travar-se na denúncia da violência e das discriminações
que se exercem sobre as mulheres, logo também na instituição que é o matrimónio, tão
eivado de práticas em que o homem é o senhor e a mulher a escrava. Para Carolina, a
mulher deixará de ser escrava quando tiver condições de autonomia financeira, mas o
acesso a essa possibilidade passa por uma maior formação e aí a mulher também não
tem igualdade de oportunidades, embora, na favela, as oportunidades para jovens ou
adultos, mulheres ou homens, sejam sempre muito poucas.

E é precisamente devido à falta de condições de vida e de oportunidades para os


jovens e adultos na favela onde ela mora, que aquele lugar se tornou num terreno fértil
para a perpetuação de situações de violência, de pequenos crimes, roubos e furtos. E,
por isso, é importante verificarmos aqui que a ociosidade é o diagnóstico que Carolina
nos dá das razões que levam à marginalidade, às brigas entre os moradores da favela, à
criminalidade que, do seu ponto de vista, dominam o comportamento dos jovens. A
ociosidade, fonte conhecida de tantos males, decorrerá em grande parte da falta de
preparação dos habitantes da favela para conseguirem corresponder a ofertas de
emprego que surjam na grande cidade e que sejam ocupações mais bem remuneradas:

…Durante o dia, os jovens de 15 e 18 anos sentam na


grama e falam de roubo. E já tentaram assaltar o empório
do senhor Raymundo Guello. E ficou carimbado com uma
bala. O assalto teve início as 4 horas. Quando o dia clareou
as crianças catava dinheiro na rua e no capinzal. Teve
criança que catou vinte cruzeiros em moeda. E sorria
exibindo o dinheiro. Mas o juiz foi severo. Castigou
impiedosamente (Jesus 1960, p.23.)

234
Carolina Maria de Jesus retrata nesta sua obra, de modo recorrente, o
preconceito racial e social prevalecente em relação à favela e aos seus moradores.
Carolina sente na pele a praga da discriminação quando vai até a loja Açougue Bom
Jardim com o intuito de comprar alguns itens que faltam em sua casa. No balcão “a
caixa olhou Carolina com um olhar descontente e disse que não havia todas os itens que
ela queria mas quando um japonês entrou e perguntou pelas mesmas coisas, ele disse
que havia e foram vendidos. (Jesus 1960, p.145. Os favelados, neste romance, são
malvistos e desconsiderados. Há uma insistência na ideia de que todos os favelados são
bandidos e que praticam diversos crimes tais como roubos, violação sexual e física,
homicídio, entre outros delitos. Um dos relatos do diário que nos comprova isso é a
seguinte afirmação, sem fundamento, feita por uma personagem do sexo feminino, que
afirma ter ouvido dizer que os moradores de favelas são ladrões: “Eu ouvi dizer que
vocês lá da favela vivem uns roubando os outros”. (Jesus 1960, p.25). É importante
acrescentar-se que quando se fala de preconceito, neste romance, não se fala só do
racismo mas também do preconceito de se ser pobre. Neste passo do romance, a
narradora sublinha o afastamento que existe entre os habitantes da cidade de cimento/
do asfalto e os da favela, ficando aqui bem denotado o preconceito dos primeiros para
com os segundos. A gente da cidade tem repugnância e até nojo dos favelados:

“os visinhos de alvenaria olha os favelados com


repugnância. Percebo seus olhares de ódio porque eles não
quer a favela aqui. Que a favela deturpou o bairro. Que tem
nojo da pobreza. Esquecem eles que na morte todos ficam
pobres. (Jesus 1960, p.56).
O engajamento de Carolina em prol de melhores condições sociais para os
habitantes da favela passa pela denúncia frontal e reiterada da falta de interesse ou de
compromisso político para que tal aconteça. Carolina é desassombrada e mesmo
corrosiva na denúncia do governo e dos políticos que fizeram promessas antes das
eleições, mas depois não as cumpriram quando tomaram o poder. E deste modo a
autora, através deste livro, protesta veementemente não só contra a incapacidade do
governo de incluir os pobres e desfavorecidos nos seus planos, mas também condena a
falta de ética e de responsabilidade dos governantes por serem capazes de melhorar a
situação em que se encontram os moradores da favela. Os governantes são incapazes de
resolver os problemas dos desfavorecidos da sociedade porque, de facto, eles vivem
num outro mundo. Engajada na sua função de conseguir melhores condições de vida

235
para os esquecidos da sociedade, Carolina sabe porque é que os governantes não
resolvem os problemas dos marginalizados da sociedade. Sempre estiveram longe dos
pobres, nunca souberam o que era ter fome:

“O tenente interessou-se pela educação dos meus filhos.


Disse-me que a favela é um ambiente propenso, que as
pessoas tem mais possibilidade de delinquir do que tornar-se
útil a pátria e aos país. Pensei: se ele sabe disto, porque não
faz um relatório e envia para os políticos? O Senho Janio
Quadros, O Kubstchek e o Dr. Adhemar de Barros? …O
Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou
fome. A fome também é professora. Quem passa fome
aprende pensar no próximo, e nas crianças. (Jesus 1960,
p.31).
Além disso, para Carolina e para a maioria dos moradores da favela, neste
romance, os políticos só têm interesse em enriquecer e, deste modo, usam o dinheiro
público para fins próprios. O passo seguinte denuncia de um modo sucinto o
enriquecimento de um certo governante, Adhemar, e o desejo de Edison Marreira
Branco, aspirante a uma vaga na política, para tornar-se rico também:

“Ouço o povo dizer, o Adhemar tem muito dinheiro. Não


tem direito de enriquecer quem é nacional, quem é
brasileiro? Bem vamos deixar o Dr. Adhemar em paz porque
ele está com a vida mansa. Não come nas latas de lixo igual
aos pobres. Quando eu ia na residência do Dr. Adhemar
encontrei um senhor que deu-me este cartão. Edison
Marreira Branco. Estava tão bem vestido que atraiu os
olhares. Disse-me que pretendia incluir-se na política.
Perguntei-lhe : - quais são suas pretensões na política? –
Quero ficar rico igual ao Adhemar. Fiquei horroirisada.
Ninguem mais apresenta amor patriótico. (Jesus 1960,
p.100-101).
No âmbito das críticas e denúncias pressupostas no engajamento político-social de
Carolina por uma melhoria das condições de vida dos mais desfavorecidos, Carolina diz-
nos com toda a frontalidade que os políticos são hipócritas e oportunistas. Nos períodos
de eleições, prometem tudo, mas depois não fazem nada para ajudar os pobres. A este
propósito, recolhemos do seu diário este exemplo de crítica sem subterfúgios, a respeito
desse comportamento interesseiro dos políticos:

…Quando um político diz nos seus discursos que está ao


lado do povo, que visa incluir-se na política para
melhorar nossas condições de vida pedindo o nosso voto,

236
prometendo congelar os preços, já está ciente que
abordando este grave problema ele vence nas urnas.
Depois ele divorcia-se do povo. Olha o povo com os
olhos semicerrados. Com um orgulho que fere a nossa
sensibilidade (Jesus 1960, p.39).
Fica aqui bem nítida a denúncia ao laxismo dos governantes através da crítica de que
muitas promessas feitas pelos políticos poderiam já ter aliviado os sofrimentos dos
favelados, mas não foram cumpridas. Isto deixa a autora um tanto desalentada,
sobretudo depois de ela ter ido ao palácio do governo, onde só encontrou indiferença e
alheamento para com o sofrimento dos pobres. Refere, a propósito disso, o seguinte:

Mas eu já observei os nossos políticos. Para observá-los fui


na Assembleia. A sucursal do purgatório, porque a matriz é
a sede do serviço social, palácio do Governo. Foi lá que eu
vi ranger de dentes. Vi os pobres sair chorando. E as
lagrimas dos pobres comovem os poetas. Não como os
poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das
favelas, um expectador que assiste e observa as trajedias que
os políticos representam em relação ao povo. (Jesus 1960,
p.54)
Nas suas inventivas contra a classe política, nem o Presidente da República
escapa à crítica de Carolina que o compara ao Sabiá, passarinho bem conhecido pelo seu
mavioso cantar. Seus muitos discursos políticos são belos aos ouvidos, contudo, “de
aproveitável é só a voz”, porque não age em prol dos famintos; ao contrário, esconde-se
deles no palácio do Catete. É interessante observar as imagens utilizadas por Carolina
para mostrar a posição dos políticos frente aos favelados e o aviso que ela deixa no ar:
cuidado, pássaros, os gatos têm fome.

Este diário, enquanto testemunho de preocupações sociais, deixa de ser um


documento do foro privado para se assumir como porta-voz da vivência do quotidiano
de todos os moradores da Favela do Canindé, cidadãos que vivem, real e
metaforicamente, nas margens da grande cidade e na ilusão das promessas de
desenvolvimento económico do Brasil, no início da segunda metade do século XX. E,
no seu anseio de transmitir e denunciar a situação em que ela e os outros moradores de
favela vivem e a fim de também legitimar a sua história, Carolina agrega ao seu diário
outras histórias que confirmam a condição social precária dos favelados, representando-
os como deserdados da terra, desde os tempos bíblicos:

237
14 de Setembro…Hoje é o dia da Páscoa de Moysés. O deus
dos Judeus. Que libertou os judeus até hoje. O preto é
perseguido porque sua pele é da cor da noite. E o judeu porque
é inteligente. Moysés quando via os judeus descalços e rotos
orava pedindo a Deus para dar-lhe conforto e riquesas. É por
isso que os judeus todos são ricos. Já nós os pobres não tivemos
um profeta para orar por nós. (Jesus 1960, p.118).
De forma simplista e relativamente inocente, a escritora alude à historia dos
judeus, povo eleito de Deus, que por isso os beneficiou com inteligência e riqueza.
Carolina invoca a história bíblica para dar ênfase, por comparação, à difícil situação dos
favelados. No entanto, nem pobres nem ricos têm tranquilidade de espírito (Jesus: 1960,
p.151), embora isso aconteça por diferentes razões:

Eu não nasci ambiciosa. Recordei este trecho da bíblia: ‘não


acumules tesouros, porque lá estará o teu coração.’ Sempre
ouvi dizer que o rico não tem tranquilidade de espírito. Mas o
pobre também não tem, porque luta para arranjar dinheiro para
comer. (Jesus 1960, p.142).
Carolina recorre ao texto bíblico em outras ocasiões, para alargar a comparação entre o
sofrimento dos cristãos do passado e os pobres da terra até ao presente:

Na minha opinião os atacadista de São Paulo estão se


divertindo com o povo igual os César quando torturava os
cristãos. Só que o César da atualidade supera o César do
passado. Os outros eram perseguidos pela fé. E nós, pela
fome! Naquela época os que não queriam morrer deixavam
de amar a Cristo. Mas nós não podemos deixar de comer
(Jesus 1960, p.140).
Relativamente aos que vivem na penúria, a autora expressa uma preocupação muito
particular para com as mulheres e a razão por que elas choram:

Quando Jesus disse para as mulheres de Jerusalém : - “Não


chores por mim. Chorae por vós” – suas palavras profetizava o
governo do senhor Juscelino. Penado de agruras para o povo
brasileiro. Penado que o pobre há de comer o que encontrar no
lixo ou então dormir com fome. (Jesus 1960, p.128)
Nestes três passos do texto, é de salientar a capacidade de Carolina para
conjugar diferentes segmentos históricos que têm paralelo com o sofrimento presente.
Nas suas comparações, verificamos que a selecção de trechos é por vezes contundente.
É o que acontece entre o paralelismo que a autora estabelece entre o que Jesus disse ás
mulheres de Jerusalém “Não chores por mim. Chorae por vós”, como se já naquele

238
tempo Jesus estivesse a profetizar o calvário de vida por que viriam a passar as
mulheres pobres do Brasil, no governo de Juscelino, condenadas a chafurdar no lixo em
busca de sustento. Esta analogia é um expediente singular usado por Maria de Jesus e é
uma estratégia de escrita que põe em causa os decantados méritos do estadista que
pretende ter dado um grande impulso económico ao Brasil, e que também permite à
autora fazer a associação de duas distintas experiências de vida, com dificuldades
comuns no que respeita à sobrevivência, apenas distanciadas no tempo.

Nesta dualidade de posicionamentos e neste emparelhamento de situações, fica


perceptível que a escritora enfatiza o sofrimento dos favelados, jogados no “quarto de
despejo,” ao mesmo tempo que busca a aceitação do seu discurso entre o que é feito por
outros autores mais normativos Por outro lado, ao colocar-se como escritora que dá
protagonismo à vida dos miseráveis, Carolina não reconhece nesses outros autores,
designadamente nos poetas de salão, a capacidade de representarem sofrimentos que
não vivenciaram. Pelo contrário, o seu testemunho terá a legitimidade inequívoca de ser
proferido por quem, tendo vivido entre os pobres, os viu chorar, com eles chorou e
solidariamente lhes dá voz .

Carolina, no conjunto de críticas que faz, procura sempre que a sua voz faça eco
das queixas do povo desprezado e, especificamente, dos marginalizados contra os
políticos. Tudo isto deu azo a uma grande polémica desde o dia da publicação desta
obra, pois esta denunciava sem quaisquer peias ou rebuços as insuficiências da
organização social e do sistema de governo que não tomavam conta dos mais
necessitados, nem providenciavam as infra-estruturais sociais necessárias para que eles
pudessem ter uma vida digna.

Carolina Maria de Jesus é uma mulher corajosa que mostra estar bem ciente do
seu sofrimento, como das dificuldades e da injustiça de levar uma vida miserável na
favela, sem a esperança de ela ou os seus filhos virem a ter um futuro risonho. Sobre
esta falta de horizontes, faz no seu diário o seguinte desabafo: “ Hoje em dia quem
nasce e suporta a vida até à morte deve ser considerado herói” (Jesus 1960, p.63).
Muitas vezes, ela fica desanimada e desorientada, pelo que até pensa em suicidar-se.
(Jesus 1960, p.63, 98, 154) Verificamos, contudo, que, apesar das suas dificuldades,
mostra ser sempre corajosa e usa a sua imaginação, a esperança entrevista nos seus

239
sonhos (dado que sonhar não é crime) para lutar contra as suas adversidades,
agradecendo a Deus por lhe ter dado protecção e sossego para suportar tanto sofrimento.

Por causa disso, podem ver-se, nalguns passos do seu diário, trechos carregados de
sonhos, de fantasia e de visões encantadas que são um claro meio de fuga a uma
realidade penosa que só os sonhos conseguem superar:

“ Eu durmi .. E tive um sonho maravilhoso. Sonhei que eu era um


anjo. Meu vistido era amplo. Mangas longas cor de rosa. Eu ia da
terra para o céu. E pegava as estrelas na mão para contemplá-las.
Conversar com as estrelas. Elas organisaram um espetaculo para
homenagear-me. Dançavam ao meu redor e formavam um risco
luminoso. Quando despertei pensei: eu sou pobre. Não posso ir
num espetaculo, por isso Deus envia-me estes sonhos
deslumbrantes para minh’ alma dolorida. Ao Deus que me protege,
envio os meus agradecimentos”. (Jesus 1960, p.117)
Mas Carolina Maria de Jesus é uma mulher determinada. Apesar de ter vivido
numa extrema angústia e dificuldade, mantém, ainda assim, sempre a esperança em
melhores dias. Sonha com o dia em que a sociedade em que vive se irá tornar num bom
lugar para viver (Bamisile 2006, p.25-28; 2009, p.77-78). E a tenacidade com que
enfrenta e vence as dificuldades de subsistência, e tem ainda ânimo e determinação para
dar voz às suas irmãs e irmãos de infortúnio, são o melhor exemplo de uma bem
conseguida atitude de engajamento a favor dos mais desvalidos da sociedade, os
favelados da cidade grande, sempre tão indiferente ao sofrimento dos marginalizados da
periferia.

Deste modo, através das representações que nos dá na sua escrita, como das
expectativas que aí formula e incentiva, podemos dizer que, neste diário, Carolina M.
Jesus também desempenha o papel de educadora. Na opinião de George Eliot (Allot
1956,p.131-132), um escritor é um educador, persuasor ou influenciador do pensamento
dos leitores, mas Carolina ainda fez mais do que isso. Ela viu a sua escrita como um
meio de comunicação para transmitir as suas experiências e ideias ao público leitor.
Nesta obra, Carolina Maria de Jesus está angustiada não só com a sua vida miserável,
mas está também preocupada com a melhor maneira de apresentar e denunciar esses
problemas aos leitores. Lista os problemas socioeconómicos e políticos que mais
afectam os desfavorecidos da sociedade e usa técnicas de linguagem específicas para
esse fim. No acto de desempenhar este papel, coloca-se estrategicamente numa posição
de onde, plenamente consciente do que está a fazer, observa e relata em pormenor todos

240
os acontecimentos ocorridos na favela. A este propósito, ocorre-nos referir que também
Henry James designou o escritor como um observador11 que através do que escreve nos
conduz à revelação das qualidades éticas dos indivíduos e dos grupos, corrigindo assim
as representações deturpadas que deles temos. (Allot 1956, p.131-132)

A fim de fugir dos seus problemas diários e de se afastar da angústia que dela se
apodera quando tem fome, Carolina Maria de Jesus usa a sua imaginação como forma
de exorcizar as suas dificuldades de vida, procurando, através do sonho e da
determinação, para não deixar morrer os sonhos, que outras mulheres sejam capazes de
escapar à sujidade da favela, para poderem alcançar a claridade e os horizontes de
espaços mais vastos e de maior conforto:

Quando eu não tinha nada o que comer, em vez de xingar, eu


escrevia. Tem pessoas que, quando estão nervosas, xingam
ou pensam na morte como solução. Eu escrevia meu diário”
(Jesus 1960, p.19).
Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor
de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e
as luzes são brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e
eu contemplo as flores de todas qualidades. (…) É preciso
criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na
favela. (…) As horas que sou feliz é quando estou residindo
nos castelos imaginários (Jesus 1960, p.59
O seu sonho, como o de muitos outros pobres, era simples – o desejo de ter um certo
conforto e sair da miséria, como escreveu no seu diário do dia 20 de Julho de 1955:

O meu sonho era andar bem limpinha, usar roupas de alto preço,
residir numa casa confortável, mas não é possível. Eu não estou
descontente com a profissão que exerço. Já habituei-me andar
suja. Já faz oito anos que cato papel. O desgosto que tenho é
residir em favela (Jesus 1960, p.23)

11
A supervisão do escritor observador é o factor que dirige toda a acção, dando enfâse e relevância ao
que este pretende e avaliando as qualidades individuais ou dos grupos de personagens, no decorrer da
acção dos romances. É também o autor, assim considerado, quem corrige as apreciações e os pontos de
vista distorcidos sobre as personagens e a sociedade em que elas se inscrevem. Vide Things Fall Apart:
Authoritative text, contexts and criticism / Chinua Achebe; edited by Francis Abiola Irele Things Fall
Apart: Authoritative text, contexts and criticism / Chinua Achebe; edited by Francis Abiola Irele

241
Do início até ao fim do diário, Carolina realça o facto de existirem conflitos sociais, na
sociedade brasileira capitalista do seu tempo e na humanidade em geral, que obrigam ao
recurso à caridade alheia : “Mas, são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por
associação de caridade.” (Jesus 1960, p.17). Suporto as contingências da vida resoluta.
Eu não consegui armazenar para viver, resolvi armazenar paciência.” (Jesus 1960, p.19).
– “Cato papel. Estou provando como vivo! “(Jesus 1960, p.17).“ Condói-me ver tantas
agruras reservadas aos proletários” (Jesus 1960, p.47) “O que eu revolto é contra a
ganância dos homens que espremem uns aos outros como se espremesse uma laranja”
(Jesus 1960, p.47). Não há dúvida de que estes passos do texto justificam plenamente as
pretensões de Carolina Maria de Jesus de ser porta-voz dos excluídos. Esta escritora,
efectivamente, não hesita em citar e criticar os poderosos para condenar, explicitamente,
todo o tipo de injustiças e discriminações segregacionistas praticadas pela classe
privilegiada dos governantes do seu país.

Outra denúncia pungente feita por Carolina é a que se refere às menores de idade
que passam a vida a prostituir-se, para sobreviver. Esta crítica, que é também uma
revolta contra a condição social da mulher, junta-se ao relato da má relação interpessoal
entre os moradores desta favela.

Verificamos nesta obra que a personagem A.I, uma mulher casada, ( que nem
tem 16 anos), tem um relacionamento sexual com Lalau, entre outros homens, apesar de
ser casada. O seu marido separa-se dela quando a apanha a ter relações sexuais com o
seu primo. A.I vai então viver com Zefa, depois separa-se dele, passando depois a
prostituir-se.

Carolina Maria de Jesus, pugnando pela dignificação da mulher, defende que


esta deve adoptar uma conduta irrepreensível, para não poder ser criticada. E esta
conduta exclui obviamente a prostituição, por ela apresentada como a derrocada final da
mulher que se inicia nesta prática, muitas vezes, ainda na adolescência. Aqui fica a
condenação da autora, por suas próprias palavras, destes comportamentos condenáveis:

Penso: a mulher que separou-se do esposo não deve


prostituir-se. Deve procurar um emprego. A prostituição é
a derrota moral de uma mulher. É como um edifício que
desaba. Mas tem Mayer que não quer ser só de um
homem. Quer ser dos homens. É uma única dama,
dançando quadrilha com vários homens. Sai dos braços de
um, vai para os braços de outro (Jesus 1960, p.123)

242
Segundo Carolina, “Dona A.I e A.C estão começando a prostituir-se com os
rapazes de 16anos. É uma folia. Mais de 20 homens atrás delas. Até um miúdo, muito
jovem, anda atrás dela. Apareceu tantos jovens de 15 e 16 anos que começaram a fazer
este negócio” (Jesus 1960, p.129). Este caso de prostituição é motivo de briga entre
mulheres e homens. Por exemplo, Pitita briga com o seu marido porque ele está a
envolver-se com A.I. Através desta incidência as “crianças da favela ficaram sabendo
que os homens fazem…com as mulheres…Tenho dó destas crianças que vivem no
Quarto de Despejo mais imundo que há no mundo” (Jesus 1960, p.133).

Através deste testemunho auto-biográfico, Carolina Maria de Jesus faz uma


denúncia abrangente dos problemas existentes na sociedade brasileira, desde há mais de
cinquenta anos, na medida em que ela nos conta a vida quotidiana da favela onde
morou, nesse tempo. A maioria das dificuldades de vida nas favelas das grandes cidades
não estão ainda sanadas, como é público e notório.

Como referimos anteriormente, esta obra é um diário escrito por Carolina e que
foi descoberto pelo jornalista Audálio Dantas (1960). Este jornalista, tendo reconhecido
o mérito literário de Carolina ajudou-a a divulgar os seus livros, primeiro em artigos no
jornais e depois num livro que foi publicado no ano de 1960. Segundo Audálio Dantas,
o que se destaca na literatura marginal, como é o caso da escrita de Carolina que ele
valoriza, é aquilo que designa por “a visão de dentro”, tão característica da literatura em
que um escritor faz parte da classe subalterna que ele próprio representa na sua obra.
Por isso, para ele, “ escritor nenhum poderia escrever melhor aquela história: a visão de
dentro da favela”. (Dantas 1960, p 15).

O mundo que Carolina apresenta no seu diário é uma realidade ainda


relativamente marginalizada. Este diário dá voz à vida dos desprezados, dos que andam
aos tombos na sociedade, sem que nos dêmos conta da sua existência:

Quando fui catar papel encontrei um preto. Estava sujo que


dava pêra (…) seu olhar angustiado como se olhasse o mundo
com despreso. Indigno para um ser humano (…) Não estava
embrigado, mas vacilava no andar. Cambeleava. Estava tonto
de fome (Jesus 1960, p.48).
Carolina de Jesus, no seu diário, denuncia com insistência os problemas sociais
da favela e dos que ali vivem, avisando que a insatisfação social pode levar a graves
conflitos sociais entre os deserdados e os mais favorecidos:

243
O que o senhor Juscelino tem de aproveitável é a voz.
Parece um sabiá e a sua voz é agradável aos ouvidos. E
agora, o sabiá está residindo na gaiola de ouro que é o
Catete. Cuidado sabiá, para não perder esta gaiola, porque os
gatos quando estão com fome contempla as aves nas gaiolas.
E os favelados são os gatos. Tem fome. (Jesus 1960, p.35).
Carolina assinala constantemente como determinadas dificuldades de vida são próprias
da rotina e do lugar de todas as precariedades que são as favelas. A sua assumida função
de porta-voz dos favelados leva-a a não omitir nada do que são os dias privados de todo
o conforto e comodidades, como os que se passam numa favela:

Levantei de manhã triste por que estava chovendo. (…) o


barraco está numa desordem horrível. É que eu não tenho
sabão para lavar as louças. Digo louça por hábito. Mas é
as latas. Se tivesse sabão eu lavava as roupas. Eu não sou
desmazelada. Se ando suja é devido a reviravolta de um
favelado. Cheguei a conclusão de quem não tem de ir pró
céu, não tem que olhar para cima. É igual a nós que não
gostamos da favela, mas somos obrigados a residir na
favela. (Jesus 1960, p.43).
Ás vezes Carolina é mais contundente ao protestar contra as suas condições, como
quando observa que a fome servia de “juiz e era “professora” (Jesus 1960, p.31). Numa
passagem mostra-se indignada com um transeunte que a reprova pela sua sujeira e
escreve: “deveria andar com um cartaz nas costas: se estou suja é porque não tenho
sabão” ou como já havia antes afirmado “quem trabalha assim como eu tem que feder”.

Carolina afirma que as condições da pobreza se mantêm para a mulher pobre e a


leitura desta obra mostra-nos, a cada passo, que as comodidades da vida na favela
continuam a ser nenhumas. Carolina cozinha ainda num fogão a lenha, mora num
barraco e vive do que encontra nos caixotes de lixo, roupas, brinquedos e até comida,
correndo o risco de apanhar alguma doença no meio de todo aquela diversidade de
restos, inclusivo lixo dos hospitais. Porém, como diria Carolina, o custo de vida obriga a
não ter nojo de nada e a ter estômago de “avestruz”.

Quanto ao futuro, contudo, Carolina Maria de Jesus não apresenta soluções ou


anseios amplos, que transcendam desejos mais imediatos ou comuns, como nascer e
viver num lugar decente, comer o suficiente e de forma digna. Talvez isso até pareça
possuir uma mera aspiração pequeno-burguesa, por não apontar para ideais de maior
transcendência, cingindo-se a uma aspiração consumista redutora, ao sonho manifesto

244
de “usar roupas de alto preço”. Contudo, para quem nunca teve nada de limpo nem de
qualidade, tal privação levará a desejos não tão edificantes, mas - não sejamos severos
demais, isso serão “pecadilhos” aceitáveis.

A referência a imparidades por razões de género é também algo que , investida


do seu papel de porta-voz da marginalidade silenciada, a autora nunca deixa de apontar,
numa sociedade controlada pelo poder patriarcal, como aquela em que vive. A autora
diz-nos que, quando era “criança queria ser homem, para assim poder quebrar e bater”
(Jesus 2001, p.99). O que levará Carolina a fazer essa afirmação? Naturalmente que essa
atitude de quebrar e bater é própria de quem tem poder. O que se pode intuir deste passo
é que esta atitude de força é indício de que a sociedade permite ao homem realizar
acções que não são permitidas às mulheres. Certamente não será errado ajuizar assim
esse anseio!

A escritora, considerando as diferenças de oportunidades dadas aos rapazes e às


raparigas, refere ter recebido uma educação orientada para as “actividades de mulher”,
como era tradicional, não podendo por isso culpar o que a sua mãe fizera, com a melhor
das intenções: “Eu nada tenho que dizer da minha saudosa mãe. Ela era muito boa.
Queria que eu estudasse para professora. Foi as contingências da vida que lhe
impossibilitou concretizar o seu sonho mas ela formou o meu carater, ensinando-me a
gostar dos humildes e dos fracos. É por isso que eu tenho dó dos favelados” (Jesus:
1960, p.49). No entanto o seu plano era outro.

Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para


defender o Brasil porque eu lia a História do Brasil e ficava
sabendo que existia guerra. Só lia os nomes masculinos
como defensor da pátria. Então eu dizia para a minha mãe:-
Porque a senhora não faz eu virar homem? Ela dizia: - Se
você passar por debaixo do arco-iris você vira homem.
Quando o arco-iris surgia eu ia correndo na sua direcção.
Mas o arco-iris estava sempre distanciando. Igual os
políticos distante do povo. Eu cançava e sentava. Depois
começava a chorar. Mas o povo não dever cançar. Não
deve chorar. Deve lutar para melhorar o Brasil para os
nossos filhos não sofrer o que estamos sofrendo. Eu
voltava e dizia a mamãe:- O arco-iris foge de mim (Jesus
1960, p.54-55)
Nessa altura, ser professora era a via que mais facilmente poderia levar à
emancipação da mulher em termos de ocupar o mercado de trabalho. Mas a escritora

245
queria mais do que isso. Como só os homens tinham cargos importantes e trabalhavam
na esfera do poder, isso levava-a a constatar que dificilmente poderia vir a exercer uma
função importante, sendo mulher. Também por isso, ela procurava na ficção literária, o
final do arco-íris, aquele lugar onde, segundo as histórias da sua mãe, poderia
transformar-se num homem e vir a ser também heroína em defesa da pátria. Simone de
Beauvoir, em O Segundo Sexo. Factos e Mitos, retrata o espaço ocupado pelas
mulheres, em algumas sociedades, onde ele é sempre inferior ao do homem nas
sociedades patriarcais, pois ali o “macho” é o soberano, privilegiado biologicamente por
ter um corpo “forte”, sendo ele quem por isso protege e lidera o seu povo. “Condenada a
desempenhar o papel do Outro, a mulher estava também condenada a possuir apenas
uma força precária; escrava ou ídolo, nunca é ela quem escolhe o seu destino”
(Beauvoir 1960, p.97).

Tendo em conta o facto de a história ser escrita principalmente por homens


historiadores, e admitindo a maior dificuldade de a mulher exercer esse papel, o homem
tem, no que escrevia, a possibilidade de confirmar o seu valor. As mulheres são apenas
parte da crónica menor, mundana:

O ‘oficio do historiador’ é um ofício de homens que escrevem


a história no masculino. Económica, a história ignora a
mulher improdutiva. Social, ela privilegia as classes e
negligencia os sexos. Cultural ou ‘mental’, ela fala do
Homem em geral, tão assexuado quanto a Humanidade.
Célebres – piedosas ou escandalosas – as mulheres
alimentavam as crónicas da ‘pequena’ história, meras
coadjuvantes da História ! (Perrot 2001, p.185).
Em Quarto de Despejo, Carolina percebe e relata o facto de só encontrar homens como
fautores da história. Esta gritante imparidade desperta logo nela o desejo de reescrever a
história. No registo da história do Brasil não havia referência à acção das mulheres, pelo
que isso era como se elas não fossem ou nunca viessem a ser parte integrante do país. A
denúncia aqui implícita no texto de Carolina remete para aspectos perniciosos da
educação tradicional, que fomenta e inculca a noção de papéis diferenciados para
rapazes e raparigas, homens e mulheres. A mulher, desde a mais tenra idade, era
educada para exercer o papel de esposa e mãe, dentro de um lar que mantinha a figura
paterna como seu expoente. O próprio filho de Carolina de Jesus, em certa situação,

246
questiona a ausência da figura masculina12, identificada por ele como mais apta do que a
mãe para os trabalhos pesados:

Coloquei as madeiras de vários modos. Ora ficava


dianteira ora traseira. Percebi que precisava trazer em duas
vezes. O que preciso fazer eu faço sem achar que é
sacrifício. ….Araguai com a Rua Canindé tem muita lama
e eu encontrei dificuldade porque eu estava descalça e os
meus pés deslizava na lama. Não havia possibilidade de
firmar os pés. Eu escorregava. Apareceu um senhor e
empurrou a carrocinha para mim. Me disse para eu ajeitar
as tábuas que escorregaram da carrocinha. E o José vendo
minha luta me disse: - por que é que a senhora não se
casou? Agora a senhora tinha homem para ajudar (Jesus:
1960, p.86).
De acordo com o engajamento político-social de Carolina M. Jesus, escrever a
história das mulheres será, portanto, mais do que resgatar factos do esquecimento. Será
mesmo uma completa mudança do lugar a partir do qual se olha a história e a mulher,
constituindo-se, portanto, a partir daí, a possibilidade de um enfrentamento ou
posicionamento politico:

Muitos daqueles que escrevem a história das mulheres


consideram-se/vêem-se envolvidos num esforço altamente
político para desafiar a autoridade dominante na profissão
e na universidade e para mudar o modo como a história é
escrita (Scott 1992, p.66).”
A natureza é outro tema presente na obra de Carolina Maria de Jesus. Ela fala-
nos, neste diário, da natureza percebida e admirada nos lugares em que viveu. A
natureza, pela sua beleza, será também lenitivo para quem só tem agruras no seu
quotidiano:

O céu é belo, digno de contemplar porque as nuvens -----e


formam paisagens deslumbrantes- as brisas suaves ---
passam conduzindo os perfumes das flores. E o astro rei
sempre pontual para despontar-se e recluir-se. As aves
percorrem o espaço demonstrando contentamento. A noite
12
É importante sublinhar que a sua determinação em escrever, bem como a temática do que escreveu
representam uma consciente tomada de posição contra as imposições do sistema falocêntrico e contra
aquilo que a tradicional organização familiar havia preestabelecido como “normal”, segundo a qual os
homens eram os chefes de família por serem eles os provedores financeiros, ficando as mulheres
remetidas às actividades domésticas, tais como cuidar dos filhos, fazer toda a lida da casa e cozinhar para
todos.

247
surge as estrelas cintilantes para adornar o céu azul. Há
varias coisas belas no mundo que não é possível
descrever-se (Jesus 1960, p.44).
A condição feminina, incluindo a sua situação de mãe solteira, é uma das
referências de cariz pessoal que aparecem com destaque na obra de Carolina, em
momentos que relatam situações quotidianas que dizem respeito a si mesma e a outras
pessoas, revelando-nos sentimentos, emoções e angústias extremas, como no caso da
mulher que matou os seus três filhos e se suicidou logo depois:

Tive sonhos agitados. Eu estava tão nervosa que se eu tivesse


azar eu voaria para o deserto ou para o sertão. Tem hora que
eu revolto comigo por ter iludido com os homens e arranjado
estes filhos. “(Jesus,1960, p.86).

Através deste passo vemos como Carolina é aqui a voz de tantas mulheres que
foram enganadas por homens que só buscaram nelas um momento de prazer, deixando-
as com a responsabilidade de criar os filhos que esse momento de prazer, por eles
egoistamente buscado, gerou. Muitas vezes, o encargo de ter de buscar sustento para os
filhos é tão pressionante que leva a tragédias, como é o caso invocado pela autora da
mulher que se suicidou, por não ter suportado as dificuldades de vida que a gente da
favela enfrentava todos os dias:

Fui comprar carne, pão e sabão. Parei na banca de jornaes.


Li que uma senhora e três filhos havia suicidado por
encontrar dificuldade de viver (…) A mulher que
suicidou-se não tinha alma de favelado, que quando tem
fome recorre ao lixo, cata verduras, nas feiras, pedem
esmola e assim vão vivendo. (…). Pobre mulher! Quem
sabe se de há muito ela vem pensando em eliminar-se,
porque as mães tem muito dó dos filhos. Mas é uma
vergonha uma pessoa matar-se porque passa fome. E a
pior coisa para uma mãe é ouvir esta sinfonia :- Mamãe eu
quero pão ! Mamãe, eu estou com fome! (Jesus 1960,
p.62).
Estes passos dão-nos relatos saídos de experiências vividas pela autora,
colocando-nos ao corrente das suas relações sociais com o outro, que pode ser o filho, a
família, o companheiro ou alguém conhecido e, apresentam visões das mais variadas
situações de carência que, por sua vez, levam a angústias e conflitos. Na favela do

248
Canindé há conflitos todos dias e essa conflitualidade decorre de carências
continuamente vividas.

Relativamente à melhor maneira de educar as crianças, Carolina acha que a


favela, com todos os seus problemas, é um lugar impróprio para esse fim. Mas ela
própria não tem outra alternativa senão fazer o melhor que pode naquelas
circunstâncias, ambiente social desfavorável e naquele lugar de habitação degradada.

Diz-nos que educou os seus filhos da melhor maneira que consegue e que eles se
comportem bem uns com os outros, e também com os outros membros da favela. Mas,
ao contrário dos filhos dela, as outras crianças da favela são mal-educadas, grosseiras,
bêbadas, barulhentas, entre outras qualidades criticáveis. Os barracos enfileirados onde
viviam estavam separados apenas por tábuas e através delas, tudo era escutado, mesmo
as maiores intimidades que já não eram novidade nem para as crianças. Por isso, escreve
“quem vive na favela deve procurar isolar-se”, pois os favelados não tinham educação e
“degeneravam” o carácter das crianças.

Carolina reforça a ideia de que a favela é um lugar inapropriado para o


crescimento das crianças, pela descrição que nos dá de vidas sexualmente desregradas e
de conflitos entre homens e mulheres, que as crianças presenciam constantemente. Por
causa destas lutas entre maridos e mulheres, as crianças, ainda muito jovens, ficam logo
a saber como é o corpo de uma mulher adulta:

…E o pior na favela é o que as crianças presenciam. Todas


crianças da favela sabem como é o corpo de uma mulher.
Porque quando os casais que se embriagam brigam, a
mulher, para não apanhar sai nua para a rua. Quando
começa as brigas os favelados deixam seus afazeres para
presenciar os bate-fundos. De modo que quando a mulher
sai correndo nua é um verdadeiro espectáculo para o Zé
Povinho. Depois começam os comentários entre as
crianças ….. Tudo que é obsceno pornográfico o favelado
aprende com rapidez ( (Jesus 1960, p.46)
Os efeitos da vivência na favela desfavorecem a formação das crianças. Ali, elas estão
em contacto permanente com os piores exemplos, tanto em linguagem, como nos
comportamentos reprováveis dos adultos:

Às vezes mudam algumas famílias para a favela, com


crianças. No início são iducadas, amáveis. Dias depois usam o
calão, são vozes soezes e repugnantes. São diamantes que

249
transformam em chumbo . Transformam-se em objecto que
estavam na sala de visita e foram para o quarto de despejo
…Quem não conhece a fome há de dizer: “Quem escreve isto
é louco”. ((Jesus 1960, p.39).
Dona Aparecida (moradora do bairro vizinho da favela) disse-
me que foi nós os favelados quem deturpamos o seu filho.
Mas os homens da favela alguns vão trabalhar os outro
quando não trabalham ficam na favela. Ninguém chama o
Valdemar aqui (…) Hoje a noite vai ter corrida aqui na favela
(…) O único que está alcoolisado é o Valdemar (Jesus 1960,
p.66).
O alcoolismo é um dos problemas que contribuem para que a favela não seja um
bom lugar para a formação das crianças, pois ali há muitos adultos que são bêbados
inveterados e com isso causam distúrbios frequentes ou são vítimas dessa dependência.
E os problemas causados pela bebida começam a ocorrer com moradores ainda
menores, entre os habitantes da favela. Dois exemplos típicos são o caso de João, uma
criança de 9 anos, que ataca violentamente Vera depois de ter bebido e outro, uma outra
criança de 12 anos, filho de senhor Joaquim, que vai embriagado para a escola, (Jesus:
1960, p.136) :

Senti o cheiro de álcool. Pensei: ele está bêbado porque ele


nunca fez isto. Um menino de 9 anos. O padrasto bebe, a mãe
bebe e a avó bebe (Jesus: 1960, p.106)
Naquela favela, (a exemplo de outras), há vários adultos com problemas de
álcool, designadamente, Ismael e Maria José, mais conhecida por Zefa, que reside no
barracão numero 9 da Rua B. Está sempre bêbada mesmo durante os períodos de
gravidez. Por isso, as crianças que gera morrem antes dos doze meses de idade: “Ela
odêia-me porque os meus filhos vingam e por eu ter radio. Um dia ela pediu-me o radio
emprestado. Disse-lhe que não podia emprestar. Que ela não tinha filhos, podia
trabalhar e comprar. Mas é sabido que pessoas que são dadas ao vício da embriaguez
não compram nada. Nem roupas. (Jesus 1960, p.18).

Carolina apresenta-nos casos que ilustram bem os riscos de quem fica dominado
pela embriaguez. É o caso de um homem que fica inconsciente pelo álcool que foi
roubado pelos homens indolentes da favela p.18. Mesmo quando Carolina tem vontade
de beber álcool – sendo uma mulher inteligente, não cai nessa tentação. Em vez disso,
poupa o pouco dinheiro que tem para comprar comida:

250
Hontem eu bebi uma cerveja. Hoje estou com vontade
de beber outra vez mas não vou beber. Não quero
viciar. Tenho responsabilidade. Os meus filhos! E o
dinheiro gasto em cerveja faz falta para o essencial! O
que eu reprovo nas favelas são os pais que mandam os
filhos comprar pinga e dá as crianças para beber. (Jesus
1960, p.22)
O consumo de bebidas alcoólicas, como forma de fuga à depressão e à pobreza,
também faz parte das denúncias feitas por Carolina Maria de Jesus. Carolina
considerava que o consumo de álcool é um gasto desnecessário e por isso critica quem,
vivendo com dificuldades, prefere gastar o seu pouco dinheiro em bebida, em vez de
comprar comida. Tem três filhos e sabe que se ceder ao vício do álcool eles irão passar
fome e também deixarão de a respeitar. Além disso, não bebe porque não gosta de beber
e tem também preocupações culturais. Por isso, prefere gastar a parte dispensável do seu
dinheiro em livros (Jesus 1960, p.73) e não em álcool.

Hoje a Leila está embriagada. E eu fico pensando como é que


uma mulher que tem duas filhas em idade tenra pode
embriagar-se até ficar inconsciente. . dois homens vieram
trazê-la nos braços. E se ela rolar na cama e esmagar a recem-
nascida? (Jesus 1960, p.73).
Em vez de a Segurança Social ajudar os pobres, eles são mandados para sítios
diferentes, com a promessa de virem a receber ajudar no lugar para onde foram
mandados. Os pobres gastam o dinheiro que têm no pagamento do transporte para o
local para onde foram deslocados ou têm de andar à pé, por muitas horas, até lá
chegarem. Mas lá chegados têm de ficar na fila por muitas horas à espera de assistência,
acabando por não receber nenhuma ajuda. Face a isto, Carolina resume a ineficácia da
Segurança Social no passo que seguidamente se refere: “Eu não vejo eficiência no
serviço social em relação ao favelado” (Jesus 1960, p.40-41).

Deste modo, vemos que o protesto de Carolina tem um alvo directo e que a sua
crítica não esmorece mesmo quando tem de afrontar o próprio governo. Está na favela,
ao lado dos mais desfavorecidos e as lágrimas que estes vertem não são figuras de
retórica, são as dores de quem vive na lixeira da sociedade e por quem ninguém olha.
Caberá a ela, como escritora, fazer com que essas lágrimas sejam lidas e sentidas por
quem tem o mando e a obrigação de zelar por uma vida de dignidade para todos, sem
exclusão de ninguém. A veemência do protesto de Carolina e a solidariedade dela para
com os seus irmãos da favela ficam bem expressas nestas suas palavras: “Vi os pobres

251
sair chorando e as lágrimas do pobre comovem os poetas. Não comove os poetas de
salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas” (Jesus 1960, p.54).

Uma vez que Carolina Maria de Jesus interpela e crítica várias instituições,
figuras públicas e procedimentos de pessoas comuns, importa perguntar para quem
escreve? Será que existem interlocutores específicos para textos desenvolvidos a partir
de diários? E, neste caso, serão todas as mulheres potenciais interlocutoras? Os trechos
do diário de Carolina a seguir citados parecem revelar que ela fala para todos os que a
quiserem ouvir (ler), pois dirige-se a um “vocês”, necessariamente indeterminado,
embora se admita que as pessoas englobadas nesse “vocês” sejam predominantemente
mulheres, outras mães como ela, com as mesmas angústias e dificuldades que ela tem
para criar os filhos:

Vocês já sabem que eu vou carregar aguas todos os dias.


Agora eu vou modificar o início da narrativa diurna, isto é,
o que o correu comigo durante o dia. (Jesus 1960, p.121).
…Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os
filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei
com dó. Eles estão cheios de vida. Quem vive, precisar
comer. Fiquei nervosa, pensando: será que Deus esqueceu-
me? Será que ele ficou de mal comigo? (Jesus1960,
p.166).
Carolina escreve para chegar a um público leitor tão amplo quanto possível,
com o objectivo de tornar públicos os acontecimentos da favela, com a intenção e a
esperança de que alguma coisa possa ser ali mudada. No entanto, em outras ocasiões,
ela parece ser interlocutora de si mesma, auto-motivando-se assim para não esmorecer,
face aos desafios da vida e da escrita que ela tem de continuamente enfrenta. Mas
tendo em conta o conjunto dos temas abordados ao longo deste capítulo, podemos
afirmar que Carolina Maria de Jesus desempenha, efectivamente, o papel de porta-voz
da classe silenciada das mulheres e de outros deserdados da favela. Este seu romance
apresenta uma narrativa de cunho histórico-social que inaugura uma outra visão do
sujeito da história, na medida em que junto do herói convencional, tradicionalmente
alinhado com a contenção burguesa, começam a figurar também marginais como os
homens e mulheres negras das favelas, trazendo assim para a centralidade da narrativa
o relato cru de um quotidiano de fome, de discriminações e de injustiças, das falhas de
uma prometida democracia para todos mas, ainda promotora de muitas exclusões
sociais.

252
Esta referência a exclusões discriminatória leva-nos a retomar a questão da
escrita feminina que abordámos na parte introdutória desta investigação. O texto de
Carolina Maria de Jesus foi escrito em português não normativo, o que, desde logo, por
não obedecer ao formalismo canónico fez com que fosse considerado uma forma menor
de escrita. No entanto, esta autora conseguiu passar a sua mensagem ao público-leitor, o
que era o seu objectivo principal. Dado que a autobiografia é um espaço de
identificação pessoal e, ao mesmo tempo, lugar de expressão colectiva de mulheres,
ficam aqui retratadas inúmeras “carolinas” e tantos outros habitantes das favelas,
irmanados em comum infortúnio, mas conscientes da sua força, uma vez que unidos nos
seus propósitos de conseguirem uma relação mais justa no que respeita aos direitos e
obrigações entre homens e mulheres.: “Quando alguém nos insulta é só falar que é da
favela e pronto […] Percebi que nós da favela somos temido” (Jesus 1960, p.73).

Dessa forma, podemos inferir que o diário Quarto de Despejo, de Carolina


Maria de Jesus, é literatura feminina, um lugar em que uma mulher se une em
solidariedade com às suas irmãs nas suas provações do dia-a-dia e ao denunciá-las é,
nessa condição de mulher, sujeito de uma história individual e colectiva. Também
podemos e devemos incluir neste diário de deserdados, além da história das mulheres
que Carolina convoca para o seu texto, a referência à vivência de tantos outros que,
naquela franja da sociedade que Quarto de Despejo descreve, são marginalizados por
imparidades socioculturais comuns.

Segundo Carlos Vogt, (1983, p.210), escrever foi a forma que Carolina Maria de
Jesus encontrou para tentar romper com o fechamento do mundo em que vivia. A
esperança que deposita nessa experiência é grande. A sua acção de escrever tem uma
função de rompimento com a realidade em que vive, num processo de desejada
metamorfose das circunstâncias congregadas no acto da escrita Ao escrever, Carolina
sente-se outra pessoa, que mora em outro lugar, não na favela miserável, embora o
conteúdo remeta sempre para “lambanças” (Jesus 1960, p.24 dos favelados de quem ela
se assumiu como porta-voz, num engajamento político-social de incontestável
determinação e coragem: “Passou um senhor e perguntou-me: -O que escreve? - Todas
as lambanças que pratica os favelados, este projetos de gente humana” (Jesus 1960,
p.24). “A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz tudo está
enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquissimos. E

253
tudo que está fraco, morre um dia… Os politicos sabem que eu sou poetisa. E que o
poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido. (Jesus 1960, p.39-40).

Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem dó e


amisado ao povo. Quem governa o nosso país é quem tem
dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do
pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode fazer a
minoria? Eu estou ao lado do pobre…Precisamos livrar o
paiz dos politicos açambarcadlores. (Jesus 1960, p.40.)
O texto de Carolina Maria de Jesus extrapola a sua experiência individual de
vida e a história da sua personalidade, tal como Lejeune (1998) pretendia que fossem as
autobiografias, em sua definição inicial. É essa extrapolação que torna possível lermos e
apreendermos na escrita retrospectiva de Carolina a vivência de uma experiência
colectiva.

Através da agregação de histórias que Carolina aqui promove, este texto exibe a
memória não apenas de mulheres negras, mas de toda a população brasileira de vida
pobre. Em Quarto de Despejo, surgem anotações de condições sociais, económicas,
políticas, étnicas, relações humanas deterioradas por motivos económicos e
psicológicos, uma gama de assuntos que podem ser tratados e discutidos em diferentes
áreas do conhecimento.

Contudo, o objecto deste texto foi trazer à tona uma voz muitas vezes silenciada
ou pouco reconhecida que recorre ao diário como um espaço no qual pode ser ela
mesma, marcando a sua diferença, contrariando discursos hegemónicos, lutando pelo
seu direito a falar, registando as mazelas da favela mediante um olhar em que é possível
enxergar imagens e acontecimentos que dizem respeito a todas as mulheres negras, seja
no Brasil, seja em África ou qualquer parte do mundo.

No dia 28 de Maio de 1959, Carolina Maria de Jesus deixou soar o que talvez
seja o resumo de seu diário:

A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que


sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da
vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha,
até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o
lugar onde moro. (Jesus 1960, p.160).

254
iv. Estilo, linguagem e estratégias da escrita de Carolina de Jesus

Através da linguagem usada, Carolina consegue problematizar as tensões sociais


existentes na sociedade brasileira que retrata, e que resultam em diferentes formas de
expressão literária. O registo da linguagem dos moradores da favela do Canindé é um
testemunho da divisão entre pobres e ricos, é um modo de mostrar a diferença entre
aqueles para quem papéis são lixo ou livros. Neste sentido, a própria autora deste diário
apresenta-se como sendo apenas uma moradora de um bairro de lata que se afoita a
escrever. E ao assumir este posicionamento, ela é o contraponto ao poder tradicional
representado pela figura do escritor convencional, com linguagem normativa

Em Quarto de Despejo, tudo é urdido a partir do ponto de vista de Carolina de


Jesus, (autora, narradora e personagem), que evoca as vicissitudes, os mexericos e a
sujeira da favela do Canindé, excluindo-se, até certo ponto, mas sentindo-se
progressivamente integrada, representante e porta-voz dessa comunidade. Distanciando-
se estrategicamente da realidade de que é parte integrante, Carolina vê que,
objectivamente, e aos olhos dos citadinos, os favelados são habitualmente vistos como
bêbados, trabalhadores desqualificados ou marginais, sujeitos à violência da polícia,
dependendo da interacção que, enquanto personagens, virão a ter com a protagonista.

Como estamos em presença de uma escrita feita no dia-a-dia, naturalmente que


Carolina escreverá no seu diário aquilo que lhe ocorrer, conforme a variação de vontade
a cada momento e sem uma ordem rígida previamente ordenada. A escrita de um diário
permite omissões, meias verdades, fugas à realidade e à verdade de factos. O diário
permite uma variação de tessituras, conforme os pedaços de prosa que a autora for
coligindo no seu percurso de tarefas diárias.

Para entendermos o estilo de Carolina não podemos deixar de ter presente que a
sua expressão escrita resulta da tentativa de uma pessoa, que não andou na escola e que
é oriunda da classe mais humilde da sociedade, para dominar os códigos da academia e,
eventualmente, vir a ser parte dela. Formalmente, o seu estilo, é feito de um claro
anacronismo literário, por buscar a sua forma na imitação dos poetas românticos do
passado. Além disso é o testemunho de alguém que provém dos estratos mais baixos da
sociedade e que narra a partir desse posicionamento inferior, o que, obviamente, não

255
estava de acordo com os moldes canónicos das elites. Dito de outra forma, quando a
literatura, nos anos 1960, procurava libertar-se um academismo tradicional, buscando
uma linguagem mais próxima do quotidiano, Carolina, ao adoptar um estilo ainda
contaminado por características românticas, faz deste seu romance um texto de
resistência (Sommer, 1994). E se a autora repete formalismos românticos já em desuso
no seu projecto literário, ela adopta este estilo porque não ter conhecimento de outras
alternativas quanto aos modos de escrita, uma vez que, nos papéis dispersos que foi
lendo, ela só terá tido acesso a noções muito resumidas e mais antigas de estilos
literários.

Segundo Liana Aragão (2005, p.106), o contexto em que se inscreve a obra


Quarto de Despejo, da escritora Carolina Maria de Jesus é o de um repositório de
fragmentos, o que não ajudará a um entendimento linear de propósitos, mas sugerirá,
antes, uma paleta de ambiguidades e, quanto a isso, e nos paradoxos que se possam
detectar no discurso de Carolina, ela estará próxima da “modernidade” e não dos
românticos.

Estruturalmente, o texto Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus evolui


em volta de um eu, que tem existência para além do texto, pois é alguém que reside na
favela do Canindé, em São Paulo, e que, periodicamente, vai tomando notas do seu dia-
a-dia, que vão sendo datadas sequencialmente. Este texto dá destaque a um eu-narrador,
que apesar de viver na favela, pretende apresentar-se como escritora, e para isso,
procura enriquecer o seu vocabulário através de leituras a que se dedica continuamente.
Essas preocupações com uma forma mais cuidada de expressão vão levar a um certo
distanciamento que, a espaços, se detecta entre Carolina e os seus vizinhos da favela.
Dessa forma, podemos dizer que o espaço do diário foi utilizado como forma de
experimentação para singularizar uma experiência particular de vida e representação
escrita dessa experiência. Mas, por Carolina Maria de Jesus ter recorrido a instrumentos
que permitiriam firmar-se no campo literário, por tentar escrever na forma culta as
experiências da sua vida rude, sendo ela alguém que não tinha formação literária, isso
levou-a à construção de uma obra com um estilo ambíguo. A ambiguidade entre
processos e intenções resulta aqui do facto de Carolina se propor falar sobre a vida dos
humildes, mas com a maior qualidade literária que lhe seja possível. Contudo, essa
intenção é até certo ponto gorada, pela pouca escolaridade a que a autora teve acesso.

256
E a juntar a isto, assistimos a outras adaptações a formas mais caracteristicamente
normativas que convivem com um estilo mais pessoal.

Dentro do texto, narrador e personagem remetem, respectivamente, para o


sujeito da enunciação e para o sujeito do enunciado: o narrador narra a história e a
personagem é o sujeito sobre o qual se fala. Ambos, porém, remetem para o autor, que
passa então a ser o referente, fora do texto. Essa Carolina que nasce das páginas do
diário Quarto de Despejo mostra como difere um artista da favela de um autor
convencional, com formação académica regular. Neste texto misturam-se e conjugam-se
em pacto autobiográfico as percepções da autora, da narradora e da personagem, como
estamos a referenciar pontualmente neste capítulo da nossa dissertação.

Observamos que a construção desse “eu” ou “eus” de Carolina se faz de


fragmentos . Carolina Maria de Jesus é, ao mesmo tempo, uma moradora da favela, que
deseja sempre estar noutro lugar. Assim, na narrativa, histórias reais e fictícias
misturam-se:

Sonhei que eu residia numa casa residível, tinha banheiro,


cozinha, copa e até quarto criada. Eu ia festejar o
aniversário de minha filha Vera Eunice…Sentei na mesa
para comer. A toalha era alva ao lirio. Eu comia bife, pão
com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar outro
bife dispertei. Que realidade amarga! Eu não residia na
cidade. Estava na favela. na lama, as margens do Tietê
(Jesus 1960, p.40).
É um evidente paradoxo Carolina ter consciência social mas, ao tratar com seus vizinhos
da favela, afastar-se deles, pretender ser diferente e superior por desenvolver um
trabalho de escrita que remete para preocupações intelectuais: “ Nunca feri ninguém.
Tenho muito senso! Não quero ter processos. O meu risgistro Geral é 845.936” (Jesus:
1960, p.19). Ironicamente, tem que trabalhar catando papel no lixo – o mesmo papel que
usa para escrever; é negra, exalta a beleza, mas simultaneamente, não quer ter relações
amorosas com negros, considera-os vítima de um contexto histórico cruel e atribui a cor
preta às várias mazelas sociais. Carolina condena a violência e intromete-se nas brigas
comportando-se às vezes, com violência e ameaças: “Eu chinguei o Chico de ordinário,
cachorro, eu queria ser um raio para cortar-lhe em mil pedaços” (Jesus: 1960, p.35), “Eu
não tenho paciencia, lhe chinguei um vidro no rosto. Ele fechou a janela. Abriu outra
vez, eu joguei uma escova de lavar casa. (Jesus: 1960, p.97).

257
Isso acontece porque, segundo Magnabosco (2002), as forças político-
económicas e sociais que regem a sociedade em que Carolina de Jesus vive está dividida
em incluídos e excluídos, com o estabelecimento de uma diferença clara entre homens e
mulheres, ricos e pobres, cultos e incultos, negros e brancos. Carolina Maria de Jesus faz
parte da favela, mas quando ainda não tem distanciamento crítico hesita em considera-se
parte plena da favela. Contudo, ela é, antes de mais mulher, negra e pobre. Ser aceite
como parte da cidade será apenas uma das dicotomias de vida que ela terá de conciliar :

(…) foi pega por uma perda de distância que


impossibilita um olhar critico e reflexivo, ao confundir
sujeito e contexto, referência e referente, múltiplos eus
com identidade unívoca pelo espaço ocupado. Imersa e
sem distância ela perde não na dicotomia cidade/favela,
mas na evidência da impossibilidade de reconhecer-se
por todo seu percurso e história. (Magnabosco 2002,
p.62)
Assim, querendo ser escritora reconhecida, durante algum tempo, ao longo da
narrativa, vemos que Carolina busca a justa medida para a representação de si mesma
entre o mundo da cidade culta e da favela inculta. Essa dificuldade de inadequação virá a
ser vencida, mas ela tem de debater-se com preconceitos que ela própria tem contra
negros mulheres, nordestinos. O seu comportamento de isolamento não tem coincidência
com o burburinho habitual das relações na favela:

…Eu gosto de fica dentro de casa, com as portas


fechadas. Não gosto de ficar nas equinas conversando.
Gosto de ficar sozinha e lendo. Ou escrevendo. (Jesus:
1960, p.23).
Tem pessoas aqui na favela que diz que eu quero ser
muitas coisas porque não bebo pinga. Eu sou sozinha.
Tenho três filhos. Se eu viciar no álcool os meus filhos não
irá respeitar-me. escrevendo isto estou cometendo uma
tolice. Eu não tenho que dar satisfação a ninguém. Para
concluir, eu não bebo porque não gosto e acabou-se. Eu
prefiro empregar o meu dinheiro em livros do que no
alcool. (Jesus 1960, p. 73).
Pela negação da sua condição de favelada, Carolina Maria de Jesus constrói sobre essa
lacuna do estranhamento, sobre essa utopia, uma narrativa fragmentada em forma de
diário.

258
Os relatos diários das mulheres da favela, por exemplo, e os episódios até
pitorescos em que estão envolvidas constituem uma grande fonte de contradições, pois
são apresentados por meio dos olhares da escritora (que assiste e cria), da narradora (que
conta) e da personagem (que vive). A narradora encarrega-se de salvar a protagonista
das características “lamentáveis” das mulheres com quem compartilha o ambiente da
favela. A personagem, por sua vez, mostra que é uma dessas mulheres, que
inevitavelmente faz parte do grupo. Nos passos seguintes, observamos a primeira faceta
dessa contradição: “…as mulheres que eu vejo passar vão nas igrejas buscar pães para os
filhos (Jesus 1960, p.34). ; Meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu
enfrento qualquer espécie de trabalho para mantê-los. E elas têm que mendigar” (Jesus
1960, p.17). Aqui Carolina Maria de Jesus nega a condição de moradora da favela,
equiparável a pedinte de esmolas, para assumir o papel de trabalhadora, de responsável
pelo seu próprio sustento e dos seus filhos. Num passo seguinte, ela narra uma
distribuição de cartões de ajuda social na favela, para que os moradores posam ir buscar
um prémio surpresa para seus filhos numa festa, a festa de Zuza, na rua Javaés 771. Esta
referência a esta ajuda é relatada, apesar de Carolina condenar as mulheres, como vimos
nos passos anteriormente citados, por se submeterem ao “sustento indigno” oferecido
por associações de assistência social:

“Devido eu ter bajulado inconscientemente o senhor Zuza,


ele deu-me vários pães. Contei até seis” (Jesus 1960, p.
62). Dias depois: Na igreja eu ganhei dois quilos de
macarrão, balas e biscoito (Jesus 1960, p. 69).
No que toca às mulheres da favela, é recorrente a autora referir-se a elas como
mexeriqueiras, escandalosas, desarrumadas e desordeiras. Características aparentemente
incompatíveis com uma mulher culta, uma intelectual, uma escritora.

Tenho pavor destas mulheres da favela. Tudo quer


saber! A língua delas é como só pés de galinha. Tudo
espalha. Está circulando o rumor que eu estou grávida!
E eu, não sabia ! (Jesus 1960, p.15).
Na favela (…) As bagunceiras são as mulheres. As
intrigas delas é igual a de Carlos Lacerda que irrita os
nervos. (Jesus 1960, p.18).
Nas favelas, os homens são mais tolerantes, mais
delicados. As mulheres da favela são horríveis numa
briga. O que podem resolver com palavras elas

259
transformam em conflito. Parecem côrvos, numa
disputa. (Jesus 1960, p.51)
Contudo, Carolina irá integrar-se progressivamente no grupo de mulheres da
favela. Essa integração será feita de modo consciente, como se a narradora, após melhor
ponderação do eu enunciador, reconhecesse e confessasse ao leitor a sua verdadeira
condição e plena identificação com as outras mulheres da favela:

Daqui a uns tempos êstes palitol que elas ganharam de


outras e que de há muito devia estar num museu, vão
ser substituidos por outros. É os políticos que há-de nos
dar. Devo incluir-me, porque eu também sou favelada.
Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo ou queima-
se ou joga-se no lixo (Jesus 1960, p. 38).
Podemos assinalar assim que, há aqui, uma estratégia de aproximação entre narradora e
realidade narrada, já que, a partir de certo momento, a protagonista participa
efectivamente na “vida social” da favela, como parte do grupo, tomando mesmo parte
nos mexericos que são comuns junto a torneira onde as mulheres vão buscar agua.

O soldado Flausino disse-me que a C. era amante do pai.


Que ela havia dito que ia com o pai e ganhava 50
cruzeiros. Eu contei na torneira e as mulheres disseram
que havia desconfiado. (Jesus 1960, p.107).
O estilo de Carolina recorre a técnicas de enunciação facilmente detectáveis, que
são claramente uma estratégia para dar autenticação ao seu relato. Esta intenção
assumida é verificável quando ela reporta diálogos ou cita falas que servem para
confirmar o entendimento que ela própria tem de determinada situação. Com este
propósito, cita discursos ou falas anteriormente ocorridos, que assim ajudam a
confirmar o seu ponto de vista, no entrecho de um diário cheio de efabulações e que
vagueia ou se dispersa constantemente sobre vários assuntos. Contudo, o seu diário é
cheio de fabulação. A escritora reúne na narrativa de um mesmo dia a lama e as flores.
O contraste e a ambiguidade estão presentes em toda a obra. A escritora reúne na
narrativa de um mesmo dia aspectos tão diferentes como a lama das ruas sem asfalto e a
fragrância das flores que por ali, a custo, conseguem medrar. A escrita de Carolina
Maria de Jesus recorta-se numa constante ambiguidade. Seja do posicionamento da
própria autora relativamente à favela, seja da representação que faz desses espaços, um
lugar de sujidade e desarrumação, mas onde é possível falar-se e notar-se a presença de
algo tão sensível como são as flores. Na sua estratégia de enunciação, Carolina relata

260
não apenas as vozes de quem vive nas favelas, mas também muitas outras vozes de
quem por ali transita (de delegados da polícia, de políticos, de gente que vem da outra
parte da cidade), O contributo adicional destas vozes faz com o seu texto se assemelhe a
uma partitura polifónica onde essa variedade de vozes forma núcleos narrativos que
afastam eventuais toadas de monotonia que poderiam instalar-se numa narração mais
formal. O papel dessa polifonia de vozes é, como já aludimos, o de testemunhas
confirmadoras de um depoimento que, de outro modo, estaria mais circunscrito às
observações de um eu individual. Os núcleos narrativos apresentados em Quarto de
Despejo de Carolina Maria de Jesus são elementos que nos ajudam a agregar cenas
narrativas, como se elas fossem imagens de uma novela. A autora, na sua estratégia de
manter o interesse do leitor intercala no texto deste diário episódios que ajudam à
encenação da vida das favelas, como o entusiasmo com que ali desperta o
esquartejamento do porco. Essa ocorrência verifica-se no próprio quintal de Carolina e
faz com que os outros moradores se aproximem rapidamente do seu barraco, trazendo
consigo cães e gatos, dando-nos assim a imagem de que a favela é um espaço de grande
vivacidade e de partilha entre seres humanos e animais, em grande promiscuidade ou
convívio, ambiguidade de perspectivas que caberá ao leitor equacionar.

Nesta estratégia de aproximação entre narradora e realidade narrada, verifica-se


também que o estilo cultivado por Carolina, recorre com frequência a duas figuras de
linguagem, designadamente a personificação e a animalização. Por isso, os habitantes
das favelas são referidos como porcos, corvos, ratos, a fome definida como uma
personagem de cor amarela, sendo o sofrimento “alguém” de cor roxa. A vida, por sua
vez, é preta como a narradora/ personagem. Estas observações permitem-nos dizer que
as alusões metafóricas permeiam o desenvolvimento deste relato. Por exemplo, a sua
continuada referência à presença da fome estende-se por dias iguais feitos de trabalho e
angústia. Mas a fome, sendo também personagem, gera situações inesperadas que nos
dão conta das iniciativas dos “favelados” para sobreviver. A descrição destas
actividades é acompanhada da referência constante a outras ocorrências e situações, as
intrigas das vizinhas, a falta de solidariedade, a prostituição infantil e tantos outros
exemplos de má conduta que são consequência das dificuldades de vida na favela. A
estratégia descrita de Carolina apresenta-nos o mundo da favela como um mosaico de
actividades e angústias cuja representação a autora encena, escrevendo em conjugação o

261
que pensa ou imagina com o que vive ou desejaria viver, de forma a criar neste texto um
quadro de grande colaboração de vozes, sons e movimentos.

Em observação crítica, poderíamos dizer que o âmbito deste diário tem


limitações de forma e de estilo que se devem à escassa formação escolar da autora, já
que a maior parte das suas leituras foram feitas a partir dos jornais e livros que
encontrava nas lixeiras. Não esqueçamos também que era semi-analfabeta, mas tinha o
objectivo de escrever para a população letrada, projecto que era parte da sua estratégia
de sensibilização do país para com a vida precária das populações das favelas. Por isso,
podemos verificar que o seu estilo revela a ambiguidade própria de quem tem um
posicionamento que oscila entre o desejo de adoptar a norma culta e o desvio próprio de
quem se socorre da oratura, fala com que ela está mais familiarizada, enquanto parte
integrante de uma população marginalizada. Desconhecedora das tendências da escrita
que buscavam afirmar-se no tempo em que escreveu este romance, no início dos anos
60, Carolina procura afirmar um estilo que emerge da mistura da imitação da forma
romanesca, a que teve acesso esporádico, com a oralidade da linguagem usada na
favela, onde os provérbios, os ditados populares e também as passagens bíblicas dão o
seu contributo para aquilo que nos surge como uma espécie de bricolagem discursiva.

Este conjunto de agregações que se conjugam no estilo de escrita de Carolina


leva a que o seu texto tenha uma composição muito rica. Noutras narrativas de textos
identificados como diários, o discurso que predomina é o do autor-narrador, registando
memórias e reflexões sobre o passado e acrescentando por vezes observações ao
presente ou fazendo antecipações do futuro, usando a primeira pessoa, mas com rara ou
total omissão do discurso directo. No entanto, ao contrário dessa “normatividade”, o
diário de Carolina dá grande espaço ao discurso “citado” ou discurso directo, o que
promove uma forma discursiva mais fragmentada devido, precisamente, à introdução do
diálogo com recurso ao dito “discurso citado”, ou seja, com a reprodução de texto no
discurso directo, deslocado no espaço e diferido do tempo em que foi primeiramente
usado.

Outro aspecto característico que detectamos nos diálogos reportados pela autora-
narradora é a sua vinculação ao contexto histórico da época, a solidariedade com o
destino dos favelados e as consequências dessa tomada de posição. Por outro lado, a
narradora, ao recorrer à polifonia, pretende dar autoridade a outras vozes, nas suas

262
contestações, discordâncias, conformidades ou agressões e desentendimentos,
testemunhos que dão veracidade à representação do tempo narrado. Esta instância de
interlocução é mesmo um aspecto essencial do estilo e das estratégias de escrita de.
Carolina. Desse modo, verificamos, na prática, como Carolina reactivou na escrita deste
seu romance o pacto de autenticidade biográfica assinalado por Lejeune, (1988). Em
Quarto de Despejo há coincidência entre autor, narrador e personagem, factores que,
coincidindo num mesmo texto, conferem um acréscimo de veracidade ao relato. Neste
caso, essa preocupação é manifesta de modo singular no uso do discurso citado, e em
que as personagens envolvidas nas citações surgem identificadas pelos seu nome ou
profissão, e muitas vezes até com indicação do endereço.

A narrativa autobiográfica de Carolina Maria de Jesus revela-nos assim um


estilo onde convivem, a espaços, a ambiguidade ou a contradição de intenções e uma
forma fragmentária de expressão. A ambiguidade do eu revelada pela narrativa de
Carolina Maria de Jesus apresenta-se numa tessitura que se expõe em multiplicidade ou
fragmentação. E é por este acto de narrar fragmentado que o projecto se realiza, na
medida em que ele exige de quem escreve o esforço de tornar entendível para os outros,
o registo de uma “experiência fragmentada”. A contradição não é na literatura, como na
vida, algo condenável em si mesmo. Estes relatos com ambiguidade de
posicionamentos, servem para mostrar que a própria condição humana é contraditória e
até paradoxal. O universo que Carolina nos relata no seu diário é ambíguo, o que não
deixa de estar a par com uma sociedade que deseja ser igualitária, mas vive com
permanentes manifestações de desigualdades.

Num ensaio crítico dedicado a Carolina Maria de Jesus, publicado em 1983 e


intitulado “Trabalho, Pobreza e Trabalho Intelectual”, Carlos Vogt afirmou que “ao
transformar a experiência real da miséria na experiência linguística do diário, Carolina
acabou por se distinguir de si mesma e por apresentar a sua escrita como uma forma de
experimentação social nova”. (Vogt 1983, p.208).

263
v. O lugar de Carolina Maria de Jesus na literatura brasileira

É lícito dizer que através da publicação da sua obra e dos temas nela abordados,
Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus ocupou um lugar de destaque tanto na
literatura como na sociedade brasileira, ao tempo da sua publicação. Esta escritora
trouxe à luz várias questões pertinentes, no que toca aos problemas dos negros na
sociedade brasileira.

A publicação deste romance deu visibilidade às dificuldades da vida na favela e,


ao mesmo tempo, denunciou veementemente a acção dos líderes políticos brasileiros
por terem ignorado as necessidades dos mais desfavorecidos, que eram a parte maior
dessa sociedade. Essa denúncia de Carolina de Jesus teve o mérito de fazer com que
alguns membros da sociedade viessem a apresentar propostas para atenuar o sofrimento
dos pobres residentes das favelas brasileiros. Por exemplo, no dia 11 de Agosto de
1962, o Centro Académico da Faculdade de Direito da cidade de S.Paulo constituiu
aquilo que designou por “Movimento Universitário de Desfavelamento”. Como afirmou
então José Bom Meihy (1994):

o envolvimento social passa portanto a ser elemento


explicativo para o entendimento da trajetória de Quarto
de Despejo. A aliança da sociedade civil e o apoio do
governo corroboram a hipótese da transitoriedade
favelada. Neste sentido o livro influenciou
definitivamente a acção colectiva comunitária”. (José
Bom Meihy 1994, p.176).
A sensibilização conseguida por esta obra também fez com que muitos voluntários
tivessem ido para as favelas para aí prestarem diferentes formas de assistência social -
no ensino, na distribuição de géneros alimentícios, de roupas, de medicamentos - aos
moradores da favela. E entre 1963 e 64, alguns jovens participaram nos movimentos
sociais que lutaram por uma mudança na estrutura política e económica do país.
Carolina foi então convidada a dar palestras por todo o Brasil e em várias partes do
mundo, para debater a questão da precariedade de vida nas favelas e, por via disso,
transformou-se num símbolo e mesmo num ídolo nacional.
264
Por sua vez, a sociedade brasileira reagiu de modo diverso à publicação desta
obra de Carolina Maria de Jesus. Houve alguns críticos como Fernando Py (1983),
Sousa (2004) e Wilson Martins (1994) que não aceitaram o livro e acharam que ele não
tinha qualidade nenhuma. Mas um outro grupo de críticos, que incluiu Audálio Dantas
(1958), José Carlos Sebe e Bom Meihy (1994), Maria Paula Galdino Muyashiro (1999)
e Perpétua, E.D (2000), acolheu a obra sem reservas, afirmando que era um romance de
grande qualidade e oportunidade, por causa dos temas nele tratados. Na opinião deste
grupo de críticos, a obra devia ser lida tanto pelos homens políticos, como pelos
fazedores de opinião e funcionários públicos, entre outros.

Deste modo, o livro causou grande divisão entre o seu principal público leitor, a
sociedade brasileira. No mundo político, passou a fazer-se uma grande referência a esta
obra, nos discursos da Assembleia Parlamentar, ou por ocasião de eleições, pelo que o
nome desta autora entrou na ordem do dia, na rua, também nos comícios de rua.

O que é curioso é que esta escritora foi elogiada no estrangeiro, por ter levado a
cabo este trabalho literário, o que no Brasil não aconteceu. E isso porque as revelações
que fez sobre os problemas dos moradores da favela foram tidas por ofensivas para com
as expectativas de grandes progressos sociais nas maiores cidades brasileiras, numa
época em que o Brasil procurava mostrar-se como um país moderno e de futuro. Esta
posição crítica de Carolina fica bem expressa neste passo de uma entrevista dada ao
Jornal Correio do Paraná, nessa época:

“meu livro não foi escrito para homens que se atrapalham


com adjectivos, sintaxes, verbos e substantivos. Não escrevi
para concorrer a prémios na Academia Brasileira de Letras.
Escrevi meu livro com a finalidade de retratar a miséria
imperativa na favela. (Correio do Paraná, Curitiba 8 de Abril
de 1961, p.5)
Carolina está bem consciente dos problemas e das críticas que podem surgir com o que
é dito e o modo como isso é dito neste seu livro. Sendo assim, durante o lançamento do
livro, que teve lugar no dia 19 de Agosto de 1960, Carolina alertava sobre isso, do

265
seguinte modo : “Eu sei que vou angariar inimigos, porque ninguém está habituado com
esse tipo de literatura seja o que Deus quiser” (Jesus 1961, p.30)13

O que aconteceu, e é bom referir, a exemplo, é que o tipo de críticas que Carolina
veio a colher foi variado. Teve de enfrentar julgamentos adversos como os de José
Carlos Sebe e Bom Meihy (1994) que na obra, Carolina Maria de Jesus: Antologia
Pessoal, citaram a opinião de Wilson Martins, que insistia em “considerar, sem
subtilezas, que a obra editada de Carolina era um mero produto oportunista de Audálio
Dantas e de empresários atentos ao crescimento do mercado livreiro. (José Bom Meihy
1994, p.35).

Porém Dantas (1990, p.7) afirmou que a obra de Carolina era completamente dela e que
ele próprio nunca seria capaz de escrever com a qualidade daquele estilo ingénuo,
embora tivesse reconhecido a sua participação na elaboração de alguns passos do texto,
para evitar repetições, mas onde assinalou sempre os cortes que fez, marcando-os por
reticências. Nas suas palavras “(Carolina) colega minha, é repórter que faz registo do
visto e do sentido do acontecido” (Dantas 1960, p.7), embora tenha a sua própria
susceptibilidade como qualquer escritora14. É interessante notar, a propósito da
publicação desta obra, que a própria Carolina, antecipando-se a presumíveis críticas,
referiu ter admitido de antemão que haveria sempre quem viesse a pôr em causa a sua
autoria: “…há de existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá …isto é mentira! Mas
as misérias são reais ((Jesus 1960, p.47).

Como cidadã, Carolina Maria de Jesus viveu à margem da economia e da cultura


urbana dominantes. Os seus escritos revelam uma posição marcada por uma dupla
exclusão. Assim, por um lado, ela tem de arrostar com o rótulo de autora de literatura
marginalizada. E, por outro lado, esses escritos trazem à luz um contributo inédito de
referências que eram parte de uma realidade habitualmente excluída ou omitida na
literatura mais consagrada. Dificilmente teríamos acesso à realidade da vida nas favelas,
a não ser através da literatura marginal. De acordo com o antropólogo, Roberto da

13
Mais tarde, depois de o livro ter alcançado o maior volume de vendas no país, Carolina respondeu
enfaticamente a uma crítica negativa que num jornal a chamara de pernóstica:: “Será que preconceito
existe até na literatura? O negro não tem direito de pronunciar o clássico?” (Jesus 1961, p.64)
14
. Noutro passo (no prefácio á obra) Dantas afirmou que não mexeu no texto, “nota-se que o olhar dela
recorta, privilegia uns aspectos em detrimento de outros – e que isso especifica um lugar próprio para
Carolina enquanto porta-voz das minorias – e isso é estrategicamente calculado (Perpétua 2002)

266
Matta, (2004, p.34) “só podemos lamentar o facto de não localizarmos com mais
frequência pessoas como Carolina. Vozes como a dela, que se insurgem ‘desde dentro,’
são raras no nosso universo racialmente hierarquizado”. Nesse caso, parece-nos
compreensível que “um antropólogo se sinta premiado” pela divulgação que fez do
trabalho de uma autora marginal, independentemente das críticas que pesam sobre o
valor literário dessas narrativas. Seguindo esta mesma linha de pensamento, Meihy
(1996) declarou que:

Independentemente da cobiçada qualidade textual, a


explicação que justifica zelo face a estes textos remete
ao quilate social da mensagem e à expressão da vontade
comunicativa de uma mulher que, sabendo-se
segregada, jamais aceitou a condição de submissão,
favelada, mãe solteira, inferior. Seu registo,
constantemente biográfico, funcionava como
documentação de experiências até então jamais
autenticadas por autorias de quem padecia de uma vida
miserável. (Meihy 1996, p.11).
Assumindo-se aqui que o valor das contribuições destes escritos reside na
inscrição do ponto de vista dos negros pobres, tais contribuições são, por isso mesmo,
um segmento situado à margem da cultura escrita das elites das classes média e alta.
Este é, portanto, o lugar da fala de Carolina. Daqui ela falava para exprimir a percepção
de desigualdade racial sentida pela elite negra, a “vanguarda literária negra” que se
congregava em defesa dos valores da negritude que já tinham arautos conhecidos como
Léopold Sédar Senghor e Aimé Cesáire. Carolina torna-se assim uma figura importante
por encarnar, mesmo de modo não totalmente consciente, a visão mais fugidia de uma
percepção que dificilmente seria alcançada por uma literatura mais normativa ou elitista.
O alcance e ou tipo de inscrição discursiva que se patenteia em Quarto de Despejo é
intrínseco a um texto de produção marginal. Por este facto, pela omissões que a
literatura mais canónica não abrange, devemos dizer que Carolina colmatou, com a sua
marginalidade, o espaço que faltava preencher, de um registo inovador, porque
contaminado pela oralidade iletrada a qual, por sua vez, testemunhava vivências que a
urbanidade literária não capatava.

Contemporaneamente, verifica-se que o movimento hip hop e a literatura


marginalizada que se elabora na periferia paulistana têm produzido narrativas urbanas
que continuaram este empreendimento inicial de Carolina e nos permitem agora um

267
maior acesso ao universo simbólico dos excluídos (Silva, 1998). No seu conjunto, são
produções elaboradas à margem do mundo académico, com uma participação alargada
de cultores, porém, nos anos 60 do século passado, Carolina colocou-se como um
fenómeno realmente revolucionário, pois as possibilidades de registo escrito da sua fala
eram então praticamente inaceitáveis.

O posicionamento que Carolina expressou sobre a discriminação racial aparece


nas primeiras publicações de forma pontual e velada, fixada em pequenas frases, que
por vezes reproduzem o viés da almejada democracia racial: “13 de maio […]É o dia da
Abolição. Nas prisões os negros eram os bodes expiatórios. Mas agora os brancos são
mais cultos. E não nos tratam com desprêso […] E assim no dia 13 de maio de 1958 eu
lutava contra a escravatural atual –a fome (Jesus 1960, p.32).

Há, no entanto, um passo de texto mais desenvolvido em Quarto de Despejo, onde


Carolina Maria de Jesus exemplifica o outro aspecto, o do protesto explícito contra os
limites impostos pelo racismo. No contexto de um discurso anti-racista, verificamos
como ela se posiciona positivamente sobre as origens raciais, empregando já, para tanto,
termos que a aproximavam inconscientemente da fala dos teóricos da negritude:

Eu escrevia peça e apresentava aos diretores de circos.


Êles respondiam-me: - É pena que você é preta.
Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu
cabelo rústico. Eu até acho do preto mais iducado do que o
cabelo de branco. Porque o cabelo de preto põe, fica. É
obediente. E o cabelo do branco, é so dar um movimento
na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que
existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta. …Um
dia, branco disse-me: Se os pretos tivessem chegado ao
mundo depois dos brancos, aí os brancos podiam protestar
com razão. Mas nem, mas nem o branco nem o preto
conhece a sua origem. O branco é que diz que é superior.
Mas que superioridade apresenta o branco? Se o negro
bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o
preto, atinge o branco, se o branco sente fome, o negro
também, a natureza não seleciona ninguém (Jesus 1960,
p.65).
Pelo que aqui fica dito, é fácil depreender-se que ainda nos encontramos
distanciados da definição do que é uma escritora negra, de acordo com o que foi
designado por Zilá Bernd (1981) na perspectiva de um-eu-que-se quer negro. No
entanto, entendemos que este não é um assunto que tenha ficado inteiramente resolvido

268
no contexto da obra de Carolina. As referências a elementos estigmatizadores
associados ao negro como “o cabelo rústico” , “a cor preta” ou expressões tais como:
“Se é que existem reincarnações, eu quero voltar sempre preta. …”, (Bernd (1981, p.56-
9), confirmam que Carolina travava uma luta interna, na perspectiva de uma reversão e
revisão de valores. Embora ela não tivesse acesso aos teóricos da negritude,
apercebemo-nos que, em momentos específicos, ela assume o deliberado propósito da
afirmação orgulhosa da sua descendência africana. A questão da identidade de escritora
negra, e a forma como ela a “negociou” ou afirmou, merece, portanto, uma atenta
ponderação, também porque ela comporta ambiguidades. Para compreendê-las
consideramos necessário, antes de mais, reconstituir-se o lugar social da fala da
narradora. Estaria Carolina situada, de facto, no universo da favela, em condições de
assumir uma “postura política contestatária” e de negação do universo literário
hegemónico? As estratégias discursivas utilizadas pelos defensores dos valores da
“negritude” poderiam ser identificadas com as que foram adoptadas pelo escritor(a)
militante dos anos 60? Parece-nos obvia que as respostas, quanto a este assunto, não
serão conclusivas, uma vez que a própria autora era desconhecedora dos pressupostos e
dos propósitos entendidos e prosseguidos por uma “negritude militante”.

Por este facto, pelas omissões que a literatura mais canónica comporta e
seguindo o raciocínio de Lajolo (1995), devemos dizer que não foi a sua obra que ficou
aquém da literatura brasileira, foi a literatura brasileira que se tornou pequena , no seu
formalismo, para poder acomodar no seu lastro o legado diferenciado que nos foi
deixado por Carolina. Lajolo (1995) comenta o facto de, até então, não haver leitores
competentes para fazer uma boa recepção de textos considerados marginais, para
analisar e compreender obras literárias como esta que mergulham no mundo da favela.
Não se nos afigura difícil concordarmos com a opinião de Lajolo, aqui seguidamente
detalhada,: “se a oscilação entre registos de linguagem e opções políticas faz a sua obra
(de Carolina) e sua militância soarem a falso, […] “hão de se criar os olhos capazes de
ver uma poesia como esta, que dá ortografia e sintaxe à militância e ao feminismo, e
aponta ainda para uma cidadania dilacerada em todos os territórios, e em todos eles
insuficientes para se levar a cabo um projecto canónico de produção literária (Lajolo,
1995, p.33).

Carolina Maria de Jesus pode ter sido a primeira autora afro-brasileira a dar
corpo e visibilidade à experiência histórica da pobreza e da desigualdade racial,

269
associando-a a uma dicção específica que foi trazida para a obra literária, não
introduzindo apenas a temática da sobrevivência urbana marginal na agenda do dia da
“cidade do progresso”, mas, principalmente, pela formalização estética dessa temática.
Nesse sentido, a sua escrita, para além de dar relevo ao discurso de um sujeito
habitualmente subalternizado no plano público, deu representação diferenciada e
significante à experiência histórica que ela nos apresenta, mediante uma forma
particular de linguagem, produtora ela mesma de uma estética própria. Aqui, os
diferentes posicionamentos do sujeito escritos num texto pejado de contaminações da
oralidade levam-nos à presença de uma expressão “rasurada” de linguagem híbrida que
assimila, na forma, o falar normativo e o marginal, contemplando o contexto histórico
do rápido desenvolvimento urbano de São Paulo daquela época, então dilacerada por
gritantes assimetrias, mas ansiando pela construção de uma outra “comunidade mais
justa, imaginada pela autora como por muitos outros desfavorecidos”. A partir da
valorização das marcas de modernidade, contempladas nos anseios desta escrita de
Carolina, somos integrados na experiência social narrada por um sujeito cuja
subjectividade se constitui no fora-de-lugar que adquire sentido na própria dicção desta
obra. Mais que o tema, o cenário ou os retratos, há uma gramática da cidade (ou da
degradação urbana) constituída pelo resíduo, pelo fragmento, pelo transitório, pela
formulação oral aliterada.
A obra de Carolina Maria de Jesus continua sedenta de público, embora a
temática que esta autora privilegiou continue bem actual. No final, ela mesma tinha
razão a seu respeito: era “poeta”; e poeta, não são somente os que andam entre gente
fina e de luvas brancas. No final do enredo, podemos dizer que a autora simbolizou
muito mais do que a diferença entre classes e género. Para nós, Carolina foi um símbolo
de transição entre a escrita dos brancos e a dos negros, uma mediadora entre a classe
média e os habitantes da favela, a mulher e o homem, enfim, entre a espontaneidade
popular e o perfil canónico, pretensamente perfeito, ditado pelo mundo instituído e pela
literatura formal. Carolina, tendo sido tudo isso, foi ainda um símbolo da brasilidade,
no que esta palavra congrega de miscigenação de raças e de condições, e também da
vontade de vencer e superar-se, tão representativa do Brasil emergente, país que é cada
vez mais promessa de afirmação de uma grande nação que se realizará quando também
for menor o fosso entre letrados e iletrados, e mais próxima a paridade entre homens e
mulheres.

270
Passados muitos anos após da publicação de Quarto de Despejo e da morte da
autora, constatamos que as personagens de Carolina estão vivas e podem ser vistas nas
ruas e nas notícias dos jornais diários do Brasil e de outras partes do mundo. E, para
finalizar, devemos dizer que o homem por quem Carolina se batia, o operário que
representava a maioria desfavorecida, veio progressivamente a afirmar-se naquela
grande nação, tendo mesmo já ascendido à Presidência da República e ter sido com Lula
da Silva que o Brasil passou a ser, de modo incontestado, uma das (ditas) potências
emergentes do século XXI.

271
4. REPRESENTAÇÃO DA OPRESSÃO E AUTO-DETERMINAÇÃO FEMININAS
EM SECOND CLASS CITIZEN, DE BUCHI EMECHETA.

The African woman has a position and status which is in many ways,
definitely inferior to that of a man, and this is in spite of the fact that
she does most of the hard work in supporting the family. They were
regarded as socially inferior to men, and were always treated as
minors. Before marriage a woman was under the control of her
husband and on his death, of some other male member of his family.
She could never sue independently at court, she could own property
but could not dispose of it without her guardian’s consent. (Thelma
Awori, “The Myth of the Inferiority of African Women. (1975, p.32-
32)

Este capítulo centra-se na questão da auto-representação da mulher através de um texto de


assumidas características autobiográficas, como é o caso do romance Second- Class Citzen1
(1987),de Buchi Emecheta.
Este testemunho escrito, de cunho autobiográfico, (Olney 1965, p.28-9; 1972, p.19, 1980,
p.33-4; 1986, p.45) tem o propósito de fazer a denúncia da situação de desfavor da mulher em
África e na diáspora. Ele permite-nos também que verifiquemos o modo como Emecheta, através
deste seu romance, põe em causa a representação patriarcal da mulher africana. Ao mesmo
tempo, neste texto, assoma ainda a maneira como esta autora apresenta Adah, a personagem
principal, buscando fazer dela um exemplo de insubmissão para as mulheres nigerianas, que as
leve a serem mais actuantes na luta para a transformação da sociedade de que elas têm sido a
parte preterida.
Esta obra, Second- Class Citizen, é um bom ponto de partida para compreendermos as
tensões que coexistem no próprio desta escritora africana na diáspora. Do nosso ponto de vista, a
obra em estudo constitui-se como uma expressão literária intercultural, porque estuda a condição
da mulher através de experiências conjugadamente vividas no continente africano (Nigéria) e
europeu (Inglaterra). Por causa desta preocupação com a transmissão de experiências vividas, a
acção começa na Nigéria e sequentemente passa para a Europa. Esta preocupação documental
levou a autora a considerar esta sua obra como um manual de sociologia (Emecheta 1974, p.viii),
enquanto que críticos literários como Sougou (1990), Nasta (1996) e Fido (1991) a consideram

1
As referências aqui usadas nesta tese foram aduzidas dos romances Second-Class Citizen. London: Collins,
Fontana/1987.

272
uma semi–autobiografia ou um proto-romance2 em forma de auto-documentário. Por sua vez
Fago Morrison (2003) descreveu esta obra como um romance escrito por uma “negra britânica”
com o espírito de contestação dos anos sessenta, tendo assinalado aqui, um registo diferente
daquele que predominara em textos de cariz autobiográfico, daí resultando um estilo inovador e
particular com um esquema de desenvolvimento próprio de um documentário “realista”
(Morrison 2003, p. 192).

i. Representações da condição de mulher na Nigéria

A percepção da condição de mulher na Nigéria é fundamental para se explicar e se


compreender os graus de dificuldade e as oportunidades disponíveis para homens e mulheres na
sociedade nigeriana, tendo em vista as suas esperadas auto-realizações e a sua participação na
vida económica e política do país. Quando se fala sobre a situação da mulher nigeriana, é preciso
debruçarmo-nos sobre as crenças, as noções e as ideias que um determinado povo tem acerca das
mulheres, (em função do que elas representam nas suas relações com os homens), e quais são as
sensibilidades e expectativas desse povo sobre os papéis do sexo feminino na sociedade. A
percepção é culturalmente construída, sendo ela, por isso, o resultado de um processo de
socialização.
Para além de aspectos introdutórios de visão geral, o desenvolvimento deste capítulo
obedecerá à sequência de análises que seguidamente nos propomos apresentar. Ao analisarmos a
obra, Second Class Citizen, de Buchi Emecheta, o nosso objectivo é examinarmos a percepção da
condição feminina na Nigéria, mediante uma investigação sobre as três principais etnias - a saber,
Igbo, Yoruba e Hausa. Ao longo deste trabalho, tentaremos apurar as consequências de tal
percepção no bem-estar das mulheres, no processo de desenvolvimento político e social. Na
segunda parte deste capítulo, apresentaremos uma visão sobre o conceito e a importância da
autobiografia, bem como as dificuldades associadas a este género na escrita de Buchi Emecheta.
2
De notar também que os ditos proto-romances, pelo que retratam e pelo que intencionalmente denotam, têm todo o
cabimento nos propósitos de análise das teorias feministas e dos posicionamentos implicitamente subjacentes na
prática de escrita autobiográfica desenvolvida por mulheres, assumidamente feministas ou não, mas
inquestionavelmente denunciadoras da imparidade de géneros. E o ensaio de Susan Stanford Friedman (1988, p.34-
6) intitulado “Women’s Autobiographical Selves” também se nos afigura particularmente útil para a análise deste
tipo de trabalhos, de incidências autobiográficas. O valor daquele ensaio, aqui trazido à colação, decorre da sua
qualidade como repositório de sólidas referências, uma vez que ele congrega importantes estudos autobiográficos e
psicanalíticos, sustentados pela obra de escritores de renome como George Gusdorf e James Olney (1972), por um
lado, e os de Sheila Rowbotham e Nancy Chodorow (1978), 1973), por outro.

273
Na terceira parte deste capítulo sobre Buchi Emecheta, sublinharemos a ocorrência de temas
diferentes mas concomitantes, tais como a política de género, no que toca à opressão da mulher, a
experiência dos negros na sociedade europeia e a questão da discriminação racial, considerando
igualmente o modo como estas problemáticas adquirem características diferentes no contexto
africano e europeu. Finalmente analisaremos o perfil das duas personagens principais deste
romance, cuja intervenção desenvolve os principais temas em estudo, anteriormente enunciados.

As Imagens/Representações da mulher na Nigéria


Para se poder analisar a imagem e a condição da mulher na Nigéria, é necessário
estudarmos o conjunto de fases que ela atravessa durante o seu período de vida: nascimento -
infância - adolescência – casamento – maternidade – viuvez. O estudo destas fases irá ajudar-nos
então a reflectirmos, ao longo deste capítulo, sobre o modo como foram e são vistas ou
percebidas as mulheres, na Nigéria. Tais imagens adquiridas são tão importantes que influenciam
e determinam as responsabilidades e os papéis que são atribuídos às mulheres, em sociedade
(seus deveres, obrigações e convencionalismos). Desde o nascimento, uma criança do sexo
feminino é vista e criada, tendo em conta, a sua futura “função” como esposa e mãe. Entre os
Ibos, uma menina recém-nascida é referida como Akpa -ego3, ou unoaku4, ou 'obute aku5'. De
acordo com Amadiume, (1987, p77) esses nomes são alusões aos dotes ou propriedades a doar
pela família do noivo à família da noiva, quando uma das filhas se casa, ou referência a outros
benefícios que são obtidos através dos contactos com os futuros parentes por afinidade
(Amadiume (1987, p.77). Sendo assim, desde muito jovens, as raparigas nesta sociedade são
criadas de uma forma que as prepara para cumprirem devidamente as suas “esperadas” funções
como esposas e mães.
Os membros de sexo feminino, as jovens desta comunidade, não são encorajadas a
participar em muitas actividades de lazer. Ao longo da sua infância, são educadas para as virtudes
do auto-controlo e da diligência. Muitas vezes, estas meninas são obrigadas a trabalhar de uma
forma intensa em tarefas como cuidar dos seus irmãos (ainda muito jovens, recebem as
orientações relativas às suas responsabilidades domésticas, tais como ir buscar a lenha necessária
para cozinhar, ir acartar água ao rio e fazer todos os recados de âmbito doméstico).

3
A fonte ou bolsa de dinheiro – realçar.
4
A casa de dinheiro
5
A fonte da prosperidade

274
Ao tornar-se adulta, verifica-se que a posição mais importante que uma mulher alcança é
conseguida através do casamento. Entre os Ibos, espera-se que as mulheres se casem, detendo o
matrimónio um papel predominante sobre qualquer outra actividade humana (Uchendu 1965,
p.86-7). Amadiume (1987) identificou algumas canções de maternidade Igbo que acentuam a
importância do casamento:

Be you as beautiful as a mermaid, the beauty of a


woman is to have a husband. Be you one who has been
to the land of white people the beauty of a woman is to
have a husband. If a woman does not marry, her beauty
declines… (Amadiume (1987, p.72)

Nalgumas sociedades tradicionais africanas (de acordo com a cultura dos povo Yoruba e
Ibo) e como será evidenciado posteriormente,, a mulher solteira é menosprezada e ridicularizada,
ocupando o lugar mais baixo da comunidade, sendo preferível ela casar-se seja com quem for,
nem que isso leve, quase de certeza, a um casamento infeliz. Tudo será melhor para a mulher do
que permanecer solteira (Bamisile, 2006, p.102). Amadiume (1987) também refere que, quando
uma menina atinge a idade adulta, ela começa a receber outra forma de tratamento: “quando era
menina - a pergunta que lhe faziam era “é filha de quem” mas, ao aproximar-se da idade do
casamento o passa a fazer-se uma outra pergunta, “é mulher de quem?” (Amadiume (1987, p.69).
Nesta linha da tradição Ibo, também um homem solteiro é desprezado e chamado “Akalogoli”,
palavra que significa um homem irresponsável, vagabundo e malandro. Fadipe (1970), um
estudioso Yoruba de renome, dando a sua opinião sobre a cultura do seu povo, observou que “o
acto do casamento dá um estatuto privilegiado aos iorubanos e sendo assim, é insólito e
desagradável para um homem ou uma mulher de idade madura continuar solteiro/a”. (Fadipe
1970, p.65).

De um modo geral, em tais sociedades tradicionais africanas, e em particular no norte e


ocidente de África, onde há uma grande influência da religião islâmica, espera-se que todas as
mulheres se casem. E, em conformidade com as leis islâmicas, espera-se que elas sejam
submissas, e permaneçam isoladas dos contactos sociais6 pelos seus maridos. Neste contexto, a

6
No norte da Nigéria onde a maioria da população é muçulmana, quase todas as famílias de etnia “Hausa”, quer no
interior, quer na cidade, praticam, de uma maneira geral, várias formas de isolamento da sociedade.
Consequentemente, o afastamento ou isolamento da mulher na sociedade “Hausa”pode ser classificado de duas
maneiras, “Kulle” e “Tsari”. No sentido literal do termo, “Kulle” significa fechar à chave, encerrar ou guardar

275
sua vida torna-se num inferno, devido à natureza do “purdah system”. É que embora os
praticantes masculinos da religião muçulmana sejam obrigados a satisfazer todos os desejos das
suas esposas e filhos, as suas mulheres são obrigadas a ficar isoladas e a fazer todos os trabalhos
domésticos. Na Nigéria, as mulheres, assim isoladas, ficam sem cesso à vida pública, visto que
todas as suas actividades, religiosas, sociais e económicas são controladas pelo marido. Sendo
assim, não são autorizadas a sair de suas casas em pleno dia, sem razões válidas e previamente
comunicadas. Atendendo a este facto, podemos dizer que a sua vida é a de uma mulher afastada
do mundo, em exclusiva dependência do marido que a controla e domina. É importante salientar
que as mulheres casadas ganham estatuto económico, esperando-se que sejam trabalhadoras,
activas e diligentes. Ngur (1988,p. 26-29) afirma que as mulheres não praticantes da religião
muçulmana são obrigadas pelos homens a trabalhar nas fazendas, nas actividades comerciais e na
criação de animais. Schildrout (1983, p.107-08), por sua vez, observa também que, mesmo
estando isoladas, “as mulheres muçulmanas ajudam os seus maridos na preparação e confecção
de alimentos, que depois são vendidos pelos seus filhos que são assim os intermediários desta
actividade junto dos comparadores”.

É com esta base de informação sobre a imagem da mulher na sociedade nigeriana que
vamos analisar o modo como Emecheta apresenta as dificuldades de que ela e muitas outras
mulheres, sem voz, têm sido vítimas numa sociedade de regulação patriarcal onde ainda foram e
ainda são consideradas seres inferiores.

cuidadosamente, enquanto “Tsari”quer dizer proteger, defender ou guardar. Na prática, o primeiro termo denota que
as mulheres não são autorizadas a sair dos seus lares, estando estas práticas ligadas aos emires e aos eruditos
islâmicos. O segundo termo tem a ver com a situação de mulheres mais comuns, que podem sair à sua, mas com
algumas limitações, tais como a prescrição do tempo para esta saída, (que geralmente é à noite, salvo quando querem
ir a consultas médicas ou cerimónias religiosas e familiares, sendo então sempre acompanhadas), as devidas
restrições maneira de vestir convencional e a expressa autorização do marido. (ver Imam, 1992 e Callaway, 1994).
Baseado nesta perspectiva, e de acordo com o Imã, há outro grupo de mulheres muçulmanas, tais como as
pertencentes às classes emergentes com mais escolaridade, as prostitutas ou divorciadas, que não são isoladas. Aliás,
ainda é possível identificarmos outras categorias que podemos classificar como isolamento extremo, isolamento
moderado e isolamento ligeiro. Os muçulmanos que praticam o isolamento ligeiro são aqueles que deixam as suas
mulheres saírem com o rosto coberto com um véu, enquanto que os que praticam o isolamento de forma extrema
nunca deixam as suas mulheres saírem de casa.

276
ii. Conceito e importância da autobiografia, dificuldades associadas a este género na
escrita de Buchi Emecheta

Definir autobiografia é um assunto polémico devido às opiniões e divergências entre


vários críticos e estudiosos, acerca da sua exacta definição. Barros (1998), Buckley (1994) Olney
1998, Lejeune (1998), Anderson (2001) e Berryman (1999) entre outros estudiosos, definiram-no
diferentemente, em conformidade com as suas próprias perspectivas. Mas para este nosso
trabalho, vamos filiar-nos sobretudo nas definições de dois críticos: Lejeune (1998 e Viana
(1995).
P. Lejeune (1998) afirma que a autobiografia é “um relato retrospectivo em prosa, que
uma personagem real faz da sua própria existência, dando ênfase à sua vida individual e
particularizando a história da sua personalidade” (Lejeune 1998, 50) 7. Na autobiografia, assim
entendida, verifica-se identidade entre autor, narrador e personagem, sendo esta concentração de
funções na mesma pessoa aquilo que ele designa por pacto autobiográfico. Tal pacto
autobiográfico concretiza-se, assim, quando é explícita a identidade entre autor, narrador e
personagem, como acontece em So Long a Letter, Quarto de Despejo8, Second Class Citizen e
Colour Purple.
Mesmo considerando-se que a autobiografia é ficção, pois é a recriação de uma
mundividência, o texto autobiográfico suscita no leitor uma forte impressão de veracidade,
devido à auto-referenciação do pacto autobiográfico em que se desenvolve. E, por ser ficção, a
autobiografia é criação, é arte que emana da diferença entre a realidade vivida e a que é
efabulada. Assim, tendo em conta esta característica de efabulação, devemos considerar que a
autobiografia já não mais pode ser vista como um termo que assinale falta de ambição e de
qualidade literária. Por estas razões, P. Lejeune afirmou, em entrevista concedida a Jovita
Noronha, que a autobiografia é “ uma forma de arte e, como tal, um acto literário” (Noronha
2002, p.21 Por sua vez, Viana (1995) define a autobiografia nos seguintes termos:

A autobiografia, entendida como narrativa em que autor, narrador e


personagem são figuras coincidentes, não é certamente um género uniforme,

7
De acordo com este crítico, a identidade pré-textual é condição necessária para a autobiografia. Neste sentido, o
destinatário pode pôr em dúvida a veracidade dos factos, mas não a identidade do autor.
8
No caso de Quarto de Despejo, por exemplo, o nome exposto na capa, Carolina Maria de Jesus (equivalente a
autoria) é igual ao nome da narradora e da personagem principal, acrescida da indicação no subtítulo de que se trata
de um diário, um texto autobiográfico.

277
sujeito a regras fixas (…). O estilo ou a forma da narrativa autobiográfica pode
definir-se como a maneira própria de cada autobiógrafo satisfazer as condições
de ordem ética e relacional, que exigem a narração verídica de uma vida.
Assim, a escolha do modo e estilo de escrita, bem como o tom, o ritmo e a
extensão, ficam sob inteira responsabilidade e critério do escritor. Se o
enunciado na obra autobiográfica tem como obrigatoriedade a referência ao
passado, seja ele remoto (memórias) ou próximo (diários), o estilo, a forma de
enunciação, em contrapartida, estão ligados ao presente do acto da escrita.
(Viana 1995 p.16-17)

Observamos à luz desta definição que o/a autor/a da autobiografia pode fazer uso de toda
a liberdade linguística e formal que pretenda. Cabe a quem se auto-biografar decidir se a sua
escrita é guiada por uma determinada calendarização, se relatará o quotidiano em forma de diário
ou de carta, tal como se verifica em Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus e So Long a
Letter de Mariama Bâ ou se, de outro modo, o autobiógrafo fará menção a um passado e trará à
tona factos e experiências por meio de uma escrita que faça a recuperação de memórias.
A biografia escrita por mulheres pode ter propósitos específicos decorrentes de
engajamentos próprios, adstritos à condição de género. No caso destas autoras, este modo de
escrita procura, naturalmente, opor-se à invisibilidade e ao silenciamento a que o elemento
feminino tem sido votado, por ter sido alijado da cena pública e política e relegado para a esfera
privada. Tudo isto faz com que o texto reportado ao “eu” da mulher se mantenha submerso no
plano mais vasto do grupo familiar e da tradição cultural prevalecente, no seio das respectivas
comunidades. Também por esta razão, pelo que escrevem e pelo modo como o fazem, as autoras
de autobiografias africanas buscam promover, à partida, a unidade das famílias, opor-se ao seu
desmembramento, actuando assim, pelo seu testemunho, como memória colectiva de um tempo
de passada harmonia que importa relevar.
Neste sentido, as autoras de autobiografias, em África, funcionam como tradutoras ou
transmissoras, por forma escrita, de uma voz colectiva que vem sendo passada de geração em
geração, através do testemunho oral inter-familiar. Desse modo, o trabalho auto-biográfico feito
por mulheres é, em grande parte, o documento da história de uma família e, por isso, ele poderá
ser inscrito na narrativa da história social, mas não terá a proeminência que é conseguida pela
autoridade política conferida ao grupo dos homens. E assim, enquanto um estadista fala como
representante de toda uma nação, as mulheres, sem acesso ao mando político, como mais
habitualmente acontece, não têm uma grande história para contar. Elas estão limitadas a contar a
história de uma mulher, dentro de uma família, e não a de uma nação. Assim também, pelo que

278
representa, a autobiografia feita por mulheres, em África, tem sido remetida para uma posição
secundária e isto é mais um exemplo revelador de uma continuada subordinação da mulher e do
modo como essa subordinação vem sendo mantida, à escala global.
No entanto, apesar da intervenção crescente da mulher no texto literário africano, o qual,
por esta via, procura conseguir maior visibilidade para a mulher em África, há que considerar
alguns problemas teóricos e ideológicos que estão sempre envolvidos na identificação daquilo
que é uma autobiografia, enquanto relato escrito de um presumido depoimento oral ou de um
diálogo. Esta observação serve para lembrar que, no contexto africano, a transmissão de
conhecimentos e de vivências é feita, fundamentalmente, por via oral, numa interacção entre
alguém que conta uma história e uma audiência que escuta esse relato e dialoga com o narrador.
A primeira dificuldade que o género autobiográfico apresenta, enquanto transmissão ou
transformação de uma forma oral num texto impresso, é a consideração das perdas que podem
ocorrer nessa transformação. Uma segunda dificuldade prende-se com o risco inerente à
orientação ideológica do narratário e ao papel do editor no processo de transmissão, selecção e
exclusão de material a publicar. Um outro risco de desvirtuamento do texto de partida é a relação
de disparidade inter-racial e cultural que frequentemente ocorre entre um autor africano e um
editor europeu. Mas mesmo com todas essas dificuldades, mal ou bem superadas, verificamos
que cada vez há mais mulheres africanas a quererem e conseguirem mostrar e dar voz às suas
histórias, e a levá-las a todo mundo, sem o que, de outro modo, esse mundo continuaria a ignorá-
las.
As histórias de vida, ou autobiografias, formam um género distinto que desafia e até certo
ponto expande os limites de uma rígida categorização literária. Carole Boyce Davies (1992 )
identifica três modos estruturais ou níveis de narrativas de auto-representação: o “Eu” descrito
como sinónimo de uma luta política de afirmação individual; o “Eu” apresentado em diálogo com
família e/ou história cultural; e o “Eu” identificado como resistência à ordem patriarcal/racial.
Segundo esta autora, as distinções entre estes modos de representação ou afirmação do “Eu”
radicam num processo de continuada afirmação ou esbatimento, decorrente das variáveis de
interacção social. (Davies 1992 p.195-6).
No contexto da literatura africana, o “Eu” autobiográfico é, e procura ser, um processo de
afirmação e da divulgação das dificuldades e anseios colectivos da história da mulher de África.
Até que ponto é que esse “Eu” colectivo é visto ou pode ser visto como uma história importante,

279
isso dependerá sempre de um alargado conjunto de pré-configurações de ordem pessoal, social,
histórica e política, que não se mantém estável mas, afortunadamente, é evolutivo. E deste modo,
assim como o “Eu” não existe como forma estável também a sociedade, também os “outros”
estão em constante diálogo com esse “Eu” colectivo. Isso dá-nos esperança de que a voz
silenciada das mulheres, através da autobiografia, tem um meio de conseguir tornar-se num “Eu”
audível, desejadamente visível, tanto para si mesmo como para o “outro”.

À luz dos pontos acima referidos sobre o conceito da autobiografia, Carolyn G. Heilbrun,
Writing a Woman’s Life II (1988, p. 16-17), afirma que há quatro maneiras de se escrever sobre
a vida da mulher: a própria mulher relata esta vida chamando a isto uma autobiografia; pode
preferir falar da sua experiência de vida designando tais textos por ficção; um biógrafo, homem
ou mulher, pode falar sobre a vida de uma mulher, desligando-a de uma experiência concreta, e
sem lhe atribuir nenhuma designação de género; mulheres culturalmente realizadas têm-se
referido de modo mais ou menos determinado aos seus percursos de vida e, mais recentemente,
fazem-no tentando afrontar o poder e o controle patriarcal. Mais, porque tudo isto tem sido visto
pelo conservadorismo patriarcal vigente como pouco próprio de mulheres e porque cada vez
mais mulheres assumem a necessidade de lutarem por um mundo em que não estejam tolhidas
pelo poder controlador dos homens, - tem-lhes sido negada a possibilidade de uma maior
audiência para os seus testemunhos textuais o que, de outro modo, as ajudaria a assumirem de
modo ainda mais decidido e entendido, o controlo das suas próprias vidas.

É com esta base de informação sobre a imagem da mulher na sociedade nigeriana e o


conceito de autobiografia desenvolvido nos passos anteriores que vamos analisar o modo como
Emecheta apresenta as dificuldades de que ela e muitas outras mulheres, sem voz, foram vítimas
em sociedades de regulação patriarcal, onde as mulheres têm sido e ainda hoje são consideradas
seres inferiores. O nosso objectivo principal é assim o de dar relevo a temas e situações que se
podem definir como atitudes discriminatórias, pois afectam de modo desigual homens e
mulheres, como é entrevisto e denunciado no contexto da obra Second Class Citizen.

280
iii. O mundo ficcional de Emecheta e suas preocupações
Nesta fase deste nosso ensaio, pretendemos dar relevo a temas e situações que se podem
definir como diferentes atitudes que afectam de modo desigual homens e mulheres, no contexto
da obra Second Class Citizen.
Não podemos deixar de sublinhar que o mundo ficcional de Emecheta se centra na
denúncia da exploração sexual e dos maus tratos que são exercidos sobre as mulheres em África,
bem como na contestação de expressões estereotipadas tendenciosamente relacionadas com as
mulheres, tais como invocações de ligação a práticas de bruxaria, de comportamentos associados
a instabilidade mental e a loucura, levando a que, por via disso, a mulher venha a ser apodada de
“monstro” em pessoa. Em sociedades mais tradicionais, a mulher que tenta desafiar a organização
patriarcal é inevitavelmente mimoseada com todo este tipo de categorizações e associações
pejorativas. Em tudo quanto Emecheta escreve, ela empenha-se em melhorar a situação de vida
das mulheres que vivem no seu país de nascimento, a Nigéria, bem como a das mulheres
africanas na diáspora. Fazendo uma veemente denúncia das formas de escravatura que se
exercem sobre as mulheres e crianças, Emecheta afirma a sua total solidariedade para com a luta
de independência e autonomia das mulheres africanas, em África e na Europa. Os temas tratados
por Emecheta buscam a redefinição da condição da mulher, em África. Este propósito decorre da
dolorosa experiência de vida por que ela própria passou, enquanto vítima da opressão masculina e
da tacanhez de mentalidades com que ela teve de se confrontar, ao pretender alterar a situação de
desfavor das mulheres. Contudo, não podemos deixar de notar alguma ambivalência na forma de
feminismo por que ela pugna, designadamente, no conjunto dos seus textos que não têm um
carácter autobiográfico. Mas este posicionamento é aceitável, atendendo ao facto de ela ter vivido
no seio de duas culturas, a africana e a europeia. Ao referir-se a Buchi Emecheta como escritora
africana, Lloyd Brown (1981) diz-nos que ela é a voz de protesto mais vigorosa que se ouviu na
literatura africana, denunciando a situação da mulher e pugnando pela sua maior autonomia e
auto-afirmação:

Of all women writers in contemporary African literature,


Buchi Emecheta of Nigeria has been the most sustained and
vigorous voice of direct, feminist protest. Only Bessi Head of
South Africa compares with Emecheta in a certain intensity
and directness when describing sexual inequality and female

281
dependency. In Emecheta, we detect an increasing emphasis
of the woman’s sense of self (Brown 1981,p .34).

Uma vez que a supressão da mulher nas mais diferentes áreas de actividade é um
fenómeno global, torna-se necessário que a sua presença também se inscreva de modo mais nítido
na actividade literária. E, neste sentido, deve dizer-se que Emecheta é parte dessa linha da frente
“feminista” que difunde a mensagem de emancipação da mulher em África. Na maioria dos seus
textos é-nos dado um relato ficcionado da opressão de que são vítimas as mulheres Igbo, numa
argumentação em que o colonialismo, o sexismo e as polaridades entre cidadãos surgem
interligados, numa conjugação que tende para a opressão das mulheres africanas. Vivendo
habitualmente no estrangeiro, em Londres, desde 1960, Emecheta mantém vivo um olhar atento e
crítico sobre a sua cultura de origem, designadamente sobre as questões ligadas à tradição
patriarcal, à condição de dependência económica e à opressão por razões de género, a que as
mulheres africanas estão submetidas. De um modo muito claro, mais do que celebrar os aspectos
positivos da cultura tradicional do seu país, ela centra-se na denúncia dos seus aspectos
negativos. E, com isso, Emecheta expõe ao mundo os aspectos perniciosos da organização
patriarcal nas comunidades africanas.

iii.a. Discriminação por razões de género.


Sendo Buchi Emecheta, uma das primeiras escritoras feministas a desafiar a tradicional
autoridade patriarcal africana, contesta vivamente a arreigada opinião popular segundo a qual o
ser feminino é inferior e mais fraco. Em África, este preconceito anti-feminista é reforçado pelo
sistema do casamento tradicional, que ali faz com que a mulher, ao deixar a casa dos pais pela do
marido, perca logo o nome do pai e tenha de adoptar o do marido. Num sistema patrilinear, onde
a criança masculina é a herdeira da propriedade dos pais, o fardo das mulheres,
comparativamente com a condição masculina, é permanentemente mais pesado; ela está sempre
em segundo plano, daí o título do romance, Second Class Citizen.
É importante sublinhar que Emecheta não se limita a enumerar as agressões de um mundo
organizado à escala masculina. Ela dispõe-se a combatê-las de modo determinado. A leitura de
Second Class Citizen, romance do seu princípio de carreira literária, patenteia desde logo o seu
empenhamento em defesa da mulher. Mas logo aí fica claro que Emecheta vai considerar que a
solução dos problemas da mulher passará, necessariamente, pela emancipação do próprio

282
homem. O título deste romance, Second Class Citizen, tem toda a carga sugestiva que já advém
desta expressão, a seu tempo cunhada por Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo. Aqui a
sociedade africana é-nos apresentada como um mundo patriarcal onde o homem é a referência
dominante, em relação ao qual se estabelecem as relações da mulher para com ele. Neste sentido,
a mulher não tem autonomia fora de uma relação para com alguém do sexo masculino, seja ele
pai, marido ou irmão, isto é, a situação de dependência da mulher persiste numa sociedade
tradicional de cariz patriarcal e é precisamente isso que Emecheta descreve criticamente.
Consequentemente, as personagens femininas são-nos apresentadas como alguém que está
perpetuamente aprisionado numa espécie de triangulação, em que os vértices definidores das
linhas de vida da mulher são necessariamente um pai, um irmão, um marido, os quais não só
controlam a sua vida como também negoceiam o seu valor.
Emecheta permite-nos, assim, através desta sua obra, alcançar uma maior proximidade
com os dramas de vida das personagens nigerianas, em contextos rurais como também em
vivências urbanas, onde se centra a trama do romance em estudo, para advogar que a
emancipação da mulher se pode fazer tanto nas sociedades rurais mais tradicionais, como na
modernidade citadina. E é neste último contexto que, por vezes, Emecheta é acusada de ser uma
feminista ambivalente pela conflitualidade resultante de uma vivência em que confluem valores
tradicionais que menorizam a mulher, bem como a experiência de vida de uma mulher africana,
em grande parte vivida no ocidente, onde é maior a percepção do que são os valores atávicos da
sociedade patriarcal. Emecheta vive no Reino Unido há mais de quatro décadas, como se
estivesse num exílio que acaba por ser mais confortável e atraente do que o seu país natal. Isto faz
com que a sua percepção do mundo esteja inevitavelmente formatada por uma consciência
híbrida, que é também o traço definidor da sua escrita pós-colonial (Kolawole 1998, p.55).

Entre outros testemunhos, este romance denuncia a situação agrilhoante que ainda se
verifica em algumas sociedades do mundo, onde as mulheres têm sido educadas para aceitarem as
regras designadas por outros para elas, nas suas respectivas comunidades. Deste modo, elas têm
assimilado continuadamente as visões sexistas criadas pelo poder patriarcal, determinado em
mantê-las em escravidão perpétua. Por isso Ma, a mãe de Adah, aceita com naturalidade que uma
rapariga não precise de educação nos moldes da cultura ocidental e que, se a uma criança for
permitido ir à escola, ela não precisará de a frequentar mais do que os dois primeiros anos.
Assim, na planeara que Adah se limitasse a ser costureira, a fim de continuar o trabalho que ela

283
mesma fazia, desde que casara com o seu primeiro marido. Este comportamento e a
conformidade de Ma para com as regras criadas e impostas às raparigas faz com que Adah tenha
uma fraca opinião acerca das pessoas do seu próprio sexo e isso leva ao esfriamento da relação
com a sua própria a mãe.
Devido à pouca importância atribuída às mulheres, os pais de Adah ficam decepcionados
quando ela nasce, pois esperavam uma criança do sexo masculino. A sua decepção e menosprezo
para com o nascimento de uma menina são de tal maneira grandes que eles nem sequer
consideram que esse acontecimento seja digno de ser recordado:
She was a girl who arrived when everyone was expecting a boy. So, since
she was such a disappointment to her parents, to her immediate family, to
her tribe, nobody thought of recording her birth. She was so insignificant.
One thing was certain, though: She was born during the Second World
War (Emecheta 1987, p.7).

Uma atenção especial é aqui dada a práticas obsoletas, ao tabus e a comportamentos


conservadoras da sociedade para com as personagens femininas. Deste modo as mulheres são
apresentadas como personagens subordinadas, na vida em sociedade, enquanto que as
personagens masculinas são retratadas com dignidade “Boys were usually given preference”
(Emecheta 1987, p.9). Assim sendo, nesta sociedade, é uma maldição dar à luz uma criança do
sexo feminino, dado que uma filha cresce para ser mulher, mulher que futuramente se tornará
esposa – isto é, serva do seu marido. Tendo em conta o ponto aqui salientado, não é de admirar
que Emecheta dê ênfase ao percurso de vida de mulheres, desde o nascimento até à idade adulta,
para condenar a discriminação e maus-tratos do sexo feminino, na sociedade africana de então:
Children, especially girls, were taught to be very useful early in life,
and this had its advantages. For instance, Adah learned very early to
be responsible for herself. Nobody was interested in her for her own
sake, only in the money she would fetch and the housework she
could do and Adah, happy at being given the opportunity of survival,
did not waste time thinking about its rights or wrongs. She had to
survive. (Emecheta 1987, p.43)

As afirmações proferidas pelo pai de Adah na Esquadra da Polícia, em Sabo, reflectem a


fraca opinião dos homens africanos acerca das mulheres numa sociedade patriarcal. Segundo esta
personagem, as mulheres tagarelam, coscuvilham sem fim, e são muito descuidadas. São
preguiçosas e em vez de cuidarem dos filhos como deve ser, tudo o que fazem em casa é comer e
dormir (Emecheta 1987, p.17). Tal comentário é bem revelador de formas de preconceito sexista

284
persistentes. Desta maneira, não ficamos surpresos pelo facto de Adah se revoltar contra o que
entende serem maus tratos de mulheres, já que estas, na sua opinião, são muito complacentes e
não têm autoconfiança suficiente, enquanto que "os homens são firmes e seguros nas formas de
perpetuarem o seu domínio sobre o sexo feminino" (Emecheta 1987, p.16).

A vivência e estratégia colonial procuraram fazer com que os brancos e a cultura europeia
fossem levados para África como algo superior, uma civilização que supostamente procurara
trazer para a modernidade seres que eram naturalmente inferiores. Ao longo da obra aqui em
estudo, Emecheta procura também desmentir o mito da superioridade intelectual e moral da raça
branca, através da sua personagem principal e do comportamento de algumas personagens
brancas. Para Emecheta, o ser humano é, evidentemente, o mesmo em todas as raças, com
méritos e defeitos de carácter.
Por exemplo, Trudy, a ama branca dos filhos de Adah, mente descaradamente nos
Serviços Sociais da Protecção e Assistência aos Menores, em Malden Road e desta maneira nega
a noção de que as pessoas brancas são honestas. Adah fica chocada ao descobrir que as
personagens brancas são seres falíveis como quaisquer outros. Há brancos maus e bons, tal como
há negros bons e maus. O que é que os levava a pretenderem ser superiores 9. Adah no seu
discurso vem a desconstruir o mito de que a Inglaterra é um paraíso onde há paz, abundância,
felicidade e igualdade. A imagem de Londres por ela apresentada no romance é principalmente
negativa, nomeadamente no que diz respeito às condições em que tem de viver. Adah tem de ir
várias vezes por semana a uma casa de banho pública, porque a casa de Pa Noble, na qual ela e a
sua família moram, não têm essas instalações.

Observámos que o sonho de Adah é ter uma educação ocidental, a qual, de acordo com a
tradição patriarcal, deveria ter sido interrompida logo em criança, contudo, após a morte do seu
pai, surgiu a perspectiva de uma melhor compensação económica no futuro, caso ela viesse obter
melhor formação académica, pois ao adquirir melhor qualificação escolar, maior seria também o
dote que ela traria para a sua família, mais tarde. (Emecheta 1987, p.12). Pretendia-se assim que
esse dote acrescido servisse depois para financiar a educação do seu irmão. Esta é uma situação

9
(Emecheta 1987, p.52) that the whites were just as fallible as everyone else. There were bad
whites and good whites, just as there were bad blacks and good blacks! Why then did they claim
to be superior”?

285
que evidencia até que ponto, nas mais variadas situações, nalgumas partes das sociedades
africanas as mulheres são consideradas como bem utilitário, propriedade de outrem e como tal,
mercadoria negociável. Mas sendo Adah uma personagem lutadora e decidida, que sabe o que
quer na vida, num acto de rebelião para com uma tradição injusta, recusa-se a ser tratada como
um simples bem móvel, opõe-se a ser vendida ao maior licitador por sua mãe, inviabilizando
assim que a educação do irmão possa continuar. Isto faz com que a personagem masculina, o seu
irmão, fique ressentido com ela por ela ter tomado uma atitude inédita para uma mulher e que,
consequentemente, o prejudica. Por causa dessa afronta à tradição e aos valores que ela defende,
o irmão não está presente quando ela se casa com Francis. Nessa cerimónia, de resto, somente a
mãe de Francis testemunha a celebração matrimonial. Mas Adah não fica incomodada com isso
porque consegue alcançar o seu objectivo. Recusara-se a casar com qualquer um dos
pretendentes, homens ricos mas velhos, que haviam sido instigados de modo interesseiro pelos
seus primos e por sua mãe a cortejá-la” (Emecheta 1987, p.14). Por outras palavras, Adah leva
até às últimas consequências a sua intenção de não se sujeitar a viver com um marido que, à
maneira tradicional, teria de reverenciar e chamar de Senhor ou servir-lhe a comida ajoelhada a
seus pés.
Na sociedade aqui retratada, as mulheres são educadas para desempenhar apenas o papel de
governantas ou donas de casa. Quando Adah vivia na casa do seu tio em Pike Street, o seu dia
começava logo às quatro e meia da manhã. Antes de ir para a escola, tinha de encher um enorme
bidão com água para o agregado familiar, que era formado por seis pessoas. Evidentemente este
tipo de tarefas tem de ser considerado como uma forma de escravidão, visto que o trabalho que
ela fazia não era pago. Mas o que era para eles trabalho infantil ou abuso de crianças indefesas, já
que não tinham nenhuma noção do que seria uma formação útil para as crianças na sua vida
futura?
Através deste romance, observamos que as crianças, especialmente as meninas, são
ensinadas a serem úteis aos adultos, ainda em tenra idade. (Emecheta 1987, p.13). Neste cas, a
aprendizagem de tarefas que esta personagem recebe em casa do seu tio virá a ser importante
para ela enfrentar sozinha as tarefas do dia-a-dia, mais tarde, quando o seu marido mostra ser
irresponsável e preguiçoso. Uma das razões pelas quais Francis, o seu marido não se revela útil
para com a sua família, é por ter crescido numa casa cheia de raparigas, que faziam todas as
tarefas domésticas, enquanto ele ficava de braços cruzados a divertir-se.

286
Aqui esta autora apresenta-nos também a imagem das mulheres tendo em conta a sua
faculdade de procriação e maternidade, pois que Adah, a personagem principal, nos é apresentada
como mãe procriadora. Adah é tão prolífera em procriar que lhe é dada a alcunha de "Touch
Not".
Vemos que neste romance, as personagens da cultura Ibo, uma comunidade étnica situada
na parte oriental da Nigéria bem como os africanos em geral atribuem uma grande importância à
reprodução biológica. Uma mulher valiosa é aquela que dá muitos filhos ao marido. Como foi
referido neste romance, Adah só pode estar segura do amor do seu marido e da lealdade dos
sogros, tendo e mantendo vivas tantas crianças quando possível. É por esta razão que não pode
perder o seu filho, Victor, afectado pelo vírus da meningite. E assim, na resposta que dá à
enfermeira, no Royal Free Hospital, quando aquela tenta acalmá-la, Adah replica que Victor não
é o seu único filho, que "ha[via] uma outra criança, mas essa era apenas 10 uma menina”. Ao dizer
isto, torna-se evidente que Adah tem consciência de que a sua comunidade prefere uma criança
do sexo masculino a uma do sexo feminino (Emecheta 1987 p.62). Para os parentes por
afinidade, um rapaz era como quatro meninas juntas e "se a família pudesse dar uma boa
educação universitária ao rapaz, a sua mãe recebia até estatuto igual ao do homem na sua tribo"
(Emecheta 1987, p.62).

Numa fase anterior da vida narrada no romance, Adah, que acalenta a esperança de viajar
para Inglaterra com os membros da sua família, trabalha arduamente e poupa para esse fim. Mas
devido a circunstâncias fora do seu controle, tem de ficar na Nigéria, acrescida e pesada
responsabilidade de pagar as propinas dos estudos do seu marido, que estuda em Londres, e da
sua cunhada, na Nigéria. Adah em ainda de cuidar de si, dos seus filhos e da família mais
próxima do seu marido (Emecheta 1987, p.30).
A postura feminista desta escritora reflecte-se muito claramente nas reacções que tem
perante estas situações. Na maioria das suas obras, as suas personagens não cruzam os braços em
atitude de auto-piedade, mas adoptam uma atitude positiva durante os períodos de maiores
dificuldades. São personagens que pensam, planeiam e concretizam. Através do labirinto de auto-
afirmação que vai percorrendo, Adah vai deixando aflorar o seu individualismo feminista e vai-se

10
O advérbio “apenas” esclarece toda a dúvida que sobre este assunto pudesse haver quanto à valia relativa entre
uma criança do sexo masculino e outra do sexo feminino.

287
tornando numa pessoa capaz de tomar e executar decisões. Se, inicialmente, Adah vê frustrados
os seus planos para viajar para o estrangeiro, muda depois o seu procedimento estratégico e, em
vez de confronto directo ou antagonismo, comportamento que iria acabar em nada, decide
proceder do modo aparentemente pacífico, mas astuto: "as cunning as a serpent but as harmless
as a dove." Com isso, progride na concretização do seu desejo, levando os seus sogros a sustentá-
la, quando depois se junta ao marido em Londres.
No fundo, esta é a mensagem central de Buchi Emecheta, a de que a mulher, mesmo
perante um sistema patriarcal opressivo, com práticas e crenças arreigadas na subordinação
feminina, deve lutar e afirmar-se. Falando de uma maneira geral, a autora faz progredir a
condição das suas personagens femininas, nesta busca de auto-afirmação. Por outro lado, a
passividade das mulheres, se bem que não desejável, por ter sido inculcada por um status quo
busca perpetuar a acomodação decorrente da tradição. Mas para Emecheta, a mensagem implícita
com a qual é fácil estarmos de acordo, é a de que uma mulher magoada não deve ficar a chorar e
a lamentar as suas mágoas, mas deve tentar resolver as suas dificuldades, através uma estratégia
de sobrevivência e reconhecimento.
Tal como acontece na vida real, através do comportamento de Francis, Emecheta demonstra
que os homens hedonistas consideram e usam as mulheres como objectos sexuais. Para Francis, o
casamento é "sexo" (Emecheta 1987, p.39). Francis queria manter uma vida sexual r/vigorosa,
mas por não pretender ter filhos, depois responsabiliza a mulher por está ficar grávida, pela
terceira vez. Além disto, os homens abusam das mulheres para satisfazerem os seus outros
prazeres. Por exemplo, em vez de trabalhar e levar uma vida digna como chefe da família,
Francis depende dos salários da sua mulher, tanto em Londres como na Nigéria, até ela não poder
suportar por mais tempo esse pesado encargo, obrigando-o a trabalhar.
Muitas vezes, Francis pensa em deixar a sua mulher, mas o facto de ser ela quem
providencia o dinheiro que ele utiliza para sobreviver faz com que ele não a abandone : “the fact
that she was still laying the golden eggs stopped Francis from walking out on her” (Emecheta
1987, p.40).
O largo sorriso na cara de Francis, quando Adah lhe fala do seu plano para que eles os
dois e também os seus filhos viajem para o Reino Unido, assemelha-se a um raio do sol depois de
uma chuva tempestuosa ("like a warm sunshine after a thunderous rain (foi como quando")
(Emecheta 1987, p.21). Isto revela-nos até que ponto ele depende dela e do que ela decida ou

288
faça.
Deste modo, seria difícil imaginar-se que o mesmo Francis faria de Adah mais uma vítima
da violência doméstica, em Londres, quando ela tenta fazê-lo reconhecer a necessidade de
trabalhar e contribuir também para manter a sua família. A sua raiva e frieza mostram-nos então a
dificuldade que ele tem em lidar com a verdade, com a realidade da vida, a par da sua vontade de
se manter ocioso, dependendo somente dos esforços da sua mulher. A sua educação e formação
baseadas na tradição e cultura da sociedade patriarcal, opressora das mulheres, fazem com que
ele veja o acto de cuidar de crianças como um trabalho destinado principalmente às mulheres e
isso também contribuiu para as dificuldades de relacionamento com Adah. Veja-se, a este
propósito, o teor das suas preocupações quando ele, um certo dia, lhe pergunta: "who is going to
look after your children for you? Francis asked one day” (Emecheta 1987, p.43). É curioso
observar que quando é altura de tomar conta das crianças, os filhos são da mãe e não dele. Vale a
pena dizer que nalgumas regiões da Nigéria, quando os filhos estão a comportar-se bem e são
famosos, eles pertencem ao pai, mas quando são malcomportados e desonestos eles então são da
mãe. (Emecheta 1987, p.43).
Tendo em conta alguns dos pontos de vista acima referidos, está claro que Francis não é
prestável como deveria ser para com Adah. É muito preguiçoso e gostaria de ter oito horas de
sono todas as noites. Se Adah se queixa de se sentir cansada ou doente, de manhã, durante a
gravidez, nem por isso ela recebe a afeição, o cuidado ou a ajuda de Francis. Como uma mulher
que ama intensamente o seu marido, Adah está desejosa de também ser amada, de se sentir
realmente casada, de ser acarinhada, mas o conceito de amor de Francis não vai para além do
sexo. A negligência sentida por Adah quase a leva ter um caso extra-conjugal, mas sendo ela uma
personagem de carácter exemplar, virá a superar esta tentação. Adah começa então a entender a
razão pela qual algumas mulheres chegam ao ponto de serem infiéis, só para se sentirem
humanas. “She understands why some young wives went to the extent of being unfaithful, just to
make themselves feel human” (Emecheta 1987, p.55)
Durante esta sua reflexão, Adah põe em causa algumas noções bíblicas sobre a criação
humana. Para ela, desde que Adão e Eva comeram a maçã, é injusto infligir todos os castigos
pesados às mulheres. Lendo o cartaz na sala de espera da cirurgia do Dr. Hudson, Adah conclui
que haverra deturpações no que lhe foi ensiando sobre a origem da nossa espécie "The ribs were
too fine, too regular to be a man’s (Emecheta 1987, p.105). Como aqui se vê, um posicionamento

289
em favor do género feminino está subjacente ao pensamento da autora e à acção da sua
personagem principal. Daqui transparece claramente que Adah contesta que o género feminino
seja apenas o resultado da derivação de uma pequena parte do esqueleto do homem. Ao assumir
esta posição, Adah está a afirmar, acima de tudo, a individualidade da mulher, um ser que existe
por si mesmo. Assume a rebeldia que lhe permitea refutar o texto bíblico e, com isso, a tradição
patriarcal, considerando ridícula a ideia defendida por Francis de que os homens têm mais
costelas que as mulheres (Emecheta 1987, p.106). E, apesar de Francis insistir na opinião de que
os homens são mais fortes que as mulheres, a verdade é que, quando chega a prova de força e
resistência, eles falham redondamente. Francis, por exemplo, mostrou ter medo de cães quando
trabalhou como carteiro, um trabalho que uma estudante negra fez com coragem, facilidade e
gosto (Emecheta 1987, p.136) Através deste passo do texto a autora consegue desmistificar o
mito que sustenta o ponto de vista de que os homens são geneticamente mais corajosos, fortes e
mais inteligentes que as mulheres.
Okpara, um indivíduo masculino da etnia Igbo, que também está a viver em Londres,
aconselha então Francis a trabalhar, a fim de sustentar a sua família e conseguir o respeito dos
seus dois filhos. Insidiosamente esta personagem nunca faz nenhuma referência a Titi, a sua filha,
porque, sendo ela uma menina, não conta para nada. Podemos dizer, perante esta atitude de
discriminação contra o sexo feminino, que a personagem de Okpara corresponde a um homem
tipicamente tradicional, enraizado na estrutura patriarcal, que quer ver a continuação da
supremacia do homem. Apesar de as duas personagens, Okpara e Francis, viverem na sociedade
ocidental, vimos que não conseguem mudar a sua opinião sobre a posição e o papel das mulheres
na sociedade. (Emecheta 1987, p.168). Adah desempenha o papel de uma personagem que
advoga maior respeito para com a mulher, num romance que foi escrito à luz de uma perspectiva
femininista e que, por isso, também retrata os homens de um modo tendencialmente negativo.

iii.b. A atração e consequências da cultura ocidental


Um dos outros grandes temas explorados neste romance é a importância dada aos valores
ocidentais em detrimento das culturas tradicionais africanas. Como se sabe, uma das
consequências negativas da colonização foi a falsa crença inculcada nos povos colonizados de
que a cultura dos (seus) colonizadores seria superior à sua (Fanon, 1967). Desse modo, a cultura
ocidental deveria ser um modelo a seguir e que levaria ao desenvolvimento rápido das colónias

290
em África e noutras regiões do globo. Para os nigerianos, que foram sujeitos à colonização, no
tempo do Império Britânico, o modo de vida dos ingleses era o padrão ideal para denotar um
elevado estatuto social cultural e político.
Para os africanos, viajar para Londres, Paris ou Lisboa era, e ainda é um pouco como ir
para o Paraíso. O Reino Unido representa as maiores aspirações para as pessoas que vivem nas
colónias: a perspectiva de uma boa educação e a oportunidade para adquirirem altos valores
culturais, e tornarem-se "civilizados" e sofisticados. Buchi Emecheta, é um bom exemplo de uma
nigeriana que não foi capaz de resistir à atracção de viajar para o Reino Unido. Lamentavelmente,
a aquisição das culturas e dos valores dos colonizadores brancos tende a fazer com que os
africanos desprezem as suas próprias culturas autóctones. A crítica que Adah faz a algumas das
crenças, práticas tradicionais, superstições e tabus do seu povo Igbo podem derivar da sua
educação ocidental. Ela vê o seu povo e o seu modo de vida, através do olhar de um europeu.
O desejo de se tornarem europeus causa inevitavelmente alguns sentimentos de
inferioridade nos africanos11 Fuss (1994, p.25-6; Gates, p.485). As mulheres Ibuza que residiram
em Lagos pintaram o cabelo, e desfrisaram-no com pentes quentes para se parecerem com as
europeias: “They dyed their hair, and straightened it with hot combs to make it look European”
(Emecheta 1987, p.2). E esta prática ainda continua na Nigéria de hoje. No que toca ao ensino,
observamos que, mesmo depois da partida dos colonizadores, nenhuma das línguas nigerianas
indígenas (Bamisile, 2006, p.89) foi ensinada nas escolas, como foi demonstrado na escola
primária de Ladi-Lak Institute.
Os políticos nigerianos, tal como Nwezeh, que foram educados em Inglaterra, usam
polissílabos e palavras muito rebuscadas e difíceis de pronunciar, para mostrarem a sua
competência e conhecimento da língua inglesa e, sobretudo, para cativarem as mentes do
eleitorado e, com isso, ganharem mais votos. Ao contrário dos políticos, Emecheta e Adah, a sua
personagem, usam palavras simples. São mais sinceras e não lutam por criar falsas impressões
acerca da sua competência e conhecimento desta língua.
O romance refere também o exemplo de alguns estudantes nigerianos que vão para
Inglaterra, falham nos seus estudos e não conseguem regressar à Nigéria; arranjam mulheres
brancas nos bares, casam com elas e têm muitos filhos mestiços, talvez como forma de

11
Veja Fuss, Diana. "Interior Colonies: Frantz Fanon and the Politics of Identification." Diacritics (Summer-Fall
1994): 20-42; Henry Louis Gates, 'Critical Fanonism' in Critical Inquiry vol 17 no 3 Spring 1991 p 485.

291
levantarem o seu ego ou mesmo fazerem a críticas aos primeiros mestres coloniais. Pa Noble
exemplifica este tipo de comportamento. Um outro exemplo é o de algumas personagens
africanas se humilharem por uma pequena contrapartida, por um pingo de cerveja. Mr Nobles tira
as calças para o seu companheiro branco que quer descobrir se os africanos têm ou não rabo. Ele
é ‘tão digno’ que faria qualquer coisa, até um esforço desumano, para procurar o favor dos
brancos.
A assimilação cultural é um dos riscos implícitos a uma vida cosmopolita, como nos
testemunha Buchi Emecheta. Aqueles que já estiveram no Reino Unido, regressam à Nigéria
completamente transformados. Lawyer Nwezeh é exemplo desta transformação. Quando regressa
à Nigéria depois de completar a sua educação, ele é um homem mudado, que já não se consegue
adaptar12 à cultura africana. Por exemplo, já não consegue comer as comidas típicas africanas –
deixa de ser capaz de engolir farinha de inhame e já não consegue comer um pedaço de osso. A
carne que cozinharam para ele, teve de ser estufada durante dois dias "até que ficasse quase uma
polpa" (Emecheta 1987, p.10).
Observamos que Lawyer Nwezeh perdeu o espírito comunal de África. Decepcionou o
povo Ibuza que pensou que ele usaria a sua influência para desenvolver os serviços sociais ou
introduzir instalações modernas como eletricidade, água canalizada e uma estrada pavimentada
para a sua cidade natal. Esta personagem, com este tipo de anseios, parece ser influenciada pelo
espírito de uma cultura de maior comodidade, individualista e egocêntrica, como é a do povo
britânico retratado no romance. Por oposição, o povo africano surge representado como vivendo
tradicionalmente numa espécie de vida comunitária onde havia entre-ajuda e solidariedade entre
todos. Neste sentido, Lawyer Nwezeh trai o povo Ibuza, quando se torna ministro no Norte da
Nigéria, acumulando riqueza somente para si (Emecheta 1987, p.22) em detrimento da felicidade
e bem-estar do seu povo. Um típico exemplo desta ganância é a sua decisão de prestar serviço
judicial a um multimilionário de etnia Hausa que foi acusado de falsificar notas para se tornar
milionário. Desta maneira, o advogado Nwezeh contribui para a degeneração de valores e do
modo de ser dos nigerianos. Ele como tantos outros que viajaram para a Europa, e regressam
depois ao seu país com uma diferente postura ética pretensamente sofisticada. Portanto, a
ocidentalização, é aqui apresentada como tendo efeitos nocivos no modo de vida dos naturais dos

12
Sobre o conceito e o processo do integração veja Myrdal, 1967, p.573, Rolim (1982), Balassa,
1961, p.25 e Machiup (176)

292
países de África.
Por sua vez, a educação europeia é um dos valores ocidentais desejados pelas personagens
nigerianas do romance. Para a maioria deste povo, ela é um “meio para se conseguir uma vida
melhor e maior prosperidade" (Emecheta 1987, p.81). Por isso, Adah procura adquirir essa
educação e é relativamente bem sucedida nesse esforço, enquanto Francis continua a reprovar nos
seus exames de contabilidade. A educação servirá como rampa de lançamento para a afirmação
das mulheres e vai permitir-lhes escapar da opressão e da tirania masculinas. Pensamos que o
desejo ardente de Adah de conseguir a qualidade da educação inglesa, para si e para os seus
filhos, é uma formulação do seu desejo de liberdade. Como referimos anteriormente, se ela
pudesse dar às suas filhas uma educação universitária, elas poderiam obter um estatuto
equivalente ao de um homem entre os Igbo. (Emecheta 1987, p.62). A sua luta para dar aos seus
filhos uma educação inglesa é assim o modo de ela e a sua família se libertarem da pobreza e
melhorarem o seu estatuto social no seio da família do marido e na sociedade em geral. E
finalmente, com muita dedicação e empenho, ela conseguirá realizar o seu sonho.

iii.c. Imigração – dificuldades, diferentes categorias de cidadãos


Outro aspecto que Emecheta sublinha neste seu livro é a questão da discriminação racial,
pois, até certo ponto, os imigrantes negros e os imigrantes do terceiro mundo são geralmente
discriminados na sociedade ocidental, e a Inglaterra não é uma excepção nesta ocorrência. Em
Londres, há uma permanente falta de alojamento para os imigrantes “de cor”, nomeadamente os
africanos, os asiáticos, os sul e centro americanos. A casa que interessa a Francis para ali alojar a
sua família, não tem casa de banho nem cozinha e a retrete é no exterior, quatro lanços de escada
mais abaixo. Adah fica horrorizada por ter de partilhar o seu apartamento com outros nigerianos
que têm formação escolar de nível inferior e idêntico à dos seus criados em Lagos, na Nigéria.
Para poder ultrapassar este choque e desilusão, Francis responde-lhe dizendo que ela já deveria
saber que a situação na Nigéria era diferente, pois todos os imigrantes “de cor” são considerados
seres inferiores e de segunda categoria, em Londres. “You must know, my dear young lady, that
in Lagos you may be a million publicity officers for the Americans; you may be living like elite,
but the day you land in England, you are a Second-Class Citizen13. So you can’t discriminate
against your own people, because we are all second class citizen” (p.37). Ele acrescenta que "em

13
Esta frase também faz referência ao título do romance que já analizamos nos passos anteriores.

293
Inglaterra, a classe média negra é a única que terá a sorte de conseguir o posto de motorista de
autocarro." (Emecheta 1987, p.37)
Tendo em vista o comportamento de Francis, parece que ele aceita e se conforma com o
racismo da sociedade ocidental, como uma norma, e vive com isso- Mas a sua esposa, Adah
recusa aceitar esse facto e luta contra tal tendência. Numa das suas inúmeras tomadas de posição
contra a discriminação racial, ela apresenta queixa contra Trudy, a ama dos sus filhos, nos
Serviços de Apoio às Crianças, mas daí nada resulta. Talvez se a queixosa fosse uma mulher
branca a ama viria a ser punida.
Contudo, sendo uma mulher lutadora, Adah não se deixa abater e, resolutamente luta
contra a alegação de que os imigrantes negros não podem viver com os seus filhos, uma vez que
ela, com muito esforço e sacrifícios, consegue melhorar a sua situação profissional e mesmo a do
seu próprio casamento. Mas o sucesso por ela obtido torna-se depois numa fonte de inveja para os
seus vizinhos nigerianos. Adah fica admirada com as atitudes dos seus contemporâneos e, por
isso, interroga-se se a verdadeira discriminação que ela sente não é em grande parte um resultado
da acção dos cidadãos do seu próprio país e não dos brancos (Emecheta 1987, p.70).
No seu desânimo, Adah vem a saber que o facto de ser negra faz com que ela não consiga
arranjar um bom emprego. Consequentemente, começa a considerar que qualquer coisa bonita e
pura é destinada aos brancos e qualquer coisa inferior é dada aos negros. Contudo, rejeita a ideia
de que os negros devam conformar-se com valores inferiores e renunciar aos seus anseios, uma
ideia que Francis, pelo contrário, assimilou.
Frantz Fanon em “A experiência vivida do Negro” diz-nos que a noção de
“inferioridade” dos negros decorre da relação de diferença que se estabelece com “o outro”
quando o homem negro vem para o mundo dos brancos (Fanon 1967, p.323). Fanon defende que
esta psicologia é inculcada no homem negro pela diabolização que dele se vai dizendo no
ocidente, através de afirmações repetidas e depreciativas como as seguintes: “O Negro é símbolo
do mau e do feio. (…) As crianças brancas fogem deles apavoradas e atiram-se para o regaço
materno em busca de protecção, dizendo: . … Mamã , vem aí um negro para me comer”. (Fanon
1967, p.188-9). Perante o retrato de situações como esta, os negros sentem que a sua pele é um
uniforme identificador de tudo quanto é feio e mau. E assim o negro fica consciente de que o
mundo dos brancos, o único com dignidade, se fecha à sua participação (Ibid. p.324). O retrato
deste preconceito é claramente apresentado em Second Class Citizen, por exemplo, quando

294
Francis diz à mulher que em Londres os privilégios pertencem aos cidadãos de primeira classe,
aos brancos, não a eles. Tal como a maioria dos imigrantes, Francis quer ser equiparado à dita
“raça superior”, usando o seu modo de falar com correcção. Também por isso, nunca quer que os
filhos falem nenhuma das suas línguas nativas, mas apenas o inglês14. Como diz “ um homem
inteligente [é] julgado pela maneira como se exprim[e] em inglês” Emecheta 1987, p.43-4). Num
passo conhecido de Pele Negra, Máscaras Brancas, Frantz Fanon também descreve a linguagem
como um instrumento poderoso para rivalizar com “o outro”. Falar uma língua é “ assumir uma
cultura e estar em conformidade com o peso próprio dessa civilização” (Fanon 1968, p.17-8). Por
esta razão, o negro que viaja para a Europa “fecha-se no seu quarto e lê em voz alta durante horas
a fio para apreender a dicção correcta, com a expectativa de que isso o vai ajudar a quebrar
barreiras”. (Fanon 1968, p.21).

Um episódio de Second Class Citizen lembra-nos o poema "Telephone


Conversation" de Wole Soyinka. Depois da renda ter sido negociada entre Adah, a futura
locatária, e a senhoria, ao telefone, a descoberta da identidade de Adah torna-se um problema
sério. É interessante notar que Adah fala pelo nariz, fazendo uma voz fanhosa de modo a
esconder o seu sotaque africano ao telefone. A ridícula ideia de pintar a cara e esconder o rosto
com o cachecol e ir a casa da senhoria, já de noite, para esconder a cor da pele, satiriza a
estupidez do racismo. A senhoria de Hawley Street fica tão chocada ao descobrir que os seus
supostos locatários são negros que, embora faça várias tentativas para falar, mal consegue fazê-
lo. Quando finalmente consegue recuperar o fôlego, os quartos já foram alugados!
A sua reacção é semelhante à da senhoria branca em "Telephone Conversation", poema de
Wole Soyinka. A única diferença é que a presença física dos possíveis locatários negros
intensifica o choque da senhoria de Hawley Street e aqui não há nenhuma maneira para mascarar

14
Devido à influência do seu pai e apesar de não ter competência para se expressar fluentemente em Inglês, Titi -
explicar quem é obrigada a falar esta língua, o que fez com que ela se queixe à amiga da sua mãe de, sempre que
usaa língua que sabe falar, o pai a castigar: “I dont know much English, my father will beat me if I speak in
Yoruba” (Emecheta, 1987,p.53). Esta atitude do seu pai tem um efeito devastador na personalidade da menina. Adah
explica a génese do problema e a razão que levou Francis a obrigar a sua filha a não falar a língua indigena: "Era
devido ao facto de a Nigéria ter sido governada por muito tempo pelos ingleses” (Emecheta, 1987,p.53). Desta
maneira, Francis quer que os seus filhos falem somente a língua inglesa, porque essa é “a língua do patrão”, a língua
padrão da civilização e educação. Acima de tudo, acredita que a língua inglesa tem maior estatuto que as línguas
indígenas da Nigéria.

295
a sua atrapalhação15.
Contudo, é importante notar que Emecheta também retrata o lado positivo da cultura do
povo britânico. Os britânicos amam as suas mulheres e mostram afeição por elas. Alguns são
simpáticos e também mostram bondade para com Adah, uma estrangeira, para eles. Por exemplo,
a encarregada do jardim-de-infância em Lindhurst Hall, faz chá para Adah, pede para ela
descansar, e oferece-se para lhe levar e devolver Titi ao meio-dia e, se necessário, tomar contar
da rapariga até que Adah recupere as suas forças. Durante o Natal, a senhora Konrad, uma checa,
a chefe de Adah em North Finchley Library, oferece-lhe três brinquedos para os seus filhos
(Emecheta 1987,p.138). Num gesto da amizade e solidariedade, os seus colegas de trabalho na
biblioteca também contribuem com uma quantia em dinheiro para lhe comprar um casaco
vermelho de lã. Isto faz com que ela afirme que os seus colegas de trabalho são pessoas muito
amáveis (Emecheta 1987, p.125-126).

A dificuldade de viver com os filhos era assim devidamente notada por Emecheta. Como
foi retratado neste romance, devido às condições desfavoráveis de vida, somente os cidadãos de
primeira classe (os brancos com largas posses) viviam com os filhos, não os negros (Emecheta
1987, p.46). Aos imigrantes negros era-lhes negada a alegria de criarem os seus próprios filhos,
em permanência. Em Inglaterra, “as crianças nigerianas têm duas espécies de mães - a mãe natal,
e a mãe social" (Emecheta 1987, p.44). Devido a alguns factores económicos e ao desejo de
serem tratadas como mulheres brancas ou terem nacionalidade britânica, as raparigas nigerianas
preferem pais adoptivos brancos. Podemos dizer, sem meias palavras que esta atitude comprova a
sua busca de "whiteness". (Fanon,1952, p.8, p.109, p.116-117, p.140)
Emecheta, de um modo muito explícito, apresenta a dificuldade que Adah, mãe
trabalhadora, tem em cuidar dos seus filhos. Como se sabe, ser mãe é em si um trabalho a tempo

15
Adah sabe bem da importância de uma dicção correcta quando se pretende alugar uma casa em Inglaterra. Para ser
tida como um elemento da raça superior ela terá de falar inglês fluente e imitar a pronúncia dos ingleses. Por isso
pratica essa pronúncia em voz alta, procurando falar como os londrinos e só quando fica satisfeita com o resultado é
que liga para a senhoria que tem uma casa para alugar. De outro modo, ela nem seria atendida. Temos assim que o
modo de falar define quem faz parte de um ou outro grupo humano. Por esta razão Humi Bhabha em The Location of
Culture diz que a imitação é “uma das estratégias mais efectivamente actuantes do poder colonial” (p.85). O
objectivo da necessidade de imitação é a criação de um “outro” que é “quase o mesmo, mas não exactamente o
mesmo” (86). Como a imitação é sempre uma representação parcial, “não há verdadeira identidade por trás da
máscara que se mostra” (88). Mas como esta autora também refere em passo posterior “ a ameaça que advém da
imitação consiste da sua dupla visão, a qual leva a que se ponha a nu a ambivalência do discurso colonial e se
desacredite a sua autoridade … a questão da representação da diferença é sempre um problema de autoridade” 88-9.

296
inteiro e, desde que Adah teve que ganhar algum dinheiro para alimentar os seus filhos, procura
uma ama diária. Uma desconhecida para ela, Trudy, a ama que ela conseguiu arranjar, é uma
prostituta e vem a revelar mau caracter, como, por exemplo, quando se apropria dos suplementos
de alimentação destinados aos filhos de Adah e que esta lhe confiara para este fim. Em vez disso,
Trudy come estes suplementos ou dá-os aos seus próprios filhos, fazendo o mesmo com os
brinquedos comprados por Adah, para que os seus filhos passem a brincar mais entretidos. Esta
ama maldosa não toma conta dos filhos de Adah, devidamente, apesar de receber um salário para
esse efeito. No dia em que Adah lhe faz uma visita surpresa, ela encontra a sua filha Vicky suja e
sem fralda, entretida a mexer no caixote de lixo, enquanto Titi lava as mãos e a cara com água
que escorre continuamente nos lavabos. A educação dos filhos é uma tarefa absorvente na
sociedade ocidental, enquanto em África as crianças crescem mais livremente, tantas vezes
entregues a si próprias.

O romance Second Class Citizen também retrata a preocupação da mãe perante o atraso
da sua filha, Titi, em falar. Fica perturbada e receia que os órgãos da fala da menina sejam
defeituosos; a doença do filho, Victor, causada pelo vírus da meningite, dá-lhe muita
preocupação. Adah também responsabiliza, Trudy porque acredita que Victor apanhou a doença
na casa da ama. Face a esta situação, podemos dizer que a maternidade e a prestação de cuidados
maternais nesta sociedade podem envolver riscos e serem mesmo prejudiciais para a saúde das
crianças em caso dos descuidos das amas, ali supostamente frequentes.
Neste romance, dá-se especial atenção à dor do trabalho de parto. Durante o parto do
primeiro bebé, Adah grita não de dor, mas pelo facto de o bebé estar a demorar a nascer. Isto
leva-a a recear perder o seu bebé e a sua própria vida. Contudo, quando o bebé nasce, a dor e a
alegria de ser mãe não são vividas pois, então, “est[á] completamente inconsciente" (Emecheta,
1987,p.100). Adah perdera muita energia a gritar, tendo ficado exausta e descontrolada. E tem de
se submeter a uma cesariana porque a criança está atravessada no útero. O bebé fá-la sofrer muito
e isto faz com que ela pense que a sua morte já chegou. O trabalho de parto não assistido era um
grande risco, algo que ameaçava a vida das mulheres. Uma mulher atraente que era invejada por
Adah morre alguns dias depois de deixar a ala da maternidade. Contudo, apesar de todos estes
riscos, a alegria da maternidade é inquantificável, o que leva Adah a declarar que - " por vezes ela
vivia nos seus filhos” (Emecheta 1987,p.58). Esta declaração vem apoiar a teoria de que na

297
cultura e nas tradições nigerianas, as crianças são muito valorizadas, sendo aí consideradas a
razão principal da vida e das canseiras diárias, designadamente da mulher.
As futuras mães têm, muitas vezes, de se pôr nuas para serem examinadas na clínica pré-
natal. Isto preocupa Adah, ao princípio, mas depois já não a aborrece porque, segundo ela, isso
faz parte dos “ritos da maternidade”. Adah pergunta-se então, "porque devo ficar envergonhada
do meu corpo"? (Emecheta 1987,p.151). Na clínica de planeamento familiar, Adah vem a saber
através de uma mulher oriunda das Caraíbas que a pílula tem efeitos secundários e causa
irritações, entre outros inconvenientes. O uso de contraceptivos é ainda outro problema para as
mulheres que não querem ficar grávidas, isto por que o “gel contraceptivo exige que o marido
tenha de esperar que este derreta, até poder ter relações sexuais”, (Emecheta 1987,p.152). Assim,
Adah opta pela colocação de um tampão intra-uterino, devido ao facto de o uso do gel ser pouco
prático. Mas, de acordo com Adah, este dispositivo intra-uterino fá-la sentir-se desconfortável e
não consegue andar adequadamente. Todos estes cuidados contraceptivos tornam difícil a vida
das mulheres. E, depois, a gravidez também deforma a silhueta do corpo. Sem dúvida, Emecheta
presta toda a atenção aos problemas especificamente femininos, designadamente, aqueles que
estão ligados à sua capacidade de gerar vida, à sua decisão de ser mãe e assumir,
necessariamente, a responsabilidade de sustentar os filhos que, sem métodos contraceptivos,
seriam sempre uma carga pesada e numerosa.

As desigualdades de tratamento entre homens e mulheres, por razões de género, são tão
antigas que desde sempre as vemos inscritas nos próprios textos bíblicos. Em denúncia disso,
Adah não se coíbe de destacar algumas das contradições básicas da Bíblia. Ela acha que a palavra
de Deus é tão elástica que poderá ser usada para legitimar qualquer comportamento humano, seja
ele certo ou errado. Deste modo, ela justifica o motivo porque enterrou dois xelins, invocando o
trecho bíblico que manda as pessoas serem tão espertas quanto a serpente e tão inofensivas
quanto um pombo, conforme as circunstâncias (Mat 10:16). Reza para que Deus mande o seu
primo Vincent para o inferno, por este ter batido nela cruelmente e por ter mentido sobre os dois
xelins. Depois justifica o seu ódio para com o primo pelo facto de Deus também odiar o Diabo.
Desculpa as suas preces em nome de Obashi e, mastigando os frutos de Kola, oferecidos à deusa
do rio, invoca os ensinamentos de Jesus na expressão de "dar a César o que é de César e a Deus o
que é de Deus”. Adah ainda argumenta que Jeová é um Deus ciumento. Além disso, para Adah,

298
os preguiçosos e os pobres, como Francis, podem dizer "O meu reino não é deste mundo" e os
racistas que acreditam na inferioridade da raça negra podem dizer "Escravos, obedeçam aos
vossos mestres" (Emecheta 1987, p.104). Francis encontra bastantes passos bíblicos que servem
para apoiar a sua posição de chefia e pregar sermões à sua mulher sobre o papel da mulher
virtuosa.
Sendo uma seguidora das ideias feministas, Buchi Emecheta critica o papel secundário
atribuído às mulheres, no cristianismo. Reprova o abuso da palavra "irmão" para todos os homens
e "irmã" para todas as mulheres. A sua crítica da doutrina e terminologia cristãs não inclui, no
entanto, o uso da palavra "Brethren" ou "Iman" tanto para homens como para mulheres. Acha
intrigante a ideia de uma mulher ser feita de uma costela tirada de um homem. Isto é muitas vezes
usado para justificar o estatuto subserviente das mulheres. Desejava ter tido um marido que
pudesse ter sido paciente durante os dezoito anos antes do nascimento do primeiro filho e que a
pudesse amar, não pelo dinheiro, mas pelo que ela é. Considerando todas as desigualdades de
oportunidade, esta autora responsabiliza directamente o mundo patriarcal pelo sofrimento das
mulheres e pela injustiça que as mulheres têm enfrentado, desde tempos imemoriais até a
presente data. "The whole world seemed so unequal, so unfair. Some people were created with
all the good things ready made for them, other were just created like mistake. God’s mistakes
(Emecheta 1987,p.120). É neste ponto que Second- Class Citizen se aproxima do tema universal
do sofrimento registado em A Question of Power (1974), de Bessie Head.
Sendo uma pessoa que tem vivido entre os dois mundos, a África e a Europa, Emecheta
traz para o seu texto as incidências de uma vida repartida pelas culturas destes dois continentes.
Assim, ao longo desta obra de cariz autobiográfico, há uma tentativa consciente de se fazer uma
comparação entre a cultura nigeriana e a cultura inglesa. As forças e fraquezas das duas culturas
são aqui claramente salientadas. O sistema familiar alargado e comunitário existente na região de
Lagos, Nigéria, modera o problema da solidão com que Adah se confronta depois em Londres,
mas não permite que um casal jovem planeie a sua própria vida, pois na Nigéria tradicional são
os mais velhos que o fazem, ao tomarem decisões cruciais para a vida dos mais jovens. É o pai de
Francis quem planeia que o seu filho e Adah vivam uma vida matrimonial. O plano do seu sogro
é o de que Adah deverá ficar em Lagos e continuar o seu trabalho bem remunerado no Consulado
Americano, isto para que ela possa pagar a viagem do seu marido, Francis, para Inglaterra e o
apoie financeiramente, durante três anos, cuidando ainda da família alargada do marido em

299
Lagos. Em África, a família alargada e todos os seus parentes têm um papel de co-
responsabilidade ao prestarem grande ajuda às mães de bebés recém-nascidos e à mãe lactante. A
ausência deste tipo de organização familiar em Inglaterra faz com que as mães nigerianas
entreguem os filhos a pais adoptivos.
Emecheta diz-nos que em Lagos, onde há terreno disponível em abundância, as casas são
construídas com jardins e quintais dos dois lados, e ainda um recinto na parte de trás, com
varandas na frente da casa. Em Londres, as casas estão juntas para se economizar terreno.
Somente as cores das caixilharias das janelas indicam quais as janelas que pertencem a
determinadas portas de entrada. Nesta grande cidade, em que cada um parece viver para si, há um
problema que é a alienação e a solidão: "is a society where nobody was interested in the problems
of others" (Emecheta 1987, p.66). Se Adah estivesse na Nigéria, teria discutido a miríade dos
seus problemas matrimoniais com os seus amigos e vizinhos e provavelmente procuraria a
intervenção dos mais velhos, da família do marido. Em Lagos, à tarde, as pessoas estariam todas
nas varandas, falando e comendo, enquanto que "em Inglaterra, as pessoas se fechame dentro de
casa" (Emecheta 1987, p.108). Fica assim denotado que em Inglaterra, tudo é muito formal e
sério. Os procedimentos contra a lei têm uma grande penalização social. Também por isso, os
pequenos delitos, tão comuns na Nigéria, não são frequentes no Reino Unido. Assim não é
“normal” alguém roubar em Inglaterra, pois que o sistema de segurança é ali muito eficaz, ao
contrário do que acontece na Nigéria, onde é frouxo e sujeito a subornos. (Ibid.).

Buchi Emecheta assume assim uma posição feminista pluralista decorrente da sua
mundividência, o que lhe permite conciliar valores feministas africanos e ocidentais. Ao procurar
designar o seu posicionamento, declara ser partidária de um feminismo com “f” pequeno em que
esse “f” minúsculo representa a modificação de um feminismo ocidental que incorpora valores
africanos. A conciliação das teorias feministas ocidentais com os propósitos particulares das
feministas africanas resultará numa força nova que porá fim à marginalização das mulheres e lhes
dará mais vigor na luta que cresce em África, visando alcançar maior poder para as mulheres,
face à situação de desfavor em que um dos géneros se mantém, relativamente ao outro, por força
de tradições segregacionistas que a colonização reforçou. Este propósito é claramente perfilhado
por Buchi Emecheta em Second Class Citizen. Neste texto, tanto a organização patriarcal africana
como a colonização ocidental são forças que se conjugam para a opressão da mulher africana.

300
Emecheta mostra-nos neste romance, bem como no conjunto da sua obra que ambas as culturas
promoveram a marginalização da mulher africana. Para ela, essa culpa é conjunta e nenhuma das
culturas (africana ou ocidental) pode ser referida como meritória, por si só. Esta autora, por ter
vivido no seio da cultura africana (igbo, da Nigéria) e na da Europa ocidental (inglesa), é um
veículo privilegiado para representar junto dos seus leitores os méritos e deméritos de ambos os
mundos. É com o conhecimento desta perspectiva que devemos fazer uma abordagem ao trabalho
de Emecheta, cuja visão plural dos problemas sociais lhe permite identificar-se simultaneamente
com aspectos essenciais dos feminismos ocidentais e africanos, tal como se patenteia nos seus
romances.

iv. A análise de personagens em Second Class Citizen


A análise de personagens é necessariamente importante em obras literárias como Second
Class Citizen, de marcado registo autobiográfico. Neste romance, a autora, Buchi Emecheta, cria
duas personagens principais. Adah e Francis, marido e mulher. São personagens tridimensionais,
que se desenvolvem e se transformam segundo os incidentes através dos quais o romance evolui.
Adah, a personagem principal, é a mais activa e dinâmica. Nenhuma das personagens secundárias
é tão rica e complexa como ela. E Emecheta não usa as suas personagens para representar ideias
abstractas. Sejam quais forem as ideias representadas pelas personagens, elas são, antes de mais,
seres humanos, personalidades de perfil bem individualizado. São credíveis, reais. Não são anjos
e também não são retratadas como demónios. Contudo, as personagens do sexo masculino são em
geral retratadas depreciativamente, enquanto que as do sexo feminino são representadas com um
registo positivo.

iv.a. O retrato de Adah, a personagem feminina em Second Class Citizen

Adah, a protagonista de Second Class Citizen é uma personagem que se caracteriza pela
sua evolução ao longo do romance. Inicialmente retratada como ingénua mas ambiciosa, ela
deseja sair do lugarejo esquecido de África onde nasceu e partir à conquista do mundo. Adah
funciona como persona de Emecheta no romance Second Class Citizen. É através desta
personagem que fica delineada a biografia da autora, como se esta não fosse a de quem a escreve.
Adah, nasceu em Lagos, durante a Segunda Guerra Mundial. Devido à falta de um Serviço de

301
Registo de Nascimentos no seu bairro, e principalmente por se tratar de uma criança do sexo
feminino, os seus pais não atribuíram importância ao dia do seu aniversário, nem à sua verdadeira
data de nascimento, que nem sequer foi registada. Assim, através desta personagem, podemos
verificar que a discriminação contra as mulheres começa desde o nascimento e prossegue até a
idade adulta. Neste romance, os seus pais de Adah mandam Boy, o seu irmão mais novo, para a
escola, enquanto que ela é obrigada a ficar em casa.
Por isso, certo dia ela escapa de casa e corre até à escola para ver realizado o seu sonho de
ser escolarizada. Adah tem uma percepção negativa da condição de mulher devido à dolorosa
experiência de infância que teve junto de sua mãe, que fora educada a aceitar-se como um ser
inferior, imagem criada pela sociedade patriarcal. Isso terá feito com que ela, em reacção a essa
aceitação passiva, se tornasse depois beligerante e hostil para com atitudes de acomodação, face à
situação de desfavor das mulheres na sociedade tradicional africana. Enraizada na tradição desta
cultura está a contínua censura ao desejo da sua filha em frequentar a escola. Este ditame da
tradição leva a sua mãe a não deixar o seu marido mandá-la para a escola, onde ela poderia
adquirir a educação ocidental que lhe seria tão útil para a conquista de uma futura liberdade, com
independência de movimentos e autonomia económica. Assim, o seu desejo, desde criança, é ir
para Inglaterra, uma espécie de sonhado paraíso. Este desejo virá a ser concretizado por via do
casamento, já que Francis, o homem com quem Adah se casa à pressa irá estudar para Londres.
Adah é ambiciosa, determinada e corajosa. Também por isso, se recusa a chorar, quando o seu
primo Vincent a açoita cruelmente durante duas horas com um chicote de cavalo-marinho, por ela
ter mentido acerca de dois xelins que escondeu O açoite é tão doloroso que, depois de contar até
cinquenta, o executante do castigo tem de apelar a Adah para que ela chore um pouco. Entretanto
não há nada para confessar ou chorar – o seu desejo é o de ir para a Escola Secundária Metodista
destinada a raparigas, ou então morrer. Para poder fazer frente a este castigo, Adah concentra a
sua mente neste ansiado desejo ou sonho. E assim acontece que, depois da dor dos primeiros
açoites, a sua pele endurece, assim como o seu coração (Emecheta 1987, p.17). Adah mantém-se
focalizada no seu sonho de ser escolarizada e não permite que nenhuma situação, por mais difícil
que seja, a desconcentre ou distraia. É absolutamente determinada quanto a este objectivo.
Adah recusa casar com todos os pretendentes ricos e velhos, que incitados pelos seus
parentes cupidos a aproximarem-se dela. Com o intuito de impedir o início de namoro com estes
pretendentes, ela insulta-os com canções e se estes continuam a perturbá-la, fura as rodas das

302
bicicletas deles. Não aceita casar-se com um homem que a transforme numa escrava.
Neste romance em estudo, Adah é apresentada como uma personagem ingénua que
consente em casar-se com Francis, sem ter então nenhuma noção das responsabilidades que está a
aceitar, nem dos riscos de privação de liberdade e individualidade implícitos num casamento com
um homem africano de mentalidade tradicional. No decorrer da vida de casados, e já num país
que ela pensava ser o paraíso, Adah irá aprender que os idealismos ingénuos que apresentam o
casamento e o estrangeiro como contos de fadas são apenas duras quimeras. Com o tempo, Adah
percebe que Francis, o seu marido, é um oponente e não um aliado no seu desejo de conseguir
tornar-se uma mulher autónoma e uma boa escritora. A evolução que esta personagem vai tendo
será idêntica à que Emecheta desejará para a mulher africana, em geral. O reconhecimento de que
a mulher precisa de libertar-se de um marido ocioso, explorador e manipulador é um alerta contra
todos os valores da tradição, segundo os quais uma mulher se reduz à dependência de um
homem, designadamente do marido que literalmente, a “possui”. No fim do romance Adah é já
uma mulher independente do seu marido, senhora do seu destino e mantendo ainda, em exclusivo
a custódia e a educação dos seus filhos.

O seu inconformismo leva-a a lutar sem desfalecimento pela igualdade e pela justiça
social e deste modo, vemos que Adah protesta energicamente por ter sido injustamente castigada
pelo Director da Escola. Ela não se contém e morde Latifu, o rapaz que lhe saltou para as costas,
para ela ser castigada. A mordidela que ela lhe dá é de tal modo grave que Adah fica com o
apelido de "the Igbo tigress" (a mulher tigre dos Igbo). Mais tarde, em Londres, quando o marido
se torna num violento agressor, em casa., Adah retribui-lhe essa violência, com a mesma medida.
Sendo uma personagem diligente, esperta e trabalhadora, Adah tem um desempenho tão
bom no exame de admissão escolar que logo lhe é oferecida uma bolsa de estudo para frequentar
o liceu. De imediato, consegue arranjar emprego na Biblioteca do Consulado Americano e casa-
se com Francis, que quer ser contabilista, mas que mais tarde vem a ser um falhado, devido à
preguiça e à falta de ambição. A má escolha, no que respeita ao marido, mostra que Adah não
sabe tudo, mas é inteligente e procura remediar e melhorar sempre a sua situação.
Adah é muito dedicada, empenhada e persistente. Faz planos e segue esses planos à risca,
porque acredita neles e não porque os outros os tenham feito para ela. Recusa-se a chorar com as
irmãs de Francis no aeroporto, porque está já ocupada a ponderar sobre as consequências da ida

303
de Francis para Inglaterra, o pesado encargo financeiro que ela terá de suportar, o problema da
atenção particular a prestar ao seu filho menor, bem como e ao que ainda está no seu ventre, e
acima de tudo, como superar a dor da separação física que está prestes a acontecer. Enquanto isto,
as irmãs de Francis estão apenas preocupadas com a distância a que vão ficar dele. Adah é uma
personagem sensata, bondosa e até certo ponto astuta. Ela dá todos os seus colares de pérolas e os
dos seus filhos à sua sogra, como uma forma de aliciamento para as suas pretenções. Desta
maneira, obtém a autorização da sogra para levar consigo os filhos para Inglaterra.
Depois, virá a a decepcionar-se com a situação em Inglaterra. E ali queixa-se contra a
falta de condições no apartamento arranjado por Francis. Sendo uma recém-chegada, descobrirá
ainda outras realidades amargas em terras de sua majestade. Mas devido à sua auto-confiança e
auto-determinação, recusa-se a ceder à pressão do marido para trabalhar numa fábrica de camisas,
porque considera este tipo de trabalho humilhante e muito abaixo do que desejava. Por sorte, virá
a conseguir arranjar um emprego bem pago na biblioteca de North Finchley, facto que
futuramente se tornará numa fonte de inveja para o seu marido e alguns amigos. É importante o
exemplo de Adah, pois prova que mesmo uma cidadã de segunda classe, quando fortemente
determinada, pode conseguir um trabalho de primeira classe.
Adah recorre ao conforto das orações sempre que não sabe o que fazer. Reza pela
resolução do problema da fala de Titi, para conseguir uma creche para os seus filhos e também
para conseguir arrendar dois quartos em Hawley Street. Reza ainda por Francis, espera que Deus
lhe dê um sinal que confirme que ela não está a mentir por ter-se recusado a fazer amor com
Francis, na convicção de que as dores que sentia no ventre são de uma gravidez. E, dada a sua fé,
ela está confiante de que vai conseguir um emprego. Reza ainda para que Deus faça o marido
vestir a sua camisola de lã e se apresente bem vestido, para não ficar envergonhada perante as
parteiras, e ainda para que ele não torne conhecida a dificuldade e a pobreza da sua família
perante toda a gente. Reza ainda a Deus para não ter dificuldades durante o trabalho de parto do
seu terceiro filho; finalmente implora e pede perdão por fazer outros planos de controlo de
natalidade, sem que o marido o saiba, e também por distorcer os factos ou mesmo mentir quanto
diz que vai levar Bubu a tirar fotografias, quando o verdadeiro propósito dessa saída é poder
acompanhar ao consultar de planeamento familiar.
Embora seja crente e religiosa, Adah não é uma cristã fundamentalista que ponha em
causa alguns ensinamentos de Jesus Cristo, como por exemplo, o ensinamento que obriga os seus

304
seguidores a amarem o seu inimigo. Ainda que não seja boa a mentir, procura ser tão astuta como
uma serpente e tão inofensiva como um pombo. O referido caso dos dois xelins ilustra bem este
ponto. A sua astúcia revela-se quando dá todos os seus colares de pérolas e os da sua filha à sua
sogra, para que esta a autorize a levar os filhos consigo, para Londres. Ao abrigo das leis
constitucionais modernas, Adah teria o direito de levar os filhos, mas, dado o tipo de sociedade
patriarcal em que está inserida, tem de ser astuta para o conseguir. E assim tem mesmo de mentir
à sogra dizendo-lhe que ela e os filhos ficarão somente um ano e seis meses em Inglaterra. Neste
sentido, está longe de ser uma mulher perfeita, mas aqueles estratagemas são a única forma de
fazer vingar os seus propósitos.
Adah vê a vida como um jogo, não só para se defender a si e aos seus, mas para o ganhar.
Oferece, de boa vontade, um suborno a um polícia da imigração para que Francis consiga o seu
passaporte. Mesmo que não goste de agir desta forma, não tem outra saída, senão os seus planos
não poderão vir à luz do dia. Para conseguir o trabalho de assistente como bibliotecária na
Fichley Library, utiliza todas as artimanhas para obter esse emprego, incluindo “sorrir para o
velho médico”, "seduzindo-o e ainda querendo namoriscar com ele" (Emecheta, 1987, p.40). Faz
tudo isto para que o médico se distraia e não note que está grávida e assim não a desqualifique
para o trabalho. E, deste modo, Adah ludibria o médico. Para esconder o seu sotaque, apertou o
nariz durante a conversa durante a qual negoceia com a dona de casa de Hawley Street, para
parecer europeia. Também escolhe as nove horas da noite como hora para a sua visita ao
apartamento, ou seja de modo a que a senhoria branca não fique a saber que são negros16. Tem a
ideia engenhosa mas pouco auto-assertiva de pintar a cara de branco até pagar a primeira renda;
mas depois põe de parte esta ideia, por ela lhe parecer ridícula e bastante humilhante. Coloca
ambas as mãos nos bolsos do casaco para esconder a sua gravidez, de modo a que proprietária de
Hawley Street não notasse nada.
Outra característica da personagem Adah é a sua assertividade. Ela não se furta a uma
discussão que seja importante, como quando Francis se exalta e deseja apaixonadamente ter
relações sexuais com ela. Mas além de frontal, ela é também dissimulada e subtil como uma
serpente, quando necessário. Por exemplo, falsifica a assinatura do marido, de modo a assegurar a
aquisição do dispositivo intra-uterino de planeamento familiar. Prefere ir para a prisão por sete

16
Vale a pena acrescentar que nesta situação particular, ela mostra o que Fanon (1967) referiu sobre a situação dos
negros na sociedade europeia, ao mostrarem vergonha de se afirmarem tal como são.

305
anos, sob pena de falsificação, a ficar grávida, o que lhe traria um outro trauma, o de outra
criança para amamentar sem qualquer forma de apoio do marido. Finalmente, pede a Deus que
não deixe Francis descobrir que ela usa este contraceptivo.
Mas ao ter ficado grávida, o que desde logo limita a sua capacidade para trabalhar,
tornando o seu dia-a-dia mais penoso, Adah culpabiliza-se então por não resistir a satisfazer os
desejos sexuais de Francis, apesar de sentir dores. Este procedimento feito de afrontamentos e
transigências é revelador das tensões em que Adah vive, como da complexidade do seu carácter.

Neste romance vemos que, apesar de algumas das doutrinas e práticas cristãs darem dores
de cabeça à personagem de Adah, ela tem fé em Deus, Todo-Poderoso e em Jesus Cristo. Sendo
uma personagem de convicções e vontade forte, não deixa de ser influenciada pelas atitudes
racistas vigentes na sociedade inglesa, mas não permite que as dificuldades e os problemas a
desviem e à sua família, dos objectivos traçados. Por ser uma personagem extremamente
orgulhosa e de carácter forte, “considera-se igual a qualquer branco" (Emecheta 1987, p.71). Isto
faz com que rejeite o estatuto de cidadã de segunda classe e o rótulo de sexo fraco dado às
mulheres. A rejeição desse estatuto mantém Adah numa posição de destaque na sua carreira e no
seu papel de dona da casa. Neste sentido, ela é contraponto ao seu marido, que se rende à
estrutura racista em Inglaterra.
Adah, por outro lado, não é uma desmancha-prazeres, nem é inoportuna ou intrometida.
As raparigas que estudam ou trabalham na Finchley Library sonham com um casamento cor-de-
rosa. Adah, que é casada, sabe bem que isso não existe, mas guarda os seus pensamentos e
receios para si. É a forma de demonstrar a sua maturidade. Não refreia os seus sonhos, antes
prefere que as mulheres descubram as coisas por si mesmas.
Ao contrário do marido, que permite que certas situações o dominem e sobrecarreguem,
Adah encara todos os desafios com grande determinação. Não é o tipo de mulher passiva e
complacente que se deixa abater pelo marido. Arrebata das mãos do marido o envelope com o
aviso da ordem de despejo da casa e lê logo o seu conteúdo, o que causa muita aflição a Francis,
pois este não sabe como dar a triste notícia à mulher. Sabendo que o marido não tem fortaleza de
espírito para enfrentar situações dolorosas e inesperadas, Adah age corajosamente para salvar a
situação. A evolução da determinação de Adah é notória.
De princípio, aceita facilmente o seu papel "tal como é definido pelo marido" (Emecheta

306
1987, p.98). Contudo, quando nota que Francis é indolente, “agarra o touro pelos cornos” e
começa a tomar decisões que normalmente devem ser tomadas em conjunto. Por exemplo,
cansada de viver em isolamento, com um homem que não a ama, cultiva a amizade dos seus
colegas no Chalk Farm Library, o que é positivo. Esta boa camaradagem decorrente da amizade
com uma amiga compensa-a, de certo modo, da vida triste e de solidão que ela vive em casa,
sendo casada.
Além de resistente como é, Adah é também simpática e humana. Convalescendo na
University College Hospital na Gower Street, depois da operação cirúrgica (cesariana), vemos
como ela chora por causa das condições de pobreza em que vivia a sua família e do tratamento
injusto que tem recebido na vida, especialmente do seu marido. Durante um momento de forte
auto-comiseração, os médicos estagiários até confundem o seu choro com uma depressão pós-
parto “after-baby blues” (Emecheta1987, p.120). Mas o que ela sente mesmo é a humilhação de
não ter um vestido de noite para usar, tal como as outras mulheres, no hospital. Por isso chora de
vergonha e preocupação por causa do xaile de tom creme que já perdeu a cor e suavidade, de
tantas vezes ter sido lavado (Emecheta 1987, p.130). E então, deliberadamente, Adah procura
superar os seus sentimentos que a perturbam, um misto "ciúme, ressentimento e sobretudo
tristeza, por ter deixado o hospital sem se despedir das outras mulheres, mesmo que fosse só “ por
causa dos seus sorrisos e assentimentos atenciosos (Emecheta 1987, p.132).
Adah é, como se vê, uma personagem amável e nobre, além de determinada, mas sensível.
O fluxo da amabilidade e da simpatia humana correm nela. Quando ouve um comentário
imprudente da sua sogra, que diz que o avião que leva Francis a Londres "parece um caixão", ela
solta logo um gemido (Emecheta 1987, p.28). Na verdade, o medo da viuvez domina-a e então
lembra-se dos lamentos de sua mãe, após a morte do pai. Contudo, Francis não morre, mas vindo
a ser, contudo uma grande decepção, e, também, uma perda muito grande para Adah.

iv.b. O retracto de Francis, a personagem masculina em Second Class Citizen

Francis, a personagem masculina é, neste romance, alguém que, sendo homem, e ao


contrário do que era tradicional, representa um carácter inferior ao de Adah, a personagem
principal, sintomaticamente uma mulher, na escrita de Emecheta.
Frequenta o prestigiado colégio Hussey College em Warri e quer tornar-se contabilista. A

307
educação e a formação recebida nesta escola não o fazem progredir nem o tornam mais
civilizado. Falta-lhe discrição na sua comunicação com Adah. Permite que o clima social inglês
lhe roube as boas qualidades da africanidade. Sendo um marido pusilânime e inconstante no
amor, dominado pela mulher, Francis é também facilmente influenciado pelos seus pais e amigos.
Contudo, sendo testemunha de Jeová, aceita comer a noz de Kola (kolanut) que é oferecida a
Oboshi, a deusa do rio, faz isso com prazer, dando ainda sangue para salvar a vida da sua esposa
durante a gravidez. Ao contrário de Adah, Francis é desonesto e sem escrúpulos. Por ser um
homem com falta de auto-estima e coragem, consulta o seu pai sobre assuntos que se espera que
ele mesmo decida, como, por exemplo, o trabalho oferecido à sua nova mulher no Consulado
Americano. O pai educa-o a assimilar a ideia de que o que é da sua mulher é dele também. Como
característica distintiva, é evidente que sofre do complexo de inferioridade e da falta de auto-
confiança.
E, por tudo isso, Londres transforma-o. Em vez de estudar, para corresponder aos
sacrifícios que Adah faz para lhe custear os estudos, passa a ter uma vida ociosa e sem
responsabilidades. Pensa que pode continuar nessa boa vida por muito tempo. O que ele não sabe
é que está a lidar com uma mulher que é, de longe, mais inteligente do que ele
Nas cartas que escreve a Adah, de Barcelona e de Londres, acusa-a de não ter chorado por
ele no momento da partida. Não é suficientemente criterioso ou inteligente para distinguir entre o
amor verdadeiro e o amor falso. Se fingira amar Adah na Nigéria, em Londres toda essa falsidade
desaparece e Francis então torna-se frio e cruel. Em determinado passo, Francis levanta a mão
para Adah como se fosse da -lhe uma bofetada, porque Adah reclamou que ele não fizera o
suficiente para procurar um alojamento de qualidade. O facto de Francis não ser aplicado e
diligente levou-o a reprovar no exame e a não progredir na vida. Odeia ouvir as verdades
desagradáveis a seu respeito e, em Inglaterra, faz a Adah o que não tentara fazer na Nigéria,
porque os seus pais não o permitiriam.
Francis, ao deixar a Nigéria, sente-se dividido, entre dois mundos, pois ainda está
totalmente dependente do carinho paterno, como se ainda fosse uma criança. Apesar de ser já
adulto, mantém um modo de pensar infantil e, deste modo, não consegue viver à altura do desafio
da sua idade. Precisa sempre de ser acarinhado e amimado, em primeiro lugar pelos seus pais,
seus amigos e, já em Inglaterra, por sua mulher. Devido à incapacidade que tem para lidar com a

308
sua condição actual em Londres, Francis torna-se agressivo, batendo repetidamente na sua
mulher para esconder a sua própria fragilidade.
Sendo um maníaco sexual, acusa Adah de frigidez, logo na primeira noite que fazem amor
em Londres. Talvez Adah exagere sobre a obsessão do seu marido por sexo. Ele quer ter uma
vida sexual fiel a Adah, mas, quando ela engravida do terceiro filho e se torna incapaz de
satisfazê-lo, ele procura outras mulheres, sem nenhuma inibição.
A incapacidade de Francis para tomar uma iniciativa própria, tem um efeito desastroso no
seu casamento. Na Nigéria, ele deixava as decisões nas mãos do seu pai; em Inglaterra, passa a
depender dos seus vizinhos nigerianos. Estes últimos, supõe Adah, influenciam-no a reclamar
quando ela precisa que ele tome conta dos seus filhos, já que Adah está a trabalhar para ganhar
dinheiro para a família.
Podemos deduzir que o casamento de Francis e Adah estava destinado ao insucesso,
devido ao comportamento de Francis que não queria trabalhar nem ajudar a sua mulher. No que
diz respeito a Francis, o que conta no casamento é a relação sexual, enquanto que carinho, amor,
compreensão e outros sentimentos ficam em segundo plano. “As far as he was concerned,
marriage was sex and lots of it, nothing more” (Emecheta 1987, p.45). Depreende-se, através
deste passo que, no que toca a questões de sexo, Francis é egoísta e possessivo e Adah tem que
suportar as constantes necessidades desejo deste homem sempre fixado em sexo, o que a leva a
dar à luz cinco filhos, no espaço de seis anos. Apesar de ter vivido na Europa, Francis não muda
o seu comportamento. Continua a ser egocêntrico e materialmente dependente ou parasita,
influenciado pelas práticas e normas da sociedade patriarcal que consideram as mulheres seres
inferiores e com a obrigação de sustentarem os homens, ou seja os seus donos. Adah nunca
esperaria que Francis a abandonasse, por causas dos filhos, mas enganou-se como vamos
verificar ao longo deste trabalho:
Francis would always be Francis. He had been used to
being worked for, by a woman who he knew belong to him
by right. Adah could not escape because of the children or
so Francis thought (Emecheta 1987, p.174)

Francis permite que preconceitos típicos do racismo branco o influenciem e determinem as


suas atitudes para com a sua família. Descarrega a sua frustração e raiva em Adah, da mesma
maneira que ela transfere um pouco da dor que sente no seu corpo para Latifu. Por outro lado, ao
aceitar limitar o seu horizonte de expectativas por causa da cor da sua pele, ele ficou cada vez

309
mais ligado a um destino de insucesso:

"Even if Francis did qualify, he would never have the


courage to bring her to a restaurant to eat, not in London
anyway, because he firmly believed that those places were
not for blacks. She knew that there was discrimination all
over the place, but Francis’ mind was a fertile ground in
which such attitudes could grow and thrive" (Emecheta 1987,
p.57).

Outro aspecto caracterológico da personagem Francis é a sua reconhecida cobardia em


situações que exigem decisão ou afrontamento pessoal. Exemplo disso é o receio que ele tem de
abordar a senhoria branca, quando andava com Adah perto de Hawley Street e era preciso falar
com a potencial senhoria. Então, ao avistá-la, o medo consume-o e Francis, a pretexto de ter de se
assoar, vai ficando para trás "como se fugisse da castração" (Emecheta 1987, p.77). Outro sinal
da sua falta de coragem é o receio que tem dos cães ingleses. Um outro passo em que vemos em
Francis a falta de um comportamento adulto e a incapacidade de enfrentar um momento de tensão
ocorre quando ele deveria encorajar a mulher, na ocasião em que o filho, Victor está gravemente
doente com o vírus da meningite. Mas em vez de fazer isso, ele próprio desata a chorar.
(Emecheta 1987, p.63).
Não se pode pôr em dúvida que Francis é um homem sem motivação, ambição ou
convicção de ter êxito. Ainda por cima, ele sente-se inferior e mostra ciúmes e inveja do sucesso
da sua mulher, o que nos ajuda a entender a razão por que Francis aceita o seu falhanço como
destino e quer arrastar nesse insucesso a própria mulher, como uma espécie de compensação:

Francis had come to such a situation that he had told himself


subconsciously that he would never pass his examinations. He had, as it
were, told himself that his desire of ever becoming a cost and works
accountant in this world was a dream. She did not know that for this
reason he would do everything to make Adah a failure like himself.
(Emecheta 1987, p.173)

Por outro lado, Francis é uma personagem hedonista, com uma vida desregrada e
incongruente em muitas atitudes. Não sabe nem tem capacidade de agir como um homem, não
sabe confortar a sua mulher ou os seus filhos, mas quer que Adah se preocupe com ele e o
satisfaça. Adah espera nunca abdicar do sucesso alcançado, para que o seu casamento possa

310
também ter êxito. Se Francis não ama Adah, ao menos ama os seus feitos e o seu dinheiro. Ele
depende da ajuda monetária da mulher para a sua subsistência e sobrevivência.

Devido ao facto de Francis não trabalhar, não consegue comprar certos bens necessários
ao conforto da sua família, como televisão, rádio, jornais. E por isso, ele e a sua família estão um
pouco desligados do que se passa no mundo. Isso também parece uma opção, pois Francis
considera que comprar jornais é "um desperdício de dinheiro" (Emecheta 1987, p.98). Mas, às
vezes vai ao apartamento da família de Noble para assistir a alguns programas de televisão.
Contudo, numa atitude de desconfiança possessiva, não deixa Adah fazer o mesmo, por pensar
que a mulher de Noble será “uma má influência sobre ela” (Emecheta 1987, p.98. Na opinião de
Adah, "Francis não é mau homem, somente um homem que já não consegu[e] lidar com a
sociedade excessivamente exigente em que est[á] inserido (Emecheta 1987, p.104).
Há traços do carácter de Francis que o configuram como uma personagem oportunista,
egoísta e irresponsável. De facto, mais hostil que o ambiente fosse para Francis, esperava-se que
ele se esforçasse por sustentar a sua família. Se ele tivesse encontrado trabalho, a pressão sobre
Adah reduzir-se-ia drasticamente e a sua mulher não seria levada a divorciar-se. O seu egoísmo
manifesta-se quando é forçado a trabalhar. Gasta uma grande parte do seu salário consigo próprio
e não permite que ninguém toque no seu rádio, levando-o consigo para todo o lado, para que
ninguém o utilize.
Sendo interesseiro e egocêntrico, pensa sempre e apenas no seu próprio bem-estar. Quer o
dinheiro da sua mulher, e pretende que ela continue a fazer os pagamentos do curso de
contabilidade em que está matriculado, mas sem aproveitamento. Isto faz com que Adah fique
zangada com esta exigência e comece a vê-lo como um idiota, um malandro e um assassino
(Emecheta 1987, p.126).

Por sua vez, do ponto de vista de Francis, uma mulher é um ser humano de segunda classe
(Emecheta 1987, p.155). A longa estadia de Francis em Inglaterra não mudou a sua visão acerca
das mulheres. Como prova disso, ele não só se recusa a ler os manuscritos de The Bride Price, um
projecto de escrita de Adah, como também diz que um tal romance seria sempre uma obra de
qualidade inferior, “lixo” nas suas próprias palavras, argumentando ainda, de modo
preconceituoso, que Adah nunca virá a ser uma escritora, por ser negra e mulher. Na verdade,

311
Francis é tão cruel e insensível que chega ao ponto de queimar os manuscritos de Adah. Este
acontecimento intolerável, a somar a outros, leva ao fim do casamento de um homem fraco e
dependente com uma mulher forte e autónoma.
Como também se verifica neste romance, Emecheta dá grande valor ao conceito de
família. Esta afirmação fica comprovada pelo desejo de Adah de construir uma família com
Francis e pela tentativa de suportar todos os maus-tratos e abusos de que foi a vítima, só para ser
uma senhora respeitável, até ao ponto de não conseguir suportar mais, segundo Emecheta,

In my books I write about families I still believe in families. I


write about women who try hard to hold their family together
until it becomes absolutely impossible. I have no sympathy for
a woman who deserts her children, neither do I have sympathy
for a woman who insists on staying in a marriage with a brute of
a man, simply to be respectable. (Emecheta 1988, p. 175)

Ojo Ade (2007) condena o modo, que ele considera impróprio, como Emecheta representa
Francis, a personagem masculina em Second Class Citizen. Segundo Ojo-Ade, para Emecheta, o
homem é o culpado de tudo, tal como este Francis, fraco, aculturado, com quem Adah se casou
de livre vontade e a quem até perdoou o tradicional pagamento de dote:
Man is the victimizer and he is blamed for everything. The
stigma is all encompassing and the most castigated is the
husband, Francis the friend, Francis the fake. Francis the
failure. …Francis the foreigner. Francis the acculturated.
Francis the Christian…let us remember that Adah married
him willingly, without letting the poor man pay the high
bride-price fixed by her family. (Ojo-ade 2007, p.118).

A caracterização de Francis em Second Class Citizen é típica do jovem moderno que quer
o compromisso e os benefícios da vida matrimonial, mas sem estar pronto a ter qualquer
responsabilidade relacionada com este estatuto. Em primeiro lugar, não paga o dote de casamento
e aliena-se completamente da família de Adah. Segundo, tem aspirações a obter uma elevada
escolaridade, mas fica contente em fazer o que a maioria dos seus amigos faz - obrigar as suas
mulheres a trabalhar para eles e a pagarem-lhes a propina da escola e os outros encargos do dia-a-
dia. A fraqueza da personalidade de Francis é mostrada desde o início do romance. Observamos
que esta personagem não pode tomar qualquer iniciativa, visto que depende totalmente da sua
família. E, para sua desgraça, quando não beneficia desta ajuda, não consegue encontrar
quaisquer alternativas. Há muitas personagens como Francis, em Londres, homens que vivem à

312
custa das suas mulheres e ao mesmo tempo tentam afirmar a sua masculinidade nesse
relacionamento parasita. Francis é jovem, bem-parecido e gracioso, ao contrário do atarracado
Nnaife, mas Francis tem uma personalidade fraca e quando é confrontado com problemas em sua
casa, ele opta pela violência e pela força.
A imagem de homem, de Francis, ficará definitivamente marcada por traços de
indignidade de carácter. No tribunal, para se defender da acusação de ter violentado Adah,
Francis recorre a todo o tipo de falsas argumentações, incluindo a negação da paternidade, só
para não ter de pagar o sustento dos seus filhos. Esta referência ao enredo desta obra permite-nos
verificar que Second Class Citizen é um romance de formação, com propósitos didácticos,
visando uma tomada de consciência das mulheres, instigando-as a abandonarem a ingenuidade e
a ignorância, e a passarem a ser cidadãs do mundo, mediante a auto-afirmação dos seus direitos e
independência de recursos económicos e intelectuais.
Catherine Acholonu, (1986), por seu turno, é de opinião que “Emecheta ultrapassa os
devidos limites na representação que faz das personagens masculinas, pois, figurando-os como
idiotas irresponsáveis e com total falta de sensibilidade, acaba por desacreditar o seu ponto de
vista, tal é a descrição que faz destas personagens, atribuindo-lhes comportamentos pouco
credíveis” (Acholonu, 1986, p.45). Embora Acholonu reconheça o facto de estas descrições
estarem limitadas à terra natal de Emecheta, Ibusa, e ao antigo estado de Bendel, ainda assim
preocupa-se com o facto de os leitores não nigerianos das obras de Emecheta poderem
generalizar as suas representações.
Nesta mesma linha de observações quanto à caracterização masculina, Eustace Palmer
(1986) por sua vez, diz-nos também que “é possível admitir que há elementos de distorção e
exagero nas obras de Emecheta, especialmente a representação que faz de personagens
masculinas, a maioria das quais acaba por ser vista como pouco mais que monstros” (Palmer
1986, p23). Mais adiante, este crítico justifica a sua posição, afirmando que “Emecheta talvez
precise de exagerar a brutalidade e fealdade masculinas, para sublinhar o seu ponto de vista
feminista” (Palmer 1986, p.26).

Na resposta a esta crítica de que ela teria exagerado e alterado a realidade descrita no
romance em estudo, Emecheta afirma categoricamente que apenas relatou as experiências
traumatizantes que viveu com o seu marido em Londres e as crueldades da sociedade inglesa

313
daquela época:

There are many who think I exaggerated in Second Class Citizen,


that I distorted reality. But the cruelty with which I was treated by
my husband and by the English society is truthfully rendered in
the book. Reality appears unbelievable the moment the other see it
on paper” Emecheta 1982, p.4-5

Tal como Susan Suleiman (1979) refere, em obras como estas que podem ser vistas como
romances de formação, a protagonista confronta-se como uma série de impedimentos que lhe são
apresentados por um “oponente” que, neste caso é o próprio marido, pois este não deseja que ela
venha a ser uma mulher autónoma, nem uma escritora de mérito e tudo fará para que isso não
aconteça.
Para alguns críticos como Porter (1980), Katerine Frank (1984), (Obianuju 1986) e Taiwo
(1984), o pecadilho de que enferma esta narrativa de Emecheta é a falta de um maior
distanciamento artístico entre a autora e o que Adah representa, aspecto que em muitos casos se
afigura uma excessiva identificação entre protagonista e autora. Referindo-se a isto, Lord Brown
(1998) afirma que as críticas feitas por Emecheta aos homens africanos “estão frequentemente
inquinadas por generalizações demasiado estridentes e claramente exageradas, para que possam
ser convincentes” (Brown 1998, p.128). Evidência disso é, por exemplo, o episódio em que o
narrador nos dá conta da pouca vontade de Francis em apoiar a sua mulher. A justificação para
esta falta de atenção do marido, tal como nos é dito na narrativa, revela que Emecheta valida
estereótipos de cunho racial acerca dos homens negros, quando fica sugerido no texto que a
situação seria bem diferente se Francis fosse um homem inglês. Nesse caso, ele saberia como é
que uma mulher deveria ser tratada, amada e respeitada (Emecheta p.179.)
Evidentemente, Emecheta saberá que o egoísmo e a falta de consideração para com as
mulheres não são características inatas dos homens africanos. Contudo, apesar deste tipo de
óbvias falácias e de implícitas generalizações apressadas, Second Class Citizen apresenta o
exemplo da luta de uma mulher que vence a brutalização que lhe é infligida pelo marido que
procura instilar na sua mulher sentimentos de inferioridade, a fim de a subjugar. E quando isso
não funciona, ele serve-se de recursos cada vez mais extremos, como a tentativa de privar uma
mãe africana do que ela mais preza, os seus filhos, além de tentar escamotear o reconhecido
potencial de Adah para se tornar escritora.

314
Para nós, a caracterização deste homem, feita por Buchi Emecheta, não é nem exagerada
nem forjada com o objectivo de rebaixar o homem. A verdade é que esse é um retrato com
cabimento, relativamente ao comportamento de muitos homens egoístas e preguiçosos, em
África. A singularidade de tudo isto é o facto de esta verdade nunca ter sido anteriormente
denunciada de modo tão ostensivo. Antes de mais, as escritoras africanas nunca tiveram a
coragem de tratar este assunto nas suas biografias e tornar públicas as dificuldades das mulheres
africanas das suas vidas privadas. Não há dúvida de que Emecheta se coloca no papel de uma
escritora que observa e retrata fielmente a vida tal como a vê, e como vê outros viverem-na, no
seu tempo e no seu espaço. Não é exagero o que ela nos retrata, pois esta realidade feita de
tratamentos discricionários ainda é a verdade nua e crua em muitos países de África, e não só,
onde a imparidade nas relações entre os homens e mulheres é tão chocante como inevitável.

O aspecto que é mais criticável para alguns críticos, neste texto de Emecheta, são as
descrições que fazem com que a personagem masculina, Francis, quase degenere numa espécie
de caricatura. Emecheta procura fazer desta personagem um dos vilões sem remissão da literatura
africana. E, em passos do texto demasiado frequentes, Francis, como protótipo do marido
africano, é-nos apresentado como egoísta, tacanho, dominador, cruel, e mesmo venal. Tantos
atributos negativos parecem, de facto, defeitos demasiados para tipificar a generalização dos
homens da Nigéria. No entanto, apesar deste olhar crítico, tendenciosamente desfavorável para
com os homens do seu país, Catherine Frank (1987), uma renomada estudiosa da obra desta
autora africana, diz-nos que Buchi Emecheta, em obras posteriores, mostrou maior contenção na
caracterização das personagens masculinas, mas que, para ela, “a melhor obra para se entender as
motivações e a força da ficção de Emecheta continuará sendo Second Class Citizen (Emecheta
1987, p.479).

Aspectos conclusivos deste capítulo

Tendo em conta a análise já aqui desenvolvida, consideramos que Emecheta é bem


sucedida na representação que faz da situação das mulheres em África e na diáspora. Através do
modo como revela os problemas das mulheres, esta autora oferece-nos um ponto de vista
alternativo e, deste modo, enriquece a literatura africana e africana na diáspora, dando voz às

315
mulheres daquele continente que, anteriormente e por longo tempo, se haviam mantido
silenciadas. Sem dúvida, por este facto, Emecheta é porta-voz das mulheres africanas.
Buchi Emecheta é realista na maneira como apresenta as suas personagens. De acordo
com alguns críticos, o seu “único pecado” é o de ter exposto tão claramente problemas das
mulheres que, até a data da publicação desta obra, não haviam sido divulgados na praça pública.
Ao revelar as dificuldades das mulheres com a devida atenção e pormenor, Emecheta está a
sensibilizar o mundo inteiro para o pesado jugo a que estavam sujeitas as mulheres numa
sociedade patriarcal e com isso terá dado um contributo inestimável para uma crescente
sensibilização entre os africanos, pela causa das mulheres, visando uma necessária e urgente
mudança de atitude relativamente aos valores da tradição.
A propósito de ser considerada uma escritora feminista, Emecheta afirma que apenas
escreve sobre os pequenos acontecimentos da vida no seu dia-a-dia. E que sendo uma mulher
nascida em África, observa esses acontecimentos através dos olhos de uma mulher africana.
Reporta-os à vida das mulheres africanas que ela conhece. À autora diz-nos que não sabia que o
seu modo de escrever levaria a que nela vissem uma feminista. Mas a sê-lo afirma, que apenas
com “f” minúsculo.
I write about the little happenings of everyday life. Being a woman,
and African born, I see things through an African woman’s eyes. I
chronicle the little happenings in the lives of the African women I
know. I did not know that by doing so I was going to be called a
feminist. But if I am now a feminist then I am an African feminist
with a small ‘f’ (Emecheta 1988, p. 175).

Através da representação que faz da personagem feminina de Adah, Emecheta


demonstra a sua fidelidade às ideias defendidas pelo feminismo e pelos seus princípios.
Residindo em Londres desde 1960, a cultura europeia tem influenciado e alterado o seu modo de
raciocinar e de ver a prática e da cultura africana, designadamente a do seu país, a Nigéria. Sendo
assim Emecheta pode ficar mais sensibilizada e preocupada com a gravidade dos problemas das
mulheres africanas na sua sociedade de origem. Esta mesma escritora afirma que “ it is when you
are out of your country that you can see the faults in your practices society” (Davidson Umeh
1985, p.22). Sem dúvida, que a sua grande preocupação no seu papel de escritora africana na
diáspora é a denúncia as ameaças das desigualdades sociais e da falta de oportunidade para as
mulheres africanas. Ao assumir este papel, Emecheta fica na primeira linha no que toca à questão

316
do feminismo africano. Uma designação que, contudo, a própria veio a recusar.17 No romance
em estudo, podemos dizer que através de Adah, Buchi Emecheta cria um patamar e um modelo
novo para as mulheres africanas18de hoje
Tomando como exemplo a análise que fizemos a Second Class Citizen, de Emecheta,
podemos dizer que o ponto de vista prevalecente na ficção de autoras africanas que escrevem na
Europa sobre os seus países é crítico, mas não necessariamente negativo. O futuro do continente
africano coexiste com a apreensão, mas também com a esperança que resulta da denúncia de
factos cuja divulgação deverá levar à melhoria da presente condição social, neste período de vida
da África pós-colonial. Em textos como este, tal como em muitas outras ficções da diáspora
africana, vemos que os seus autores têm o distanciamento espacial que lhes permite lançar uma
crítica corrosiva sobre a psicologia retrógrada deste continente, com referência a aspectos como
aqueles que se mantêm ancorados a uma tradição patriarcal passadista. O facto de muitos dos
autores críticos da organização social africana serem escritores na diáspora, decorrerá,
porventura, da possibilidade que eles têm de serem aí sensibilizados por correntes que propõem
uma organização com maior repartição democrática entre homens e mulheres, e não daquilo que
acontece em vários países africanos. Sejam quais forem as influências que se exercem sobre os
autores africanos na diáspora, a verdade é que eles se apresentam sempre como alguém que está
bem consciente de estar a desempenhar uma função com ansiado alcance social.
As narrativas de autores africanos na Europa, embora sejam claramente distintas umas das
outras, na medida em que elas nos dão conta de diferentes experiências pessoais sobre o mesmo
lastro da desilusão pós-colonial, ainda assim, estão irmanadas pela necessidade de que estas
memórias sejam divulgadas e, no mesmo acto, sejam expostos ao mundo os desmandos dos
governantes africanos do período neo-colonial. Desta forma, os ficcionistas africanos que vivem
na Europa são quem, verdadeiramente, está a verbalizar e a questionar as condições da existência
humana que, até recentemente, estavam omitidas ou esbatidas no registo histórico das ex-colónias
africanas. É como se todos tivessem interiorizado a missão de apresentar uma imagem de África
arruinada por uma tradição decadente, mas acalentando a esperança de uma alteração que leve

17
Veja Emecheta “Feminism with small ‘f’, (1988), p.175. Veja Molara o ensaio de Ogundipe-Leslie “ The Female
Writer and Her Commitment”, African Literature Today 15 (1987): 11 Neste ensaio ela atribuiu a rejeição da
designação de feminismo, por parte das escritoras africanas, à reacção e ridicularização que este assunto mereceu por
parte dos homens, o que levou as mulheres africanas a se demarcarem do “amaldiçoado” feminismo eurocêntrico.
18
Sobre o conceito das novas mulheres africanas veja o ensaio de Katherine Frank intitulado “Women Without Men:
The Feminist Novel in Africa,” African Literature Today. 15 (1987): 17.

317
este continente a mostrar ao mundo uma renovada consciência dos desafios do futuro, numa
simbiose de atitudes que busque a modernidade sem desprezo pelos valores legítimos de uma
tradição que não seja penalizadora de nenhum dos géneros. Second Class Citizen, por ser um
texto com implicações autobiográficas, revela precisamente a tensão de quem viveu dias difíceis,
devido à sua condição de mulher e que os denuncia com a empenhada esperança de que este acto
de insubmissão para com a organização patriarcal resgate de uma precariedade agrilhoante as
suas irmãs de género.
Tendo em conta o estudo já anteriormente aqui feito, podemos dizer que a análise da obra
de escritoras africanas e afro-americanas não é apenas difícil e cativante, mais ainda dá grande
oportunidade para os críticos da área das literaturas africanas reavaliarem o entendimento do que
sejam as obras canónicas dos escritores africanos de renome, à luz das contribuições em número
crescente da escrita no feminino.
É importante sublinhar-se que as escritoras africanas, quer seja no romance, no drama ou
na poesia têm vindo a projectar alternativas positivas relativamente à emancipação feminina.
Assim, é necessário que a “revolta feminina”, que tende a exprimir a necessidade de uma
reavaliação que não penalize a condição da mulher, seja revalorizada e se torne numa espécie de
imperativo de ordem moral. Mas, acima de tudo, a importância de reconciliar os objectivos dos
feminismos africanos com a representação que nos é dada das suas personagens, também não
deve ser demasiado enfatizada.
A emancipação das mulheres africanas tem de levar em conta o seu papel enquanto pessoas que
nutrem e asseguram, na sociedade, um sentido de estabilidade moral e ética. Além disto, o desejo
de se verem livres do jugo e da perseguição patriarcal, por parte das mulheres africanas, não pode
ficar comprometido pela função que tradicionalmente se espera delas, na sua condição de mães, e
nos cuidados quase exclusivos que dão às crianças no mundo africano. Atendendo aos pontos de
vista apresentados pela escrita no feminino, podemos finalizar este conjunto de observação sobre
o papel e anseios das escritoras africanas, concordando e divulgando a necessidade de ser dada
maior exposição à produção literária no feminino. Os aspectos conflituantes que ela comporte e
se apresentem em contra-fé ao status quo ainda dominante, são necessários e desejáveis para a
evolução da vida das mulheres em África e no mundo em geral.

318
QUINTA PARTE

ESCRITORAS AFRICANAS EM
ÁFRICA E A QUESTÃO DA ESCRITA
FEMININA

319
1. Apresentação das escritoras em estudo - Mariama Ba e Paulina Chiziane

i. Mariama Bâ

Em qualquer parte do mundo se ouve um grito de


mulher. Esse grito pode ser diferente, de sítio para sítio,
mas ele tem sempre em si mesmo uma certa unidade. O
grito de outras mulheres, de outros países, pode não ser
exactamente como o nosso – uma vez que não temos
todos os mesmos problemas – mas há uma unidade
fundamental em todos os nossos sofrimentos, no nosso
desejo de liberdade e de cortarmos as correntes que nos
aprisionam desde a antiguidade. Mariama Bâ, in Nfah-
Abbenyi, Juliana Makuchi. 1997, p.9.

Nascida numa família de elite em Dakar, Senegal, em 1929, Mariama Bâ, ao contrário
de muitas jovens da sociedade senegalesa, cresceu numa família de pessoas instruídas e
educadas. O seu avô paterno trabalhou para o governo colonial francês em São Louis,
Senegal, como tradutor e intérprete. O seu pai era funcionário público e fez carreira
política, tendo sido o primeiro negro a ocupar o cargo de Ministro da Saúde Senegalês,
em 1956, quatro anos antes de este país se ter tornado independente da França. Mariama
Bâ perdeu a mãe muito cedo e foi criada pelos avós maternos, que a inscreveram na
escola francesa colonial, por insistência do pai. A sua família, praticante da religião
muçulmana, fez com que ela também recebesse educação islâmica. No seu artigo
biográfico “Mariama Bâ: Pioneer Senegalese Woman”, Cheryl Staunton (1994) chama
a atenção para as primeiras realizações escolares de Bâ. Em 1943, entrou para a escola
École Normale, uma instituição de formação para futuros professores, mercê do facto de
ter obtido a nota máxima no exame de entrada para a referida instituição. Vale a pena
acrescentar que foi uma das poucas mulheres senegalesas do seu tempo a conseguirem
este feito. Porém, os seus avós opuseram-se a que ela seguisse esta linha de estudos.
Dado que nessa altura, o seu pai estava trabalhar na República do Níger, o seu professor
teve de intervir para obter o consentimento dos seus avós. De acordo com Herzberger-
Fofana, 2000, Mariama Bâ completou, em 1947, os seus estudos na École Normale e
tornou-se professora. Mas, devido a uma doença, que a impossibilitou de continuar a
ensinar, passou a ter as funções de Inspectora Escolar, até 1979. Do ponto de vista de
Herzberger-Fofana, a contribuição de Bâ para a sua sociedade, ultrapassou a sala de
aula, por causa das actividades politicas, sociais e literárias em que se envolveu tão

320
empenhadamente. Foi politicamente activa em vários movimentos e associações de
mulheres senegalesas. Exerceu o papel de porta-voz dos movimentos feministas em
Dakar. No decurso destas funções, proferiu um discurso perante o primeiro-ministro de
Senegal, Abdou Diouf, em que condenou fortemente as condições precárias das
mulheres e crianças senegalesas. Mariama Bâ começou a escrever em 1979, quando a
Editora “Les Nouvelles Éditions Africaines”, convidou escritores africanos a
entregarem os seus manuscritos para estes serem analisados e publicados. Bâ, que sentia
a necessidade de ver o seu trabalho de escritora publicado, completou rapidamente o seu
primeiro romance (Une si longue lettre, 1979) e submeteu-o a publicação. O livro foi
galardoado com o primeiro prémio Noma, em 1980, tornando-a assim Bâ numa
escritora senegalesa pioneira entre aqueles que começaram a ver os seus méritos
reconhecidos. Na altura da apresentação do referido prémio, o Presidente da Comissão
que atribuiu o prémio, Eldred Jones, (1980) afirmou no seu discurso:

Mariama Bâ’s novel offers a testimony of the female condition in


Africa while at the same time giving that testimony true
imaginative depth. The distinguishing feature of this novel is the
poise of its narrative style which reveals a maturity vision and
feeling. As a first novel, it represents a remarkable achievement
to which the Committee, with this Award, is giving recognition.
(Jones, citado em Zell 1980, p.199.)

Na opinião de alguns críticos tais como Stratton (1994) o reconhecimento do


valor artístico de Mariama Bâ’s no mundo literário e o prémio que lhe foi atribuído
geraram sentimentos opostos por parte de críticos do sexo masculino de renome, tais
como Zell et. al, (1983), Jones, Ojo-Ade (1983, Frederic Ivor Case (1982) e Abiola
Irele. Instado a comentar o êxito de Mariama Bâ’, Abiola Irele (Irele:1980) começou
por fazer uma comparação depreciativa entre as obras feitas por autores, homens ou
mulheres, e desvalorizou o éxito de Bâ. Depois criticou as escritoras antecessoras de Bâ
pelo modo como a situação das mulheres na sociedade africana fora retratada e
acrescentou que, os romances das escritoras africanas não tinham capacidade de
penetração intelectual relativamente ao tema da condição da mulher em África:

It is true that the novels of writers like Flora Nwapa, Bessie


Head and Ama Ata Aidoo…touch upon the situation of
women in African society,…Not one of these writers,
however, displays the depth of insight of John Munonye in

321
his novel, The Only Son, into the situation of the African
woman. (Irele:1980, p.661-2)

Perfilhando esta mesma linha de pensamento de cunho machista, não é de admirar que
Frederic Ivor Case (1982) também perguntasse porque razão um romance de qualidade
inferior, na sua opinião, havia sido publicado. Neste sentido, ele criticou duramente as
modalidades e políticas utilizadas para lhe atribuírem o referido prémio Noma. Do
ponto de vista de Case, este romance não tinha uma estrutura digna, não possuía valor
artístico, nem focalizava a condição da mulher senegalesa com a mesma qualidade
como esta fora abordada por outros escritores senegaleses, como Abdolaye Sadji e
Ousmane Sembène, entre outros (Case 1982, p.540). Escorando-se nesta linha de
pensamento, de pendor patriarcal beligerante, Case terminou esta crítica afirmando que
este romance de Bâ não tinha qualidade nenhuma: “So Long a Letter has no redeeming
features because Bâ fails to integrate ‘sociological … details’ as such, one is tempted to
say anthropological ”. (ibid).

Importa salientar que Mariama Ba e outras mulheres escritoras tais como Buchi
Emecheta, Flora Nwapa ou Bessie Head, que surgiram na cena literária africana na
década de 1960, não se limitaram a expor e denunciar a mitificação que havia acerca de
um papel secundário e supostamente não alterável da mulher. Mas, ao trazerem
personagens femininas para o centro das suas narrativas, estas autoras resgataram as
suas protagonistas da sua coisificação habitual, libertando-as do atoleiro de impotência e
ausência de vida própria em que se encontravam. Deste modo, ao serem-lhes atribuídos
papéis principais, as protagonistas femininas tornam-se agentes da acção e assumem
funções inequívocas de condutoras dos enredos ficcionados. Além disso, ao ser-lhes
conferido um processo de individualização, as protagonistas femininas são resgatadas
da sujeição de estarem reduzidas a uma mentalidade que só as via enquanto grupo, em
conformidade com a generalização depreciativa que as homogeneizava, tornando-as
assim menores, indistintas. Ao invalidar esta concepção da homogeneidade de grupo,
estas escritoras demonstram que as mulheres têm uma experiência de vida própria e
com relevância para lhes ser atribuído o papel de protagonistas e não apenas de
personagens secundárias com aparições difusas.

O estudo de Stratton sobre a vida e as obras de Mariama Bâ dá-nos conta das


preocupações desta escritora africana sobre a criatividade feminina e o uso das línguas

322
estrangeiras. Cremos que Bâ foi influenciada pela educação ocidental, o que fez com
que tenha usado a língua francesa como a via do seu trabalho literário, o que, só por si,
requer um nível elevado de criatividade e adaptabilidade. Em alguns dos seus discursos
Bâ realça a opinião de que as línguas estrangeiras raramente se adequam à cultura e ao
pensamento dos escritores africanos, o que faz com que a maioria desses escritores não
consiga usar as suas obras como um instrumento de educação para a grande massa do
seu povo, já que a maioria da sua audiência não tem conhecimentos suficientes da
língua dos colonizadores. Mas Bâ está convencida de que o acto e o poder da escrita
como instrumento de mudança é universal. Nesta perspectiva, aconselha os escritores
africanos a não avaliarem as situações descritas, apenas de uma perspectiva africana,
mas sim com uma preocupação universal, desde que as questões tratadas nas suas obras
tenham a ver com a condição humana. Face ao exposto, Mariama Bâ defende o apoio e
a solidariedade das mulheres africanas para resolverem as dificuldades por elas vividas,
enquanto grupo oprimido dentro de uma sociedade africana patriarcal, que tem sido
vitimado por situações de desigualdade de tratamento, de exploração, grupo esse de
mulheres colonizadas, de facto, dentro de um sociedade patriarcal cujos homens
também foram colonizados (Herzberger-Fofana, 2000).
As críticas aos trabalhos literários de Mariama Bâ, procuraram explicar as suas
preocupações relativas aos problemas das mulheres, de um ponto de vista feminista.
Críticos como Esonwanne (1997), Mule (1997), Nwachukwu-Agbada (1991)e
McElaney-Johnson (1999) vêem nas personagens femininas de Bâ, a mulher africana
que procura o seu lugar e a sua auto-redefinição na sociedade. Em geral, é nesta
redefinição que a mulher africana busca mudar a imagem que os não-africanos têm
relativamente ao seu carácter. De um ponto de vista mais filosófico, Chossat (2002)
sugere que a luta das mulheres, nos romances de Mariama Bâ, para mudarem o seu
estatuto, traz à luz o choque entre tradição africana e cultura moderna, um conflito que
se encontra no centro da situação pós-colonial.
So Long a Letter1 é a história de duas grandes amigas, Ramatoulaye e Aissatou,
que casam com os grandes amores das suas vidas, contra o que era norma na sua

1
De acordo com Florence Stratton (1994) e Zell (1983) com a publicação desta obra, So Long a Letter,
de Mariama Bâ, chegou a ser reconhecida publicamente no mundo inteiro como escritora feminista, e
alcançou o ponto mais alto da sua carreira quando foi premiada com o primeiro prémio Noma, tendo esta
obra sido logo traduzida para mais de vinte línguas, incluindo a língua inglesa e portuguesa, neste caso,
com o título Uma Carta Tão Extensa (1985) . Segundo o estudo levado a cabo por Lindfors (1990), na
obra Teaching 50, o livro chegou a ser um dos mais lidos no mundo e veio a ser incluído no programa de
estudos no ensino secundário e superior, em muitos países de África e noutras partes do mundo.

323
sociedade. Mas a sogra de Aissatou odeia a ideia de o seu nobre filho se ter casado com
a filha de um mero ferreiro, de um estrato social inferior. E então, esta sogra insatisfeita
com o destino do seu filho consegue, aos poucos, destruir a harmonia desse casamento,
encorajando o filho a casar-se com uma outra mulher, uma segunda mulher que vem de
um estrato social de maior nível. Por sua vez, Ramatoulaye casou com Modou, de uma
família mais pobre, e fez isso contra o desejo dos seus pais. Numa manifestação de
descontentamento, os seus pais recusam-se a aceitar qualquer dote de Modou. Mais
tarde, Modou casa com a melhor amiga da sua filha adolescente, abandonando
Ramatoulaye com os seus filhos. Confrontadas com estas situações de infidelidade, as
duas amigas reagem diferentemente. Aissatou divorcia-se do marido e leva os seus
quatro filhos consigo, enquanto que Ramatoulaye mantém o seu casamento falhado até
a morte súbita do marido.
O enredo desta narrativa fala-nos assim da solidariedade no feminino e das
situações de abandono e infidelidade que acabam por penalizar a mulher, por razões
ligadas à tradição patriarcal, fazendo com que o género feminino esteja em permanente
situação de desvantagem.

Contudo, as obras de Bâ não só retratam a questão de género e criatividade na


literatura africana, como também evidenciam o choque entre tradições africanas
indígenas e valores eurocêntricos da modernidade. E mais ainda, Mariama Bâ considera
que estas tradições e estes valores são reconciliáveis. Raylene Ramsey (1998) sustenta
que, de certo modo, Bâ tenta reflectir a rica polinização inter-cultural existente, não só
na sociedade senegalesa, mas também nas sociedades africanas em geral.
Em So Long a Letter, Mariama Bâ apresenta as personagens masculinas de uma
forma controversa, dado que a maioria destas personagens é tendencialmente
representada por estereótipos, isto é, elas são apresentadas de uma forma padronizada na
narrativa. Como vamos mostrar ao longo desta investigação, estas personagens
masculinas estereotipadas virão a ser uma espécie de moda na ficção escrita por
mulheres. Mas isto não resolveu nenhum dos problemas decorrentes da questão de
género, apenas representou um reverso da atitude maniqueísta sobre a condição de
género.

324
ii. Paulina Chiziane
Escritora moçambicana nascida em Manjacaze, no ano de 1955 na província de
Gaza, uma região rural no sul de Moçambique. Aos sete anos muda-se para os
subúrbios de Maputo, conhecida como Lourenço Marques, nos tempos coloniais. Filha
de mãe camponesa, subsiste ali a trabalhar com o seu pai, como costureira pelas ruas da
cidade capital. Tinha 20 anos quando se dá a independência do país, a 25 de Junho de
1975. Havia então, a esperança de uma verdadeira revolução que livrasse o país do
atraso e do tacão colonialista. Mas os bons augúrios nacionalistas, gerados após se
terem libertado das tropas portuguesas, dissipam-se rapidamente com o início da guerra
civil, que só vai terminar em 1992 com o Acordo Geral de Paz.
Na altura da guerra civil, Paulina Chiziane começou a frequentar a universidade
para estudar Linguística na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, mas não
acabou o curso por causa da insegurança que vivia se no país2.
Paulina considera-se si mesma como uma contadora de histórias, uma arte que,
segunda ela, aprendeu com a sua avó – o que lhe serviu como fonte de inspiração e a
ajudou na escrita e publicação de vários contos e obras literárias, tanto nos jornais do
seu país, como na sua editora em Moçambique e nos vários países no estrangeiro. As
histórias e os temas das suas obras tratam dos problemas diários e das experiências do
povo moçambicano, em tempos de vida difícil, e falam também do amor e da esperança
da mulher, na sociedade africana em geral, e em particular das mulheres da sua
comunidade, de uma África passada e presente, que a autora soube transferir da
oralidade para o papel.
Um dos factores que contribuiu para uma aproximação mais concreta à realidade
dos efeitos da guerra vivida no seu país, em primeira mão, como também fica
evidenciado na sua obra, é a sua colaboração com a Cruz Vermelha e com algumas
organizações não-governamentais, em projectos de promoção cultural, social e política
da mulher moçambicana. De acordo com Chiziane, há muito trabalho a fazer numa
sociedade predominantemente patriarcal onde a mulher é considerada como cidadã de
segunda, sem direitos nem voz. Paulina Chiziane já publicou os seguintes romances, A

2
. É possível entender o desânimo de Paulina, que viu o seu país destruído durante a guerra civil e
acompanhou a tragédia quotidiana de seres tão despojados "que não se distinguia entre eles homens e
mulheres". Sobreviveu para contar a história, escapando por pouco de voar pelos ares, como outra mulher
com quem conversava e que ficou mutilada por uma mina terrestre.

325
Balada de Amor ao Vento, em 1990. Ventos do Apocalipse (1993), O Sétimo Juramento
(2000), Niketche3: Uma História de Poligamia (2002) e O Alegre Canto da Perdiz
(2008). Esta escritora reconhece que os seus temas não são fáceis, porque traz para a
literatura assuntos incómodos, como as consequências da poligamia e a prática da
feitiçaria em África.
Nas obras de Paulina Chiziane nota-se um certo desânimo perante os rumos que
tomou a história de Moçambique, desde a declaração da independência, em 1975.
Considera que o país perdeu a sua capacidade de resistência e que nem a língua nem a
cultura portuguesa ajudaram a criar uma identidade para os moçambicanos, que se
voltam cada vez mais , negros e brancos, para as tradições e os mitos mais arcaicos.
Com a sua primeira obra (Balada de Amor ao Vento, 1990), Paulina Chiziane
foi considerada a primeira mulher de Moçambique a escrever um romance. No entanto,
ela contradiz este dado ao negar considerar-se romancista4. Define-se simplesmente
como contadora de «estórias»: «Escrevo livros com muitas estórias, estórias grandes e
pequenas. Inspiro-me nos contos em volta da fogueira, a minha primeira escola de arte.»
As «estórias» são a forma de definir a narrativa de cunho popular e tradicional, nutrida
de uma grande influência oral Leite (2003), Ong (1982), Finnegan (1970). O brasileiro
Guimarães Rosa adoptou este termo na sua obra, tal como o angolano Luandino Vieira e
também o moçambicano Mia Couto. Este dado serve para descrever um grande dilema
com o qual se confrontam os escritores africanos lusófonos: escreverem nas suas
línguas maternas ou fazê-lo em português, língua oficial mas alheia às tradições orais
transmitidas pelos seus ancestrais5.

3
Niketche vem do nome de uma dança de iniciação sexual feminina da Zambézia e de Nampula, no Norte
do país, região predominantemente macua, onde está a Ilha de Moçambique, primeira capital das
possessões portuguesas da África Oriental e local de desterro do poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-
1810), por onde passaram também em épocas diversas Luís de Camões (1524-1580) e Manuel Maria de
Barbosa du Bocage (1765-1805).

4
A este propósito, Ana Mafalda Leite citou a entrevista dada pela autora a um programa da televisão
portuguesa - Grande Reportagem -em Dezembro de 2002, onde Chiziane reiteira que não escreve
romances, mas conta histórias, reivindicando com isso um legado da oralidade que influência rural lhe
proporcionou, tendo dito então, textualmente: “Eu acho que romancista é qualquer coisa muito
académica. Tem muito a ver com a tradição da escrita. Sinceramente falando, acho que os meus livros
têm muito a ver com a oralidade. Faço questão de praticar a oralidade dentro da escrita. (…) São história
e ponto final. (Citado em Leite 2003, p.78).

5
No caso de Moçambique, segundo um estudo realizado em 1997 naquele país, o português (apesar de
ser a língua oficial) só era a língua materna de um 6% da população e só 40% sabiam falá-lo. Contudo, o
caso de Maputo era bem diferente, já que os índices atingiam uns 25% e 87% respectivamente.
Além do Português, em Moçambique, foram reconhecidas diversas línguas nacionais, todas de origem

326
A sua intensa vida, sempre ao lado das mulheres africanas, fez com que, por
mais de uma pessoa, lhe fosse atribuído o epíteto de feminista. Numa entrevista dada ao
Courrier International (2) (27/07/2006), a escritora afirma: “Sou uma mulher, adoro
escrever sobre as mulheres. Mas isso é ser feminista? Escrevo sobre o meu mundo. Eu
estou contra a guerra dos sexos. Os homens e as mulheres foram feitos para viver em
harmonia, e não em guerra. Por isso, o homem não deve sentir-se superior. E a mulher
também não” Citado em Adelto (2009). Ou seja, só podemos justificar como feminista a
postura de Paulina Chiziane (2004) se considerarmos que o seu “feminismo” é algo
particular e não decalcado da ideologia feminista eurocêntrica.

Assim, reafirmando a sua postura de não feminista, Paulina diz-nos que apenas
desempenha o seu papel de observadora e escritora, e que se limita a retratar o que vê
em suas andanças por Moçambique: homens espancando mulheres e abandonando
filhos à própria sorte. "Com a disseminação da doutrina islâmica, a poligamia cresceu
no norte do país e trouxe na sua esteira conflitos com a cultura portuguesa,
monogâmica, e também com as sociedades secretas de feitiçaria, estas já combatidas
pelos guerrilheiros independentistas, que queimavam os seus objetos de culto."
Numa entrevista concedida a Manuela Sousa Guerreiro no sitio
http://www.ccpm.pt/paulina.htm sobre a questão do feminismo, e confrontada com a
opinião dada pela crítica e estudiosa luso-africana, Inocência Mata, Paulina respondeu
dizendo a este propósito, o seguinte:

Quando pronuncio a palavra feminista, faço-o entre aspas, porque


não quero associar-me às loucuras do mundo. É um livro feminino
porque nele exponho a mulher e o seu mundo, embora não seja
uma obra onde desafie o estatuto da própria mulher. Isso ajuda a
reflectir e a reconhecer afinal quem é a "mulher" com que nós
vivemos. É a minha forma de contribuir para a compreensão dessa
realidade e, quem sabe, ajudar a definir novos caminhos. Também
é uma paixão. Gosto de escrever sobre mulheres. Vou escrever
sobre o quê, se não sobre o que sei?! Não sou capaz de ter uma
visão assexuada da vida.

banta. No caso de Paulina, além do português, fala Chope (ou Cicopi), língua nativa da província de
Inhambane, e Ronga, restringida à cidade de Maputo. Devido aos altos índices de analfabetismo, muitos
escritores optam pelo português para terem maior difusão, ainda que, ao mesmo tempo, introduzam léxico
das suas raízes autóctones. Este facto pode resultar incómodo para um leitor ocidental acostumado aos
cânones literários já estabelecidos. Como indicou muito bem o escritor e poeta angolano António
Gonçalves (2004), os cânones ocidentais muitas vezes não são compatíveis com a literatura africana, pelo
que o leitor ocidental vai ter que deixar de lado muitos convencionalismos pré-concebidos para se inserir
plenamente na leitura destes textos.

327
Nesta mesma entrevista, Paulina insiste que a sua escrita decorre do facto de ela ser
mulher e de a sentir a feminilidade e a desigualdade de tratamento entre géneros. A
razão porque ela escreve de um ponto de vista feminino, deriva da sua condição de
mulher que sente as coisas como mulher que é. Assim sendo, como é que ela não
haveria de referir as experiências e usar as palavras das mulheres. Estas, quando se
juntam têm a sua linguagem própria e a sua visão do mundo que expressam de maneira
particular. Por exemplo,

numa ilha no sul de Moçambique as mulheres quando se


cruzam com outras mulheres, saúdam-se de forma quase
ritual e ficam ali uns bons quinze minutos a fazê-lo. O
homem, normalmente pescador, quando encontra um amigo
diz "bom dia" e o outro responde "Yhaaa". E acabou. Cada
um vai para o seu lado. As palavras e as expressões dum e
doutro mundo (masculino e feminino) são efectivamente
diferentes ”.

Quando lhe perguntaram se o seu livro retratava experiências muito pessoais, ela
respondeu que eram inevitavelmente pessoais, na medida em que tinha convivido de
perto com muitas das mulheres ficcionadas nos seus livros.

Quando olho para a minha mãe, para a minha avó e


um bocadinho para mim mesma, enfim quando olho
para toda a comunidade que me rodeia sei que é de
nós todas que falo, sei que é sobre nós todas que
escrevo e a nós todas que vou retratando aqui e ali.

Nas obras de Chiziane as mulheres que tentam demonstrar a sua insatisfação perante a
vida que levam acabam por ser punidas. Quando perguntaram se era essa a percepção
que Chiziane tinha do que se passava na vida real, a autora foi peremptória na
confirmação desse entendimento da situação, tendo afirmado que “Toda a mulher que
luta por uma mudança é sempre punida e esse é, efectivamente, o mundo real que
descrevo”.

Ainda a este propósito, Paulina Chiziane (2004) refere que, “de início, a reacção
das mulheres foi apenas de curiosidade. Afinal havia alguém que aparecia a bater-se por
elas. Depois foram lendo, foram-se identificando mais e agora a reacção é muito boa.
Para grande parte delas, sou a pessoa que diz o que sentem, mas não têm coragem de
dizer. Isso para mim é muito importante.”

328
É de admitir que a obra de Chiziane, por evidenciar o desfavor dado às
mulheres, não seja a mais bem acolhida por uma sociedade ainda assente numa
estruturação patriarcal de base. E, neste sentido, Paulina Chiziane teve ocasião de referir
o tipo de repressão que a sociedade moçambicana exerce sobre as mulheres, sendo que
esse tratamento repressivo se exerce de modo variável, conforme as diferentes regiões
do país.

Digamos que sim, mas não podemos olhar para o país como um
todo nesta matéria. Temos as regiões do sul e do centro, que são
regiões patriarcais por excelência. O norte já tem características
diferentes. É uma região matriarcal, onde as mulheres têm outras
liberdades. Acho que Gaza, província de onde sou oriunda, é a
região mais machista de Moçambique. Uma mulher, além de
cozinhar e lavar, para servir uma refeição ao marido tem de o fazer
de joelhos. Quando o marido a chama, ela não pode responder de
pé. Tem que largar tudo o que está a fazer, chegar diante do marido
e dizer "estou aqui". Há pouco tempo um jornalista denunciou um
professor de Gaza. Nas aulas quando fazia uma pergunta os rapazes
respondiam de pé, mas obrigava as meninas a responderem de
joelhos. Quando as alunas iam ao quadro, tinham que caminhar de
joelhos e só quando lá chegavam é que se punham de pé. O
professor foi criticado e prometeu mudar. Mas para a comunidade
ele estava a agir correctamente.

A obra o Sétimo Juramento leva-nos a uma consideração ampla do que são os


valores e as práticas da sociedade tradicional moçambicana, predominantemente
controlada pelo poder patriarcal. O questionamento dos valores animistas é também um
aspecto essencial nesta narrativa em que o sistema colonial procura impor outros valores
civilizacionais. É neste contexto que Vera, uma das protagonistas, é posta perante o
dilema da confrontação entre as tradições mais antigas do seu país e a ocidentalização
dos costumes trazidos pela presença colonial portuguesa. O choque cultural sentido por
Vera inscreve-se num cenário de predominante poder masculino e em que a mulher se
encontra numa dupla desvantagem, por ser a parte preterida no seio dos códigos sociais
vigentes naquela região de África e pelo próprio desconhecimento que ela tem sobre as
tradições da comunidade a que pertence.
Em Niketche, Chiziane também denuncia a injustiça social que marginaliza as
mulheres, na sociedade moçambicana. A autora começa a narrativa apresentando-nos
numa situação em que as mulheres se encontram numa situação de desespero, motivada
pela situação de desigualdade em que vivem, devido ao jugo patriarcal a que estão

329
submetidas. Segundo Leite (2003), esta obra inscreve-se numa linha narrativa
feminina de crítica à poligamia, que se tornou recorrente no cenário literário de
mulheres africanas que buscam denunciar, por meio da paródia, a forma perversa como
a poligamia foi adulterada na sociedade urbana, não se respeitando os direitos que as
mulheres tinham na sociedade tradicional (Leite 2003, p.70). Tony, um oficial de
polícia, casado há vinte anos, mantém relações matrimoniais com outras quatro
mulheres, além da sua, Rami. E tudo parece correr bem à personagem masculina, Tony,
até que a sua primeira e legítima mulher, Rami, descobre que o seu o marido é
polígamo. A protagonista, Rami, tem inicialmente uma atitude passiva face à traição do
seu marido, mas, progressivamente, torna-se consciente de que deve lutar pelos seus
direitos e vem a assumir uma atitude de rebeldia e clara contestação da ordem
tradicional. Ela passa a ter um comportamento não conformista, no que é seguida pelas
outras mulheres do seu marido e deste modo, ela torna-se também a voz de tantas
mulheres que nunca tinham sido capazes de rebelar-se contra a ordem patriarcal vigente.

Reportando-se a O Alegre Canto da Perdiz e resumindo o conteúdo do texto


em questão. Chiziane sublinha que o que ali se conta é a história de uma mulher negra
dividida entre dois mundos, o africano e europeu, por causa de uma paixão que lhe
viria a dar um filho mulato, o que seria uma maneira de aligeirar a tonalidade negra da
sua pele, como alguém que procura aliviar o negrume indesejável das roupas de luto.
Essa ansia de conseguir um tom de pele mais caucasiano é também explicada pelo
desejo de fugir à discriminação que a mulher negra sofre nas sociedades patriarcais de
Moçambique mais rigorosas, designadamente na província da qual Paulina é oriunda.
Este depoimento de Paulina Chiziana confirma que ela é uma escritora bem
enraizada na problemática e nas dificuldades de vida da mulher moçambicana,
patenteando um conhecimento de tudo quanto se passa nas diferentes regiões do seu
país. Não é por acaso que as suas personagens, maioritariamente femininas são tão
genuínas e credíveis. Elas são o resultado de uma vivência testemunhada e partilhada.

330
2. FALSIDADE, MAUS TRATOS E AUTO-DETERMINAÇÃO DA MULHER
EM SO LONG A LETTER DE MARIAMA BÂ

Black women have been silent for too long …


Women must assume their own voice –
speak out for themselves.
(Awa Thiam 1986).

O objectivo deste capítulo é analisar a questão do divórcio e dos abusos sofridos


pelas mulheres em África (no Senegal) e reportar uma crescente busca de auto-afirmação
da mulher africana, na obra em estudo. Com este fim, dividimos este capítulo em cinco
partes interligadas. Na primeira parte, abordaremos o contexto social deste romance,
ilustrando o modo como a tradição, a vivência e a religião muçulmana influenciaram esta
autora no processo de escrita da sua obra. Na segunda parte, apresentaremos o conceito
de autobiografia e falaremos do processo narrativo em So Long a Letter, sublinhando a
importância de tal processo narrativo como um meio de auto-realização que, ao mesmo
tempo, serve como aliado importante para ajudar a narradora a afrontar o jugo da
opressão patriarcal. Seguidamente, analisaremos as personagens principais e a sua
relevância na abordagem do tema em estudo. Na quarta parte, faremos uma análise
temática e, na parte final deste capítulo, apresentaremos o compromisso, a visão e o lugar
de Mariama Ba enquanto escritora “feminista” que, de modo determinado, procurou
expor os problemas das mulheres na sociedade africana, a fim de conseguir vencer
resistências atávicas da tradição patriarcal e conseguir que as mulheres viessem a ter um
tratamento mais equitativo, relativamente ao homem, na vida pessoal e familiar, bem
como também na actividade pública.

Preâmbulo
Mariamba Bâ é uma romancista, professora e feminista militante que se destacou
com a sua acção em prol das mulheres no seu país, o Senegal, no período entre 1979-
1981. Os motivos para a forma devotada como ela lutou pela melhoria das condições de
vida das mulheres advêm directamente da sua experiência pessoal, do que foi a vida dos
seus próprios pais e do modo como ela mesma veio a ser educada. O seu contributo é de
facto significante, porque através dele somos confrontados com um relato esclarecedor da
posição de desvantagem em que vivem as mulheres em África, em geral, e as mulheres
casadas, em particular. A condição de penosa desigualdade que afecta as mulheres levou-
a a devotar todo o seu empenhamento na luta pela mudança desta situação. Bâ traz a

331
mulher para a centralidade do texto literário e realça a acção que esta tem entre o seu
povo, quando nos mostra que na vida dos Wolof aquela mulher que é simultaneamente
avó, mãe, irmã, filha, prima, amiga é uma personagem representativa do papel agregador
da mãe em África e da importância que esta tem no contexto da sociedade africana.

i. Contexto social da obra:


A influência do modo de vida e da cultura do povo Wolof, de tradição islâmica, de
onde Mariama Bâ é oriunda, constitui, naturalmente, um importante espaço da reflexão
para escrita desta autora. Em termos geográficos, aquele povo está localizado na região
designada por Senegâmbia, na Costa Ocidental de África. No seio de tradições culturais
conservadoras como a deste povo, as mulheres escritoras têm vindo a introduzir um modo
inteiramente novo de se olhar para a situação da mulher e para as suas preocupações.
Deste modo, elaborações das diferentes formas de vida e de uma nova atitude das
mulheres, provindas da especificidade de experiências de vida no feminino1, puderam ser
finalmente incorporadas no lastro da literatura senegalesa, até então de inteira dominação
masculina (designadamente na forma da escrita literária). Provavelmente, nesta região do
mundo, ninguém fez uma denúncia tão pungente como Mariama Bâ sobre a condição de
desfavor da mulher em África, apresentando-nos um testemunho escrito da perspectiva da
mulher, vista por ela própria e das tensões inerentes a tal apresentação.
Pode dizer-se que o trabalho literário de Mariama Bâ, apesar de derivar de uma
situação regional, entronca numa problematização de âmbito universal. A própria
escritora, ao dar voz ao seu empenhamento intelectual, manifesta sempre a consciência da
universalidade da sua causa. Mas ao mesmo tempo, não deixa de estar focada na
particularidade da mundividência da sociedade senegalesa e, de modo especial, do povo
Wolof. Diz-nos isso mesmo, por suas próprias palavras, quando reitera que “ se ouve um
grito da mulher em toda a parte, no mundo. Esse grito pode ter entoações diferentes aqui
ou ali, mas mantém sempre uma certa unidade” (Nfah-Abbenyi 1997, p.9). Se esta autora
não se tivesse situado na cultura de uma sociedade islâmica, como a do povo Wolof, com
a visão do mundo decorrente dessa particular vivência, ela não poderia ter escrito os
textos específicos que nos apresentou e com a contextualização com que o fez. Para

1
. Divorciada e “mulher muçulmana moderna”, como ela própria se definiu, Bâ foi muito activa na
dinamização das acções de Associações de Mulheres. Um dos seus grandes objectivos foi a promoção da
educação. Foi uma defensora determinada dos direitos das mulheres, proferindo discursos e escrevendo
artigos em jornais e revistas locais. Desta forma, o contributo de Mariama Bâ chegou à população a que
primordialmente se destinava, denunciando e descrevendo a posição de desvantagem em que as mulheres se
encontravam, situações contra as quais elas próprias teriam de lutar conscientemente.

332
situarmos devidamente Mariama Bâ na mundividência dos Wolof precisamos de entender
o posicionamento por ela assumido e os diferentes espaços em que ela se situa e que
habita, com a sua escrita. De facto, apesar de se posicionar na condição de uma “mulher
senegalesa comum”, o lugar que ocupa na sociedade, nada tem a ver com a vivência mais
comum da maioria das mulheres. É, à partida, o resultado de uma família de casta
elevada, numa sociedade onde a organização por castas é determinante para o percurso de
uma vida. A pertença a uma certa casta define um estatuto e todo um conjunto de
expectativas de vida. A casta, como a cor da pele, não é algo que possamos usar ou
descartar, conforme nossa vontade ou capricho. O facto de Bâ ser da Casta Guer
distingue-a e coloca-a numa posição que é diferente da das outras mulheres que
pertencem a castas mais baixas. É que, nestas sociedades, em virtude da condição à
nascença, há uma espécie de “superioridade” que é imediatamente assumida. A acrescer a
isto, a circunstância de ela ter sido educada em moldes ocidentais ainda dificulta mais a
possibilidade de ela poder ser equiparada à mulher comum do Senegal, colocando-a numa
outra condição, a categoria inteiramente nova de mulheres instruídas. E, como a educação
ocidental não afasta ninguém do que são as obrigações diárias de uma mulher, Mariama
Bâ insiste na possibilidade da opção por diferentes escolhas, sem o que não haverá
alternativa para as mulheres em África. Por isso, tal como sublinha Irene D’Almeida, o
discurso da escolha torna-se central em So Long a Letter.

ii. Autobiografia e processo narrativo em So Long a Letter


De todos os géneros literários, a autobiografia é a forma preferida de muitas
escritoras feministas dos países francófonos, anglófonos ou lusófonos de África, em que
as histórias ligadas às suas próprias vidas são contadas, muitas vezes, como sendo
representativas da condição e dos problemas das mulheres comuns em África e na
diáspora. As grandes marcas do modo autobiográfico são a sua presumida sinceridade e a
restituição da memória que propõem. A autobiografia é, do nosso ponto de vista, uma
análise introspectiva que serve como uma catarse, bem como uma grande oportunidade
para a avaliação sócio-politica da sociedade em que a protagonista evolui.
Para poder cumprir este papel, o romance autobiográfico adopta uma
subjectividade crítica que busca apresentar-se com uma declarada objectividade. Por
outras palavras, há neste género uma espécie de mistura do que é objectivo, com o que é
subjectivo, numa proporção tal que gera um efeito verosímil. Entre as obras de escritoras

333
africanas francófonas podemos dizer que So Long a Letter2 de Mariama Ba é bem o
exemplo de um romance autobiográfico, devido à utilização que ali se faz de certos
elementos estruturais e estéticos que iremos detectar e considerar ao longo deste capítulo.
Assim vamos focalizar aqui a nossa atenção no modo como este romance sublinha
aspectos de importância didáctica e estética que se tipificam na utilização do género
epistolar. Nesta obra, a carta escrita pela personagem principal à sua amiga de infância é
a maior fonte de informação sobre as vidas quotidianas das mulheres e a percepção que
estas têm sobre si mesmas e os seus problemas. Ou seja, a carta é, a um só tempo, fonte
de informações objectivas e subjectivas, tal como uma obra autobiográfica que delas se
serve como complemento ou suporte de informação.
Dada a subjectividade do romance autobiográfico, este género ainda é tido como o
mais adequado para captar a cadência da vida humana e os seus desejos mais profundos.
É com o romance autobiográfico que o leitor vem a encontrar-se em maior proximidade
com a mulher africana, com os seus dramas pessoais, enquanto seres humanos
discriminados, por via de formas da tradição que impedem a mulher de se tornar um ser
autónomo, de plenos direitos, a todos os níveis.
Na primeira obra autobiográfica escrita pela escritora francófona africana Femmes
d’Afrique: La vie d’ Aoua Keita racontée par elle-même3 (1975), a autora, Aoua Kéita
(1975), focaliza a sua atenção na sua experiência pessoal e na relação interpessoal com os
homens, na vida política. Contudo, esta autora não se preocupou muito com a sua vida
pessoal e a das outras mulheres. Apesar dos seus contactos íntimos com muitas delas,

2
Mariama Ba. So Long a Letter. Ibadan: Heinemann, 1989, traduzido do Original Une Si Longue Lettre.
Dakar: NEA, 1981 por Modupé Bode-Thomas. Esta obra foi originalmente publicada em francês com o
título Une si longue lettre”, no ano de 1980. Na abordagem do nosso tema, utilizaremos a versão da obra
So Long a Letter traduzida pela nigeriana Modupé Bodé-Thomas, em 1981. Todas as nossas citações
serão originadas desta versão da obra, em inglês.
3
Aoua Kéita. Femme d'Afrique. La vie d'Aoua Kéita racontée par elle-mêe [An African Woman. The
Autobiography of Aoua Kéita told in her own words. Paris: Présence Africaine, Cf. Kéita 1975
Este livro trata dos desabafos angustiados de algumas mulheres muçulmanas africanas, oriundas de países
da África Ocidental, como a Guiné, a Costa do Marfim, o Mali e o Senegal. Os relatos nele contidos
descrevem as experiências de infibulação e clitoridectomia, poligamia e branqueamento da pele por parte
das mulheres. O efeito negativo destas práticas é atenuado pela coragem e força destas mulheres cujas
experiências foram aqui divulgadas. No livro, a autora denuncia fortemente a prática violenta que as
impedia de usufruírem dos prazeres das relações sexuais ou de terem um sentimento de orgulho pelos seus
corpos. É importante afirmar que a autora não atribui a totalidade desta responsabilidade aos homens,
porque, do seu ponto de vista, as mulheres africanas são parcialmente responsáveis pelos maus tratos que
lhes são infligidos, devido ao facto de, nestas regiões de África, as populações ainda se manterem fiéis à
continuação das práticas e costumes cruéis que eram, apesar de tudo, um meio para rejeitarem a cultura dos
colonizadores, em épocas passadas. De acordo com a autora, os homens africanos foram assim forçados a
brutalizar as suas mulheres, porque eles mesmos haviam sido menosprezados e levados a sentirem-se serem
inferiores pelos colonialistas.

334
através do seu trabalho como parteira, Keita não se interessou pelas dificuldades sentidas
por outras mulheres, naquilo que podemos designar por ‘a condição da mulher em
África’. Nas palavras de Catherine Mazauric (1984, p.185) é lamentável que Aoua Kéita
não se tenha predisposto a dar mais espaço à sua experiencia e às suas reflexões de
mulher com grande sabedoria de vida, bem como à rude condição das mulheres africanas
no seu meio tradicional. Para Mazauric, um exemplo ilucidativo desse distanciamento de
Kéita, relativamente às dificuldades das mulheres, é o facto de não se encontrar na sua
obra nenhuma alusão às mutilações tradicionais que elas sofreram e às dificuldades
experimentadas durante o trabalho de parto. (Mazauric 1984,-86).

De um modo geral, já observámos que Aoua Kéita (1975), uma das primeiras
escritoras francófonas de renome, não se preocupa muito com os problemas das outras
mulheres na aldeia e na cidade. De facto, como já foi referido anteriormente, mas não é
demais sublinhar, as mulheres africanas foram e ainda são duplamente oprimidas. Em
primeiro lugar, tal como os homens, foram oprimidas pelo colonialismo e pelo
neocolonialismo e, em segundo lugar, continuam a ser perseguidas pelas forças
patriarcais, razão pela qual as mulheres e as crianças, pertencentes ao grupo que, não
sendo minoritário no conjunto da população, continua a ser privado de alguns direitos e
liberdades que a sociedade normalmente oferece ao grupo dominante (Spivak 1988; Said
1984 e Bhabha 1985).
Neste contexto, o grupo dominante é o masculino. Atendendo a esta situação,
também as obras literárias das escritoras femininas francófonas centram a sua atenção nas
dificuldades e no destino do grupo mais desfavorecido, o das mulheres, mas sem
deixarem de considerar a situação de homens, que também vivem situações difíceis, e
procurar também uma solução para o problema deles. A mulher africana moderna,
educada para respeitar a tradição e ao mesmo tempo para se adaptar às normas do mundo
ocidental, enfrenta algumas dificuldades sociais e psicológicas que Anne Oakley (1987)
descreve como “o jugo duplo”. Este jugo consiste em :
The clash between the consequences of women’s status as a
minority group and the democratic egalitarian ideology of our
society which superficially, at least, encourages women to
achieve as much as men and to be equal with them at
significant points in their lives, particularly during formal
education. Women are thus being given two contrary
directions at the same time – be equal (be masculine) and be
unequal (because you are) (Oakley 1987, p.75).

335
As dificuldades inerentes a este duplo jugo são o centro de atenção na obra So
Long a Letter de Mariama Bâ. Aqui, temos uma apresentação clara de uma versão
feminina da vida do homem africano a viver entre dois mundos. A diferença entre
experiências de vida de homens e mulheres africanas é que uma mulher africana está em
colisão com a realidade de três mundos: a tradição, a civilização ocidental e o poder
patriarcal. O homem africano, frequentemente, é também presa da tradição, embora viva
já numa sociedade mais ocidentalizada. Essa vivência entre “dois mundos” traz-lhe
também algumas perplexidades que, contudo, ele supera, já que é o grande beneficiário
do status quo.
O cenário do romance decorre no Senegal, entre meados dos anos 50 e início dos
anos 60, um período que testemunhou intensas actividades nacionalistas e políticas. É
verdade que Mariama Bâ presenciou as lutas nacionalistas e fez parte de um grupo
estudantil feminino, de carácter emancipalista do Senegal ( Pan National Sorority), que
existiu nas então colónias francesas ocidentais africanas, durante aquele período. Mas em
vez de tratar estes assuntos públicos na sua obra, optou por focalizar a sua preocupação
na vida privada, íntima e doméstica das mulheres, vindo, desta maneira, a reforçar o
estereótipo dos papéis atribuídos às mulheres na sociedade africana, na qual, a vida
pública é dos homens e a vida privada fica para as mulheres.
De acordo com Ramatoulaye, no princípio da sua carta, as duas amigas que
surgem a par nesta obra, ela mesma e Aissatou, tinham a mesma experiência de vida
desde a sua infância até à maturidade. Contudo, mais tarde, cada uma delas seguiu um
caminho diferente: “we walked the same paths from adolescence to maturity and later our
lives developed in parallel” (Bâ 1982, p.19). Amigas desde a infância, frequentaram e
formaram-se na mesma escola, escolheram a mesma profissão; casaram-se com homens
diferentes, mas com o mesmo comportamento e princípios morais. Contudo, quando
confrontadas com o mesmo problema, optam por soluções diferentes – Ramatoulaye
obedece à tradição, enquanto Aissatou desafia às normas da autoridade patriarcal.
Como se verifica neste romance, as dificuldades surgem cinco anos antes da morte
do marido, quando este se casa com uma adolescente que era a melhor amiga da sua filha,
após vinte cinco anos de fidelidade e dedicação conjugal. Esta alteração do
comportamento de Modou representa o ponto de maior tensão desta obra, visto que este é
o acontecimento a que autora devota a maior atenção. Verifica-se aqui, parece-nos, uma
tentativa para se aceitar e atenuar a realidade da desilusão de um casamento, mediante a
opção que Ramatoulaye virá a tomar, ficando com o marido e contrariando assim o

336
desejo dos seus filhos. Deste modo ela obedece sem hesitação aos princípios islâmicos
que prevêem a vida poligâmica para o sexo masculino. (Bâ 1982, p.45-6).
Por outro lado, Aissatou não pode ser considerada como uma mera
correspondente epistolar porque ela está a par da situação e do problema que afecta a sua
amiga e, além disto a carta não é efectivamente enviada à sua amiga, pelo que a
personagem Aissatou pode funcionar como uma espécie de alter ego de Bâ. Desta
maneira, podemos dizer que esta estratégia de escrita é uma tentativa para apresentar
Ramatoulaye escrevendo, como se ela fosse a encarnação da própria autora, pesquisando
e procurando situar a origem dos seus próprios constrangimentos.
Goldsmith, (1989:46), no ensaio intitulado "Authority, Authenticity, and the
Publication of Letters by Women", argumenta que, de um modo geral e ao longo do
tempo, tanto estudiosos como leigos têm defendido a teoria de que as mulheres possuem
um dom especial para a expressão epistolar, o que leva a que as suas cartas tenham uma
qualidade natural, cujo nível os homens só conseguem equiparar à custa de muito esforço.
Embora a ficção epistolar seja escrita tanto por homens como mulheres e haja
neste género ficcional pessoas de ambos os sexos, “as vozes epistolares mais aclamadas
são as de mulheres”, (Bower 1990, p.135). Enquanto género feminino, a carta é um meio
utilizado para a transmissão de reflexões pessoais e experiências quotidianas.
Como demonstrámos no capítulo anterior, referindo-nos ao conceito e ao uso da carta
ficcional e do diário em Quarto de Despejo e The Color Purple4, o acto de redigir cartas
dá às mulheres a oportunidade de escreverem e reescreverem a sua própria vivência na
sociedade onde foram anteriormente discriminadas, silenciadas, apagadas e impedidas de
agir ou exprimir as suas ideias e os seus desejos. Neste texto surge-nos, de forma
veemente, o testemunho daquelas que foram excluídas das actividades mais importantes
da sociedade e ficaram confinadas a uma voz indistinta e a uma vida com liberdade
cerceada, onde suprimiram as expressões de desejo para com aqueles que amavam:

.. the act of writing the letter provides women with an


opportunity to write/rewrite themselves in the culture where
they are the ones "prevented [. . .] from acting or speaking
[their] desires, the one[s] left behind at a distance from loved
ones, the one[s] restricted to a private voice"
Bower 1990, p.135.

4
Para uma abordagem detalhada sobre o uso de carta por parte de escritoras femininas como um meio
subversiva veja, hooks (1990); Gates ( 1988) e Liu (1999, 1994, 1998 ).

337
Ramatoulaye, a principal personagem feminina neste romance é quem escreve a
longa carta5 à sua amiga Aissatou, onde revela os seus pensamentos, depois de Modou, o
seu marido, ter morrido. Tendo em conta o conteúdo desta carta, podemos dizer que tudo
quanto Ramatoulaye escreve não é somente uma carta de lamento, no sentido geral desta
palavra. Como se sabe, a cultura senegalesa predominante é muçulmana, e esta cultura vê
com bons olhos a poligamia e a subjugação das mulheres. Embora Ramatoulaye afirme
que ela e o seu marido lutam pela libertação das mulheres, verificamos que ela não passa
por qualquer experiência dolorosa no seio da sociedade patriarcal muçulmana, até ao
momento em que ela e os seus filhos são abandonados pelo seu marido, quando este se
casa com outra mulher. Nesta situação, pode dizer-se, portanto, que a referida carta não é
apenas um acto de lamentação, mas sim um relato que denuncia a evolução de uma
situação que é imperioso combater, isto é, a impunidade com que um homem abandona a
sua família, a mulher e filhos menores, para se envolver com uma mulher.
A partir daí, Ramatoulaye nunca mais terá oportunidade de encontrar-se com o
seu marido, e isto apesar de ser professora numa escola secundária o que lhe dá o estatuto
de uma certa autoridade, decorrente do prestígio de que essa profissão gozava na cultura
francesa que os tinha colonizado e cujos valores ainda prevaleciam na antiga colónia
francesa do Senegal. É esse estatuto que a apresenta como privilegiada relativamente à
maioria das mulheres senegalesas, neste romance.
Apesar disso, e de ela ser bem versada na “superior” cultural ocidental, a sua vida
não deixa de ser restringida e influenciada pelos valores e pelas normas das sociedades
tradicionais. Deste modo, o facto de escrever aquela longa carta, no período dos quarenta
e dois dias de luto - quando ela, de acordo com as normas tradicionais, é obrigada a ficar
confinada a um espaço restrito em meditação -, evidencia uma posição de resistência e
5
Tendo em conta a função dialógica da carta, podemos dizer que Modou é o destinatário da carta de
Ramatoulaye, uma vez que esta deixou de ter a oportunidade de expressar pessoalmente a Modou o amor
que tinha por ela e também o que ela pensava de ele se ter casado com uma segunda mulher. A maioria
dos acontecimentos que Ramatoulaye descreve na carta ocorre quando Modou já não está presente (por
estar morto) e por essa razão, são factos que ele desconhece. Assim, a carta de Ramatoulaye, no seu
conteúdo, tem Modu como destinatário. Contudo, a própria Ramatoulaye pode não estar bem consciente
desta intenção uma vez que ela, explicitamente, endereça a carta a Aissatou. Então, de acordo com Johnson
1988, p.226, o entendimento de que Modou é o ‘ destinatário’ da carta é consequência da “capacidade que
a escrita tem de disseminar sentidos e intensões”. Este aspecto permite-nos considerar também a carta de
Ramatoulaye nos termos que Sussan Lee Carrell designa como “o soliloquio da paixão feminina ou o
diálogo ilusório. Na verdade, tratando-se de um soliloquio, Ramatoulaye está a falar consigo mesma numa
procura desesperada para perceber as razões que levaram Modou a traí-la. Mesmo quando ela
supostamente se dirige a Modou e formalmente endereça a carta a Aissatou. Ela está a procurar de uma
resposta que sabe só poderá encontrar dentro de si mesmo. Desta forma, esta conversa consigo mesma e
formalmente redigida é a busca de uma via para a superação do trauma de ter sido abandonada, sem
compreender as razões para este facto.

338
isso também lhe permite reflectir e testemunhar sobre o percurso de uma vida de
sofrimentos, até então silenciados.
Em face dos pontos de vista acima salientados, fica claro que o objectivo principal
neste capítulo é a denúncia das faltas de respeito por parte de Modou, marido de
Ramatoulaye e a maneira como ela vem a conseguir a sua libertação emocional, através
do acto de escrever a sua longa carta.
Dado que a personagem principal se encontra numa situação difícil no que toca à
sua inter-relação com questões de género, classe, cultura e religião, vamos analisar agora,
a posição de Ramatoulaye no seu papel de uma mulher privilegiada, alvo de atenções por
parte da sociedade e, ao mesmo tempo, desenvolveremos a sua situação enquanto mulher
subordinada, objecto e vítima da cultura patriarcal. Analisaremos também a maneira
como as funções e as características desta longa carta ajudam a aliviar Ramatoulaye do
pesado jugo a que ela até então se submeteu.

ii.b. Conceito e papéis do diário e da carta em So Long a Letter

Logo no princípio do romance, verificamos que Ramatoulaye sente a necessidade


de quebrar o jugo de silêncio imposto pela sociedade patriarcal, passando a exprimir
sentimentos anteriormente suprimidos. De um modo geral, o meio aqui utilizado, a carta,
além de bastante significativo no que toca às questões do género, também tem muito a
ver com a tradição oral africana, para além da sua relação com a tradição da escrita
ocidental. Importa sublinhar neste ponto da nossa investigação que a literatura africana de
hoje é influenciada pelas características da tradição oral, (Leite, 1998; Carvalho, 1990;
Brookshaw, 1990; Finnegan, 1970) como a seguir se evidencia.
De facto, de acordo com Sheldon Geller (1982), os contadores de histórias são os
portadores da narrativa de um povo, designadamente no meio rural, através das histórias
que veiculam conhecimentos e valores morais às populações que, ao anoitecer, se juntam
para os escutar:
The griots are the main repositories of traditional
Senegalese culture. The majority of griots over the age of
forty are illiterate and attended neither European nor
Koranic schools. [. . .] The griots have kept alive the
traditional folk wisdom, which they transmit in the form of
stories and proverbs that provide moral lessons and truths
for the listener to ponder. In the countryside, storytelling
remains one of the most popular forms of recreation in the
evening. Geller 1982, p. 96)

339
Tendo isto em mente, é fácil entender e aceitar que os contadores de histórias africanos
sejam o repositório da cultura tradicional, tal como acontece no Senegal.

E, neste contexto, também faz todo o sentido afirmar que o acto de se escrever
uma carta pode ser equiparado ao acto de se narrar uma história a um público, dada a
forma como encena a comunicação directa, visto que o escritor de uma carta faz como se
escrevesse e conversasse com um leitor ou um ouvinte. Nesta base, o texto escrito de uma
carta é “ uma forma letrada ou literária” que é apropriada para a tradição oral da literatura
africana. E isto, independentemente do carácter intimista ou mais privado que essa via de
comunicação sempre comporta. Neste caso, através da narração, a carta actua como
intermediário entre a oralidade e a expressão escrita segundo o modelo ocidental. Assim,
poderemos dizer que a escrita epistolar medeia entre a tradição africana e a literacia
ocidental, segundo a ideia expressa por Gates (1988):

literacy, the very literacy of the printed book [letter], stood as the
ultimate parameter by which to measure the humanity of [an]
author[‘]s struggling to define an African self in Western letters"
(Gates 131) and because "black people could become speaking
subjects only by inscribing their voices in the written word"
(Gates 1988, p.130, 131)).

Em So Long a Letter, através do uso deste género literário importado do ocidente


que é a carta, as mulheres marginalizadas (Bâ e Ramatoulaye) fazem com que as suas
palavras sejam ouvidas (vistas e lidas) no mundo inteiro, inclusivamente pelos seus
opressores.
Este método de falar através do uso da palavra escrita é transformativo, na medida
em que a técnica ocidental é assimilada e transmutada a fim de desvendar, na opinião de
Barbara Harrel-Bond, (1980:3) “ a tristeza profunda de uma personagem senegalesa, dado
que o romance trata dos problemas das mulheres muçulmanas senegalesas constrangidas
pelo jugo da tradição africana e religiosa, que foram subjugadas e isoladas pela sociedade
patriarcal” Do nosso ponto de vista, So Long a Letter apresenta a situação difícil vivida
pelas mulheres africanas em qualquer estado pós-colonial africano, que se mantenha
predominantemente influenciado pela tradição africana, numa região onde se exerça a
forte presença da religião islâmica.

340
Desta maneira, pensamos que, quanto mais o povo nativo, sobretudo as mulheres
indígenas, absorvem e se fundem ao conhecimento ocidental, mais elas se transformam,
se integram nesse mundo. E, embora isso implique riscos de aculturação, a adopção de
alguns aspectos dos modelos de vida ocidental também levará a mulher africana a uma
maior consciencialização dos seus direitos e à necessidade de tornar mais visível a sua
presença. E, quanto mais elas forem visíveis (lidas), mais elas serão capazes de dar a
conhecer a sua própria cultura e tradições, tanto nos seus aspectos meritórios, como nos
contestáveis. Ao mesmo tempo, a educação e a literacia que, entretanto elas adquiriram,
elevam o seu estatuto, a sua posição social. Na realidade, a capacidade de Ramatoulaye
para escrever cartas (literacia) dá-lhe uma espécie de superioridade sobre as outras
mulheres, para afrontar e superar jugos decorrentes da tradição africana. Podemos dizer
que a técnica transformativa do género epistolar implica o uso da riqueza desta forma de
comunicação, isto é, a carta faz a ponte entre a escrita e a oralidade, na medida em que dá
forma escrita à purga de anseios contidos. Deste modo ela faz os papéis de ligação e
purificação, e mantém ainda o aspecto intimista e dialógico que a carta representa.

A questão que se põe nesta altura é então a seguinte: como é que a escrita desta
carta ajuda esta personagem (Ramatoulaye) a libertar-se do duplo jugo de opressão
masculina e da sociedade patriarcal? Verificamos que este jugo é duplo pelo facto de
Ramatoulaye ser a personagem simbólica da mulher que está submetida a um homem, o
qual, por isso, não a respeita, não se sentindo constrangido ao traí-la. Mudou, atraiçoou-a,
não só no que toca aos compromissos maritais, mas também quanto ao que ela havia
idealizado da vida e que é silenciado, quando ela é abandonada por Modou , o seu
marido, que a troca por outra mulher.

A narrativa de Ramatoulaye é formalmente uma carta e isso fica logo denotado


pelo facto de ela estar endereçada a Aissatou e ter a assinatura de Ramatoulaye, como
remetente. Quanto à questão de saber-se até que ponto, em So Long a Letter, estamos em
presença de correspondência formal entre duas amigas, isso fica confirmado pela
afirmação de Ramatoulaye no passo em que ela diz: "Dear Aissatou, I have received your
letter. By way of reply, I am beginning this diary, my prop in my distress. Our long
association has taught me that confiding in others allays pains" (Bâ 1982, p.1).
Deduzimos ainda que a razão formal para Ramatoulaye responder por escrito à carta de
Aissatou é que elas se encontram fisicamente afastadas uma da outra, já que Aissatou se

341
encontra a trabalhar como tradutora oficial na Embaixada do Senegal nos Estados Unidos
(Bâ 1982, p.32). A carta de Ramatoulaye não continua a ser escrita no dia seguinte, pois
entretanto ocorre a visita de Aissatou. Este facto tornaria incongruente a continuação da
carta, uma vez que as duas amigas, que haviam estado separadas, se irão reencontra a,
como fica expresso no passo inscrito na secção vinte e dois da carta de Ramatoulaye:
"These caressing words, which relax me, are indeed from you. And you tell me of the
'end'. I calculate. Tomorrow is indeed the end of my seclusion. And you will be there
within reach of my hand, my voice, my eyes" (Bâ 1982, p .71-72).

Assim, consideramos que a longa carta de Ramatoulaye não é uma carta no


verdadeiro sentido do termo, porque essa carta não chegou a ser expedida devido a ter
ocorrido o encontro de duas amigas que já estava na iminência de acontecer. E dado que a
carta não foi enviada, ela adquire alguns atributos próprios de um diário. (Perry 1980,
p.117; ; Abbot 1984, p.11; Marten 1985, p.25-6 e Prince 2011, p.478). Mas, por outro
lado, esta carta também não é um diário no melhor sentido do termo, porque
Ramatoulaye não indica a data específica em que a escreveu. Em vez disso, a carta está
dividida em espaços de várias entradas ou secções onde se dá mais atenção ao espaço de
tempo decorrido entre cada uma das suas partes. Por exemplo, a primeira secção
comunica a morte de Modou; a segunda descreve o segundo dia depois da sua morte; a
terceira apresenta os acontecimentos ocorridos no terceiro, oitavo e quadragésimo dias
depois da morte; a décima oitava entrada retrata a proposta do casamento feita por Tamir
a Ramatoulaye, no quadragésimo dia depois da morte do marido, e a vigésima segunda
entrada fala da recepção da carta de Aissatou pela enlutada, decorridos quatro meses e
nove dias sobre a morte de Modou. Vale a pena salientar que noutras entradas do
romance Ramatoulaye não indica uma data ou um dia específico, mas utiliza algumas
expressões temporais tais como “Today”, “Tomorow”, ou “Friday” a fim de significar
uma datação temporal mínima.

Podemos dizer que Ramatoulaye faz uso dessas datas do diário para assim
estruturar e organizar o seu pensamento. Deste modo, os leitores percebem melhor, de
acordo com (Porter 1986, p.3) o desenvolvimento de uma personalidade e a sua
integridade pela forma como cada acontecimento relatado está ligado a um mesmo
tempo, a um acontecimento anterior ou a um momento seguinte. O escritor de um diário é
o único destinatário do relato que ele próprio faz (Martens 1985, p.5). Sendo assim, a sua

342
escrita, em certa medida, contribui para a auto-compreensão e comunicação com outrem,
com o mundo exterior ou algo semelhante (Porter 1986, p.3). Nestas circunstâncias, ao
prestar atenção especial à individualidade ou singularidade do autor, a natureza e as
características do diário inerentes à carta de Ramatoulaye aumentam o factor monológico
desta técnica de escrita, ao prestarem atenção à individualidade ou singularidade do autor,
e também envolvem aspectos dialógicos da carta epistolar ao enfatizar aquilo que se
refere à conversa que a escritora tem consigo mesma através da sua escrita.

É importante salientar que, tanto em So Long a Letter como em The Color Purple
e Quarto de Despejo, as personagens principais sentem a necessidade de desabafar com
alguém através de cartas e diários onde exprimem os seus sentimentos reprimidos. Neste
aspecto, cartas e diários funcionam como pontes ou veículos de catarse. No conjunto
destas três obras, as cartas e diários desempenham três papéis preponderantes: primeiro,
servem como meio para colmatar uma lacuna; segundo, servem como meio para
estabelecer uma ligação entre a escritora e a leitora; e terceiro, ajudam a libertar a alma da
escritora de tanta coisa que a angustiava. Em The Color Purple estas funções são levadas
a cabo através dos momentos intermitentes, esse assomo epistolar - "epistolary seizure" -
em que Celie pega na caneta e escreve a sua carta a Deus e, mais tarde, à sua irmã. Em So
Long a Letter a carta desempenha o papel de uma narrativa e diário e, desta maneira, faz
com que a escrita se torne numa acção contínua, ao contrário da acção intermitente em
The Color Purple onde, de acordo com a observação de Susan Lee Carrell (1982) se
define o momento em que “ a linguagem epistolar se nutre da relação entre os seus
interlocutores, a qual pode ser interrompida e não é necessariamente continuada (p.34) ”.

Passando a um exemplo mais concreto em So Long a Letter, o conceito de


“epistolary seizure" não se refere simplesmente ao momento em que Ramatoulaye pega
na caneta e no papel para escrever. Ele assinala sobretudo o momento em que
Ramatoulaye inicia uma comunicação com a sua interlocutora, Aissatou, a sua amiga de
6
infância e companheira de viagem ao longo do tempo, Na tentativa de Ramatoulaye

6
Sigo a ideia defendida por Mildred Mortimer (1990) que considera Ramatoulaye empreende uma “viagem
interior,” sendo assim alguém que entrou em reflexão, durante o seu período de luto: “Ramatoulaye turns
to the inner journey to obtain knowledge , through self-examination and maturity, through personal
transformation. By examining her own thoughts, memories, and the collective experience of family and

343
para se compreender melhor a si mesma e fazer face ao presente, Assisatou serve aqui
como a força que a traz para o presente. Mortimer (1990, p.70) observamos também que,
enquanto Celie escreve porque sentiu a necessidade de denunciar um crime de estupro
perpetrado pelo seu suposto pai, Ramatoulaye, por seu turno, sente a necessidade de se
auto-justificar e deseja reflectir sobre o seu passado, em relação à vida que teve com
Modou Fall.

Dorothy Blair (1986), na análise que faz a So Long a Letter, nota, com grande
oportunidade, que “a forma epistolar inscrita neste romance permite uma análise
introspectiva dos conflitos interiores da narradora e confere autenticidade às suas
honestas reflexões (Blair: 1986, p.137). Para Dorothy Blair o cenário íntimo reflexões é o
que ela designa por espaço interior da protagonista. Este é o espaço que Ramatoulaye
evoca, fechando os olhos e acedendo a um mundo interior habitado pelas suas
recordações relacionadas com o casamento, a que se associam, necessariamente, as
experiências de uma vivência poligâmica, as consequências do divórcio e as imposições
da lei que subordinam a mulher.

Além disso, devido às características de diário em forma epistolar na narrativa de


Ramatoulaye, esta forma de escrita faz a ponte entre o passado e o presente e ajuda
Ramatoulaye a entender melhor e a fazer face a sua situação presente, deste modo,
Ramatoulaye revive o seu passado através de um estado psicológico presente. Por outras
palavras, em So Long a Letter as funções de catarse, ligação ou colmatação de lacunas
estão relacionadas com a natureza do diário e com o aspecto dialógico da carta.
De facto, o modo como Ramatoulaye escreve o seu diário, avançando no relato de
acontecimentos entrecortados por recuos ao passado (flashbacks), ajuda no cumprimento
das funções de ligação e catarse. Começamos por ver que Ramatoulaye iniciou a escrita
do seu diário no primeiro dia do seu período de luto, anunciando a morte do seu marido,
Modou. As quatro entradas seguintes registam os acontecimentos ocorridos nos quarto
dias a seguir a esta morte. Sabemos disso através do uso dos termos temporais incluídos
na citação seguinte: "This condition of extreme tension sharpens my suffering and
continues till the following day, the day of interment" (Bâ: 1982, p .3); "On the third day,
the same comings and goings of friends, relatives, the poor, the unknown" (Bâ 1982, p

nation emerging from colonialism, Ramatoulaye attempts to gain a heightened sense of maturity”
(Mortimer:1990,p. 70).
344
.5); a secção quarto segue o fim da secção anterior, que encerra com a expressão "Till
tomorrow" (Bâ 1982, p .9); a secção cinco inicia-se com "When I stopped yesterday, I
probably left you astonished by my disclosures" (Bâ 1982, p .11). Verifica-se que tanto
na transição da secção três para a quatro, como desta para a cinco, não há mudança de
página, o que é um processo narrativo inovador relativamente ao que é a norma.
Observamos também que entre as secções seis e dezassete, onde Ramatoulaye recorda os
trinta anos da sua vida em comum com Modou, a escritora não faz uso de expressões
temporais, mas elas reaparecem a partir da secção dezoito: "Yesterday I celebrated, as is
the custom, the fortieth day of Modou's death" (Bâ 1982, p .57). Vale a pena notar que
Ramatoulaye emprega um advérbio de tempo, pela última vez, já na secção vinte e dois,
para referir uma data específica: "Tomorrow is indeed the end of my seclusion" (Bâ 1982,
p.71-2). Outros termos temporais são empregues na secção dezanove: (“Today is Friday”
Bâ 1982, p .63), na secção vinte “Tonight I am restless” Bâ 1982, p .64) e vinte e um (
Tomorrow? What a short time for reflection” Bâ 1982, p .66) onde Ramatoulaye nos
relata o segundo pedido de casamento feito por Daouda Dieng mas estes termos
temporais não indicam os dias preciso a que se referem, só sabemos que isso ocorreu
ainda durante o seu período de luto.

Por sua vez, as Secções vinte e dois a vinte e oito são apenas acontecimentos de
um só dia, o dia antes do isolamento de Ramatoulaye e também o dia antes da visita de
Aissatou.
O facto de Ramatoulaye não utilizar advérbios temporais nas observações em
flashback e nas suas evocações do passado distante, subentende que ela pretende reviver
de forma intensa o seu passado. Importa afirmar que esse flashback começa precisamente
com uma frase em que ela dirige ao marido “Modu Fall, the very moment you bowed
before me, asking me to dance, I knew you were the one I was waiting for …. But above
all, you knew how to be tender. You could fathom every thought, every desire….” (Bâ
1982, p.13). E se Ramatoulaye quase não teve oportunidade de se comunicar com Modou
durante os cinco anos anteriores à sua morte, nesta missiva ela “fala” longamente com o
marido, recordando com forte emoção a memória da vida com ele partilhada, sobretudo a
maneira como ele se empenhou nos seus estudos e o modo afectuoso que utilizou para
conquistar o seu coração. O êxito de Mudou é descrito em pormenor na secção dez do
romance, e na secção treze desta carta onde Ramatoulaye ainda menciona a sua reacção

345
ao saber do novo casamento do seu marido. Finalmente, na secção catorze, Ramatoulaye
informa-nos sobre a maneira como conseguiu ultrapassar as dificuldades inerentes à vida
de uma mulher abandonada. Ainda na secção treze verificamos que os três homens,
Tamsir, Mawdo Bâ, e o sacerdote islâmico foram quem transmitiu a Ramatoulaye a
informação do casamento de Modou com Benetou, nos seguintes termos:

All he has done is to marry a second wife today. We have


just come from the mosque in Grand Dakar where the
marriage took place [. . .]. Modou sends his thanks. He says
it is fate that decides men and things: God intended him to
have a second wife, there is nothing he can do about it. He
praises you for the happiness a wife owes her husband. (Bâ
1982, p.37).

Ao saber deste acontecimento, Ramatoulaye recorda a mudança no comportamento de


Modou e diz-nos o seguinte:

I forced myself to check my inner agitation. Above all, I


must not give my visitors the pleasure of relating my
distress. Smile, take the matter lightly, just as they
announced it. Thank them for the humane way in which
they have accomplished their mission. Send thanks to
Modou, 'a good father and a good husband', 'a husband
become [sic] a friend.' Thank my family-in-law, the Imam,
Mawdo. Smile. Give them something to drink. See them
out, under the swirls of incense that they were sniffing once
again. Shake their hands. How pleased they were, all except
Mawdo, who correctly judged the import of the event. (Bâ
1982, p.38)

Do nosso ponto de vista, Ramatoulaye revive a experiência da traição e do


abandono a que Modou a votou, através da técnica de flashback. No momento em que é
confrontada com esta situação, permaneceu calma e, deste modo, não dá mostras da sua
mágoa e tristeza perante estes três homens, mas na sua carta revela a sua dor por ter sido
rejeitada pelo seu marido. As citações acima referidas dão conta da determinação de
Ramatoulaye em conter e dominar as suas emoções “sorri, não leves o assunto tanto a
sério”; “sorri, dá-lhes alguma coisa para beberem” e também descrevem a provação por
que passou, naquele dia, ao tomar conhecimento do novo casamento do seu marido, além
de revelarem a sua inconformidade perante esta situação. Notamos que o relato do
presente e a recordação do passado se confundem porque a personagem principal, a nosso
ver, não está disposta ou mostra-se incapaz de exprimir devidamente a sua mágoa.

346
A mesma técnica de escrever sobre a sua situação presente prossegue na próxima
secção que começa desta maneira: "Alone at last, able to give free rein to my surprise and
to gauge my distress. Ah! Yes, I forgot to ask for my rival's name so that I might give a
human form to my pain" (Bâ 1982, p .38).

Podemos deduzir que, ao proferir estas frases, Ramatoulaye continua a desvendar


essa mesma história do casamento do seu marido. No entanto, o seu discurso sobre este
assunto é depois continuado já noutra entrada do seu diário. Esta descontinuidade do
discurso relativamente a uma notícia tão devastadora, como é a tomada de conhecimento
do que Modou fizera, é reveladora de uma mudança no seu estado de espírito. Enquanto
na secção anterior ela se mostra abalada, sem conseguir orientar o seu pensamento, nesta
nova entrada do seu diário, já está calma e revela-se capaz de superar o facto de ter sido
traída pelo seu marido. Isto também mostra que enquanto Ramatoulaye se debate com a
questão de decidir permanecer ou não com Modou, não tem, transitoriamente, a
serenidade para dar continuidade ao seu diário sem interrupção.
Desta maneira, se entende que o diário de Ramatoulaye siga o curso psicológico
do modo como ela responde aos acontecimentos e por isso este texto não é mais um mero
relato cronológico dos acontecimentos. Isto explica também o espaço temporal reportado
às próximas três entradas, da dezanove à vinte e uma, onde não é feita nenhuma
referência específica a qualquer dia. Assim, o que é mais importante para Ramatoulaye é
revelar o que pensa e sente em reacção ao abandono de Modou e à proposta de casamento
que lhe foi feita por Daouda Dieng e que não tem condição de aceitar. Deste modo, a
escrita, ao fazer a purgação de experiências penosas, descrevendo as reacções de quem as
sofreu, tem uma função terapêutica.

iii. Acção das personagens principais em So Long a Letter

As principais personagens e a acção por elas desenvolvida é fundamental para


apresentação dos propósitos visados por Mariama Bâ com este seu trabalho, enquanto
romancista com preocupações feministas. Por esta razão, é importante entendermos a
temática que subjaz ao texto desta autora, através da análise do perfil e do papel de
algumas das personagens do romance aqui em estudo, designadamente Ramatoulaye,
Aissatou, Modou e Mawdo. Em So Long a Letter, Mariama Bâ apresenta-nos, em
primeiros planos, claramente duas personagens femininas que se destacam por terem

347
personalidades opostas: Ramatoulaye, a mulher tradicional e submissa e Aissatou, a
mulher libertada. Depois, através do relato de Ramatoulaye, conseguimos saber das
actividades e do comportamento das demais personagens Binettou, aunty Nabou,entre
outras.
Comecemos a análise por Ramatoulaye. É ela quem assume a função de narradora
e também se apresenta como autora das cartas que nos são “lidas”. Isto faz com que seja
simultaneamente narradora e protagonista. É uma personagem que se sente encorajada
pela amizade que estabeleceu com Aissatou e pela atitude de grande determinação que
esta revela face à adversidade. No princípio da narrativa, Ramatoulaye está angustiada
com as circunstâncias da sua vida. E por isso ela escreve à sua amiga para aliviar as suas
tensões e angústias. Enquanto muçulmana Ramatoulaye recorre a Deus para apaziguar o
seu sofrimento depois da morte do marido. Também refere a Deus e a lei da sharia
relativamente à poligamia, quando o seu marido, após vinte e cinco anos de casamento
com doze filhos, casa com Binetou, uma amiga da sua filha. Apesar de Modou a ter
abandonado e ter gastado o seu dinheiro com Binetou, Ramatolaye decide permanecer em
casa do marido, por causa da sua fé. Sabendo que a vida continua, apesar dos seus dramas
pessoais, Ramatoulaye mantém a esperança de recuperar o marido e não deixa por isso de
fazer tudo quanto é necessário em casa. Continua a cumprir todas as suas tarefas como
mãe e garante do sustento de todos, apesar de se sentir sozinha. Para superar a carência e
humilhação do abandono por parte do marido, passa a ir ao cinema, para se distrair, mas
continua a sentir-se só e abandonada. Só encontra paz e conforto na religião e, por isso,
passa a viver para ela. Assumindo uma postura conservadora, começa a proibir à filha o
uso de calças e trajes mais modernos, próprios do ocidente. Quando fala com Aissatou
sobre as dificuldades da vida, Ramatoulaye está, de facto, a reflectir sobre as suas
próprias experiências. E, uma vez que Ramatoulaye e Aissatou, reagiram de modo
diferente à situação de poligamia dos seus respectivos maridos, Ramatoulaye quer saber
se vale a pena manter-se no casamento. Uma coisa que se torna evidente é que ambas
tomaram a decisão certa, de acordo com o carácter próprio de cada uma. Aissatou é mais
radical e representa a mulher que se quer libertar das sujeições da tradição. Por isso, é
uma personagem que suscita a admiração do leitor, de acordo com o contexto e os
propósitos deste romance.

Aissatou, como acabámos de referir, é uma personagem que, neste romance, se


levanta em manifesta condenação de uma cultura opressiva para a mulher. Ela assume

348
uma atitude de oposição radical à tradição poligâmica muçulmana e, neste sentido, é uma
inspiração para Ramatoulaye e para a sua filha Daba. Ela toma o destino da sua vida nas
suas próprias mãos e decide assim abandonar qualquer ligação a um casamento
poligâmico. Sendo claro que não poderá comparar-se em beleza à jovem Nabou, Aissatou
assume que a sua vida continua a ter sentido, que agora, mesmo sem marido, mantém
uma integridade própria, além de que a luta contra uma cultura esclavagista é um desafio
que se torna preponderante na acção desta mulher. Assim, esta personagem é também
uma inspiração para outras mulheres que sintam estar a sufocar sob os caprichos
tradicionais de culturas que as menorizem.

Muita da crítica literária feminina como a que é feita por Agbasiere (1999) e
Chukwuma (1991) saúda Aïssatou como uma verdadeira feminista. Por exemplo, Julie
Agbasiere considera Aïssatou uma mulher de acção “ que pensa pela sua cabeça, sabe
bem o que quer e para onde vai” (Agbasiere 1999, p.75). De modo idêntico Helen
Chukwuma elogia Aïssatou pela sua coragem para derrubar as barreiras da subjugação e
do nihilismo, levando-a a virar as costas à opressão. (Chukwuma 1991, p.32).
Aissatou é uma mulher livre, capaz de reorganizar a sua vida sem precisar de
depender de nenhum homem.

No decorrer do processo de influência que Aissatou vai tendo sobre Ramatoulaye,


assistimos ao doloroso processo de consciencialização que eventualmente poderá levar
Ramatoulaye a tomar uma decisão idêntica à escolha do divórcio, como foi a opção de
Aissatou. Mas, na verdade, Ramatoulaye sente-se apenas fascinada e atraída pela
coragem libertária de Aissatou. Ramatoulaye deseja ser como ela, mas a sua formação e
os princípios de obediência patriarcal que ela interiorizou mantêm-na no dilema da
indecisão que é igualmente vivido por tantas outras mulheres. A relação entre estas duas
personagens e a persistência deste dilema, por algum tempo, representa, a seu modo, a
dificuldade da própria autora para chegar a um entendimento fácil com as propostas do
feminismo. Ramatoulaye quando recusou o divórcio não seguiu o conselho dos filhos
nem deu o passo da libertação radical tomado por Aissatou. Dentro do entendimento do
que a postura tradicional da mulher islâmica, pode considerar-se que Ramatoulaye opta
por uma solução acomodada ou conservadora, mas que, ainda assim é uma atitude
prudente e digna de quem amou apaixonadamente o seu marido. ((Bâ 1982, p.45)

349
É importante sublinhar aqui que as práticas culturais da tradição senegalesa,
dominada pelo Islão, condicionam o procedimento de Ramatoulaye. O Islão encoraja uma
grande dependência da mulher para com o homem, em todos os planos de actividade e de
pensamento. O Corão, o texto sagrado islâmico, declara de modo inequívoco: “Cabe aos
homens tomar conta das mulheres, porque Allah fez com que eles fossem superiores a
elas e porque eles gastam com elas partem da sua riqueza. As mulheres às direitas são
obedientes e submissas. E aquelas que venham a rebelar-se contra esta ordem, o homem
deve advertir, abandonar na cama e bater-lhes”. (Surah 4:34).
Ramatoulaye está naturalmente consciente destas determinações religiosas que
regulam a ordem social do seu país quando decide não tomar a mesma atitude de
Aissatou, ao saber que o seu marido tinha ido viver definitivamente com outra mulher.
Do mesmo modo, quando Moudo, o seu marido, morreu, Ramatoulaye sentiu-se
condicionada pelos procedimentos decorrentes da sua condição de mulher casada que, de
acordo com a tradição e a religião islâmica, deve fazer luto pelo marido durante “quatro
meses e dez dias” (Bâ 1982, p.8). Apesar de, neste caso, se tratar de um marido que traíra
e que abandonara a mulher legítima, em total desrespeito para com os sentimentos dela.
Ramatoulaye também tem receios do que lhe pode acontecer depois do divórcio,
visto que conhece situações preocupantes de algumas mulheres que se divorciaram e
depois tiveram que enfrentar o problema da solidão, para além do da subsistência, entre
outros (Bâ 1982, p.40).
Ao examinar o seu corpo ao espelho Ramatoulaye vê que já não tem a beleza que
outrora deixara muitos homens extasiados, visto que já perdera a cintura fina e o corpo
delgado. Agora tem uma barriga saliente, seios dilatados e pouco firmes, devido aos
longos anos de amamentação dos seus doze filhos. Assim, também por esta razão ela não
tem a coragem de pedir o divórcio, pois, ainda se agarrar à falsa esperança de que o
marido iria voltar. (Bâ 1982, p.56).
Após a morte do marido, alguns homens, incluindo Daouda Dieng, o médico, que
também é deputado no parlamento, tentam conquistá-la. Mas, apesar de ela considerar
que o Dr. Daouda é um homem apropriado, recusa o seu pedido de casamento. Esta
decisão revela que, à maneira tradicional, Ramatoulaye nunca deixou de se manter fiel ao
seu primeiro amor. Revivendo momentos felizes vividos ao lado Modou, que fora um
homem forte e bonito, recorda momentos vividos com este que julgara ser o homem que
sempre lhe estivera destinado: “ Modou Fall, the very moment you bowed before me,
asking me to dance, I knew you were the one I was waiting for” (Bâ 1982, p.13).

350
Por tudo isso, podemos dizer que a personagem Ramatoulaye corresponde àquilo
que a tradição senegalesa espera da mulhar, incluindo uma fidelidade incondicional.
Além disso, esta personagem também serve para dar relevo ao que a tradição espera da
condição de mulher e mãe. A seguinte citação é bem definidora dessa condição conjunta.
A mulher é alguém capaz de amor incondicional e, para além disso, é a protectora dos
filhos na família, é ela que afasta os medos e estabelece a ligação entre o indivíduo e o
cosmos:

One is a mother in order to understand the inexplicable.


One is a mother to lighten the darkness. One is a mother to
shield when lightning streaks the night, when thunder
shakes the earth, when mud bogs one down. One is a
mother in order to love without beginning or end. (Bâ 1982,
p.82-3).

Em obediência aos convencionalismos e à tradição, Ramatoulaye assume-se feliz


na sua condição de esposa e dona de casa. Assim, ela valoriza o conforto e asseio da sua
casa, procurando que tudo ali esteja no seu lugar, que em casa reine harmonia, já que o
lar é o porto de abrigo e de paz que ela construiu durante os últimos vinte cinco anos,
afirmando a propósito:
I love my house. You can testify to the fact that I made it a
haven of peace where everything had its place, that I created
a harmonious symphony of colours” (Bâ 1982, p .56).

Desta maneira, Ramatoulaye faz com que o trabalho doméstico não remunerado
seja valorizado, visto como algo essencial. Aquilo que para muitas mulheres é penoso e
repetitivo, tornou-se assim em algo realmente gratificante. A gratificação vem da visão de
uma pilha alinhada de roupa bem passada, do chão lavado, da flor em botão no vaso
apropriado ou do quadro na parede, na tonalidade e no sítio certo:

Those women we call house wives deserve praise. The


domestic work they carry out, and which is not paid in hard
cash, is essential to the home. Their compensation remains
the pile of well ironed, sweet-smelling washing, the shining
tiled floor on which the foot glides, the gay kitchen filled
with the smell of stews. Their silent action is felt in the
least useful detail: over there, a flower in bloom placed in a
vase, elsewhere a painting with appropriate colours, hung
up in the right place. (Bâ 1982, p.63)

Na sua preocupação constante com o asseio e a ordem, ofende-se quando

351
outras pessoas vêm sujar ou desorganizar a sua casa. E, com a morte de Modou a ida de
milhares de pessoas que vêm prestar-lhe condolências a sua casa, traz grande desconforto
ao seu estado de espírito. Lamentando-se disso, refere o incómodo que lhe causa ver que
aquele espaço de que cuida com tanto esmero, está agora à mercê do descuido de tanta
gente, manchas nas paredes, papéis amarrotados pelo chão, sinal do balanço trágico
daquele dia:

“Cola nuts spat out here and there have left red stains: my tiles, kept with such
painstaking care, are blackened. Oil stains on the walls, balls of crumpled
papers. What a balance sheet for a day! (Bâ 1982, p.7).

Sendo uma mulher que se sente perfeitamente à vontade em casa e que passou
mais de vinte e cinco anos naquele espaço de convívio conjugal, de que cuidou tão
carinhosamente, Ramatoulaye não se sente diminuída, por ter de se isolar nesse espaço
durante o longo período de luto pesado, que lhe permitiu ponderar bem as boas e más
recordações da sua vida passada de mulher casada. A sua casa torna-se, desta maneira,
uma via de regresso aos seus sonhos românticos e a alguns momentos de amarguras,
sendo, no seu todo, uma espécie de extensão da sua personalidade, e acima de tudo, um
importante elemento da sua imagem de auto-realização e satisfação.

The walls that limit my horizon for four months and ten
days do not bother me. I have enough memories in me to
ruminate upon. And these are what I am afraid of, for
they smack of bitterness” (Bâ 1982, p .8)

Ao longo de trinta anos, Ramatoulaye desempenhou vários papéis – como


namorada, esposa, mãe. Quando é abandonada pelo marido, continua a viver na casa onde
via o marido, quando este ia e vinha de cortejar aquela que viria a ser a sua segunda
mulher. Isto só deixa de acontecer quando Modou se casa com a outra mulher: “He never
came after his second marriage” (Bâ 1982, p.46).
Em nossa opinião, as paredes da casa constituem o elemento de impedimento permanente
na vida da protagonista e aquele que a deveria preocupar, e não as desagradáveis
recordações que tem deste último ano. Ao estorvar a sua vista e a visão do horizonte, o
muro da sua casa faz dela uma prisioneira que não pode conceber a vida para além
daquela parede. Assim, fica sem possibilidades de realizar os seus desejos e aspirações,
porque está envolvida num romance morto ou num beco sem saída, dentro do recinto
doméstico em que voluntariamente se fechou. (Bâ 1982, p.142)

352
Como foi referido anteriormente, Aissatou pode ser vista como alter-ego,
personalidade secreta, ou a parte dupla de Ramatoulaye, visto que, quando o seu marido,
Mawdo Bâ, se casa com a segunda mulher, ela faz o que Ramatoulaye pensava que devia
ser feito. Neste contexto, Ramatoulaye reconhece na sua na carta a Aissatou que esta teve
a coragem de tomar o rumo da sua vida, enfrentando o futuro de modo resoluto em vez de
ficar agarrada ao passado: “And you left. You had the surprising courage to take your life
into your own hands…instead of looking back, you looked resolutely to the future” (Bâ
1982, p .32).
A corajosa Aissatou não fica a lamentar o sucedido, encara de frente as suas
dificuldades de modo decidido. Sai de casa, aluga a sua própria casa para si e os seus
filhos, e acima de tudo, procura um meio de obter êxito e tornar-se um modelo para eles.
Volta à escola, forma-se e é nomeada para um cargo na Embaixada do Senegal. E com o
seu elevado ordenado, Aissatou consegue providenciar a Ramatoulaye, a sua amiga, o
que esta sabia que poderia ter dado a si mesma se tivesse tomado a decisão certa devida
altura.

Ao relatar a sua história e a da sua amiga, Ramatoulaye conta também as


histórias de outras mulheres e, através destes relatos dá-nos conta dos seus próprios
receios e inseguranças. A romancista alarga assim o âmbito das histórias destas duas
mulheres, desenvolvidas em paralelo, para incluir nela pares múltiplos, isto permite que
Mariama Bâ reafirme o valor da opção levada a cabo pela personagem Aissatou, ao tomar
a decisão radical de abandonar o marido infiel (Bâ 1982, p.143).

Além disto, ao divulgar as dificuldades enfrentadas por outra vítima de


infidelidade conjugal, como foi o caso de Jacqueline, Ramatoulaye também adquire um
melhor entendimento do seu próprio problema. Ao incluir esta história no relato que faz
da sua vida, Ramatoulaye é levada a interrogar-se sobre a timidez que sempre mostrara e
a sua relutância em tomar uma opção clara, relativamente à sua vida matrimonial. Neste
sentido, aquilo que aconteceu a Jacqueline é uma revelação do que lhe poderia ter
acontecido também. É importante referir que Jacqueline, por ter sido vítima de
infidelidade conjugal, sofreu um colapso nervoso quando foi abandonada pelo marido.
Deste modo, torna-se evidente que Ramatoulaye tem medo de sofrer consequências
idênticas, de deixar o conforto e o luxo da casa sustentada por Modou, a que dedicara
mais de vinte anos, e acima de tudo, não quer ser atingida pela doença mental que

353
vitimou Jacqueline. Devemos sublinhar que Jacqueline virá a ultrapassar a sua depressão
depois de ter recebido tratamento psiquiátrico e ter encontrado uma outra razão para
viver. A solução do caso de Jacqueline reforça assim a ideia de que Ramatoulaye e, por
extensão, a mulher em sentido lato, precisa de encontrar uma razão para viver,
independentemente da sua ligação de dependência ao marido.

Esta técnica de fazer análise à vida das mulheres de modo emparelhado deve ser
considerada como uma parte integrante da acção e serve como estrutura narrativa do
romance. A história de vida de Ramatoulaye é ainda emparelhada à de Binetou, a
segunda mulher do seu marido, Moudou. Mas, neste caso, este relato emparelhado de
vidas surge-nos apresentado de numa maneira diferente, como uma espécie de
justaposição destas duas personagens.

Apesar das diferenças e disparidades entre as suas idades e capacidades, podemos


considerá-las como sendo gémeas, pois elas são muito parecidas nos seus
condicionamentos. Mas cada uma tem inveja uma da outra. Binetou gostaria de desfrutar
do conforto e do bem-estar que Ramatoulaye tem, por ser a mulher com quem Modou
primeiro casou, enquanto Ramatoulaye deseja ter a beleza, o corpo bem torneado da
jovem mulher sua rival que esta usou para conquistar o seu marido. No seu esforço para
manter ou conquistar o mesmo homem, ambas as personagens comprometem a sua
dignidade e integridade. Seguindo o conselho errado da sua mãe, Binetou aceita deixar os
seus estudos e casa-se com Modou, por ele ser um homem rico. E Ramatoulaye, por seu
turno, ao decidir continuar a ser a esposa de Modou, abandona os seus princípios de
condenação da infidelidade marital. É de notar que Ramatoulaye é capaz de perceber que
Binetou é uma vítima inocente (Bâ 1982, p.48), sacrificada aos interesses pessoais da sua
família (Bâ 1982, p.39) mas, devido ao ciúme, não é capaz de ver em Binetou, a sua
própria situação de vítima, igualmente sacrificada a interesses que são igualmente
actuantes, embora derivados de convencionalismos de ordem diferente.

A história exemplar da viúva, Aunty Nabou, a sogra de Aissatou é uma lição de


vida para todas as mulheres como Ramatoulaye. A personagem Aunty Nabou vem a ser
fortalecida pelo facto de ter vivido mais que todos os homens que poderiam controlá-la
ou dominá-la. Sendo agora a mais poderosa, ela exerce autoritariamente este poder,
descarregando a sua raiva antes reprimida sobre os seus filhos e controlando a vida

354
destes, sem se preocupar com a felicidade deles. Para ela, o mais importante é realizar os
seus objectivos. É uma mulher criada e educada dentro das normas da cultura patriarcal e
está submetida aos ditames impostos pelas diferenças de classe social. Esta personagem
torna-se um agente do poder patriarcal, espalhando medo e mantendo a dominação e
subjugação da mulher. Por ter vindo de uma tribo privilegiada e por ter a felicidade de ver
todas as suas filhas casadas com homens ricos e de sangue nobre, não consegue engolir o
insulto de ver o seu único filho, casar-se, sem o seu consentimento, com Aissatou, que era
uma pessoa humilde, filha de um pobre ferreiro, facto que irá desonrar a nobreza da sua
descendência (Bâ 1982, p.28). Por isso, atormenta o próprio filho Mawdo, até que este
aceita casar-se com uma outra mulher, da mesma classe social e por ela escolhida (Bâ
1982, p.30).

Na analise feita à personagem de Tante Nabou, Mbye Cham (1987), caracteriza-a


como uma mulher fina e subtil, de linhagem muito superior a de Aissatou, de quem Tante
Nabou quer afastar o seu filho:

Tante Nabou’s démarch is cool and subtle, quite in


consonance with the canons of comportment of her noble
origin. Her relationship with Aissatou is cold and
antagonistic. She looks down a long ‘geer’ (noble) nose on
this upstart ‘tegg’ (blacksmith) from whom it is her
honorable mission to wrest her son who caste sin she cannot
bear to live with. (Cham:1987, p.94)

Aunty Nabou, é uma personagem de comportamento tradicionalista censurável,


que pode ser emparelhada com a personagem de Ramatoulaye através de alguns
incidentes e características relatadas no romance, nomeadamente, os seguintes: ambas são
viúvas; os seus comportamentos para com as suas filhas adolescentes revelam uma
tendência conservadora de não-aceitação de novas modas, como o hábito de fumar, que
surpreende e horroriza Ramatoulaye (Bâ 1982, p.77); outro exemplo é a repreensão dada
ao seu genro, por este ajudar a esposa a efectuar alguns trabalhos domésticos ou o seu
comentário preconceituoso sobre a pobreza e a inferior origem social de Aissatou
(“Mawdo raised you up to his own level, he the son of a princess and you the child from
the forges” (Bâ 1982, p.19) e finalmente a sua antipatia para com a mãe de Binetou, que é
ironicamente considerada como uma mulher de classe duvidosa “Lady Mother-in-Law
(Bâ 1982, p.49).

355
Por tudo isso, podemos dizer que Nabou é uma advertência ao que Ramatoulaye
poderia vir a tornar-se, se não procurasse libertar-se de seus atavismos e preconceitos.
No entanto, a parte final da comunicação epistolar está repleta de pensamentos
positivos. Apesar de toda a mágoa e humilhação por que já passara, Ramatoulaye não se
dá por vencida e mantém ainda a esperança de refazer a sua vida. Quer saber se, na
realidade, a felicidade existe e tem sentido. E admitindo que sim, parte à sua procura.
Apesar de Ramatoulaye criticar a dominação dos homens sobre as mulheres,
observamos que nem ela, nem a maioria das mulheres querem participar na política e na
vida pública. Em vez de participar nestas actividades públicas, sempre exigentes,
Ramatoulaye lamenta-se ao Doutor Daouda Dieng, dizendo que há poucas mulheres no
parlamento. Isto leva Dieng a retorquir-lhe de imediato que ela própria sempre preferira a
vida mais acomodada da tradicional dona de casa confinada a um espaço físico restrito
que, de resto, configura o seu próprio confinamento psicológico face a atavismos
inelutáveis:
You who are protesting; you preferred your husband, your class, your children to public
life (Bâ 1982, p.62).
Parece-nos assim que, do que ela precisaria mesmo seria de libertar-se da sujeição
à solidão a que se submeteu na sua própria casa e sair para o espaço público em aceitação
do desafio de realização e auto-emancipação.
Aissatou e Ramatoulaye, embora tenham crescido juntas e frequentarado a mesma
escola, são personagens totalmente diferentes. Enquanto Ramatoulaye aceita as restrições
impostas ao género feminino na sociedade senegalesa, em consequência da tradição e da
educação colonial que recebeu, Aissatou recusa ver-se restringida por ditames
decorrentes da condição de género, mesmo tendo recebido educação idêntica. Se
Ramatoulaye se sente confundida e incapaz de lutar contra as práticas tradicionais
patriarcais, que assimilara tão convictamente, Aissatou sente-se fortalecida pelo
conhecimento adquirido através da sua experiência de vida, o que a leva a conseguir
alcançar o seu objectivo de auto - emancipação e libertação do jugo patriarcal. Embora a
sua atitude seja condenada pela sociedade, consegue libertar-se do conformismo a que se
submetiam tantas outras mulheres e torna-se uma pessoa com grande êxito pessoal e
profissional.
Como nota conclusiva à análise das personagens femininas, podemos ver que
Aissatou e Ramatoulaye são as personagens nucleares e representam duas atitudes
possíveis face aos valores da tradição. Uma posição de afrontamento declarado como é a

356
postura de Aissatou ou uma atitude de indecisão como é o caso de Ramatoulaye, que está
divida entre o peso da tradição que acorrenta as mulheres, mas tem dificuldade em
assumir uma atitude mais contestária e independente. No entanto Mariama Bâ mostra-
nos que a ambivalência de Ramatoulaye, enquanto representante de uma parte
significativa das mulheres senegalesas, tem, em latência, o desejo e a possibilidade de
uma maior autoafirmação. Para significar a superação dessa tradicional submissão,
Ramatoulaye virá a concordar com Aissatou na necessidade de uma oposição mais
radical às tradições patriarcais que acorrentavam e subjugavam as mulheres. O projecto
desta problematização feito por meio da correspondência epistolar entre estas duas
mulheres servirá assim, para mostrar a extensão e os dilemas com que a própria Mariama
Bâ se debateu, em consequência da sua formação em moldes tradicionais, por um lado,
mas também do sentido crítico colhido na sua vivência de mulher casada e depois
divorciada, além da maior abertura de espírito de que beneficiou por ter vivido no
estrangeiro.
As diferentes tomadas de posição das duas personagens principais deste romance
repercutem-se no desenvolvimento da narrativa, revelando um comportamento
diferenciado destas personagens quando enfrentam a força de uma mesma tradição. É
verdade que Aissatou e Ramatoulaye são amigas, mas, no que toca aos seus desejos e
comportamentos, elas são totalmente diferentes. Contudo, nenhuma destas duas
personagens é censurada ou elogiada pela atitude que toma perante os problemas que
enfrenta. Esta mesma ambiguidade é entrevista no tratamento do tema da poligamia, (que
será posteriormente observado com devido detalhe na próxima secção deste capitulo) que
nunca é explicitamente condenada, embora os seus efeitos negativos sejam destacados.
Seria de esperar que, perante esta situação em que a poligamia relega a mulher para uma
posição secundária, uma feminista devesse adoptar uma postura de condenação mais
veemente.
Tal como o discurso de Aoua Keita (1975), o discurso de Mariama Bâ é
classificado ou como fazendo parte do discurso masculino dominante, ou de uma tradição
liberal feminista nascente que virá a ser desenvolvida e divulgada pelas escritoras da
próxima geração. Este discurso procura encontrar um compromisso, dentro do existente
acordo tácito que subsiste na sociedade patriarcal senegalesa, que já não é o de uma
aceitação integral da tradição, mas que ainda a respeita, numa atitude de conciliação entre
tradição e modernidade, que traga mais equidade de tratamento nas relações entre homens
e mulheres.

357
Tal como as escritoras que a antecederam nesta análise, Mariama Bâ apresenta as
suas personagens femininas de forma realista, para evidenciar as dificuldades com que
estas se defrontam numa sociedade dominada pelos homens e pela opressiva tradição
patriarcal.

Uma vez vista a relevância das personagens femininas, interessa considerar


também o posicionamento do conjunto das personagens masculinas neste romance pelo
contraponto que eles representam ao anseio da vontade das mulheres para uma maior
paridade de direitos.

iii.b. A dualidade de perfil das personagens masculinas em So Long a Letter

Através da análise das personagens Modou e Mawdo pretende-se verificar como


os homens manipulam tradições, religiosas e sociais que foram estabelecidas pelo
patriarcalismo7, instituição social caracterizada por uma estrutura de poder que não
permite igualdade nas relações de género, como por exemplo no casamento.
No princípio do romance, Modou morreu de um ataque cardíaco. Alguns
anos antes da sua morte e continuando casado com Ramatoulaye, há já vinte cinco anos,
Modou casou-se com outra mulher, Binetou, amiga da sua filha, Daba. Apesar de
Ramatoulaye ter decidido não sair do casamento que mantinha com Modou, este
abandonou-a e passou a estar todo o tempo com a sua mulher mais jovem, Binetou, numa
linda vivenda que comprou para ela. Além disso Modou gastou todas as suas poupanças
com Binetou e com a mãe dela. Deste modo, quando morreu ele não tinha nada para

7
Literalmente, este termo significa “ o governo pelo pai”. De acordo com Barret (1980), é difícil ver este
termo definido em textos antigos e ele também tem sido usado pelos críticos, com diversas acepções.
Pateman (1988) citando Weber (1947), diz-nos que ele se refere a um sistema de governação em que os
homens dominaram sociedades (tanto homens ainda sem família, como mulheres) através da sua posição
como chefes de família. É importante sublinhar, por sua vez, que feministas radicais como Daly (1978),
Rich, (1986 & 1993), MacKinnon (1983), Hartmann (1979, 1981 b), Wabby (1989) e Delphy (1977, 1984),
apenas se insurgem e denunciam a dominação opressora de homens sobre mulheres. Adrienne Rich,
especificamente, define patriacalismo como “the power of the fathers: a familial-social, ideological,
political system in which men – by force, direct pressure, or through ritual, tradition, law, and language,
customs, etiquette, education, and the division of labor, determine what part women shall or shall not play,
and in which the female is everywhere subdued under the male” (Rich, (1986, p.57). Na mesma linha de
entendimento, Wabby (1989, p.23-4), distinguiu duas formas de patriarcalismo, privado e público. O
patriarcalismo privado é baseado na relação de produção dentro do lar, sendo este o principal lugar da
opressão sobre a mulher. O patriarcalismo público exerce-se em lugares públicos, tais como no emprego e
na organização do estado. No patriarcalismo privado a expropriação do trabalho das mulheres é feita
principalmente, de modo individual, pelos patriarcas no interior das suas respectivas casas, enquanto que no
espaço público ocorre uma apropriação mais colectiva. No patriarcalismo privado, a principal estratégia é a
exclusão; no público é a segregação e a subordinação.

358
deixar aos seus filhos a não ser dívidas e encargos, como nos revela Ramatoulaye:“Dead
without a penny saved. Acknowledgement of debts? A pile of them: cloth and gold
traders, home-delivery grocers and butchers, car-purchase installments.” (Bâ 1982, p.9).
Na cultura Wolof diz-se que o homem é um Jeker Këer, isto é, literalmente, o
homem da casa e por extensão, o “primeiro na casa”, um título que reflecte as
prerrogativas e as responsabilidades do homem para com a sua família. Mas por ter
abandonado a sua mulher e filhos, Modou desfez-se assim mesmo desta condição
familiar. Habitualmente, de acordo com a tradição, qualquer homem procuraria assegurar
que a sua família ficava com uma situação segura e financeiramente estável, mas Modou,
até a hora da morte não chegou a comprir as suas obrigações.
Modou, enquanto personagem é alguém influenciado pelo Islão e pelas crenças
tradicionais de Wolof. Ele justifica o seu casamento com Binetou como algo predestinado
por Deus, vontade superior que ele não podia alterar. O Imã confirma isto quando
anuncia a Ramatoulaye o novo casamento do seu marido com Binetou, dizendo-lhe o que
Modou lhe pedira para transmitir:. “ Modou …says it is fate that decides men and thing:
God intended him to have a second wife; there is nothing he can do about it” (Bâ 1982,
p.37).
Modou, tendenciosamente procura que a sua justificação possa ser vista como
uma questão de fé, na crença de que o seu destino tinha sido já traçado por Deus, o que o
impossibilitaria de proceder de outro modo. Contudo, ele não está a seguir os
ensinamentos da religião islâmica que “aconselham os homens que sejam polígamos a
darem tratamento igual às suas esposas” (Ahmed 1992, p.88). Através da representação
que é feita da personagem de Modou, Bâ denuncia os homens que exploram a religião e a
tradição patriarcal no seu próprio interesse. Tal como Cécile Accilien (2008) assinala no
seu ensaio Rethinking Marriage, a religão serve aqueles que têm e querem manter o
poder, procedendo como melhor lhes convém: “religion is an excuse and a weapon used
for those with power, mostly males, to maintain the status quo and to do what pleases
them” (Accilien 2008, p.75).
A observação feita por Accilien tem todo o cabimento na caracterização do
comportamento de Modou, na situação em que este se serve do Imã para informar
Ramatoulaye do seu casamento com Binetou. Neste passo do texto, Bâ mostra-nos como
o poder religioso anda de mãos dadas com as práticas patriarcais.
Usando da posição de tradicional privilégio dos homens, Modou consegue fazer
sozinho a hipoteca da casa que ele e Ramatoulaye tinham comprado e pagado juntos, sem

359
ter de a informar: “This house and its chic contents were acquired by a bank
loan…Although the tittle deeds of this house bear his name, it is nonetheless our common
property, acquired by our joint saving” (Bâ 1982, p.10). Além disso o casamento de
Modou com Binetou apanhou Ramatoulaye de surpresa. E ao fazer isso, ele não só
desrespeitou como também violou as regras da fé islâmica no que esta recomenda quanto
ao modo para se ter uma segunda mulher. O comportamento de
Modou não deve servir para ilustrar o procedimento mais comum em relacionamentos
islâmicos ou outras uniões polígamas existentes no Senegal. Deve ser antes visto, tal
como Obioma Nnaemeka considera, o acto irresponsável de um marido caprichoso, de
uma espécie de “tio rico” e que não tem nada a ver com a instituição da poligamia:

the foolish act of an irresponsible, wayward spouse and


sugar daddy that has absolutely nothing to do with the
institution of polygamy as inscribed both in Islamic laws
and African culture. . . . The polygamous institution in
traditional African society is not designed to spring such
devastating, lunch-hour surprises. Usually, the first wife
participates in marriage ceremonies performed on behalf of
her co-wife” (Nnaemeka 1996, p.177-8).

A posição em que Modou se encontra revela-se contraditória. Ele está consciente


de que, de acordo com a tradição, o homem pode casar-se com mais do que uma mulher,
mas ele também sabe que a tradição desaprova o homem que abandona a sua mulher e
família. E Modou não consegue reconciliar estas tensões antagónicas, na sua vida.
Assim, Modou opta por reinterpretar a sua religião e tradição, de modo a que estas se
adequem ao que mais lhe convém. Desta maneira, ele pode desfrutar dos privilégios da
condição masculina e não ter em conta as responsabilidades que estão associadas a essa
condição de privilégio.

Outra personagem masculina que usa os privilégios da condição patriarcal para


manipular a tradição em favor dos seus propósitos egoístas é Tamsir Fall. Após a morte
de Modou, Tamsir propõe casamento a Ramatoulaye, fazendo uso da tradição que lhe
permite casar-se com a viúva (lei do levirato). Este é um momento definidor pois leva
Ramatoulaye a reconhecer que estivera silenciada ao longo de vinte cinco anos de
casamento. Mas agora ela não se vai calar e vai escorraçar Tamsir dirigindo-se a ele de
modo desabrido, negando-se a ser um objecto que pudesse ser passado de mão em mão:

360
You forget that I have a heart, a mind, that I am not an
object to be passed on from hand to hand. You don’t know
what marriage means to me: it is an act of faith and of love,
a total surrender of oneself to the person one has chosen and
who has chosen you (Bâ 1982, p.58).

Com este passo do texto, Bâ mostra-nos que ninguém pode ser silenciado para
sempre. Quando são forçadas a isso, as mulheres são tão capazes como os homens de
exteriorizarem as suas necessidades e desejos. Bâ também reprova a noção de que as
mulheres possam ser vista como propriedade de alguém, algo que está implícito na lei do
levirato. No entanto, é justo que se diga que a lei do levirato se destinou, inicialmente, a
providenciar o sustento doméstico, económico, material e moral a mulheres, viúvas e aos
seus filhos que, por terem ficado órfãos precisavam de continuar no seio da família, de
modo a que esta cuidasse deles. Contudo, o casamento pela lei do levirato está hoje em
dia grandemente desvirtuado, levando a que as mulheres passam de um homem para
outro, como bens que são herdados e não como seres humanos. Os costumes tradicionais
são partes da vivência social, mas quando as pessoas lhes dão mau uso para os seus fins
egoístas, tais costumes tornam-se uma fonte de problemas. Neste caso, o casamento de
Tamsir com Ramatoulaye seria apenas uma perversão da tradição, já que o seu único
objectivo era a exploração de Ramatoulaye, considerando que ela, pela sua condição de
professora, seria um bom activo económico. Nesta persectiva, este casamento seria uma
oportunidade de ouro, pois Tamsir dificilmente era capaz de suportar as despesas das três
mulheres e vários filhos que ele já tinha. Ele estava assim pronto para colher o benefício
dos proventos da nova mulher. Enquanto para Modou, a poligamia era uma boa desculpa
para andar atrás de raparigas tão jovens como a sua filha, para Tamsir, a poligamia
permitir -lhe-ia colher onde nunca plantara. Tamsir é assim apresentado como um
oportunista que procura manipular as tradições a seu favor, mas Ramatoulaye não suaviza
as suas palavras quando rejeita a proposta que este lhe faz, recusando-se assim a ser
apenas mais uma, entre a colecção de mulheres que apenas serviam a Tamsir para a
solução dos seus problemas económicos:

What about your wives, Tamsir? Your income can meet


neither their needs nor those of your numerous children. To
help you out with your financial obligations, one of your wives
dyes, another sells fruits, the third untiringly turns the handle
of her sewing machine. You, the revered lord, you take it easy,
obeyed at the crook of a finger. I shall never be the one to
complete your collection. (Bâ 1982, p.58)

361
Ao desafiar as intenções de Tamsir que, fruto de erradas concepções de
masculinidade, procurava coisificar a mulher, Ramatoulaye afirma, deste modo, a sua
própria individualidade e valor pessoal. Ela tem a lucidez para ver e se opor às
consequências da poligamia, o que, Tamsir levado pela sua cupidez e ganância, não quer
ver. Deste modo, Ramatoulaye, ao contrário de Tamsir, percebe bem como a poligamia
prejudica homens e mulheres, toda sociedade.
Uma outra personagem masculina que usa a tradição e a religião em proveito
próprio é Mawdo, que se serve também destas tradições e costumes que levam aos
padecimentos que Aissatou, a melhor amiga de Ramatoulaye, veio a enfrentar. Mawdo
tinha casado com Assisatou contra a vontade da mãe deste. Como já foi referido na
análise feita às personagens femininas, a mãe de Mawdo, Tante Nabou não suporta o
embaraço de ver o seu filho casado com a descendente de uma família de menor nível na
comunidade, como era o caso da casta de ouvires de onde proveio Aissatou.
Este tipo de embaraço sentido por Tante Nabou, face a uma nora de menor
condição social, representa um uso reprovável da tradição como forma de dissimular
preconceitos e intenções egoístas. E o mesmo se pode dizer de Mawdo, que ao casar-se
com a jovem Nabou, estaria a pretender repor, com esse segundo casamento, a ligação a
uma pessoa de equiparado nível social, para, de acordo com a tradição, não rebaixar o seu
estatuto social. A diferença entre a situação preconceituosa egoísta de Tante Nabou e seu
filho Mawdo, tem a ver com a questão de género. É que ele, nesta nova condição, será
também beneficiário dos dividendos que as tradições patriarcais conferem ao homem
através de instituição da poligamia. Contudo isto não pode ser tido como uma desculpa
aceitável, já que se Mawdo foi capaz de desafiar a tradição quanto casou com Aissatou,
ele também podia rejeitar a tradição quando esta implicou a aceitação de uma relação
conjugal em poligamia. Deste modo, o facto de ele aceitar de livre vontade, uma relação
poligâmica pode ser visto como uma forma de dar curso à sua lascívia disfarçada de
masculinidade. Por sua vez, Aissatou olha para essa decisão do marido como algo
desprezível, pois que ao casar com a jovem Nabou, Mawdo a traiu e isto é uma atitude
que a desaponta completamente, após tantos anos de casada. Este desapontamento é
reforçado por ela considerar que a poligamia é uma prática do passado e que este sistema
de casamento que havia sido institucionalizado para socorrer as dificuldades
socioeconómicas de quem enviuvava, já não tem qualquer validade. Por estas razões,
Aissatou não está na disposição de partilhar Mawdo com outra mulher, sabendo que

362
Mawdo representa o tipo de homem que não se preocupa com os sentimentos nem com a
dignidade das mulheres. E, na verdade, Mawdo afirma que não gosta da sua nova mulher
e que só se casou com ela para satisfazer o desejo da sua mãe, para reabilitar o estatuto
social da família. Mas o marido manterá uma relação sexual frequente com a jovem
Nabou e a prova disso é a sucessão de filhos que ele ainda terá dela. Esta circunstância
mostra que Mawdo não é um homem sincero, tem um carácter fraco ou oportunista, uma
vez que alega estar a agir por vontade da mãe.

Em So Long a Letter, Mariama Bâ apresenta-nos outra personagem masculina,


Daouda Dieng, que à semelhança de Mawdo apresenta traços de ambiguidade de
comportamento e de carácter que importa considerar. Ele é um homem já com idade
avançada (Bâ 1982, p.59), mas que no passado foi o primeiro pretendente de
Ramatoulaye, tendo chegado a ser deputado na Assembleia Nacional. Quando eles eram
mais novos, o jovem educado e rico que era Daouda Dieng foi a primeira escolha dos pais
e familiares de Ramatoulaye. Mas então, ela rejeitou Daouda Dieng para casar-se com
Modou. Ramatoulaye descreve Daouda Dieng como um bom marido que envolveu a sua
mulher na sua carreira política e refere as numerosas viagens que ele fez, bem como o
grande número de apoios que recebeu e que o ajudaram a progredir no seu círculo
eleitoral. (Bâ 1982, p.67).
Por outro lado, tal como declara a Ramatoulaye, Daouda Dieng defende que as
mulheres são uma componente fundamental de uma nação e que elas não deviam limitar
as suas actividades a tomarem conta dos maridos e filhos, mas que deviam envolver-se
também na vida pública (Bâ 1982, p.61-62). Deste modo, ele encoraja Ramatoulaye a
envolver-se na vida política e também mostra interesse em estar ao corrente do que vai
acontecendo no país. Pelo facto de ele ser a favor da igualdade de oportunidades para as
mulheres no governo e trabalhar para a mudança da situação vigente, os seus colegas na
Assembleia Nacional chamam-no “feminista”:
You are echoing my speeches at the National Assembly,
where I have been called a “feminist”. I am not, in fact, the
only one to insist on changing the rules of the game and
injecting new life into it. Women should no longer be
decorative accessories, objects to be moved about,
companions to be flattered or calmed with promises…
Women must be encouraged to take a keener interesting in
the destiny of the country. (Bâ 1982, p.61).

363
Contudo, ele não vê contradição entre este seu posicionamento progressista e o
facto de pedir a Ramatoulaye para ser sua segunda mulher, logo a seguir à morte do seu
marido. Numa atitude de um tradicional paternalismo, Daouda Dieng sente que qualquer
mulher que fique viúva precisa de um homem para a proteger e assim, uma vez mais, ele
declara a Ramatoulaye o seu duradouro amor para com ela:
I have the same feeling for you as I had before. Separation,
your marriage, my own, none of these has been able to sap
my love for you. Indeed, separation has made it keener;
time has consolidated it; my advance in years has purified
it. I love you dearly, but with my head. You are a widow
with young children. I am head of a family. Each of us has
the weight of the “past” to help us in understanding each
other. I open my arms to you for new-found happiness; will
you accept? (Bâ 1982, p.65)

Ramatoulaye sente-se tocada pela afirmação deste amor, mas recusa a proposta de
Daouda Dieng e envia-lhe uma carta, lamentando não poder aceitá-la e explicando que o
tem em grande estima, mas que os sentimentos dela para com ele não são tão fortes que a
levem ao casamento. Mais importante do que isso, tendo já sido casada, Ramatoulaye
está consciente dos problemas inerentes à poligamia. Daouda já é casado e Ramatoulaye
não pode imaginar-se a ser a causadora da infelicidade de outra mulher. Ela não aceita ser
cúmplice na perpetuação de situações de poligamia. Deste modo, a recusa de
Ramatoulaye à proposta de Daouda não é só uma forma de afrontamento à ideologia da
masculinidade dominante. A sua atitude é também um indicador inequívoco da
solidariedade para com as outras mulheres. Ramatoulaye está consciente de que, na
sociedade patriarcal, essa solidariedade é absolutamente necessária para se vencerem os
problemas colocados às mulheres pela poligamia. Neste sentido, Ramatoulaye
corresponde aos anseios de numerosos críticos como D’Almeida (1976), Ogundipe
(1987), Fofana (2002), entre outros, que pugnam por uma mudança de condição da
mulher, a qual será conseguida num esforço de unidade solidária: “a greater solidarity
among women is needed to alleviate the agony women go through in polygamous
situations” (D’Almeida 1986, p.164).

A análise das personagens masculinas já feita, designadamente a Modou, Mawdo


e Tamsir evidencia um tipo de homem que beneficia e se aproveita da condição de
privilégios que uma sociedade regida em moldes patriarcais, como a senegalesa, lhe

364
confere. Daudoa Dieng representa um senegalês dividido entre o reconhecimento da
necessidade de mudança que dê maior igualdade às mulheres e a tentação de continuar a
beneficiar dos valores com que a tradição ainda favorece os homens naquele país.
Além deste perfil de homens, em So Long a Letter surge-nos também uma
personagem que podemos classificar como representante do “homem novo”, alguém que
considera as mulheres como parceiras, que as vê como aliadas na luta contra a dominação
masculina e também resiste à pressão social para se conformar com o status quo. Abou
tipifica esta nova atitude na obra aqui em estudo, como referência menos frequente mas
desejável de um crescente número de pais e maridos que se preocupam com a família e
respeitam as suas mulheres, reconhecendo-lhes direitos iguais. Abou é
casado com Daba, filha de Ramatoulaye e acredita na igualdade de direitos entre marido e
mulher. A sua relação com Daba é baseada no respeito, no amor e na complementaridade.
Eles concedem direitos iguais, um ao outro, o que não é usual na sociedade Wolof,
mesmo entre as gerações mais jovens. Ele afirma de modo muito claro, o entendimento
que tem de que Daba, a sua mulher, não é propriedade sua, quando diz à sua sogra: “Daba
is my wife. She is not my slave, nor my servant” (Bâ 1982, p.73). Esta é uma afirmação
que deixa Ramatoulaye contente e que a leva a exprimir a felicidade que sente pelo
casamento da filha, do seguinte modo:

“I sense the tenderness growing between this young couple, an


ideal couple, just as I have always imagined. They identify
with each other and discuss everything so as to find a
compromise” (Bâ 1982, p.73-4).

Este compromisso por direitos iguais e pela aceitação da noção de complementaridade


entre os membros do casal é também o posicionamento de Bâ, para quem, como daqui se
releva, a condição de género não pode ser um factor discriminatório na vivência social.
Através de Ramatoulaye, Bâ advoga o tipo de relação que Charles Nnolim (1994)
defende no seu ensaio “accommodation,” um conceito que busca preparar o caminho para
um relacionamento mais igualitário entre homens e mulheres, alagando deste modo a
possibilidade de se vir a conseguir uma ordem social mais igualitária. Neste ensaio
Nnolim afirma que não há nenhuma razão para a autoridade ou para hegemonia do
homem no seio familiar:
[man and woman] pool together resources. There is no
question of the male’s authority and hegemony in the

365
family under loving, mutually respectful relationship”
(Nnolim 1994, p.252).

Embora Abou seja uma personagem secundária em So Long a Letter, o seu perfil
é exemplo e esperança de uma nova atitude dos homens para com as mulheres, nesta
região de África. Esta personagem também nos permite mostrar que a caracterização dos
homens feita pelas escritoras africanas não se cinge à crítica de concepções hegemónicas
da masculinidade. Os homens não são apenas os opressores que tentam aliviar as suas
frustrações por meio de procedimentos agressivos contra as mulheres, usando-as como
válvulas de escape. Apesar das expressões de dominação masculina que dificultam tanto
a vida das mulheres, alguns homens há que rejeitam o papel de opressor e adoptam
diferentes formas de comportamento dentro do contexto da vida familiar. Estes são o que
designamos por “ homem novo”, aqueles que nos mostram novas formas possíveis de
masculinidade. Homens como Abou, reconhecem a necessidade de autoafirmação da
mulher e também que as atitudes decorrentes da uma tradicional dominação masculina, já
não têm cabimento na sociedade contemporânea.

iv. Os temas abordados


São diversos os temas que nos são apresentados em So Long a Letter. Entre eles,
sobressai a reflexão que é feita sobre o lugar da mulher na sociedade, a denúncia da
condição de desfavor em que ela se encontra na sociedade senegalesa, e a necessidade de
as mulheres lutarem por conseguir uma mais justa partilha de direitos, relativamente aos
homens.
Mas esta luta das mulheres contra a discriminação de que são vítimas debate-se
com uma comum falta de solidariedade feminina, o que faz com que as mulheres acabem
por ser inimigas de si mesmas, quando precisavam de estar unidas contra a força da
tradição e o poder das estruturas patriarcais, ainda maioritariamente vigentes. Neste
contexto, a família é aqui tematizada como usual guardiã da tradição que subjuga as
mulheres. Um outro aspecto que é fraccionante e impeditivo de uma maior solidariedade
no feminino é o sistema de castas, que hierarquiza o posicionamento das famílias dentro
de sociedades conservadoras, como a senegalesa. Mas se a solidariedade no feminino
ainda não tem a expressão de unidade de que carece, há aspectos de amizade e de
solidariedade feminina que aqui nos são apresentados como a via para a superação da
presente situação de discriminação das mulheres.

366
A importância da mulher como educadora dos filhos, além de geradora da vida, é
uma tematização que aqui também é recorrentemente tratada. De igual modo, o acesso a
um maior esclarecimento é aqui apresentado por Bâ como algo que a mulher pode
encontrar na leitura, pelo que, neste sentido, também se faz em So Long a Letter, a
tematização do livro como uma arma que interliga e divulga caminhos para a evolução da
sociedade. Esta evolução, que propõe um tratamento igualitário para homens e mulheres,
naturalmente reprova a poligamia que, nas suas consequências se assume como um tema
permanente ao longo de todo este romance.

A relação de amizade solidária que se estabelece entre Ramatoulaye e Aissatou


será a via condutora para a apresentação do tema da solidariedade feminina, em resultado
de uma maior tomada de consciência de direitos, por parte das mulheres. É através dos
laços de amizade que se vão fortalecendo ao longo da narrativa entre as duas personagens
femininas principais, que a autora salienta a importância da solidariedade feminina. Ao
mesmo tempo, mostra Ramatoulaye como sendo uma personagem ambivalente quanto
aos seus sentimentos e comportamento para com Aissatou. Esta ambivalência é uma
forma de insegurança que permite revelar também até que ponto o sentimento de
aceitação da opressão se encontra inculcado no espírito conservador de Ramatoulaye, que
carrega em si dois valores contrários no que toca ao sentimento e emoção para com a sua
grande amiga. Incapaz de se entregar abertamente ao amor, vimos que Ramatoulaye, no
depoimento feito na sua carta, afirma que valoriza a sua amizade com Aissatou, mais do
que a vida amorosa que mantinha com o seu marido “friendship has splendours that love
knows not. It grows stronger when crossed, whereas obstacles kill loves. Friendship
resists time, when wearies and severs couples. It has heights unknown to love” (Bâ 1982,
p.54). Contudo, com o desenvolvimento da narrativa, pode ver-se que ela se manteve fiel
ao marido, enquanto que traiu a sua amiga muitas vezes. Relevante a este propósito é o
facto de ela ter tido conhecimento de que o marido de Aissatou ia casar-se com uma outra
mulher e não ter avisado a sua amiga disso. De notar ainda que, embora Ramatoulaye
elogie a amiga por esta ter tido a coragem de abandonar o seu marido, ela mesma
continua a usar Mawdo como seu confidente e médico de família, o que é uma clara
traição à solidariedade que ambas, como era de supor, deveriam manter em todas as
circunstâncias.

367
O tema da dominação masculina e do seu poder discriminatório também merece
substancial desenvolvimento no âmbito das linhas de força que presidem à tessitura do
presente romance.
Esse poder discriminatório que Bâ combate é apresentado como uma forma de
dominação masculina que, por sua vez, é produto de elaborações sociais decorrentes da
ideologia patriarcal dominante. Pelo facto de Ramatoulaye ser uma mulher, ela,
aparentemente, não tem condições para determinar o seu destino. Mas Aissatou, outra
mulher, rejeita conformar-se com um destino pré-traçado e escolhe lutar por uma vida
própria que não aquela que antes se circunscrevia à circunstância de ser mulher de
Mawdo. Esta decidida exploração da determinação de propósitos feministas é o elemento
que faz deste romance uma forte voz de protesto contra a opressão das mulheres em
África. A narrativa conclui veiculando a noção de que a mulher é vítima não só de
tradições que a menorizam mas também de si mesma, de atitudes conformistas que
interiorizou e adoptou. Aissatou rejeita esta submissão, e esta postura de contestação vai
influenciar Ramatoulaye que, aos poucos, virá a perceber que não pode esperar grande
ajuda da cultura tradicional vigente.
Para pôr em contraste o diferente procedimento de homens e mulheres, o
romance retratam o comportamento masculino como decorrendo basicamente de pulsões
instintivas, enquanto o das mulheres é representado como sendo pautado por uma atitude
de maior racionalidade e responsabilidade. A forma a que Mariama Bâ recorre para
retratar a irresponsabilidade dos homens está patente na ênfase que dá aos instintos
sexuais que, segundo ela, determinam o comportamento que subordina os homens
inteiramente. Este será o elemento que faz de Mawdo e Aissatou duas pessoas
essencialmente distintas. A bestialidade dos instintos sexuais do homem é textualmente
referida em passos como este “ a man’s instint is through his self-control, his ability, to
reason, to choose his power to attachment that indivudual which distinguishes himself
from animal” (Bâ 1982, p.34).
Outro tema do romance de Bâ é a descrição de como as alegrias e as paixões do
passado foram negadas ou destruídas pelos acontecimentos presentes. Amores passados
transformaram-se em desencanto, levando ao divórcio, ao ódio, mas permanecem na
memória: If over the years, and passing through the realities of life dreams die, I still
keep intact my memories, the salt of remembrance. (Bâ 1982, p.1).

368
Para Ramatoulaye o seu desejo de ter um casamento feliz e duradouro tornou-se
numa miragem e num pesadelo, muito tempo antes da morte do marido. Num tom de
veemente nostalgia, recorda a sua vida da infância e da adolescência, cheia de esperanças
e expectativas:
Because being the first pioneers of the promotion of African
women, there were very few of us. Men would call us scatter-
brained. Other labelled us devils. But many wanted to possess
us. How many dreams did we nourish hopelessly that could
have been fulfilled as lasting happiness and that we
abandoned to embrace others, that have burst miserably like
soap bubbles, leaving us empty-handed (Bâ 1982, p .14-15).

Esta evocação de recordações pessoais de Ramatoulaye enfatiza as dificuldades


que enfrentam as mulheres que querem ser modernas, e que tanto mais sentem a injustiça
de normas sexistas que as transformam em objecto de opressão.
Tal como a sua avó, ela é a primeira a levantar-se, a última a deitar-se, sempre a
trabalhar” (“first up in the morning, last to bed, always working” ) (Bâ 1982, p.20).
Para se poder dedicar a uma profissão como meio de emancipação, as personagens
femininas tentam libertar-se de funções convencionais atribuídas às mulheres. É
precisamente isso que Aissatou faz quando nota que o seu marido começa a ser
influenciado por forças exteriores. Divorcia-se e dedica-se completamente aos filhos e ao
trabalho8.

Em continuação da análise do aspecto acima mencionado, importa ainda dizer


que esta obra condena, em toda a acepção da palavra, a intromissão de uma terceira
pessoa para a resolução de qualquer questão de ordem estritamente familiar. No entanto,
esta prática é muito comum em muitas sociedades africanas, onde a vida particular de um
indivíduo em sociedade se mantém controlada pela comunidade que aceita que um
indivíduo mais idoso ou líderes do clã sejam ouvidos como conselheiros para a solução
de conflitos ou até decisões pacíficas de âmbito familiar e da comunidade em geral.
Com subtileza, o romance denuncia e reprova a intromissão de elementos da
família alargada na vida de um casal, associando essa prática a normas obsoletas que

8
É importante acrescentar-se que este tipo de comportamento é mal visto na sociedade africana tradicional
(receosa do poder matriarcal), onde as mulheres solteiras ou divorciadas são habitualmente consideradas
como má influência (Bamisile: 2006, 2008) ou até uma aberração, numa sociedade temerosa de que, se elas
vierem a adquirir mais poder, tal situação poderá revelar-se prejudicial à família e, necessariamente, à
destronização do poder patriarcal. Dentro desta perspectiva, podemos dizer que a opção tomada por esta
personagem é corajosa, e até mesmo revolucionária por representar uma oposição frontal à ordem vigente
mais normativa.

369
podem conduzir, às vezes, à separação do casal. A observação desta conduta é muito
frequente e por isso muito significativa em países como a Nigéria, o Senegal, o Benim,
países onde há influência tradicional e muçulmana e em que uma atenção especial é dada
à celebração de casamentos entre os noivos de estatuto igual, segundo um sistema de
castas.
Mawdo Bâ amava a mulher, ao longo dos anos, a sua vida matrimonial decorre sem
problemas mas a, intromissão de sua mãe, que nunca aceitou o casamento do filho com
uma mulher de origem mais humilde, leva a que o casamento se desmembre:
She bore a glorious name in the Sine: Diouf. She is a descendant
of Bour-Sine. She lived in the past, unaware of the changing
world. She clung to old beliefs. Being strongly attached to her
privileged origins, she believed that the blood carried with it
virtues, and nodding her head, she would repeat that humble
birth would always show in a person’s bearing (Bâ 1982, p .26).

Consequentemente, Ramatoulaye recorda com grande tristeza o tempo em que


viveu em paz com o seu marido, o que a leva a tecer uma dura crítica a estes
constrangimentos de ordem social e ao grande peso imposto pelo jugo deste costume we
suffered the social constraints and heavy burden of custom (Bâ 1982, p.19).
Com a influência da educação ocidental, as mulheres nalgumas sociedades
africanas com maior formação cultural acedem a algumas características e valores da
cultura ocidental e adoptam-nos, particularmente o espírito democrático e a liberdade. É
importante salientarmos que, o romance retrata a sociedade africana, onde decorre esta
história, como vendo o individualismo um defeito, dado que, segundo a concepção
tradicional, a vida de um ser pertence, antes de mais, à sua comunidade. Isto faz com que
sejam valorizadas as normas comunais e as colectivas Assim, a afirmação de que a
sociedade africana patriarcal se solidariza com a causa de mulher não é verdadeira
porque, em nosso entender, tal solidariedade só é dada às mulheres que não desafiam o
poder e a injustiça patriarcal, àquelas que aceitam ficar sujeitas ao capricho patriarcal e
ficam em casa a fazer o trabalho doméstico, secundarizando-se em relação ao homem.
Neste confinamento uma mulher sofre de grande e permanente solidão, simplesmente
devido ao modo como foi educada na forma tradicional.
É este sentimento de intensa abandono que pontua a vida de uma mulher rebelde
como Aissatou que luta pela sua emancipação, e também de Ramatoulaye que recusa a
obrigação de voltar a casar-se com o irmão do seu defunto marido, tornando-se assim
objecto de crítica mesmo por parte de mulheres. Devemos sublinhar que a iniciativa de

370
Aissatou de pedir o divórcio é um comportamento insólito no que respeita aos padrões de
comportamento femininos vigentes. (Bâ 1982, p .31).
Neste romance, Ramatoulaye e Aissatou tematizam a tensão e a necessidade
sentida pelas mulheres ao procurarem escapar à subjugação que lhes é imposta pela
tradição. No relacionamento que estabelecem virão a desenvolver uma convivência
progressivamente mais alargada, buscam e encontram consolo em ouvir a rádio, ir ao
cinema e manter uma relação íntima e aconchegada com os seus filhos e amigos. Deste
modo, alcançam um novo espaço de liberdade e auto-confiança e surpreendem todos com
a sua nova postura inesperada, no seio de uma sociedade conservadora, como era a
comunidade senegalesa, no tempo de Mariama Bâ.
Outro aspecto que esta autora acentua, no contexto desta sua obra, é a importância
que tem de ser dada às mulheres, pelo papel fundamental que elas têm na criação e
educação dos filhos, cuidando das famílias e mantendo-as unidas em tempo de
dificuldades.
Neste romance vemos como Ramatoulaye está constantemente preocupada com a
formação do carácter dos seus filhos, procurando que eles se afastem de vícios nocivos
como o tabaco. Ao descobrir que os seus filhos Arame, Yacine e Dieynnaba, fumam às
escondidas, Ramatoulaye fica chocada e com a angústia de não saber se estaria a falhar
no seu papel de educadora. Esta preocupação também se verifica quando vê a sua filha a
usar calças, o que, na sociedade senegalesa, apresentada como predominantemente
conservadora por obediência a normas da religião muçulmana é motivo de perplexidade e
censura.
Quando a sua filha, Aissatou fica gravida, estando ainda a frequentar a escola,
Ramatoulaye sente-se confusa e desamparada. Ela não entende como é que isso foi
possível e, mais uma vez, se interrogará sobre o falhanço que estará a ser o seu papel de
zeladora do lar e do bem-estar dos seus filhos. Afinal, a tradição espera que esses papéis
sejam bem desempenhados pela mãe. E para evitar a ocorrência de factos semelhantes
com as suas outras filhas, Ramatoulaye assume imediatamente o papel de educadora
sexual, ensinando-lhes o que sabe sobre o modo de se prevenirem gravidezes indesejadas.
A mãe, na sua função de educadora, terá de estar atenta aos riscos e aos perigos que os
seus filhos podem enfrentar, se não forem devidamente aconselhados e vigiados. Um
filho seu, Malick, veio a ser atropelado por que jogava futebol descuidadamente na rua. A
segurança das crianças é algo que está a cargo exclusivo das mães e qualquer acidente ou
mau comportamento que envolva os seus filhos será razão para a mulher ser apontada

371
como descuidada, no seio de uma família de organização tradicional, como a que nos é
retratada em So Long a Letter.
Por isso, este romance deve ser tido como o testemunho da acção central das
mulheres como guardiãs da família. Além deste aspecto, ao veicular os anseios das
mulheres com vista ao reconhecimento da sua acção e também ao denunciar situações de
discriminação latente por razões de género, esta obra é, necessariamente uma expressão
poderosa da voz a que anteriormente não se dava atenção, a da mulher silenciada em
África. Isso é evidente em afirmações tais como: “I have not given up waiting to
refashion my life. Despite everything - disappointment and humiliation- hope still lives
within me … the success of a nation depends inevitably on just such families …The word
‘happiness’ does indeed have meaning, doesn’t it? I shall go in search of it. Too bad for
me if once again I have to write you so long a letter...” (Bâ 1982, p.89)

Um outro aspecto que tem de ser relevado no empenhamento intelectual


desenvolvido por Mariama Bâ é a importância que ela deu atribui à acção que a literatura
potencialmente desencadeia. De acordo com esta autora, consideradas as palavras da
personagem Ramatoulaye, por ela ficcionada, o poder dos livros decorre de eles serem
uma invenção maravilhosa da inteligência humana. “Esse encantamento pelos livros, pelo
texto escrito, resulta da associação que há entre certos signos e sons e entre os diferentes
sons que formam as palavras. E depois, é da justaposição das palavras que surge a ideia, o
pensamento, a narrativa histórica, a explicação científica, a vida. Os livros interligam
diferentes gerações num mesmo continuado esforço que leva ao progresso da
humanidade. São eles que te permitem ser melhor. São eles que te ajudam a sobreviver
quando a sociedade te recusa ( (Bâ 1982, p .32.).
So Long a Letter aborda ainda outros problemas sociais tais como a ansiedade de
uma mãe para com os seus filhos, o tema do desentendimento entre progenitora e filha, o
tema do aborto voluntário e do uso de drogas entre os adolescentes, mas foge ao tema da
sexualidade e ao problema da discriminação baseada no sexo. Mesmo quando estes temas
são abordados, isso é feito de modo ligeiramente encoberto, ficando estas questões
relegadas para um segundo plano. No entanto, estes temas são tão importantes como o
tema da poligamia, que é tratado exaustivamente desde o início até o fim do romance.
Noutra perspectiva, este livro é muito esclarecedor na enfase que dá à forte
oposição dos homens para com as mulheres que têm aspirações políticas numa sociedade
em que mulheres e política foram e são ainda entidades incompatíveis. Já o poder e a

372
autoridade, são domínio tradicional dos homens. Nas áreas onde o islamismo é
predominante, esta religião impõe códigos de conduta rigorosos e severos sobre as
mulheres, o que as impede de frequentar as escolas. Além disso, a administração colonial
valorizava a educação dos rapazes em detrimento das raparigas. Se as raparigas
frequentavam a escola, eram orientadas para seguirem profissões tais como as de
enfermeira, monitora escolar, trabalhos de secretariado, mantendo-se ainda a actividade
doméstica exclusivamente destinada às mulheres – todos eles tipos de trabalho duro e
constante que não deixam tempo para que alguém consiga produzir obra criativa,
principalmente quando a função profissional é conjugada com as exigências da
maternidade.

Outro tema importante reporta a situação das mulheres, relativamente ao sistema


de castas. Para o devido entendimento do mundo ficcional de Mariama Bâ é necessário
examinarmos o sistema de castas e o tipo de relacionamentos que ele impõe às mulheres.
Assim, precisamos de ter uma noção prévia da importância das castas9 na região do actual
Senegal, para percebermos a sua acção na obra de Bâ.
Na ficção de Mariama Bâ, a questão das castas está muito bem entretecida nos
seus textos. O posicionamento assumido por esta autora é de resistência e oposição a este
tipo de hierarquização social. E é naturalmente este tipo de espartilhamento que ela
combate na sua obra escrita, como nos seus pronunciamentos públicos. Em So Long a
Letter, Aissatou e Ramatoulaye são de diferentes castas, uma é da Tegg e a outra é uma
Guer, mas isso não as impede de manterem uma amizade baseada na igualdade e no

9
. O sistema de castas na área da Senegambia é tão antigo como a história dos povos que habitam aquela
região. Mas também é importante que se diga que nem todos os grupos étnicos desta zona vivem no regime
de castas. Os quatro maiores grupos com os mais sofisticados sistema de castas são os Peulh, os
Toucouleur, os Wolof e os Mandinka. Quando lemos a obra de M. Bâ convém que tenhamos informação
prévia sobre o modo como funciona o sistema de castas e também que saibamos que no seio dos povos
Wolof e Peulh, este sistema está regulado de modo idêntico, na maioria dos casos. Em termos gerais, na
Senegâmbia, o sistema de castas está baseado no tipo de actividade profissional em que cada casta se
ocupa. Isso implica diferenciados níveis de prosperidade económica, que servem para estabelecer distinções
entre castas mais abastadas e outras, mas o factor económico não é o único regulador dessas diferenciações.
Assim, os Guers: esta é a casta mais elevada no sistema de castas desta região. Ela engloba os
descendentes da classe nobre e os lavradores. Admite-se que, no passado, eram as pessoas deste grupo
quem governava os vários reinos desta região, antes do período colonial; os Guewals: esta é a segunda
casta mais alta nesta hierarquia construída pelos homens. Nela se incluem os cantores de louvores, os
poetas, os guardiões da história e da cultura; os Tegg : esta casta é composta por artesãos altamente
especializados que trabalham os metais. Eles trabalham com elementos tais como a água e o fogo, uma
aptidão que requer conhecimentos matemáticos e científicos, além de criatividade; os Woodeh: esta casta
também congrega elementos altamente qualificados em trabalhos de couro e madeira. A maioria dos artistas
é oriunda desta casta. É claro que esta prerrogativa está a sofrer a concorrência de artistas de talento
provenientes das outras castas, à medida que estas também produzem e apresentam as suas obras.

373
respeito mútuo. O tipo de relacionamento que estas personagens estabelecem entre si
serve para mostrar que também as pessoas, nas suas relações, podem ir para além dos
limites de aproximações estipuladas pelas castas. Tante Nabou, por seu turno, mãe de
Mawdo e sogra de Aissatou, é incapaz de transpor os parâmetros impostos pelas
convenções sociais. Para ela, cada um deve cingir-se àquilo que é determinado pelas
normas da sociedade em que está inserido. E assim, para ela, o casamento do seu filho
Mawdo com Aissatou, oriunda de uma casta inferior, é visto como uma afronta à nobreza
da sua condição de nascimento. Para pessoas como Tante Nabou, os valores do passado
não podem ser separados do presente e do futuro. A sua visão do mundo, e que Mariama
Bâ critica, baseia-se no apego a velhas crenças. Tante Nabou acredita que quem descende
de uma longa linha nobre é superior aos membros de castas mais baixas. A sua fidelidade
à necessidade de perpetuar o modo de vida tradicional encontra justificações nos anais da
história do seu povo, onde se diz que não deve haver casamentos entre pessoas de castas
diferentes. Deste modo, debatendo-se entre tradição e modernidade, Tante Nabou opta
pelos gloriosos dias do passado, em que as pessoas respeitavam os ditames da tradição e
viviam estritamente de acordo com eles. Para alguém da sua condição de casta, a
solidariedade feminina não faz qualquer sentido, já que ela se sente incapaz de ter um
procedimento que vá para além daquilo que a sua condição impõe.
Mariama Bâ na apresentação que faz de uma mulher como Tante Nabou
confronta-a precisamente com o problema da solidariedade feminina, para verificarmos
que, para esta personagem, valores tradicionais como a casta, a idade e os laços de sangue
são sempre mais importantes do que será solidariedade entre mulheres. O crime de
Aissatou, para ela, foi ter ousado casar-se com o homem que amava, sem ter em conta
que ele pertencia a uma casta superior. Tante Nabou não quer que os seus netos venham a
ser remetidos para a posição de uma casta inferior, onde serão vítimas de violência
devido ao sangue “inferior” herdado da parte da mãe. Assim, Tante Nabou passa a viver
com um único objectivo: expulsar Aissatou de casa. Para isso, Tante Nabou inicia uma
viagem de busca das suas raízes, com o objectivo de purgar a sua família da mancha que
Aissatou é. Viaja então para Diakhao, o lugar de onde é BounSine, o antepassado que
reverencia. Em Diakhao, reexamina a sua posição face ao filho e à nora e fica ainda mais
determinada no seu propósito de se livrar de Aissatou. Jura que o sangue de Aissatou “
nunca virá a macular o seu nobre descendente” (Bâ 1982, p.28). Mariama Bâ refere
mesmo que o papel de Tante Nabou é ser a protectora dos cânones da tradição (Bâ 1982,
p.28). Tante Nabou vive no passado, sem se dar conta que vive num mundo em mudança.

374
Persistia em agarrar-se a velhas crenças, Mantendo-se fortemente ligada às suas origens
privilegiadas, acredita que o sangue é portador de virtudes ancestrais, e aquiescendo com
a tradição, repete convictamente que a “falta de berço” é uma marca que sempre se verá
no rosto de uma pessoa. (Bâ 1982, p.26). É importante fazer notar que atitudes como esta
de Tante Nabou não surgem do nada, elas são, isso sim, o somatório final de um modo de
posicionamento e etiquetagem das pessoas, em certas sociedades. Na linguagem usada
por esta personagem, a interiorização da sua condição de casta reflecte uma divisão e
diferença hierárquica. Para Tante Nabou Aissatou não é digna de lhe fazer companhia ou
integrar a sua família, pois têm um outro lugar e uma outra função na sociedade.
A forma como Mariama Bâ nos apresenta esta questão leva-nos, por sua vez, a
formularmos as seguintes perguntas: será que, deste modo, Mariama Bâ está a fazer uma
crítica bem conseguida às relações entre mulheres de castas diferentes? Ou estará também
a contribuir, mesmo sem o pretender, para que as mulheres da casta menor continuem
perpetuamente numa posição de particular inferioridade?

Tentando ressalvar estas dúvidas, pode argumentar-se que o texto apresenta de


forma muito cuidadosa o tema, na forma como negoceia os espaços habitados pelas
diferentes mulheres no mundo ficcional. Apresenta-nos mulheres que vivem tensões
próprias da condição de cada uma. Estas tensões são depois exacerbadas por conflitos
entre gerações e divisões rígidas entre castas, levadas a um ponto de confronto e
oposição. Mas estas oposições e tensões não são necessariamente negativas, já que nelas
parece haver espaço para a transformação das personagens, tal como acontece na relação
entre e a influência de Aissatou sobre Ramatoulaye. Deste modo, fica claro que Mariama
Bâ vê nas transformações da cultura e das tradições a solução que trará alívio para a
situação da mulher na sociedade senegalesa.

As mulheres como inimigas de si mesmas

É importante salientar-se que no contexto africano, se observa que as mulheres


são muitas vezes o pior inimigo de si mesmas, por aceitarem passivamente os ditames da
tradição, sabendo-se que é esse poder da tradição patriarcal que as vem penalizando ao
longo de séculos. Tal facto é comum em África, porque muitas mulheres se dispõem a ser
a segunda ou a terceira mulher de um homem rico. É o que acontece no enredo do

375
romance aqui em estudo, onde Binetou, se casa com o marido da mãe da sua melhor
amiga e colega da escola.
Vamos assim observar aqui, o modo como este tema é abordado em So Long a
Letter e como neste romance se denuncia o procedimento de algumas mulheres que, na
sociedade senegalesa, traem os seus próprios anseios mais legítimos, se dispõem a minar
insidiosamente o conjunto das aspirações femininas de auto-realização, na expectativa de
um suposto proveito próprio. É facto que muitas mulheres atormentam outras mulheres,
como se todas elas não estivessem do mesmo lado da barricada. Muitas mães vêem as
filhas como bens móveis e activos financeiros, moeda de troca para um bom dote. Outras
mulheres sentem prazer em espalhar boatos em detrimento de outras mulheres. E há ainda
outras mulheres que, através do seu estilo e modo de vida, tal como a prostituição
continuada ou ocasional, engrossam o número de mulheres que se colocam em
dependência absoluta dos homens e dos seus desejos e que assim, nessa subserviência se
rebaixam à condição de estrato inferior da sociedade.
Nesta obra, devido à pressão da sua mãe, sintomaticamente alcunhada de Dame
Belle-mère, Binetou é retirada da escola. Já consciente de que as mulheres foram e são
marginalizadas na aquisição da educação ocidental Binetou é forçada a casar-se com
Modou, um homem velho mas rico, já pai de doze filhos, embora tivesse preferido, a
princípio, continuar os seus estudos. Contudo, devido ao facto de sua mãe desejar tanto
mudar o rumo da sua vida de pobreza, Binetou acaba por aceitar este entendimento
negociado pela mãe e, posteriormente, não resiste aos encantos que a riqueza material
proporcionou.
Por sua vez, Daba, amiga e colega de escola de Binetou, é quem informa a sua
mãe, Ramatoulaye, que Binetou, apesar de contrariada, vai casar também por dinheiro
com Modou, para conseguir ter uma boa casa, como lhe fora prometido. “Binetou is
broken-hearted, She is going to marry her sugar daddy. Her mother cried so much. She
begged her daughter to give her life a happy end, in a proper house, as the man has
promised them. So she accepted”. (Bâ 1982, p.36)
Como recompensa Modou, efectivamente, paga a peregrinação dos pais de
Binetou a Meca, constrói-lhes um apartamento de sonho perto da sua clínica e contempla-
os com muitas presentes. Binetou, então ainda a inocente filha da Dame Belle-mère, é
sacrificada em favor de interesses materiais.
Observamos depois que durante a leitura do testamento e distribuição das
heranças deixadas pelo defunto Modou, enquanto Binetou chora a perda do marido, a sua

376
mãe chora pelo facto de a sua filha ter recebido menos que a mulher do primeiro
casamento, Ramatoulaye, e também pelo facto de ter terminado para ela a importante
fonte de rendimentos que o casamento de sua filha representava: I receive the greater
share of Money and many envelopes… it is Lady Mother-in-Law’s turn to be annoyed…
As for her silent, haggard child (Binetou), she remains a stranger in these circles” (Bâ
1982, p.7).
Outro exemplo do modo como o texto apresenta as mulheres como podendo, por
vezes, ser uma ameaça para com outras, é o da destruição da felicidade da estabilidade
matrimonial. Susan Lee (1994) faz notar como a própria mulher, ao admitir e aceitar a
poligamia, acaba por se aliar aos desígnios do poder patriarcal:
For female writers, polygamy is injurious to the development of the
couple…And even if they are aware that the monogamous marriage
is not a guarantee of happiness, it still remains for them a mark of
respect for the woman, a full-fledged partner in the marriage (Lee
1994, p.33).

Note-se também que, neste romance, as mulheres reagem de maneira diversa


quando descobrem as infidelidades dos seus maridos. Aissatou não hesita em deixar o
marido, torna-se independente do poder patriarcal, optando por encarar a vida com
determinação, apesar das inevitáveis dificuldades decorrentes dessa decisão. Já
Ramatoulaye prefere acomodar-se e tolerar continuadamente infidelidades e traições,
adaptando-se a uma situação degradante sem pedir o divórcio. No entanto, após a morte
do marido, apesar das vantagens materiais e emocionais prometidas por um novo
pretendente e antigo admirador, o médico Daouda Dieng, que com os seus elevados
proventos poderia ajudá-la, bem como aos seus filhos, Ramatoulaye recusa o pedido de
casamento pelo facto de não querer desintegrar uma família unida e, acima de tudo, por
ser contra o conceito de poligamia, pois, uma vez que Daouda é casado, seria sempre uma
segunda mulher.
Outra circunstância em que as mulheres são descritas como prejudicando os
interesses umas às outras é durante o período da morte do marido. Em vez de apoiarem a
viúva, as mulheres, em obediência a uma nefasta tradição, fazem-na sofrer abertamente,
não a deixam embelezar-se, arranjar o cabelo ou tomar banho e fazem isso em
conformidade com as leis tradicionais senegalesas. A viúva, neste transe não tem
alternativa senão suportar este abuso geral:
“It is the moment most dreaded by every Senegalese woman, the moment
when she sacrifices« her possessions as gifts to her family-in-law; and,

377
worse still, beyond her possessions she gives up her personality, her
dignity, becoming a thing in the service of the man who has married her
…. Her behaviour is conditioned: no sister-in-law will touch the head of
any wife who has been stingy, unfaithful or inhospitable” (Bâ 1982, p
.p.4).
Para evitar ser alvo de crítica ou castigo ainda maior, a mulher viúva tem que doar todas
as suas propriedades, abdicar da sua individualidade e dignidade, para merecer o favor
dos parentes por afinidade. É importante referir que, quando uma mulher pretenda
desafiar este procedimento tradicional, as mulheres mais velhas, tais como a sua mãe, a
sua sogra, entre outros parentes, obrigam-na a agir de acordo com a tradição, tal como foi
o que aconteceu a Ramatoulaye na sequência do falecimento de Modou. (Bâ 1982, p.4) .
Um outro exemplo deste acto de exploração que a narradora descreve como sendo
particularmente difícil (“the most baffling period”) ocorre durante o terceiro dia da
cerimónia do enterro, quando as cunhadas, em nome da viúva, vão receber os presentes
(arroz, feijão, leite, vaca, açúcar, etc)10 oferecidos pelos vizinhos e demais pessoas que
vêm partilhar a dor por aquela morte. A fim de poder retribuir futuramente as ofertas
recebidas a quem entretanto vier a enviuvar, a viúva solicita ajuda às amigas para que
façam uma lista cuidadosa destas oferendas. Lamentavelmente, no caso de se tratar de
cunhadas, as ofertas e prendas recebidas pela viúva têm de ser devolvidas às cunhadas em
dobro. Da mesma maneira, a irmã de Moudou que contribuíra publicamente com um
montante de mil francos, importância elevada que serve para alardear opulência e suposta
generosidade, vem a receber o dobro, em privado, daquilo que publicamente parece estar
a oferecer.

O modo como Bâ desenvolve a estrutura narrativa feita por Ramatoulaye


corresponde à apropriação do conceito islâmico de mirasse combinado com a forma
epistolar em que se apresenta o testemunho desta personagem. Mbye Baboucar Cham
(1984, 1985, p.33). Segundo este crítico, mirasse é um princípio religioso e jurídico que
regula a transmissão de heranças e que implica a revelação de todos bens materiais
conhecidos ou não, deixados pelo defunto, e que irão ser divididos entre os seus
familiares (Cham 1984, p.33) De acordo com Cham, a inovação feita por Mariama Bâ
está patente na extensão que ela faz da revelação dos bens herdados, para incluir neles
tanto os bens materiais como as propriedades não materiais, e principalmente o relato da
10
Com a influência da cultura europeia e modernização, agora, a assistência monetária veio a ser uma nova
moda para o efeito.

378
vida da pessoa falecida. Esta adaptação através da inovação faz com que a acção de
Ramatoulaye seja concebida e estruturada de um modo que leva à exposição abrangente
dos segredos íntimos da vida conjugal com Modou Fall, e em particular, às fragilidades
humanas do seu marido, com as consequências que elas tiveram na relação matrimonial
que ambos viveram ((Bâ 1982, p.33).
Do mesmo modo, Bâ utiliza este mesmo conceito para enfatizar o temperamento
de natureza conservadora da principal personagem, Ramatoulaye que se conforma com a
tradição. Sendo uma muçulmana devota, ela considera que o desvendamento das
características pessoais do falecido é uma função religiosa a ser acatada:

The Mirasse commanded by the Koran requires that a dead person be


stripped of his most intimate secrets; thus is exposed to other what was
carefully concealed. These exposures crudely explain a man’s life. With
consternation, I measure the extent of Modou’s betrayal. (Cham 1984, p.9)

Mariama Bâ veio a ser alvo frequente de ataques da crítica masculina que via na
sua obra o apoio à rebelião das mulheres, o que a tornava perigosa, rebelde,
ocidentalizada, na sua defesa do divórcio. Mas o verdadeiro significado da rebelião que a
obra propõe não reside só na defesa da obtenção do divórcio para a mulher. A sua
estratégia subversiva radica na proposta que apresenta do abandono de mitos e outras
elaborações artificiosas derivadas da secular dominação masculina. Por outras palavras,
com a sua obra Bâ propõe que se abandone aquilo que ser considera uma distorção da
realidade. Com este fito, no seu romance So Long a Letter, Bâ expõe e restabelece aquilo
que, para ela, é a verdade, o que só é conseguido pela subversão daquela outra “verdade”
que vigora por força da lei masculina.
Numa entrevista dada a Rolf Solberg em 1980, Bâ declarou que não era feminista,
ou que, pelo menos não o é na mesma perspectiva que aquela assumida essa na cultura
Ocidental:
Not in the western sense. No. Because our problem is beyond
feminism. Now, I think our men have an excuse to oppress us
because they are not free themselves, even in the so-called
independent states. They cannot see that they are being used. So
until they are free, you can’t really claim to be a feminist.
(Citado por Samba Gadjigo ,1998, p.28).

379
A atitude de uma nítida ambivalência de Mariamba Bâ para com o feminismo não
é diferente da atitude da maioria das teorizadoras africananas ocidentalizadas , cuja
aceitação dos seus princípios está condicionada pelas menores expectativas que têm para
com este conceito, uma vez transposto para a realidade africana. De um modo geral o
feminismo é tido como uma invenção do ocidente e que, por ser desajustada a muitos
anseios da população feminina em África. Atendendo ao facto de o feminismo ter sido
etiquetado como um fenómeno ocidental e portanto, indesejável e não africano, a maioria
das mulheres africanas ocidentalizadas debate-se com o dilema que também afectou
Mariama Bâ. Por um lado, o feminismo é um movimento para emancipação das
mulheres, e por isso as seduz, por outro lado, são levadas a denunciá-lo, ao menos
publicamente, porque a sua aceitação comporta um acto de traição. Mariama Bâ não é a
única escritora com este dilema, pois outras escritoras africanas como Flora Nwapa, Ama
Awe e Buchi Emecheta têm vivido esta mesma tensão. No caso de Emecheta, pode dizer-
se que esta autora protagoniza o dilema de quem se põe luta pela causa das mulheres, mas
não se identifica inteiramente com o movimento feminista.
Este distanciamento relativo das feministas africanas para com as ocidentais
afigura-se como um modo de afirmarem um caminho a trilhar com uma legitimidade
própria e não com um ideário tomado à letra, por empréstimo.

As feministas africanas, na busca de um maior equilíbrio de poder nas relações de


género, têm também procurado um desejado contributo dos homens, que se vai
verificando progressivamente. Mas isso não é infelizmente a regra, com todas as
consequências no retardamento da auto-determinação da mulher. Por exemplo Ojo-ade,
com o peso da sua opinião, pela notável carreira universitária que desenvolveu me África,
na Europa e nas Américas, é um dos que se manifesta como opositor à causa feminina.
Em dois momentos que, atendendo ao seu prestigio intelectual, foram naturalmente
noticiados, em 1982 e 1983, manifestou publicamente o seu desagrado contra as
escritoras africanas, tendo tomado como referência Mariama Bâ e a sua obra, So Long a
Letter, estranhando que ela continue a apresentar-se como vítima. Para ele, os temas
desenvolvidos por Mariama Bâ, são um desafio descarado à ordem social vigente e, por
consequência, ao bem-estar da comunidade africana. Numa clara manifestação do seu
desagrado para com as reivindicações e argumentações das escritas feministas, ameaçou “
rasgar e atirar para o lixo qualquer ‘outra carta’ que Mariama Bâ viesse a escrever (Ojo-

380
ade, 86). Uma atitude destas não deixa dúvidas de que, mesmo intelectuais de renome
como Ojo-ade, se escoram na argumentação da necessidade de defesa do bem-estar
social, para protegerem a continuação da actual desigualdade de oportunidades e direitos
entre homens e mulheres. Até mesmo para as elites intelectuais, o feminismo, enquanto
unidade de propósitos em defesa dos direitos das mulheres é, muitas vezes, pressentido
como uma ameaça ao status quo que beneficia os homens. Deste modo, se “entenderá” a
atitude de Ojo-ade que procura, em diversas intervenções públicas desacreditar o
feminismo considerando-o uma ideologia estranha (p.72), um fenómeno ocidental. Para
ele esta ideologia da libertação das mulheres só daria às mulheres africanas uma falsa
liberdade, já que a realidade da cultura ocidental não se adequa às aspirações da vivência
particular e dos anseios próprios das culturas africanas. (Ojo-ade, p.85).

v. Visão e Compromisso assumidos por Mariama Bâ.

Esta autora apresentou uma visão própria dos problemas da mulher, bem como a
consciência de que a sua situação só poderia evoluir com acções de grande
empenhamento e determinação. Estava convicta de que, para que haja uma melhoria da
condição da mulher em África, deveriam ser os próprios africanos os primeiros a reduzir
o impacto pernicioso de certos aspectos da tradição que persistem nas suas culturas. Para
tal, reivindicava que as mulheres deixassem de estar mergulhadas, tanto psicologicamente
como financeiramente, numa continuada indulgência e numa completa despreocupação
para com as consequências nefastas da acção dos homens sobre as suas famílias. As
mulheres andavam cegas e precisavam de abrir os olhos face à irresponsabilidade e aos
desmandos dos homens para com elas. Os factos relatados por Bâ, relativos a abusos de
pendor patriarcal, levaram-na a acreditar que tinha uma missão a cumprir. Essa missão
era expor e criticar o tipo de relacionamentos impostos pela tradição, designadamente no
seio da cultura muçulmana. A exposição que fizesse, em denúncia de situações
desfavoráveis para a mulher, iria permitir conhecê-las melhor e também, desmontar os
procedimentos que sustentam as estruturas do poder. E essa missão, com a
correspondente exposição de denúncia de imparidades impostas à mulher, está claramente
corporizada em So Long a Letter.
Efectivamente este texto de Mariama Bâ é, integralmente, um testemunho
eloquente da amargura e do sofrimento de tantas mulheres em África, neste caso no
Senegal. Por sua vez, as experiências de vida da personagem Ramatolaye, pelo modo

381
como tal nos é narrado por Bâ, geram uma simpatia imediata dos leitores para com esta
personagem. Após a morte do marido, a decisão de Ramatolaye de adoptar uma nova
postura de vida, identificando-se mais com a atitude de afrontamento de Aissatou,
dificilmente deixa de gerar assentimento e simpatia por parte dos leitores para quem a
subjugação social que o sistema patriarcal impõe às mulheres comporta um nível de
exploração e desumanidade inaceitáveis. Deve sublinhar-se, contudo, que o Islão não
deve ser tomado como o principal responsável pela poligamia e pelo tratamento injusto e
desigual para com as mulheres em África, uma vez que este tipo de práticas já se
verificava na maior parte das regiões deste Continente, antes de o Islão ter passado a ser
ali doutrinado. Seja como for, é inegável que há um certo número de formulações e
procedimentos em que o Islão constrange as mulheres e dá toda a liberdade aos homens,
maltrata as mulheres e tolera a promiscuidade dos homens. Isto gera, naturalmente, um
sentimento de injustiça social. A prática destes preceitos inseridos numa tradição que
favorece a masculinidade constituem aquilo a que Aissatou e também Ramatolaye se
virão a opor, pela opressão e rebaixamento que isso impõe às mulheres.

Por outro lado, esta atitude revolucionária, se bem que inquestionavelmente


louvável à luz da razão e potencialmente capaz de ajudar a promover a alteração de uma
injusta ordem vigente, ainda se mantém sujeita a um conjunto de críticas e interpretações
quanto ao modo como essa abordagem é feita, face aos seus destinatários ou
beneficiários. Numa apreciação de síntese a este romance de Mariama Ba e ao modo
como esta problemática nos é aqui apresentada, podemos dizer que à luta encabeçada por
estas duas mulheres faz falta o ímpeto mais abrangente e o tempero mais aliciante de uma
envolvência colectiva, de uma mais declarada pugna feminista por uma maior paridade de
géneros. A razão para essa falta de unidade de luta tem o ver precisamente com o facto de
Ramatolaye levar os leitores de So Long a Letter a identificarem-se muito
particularmente com o seu sofrimento pessoal, sem quase solicitar nenhuma simpatia para
com Binetou, especificamente, a qual, tendo em conta o seu percurso de vida, é uma
personagem de mulher que terá uma vida mais devastada e menos dignificada do que a
própria Ramatollaye. Cremos que a revolta de Ramatolaye contra as práticas opressivas
da mulher na sociedade senegalesa teriam maior expressão e seriam mais consistentes se
Binetou fosse igualmente apresentada como tipificação genuína de uma vítima inevitável
da opressão patriarcal exercida por via da tradição e de preceitos da religião. Esta
separação de situações, em certa medida, anula o mérito e a validade que teriam a

382
apresentação de uma luta conjunta das mulheres, para que passasem a ser vistas de outro
modo. No entanto, a voz crescente que apela a uma maior paridade e se insurge contra a
discriminação por razões de género é bem audível e fica amplificada no romance
epistolar de Mariama Ba. E embora a luta das mulheres em So Long a Letter apresente
situações de alguma ambivalência, esta obra tem a o mérito de testemunhar a força
evocativa de situações e a persuasão para uma necessária mudança, como aqui que nos é
deixado na reconhecida mestria desta mulher das letras de África com reconhecimento
internacional.

Mariama Bâ será para sempre uma figura inspiradora para as mulheres africanas.
Ela evidenciou, através do seu trabalho literário e da sua activa intervenção cultural, em
palestras e discursos, que muitas das tradições e costumes das sociedades africanas são
contra a modernização de práticas e costumes. E assim sendo, era urgente rever esses
procedimentos e, de uma vez por todas, dar aqueles passos decisivos, rumo ao futuro, que
tardavam em ser dados.

O projecto intelectual de Mariama Bâ inclui a “passagem de testemunho” à


geração mais nova de mulheres, para que sejam elas a mudar, finalmente, o agrilhoante
status quo. Acalenta a esperança de que, com o contributo dessa geração, aquele apego
arcaico e negativo à tradição venha a ser abandonado e dê lugar a uma forma diferente de
vivência, dentro da tradição, mas numa perspectiva construtiva e positiva para todos. E
ela acredita firmemente que tal transformação ocorreria em breve na sociedade
senegalesa.
Não há dúvida de que Mariama Bâ teve um contributo importante na tentativa de
redefinir o papel da mulher na literatura africana. No seu inspirador artigo “La Function
politique des littératures africaines écrites”, Mariama Bâ descreve-nos aquilos que é para
ela a função principal da escritora africana:
La femme-écrivaine a une mission particulière. Elle doit, plus
que ses pairs masculins, dresser un tableau de la condition de la
femme africaine. Les injustices persistent, les segregations
continuent malgré la décennie internationale dédiée à la femme
par l’O.N.U., malgré les beaux discours et les louables
intentions. Dans la famille, dans les institutions, dans la rue, les
lieux de travail, les assemblées politiques, les discriminations
foisonnent. . . . C’est à nous femmes de prendre notre destin en
main pour bouleverser l’ordre établi à notre détriment et ne
point le subir. Nous devons user comme les hommes de cette
arme, pacifique certes mais sure, qu’est l’écriture. Les chants
383
nostalgiques dédiés à la mère africaine, confondus dans les
angoisses d’hommes à la Mère Afrique ne nous suffisent plus.
(Bâ 1995, p.6-7)

De acordo com crítica feminista Molara Ogundipe Lesile, Bâ acredita que compete às
mulheres, falar do que é ser mulher e descrever a realidade de um ponto de vista da
mulher e da sua perspectiva” (Ogundipe Lesile, 1987:5) e nesta mesma linha de
pensamento Herberger Fofana diz-nos que :
What all African women writers aim at, is first, to speak
out in order to denounce an oppressive situation, and to
rise up against the forms of patriarchy that govern most
African communities. (Fofana 2000, p.24)

Na verdade, ao falarem pelos seus direitos, as mulheres africanas esforçam-se por


desconstruir o retrato distorcido que existir sobre elas. Contudo as suas reivindicações
incluem os mais variados temas desde os aspectos sociais aos políticos. As escritoras
abordam a questão do género de uma forma diversificada, uma vez que tentam fazer a
reversão dos aspectos da marginalização feminina. Frequentemente elas buscam repor a
mulher no seu devido lugar, destacando-a ou submetendo-a a uma provação que mostre o
seu valor.
É nesta base que vamos analisar, no próximo capítulo, que é a parte conclusiva
deste nosso trabalho, o papel das escritoras na sociedade.

384
3. TRADIÇÃO E RELAÇÃO DE GÉNEROS - AFIRMAÇÃO DA MULHER
EM NIKETCHE DE PAULINA CHIZIANE.

Nas nossas tradições as mulheres não têm direito a voto;


de resto, na aristocracia não se vota, mas as mulheres
adquirem algum estatuto. Só ganha estatuto aquela que
partilhar o marido, que ultrapassou o ciúme, que preserva
os valores da tradição, que cumpre tudo o que a lei manda.
Ganha muito mais prestígio aquela que sugere ao marido
um novo casamento e ajuda escolher a nova esposa
(Chiziane 2002, p.131).

O objectivo deste capítulo é fazer notar um olhar feminino que busca a


equiparação dos estatutos de género em Moçambique e assinala ali um espaço de
confronto entre as mulheres e a tradição autóctone acolitada pelo legado colonial. Aqui
se dará conta do comportamento usual dos homens em Moçambique, onde o papel da
tradição, em certos contextos e regiões, valoriza a mulher, mas também concorre para a
subjugação do sexo feminino na sociedade africana, levando-nos a reflectir sobre o
modo como hoje as mulheres enfrentam o sistema patriarcal ainda vigente e assumem as
suas responsabilidades no tecido social, progressivamente mais conscientes dos seus
direitos e poderes, enquanto grupo solidário em luta contra as desigualdades impostas
pela tradição patriarcal e pela colonização.
Com este propósito, vamos debruçar-nos sobre o papel da mulher na cultura da
sociedade moçambicana e o modo como Chiziane utiliza a sua obra literária, para ela
instrumento de consciencialização, porque põe em relevo os problemas das mulheres no
continente africano e no mundo e o modo como elas são alvo de várias formas da
subjugação e opressão. Para a análise desse comportamento opressor que discrimina a
mulher começaremos por fazer um estudo atento da personagem tipificada por Tony
como representante da classe e do sexo dominante, praticante e defensor da tradição que
oprime o sexo feminino e, a par disso, assinalaremos o modo como as mulheres
conseguem, utilizando a mesma tradição, obter a sua libertação do jugo masculino e vir
a ter voz própria.
Paulina Chiziane tem-se vindo a afirmar como uma contribuição radical ao
trabalho desenvolvido pelo colectivo das escritoras moçambicanas. Através das suas
obras, das suas experiências de vida como mulher, esposa e escritora, Chiziane
interroga-se sobre o que significa ser mulher em todas as situações de desafiadoras

385
mudanças que aquela enfrenta na sociedade contemporânea de Moçambique. Numa
entrevista que deu a Patrick Chabal (1994), a escritora justifica a razão por que a
condição feminina precisa de ser investigada:

Em Moçambique, como em qualquer parte de África, a condição da


mulher, a sua situação, o tipo de oportunidade que ela tem na
sociedade, o seu estatuto dentro da família e na sociedade, é algo que
de facto merece ser visto e revisto porque as leis da tradição são muito
pesadas para uma mulher. (Chabal 1994, p.298).

Este projecto de estudo sobre a condição da mulher em Moçambique, aqui


apresentado como necessário por Paulina Chiziane, parte do desenvolvimento das suas
indagações em questões que têm a ver com a situação da mulher moçambicana face a
ocorrências como a traição com adultério, (que é comum por parte do marido, e que
leva ao abandono frequente de uma mulher, preterida por outra geralmente mais nova);
a complacência a que a mulher é forçada perante as infidelidades do marido, por receio
de perder o seu sustento e o dos seus filhos menores, que assim passam a ter um pai
ausente; a pouca consideração do homem para com as várias mulheres de que dispõe
numa sociedade patriarcal poligâmica. Tudo isto são situações que se conjugam para
que Chiziane faça a denúncia do abuso e da desigualdade de oportunidades em que vive
a mulher moçambicana.

i. O valor da mulher na cultura e na tradição moçambicana

A cultura Bantu salienta a importância da mulher enquanto responsável pela


origem da vida. O valor da mulher é assim acentuado pela sua função procriadora e,
neste sentido, se fala de “mãe-terra1”, em virtude da analogia entre ambas enquanto

1
São inúmeros os exemplos de textos e poemas de autores africanos que projectam, celebram e valorizam
o conceito de mãe África e a condição da mulher. Entre esses exemplos destacamos “Black Mother”,
Night ”, I will pronounce your name, and Spring songs, (1965) de Léopold Sédar Senghor , “The Black
Woman, the Earth my Mother, de Kofi Awononor (1975), To my mother and To a black dancer” (1971),

386
espaço de fecundação, fertilidade e alimento. A importância fulcral do papel da mulher2
leva a que os membros dos grupos sociais Bantus sejam considerados descendentes
directos de uma mulher em comum, de onde decorre o conceito de clã uterino. Mas,
embora as mulheres tenham um lugar referenciado pela sua capacidade de fecundidade
e símbolo de fertilidade, elas vivem frequentemente em situação de desfavorecimento
social, o que é uma clara contradição com a sua condição de geradoras de vida e de pilar
que habitualmente sustenta famílias numerosas com maridos ausentes. Esta contradição
também é sentida, com todas as suas consequências negativas, pela mulher
moçambicana. Paulina Chiziane fala-nos naturalmente da realidade que melhor conhece
e viveu, isto é, da condição da mulher moçambicana do sul do país. Aí, como noutras
regiões de Moçambique e de África, o regime patriarcal é predominante e as normas
sociais da tradição neste continente, de um modo geral, impõem à mulher uma posição
de inferioridade a que ela geralmente se conforma, por falta de alternativa que lhe
permita garantir a subsistência de forma independente.
Paulina Chiziane é uma escritora moçambicana que tem devotado a sua
produção literária à busca de uma mudança na posição das mulheres na sociedade do
seu país e, por extensão, da mulher africana. Na sua obra Niketche, entre outros
romances que escreveu com esta preocupação de denúncia de uma latente injustiça

de David Diop, “Heavengate”,” Mother Idoto” e, “Piano and Drum” (1971) de Christopher Okigbo.
Nestes textos, mesmo quando se verifica a continuação de convencionalismos da representação provindos
da escrita colonial, a imagem negativa de África, como lugar salvagem e traiçoeiro é substituída por uma
imagem positiva: a de uma África quente e sensual, fértil e fecunda. Autores africanos como estes
influenciaram a segunda e a terceira geração de escritores africanos, continuando o relevo devido à acção
da mulher negra, tal como se testemunha em Song of Lawino (1973), de Okot p’Bitek’, “An African
Fable”, de Ayi Kwei Armah, “La noire de ...”, (1962) de Ousmane Sembène, Perpetia and the Habit of
Unhappiness, (1978), de Mongo Beti’, Season of Anomy (1980)de Wole Soyinka e Petals of Blood,(1977)
de Ngugi’wa Thiong’s
2
Paulina Chiziane (1992:12), ela própria, em Balada de Amor ao Vento, diz sobre este assunto o seguinte:
“Comparo a mulher à terra porque ela é o centro da vida. Da mulher emana a força mágica da criação. Ela
é abrigo no período de gestação. É alimento do princípio de todas as coisas. Ela é prazer, calor, conforto
de todos os seres humanos na superfície da terra.” (Chiziane 1992, p.12) Chiziane reforça esta ideia em
Niketche através do uso do provérbio de África oriental, Zambeze: “ Mulher é terra. Sem semear, sem
regar, nada produz” que descreve a mulher como símbolo de fecundidade e fertilidade, com uma
semântica que se expande de Mãe-terra, ao espaço de todo a África, plasmando este sentido na realidade
cultural africana, onde se considera que a pior desgraça para uma mulher é não poder ter filhos. Este
provérbio, concretamente, sublinha a função primordial de Rami e das outras mulheres africanas.

387
social que marginaliza as mulheres, Chiziane começa por nos apresentar uma situação
em que estas se encontram numa situação de desespero, motivada pela situação de
desigualdade em que vivem, face ao jugo patriarcal a que estão submetidas. A
protagonista, Rami, tem inicialmente uma atitude passiva face à traição do seu marido,
Tony; mas progressivamente, torna-se consciente de que deve lutar pelos seus direitos e
vem a assumir uma atitude de rebeldia e contestação da ordem tradicional. Passa a ter
u6m comportamento não conformista, numa acção de afrontamento em que é
acompanhada pelas outras mulheres do seu marido e, deste modo, torna-se também a
voz de tantas mulheres que nunca ousaram rebelar-se contra a ordem patriarcal vigente.
No cenário em que se desenrola a acção, a subjugação das mulheres manifesta-se em
quase todos os aspectos em que uma sociedade patriarcal é opressora dos direitos das
mulheres.
Tradicionalmente, a mulher moçambicana vivia uma situação de submissão que
era, frequentemente, humilhante e sem horizontes de realização pessoal. A mulher era
vista como tendo a sua existência justificada pela sua actividade doméstica. De acordo
com Paulina Chiziane (2002), em entrevista dada ao Instituto Camões “ uma mulher,
além de cozinhar e lavar, para servir uma refeição ao marido tem de o fazer de joelhos”
(Chiziane 2002, p.25). A identidade feminina estava assim limitada ao serviço que ela
prestava ao homem, ao seu pai ou marido, posteriormente. Esta situação de submissão e
inferioridade manteve-se mesmo após independência, quando se esperaria que o
sentimento de libertação que, a partir de então se começou a viver, permitiria também
um maior reconhecimento da condição e do papel da mulher na sociedade moçambicana
de hoje. Paulina Chiziane é a primeira romancista em Moçambique e vai procurar,
precisamente, dar-nos uma visão contemporânea da mulher moçambicana, que vive
dividida entre a necessidade da manutenção e o respeito pelas tradições que lhe dão
identidade própria, mas que se sente também compelida a reflectir e a reformular o
papel da mulher na actualidade do seu país e, por extensão, em África e no mundo.
A situação de desigualdade e opressão em que vive a mulher em África e em
muitas outras regiões é tão gritante que até um tirano como Saddam Hussein (1996),
aspirando, sinceramente ou não, a uma modernização da sociedade iraquiana, permitiu-
se proferir a seguinte declaração de intenções:·

388
We want our whole country liberated…it is impossible for
the Iraq people to realize all the objectives of the revolution
without correcting the position of the woman in the society…
we cannot conceive of a society in which the woman does not
occupy the right position befitting the human being which the
revolution seeks to create upon (Hussein 1996, p.12).

Temos assim que duas pessoas completamente distintas, designadamente em


termos ideológicos, Paulina Chiziane e Saddam Hussein, convergem na recriminação da
situação de desigualdade em que vive a mulher e na sua aspiração de liberdade do jugo
patriarcal. Ambos consideram, implicitamente, que um país verdadeiramente libertado é
aquele em que as mulheres ocupam a posição que lhes é devida enquanto seres
humanos, isto é, lado a lado com homens. Em Niketche vemos que a personagem
principal é o exemplo das mulheres que lutam para alcançar e afirmar um estatuto de
igualdade, relativamente ao homem, na sociedade moçambicana, em particular, e em
todo o continente africano. Assim também a pretensão de Hussein é pertinente não só
para a sociedade iraquiana como para a mulher em todo mundo. Referindo-se a
afirmação acima proferida por Hussein segundo a qual “não é concebível uma
sociedade em que a mulher não ocupe a posição que lhe é devida como ser humano…”
Ama Ata Aido (1998) sublinha que a posição das mulheres em África não tem sido
menos indigna e ridícula (Aido1998, p.17).
De modo a corrigir a imagem de submissão das mulheres na sociedade
tradicional moçambicana, Chiziane apresenta personagens femininas fortes que sabem o
que querem e por que lutam. Elas já não toleram a menorização e pouca consideração
que merecem dos homens, que as vêem como meros objectos de sua propriedade, ao seu
dispor e que, quando essa falta de consideração se transforma em traição, fazem do
abandono a que se vêem votadas, a força da sua revolta. Aquilo que as mulheres querem
é algo que, desde sempre, tem sido difícil aos homens avaliar. Recuando apenas a
Sigmund Freud e neste contexto, é oportuno citá-lo mediante a afirmação que ele
proferiu e em que refere a sua própria incapacidade para penetrar na alma feminina:

“ The Great question that has never been answered and which I
have not yet been able to answer despite my thirty years of
research into the feminine soul is what does a woman want”?
(Citado em Peggy, 1987, p.110)

389
Esta perplexidade de Freud poderia ser reformulada e transferida hoje para o
âmbito do que são as aspirações dos movimentos feministas. A resposta a esta questão
pode-nos ser dada por Yammer Kaazer, uma activista egípcia que, em 1933, (durante
uma convenção nacional sobre os direitos das mulheres) resumiu as aspirações dos
movimentos feministas em todo o mundo, do seguinte modo: “nós queremos direitos e
responsabilidade iguais, igualdade de oportunidades de modo incondicional, em todas
as áreas - política, económica, social, cultural e tecnológica” (Kaazer 1985,p.3).

Por todas estas razões, justifica-se que nos seus textos Paulina Chiziane (2004)
privilegie a mulher, tanto enquanto protagonista da acção como enquanto narradora.
Contudo, a escritora nega ser feminista3, pelo menos, naquilo que são as mais comuns
preocupações das feministas ocidentais. E neste sentido, Niketche não é um livro
feminista mas feminino, pois aborda questões importantes para a condição feminina,
isto é: os paradigmas da sociedade moçambicana patriarcal; a repressão e violência
contra a mulher; o desamparo que impende sobre as mulheres moçambicanas dentro da
poligamia; o confronto e sobreposição de culturas e tradições - como aquele com que se
defronta Rami, enquanto mulher educada na tradição ocidental católica colonial, com

3
Descontado o facto de ela própria negar ser “feminista”, Chiziane, de facto, pertence àquele grupo de
autoras que têm dado contributos transformadores, ao submeter certas tradições africanas a reavaliação
crítica, a partir de uma perspectiva própria da mulher africana. Mas, em boa verdade, o projecto literário
de Chiziane não pode, no seu todo, ser visto como estritamente “feminista”. Pelo contrário, ele deve ser
visto sobretudo como humanista. Atendendo ao que Obioma Nnaemeka (1998) teorizou sobre o
“feminismo africano” – um espírito de geral inconformismo e rebeldia, mas que se expressa em milhares
de línguas diferentes por todo o continente africano -, a dita linguagem “feminista” de Chiziane precisa de
uma definição que a exclua do que aqui é postulado por Obioma. Assim, para Chiziane, feminismo é
“uma espécie de denúncia …um grito de protesto” ( Chabal 1994, 298). Em contexto histórico-cultural, a
voz de Chiziane articula a condição das mulheres no período pós-independência, condição que não era
suficientemente defendida durante o tempo da luta de libertação nos anos 60 e 70. E este é de facto o
principal contributo dado por Chiziane às letras moçambicanas: ela foi a primeira a ter produzido no seu
país um romance que veio a ser classificado como “feminista”, pelos conteúdos ali tratados, apesar de a
própria autora se declarar não feminista. Também Patrícia Rainho e Solange Silva (2004) no seu ensaio
“A Escrita no feminino e a escrita feminista em Balada de Amor ao Vento e Niketche, Uma Historia de
Poligamia”, afirmam a existir aqui “uma escrita no feminino e também indícios de um discurso feminista
resultante das estratégias discursivas enunciadas no discurso da narrativa” (Rainho & Silva, 2004, p. 25)

390
casamento monogâmico formal e o procedimento de um marido poligâmico, cujas
relações com outras mulheres fora do casamento são sancionadas e até estimuladas pela
tradição. As personagens femininas de Chiziane são emblemáticas de um desejo de
mudança, na medida em que representam uma parcela cada vez mais alargada de
mulheres moçambicanas que buscam uma maior visibilidade, por contraponto à vida
apagada e submissa das suas progenitoras. São mulheres que experimentam angústias
próprias, divididas entre tradição e modernidade, que impõem maior consciencialização
do direito e da exigência da igualdade entre homens e mulheres.

ii. Tony, representação do género masculino da tradição patriarcal


Em Niketche são analisados criticamente os procedimentos de Tony, um
comandante de polícia cujas acções tipificam uma ideologia e uma postura
acentuadamente machistas, suscitando assim a sua condenação. Tony irá percorrer uma
trajectória em que o seu poder no seio familiar se irá deteriorando à medida que Rami e
as outras mulheres tomam consciência do modo como podem afrontar a estrutura
patriarcal representada pela figura do marido. O homem que nos surge no inicio da
narrativa é auto-suficiente, prepotente, egoísta, manipulador e empreende uma busca
desenfreada do prazer que encontra noutras mulheres, as quais, ao satisfazê-lo, também
lhe dão uma sensação de dominação, de poder.
Tony vive alternadamente com várias mulheres, sustenta-as financeiramente bem como
os filhos que elas lhe dão. Esta situação está em conformidade com o que Obioma
Nnaemeka (1997) popularizou com o seu conceito de poligamia urbana reformulada:

“In many ways the so-called modernity has intensified the


masculinization of the African tradition, thereby deepening the
marginalization of women and creating instances (for the women in
particular) where tradition is progressive and modernity reactionary
(Nnaemeka 1997, p.171).

Mas este mesmo homem, conforme é da lei da natureza, com o avançar da idade,
irá perdendo progressivamente a sua virilidade e terminará aniquilado pelo
envelhecimento, abandonado pelas mulheres a que se ligou após Rami. Então, só esta
mulher, a primeira esposa que agora tem autonomia em termos de subsistência, ainda

391
restará junto dele, e poderá valer-lhe, facto que representa uma reviravolta nas relações
de dependência com que se inicia a narrativa.
Segundo Eloisa Porto Corrêa (2008), a narrativa de Niketche é marcada pela
tensão entre duas polaridades: a feminina e a masculina, a passiva e activa, a lunar e a
solar, a anima e o animus. A polaridade feminina é representada por Rami e seus alter-
egos – as outras mulheres de Tony -, carentes de afecto, de recursos financeiros, de
justiça, etc., enquanto a polaridade oposta é representada por Tony, egoísta, marido
ausente, amante viciado, tirano, sádico, manipulador. Estes dois pólos opostos vão
confrontar-se numa tensão insolúvel que levará à menorização de Tony face ao resgate
de dignidade e afirmação da polaridade representada por Rami.
Um retrato psicológico a traços lagos da figura masculina central em Niketche
mostra-nos uma personalidade conturbada, apesar da primeira impressão de dominação
e autoridade. Tony, na verdade é um homem que não está preparado para assumir a vida
conjugal e social, com todas as obrigações que isso implica. É uma personagem que
vive um conjunto de contradições entre o que mostra ser e o que é na realidade. É um
homem adulto, mas mantém uma personalidade imatura. Parte à busca de conquistas
extra-conjugais como um predador insaciável, mas se isso pretende ser uma forma de
afirmação de poder machista, também denuncia a fragilidade de um homem que precisa
constantemente de novas presas para ver a sua virilidade reconhecida. Assim, enquanto
marido, é incapaz de manifestar verdadeiro amor para com as suas mulheres, que só usa
para satisfação do seu prazer pessoal. Uma vez satisfeito, abandona-as sem grandes
contemplações, alheio ao facto de elas se sentirem abandonadas e emocionalmente
destroçadas. Como podemos ver, Niketche narra os infortúnios, mas também depois
uma nova atitude de cinco mulheres negras casadas com Tony, que nos são assim as
apresentadas do seguinte modo, no discurso do próprio :

A Mauá é meu franguinho – diz - passou por uma escola de amor, ela é
uma doçura. Saly é boa de cozinha. Por vezes acordo de madrugada
com saudades dos petiscos dela. Mas também é boa de briga, o que é
bom para relaxar os meus nervos. Nos dias em que o trabalho corre mal
e tenho vontade de gritar, procuro-a só para discutir. Discutimos. E dou
gritos bons para oxigenar os pulmões e libertar a tensão. A Lu é boa de
corpo e enfeita-se com arte. Irradia um magnetismo tal que dá gosto
andar com ela pela estrada fora. Faz-me bem a sua companhia. A Ju é
meu monumento de erro e perdão. É a mulher a quem mais enganei.

392
Prometi casamento, desviei-lhe o curso da vida, enchi-a de filhos. Era
boa estudante e tinha grandes horizontes. É a mais bonita de todas
vocês, podia ter feito um grande casamento. Da Rami? Nem vou
comentar. É a minha primeira-dama. Nela me afirmei como homem
perante o mundo. Ela é a minha mãe, minha rainha, meu amigo, meu
alicerce (Chiziane 2002, p.138-9)

Se como marido Tony é egoísta e volúvel, como pai, manifesta ser ausente e
despreocupado ou mesmo negligente para com as necessidades de sustento e educação
dos seus filhos. Enquanto filho, é, apesar de já adulto, ainda dependente da sua mãe. Em
suma, é alguém que não cresceu como cidadão responsável, relativamente aos seus
deveres maritais e parentais. Deve ser tido, por tudo isso, como um dos exemplos
masculinos e formatados em séries pelas sociedades patriarcais.
O comportamento de Tony, personagem masculina principal de Niketche é
revelador de um comportamento de expectativa arquetípica, pois revela muitos
pressupostos que são assumidos em sociedades tradicionais, aí tido por comportamentos
próprios de um homem e que, por isso, são reforçados socialmente. Contudo esse
animus em Tony não se apresenta na sua forma plena e amadurecida, patenteia uma
disfunção por representar uma condição psicológica que não alcançou integridade nem
coesão. E a falta de coesão, neste contexto, é sintoma de desenvolvimento inadequado
(Moore e Gillette 1993:14). Por isso, Tony continua a ter, por vezes, um procedimento
infantil e dependente da mãe, o que evidencia a sua imaturidade e impreparação para
assumir uma vida adulta. Deste modo, quando ele se depara com problemas, que são
consequência de seus actos impensados, recorre à mãe, tal como uma criança o faz, e
depois socorre-se do auxílio da família, enfim de terceiros. É ele quem cria os
problemas, mas não é capaz de os resolver:

(…) O Tony passou a noite ali. Chegou triste, cabisbaixo, como


se carregasse nas costas o peso do mundo. E chorava como uma
criança. Pediu algo para comer e a mãe serviu-lhe o pouco que
tinha. Comida sem sal. Ardia em febre e delirava: envenenaram-
me, mãe (Chiziane 2002, p.113).

Outro exemplo de disfunção de (arquétipos da) de personalidade masculina é


aquele que pode ser referido como a polarização do amante viciado. Tony é aquele que
para afirmar a sua masculinidade, nunca se contenta e busca sempre uma nova aventura

393
sexual, pois a sua insegurança carece de superação através de uma continuada busca de
prazer:
(…) Durante mais de seis meses vasculhei fantasmas. Persegui
o rasto do meu homem, o que foi fácil, porque em cada passo
ele caga um filho. Fui procurar a Julieta, a segunda, e encontrei
uma fera (…). Tem cinco filhos e espera o sexto. Deu ao meu
Tony muito mais do que eu que sou a dona do marido. Fui ver
a Luísa (…) construiu raízes sobre ela. São dois filhos a quem
ele presta assistência apenas quando lhe dá na gana (…) Fui
ver a Saly, a quarta. Ela também me deu muita sova e disse-
me. Teu é o que transportes contigo, no teu ventre, no teu
estômago. (…) Este homem dá-me aquilo que é seu. Enquanto
estiver comigo é meu (…) O amor que ele me dá é quase nada,
mas é quanto basta para me fazer florir. Deu-me estes rebentos,
são dois (…) Fui ver a Mauá, a quinta. Uma criança ainda (…)
Ela é a mulher mais amada pelo Tony. (…) Aquela menina não
deve ter mais de dezanove anos. Que ajuste de contas posso ter
com uma criatura que nem tem a idade da minha terceira filha?
(…) Enquanto me chateio com o meu marido ele não para de
aprontar das suas. Ele é como uma enguia nas águas
revoltosas, nunca o consegui segurar. (Chiziane 2002, p. 68-9).
Tony é assim um exemplo de um homem que vive apenas para o momento
presente, incapaz de se libertar da teia de conquistas e de busca de prazer, o que o
impede de se centrar na concretização plena de uma única situação de realização
pessoal, amorosa ou profissional. Está “sempre à procura de alguma coisa, uma outra
aventura, incapaz de se aquietar”, de ser feliz (Moore e Gillette 1993,131). Em
consequência deste seu procedimento, não constrói um lar, mas destrói vários. Não
possui uma vida, mas apenas várias possibilidades de vida não concretizadas. Em rigor,
nem se pode dizer que seja um amante poligâmico, já que a sua postura não revela
verdadeira afeição a nenhuma das suas conquistas. Manifesta desinteresse e indiferença
para com os sentimentos das outras pessoas com quem se relaciona, mulheres, amantes
e filhos.
Tirando vantagem dos preceitos da tradição a sua favor, Rami obriga Tony
estabelecer uma forma modificada de união poligâmica em que as suas outras quatro
mulheres também recebem dote e são, por isso, oficialmente reconhecidas como esposas
o mesmo sucedendo com os filhos dessas uniões, em decorrência de uma relação assim
legalizada (de jure), mais do que meramente constatada (de facto) como era usual. Este
compromisso a que Tony é forçado é o que Nnaemeka ( 1998 ) designa por “poligamia

394
geográfica” , a manutenção simultânea de várias mulheres com casas localizadas em
diferentes sítios. Contudo, este tipo de união não é uma situação que se possa dizer que
seja sancionada por lei; precisa de estar de acordo com a tradição do povo Changaan de
Moçambique.
Mas o carinho com que Maria, tia de Rami, evoca o tempo em que foi a
vigésima esposa de um rei surge como prova de que um amante é alguém que Tony,
verdadeiramente, nunca chegou a ser. Devido ao seu egoísmo, ele nunca foi capaz de
comunicar em intimidade com as suas parceiras, ou de as respeitar e contentar:

Noto muito orgulho e muita vaidade no tom da sua voz. Não


consigo perceber a razão daquela felicidade, num lar com mais
de vinte pessoas, sem direitos nem liberdade nenhuma. - Eram
felizes lá? -Havia liberdade, muitas liberdades. As damas não
passavam carências de espécie alguma. Nem afectivas (…) -
Mesmo assim, para quê tantas mulheres e tanto filho? A tia
Maria olha para mim e sorri. -Cada tempo tem a sua história –
diz ela, a prosperidade mede-se pelo número de propriedades.
A virilidade pelo número de mulheres e filhos. Um grande
patriarca deve ter várias cabeças sob o seu comando (…) Na
Bíblia, só Adão não foi polígamo. (…) “(Chiziane 2002, p.73-
74).

Para além da situação que retrata Tony como amante viciado, há outras situações
que revelam disfunções do animus masculino, como é o caso em que esta personagem
assume uma postura de tirano. Ele explora e maltrata, é cruel, impiedoso e insensível
,quando quer alcançar o que considera ser seu interesse pessoal. Age assim, porque, na
verdade, lhe falta estrutura interior e porque vive com medo da sua fraqueza oculta,
procurando alardear um força que contrabalance uma impotência latente. Esta atitude
está bem tipificada no passo em que Tony convoca um conselho de família para se
queixar da afronta das mulheres que se fecharam com ele no quarto e tendo-se despido,
o intimaram a ter relações sexuais com elas. Faz um alarido enorme sobre esse caso, até
chora, como se tivesse passado por um vexame inqualificável. Precisa daquela reunião
para ganhar testemunhas da desgraça por que supostamente passa e também para aliviar
a sua humilhação. Com isto, pretende ganhar aliados para tentar segurar e controlar o
grupo das suas mulheres que estão prestes a fugir ao seu controlo.

395
Na verdade, o procedimento de afrontamento que enceta com as suas mulheres é
mais que justificado. São elas quem cozinhae habitualmente só lhes é permitido comer
as piores partes. Mas reconhecem essa injustiça e a seu e exigem o direito aos melhores
pedaços. Esta suposta insurreição pode ser entrevista no passo em que Tony reclama
que as hierarquias estão a ser subvertidas pois agora as coxas de galinha, o peito e as
moelas já não são só para ele, como se agora na família todos comessem por igual, quer
sejam homens, mulheres ou crianças. Perante este protesto de Tony, toda a gente lhe dá
razão e assim, ele estampa no seu rosto um olhar de troça e de triunfo perante as suas
mulheres. (Chiziane 2002, p.152-4)· Neste episódio sobressai claramente o lado egoísta
e manipulador de Tony que, assumindo o papel de vítima, consegue a aprovação geral e
assegura assim aquilo que considera ser o direito de ficar sempre com a melhor parte
das refeições e continuar a ter também o controlo sobre os actos das suas mulheres.
Outro aspecto que serve para evidenciar o carácter disfuncional de Tony é o
facto de ele desconsiderar as suas mulheres e até os seus próprios filhos, que só lhe
servem para ostentar uma imagem viril e como meio para obtenção de prestígio social,
de acordo com os valores tradicionais, segundo os quais muitas mulheres e filhos são
prova de prosperidade e poder:

“ Diz-me Tony, para quê enganar mulheres e deixá-las com


filhos nos braços? O que querias tu com elas? - Nada de sério,
confesso. Orgulho, simples orgulho. Ter uma mulher aqui, um
filho acolá, dá vaidade a qualquer macho. Não sou o único.
Muitos homens fazem isso”. (Chiziane 2002, p.299).

Noutros passos do texto, Tony revela também a sua faceta de machista sádico,
principalmente quando maltrata mulheres e ainda encara esse comportamento como
manifestação de carinho:
Sou um homem bom Rami, há homens piores do que eu.
Faço tudo bem feito. Ter muitas mulheres é o direito que
tanto a tradição quanto a natureza me conferem. Nunca
maltratei a Lu, bati nela algumas vezes, apenas para
manifestar o meu carinho. Também te bati algumas vezes,
mas tu estás ai, não me abandonaste para lugar nenhum. A
minha mãe foi sempre espancada pelo meu pai, mas nunca
abandonou o lar. As mulheres antigas são melhores do que as
de hoje, que se espantam com um simples açoite (Chiziane
2002, p.282).

396
Tony procura assim exteriorizar poder e segurança, mas na verdade é um
homem imaturo e, por isso, inseguro. Nessa medida, teme a força reprimida do feminino
e por isso é levado a oprimi-la como forma de reafirmar a posição de dominação
masculina, como se depreende das suas palavras nesta tirada onde equipara as mulheres
a um batuque onde o homem bate até se consolar:

“De repente recordo-me do meu avô materno. Quando se


embebedava, despedia os amigos suspirando: ah, minha
mulher meu tambor! Vou para casa tocar no meu tambor. Para
que ela derrame as lágrimas que sinto. Para que sangre nela a
minha ferida, a minha angústia. Para que ela adormeça a raiva
da minha alma. Para que faça vibrar a tristeza do meu ser e
solte aquela melodia do choro que me embala. Tu não bates na
tua mulher? Bate nela, bate, para entrares na dança da vida.
Bate nela a tua angústia, a tua dor, a tua alegria, bate nela, bate.
E quando ela gritar, tu suspiras em orgasmo pleno: ah, minha
mulher, meu tambor! (Chiziane 2002, p.302-3)

O sofrimento da mulher a gritar é aqui equiparado à satisfação de um orgasmo.


Mais uma vez, como aqui se vê, a mulher é um mero instrumento nas mãos do homem,
para onde transfere e descarrega as suas angústias de modo violento, aplacando assim a
sua raiva e frustrações.
Tony, através da sua postura, atitude e convicções, é uma personagem
claramente modelada de acordo com os paradigmas sociais vigentes na sociedade
moçambicana, na cultura e na tradição do seu povo. E os privilégios decorrentes de uma
organização social patriarcal fazem com que ele nos surja como agente perpetuador da
dinâmica desse tipo de sociedade. Isto leva-nos a considerar que as distorções sociais
vigentes fazem com que Tony deva ser visto simultaneamente como opressor e vítima
do próprio sistema, que, ao dar-lhe vantagens apenas por razões de género, não lhe
permite ser adulto com plenas responsabilidades. Em certos momentos. Tony pondera
sobre a sua situação e a pressentida injustiça do sistema social em que ele tudo pode e
nada deve, em que tem filhos por simples orgulho e vaidade de macho, não tendo que se
preocupar com o seu sustento:

397
“Não me culpes Rami. Não fui eu que inventei o mundo e as
tradições. Muito antes de eu nascer, os homens já eram assim.
O país está cheio de mães solteiras. O caso delas não será nem
único nem último”. (Chiziane 2002, p. 299)

Constatamos aqui que Tony continua a desfrutar das vantagens próprias da


dominação que é inerente à sua condição de homem naquela sociedade. Assim, mesmo
apercebendo-se das injustiças sociais que sofrem as mulheres, ele continua a ser
manipulador com o fito de perpetuar as relações de mando e submissão que lhe dão
vantagem.
No entanto, é, talvez, na transição de um quase divórcio para uma falsa viuvez,
aquando da partida inesperada de Tony, que Rami aprende a mais dura das lições: dado
o marido como “morto”, não é apenas a poligamia, por influência da tradição
muçulmano predominante no Norte de Moçambique, ou o catolicismo arraigado no Sul
que constituem a pressão maior sobre o sujeito feminino, é a própria tradição, cujas leis,
segundo Paulina Chiziane, “são muito pesadas para uma mulher” (CHABAL 1994, p.
298). E Rami, como mulher moçambicana, entende que “a cultura não é eterna”
(Chiziane 2002, p.311), o preço pago para mantê-la viva é alto demais, custa ao corpo e
à alma da mulher moçambicana:

Eu grito, eu pergunto, como é que o Tony morreu e onde,


quem o encontrou, quem o matou, como o encontraram,
como o identificaram. Aquelas mulheres respondiam-me:
porta-te como uma viúva digna. Não compreendia o que
estava a acontecer, mas sabia que uma viúva como deve ser
não deve perceber nada, nem perguntar, nem sugerir nada,
para não ser chamada viúva fresca, viúva alegre. (...)
Arrastaram-me para um canto, raparam-me o cabelo à
navalha e vestiram-me de preto. Acabava de perder poderes
sobre o meu corpo e sobre a minha própria casa. Arrependo-
me: por que não assinei aquele maldito divórcio? Tive nas
mãos a oportunidade de libertar-me desta opressão e não a
tomei. (Chiziane 2002, p. 197-8).

Sofrer com o corpo, sentir a sua própria feminilidade ferida e roubada e perder o
controlo sobre o corpo e a casa são os efeitos colaterais desta realização tradicional que
atinge o seu apogeu/ clímax no rito da kutchinga, “da purificação sexual”, quando o
cunhado mais velho inicia a “viúva na nova vida, oito dias depois da fatalidade”

398
(Chiziane 2002, p.211). Diferente da niketche, dança de “sensualidade perfeita, rainha
de toda a sensualidade” (Ibidem, p. 160-161), a kutchinga é a dança da posse e
propriedade masculinas. Ainda assim, a mulher parece encontrar meios de subverter a
marcação de um ritmo masculino, ao perguntar-se: “existirá alguma mulher que, no acto
da kutchinga, gemesse de prazer?” (Chiziane 2002, p. 211-2).
Para suavizar o modo como Rami foi penalizada pela tradição, numa situação
como aquela em que ela foi humilhada, despojada de bens e obrigada a dormir com
Levy, o irmão do seu marido, (por este ter sido dado como morto), Tony afirma
cinicamente: “Foi desumano o que fizeram contigo. Ah, cultura assassina” (Chiziane
2002, p.228).
Importa circunstanciar aqui devidamente o tipo da situação em que a tradição
tolhe os direitos da mulher em Moçambique. Quando se presume que Rami ficou viúva,
a família do marido, de acordo com a tradição, rapa-lhe o cabelo e faz um funeral onde
ela, por ser mulher, não tem a possibilidade de averiguar se o defunto é ou não o seu
marido. Rami está convicta de que Tony não morreu, mas, enquanto mulher, não pode
opor-se à força da tradição que, naquela cultura, lhe tira a possibilidade de fazer-se
ouvir com vista ao esclarecimento pleno do que está a ocorrer. E isto, apesar de uma das
duas amantes de Tony vir a desvendar o mistério da morte que afinal não ocorreu.
Assim, não podendo lutar contra o sistema instituído, seus usos e costumes, Rami
colabora e aceita dormir com Levy, irmão de Tony, gesto que configura uma espécie de
pequena vingança para com o seu marido, pela sua continuada infidelidade, e por este
ser o representante paradigmático do sistema patriarcal que oprime as mulheres
(Chiziane 2002, p.224).
Em consequência disto, Tony procura culpar a cultura e suas tradições, como se
fosse possível isentar-se da sua culpa:

“Ele entra em delírio. Diz que não sabia que a vida era má,
nem imaginava que as mulheres sofriam tanto. Sempre
achara que a sociedade estava bem estruturada e que as
tradições eram boas, mas só agora percebe a crueldade do
sistema (…) Rami eu já morri assassinado pela tradição.
(Chiziane 2002, p.228).

399
Como já referimos, o sistema patriarcal e o modo como este se organiza e
perdura, segundo o romance, em Moçambique faz com que Tony nunca deixe de ser
imaturo e se torne num homem adulto, responsável. Na verdade, alcançou o posto de
comandante da polícia, estatuto profissional que implicaria uma postura de
comportamento social exemplar, mas mantém-se manipulador e negligente. Abandona o
seu posto de trabalho por qualquer motivo, em busca de uma nova aventura sexual. Mas
quando tem de tomar uma atitude autoritária (estando ausente, supostamente morto, e
numa situação em que de acordo com a tradição, foi desapossado dos seus bens pelos
seus familiares), mesmo não tendo autoridade moral para determinar o que é justo fazer-
se, é implacável, tal como acontece a quem vive escorado num sistema que o protege e
lhe permite arvorar-se em pequeno tirano.

Tony: “Mandei prender toda a gente que participou no saque,


incluindo a minha própria mãe. Eles terão que responder em
tribunal por todos os seus actos de vandalismo cometidos na
minha ausência, Rami. Rami: - E a ti, quem irá
prender? Foste o autor moral de toda esta história (Chiziane
2002, p.231).
Tony, no seu comportamento disfuncional que temos vindo a assinalar é
representativo do homem numa sociedade e numa tradição cujos paradigmas sociais
motivam o surgimento de tiranetes manipuladores de que ele é um exemplo
personificado. Mas o poder destas personagens tem um fim prenunciado, uma vez que
elas geram violência contra o feminino e, deste modo, contra a sociedade no seu todo,
não permitindo o equilíbrio que promove a necessária coexistência harmoniosa entre os
seus membros. Por isso, Tony irá passar de uma situação de dominação a um
progressivo declínio. Certamente não é por acaso que Chiziane assinala de modo claro o
decréscimo de importância desta personagem, percurso descendente que ela deseja que
possa simbolizar o fim das prerrogativas que privilegiam os homens na sociedade
patriarcal.
Analisando o texto de Niketche, vemos que, no início da narrativa, Tony desfruta
de grande poder social, psicológico, económico e emocional. É ainda jovem, tem uma
boa situação profissional, está no auge da sua virilidade, o que lhe permite ser um
conquistador desejado, tanto pela esposa como pelas suas amantes. No entanto, com o
decorrer do tempo, vai envelhecendo, vai perdendo a sua atracção física e vem a ser

400
abandonado pelas suas mulheres. E como procurou prolongar a sua vida de conquistas
amorosas por longo tempo, a transição entre uma vida de aparente e continuada
virilidade, e a constatação da sua impotência, não será gradual mas brusca, pelo que as
consequências de perda de poder, a todos os níveis, terão efeitos ainda mais
devastadores. Perante a constatação da sua actual insuficiente virilidade, o macho de
que Tony é o arquétipo, irá procurar por todos os meios salvar a face, para não ser
apeado do pedestal em que o varão está colocado na sociedade patriarcal, onde se espera
que o homem permaneça eternamente dominador e conquistador, como Zeus ou o Sol
que ordena e rege as multidões. Tony adiou tanto o seu amadurecimento enquanto
homem que chegou bruscamente ao inverno da vida, quando os seus raios já não
aqueciam as mulheres que teimava em considerar suas. Depara-se então com o seu fim
iminente, sem conseguir desprender-se de um início de esplendor que já se eclipsou:

“Ele esconde o rosto. Chegou a hora de o caracol se abrigar


na sua concha. Depena-se com o próprio bico como um
papagaio velho. Demite-se do amor como um boi castrado e
dobra as asas em pleno voo. É a mensagem do Outono, o
Inverno está prestes a entrar (Chiziane 2002, p.323).

Tony encontra-se subitamente velho, mas sem o amadurecimento e sabedoria


que a idade traz associada a uma serenidade que permite o aproveitamento dos pontos
positivos da velhice. Assim, perdida a sua juventude e virilidade, nada sobra do que foi,
nem do seu encanto. Desprovido da sua força e poder que assentavam, em grande parte,
na sua condição de macho dominador, Tony é agora como que um ser castrado. Diz-lhe
Rami a propósito deste fim de vitalidade:

“(…) Agora que foste dado como morto, vê com os teus


olhos o que sobrou de ti (…) Um homem mede-se pela
solidez da obra que deixa, quando a morte chama. Olha à tua
volta: O que vês? Ruínas, desolação, tristeza. Construíste o
teu castelo na areia do mar, foi derrubado pela maré, pelo
vento, pelos gatos, pelos ratos, és um homem fraco, um
homem pobre, meu Tony. (…) Parece um monumento de
impotência. (Chiziane 2002, p.230-1).

401
Tony fez filhos a muitas mulheres, mas não cuidou de nenhum, impedindo assim
que o fim do ciclo de sua vida seja retomado por um descendente que contine a sua
obra. Ele próprio reconhece este facto, embora tardiamente, tornando-se assim também
ele vítima do poder opressor que veiculou. Nunca se ligou verdadeiramente a ninguém,
e agora que não tem poder, ninguém o respeita, ninguém fica junto dele. Até para falar
com as suas mulheres que antes lhe eram totalmente submissas, precisa de esperar que
elas se disponham a ouvi-lo:

“É desagradável ter que marcar audiências com as minhas


próprias mulheres (…) pior de tudo, meus filhos seguem o
exemplo das mães, não me ligam. De tudo ter, acabei não
tendo nada. As minhas esposas esvoaçam como pássaros
numa gaiola aberta, espantado, mulheres a quem amordaçava
as asas e afinal sabem voar. Ontem, vendedeiras de esquina,
eram submissas e me adoravam. Hoje, empresárias, já não me
respeitam.” (Chiziane 2002, p. 303).

Tony ainda procura desesperadamente não abdicar da sua tirania, mas está
irremediavelmente sozinho, as suas mulheres deixaram-no e já o trocaram por outros
parceiros. O seu poder já não existe, a sua presença não é mais desejada, a sua morte
social é um facto que já antecede a sua morte física.
O conjunto de episódios que estivemos a referenciar serve para sublinhar que o
animus disfuncional representado por Tony, enquanto arquétipo de comportamentos
machistas e que têm a aprovação social das sociedades patriarcais tradicionais, destrói
cada vez mais a possibilidade de harmonia social, a qual só será possível, se houver
maior equilibro futuro nas relações de poder entre homens e mulheres. Este
desequilíbrio, como vimos, acaba por vitimar o próprio homem, uma vez que este se
torna presa da sua tirania e descuido para com os outros, mulheres e filhos, ao longo da
vida.
Neste contexto a mulher ou anima, a vitalidade feminina, surge nesta narrativa
como uma via possível para se chegar a um equilíbrio social mais justo. E isso será
conseguido, não através de uma inversão das relações tradicionais de poder patriarcal,
mas através de um ajustamento, ainda por alcançar, em que ninguém será dominador ou
dominado. Em tal situação estariam finalmente abolidas as hierarquias resultantes das
diferenciações por razões de género. Neste sentido, a acção das mulheres em Niketche

402
visa levar a uma maior democratização da sociedade moçambicana, mediante um
nivelamento de direitos entre homens e mulheres, que usualmente não é defendido pelos
usos da tradição e da organização social que persiste em Moçambique.

iii. Rami, da passividade à contestação da violência patriarcal

A ficcionalidade de Paulina Chiziane relata de modo veemente os problemas


vividos pela mulher e a necessidade de conciliar um tempo novo com os valores da
tradição que são parte da identidade moçambicana. A sua escrita é pois um espaço
literário que se propõe repensar a condição feminina, tendo em conta as especificidades
culturais das diferentes etnias daquele território.
Niketche é, formalmente, a história do amor e da vida de casada de Rami
(mulher da etnia tsonga, do sul de Moçambique) que revela ter um nível social superior
à maioria das mulheres do seu país e que é, por isso, capaz de uma maior
consciencialização quanto à necessidade que estas têm de refutar práticas tradicionais
que as menorizam. O estrato social donde provém, dentro da sociedade tradicional
moçambicana, permitiu-lhe celebrar um casamento católico com um alto funcionário da
polícia da capital, Maputo. Rami, após vinte anos de casamento de papel passado e
aliança no dedo, sendo já mãe de muitos filhos, começa a sentir-se desprezada pelo seu
marido, cujas frequentes ausências a levam a suspeitar de que ele andará envolvido em
aventuras extra-conjugais. Tony, formalmente, é um “fora-da-lei” , pois, sendo casado
pela igreja católica, mantem uma relação polígama com mais quatro mulheres. Farta de
não o ver em casa, para com ele repartir as dificuldades do sustento e criação dos filhos
e por já não suportar mais passar noites inteiras sem que ele esteja ao lado dela, Rami
sai na peugada de Tony para saber o que anda a fazer e acabar por descobrir o que ele,
afinal, nem se preocupa muito em ocultar.
A fim de ter o seu marido de volta, Rami está disposta a tudo. Procura saber
quem são afinal as outras mulheres de Tony e vem a verificar que também elas são
ciosas do “seu homem”. Todas elas defendem os seus lares, com unhas e dentes, e Rami
vê-se mesmo envolvida em confrontos físicos, vindo a ser detida por desacatos
públicos. Perante a descoberta de que partilha o seu marido com outras mulheres, Rami
experimenta inicialmente uma angústia lancinante e culpa Deus pela sua desgraça:

403
Deus, que é o pai do mundo, fez muitas mulheres e poucos
homens. Deu grandeza a uns e humilhou outros. Entrei nesta
guerra e nesta cela por falta de homem. Estou a ser enxovalhada
por uma rival por causa de homem. A culpa é de Deus e não de
Luísa (Chiziane 2002, p.59).

O primeiro contacto de Rami com as outras mulheres de Tony é doloroso não só


emocional, mas também fisicamente, já que as outras quatro mulheres defendem o
direito à continuação de relações maritais com ele e, em defesa dessa situação, atacam
Rami com o desespero e a força de feras enjauladas:

Fui procurar a Julieta, a segunda, e encontrei uma fera que me


deu uma sova mestra e colocou as suas garras no meu pescoço.
Ela fez comigo o que uma fera faz às suas presas…Vingou
sobre mim todas as suas insónias….Fui ver a Luísa. Ela
defendeu-se como a valentia dos antigos gladiadores, e ficámos
enjauladas como leoas numa esquadra da polícia….Fui ver a
Saly, a quarta. Ela também me deu muita sova e disse-me: teu é
o que transportas contigo, no teu ventre, no teu estômago. Teu é
o que comeste….Fui ver a Mauá. Uma criança ainda. Uma flor
silvestre nascida nos jardins do norte do meu país. Ela é a
mulher é a mulher mais amada pelo Tony. Ciúme dela? Não.
(Chiziane 2002, p.68-9).

É nesta altura que Rami entende que as suas rivais são também vítimas de Tony
e que vivem numa imensa solidão, ainda maior que a sua – com uma casa vazia, elas
sentem constantemente a ausência do marido desejado e experimentam aquela solidão
que é “privilégio” colectivo das mulheres poligâmicas, cujas certezas absolutas acerca
dos seus presumidos direitos maritais são depois (altamente) relativizadas. Neste
encontro ou reencontro e confronto com as outras mulheres, Julieta ensinará a Rami
uma dura lição de vida ao revelar-lhe uma verdade ainda mais cáustica do que tudo
quanto ela poderia imaginar:

Ter é uma das muitas ilusões da existência, porque o ser humano


nasce e morre de mãos vazias. Tudo o que julgamos ter, é-nos
emprestado pela vida durante pouco tempo. Teu é o filho no
ventre. Teu é o filho nos braços na hora da mamada. Mesmo o
dinheiro que temos no banco, só o tocamos por pouco tempo. O

404
beijo é um simples toque e o abraço dura apenas um minuto (…)
Penso naquilo que tenho. Nada, absolutamente nada. Tenho um
amor não correspondido. Tenho a dor e a saudade de um marido
sempre ausente. A ansiedade. Ter é efemeridade, eterna ilusão
de possuir o intangível. Teu é o que nasceu contigo. Teu é o seu
marido quando está dentro de ti. (Chiziane 2002, p. 27)

À medida que Rami se vai apercebendo de que o seu marido tem relações com
outras mulheres, ela é levada a questionar-se sobre as razões desta situação, sabendo
que o marido, Tony, gosta dela. Mas, apesar disso e com alguma naturalidade, não se
coíbe de procurar outros relacionamentos sexuais fora de casa. Ao fazer este estudo de
indagação das razões que subjazem ao comportamento do seu marido hedonista, Rami é
levada a defrontar-se com os valores culturais da tradição ancestral moçambicana, que
aceitam e promovem a poligamia, fazendo com que seja normal e até obrigatório ou
sinal de afirmação e sucesso que um homem tenha várias mulheres.
É a partir deste ponto que Rami inicia uma reflexão acerca dos valores
contraditórios da sociedade moçambicana em resultado do encontro, naquele espaço, de
diferentes mundividências culturais. Entre estas contradições está o seu próprio
casamento, celebrado segundo os rituais cristãos e em que, portanto, a monogamia devia
ser observada, mas que é, como muitos outros, informalmente polígamo. Através de um
conjunto de situações que nos vão sendo narradas, Rami vai questionar o papel da
mulher em várias situações e ela própria virá a confrontar-se com a escassa
possibilidade de escolha e a voz quase inaudível da mulher moçambicana e africana,
numa África predominantemente patriarcal, em que a hipocrisia permite uma vivência
de aparência. Numa sociedade como esta, em que as mulheres têm uma liberdade de
acção e escolha restritas, é imperioso que seja feita a denúncia deste facto. É isso que é
exemplificado no passo do texto, quando refere a diferença entre aquilo que um político
diz na praça pública e aquilo que depois faz na prática e no espaço privado da vivência
familiar.

“(…) No comício do partido aplaudimos o discurso político:


abaixo a poligamia! Abaixo! (…) Viva a revolução e a criação
do mundo novo! Viva! Depois do comício, o líder que incitava o
povo aos gritos de vivas e abaixo ia almoçar e descansar em
casa de uma segunda esposa (…)”(Chiziane 2002, p.94).

405
Rami é a personificação de alguém que estando atenta ao mundo que a rodeia,
reflecte sobre a sua experiência individual para a inserir na de tantas outras mulheres
africanas, e não só, que com ela partilham o mesmo jugo da opressão patriarcal e
buscam fazer a denúncia de ideologias com elevados princípios, mas que reprimem e
oprimem a condição e a vontade da mulher, que não passa de um objecto descartável.
Como se pode ler em dado momento:

(…) quer seja esposa ou amante, a mulher é uma camisa que o


homem usa e despe. É um lenço de papel que se rasga e não se
emenda. É sapato que descola e acaba no lixo” (Chiziane 2002, p
p.56) “(…) Um mundo onde a mulher é couro. Couro de forro
macio e muito bem curtido. Um mundo onde a mulher é gémea do
tambor, pois ambas soltam acordes espirituais, quando aquecidas e
matraqueadas por mãos vigorosas e rústicas. (Chiziane 2002, p.57).

Na desconstrução que Rami faz dos altos ideais sem correspondência prática, ela
serve-se da ironia para os desmitificar como se pode ver no passo acima.
Niketche é assim um texto onde se faz uma veemente denúncia deste tipo de
hipocrisias socais, numa narração que sublinha as dificuldades e o desfavorecimento
tradicional a que são votadas as mulheres na sociedade moçambicana. Nesta obra,
Paulina Chiziane apresenta-nos a poligamia e seus variados sortilégios. Vista pelas
mulheres, ela comporta acomodação mas também comportamentos extremados, como
tentativas de envenenamento dos maridos. O sentido de partilha, no entanto, avulta no
entendimento que as mulheres têm da poligamia. Por exemplo, Luisa, a terceira esposa,
justificar a Rami porque aceita Tony, nos seguintes termos: “ há homens em quantidade
suficiente, homens com poder e dinheiro é que são poucos” (Chiziane 2002, p.56). Mas
antes desta tirada conclusiva, ela informa sobre o conhecimento da vida que a levou à
aceitação da poligamia, como uma necessidade prática, para partilha de um bem que, de
outro modo não chega para todas:

Eu venho de longe, minha senhora, sou da Zambésia (…) Venho


de uma terra onde os homens emigram e não voltam mais. Na
minha aldeia natal só há crianças e velhos. Tenho oito irmãos,
cada um com o seu pai. A minha mãe nunca conseguiu um

406
marido só para ela. Do meu pai apenas ouvi falar. Desde cedo
aprendi que homem é pão, é hóstia, fogueira no meio de fêmea
morrendo de frio. Na minha aldeia, poligamia é o mesmo que
partilhar recursos escassos, pois deixar outras mulheres sem
coberturas é crime que nem Deus perdoa. (Chiziane 2002, p.57)

Na maior parte da narração, Rami sente-se “ encerrada em solidão mortal”, e


este é outro aspecto que partilha com as diversas mulheres de Tony, numa comum
resignação perante desejos que ficam por cumprir, o ânimo que, com o tempo, vão
perdendo e dá lugar ao desalento, como um fluir de águas que vai secando. Sozinha no
seu quarto, ela reclama:

Desperto na vã esperança de receber uma mão cheia de


carinho, mas o sol deixou-me e partiu. O meu amor é fugidio
como a sombra do sol. Sou uma mulher derrotada, tenho as
asas quebradas. Derrotada? Não. Nunca combati. Depus as
armas muito antes de as empunhar. Sempre me entreguei nas
mãos da vida. Do destino. Nunca mexi nenhum dedo para
que as coisas corressem de acordo com os meus desejos. Mas
será que algum dia tive desejos? A minha vida é um rio
morto. No meu rio os antepassados não dança, batuques nas
noites de lua. Sou um rio sem alma, não sei se a perdi, nem se
alguma vez tive uma. (Chiziane 2002, p.20).

Rami sente-se derrotada, porque não ter sido capaz de lutar de modo a ter nas
suas mãos o destino da sua vida, mas neste desânimo ainda tem alento para querer saber
o que se podia ou devia fazer para não deixar estiolar o desejo e salvar o amor. E assim,
nesse desespero, Rami busca feiticeiros, feiticeiras, uma professora de tácticas e
técnicas afectivo sexuais, auto-intitulada “conselheira do amor”. E esta, sabiamente,
diz-lhe: “minha amiga, se o amor tivesse preço, garanto-te que cada um de nós
comprava em quantidade, para usar e para guardar no celeiro. No amor não existe
vergonha. …O amor não tem preço” (Chiziane 2002, p.36).
A resposta da conselheira do amor, mais do que um sábio conselho, é um
estímulo, apesar do tom sentencioso que castiga a passividade de quem não lutou, como
devia, por um bem precioso que já teve. Deste modo, mesmo tendo perdido a guerra
para recuperar o marido às suas rivais, o desespero de Rami ainda a levará a procurar
soluções diferentes e alternativas, a fim de voltar a ter Tony perto de si. E entre as

407
alternativas que lhe restam, falta-lhe explorar, por exemplo, a magia, via sempre
temerária. Mas até a isso ela se propõe:

“Procurar uma solução para o meu problema que se complica a cada


dia. Os conselhos sentimentais falharam. As guerras com as minhas
rivais só me trouxeram problemas de saúde e aborrecimentos. Decidi
explorar o campo da magia, não me restava outra alternativa. Procurei
um mercador de sorte. Falei do meu problema bem baixinho, para que
o vento escutasse os meus lamentos (Chiziane 2002, p.63).

Como temos vindo a assinalar, várias situações levam Rami a reflectir sobre a
sua existência e sobre a sua vida de mulher casada. Estando ela casada há já vinte e
cinco anos com Tony, comandante da polícia local, de quem tem cinco filhos, Rami
constata que a sua vida é um mar de solidão. E esta constatação revela-se na sequência
de um pequeno incidente, que poderia ser insignificante, se não surgisse ligado à
simbologia do vidro e do espelho, tido por espécie de conselheiro ou oráculo com
respeitados vaticínios na cultura de vários povos a nível mundial. O seu filho quebrou o
vidro da janela de um automóvel e, como “vidro quebrado é mau agoiro” (Chiziane
2002, p.11-2), esse pressentimento de infaustos acontecimentos futuros leva a narradora
a consultar o espelho, tido como tradicional conselheiro de almas solitárias,
desesperadas. Por isso, vemos Rami dizer-nos textualmente: “Vou ao espelho tentar
descobrir o que há de errado em mim” (Chiziane 2002, p.16).
Na tradição cultural de muitos países o espelho sempre funcionou como
confidente e oráculo, dizendo a quem o interpela aquilo que a consciência de quem o
interroga gostaria de ouvir e cuja imaginação assim visiona e até verbaliza. Espelho
vem da palavra latina speculum que originou a palavra actual especular que, significava
observar o céu e os movimentos das estrelas com o auxílio de um espelho; e, por isso,
associado à simbologia do espelho estão outras superfícies reluzentes como a água, a
lua, os olhos. O espelho que, ao longo dos tempos funcionou como objecto auxiliar de
vaticínios, irá actuar como reflector da consciência de Rami e, ao mesmo tempo, vai
aconselhá-la, no decorrer do diálogo que entre ambos se vai desenvolver e será
elemento condutor desta narrativa. É o espelho que vai acicatar a consciência de Rami e
dos seus direitos de mulher e que a vai convidar a tomar parte num rito iniciático em
que, por meio da dança ela vai iniciar o seu caminho de libertação. O espelho em

408
Niketche age, pois, como um conselheiro interior ou como a conselheira em assuntos de
amor que Rami procura e precisa de encontrar para aprender a importância de sentir
prazer.
Esta nova tomada de consciência será, inicialmente, uma via para ela
proporcionar maior satisfação sexual ao seu homem, mas posteriormente servirá
também para a subjugação de Tony. Tony não foi criado na tradição africana que
valoriza a mulher e leva o homem a ver em cada mulher a imagem e valor da sua
própria mãe. Rami também não foi educada nessa tradição e, por isso, a seu tempo,
sente, com grande desespero, um sentimento de baixa auto-estima quando Tony a
abandona. Mas, ao tomar parte do rito iniciático que se corporiza com a dança niketche,
Rami, sempre incitada pelo espelho e pela sua conselheira amorosa, vai aprender a
desinibir-se, a olhar e afagar o corpo para satisfazer sexualmente o homem e tornar-se
também senhora dos seus desejos, consciente das relações de poder que regulam o
comportamento e a sexualidade das pessoas. Os desejos da mulher, que eram uma parte
marginalizada pela poligamia reinante em Moçambique, transformam-se em formas de
resistência consciente que a levarão a alcançar novas e longamente almejadas condições
da paridade.
Rami dialogará durante toda narrativa com o seu espelho, seu interlocutor
permanente que a levará a descortinar o que há de errado no seu comportamento de
submissão sem questionamento das acções do seu marido. Associada à simbologia do
espelho, enquanto superfície reflectora de desígnios mágicos, veremos como este irá
revelar a Rami o posicionamento e a estratégia da resistência a adoptar e como ele
funcionará também como espaço e processo essencial de auto-conhecimento para Rami:

- Por que danças tu, espelho meu? [indaga a mulher].


- Danço o amor e a vida. Piso para o fundo da terra todos os
males que me torturam. A dança liberta a mente das
preocupações do momento. A dança é uma prece. Na dança
celebro a vida enquanto aguardo a morte. Por que é que não
danças? (Chiziane 2002, p.17).

A dança, celebração da vida (futura) e da morte (passada) contém nos


movimentos da sua coreografia uma atitude que, quem a pratica, enuncia, e, ao fazê-lo,
uma estratégia de resistência, pois não deixa que a tradição autóctone se sinta tolhida ou

409
envergonhada perante o olhar recriminador trazido pela presença europeia colonial.
Interessa sublinhar que nestes diálogos com o espelho Rami tomará maior consciência
da importância de preservar a cultura tradicional do seu país e de deixar de favorecer a
cultura de inspiração ocidental que, na sua educação de juventude, lhe fora apresentada
como a “correcta” para uma pessoa do seu estrato social, que privilegiava os valores da
classe média europeia, católica e monogâmica.
A simbologia do espelho no mundo ocidental serve o romance para desenvolver
nele uma trajectória de auto-conhecimento das personagens, uma vez que ali se assinala
a representação das preocupações do nosso inconsciente, tais como as que estão
amplamente divulgadas pelo mito de Narciso e pelo conto popular Alice in the
Wonderland, de Lewis Carroll. Chiziane enquanto autora, reflecte nesta obra os dilemas
de uma personalidade que tem consciência dos riscos de estar dividida entre duas ordens
de valores culturais: os da tradição moçambicana e aqueles que eram tidos como
apanágio da burguesia no sul de Moçambique, região daquele país onde os valores da
tradição colonial ocidental se exerceram mais fortemente. Segundo Russell (1980,
p.44), a simbologia do espelho ganha ainda uma outra nuance mais africana se nos
familiarizarmos com a lenda Yorubana sobre o espelho de Osun. Ali se narra a estória
do rei Sàngó que era polígamo e cujas três esposas, Osun, Oba e Oya lutaram pela sua
preferência (Dennett 1984, p.64). Neste mito Oba achou-se preterida e quis vingar-se da
sua rival. Para isso, usou um espelho e, reflectindo nele a forte luz solar, enviou um
feixe à cara de Osun, cegando-a. Nesta história, vê-se que Oba, representante da
violência impensada, será vencida no fim por Osun que é a serena representante da
placidez das águas que vencem a força das tempestades.
Também Rami, quando consegue adoptar um procedimento mais pensado,
reflectido, e aliar-se às suas rivais, como havermos de referir, é capaz de montar uma
estratégia consistente de contestação à violência patriarcal representada por Tony.
Niketche é assim uma dança que dá azo a uma contra-dança ou vingança e superação de
arbitrariedades. Rami, a princípio, pode equiparar-se a Oba que, revoltada com o
desprezo de Tony-Sango se serve também de um espelho, só que não para cegar a rival
mas para trazer à luz a verdade da tradição a que ela quer ripostar com a serenidade de
Osun.

410
Neste processo em que se busca a revalorização da tradição aqui representada
pela persistência da poligamia em Moçambique, Chiziane põe em causa,
simultaneamente, os novos estereótipos impostos à sociedade moçambicana pela cultura
ocidental, para revelar como eles deslocam ainda mais para a periferia os valores do
subgrupo feminino. Deste modo podemos verificar como Chiziane recorre aos dois
mundos cultuais em que foi criada e educada, Moçambique e Europa, para denunciar
um conjunto de convenções que sempre desfavoreceram a mulher e pugna, no espaço da
sua escrita, pela libertação de amarras que ainda impedem a proclamação de
independência da mulher moçambicana. A dança que é niketche celebra a derrota de um
adversário que parecia inamovível, mas que foi vencido pela coragem e unidade de
mulheres conscientes, que a autora deseja que sejam cada vez mais numerosas no novo
país que ela quer ajudar a construir. Esta dança é, à sua medida, a celebração da
esperança a que a rebeldia deu forma. E o futuro que Rami entrevê, diferente do
momento presente, já não feito da submissão da mulher, vai construir-se com base nessa
necessária rebeldia que até já existia nos relatos do passado, reportados pela tradição.
Rami revolta-se contra as imposições a que as mulheres e o povo haviam sido
submetidos ao longo do período colonial e agora, através do testemunho oral da tia
Maria, reconhece que as rebeldias eram uma atitude latente no seio das mulheres
moçambicanas, independentemente do modo como essa insubmissão sempre fora
castigada. Deste modo, a tradição, o arcaico, o passado, contêm exemplos que devem
ser retomados e continuados no presente, com vista à construção de um futuro libertador
para as mulheres.
Por esta razão, para Rami, a palavra da “mais velha” é sempre reutilizável como
é o caso do relato por ela transmitido a Rami, de Vuyazi, a princesa insubmissa. Num
tempo distante, esta princesa que agia de acordo com a sua vontade, enfrentou
corajosamente os desmandos do seu pai e do seu marido. Esta transgressão era praticada
por Vuyazi em práticas quotidianas, como na divisão dos alimentos e nos cuidados com
a filha. O pai e o marido, então inconformados com tamanha rebeldia, uniram-se e
ordenaram ao dragão que castigasse a princesa:

“Num dia de trovão, o dragão levou-a para o céu e a estampou


na lua, para dar exemplo de castigo ao mundo inteiro. Quando a
lua cresce e incha, há uma mulher que se vê no meio da lua, de

411
trouxa à cabeça e bebé nas costas. É Vuyazi, a princesa
insubmissa e estampada na lua (…) é por isso que as mulheres
do mundo inteiro, uma vez por mês, apodrecem o corpo em
chagas e ficam impuras, choram lágrimas de sangue, castigadas
pela insubmissão de Vuyazi, (Chiziane 2002, p.157)

Pensando no que aconteceu a Vuyazi, elas deveriam ter sempre presente esta
história para se lembrarem de que o mundo é regido pelas leis dos homens. No entanto o
efeito desta alegoria pode muito bem ser contrário ao pretendido pela ordem patriarcal.
A superfície da lua reflecte aquilo que a protagonista deseja alcançar, ou seja, a
coragem que a mulher precisa de assumir nos seus actos para se transformar em sujeito
condutor de factos e não elemento passivo em circunstâncias adversas.
Neste romance podemos dizer que o espelho desempenha três funções. Em
primeiro lugar, ele serve para levar à reflexão, isto é, levar Rami a pensar sobre a sua
situação e, concomitantemente, sobre a da mulher moçambicana. O espelho assume
neste propósito a atitude de um conselheiro racional e afável, que permite desdramatizar
as situações com que as mulheres se vão deparando e, de modo estudado, vão vencendo.
No final do primeiro capítulo Rami está angustiada, mas o espelho dança para ela como
a dizer-lhe que a infidelidade é apenas um passo, entre outros, na dança do amor que é
Niketche.
Em segundo lugar, o espelho tem a função que lhe é mais própria, ele reflecte,
isto é, reproduz uma imagem. Neste caso, a imagem que ele reproduz e de que nos dá
conta, é a consciência de Rami a interrogar-se sobre a sua condição de mulher casada,
mas nem por isso a preferida de seu marido, que tem outras mulheres e amantes a quem
dedica maior atenção. Nesta fase, é claro o momento em que Rami se coloca perante o
espelho para se interrogar numa atitude de auto-culpabilização, que o próprio espelho,
em diálogo imaginado, ajudará a superar, sugerindo que se culpas há de mau
relacionamento no casamento, tais faltas são da responsabilidade dos homens, de Tony :
Diz-me, espelho meu: serei eu feia? Serei eu mais azeda que a
laranja de lima. Porque é que o meu marido procura outras e me
deixa aqui? O que é que as outras têm que eu não tenho? (…) - Oh,
espelho meu, o que achas de mim? Devo renovar-me? –Renova-te,
sim. Mas antes, procura uma vassoura e varre o lixo que tens
dentro do peito. Varre as loucuras que tens dentro da mente, varre,
varre tudo. Liberta-te. Só assim viverás a felicidade que mereces. –
Diz-me, espelho meu: onde foi que eu errei? Serei feliz algum dia,
com essas mulheres à volta do meu marido? – Pensa bem amiga

412
minha: serão as outras mulheres as culpadas desta situação? Serão
os homens inocentes? (Chiziane 2002, p.34-5).

Em terceiro lugar, o espelho reflecte, devolvendo uma imagem necessariamente


invertida e por isso alterada, para devolver à narradora as suas interrogações e provocar
nela pensamentos que levem a uma mudança de atitude, de mulher agora mais
consciente e mais determinada em afirmar vontade própria:

Vou ao quarto e dialogo com o meu espelho. – Espelho meu, o


que será de mim? O espelho dá-me uma imagem de ternura e
responde-me com a maior lucidez de sempre. – Não serás a
primeira a divorciar, nem a última. Os divórcios acontecem
todos os dias, como os nascimentos e as mortes, mas tranquiliza-
te. Há uma grande diferença entre a vontade do homem e a
vontade de Deus. O que Deus põe, o homem não dispõe. – e
qual é a vontade de Deus, espelho meu? - E qual é a tua vontade,
gémea de mim? (Chiziane 2002, p.171).

E assim, ao devolver a Rami a necessidade de impor na sociedade moçambicana


a imagem de uma mulher tranquila mas determinada, o espelho está a investir a mulher
moçambicana da força que ela realmente tem e deve reivindicar, não se deixando
subjugar por séculos de dominação patriarcal que persistem em existir. Com o
entendimento que consegue obter e estabelecer junto das amantes do marido, a
narradora deixará de representar a mulher amordaçada da sociedade moçambicana para
se tornar agente de mudança, a mulher que assumidamente busca o lugar de primazia
que lhe cabe como esposa principal. Rami também aprende e com o seu exemplo
propõe levar as demais mulheres moçambicanas a acreditar que a mudança de uma
situação colectiva de discriminação, marginalidade e sentido de inferioridade começa
pela mudança em cada mulher, individualmente, e pelo modo como esta passa a ver–se
reflectida ao espelho. Liberta-se assim da sua situação de cidadã com direitos por
resgatar e que vinham sendo continuadamente preteridos.
Quando Rami descobre, ou melhor confirma a traição de Tony e pode verificar
que ele mantém, com quatro diferentes mulheres em outras áreas da cidade, relações
que para ele são indistintamente equiparáveis e aceitáveis, face ao que é o
comportamento tradicional dos homens na sociedade moçambicana. Enquanto ela é
mulher de um só homem e respeita os votos de fidelidade proferidos no altar do seu

413
casamento religioso, que vinculam ambos os cônjuges, o coração do seu marido
repartie-se em desfrute hedonista por várias mulheres. Mas ela não pode conformar-se
passivamente. Tem de ir lutar, assumir os seus direitos, não abdicar deles, sem antes
averiguar bem o que se passava, perceber razões e estabelecer uma estratégia de defesa,
do que era seu, por direito:

“O coração do meu Tony é uma constelação de cinco pontos.


Um pentágono. Eu, Rami, sou a primeira-dama, a rainha-
mãe. Depois vem a Julieta, a enganada, ocupando o posto da
segunda dama. Segue-se a Luisa, a desejada, no lugar da
terceira dama. A Saly, a apetecida, é a quarta. Finalmente a
Mauá Salé, a amada, a caçulinha, recém adquirida. O nosso
lar é um polígono de seis pontos. É polígamo. Um hexágono
amoroso.” (Chiziane 2002, p.60).

A descoberta feita por Rami nas indagações a que se entrega para averiguar qual
é a real situação da sua relação com aquele que ela supôs ser seu marido exclusivo,
põem a nu o facto de que Tony é, afinal, o centro hedonista de uma relação que é até
mais do que um hexágono amoroso, já que o seu comportamento polígamo rapidamente
revela ser, pelo menos, um octógono, quando ela verifica a existência de duas novas
amantes, Eva e Gaby. O confronto que Rami vai encetar com estas mulheres resultará,
no entanto, em apenas alguns eczemas, esfoladelas e garrafadas na nuca. Rami, num
primeiro momento, pretende o confronto físico violento com as suas rivais, mas perde a
luta que trava com Luísa, Julieta e as outras amantes, que são mais novas que ela e vem
mesmo a ser detida por perturbação da ordem pública. A partir deste momento, resolve
adoptar uma nova estratégia, a fim de não perder Tony. Vai ficar a saber mais sobre as
outras mulheres e perceberá as razões que elas têm para considerar Tony como o
homem delas, também.
Assim, quando Rami visita Julieta, descobre que o marido que elas partilham, há
muito tempo também não aparece lá:

Há quanto tempo não o vês? – Sete meses. - ?...Desde que


engravidei, faz sete meses. Significa que … - Sim, ele só vem
aqui a cumprir a voz do divino criador. Semear-me o ventre,
para encher a terra no acto da multiplicação. Ah!... (…) Por
que faz isso contigo? Ele vem só para deixar dinheiro e

414
comida. Toma banho, muda de roupa e parte. (Chiziane 2002,
p. 24-5).

O próprio Tony sabe-se consciente deste papel de marido volúvel, que é várias
mulheres, sem ser de nenhuma, efectivamente. E ele não sente que esteja a ser libertino,
pois na tradição patriarcal que o seu comportamento personifica, o pecado da
infidelidade, como ele mesmo argumenta, não se aplica aos homens:
Tony, andas a trair-me, não é? Trair? - Sim. Ah!
Traição é crime, Tony! – Traição? Não me faça rir, ah,
ah, ah, ah! A pureza é masculina, e o pecado é
feminino. Só as mulheres podem trair, os homens são
livres, Rami (Chiziane 2002, p.31).

Recorrendo aos resultados das pesquisas contemporâneas levados a cabo sobre a


condição de mulher, Abati (1996, p.27) afirma que:
Based on concerted research the conclusion has long been
reached that women are a de-centred, denatured sub-species of
humanity; harassed by culture, intimated by politics and
subsumed in helplessly patrilineal and patriarchal structures
which pamper the male ego (Abati 1996, p.27).

Nesta visita a Julieta, Rami constata que Tony não é um marido dedicado a
nenhuma das suas mulheres, que assim estão unidas em idênticos infortúnios. Esta
constatação irá ajudá-la a compreender e até a solidarizar-se com a solidão e sofrimento
das suas rivais, mulheres igualmente carentes de sustento e carinho e que amam
verdadeiramente Tony, tal como ela, e com quem ele também já teve vários filhos e
construiu muitas ilusões:
“Tremo de piedade, de tristeza e de vergonha. Todas as mulheres são
gémeas, solitárias, sem auroras nem primaveras. Buscamos o tesouro
em minas já exploradas, esgotadas, e acabamos por ser fantasmas
nas ruínas dos nossos sonhos (Chiziane 2002, p.28).

Rami sente-se irmanada às outras mulheres que com ela partilham sonhos
desfeitos centrados no mesmo homem. E até sente um misto de emoção e compaixão
para com as outras mulheres que sempre foram “as outras” e não a primeira e única
como ela, na expectativa dos direitos de um casamento jurado na pompa do altar
católico, e de quem teve o marido presente sempre que um filho seu nasceu:
“Tenho pena da Julieta, que treme em violentas convulsões ao
ritmo do choro. Abraço-a, conheço a amargura deste choro e o
415
calor deste fogo. Emociono-me. Solidarizo-me (…) Coitada, ela é
mais uma vítima do que uma rival. Foi caçada e traída como eu
(…). Fico emocionada. Esta mulher tem uma angústia bem pior
que a minha. Eu, pelo menos, conheci o sonho e o altar. Tive um
marido sempre ao lado em cada um dos cinco filhos que pari.
Ainda tive o prazer de insultá-lo e culpá-lo de todas as minhas
dores na hora do parto. A Julieta foi enganada desde a primeira
hora. Nada pior que uma eterna frustração” (Chiziane 2002, p.26-
8).

Podemos dizer que o desejo de relacionar-se com Julieta se transforma na


plataforma para a auto-projecção de Rami: “Conheço a amargura deste choro e o calor
deste fogo. Emociono-me” (Chiziane 2002, p.26).
Proveniente de Inhambane, Julieta representa um caso específico de auto-
projecção para Rami. Ju é recorrentemente descrita por Rami como ‘a enganada’
(Chiziane 2002, p.60). Ela e Rami são as únicas mulheres do sul no grupo,
(contribuindo para ampliar a semelhança da mulher do sul epitomizada por Rami. que
são a antítese das mulheres: Deste grupo, as mulheres naturais somos eu e a Ju. Sem
artifícios.” (Chiziane 2002, p.179). Como a referência a mulheres naturais’, a retórica de
auto-projecção de Rami faz com que as mulheres do sul sejam entendidas como as
naturais, a norma, por oposição às mulheres “super-naturais” do norte e centro. Sul e
norte /centro são recorrentemente contrapostos na referência à sexualidade feminina.
Por exemplo, Tony toma a fidelidade de Ju e Rami como um dado adquirido, pois elas
são do sul do país, de tradição monogâmica.
Na sequência da aproximação que faz às outras mulheres, Rami deixa de as ver
como rivais e vem a conquistá-las como aliadas, parceiras de uma poligamia que é a
família alargada do patriarca Tony. Em resultado desta aliança, Tony, aos poucos, virá a
perder a sua autoridade no confronto com a união das suas mulheres que, irmanadas por
uma condição comum de sofrimento e desfavor, vão conspirar contra ele para
conseguirem ser tratadas com a dignidade da condição de esposas, a cujos direitos, um
marido / amante até aí não se sentia obrigado.
Este contexto, implicitamente, remete para a sobreposição e relativização dos
valores institucionais da cultura europeia católica, sobre a tradição autóctone. A
primeira mulher, a mais respeitada, é aquela cujo ritual de casamento foi celebrado de
acordo com os valores da civilização europeia, que repudia a organização poligâmica,

416
tema à volta do qual este romance se vai constantemente urdindo. No segundo capítulo,
por exemplo, a narradora afirma: marido não é pão que se corta com faca de pão, uma
fatia por cada mulher. Só o corpo de Cristo é que se espreme em gotas do tamanho do
mundo para saciar o universo de crentes na comunhão do sangue (Chiziane 2002, p.21).
Num passo seguinte, vemos que Rami reluta em abdicar do marido que com ela trocou
juras de amor no altar. A união por casamento católico não permite a partilha do
marido:
“Nas práticas primitivas, solidariedade é partilhar pão, manta e sémen.
Sou do tempo moderno. Sou do tempo moderno. Prefiro dar a minha
vida e o meu sangue a quem precisar. Posso dar tudo, mas o meu
homem não. Ele não é pão nem pastel. Não o partilho, sou egoísta”
(Chiziane 2002, p.41).

Só bastante mais tarde no desenvolvimento da narrativa, Rami virá a encarar a


evidência da poligamia com a resignação de quem tem de se contentar com uma parte,
não podendo ter o todo, difícil de abarcar só por si:

“De coisas boas não se enche o papa, tudo o que é bom dura pouco.
Poligamia é isto mesmo. Encher a alma com um grão de amor.
Segurar o fogo que emerge do corpo inteiro com mãos de palha.
Estender lábios à brisa que passa e colher beijos na poeira do vento.
Esperar. Ouvir os suspiros do teu homem nos braços de outra mulher e
esconder o ciúme. Sentir saudade e não sofrer. Sentir a dor e não
chorar” (Chiziane 2002, p.128).

E já no final do romance, Rami refere a transitoriedade da poligamia, tida apenas


como um andamento, entre outros, na dança do amor, sugerida pelo próprio título da
obra, Niketche, onde os afectos de Tony tiveram um tempo certo para ser dançados,
findo o qual a dança vai esmorecendo e termina minada pelo desinteresse crescente dos
seus pares / parceiras e pela impossibilidade de estas partilharem sempre e
continuadamente uma dança que se esgotou. É tempo de se começar uma contradança.
A vida, até ali, foi conduzida pelo marido, mas agora o canto que se vai ouvir e a dança
que se vai dançar será aquela que há-de celebrar a auto-afirmação de Rami e, com ela, a
das outras mulheres moçambicanas.
Rami, a protagonista, que assume também a condição de narradora é uma
africana que reflecte sobre a situação da mulher negra, que é discriminada tanto na
sociedade como na família. Nesta reflexão a personagem e a narradora,

417
simultaneamente, ponderam e equacionam os binómios – mulher / homem, esposa /
amante, monogamia / poligamia, tradição / aculturação, aceitação / rejeição, costume /
escolha individual, donde resultam considerações que, na ordem dos episódios que se
vão relatando, são uma espécie de avanços e recuos de uma dança iniciada a solo mas
depois dançada a par pelas outras mulheres.

iv. Niketche, a contra-dança ou recuperação da autoestima no feminino

O título da obra Niketche -, tal como nós diz a autora no glossário que finaliza
esta obra, significa precisamente “dança do amor”, nas províncias da Zambézia e
Nampula, na parte norte do país, região predominantemente macua, de onde é originária
a própria autora, Paulina Chiziane. Nesta vasta região deste país, esta é uma dança 4 de
iniciação sexual feminina. Ela serve para anunciar que as raparigas que nela tomam
parte, já saíram da infância e da adolescência, já são mulheres, que estão prontas para o
amor e para a vida adulta.
O subtítulo do romance, “uma história de poligamia”, evoca a imagem mental
desta dança: uma roda onde várias mulheres procuram e disputam a atenção de um
homem só. Tal como a autora a define, Niketche é:

4
Do ponto de vista de John Marney (1980, p.34-5), “a dança é um meio de expressão que pode ser
relacionado com temas e propósitos de diversas ocasiões sociais”. Isto faz com que Niketch construa com
propriedade e exatidão a dramatização de relações sociais e afectivas, não mais sob o comando dos passos
masculinos, mas agora sob a voz e o ritimo femininos. Tal facto e a rebeldia contra a convenção assim
expressa representa uma espécie de contra-dança. A dança que é Niketche, deve ser tomada como uma
forma de metáfora da própria vida de Rami que não cessa de procurar e afirmar o prazer de estar viva.
Niketche mostra ser também o elo entre as tradições do passado, a vivência do presente e a projecção
destes ritmos de vida no futuro. Niketche, a dança do amor é como um “re-estar”, um voltar a estar em
lugares onde só chegamos através da memória que nos é trazida pela tradição. Mas Rami, uma mulher
que vivia e sofria a permanente infidelidade do marido, vai, por inconformismo para com formas de
tradição penalizadoras da mulher, orquestrar uma espécie de contra-dança visando destronar o status quo
representado por Tony. De facto, o seu marido representava o patriarca, a força e a violência egoísta que
controlava a acção e a inacção das mulheres e perpetuava a dominação de cariz colonial sobre elas.
(Marney, John (1980),”As Tradições Musicais em Moçambique” in: Música Tradicional em
Moçambique. Maputo,Ministério da Educação e Cultura. p.10-16. (B) Mata, Inocencia (2000). Paulina
Chiziane: Uma Colectora de Memórias Imaginadas”. In Metamorforses 1Lisboa / Rio de Janeiro, Cos
mos / Catedra Jorde de Sena. P.135-142.. Chiziane, Paulina “Ser Escritora é uma Ousadia!!!”. Entrevista
ao Maderazinho. Revista Literária Moçambicana, [http:www.maderazinco.tropical.co.mz.

418
“A dança do sol e da lua, dança do vento e da chuva, dança da
criação. Uma dança que mexe, que aquece. Que mobiliza o corpo
e faz a alma voar. As raparigas aparecem de tangas e missangas.
Movem o corpo com arte saudando o despertar de todas as
primaveras. Ao primeiro toque do tambor, cada um sorri,
celebrando o mistério da vida ao sabor da niketche. Os velhos
recordam o amor que passou, a paixão que se viveu e se perdeu.
As mulheres desamadas reencontram no espaço o príncipe
encantado com que cavalgam de mãos dadas no dorso da lua. Nos
jovens desperta a urgência de amar, porque o niketche é
sensualidade perfeita, rainha de toda a sensualidade. Quando a
dança termina, podem ouvir-se entre os assistentes suspiros de
quem desperta de um sonho bom”. (Chiziane 2002, p.160).

A oralidade é uma marca constante na produção literária dos países africanos e a


música e a dança surgem aí como parte interveniente desta prática oralizante. Em
Niketche encontramos a recriação destes elementos na celebração musical, cantada e
dançada, deste ritual de iniciação sexual feminina da região norte de Moçambique.
Niketche é a tal dança que “mexe, que aquece. Que mobiliza o corpo e faz alma voar”.
(…) E executada ao som ritmado dos batuques”. (Chiziane 2002, p.160), ela impõe-se
ali como expressão autêntica da feminilidade moçambicana, no norte, de etnia macua
onde, anteriormente, predominara a organização matriacal, por oposição ao que sempre
acontecera no sul do país, exclusivamente patriarcal. A partir do relevo que se dá à força
desta tradição, ela passa a ser vista como um contraponto ou contra-dança em oposição
à tendência geral patriarcal que regula o resto do país, incluindo a região do sul,
Manjacaze, na província de Gaza, que é o espaço de origem da protagonista Rami.
No entanto, o propósito de Paulina Chiziane não é apenas apresentar uma
contraposição de valores entre as tradições de diferentes regiões do seu país. Propõe que
se busquem as razões que subjazem a estas diferenças e que depois, em consciência, se
opte por uma contestação prática dos valores que põem em causa a tradicional
organização social. O norte de Moçambique foi islamizado e adoptou uma configuração
patriarcal e poligâmica, enquanto que o sul, devido à influência do catolicismo de
imposição colonial, se opôs doutrinariamente a esta prática. Esta é uma das tensões
culturais que são analisadas pelo olhar crítico feminino de Chiziane face ao risco de
aculturação que enfrentam as tradições nacionais moçambicanas. Neste contexto, a
união que Rami vem a conseguir com as outras mulheres simboliza, metaforicamente, a

419
possibilidade de uma união nacional que se oponha ao patriarcalismo representado por
Tony, que apenas se serve delas para logo as abandonar, uma vez saciados os seus
apetites hedonistas. Todas as mulheres de Tony experimentaram a solidão da casa vazia
e o abandono do marido ausente, sem a atenção de uma justificação. Neste sentido,
embora tendo origens diferentes – macuas, macondes, ou senas -elas representam as
mulheres abandonadas de todo aquele país. E a autora, ao dar relevo a este rito de
iniciação sexual das mulheres que é Niketche, está a dar força a uma tradição em que as
mulheres são protagonistas, como se espera que também venham a ter maior
protagonismo na organização social do país que é Moçambique, onde urge pôr-se fim a
mecanismos que reprimem a mulher. A encenação do quotidiano feminino que se faz
nesta dança é assim a celebração da sexualidade através de um ritual ancestral que se
dança ao compasso feminino.
Chiziane tem consciência da importância da oralidade na cultura do seu país,
oralidade que, no canto ou na dança, está presente no quotidiano da vida do seu povo,
em todas as situações, desde sempre.

Titubeio uma canção antiga daquelas que arrastam as lágrimas à


superfície. Nessa coisa de cantar, tenho as minhas raízes. Sou de
um povo cantador. Nesta terra canta-se na alegria e na dor. A vida
é um grande canto. Canto e choro. Delicio-me com as lágrimas
que correm com sabor a sal, com o maior prazer do mundo. Ah,
mas como me liberta este choro! (Chiziane 2002, p.17)

Temos assim aqui um exemplo de que Chiziane traz para a sua escrita a
dinâmica da oralidade, nas formas do canto e da dança, expressões artísticas relevantes
nas sociedades africanas e aqui redimensionadas num espaço de ficção que sublinha a
força da tradição e os anseios no feminino, que esperam vir a dançar a vitória sobre o
inimigo. Para Chiziane a vida será como um canto ou uma dança sob vários pretextos,
tal como ocorre no quotidiano da sociedade moçambicana:
Paro de soluçar e fico em silêncio para escutar a canção mágica
desta dança. É o meu silêncio que escuto. E o meu silêncio dança,
fazendo dançar o meu ciúme, a minha solidão, a minha mágoa. A
minha cabeça entra na dança, sinto vertigens. (…). Dançar a
derrota do meu adversário. Dançar na festa do meu aniversário.
Dançar sobre a coragem do inimigo. Dançar no funeral do ente
querido. Dançar à volta da fogueira, na véspera do grande

420
combate. Dançar é orar. Eu também quero dançar. A vida é uma
grande dança. (Chiziane 2002, p.18)

É pois com os passos desta dança e com as andanças da vida de Rami que nos vai sendo
revelada a trajectória ensaiada pelas mulheres moçambicanas, naquela sociedade
poligâmica, onde elas ainda não se dançavam a par do homem. A dança que Tony
comandara e a contra-dança que Rami vai ensaiar, vista em contraponto, representa a
protagonista feminina a passar de mulher passiva, traída e abandonada, a uma espécie
de rainha de um pequeno grupo da sociedade poligâmica, que se afirma como líder do
clube das mulheres de Tony.
Numa entrevista concedida ao Maderazinho. Revista Literária Moçambicana,
Chiziane (2004) sublinhou a importância e influência da oralidade e da memória na
escrita das suas obras literária. Segundo a autora, a sua obra engloba contar a história
que as outras mulheres fizeram através de canções e danças tradicionais da sua
comunidade:
Gosto de dizer que a minha literatura é isso: contar histórias. Aquilo
que outras mulheres fazem dançando e cantando, eu faço escrevendo,
como as velhas que através da via oral continuam a contar histórias à
volta da fogueira. Eu apenas trago a escrita, de resto não sou diferente
das mulheres da minha terra, das mulheres do campo. (Chiziane 2004,
p. 23)

Um país mais igualitário, em que a diferença de género deixe de ser


discriminatória, será o resultado do contributo de todas as mulheres moçambicanas,
numa afirmação conjugada de participações, cada uma à sua maneira.
Na construção desta trajectória de afirmação, assistimos a um avanço por
pequenas etapas ou passos que sublinham a visão feminina de Chiziane e a necessidade
por ela defendida de uma verdadeira participação por parte dos pares que dançam, neste
caso, uma roda de mulheres à volta de um só homem. Os passos de emancipação de
Rami são as experiências que nos são relatadas e onde se sublinha uma espécie de
aprendizagem por etapas. Essas etapas ganham-se com a incorporação e a consciência,
mesmo que tardia, do valor das antigas tradições africanas, seus mitos e rituais, ou a sua
contestação, sempre que elas restrinjam severamente a dignidade da mulher. A narrativa
escrita é assim pretexto para uma incursão que sublinha os valores de cultura da
sociedade moçambicana, da música que todos ali cantam e dançam em unidade. Rami

421
no seu percurso narrativo apreende com a conselheira do amor o modo como se faz o
tratamento da pele com musiro, nos ritos de adolescência, e com mel, nos ritos de
noivado (Chiziane 2002, p.37). Apreenderá tabus como o do ovo que não pode ser
comido por mulheres, para não terem filhos carecas e não se comportarem como
galinhas na hora do parto (ibid) e dos tabus da menstruação que impedem a mulher de
aproximar-se da vida pública no norte como no sul. Ficará a saber porque é que as
famílias e as tradições são, frequentemente, a primeira via que impõe desigualdades
baseadas na condição de género. São referidos neste caso mitos como os que
aproximam as meninas dos trabalhos domésticos e afastam os homens do pilão, do fogo
e da cozinha para, supostamente, não apanharem doenças sexuais, como a esterilidade e
a impotência (Chiziane 2002, p.37). Um dos hábitos alimentares que é referido, com
implícita intenção de o contestar, tal como vêm a fazê-lo as mulheres de Tony, é aquele
que obrigava as mulheres a servirem aos maridos os melhores nacos de carne, ficando
para elas apenas os ossos, as patas, as asas e o pescoço.
Adrienne Rich (1977) retrata, muito a propósito, a característica e o modus
operandis do poder patriarcal, também vigente na sociedade tradicional africana ao
afirmar o seguinte:
the power of the fathers: a familial, social, ideological, and political
system in which, by direct pressure … or through tradition, law and
language, custom, etiquette, education, and division of labour …,
men determine what parts women shall or shall not play, and the
female is everywhere subsumed by the male. (Rich 1977, p.57-8).

Preteridas, na divisão da comida, só por serem mulheres, elas são também apontadas
como as culpadas de todos os infortúnios da natureza. Quando não chove, a culpa é
delas. Quando há cheias, a culpa é delas que sentaram no pilão, que abortaram às
escondidas, que comeram o ovo e as moelas, que entraram nos campos nos momentos
de impureza. (Chiziane 2002, p.38).
Estas afirmações remetem-nos necessariamente para a intertextualidade bíblica,
na referência ao passo tão divulgado em que Adão (Gen 3:12) rejeitou a
responsabilidade da sua desobediência, tendo culpado Eva pelo não cumprimento da
ordem preestabelecida por Deus, facto que a tradição aceita e inculca no pensamento
geral, com óbvia penalização da mulher:

422
Até na bíblia a mulher não presta. Os santos, nas suas pregações
antigas, dizem que a mulher nada vale, a mulher é animal nutridor
de maldade, fonte de todas as discussões, querelas e injustiças. É
verdade. Se podemos ser trocadas, vendidas, torturadas, mortas,
escravizadas, encurraladas em haréns como gado, é porque não
fazemos falta nenhuma. Mas se não fazemos falta nenhuma, porque
é que Deus nos colocou no mundo? E esse Deus, se existe, por que
nos deixa sofrer assim? O pior de tudo é que Deus parece não ter
mulher nenhuma. Se ele fosse casado, a deusa – sua esposa –
intercederia por nós. Através dela pediríamos a bênção de uma vida
de harmonia. Mas Deus deve existir, penso. Deve ser tão invisível
como todas nós. O seu espaço é, de certeza, a cozinha celestial.
(Chiziane 2002, p.70).

Deus estará assim, como a mulher, relegados para um espaço onde ninguém os
vê, onde as suas acções passam despercebidas. A mulher, confinada à cozinha, numa
actividade de servir os outros, pouco valorizada, se bem que essencial, pois, quando o
homem não fica saciado com a melhor parte da comida, torna-se violento, deixa de
haver harmonia no lar, onde ele se acha com direito às maiores atenções.
O episódio da moela que o marido deixa de comer, é bem esclarecedor das
relações de poder em razão do género, no seio da família tradicional moçambicana. O
direito à reserva da melhor comida é exemplo de pequenas ocorrências do quotidiano
que são sintomáticas de relações de domínio e subjugação que, se não cumpridas,
podem originar graves conflitos conjugais que podem terminar em violência, divórcio
ou até morte, como foi o caso da tia materna mais velha de Rami, que morreu antes de
esta nascer, (ainda muito jovem), em consequência de um episódio banal motivado pelo
comportamento violento e intolerante de um marido que se sentia inatacável nos seus
desmandos machistas. Como nos faz saber a mãe de Rami:

Era domingo e a minha irmã preparou o jantar. Era galinha.


Preparou a moela cuidadosamente e guardou numa tigela. Veio o
gato e comeu. O marido regressou e perguntou: a moela? Ela
explicou. Foi inútil. O homem sentiu-se desrespeitado e
espancou-a selvaticamente. Volta para a casa de tua mãe para
seres reeducada, disse ele. Já! Ela estava tão agonizada que
perdeu a noção do perigo e meteu-se em marcha na calada da
noite. Eram certa de dez quilómetros até chegar ao lar paterno.
Caiu nas garras do leopardo nas savanas distantes. Morreu na flor
da idade por causa de uma imbecilidade. Morreu ela e ficou o
gato. (Chiziane 2002, p.102).

423
Este episódio sublinha o pouco valor atribuído pelo marido à mulher e, através
dele Rami, denuncia este tipo de situações, assumindo-se a protagonista como porta-voz
do sofrimento das mulheres moçambicanas que não têm quaisquer direitos desde o seu
nascimento até a morte, a não ser o de ficarem caladas perante o abuso e a opressão
masculina. Este destino de desigualdade por razão do sexo é delineado desde o
momento do parto: “Quando a criança nasce, é para lá que olhamos, e gritamos: é rapaz.
Obrigada, Deus, por esta dádiva. Ou dizemos baixinho: é menina. Mais uma; meu Deus,
eu não tenho sorte nenhuma. Só depois é que olhamos para o rosto, e para o resto do
corpo.

Como afirma Leite (2003), a narrativa de Chiziane assume um carácter


moralizante, uma vez que a narradora/personagem, Rami, ao relatar-nos a saga da sua
vida, não economiza comentários e relatos de experiências alheias, sobre as quais
exprime opiniões, engendra teorias e tira conclusões. Vejamos, por exemplo, o modo
como Rami nos transmite os queixumes legítimos de mulheres anónimas, vendedoras de
feira, relatando à vez, experiências de abusos intoleráveis por elas sofridas e que,
entende-se, não devem continuar impunes:
Quando o movimento declina, as mulheres sentam-se em roda,
comem a refeição do dia e falam de amor. Um amor transformado
em ódio, em raiva, em desespero, em trauma. Fui violada
sexualmente aos oito anos pelo meu padrasto, diz uma. O teu caso
foi melhor que o meu. Fui violada aos dez anos pelo meu
verdadeiro pai. Ganhei infecções e perdi o útero. Não tenho filhos,
não posso ter [...] Eu levava muita pancada, diz outra. Ele trancava-
me no quarto com os meus filhos e dormia com outras no quarto do
lado (Chiziane 2002, p. 119)

As mulheres, além de serem violadas desde a infância e arbitrariamente


espancadas pelos seus maridos, ainda sofrem a humilhação de ver que estes, na maior
desconsideração por elas, fazem amor com outras, mesmo à beira delas. As mulheres
servem para gerar vidas, mas não têm vida própria. Têm filhos que mesmo feitos à
força, elas irão acarinhar, o que leva Rami a declarar: “Nós mulheres, fazemos existir,
mas não existimos. Fazemos viver, mas não vivemos, fazemos nascer, mas não
nascemos” (Chiziane 2002, p.277).

424
Ao fazer a denúncia das situações aqui relatadas, Paulina Chiziane através da
sua personagem principal, dá-nos a conhecer a situação difícil das mulheres
moçambicanas de diferentes regiões daquele país. Um exemplo vívido é o de uma
mulher da Zambézia, sem nome, que apesar de tudo, nos fala com orgulho das vidas que
trouxe ao mundo. Deu à luz cinco filhos, agora já crescidos, de pais diferentes. O
primeiro é um mulato esbelto, filho dos portugueses que a violaram durante a guerra
colonial. O segundo, um preto elegante e forte como guerreiro, também é fruto de outra
violação dos guerrilheiros de libertação da mesma guerra colonial. O terceiro, mimoso
como um gato, é filho dos comandos rodesianos brancos, que arrasaram a terra para
aniquilar as bases dos guerrilheiros do Zimbabué. O quarto é filho dos rebeldes que
fizeram a guerra civil no interior do país. À primeira e segunda vez foi violada, mas à
terceira e à quarta entregou-se de livre vontade, porque se sentia especializada em
violação sexual. O quinto filho é de um homem com quem se deitou por amor pela
primeira vez. “Essa mulher carrega a história de todas as guerras do país num só ventre.
Mas ela canta e ri. Conta a sua história a qualquer um que passa, de lágrimas nos olhos
e sorriso nos lábios, e declara: ‘os meus quatro filhos sem pai nem apelido são filhos
dos deuses do fogo, filhos da história, nascidos pelo poder dos braços armados com
metralhadoras. A minha felicidade foi ter gerado só homem diz, ela, nenhum deles
conhecerá a dor da violação sexual’ ” . (Chiziane 2002, p.277-8). A felicidade desta
mulher anónima da região da Zambézia reside no facto de ela ter gerado no seu útero
uma prole já numerosa, mesmo que sejam filhos resultantes de sucessivas violações por
ela sofridas. E, além disso, ela sorri, tem a alegria de saber que nenhum dos seus filhos
passará pela violência e humilhação que só se abate sobre o género feminino.
No final deste relato cabe a Rami, retomar o fio narrativo e expor o que lhe foi
transmitido por aquelas mulheres mais experientes, que lhe deram conta do sofrimento
das suas experiências de vida e que as leva a terem uma atitude de reserva para com os
homens: “aos homens nunca se deve prestar contas certas. Os homens foram feitos para
controlar e as mulheres para trabalhar” (Chiziane 2002, p.120) E, como também por
aqui se vê, elas revelam uma incontida amargura nestas suas confidências que
denunciam a interiorização latente da inevitabilidade da má sorte a que as mulheres ali
estão votadas. Competirá, contudo, a Rami adquirir a determinação que a levará a
reflectir sobre as desigualdades por via do género, denotadas nos casos que vão sendo

425
narrados, e questionar a pouca valia que a tradição associa à mulher. É isso que ela faz,
quando ao fim de um conselho de família, constata procedimentos que desfavorecem a
mulher para, seguidamente, interpelar vivamente o poder instituído e o status quo
patriarcal:
Cerramos as nossas bocas e as nossas almas. Por acaso temos
direito à palavra? E por mais que a tivéssemos, de que valeria? Voz
de mulher serve para embalar as crianças ao anoitecer. Palavra de
mulher não merece crédito. Aqui no sul, os jovens iniciados
aprendem a lição: confiar numa mulher é vender a tua alma.
Mulher tem língua comprida, de serpente. Mulher deve ouvir,
cumprir, obedecer (Chiziane 2002, p.154).

Será a palavra e o seu uso que dará a Rami a possibilidade de reflexão,


invertendo o (não) lugar dessa mulher na sociedade: o de apenas ouvir, para passar a ser
ouvida, mesmo se a língua usada por ela seja a do outro, a do colonizador. Pois como
afirma Fanon, “falar é [...] sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma
civilização” (1983, p. 17). O discurso é em Português, em expressão reformulada que
transmite a mundividência e as angústias sofridas pela mulher moçambicana, mas
também o seu desejo de rebeldia para com afrontamentos de teor patriarcal pós-colonial
que não são já toleráveis.
No percurso narrativo subsequente, Rami virá a liderar a contestação às
desigualdades impostas pelo patriarcalismo representado pela figura arquetípica de
Tony. Após um momento inicial de rivalidade, as várias mulheres unem-se em
propósitos de contestação solidária e Rami fará com que as mulheres de Tony, e ela
própria, deixem de ter como objectivo primeiro a satisfação plena do seu marido e dos
seus caprichos egoístas. Neste contexto, a sua acção do comando é equiparável à dos
chefes dos tocadores de nyanga. Rami reúne as mulheres, como se faz numa roda de
dança africana, onde todos, em círculo de unidade, dão os mesmos passos, ensaiando
movimentos e intenções comuns, “autêntica dança, um acto de coragem, um triunfo
instantâneo no jogo de amor” (Chiziane 2002, p.111). E são os passos unidos destas
mulheres que realizam a dança colectiva que Niketche é e que simbolizará a contestação
ao poder masculino por parte da unidade feminina. As cinco mulheres, num gesto de
consciencialização da sua força em unidade, afrontam Tony quando o despem e o
arrastam para a cama, fazendo do marido um objecto subjugado pelo poder feminino, tal
como ele, inversamente, tantas vezes as usara delas para seu único desfrute.

426
Somos cinco contra um. Cinco fraquezas juntas se tornam força em
demasia. Mulheres desamadas são mais mortíferas que as cobras
pretas (…). Era preciso mostrar ao Tony o que valem cinco mulheres
juntas. Entramos no quarto e arrastamos o Tony, que resistia como
um bode. Despimo-nos, em striptease. Ele olha para nós. Os seus
joelhos ganham um tremor ligeiro. (Chiziane 2002, p.143).
Tony fica perplexo, sentindo que a ordem patriarcal que sempre o favorecera está agora
completamente subvertida pela acção conjunta das mulheres, no resgate da sua
dignidade.
Em Niketche, uma história de poligamia, temos assim que o assunto principal
desta obra é a união de um homem a várias mulheres, as quais, de acordo com os
valores da tradição moçambicana, devem aceitar o desejo do marido de ter várias
mulheres e até mesmo ajudá-lo a procurar novas esposas. A primeira questão, que se
configura desde logo como conflito resultante da co-existência de valores de duas
culturas diferentes, é o facto de Rami e Tony estarem casados pela igreja católica, o que
prevê fidelidade a um só cônjuge e Tony pretender ter direito a usufruir de uma relação
poligâmica. Rami irá sentir-se duplamente traída, nos seus direitos de esposa, por força
dos preceitos católicos ou dos tradicionais. Isto porque, também de acordo com a
tradição, as outras mulheres devem obediência à primeira mulher, Rami, que teria
direito de dirigir as outras mulheres, além de dever ter sido consultada previamente
quanto à sua escolha, o que não aconteceu. E assim, se de acordo com tradição, se as
várias mulheres de um mesmo homem poderiam ter sido, até certo ponto, amigas si,
como os procedimentos da tradição também foram usurpados, elas começam por ser
rivais ou inimigas. A prova de que há aqui uma sobreposição de valores culturais, com
quebra dos procedimentos tradicionais, fica bem evidenciada quando Rami constata que
não sabia da existência das outras mulheres. (Chiziane 2002, p.66-8).
Neste passo do texto, Rami fica surpreendida com a grande traição do seu
marido, mas também dá sinais de inconformismo para com a tradição, pois parte à
procura das suas rivais, para se confrontar com elas. Esta atitude consubstancia bem o
seu desejo de ruptura para com as práticas tradicionais que dão toda a liberdade aos
homens, permitindo-lhes procedimentos de infidelidade que são tidos como afirmação
de poder e prosperidade. Ao descobrir as infidelidades do marido, deixa de conformar-
se com o papel de mulher passiva e submissa, tal como dita a tradição e as regras de
conduta vindas do passado, das tradições tribais e sexistas, que também coexistiem no

427
pensamento europeu conservador. Está assim a rebelar-se contra a organização
tradicional que coincide com o legado colonial, em que a mulher também detém um
papel secundarizado.
O choque, ou sobreposição de valores de duas culturas, a tradicional e a colonial
católica, também é entrevisto no procedimento de Tony e na sua conduta reforçada pela
tradição, enquanto ela é reprovada pelo pensamento ocidental. Segundo os preceitos
católicos, Tony só deve ter uma mulher, mas, segundo a tradição moçambicana, o facto
de poder dispor de várias mulheres é sinal de afirmação, prestígio. É neste sentido que
devemos interpretar o elogio implícito que se denota nesta fala da mãe de Tony, quando
a própria Rami lhe apresenta a proposta para que o seu filho se case com as cinco
mulheres, de acordo com a tradição: “O meu Tony, ao lobolar cinco mulheres, subiu ao
cimo do monte. Ele é a estrela que brilha no alto e como tal deve ser tratado…”
(Chiziane 2002, p.125). Face a esta observação da sua sogra, poderíamos depreender
que a própria Rami estivesse indecisa quanto à atitude a adoptar, confrontada com duas
ordens de valores culturais. Mas, na verdade, ela toma a iniciativa de propor este
casamento com as cinco mulheres, pois como primeira esposa, terá sempre direito a
controlá-las, ficando elas a viver por perto, o que lhe permitirá também saber onde pára
Tony, a todo o momento. Por aqui podemos ver que, na cultura moçambicana, dentro de
uma relação poligâmica, a mulher mantém um poder relativo sobre as outras, se ela for
a primeira mulher. E a mãe de Tony, como representante dos valores tradicionais, faz
questão de sublinhar esse poder que a tradição confere a Rami, estimulando-a a aceitar o
casamento com as cinco mulheres, mas em que ela será a preponderante: “(…) E tu
Rami, és a primeira. És o pilar desta família. Todas estas mulheres giram à tua volta e te
devem obediência. Ordene-as. Castiga-as se for preciso. Tu é que deténs o trono e o
ceptro. Exerça o teu poder sobre elas, submeta-as ao teu comando. Tu és a rainha desta
casa” (Chiziane 2002, p.125-6).

v. O género feminino na tensão entre tradição e modernidade.

428
Como temos estado a ver, Rami vê-se confrontada com os valores culturais
trazidos pela colonização de raiz católica conservadora e pelas imposições das tradições
do sul de Moçambique e sente-se assim divida pelas pulsões de uma vivência
crescentemente aculturada. Paulina Chiziane, nesta obra, fala-nos pois de um tempo
pós-independência em que a sociedade moçambicana se debate numa tentativa de
conciliar os valores deixados pela ordem colonial e que se mantêm em confronto com a
vivência das tradições autóctones. É por isso que, vivendo num espaço de
conflitualidade de valores, Rami quer encontrar a resposta para o “porquê das coisas”,
não se conformando em aceitar os valores da tradição que, por longo tempo, silenciaram
a voz da mulher moçambicana e lhe retiraram a possibilidade de poder decidir em favor
de uma repartição mais equilibrada de direitos, para homens e mulheres.
A poligamia, na sociedade tradicional moçambicana era o destino das mulheres.
Nunca eram ouvidas sobre a sua vontade de partilharem um homem de quem
dependiam, e que frequentemente mantinha com elas uma relação de proprietário
sobranceiro e descuidado. A poligamia é uma forma de exercício do poder patriarcal
que a religião ajudou a inculcar no seio do povo macua, que assim perdeu a sua
identidade primordial, cedeu aos valores trazidos pela colonização ocidental, aculturou-
se e agora vive na tensão resultante da cedência de valores imemoriais de que abdicou:
Poligamia é o destino de tantas mulheres neste mundo desde os tempos
sem memória. Conheço um povo sem poligamia: o povo macua. Este
povo deixou as suas raízes e apoligamou-se por influência da religião.
Islamizou-se. Os homens deste povo aproveitaram a ocasião e
converteram-se de imediato. Porque poligamia é poder, porque é bom
ser patriarca e dominar. Conheço um povo com tradição poligâmica: o
meu, do sul do meu país. Inspirado no Papa, nos padres e nos santos,
disse não à poligamia. Cristianizou-se. Jurou deixar os costumes
bárbaros de casar com muitas mulheres para tornar-se monógamo ou
celibatário. Tinha o poder e renunciou. A prática mostrou que com uma
esposa só não se faz um grande patriarca. Por isso os homens deste
povo hoje reclamam o estatuo perdido e querem regressar às raízes.
Praticam uma poligamia tipo ilegal, informal, sem cumprir os devidos
mandamentos. Um dia dizem não aos costumes, dizem sim ao
cristianismo e à lei. No momento seguinte, dizem não onde disseram
sim ou sim onde disseram não. (Chiziane 2002, p.94).

Paulina Chiziane procura mostrar-nos a cada momento o conflito de culturas que


procura conciliar-se no espaço moçambicano. A identidade deste povo é
necessariamente múltipla, uma vez que os antigos costumes ficam expostos e convivem

429
com a cultura do colonizador. A autora procede a um levantamento do universo
feminino onde aborda questões ligadas ao amor e à traição, para que, através desta
temática, possa dar relevo à convivência não pacifica entre tradição e modernidade,
num cenário em que as mulheres possam, com coragem e determinação, vir a ser donas
do seu futuro, tal como se espera que todos os cidadãos moçambicanos também sejam
capazes de reencontrar a auto-estima e um equiliíbrio nas relações de poder entre
homens e mulheres.
O desejo de concretização deste anseio mais geral começa a formular-se com a
decisão de uma mulher que resolve enfrentar o sistema patriarcal vigente e unindo-se às
outras mulheres busca tomar nas suas mãos a responsabilidade de definir o seu próprio
destino. E a questão central deste romance, é precisamente esta. Se uma mulher é capaz
de um tamanho empreendimento contra as algemas de um sistema ancestral, o que
poderão e deverão fazer também os homens para se porem de acordo com uma ordem
nova de relações na sociedade moçambicana? A tendência natural de quem depende do
outro para subsistir, as mulheres, é não contrariar a ordem tradicional estabelecida e, por
sua vez, os homens, que são a parte privilegiada pelos direitos tradicionalmente
instituídos, irião procurar perpetuar o sistema de organização social e cultural que os
favorece. O exemplo de Tony presta-se a mostrar-nos como os homens buscam manter
ou conseguir as vantagens que, tanto a tradição ancestral, como a cultura europeia
defendem em seu benefício. Os homens deste povo agarraam-se à manutenção da
tradição poligâmica, porque esta lhes permite ter várias esposas, prerrogativa e sinal da
condição de grande patriarca. Mas, como se converteram ao cristianismo trazido pela
modernidade europeia, foram levados à prática da poligamia de forma dissimulada, já
que aceitaram também os valores cristãos. Por tudo isso, a sociedade moçambicana,
como nos relata Chiziane, vive momentos de contradições resultantes da conflitualidade
de valores ainda não conciliados e do irredutível desejo dos homens de não abdicarem
facilmente dos privilégios que a tradição lhes confere:

Contradizem-se, mas é fácil de entender. A poligamia dá


privilégios. Ter mordomia é coisa boa: uma mulher para cozinhar,
outra para lavar os pés, uma para passear, outra para passar a noite.
Ter reprodutoras de mão-de-obra, para as pastagens e gado, para os
campos de cereais, para tudo, sem o menor esforço, pelo simples
facto de ter nascido homem. (Chiziane 2002, p.94)

430
Paulina Chiziane tem consciência de que a literatura é uma forma de contra-
poder. Ela pode encerrar visões do mundo que se contrapõem ao discurso da subjugação
e da imposição. Quer dar voz à mulher que foi amordaçada por longo tempo e que agora
tem consciência de que a realidade que a subjuga pode ser combatida, também porque
vai tendo conhecimento, através das mudanças trazidas pela situação colonial, de que há
outras formas de organização social. Por tudo isso, Chiziane procura que as suas
personagens femininas sejam mulheres determinadas, mas verosímeis nos seus conflitos
individuais, que problematizam as perplexidades, dúvidas e angústias da sociedade em
geral.
Como resultado das dificuldades de afirmação de identidade, o romance
apresenta ao leitor as incertezas de conciliação entre tradição e modernidade que
coexistem na sociedade moçambicana contemporânea. Assim, Rami e outras
personagens femininas carregam consigo o peso da representação da mulher negra, que
deve reflectir sobre a presença da tradição europeia, para a definição de si mesma. A
poligamia é a condição a que estão sujeitas todas as personagens femininas, mas o modo
como estas a aceitam ou refutam vai ser determinante para o modo como se virão a
afirmar.
O posicionamento diferenciado da mulher moçambicana em diferentes regiões é
assinalado por Chiziane, pelo conhecimento que tem da realidade cultural do seu país.
Por exemplo, as mulheres do norte e do sul pertencem a povos ancestralmente
diferentes, são filhas de culturas distintas e só a demarcação arbitrária de fronteiras
imposta pelos colonizadores levou a que ficassem juntas, no mesmo país. Também por
isso, as mulheres moçambicanas de diferentes regiões apresentam índoles/costumes
diferentes que levam a um modo diferenciado de aceitarem ou se rebelarem, com maior
ou menor intensidade, relativamente às imposições decorrentes da organização
patriarcal. Rami procura ser conciliadora, sabendo que as suas rivais poderão constituir,
com ela, uma espécie de frente unida em que todas sejam legitimadas como esposas.
Essa é uma estratégia que se sobrepõe ao entendimento de que as outras eram rivais.
Para quem celebrou um casamento católico monogâmico, é difícil aceitar as relações
poligâmicas que o seu marido estabeleceu com outras mulheres. A solução para a
superação deste conflito de valores culturais virá a ser encontrada na adopção de uma

431
relação de partilha do marido, de acordo com o procedimento usualmente aceite pela
tradição moçambicana. No entanto, o exemplo de Rami serve para sublinhar a
dificuldade de conciliação entre diferentes valores culturais e também a ambivalência de
posições que coexistem na sociedade moçambicana e que está implícita na própria
narradora deste romance, que é produto de um espaço cultural plural, onde as
diferenciações por razões de género motivam a elaboração de um discurso em defesa do
feminino visando uma ordem social mais equilibrada entre géneros, no futuro.
Trazendo assim para o texto literário as tradições e a cultura do seu povo,
Chiziane apresenta-nos um mundo que valoriza os costumes da sociedade tradicional
africana e que vão ser confrontados com a modernidade e os preceitos religiosos
trazidos pela sociedade ocidental europeia. Tradição e modernidade vão assim
encontrar-se e confrontar-se no eixo geográfico e histórico que constitui a realidade de
moçambicana. Através de Rami, é feita a apresentação de Moçambique e da diversidade
e perplexidades que coexistem no seu tecido social. Através dela, também se dá
testemunho do modo como a colonização inibiu certos valores que, no entanto, se
mantiveram como parte de uma identidade que permitiu um processo de resistência
cultural e de identidade nacional. Entre os traços que manifestam a persistência de uma
identidade cultural ancorada na tradição, são de sublinhar as referências feitas pela
autora ao lobolo5, no sul, e aos ritos de iniciação que se praticam no norte de
Moçambique, manifestações que afirmam a essência ou alma daquele povo:

5
O lobolo, tradição em comunidade como a “tsonga” consiste num dote pago pelo homem à família da
mulher com quem se casará, mas vem sendo repudiado pelas mulheres. O lobolo constituiu-se durante
muito tempo como o único meio de melhoria das condições económicas das famílias, principalmente no
meio rural. No entanto, através dele, era negado à mulher o direito de controlo de propriedade, uma vez
que a prática fazia da mulher um “bem” transmitido do pai para o marido. A impossibilidade, por parte do
homem, de cumprir o pagamento do lobolo prometido, acabava por tornar-se uma dívida infinda, aliada
ao grande número de casamentos comerciais realizados, que fracassavam com o tempo e pela necessidade
de migração do elemento masculino, gerando a fragmentação das famílias, problema social difícil de ser
resolvido, principalmente quando se leva em conta a, até então, obrigatória função procriadora da mulher,
de quem invariavelmente se esperava grande número de filhos. Hoje, espera-se firmar o lobolo como uma
prática meramente simbólica. Contudo, isso somente ocorrerá, quando o direito da mulher à propriedade
deixar de ser mediado por um contrato de casamento.

432
“Lobolo no sul, ritos de iniciação no norte. Instituições fortes,
incorruptíveis. Resistiram ao colonialismo. Ao cristianismo e ao
islamismo. Resistiram à tirania revolucionária. Resistirão sempre.
Porque são a essência do povo, a alma do povo. Através delas há um
povo que se afirma perante o mundo e mostra que quer viver do seu
jeito”. (Chiziane 2002, p.49).

Através de Rami, Chiziane parte à descoberta e apresentação do seu país. O


caminho percorrido por Rami vai levar ao seu relacionamento com as outras mulheres
que também eram parte da vida de Tony. Este núcleo familiar torna-se a via, mediante a
qual, vão sendo desvendadas e expostas as diferentes formas de viver naquela
sociedade, com os seus mistérios, segredos e relações de poder. Estas personagens são
assim a via de que a autora se socorre para relacionar as várias culturas que são parte da
multiculturalidade moçambicana, seus variados símbolos e representações. É esta
diversidade existente no seio da nação moçambicana que Chiziane busca e nos oferece,
feita de contributos diversos que se conjugam na identidade peculiar, com relações de
força muito próprias, que aqui fica retratada. As estórias destas mulheres e homens são
o lastro onde se formula e descobre o sentido de uma nação, onde existem e
permanecem os relacionamentos que são a identidade de um povo que preserva a sua
identificação mediante as práticas de uma vivência tradicional quotidiana que, no
entanto, é permeável e busca ajustar-se às influências externas de que não pode eximir-
se.
O leitor não familiarizado com a realidade e a vivência da tradição
moçambicanas poderá experimentar alguma sensação de estranhamento ao aperceber-se
de que, na actualidade, a poligamia ainda é uma prática frequente em Moçambique.
Entre os moçambicanos não será nada fora do comum tomarem conhecimento de que
determinado homem tem várias mulheres. Mas, entre eles mesmos, é hoje já detectável
a nítida tensão que a manutenção de relações poligâmicas provoca em locais e meios
mais ocidentalizados de Moçambique, nas suas principais cidades, entre os membros da
administração local, entre os cidadãos mais cultos ou, em rigor, mais marcados pela
influência ocidental. Nesses meios sociais, que poderíamos descrever como de uma
burguesia africana nascente, a poligamia é tendencialmente recriminada, tida como
prática ligada a um passado que não faz parte do mundo considerado mais civilizado,
que os africanos urbanos tiveram de adoptar por influência da colonização europeia.

433
Mas não se infira daqui que a poligamia está necessariamente associada a costumes
mais bárbaros que têm de ser erradicados ou que representam, por si mesmos, a
deteriorização do modelo e valores familiares. Tal posicionamento significaria querer
ver e ler a realidade africana com os olhos e o pensamento restrito de um ocidental. Para
os europeus, o casamento implica monogamia e a existência de relações ditas extra-
conjugais significam traição e adultério, banidos como pecado pela mentalidade
judaico-cristã6.
Este postulado foi teorizado no ocidente ao longo dos séculos como uma
imposição legal que veio a colidir com o legado cultural da tradição dos países
colonizados. Mas neste choque de culturas, em África, a poligamia resistiu e manteve-se
como a celebração da família e a afirmação do homem em termos sociais. A extensão
da família que o homem africano constrói é um contributo apreciado para a construção
da própria sociedade e o homem que só tiver uma mulher indiciará, por isso mesmo,
menor poder e prestígio pessoal. Aquele que permanecer solteiro, verdadeiramente, não
se realizará socialmente e este entendimento mostra-nos bem que, em África, o
casamento é muito mais que a simples união de dois esposos. Ele é uma aliança mais
alargada em torno da qual se edifica a sociedade africana e onde a tradição do dote se
mantém como tributo à família da mulher, procedimento que já caiu em desuso na
Europa. É isso que nos confirma Kabengele Munanga (2007) sobre a importância do
casamento em África, em que a condição de adulto só se adquire, quando se é pai ou
mãe e não quando se atinge uma determinada idade, como acontece no Ocidente:
“Com/Em relação ao casamento, ser adulto é, antes de tudo, ser
casado, ser pai e mãe. Não há nas sociedades africanas o papel
social normal previsto para os solteiros. (…) O casamento

6
A marginalidade da poligamia no Ocidente já surge inscrita no próprio texto bíblico. O adultério e o
divórcio são abertamente repudiados no novo testamento. (Mateus 5: 27-32, Marcos 10: 2-12, Rom 7:2-
3), a poligamia nem sequer é considerada em nenhum destes textos. Seja como for, foi através da
continuada catequização da religião católica romana que a poligamia se tornou incompatível com o modo
de vida cristão, segundo o qual apenas é legítima a união de duas pessoas no casamento cristão.
(Encíclica Casti Cannubii do Papa Pio XI, 31 de Dezembro de 1930) em E. Hilman, Poligamy
Reconsidered: African Plural Marriage and the Christian Churches (New York: Orbis Books, 1975,
p140.)

434
africano não interessa apenas aos futuros esposos, ele é antes de
tudo uma aliança entre dois grupos de parentesco. A primazia da
linhagem é claramente indicada durante todas as etapas do longo
processo de casamento. A preferência individual é menos
importante; existe mas é menos importante. Uma das
características deste casamento é o dote. Sempre vai da família
do futuro marido à família da mulher (Munanga 2007, p.26).

Aqui se sublinha também o ascendente da família da mulher, no reconhecimento


de que é a linhagem matrilinear (Appiah: 1992) é aquela que é portadora e perpetuadora
de vida, remetendo-nos para a importância aqui já referida da figura da mãe em África,
Mãe África). Mas, a par do reconhecimento da mulher como lugar de gestação de vida,
o comportamento sexual masculino sempre procurou e conseguiu afirmar o seu poder
através de uma promiscuidade tornada aceitável, por força da sua virilidade
fecundadora. E, neste sentido, a poligamia consagra uma suposta “natureza promíscua
do homem”, longamente invocada por ele mesmo em benefício próprio, tanto na
sociedade ocidental formalmente monogâmica, como na sociedade africana, por
exemplo, tradicionalmente poligâmica. Isto fez com que o homem na evolução de
qualquer uma destas duas organizações sociais se sentisse “com direito a mais que uma
mulher”. Por sua vez, esta poligamia tolerada ou institucionalizada, fez com que o
homem sempre fosse também menos recriminado em qualquer um destes dois mundos.
O comportamento sexual da mulher veio a ser, por isso, alvo de maior vigilância por
parte dos demais membros da família e da comunidade, decorrendo daqui o elevado
status moral que foi conferido à castidade feminina, ao longo dos tempos.
Na contemporaneidade, os papéis sexuais dos homens e das mulheres já não são
tão rígidos como no passado. No entanto, as noções do que é lícito à feminilidade e à
masculinidade não são ainda tão flexíveis que possam ser equiparadas. Se é verdade que
os estudos de géneros já não se limitam a estudar as relações entre homens e mulheres,
através das relações rígidas do poder atribuído a cada um dos seus papéis, a verdade é
que a condição da mulher ainda se mantém subserviente à do homem. E a denúncia
desta situação é o propósito que subjaz ao relato aqui feito da existência da poligamia e
das suas consequências na sociedade moçambicana da actualidade. Rami, a protagonista
e narradora de Niketche, toma a palavra para nos contar a sua própria história e de Tony,
que ela inicialmente supõe ser seu marido em exclusividade, mas depois virá a saber
que é um marido partilhado por cinco mulheres, ela própria, Julieta, Luisa, Saly, Mauá-

435
Suale e inúmeras amantes. Enquanto conta a história da sua vida, Rami, e por inerência,
a própria Chiziane, interpelam o leitor e levam-no a pensar sobre o sistema poligâmico
na sociedade moçambicana, apresentando-lhe a mulher na sua continuada situação de
submissão, mas revelando que ela tem capacidade de reformulação de papéis, o que lhe
permitirá a superação das suas actuais limitações sociais.

Neste sentido, a dança que é Niketche, deve ser tomada como uma forma de
metáfora da própria vida de Rami, a qual não cessa de procurar e afirmar os seus
direitos, neste caso, exibindo o direito à alegria e ao prazer de estar viva. Niketche
mostra ser também o elo entre as tradições do passado, a vivência do presente e a
projecção destes ritmos de vida no futuro. Niketche, a dança do amor é como um “re-
estar”, um voltar a estar em lugares onde só chegamos através da memória que nos é
trazida pela tradição. Mas Rami, uma mulher que vivia e sofria a permanente
infidelidade do marido, vai, por inconformismo para com formas de tradição
penalizadoras da mulher, orquestrar uma espécie de contra-dança visando destronar o
status quo representado por Tony. De facto, o seu marido representava o patriarca, a
força e a violência egoísta que controlavam a acção e inacção das mulheres e
perpetuavam a dominação de cariz colonial sobre elas.
Durante algum tempo, Julieta, Luísa, Saly, Mauá, Eva, Gaby e Saluá são
mulheres sem vontade própria, invisíveis até certo ponto, com motivação pouco
definida. Todas são fragmentos de uma mesma mulher, pois todas elas não são mais que
parte do desejo hedonístico de um homem ou, neste caso, simplesmente definidas como
amantes de Tony. No entanto, à medida que Rami toma consciência da necessidade de
se opor às imposições da poligamia que favorecem Tony, as mulheres sem rosto vão
progressivamente ser aliadas da protagonista no repensar que esta enceta sobre a
condição da mulher negra e sua marginalização na sociedade moçambicana:
Somos cinco. Unamo-nos num feixe e formemos uma
mão. Cada uma de nós será um dedo, e as grandes linhas
da mão, a vida, o coração, a sorte, o destino e o amor. Não
estaremos tão desprotegidas e poderemos segurar o leme
da vida e traçar o destino (Chiziane 2002, p.107).

436
vi. Unidade no feminino em contestação contra a tradição
patriarcal

Rami é o exemplo da mulher que busca o seu verdadeiro lugar, a partir da


reflexão que faz sobre as oposições que resultam da condição do género, tais como,
mulher/homem, esposa/amante, monogamia/poligamia, tradição/ruptura, numa dança
simbólica que agora se atreve a ensaiar novos passos. O modo como estas mulheres
agora refutam a tradição constitui-se como uma contra-dança em que as amantes de
Tony já não dançam submetidas pelo medo, mas partem para a afirmação de um
comportamento de rebeldia ou de ruptura contra a suposta protecção da tradição
patriarca. E se Tony vai ficar perplexo perante esta insubmissão, o modo como agora se
vai dançar a vida no presente fica bem representado por Vito, um homem que passa a
ser partilhado por duas mulheres. Até aí, era o homem que desfrutava de várias
mulheres; agora, mais do que uma mulher fazem a partilha do mesmo homem. Vito é o
amante partilhado ou dividido. É como se fosse uma coisa, tal como as mulheres eram
algo transacionável na mão dos homens. Luísa empresta-o a Rami para que esta se sirva
dele e assim console as suas carências de mulher, a primeira vez durante a festa do
aniversário de uma das crianças de Luisa. Vito simboliza uma das grandes rupturas
formalizadas pela rebeldia de Rami, isto é, o adultério no feminino, que até então era
um procedimento de afirmação interdita.
Outra contra-dança é o modo como as mulheres de Tony conseguem fazer um
pacto de partilha do marido, e estabelecer um sistema de turno, de calendário de visitas,
que permita a todas saber sempre onde ele está. À medida que cada uma destas
mulheres desenvolve diferentes actividades profissionais para sustentar os seus filhos,
elas procuram uma nova mulher para Tony. A vingança que é esta contra-dança
corporizada pela união de Rami e as outras mulheres contra Tony e o que ele
representava enquanto tradição a repudiar, é culminada pela figura de Saluá. Saluá é a
mulher mais jovem que as outras oferecem a Tony porque já não têm tempo nem
disposição para o servir. (Chiziane 2002, p.308, p.320-2) É uma maneira de o avisarem
que o vão abandonar. Deste modo, pode dizer-se que são elas que tomam as rédeas do
lar polígamo que, afinal, acaba destruído:

437
Ruínas de uma família. A Lu, desejada, partiu para os braços de
outro, com véu e grinalda. A Ju, a enganada, está loucamente
apaixonada por um velho português cheio de dinheiro. A Saly, a
apetecida, enfeitiçou o padre italiano que até deixou a batina só por
amor a ela. A Mauá, a amada, ama outro alguém. Só fiquei eu, a
rainha, a principal para lhe salvar a honra de macho. Todas elas
vieram e pousaram no meu tecto, uma a uma, como aves de rapina.
Agora levantaram voo uma atrás da outra. Todas amaram o meu
homem, sugaram-lhe todo o mel e partiram. Agora está à beira do
abismo. Treme, pede socorro. (Chiziane 2002, p.331-2).

Cumprindo as leis dos costumes que, ao mesmo tempo, servem como uma
contra-ataque e golpe final, Rami, a líder das insurrectas que orienta e comanda a
conspiração, está de partida para a casa de Levy, irmão de Tony, pois que se encontra
grávida de um filho resultante da relação sexual que teve com Levy, em relacionamento
conforme à tradição, a quando da suposta morte do marido (que na verdade fizera uma
viagem amorosa com uma sua amante). Deste modo o reino de Tony é derrubado,
tornando-se esta personagem num solitário abandonado que não consegue adaptar-se,
nem acompanhar o novo ritmo de batuque batido e dançado pelas suas mulheres. Deste
modo, vira-se o feitiço contra o feiticeiro, as mulheres pagam-lhe na mesma moeda e
ele sente bem esse efeito na sua própria pele. A questão que aqui se põe é: como é que
se explicar a ida de Rami para casa de Levy? Será que ela, ao fim e ao cabo, aceita a
supremacia dos costumes e tradições patriarcais da sua sociedade ou isso é somente uma
forma de demonstrar o seu desagravo contra um marido traidor? Estas interrogações
poderão ter uma destas duas respostas ou outra. Isso poderá até ficar à reflexão dos
nossos leitores, após a longa problematização das motivações já aqui feita.
Mas, em nosso entender, permitimo-nos, desde já, dizer que nenhuma das duas
razões nos parecem suficientemente convincentes, porque Chiziane, sendo porta-voz
das mulheres africanas, quer pôr em relevo os papéis das mulheres na sociedade
africana e, sobretudo, quer promover uma grande reflexão sobre os problemas do sexo
feminino no continente africano. Nesta obra, a personagem Rami está inserida no
âmbito da tradição moçambicana, mas apresenta-se também como símbolo de uma
desejada renovação cultural, em que a mulher toma consciência da sua capacidade de
iniciativa e de acção, bem como da necessidade urgente de se afirmar no seio de uma
sociedade que se rege por pressupostos patriarcais.

438
Em muitas entrevistas, dadas em diversas ocasiões, a escritora declarou que as
suas personagens não rompem com a tradição ao buscarem os seus próprios caminhos, e
que os seus comportamentos apenas indicam a necessidade de se redefinir e repensar7
conceitos8 referentes à cultura moçambicana. Através das actuações das várias
personagens femininas nesta obra, Chiziane mostra que não quer uma ruptura com a
tradição moçambicana, antes enfatiza que está a lutar fortemente contra a opressão das
mulheres e que pugna por um novo mundo onde haverá respeito mútuo e igualdade
entre os dois sexos – que é, necessariamente, a única via para melhorarmos a vida de
todos.
Não há dúvida que a obra Niketche segue o ponto de vista defendido por
Francisco Noa (1998), segundo o qual “a literatura é uma forma de contra-poder, uma
visão particular do mundo que se contrapõe ao discurso científico, de subjugação e de
imposição” (Noa 1998, p.33). Deste modo, pode dizer-se que as personagens femininas
de Chiziane são verosímeis, ao tomarem para si a responsabilidade de exporem a sua
realidade ficcional de maneira individualizada e colectiva, mas sublinhando sempre que,
para isso, será necessário repensar o seu papel, na acção e na cultura de Moçambique.
É nesta base que o romance partilha com o leitor possibilidades, propostas, e não
certezas. Rami e as outras personagens carregam consigo o peso das representações da
mulher negra na literatura colonial e, da mesma forma que o fez a literatura

7
Segundo Patríca Rainho e Solange Silva no seu ensaio “A Escrita no feminino e a escrita feminista em
Balada de Amor ao Vento e Niketche, Uma Historia de Poligamia”, pode dizer-se que aqui há claramente
uma escrita no feminino e também indícios de um discurso feminista: Efectivamente pode-se-á indicar a
existência de uma escrita feminista em Niketche, a qual resulta de uma série de estratégias discursivas
enunciadas no discurso da narrativa. No entanto, essa mesma escrita feminista não é apenas validada pelo
questionamento de Rami sobre a sua condição enquanto mulher ou a denúncia da mesma. O discurso de
Rami enforma uma acção intelectual que, através de uma retórica subversiva procurar desmitificar as
imagens femininas convencionais..
8
Segundo Patríca Rainho e Solange Silva no seu ensaio “A Escrita no feminino e a escrita feminista em
Balada de Amor ao Vento e Niketche, Uma Historia de Poligamia”, pode dizer-se que aqui há claramente
uma escrita no feminino e também indícios de um discurso feminista: Efectivamente pode-se-á indicar a
existência de uma escrita feminista em Niketche, a qual resulta de uma série de estratégias discursivas
enunciadas no discurso da narrativa. No entanto, essa mesma escrita feminista não é apenas validada pelo
questionamento de Rami sobre a sua condição enquanto mulher ou a denúncia da mesma. O discurso de
Rami enforma uma acção intelectual que, através de uma retórica subversiva procurar desmitificar as
imagens femininas convencionais.

439
moçambicana e as suas autoras, elas, mulheres anónimas, devem também reflectir sobre
quem é o outro para depois se buscarem a si mesmas, conscientemente e de modo
determinado.
Importa, ainda, salientar que a personagem Rami surge em contraposição a
Sarnau em Balada de Amor em Vento, que é uma personagem mais dócil e, pode dizer-
se, representativa da mulher inocente, submissa e conformada. Rami não se conforma
com a situação de desfavor das mulheres e o seu discurso é um claro apelo a uma
mudança que leve a mulher consciente a pugnar pelos seus direitos, afrontando os
valores da tradição cultural estabelecida e dominante. Para ela,
“(…) A cultura não é eterna mas esforçamo-nos por continuar a linha da
tradição. Faremos tudo o que nos ensinaram, como nos legaram os nossos
antepassados. Nós somos mulheres de coragem, de respeito. Custa muito a
aceitar a poligamia, numa era em que as mulheres se afirmam e conquistam o
mundo. (p.310).

Através desta personagem, o leitor é levado a conhecer a mulher que Rami


representa e que, como muitas outras, na sua diversidade de anseios e experiências, são
parte do mosaico pluricultural de Moçambique, das mulheres das várias etnias,
designadamente, rongas do norte e tsongas do sul. Rami é uma personagem que está
consciente de ser parte de um todo diverso que se conjuga num lastro comum de
aspirações e sentimentos. E é no reconhecimento de uma certa alteridade9 que ela vai
procurando reconhecer a sua identidade, enquanto mulher moçambicana.
Com o desenvolvimento da narrativa vemos que em Niketche, a personagem
Rami nos revela uma mulher que está e se debate na confluência de poderosas
articulações patriarcais, e com isso, verifica a impossibilidade de construir a sua
identidade de forma plena, num espaço de vivências em que o seu estatuto seja
reconhecido de modo inteiro. A mulher moçambicana só se afirmará de modo

9
Veja a opinião defendida por Inocência Mata sobre este assunto em “A condição pós-colonial das
literaturas africanas de língua portuguesa: algumas diferenças e convergências e muitos lugares comuns”
in Angela Vaz Leão (org), Contactos e Ressonâncias. Literaturas africanas de Língua Portuguesa, Belo
Horizonte, Editora PUCMinas, 2003.

440
consequente quando acreditar, sem dissidências de propósitos e actuação, que a luta em
que está empenhada será vitoriosa, se for determinada e sem franjas de submissão. Esta
personagem ao efectuar o seu percurso de descoberta de identidade num espaço
tradicionalmente patriarcal e ao experimentar as imposições de uma vivência em
poligamia, toma consciência do peso das definições tradicionais no discurso literário e
procura, a partir daí, redefinir e reconstruir o espaço próprio buscado pela mulher
consciente da sua capacidade e do direito inalienável de ser considerada em integral
paridade com o homem.

441
SEXTA PARTE

Papéis das escritoras negras nas


sociedades africanas e africanas na
diáspora

442
CONCLUSÃO

Considerando todos os pontos de vista abordados desde o princípio até esta


parte conclusiva do nosso trabalho, centralizaremos agora a nossa atenção nas
funções e compromissos das escritoras, tendo em vista os seus envolvimentos
socioculturais e os seus posicionamentos políticos na sociedade onde elas se
inserem. Seguidamente, sintetizaremos as ideias e os temas presentes nas suas obras
literárias projetam, para verificarmos até que ponto elas conseguem atingir os seus
objetivos. Num passo seguinte, abordaremos a situação actual da mulher em África
e na diáspora africana mediante os contributos destas autoras e o modo como visam
a melhoria dessa condição. Finalmente, salientaremos a relevância desta nossa tese
enquanto contributo para uma nova abordagem à acção desenvolvida pelas autoras
feministas africanas e afro-americanas.

1. PAPÉIS DAS ESCRITORAS NEGRAS NAS SOCIEDADES


AFRICANAS E AFRICANAS NA DIÁSPORA
The women’s role in Africa is crucial for the survival
and progress of the race. This is, of course, true for all
women across the globe, be they black or white
In the task of building a democratic African society,
freed from all forms of constraint, the writer has an
important role to play in awakening consciousness and
as guide. His (her) role is to reflect the aspirations of all
social classes, especially the most disadvantaged. To
denounce the ills that plague our society and delay its
full development, to denounce archaic practices,
customs and mores that have nothing to do with our
cultural heritage, this is the sacred mission that the
writer must carry out, come hell or high water, with
faith and perseverance. (D’Almeida 1994, p.29)

Simone De Beauvoir, é uma voz mundialmente reconhecida que faz de


modo devidamente documentado a denúncia de como se exerce poder e como isso
leva da dominação masculina, em várias áreas da actividade social, do
conhecimento, da lei e até da religião, e que se esforçou por mostrar que a posição
de subordinação da mulher é um destino e um jugo que ela carrega, seja onde for:

443
Male dominance has secured an ideological climate
of compliance. Legislators, priests, philosophers,
writers, and scientists have striven to show that the
subordinate position of women is willed in heaven
and advantageous on earth (De Beauvoir 1972,
p.129).

De Beauvoir defende esta sua conhecida posição, recorrendo a uma vasta


documentação e dando exemplos de mulheres de mérito que foram consideradas
inferiores, pelo entendimento secularmente arreigado nos homens de que as
mulheres eram seres inferiores, por natureza.

A maioria dos feministas, em todo o mundo, concorda no reconhecimento de


que são os homens quem detém a voz que dita as leis e que assim eles podem
modelá-las conforme mais lhes convier. Em confirmação desta asserção, também
Annie Leclerc (1974) introduz esta temática, em “Parole de Femme”, perguntando
qual é a voz que se ouve nos grandes compêndios ou se lê na documentação que
determina a nossa formação cultural e os nossos procedimentos enquanto cidadãos:

Qui parle dans les gros livre sages des


bibliothèque ? Qui parle au capitole ?
Qui parle à la tribune et qui parle dans
les lois ? (Leclerc 1974, p.63).

Como é aqui é apontado, é a voz masculina aquela que fala mais alto nos
mais diversos locais e instituições. Deste modo, a voz masculina é omnipresente e
determina o que deve ser feito em qualquer actividade, acção política ou social.

A partir desta constatação não é difícil reconhecer que quaisquer esforços


tendentes a conferir às mulheres uma participação mais equitativa na gestão social e
política terão sempre de enfrentar as resistências próprias a um status quo
longamente estabelecido e enraizado. Assim, a causa das feministas por um
reconhecimento não truncado dos direitos e expectativas de melhoria das condições
de vida das mulheres tem registado progressos visíveis, mas nunca tão rápidos
como os desejados por quem tem sido tradicionalmente secundarizado na maioria
das sociedades, feitas à imagem e para benefício da organização patriarcal,
maioritariamente vigente em todo o mundo. Em consequência disto, o trabalho que
as escritoras africanas têm feito com vista a uma mudança das condições de vida

444
das suas irmãs é um esforço assinalável, mas ainda não muito visível nos seus
benefícios imediatos junto do público leitor dos seus respectivos países. As
necessidades de subsistência em África são tão grandes que naturalmente
sobrelevam as preocupações respeitantes a objectivos de ordem cultural, como
sejam os ligados à luta de emancipação das mulheres, através da palavra escrita,
designadamente em romances mais recentes que ficcionam as dificuldades e as
imparidades de tratamento dadas às mulheres.

Também por isso, são muito complexas as funções e compromissos das


escritoras africanas para com quem as lê e para com a sociedade de que fazem
parte. Na opinião de Molara Ogundipe-Lesile, em “The Female Writer and her
Commitment”, a escritora “deve estar comprometida de três diferentes modos:
como escritora, como mulher e como alguém na terceira pessoa (um “ele” ou uma
“ela”); a sua condição biológica como mulher está implicada nestes três modos ”
(Ogundipe-Lesile 1987, p.10). . Neste seu ensaio, esta autora desenvolve esta linha
de pensamento acrescentando ainda que “um dos compromissos da mulher escritora
deve ser a correcção de imagens falsas que há sobre ela em África e que, com esse
fim, os escritores têm de conhecer a realidade da mulher africana, têm de saber a
verdade sobre as mulheres em África e sobre a condição de ser mulher ”
(Ogundipe-Lesile 1987, p.8). Por outras palavras, a mulher africana deve obrigar-se
a adoptar o papel de quem rescreve a crónica da experiência pessoal da sua vida e
da mundividência social de uma comunidade, em vez de limitar-se a um usual
recontar imaginativo de ficções sobre África. O seu papel será reactivo mas,
visando ao mesmo tempo, a melhoria da situação a favor de todas as mulheres e não
apenas as de um segmento feminista. Além disto, Ogundipe-Lesile defende que “a
mulher escritora não pode pretender estar preocupada com várias situações sociais
de difícil solução nos seus países ou em África, sem as situar devidamente e apontar
soluções para elas, dentro do contexto global mais lato decorrente do imperialismo
e do neo-colonialismo (Ogundipe-Lesile 1987, p.12).

É importante chamar-se aqui a atenção para o seguinte. O principal


objectivo destas mulheres escritoras é o de fazer a denúncia de factos que têm
discriminado as mulheres, conscientes de que esse esforço ainda não é prioritário na
literatura africana que faz parte do cânone e que, para isso é preciso implementar-se

445
uma mudança de perspectivas. Contudo, o tributo ao espírito inquebrantável da
mulher negra não deixade ter já expressão ampla em autoras como Paulina
Chiziane, Buchi Emecheta, Mariama Bâ, Carolina Maria de Jesus e Alice Walker.
A obra por elas já feita permite ao leitor aceder a um testemunho vivo das
dificuldades e problemas que as mulheres negras enfrentam em África, no Brasil e
nos E.U.A., bem como um pouco por todo o mundo, quando se dispõem a lutar por
aquilo que as suas comunidades consideram valores não-ortodoxos. O que esta
observação pretende sublinhar é o entendimento de que escritoras como estas
libertam as vozes das mulheres em todo o mundo, em geral, e em África, em
particular, as quais, de acordo com Adeola James (1990) “só muito raramente foram
antes escutadas porque os ‘ruídos dos homens’ sempre as remeteram para a
periferia em qualquer área da vida, incluindo a esfera cultural.” (James 1990, p.6).
porventura, enquanto mulheres de uma geração mais velha, não foram capazes de
equacionar. Este equacionamento e contemplação de possibilidades mais alargadas
levou a que as mulheres, na literatura africana, deixassem de estar reféns de um
sistema convencionado de valores como os que surgem reflectidos no texto de Ojo-
ade (1989):

A mulher pode ganhar o mundo mas terá perdido a


alma se não se tornar numa extensão do homem ou
não for referida como mãe de alguém. O que está
implícito nesta afirmação é o condicionamento que
pressiona constantemente as mulheres para que elas se
conformem com normas sociais específicas,
especialmente em situações em que há casamento
envolvido (a extensão do homem) e /ou a condição
materna ( ser mãe de alguém)”. (Ojo-ade 1989 p.23)

Mas enquanto as próprias escritoras podem apoiar e saudar o surgimento de


uma maior afirmação individual das mulheres africanas, elas também são as
primeiras a ter consciência de que essa afirmação pode ser “solitária, difícil e
frequentemente bastante triste” (Frank, 1987:17). Isto leva-nos a ter presente que o
contexto para a transformação da situação actual é ainda imperfeito, mas que, seja
como for, é importante que escritores e críticos pressionem e pugnem pela
reabilitação das mulheres, relegadas que estão a uma posição inferior, que lhes foi
imposta pelo tribalismo e pelo colonialismo. Adeola James cita a escritora Bessie

446
Head para referir que: “umas das situações mais amargas para as mulheres é o facto
de os homens terem sido postos numa posição de domínio na tribo, enquanto que as
mulheres vieram a ser consideradas seres congenitamente inferiores ” (James
1990:4).

Para que a voz das mulheres africanas se faça ouvir, em desafio ao status
quo e na reivindicação dos seus direitos civis básicos, elas têm de pôr fim à
organização social de molde patriarcal. Com este propósito, Patricia McFadden
(1997) diz-nos que as mulheres africanas precisam de quebrar com a tradição que as
entrava:

For me, the most critical issues facing African women


in their engagement with patriarchy in all its
expressions, are the issues of re-claiming women’s
integrity as person and as individuals, they must
nurture and own a consciousness about themselves as
entitled beings… to recognizing the inalienability of
our rights as civic beings (McFadden 1997, p.1)

McFadden (1997) defende assim que as mulheres africanas devem redefinir


e reivindicar a sua identidade enquanto pessoas, abandonando simultaneamente as
exigências absurdas da tradição a que se subordinam.

Por sua vez, o contributo de Alice Walker, Paulina Chiziane e Buchi


Emecheta expressa-se no modo como estas autoras procuram destruir o mito da
invencibilidade dos homens sobre as mulheres. Para isso, criam personagens em
que o homem assume a imagem de opressor e em que a sua suposta superioridade é
mantida por meio de procedimentos maliciosos ou vexatórios e, sobretudo, pela
privação de direitos legítimos. As personagens femininas destas autoras desafiam o
sistema patriarcal e as suas injustiças, interpelando e instigando as mulheres a
fazerem uma escolha sobre a percepção que elas próprias têm da tradição. Neste
contexto McFadden (1997) postula também a necessidade de a mulher tomar uma
maior consciência da sua centralidade, responsabilidades e direitos na vida social,
ao mesmo tempo que faz a denúncia das razões de ordem cultural que a relegam
para uma situação de menoridade:

Becoming a person and experiencing the


notion of integrity, understanding its

447
centrality to ones consciousness as an
individual who has rights and
responsibilities is directly linked to the
shedding of outdated practices of
custodian ship and cultural gate keeping
McFadden (1997, p.2).
Como aqui nos é dito, a exclusão da mulher de uma posição de maior
centralidade só é possível pela manutenção de práticas e costumes tradicionais que
já não admissíveis na actualidade e que levam a mulher a uma situação de
dependência, um ser à custódia do homem. McFadden, diz-nos assim que a mulher
africana, para se tornar uma pessoa com direitos próprios, tem de libertar-se da
tradição que a subjuga. Para esta estudiosa desta problemática, há uma necessidade
premente de as mulheres escritoras serem as primeiras a libertarem-se, elas mesmas,
das grilhetas da tradição e também do fraco apoio dos seus maridos, de colegas
escritores e de outros comunicadores sociais.
em estudo partam de uma experiência pessoal para uma denúncia de procedimentos
mais gerais detectados na vivência comum das suas regiões e países.

Por exemplo, Buchi Êmecheta, através da sua personagem principal, Adah,


em Second Class Citizen, dá-nos conta de maus-tratos sofridos em primeira mão, do
seu próprio marido, que a violentava e inclusivamente rasgou uma primeira versão
deste seu romance.

O mérito reconhecido às autoras feministas é precisamente o de darem voz à


voz antes sufocada das mulheres. Contudo, importa referir, desde já, que estas
escritoras, ao pugnarem por uma maior presença da mulher na sociedade e na
cultura, estão também, implicitamente, a lutar contra a marginalização e
precariedade de outras franjas de deserdados da sociedade. Deste modo, a acção das
autoras feministas não tem um fito meramente sectário, embora haja quem as acuse
de serem protagonistas de envolvimentos com propósitos exclusivistas. E também
será tendencioso pretender-se que autores africanos, homens e mulheres, tenham
preocupações sociais radicalmente distintas, já que, tanto uns como outras
experimentam o mesmo tipo de desmandos e prepotências coloniais e neo-coloniais.

Indeed, if we thought that anyone was providing us


with a platform from which to prove that African
women writers were different in any way from their
male counterparts, or that they faced some

448
fundamental problems which male African writers did
not face, some of us would not really want to use such
a platform. How could there be? Did we not all suffer
the varied wickedness of colonialism, apartheid, neo-
colonialism and global imperialists and fascism
together? Aidoo, 1988, p.158

Efectivamente, sobre os papéis de um(a) escritor(a) na sociedade, há várias


opiniões e contra-opiniões apresentadas e defendidas por críticos, investigadores e
escritores africanos e ocidentais. A afirmação de Aidoo acima citada é
esclarecedora e de grande ajuda para uma melhor definição destes papéis. Kofi
Awoonor afirma que, em África, onde o desespero se acentua na acção política e na
vida das pessoas em geral, os escritores, tanto homens como mulheres, batem-se por
um conjunto de problemas comuns e têm de representar a vanguarda que libertará
as massas populacionais da ignorância e estrangulamento cultural, e restaurar nelas
um renovado apego à vida. (355). E assim, independentemente de alguma
controvérsia sobre as funções das autorias masculinas e femininas, parece haver um
certo consenso entre os escritores e críticos de várias latitudes quanto aos grandes
problemas sociais e políticos. Este entendimento sobre a necessidade de uma luta
por melhores condições de vida para todos, a desenvolver por uma frente comum de
homens e mulheres que escrevem, é corroborado por Chikwenye Ogunyemi (1996).
Esta autora, ao referir a acção das escritoras nigerianas na sua abordagem do papel
das mulheres africanas nas suas sociedades, afirma que essas autoras, grupo de que
faz parte, não consideram os problemas com que se defronta a sociedade africana,
como dizendo unicamente respeito às mulheres. As dificuldades vividas pelas
sociedades africanas são complexas e envolvem todas as pessoas, homens e
mulheres oprimidas por sistemas injustos de governação e discriminação social.
(Ogunyemi 1996, p.5).
Deste modo, podemos dizer que a escrita das autoras nigerianas trata da
dinâmica das relações entre homens e mulheres, para fazer a denúncia de situações
de imparidade, mas não se esgota neste tema. Por muito importante que ele seja, os
demais temas de âmbito nacional, as consequências gerais de nefastas políticas
coloniais e pós-coloniais, são por elas abordadas com todo o empenhamento. Deste
modo, os principais objectivos das escritoras nigerianas e africanas, em geral, são a

449
participação, integração e inclusão da mulher nas actividades decisoras da
sociedade. Contudo, esse empenhamento não é individualista ou oposto ao daqueles
homens que têm, reconhecidamente, um posicionamento comum em prol da
comunidade, e não uma visão patriarcal. O que acontece é que, de acordo com
Ogunyemi, a visão das mulheres africanas que hoje escrevem acrescenta um
suplemento à visão dos homens e isso é, só por si, um acto que engrandece e
enriquece a literatura africana Ogunyemi (1996, p.5-6).

Contudo, o mundo das mulheres foi durante muito tempo condicionado e


reportado pela visão exclusiva dos homens, os tradicionais porta-vozes da história e
da mundividência das gentes de ambos os sexos. Tenha-se em conta, no presente
contexto que, já perto dos anos 60, mais precisamente em 1959, um ano antes da
independência do Senegal, Léopold Sédar Senghor proferiu a seguinte afirmação:
“Contrary to what is often thought today, the African women does not need to be
liberated. She has been free for many thousands of years (Senghor: 1965, p.45).

Uma afirmação como esta, proferida actualmente, seria fortemente


contestada, se não mesmo, considerada reaccionária. A atitude de Mariama Bâ tem
sido desde os anos 60, a de refutar corajosamente este tipo de posicionamentos,
mesmo quando eles são proferidos por eminentes figuras da nação, como aconteceu
neste caso. Esta referência é um exemplo da atitude de afrontamento assumida por
Mariama Bâ, na sua luta intelectual em prol da melhoria das condições de vida da
mulher em África. Para além de contestar o pensamento patriarcal aqui respaldado
por Senghor, Bâ, com o seu exemplo de insubmissão, tem instado as mulheres
escritoras a não terem o receio de politizar as suas formas de arte e a usarem a
literatura para este fim, denunciando o status quo social que mantém a mulher em
situação de desvantagem. Contra o conservadorismo ou a visão deslocada
representada por homens, mesmo se tão ilustres como Senghor, Mariama Bâ insiste
que a mulher tem sido e continua a ser vítima de injustiças, em razão de usos e
costumes, que mesmo quando a idealizam não a favorecem. Numa entrevista
conduzida por Jan Kees van de Werk, a propósito da publicação em holandês do seu
livro So Long a Letter e da tese ali implícita sobre o papel das escritoras em África,
Mariamba Bâ reitera a necessidade de serem as mulheres a alterar as condições que
as desfavorecem.

450
The woman writer in Africa has a special task. She has
to present the position of women in Africa in all its
aspects. There is still so much injustice… In the
family, in the institutions, in the society, in the street,
in political organizations, discrimination reigns
supreme. The woman is heavily burdened by mores
and customs, in combination with mistaken and
egoistic interpretation of different religion…As
women, we must work for our own future, we must
overthrow the status quo which harms us and we must
no longer submit to it. Like men, we must use
literature as a non-violent but effective weapon. We
no longer accept the nostalgic praise to the African
Mother who, in his anxiety, man confuses with
Mother Africa. Within African literature, room must
be made for women…, room we will fight for with all
our might. Citado em Stratton 1994, p.54-55.

O que Bâ também sublinha aqui é que nesta idealização romanceada da


mulher, feita por Senghor e outros escritores sobre a condição de ser mãe em
África, esses autores estão a frustrar a “verdadeira condição das mulheres em
África”. Isto porque, segundo Bâ, os homens, ao invocarem o tropo “Mãe África”,
associando-o a idealizações desfasadas estão a mascarar a subordinação que
impõem às mulheres através dos sistemas patriarcais que vigoram nos estados
africanos e de que elas precisam de libertar-se. Também por causa deste
desfasamento de perspectivas, a mulher escritora experimenta uma dificuldade
maior para receber bom acolhimento da vigente crítica literária, ainda dominada
pelos homens. Por este conjunto de razões, Bâ é intransigente na exigência de que,
dentro da literatura africana deve ser dado o devido espaço às mulheres. Sabe que
não só no Senegal, como em outras regiões de África as mulheres que apresentam
as suas reivindicações ou protestam contra a situação estabelecida, são recebidas
com indiferença ou hostilidade, na maioria das vezes. E, se a mulher que se rebela
já tiver sido etiquetada de uma maneira particular, por acções de inconformismo
que já antes tenha desenvolvido, então receberá uma oposição ainda mais feroz.

À crítica aberta feita a tradições que discriminam a mulher é algo que exige
coragem e determinação. Mas a dor desta discriminação impõe uma inadiável
tomada de posição por parte das mulheres escritoras de África. Contudo, este
desafio, que congrega o anseio de tantas mulheres, implica um afrontamento de

451
posições que terá de ser feito, até contra aqueles que mais estimamos e admiramos,
mas que, no caso presente, mantêm uma irredutível diferença de perspectivas.
Encerramos a análise desta situação com o testemunho de Ama Ata Aidoo (1994),
que nos dá conta dos obstáculos postos à denúncia de imparidades prosseguidas
pelas estruturas patriarcais vigentes, bem como dos custos assacados à mulher que
escreve, ao ser frontal e honesta na oposição a tradições atávicas que, secularmente,
prejudicam as mulheres:

Most certainly my trails as a woman writer are


heavier and more painful than any I have to go
through as a university teacher … You feel awful
for seeing the situation the way you do, and terrible
when you try to speak about it …. Yet you have to
speak out, since your pain is also real, and in fact
the wound bleeds more profusely when you are
upset by people you care for, those you respect.
(Aidoo 1994, p.262)

452
2. SUMÁRIO, CONCLUSÃO E SUGESTÃO

Os críticos do feminismo, particularmente em África, têm vindo a considerar


o feminismo como uma revolta contra o mundo dos homens feita pelas mulheres, o
que os levou a estigmatizá-las, num primeiro momento. Mas este posicionamento
tem vindo a alterar-se, também em África, havendo um crescente número de
homens que reconhecem a situação de desigualdade que a tradição patriarcal tem
imposto às mulheres. Escritores como Lima Barreto, Luandino Vieria, China
Achebe e Nguigi, constam-se entre aqueles que, há já várias décadas, apresentam
personagens, tanto masculinas como femininas, que se posicionam ao lado da causa
das mulheres, por uma alteração da organização social e familiar em que a condição
do género não seja razão de discriminação, a qualquer título. O feminismo é,
precisamente, nas suas linhas gerais, “ um movimento de emancipação cujo
objectivo é a transformação das relações de género” ( Arndt 2002, p.17, Bunch 1993,
p.249; French 1985, p.441; McKinnon 1982, p.21).

Ao longo deste estudo, foram consideradas várias interpretações do que se


entende por feminismo e escrita feminina. E entre essa variedade de entendimentos
está incluída a explícita e completa rejeição feita pelas mulheres daquilo que é o
estilo de vida criado e mantido pelas estruturas patriarcais, que têm definido e
condicionado aquilo que uma mulher deve ser e pode ou não fazer. Outra
interpretação dos propósitos da emancipação feminina apresenta-se sob uma forma
mais radical e propõe que o feminismo seja equivalente a uma “revolução
psicológica” baseada na insistente reivindicação das mulheres do direito inalienável
a fazerem as suas escolhas e a serem julgadas pelos seus actos, como todos os
outros seres humanos. (Bardwick 1980, p.12). Esta última interpretação do
conceito de emancipação feminina corresponde àquela que as cinco escritoras em
estudo advogam E tal interpretação consiste, globalmente numa chamada à unidade
das mulheres, sensibilizando-as deste modo para o importante papel que elas
desempenham na sociedade e encorajando-as também a apresentarem-se numa
espécie de frente unida, contra todas as formas de opressão e oposição que se
levantem, apenas por motivos ligados à sua condição de género. É geralmente

453
defendido por escritores e escritoras feministas,1 por académicos e outros
teorizadores dedicados aos estudos de género que as sociedades têm sido, ao longo
dos tempos, responsáveis pelo baixo estatuto social que a mulher ainda detém, na
actualidade. Como resultado disto, esses estudiosos das condições de género e os/as
escritores/as feministas têm-se rebelado, de modo continuado, contra a situação em
que se encontram as mulheres, especialmente aquelas que não têm os seus méritos
devidamente reconhecidos nas funções profissionais a que estão ligadas.

Neste tipo de discriminações radicam as inquietações de muitas escritoras


feministas africanas como Flora Nwapa, Nawal El Saadawi, Liliana Momplé,
Bessie Head, além das autoras por nós selecionadas para este estudo, Buchi
Emecheta, Mariama Bâ, Paulina Chiziane , Maria de Jesus e Alice Walker, que aqui
foram analisadas à luz dos pontos de visita dos feminismos afro e eurocêntrico. O
conteúdo do discurso feminista centra-se na mulher ou nas questões da mulher e nas
reivindicações dos direitos e dos ideais feministas fundados na equidade, na
igualdade e na justiça de tratamento para todos, homens e mulheres. A
marginalização das mulheres africanas com a consequente subjugação do seu
género tem levado a uma série de trabalhos literários que hoje procuram fazer uma
redefinição do que é ser mulher em África. Deste modo, o retrato estereotipado das
mulheres como seres passivos e sem voz tem dado lugar a uma nova perspectiva,
onde as mulheres passaram a ser retratadas como pessoas de forte carácter, que
dizem o que pensam e estão orientadas para a sua realização plena, tal como Akachi
Ezeigbo (2003, p.2) fez notar com toda a pertinência. Não há dúvida de que na
literatura africana, a imagem da mulher já mudou, ela deixou de ser considerada
“objecto” e passou a ser “sujeito” de acção, à medida que muitos escritores,
especialmente mulheres, têm dado espaço de acção relevante às suas personagens
femininas.

Há hoje uma mudança notória e reconhecível nos textos literários escritos por
mulheres e isso é claramente o resultado da evolução das condições materiais e
psicológicas das mulheres ou da visão das autoras da nova geração. (Bamisile 2008,
p.234).

1
Veja a parte teórica do trabalho sobre esta questão.

454
Alice Walker, Carolina Maria de Jesus, Buchi Emecheta, Paulina Chiziane,
e Mariama Ba pertencem à categoria das escritoras da “nova geração”cuja missão
inclui uma reflexão sobre os desafios que se deparam às mulheres nos seus
respectivos meios sociais, e que as levou a adoptarem uma mudança de atitude
assumindo, agora posturas “agressivas”/militantes ou “radicais”. Em consequência,
podemos dizer que as heroínas das suas histórias, / as personagens femininas,
deixaram de ser pessoas que se auto-sacrificavam e se submetiam a longos
sofrimentos, para se tornarem “rebeldes”, e decididamente orientadas para uma
realização positiva dos seus percursos de vida. (Palmer 1986, p.14).

Foi a manifestação de uma maior determinação ou radicalismo aquilo que


nos levou à selecção deste conjunto de escritoras que, sendo de origem diversa,
conjugam preocupações comuns aos feminismos de todo o mundo, mesmo que
reportados a espaços geográficos e socioculturais diferenciados.

Neste passo conclusivo da nossa dissertação, será importante sublinhar-se,


por exemplo, que, para a escritora afro-americana, Alice Walker, o feminismo
busca o engrandecimento da condição da mulher, é algo que irmana e engloba todas
as mulheres, brancas ou negras, de qualquer condição económica e orientação
sexual (Walker:1983). Mas Walker defende também, para além disso que, há
necessidade de afirmação de um conceito específico focado na identidade das
mulheres negras e no agrilhoamento particularmente imposto a elas pelas questões
do género. Para explicar melhor este seu posicionamento, Walker socorre-se de uma
alegoria - “womanism is to feminist as purple to lavender”-, comparação que
procura ilustrar os aspectos de semelhança com que se identificam todas as
mulheres e, por outro lado, a especificidade de tonalidades de cor distintivas de
feminismos, em diferentes continentes. Assim, o grande propósito de Alice Walkes
e das outras quatro escritoras selecionadas, é o de fazerem o retrato e a crítica da
opressão que tem sido exercida sobre as mulheres, e que tem levado a que estas
sejam dominadas pelos homens. Através do que têm escrito verifica-se que todas
elas estão empenhadas no alívio do sofrimento das mulheres. É isso o que as tem
levado a uma veemente condenação da (deliberada) exploração e da constante e
crua opressão sofrida às mãos dos homens. Tal é o caso de Rami em Niketche, de
Adah em Second Class Citizen, como o de Celi em The Color Purple e de Aissatou

455
em So Long a Letter. As personagens femininas destas obras protagonizam vivência
de grande sofrimento, mas são claramente mais dinâmicas do que as suas
contrapartidas masculinas e por isso, em qualquer um destes textos, é notório que
elas assumem posições mais proeminentes do que os homens.

Além disso, as personagens femininas destas escritoras são retratadas como


“heroínas de um feminismo positivo” pela determinação dos seus procedimentos,
no superação de dificuldades e na realização de duras labutas, que as levam à
afirmação da sua independência económica e individual. Qualquer uma das obras
destas escritoras sublinha, como referimos em devido tempo, que as mulheres são
tão capazes, se não mais que os homens, no enfrentamento das exigências e dos
desafios da vida.

Importa relevar que as cinco escritoras que estivemos a analisar não estão
sós neste empenhamento de apresentação de personagens femininas fortes e que
poderemos descrever como “positivamente agressivas e rebeldes” na rejeição que
elas fazem das práticas e tradições culturais discriminatórias que regulam a vida das
mulheres.

Importa salientar que também o caso de Amaka em One is Enough (1982),


de Flora Nwapa, Beatrice em em Anthills of The Savannah (1988), de Chinua
Achebe, Alee Christie em Estrangement (1991), de Elechi Amadi Adaku, Debbie
em The Joys of Motherhood (1979), de Buchi Emecheta, e Rose, Agnes e Dora em
Women are Different (1986), de Flora Nwapa, todas estas personagens femininas
estilhaçam através do, seu comportamento, “o mito da passividade e da docilidade
feminina e, com isso, assinala[m] uma nova tomada de posição da consciência
feminina” (Ezeigbo, 1990, p.147). Uma situação comum vivida por estas
personagens, incluindo as protagonistas femininas Rami e Ju em Niketche, Celi e
Nathe emThe Color Purple, e Adah em The Class Citizen, Aissatou, Ramatolaye e
Jacquline em So Long a Letter, bem como Carolina Maria de Jesus em Quarto de
Despejo, respectivamente, é o facto de todas elas terem sido vítimas da sua
condição de género. Todas elas são personagens inequivocamente feministas e o
traço feminista manifesta-se após terem sofrido uma qualquer forma de traição e /
ou opressão. Tornam-se assertivas e agressivas, em resultado da brutalização ou
traição que sofreram (Bamisile 2009, p.214).

456
Estas representações apontam para os contextos concretos que inspiraram as
personagens e a as situações descritas nas obras, que também se entende ser de
relevo abordar nesta conclusão.

Nesta conformidade, este estudo conclui, antes de mais, que em sociedades


sexistas que dão preferência às crianças do sexo masculino, tal como se constata da
análise das obras aqui em estudo, a mulher precisa de ter mais iniciativa para poder
alterar a relação de forças, no que está em desvantagem. Precisa também de dispor
de recursos e de uma formação académica crescentemente melhor, que a leve a um
maior nível de conhecimentos de forma a motivar outras mulheres a serem auto-
suficientes, auto-confiantes e mais diligentes. As heroínas que defendem os
posicionamentos mais radicais nos textos da maioria das escritoras contemporâneas,
incluindo as obras das cinco escritoras em estudo, já percorreram um longo
caminho. Sendo assim, essas personagens podem servir de inspiração, de modelo,
de modo a que as mulheres consigam alterar a sua condição de subjugação em
sociedades patriarcais, de regimes que escravizam e humilham as mulheres. E isto
por que, dentro da estrutura patriarcal da sociedade africana, as mulheres têm todo o
direito de verem elevada a sua condição de vida, de terem o seu lugar na sociedade
em igualdade com os homens, em vez de se contentarem com a aceitação da
degradação a que são tradicionalmente votadas. Este anseio mantém a sua
determinação, apesar da força do patriarcalismo que tem contribuído, tão
decisivamente, para a subordinação das mulheres, historicamente, nas mais diversas
culturais. A grande desvantagem das mulheres tem sido a sua incapacidade ou
relutância para levantarem a voz em defesa dos seus direitos ou para protestarem
contra a injustiça e a opressão.

Esta desvantagem é retratada nos textos de Emecheta, de Chiziane e de


Mariamba Bâ aqui estudados, que nos revelam o modo o como nascimento de uma
menina é visto negativamente, dando azo, por exemplo, a afirmações sexistas, como
as que imputam maior virilidade aos pais que têm filhos do sexo masculino. De
acordo com Francisca Omorodion, (1993, p.168-175), “ a preferência por filhos do
sexo masculino e um maior investimento na sua educação é uma prática que tem
sido perpetuada pelo sistema patriarcal, que só autoriza os filhos varões a herdarem
a propriedade e o estatuto dos seus pais. Isto assegura que o nome de família seja

457
mantido através da linha patrilinear, enquanto que as raparigas, na maior parte dos
casos, não podem herdar as propriedades e o estatuto dos seus pais”. (Omorodion
1993, p.173).

Como foi mostrado na análise que fizemos de Second Class Citizen, de


Emecheta, todos os membros da família de Adah permitem que continue a estudar,
de modo a aumentarem assim, por essa via, o valor do dote que eles
presumivelmente virão a receber do seu futuro

Mas, se não fosse esta perspectiva de uma futura compensação monetária, os


gastos com a educação de uma criança do sexo feminino seriam não só um mau
investimento como também um risco. Uma vez na escola, as meninas sairiam do
controle do circulo fechado da familiar, “apreenderiam maus modos”, de acordo
com a perspectiva patriarcal conservadora, tal como veio a ser referido tanto pelo
pai como pelo tio de Adah, em Second Class Citizen, quando esta pretendeu ir para
a escola. Para eles, o que seria importante era que as meninas se mantivessem em
casa a ajudar no trabalho doméstico e se limitassem a fazer isso. Deste modo vemos
como as oportunidades de educação das raparigas em África continua a ser
restringida apenas por uma questão de género, colocando-as em desvantagem,
relativamente aos rapazes, desde a nascença.

Este tipo de alegações e restrições é totalmente inaceitável para o


pensamento feminista. Buchi Emecheta condena a tentativa deliberada de se negar
às crianças do sexo feminino o direito a uma educação de qualidade. Pelo contrário,
encoraja a tomada de medidas que permitam o acesso das raparigas a todos os
níveis de formação escolar, tal como fica denotado no seu texto. Efectivamente a
educação é uma forma de adestramento do pensamento e do espírito, um benefício
que a todos deve ser concedido. A busca de nivelamento entre a educação de
raparigas e rapazes é uma solução proposta por estas autoras nigerianas, visando a
redução da alarmante proporção de iliteracia entre as mulheres, no seu país como
noutras partes de África. O reconhecimento da qualidade literária das obras desta
autora é, só por si, uma refutação cabal das políticas que negam educação às
mulheres, procedimento que, no entanto, ainda é o que prevalece nas sociedades das
regiões do ocidente e do norte da Nigéria (Chinweizu et.al.1982).

458
Os textos de Buchi Emecheta, Alice Walker e Carolina Maria de Jesus
também sublinham que a mulher precisa de uma motivação forte que a leve a lutar
por conseguir sucesso na vida. Sem uma grande motivação para os méritos e
exigências da leitura e da escrita, personagens como, por exemplo, Adah em Second
Class Citizen, Celi em The Color Purple e Maria de Jesus em Quarto de Despejo
ter-se-iam deixado ficar nas posições inferiores a que as respectivas sociedades
patriarcais em que viviam as tinham remetido. Sem o apelo da motivação para a
urgência da melhoria da situação da mulher, estas personagens ficariam confinadas
às traseiras da casa, às cozinhas ou às enfermarias das maternidades, onde eram
apenas serviçais da cozinha, ou à função de terem muitos filhos e à inevitabilidade
de suportarem as violências derivadas das frustrações dos seus maridos.

Um terceiro aspecto conclusivo que se detecta neste estudo, relativamente à


vitimização das mulheres no âmbito da violência doméstica, é que este acto
reprovável, no retrato que veicula das sociedades que estes romances representam,
ilustra bem que tal violência conjugal é invariavelmente perpetrada por homens
contra as suas mulheres, numa imposição de força que denota a cobardia de quem
ataca aqueles que, por várias razões, são mais fracos ou indefesos. Nos textos de
Paulina Chiziane, Alice Walker, Buchi Emecheta e Mariama Bâ, por exemplo, a
instituição do casamento é-nos apresentada como algo que a mulher deseja, para ser
amada e realizar-se como mãe, mesmo sabendo que o marido, se vier a revelar-se
violento, beneficiará de uma tradicional complacência a nível social.

Por um conjunto de razões sociais, económicas e emocionais, as mulheres


são coagidas a casar-se, acabando por fazer isso de modo voluntário, quando tal não
decorre de entendimentos prévios entre famílias. Em qualquer circunstância, a
mulher é atirada para uma das instituições, que sendo parte da estrutura patriarcal
vigente, tem o desígnio de a subjugar.

Estas escritoras têm demonstrado de modo veemente a sua desaprovação da


violência doméstica, mediante a caricatura que fazem dos homens que maltratam as
suas mulheres. Também usam personagens de mulheres assertivas para que estas
confrontem ou desafiem a autoridade de maridos que à violência. O facto de um
homem infligir danos físicos a uma mulher é um acto repugnante para com todas as
noções da justiça natural, da equidade e de uma boa consciência cívica. O trabalho
459
destas autoras também denuncia e indica que o espancamento da mulher e o abuso
verbal sobre ela, num relacionamento patriarcal tradicional, radica em crenças e
preconceitos que derivaram de mitos e da ignorância acerca do papel das mulheres.
Tal como nos revelam os textos de Chiziane, Walker e Emecheta, a violência física
sobre as mulheres é tão velha como a própria literatura e é um procedimento que se
verifica em várias culturas e, de modo particular, nas culturas africanas. De acordo
com Chukwuma (1989,p.4), uma das vias que faz com que estas escritoras ataquem
com sucesso a tradicional subordinação feminina é através da criação de
personagens que adoptam uma atitude positiva e não se resignam ou auto-
vitimizam.

Uma quarta conclusão a aduzir deste estudo é a de que, embora as teorias


feministas possam dar-nos algumas explicações para a subordinação das mulheres,
as verdadeiras causas do desamparo das mulheres em muitas sociedades africanas
como no Senegal e na Nigéria, são as suas crenças e práticas tradicionais. Tais
práticas incluem a poligamia, o casamento combinado em criança, os ritos da
viuvez, tão degradantes para a mulher e o casamento levirático, entre outros, o que
tende a impor grandes sofrimentos a tantas jovens raparigas e mulheres, por toda a
África.

Para além destas práticas que acabámos de mencionar, há também que ter
em conta as condições sociais que continuam a promover a subordinação das
mulheres. Contudo, o casamento permanece como um modelo em que se exercem
todas as formas de discriminação contra as mulheres. Bâ, Emecheta e Chiziane
partilham este ponto de vista, uma vez que todos os seus trabalhos se têm centrado
nas experiências das mulheres dentro da instituição do casamento.

Emecheta, muito especificamente, crítica a prática dos casamentos pré-


arranjados, como vemos em Second Class Citizen, onde as raparigas são dadas em
casamento de acordo com a vontade dos seus país ou chefes, que assim dispõem
delas de acordo com o “direito” da tradição. E se ninguém vier em socorro destas
jovens mulheres, elas serão forçadas a ceder a uma série de condições no
relacionamento com os homens que, a coberto de ‘direitos da tradição’, não se
coíbem de impunemente as agredir de modo verbal ou físico. Daqui resulta que
essas jovens noivas ficam inibidas em termos emocionais, sexuais, físicos e

460
psicológicos para toda a vida. Exemplo desta violência consentida pela tradição é
aquilo que nos é dado ver em The Color Purple, de Alice Walker, através do
testemunho ali apresentado do abuso exercido sobre Celie, uma inocente rapariga
que é forçada a entrar numa família, pelo seu suposto pai, o qual, por sua vez,
negociara o seu casamento quando ela só tinha catorze anos, para ser violada e
espancada.

Do que aqui fica dito, é implícito que grande parte da solução para a
desejada transformação social reside na mudança que é preciso operar a esse nível.
Os textos destas cinco autoras são muito claros no desejo que veiculam de
necessárias transformações ao nível da interacção social entre homens e mulheres.
É manifesta a necessidade de se fazerem alterações aos procedimentos
profundamente enraizados e estereotipados, que a tradição tem mantido, entravando
a melhoria das condições de vida das mulheres africanas. Uma das estratégias, a
nível literário, visando este propósito e que se detecta nas obras destas escritoras é o
modo como, deliberadamente, é feita a caracterizações das suas personagens
principais. Por exemplo, ao princípio das narrativas estas escritoras apresentam-nos
personagens femininas (Adah, Ju, Celi, Rami, Aissatou e Maria de Jesus) que se
mostram despreocupadas e ingénuas. Mais tarde, estas personagens surgem
recriadas, deixam de se identificar com a imagem da docilidade, da dependência, da
gentileza própria de seres emotivos, “naturalmente” talhados para trabalho
doméstico, e surgem transfiguradas em mulheres assertivas e rebeldes que
desprezam e até escarnecem da autoridade patriarcal. Estas novas mulheres opõem-
se frontalmente à aceitação sem questionamento de uma posição de inferioridade
tradicionalmente atribuída à mulher e, em vez disso, lutam por conseguir um espaço
de maior conforto para elas mesmas, dentro da sociedade. A sociedade é por
natureza dinâmica e por isso estas escritoras fazem com que as suas personagens
femininas sejam mais dinâmicas do que as personagens masculinas, especialmente
nas relações entre esposas e maridos.

461
i. Para uma nova representação da mulher em áfrica e na diáspora
africana.

A primeira constatação e que aqui, resumidamente, importa relevar é a de


que as mulheres, a todos os níveis, precisam que lhes sejam concedidos maiores
poderes. Os romances aqui analisados denunciam modos de discriminação social
por razão de género e apelam a uma urgente mudança de situação que dê as
mulheres paridades de direitos, relativamente aos homens, o que não acontece nas
sociedades ainda estruturadas em moldes de organização patriarcal. Para isso, as
mulheres precisam de estar psicologicamente fortalecidas para aumentarem a sua
confiança e, tornarem-se assim, mais assertivas no desempenho das suas funções, se
pretenderem ascender a níveis de topo nas organizações onde vierem a trabalhar
(Anyaegbunam, 1998, p.19). Não haverá dúvidas de que uma mulher com bom
nível de escolaridade saberá estabelecer um balanço equilibrado das prioridades
entre a sua carreira e a sua vida de casa. Saberá como proceder para que nenhuma
destas situações prejudique a outra. Contudo, para conseguir esse equilíbrio entre
carreira profissional e vida familiar, a mulher precisará do apoio do seu marido,
colaboração que lhe permitirá valorizar-se por outras formas. Por isto, há uma
necessidade urgente de se encorajar cada vez mais as mulheres em África e na
diáspora a escreverem romances que ajudem a libertar as mulheres das grilhetas que
as aprisionam, em sentido literal como metafórico, como também das inibições
culturais e dos tabus religiosos que as tolhem. Além disso, é necessário que haja
mais críticos predispostos a acompanharem e a apoiarem os trabalhos produzidos
por escritoras africanas que sejam merecedoras de atenção, pelo seu mérito literário.
(Ezeibo 2003, p.2).

Uma segunda constatação é a de que a educação tem sido uma ferramenta


importante na melhoria das condições de vida das mulheres em todas as culturas e
especialmente em África e na diáspora africana (Opara 1990, p.164). Qualquer uma
das cinco escritoras estudadas nesta tese advoga que a educação será a via que
levará à resolução das maiores carências ligadas à alimentação em África. A
educação dos homens também não é de menor importância. Quando os homens têm
acesso à educação as suas atitudes para com as mulheres também mudam. Tudo
isso nos leva a preconizar que está por ocorrer uma mudança quanto aos

462
estereótipos de género, factor que há longo tempo tem mantido a mulher em
servidão. Desta forma, espera-se que tanto os escritores como as escritoras
produzam cada vez mais obras literárias que venham a ser agentes catalíticos na
missão de transformar a sociedade e encorajar a emancipação e afirmação da
mulher a todos os níveis, designadamente, nos planos económico e político.

No sentido de concitarmos esforços para a promoção de uma melhoria da


condição da mulher, cumpre-nos sublinhar que a questão das relações de género,
além da sua actual relevância, se mantém um espaço de problematização em aberto,
com muito para ser desvendado e trazido ao conhecimento do público leitor. É
importante que mais estudos assinalem a presença de personagens femininas fortes,
capazes de afrontarem o predomínio do género masculino, factor que tem sido o
maior obstáculo no caminho dos sonhos no feminino. Por tudo isso, consideramos
ser absolutamente pertinente que seja continuada esta denúncia de imparidades que
têm vindo a pôr a mulher em continuada situação de desigualdade.

As escritoras africanas escrevem acerca das suas necessidades, não se


limitando às preocupações decorrentes da ordem colonial e do paradigma
masculino. A sua literatura estabelece uma relação de diálogo com outros discursos
que circulam nas suas respectivas sociedades. E, no seu conjunto, a produção escrita
é indicadora da emergência de uma tradição literária feminina, em África. Isso é
notório também porque os seus trabalhos literários apresentam uma visível
identificação temática aliada a uma certa coerência formal. O casamento, a
maternidade, a busca de independência económica e emocional, a educação dada às
mulheres, a sua marginalização social, económica e política, a resistência à
opressão e o papel devido à mulher são temas recorrentes na ficção das escritoras
africanas. A recorrência a estas tematizações opera uma estratégia de resistência e
vai delineando um caminho no corpus da literatura feita por mulheres. Ao tomarem
parte activa no diálogo que hoje se desenvolve sobre as questões de género, as
escritoras por nós seleccionadas são parte de um grupo já grande de vozes que dão
expressão mais significativa à produção literária no feminino, nos seus respectivos
países, e também inscrevem essa expressão como tradição paralela mas inclusa, no
seio da literatura africana como um todo.

463
Contudo, o texto das próprias autoras africanas, como Mariama Bâ, ainda se
debate com tensões herdadas da tradição em que estas autoras foram educadas, pelo
que as narrativas por elas ficcionadas, não são por vezes, decididamente assertivas
no desígnio de afrontamento aos códigos e imposições por razões de género. A
análise aqui feita sobre este assunto permitiu-nos assinalar este tipo de contradições
que é manifesto entre intensões latentes e concretização efectiva. Por exemplo, no
texto de Mariama Bâ, a personagem Ramatoulaye é bem a ilustração da
subordinação da mulher senegalesa aos ditames da organização patriarcal, embora
tenha uma consciência crescente da situação de desigualdade de direitos, face ao
homem. Mas, apesar de contradições como esta, por mérito próprio, as escritoras
africanas já conquistaram o seu lugar na história da literatura deste continente.
Escrevendo, no geral, de modo contrário ou diverso do cânone, elas têm vindo a
redefinir o lugar da tradição na expressão literária dos respectivos países, em
África, e conseguiram isso pondo a nu lacunas e silêncios, denunciando ideias
preconcebidas, reformulando assim a tradição masculina e declarando o cânone
uma construção desfasada e artificial. Ao fazerem isso, também alteraram as
condições e o modo como se passou a olhar a literatura em África. Ao darem relevo
às questões de género, as autoras africanas dos diferentes países iniciaram um
diálogo a nível continental que significa a reorientação de propósitos das literaturas
africanas, no caso presente, da Nigéria, Senegal e Moçambique, sendo que o mesmo
deve ser dito da contribuição das afro-americanas, Carolina Maria de Jesus, do
Brasil e Alice Walker dos EUA., nos seus respectivos países.

As relações de género têm sido assim uma questão permanente no discurso


contemporâneo das literaturas africanas, apontando para a necessidade premente de
se anularem imparidades resultantes da dominação masculina nas estruturas sociais,
familiares, políticas e económicas. A insistência nesta tematização já deu os seus
frutos. Relativamente ao que se escrevia, em subordinação implícita à ordem
patriarcal, a grande diferença é que agora o género está a deixar de ser uma
categoria submersa no texto escrito por homens e, cada vez mais, está a tornar-se
uma questão que tem de ser tratada de modo explícito por quantos escrevem e
fazem crítica literária.

O procedimento da crítica especializada que exclua a expressão literária


escrita feita por mulheres é aquilo que Jameson (1981, p.45) define como um “acto

464
socialmente simbólico” de uma organização discriminadora, como é a sociedade
patriarcal. Este acto reproduz de forma simbólica e, desse modo, reforça formas
institucionais de exclusão que operam de modo a marginalizar as mulheres, na
sociedade. Deste modo, o que as autoras aqui estudadas, entre outras, estão a fazer,
é dar um contributo notável para a inscrição, sem reservas, da escrita feita por
mulheres na tradição literária africana. E assim, os aspectos afirmativos do diálogo
e da problematização das questões de género nos diferentes países de África
constituem uma característica definidora da tradição literária africana
contemporânea. O esforço para transcender o maniqueísmo com que têm sido
representadas as questões de género, passará, em grande parte, pela produção
literária que faça a denúncia das discriminações decorrentes de preconceitos que
têm sido prevalecentes nas organizações sociais de estrutura patriarcal. As autoras
aqui seleccionadas são parte assinalável desse empenhamento que tem motivado
uma sensibilização crescente para com a necessidade inadiável de constituirmos
sociedades sexualmente igualitárias.

PARA UMA NOVA ABORDAGEM DO CONTRIBUTO DAS FEMINISTAS


AFRICANAS
Este nosso trabalho procura dar a devida visibilidade ao contributo literário
das cinco escritoras em estudo, que através das protagonistas das suas histórias
visam dar um mais justo protagonismo ao empenhamento das mulheres e das
africanas, em particular, no seu anseio para que findem os tratamentos
discricionários que tradicionalmente as subalternizam. Qualquer uma destas autoras
afirma essa intenção e anseio de liberdade, começando por referir que as mulheres
têm sido vergadas física e psicologicamente, ao longo dos tempos, por
bloqueamentos culturais e religiosos enraizados na tradição de cunho
predominantemente patriarcal. Na sua condição de feministas, inteiramente
assumidas ou não, elas lançam um olhar crítico sobre as normas culturais
retrógradas que subsistem na estrutura da organização social patriarcal e que tende a
reprimir as potencialidades das mulheres. Tendo isso bem presente, as suas
personagens femininas, como decorre das suas narrativas, adquirem

465
progressivamente uma maior consciência dos seus direitos e rebelam-se contra as
estruturas sociais opressivas que, no contexto das suas vidas e respectivos países, as
maltratam.

Em conformidade com os pressupostos mais universais do feminismo, os


textos feministas de qualquer procedência lamentam os infortúnios da mulher na
esfera doméstica, como no espaço público e acusam os homens de, na gestão social,
promoverem a discriminação, a opressão e os maus tratos sobre as mulheres. Todo
o enquadramento teórico de que nos socorremos, a selecção de obras a que
procedemos e o modo como denunciámos situações discriminatórias para a mulher,
tradicionalmente consentidas, foi motivado e é também o resultado da aproximação
que fizemos ao empenhamento que nos está legado, de forma escrita por Paulina
Chiziane, Mariama Ba, Buchi Emecheta , Alice Walker e Carolina Maria de Jesus

Desta forma, procurámos tornar mais visível o contributo destas autoras para
a auto-afirmação das mulheres africanas e afro-americanas, com a divulgação e
problematização dos questionamentos por elas ficcionados. Questionamentos que
manifestam a necessidade de uma continuada e empenhada atitude de auto-
afirmação no feminino, nos espaços geográficos e culturais considerados, sem que
isso representa alguma oposição a empenhamentos idênticos noutras culturas,
designadamente, no paradigma ocidental. A atitude das escritoras que, em todo o
mundo, se batem pela causa das mulheres, pode ter posicionamentos circunstanciais
diversos, mas o fim último dos seus empenhamentos literários converge na luta
solidária pela abolição de quaisquer aviltamentos ainda impostos às mulheres,
unicamente por razões de género.

Com este nosso contributo acalentamos também a esperança de uma


crescente redefinição da relação de género que se caracterize por uma igualdade dos
direitos fundamentais e de oportunidades entre homens e mulheres. Caso isso não
venha a acontecer, a continuação do desrespeito e do aviltamento das mulheres, a
juntar à sua presente exclusão dos processos de decisão, levará a um atraso
sociopolítico e a uma estagnação social que só nos trará no futuro um insustentável
conflito social.

466
BIBLIOGRAFIA

467
BIBLIOGRAFIA

Abati, Reuben 1996. “Women in Transition”. The Guardian (Nigeria). February 6, p.27.
Abbanddonato, Linda. “A View From Elsewwhere: Subversive Sexuality and the Rewriting
1991. of the Heroine’s Story in The Color Purple”. PMLA, Vol. 106, Nº.5
Oct. p.1106-1115.
Abbot, H. Porter. 1984. Diary Fiction: Writing As Action. Ithaca, London. Cornell University
Press.
Abdala Jr., Benjamin. Literatura, História e Política. São Paulo, Ática.
(1989).
Abelove, Henry, Barale, Lesbian and Gay Studies Reader. London: Routledge.
Michele Aina Halperin,
David, eds. 1993.
Achebe, Chinua. 1973. “The Role of the Writer in a New Nation” G.D Killam ed. In African
Writers on African Writings, London, Heinemann.
Achebe, Chinua. 1975. Morning Yet on Creation Day, London, Heinemann.
Achebe, Chinua. 1978. “Commitment and African Writer” in Readings in African
Humanities. Ed. Ogbu U. Kalu. Enugu. Fourth Dimension Publishers
Limited.
Achebe, Chinua.1988. Anthills of the Savannah. Ibadan: Heinemann, 1988.
Achebe, Christie. 1981. “ Continuities Changes: Women’s Rote in Nigerian Society”. In
Presence African 120, 4th Quarterly. p.1-10.
Achebe, Christine C. “Continuities, Change and Challenges: Women’s Role in Nigerian
1981. Society” in Presence Africaine 120, 4th Quarterly: p.3-16.
Acholonu, Catherine O. Motherism: The Afro Centric Alternative to Feminism. Published
1995. under the Let’s Help Humanitarian Project (LHHP). Women in
Environmental Development Series, vol.3. in collaboration with the
Nigerian Institute of International Affairs (NIIA).
Acholonu, Catherine. ‘Buchi Emecheta’ in Perspectives on Nigerian Literature: 1700 to the
1988. Present Time, ed. Yemi Ogunbiyi (Lagos: Guardian Books, 1988),
Vol.2:216-22.
Acholonu, Obianuju “The Nigerian Novelist: A Victim of Identity Crises?” in Literature
Catherine. 1986. and Society. Ed. Ernest Emenyonu. Oguta: Zim Pan African
Publishers. p. 259-274.
Ada Uzoamaka Azodo Emerging Perspectives on Mariama Ba: Postcolonialism, Feminism,
ed., 2003. and Postmodernism, Africa World Press.
Adam, Ian & Helen Tiffin Past the Last Post, Theorizing Post-colonialism and Post-
(eds) 1991. Modernism, Hemel Hempstead, Harvester Wheatsheaf.
Adekogbe, E. 1960. “La Femme au Nigeria”. Perspectives de Catholicite, v.19(3) p.16-
23.
Adeniyi, Tola. 1990. “The Untapped Potentials of Nigerian Women” A Paper presented
during a workshop organized by the National Commission for
Women in Owerri December 11.
Adibe, M.L., & Tessa, A. “Position and Problems of the Woman in French Speaking Africa. II-
1964. Gabon”. Women Today. V.6 (3), 1964. p51-63.
Adrienne, Rich. 1986. Of Woman Born: Motherhood as experience and Institution. New
York: Norton.
468
Afolabi, Niyi. 2003. The Golden Cage: Regeneration in Lusophone African Literature
and Culture. Trenton: Africa World Press.
Afolabi, Niyi. 2003. “New Mozambican Women Writer”. In Season of Harvest: Essays
on the Literatures of Lusophone Africa, edited by Niyi Afolabi and
Donald Burnes. Tenton, N.J, Africa World Press.
Afonso, Maria Fernanda. O Conto Moçambicano: Escritas Pós-Coloniais. Lisboa, Caminho.
2004.
Aguiar e Silva, Vítor Teoria da Literatura, Coimbra, Almedina.
Manuel de. 1982.
Ahmeed, Leila. 1986. “Women and the Advent of Islam” Signs. 11,49 summer: 66-69.
Aidoo, Ama Ata. 1988. “To Be an African Woman Writer–an Overview and a Detail.”
Criticism and Ideology: Second African Writers’ Conference
Stockholm 1986. Ed. Kirsten Holst Petersen. Uppsala: Scandinavian
Institute of African Studies, 1988. 155-72.
Aidoo, Ama Ata. 1998. “African Women Today.” In Obioma Nnaemeka (ed). Sisterhood
Feminism and Power. From Africa to the Diaspora. Trenton, NJ
Asmara: Africa World Press. p.39-50.
Aidoo, Ama Atta. 1997. The Girl Who Can and Other Stories. African Writers Series, Oxford
Heinemann, 2002.
Aidoo. Ama Ata. 1986. “Unwelcome Pals and Decorative Slaves”, or “Glimpses of Women
as Writers and Characters in Contemporary African Literature” in
Literature and Society: Selected Essays on African Literature. Ed.
Ernest Emenyonu. Oguta: Zim Pan African Publishers:
Aiken, H. 1956. The Age of Ideology. Freeport. New York: Books for Libraries Press.
Akande, D.M. 1999. The socio-political and intellectual milieu of female in Nigeria.
Journal of Cultural Studies, 1: 53-61.
Akinwale, Ayo. 1989. Zulu Sofola: Her Writings and their Under meanings” in Nigerian
Female Writers: A critical Perspective. Eds. Henrietta Otokunefor
and Obiageli Nwodo. Lagos: Mathouse Press Limited.
Alárcon, Norma.1987. “Making Familia from Scratch: Split Subjectivities in the Work of
Helena Mana Viramontes and Cherrie Morgara.” The Americas
Review 15.3 & 4: 147-59.
Alexandra, Flora. 1989. Contemporary Women Novelist. London: Edward Arnold.
Allan, Tuzyline Jita. 1995. Womanist and Feminist Aesthetics. A Comparative Review. Athens,
Ohio University Press.
Allot, Miriam. 1956. Novelist on the Novel. London, Routledge.
Almeida, Maria Isabel Masculino/Feminino: Tensão Insolúvel. Rio de Janeiro, Rocco,
Mendes de. 1996.
Altman, I & Ginat J. 1996. Polygamous Families in Contemporary Society. Cambridge,
Cambridge University Press.
Altman, Janet Gurkin. Epistolarity: Approaches to a Form. Columbus, Ohio State
1982. University Press.
Aluko, Timothy “Polygamy and the Surplus of Women.” West African Review, V.21
Mofolorunso. 1950. (270) p.259-260).
Alvarez, Sônia. 1990. Engendering Democracy in Brazil: Women’s Movements in
Transition Politics. Princeton: Princeton UP.
Alves, Miriam. (ed). & Enfim…Nós Escritoras Brasileiras Negras Contemporâneas /
Durham, Carolyn Finally us. Contemporary Black Brazilian Women Writers. Colorado.
Richardsson, ed & Tran. Springs: Three Continents.
1995.
469
Alves, Miriam. 1992. “Compor, Decompor, Recompor.” Poesia Negra Brasileira:
Antologia. Org. Zilá Bernd. Porto Alegre: Editora AGE. p.94-7
Alves, Miriam. 1995. “Carregadores”. Moving Beyond Boundaries Volume 1: International
Dimensions of Black Women’s Writing. Ed. Carole Boyce Davies and
‘Molara Ogundipe-Leslie. London: Pluto Press. 110-120.
Ama, Aidoo. 1988. “To be an African woman writer: an overview and a detail” in
Criticism and Ideology, ed Kirsten Holst Petersen, Uppsala,
Scandiavian Institute of African Studies, p155-72.
Amadiume, Ifi. 1989. Male Daughters, Female Husbands: Gender and Sex in An African
Society. London: Zed Books Limited.
Ampofo, Akosua “Mothering Among Black and White Non Ghanaian Women in
Adomako. 2004. Ghana” in Jenda: A Journal of Culture and African Women Studies,
Issue 5, Africa Resource Centre. (www.jendajournal.com)
Amuta Chidi. 1989. The Theory of African Literature: Implications for Practical
Criticism. London / New Jersey: Zed Books Limited.
Anderson, Cynthia. 1998. “The African Woman” in Third World Voice. Massachussetts, May.
Anderson, Danny J. 1989. ‘Desconstruction: Critical Strategy / Strategic Criticism’ in G.
Douglas Atkins and Laura Morrow, (ed), Contemporary Literary
Theory, London, Macmillan.
Anderson, L.M. 1983. Thinking About Women: Sociological and Feminist perspective. New
York / London: Macmillan.
Anderson, Linda. R. 2001. Autobiography: New Critical Idiom. New York: Routledge.
Anderson, Perry. 1962. “Portugal and the End of Ultra-Colonialism.” New Left Review. 16.
p.88-123.
Andrade, Costa. 1970. Literatura Angolana (Opiniões), Lisboa, Editora.
Andriamirado, Sennen. “La femme par qui le scandale arrive.”in : Jeune Afrique 1172 June
1983. 22. p.68-70.
Anello, R. 1982. “Characters in Search of a Book”. Newsweek 99:67, June 21
Ann McElaney-Johnson. “Epistolary Friendship: La prise de parole in Mariama Bâ’s Une si
1999. longue lettre,” Research in African Literatures 2 p.110–21.
Anzaldua, Gloria 1.981. “Speaking in Tongue: A letter to third world women” in This Bridge
called my Back. Eds. Cherrie Moraga and Gloria Anzaldua.
Watertown, Massachsetts: Persphone Press: p.165-173.
Appiah, Kwame. A. 1992. In My Father’s House: Africa in the Philosophy of Culture. New
York, Oxford University.
Apronti, E.O. 1978. “The Writer in our Society” in Literature and Modern West African
Culture. Ed. D.I. Nwoga, Benin: Ethiope Publishing Corporation.
P.77-89.
Aquinas, St Thomas. In Sex and Power in History. Amaury de Rein Court: David Mickey
1974. Company Inc.
Ardener, Edwin. 1972. “Belief and the Problem of Women”, in J.S.Lafontaine (ed.)
Interpretation of Ritual. London, Tavistock.
Ardener,Edwin. (ed.)1975. Perceiving Women. New York, Halstead Press
Armstrong, Nancy 1987. Desire and Domestic Fiction: A Political History of the Novel.
Oxford, Oxford University Press.
Armstrong, R.G. 1983. “The Characteristics and Comprehension of a National Literature –
Nigeria” in A. N. Ebeogu, “African Literature: Regional, National
and Ethnic Imperatives” in Ariel. Vol. 14, Nº 23, April: 21-33.
Arndt, Susan. 1998. “Of Womanism and Bearded Women: An interview with Chikwenye

470
Okonjo-Ogunyemi and Wanjira Muthoni”., ANA Review Oct-Dec.
p.2-8
Arndt, Susan. 1988. African Women’s Literature, Orality and Intertextuality. Igbo Oral
Narratives as Nigerian Women Writers’ Models and Objects of
Writing Back. Bayreuth, Bayreuth Afriican Studies.
Arndt, Susan. 2002. The Dynamics of African Feminism. Trenton, NJ: Africa World
Press.
Arndt, Susan. 2002. “Of Womanism and Bearded Women: An interview with Chikwenye
Okonjo-Ogunyemi and Wanjira Muthoni”.
http://www.ishmaelreedpub.com/arndt.html
Arnfred Signe. 1988. “Women in Mozambique: Gender Struggle and Gender Politics.” The
Review of African Political Economy 41.p.5-16.
Arrington Jr., M.S. 1993. Gnomic Literature from the Favela: The Proverbs of Carolina Maria
de Jesus. Romance Notes, 34 (1), 79-85.
Artur, Maria José. 1996. Editorial do dia da Mulher Moçambicana.. Edição Especial Nº 76.
Artigos recolhidos de … Jornais de Notícias de Moçambique.
Maputo, 7 de Abril.
Artur, Maria José. 1997. Editorial do dia da Mulher Moçambicana. Edição Especial Nº 99.
Artigos recolhidos de … Jornais de Notícias de Moçambique.
Maputo, 7 de Abril.
Artur, Maria José. 1998. Editorial Direitos da Mulher, Direitos Humanos. Edição Especial Nº
104,.Artigos recolhidos de … Jornais de Notícias de Moçambique.
Maputo, 7 de Abril.
Artur, Maria José. 1999. Editorial Mulheres e Políticas no advento do Milêncio. Edição
Especial 7/04/99. Recolhidos de … Jornais de Notícias de
Moçambique. Maputo, 7 de Abril.
Arungu-Olende, Rose. “Not Just Literacy, but Wisdom”, in Sisterhood is Global: The
1984. International Women’s Movement Anthology. Ed. Robin Morgan.
Garden City, New York: Anchor Books.
Asein, S.O. 1976. “Literature as History: Crisis, Violence and Strategies of
Commitment in Nigerian Writings” in Literature and Modern West
African Culture. Ed. D.I. Nwoga, Benin: Ethiope Publishing
Corporation.
Ashcroft, Bill et al (eds), The Empire Write Back: Theory and Practice in Post Colonial
1989. Literatures. London, Rout ledge.
Ashcroft, Bill et al (eds), The Post Colonial Studies Reader. London, Rout ledge.
1998.
Aston, E and Reinelt, J. The Cambridge Companion to Modern British Playwrights.
2000. Cambridge: Cambridge University Press.
Atkins, Douglas and Laura Contemporary Literary Theory. Massachusetts: Macmillan.
Morrow. Eds. 1989.
Awe, Bolanle. 1989. “Nigerian Women and Development in Retrospect” in Women and
Development in Africa: Comparative Perspectives. ED. Jane L.
Parpart. New York. University Press of America.
Awe, Bolanle. 1992. Nigerian Women in Historical Perspective. Lagos: Sankore
Publishers / Ibadan : Bookscraft Limited.
Ayandele, E.A. 1966. The Missionary Impact on Modern Nigeria: 1842-1914. London:
Longman.
Azodo, Ada. Ed. 2003. Emerging Perspective on Mariama Bâ. Trenton, African World
Press.

471
Bâ, Mariama. 1982. So Long a Letter. Trans. Modupé Dodé-Thomas. London, Trans. of
Une si longue letter. Dakar, Nouvelles Edition, 1980
Babb, Valerie. 1986. The Color Purple: Writing to Undo What Writing Has Done.”
Phylon47 (June ) p.107-16.
Babbie, Earl. 2001. The Practice of Social Research. Belmont, CA: Wadsworth.
Badawi, Gamal A. 1976. “Woman in Islam” in Islam, its Meaning and Message. Ed. Ahman
Khurshid. Lagos: Islamic Publications Bureau: 131-145.
Badinter, Elisabeth. 1986. Um é Outro: Relações entre Homens e Mulheres. Trad. Carlota
Gomes. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
Baldick, Chris 1990. The Concise Oxford Dictionary of Literary Terms. Oxford, Oxford
University Press.
Balogun, F.O. 1983. “ The Evolution of the African Hero : The Hero as a Mirror of
Aesthetics” in Nigerian Magazine 146: 51-61.
Bamisile, Sunday “Engajamento Sócio-Político das Literatura (s) Africana(s).”
Adetunji 2006. Unpublished M.A. Thesis, Faculdade de Letras, Universidade de
Lisboa, 2006.
Bamisile, Sunday A Mulher Negra Na Sociedade Brasileira. B.A Thesis, Department of
Adetunji. 1995. Foreign Languages, Faculty of Arts, Obafemi Awolowo University.
Bamisile, Sunday “A Posição e o Problema das mulheres na Sociedade Nigeriana nas
Adetunji. 2007. peças The gods are not to be blame, Hope of the living death e Our
husband has gone mad again, de Olá Rotimi” In A Mulher em
África: Vozes de uma margem sempre presente. Lisboa: Edições
Colibri / Centro de Estudos Africanos – FLUP 2006-559-569.
Bamisile, Sunday Sócio-cultural Commitment in Things Fall Apart em Revista
Adetunji. 2008. Africana Studia ed por Maciel Santos, Porto, Centro de Estudos
Africanos Universidade do Porto.
Bamisile, Sunday “Female Bodies and Motherhood In Ualalapi And Orgia Dos
Adetunji. 2008. Loucos” by Ungulani Ba Ka Khosa “em Prophet, Trickster, and
Provocateur: Emerging Perspectives on Ungulani Ba Ka Khosa,
edited by Niyi Afolabi, Trenton, Africa World Press.
Bamisile, Sunday “A influência do conceito do universalismo e póscolonialismo na
Adetunji. 2010. literatura africana contemporânea”in Babilónia Nº 8/9. Lisboa. p.27-
47.

Banks, Olive. 1990. The Biographical Dictionary of British Feminist Vol. Two: A
Supplement 1900-1945. New York / London: Harvester /
Wheatsheaf.
Barber, Hanna. 1979. The New Image of Women in Iraq. New York: Harcourt Brace.
Bardwick, Judith M. 1990. Women in Transition: How Feminism, Sexual Liberation and the
Search for Self-Fulfilment Have Altered Our Lives. Sussex: The
Harvester Press.
Barros, Carolyn (1998). Autobiography: Narrative of Transformation. Ann Arbor, University
of Michigan Press
Barthes, Roland. 1989, “The Death of the Author”.The Rustle of Language, Translated by
Richard Howard. Berkeley: University of California Press, p.49-55
Barthes, Roland. 1999. Critica e verdade. Trad. De Leyla Perrone-Moisés. SãoPaulo:
Perspectiva.
Bastide, Roger (ed.) 1974. La Femme de Couleur en Amerique Latine. Paris, Editions
Anthropos.

472
Bastide, Roger. 1973 A Poesia Afro-brasileira. Estudos afro-brasileiros. São Paulo,
Perspectiva.
Bazin, Naney Topping, ‘Venturing into Feminist Consciousness: Two protagonists from the
1985. Fiction of Buchi Emecheta and Bessie Head’ SAGE: A Scholarly
Journal on Black Women 2.1. p.32-36.
Bazin, Naney Topping, ‘Weight of Customs. Signs of Change: Feminism in the Literature of
1985. African Women’ World Literature Written in English 25.2. p.1183-
97.
Bazin, Naney Topping, ‘Feminist perspectives in African Fictions, Bessie Head and Buchi
1986. Emecheta’ Black Scholar 17.2 , p.36-40
Beale, Framces M. 1970. “Double Jeopardy: To be Black and Female” in Toni Cade (ed) The
Black Woman: An Anthology. New York, New American Library.
Beauvoir, Simone de, O Segundo Sexo e Fatos e Mitos. São Paulo, Difusão Europeia do
1960. Livro.
Beauvoir, Simone de, The Second Sex, translated by H M Parshley, Penguin 1972
1967.
Bebel, August. 1971. Women Under Socialism: Trans. Daniel de Leon. New York:
Schocken Books.
Beier Ulli, ed. 1979. Introduction to African Literature; An Anthology of Critical Writing.
New Edition, London: Longman.
Bell, Daniel. 1960. The End of Ideology: On the Exhaustion of Political Ideas in the
Fifties. New York: The Free Press.
Berg, Barbara. 1979. The Remembered Gate: Origins of American Feminism, cited in Bell
Hooks (1984). Feminist Theory From Margin to Center, Boston:
South End Press.
Bergner, Gwen. 1995 “The Role of Gender in Fanon’s Black Skin, White Masks,”
Publications of the Modern Language Association 110, no. 1
(January 1995):141–151.
Bergner, Gwen.1995. "Who Is That Masked Woman? or, The Role of Gender in Fanon's
Black Skin, White Masks." PMLA 110.1 (January 1995): 75-88.
Berle (jr), Adolf, A. 1969. Power. New York: Harcourt Brace and World.
Bernd Zilá. 1988. O Que É Negritude. São Paulo, Brasiliense.
Bernd Zilá. 1988. Introdução à Literatura Negra. São Paulo, Brasiliense.
Bernd Zilá. 1999. Org. Poesia Negra Brasileira. Antologia. Porto Alegre, AEG Editora
Berryman, Charles. 1999. "Critical Mirrors: Theories of Autobiography." Mosaic (Winnipeg)
32.1 (1999): 71.
Bestman, M.T. 1981. Sembène Ousmane et L’Esthétique du Roman Négro Africain
Sherbrooke. Québec: Edition Naaman.
Betsko, Kathleen and Interviews with contemporary playwrights. New York: Beech Tree
Rachel Koenig. Eds. 1987. Books.
Bhabha, Homi K. 2004. Cultural Diversity and Cultural Difference”, The post-Colonial
Studies Reader, ed. Ashcroft, B et al. London & New York,
Routledge
Bhabha, Homi K. 1990. “Are you a Man or a Mouse?” In Constructing Masculity, edited ny
Maurice Berger, Brain Wallis and Simon Waston. London,
Routledge.
Bhabha, Homi K. 1990. ”Introduction: Narrating the Nation.” In Nation and Narrative, edited
by Homi. K Bhabha. London, Routledge.
Bhabha, Homi. K 1984. “Of Mimicry and Men: The Ambivalence of Colonial Discourse”

473
October 28, p.125-33.
Bhabha, Homi. K 1994 “The Other Question: Stereotype, Discrimination and the Discourse
of Colonialism,” In The Location of Culture. London: Routledge.
Birch, Eva Lennox,1993. ‘Autobiography: The Art of Self Definition’ in Black Women’s
Writing, ed. Gina Wisker. London. Macmillan, p127-48.
Blain, Virgina, Patricia The Feminist Companion to Literature in English. London: Batsford
Clements and Isobel Limited.
Grundy. Eds. 1990.
Blamires, Hary. 1991. A History of Literary Criticism. London: Macmillan.
Blassingame, J.W. 1979. The Slave Community. New York and Oxford, Oxford University
Press.
Bob, Jacqueline. 1988. “The Color Purple: Black Women as Cultural Reader.” In Female
Spectators: Looking at Film and Television. Edited and with an
Introduction by E. Deidre Pribram. London, Verso.
Bobo, Jacqueline. 1989. “Siftiing Through the Controversy: Reading The Color Purple.”
Callaloo. Nº 39. Spring. 332-342. JSTOR
Boegner, Elleke. 1992. “Stories of Women and Mothers: Gender and Nationalism in the
Early Fiction of Flora Nwapa. “in Motherlands: Black Women’s
Writing from Africa, the Caribbean and South Asia, edited Susheila
Nasta. New Brunswick, N.J, Rutgers University Press.
Bogle, Donald. 1973. Toms, Coons, Mulattoes, Mammies, and Bucks; An Interpretive
History of Blacks in American Films. New York: Viking.
Bohannan, P. And Curtin, Africa and Africans. New York: Doubleday.
P. 1981.
Bollmann Stefan. 2007 Mulheres que Escrevem Vivem Perigosamente. Prefácio de Elke
Heidenreich e Tradução de Maria Manuela Gomes. Egedsa: Questzal
Editores.
Bom Meihy, José Carlos. Cinderela Negra: A saga de Carolina María de Jesus. Rio de
1995. Janeiro: Editora UFRJ.
Boone, Joseph Allen. “Of Me(n) and Feminism: Who(se) is the Sex That Writes?”
1990. Engendering Men: The Question of Male Feminist Criticism. Joseph
Allen Boone and Michael Cadden. Eds.. New York: Routledge.
Bosi, Alfredo. 1970. História concisa da literatura brasileira. Cultrix, São Paulo.
Bourdieu, Pieerre. 1997. “ Compreender”. In A Miséria do Mundo. Petrópolis, Vozes. P.693-
732.
Bourdieu, Pierre. 1979. La distinction: Critique sociale du jugement. Paris: Minuit.
Bourdieu, Pierre. 1992. Les règles de lárt: genèse et structure du champ littéraire. Paris:
Seuil.
Bourdieu, Pierre. 1999. A Dominação Masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de
Janeiro, Bertrand Brasil.
Bowen-Moor, Patricia. Hannah Arendt’s Philosophy of Natality. The Macmillan Press
1989. Limited.
Bower, Anne Lieberman “Rewriting the Self, Writing the Other: An Investigation of Recent
1990. American Epistolary Novels.” Dissertation. West Virginia U.
Boxer, Marilyn J. 1982. “ For and About Women: The Theory and Practice of Women’s
Studies in the United States” (Review Essay) in Feminist Theory: A
Critique of Ideology. Eds. Keohane et. Al. Sussex: The Harvest Press.
Boyce Davies, Carole. ”Collaboration and the Ordering Imperative in Life Story
1982. Production”, in Sidonie Smith and Julia Watson eds., Decolonizing

474
the Subject: The Politics of Gender in Women’s Autobiography.
Minneapolis: University of Minnesota Press.
Boyce Davies. Carol. Black Women, Writing and Identity: Migration of the Subjects,
1994. London, Routledge.
Bradley, David. 1984. “Novelist Alice Walker Tellling the Black Woman’s Story.” New
York Times. 8 January. p.25-37.
Braidotti, Rosi. 1994. Nomadic Subjects: Embodiment and Sexual Difference in
Contemporary Feminist Theory. New York, Columbia University
Press.
Branco, Lucia Castello. “Para além do sexo da escrita”. In Lúcia Helena Vianna (Org),
1992. Mulher e Literatura. IV Seminário Nacional (Niterói, RJ: 26-28 de
Agosto de 1991. Anais. Niterói: EDUFF.
Braxton, Joanne M. 1989. Black Women Writing Autobiography: A Tradition Within a
Tradition. Pennsylvania: Temple University.
Bray, Joe. 2003. The Epistolary Novel. Representations of Consciousness. Routledge.
Brenda Berrian. 1995 Bibliography of African Women Writers and Journalists. Washington
D.C., Three Continents.
Brookshaw, David. 1983. Raça e Cor na Literatura Brasileira. Porto Alegre, Mercado Aberto.
Brookshaw, David. 1990. “Da oralidade à Literatura e da Literatura à Oralidade”, in Angolê
Artes Letras, Ideias, 1, 1990.
Broughton, Trev Lynn and Women’s Lives / Women’s Times: New Essays on Auto/Biography.
Anderson, Linda. 1997. Albany, State University of New York Press.
Brown, Ella. 1987 “Reactions to Western Values as Reflected in African Novels.”
Phylon 48.3: 216-228.
Brown, Janet. 1979. Feminist Drama: A case study in Persuasion. Metuchen. New Jersey:
Scarecrow Press.
Brown, Lloyd. 1981. Women Writers in Black Africa, Westport CT: Greenwood.
Bruner, Charlotte. ed. The Heinemann Book of African Women’s Writing. Oxford:
1993. Heinemann.
Bryan, Slyvia. 1987. “Images of Women in Wole Soyinka’s Works,” in Women in African
Literature. London, African World Ppress.
Bryson, Valerie. 1992. Feminist Political Theory: An Introduction. London, The Macmillan
Press ltd.
Bryson: Judy C. 1981. “Women and Agriculture in Sub-Saharan Africa: Implications for
Development” An Exploratory Study in African Women in the
Development Process. Ed Nici Nelson. London: London: Frank Cass.
Burke, Sean. 1992. The Death and Return of the Author. Edinburgh, Edinburgh
University Press.
Busia, Abena P. B. 1988. “Words Whispered over Voids: A Context from Black Women’s
Rebellious Voices in the Novels of the African Diaspora.” Black
Feminist Criticism and Critical Theory. Ed. Joe Weixlmann and
Houston A. Baker, Jr. Greenwood: Penkeville, 1-41.
Butler-Evans, Elliott. Race, Gender, and Desire: Narraitve Strategies in the Fiction of Toni
1989. Cade Bambara, Toni Morrison, and Alice Walker. Philadelphia,
Temple University Press.
Butterfield, Stephen. Black Autobiography in America. Amherst, Amherst University
1974. Press.
Byerman, Keith, and Erma “Alice Walker: A Selected Bibliography 1968-88.” Callaloo 12
Banks. (Spring 1989) p.332-42.

475
Cahen, Miguel. 1992. “Estado sem Nação. Unicidade, unidade ou pluralism do Estado em
Moçambique e alugueres.” Paper presented at the Conference on
“Moçambique: realidades e desafios do pós-guerra,” Instituto
Superior de Relações Internacionais, Maputo
Cahen, Miguel. 1999 “Nationalism and ethnicities: Lesson from Mozambique.” CPHRC
Portugal’s Contemporary History on-line, 1999.
http://www.cphrc.org.uk/essays/cahen1.htm
Cameron, Deborah. 1990. The Feminist Critique of Language. A Reader. Londer, Routledge.
Cameron, Deborah. 1990. Introduction: Why is Language a Feminist Issue? In The Feminist
Critique of Language: A Reader. London: Routledge, 1–28.
Campbell, Elizabeth 1995. “Revision, Reflections Recreations: Epistolarity in Novels by
Contemporary Women”. Twentieth Century Literature Vol. 41, Nº 3
Autumn.
Campos, Sandra. 2004. “Corporeal Identity: Representation of Female Sexuality and the
Body in the Novels of Paulina Chiziane. In Sexual /Textual Empires:
Gender and Marginality in Lusophone African Literature, edited by
Hilary Owen and Phillip Rothwell. Bristol, University of Bristol.
Hispanic, Portuguese and Latin American Studies Department.
Candido, António. 2006. “Literatura de dois gumes”. In Educação pela noite e outros ensaios.
Ouro sobre azul, São Paulo.
Candido, António. 2006. Literatura e Sociedade. Ouro sobre azul, São Paulo.
Carden, Maren Lockwood. The New Feminist Movement. New York: Russell Stage Foundation.
1974.
Carrel, Susan Lee. 1982. Le Soliloque de la passion féminine ou le dialogue illusoire: Etude
d’une formule monophonique de le littérature épistolaire. Paris:
Editions Jean-Michel Place.
Carroll, Bernice A. 1980. “Poliitcal Science Part 111: International Politics, Comparative
Policies and Feminist Radicals” Signs 5.3 (Spring): 449-458.
Carvalhal, Tania F. 1986. Literatura Comparada. São Paulo: Editora Ática.
Carvalho, Alberto 1990. “Da tradição oral na narrativa contemporânea”, in Os Estudos
Literário (entre) Ciência e Hermenêutica, Actas do I Congresso da
Associação Portuguesa de Literatura Comparada, Lisboa, APLC.
Cascais, António Indisciplinar a Teoria: Estudos Gays, Lésbicos e Queer. Cascais:
Fernando (Org). 2004. Fenda Edições.
Case, Frederic Ivor Review of So Long a Letterby Mariama Bâ, World Literature Written
(1982). in English. 21.3, p.538-40.
Case, Sue Ellen. 1993. Feminism and Theatre. London: Macmillan
Casimiro, Isabel Maria Identidade e representações das mulheres em África” in Estudos
Cortesão. 1999. Africanos – Revista Semestral de Ciências Sociais, Nº 17. Maputo:
Universidade Eduardo Mondlane
Casimiro, Isabel, Gloria “Preparing a Multidisciplinary Research Programme on Gender
Liberman, Conceição Issues. Conceptual Frameworks and Using a Multidisciplinary
Osório, and Ximena Approach. Experience from the Centre of African Studies,
Andrade. 1993. Mozambique.” In Workshop concerning Priorites for Research on
Gender Issues in Nambia. Unplublished draftpaper. University of
Nambia, Windhoek.
Castello Branco, Lúcia. O Que É Escrita Feminina. São Paulo, Brasiliense.
1992.

476
Castello Branco, Lúcia; A Mulher Escrita. Rio de Janeiro, Casa-Maria Editorial.
Brandão, Ruth Silviano.
1989.
Castoriadis, C. 1982. A Instituição imaginária dea sociedade. (G. Reynaud, Trad.; L.R.S
Fortes, Rev. Técn). Rio de Janeiro: Pas e Terra.
Castoriadis, C. 1987. As encruzilhadas do labrinto / 2: Os domínio do Homem. (J.O.A
Marques, Trad.; R.Janine. Ver Técn). Rio de Janeiro: Pas e Terra.
Castro d’Aire, Teresa. A Homossexualidade Feminina. Lisboa: Edições Tema da
1996. Actualidade.
Cavacas, Fernanda, and Dicionário de Autores de Literaturas Africanas de Língua
Aldónio Gomes, eds. Portuguesa. Lisboa, Caminho.
1997.
Cavell, Stanley 1969. Must We Mean What We Say? Cited by Graham Bradshaw (1987)
Shakespeare’s Scepticism. Sussex: The Harvester Press.
Cazenave, Odile. 2000. Rebellious Women: the New Generation of Female African Novelists.
Boulder: Lynne Rienner.
CESAR, Ana Cristina. “Literatura e Mulher: essa palavra de luxo”. In: ______. Crítica e
1999. tradução. São Paulo: Ática,. p. 224-232.
Cessaire, Aime. 1972. Discourse on Colonialism. New York, Montly Review Press.

Chabal, Patrick (ed). The Postcolonial Literature of Lusophone African. London: Hurst.
1996.
Chabal, Patrick, Moema The Postcolonial Literature of Lusophone African. Evanston, III,
Oarente Augel, David North Western Press 1996.
Brooshaw, Ana Mafalda
Leite, and Caroline Shaw.
.1996.
Chabal, Patrick. 1994. Vozes Moçabincanas. Lisboa: Veja.
Cham, Mbye Baboucar. “The Female Condition in African: a literary exploration by Mariama
1984, 1985 Bâ, A Current Bibliography on African Affairs. 17.1:p.29-51
Cham, Mbye. 1987. Contemporary Society and the Female Imagination: a Study of the
Novels of Mariama Bâ. African Literature Today 15: 89–101.
Chambers, Ross. 1989. “Narrative and Other Triangles.” The Journal of Narrative Technique
19.1 (Winter 1989): 31-48.
Charmaz, Kathy. 2000. “Grounded Theory: Objectivist and Constructivist Methods.” Pp.
509-36 in Handbook of Qualitative Research, 2d ed., edited by
Norman K. Denzin and Yvonna S. Lincoln. Thousand Oaks,
CA:Sage.
Chaves, Rita & Macedo, “Caminhos da Ficção da África Portuguesa” em Vozes da África –
Tânia. 2007. Biblioteca entre Livros. Editora Duetto, Edição Especial Nº 6.
Cheung, King-Kok. 1988. “ ‘Don’t Tell’: Imposed Silences in The Color Purple The Woman
Warrior.” PMLA: PUBLICATIONS OF THE Modern Language
Association of America. 103 (March 1988) p.162-174.
Chinua Achebe and Lyn African Short Stories. London, Heinemann.
Innes. 1985. Eds.
Chinweizu et.al. 1980. Towards the Decolonisation of African Literature, Enugu, Fourth
Dimension.
Chinweizu et.al. 1981. “The African Writer and the Drama of Social Change,” Ariel 12.3.
Chinweizu et.al.1982. “ Time of Troubles” in Times Literary Supplement. February 26: 228.

477
Chinweizu et.al. 1980. Towards the Decolonisation of African Literature. Enugu: Fourth
Dimension.
Chislom, Shirley. 1970 “Women Must Rebel”, Voices of the New Feminism (ed.) Mary Lou
Thompson, Boston: Beacon Press.
Chiziane Paulina. 1987. “ Comando sul-africano ataca residências em Maputo.” Notícias,
May 30.p.1.
Chiziane Paulina. 1994. “Eu, Mulher. Por uma nova visão do mundo.” In Eu Mulher em
Moçambique, edited by Ana Elisa de Santana Afonso. Maputo,
Comissão National para a UNESCO em Moçambique and
Associação dos Escritores Moçambicanos.
Chiziane Paulina. 1999. A Escrita no Feminino. Interview by Manuela Sousa Guerreiro.”
Revista. Mozambique 23 (December 1999).
http://ccpm.pt/paulina.htm
Chiziane Paulina. 2000. O Sétimo Juramento, Lisboa, Caminho.
Chiziane Paulina. 2001. “Contadora de Histórias. Entrevista a Paulina Chiziane por Júlio do
Carmo Gomes.” Jornal de Letras, Artes e Ideias. March 21.p.6-7
Chiziane Paulina. 2002. Ser escritora é uma ousadia !!! Interview by Rogério Manhate.”
Maderazinco. Revista Literária Moçambicana.
http://www.maderazinco.tropical.co.mz/edic_III/entrevista/Paulina.ht
m
Chiziane Paulina. 2003. Balada de Amor ao Vento. Lisboa, Caminho.
Chiziane Paulina. 2003. Interview by Lúcia Mmaria Marques Seia Borrego.” Faces de Eva.
Estudos Sobre a Mulher 10. p.55-163.
Chiziane, Paulina. “Ser Escritora é Uma Ousadia” Entrrevista ao Maderazindo.
Revista Literária Moçambicana. [www.maderazindo.tropical.co.mz]
Chiziane, Paulina. 1998. Eu Mulher em Moçambique. Maputo, Livraria Universitária.
Chiziane, Paulina. 2000. “As Cicatrizes do Amor” In Saúte, Nelson. As Mãos dos Pretos:
Antologia do Conto Moçambicano. Lisboa, Dom Quixote.
Chiziane, Paulina. 2002. Niketche: Uma História de Poligamia. Lisboa, Caminho.
CHIZIANE, Paulina. 2009 Entrevista concedida à revista Maderazinco. Disponível em:
http://www.maderazinco.tropical.com.mz/edicIII/entrevista/paulina.h
tm, acesso em: 11 de Nov.de 2009.
Christian, Barbara. 1985. “An Angle of Seeing: Motherhood in Buchi Emecheta’s Joy of
Motherhood and Alice Walker’s Meridian Christian.”Black Feminist
Criticism: Perspectives on Black Women Writers. New York:
Pergamon. 211-252.
Christian, Barbara. 1984. “Alice Walker: The Black Woman Artist as Wayward.” In Black
Women Writers (1950-1980): A Critical Evaluation, edited by Mari
Evans. Garden City, NY, Anchor-Doubleday.
Christian, Barbara. 1980. Black Women Novelist: The DEvlopment of a Tradition, 1892-1976.
Westport, Greenwood.
Christian, Barbara. 1984. “Aliice Walker: The Black Woman Artist as Wayward” Black
Women Writers (1950-1980): A Critical Evaluation. Ed. Mari Evan.
Garden City, Anchor. P.457-77.
Christian, Barbara. 1985. “An Angle of Seeing: Motherhood in Buchi Emecheta’s Joy of
Motherhood and Alice Walker’s Meridian Christian.”Black Feminist
Criticism: Perspectives on Black Women Writers. New York:
Pergamon, 211-252.
Christian, Barbara. Ed. Black Feminist Criticism: Perspectives on Black Women Writers.

478
1995. New York: Pergamum Press Inc.
Chukwukere ,Gloria.1998. “An Appraisal of feminism in the Socio-Political Development of
Nigeria.”, In Obioma Nnaemeka (ed). Sisterhood Feminism and
Power. From Africa to the Diaspora. Trenton, NJ AAsmara: Africa
World Press. p.133-148.
Chukwuma, Helen. 1994. “Introduction: The Identity of Self.” In: Id. Feminism in African
Literature. Enugu, New Generation Book. p.IX-XXIV.
Chukwuma, Helen. 1989. “Positivism and the Female Crisis: The Novels of Buchi Emecheta,”
Otokunefor and Nwodo (eds.). Nigerian Female Writers. Lagos:
Malthouse Press.
Chukwuma, Helen. 1990. “Voices and Choices; The Feminist Dilemma.” Ernest Emenyonu
(ed.) Literature and Black Aesthetics. Ibadan: Heinemann.
Cixous, Hélène e Clément, The Newly Born Woman. Trans. Betsy Wing. Manchester:
Catherine 1975; 1986. Manchester University Press.
Cixous, Hélène. 1976, “The Laugh of the Medusa” in New French Feminisms. Eds. Elaine
1981. Marks and Isabelle de Courtivron. Trans. Keith Cohen and Paula
Cohen. Sussex : The Harvester Press: 245 .264.
Cixous, Hélène. 1981. “Castration or Decapitation?”. Trans. Annette Kuhn. Signs: Journal
of Women in Culture and Society vol.7, nº1.
Cixous, Hélène. 1992. Interview Recorded by Broadcasting Support Services. Talking
Liberties. London, Chanel 4 Television.
Clinton, Catherine. 1987. “Women Break New Ground” in The Underside of American
History. Vol.2 Ed. Thomas R. Fraizer. New York: Harcourt Brace
Jovanovich: 62-83.
Coelho, Nelly Novaes. A Literatura Feminina no Brasil Contemporâneo. São Paulo,
1993. Siciliano.
COELHO, Nelly Novaes. A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo,
1993. Siciliano.
Coelho, Nelly Novaes. Dicionário Crítico de Escritora Brasileiras. São Paulo, Escrituras.
2002.
Collins, Gina Michelle. “The Color Purple: What Feminism Can Learn from a Soouthern
1990. Tradition.” In Southern Literature and Literary Theory edited by
Jefferson Humphries. Athens, Ga.: University of Georgia Press.
Compagnon, Antoine. O Demónio da Teoria: Literatura e Senso Comum. Trad. De
1999. Cleonice Pães Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG.
Conceição, Sônia Fátima “Ser negro, povo, gente: ‘Uma situação de urgência.” Reflexões
da. 1985. sobre a literatura afro-brasilera. São Paulo: Conselho de
Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra.. 87-89.
Conway, J.K Et.al. Eds. “The Concept of Gender.” Daedalus. Vol.116, Nº 4 (Fall): XXI-
1987. XXIX (Introductory Articles / Essay).
Cooke, Michael G. 1984. The Achievement of Intimacy. New Haven: Yale University Press.
Corbett, Mary Jane. 1992. Representing Femininity. Oxford, Oxford University Press.
Corrêa, Mariza. 1996. “Sobre a invenção da mulata”. Cadernos Pago 6/7 . Raça e Gênero.
Campinas, Núcleo de Estudos de Género da UNICAMP.
Coughlan, Margaret N. Folklore from Africa to the United States. Washington: Library of
1976. Congress.
Cripps, Thomas. 1980. “The Dark Spot in the Kaleidoscope: Black Images in American
Film,” p.24 in R.Miller (ed) The Kaleidoscope Lens: How Hollywood
Views Ethnic Groups. Englewood, NJ: Jerome S. Ozer.
Crow, Brain. 1983. Studying Drama. Lagos: Longman.
479
Crowder, M. 1981. West Africa Under Colonial Rule. London: Hutchinson Publishers.
Cuddon, J.A. 1999. The Penguin Dictionary of Literary Terms and Literary Theory. 4th
Ed. London, Penguim Books.
Cunha, M.A.A. 1999. . Literatura Infantil: teoria e prática. São Paulo, Ática.
Cutrufelli, Maria Rosa. Women of Africa: Roots of Oppression. Trans. Nicolas Romano.
1985. London: Zed Books.
D’Almeida Irene. 1994. Francophone African Women: Destroying the Emptiness of Silence.
Gainsville: Florida University Press.
Dalcastagnè, Regina. A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004.
2005. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea. Brasília, nº. 26,
p.13-71. Jul/ Dez.
Dalcastagnè, Regina. “Isso Não É Literatura” Revista Entre Fronteiras e Cercado de
2005. Armadilhas. Brasília, Ed. UnB e Finatec.
Dalcastagnè, Regina. “A auto-representação de grupos marginalizados: tensões e
2007. estratégias na narrativa contemporânea” in Letras de Hoje. Porto
Alegre, v.42, n.4, p.18-31
Daley, Mary. 1973. Beyond God the Father: Toward a Philosophy of Women’s
Liberation. Boston, Beacon Press.
Daly, Mary. 1973. Beyond God the Father: Towards a Philosophy of Women’s
Liberation. Boston, Beacon.
Daly, Mary. 1973. Beyond God Father. Boston: Beacon Press.
Damshakaal, John 1998. “Women in Power Manifests” Nigerian News week: Lagos: May 23.
Daniel, Rosss W. 1988. “The Desire for Selfhood in the Color Purple”. Modern Fiction
Studies 34.1.p.69-83.
Dantas, Audálio. 1958. O drama da favela escrito por uma favelada: Carolina Maria de Jesus
faz um retato sem retoque do mundo sórdido em que vive. Folha da
Noite. São Paulo no ano XXXVII, n. 10.885, 9 de maio.
Dantas, Audálio. 1960. “Nossa Irmã Carolina”. In: Jesus, Carolina Maria de Quarto de
Despejo. Rio de Janeiro, Francisco Alves.
Davies, C. Boyce. 1986. Maidens. Mistresses and Matrons: Feminine Image in Selected
Soyinka’s Works in Ngambika: Studies of Women in African
Literature. Eds Carole Boyce Davies and Ann Adam Graves. New
Jersey: African World Press. 75-88.
Davies, Carole Boyce & Ngambika: Studies of Women in African Literature. Trenton:
Anne Adams, ed. 1986. African World Press.
Davies, Carole Boyce. Black Women, Writing and Identity: Migrations of the Subject. New
1994. York: Routledge.
Davies, Carole Boyce. “Introduction: Feminist Consciouness and African Literary
1986. Criticism.” In Id., Anne Adams Graves (eds.) Ngambika Studies of
Women in African Literature. Trenton, African World Press.p.1-23.
Davies, Marion Wynne. Bloomsbury Guide to English Literature: The New Authority on
Ed. 1989. English Literature. London: Bloomsbury Publishing Limited.
Davies, Nathalie. (sem “As Mulheres por cima” in Culturas do Povo, p.106/127. Paz e Terra.
data).
Davies, Tony. 1989. “The Divided Gaze: Reflections on the Political Thriller.” In Gender
Genre and Narrative Pleasure. Ed. Derek Longhurst. London:
Unwin, Hyman: 118-135
Davis, Angela Y. 1982. Women, Race and Clalss. London, The Women’s Press Limited.
Davis, Daniel S. 1972. Marcus Garvey. New York: Watt.

480
Davis, Jane. 1987. “The Color Purple: A Spiritual Descendant of Hurston’s Their Eyes
Were Watching God.” Griot 6 (Summer 1987) p.79-96.
Davison, Jean. 1997. Gender, Lineage and Ethnicity in Southern Africa. Boulder,
Westview Press.
Daymond, M.J.(ed.) 1996. Ssouth African Feminisms. Writing, Theory, and Criticism 1990-
1994. New York and London, Garland Publishing, Inc. p.XII-XLIII.
De Beauvoir, Simone. The Second Sex. Trans. H.M. Parshley. New York: Vintage Books.
1974.
De Jesus, Carolina Maria Meu estranho diário. Organização de João Carlos Sebe Bom Meihy e
de 1996. Robert M. Levine. São Paulo: Xamã.
De Jesus, Carolina Maria. I’m Going to Have a Little House: The Second Diary of Carolina
1997. Maria de Jesus. Trans. Melvin S. Arrington Jr. And Robert M.
Levine. Lincoln: University of Nebraska Press.
De Jesus, Carolina Maria. Bitita’s Diary: The Childhood Memories of Carolina Maria de Jesus
1998.. Trans. Emannuelle Oliveira and Beth Joan Vinkler. London: M.E.
Sharpe, Inc.
De Jesus, Carolina Maria. Child of the Dark: The Diary of Carolina Maria de Jesus.
1963. Transl. David St. Clair. London: Penguin Books.
De Jesus, Carolina Maria. Antologia pessoal. José Carlos Sebe Bom Meihy, org. Rio:
1996. Editora UFRJ.
Diane F, Sadoff. 1985. “Black Matrilineage: The Case of Alice Walker and Zora Neale
Hurston”. Signs: Journal of Women in Culture and Society.
11.1p.253-70.
Dietz, Mary G. 1987. “Context in All: Feminism and Theories of Citizenship” Deadalus,
Vol.116 Nº4 Fall: 1-24.
Dillard, Joey Lee. 1977. A Lexicon of Black English. New York: Seabury Press.
Doane, Janice & Hodges, Nostalgia and Sexual Difference. The Resistance to Contemporary
Devon. 1987. Feminism. London: Methuen.
Dobbie, Deborah. 1980. The New Woman Battimore: Williams and Wilkings.
Donoban Josephine. 1980. “The Silence is Broken.” Women and Language in Literature and
Society. Ed. Sally McConnel-Ginet, Ruth Borker, and Nelly Furman.
New York, Praeger.p.205-212.
Donovan Josephine. 1975. “Afterward: Critical Revision.” Feminist Literary Criticism.
Josephine Donovan (ed.). Lexington: University of Kentucky, 1975.
Donovan, Josephine. “The Silence is Broken”. In Cameron.
1990.
Drewal, Henry. 1978. “Art and Perception of Women in Yoruba Culture”, in Cahier
d’Etudes Africaines, Nº 68.
Driver Dorothy. 1982. “Feminist Literary Criticism” in An Introduction to Contemporary
Literary Theory. Eds. Rory Ryan and Susan van Zyl. Johannesburg:
A.D. Donker (Pty) Limited: 203 – 211.
Dubois, William E.B. The Souls of Black Folk. New York: Dodd Mead.
1979.
Dukore, Bernard F. 1974. Dramatic Theory and Criticism. London: Methuen and Co.
Dunton, Chris. 1992. Make Man Talk True: Nigeria Drama in English Since 1970. London
/ New York: Hans Zell Publishers.
Duplessis, Rachel Blau. Writing Beyond Ending: Narrative Strategies of Twentieth-Century
1985. Women Writers. Bloomington, Indiana UP.

481
Dworkin, S. 1985. The Strange and Wonderful Story of the Making of The Color
Purple”. Ms. 14:66-70+ December.
Eagleton, Mary. 1991. Feminist Literary Criticism, London, Longman.
Eagleton, Mary. 1996. Working with Feminist Criticism. Oxford: Blackwell.
Eagleton, Mary.ed 1991. Feminist Literary Criticism, London: Longman.
Eagleton, Mary, ed. 1996. Feminist Literary Theory: A Reader. Oxford: Blackwell.
Eagleton, Mary. 1996. Working with Feminist Criticism. Oxford: Blackwell Publishers.
Eagleton, Terry. 1976. Marxism and Literary Criticism. London: Methuen and Co.
Eagleton, Terry. 1983. Literary Theory: An Introduction. Oxford: Basil Blackwell.
Eagleton, Terry. 1988. Criticism and Ideology: A Study in Marxist Literary Theory. London
/ New York : Verso.
Eagleton, Terry. 1988. “Who ‘s Who and Where ‘s Where: Constructing Feminist Literary
1996. Studies. Feminist Review nº 53.
Eagleton, Terry. 2003. Figure of Dissent, London, Verso.
Egharevba, J.E. 1986. A Short History of Benin. Ibadan, University Press.
El Saadawi, Nawal. 1984. “When a Woman Rebels” in Sisterhood is Global. Ed. Robin
Morgan. Garden City. New York: Anchor Books. 199-206.
El Saadawi, Nawal. 1989. The Hidden Face of Eve: Woman in the Arab World. London: Zed
Books.
Ellmann, Mmary 1968 Thinking About Women. New York, Harcouurt Brace Jovanovich
El-Saadawi, Nawal. 1983. Woman at Point Zero. trans. Sherif Hetata. London: Zed Books.
El-Saadawi, Nawal. 1985. Two Women in One. trans. Osman Nusairi and Jana Gough. London:
Al Saqi Books.
El-Saadawi, Nawal. 2005. Imperialism and Sex in Africa. In Female Circumcision and the
Politics of Knowledge. ed. O. Nnaemeka. Westport, Connecticut:
Praeger, 21–26.
El-Saadawi, Nawal. 1980. The Hidden Face of Eve. London: Zed Press.

Emecheta, Buchi. 1982. “A Nigerian Writer Living in London,” Kunapipi 4.1 (1982): 114-
23.
Emecheta, Buchi. 1988. “Feminism with a Small ‘f’!” in Kirsten Holst Petersen (ed.)
Criticism and Ideology. Second African Writers’ Conference.
Uppsala, Scandinavian Institute of African Studies.p.173-185.
Emechita, Buchi. 1972. The Second Class Citizen. London, Allison & Busby.
Emechita, Buchi. 1972. In the Ditch. London, Barrie & Jenkins.
Emechita, Buchi. 1979. The Joy of Motherhood. London, Allison & Busby.
Emechita, Buchi. 1981 "That First Novel." Kunappi 3:2 p.115-123.
Emechita, Buchi. 1982 "A Nigerian Writer Living in London." Kunappi 4:1 p. 114-123.
Emechita, Buchi. 1982. "It's Me Who's Changed." Connexions 4 p. 4-5.
Emechita, Buchi.1976. The Bride Price. Allison & Busby.
Emejere, Emeka. 1991. “Women and Political Education” Nigerian Women and the
Challenges of our Time. Ed. Dora Ebi Chizea and Juliet Njoku.
Lagos: Malthouse Press.
Emenyonu, R.N and C.E. Current Trends in Literature and Language Studies in West Africa.
Nnolim. Eds. 1994. Ibadan: Kraft Books Limited.
Emenyonu, R.N and C.E. Current Trends in Literature and Language Studies in West Africa.
Nnolim. Eds. 1994. Ibadan: Kraft Books Limited.
Engels. Friedrich. 1972. Origin of the Family, Private Property and the State. New York:

482
Pathfinder Press.
Erickson, John. 1998. Islam and Postcolonial Narrative, Cambridge, Cambridge University
Press.
Esonwanne, Uzo. 1997. “Enlightenment Epistemology and ‘Esthetic Cognition’:
Mariama Bâ’s So Long a Letter,” in The Politics of (M)Othering:
Woman, Identity, and Resistance in African Literature, ed. Obioma
Nnaemeka . London: Routledge, p.82–100.
Evans-Pritchard, E.E. The Position of Women in Primitive Societies and other essays in
1965. Social Anthropology. London: Faber and Faber.
Evaristo, Conceição. “Gênero e etnia: uma escr(vivência) contemporânea”. Nadilza
2005. Moreira & Liane Scheider, orgs. Mulheres no mundo: etnia,
marginalidade e diáspora. João Pessoa, Idéa.
Ezeigbo, Akachi. 2003 “Siddon Look” or “Go –getter”: Identity and Generation Gap in
Contemporary Women‟s Writing”. A Paper Presented at the 22nd
International Convention of the Association of Nigerian Authors
(ANA) at Makurdi, Benue State, Oct., 30th –Nov 2nd. p.2-7.
Ezeigbo, T.A. 1994. “Women Empowerment and National Integration: ‘Bâ’s So Long a
letter and Warner-Vieyra’s Juletane” in Emenyonu . R.N and C.E.
Nnolim (eds) Current Trends in Literature and Language Studies in
West Africa, Ibadan: Kraft Books Limited.
Ezeigbo, Theodora “Reflecting the Times: Radicalism in Recent Female-Oriented
Akachi. 1990. Fiction in Nigeria.” N. Emenyonu (ed.) Literature and Black
Aesthetics. Calabar Studies in African Literature 5. Ibadan,
Heinemann. p.143-157.
Ezeigbo, Theodora Time to Speak Out!” Gender Issues in Nigeria: A Feminine
Akachi. 1996. Perspective. Lagos: Vista Books Ltd.
Ezeigbo, Theodora Introduction: The Reality of Gender in the Nigerian Women’s
Akachi. 1996. Experience.
Ezeigbo, Theodora I’m Female and Proud!” Gender Issues in Nigeria : A Feminine
Akachi. 1996. Perspective. Lagos: Vista Books, 1996.
Ezeigbo, Theodora “Who is Afraid of Feminism?” in Id. Gender Issues in Nigeria. A
Akachi. 1996a. Feminine Perspective. Lagos, Vista Books. p.1-4.
Ezeigbo, Theodora “Tradition and the African Female Writer: The Example of Buchi
Akachi. 1996b. Emecheta. In Marie Umeh (ed.) Emerging Perspectives on Buchi
Emecheta. Trenton, Asmara, African World Press. p.6-25.
Ezewanabe, Osita C. “Setting the Prisoners Free: Buchi Emecheta’s Strategy for the
2000. Emancipation of Women in the Traditional African Family,” Journal
of Cultural Studies, 2.1 (2000), 350-363.
Fannin, Alice. 1986. A Sense of Wonder: The Pattern for Psychic Survival in Their Eyes
Were Watching God and The Color Purple.” The Zora Neale
Hurston Forum 1 (Fall 1986).
Fanon, Frantz 1968 Black Skin, White Masks. New York Grove, 1967. Reprint of Peau
Noire, Masques Blancs. Paris. 1952
Fanon, Frantz. 1968. The Wretched of the Earth. Trans. Constance Farrington. New York,
Grove
Fausto-Sterling, Anne. Myths of Gender: Biological Theories About Women and Men. New
1985. York: Basic Books Inc.
Feal, Rosemary “Feminism and Afro-Hispanism: The Double Bind.” Afro- Hispanic
Geisdorfer. 1991. Review 10.1 25-29.
Fee, M. 2004. ‘Who Can Write as Other?’, em The Post-Colonial Studies Reader,

483
ed. Ashcroft, B. et al. London & New York, Routledge. P242-245.
Fee, Margery. 1989. “Why C.K Stead Didn’t Like Keri Hulme’s The Bone People: Who
can Write as Other?”Australian and New Zealand Studies in Canada.
P. 11-32.
Felman, Shoshana and TEsimony. London and New York, Routledge.
Laub, Dori. 1992.
Felman, Shoshana. 1993. What Does a Woman Want? Reading and Sexual Difference.
Baltimore, The Johns Hopkins University Press.
Felski, Rita. 1989. Beyond Feminist Aesthetics: Feminist Literature and Social Change.
Cambridge, Mass, Harvard University Press.
Felski, Rita. 1995. The Gender of Modernity. London, Harvard University Press.
Fernandes, Florestan. O Negro no Mundo dos Brancos. Difusão Européia do Livro, São
1972. Paulo.
Fernandes, Florestan. O genocídio do negro brasileiro. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
1978.
Fernea, Elizabeth, and Middle Easter Women Speak. Austin: University of Texas Press.
Basima Bezirgan. Eds.
1978.
Ferreira, Ana Paula (ed.) A Urgência de Contar: Contos de Mulheres dos Anos 40. Lisbon,
2000. Caminho.

Ferreira, Ana Paula. 1996. “Home Bound: The Construct of Femininity in the Estado Novo”.
Portuguese Studies 12.p.133-44.
Ferreira, Manuel. 1986. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. São Paulo, Ática.
Ferreira, Manuel. 1989. O Discuros no Percurso Africano. Lisboa, Plántano.
Ferréz Org. 2005. Literatura marginal: talentos da escrita periférica. Rio de Janeiro:
Agir.
Fifer, Elizabeth. 1985. “The Dialect and Letters of The Color Purple. In Contemporary
American Women Writers: Narrative Strategies, edited by Catherine
Rainwater and William J. Scheick. Lexington, University Press of
Kentucky.
Finnegan, Ruth. 1970. Oral Literature in Africa. Oxford, Oxford University Press.
Finnegan, William. 1992. A Complicated War: The Harrowing of Mozambique. Berkeley,
University of California Press.
Firestone, Shulamith. Dialectic of Sex: The Case for Feminist Revolution. New York,
1970. Bantham Books.
Fischer, Ernst. 1969. Art Against Ideology. Trans. Anna Bostock. London / Allen Lane:
The Penguin Press.
Flint, Kate 1993. The Woman Reader (1837-1914. Oxford, Clarendon Press.
Ford, Andrea. 1988. “The Review of The Color Purple.” Detroit Free Press July 10.p.35-
38.
Forgues, Roland. 1999. ‘Escritura Feminina y patrones culturales en el peru” in Ana Maria
Mão de Ferro Martinho (Org), A Mulher escritora em Àfrica e na
América Latina. NUM.
Foucault, Michel. 1980. Power / Knowledge: Selected Interviews and Other Writings. Ed.
Colin Gordon, et.al. New York: Pantheon: 92-108.
Foucault, Michel. 1982. The Subject and Power: Excerpt from
hhtp//www.foucault.info/documents/Foucault.power.en.htm[05/11/20
02]

484
Foucault, Michel. 1984. “What is an Author?” in Rabinou, P (ed). The Foucault Reader. New
York: Pantheon Book, 111-126.
Foucault, Michel. 1984. “What is an Author?” in Rabinou, P (ed). The Foucault Reader. New
York, Pantheon Book. P.111-126.
Foucault, Michel. 2006. “A Escrita de si” in Ditos e Escritos: Estratégia, Poder-saber. Rio de
Janeiro, Forense Universitária.. v.5,p.144-162.
Foulkes, A.P 1983. Literature and Propaganda. London: Methuen and Co.
Fowler, Roger, ed 1987. A Dictionary of Modern Critical Terms, London: Rout ledge.
Frank, Catherine. 1987. “Women Without Men: The Feminist Novel in Africa” in African
Literature Today. Nº 15:14-36.
Frank, Katherine. 1984. “Feminist Criticism and the African Novel.” In: African Literature
Today 14.p.34-48.
Frank, Katherine. 1987. “Women without Men: The Feminist Novel in Africa.” In: African
Literature Today 15.p.14-34.
Frank, Katherine. 1987. “Women Without Men: The Feminist Novel in Africa.” Women in
African Literature Today. Ed. Eldred Durosimi Jones. London, James
Currey, and Trenton: Africa World Press. 14-34.
Frantz, Fanon. 1952. Black Skin, White Masks. New York: Grove, 1967, Reprint of Peau
Noire, Masques Blancs. Paris.
Frantz, Fanon. 1986. The Wretched of the Eart. Harmondsworth: Penguin Book.
Freire, Gilberto . 1979. O Mundo que o português criou. Rio de Janeiro. Jose Olympio.
Freire, Paulo. 1970 & Pedagogy of the Opressed. Trans.. Myra Bergman Ramos. New York
1984. Continuum.
French, Marilyn, 1985. Beyond Power: On Women, Men and Morals. New York: Ballantine
Books.
Freud, Sigmund. 1935. An Autobiographical Study. London, The Hogarth Press.
Freyre, Giberto. 1946. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio.
Friedman, Susan “Lyric Subversion of Narrative in Women’s Writing: Virginia Woolf
Standord. 1989. and The Tyranny of Plot.” Reading Narrative: Form, Ethics,
Ideology. Ed. James Phelan. Columbus: Ohio State UP, 1989,p.162-
85.
Friedman, Susan Stanford. “Creativity ad Childbirth Metaphor: Gender Difference in Literary
1987. Discourse.” Feminist Studies 13p.49-82.
Friedman, Susan. 1988. “Woman’s Autobiographical Selves: Theory and Practice.” The
Private Self: Theory and Practice of Women’s Autobiographical
Writings. Ed. Shari Benstock. Chapel Hill: University of North
Carolina, , 34-62.
Frith, Gill. 1993. ‘Women, Writing and Language: Making the Silence Speak’ In
Richardson and Robinson.
Froula, Christine. 1986. “The Daughter’s Seduction: Sexual Violence and Literary History.”
Signs 11.4. p.621-44.
Fry, Peter. 2001. Moçambique, Ensaios. Rio de Janeiro. Editora UFRJ.
Fuss, Diana (1989. Essentially Speaking: Feminism, Nature and Difference. New York,
Routledge.
Fuss, Diana. 1994 "Interior Colonies: Frantz Fanon and the Politics of Identification."
Diacritics (Summer-Fall 1994): 20-42.
Gagnier, Regenia. 1991.. Subjectivities: A History of Self-Representation in Britain. Oxford,
Oxford University Press.
Gagwandia, Shatto Arthur. The Novel and Contemporary Experience in Africa. London:

485
1977. Heinemann.
Gakwandi, Shatto Arthur. The Novel and Contemporary Experience in Africa, London,
1977. Heinemann.
Gardiner, Judith K, 1981. “ON Female Identity and Writing by Women in Critical Inquiry.
Vol. 8, Nº 2 (Winter): 337 – 341.
Gates, Henry Louis 1991 'Critical Fanonism' in Critical Inquiry vol 17 no 3 Spring 1991.

Gates, Henry Louis, Jr. “Editor’s Introduction: Writing ‘Race’ and the Difference It Makes.”
1986. Race, Writing, and Difference. Ed. Henry Louis Gates, Jr, Chicago:
U of Chicago P., 1986.1-20.
Gates, Henry Louis, Jr. The Signifying Monkey: A Theory of Afro-American Literary
1988. Criticism. New York and Oxford: Oxford UP.
Gauthier, Xaviere. 1981. “Is there Such a Thing as Women’s Writing? In New French
Feminisms. Trans. Marilyn A. August. Eds. Elain Marks and Isabelle
de Courtivron. Sussex: The Harvester Press: 161-164.
Gellar, Sheldon. 1982. Senegal An African Nation Between Islam and the West. Boulder,
Colorado: Westview Press and Hampshire, England: Gower.
George, Joseph. 1996. "African Literature" ch. 12 of Understanding Contemporary Africa,
April A. Gordon and Donald L. Gordon, Lynne Rienner, London.
Giacomini, Sônia Maria. Mulher e escrava: Uma introdução ao estudo da mulher no Brasil.
1988. Petrópolis: Editora Vozes.
Gibson, Donald B and Black and White: Stories of American Life. New York: Washington
Carol Anselment. Eds Square Press.
1971.
Giddens, Anthony. 1991. “Four Theses on Ideology” in Ideology and Power in the Age of
Lenin in Ruins”. Canadian Journal of Political and Social Theory.
(Special Issue) Vol. 15. Nº 1-3: 21-24.
Gies, Frances & Gies, Women in the Middle Ages. New York: Thomas Y. Crowell.
Joseph. 1978.
Giffin, Susan. 1982. “The Way of All Ideology” In Feminist Theory: A Critique of
Ideology. Eds Keohane, et.al. Sussex. The Harvester Press. p.273-
292.
Gikandi, Simon. 1987. Reading the African Novel, Interpretation of Form and Content in the
Work of major Writers. London: Heinemann.
Gilbert, Sandra & Susan The Madwoman in the Attic: The Woman Writer and the Nineteenth
Gubar. 1979. Century Literature Imagination. New Haven: Yale University Press.
Gilbraith, John Kenneth, The Anatomy of Power. London: Corgi Books.
1985.
Godelier, M. 1982. “The Origins of Male Dominaion”. Cited in M. Evans “In Praise of
Theory: The Case For Women’s Studies” in Feminist Review 10.
February. p.61-73.
Golbery, Randall. 1964. Women and Law: Reforms in America. New York: Saint Martins.
Goldsmith, Elizabeth C. “Authority, Authenticity, and the Publication of Letters by Women.”
1989. Writing the Female Voice: Essays on Epistolary Literature. Ed.
Elizabeth C. Goldsmith. Boston: Northeastern UP. p.46-59.
Goldstein, W. 1985 “Alice Walker on the Set of ‘The Color Purple’. Publishers Weekly
228: p.46-8. September 6.
Gomes, Heloísa Toller. O Negro e o Romantismo Brasileiro. Atual, São Paulo.
1988.
Gomes, K. 1999. ‘Nunca Houve Arma Mais Fulminante Que a Mulher’ Publico, 13 de

486
Novembro.
Gomes, Marcelo Bolshaw. O Espelho de Oxum [online] (disponível no endereço:
(http://thecauldronbrasil.com.br/article/articleview/322/1/5/)
Gonçalves, Adelto. Moçambique para todos: O Feminismo Negro de Paulina Chiziane:
Niketche. disponível em:
www.macua.blogs.com/moçambiqueparatodos/2004/06_feminismo_n
eg.html.
Gonçalves, Ana Maria. Um Defeito de Cor. Rio de Janeiro, Record.
2006.
Gonzalez, Leila. 1995. “The Black Woman in Brazil.” African Presence in the Americas.
Ed. Dr. Carlos Moore. Trenton: Africa World Press, Inc., p. 313-328.
Gordon, Elizabeth. 1981. “An Analysis of the Impact of Labour Migration on the Lives of
Women in Lesotho”. In African Women: The Development Process.
ED. Nici Nelson. London: Frank Cass: 59-76.
Granqvist, Raoul & John African Voices: Interviews with Thirteen African Writers. Sydney,
Stotesbury. 1989. Dangaroo Press.
Graves, Ann Adam. 1986. “Preface” in Ngambika: Studies of Women in African Literature.
Eds Carole Boyce Davies and Ann Adam Graves. New Jersey:
African World Press. I-XI.
Green, Gayle and Making a Difference: Feminist Literary Criticism. London: Methuen.
Coppelia Kahn. Eds. 1985.
Gubar, Susan. 1986. “The Blank Page and the Issue of Female Creativity” in The New
Feminist Criticism: Essays n Women and Literature and Theory. Ed.
Elaine Showalter. New York: Pantheon Books.
Guimarães, António. A. Racismo e anti-racismo no Brasil. Rio de Janeiro, Ed.34.
1999.
Gusdorf, Georg. 1980. “Conditions and Limits of Autobiography”, reprinted in James Olney
(ed) Autobiography: Essays Theoretical and Critical. Princeton, NJ,
Princeton University Press,
Gutman, Herbert G. 1976. The Black Family in Slavery and Freedom. New York: Pantheon.
Guy, David 1982. Review of The Color Purple. Washington Post Book.
Guy, David 1982. “ A Correspondence of Hearts.” Review of the The Color Purple, by
Aliice Waker. Book World 25 July: 1.
Hajek, Jiri. 1967. “Literature Between Myth and Politics” in New Left Review. Nº 41
Jan-Feb: 45.
Hall, Stuart. 1987. “Minimal Selves” In The Real Me. Postmodernism and the Question
of Identity. London, Institute of Contemporary Arts.
Hall, Stuart. 1990. Cultural Identity and Diaspora”, in Jonathan Rutherford (ed),
Identity, Community, Culture, Difference. London, Lawrence &
Wishart.
Hall, Stuart. 1994. Colonial Discourse and Post-Colonial Theory. Ed. Patrick Williams
and Laura Chrisman. New York: Columbia UP, 392-403.
Hall, Stuart. 1999. “On Ethnicity and Discursive Turn” in Race, Rhetoric and the
Postcolonial, ed. Stuart Hall’s interview with Julie Drew in Cultural
Composition. Gary A. Olson & Lynn Worsham, Albany State
Univeristy of New York Press
Hall, Stuart. 2001. Different, London and New York: Phaidon.
HALL, Stuart. 2006. Da diáspora:Identidades e Mediações Culturais. BH: Ed. UFMG,
Hall, Stuart.1992. “The West and the Rest” in Formations of Modernity”, Org.

487
Stuart Hall, Bram Gieben. Polity Press, The Open University ,
275 -335.
Hamilton, Malcolm B. “ The Elements of the Concept of Ideology in Political Studies 35:1
1987.
Hamilton, Russel G. 2003 ‘A Feminist Dance of Love, Eroticism and Life: Paulina Chiziane’s
Novelistic Recreation of Tradition and Language in Postcolonial
Mozambique’, in Reevaluating Mozambique, Portuguese Literary
and Cultural Studies, 10, Spring 2003
Hamilton, Russel. 1974. Voice From An Empire; A History of Afro-Portuguese Literature
Vol.8 Minneapolis: University Press.
Hamilton, Russel. 1981. Literatura Africana Literatura Necessária. Lisboa: ed 70.
Hampaté Bâ, Amadou. “A Tradição Viva”. In: KI-ZERBO, J. (Coord). História Geral da
1982. África. I. Metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática /
Unesco.
Hanchard, Michael. 1994. Orpheus and Power: The Movimento Negro of Rio de Janeiro and
São Paulo, Brazil, 1945-1988. Princeton: Princeton UP.
Hans Zell et al. 1971. A Reader’s Guide to African Literature, New York, African
Publishing Corporation.
Haraway, Donna. 1988 “Reading Buchi Emecheta: Contests for Women’s Ex-perience in
Women’s Studies.” Inscriptions 3-4 p.107-24.
Harding, Sandra. 1993. “A Instabilidade das Categorias analíticas na Teoria Feminista” in .
Revista de Estudos Feministas. Vol.1.Nº.1. Rio de Janeiro, UFRJ,
p.7-32
Harrel-Bond, Barbara. “Interview: Mariama Bâ.” African Book Publishing Record 6: 209-
1980. 14.
Harris, Trudier. 1984. “On The Color Purple, Stereotypes, and Silence.” Black American
Literature Forum. P.155-61.
Harrow, Kenneth W. Ed The Marabout and the Muse: New Approaches to Islam in African
1996. Literature. Portsmouth, NH: Heinemann.
Harrow, Kenneth. 1998. "'I'm not a (Western) Feminist but ...' - A Review of Recent Critical
Writings on African Womens Literature." RAL . S. 171-190.
Hartstock, Nancy. C.M. Money Sex and Power: Towards a Feminist Historical Materialism.
1985. Boston: North Eastern University Press.
Heath, Stephen. 1984. “Male Feminism.” Dalhousie Review 64.2 (Summer): 70-101.
Hegel, Friedrich. 1967. Philosophy of Right. Trans. T.M. Knox. Oxford: Oxford University
Press.
Henderson, M 1985. “The Color Purple: Revision and redefinition, “ Sage 2.
Henderson, Mae G. 1985. “The Color Purple: Revision and Redefinitions.” SAGE 2 (Spring
1985) p14-18.
Heywood, Christopher. Perspectives on African Literature. London: Heinemann.
Ed. 1971.
Heyzer, Noeleen. 1991. “Closing Plenary” in Global Employment for Women. Ed. Jana
Everett. Washington DC: Association for Women in Development
(AWID ) Press.
Hillman, E. 1975. Polygamy Reconsidered: African Plural marriage and the Christian
Church. New York, Orbis Books.
Hirsch, Marianne. 1989. The Mother / Daughter Plot: Narrative, Psychoanalysis, Feminism.
Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press.
Hobbes, Thomas. 1962. Leviathan. Ed. John Plamentz. London: Fontana.

488
HOLLANDA, H. B. 1992. Os estudos sobre a mulher e a literatura no Brasil: uma primeira
avaliação. In: COSTA, A. O.; BRUSCHINI, C. (Org.). Uma questão
de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação
Carlos Chagas. p. 54-92.
Hollanda, Heloísa Tendências e Impasses: O Feminismo como Crítica da Cultura. Rio
Buarque de. 1994. de Janeiro, Rocco.
Hollanda, Heloísa “O Estranho Horizonte da Crítica Feminista no Brasil. In Süssekind,
Buarque de. 2003. Flora; Dias, Tânia e Azevedo, Carlito (org.). Vozes Femininas. Rio de
Janeiro, 7 Letras, Fundação Casa Rui Barbosa.
Hollanda, Sergio Buarque Raízes do Brasil. Record, Rio de Janeiro.
de. 1996.
Holman, C Hugh e A Handbook to Literature, 5ª Ed., New York: Macmillan Publishing
Harmon William. 1986. Company.
Hooks, Bell. 1981 Ain’t I a Woman black women and feminism. Cambridge, South End
Press. 1981.
Hooks, Bell. 1984. Feminist Theory From Margin to Center, Boston: South End Press.
Hooks, bell. 1989. Talking Back: Thinking Feminist, Thinking Black. Boston, Southend
Press.
Hooks, Bell. 1990. “Writing the Subject: Reading The Color Purple.” Reading Blacks,
Reading Feminist. ED. Henry Louis Gate Jr. New York, Meridian.
P.450-70.
Hooks, Bell. 1995. “Intelectuais Negras”. Revista Estudos Feministas. Rio de Janeiro,
V.3,n.2.p.464-478.
Hooks, Bell. 1995. “Intelectuais Negras”. Revista Estudos Feministas. Rio de Janeiro,
v.3,n.2, p.464-478
Hudson-Weems, Clenora Africana Womanism. Troy Bedford Publisher.
1995.
Hudson-Weems, Clenora “Africana Womanism”.In Obioma Nnaemeka (ed). n Obioma
1998. Nnaemeka (ed). Sisterhood Feminism and Power. From Africa to the
Diaspora. Trenton, NJ Asmara: Africa World Press. p.149-162.
Hudson-weems, Clenora. Africana Womanism: Reclaiming Ourselves. Troy Mich: Bedford
1993. Publishers Inc.
Hudson-Weems, Clenora. Africana Womanism: Reclaiming Ourselves. Troy MI: Bedford
1993. Publishers.
Huggan, Graham 2001. The Post-colonial Exotic: Marketing the Margins. London,
Routledge.
Hughes, Langston. 1983. A Pictorial History of Blackamericans. New York: Crown Publisher.
Humm, Maggie, 1975. Feminism, A Reader. Hemel Hempstead, Hertfordshire:
Prentice Hall / Harvester Wheatsheaf.
Humm, Maggie. 1994. A Reader’s Guide to Contemporary Feminist Literary Criticism,
Hemel Hempstead, Hertfordshire: Prentice Hall / Harvester
Wheatsheaf.
Humm, Maggie. 1995. The Dictionary of Feminist Theory, Second Edition. Hemel
Hempstead, Hertfordshire: Prentice Hall / Harvester Wheatsheaf.
Humm, Maggie. 1995. Practising Feminist Criticism, An Introduction. Hemel Hempstead,
Hertfordshire: Prentice Hall / Harvester Wheatsheaf.
Hunsaker, Steven V. 1999. Autobiography and National Identity in the Americas.
Charlottesville: The University Press of Virginia.
Hunter, F. 1953. Community Power Structure. Chapel Hill, University of North
Caroline Press.

489
Ingman Heather (ed). Mother and Daughters in The Twentieth Century: A Literary
1999. Anthology. Edinburgh, Edinburgh University Press.
Irele, Âbiola. 1981. The African Experience in Literature and Ideology. Ibadan:
Heinemann Educational Books Limited.
Irele, Abiola.1981. “The Criticism of Modern African Literature” in The African
Experience in Literature and Ideology. London, Heinemann.
Irele, F. Abiola (ed) 2009. Things Fall Apart : Authoritative Text, Contexts And Criticism /
Chinua Achebe. New York, W. W. Norton & Co.
Irigaray, Luce 1977; 1985. This Sex Which Is not One. Trans. Catherine Porter. Ithaca, New
York: Cornel University Press.
Izebaye, D.S. 1979. “Critics and Literature in Africa” in Perspectives on African
Literature. Ed. Christopher Heywood. London, Heinemann.
Jacobson, Ruth. 1999. “Complicating ‘Complexity’ integrating gender into the analysis of
the Mozambican Conflict.” Third World Quarterly 20 Nº 1, p.175-87.
Jacobus, Mary. 1986. Reading Women: Essays in Feminist Criticism. New York, Columbia
University Press.
Jacobus, Mary. 1989. Writing and Sexual Difference: Essays on The Prelude. Oxford,
Clarendon Press.
Jajne, Siga. 1995. “African Women and the Category ‘Woman’ in Feminist Theory”, a
paper presented at the annual conference of the African Literature
Association in Columbus, Ohio, March 1995.
Jamba, Sousa. 1997. “Out of Lusophone Africa. The Situation of Writers in Angola and
Mozambique.” Times Literary Supplement. Oct 17. p.29
James, Frederic. 1971. Marxism and Form: Twentieth Century Dialectical Theories of
Literature. Princeton, University Press.
Jameson, Fredric. 1981. The Political Unconscious: Narrative as a Socially Symboolic Âct.
Ithaca, Cornell University Press.
Jameson, Fredric. 1986. “Third-World Literature in the Era of Multinational Capitalism.”
Social Texts 15, p.65-88.
Jamews, Adeola. 1990. In Their Owns Voices. London, James Curry / Heinemann.
Jehlen, Myra. 1972. “Archimedes and Paradox of Feminist Criticism: A Critique of
Ideology. Eds. Nanner L Keohane et.al. Sussex: The Harvester Press.
Jelinek, Estelle. 1980 Women’s Autobiography: Essays in Criticism. Bloomington and
London, Indiana University Press.
Jesus da Costa, Renata. Subjectividades Femininas: Mulheres negras sob o Olhar de
Carolina Maria de Jesus, Maria Conceição Evaristo Brito e Paulina
Chiziane.
JESUS, Carolina Maria de Casa de Alvenaria. São Paulo, Francisco Alves.
1961.
JESUS, Carolina Maria de Pedaço de Fome. São Paulo, Áquila.
1963.
JESUS, Carolina Maria de Diário de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
1986.
JESUS, Carolina Maria de Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada. São Paulo, Editora
1993. Ática S.A.
JESUS, Carolina Maria de “Minha vida” In MEIHY, José Carlos Sebe & LEVINE, Robert,
1994ª. Cinderela Negra. A saga de Carolina Maria de Jesus. Rio de
Janeiro: Ed. UFRJ.
JESUS, Carolina Maria de “Sócrates Africano”. In MEIHY, José Carlos Sebe & LEVINE,
1994b. Robert, Cinderela Negra. A saga de Carolina Maria de Jesus. Rio

490
de Janeiro: Ed. UFRJ
JESUS, Carolina Maria de Antologia Pessoal. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ
1996.
Johnson, Barbara. 1988. “The Frame of Reference: Poe, Lacan, Derrida.” The Purloined Poe:
Lacan, Derrida, and Psychoanalytic Reading. Ed. John P. Muller and
William J. Richardson. Baltimore: Johns Hopkins UP. 213-51.
Johnson, Brimley R. 1920. Some Contemporary Novelists. London: Leonard Parsons: XIV-XV.
Johnson, Cheryl. 1986. “Class and Gender: A Consideration of Yoruba Women During the
Colonial period” in Women and Class in Africa. Eds. Claire
Robertson and Iris Berger. New York / London, Africana Publishing
Coy.
Johnson, S. 1921. The History of the Yoruba. Edited by Johson O, Lagos: C.M.S
Bookshop.
Johnson-Odim, Cheryl. “Common Themes, Different Contexts: Third World Women and
1991. Feminism.” In Chandra Talpade Mohanty; Ann Russo; Lourdes
Torres (ed). Third World Women and Politicis of Feminism.
Bloomington, Indianapolis, Indiana University press. P.314-327.
Josef, Bella. 1997. “(Auto)Biografia: Os Territórios da Memória e da História”. In
Aguiar F. (Org.). Gênero de Fronteira: Cruzamento entre o Histórico
e o Literário. São Paulo, Xamã.
Joseph Yakubu. 1985. “Problems of Women Writers.” in A.M NEWS October 30.p.15-15.
Juneja, Om P. 1990. “The Colour Purple of Walker Women: Their Journey from Slavery
to Liberation.” The Literary Criterion 25 (1990) p.66-76.
Kaazery Yammer. 1985. “Women and Contemporary Society” A paper presented at the
National Convention on Women’s Rights in Egypt.
Kaiser, Gerhard R. 1989. Introdução à Literatura Comparada. Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian.
Kant, Immanuel. 1964. “Observations On the Feeling of the Beautiful and Subline” cited in
Agonito, Rosemary. (1977). History of Ideas on Women: A
Sourcesbook. New York: G.P Putnam’s Sons.
Kemp, Yakini. 1988. “Romantic Love and the Individual in Novels by Mariama Bâ, Buchi
Emecheta and Bessie Head.” Obsidian II: Black Literature in Review
3.3 , p.1-16.
Kemson, Rose.1978. Woman Power. New York, Russell and Ressell.
Keohane, Nannerl. Et.al. Feminist Theory: A Critique of Ideology. Sussex: The Harvester
Eds, 1982. Press.
Killam, G.D, ed. 1984. The Writing of East and Central Africa. London, Heinemann.
Killian, Linda. 1974. “Feminist Theatre” in Feminist Art Journal. 3, Spring:23
King, Adele. 1985. French Women Novelists: Defining a Female Style. London: The
Macmillan Press.
King, Anita. 1981 Quotations in Black. Westport, Conn, Greenwood Press.
King, Nicola. 2000. Narrative, Identity, Memory: Remembering the Self,. Edinburgh,
Edinburgh University Press.
Klein, Viola. 1946. The Feminist Literary Character: The History of An Ideology.
London, Routledge and Kegan Paul.
Koenig, Rachael. 1987. Interviews with Contemporary Female Playwrights. New York,
Beech Tree Books.
Kolakowski, Leszek. Cited in Êrnst Fischer. Art Against Ideology. Trans, Anna Bostock.
1969. Allen Lane. London, The penguin Press.

491
Kolakowski, Leszek. DerMench Ohne Alternative. Munich, Piper.
1990.
Kolawole, Modupe Mary., Gender Perceptions and Development in Africa: A Socio-Cultural
E. Ed. 1997 Approach. Lagos: Arrabon Educational Publishers.
Kolawole, Modupe. 1997. Womanisn and African Consciousness. Trenton, Africa World
Press.
Kolodny, Annette. 1975. “Some Notes on Defining Feminist Literary Criticism” in Critical
Inquiry. Vol. 1 Autumn: 75-92.
Kolodny. Annette. 1980. “Dancing Through the Minefield: Some Observations on Theory,
Practice, and Politics of a Feminist Literary Criticism.” Feminist
Studies 6.1 (Spring):1-25.
Kristeva, Julia. 1974. “Women Can Never be Defined” in Elaine Marks and Isabelle de
Courtivron (eds), 1981 New Feminist: An Anthology. Brighton,
Harvester Press.
Kristeva, Julia.. 1989. “ A Question of Subjectivity – an interview”, in Philip Rice and
Patricia Waugh (eds), Modern Literary Theory: A Reader. London,
Edward Arnold.
Kwame, Anthony. A. The Postcolonial and the Postmodern” From In My Father’s House ,
1992. Africa in Philosophy of Culture. Methuen.
Laban, Michel. 1998. Moçambique: Encontro com Escritores. 3 vols. Porto, Fundação Eng.
António de Almeida.
Laban, Michel. 1998. ‘Encontro com Paulina Chiziane’, pp. 969-94, in Mocambique:
Encontro com Escritores, Vol. III (Porto: Imprensa Portuguesa,
1998)
Lajolo, Marisa. 1996. “Poesia no quarto de despejo, ou um ramo de rosas para Carolina” in
In MEIHY, José Carlos Sebe B. (Org.). Antologia pessoa. Rio de
Janeiro: Ed. UFRJ.
Lajolo, Marisa. 1996. “Poesia no Quarto de Despejo, ou um Ramo de Rosa para Carolina.
In Jesus, Carolina Maria de Antologia Pessoal. Rio de Janeiro, UFRJ
(Org.) José Carlos Sebe Bom Meihy, Revisado por Armando Freitas
Filhos.
Lajolo, Marisa. 1997. O Que É Literatura. Coleção Primeiro Passos. 17 ed. São Paulo,
Brasiliense.
Lajolo, Marisa.1995. “A Leitora no Quarto dos Fundos. Leitura Teoria & Prática. São
Paulo, N. 25, ano 14, Junho.
Lajolo, Marisa.1996. “Poesia no Quarto de Despejo, ou Um Ramo de Rosas para
Carolina”. In: Jesus, Carolina Maria & Meihy, José Carlos Sebe B
(Org.) Antologia Pessoal. Rio de Janeiro, ED UFRJ.
Lakoff, Robin. 1975. Language and Women’s Place. New York, Harper & Row.
Laranjeira, Pires. 1992. De Letra em riste: Identidade, Autonomia e Outras Questões na
Literaturas de Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e
Príncipe, Porto, Afrontamento.
Laranjeira, Pires. 1995. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Colaboração de
Inocência Mata e Elsa Rodrigues dos Santos. Lisboa, Universidade
Aberta.
Laranjeira, Pires. 1995. A Negritude Africana de Língua Portuguesa. Porto, Afrontamento,
1995.
Laranjeira, Pires. 1996. Antologia literária de língua portuguesa, Org. Pires laranjeira, por
Jornadas Universitárias Lusófonas. 6, Coimbra.
Laranjeira, Pires. 2001. Ensaios Afro literários: Estudos e documentos, Novo Imbondeiro.

492
Laranjeira, Pires. 2003. “Paulina Chiziane: Saudades do Paraíso”in Jornal de Letras. Lisboa
15 de Outubro.
Larson, Charles. “Review of The Color Purple,” Detroit News Sept. 14 1982, p35-38.
Larson, Charles. 1971. The Emergence of African Fiction. Indianapolis, Indiana University
Press.
Laura Charlotte Kempen. Mariama Bâ, Rigoberta Menchú, and Postcolonial Feminism, Peter
2001. Lang Publishing.
Leavitt, Ruby Rohrlich. Women Cross-culturally: Change and Challenge. The Hague. Paris:
Ed. 1975. Mouton Publishers. Change and Challenge. The Hague. Paris:
Mouton Publishers.
Lebeuf, Anna. 1963. “The Role of Women in the Political organization of African
Societies” in Women pf Tropical Africa. Ed. Denis Paulme.
California: University of California Press.
Leite, Ana Mafalda. A Modalização Épica nas Literaturas Africanas Lisboa, Veja.
1995.
LEITE, Ana Mafalda. Paulina Chiziane: Romance de Costumes, Histórias Morais. In:
2003. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. Lisboa: Colibri.
p.75-87.
LEITE, Ana Mafalda. ‘Paulina Chiziane: Romance de Costumes, Histórias Morais’, pp.
2003. 75-88, in Literaturas Africanas e Formulacões Pós-coloniais. Lisboa,
Colibri.
Leite, Mafalda Ana. 1998. Oralidade & Escritas nas Literaturas Africanas, Lisboa, Edições
Colibri.
Leite, Mafalda Ana. 2003. Literaturas Africanas e formulações pós coloniais, Lisboa,
Edições Colibri.
Lejeune, Philippe (1989). On Autobiography. Minneapolis University of Minnesota Press.

Lemos, Virgílio de. 1999) “Mulheres Pardas, Azuladas ou Roxas, ou do Creolismo à Volúpia,
Uma Identidade que se Busca na Modernidade” em Angius, Matteo;
Zamponi, Mario. (Orgs) Ilha de Mocamique. AIEP EDITORES NC.
Lenhart, Georgann. 1984 “Inspired Purple?” Notes on Contemporary Literature 14. (May
.. 1984) p.2-3.
Lenin, V.I. 1980. Sobre a emancipação da mulher. São Paulo, Alfa Omega
Lerner, Gerder. 1979. “ The Challenge of Women History’s in The Majority Finds its past:
Placing Women in History. New York: Oxford University Press.
LEVINE, Robert 1994c “Um olhar americano” In MEIHY, José Carlos Sebe & LEVINE,
Robert, Cinderela Negra. A saga de Carolina Maria de Jesus. Rio
de Janeiro: Ed. UFRJ.
Levine, Robert M & Cinderela Negra: A Saga de Carolina Maria de Jesus. Rio de
Meihy, Jose Carlos Sebe Janeiro, Editora UFRJ.
Bom 1994
Levine, Robert M and The Life and Death of Carolina Maria de Jesus. Albuquerque:
José Carlos Sebe Bom University of New Mexico Press.
Meihy. 1995.
Lindfors, Bernth Critical Perspectives on Nigerian Literatures, Washington: Three
(ed).1976. Continents Press.
Lindfors, Bernth “The Teaching of Afriican literatures in Anglophone African
(ed).1990. universities: an instructive canon”, Matatu.7, p.41-55.
Lindfors, Bernth The famous authors” reputation test: an update to 1986”, in ános

493
(ed).1990. Riesz and Alain Richard (eds, Semper Aliquid Novi: Litérature
compare et liittératures d’Afrique: Mélanges Albert Gérard,
Tübingen, Gunter Narr Verlag, p.131-43.
Linton-Umeh, Mary. “The African Heroine” in Study Black Bridges. Cited in Barbara
1985. Christian. Ed. Black Feminist Criticism. New York: Pergamon Press.
Lionnel, Françoise. 1989. Autobiographical Voices, Race, Gender, Self-Portraiture. Ithaca,
Cornell University Ppress.
Little, Kenneth. 1973. African Women in Towns: A Study of African Social Evolution.
Cambridge, Cambridge University Press.
Little, Kenneth. 1973. African Women in Town: An Aspect of African Sociological
Revolution. Cambridge: Cambridge University Press.
Little, Kenneth. 1980. Sociology of Urban Women’s Image in African Literature. London:
Macmillan Press.
Liu, Kai-ling. 1994 Liu, Kai-ling. “Feminine Epistolarity: The Heroides and The
Mixquiahuala Letters.” Chung-wai Literary Monthly 22.1 (April):
57-70.
Liu, Kai-ling. 1998 “To Whom Is the Letter Sent?—A Subversive Chinese Love Letter.”
Fiction and Drama 10 (September): 55-70.
Liu, Kai-ling. 1999 “The Quilt of the Letter: Alice Walker’s The Color Purple.”
Proceedings of the National Science Council, Part C Humanities and
Social Sciences 9.4 (October ): 622-629
Lleder, Priscilla. 1989. “Alice Walker’s American Quilt: The Color Purple and American
Literary Tradition.” Journal of the American Studies Association of
Texas 20. (Oct. 1989), p.79-94.
Lloyd, P.C. 1967. Africa in Social Change. Baltimoe: Penguin.
Lobo, Luisa. 1993. Crítica Sem Juízo. Rio de Janeiro. Francisco Alves.
Lobo, Luisa. 2007. A Literatura de Autoria Feminina no América Latina. Disponível em
: « http://www.members.tripod.com/~lfilipe/llobo.html »
Locke, John. 1960. Two Treatises on Government. Ed. Peter Laslett. Cambridge:
Cambridge University Press.
Lodge, David., ed. 1988. Modern Criticism and Theory: A Reader. London: Longman.
Lodge, David., ed., 1988. Modern Criticism and Theory: A Reader. London: Longman.
Lopes, Nei. 2004. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo
Negro.
Lopes, Silvina A Legitimação em Literatura. Lisboa, Cosmos.
Rodrigues.1994.
Loraux, Nicole.1988. Maneiras trágicas de matar uma mulher, Rio de Janeiro, Jorge
Zahar.
Lorrain, J. 1979. The Concept of Ideology. London: Hutchinson.
Lourenço, Luís Augusto A oeste das minas. Escravos, índios e homens livres numa fronteira
B. 2002 oitocentista. Triângulo Mineiro (1750-1861. Uberlândia: Directoria
de Imprensa Universitária da UFU.
Love, Babara. 1987. “Images of African American Women”. African Commentary.
Mere, Ada. The Family as the pivot of Igbo Traditional Education”
Igbo Traditional Education Ahia Ajoku Lecture.
Low, W. Augustus. 1981. Ecyclopdeia of Black America. New York: McGraw-Hill.
Lukács, Georg. 2000. Teoria do Romance. São Paulo: Duas Cidades.
Macedo, Ana Gabriela & Dicionário da Crítica Feminina. Porto: Edições Afrontamento.
Amaral, Ana Luísa, 2005.

494
MACHADO, Marília Os escritos de Carolina Maria de Jesus: determinações e imaginário.
Novais da Mata. 2006. In: Revista Psicologia e Sociedade. Vol. 18(2) p. 105-110.
Machado, Patrícia. 2005. “Escrita Feminina” in Dicionário de Termos Literários. Disponível
em «http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/E/escrita_feminina.htm»
Machel, Samora, 1974. A Libertação da mulher é uma necessidade da revolução, garantia
da sua continuidade, condição do seu triunfo. Porto, Texto da
Revolução /2.
Machel, Samora, 1974. Mozambique, Sowing the Seeds of Revolution. London, Committee
for Freedom in Mozambique, Angola and Guiné.
Maciel, Sheila Dias. 2004. “A Literatura e Os Gêneros Confessionais” in Belon, Antônio
Rodrigues e Sheila Dias (Orgs.). Em Diálogo. Estudos Literários e
Lingüísticos. Campo Grande, Ed. UFMS.
Maduka, T. Chukwudi. “The African Writer and the Drama of Social Change” Ariel
1981. 12.3 p. 5-18.
MAGALHÃES, Isabel O Sexo dos Textos e Outras Leitura., Lisboa: Caminho.
Allegro de. 1995
Magnabosco, Madalena e “Carolina Maria de Jesus”in Catálogo de Escritoras Brasileiras.
Ravetti, Graciela. 2003. Disponível em
«http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/catalogo/carolina_vida.htm

Magnabosco, Madalena. “Reconstruindo imaginários Femininos Através dos Testemunhos de
2002. Carolina Maria de Jesus. Tese de Doutoramento”. FALE, Programa
de Pos-graduação em Letras: Estudos Literários. UFMG – Belo
Horizonte.
Magnabosco, Maria M. “As vozes marginais de Rigoberta Menchù e Carolina Maria de
1999. Jesus”. IN Revista Destaque.
Makward, Edris 1986. “Marriage, Tradition and Woman’s Pursuit of Happiness in the
Novels of Mariama Bâ.” Ngambika: Studies of Women in Africa
Literature. Ed. Carole Boyce Davies and Anne Adams Graves.
Trenton: Africa World. 271-81.
Mancelos, João de. 2002. Passos Novos numa Dança Antiga. Niketche – Uma História de
Poligamia de Poligamia de Paulina Chiziane. Biblioteca Municipaç
de Aveiro. 27 de Outubro.
Mancelos, João. Passos Novos numa Nova Dança Antiga: Sobre Paulina Chiziane.
Disponível em: www.uea.angola.org.
Manning, Patrick. 1979. “Notes Towards a Theory of Ideology in Historical Writing on
Modern Africa” in Canadian Journal of African Studies. Vol. VIII,
Nº.2: 235-253.
Marcus, Laura. 1994. Auto/biographical Discourses. Manchester, Manchester University
Press.
Margarido, Alfredo.1980. Estudos sobre Literaturas das nações Africanas de Língua
Portuguesa. Lisboa, A Regra do Jogo.
Margarido, Alfredo.1980. Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa,
ensaios. Lisboa: A Regra do Jogo.
Mari Evans (ed) 1984. Black Women Writers 1950 -1980, A Critical Evaluation, New York,
Anchor Book / Doubleday.
Maria Paula (org.) 2008. Moçambique. Das palavras escritas. Porto: Afrontamento. p.161-
175.
Mark Bolak Funteh & jean “Women, conflict and Peace in the Grassfields of Cameroon”In
Gormo 2009. Sociedade rurais Africana Dinamicas da Tradição Africana

495
Studia,Nº.13 Revista Internacional de Estudos Africanos, Centro de
Estudo Africano. P.91-113
Marks, Elaine and Isabelle New French Feminisms. Sussex: The Harvester Press.
de Coutrivon. 1981.
Maroni, Amneris. 1978. A estratégia da recusa. Análise das grves de 1978. São Paulo:
Brasiliense.
Martens, Lorna. 1985. The Diary Novel. Cambridge. Cambridge University Press.
Martens, Lorna.1985. The Diary Novel. New York: Cambridge UP, 1985.
Martinho, Ana Maria “Ensino da literatura e antologias escolares me Angola e
Mão-de-Ferro. 1999. Moçambique.” In África: Investigações Multidisciplinares, edited by
Ana Maria Mão-de-Fero Martinho. Evora, NUM.
Mason, Mary G. 1980. “The Other Voice: Autobiographies of Women Writers,”
Autobiography: Essays Theoretical and Critical, ed. James Olney
(Princeton, NJ: Princeton University Press.
MATA, Inocência e A Mulher em África. Vozes de uma Margem Sempre Presente.
PADILHA, Laura (org.) Lisboa: Colibri.
2007.
Mata, Inocência. 1995. “As Vozes Femininas na Literatura Africana: Passado e Ppresente,
Representações da Mulher na Produção Literária de Mulheres.” In O
Rosto Feminino da Expansão Portuguesa. Actas II, Edited by Maria
Reynolds de Sousa, et.al. Lisboa. Comissão para a Igualdade e para
os Direitos das Mulheres.
Mata, Inocência. 2000. “Paulina Chiziane: Uma Colectora de Memórias Imaginadas” in
Metamorfoses I- Revista da Cátedra Jorge de Sena para Estudos
Literários Luso-Afro-Brasileiros/ UFRJ. Lisboa: Edições Cosmos,
2000.
Mata, Inocência. 2003. The Serpent’s Tongue: Gendering Autoethnography in Paulina
Chiziane’s Balada de Amor ao Vento’, pp. 169-84, in Reevaluating
Mozambique, Portuguese Literary and Cultural Studies, 10, Spring.
Mativo, Kyalo. 1978. “Ideology in African Philosophy and Literature Part II” in Ufahamu.
Vol. VIII, Nº.2.
Maxwell, Joseph A. 1996. Qualitative Research Design: An Interactive Approach. Thousand
Oaks, CA: Sage.
Maxwell, Joseph A. 1996. Qualitative Research Design: An Interactive Approach. Thousand
Oaks, CA: Sage.
McCaffrey, Kathleen. “Image of Women in West African Literature and film: a struggle
1980. against dual colonization”, International Journal of Women’s
Studies. 3.1: p.76-88.
McConkey, James H. ed. The Anatomy of Memory: An Anthology. New York, Oxford
1996. University Press. Questia, Web, 25 May 2011.
McDowell, Deborah E. ‘New Directions for Black Feminist Criticism’ in the New Criticism,
1986. ed. Elaine Showalter, London, Virago, 1986, p.186-99.
Mcdowell, Deborh. 1987. “The Changing Same”: Generational Connections and Black Women
Novelists.” New Literary History 18 p.281-302.
Mckay, N. 1997. “Reflection on Black Women Writers: Revising the Literary Canon”
in Feminisms. Eds. Robyn R Warhol and Diane Price Herndl.
Basinstoke, Macmillan Press Limited.p.155-163
McKenzie, Tammie. 1986. “The Color Purple’s Celie: A Journey of Selfhood.” Conference of
College Teachers of English Studies 51 (Sept. 1986) p.50-58.
Mckinnon, Catherine. “Feminism, Marxism, Method and the State: An Agenda for Theory”

496
1982. in Feminist Theory: A Critique of Ideology. Eds. Keohane et.al.
Sussex: The Harvester Press: 1-30.
McLaren, P. 2000. Multiculturalismo Crítico. São Paulo, Cortez.
McLuskie, Kathleen, and “Women and African Literature.” Wasafiri 8 Spring. p.3-7.
Lyn Innes. 1988.
Meehan, Elizabeth. 1990. Women’s Right at Work. Basingstock Macmillan.
MEIHY, José Carlos Sebe Cinderela Negra. A saga de Carolina Maria de Jesus. Rio de
& LEVINE, Robert. Janeiro: Ed. UFRJ.
1994d
Meihy, José Carlos Sebe Cinderal Negra. A Saga de Carolina Maria de Jesus.Rio de Janeiro,
& Lleveine, Robert. (Org.) Ed. UFRJ.
MEIHY, José Carlos Sebe Carolina Maria de Jesu: emblema do silencio. Texto constante da
Bom. Biblioteca Virtual de Direitos Humanos da Universidade de São
Paulo. Disponível em ( http: //
www.direitoshumanos.usp.br/bibliografia/meihy.html)
Meihy, José Carlos Sebe “Carolina Maria de Jesus: Emblemas do Silêncio in Revista USP.
Bom. (1998). Nº.37. São Paulo, USP, Mar. Mai. p.82-91.
Meihy, José Carlos Sebe “A Percepção de Um Brasileiro. In Jesus, Carolina Maria de. Meu
Bom. 1996. Estranho Diário. São Paulo, Xamã.
Meihy, José Carlos Sebe “Os Fios dos Desafios: O Retrato de Carolina Maria de Jesus no
Bom. 2004. Tempo Presente”. In: Silva, Vagner Gonçalves (Org.). Artes do
Corpo 2. São Paulo, Selo Negro.
Meihy, José Carlos Sebe Carolina Maria de Jesus: Emblema do Silêncio. Disponível em
Bom. 2005. «http://www.direitoshumanos.usp.br/bibliografia/meihy.html»
Mendonça, Fátima. “1988. “ Para uma periodização da Literatura Moçambicana.” Lua Nova.
Letras, Artes e Ideias. 1,p. 6-20.
Mendonça, Fátima. “1995. A literatura moçambicana em questão.” Discursos: Estudos de
Língua e Cultura Portuguesa. Literaturas Africanas e Língua
Portuguesa 9. p.-37-51.
Michele Wallace. 1990 “Variations on Negation,” Reading Black, Reading Feminist, ed.
Henry Louis Gates, Jr. (Meridian: New York,).
Mile, Rosalind. 1987. The Female Form: Women Writers and the Conquest of the Novel.
London, Routledge.
Mill, J.S. 1972. “The Subjugation of Women” in On Liberty. London: Oxford
University Press.
Miller, Jeane-Marie A. “Black Women Playwrights from Grimke to Shange: Selected
1982. Synopses of their Works” in All the Women are White, All the Blacks
are Men. But Some of us are Brave. Eds. Gloria T. Hull et al. Ols
Westbury. New York: The Feminist Press: 280-286.
Miller, Nancy K. 1988. Subject to Change, Reading Feminist Writing. Columbia: University
Press, New York.
Miller, Nancy K. 1991. Getting Personal. New York and London, Routledge.
Miller, Nancy K. 1994. “Representing Others: Gender and the Subject of Autobiography.
Differences, 6, p.1-27.
Miller, Nancy K.ed., 1986. The Poetics of Gender, New York: Columbia UP.
Millet, Kate. 1979. Sexual Politics. New York: Avon Books.
Millsm Jane. 1991. Womanhood: A Vocabulary of Culture and Patriarchal Society.
London, Virago.
Minhha, Trinh. 1989. Woman, Native, Other: Writing Postcoloniality and Feminism.
Bloomington: Indiana University Press.

497
Mitchell, Juliet. 1973. Women’s Estate. New York: Vintage Books.
Mitchell, Juliet. 1974. Psychoanalysis and Feminism. Middlesex. England: Penguin Books.
Mitchell, Juliet. 1988. “Femininity, Narrative and Psychoanalysis” in Modern Criticism and
Theory: A Reader: Eds. David Loge. London: Longman.
Modleski, Tania. 1988. Feminism and the Power of Interpretation : Some Critical Readings”.
In Teresa de Lauretis, (ed.), Feminist Studies / Critical Studies.
London, Macmillan.
Mohanty, Chandra. 1991. Cartographies of Struggle: Third World Women and the Politics of
Feminism. In Third World Women and the Politics of Feminism. eds.
C. Mohanty, A. Russo and L. Torres. Bloomington: Indiana
University Press, 1–47.
Moi, Toril. 1987. French Feminist Thought: A Reader. Blackwell.
Moi, Toril. 1986. Sexual / Textual Politics: Feminist Literary Theory: London:
Methuen.
Momplé, Lília. 1999. “ A mulher escritora e o Cânone: Aproximação e Ruptura.” In A
Mulher Escritora em África e na América Latina, edited Martinho,
Ana Maria Mão-de-Ferro. Evora, NUM.
Momplé, Lília. 1999. “Stress.” In Opening Spaces: Anthology of Contemporary African
Women’s Writing, edited by Yvonne Vera. Oxford, Heinemann and
Baobab.
Mondlane, Eduardo. 1970. The Struggle for Mozambique. Harmondsworth, Penguin.
Monteith, Moira. 1986. Women’s Writing: A Challenge to Theory. Sussex: The Harvester
Press.
Moore, Carmen. 1969 Somebody’s Angel Child: The Story of Bessi Smith. New York:
Crowell.
Moore, Gerald. (ed). 1969. Essays in Portuguese-African Literature, Pennsylvania, Pennsylvania
State University Studies.
Moore, Gerald. (ed). 1980. Twelve African Writers. London, Hutchinson.
Moore-Gilbert, Bart. Postcolonial Theory: Contexts, Practices. London, Verso.
1997.
Moraga, Cherrie and This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color.
Gloria Anzaldua. Eds. New York: Persephone Press.
1981.
Moreira, Renato J. 1956 “Brancos em bailes negros”. Revista Anhembi, 71, vol. XXII
Morgan, Robin. Ed,. 1984. Sisterhood is Global: The International Women’s Movement
Anthology. Garden City, New York: Anchor Books.
Morris, Pam 1993. Literature and Feminism: An Introduction. Oxford, Blackwell.
Morrison, Toni. 1971. “What the Black Woman Thinks About Women’s Liberation.” New
York Times Magazine 22 August: 14+.
Morrison, Toni. 1981. Tar Baby. New York, Knopf.
Mort, Mary-Ellen. 1982. “Black Birthright, Sustaining Joy.” “The Review of The Color Purple
by Alice Walker. Library Journal June 1.p11-15.
Mortimer, Mildred. 1990. “Enclosure/Disclosure in Mariama Bâ’s Une si longue 498etter.” The
French Review 64.1 : 69-78.
Mott, Maria Lúcia de Escritoras Negras – Resgatando a Nossa História. Papéis Avulsos.
Barros. 1989.
Mott, Maria Lúcia de Submissão e Resistência — A Mulher na luta contra a escravidão.
Barros.1988. São Paulo: Editora Contexto.
Moura, Clóvis. 1981. Os Quilombos e a rebelião negra. Brasiliense, São Paulo.

498
Moura, Clóvis. 1988. Sociologia do negro brasileira. Editora Ática, São Paulo.
Mphahlele, Ezekiel. 1967. “Writers and Commitment” in Ulli Beier. Ed. Introduction to African
Literature. London: Longman.
Mudimbe-Boyi, Elizabeth. “Anglophone and Francophone Women’s Writings” Callaloo 16.1
1993. Winter.
Mudimbe-Boyi, Elizabeth. “Post-colonial Women’s Writing” L’Esprit Créateur 33.2 (Summer).
1993.
Mule, Katwiwa. 1997. “Negotiating between the Tomb and the Womb: Mariama
Bâ’s So Long a Letter,” in Contemporary African Literature and the
Diaspora, ed. Olga Barrios and Bernard W. Bell (Salamanca, Spain:
Universidad de Salamanca, p.131–39.
Mulher negra. 1988. Dossiê sobre a discriminação racial. São Paulo: Conselho Estadual
da Condição Feminina/ Comissão da Mulher Negra do C.E.C.F.
Mulher negra. 1990. Resistência e soberania de uma raça. Petrópolis: Vozes com Agentes
de Pastoral Negros.
MULLER, JEAN- “Where to live? ‘Widows’ Choices Among the Rukuba” in Widows
CLAUDE. 1986 in African Societies. Ed. Betty Potash. Stanford, California: Stanford
University Press.
Mutiso, G.C.M. 1974 Socio-Political Thought in African Literature. London, Macmillan
Press Limited.
Mutiso, G.C.M. 1977. “Women in African Literature”, in East African Journal.March:4-14.
Naess, A. 1956. Democracy, Ideology and Objectivity. Oslo.
Nagenda, John. 1968. In Per Wasberg. Ed. The Writer in Modern Africa. Stockholm:
Uppsala
Naphy, William. 2006. Born To Be Gay: História da Homossexualidade. Lisboa: Edições70.
Nascimento, Roseli. 1987. “A mulher negra na literatura brasileira.” Criação crioula, nu
elefante branco. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado. 131-133.
Nasser, Nerun. Ed., 1980. “Achebe and his Women.” African Literature About Africa. Lemelle
Tilden J. Et al., eds. New York. P.21-28.
Ndisi, John. 1979. A Study in the Economic and Social Life of the Luo of Kenya.
Uppsala: Scandinavian Institute of African Studies.
Negrão, E.V. 1987. “Discriminação racial em livros didácticos e Infanto-juvenis”.
Cadernos de Pesquisa, n.63, Nov.
Neumann, W. Lawrence. Social Research Methods: Qualitative and Quantitative Approaches.
2003. 5th Edition. New York: Pearson Education, Inc.
Newton Stallnecht & “The Comparative Literature: Its Definition and Function” in
Horst Frenz eds. 1961. Comparative Literature: Methods and Perspectives: Carbondale :
Southern Illinois Press.
Newton, Judith Lowder. Women, Power and Subversion: Social Strategies in British Fiction
1985. 1778-1860. New York: Methuen Inc.
Nfah-Abbenyi, Juliana Gender in African Women’s Writing. Identity, Sexuality and
Makuchi. 1997. Difference. Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press.
Ngara, Emmanuel. 1985. Art and Ideology in the African Novel. London: Heinemann.
Ngara, Emmanuel. 1987. Art, and Ideology in the African Novel: A Study of the Influence of
Marxism on African Writing. London: Heinemann.
Ngcobo, Laurenta, ed, Let it be told: Black Women Writers in Britain. London,
1988. Virago.
Ngcobo, Laurenta. 1985. The African Women Writer and My Life and my Writing, Kunapipi,
7.2, 1985, p81-86.

499
Ngcobo, Laurenta. 1988. ‘African Motherhood: Myth and Reality’ in Criticism and ideology.
Ed Kirsten Holst Petersen (Uppala: Scandinavian Institute of African
Studies, 1988, p141-51.
Ngcobo, Laurenta. Ed. Let it be told: Black Women Writers in Britain., London: Virago.
1988
Nicholson, Linda. 2000. Interpretando o género. Estudos Feministas – Revista do Centro de
Filosofia e Ciências Humanas / Centro de Comunicação e Expressão.
Universidade Estadual de Santa Catarina. Vol.8- nº2.
Nikolayev, Konstantin. The End of Ideology. Trans. Boris Lunkov. Moscow: Novosti Press
1990.
Nkosi, Lewis. 1981. Tasks and Masks. Harlow: Essex , Longman.
Nnaemeka Obioma Ed. Sisterhood, Feminisms and Power: From Africa to Diaspora.
Trenton: Africa World Press.
Nnaemeka Obioma. 1995. “Feminism, Rebellious Women, and Cultural Boundaries: Re-
reading Flora Nwapa and Her Compatriots.” In Research in African
Literatures 26.2. p.80-113.
Nnaemeka Obioma. 1998. “Introduction. Reading the Rainbow.” Id.In Obioma Nnaemeka (ed).
N Obioma Nnaemeka (ed). Sisterhood Feminism and Power. From
Africa to the Diaspora. Trenton, NJ Asmara: Africa World Press.
P.1-35.
Nnaemeka, Obioma. 1997. “ Urban spaces, women’s places: polygamy as sign in Mariama Bâ’s
novels.” In The Politics of (M)Othering: Womanhood, Identity and
Resistance in African Literature, edited by Obioma Nnaemmeka.
London, Routledge.
Nnaemeka, Obioma. 2003. Nego-Feminism: Theorizing, Practicing and Pruning Africa’s Ways.
Signs: Journal of Women in Culture and Society. 29 (2): 357–385.
Nnolim, Charles. 1994. “A House Divided: Feminism in African Literature.” Helen
Chukuwuma (ed.) Feminism in African Literature. Enugu, New
Gnerations Books .p.248-261
Nos, Francisco. 1998. A Escrita Infinita (Ensaio sobre a Literatura Moçambicana) Maputo,
Livraria Universitária.
Nos, Francisco. 2002. Império, Mito e Miopia. Moçambique como Invenção Literária.
Lisboa, Caminho.
Novais, Maria do Céu, and “Unpublished Interview with Paulina Chiziane.” Lusa Press Agency
Francisco Assunção. 1997. at Frankfrut Book Fair.
Nwachukwu-Agbada, J. “’One Wife Be for One Man’: Mariama Bâ’s Doctrine for
O. J. 1991. Matrimony.” Modern Fiction Studies 37.3: 561-73.
Nwankwo, Chimalum. “Emecheta’s Social Vision: Fantasy or Reality?” in Ufahamu. Vol.
1988. XVII, Nº.1. Fall: 35-43.
Nwapa, Flora (1998) “Women and Creative Writing in Africa” in Feminism and Power
from Africa to the Diaspora, ed. O. Nnaemeka, p.89-99. NJ: Africa
World Press.
Nzegwu, Nkiru. 2004. “Cultural Epistemologies of Motherhood: Redefining the Concept
‘Mother’, in in Jenda: A Journal of Culture and African Women
Studies, Issue 5, Africa Resource Centre. (www.jendajournal.com
O’Brien, John. 1973. “Alice Walker.” Interviews with Black Writers. ED. John O’Brien.
New York, Liveright. P.184-211.
Oakley, Anne. 1987. Sex, Gender, and Society. Lodon: Gower Publishing Company.

Oates, Joyce Carol. 1980. “Is There a Female Voice?” In Gender and Literary Voice. ED. Janet

500
Todd. New York / London: Holmes and Meier Publishers, Inc.
O'Barr, Jean. 1987. "Feminist Issues in the Fiction of Kenya's Women." African
Literature Today. 15 (1987): 55-70.
Obbo, Christine. 1980. African Women: Their Struggle for Economic Independence.
London: Hutchinson University Library for Africa / Zed Press.
Obiechina, E.N. 1975. Culture, Tradition and Society in the West African Novel. Cambridge
University Press.
Obioma Nnaemeka (ed) “Urban Spaces, Women’s Places: Polygamy as Sing in Mariama Bâ’s
1997. Novels”. The Politics of (M)Othering: Womanhood, Identity and
Resistance in African Literature. London and New York, Routledge.
62-19.
Ogundipe –Lesile, Molara, ‘The Female Writer and her Commitment’ Women in African
1984 Literature Today. 15: p5-13.
Ogundipe –Lesile, Molara. ‘African Marxists, Women, and a Critique of Everyday Life’
1987. Journal of African Marxist 10: p.37 -42.
Ogundipe –Lesile, Molara. ‘African Women, Culture and Another Development’ Journal of
1987. African Marxist 10: p.1-9
Ogundipe –Lesile, Molara. ‘The Female Writer and her Commitment’ Women in African
1987. Literature Today 15: p5-13.
Ogundipe-Leslie, “African Women, Culture and Another Development.” Journal of
Omolara. 1984. African Marxists 5. P.1-9.
Ogundipe-Leslie, African Women, Culture and Another Development.” In: Id.
Omolara. 1994. Recreating Ourselves. African Women and Critical Transformations.
Trenton, NJ. Africa World Press. 1994a.p.21-41.
Ogundipe-Leslie, “Stiwanism: Feminism in an African Context. 1994b: 207-241.
Omolara. 1994.
Ogunyemi, Chikwenye “Buchi Emecheta: The Shap-ing of a Self.” Komparatistische Hefte 8
Okonjo. 1983. p. 65-78.
Ogunyemi, Chikwenye “Womanism: The Dynamics of the Contemporary Black Female
Okonjo. 1985. Novel in English.” Signs 11 p.63-80.
Ohaeto, Ezenwa. 1987. “Replacing Myth with Myth: The Feminist Streak in Buchi
Emecheta’s Double Yoke” in Critical Theory and African Literature.
Eds. Vanamali, Oko and Iloeje. Ibadan: Heinemann Educational
Books Limited: 214-224.
Ojo-ade Femi. 1983. “Female writers, male critics” in Recent Trends in Nigerian Novel,
African Literature Today. 13. (ed) by Jone, E.D, London,
Heinemann. p.158-179.
Ojo-ade Femi. 1983. Mariama Bâ’s Une si longue letters” in African Literature Today,
1982, 12: 71-87.
Ojo-Ade, Femi. 1982. “Still a Victim? Mariama Bâ’s Une si longue 501ocied.” African
Literature Today 12: 71-87.
Ojo-Ade, Femi. 1996. ”Contemporary South African Theatre and the Complexities of
Commitment.” New Trends and Generations in African Literature,
Eldred Durosimi Jones and Marjorie Jones, eds. London: Africa
World Press. P. 120-134
Ojo-Ade, Femi. 1996. Buchi Emecheta: “Second-Class Citizen, Second Sex, Slave” in
Configuring The African World: Essays on Continental and
Diasporic Literatures and Culture” by Femi Ojo-Ade. Trenton,
Africa World Press. P.113-126.
Oko, Akomaye. 1991. The Tragic Paradox. Ibadan: Kraft Books, Lagos.

501
Oko, Emelia. 1996. “The Female Estate: A Study of the Novels of Buchi Emecheta.”
Feminism and Black Women’s Creative Writing: Theory, Practice,
and Criticism. Ed. Aduke Adebayo. Ibadan, Nigeria: AMD, 1996.
91-109.

Okonjo, Kamene. 1975. “The Role of Women in the Development of Culture in Nigeria” in
Women Cross Culturally: Change and Challenge. Ed. Ruby R.
Leavitt. The Hague, Paris: Mouton Publishers.
Okonjo, Kamene. 1976. “The Dual-Sex Political System in Operation: Igbo Women and
Community Politics in Mid-Western Nigeria” in Women in Africa.
Eds. N. J. Hafkin, and E.G. Bay. Stranford: Stranford Univerity
Press.
Okonjo, Kamene. 1983. “Sex Roles in Nigerian Politics” in Female and Male in West Africa.
Ed. Christine Oppong. London: George Allen and Unwin.
Okonjo-, Unokanma. The Impact of Urbanization on the Ibo Family Structure. Gottingen:
1970. Gerhard Munch Offsettdruck.
Okonjo-Ogunyemi C. “Womanism: The Dynamics of the Contemporary Black Female
1985/86. Novels in English” Signs: Journal of Women in Culture and Society
11.p.63-80.
Okonjo-Ogunyemi C. “Women in Nigerian Literature” in Perspectives on Nigerian
1988. Literature. Vol. I Ed. Yemi Ogunbiyi. Lagos: Guardian Books
Limited.
Okonjo-Ogunyemi C. Africa Wo/Man Palava. The Nigerian Novel by Women. Chicago,
1996. London, The University of Chicago Press.
Okonjo-Ogunyemi C. “Did Any Body Disappear? Covering Womanist Sights.” Lecture for
1997. Conference on “Female Writing: The Disappearance of the Body?” at
Literaturwerkstatt Berlin, May 12-16.
Okpweho, Isidore. 1977. “The Priciple of Traditional African Art”, The Journal of Aesthetic
and Art Criticism, vol.35, nº 3.
Oliveira, Eduardo (Org). Quem é Quem na Negritude Brasileira. São Paulo: Congresso
1998 nacional.
Oliveira, Fátima, Matilde “A mulher negra na década: a busca da autonomia.” Cadernos
Ribeiro, and Nilza Iraci Geledés 5. São Paulo: Geledés.
Silva. 1985.
Oliver, Paul. 1984. Songstresses and Stains. New York: Cambridge University Press.
Olney, James (1998). Memory & Narrative: The Weave of Life-Writing. Chicago. Chicago
University Press.
Olney, James 1972. Metaphors of Self: The Meaning of Autobiography. Princeton, NJ,
Princeton University Press.
Olney, James 1980. Autobiography: Essays Theoretical and Critical. Princeton, NJ,
Princeton University Press.
Olsen, Tillie. 1978. Silences. New York. Delacorte.

Omolade, Barbara. 1985. “Black Women and Feminism.” In Hester Eisenstein; Aliice Jardine
(ed). The Future of Difference. New Brunswick, N.J., Rutgers
University Press.p.247-257.
Ong, Walter J. 1982. Orality & Literacy: The Technological of the Words. London:
Methuen.
Onoge, Omafume. 1985. “Towards a Marxist Sociology of Literature” in Marxism and African
Literature. Ed. Georg M. Guggelberger. London: Africa World Press.

502
Onunwa, Udobata. 1988. “The Struggle for Liberation of Women in Third World Nations: The
Ambiquities of the Church” Ufahamu. Vol. XVII. Nº 1 Fall. 44-56.
Onwuejeogwu, M. A. “The cult in the Bori spirits among the Hausa” in, Man in Africa.
1969.
Otto, Rudolf. 1975. The Idea of the Holy. London: Oxford University Press.
Owen, Hilary 2007. Mother Africa, Father Marx: Women’s Writing of Mozambique 1948-
2002. Lewisburg, Bucknell University Press.
Owen, Hilary and Cláudia Antigone’s Daughters? Gender,
Pazos Alonso 2009. Genealogy and the Politics of Authorship in Twentieth-Century
Portuguese Women’s Writing (Lewisburg PA: Bucknell University
Press).
Owen, Hilary. 1999. “ Noémia de Sousa: Engendering Mozambique.” In A Mulher
Escritora em África e na América Latina, edited Momplé, Lília.
1999. “edited Martinho, Ana Maria Mão-de-Ferro. Evora, NUM.
OWEN, Hilary. 2008. OWEN, Hilary “A língua da serpente: a auto-etnografia no feminino
em Balada de Amor ao Vento de Paulina Chiziane”. In: RIBEIRO,
Margarida Calafati e MENEZES.
Owomoyela, Oyekan (ed). A History of Twentieth-Century African Literatures. London:
1993. University of Nebraska Press.
Owomoyela, Oyekan. African Literature, An Introduction. Waltham: Mass Crossroads
1979. Press.
Owusu, Kofi. 1979. “Canons Under Siege: Blackness, Femaleness and Ama Ata Aidoo’s
Our Sister Killjoy. Callalloo. 314-363.
Oyewunmi, Oyeronke. The Invention of Woman: Making Sense of Western Gender
1999. Discourses. Minneapolis: University of Minneapolis.
Oyewunmi, Oyeronke. African Women and Feminism: Reflecting on the Politics of
2000. Sisterhood. Trenton: Africa World Press.
Oyewunmi,Oyeronke. African Gender Studies: A Reader. New York: Palgrave Macmillan.
2006.
Padilha, Laura Cavalcante. Silêncios Rompidos: A Produção Textual das Mulheres Africanas In
1997 Porot Maria Bernadette; Reis, Lívia de Freitas e Vianna, Lúcia
Helena (Orgs.). Mulher e Literatura – VII Seminário Nacional.
Niterói, EDUFF.
Palácios, Susana Amália. “Literatura e Feminino”. In Lúcia Helena Vianna (Org), Mulher e
1992. Literatura. IV Seminário Nacional (Niterói, RJ: 26-28 de Agosto de
1991. Anais. Niterói: EDUFF.
Palmer, Eustace. 1972. An Introduction to the African Novel. London, Heinemann.
Palmer, Eustace. 1975. “A plea for objectivity: a reply to Adeola James”, African Literature
Today. 7,p.123-7.
Palmer, Eustace. 1979. The Growth of African Novel. London, Heinemann.
Palmer, Eustace. 1983. “The Feminine Point of view: Buchi Emecheta’s The Joy of
Motherhood”, African Literature Today. 13:p.38-55.
Pascal, Roy. 1960. Design and Truth in Autobiography. Cambridge, MA, Harvard
University Press.
Pateman, Carole. 1989. The Disorder of Women: Democracy, Feminism and Political
Theory. Cambridge, Polity Press.
Peres, Phyllis. 1987. Transculturation and Resistance in Lusophone African Narrative.
Gainesville, University Press of Florida.
Peres, Phyllis. 2002. “Border Writing, Postcolniality, and Critical Difference in the Works
of Orlanda Amarílis.” In Lusosex: Gender and Sexuality in the

503
Portuguese Speaking World, edited by Susan Canty Quinlan and
Fernando Arenas. Minneapolis, University of Minnnesota Press.
Perpétua, Elzira Divina. “Traços de Carolina Maria de Jesus: Gêneses, Tradução Recepção de
2000. Quarto de Despejo”. Tese de Doutoramento. Belo Horizonte, Fale/
UFMG.
Perpétua, Elzira Divina. “Aquém do Quarto de Despejo: A Palavra de Carolina Maria de Jesus
2003. nos manuscritos de seu Diários”. In Estudos de Literatura Brasileira
Contemporânea. Brasília, N.22, Jul./Dez.
Perrot, Michelle. (Org) História da Vida Privada: da Revolução Francesa à Primeira
1995. Guerra. São Paulo, Campanhia das Letras. V.4
Perrot, Michelle. 2005. As Mulheres ou os Silêncios da História. Bauru. EDUSC.
Perrot, Michelle. 2007 Minhas História das Mulheres. São Paulo, Contexto.
Perrot, Michelle.ed. 2001. Os Excluídos da História: Operários, Mulheres e prisioneiros. Rio
de Janeiro, Paz e Terra.
Perry, Alison. 1984. “Meeting Flora Nwapa.” In West Africa 3487. June 18. P.1262.
Perry, Ruth. 1980. Women, Letter and the Novel. New York, AMS Press, inc.
Peters, Margaret. 1974. The Ebony Book of Black Achievement. Chicago: Johnson Publishers.
Petersen, Kirsten Holst & A Double Colonization: Colonial and Post-Colonial Women Writing.
Anna Rutherford, ed 1986 Munderstrup & Sydney: Dangoro.
Petersen, Kirsten Holst, ‘Unpopular Opinions: Some African Women Writers’ Kunapipi 8.2-
1985 3. P.107 -20.
Petersen, Kirsten Holst. ‘First Thing First: Problems of Feminist Approach to African
1984 Literature’ Kunapipi 6.3, 1984, p35-47
Peterson, Holst Kirsten. “First Thing First: Problems of a Feminist Approach to African
1995. Literature” In Ashcroft et al The Post-Colonial Reader. London,
Routeledge.
Phillips, Anne. 1995. The politics of presence. Oxford: Oxford University Press.
Pikhtall, Marmaduke. The Meaning of Glorious Koran. New York: New American Library
1953. / Mentor Books.
Piza, Edith 1995. “Da Cor do Pecado” in Revista de Estudos Feministas. Vol.3.Nº.1.
Rio de Janeiro, UFRJ, p.17-39.
Platt, K 1992. Race and gender representation in Clarice’s A menor mulher do” and
Carolina Maria de Jesus ‘ “ Quarto de Despejo”. Afro-Hispanic
Review. 11 (1-3), p.51-57.
Poewe, Karla O. 1981. Matrilineal Ideology: Male-Female Dynamics in Luapula Zambia.
London: Academic Press.
Porter, Abioseh Micheal. “Second Class Citizen: The Point of Departure for Understanding
1988. Buchi Emecheta’s Major Fiction.” The International Fiction Review
15.2 (1988): 123-129.
Porter, Charles. 1986. A. Foreword. Yale French Studies 71 (1986): 1-16.
Porter, Roger J., and H.R. The Voice Within: Reading and Writing Autobiography. New York:
Wolf. 1973. Alfred A. Knopf, Inc.
Potash, Betty, Ed. 1978. Widows in Africa Socieites. Stanford, California: Stranford
University Press.
Prada, José Rafael. 2008. Falemos de Homossexualidade: Orientação Homossexual Ciência e
Consciência Problemas relacionados. Villa Nova de Gaia: Editorial
Perpétuo Soccoro – Unipessoal, Lda.
Praxedes, Rosângela Rosa. Mulheres negras: reflexões sobre identidade e resistência. Disponível
em: http://www.espacoacademico.com.br/026/26rpraxedes.htm.

504
Prescott, Peter S. “ A Long Road to Liberation Review of The Color Purple by Alice
Walker”. Newsweek June 21 1982. P.67-68.
Prescott, Peter S.1985. “A Long Road to Liberation.” “The Review of The Color Purple by
Alice Walker. Newsweek 21 June.p67-68.
Prescott, Peter. 1978. Newsweek. October 16: 112. Qunta, Christine. Ed. 1975. Women in
Southern Africa. London / New York: Allison and Busby Limited: in
Association with Skotaville Publishers, Johannesburg.
Prince, Gerald. 2011. “The Diary Novel: Note for the definition of a Sub-Genre”
Neophilologus. Vol.59, Nº 4 (Autumn 1975) p.477-481; Springerlik,
10 May.
Priore, Mary Del. (Org). História das Mulheres no Brasil. São Paulo, Contexto.
1997.
Proença Filho, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. In Revista Estudos
2004. Avançados. Instituto de Estudos Avançados da USP, 50: 161-193.
Jan.abr.
Proudfit , Charles L. 2008. “Celie’s Search for Identity: A Psychoanalytical Developmental
Reading of Alice Walker’s The Color Purple.” Bloom’s Modern
Critial Interpretation: Alice Walker’s The Color Purple – New
Edition. Ed. Harold Bloom New York: Infobase Publishing.p.89-112.
Proudfit, Charles L. 1991. “Celie’s Search for Identity: A Psychoanalytic Developmental
Reading of Alice Walker’s The Color Purple.” Contemporary
Literature 32 (Spring 1991). p.12-37.
PY, Fernando. 1983. Apresentação. In: Jesus, Carolina Maria de. Quarto de Despejo:
Diário de uma Favelada. 10. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
Queiroz Júnior, Teófilo Preconceito de cor e a mulata na literatura brasileira. São Paulo,
de. 1975. Ática.
Queiroz, Suely Robles de. Escravidão negra em São Paulo. Rio de Janeiro, José Olympio,
1977. Instituto Nacional do Livro, Brasília.
Queiroz, Suely Robles de. Escravidão negra no Brasil. Ática, São Paulo.
1987.
Quigley, Jean. 2000. The Grammar of Autobiography: A Developmental Account.
Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum Associates, Inc.
Rabassa, Gregory. 1997. O negro na ficção brasileira. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro.
Raffaele, Masto. 2003. Eu, Safiya “A História da Mulher nigeriana que sensibilizou o
mundo”, Lisboa: ASA.
RAINHO, Patrícia e “A escrita no feminino e a escrita feminista em Balada de amor ao
SILVA, Solange. 2007. vento e Niketche, uma história de poligamia”. In: MATA, Inocência
e PADILHA, Laura (org.) A mulher em África. Vozes de uma
margem sempre presente. Lisboa: Colibri.
Ramalho, Cristina. 1999. Literatura e Feminismo: Propostas Teóricas e Reflexões Críticas.
Rio De Janeiro, Elo.
Raphaels, Dana, (Ed). “Introduction and Women and Power”, in Being Female:
1975. Reproduction, Power and Change. Hague: Mouton Press.
Register, Cheri. 1975. “American Feminist Literary Criticism: A Bibliographical
Introduction”. In Feminist Literary Criticism: Exploration in Theory.
Ed. Josephine Donovan Lexington: The University Press of
Kentucky: 1-28.
Reid, Inez. 1975. “Together” Black Women. New York, The Third Press.
Reinelt, Janelle. 1984. Resources for Feminist Research 5. Vol.13 Nº.4 Dec/Jan: 5-6.
Reinelt, Janelle. 1986. “Beyond Brecht : Britain’s New Feminist Drama” in Theatre Journal.

505
38.2. May: 154-163.
Reiter, Rayna (ed) 1975. Towards an Anthropology of Women. New York, Monthly Review
Press.
Reuck, Jenny de 1996. “Writing Feminism / Theoretiical Inscriptions in South Africa.” In
M.J Daymond (ed,) South Africian Feminsm. Writing, Theory, and
Criticism 1990-1994. New York and London, Garland Publishing,
Inc. p.37-43.
Reuther, Rosemary R. Sexism and God Talk: Towards a Feminist Theory. London: SCM
1983. Press.
Reuther, Rosemary R. “Christian Quest for Redemptive Community” in Cross Currents
1988. Vol. XXVII Nº. 1 Spring: 3-6.
Ribeiro, Esmeralda. 1987. “ A escritora negra e o seu ato de participar escrevendo.” Criação
crioula, nu elefante branco. São Paulo: Impresa Oficial do Estado,
1987. 59-65. 59-65.
Ribeiro, Fátima. 1995. Uma abordagem do Tema da Prostituição na Poesia de José
Craveirinha. Maputo: Associação Moçambicana da Língua
Portuguesa.
Rice, Philip and Patricia Modern Literary Theory: A Reader. London: Edward Arnold.
Waugh. Eds. 1989.
Rich, Adrienne 1977 Of Women Born: Motherhood as Experience and Institution. New
York, Norton.
Rich, Adrienne. 1979. “When the Dead Awaken: Writing as Revision”, in On Lies, Secrets
and Silence. Ed. Adrienne Rich. New York: W.W. Norton.
Rich, Andrienne. 1979 “Privilege, Power, and Tokenism.” Ms. 8 (September): 42-44.
Richard Barksdale et al, Black Writers of America, A Comprehensive Anthology, New York:
1972. Macmillan Company.
RICHARD, Nelly. 2002 “Experiência e representação: o feminino, o latino-americano”.
In: ______. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política.
Belo Horizonte, Editora UFMG. p. 142-155.
Robert M. Levine “The Vargas Era.” The Brazil Reader: History, Culture, Politics. Ed..
and John J. Crocitti. Ed. Durham: Duke University Press.
1999.
Roberts Helen (ed.) 1981. Doing Feminist Research London, Routledge & Kegan Paul.
Robinson, Daniel. 1986. “Problems in Form: Alice Walker’s The Color Purple.” Notes on
Contemporary Literature. 16 (Jan. 1986): 2
Rodrigues, Raimundo Os Africanos no Brasil. São Paulo, Campanhia Editora Nacional.
Mina. 1980.
Rodriguez, Anabella. “Mozambican Women after the Revolution.” In Third World Second
1983. Sex: Women’s Struggles and National Liberation, edited by Miranda
Davies. London, ZED.
Rosaldo, Michele Z. “Theoretical Overview” in Rosaldo, M.Z.and Lamphere, L.(eds).
1974). Women, Culture and Society. Stanford, Stanford University Press.
Rosário, Lourenço do. “O regresso aos mitos: O Sétimo Juramento de Paulina Chiziane.”
2001. Proler: Literatura, Saber e Lazer. July / August.p.55-62.
Rosário, Lourenço. “Niketche: O Existencialismo no Feminino.”Singularidades II.
Lisboa, Texto Editores, 115-18.
Rosário, Lourenço. 1989. . A Narrativa Africana. Lisboa, ICALP.

Rosseau, Ida Faye. 1975. “African Women: Identity Crisis? Some Observations on Education
and the Changing Role of Women in Sierra-Leone and Zaire” in

506
Women Cross Culturally: Change and Challenge. Ed. Ruby Rohrlich
Leavitt. The Hague, Paris, Mouton Publishers: 41-51.
Rosseau, J. J. 1913. The Social Contract and Other Discourses. Trans. G.D.H Cole.
London: Everyman.
Rothwell, Phillip. 2002. “Momplé’s Melancholia: Mourning for Mozambique.” Portuguese
Studies Review 10, Nº1,p.185-93.
Royster, Philip M. 1986. “In Search of Our Fathers’ Arms: Alice Walker’s Personna of the
Alienated Darling”. Black American Literature Forum 20 p.374-70.
Ruffato, Luiz (ed.) (2004) 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Rio de
Janeiro: Record).
Ruse, Michael. 1990 Homosexuality. Oxford: Basil Blackwell.
Russell, Bertrand. 1936. Power: A New Social Analysis. New York: W.W. Norton.
Ruthven, K.K. 1984. Feminist Literary Studies: An Introduction. Cambridge: Cambridge
University Press.
Ryder, A.F. 1969. Benin and The Europeans: 1485-1879. London: Longman
Sadlier, Darlene (1989) The Question of How: Women Writers and New Portuguese
Literature (New York: Greenwood).
Sáenz-Tejada, Cristina. “Yo también soy brasileña: Historia y 507 ociedade n la obra de
1998. Carolina María de Jesus.” Confluencia: Revista Hispánica de Cultura
y Literatura. 13:2 (1998): 114-124.
Saffiatou K. Singhateh. Female Genital Mutilation: A Call for Global Action. New York:
1993. Women Ink.
Saffioti, Heleith I.B. 1978. Women in Class Society. New York: Monthly Review Press.
Salgueiro, Maria Escritoras Negras Contemporâneas: Estudo de Narrativas: Estudo
Aparecida Andrade. 2004. Unidos e Brasil. Rio de Janeiro, Caetés.
Salinas, Francisco Entre Próspero e Caliban- Literaturas Africanas de Língua
Portugal. 1999. Portuguesa. Galiza: Edicións Laiovento.
Samara, Eni de Mesquita Racismo e racistas: trajetória do pensamento racista no Brasil.
(Org.). 2001. Humanistas, São Paulo.
Sanches, Manuela Ribeiro. Deslocalizar A Europa, Antropologia, Arte, Literatura e História na
2005. Pós-Colonialidade. Lisboa: Edições Cotovia, Lda.
Sanday, Peggy R. 1987 Female Poser and Male Dominance: On the Origin of Sexual
Inequality. Cambridge: Cambridge University Press.
Santos, Boaventura de “ Between Prosoero and Caliban: Colonialism, Postcolonialism and
Sousa. 2002. Inter-identity.” Luso-Brazilian Review 39, nº.2 p.9-43.
Sartre, Jean Paul. 1977. “The Purpose of Writing” cited in Marxism and Literature. Raymond
Williams. Oxford: Oxford University Prress.
Sartre, Jean Paul. 1978. What is Literature? Trans. Bernard Frenchman. London: Methuen
and Co Limited.
Sarvan, Charles “Feminism and African Fiction: the Novels of Mariama Bâ.” Modern
Ponnuthurai. 1986. Fiction Studies 34.3: 453-64.
Sayers, Ramond. 1958. O negro na literatura brasileira. O Cruzeiro, Rio de Janeiro.
Scheub , Harold. 1985. “A review of African Oral Tradição and Literature”, African Studies
Review. Nº 28.
Schildkrout, Enid. 1986. “Widow in Hausa Soceity: Ritual Phase or Social Status” in Widows
in African Societies. Ed. Betty Potash, Stanford University Press..
Schipper, Mineke. 1985. Unheard Words. Women and Literature in Africa, the Arab World,
Asia, the Caribbean and Latin America. London: Allison &
Busby/New York: Schocken Books.
Schipper, Mineke. 1987. “Mother Africa on a Pedestal: the Male Heritage in African literature

507
and Criticism” in Women in African Literature Today. 15.(ed) Jones,
E.D et.al. London, James Currey Ltd. p. 35-54.
Schmidt, Benito Bisso. Grafia da vida: Reflexões sobre a Narrativa Biográfica. In Revista
2004. História Unisinos. V.8,N.10, p.131-142, Jul –Dez.
Scholes, Robert. 1979. Fabulation and Metafiction. Urbana: University of Illinois Press.
Schulman, Alix Kates. “Sex and Power: Sexual Bases of Radical Feminism” in Signs. Vol.5
1980. Nº.41 Summer: 590-604.
Schuma Schumaher e Mulheres Negras do Brasil. Rio de Janeiro, Senac Nacional.
Brazil, Écico Vital. 2007.
Schuster, Paul and An Encyclopaedia of British Women Writers. Chicago / London: St
Schuster, Jane. Eds. 1988. James Press.
Schutt, Russell K. 2006. Investigating the Social World: The Process and Practice of
Research. 6th edition, Thousand Oaks, CA: Pine Forge
Schwarcz, Lilia Mortiz. O Espectáculo da Raças: Cientistas, Instituições e pensamento racial
1993. no Brasil: 1870-1930. Campanhia das Letras, São Paulo.
SCHWARZ, Roberto. Os Pobres na Literatura Brasileira. São Paulo: Brasiliense,
1983.
Scott, Catherine V. 1995. Gender and Development. Rethinking Modernization and
Dependency Theory. Boulder, Lynne Riener.
Scott, Joan Wallach. 1988. Gender and the Politics of History. New York, Columbia University
Press.
Scott, Joan Wallach. 1996. Feminism and History. Oxford, Oxford University Press.
Scott, Joan. 1992. História das Mulheres in Burke, Peter. (Org.) IA Escrita da História:
Novas Perspectivas. São Paulo, Editora da UNESP.p.63-95.
Segal, Lynne. 1987. Is the Future Female? Troubling Thoughts on Contemporary –
Feminism. London: Virago Press.
Selden, Raman. 1988. A Reader’s Guide to Contemporary Theory. Sussex: The Harvester
Press.
Selden, Raman. 1989. Practicing Theory and Reading Literature. Sussex: The Harvester
Press.
Senghor, Léopold Sédar. Léopold Sédar Senghor: Prose and poetry, ed. And trans. John Reed
1965 and Clive Wake, London, Oxford University Press.
Serge Doubrovsky. 2004 Dictionary of Literary Biography, Volume 299: Holocaust Novelists.
Ed. Efraim Sicher. Ben-Gurion University of the Negev: Gale, 2004.
70-6.
Serra, Carlos. 1998. “Pluralidade e Processualidade Identitárias: para um paradigm da
identificação contraditorial.” In Identidade, Moçambicanidade,
Moçambicanização, edited by Carlos Serra. Maputo, Livraria
Universitária, Eduardo Mondlane.
Shchipper, M. 1987. “Mother Africa on a Pedestal: The Male Heritage in African
Literature Criticism”, in Women in Africa Literature. Trenton,
African World Press.
Sheldon, Kathleen. 2002. Pounder of Grain: A History of Women, Work and Politics in
Mozambique. Heinemann, Portsmouth.
Shelton, F. W. 1985. “Alienation and Integration in Alice Walker’s The Color Purple.” In
CLA JOURNAL 28 (June 1985), 382-92.
Shepard, Ray A. 1973. Conjure Tales. New York: Heritage, Dutton.
Sherkovin, et.al. Eds. Social Psychology and Propaganda. Moscow: Progress Publishers /
1985. Institute of Social Sciences: 71-100.
Shockley, Ann A., ed. Afro-American Women Writer, 1746-1933: An Anthology and
508
1988. Critical Guide. Massachusetts: G. K. Hall.
Showalter, Elaine. 1982. “Comment on Jehlen” in Signs 8, 1: 160-164.
Showalter, Elaine. 1983. ”Critical Cross-Dressing: Male Feminists and the Woman of the
Year.” Raritan 3:2 (Fall ).
Showalter, Elaine. 1985. Women, Literature Theory. New York. Pantheon Book.
Showalter, Elaine. 1986. The New Feminist Criticism: Essays on Women, Literature and
Theory. New York: Pantheon Books.
Showalter, Elaine. 1993. Anaquia Sexual. Sexo e Cultura no Fin de Siècle. Trad. Waldéa
Barcellos. Rio de Janeiro, Rocco
Showalter, Elaine. ED. A Literature of their Own: British Women Novelists from Bronte to
1982. Lessing. London: Virago Press.
Shuler, Catherine. 1990. “Spectator Response and Comprehension: The Problem of Kaven
Finely’s Constant State of Desire” in The Drama Review, 34, 1
Spring: 131-145.
Sidonie Smith. 1987 Poetics of Women’s Autobiography: Marginality and the Fictions of
Self-Representation. Bloomington: Indiana University Press.
Siliya, Carlos Jorge. 1996. Ensaio sobre a Cultura em Moçambique. Maputo: n,p.
Silva, José Carlos Gomes Negro em São Paulo: Espaço Público e Cidadania. In NIEMEYER,
Ana Maria; GODOI, Emília P. (Orgs.). Além dos territórios. São
Paulo: Mercado de Letras.
Silva, José Carlos Gomes Os sub-urbanos e a outra face da cidade. Negro em São Paulo,
1990. Cotidiano, Lazer e cidadania. Dissertação d Mestrado, Unicamp.
Silva, José Carlos Gomes. “Memórias da Infância e Juventude em Carolina Maria de Jesus
2007. (1914-1977): In Ponto e virgula, 2:97-112.
Silva, Maria Nilza da. A mulher negra. Disponível em :
http://www.espacoacademico.com.br/022/22csilva.htm
Simões, R (2000) Quarto de Despejo, quarto de despejos. Revista de Literatura
(Vestibular UFMG. Britarães Neto, A. (Ed), 2 p.111-126.
Simpson Catherine. 1981. “Feminism and American Culture” in Dialogue 53, 3:65-68.
Sirleaf, Ellen Johnson. “Power and Empowerment” in The Global Empowerment of Women.
1991. Ed. Jana Everett. Washington DC.: Association For Women in
Development (AWID) Press.
Skidmore, Thomas. 1991. “Fato e mito, descobrindo um problema racial no Brasil. In Cadernos
de Pesquisa, São Paulo. N.79,p.5-16.
Smith, Barbara. 1986. ‘Toward a Black Feminist Criticism’ in The New Feminist Criticism,
ed. Elaine Showalter. London: Virago, p.168-85.
Smith, Dinitia. 1982. “Celie, You a Tree.’” “The Review of The Color Purple by Alice
Walker. Nation 4 Sept. p181-183.
Smith, Harold L. Ed. British Feminism in the Twentieth Century. London: Edward Edgar
1990. Publishing Limited.
Smith, Harold L., ed 1990. British Feminism in the Twentieth Century. London: Edward
Edgar Publishing Limited, 1990.
Smith, Harold L., ed. British Feminism in the Twentieth Century. London: Edward Edgar
1990. Publishing Limited.
Smith, Jessie C. 1996. Notable Black American Women, Book II. Detroit: Gale Research.
Smith, Jessie C., ed. 1992. Notable Black American Women. Detroit: Gale Research.
Smith, R.S. 1969. Kingdoms of the Yoruba. London: Virago Press.
Smith, Sidonie and De/Colonizing the Subject: The Politics of Gender in Women’s
Watson, Julia (eds) 1992 Autobiography. Minneapolis, University of Minneapolis Press.

509
Smith, Sidonie. 1987. A Politics of Women’s Autobiography: Marginality and the Fiction of
Self-Representation. Bloomington, Indiana University Press.
Smith, Sidonie. 1993 Subjectivity, Identity and the Body: Women’s Autobiographical
Practices in the Twenty Century. Bloomington, Indiana University
Press.
Smythe, Mabel M. 1976. The Black American Reference Book. Englewood Cliff, New Jersey:
Prentice-Hall.
Solberg, Rolf. 1983 “The Woman of Black Africa, Buchi Emecheta: The Woman’s Voice
in the New Nigerian Novel.” English Studies 64, p.247-62.
Solberg, Rolf. 1983 “The Woman of Black Africa, Buchi Emecheta: The Woman’s Voice
in the New Nigerian Novel” in English Studies. 64, 3 June: 247-262
Sougou, Omar. 1990. “The Experience of an African Women in Britain: A Reading of
Buchi Emechita’s Second Class Citizen’ in Crisis and Creativity in
the New Literatures in English, ed. Geoffrey Davis & Hena Maes –
elinek (Cross/Cultures 1, Amsterdam & Atlanta, GA: Rodopi, 1990,
p.511-22.
Southhall, R. 1977. Literature, The Individual and Society. London: Lawrence and
Wishart.
Souza, A.L . 2001. Personagens negros na literatura infanto-juvenil: rompendo
estereótipos. In Cavalleiro, E. (Org.). Racismo e anti-racismo na
educação. São Paulo, Summus.
Soyinka, Wole. 1976. Whole, Myth, Literature and the African World. Cambridge:
Cambridge University Press.
Soyinka, Wole. 1976. Myth Literature and the African World. London: Cambridge
University Press.
Soyinka, Wole. 1981. Cited In James Booth. Writers and Politics in Nigeria. London:
Hodder and Stoughton.
Spencer, Dale And Janet U. Anthology of British Women Writers. London: Pandora Press.
Todd. Eds. 1989.
Spencer, Dale. 1985. Man Made Language. London: Routledge and Kegan Paul.
Spencer, Jane. 1989. The Rise of the Woman Novelist: From Aphra Behn to Jane Austen.
Oxford: Basil Blackwell Limited.
Spivak, G. 1987. In Other Worlds: Essays in Cultural Politics. London & New York,
Routledge.
Spivak, G. 1990. The Post-colonial Critiques: Intrerviews, Strategies, Dialogue. Ed.
Sarah Harasym. London & New York, Routledge.
Spivak, G.C. , 1988. “Can the Subaltern Speak?” Cary Nelson and Lawrence Grossberg,
eds. Marxism and the Interpretation of Culture. London: Macmillan.
Stanley, Liz. 1992. The Auto/biographical I: The Theory and Practice of Feminist
Auto/biography. Manchester, Manchester University Press.
Stanton, Domna (ed.) The Female Autobiographer. New York, New York Literary Forum
1984.
Steady, Chioma Filomina. The Black Woman Cross-Culturally. Cambridge Massachusetts:
Ed. 1981. Schenkman Publishng Coy.: 7-41.
Steady, Filomina Chioma “The Structure and Function of Women’s Voluntary Association in
(1974). an African City: A Study of the Associative Process Among Women
of Freetown”. Unpublished D Phil Dissertation, Oxford University.
Steady, Filomina Chioma., The Black Woman Cross-Culturally. Cambridge: MA: Schenkman,
ed. 1981.
Steady, Filomina Chioma., The Black Woman Cross-Culturally. Cambridge, MA: Schenkman.

510
ed. 1981.
Sterling, D. 1984. We Are Your Sisters. New York: Norton.
Stocker, M. Judith. 1998. Sexual Warrior: Women and Power in Western Culture. New Haven
& London, Yale University Press.
Stratton, Florence. 1994. Contemporary African Literature and the Politics of Gender.
London and New York: Routledge.
Stratton, Florence. 1988. "The Shallow Grave: Archetypes of Female Experience in African
Fiction." Research in African Literature 19: 143-69.
Stratton, Florence. 1994. Contemporary African Literature and the Politics of Gender.
London and New York: Routledge.
Stringer, Susan. 1988. "Cultural Conflict in the Novels of Two African Writers, Mariama
Bâ and Aminata Sow Fall." Sage: A Scholarly Journal of Black
Women Student Supplement: 36-41.
Strobel, Margaret. 1979. Muslim Women in Mombassa: 1890-1975. New Haven / London:
Yale University Press.
Stubbs, Patricia. 1979. Women and Fiction: Feminism and the Novel 1880-1920. London,
The Harvester Press.
Sturrock, John 1993. The Language of Autobiography: Studies in the First Person
Singular. Cambridge and New York, Cambridge University Press.
Summer, Colin. 1979. Reading Ideologies: An Investigation into Marxist Theory of Ideology
and Law. London: Academic Press.
Swindells, Julia. 1985. The Uses of Autobiography. London, Taylor & Francis
Taiwo Oladele. 1984. Female Novelists in Modern Africa. London: Macmillan.
Taiwo, Oladele. 1976. Culture and Nigerian Novel. New York: St Martin’s Press.
Taiwo, Oladele. 1984. “Buchi Emecheta” in Female Novelist in Modern Africa. London:
Macmillan.
Tally, Justine. 1987. “Personal Development in the Fictional Women of Alice Walker.”
Revista Canaria De Estudios Ingleses 13.14 (April 1987), p.181-95.
Tate, Claudia. 1983. “Alice Walker.” In Black Women Writers at Work, Edited by
Claudia Tate. New York, Continuum.
Tate, Claudia1983. “Alice Walker.” Black Women Writers at Work. New York,
Continuum.p.175-187.
Taylor, Harriet. 1983. Enfranchisement of Women. Ed. Kate Soper. London: Virago Press.
TEDESCO, Maria do Narrativas da moçambicanidade. Os romances de “Paulina Chiziane e
Carmo Ferraz. 2008. Mia Couto e a reconfiguração da identidade nacional”. Brasília:
Universidade de Brasília, 2008, (tese de doutorado).
Thadious, Davis. “Dictionary of Literary Biography, American Novelist since orld War
1” Gale 6 Detroit, MI 143.
Thadious, Davis. 1984. “Alice Walker’s Celebration of Self in Southern Generations”.
Women Writers of the Contemporary South. Ed, Peggy Whiteman
Pprenshaw. Jackson, University Press of Mississippi. P.39-53.
Thelma Awori.1975. “The Myth of the Inferiority of African Womem”. In Sociéte
Africaine de Culture, La Civilisation de la femme dans la tradition
africaine. Présence Africaine, Paris, p.21-32
Therbon, Goran. 1980. The Ideology of Power and Power of Ideology. London: Verso.
Thiam, Awa. 1978. La parole aux Négresses. Paris: Denoël-Gonthier, 1978, Trans
Dorothy Blair. Speak Out, Black Sisters: Feminism and Oppression
in Black Africa. London: Pluto Press, 1986.

511
Thum, Marcella. 1975 Exploring Black America. New York: Atheneum.
Toni Cade (ed) 1970. The Black Woman: An Anthology. New York, New American
Library.
Towers, Robert. 1982. “Good Men Are Hard to Find,. Review of The Color Purple, by
Alice Walker.” New York Review of Books. Aug.12 p.35-36
Towhe, Esubiyi. 1984. “ Feminism in African Literature? Blah! The Guardian 1 February.
Trigo, Salvato. 1984. Ensaios de Literatura Comparada. Lisboa: Vega Editora.
Ubenta, O. Ubenta. 1993. Revolutionary Aesthetics and the African Literary Process. Enugu:
4th Dimension Publishing Co. Limited.
Umeh, Davidson and “An Interview with Buchi Emecheta.” Ba Shiru: A Journal of
Marie. 1985. African Languages and Literature 12.2 (1985):19-25.
Umeh, Marie Linton. "Reintegration with the Lost Self: A Study of Buchi Emecheta's
1986. Double Yoke. Ngambika: Studies of Women in African Literature. Ed:
Carole Boyce Davies and Anne Adams Graves. Trenton, NJ: Africa
World Press. p. 173-180.
Umeh, Marie. 1980 “African Women in Transition in the Novels of Buchi Emecheta.”
Presence africaine 116, p.190-201.
Umeh, Marie. 1982 “The Joys of Motherhood: Myth or Reality?” Colby Library
Quarterly 18. P.29-46
Umeh, Marie. 1995. “The Poetics of Economic Independence for Female Empowerment:
Na Interview with Flora Nwapa.”, in Research in African Literatures
26.2. p.22-29.
Urdang, Stephanie. 1989. And Still They Dance: Women, War, and the Struggle for Change in
Mozambique. London, Earthscan Publications LTD.,
Valentim, Jorge 2008. Chiziane, Paulina.: Uma Contadora de Histórias no ritmo da
(Contra-)Dança. Revista do Núcleo de Estudos de Literaturas
Portuguesa e Africanas da UFF, Vol. 1, Nº1, Agosto de.
Varga, Kibedi. 1981. Teoria da Literatura, Lisboa: Ed. Presença.
Vasquez, A. Sanchez. Art and Society: Essay in Marxist Aesthetics. Trans. Macros
1973. Riofrancos. London: Merlin Press.
Vasquez, Carmen. 1983. “Towards a Revolutionary Ethics” in Coming Up January.
Venâncio, José Carlos. Literatura e Poder na África Lusófona. Lisboa: Imprensa Nacional –
1992. Casa da Moeda.
Venâncio, José Carlos. Literatura Versus Sociedade. Lisboa: Veja.
1992.
Viana, Maria José Moota. Do Sótão à Vitrine: Memórias de Mulheres. Belo Horizonte, Editora
1995. UFMG.
Vogt, Carlos. 1983. Trabalho, Pobreza e Trabalho Intelectual ( O Quarto de Despejo de
Carolina Maria de Jesus). In Scharcz, Roberto. Os Pobres na
Literatura Brasileira. São Paulo, Brasiliense.
Vogt, Carlos. 1983. “Trabalho, Pobreza e Trabalho Intelectual.” In Schwart, Roberto
(Org.). Os Pobres na Literatura Brasileira. São Paulo, Editora
Brasiliense.
Wa Thiong’o, Ngugi. Homecoming. London: Heinemann Educational Books Limited.
1972.
Wa Thiong’o, Ngugi. Decolonising the Mind: The Politics of Language in African
1986. Literature. London, James Currey.
Walker, Alice, 2003. A Poem Travelled Down My Arm. New York: Random House.
Walker, Alice. 1982. “Embracing the Dark and the Light.” Essence 13:67. January
Walker, Alice. 1983. “Introduction.” In Id. In Search of Our Mother’s Garden. Womanist
512
Prose. San Diego, Jovanovich. XI-XI.
Walker, Alice. 1983. In Search of our Mother’s Gardens: Womanist Prose. London: The
Women’s Press.
Walker, Alice. 1985. “Finding Celie’s Voice.” MS. December.p.71.

Walker, Alice. 1985. “America Should have Closed Down on the First Day a Black
Woman Observed that Supermarket Collard Greens Tasted like
Water.” Ms. 13:53+ January
Walker, Alice. 1985. Finding Celie’s Voice”. Ms. 14:71-2 + December
Walker, Nancy A. 1995. The Disobedient Writer: Women and Narrative Tradition. Austin
University Press.
Walkyria Chagas da Silva “A Mulher Negra Brasileira” em Revista África e Africanidades –
Santos. 2009. Ano 2-n.5 Maio. Disponível em: www.africaeafricanidades.com
Wallace, Michele. 1979. Black Macho and the Myth of the Superwoman. New York: Dial
Press.
Wallace, Michele. 1994. “Imagens Negativas: Para Uma Crítica Cultural Feminista Negras”
in Revista de Estudos Feministas. Vol.2.Nº.3. Rio de Janeiro, UFRJ,
p.65-92
Wallace, Michelle. 1979. Black Macho and the Myth of the Superwomen. New York, Dial
Press
Walsh, Margret. 1987. “The Enchanted World of The Color Purple.” The Southern
Quarterly 25 (Winter 1987). 89-101.
Walton, Priscilla L. 1990. “What She Got to Sing About?: Comedy and The Color Purple.”
Ariel 21 (April 1990),p.59-74.
Ward, Cynthia. 1997. “Bound to matter: The father’s pen and mother tongues.” In The
Politics of (M)Othering: Womanhood, Identity and Resistance in
African Literature, edited by Obioma Nnaemmeka. London,
Routledge.
Ware, Cellestine. 1970. Women Power: The Movement for Women’s Liberation. New York:
Tower Publications.
Washington, M:H. 1982. “Alice Walker: Her Mother’s Gifts”. Ms June.
Washington, Mary Helen, Invented Lives: Narratives of Black Women, 1860-1960. New York:
ed. 1987. Doubleday.
Washington, Mary Helen. “Teaching Black-Eyed Susans: An Approach to the Study of Black
1982. Women Writers.” But Some of Us Are Brave. ED. Gloria T. Hull,
Patricia Bell Scott, and Barbara Smith. Old Westbury:
Feminist.p.208-217.
Wästberg, Per., ed. 1969. The Writer in Modern Africa [African-Scandinavian Writers’
Conference Stockholm, 1967]. New York: Africana.
Watkins, Mel. 1982. “Some Letters West to God.” The Review of The Color Purple, by
Alice Walker. New York Times Book Review 25 June.p.7
Watkins, Mel. 1986. “Sexism, Racism, and Black Women Writers.” The New York Times
Book Review (June 15, 1986):1, p.35-7.
Weber, Max. 1945. Max Weber on Law in Economy and Society. Cambridge: Harvard
University Press.
Weedon, Chris 1997. Feminist Practice and Poststrucuralist Theory. Oxford, Blackwell.
Weedon, Chris. 1987. Feminist Practice and Poststructuralist Theory. New York:
Blackwell.
Weidemann, Jean. 1991. “Opening Remark” in The Global Empowerment of Women. Ed. Jana

513
Everett. Washington DC.: Association For Women Development.(
AWID ) Press
Weintraub, Karl. 1978. The Value of the Individual: Self and Circumstances in
Autobiography. Chicago, IL, and London, University of Chicago
Press.
Wellek, René. 1965. Concepts of Criticism. New Haven: Yale University Press, 1965.
Wells, Julia. 1982. “Passes and Bypasses: Freedom of Movement For African Women
Under the Urban Areas Act of South Africa” in African Women and
the Law: Historical Perspectives. Eds. Margaret Jean Hay and
Mercia Wrights. Boston University Papers on Africa. VII: 125 -150.
Wells, Stanley. Ed. 1988. The Cambridge Companion to Shakespeare Studies. London:
Cambridge University Press.
Welter, B. 1976. “The Cult of True womanhood” in Dimity Convictions: The
American Woman in the Nineteenth Century. Athen, Ohio
Universityy Press.
Wicomb, Zoë. 1996. “To Hear the Variety of Discourses.” In M.J. Daymond (ed.) South
African Feminisms. Writing, Theory, and Criticism 1990-1994. New
York and London, Garland Publishing Inc., p.45-55.
Wikipedia 2008 http://en.wikipedia.org/wiki/polygamy
WILLAMS, Morton. The Yoruba Kingdom in West African Kingdoms. London: Oxford
1967. University Press.
William, Carolyn. 1989. “ ‘Trying to Do Without God.’ The Revision of Epistolary Address in
The Color Purple.” In Writing the Female Voice: Essays on
Epistolary Literature. Eds. Elizabeth Goldsmith. Boston,
Northeastern University Press.
Williams, Claire.2008 “Maidens, Matriarchs and Martyrs: Mozambican Women in the
Works of Lília Momplé.” In Sexual /Textual Empires: Gender and
Marginality in Lusophone African Literature, edited by Hilary Owen
and Phillip Rothwell. Bristol, University of Bristol. Hispanic,
Portuguese and Latin American Studies Department.
Williams, Dolores S. “Black Women’s Literature and the Task of Feminist Theology.” In
1985. Immaculate and Powerful: The Female in Sacred Image and Social
Reality. ed. Clarissa W. Atkinson et.al. Boston, Beacon Press.
Williams, Mellisa S. 1998. Voice, Trust, and memory: Marginalised groups and the failings of
liberal representation. Princeton: Princeton University Press.
Williams, Raymond. Marxism and Literature. Oxford: Oxford University Press.
1977.
Willis, Susan. 1985. “Black Women Writers: Taking a Critical Perspective.” Making a
Difference: Feminist Literary Criticism. Ed. Gayle Green and
Coppelia Kahn. New York: Methuen. P.211-237.
Wills, Dorothy. 1995. Economic Violence in Postcolonial Senegal: Noisy Silence in Novels
by Mariama Bâ and Aminata Sow Fall. In Violence, Silence, and
Anger: Women’s Writing asTransgression. ed. D. Lashgari.
Charlottesville: University Press of Virginia, 158–171.
Winchel, Donna Haisty. Alice Walker. New York: Twayne Publishers; Toronto, Canada.
1982.
Wisker, Gina (ed). 1993. Black Women‟s Writing. New York: St. Martin‟s Press.
Wollstonecraft, Mary A Vindication of the Rights of Women. London: Everyman.
1929.
Woolf, Virginia. 1963. A Room of One’s Own. New York: Harcourt Brace and Jovanovich

514
Inc.
Woolf, Virginia. 1979. “Women and Fiction” in Women and Writing. Introduction by
Michelle Barrett. London: The Women’s Press. First Published in
1929.
Woolf, Virginia. 1985. Um Teto todo Seu. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
Wright, T.R 1988. Theology and Literature. Oxford, Blackwell.
XAVIER, Elódia. 2002. Quarto de despejo: literatura de testemunho? VIII CONGRESSO
INTERNACIONAL ABRALIC. Belo Horizonte, Faculdade de
Letras da UFMG, 2002. CDROM
Yaegar, Patricia. 1996. Geographies of Identity. Ann Arbor: University of Michigan Press.
Young, Iris Marison Inclusion and Democracy. Oxford: Oxford University Press.
Yuval-Davis, Nira. 1997. Gender and Nation. London, Sage.
Zell, Hans M. 1980. “The First Noma Award for Publishing in Africa”, Africa Boook
Publishing Record. 6.3-4, p. 199-201.
Zell, Hans M., Carol A New Reader’s Guide to Afriican Literature. London, Heinemann.
Bundy, and Virginia
Coulon (eds). 1983.

515
Dados do autor
Sunday Adetunji Bamisile, luso-nigeriano, que ao longo do seu
percurso académico estudou na Nigéria e no Brasil, prossegue
actualmente estudos de pós-graduação em Portugal. Tem viajado para
diferentes partes do mundo para participar em congressos e
conferências académicas. Entre 1990 e 1996, Bamisile estudou e
licenciou-se no Departamento de Línguas Estrangeiras da
Universidade Obafemi Awolowo University, Ile-Ife, na Nigéria, uma
das mais antigas universidades daquele país e onde foi professor
assistente entre 1997-2001. Nos anos de 2001 e 2002 também
frequentou o Estágio de Profisionalização, Formação de Professores
de Português como Língua Estrangeira, na Faculdade de Letras da
Universidade do Porto. De 2003 a 2006, obteve o grau de Mestre em
Literatura comparada na Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa. Bamisile tem já publicados vários artigos e ensaios
académicos. Os seus interesses e as suas pesquisas académicas
incluem – estudos sobre o feminismo e a teoria pós-colonial, estudos
comparatistas transnacionais, nas áreas das literaturas africanas de
expressão portuguesa, brasileira e portuguesa.
Bamisile tem um grande interesse pela produção literária e pela
leitura, para além daquela que é motivo das suas pesquisas, como
também pelo cinema, pela música, particularmente pelo fado e juju,
formas musicais de Portugal e do povo Ioruba da Nigéria,
respectivamente. Tem interesse pela prática de atletismo e acredita na
construção de relações de interesses comuns, para além e através das
fronteiras culturais dos diferentes países.
Bamisile ensina literaturas africanas comparadas em Lagos, na
Nigéria, onde prevê continuar a sua carreira como profesor e
investigador.
Oh, minha alma, louva o Senhor!
Oh, minha alma, louva o Senhor!
Que todas as fibras do meu ser exultem,
louvando o santo nome de Deus!
Oh, minha alma, louva o Senhor! Sem
esquecer nenhuma das coisas boas que
tem feito por mim!
Oh, minha alma, ele perdoa todos os
teus pecados, cura-te das tuas doenças!
Quer livrar-te do inferno e encher a tua
vida com a sua bondade, a sua
misericórdia.
Encher-te-á de coisas boas, de tal
forma que a tua vida se renovará como
a da águia!
O Senhor faz justiça a todos os
oprimidos.
ProQuest Number: 28477492

All rights reserved

INFORMATION TO ALL USERS


The quality of this reproduction is dependent on the quality of the copy submitted.

In the unlikely event that the author did not send a complete manuscript
and there are missing pages, these will be noted. Also, if material had to be removed,
a note will indicate the deletion.

ProQuest 28477492

Published by ProQuest LLC ( 2021 ). Copyright of the Dissertation is held by the Author.

All Rights Reserved.


This work is protected against unauthorized copying under Title 17, United States Code
Microform Edition © ProQuest LLC.

ProQuest LLC
789 East Eisenhower Parkway
P.O. Box 1346
Ann Arbor, MI 48106 - 1346

Você também pode gostar