Recortes 2 Portugues
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Comitê Executivo
Pedro Bordinhão e Luis Miguel Gomez
Colaboradores
Adrián Sotelo Valencia, Bernardo Kocher, Carlos Eduardo
Martins, Carlos Serrano, Denise Gentil Lobato, Elias Jabbour,
Heitor Silva, Idilio Grimaldi, Julio Gambina, Javier Vadell, Luis
Miguel Gomez e Ricardo da Silva Gomes
Conselho Científico
Adrian Sotelo Valencia, Denise Gentil Lobato, Elias Jabbour,
Francisco Lopez Segrera, Gabriel Merino, Gustavo Menon, Javier
Vadell, Julio Gambina, Orlando Caputo e Wagner Iglecias
Projeto Gráfico
Pedro Bordinhão
Apoio
LABORATÓRIO DE ESTUDOS SOBRE
HEGEMONIA E CONTRA-
HEGEMONIA/UFRJ
RECORTES DA CONJUNTURA
SUMÁRIO
EDITORIAL ................................................................................................................. 5
O GOVERNO LULA, A POPULARIDADE E O PROJETO DE ESTADO DO PT ........ 9
A ESCALADA DA GUERRA NO ORIENTE MÉDIO ................................................. 27
MILITARIZAÇÃO E FINANCEIRIZAÇÃO: A ECONOMIA DO IMPÉRIO GUIADA
PELA MÁQUINA DE GUERRA ................................................................................. 41
CHINA, RÚSSIA. ALVÍSSARAS ............................................................................... 52
PÊNDULO DE LOBITO: ANGOLA E A GEOPOLÍTICA ENTRE AS GRANDES
RIVALIDADES MUNDIAIS ....................................................................................... 57
PORTUGAL: ENTRANDO NO CICLO EUROPEU CONTEMPORÂNEO POR UMA
“VIA BRASILEIRA” .................................................................................................. 64
GRÃ-BRETANHA E ALEMANHA ............................................................................. 82
120 DIAS DE GOVERNO DE EXTREMA-DIREITA NA ARGENTINA ...................... 87
AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS NO MÉXICO EM 2024.......................................... 93
CONFLITO VENEZUELA E GUIANA: ESSEQUIBO, PETRÓLEO E IMPERIALISMO
.................................................................................................................................. 97
PARAGUAI, BASTIÃO ANTI-CHINA DOS EUA NA REGIÃO ................................107
O PERIGO E AS CONTRADIÇÕES DA POLÍTICA ECONÔMICA DA BOLÍVIA NO
SEIO DO POVO ......................................................................................................111
5 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1
EDITORIAL
arbitragem internacional biombo dos interesses imperialistas, e a defesa por parte dos
Estados Unidos dos interesses de exploração de petróleo da Exxon-Mobil na região.
Idilio Mendez Grimaldi assinala que o Estado paraguaio se encontra profundamente
controlado por máfias vinculadas ao tráfico de cocaína, fraudes eleitorais e à violência
política, sendo um dos bastiões da estratégia imperialista dos Estados Unidos de
militarização da região para afastar a América do Sul da influência chinesa. Paraguai
se soma à Argentina, Equador e Guiana como peças-chaves do poder norte-
americano na região, vinculando-se profundamente à rede de apoio militar e logístico
do Comando Sul. E, por fim, Luís Miguel Gomez Cornejo Urriola, encerra esta edição
da Recortes, abordando a crise da política na Bolívia e destacando as tensões e
fraturas entre os projetos de Estado de Evo Morales e Luís Arce.
Desejamos aos interessados uma ótima e proveitosa leitura.
Editores.
9 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1
segunda leitura, que não necessariamente exclui a primeira, foi a de que a queda de
popularidade se explicaria pela percepção de piora do desempenho da economia
pelos entrevistados. A pesquisa Quaest apontou que 73% dos participantes indicaram
como expressão dessa piora a elevação nos preços dos alimentos, 63% das contas
em geral e 51% dos combustíveis. Essa interpretação baseia-se ainda nos indicadores
macroeconômicos que registram estagnação do PIB no segundo semestre, após forte
crescimento na primeira metade do ano, puxado pelo agronegócio, pelas exportações
e pela expansão do consumo das famílias.
A HIPÓTESE DA ECONOMIA
Como quer que seja, a elevação dos preços dos alimentos e das contas em
geral não atingiu a aprovação de Lula entre os segmentos mais pobres, segundo a
pesquisa Genial/Quaest. Essa oscilou na margem de erro entre 63% em outubro e
64% em dezembro, em 2023, e 61% em fevereiro de 2024. Já o segmento que
percebe renda familiar entre 2 e 5 salários-mínimos registrou queda acentuada de
aprovação. Em outubro de 2023 e fevereiro de 2024 houve uma queda expressiva de
53% a 45%. No Nordeste, a aprovação se manteve constante em 68% entre outubro
de 2023 e fevereiro de 2024, mas no Sudeste houve queda de 49% a 43% e no Sul,
de 50% a 40% no mesmo período.
foram e têm sido manejadas como uma condição indispensável para a vitória eleitoral
em 2022 e para a estabilidade política do governo. Em razão dessa concepção tática,
que afasta o espaço para formulações estratégicas do horizonte, Lula descarta realizar
uma ofensiva política ideológica de elevação da consciência e nível organização
popular e a atua cautelosamente dentro do arcabouço neoliberal e dos limites do que
Ruy Mauro Marini chamou de Estado de 4º poder, onde as forças armadas atuam
como guarda pretoriana do grande capital e do imperialismo estadunidense, servindo
como poder moderador e força de dissuasão de avanços sociais e políticos mais
consistentes.
Diante dessa inércia Campos Neto tomou a ofensiva e articula PEC da autonomia
financeira do Banco Central para completar a operacional já aprovada.
CONCLUSÕES
político neoliberal e das esquerdas com ele comprometidas para gerir o neoliberalismo
como padrão de reprodução do capital. O declínio do neoliberalismo põe em crise a
democracia formal sem inclusão social e a extrema-direita reivindica para si a
condição antissistêmica dirigindo-a contra o liberalismo político, enquanto aprofunda
o neoliberalismo, a destruição de direitos sociais e individuais, a dependência e a
violação à soberania nacional. Abre-se um cenário de dúvidas: terá a centro-esquerda
condição de evitar a vitória do fascismo no curto e médio prazo? Poderá ela se
reinventar? Ou será necessário um processo de destruição criativa para a emergência
de uma nova esquerda hegemônica capaz de atender às necessidades de nosso
povo? A aliança entre o fascismo e o neoliberalismo será capaz de bloqueá-la ou
retardá-la? Por quanto tempo? Essas questões estão em aberto e serão as lutas
sociais que irão respondê-las nos próximos anos.
REFERÊNCIAS
Lenin, Vladimir Ilitch. A Falência da II Internacional. São Paulo: Kairos, 1979 [1915]
Marini, Ruy Mauro (1989) Estado, grupos económicos y proyectos políticos en Brasil
(1945-1988). Mimeo
caso do Irã) quanto na esfera da ação da sua posição sub-imperialista (no caso do
Estado de Israel).
-
Ao analisarmos a conjuntura de crise que se abriu em 7 de outubro de 2023
temos que ter em conta, inicialmente, que a Faixa de Gaza não é causa do conflito
regional atual, mas, antes, é produto do que foi delineado no seu exterior. Encurralada
fisicamente (terra, mar e ar) por Israel e Egito, abandonada tanto pela solidariedade
árabe (pan-arabismo) e/ou muçulmana (ummah) quanto pela orientação
humanista/civilizatória do ocidente (direitos humanos), inviabilizada politicamente pelo
logro de várias resoluções não cumpridas da ONU favoráveis à melhoria das suas
condições, restou à sua imensa população concentrada num pequeno enclave
contendo altíssima taxa demográfica conviver com sua realidade material precária
causada pela “prática social genocida” dos sionistas.
2Para uma definição do termo “islã político” e sua pertinência na análise do Oriente Médio cf. HEKMANT,
implementação da fórmula dos dois Estados, promovido pelos Acordos de Oslo (1993).
A vitória do Hamas no pleito não ultrapassou os 45% dos votos e a derrota do Fatah
não foi inferior a 41%3. Caso este resultado fosse indicado numa pesquisa de boca de
urna poderia ser considerado um empate técnico, se a margem de erro fosse de 2%.
Mesmo considerando que na Faixa de Gaza a densidade eleitoral do Hamas foi mais
expressiva do que na Cisjordânia, o pleito foi proposto para escolher representantes
para o parlamento como um todo; talvez daí tenha surgido um ódio especial dos
dirigentes sionistas para com a população de Gaza e a percepção distorcida que eles
desenvolveram de que o islã político seria o marco definidor das perspectivas políticas
da sociedade civil no enclave. Não, o resultado eleitoral refletiu uma resposta do eleitor
palestino ao cotidiano de “negociações sem solução”, logo seguidas da brutal
continuidade da “prática social genocida” sionista. Nesta clave, o voto vitorioso do islã
político neste pleito representou o “pelo menos eles querem lutar contra a ocupação
do Estado de Israel e fazer algo pelos palestinos”, já que a OLP a) desistiu da
orientação de confrontar o sionismo; b) não construiu o Estado da Palestina; e, c)
tornou-se um apêndice da política sionista de expansão dos assentamentos na
Cisjordânia.
3Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Elei%C3%A7%C3%B5es_parlamentares_na_Palestina_em_2006.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº1 32
dos problemas em que foram envolvidos. Enfim, a relação povo palestino-islã político
na Faixa de Gaza não pode ser suposta em preconceitos, pois o isolamento proposital
a que estão submetidos não fornece condições para a populaçãoexerça livremente
suas opções políticas. Devemos considerar que existe, tal como em qualquer
sociedade sem as amarras do referencial genocida a que estão submetidos os
palestinos, uma pluralidade e riqueza de ideias e correntes políticas presentes na
sociedade civil local.
capazes de bloquear com mísseis e drones não muito sofisticados a entrada de navios
comerciais de grande porte no Mar Vermelho e, daí, inviabilizando a passagem da
navegação pelo Canal do Suez. Os constantes ataques israelenses a altos oficiais
militares iranianos na Síria e os atentados às tropas americanas em suas bases no
Iraque e Síria (bem como a reação a estes) apontam outras duas vertentes do
agravamento da atual crise.
Todos os atores que litigam atualmente contra o Estado de Israel contam com
o apoio material e político do Irã, expressivo, pioneiro e poderoso representante do
islã político. O país persa enfrenta a ameaça de uma instabilidade política induzida
por forças externas, diferença marcante em relação ao rival sionista. Esta situação é
ao mesmo tempo muito mais complexa e também mais simples do que a posição do
Estado sionista. Estado Nacional com fronteiras e instituições definidas há milênios,
herdeiros de tradições políticas sólidas, e com Estado forte, o Irã não possui uma
criar-a-grande-israel/.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 34
-
A análise acima foi desenvolvida antes do ataque iraniano ao território
israelense em 13 de abril de 2024, por conta de uma retaliação ao bombardeamento
com vítimas à sua sede consular em Damasco. A partir de agora devemos considerar
se estamos ou não numa contagem regressiva para o início de um conflito regional
com consequências globais. A questão aqui é perceber se uma nova guerra regional
envolvendo o Irã trará consequências tão danosas para o “Sul Global” (nova
denominação do que fora chamado até a década de 1990 de “Terceiro Mundo) quanto
as que pressupomos terem existido na guerra que este país travou com o Iraque.
atual Estado sionista. O conflito com o Irã não é produto das ambições pessoais de
um dirigente carismático, mas uma correlação de forças oriunda no interior do “Deep
State” sionista em articulação com o imperialismo “clássico” que moldou
meticulosamente várias fronteiras dos Estados Nacionais do Oriente Médio na defesa
dos seus interesses econômicos. Estes foram responsáveis pela própria criação da
expressão “Oriente Médio”, que é produto desta preocupação em formatar através de
uma region building um processo de controle de Estados Nacionais soberanos, mas
fracos e dependentes do poder militar norte-americano e/ou europeu para se
manterem.
Nota-se que tal posição tem sido eficaz operacionalmente. A política social
genocida na Faixa de Gaza e a expulsão, prisão de cidadãos sem ordem judicial,
roubo de terras e assassinatos contínuos do povo palestino na Cisjordânia continuam
com o apoio ativo dos países aliados. Esta adesão solidária ao projeto de pax
israelensis é facilitado pela assimilação por estes aliados de que todo o povo palestino
está irremediavelmente comprometido com o islã político, representado pelo Hamas,
que é tido como um proxy do Irã. Os aliados viabilizam o fornecimento de bens e
serviços necessários tanto a continuidade da vida social da população do Estado
sionista quanto do massacre genocida que está em curso na Faixa de Gaza, malgrado
alguns deles adotem críticas públicas ao processo que sustentam materialmente!!! Em
13 de abril foram efetivos no combate aos artefatos que percorriam os céus da região.
Como dissemos acima Arabia Saudita e Jordânia se compuseram com as forças anti-
Irã. As três potências imperialistas estrangeiras (EUA, Inglaterra e França)
compareceram para amparar esta estratégia, o que acabou por expor a existência de
um fio desencapado: ao invés de terem seus interesses defendidos na região pelo
Estado sionista tiveram que defendê-lo para evitar que o ataque iraniano se
transformasse na guerra repudiada por todos mas desejada pelo Estado sionista. Este
não possui as condições militares e econômicas para tal empreitada e está, pelas
contínuas ações de provocação ao Irã, procurando empurrar a conta da guerra para
seus aliados. Desconsiderando egoísta e levianamente as consequências de um
conflito com o Irã na economia global, no mercado de petróleo e de armas, além de
possíveis conexões que o país persa poderia formar para suportar o esforço de guerra,
os sionistas procuram desesperadamente através da guerra dar conta de forma
imediata da execução com baixo custo daquilo que chamamos de “sionismo externo”.6
6Idem, ibidem.
39 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1
-
São recentes as informações noticiadas que a decisão de invasão de Rafah (no
sul da Faixa de Gaza), onde se encontra um último bastião dos insurgentes, já foi
tomada pelo governo israelense com o apoio e aprovação do governo Joe Biden.
Alega-se que esta ação agressiva se transformou numa válvula de escape para que o
Estado sionista não seja constrangido a reagir no momento ao ataque do Irã ao seu
território, o que provavelmente produzirá um outro ataque iraniano. De qualquer forma,
pontuamos que, ao menos temporariamente, o governo sionista dará uma atenção
suplementar ao sionismo interno. Esta é a sua zona de conforto, pois a dominação
7Idem, ibidem.
8HUNTINGTON, Samuel. O choque das civilizações e a recomposição da nova ordem mundial. Rio de
janeiro: Objetiva, 1997.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 40
desta última parte do enclave é certa. Por outro lado, adiando a decisão de aquecer
os instrumentos que poderiam fazer eclodir uma guerra regional, rechaçada pelos
financiadores do Estado sionista, o governo deste país ganha tempo para elaborar
uma nova estratégia de agendamento da crise com o Irã. O governo sionista tenta
tornar o país persa partícipe de uma guerra que não deseja através de um erro de
conduta na sua política externa e de defesa.
lucro mais baixa. O resultado final vai depender de algum fator exógeno como as
exportações e/ou o gasto militar. É essa a dinâmica econômica que parece influenciar
no avanço da militarização da economia estadunidense, onde os orçamentos de
defesa são gigantescos. O gasto militar é positivamente relacionado com o lucro
financeiro e com o lucro não financeiro. Em outros termos, o gasto militar eleva a taxa
geral de lucro, e ainda, verifica-se nas sondagens dos números que o gasto militar tem
mais forte relação com o lucro financeiro (Akçagün e Elveren, 2021).
O gráfico 1 a seguir ilustra o comportamento de longo prazo da taxa de lucro
das corporações não financeiras nos Estados Unidos para o período de 1929-2022.
Após propensão ao declínio ocorrido em várias décadas, a taxa de lucro inicia uma
tendência de leve subida depois de 2000, interrompida por duas quedas específicas,
na crise de 2008 e na crise da pandemia de Covid, em 2020. É notável a tendência de
forte elevação da taxa de lucro com o início da Guerra na Ucrânia em 2022, um conflito
de alta intensidade na qual o complexo industrial militar americano tem um papel
decisivo tanto na fase de preparação (que remonta a 2014) como no prolongamento
do conflito.
Gráfico 1: Estados Unidos - Taxa de Lucro das Corporações Não Financeiras 1929-2022
12
10
EUA cresce desde 2010. Nos seus cálculos recentes Roberts mostra que estão em
níveis recordes (mais de 16% em 2021/22) e não muito aquém dos níveis mais
elevados da era de ouro do crescimento capitalista em meados da década de 1960.
Porém, esse o efeito positivo não é o mesmo para todos os setores. Atinge
principalmente as sete megaempresas norte-americanas de tecnologia e de meios de
comunicação social e empresas de energia; o resto das empresas norte-americanas
estão a registrar baixa rentabilidade do seu capital. Na verdade, estima-se que 50%
das empresas norte-americanas cotadas não são lucrativas (Roberts, 2024).
Gráfico 2: Estados Unidos - Lucro e Gasto Militar, 1949 - 2023 (Em US$ bilhões de 2023)
3000 1000
Finanancial and Non Financial Industry - Real
900
2500
800
Real Military Expenditure
700
2000
600
Profit
1500 500
400
1000
300
200
500
100
0 0
1949
1952
1955
1958
1961
1964
1967
1970
1973
1976
1979
1982
1985
1988
1991
1994
1997
2000
2003
2006
2009
2012
2015
Fonte: Para o lucro da indústria - BEA (U.S. Bureau of Economic Analysis); para o gasto militar -
SIPRI (Stockholm International Peace Research Institute). Deflator: CPI - Consumer Price Index.
Elaboração própria.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 46
Gráfico 3: Estados Unidos - Taxa de crescimento real da Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) e do
Gasto Militar - 2001-2022 (%)
30
25
20
15
10
-5
-10
Gasto militar DBGG
Fonte: DBGG (Dívida Bruta do Governo Geral): World Economic Outlook. Gasto Militar: Stockholm
International Peace Research Institute - SIPRI. Deflator: CPI. Elaboração própria.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 48
BREVES CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS
AKÇAGÜN, Pelin & ELVEREN, Adem Yavuz (2021). Financialization and
Militarization: an Empirical Investigation. Political Economy Reserch Institute (PERI),
Working Paper no. 545, jun.
ARRIGHI, Giovanni. (1994). The Long Twentieth Century Money, Power, and the
Origins of Our Times. London and New York: Verso.
BARAN, P. and SWEEZY, P. (1966). Monopoly capital: An essay on the American
economic and social order. New York: Monthly Review Press.
ELVEREN, Adem Yavuz (2019). The Economics of Military Spending: a marxista
perspective. Routledge Frontiers of Political Economy.
FANTACCI, Luca & GOBBI, Lucio (2018). Mobile Capital as the Ultimate Form of War
Finance. In: PIXLEY, Jocelyn & FLAM, Helena. Critical Junctures in Mobile Capital.
Cambridge University Press.
FIORI, José Luis (2004). O poder global dos Estados Unidos: formação, expansão e
limites. In: FIORI, J.L. (Org.) O Poder Americano. Petrópolis, Vozes.
GOTT, Molly & SEIDMAN, Derek. Corporate Enablers of Israel’s War on Gaza.
Site Eyes on the ties, 26/10/2023. Disponível em:
https://news.littlesis.org/2023/10/26/corporate-enablers-of-israels-war-on-gaza/
HUDSON, Michael Hudson (2002). Super-Imperialismo. Pluto Press Release.
51 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 2
Elias Jabbour *
da experiência soviética, por sua vez, recoloca no centro dos destinos da Rússia a
sua independência nacional. O pós-URSS não foi seguida pelo reconhecimento do
lugar da Federação Russa no concerto das nações. Ao contrário, foi iniciado um
processo de contínuo cerco militar, indução ocidental a movimentos separatistas
internos e humilhação nacional. Ou seja, passado o desmanche nacional da década
de 1990 ganha força a consciência para quem a vitória completa do Ocidente sobre
qualquer rastro de autonomia nacional ou sistema social estranhos ao capitalismo
liberal demanda, tendo a Iugoslávia como laboratório, no desmembramento
territorial da Rússia.
Diante desta realidade, desde a ascensão de Vladimir Putin ao poder na Rússia,
o país rapidamente se reorganiza enquanto capitalismo de Estado. Ou seja, grande
parte do antigo estoque de ativos estatais foi agrupado sob forma de conglomerados
estatais e uma série de empresas localizadas em setores estratégicos da economia foi
reestatizada. Desde o início dos anos 2000 o país organizou a formação de grandes
conglomerados estatais. Atualmente conta com cerca de 60 conglomerados nos mais
diversos setores da economia, desde óleo e gás até aeroespecial. Eis um ponto
fundamental na resposta sobre a resiliência russa às sanções. A retomada de uma
“economia de guerra”. Interessante notar, neste sentido, que não estamos a lidar com
uma economia que espelha, como a maioria dos países, sua pauta de exportações.
Ao contrário. A particularidade russa é a de ser uma economia industrial, apesar de
ser exportadora de matérias primas. A indústria corresponde a 26,6% do PIB e o setor
de serviços, 67,8%. A questão da segurança alimentar foi alçada ao grau máximo
desde a onda de sanções lançadas em 2014. Os dados são claros e abrangentes: A
Rússia mais do que dobrou sua produção de cereais desde o início deste século. Saiu
de 64 milhões de toneladas em 2000/2001 para 146,2 em 2022/2023. Em 2016, a
Rússia conseguiu igualar a produção de cereais de toda a ex-URSS (que incluía um
grande celeiro, a Ucrânia). Um grande esquema de substituição de importações fora
lançado e passou a ser um princípio fundamental da política industrial russa. Em
princípio, aplicou-se às compras governamentais e posteriormente estendidas às
compras das empresas públicas e mesmo das empresas privadas.
Com esses dados, ainda superficiais, em vista não poderíamos nos
surpreender que apesar de o país sofrer desde 2022, um verdadeiro ataque
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 54
econômico que foi muito além de tudo o que já havia sido feito contra Irã, Coreia do
Norte, ou mesmo China – com previsão inicial das duas potências anglo-saxônicas e
de seus aliados europeus era de que PIB russo caísse cerca de 30% já em 2022, a
inflação alcançasse a casa do 50%, e o rublo russa se desvalorizasse algo em torno
dos 100% - a Rússia resistiu ao impacto imediato das sanções econômicas em 2022.
Em 2023, o PIB russo cresceu 3,5%, sua taxa de desemprego caiu para 2,9%, sua
massa salarial aumentou 8%, sua renda per capita 5% e sua produção industrial
aumentou 9,4%, entre março e agosto do mesmo ano.
Voltamos ao fator China. Irresistível não relacionar o sucesso russo em mitigar
as sanções sem observar uma mudança em sua estratégia comercial pós-2014. Não
é novidade que a China (e a Índia) ampliou sua participação na cesta de exportações
de óleo e gás russos1. Porém, o que importa são os projetos nascidos desde meados
da última década que ao consolidarem uma tendência de longo prazo de unificação
dos territórios econômicos de China e Rússia também se constrói a base material e
territorial do que Xi Jinping chamou de “mudanças jamais vistas em cem anos”. Esta
joint-venture territorial, uma junção dos projetos de “União Eurásica” (Rússia) e
“Iniciativa Cinturão e Rota” (China) começaram a operar com o lançamento da rede
de gasodutos “Força da Sibéria” inaugurada em 2020 e que pode ser considerada o
turning point da estratégia russa de diversificação de receptores de gás e óleo fora
da Europa. A história deste projeto inicia-se no enigmático ano de 2014. Em 21 de
maio de 2014, Rússia e a China assinaram um acordo de gás de 30 anos com um
investimento no valor de US$ 400 bilhões para viabilizar o projeto. A construção teve
início em setembro de 2014. Essa rede de gasodutos fora completada no ano
passado (2023) com uma extensão de 3.371 km dentro do território chinês, dividida
em três seções - norte, centro e sul. Termina em Xangai, passando por nove
províncias e regiões autônomas, ligando- se à rede de gasodutos do Nordeste, à
rede de gasodutos Shaanxi-Pequim e à rede de gasodutos Oeste-Leste. Mais: A
1 A partir de janeiro de 2023, a China passou a liderar a demanda por petróleo russo (55,2 milhões de
toneladas métricas por dia, com base em média de 30 dias consecutivos); é evidente a queda abrupta
de exportações para a União Europeia desde o início do conflito na Ucrânia quando tanto a UE como
os EUA impuseram sanções às importações de petróleo da Rússia. A UE proibiu as importações
marítimas de petróleo bruto a partir de 5 de dezembro de 2022, enquanto os EUA proibiram todas as
importações de petróleo e produtos petrolíferos da Rússia em 8 de março de 2022
55 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1
China deverá ultrapassar a União Europeia como principal consumidor de gás natural
russo após a entrada em funcionamento do gasoduto Força da Sibéria 2 até 2030.
O gasoduto, atualmente em construção, transportará o gás das reservas de Yamal,
na Sibéria Ocidental - a principal fonte de abastecimento de gás à Europa - para a
China. O “Força da Sibéria 2” deve ser analisado com visão de conjunto. Trata-se
do maior movimento feito pela Rússia no sentido de, no estratégico, se desvencilhar
da dependência do mercado europeu de gás. Ou seja, deverá substituir o Nord
Stream 2, que deveria ligar a Rússia à Europa, mas foi abandonado devido ao conflito
na Ucrânia. Uma grande implicação estratégica: ao atravessar todo o território russo
chegando à Mongólia Interior, além de se tornar um passo decisivo na consolidação
da União Eurásica, também é fator que deverá ter grandes impactos no mercado de
energia no mundo. A ver.
Indo mais à fundo estamos a observar a elevação a outro patamar da divisão
social do trabalho em toda a região que envolve tanto Rússia e China quanto em
relação aos seus países fronteiriços. Além disso, a “Economia de Projetamento”
chinesa, além de abrir margem a outra forma superior de acumulação, de orientação
socialista e baseada em “novas forças produtivas qualitativas” está a espraiar sua
influência pela África e Oriente Médio. Em conjunto com a Rússia, tem sido a
inspiração fundamental aos povos em luta pela independência nacional no Níger, Mali,
Burkina Faso em contraposição aberta ao marxismo ocidental e acadêmico que
espelham a decadência da filosofia ocidental pela via do ceticismo e do niilismo
histórico ao separar o mundo entre democracias x autocracias e uma visão negativa
da presença chinesa no Sul Global. A emergência de Rússia e China é mais uma
evidência histórica para quem a Europa deixou, há quase 150 anos, de representar
uma espécie de totalidade civilizatória. A Revolução Russa já fora uma demonstração
de que o eixo da civilização já estava se movendo para fora do “centro”. Tendência
que as revoluções nacionais e populares na periferia tenderam a comprovar. A
esquerda e a perspectiva patriótica e socialista não morreram. O que morreu foi a
filosofia europeia, levando consigo o sopro de vida que o marxismo um dia representou
por lá. Lênin livrou o marxismo da Europa. O caminho está sendo apontado por China
e Rússia. Os dois países que, no século XX, inauguraram a fase da transição da pré-
história da humanidade ao início da verdadeira aventura humana
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 56
Javier Vadell*
A política externa pendular de Angola, tendo como ponto focal o porto de Lobito,
levantou muitas questões. Desde o fim da Guerra Civil, Angola é um país muito
próximo da China. Recentemente, um aceno aos Estados Unidos lançou dúvidas
sobre essa relação privilegiada.
A guerra civil angolana foi o conflito mais longo de África, durando 27 anos e
culminando em 2002. A partir dessa nova realidade pacificada, pode-se dizer que o
parceiro comercial e diplomático extrarregional mais confiável foi a República Popular
da China (RPC), que estimulou o comércio e promoveu investimentos em
infraestrutura. Angola, um grande produtor de petróleo, também se tornou uma fonte
de abastecimento para a economia da China, variando de 7% a 9% do total de petróleo
que a RPC importa do mundo.
O timing foi oportuno para ambos os lados: para a China, pela necessidade
urgente de recursos naturais e energéticos e pelo estreitamento dos laços
diplomáticos com os países africanos, e para Angola, pela necessidade prioritária de
reconstruir a nação. Neste cenário, a China foi crucial para a reconstrução de Angola,
participando em muitos projetos significativos.
Por fim, como menciona o título de nossa análise, devemos destacar aquele
que talvez seja o mais importante trabalho de interconectividade na geopolítica
regional. A recuperação da linha ferroviária Lobito (Benguela)-Luau (Moxico) com mais
de 1.300 quilômetros ligando o porto de Lobito, no Atlântico, à fronteira de Angola com
a República Democrática do Congo (RDC) e a Zâmbia. O custo do investimento foi de
aproximadamente US$ 1,8 bilhão. Três mil trabalhadores angolanos e cerca de mil e
quinhentos trabalhadores chineses trabalharam nesta obra.
Neste contexto, o Presidente João Lourenço, reeleito em 2022, fez uma visita
aos EUA em novembro de 2023. O encontro com o presidente Joe Biden promoveu
as relações diplomáticas e a cooperação bilateral em alto nível. Além de prometer
incentivos ao comércio e investimentos, o foco de interesse foi o corredor de Lobito.
Este complexo de interconectividade inclui: o porto de Lobito e uma ferrovia de mais
de 1.300 quilômetros cuja reconstrução foi levada a cabo pela China, como acima se
destacou. Esta linha ferroviária liga Angola à RDC e à Zâmbia e catapulta ambos os
países para os mercados globais. O objetivo de sua revitalização é melhorar o acesso
aos mercados dos Estados Unidos e da União Europeia para minerais estratégicos de
ambos os países.
tem uma rota planejada para ligá-la à Zâmbia, um país mediterrâneo muito interessado
em ligar o Oceano Pacífico, via Tanzânia2, com o Atlântico, via Angola. Vale a pena
notar que todos os quatro países subsaarianos mencionados são signatários do MdE
da BRI, uma plataforma de infraestrutura liderada pela China.
Neste cenário, a aposta dos EUA em Angola é ousada e vai além dos anúncios
bombásticos a que Washington nos habituou. Biden e Lourenço discutiram os
principais investimentos econômicos dos EUA em Angola, nomeadamente através da
emblemática Parceria para Infraestruturas e Investimentos Globais (PGI) do
presidente norte-americano no Corredor de Lobito, com mais de 1 mil milhões de
dólares em financiamento norte-americano.
2É importante lembrar que, na década de 1960, a RPC financiou o maior projeto de infraestrutura da
África. A Ferrovia Tanzânia-Zâmbia, conhecida como Uhuru ou Tanzara Great Railway, permite à
Zâmbia uma saída para o Oceano Índico.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 62
3 Pequim cancelou as tarifas de importação sobre 98 produtos angolanos que começaram a entrar no
mercado chinês a partir de 25 de dezembro de 2023. Este benefício foi alargado a outros países
africanos.
63 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1
APRESENTAÇÃO
Contudo, a partir de 2011, toda a estrutura que vinha consolidada desde o início
dos anos oitenta, com a normalização do regime democrático burguês (tendo como
marco a revisão constitucional de 1982 e a extinção do Conselho da Revolução, por
meio do qual o Movimento das Forças Armadas exercia uma tutela sobre a nova
democracia), começa a ruir. Isto ocorre pois chega, com toda a força, os efeitos da
crise imobiliária internacional, com grande impacto em Portugal, onde veio a se
combinar a decadência produtiva iniciada com a reversão das conquistas econômicas
democráticas da Revolução dos Cravos e a entrada na CEE (com um salto após a
introdução do euro, que limitou a política monetária, beneficiando a Alemanha) à
política equivocada de apostar na área de bens não-transacionáveis e um governo
social-democrata, do Partido Socialista, dirigido por um articulador considerado
corrupto (e com fortes indícios reais), José Sócrates. Esta crise é vendida em nível
nacional como resultado exclusivo da governação socialista. Com o fim do XVIII
Governo Constitucional, após a rejeição pela coligação negativa de PSD, CDS-PP,
PCP e BE contra o novo Programa de Estabilidade e Crescimento, e a demissão do
Primeiro-Ministro, ascendeu um governo de centro-direita e direita, ultra-neoliberal,
liderado por Pedro Passos Coelho, que realizou uma política recessiva, indo para além
das imposições da Troika que eles trouxeram ao país, verdadeira força diretiva,
composta pela Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário
Internacional. Causaram forte emigração, decadência econômica, destruição do que
restava do setor econômico público e retirada de direitos dos trabalhadores e
aposentados.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 68
Nas eleições ocorridas em 2015, a aliança troikista volta a vencer, mas com
maioria relativa e em minoria em relação ao conjunto das esquerdas (PS, BE, CDU
(PCP e PEV)). A partir da iniciativa do PCP, o cordão sanitário imposto até aquele
momento às forças à esquerda da social-democracia no jogo parlamentar e
governativo começa a cair: o secretário-geral Jerónimo de Sousa propõe uma política
de viabilização parlamentar, realizada por acordo em torno de uma série de
restituições de direitos, aceito pelos demais partidos de esquerda, garantindo um
governo de minoria do PS, reeleito depois em 2019 da mesma forma (mas tendo ficado
à frente desta vez, com maioria relativa). Contudo, como ocorreu na Europa, qualquer
forma de apoio – que foi da viabilização parlamentar à entrada no governo – das forças
à esquerda da social-democracia produziu uma debacle eleitoral desta pela absorção
dos eleitores pela social-democracia. O “cordão sanitário” à esquerda, apesar de
inviabilizar governos de esquerda e o crescimento da esquerda à esquerda da social-
democracia (PS), mantinha um espaço próprio que desacelerava a transição de votos
para a social-democracia (mas que lentamente já ocorria, por exemplo, no Alentejo,
com a perda lenta, mas constante, de votos do PCP para o PS). Apesar da
necessidade da chamada “geringonça” contra um novo governo de destruição
nacional, a dificuldade das demais forças de esquerda (PCP, PEV e BE) de se
diferenciarem, por um lado, dos elementos de não-avanço, e a incapacidade de
colherem os louros dos avanços, levou a um desgaste que culminou no erro de uma
nova coligação negativa que rejeitou, pela primeira vez na democracia, o orçamento
de Estado, em 2021, levando a novas eleições, e uma punição pelos eleitores que
deram uma maioria absoluta ao PS (beneficiada também pela extremamente eficaz e
responsável gestão da pandemia e pelo medo da crescente ameaça fascista).
A nova configuração que sai das urnas em 2022 diminui a pressão à esquerda
do PS, fortalecendo os setores menos progressistas do partido (derrota dos “Jovens
Turcos” de Pedro Nuno Santos), e faz com que o governo estabilize na manutenção
da situação e não desenvolva saídas potenciais. Problemas econômicos que vinham
se acumulando, agravados pelos efeitos da massificação do turismo (motor da retoma
económica pós-crise), com a gentrificação e uma crise urbana tremenda, foram
69 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1
agravados pela nova fase da crise ucraniana com a operação militar especial russa e
a especulação decorrente sob a ruptura das cadeias produtivas (já rompidas durante
a pandemia) e elevação dos custos do gás e eletricidade (problema real na Alemanha,
especulativo em Portugal, não dependente do fornecimento russo), e a inflação dos
alimentos, que tornou os baixos salários portugueses – já pressionados pelo aumento
dos aluguéis e preços de imóveis – ainda mais claros. Ia se configurando uma
tempestade perfeita, que explodiu em fins do ano passado e que culminou nas novas
eleições que levaram Portugal, definitivamente, a entrar no ciclo político europeu
contemporâneo. Mas, a condição que se coloca é: que elementos fizeram uma
aceleração tão grande do processo de transformação interna em Portugal que, em
poucos anos, passou de um país descolado do ciclo europeu para que assuma de
forma tão desenvolvida este ciclo?
A nossa hipótese é que chega, seja pelos laços históricos entre o país e o Brasil,
seja pelas largas comunidades de brasileiros em Portugal, de portugueses no Brasil
(e também de portugueses nos EUA, que ampliam essa tendência, como trataremos
depois); seja pela similaridade de aspectos das duas formações sociais (inclusive pela
aproximação portuguesa da dinâmica da dependência latino- americana); bem como
pelos laços históricos dos fascistas tupiniquins e dos fascistas lusitanos (que remontam
à proximidade entre os integralismos dos dois lados do oceano, o lusotropicalismo, e
mesmo a imigração para o Brasil da ditadura empresarial-militar dos principais
dirigentes políticos e econômicos do salazarismo, como o próprio Marcello Caetano
para o Rio de Janeiro) por mimetismo, interpenetração, conexões e afinidades
eletivas; foi através de uma via brasileira que Portugal entrou no atual ciclo
fascistizante europeu, resultando no crescimento de um partido fascista, o Chega. Este
que, poucos meses depois da aceitação da sua inscrição partidária, em 9 de Abril de
2019, pelo Tribunal Constitucional (apesar de contrariar a Constituição da República
Portuguesa), elege nas legislativas do mesmo ano seu líder e principal articulador, o
“Bolsonaro” português, André Ventura, como deputado único; passa para uma
bancada de doze deputados em 2022, se tornando a terceira força política nacional; e
conquista este ano de 2024 uma bancada quatro vezes maior, novamente como
terceira força, com 48 deputados, e primeiro partido no
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 70
espectro da direita, com exceção do PSD, a ter mais de um milhão de votos, elegendo
– intenção bloqueada na legislatura anterior – o sombrio Diogo Pacheco de Amorim
como um dos vice-presidentes da Assembleia da República. Esta figura pode não
dizer nada aos de fora de Portugal, mas tem uma história notável nas hordas de
extrema-direita: foi dirigente do Movimento Democrático de Libertação de Portugal
(MDLP), uma organização terrorista fascista responsável por ataques bombistas
durante o verão quente de 1975 e o Processo Revolucionário em Curso (PREC), que
vitimou, entre outros, o militante da organização maoísta União Democrática Popular
(UDP), e candidato à Assembleia Constituinte, Padre Max, e sua aluna, Maria de
Lurdes Ribeiro Correia. Ele ainda foi militante do CDS-PP e um dos fundadores do
fascista Partido da Nova Democracia, já extinto.
votos para 100 mil (ainda que não tenha eleito nenhum deputado), com apoio principal
do setor evangélico, inclusive financeiro e político de líderes brasileiros, como os
pastores Marco Feliciano e Silas Malafaia. Esta organização é impulsionada por ex-
membros evangélicos do Chega que consideram que este se moderou.
Nas eleições de 2015 para 2019 e 2022, grande parte da votação dos novos
partidos de extrema-direita, do qual o ex-PNR e atual Ergue-te não conseguiu se
aproveitar, foi devido à migração de votos da direita tradicional CDS-PP e do PSD
(antes centro-direita e atualmente direita). O CDS-PP inclusive, só retornou ao
parlamento em 2024 graças à aliança com o PSD, pois pela primeira vez em sua
história ficou fora da AR, em 2022. Contudo, o crescimento do Chega e do IL, mas
principalmente do primeiro, entre 2022 e 2024, só tem uma explicação: a redução da
abstenção eleitoral, que vinha crescendo desde os mínimos históricos na primeira
eleição pós-fascismo para a Constituinte em 1975 (8,34%), com quebras pontuais e
ligeiras na tendência em 1980, 2002 e 2005. Já em 2022, parte do crescimento da
extrema-direita, após a maior abstenção de todas em 2019, foi deste fator, e entre
2022 para 2024 foi claramente esta a principal causa: a participação eleitoral passou
de 48,57% de eleitores (5.251.064 votantes) em 2019, para 51,42% de eleitores
(5.563.497 votantes) em 2022, para 59,84% de eleitores (6.473.789 votantes) em
2024. Note-se que se houve um aumento dos inscritos para votar, relevante entre
2015 e 2019 (o que explica em parte o crescimento da abstenção, pela alteração do
universo de inscritos totais como eleitores (9.682.553 em 2015 para 10.810.674 em
2019), isto não se viu entre 2019 e 2024, mantendo sempre a mesma fasquia
(10.820.337 em 2022 e 10.818.226 em 2024). Um indicador ainda mais importante foi
o distrito de Faro, único onde o Chega (com 27,19% dos votos) ficou à frente do PS
(25,46%) e da AD (aliança PSD, CDS-PP e PPM) (22,39%), e foi onde a abstenção
mais caiu (10,48 pontos percentuais menos do que 2022). Neste distrito, o Chega teve
nas eleições de 2022 12,3%. Outro exemplo: em Santarém, a abstenção caiu, entre
2022 e 2024, 8,83 p.p., e a votação do Chega cresceu 12,41 pp. Poderia se seguir,
mas é desnecessário, pois este é o padrão. No total, a votação do Chega cresceu
10,89 p.p. de 2022 para 2024, e a abstenção caiu 8,42%, não explicando tudo, mas
grande parte do aumento de votos.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 72
1400000
1200000
Ergue-te
1000000 ADN
800000 IL
688837
Chega
600000
TOTAL
400000
152633
200000
27629
0
2015 2019 2022 2024
governação do Partido Socialista nos últimos anos, amplificado pela ação do judiciário
e das mídias.
Em uma versão acelerada da Lava-Jato, mais pontual – ainda que não solta no
espaço, pois antecedida por várias outras ações de descredibilização – mas que
serviu aos objetivos propostos, tivemos numa ação de lawfare a derrubada de um
governo de esquerda, a colocação de um governo de direita e um salto na força do
fascismo em Portugal. Por uma via brasileira, por esta via brasileira, com todos os
elementos possíveis (de líderes evangélicos brasileiros aos viúvos da ditadura,
passando por policiais, Judiciário e meios de comunicação) Portugal entra,
infelizmente para seu povo e para o progresso no mundo, no ciclo europeu político-
ideológico contemporâneo.
REFERÊNCIAS
Araújo, Amadeu. 2024. “Movimento Zero toma conta do protesto das forças de
segurança”. Expresso, 11 de Janeiro.
Cardoso, Gustavo & Couraceiro, Paulo (Coordenadores). 2024. Comentário político
nos media 2023 Análise ao comentário politico em Televisão, Rádio e Meios online
em Portugal. Lisboa: MediaLab Iscte.
81 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 2
GRÃ-BRETANHA E ALEMANHA
Ricardo Gomes*
Uma das áreas mais afetadas foi o sistema de saúde britânico, um orgulho
nacional. A agenda da austeridade provocou um aumento exponencial na mortalidade
infantil e no retorno do raquitismo. Afetou diretamente as mulheres congelando a
expectativa de vida das mesmas, principalmente nas classes menos afortunadas, é
claro.
Esse pano de fundo foi responsável pela onda nacionalista que tomou o país
resultando no Brexit. Nas áreas mais afetadas pela agenda da austeridade o partido
de Nigel Farage recebeu muito apoio, validando o seu discurso anti-imigração e anti-
UE – a União Europeia acorrentava o desenvolvimento da Inglaterra. Os Tories nada
fizeram para frear Farage, pelo contrário, embarcaram na onda.
ALEMANHA
Guerra Mundial, quando os europeus voltam às armas, eles também podem voltar à
guerra”.
REFERÊNCIAS
FIORI, José Luiz. O Novo Projeto Alemão Para a União Europeia. Em Boletim
Observatório Internacional do Século XXI No. 4 2024.
Global Times: Berlin unveils 1st national security strategy; tries to 'preserve autonomy'
Disponível: https://www.globaltimes.cn/page/202306/1292603.shtml.
mas-grande-de-la-humanidad-y-aseguro-que-la-educacion-publica-es-una-nid06042024/
2 Davos 2024: Discurso especial de Javier Milei, presidente da Argentina, 19 Jan 2024, em:
https://es.weforum.org/agenda/2024/01/davos-2024-discurso-especial-de-javier-milei-presidente-de-
argentina/
3 Casa Rosada, Presidência. Discurso do Presidente da Nação, Javier Milei, na Conferência de Ação
BENEFICIADOS E PREJUDICADOS
4 INDEC. Estimador Mensal da Atividade Económica, EMAE a partir de janeiro de 2024, em:
https://www.indec.gob.ar/uploads/informesdeprensa/emae_03_24628F2CA7A0.pdf
5 INDEC. Índice de Produção Industrial Industrial. Fevereiro de 2024, em:
https://www.indec.gob.ar/uploads/informesdeprensa/ipi_manufacturero_04_24FF1C1F75A2.pdf
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 90
mas ainda mais, no atraso no pagamento das importações de 9,3 bilhões. A isso deve
ser somada a perda de moeda estrangeira devido ao pagamento de juros e outros
aspectos que somam mais de 8.100 milhões.6
Os beneficiários da política do governo Milei são setores econômicos altamente
concentrados, associados à grande produção e exportação de agricultura, energia e
mineração. Todos eles estão associados e ligados à grande propriedade fundiária, à
grande burguesia local e aos investidores estrangeiros.
Se estes são os vencedores, fica claro quem são os perdedores. Em primeiro
lugar, há os aposentados e os trabalhadores ativos, aos quais se somam os pequenos
e médios setores do empresariado que vinculam sua renda ao poder aquisitivo da
renda popular.
Para o primeiro, a questão é dramática, reitera o que vem acontecendo nos
últimos governos, já que a fórmula de atualização da renda previdenciária não resolve
as necessidades dos aposentados e pensionistas, que hoje estão no patamar de 685
mil pesos mensais e a maioria, dois terços dos aposentados (7 milhões de pessoas),
recebem algo como um terço do que precisam para uma vida digna e adequada a
idosos.
Em termos salariais, temos que 40% dos trabalhadores estão em situação
irregular, flexibilizada, com contratos sem previdência. Os rendimentos destes
trabalhadores em situação irregular são piores do que os rendimentos dos
trabalhadores do Estado, que vivem atualmente uma situação de demissões
generalizados: o governo fala em 15 mil desligamentos durante a Semana Santa e
fontes sindicais estão a investigar o número concreto e real dessas demissões, mas o
próprio presidente indicou que o objetivo é despedir 70 mil trabalhadores contratados.
Na verdade, os trabalhadores contratados por um ano agora são reduzidos para três
meses. É uma espada permanente de Dâmocles sobre os funcionários contratados
pelo Estado. O Estado é o maior contratante em situação de irregularidade, portanto,
é o que mais precariza a força de trabalho na Argentina.
Os salários dos trabalhadores irregulares são os que estão em pior situação,
os que mais perderam, seguidos pelo Estado e depois pelo setor privado regularizado.
Com duas questões importantes como agravante, uma, que o governo tem dito
que não endossará atualizações de paridade, segundo avancem os acordos entre
patrões e trabalhadores, o que demonstra os limites da liberdade de mercado:
liberdade de preços para aumentar os preços no mercado, menos o preço da força de
trabalho, um preço que é controlado e que exigirá greves e conflitos. Por outro lado,
estão em curso negociações para restabelecer o imposto de renda sobre os salários,
o que colocaria os trabalhadores com altos rendimentos em relação à média de volta
a pagar impostos para cobrir as necessidades de recursos do país e das províncias.
Como se vê, beneficiários muito concentrados e grande parte da população
argentina prejudicada por essa política de concentração de renda e riqueza.
(148.886 km2), Inglaterra ou Grécia. Moram na região 125 mil pessoas, menos de
30% dos moradores da zona central da cidade de São Paulo (431.106 habitantes) e
cerca de 80% dos habitantes são indígenas, segundo o censo do país.
Figura 3: Blocos com petróleo descobertos na costa da região de Essequibo e distribuição dos
proprietários de cada parte dos blocos
Fonte: BBC
que os ingleses poderiam reivindicar aquela área. Ali nasceu a mina de ouro de Omai,
que se tornaria uma das maiores fontes de renda tanto da colônia Guiana inglesa
quanto da República Cooperativa da Guiana.
A seguir, apresentamos um quadro resumo dos eventos mais importantes
envolvendo a disputa pelo Essequibo.
Tabela 1: Quadro resumo de dois séculos de disputa
1777 O Império Espanhol funda a Capitania Geral da Venezuela, subentidade territorial que
inclui Essequibo.
1811 A Venezuela torna-se independente da Espanha e Essequibo passa a fazer parte da
nascente república.
1814 O Reino Unido adquire a Guiana Inglesa, com cerca de 51.700 km², através de um
tratado com os Países Baixos que não define a sua fronteira ocidental.
1840 Londres nomeia o explorador Robert Schomburgk para definir a fronteira. Pouco
depois, é inaugurada a Linha Schomburgk, que ampliava a Guiana em quase 80.000
km².
1841 A disputa começa oficialmente quando a Venezuela denuncia uma incursão do Império
Britânico em seu território.
1886 Uma nova versão da Linha Schomburgk é publicada, reivindicando mais território.
1895 Os Estados Unidos intervêm sob a Doutrina Monroe após denunciar que a fronteira foi
ampliada de "maneira misteriosa" e recomenda que a disputa seja resolvida em
arbitragem internacional.
1899 É emitida a Sentença Arbitral de Paris, uma decisão favorável ao Reino Unido, com a
qual o território cai oficialmente sob domínio britânico.
1949 É tornado público um memorando do advogado norte-americano Severo Mallet-
Prevost, parte da defesa da Venezuela na disputa em Paris, no qual ele denuncia que
os juízes não foram imparciais, cabe ressaltar que eram dois árbitros britânicos, dois
norte-americanos, um russo e nenhum representante venezuelano. Os
posicionamentos de Severo Mallet-Prevost e outros documentos, revelado bem mais
tarde, servem para que a Venezuela declare a sentença "nula e sem efeito".
1966 Três meses antes de conceder a independência à Guiana, o Reino Unido firma com a
Venezuela o Acordo de Genebra, o qual reconhece a reivindicação venezuelana e se
compromete a buscar soluções para resolver a disputa.
2013 A Corte Internacional de Justiça (CIJ), em Haia, que julga a disputa, proibiu a Venezuela
de tentar anexar Essequibo ao seu território enquanto não houvesse o julgamento.
Fonte: Elaboração do autor
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 104
REFERÊNCIAS
ABDALA, Vitor Referendo na Venezuela aprova incorporação de Essequibo. Agência Brasil, Rio
de Janeiro, 04/12/2023. Disponível em:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2023-12/referendo- na-venezuela-
aprova-incorporacao-de-
essequibo#:~:text=Os%20eleitores%20venezuelanos%20aprovaram%2C%20em,%C3%A9%2
0reivindicad a%20pela%20na%C3%A7%C3%A3o%20vizinha. Acesso em: 14/04/2024.
105 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1
MINISTERIO DEL PODER POPULAR PARA RELACIONES EXTERIORES. Guayana Esequiba historia
de un Despojo. Caracas - Venezuela -2015.
107 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1
A preocupação por parte dos Estados Unidos com a hidrovia não é tanto por
conta da soja e outros produtos agrícolas que são transportados por essa importante
artéria fluvial até o restante do mundo: é a cocaína. Estimativas de organizações
internacionais e não governamentais mostram que o Paraguai é um hub logístico para
o tráfico de cocaína, estimado em 200 toneladas por ano, destinadas principalmente
à Eurásia. O valor da cocaína no velho continente é da ordem de 30.000 dólares por
quilo, então 200 toneladas significam 6.000 milhões de dólares, um quinto do PIB
nacional.
O apoio logístico passa basicamente pelas embarcações do agronegócio que
transportam cocaína pela hidrovia em meio aos produtos primários de exportação,
além do apoio do setor financeiro para a lavagem desses milhões de dólares em
circulação, fluxo financeiro sob controle absoluto do Federal Reserve, o Banco Central
dos Estados Unidos que está empenhado em salvar o dólar de seu colapso gradual.
O tráfico de cocaína também é uma das razões da perene e acirrada luta
interoligárquica no Paraguai, ultimamente com a intervenção direta do Departamento
de Estado e do Comando Sul. Sob o governo de Abdo Benítez, os EUA encurralaram
seu aliado de longa data, o ex-presidente Horacio Cartes, acusado de ser
significativamente corrupto, entre outros, por supostamente manter laços com a
organização político-militar libanesa Hezbollah. No entanto, contraditoriamente, esta
entidade é inimiga feroz de Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro de Israel, que é
amigo próximo e associado de Horacio Cartes.
É aí que se cruza o interesse do regime sionista de Israel nos assuntos das
organizações criminosas que governam o Paraguai. Cartes, quando foi presidente da
República (2013-2018), visitou o amigo Netanyahu em diversas ocasiões, assim como
Jair Bolsonaro, do Brasil, e, recentemente, Javier Milei, da Argentina.
Nos últimos anos, os Estados Unidos mantiveram Cartes, que não pode viajar
para o exterior há vários anos por medo de ser detido e deportado para aquele país,
de pé. Ele acusa diretamente seu sucessor, Abdo Benítez, ambos do Partido
Colorado, de ser o principal articulador de todas as acusações do Departamento de
109 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1
Estado contra ele. Ele e seus associados, incluindo o ex-presidente Juan Carlos
Wasmosy, bem como aliados financeiros do Brasil, Chile e Argentina, teriam perdido
bilhões de dólares ao longo dos anos.
FRAUDE ELEITORAL
governo infante de Daniel Noboa, do Equador, que em prova de sua abjeção ordenou
o recente assalto à embaixada mexicana para prender um exilado naquele posto
diplomático em um ato de agressão sem paralelo contra uma nação soberana, cujo
presidente, López Obrador, não é simpático à Casa Branca.
A mesmo Richarson é quem está conduzindo as aventuras de Javier Milei na
Argentina, que cedeu uma base naval aos Estados Unidos na Terra do Fogo, tudo
para se contrapor à China e, ao mesmo tempo, encurralar o Brasil até que uma
mudança de governo seja alcançada por outro que seja favorável aos Estados Unidos
e seus aliados em sua luta para sufocar a expansão dos BRICS e, eventualmente, da
China.
Como pode ser visto neste breve resumo, o Paraguai, uma ninhada da
geopolítica imperial, desempenha um papel fundamental no coração do continente, a
ponto de até o próprio Elon Musk expandir o serviço de sua empresa Starlink para
cobrir a imensa região do Chaco paraguaio com sinais de satélite, uma rota
privilegiada de cocaína que desce das terras altas até as margens do rio Paraguai.
111 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1
INTRODUÇÃO
de o subsídio ao combustível ser uma grande pressão fiscal, uma vez que, com o
leilão, poderá vendê-lo a um preço mais próximo do preço externo.
Em março do ano passado, foram denunciadas multidões de cidadãos
bolivianos devido à falta de acesso a dólares em bancos e casas de câmbio. Como
solução para este problema cambial, o governo anunciou que o Banco Central de
Bolívia (BCB) — banco cuja função é determinar e executar a política monetária;
executar a política cambial; regular o sistema de pagamentos; autorizar a emissão de
moeda; e, finalmente, administrar as reservas internacionais (BCB, 2024) — fornecerá
dólares.
O país tem um regime de taxa de câmbio fixa estabelecido pelas autoridades.
No entanto, os importadores que precisam operar nas divisas estadunidenses
protestam já que os bancos lhes aplicam uma comissão de até 20% quando tentam
negociar. Consequentemente, este fato agravou a escassez visto que a burguesia
nacional e uma parte da pequena burguesia optaram por dólares no exterior em vez
de possuir esse dinheiro na Bolívia (BCB, 2024).
A contradição inerente a este tipo de neoliberalização econômica reside na
dificuldade do governo e do capital privado em contrariar o pagamento das
importações. Desta forma, a falta de dólares dificulta a capacidade do governo e do
setor privado de pagar as importações. Trata-se de um encargo cada vez maior para
a economia boliviana, especialmente no que se refere a artigos críticos e/ou bens de
uso público, como os hidrocarbonetos, que o país compra atualmente no estrangeiro
e que se tornaram escassos nos últimos tempos no território boliviano. No entanto, o
governo argumenta que a carência de combustível se deve a sabotagens internas e
que a situação é temporária.
Para contrabalançar os impactos econômicos e sociais decorrentes destas
medidas, o governo espera reduzir em US$100 bilhões de dólares por ano o custo do
subsídio aos combustíveis. Ante a baixa disponibilidade de dólares no sistema
financeiro e o aumento do custo das divisas no “mercado negro” que substituiu
efemeramente o “mercado paralelo”, o Instituto Boliviano de Comércio Exterior (IBCE)
lançou medidas neoliberais para evitar a crise econômica e política gerada pelo
governo de Arce, que está desacelerando e enforcando os setores produtivos e
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 116
comerciais que utilizam dólares para comprar e/ou exportar produtos e mercadorias
e/ou contratar serviços no exterior.
Esta escassez de dólares, de acordo com os partidários do governo, geraria
problemas substanciais com os setores agropecuários, florestais, industriais,
farmacêuticos, comerciais e exportadores, visto que seriam afetados ao terem que
parar as suas atividades e operações em curto prazo, levando a uma crise de
sobreprodução, aumento de custos, preços e inflação, impactando na queda do
emprego e crescimento do PIB.
Vale ressaltar que as exportações caíram pouco mais de US$2,8 bilhões de
dólares em 2023 e houve um déficit comercial de aproximadamente US$700 bilhões
de dólares após três anos de superávit comercial, o que leva à baixa circulação do
dólar no país (IBCE, 2024). No âmbito do giro neoliberal que o governo de Arce propõe
para “evitar” a crise que é iminente a curto prazo, decidiram implementar as seguintes
diretrizes com o objetivo de dolarizar o país:
como parte dos US$10 mil bilhões de dólares que estão fora do sistema (IBCE,
2024).
CONCLUSÕES
uma situação concreta para, desse modo, ser possível compreender a conjuntura
nacional e, por conseguinte, a ação política, de forma material, temos que a não
análise de uma situação concreta pode levar à sua teoria equivocada que, por sua
vez, em sua própria natureza resulta em uma conjuntura equivocada que, por
conseguinte, leva-nos a uma ação equivocada. A união, portanto, entre teoria e prática
como ferramenta ativa é indispensável para compreender o real, entender a
conjuntura e enxergar a realidade concreta.
Dito isso, consideramos que o partido MAS e Evo Morales, como seu principal
representante, não devem nunca esquecer a inevitável luta de classes do proletariado
boliviano pelo socialismo, mesmo que isso seja contra seus interesses pessoais. A
luta contra movimentos reacionários, imperialistas e neoliberais do país e da região
faz parte da tarefa revolucionária, hoje mais que nunca. Assim, disso decorre a
necessidade absoluta de que o MAS, como partido político, seja independente e
rigorosamente de classe. Sobre à miopia política de Evo, atribuímo-la à falta de um
programa político do MAS — não um programa desatualizado, mas um programa
novo, que considere novos métodos de ação e táticas que correspondam ao caráter e
aos objetivos dos proletários bolivianos até as últimas consequências e que atendam a
uma nova palavra de ordem: a superação do capitalismo via o socialismo.
REFERÊNCIAS