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VOL II, Nº 1│JUNHO DE 2024

VOL II, Nº 1│JUNHO DE 2024


Editores
Carlos Eduardo Martins, Joana das Flores Duarte e Wilson Vieira

Comitê Executivo
Pedro Bordinhão e Luis Miguel Gomez

Colaboradores
Adrián Sotelo Valencia, Bernardo Kocher, Carlos Eduardo
Martins, Carlos Serrano, Denise Gentil Lobato, Elias Jabbour,
Heitor Silva, Idilio Grimaldi, Julio Gambina, Javier Vadell, Luis
Miguel Gomez e Ricardo da Silva Gomes

Conselho Científico
Adrian Sotelo Valencia, Denise Gentil Lobato, Elias Jabbour,
Francisco Lopez Segrera, Gabriel Merino, Gustavo Menon, Javier
Vadell, Julio Gambina, Orlando Caputo e Wagner Iglecias

Editoração, Diagramação e Revisão


Carlos Eduardo Martins e Pedro Bordinhão

Projeto Gráfico
Pedro Bordinhão

Apoio
LABORATÓRIO DE ESTUDOS SOBRE
HEGEMONIA E CONTRA-
HEGEMONIA/UFRJ
RECORTES DA CONJUNTURA

VOL II, Nº 1│JUNHO DE 2024

SUMÁRIO

EDITORIAL ................................................................................................................. 5
O GOVERNO LULA, A POPULARIDADE E O PROJETO DE ESTADO DO PT ........ 9
A ESCALADA DA GUERRA NO ORIENTE MÉDIO ................................................. 27
MILITARIZAÇÃO E FINANCEIRIZAÇÃO: A ECONOMIA DO IMPÉRIO GUIADA
PELA MÁQUINA DE GUERRA ................................................................................. 41
CHINA, RÚSSIA. ALVÍSSARAS ............................................................................... 52
PÊNDULO DE LOBITO: ANGOLA E A GEOPOLÍTICA ENTRE AS GRANDES
RIVALIDADES MUNDIAIS ....................................................................................... 57
PORTUGAL: ENTRANDO NO CICLO EUROPEU CONTEMPORÂNEO POR UMA
“VIA BRASILEIRA” .................................................................................................. 64
GRÃ-BRETANHA E ALEMANHA ............................................................................. 82
120 DIAS DE GOVERNO DE EXTREMA-DIREITA NA ARGENTINA ...................... 87
AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS NO MÉXICO EM 2024.......................................... 93
CONFLITO VENEZUELA E GUIANA: ESSEQUIBO, PETRÓLEO E IMPERIALISMO
.................................................................................................................................. 97
PARAGUAI, BASTIÃO ANTI-CHINA DOS EUA NA REGIÃO ................................107
O PERIGO E AS CONTRADIÇÕES DA POLÍTICA ECONÔMICA DA BOLÍVIA NO
SEIO DO POVO ......................................................................................................111
5 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

EDITORIAL

A segunda edição de Recortes apresenta um conjunto de análises de espaços


estratégicos da conjuntura mundial realizada por renomados cientistas sociais,
economistas e historiadores. Carlos Eduardo Martins analisa o governo Lula e as
estratégias de Estado do PT indicando estarem determinadas por uma política de
aristocracia e tecnoburocracia de origem operária que pretende partilhar com o grande
capital a gestão do Estado, colocando os interesses corporativos do partido acima dos
interesses populares que pretende representar. A política de frente antifascista com
os neoliberais busca disputar com os fascistas a aliança com o grande capital e lhe
oferece o controle dos movimentos sociais e o apaziguamento político, mantendo o
país nos marcos gerais da dependência, da superexploração dos trabalhadores, das
prerrogativas do capital financeiro, do agronegócio, do monopólio midiático, dos
militares e da hegemonia ideológica da hegemonia liberal estadunidense. Apesar da
aproximação com a China e o multilateralismo através dos BRICS, a integração
regional mantém-se em baixa intensidade e a austeridade fiscal restringe o
desenvolvimento, impulsionando a superexploração e impedindo o surgimento de um
projeto geopolítico que desafie a hegemonia dos Estados Unidos no Hemisfério
Ocidental. O autor questiona a sustentabilidade dessa estratégia de governo nas
esquerdas, corporativa e intermediária, em um país que sofre transferências negativas
de mais-valor e mantém alto nível de exclusão de sua população dos serviços e bens
de consumo essenciais.
Bernardo Kocher discorre sobre o conflito no Oriente Médio entre Israel e
Palestina apontando que a política subimperialista sionista deve ser vista como uma
política de Estado e não como uma estrita política de interesse do governo Netanyahu,
em busca um inimigo externo para superar o risco de derrubada por denúncias de
corrupção. O atentado de 7 de outubro marcou o fracasso da construção do projeto
da grande Israel pela via pacífica, através do isolamento palestino por meio da política
de boa vizinhança estendida a Emirados Árabes, Bahrein e Arábia Saudita. Pretendia-
se criar uma alternativa à nova rota da seda chinesa, que interligasse Europa, e Índia
pelo Oriente Médio, tendo Israel em posição estratégica, e abrir o caminho para a
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exploração das reservas de petróleo do Mar da Gaza. A ação do Hamas desnudou a


face militar da pax israelenses, desgastou a política subimperialista e abriu uma nova
etapa no conflito regional com o Islamismo político dirigido pelo Irã. O autor assinala
que o sionismo interno não é suficiente para sustentar a via militar da política da
Grande Israel. Esta necessita da presença crescente do sionismo externo
impulsionado pelas grandes potências imperialistas, Estados Unidos, Inglaterra e
França para romper o equilíbrio das forças locais, uma vez que o sionismo é um
sistema de poder articulado com o imperialismo. Tal presença eleva o patamar do
conflito a novos níveis e articula o conflito regional a disputas geopolíticas de amplo
espectro em curso no mundo, suscitando o envolvimento crescente de outros atores.
Denise Gentil Lobato aborda a articulação entre a financeirização e os gastos
militares nos Estados Unidos apontando seus impactos sobre a taxa de lucro neste
país e no mundo. Assinala a crescente vinculação entre o rentismo e a defesa no país
norte-americano, a presença central dos grandes bancos nas cinco maiores empresas
produtoras de armamentos e a contradição entre dividendos e investimento que
vulnerabiliza no médio e longo prazo a eficiência militar do imperialismo
estadunidense em relação à afirmação de projetos estratégicos potências emergentes
como a China e a Rússia, baseados em empresas estatais. Elias Jabbour assinala
que o século XXI atualiza com maior profundidade o desafio lançado no século XX à
Europa e ao mundo anglo-saxão pelas revoluções chinesa e russa, que deslocaram
do centro da civilização no mundo para fora da Europa. Provisoriamente derrotada
pelo fim da URSS e a frustrada com as falsas promessas integração numa ordem
liberal e atlantista, a Rússia se reergue por meio de um processo de nacionalização
de seus ativos estratégicos e da articulação com seu entorno asiático, com a economia
do projetamento chinesa e com a Índia. Esta rearticulação permitiu a Rússia anular a
investida militar, a apropriação de suas reservas, o bloqueio financeiro e comercial e
a fuga de capitais que sofreu, dirigidos pelos Estados Unidos e a OTAN. O projeto
russo da União Euroasiática se aproxima ao da Nova Rota da Seda chinesa para
formar um espaço asiático dinâmico com projeções econômicas, políticas e
ideológicas para a África, o Sul global e também a Europa. Javier Vadell aponta a
importância estratégica de Angola na África subsaariana. Destaca a produção de
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petróleo, a localização geopolítica chave no corredor de Lobito que conecta o Oceano


Índico ao Atlântico e a forte vinculação comercial e financeira à China, a quem supre
9% de suas importações de petróleo. O autor indica as oportunidades que se abrem
à Angola e assinala suas iniciativas para manejar as disputas geopolíticas em seu
favor, estabelecendo acordos internacionais para os seus projetos de
desenvolvimento em infraestrutura, tecnologia, comunicações, energias renováveis,
refino, agricultura, comércio e defesa. Destaca o movimento pendular de aproximação
de China e Rússia, de um lado, e de Estados Unidos e União Europeia, de outro,
sugerindo ser esta uma possibilidade para países do Sul global.
Carlos Serrano aponta as razões para a emergência da extrema-direita em
Portugal, situando-a em um contexto histórico mais amplo e estabelecendo paralelos
com o caso brasileiro. Ricardo Gomes relata o declínio material e político da Inglaterra
que se manifesta na perda de popularidade do Partido Conservador e em sua provável
e contundente derrota eleitoral nas eleições do segundo semestre. A liderança do
Partido Trabalhista nas pesquisas aponta para uma possível coalizão vermelha e
verde. O autor analisa o cenário político alemão onde destaca o giro da política
estratégica do país para atender ao alinhamento com os Estados Unidos e OTAN em
razão do conflito na Ucrânia com a Rússia. Isso tem se traduzido na elevação dos
gastos militares, reivindicados pelos Estados Unidos desde Trump, na elaboração de
uma estratégia de segurança nacional, e no rompimento das relações comerciais com
a Rússia que se manifestou no incremento dos preços de energia em 42%.
Julio Gambina faz um balanço dos 120 dias de governo Javier Milei indicando
o seu alinhamento à extrema-direita internacional, aos Estados Unidos e Israel para
defender a ordem mundial capitalista contra qualquer adversário que ponha limites à
exploração da força de trabalho, como o feminismo, o ambientalismo e o antirracismo.
O autor mostra que as medidas de Milei beneficiam o grande capital, em particular, os
exportadores, o agronegócio e o extrativismo, prejudicam às pequenas e medias
empresas voltadas para o mercado interno, e principalmente os trabalhadores e os
aposentados. Adrian Sotelo Valencia analisa o cenário eleitoral no México tendo em
vista as eleições de junho e as políticas do governo Lopez Obrador. Heitor Silva
analisa os determinantes históricos do conflito entre Venezuela e Guiana sobre
Essequibo, destacando a apropriação colonial britânica, o simulacro de uma
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 8

arbitragem internacional biombo dos interesses imperialistas, e a defesa por parte dos
Estados Unidos dos interesses de exploração de petróleo da Exxon-Mobil na região.
Idilio Mendez Grimaldi assinala que o Estado paraguaio se encontra profundamente
controlado por máfias vinculadas ao tráfico de cocaína, fraudes eleitorais e à violência
política, sendo um dos bastiões da estratégia imperialista dos Estados Unidos de
militarização da região para afastar a América do Sul da influência chinesa. Paraguai
se soma à Argentina, Equador e Guiana como peças-chaves do poder norte-
americano na região, vinculando-se profundamente à rede de apoio militar e logístico
do Comando Sul. E, por fim, Luís Miguel Gomez Cornejo Urriola, encerra esta edição
da Recortes, abordando a crise da política na Bolívia e destacando as tensões e
fraturas entre os projetos de Estado de Evo Morales e Luís Arce.
Desejamos aos interessados uma ótima e proveitosa leitura.

Rio de Janeiro, 20 de maio de 2024.

Carlos Eduardo Martins, Joana das Flores Duarte e Wilson Vieira,

Editores.
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O GOVERNO LULA, A POPULARIDADE E O PROJETO DE ESTADO


DO PT
Carlos Eduardo Martins*

AS INTERPRETAÇÕES SOBRE A QUEDA DA POPULARIDADE DE LULA

A publicação da pesquisa sobre a aprovação do governo Lula pela parceria


entre a Genial Pesquisas, uma parceria entre a Genial Investimentos e o Instituto
Quaest, acendeu o debate sobre as razões de sua queda de popularidade. A pesquisa
foi realizada entre os dias 25 e 27 de fevereiro, coincidindo com a manifestação de
Jair Bolsonaro na Avenida Paulista, patrocinada por Silas Malafaia, e suas
repercussões. Foi publicada simultaneamente com dois outros levantamentos do
mesmo Instituto que versam sobre a declaração de Lula a respeito da ação de Israel
em Gaza e sobre a avaliação da Lava Jato, sugerindo possíveis cruzamentos. Outra
pesquisa, a realizada pelo IPEC, antigo Ibope, ratificou a queda de popularidade com
uma metodologia diferente. Enquanto a pesquisa Genial/Quaest usou como principal
variável indicadores binários de aprovação/desaprovação, a pesquisa IPEC utilizou
três categorias, ótimo/bom e regular e ruim/péssimo, útil para medir a intensidade do
apoio ou rechaço, mas que não permite classificar o regular em aprovação ou
desaprovação. Ambas são convergentes em relatar queda de popularidade do atual
Presidente da República.

Duas foram as leituras que ganharam divulgação para explicar a queda da


popularidade de Lula. A predominante, que dominou o noticiário da grande imprensa,
mídia televisiva e eletrônica foi a de que a queda se explicaria em razão das
declarações de Lula sobre a ação de Israel, comparando o massacre em Gaza às
ações de extermínio em massa de Hitler. Essa visão, subliminarmente sugerida pelo
Instituto, foi acolhida pelo secretário de comunicação do governo, Paulo Pimenta, e
divulgada pela grande imprensa e por agências internacionais como a Reuters. A

*Professor Associado UFRJ, coordenador do LEHC, pesquisador do CLACSO e editor da Reoriente


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segunda leitura, que não necessariamente exclui a primeira, foi a de que a queda de
popularidade se explicaria pela percepção de piora do desempenho da economia
pelos entrevistados. A pesquisa Quaest apontou que 73% dos participantes indicaram
como expressão dessa piora a elevação nos preços dos alimentos, 63% das contas
em geral e 51% dos combustíveis. Essa interpretação baseia-se ainda nos indicadores
macroeconômicos que registram estagnação do PIB no segundo semestre, após forte
crescimento na primeira metade do ano, puxado pelo agronegócio, pelas exportações
e pela expansão do consumo das famílias.

Defendo uma terceira hipótese: a de que a queda se explica principalmente


pela estratégia política seguida pelo governo Lula que define como eixo de gravidade
da sua governabilidade a aliança com a centro-direita neoliberal, em relação a qual se
afasta com extrema cautela e minimalismo, considerando ser esse um traço
fundamental de realismo político. Um dos pilares deste enfoque é a rígida política fiscal
levada adiante pelo ministro Fernando Haddad. Tal estratégia que pode facilitar a
governabilidade no curto prazo tende a deteriorá-la aceleradamente no médio e longo
prazo, sendo de alto risco para a liderança política de forças de centro-esquerda, como
mais recentemente aqui na América do Sul, a Argentina de Alberto Fernandez e Sergio
Massa voltou a revelar. Ponderar essa dimensão implica na necessidade de redefinir
o realismo político para incluir margens maiores de autonomia, iniciativa político-
ideológica e mobilização popular como ingredientes necessários de sustentabilidade
política. Ignorar esta exigência implica agravar as dificuldades e deteriorar o principal
ativo com que o Partido dos Trabalhadores conta para infletir a agenda pública: a força
simbólica e o prestígio popular do Presidente Lula. Tal ativo deve se desdobrar e se
articular com a capacidade de organização dos movimentos populares para ganhar
resiliência frente à ofensiva conservadora para restabelecer o comando sobre o
governo federal brasileiro, que tende a se aprofundar à medida que se aproximam as
eleições de 2026. Essa, todavia, não parece ser a escolha de Lula e nem das
principais forças que assessoram seu governo.
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A HIPÓTESE DA PERDA DE POPULARIDADE PELA CRÍTICA A ISRAEL

A hipótese da perda de popularidade pela comparação entre as políticas de


extermínio de Netanyahu na Palestina a de genocídio de Hitler foi sugerida pelo
Instituto Genial/Quest como uma das causas da queda de popularidade. Essa
alternativa foi abraçada pelo Ministro-Chefe da SECOM e pela grande imprensa por
duas razões distintas. Por Paulo Pimenta, para atribuir a um tema da agenda externa,
de relações internacionais, efeitos internos, blindando as políticas econômicas do
governo de qualquer crítica. Em entrevista ao Roda Viva em outubro de 2023, ao ser
perguntado sobre as críticas feitas por Gleisi Hoffman ao Ministério da Fazenda,
Pimenta afirmou estar o governo unido em torno às políticas de Fernando Haddad,
que o representava em sua agenda no plano interno, dentro e fora do Congresso, e
no plano internacional, sendo essa uma decisão do Presidente Lula. Pimenta apontou
que a perda de popularidade de Lula seria provisória, e que o Presidente estaria
contribuindo para a mudança na opinião pública brasileira e mundial sobre o tema e
transformar a agenda internacional de gestão do conflito.

Os grandes conglomerados da mídia eletrônica nacional e internacional,


alinhados com o imperialismo liberal dos Estados Unidos, viram na queda de
popularidade um pretexto para atacar a política externa do governo Lula, atribuindo-
lhe esta responsabilidade. Como sabemos, o governo Lula respaldou a ampliação do
BRICS, restabeleceu os repasses financeiros ao Novo Banco de Desenvolvimento,
reforçou o tema da desdolarização, recusou-se a estabelecer sanções contra a
Rússia, defendeu a negociação entre as partes para estabelecer o fim da guerra na
Ucrânia, reinseriu o Brasil na UNASUL e CELAC e apoia o fim das sanções à
Venezuela e Governo Maduro no restabelecimento do calendário eleitoral na
Venezuela. Tal agenda provoca profundo desconforto e contrariedade nos interesses
estadunidenses e da burguesia dependente e associada. Não é por outra razão de
que uma das primeiras decisões do governo de Michel Temer, após o golpe de 2016,
foi iniciar o desmonte dos instrumentos de integração regional soberana, atuando para
suspender a Venezuela do Mercosul e o Brasil e outros cinco países da UNASUL.
Temer afastou-se da CELAC e não compareceu a V Cúpula em Punta Cana, abrindo
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 12

o espaço para que Bolsonaro suspendesse a participação do Brasil, e foi cofundador


do Grupo de Lima, que tentou articular a invasão e o golpe de Estado na Venezuela,
episódio que fracassou posteriormente em 2019. Jair Bolsonaro extremou a direção
subserviente de política externa, retirando o Brasil da UNASUL, suspendendo a
participação na CELAC, entrando em conflito com o Novo Banco de Desenvolvimento,
e principalmente com a China.

A retomada de uma política externa multilateralista que fortalece a inserção


brasileira no Sul Global incomoda o establisment liberal. Pesquisa do Instituto
Genial/Quaest com o mercado financeiro, de novembro de 2023, antes da
comparação da política de Netanyahu para a Palestina com o genocídio, indicava que
85% desaprovavam a conduta do governo Lula sobre o conflito entre Israel e
Palestina. Matérias na Veja, Estadão, Folha de São Paulo, Valor Econômico e Reuters
destacaram a relação entre a perda de popularidade e as declarações de fevereiro de
2024, quando Lula comparou a política de Netanyahu a de Hitler. Entretanto, essa
relação parece muito pouco provável. Não houve nenhuma manifestação de massa a
favor de Israel, o comício da Paulista fez referências mínimas ao tema, cabendo este
papel a Silas Malafaia, e na própria pesquisa Genial Quaest a percepção favorável a
Israel caiu de 52 a 39%, sendo ultrapassada pela desfavorável que atingiu 41%,
mantendo-se a presença dos que não sabem na margem de erro de 21% para 20%. O
tema parece ter ficado restrito ao andar superior da sociedade brasileira, embora possa
ter repercussão no grupo evangélico, mas não deve ser entendido como variável
independente relevante de mobilização deste grupo. Este grupo vem se mobilizando
pela ação de suas lideranças para proteger Bolsonaro frente aos inquéritos do STF,
em especial o referente a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, e para as eleições
de 2024.
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A HIPÓTESE DA ECONOMIA

A hipótese da economia foi indicada pelo Instituto Genial/Quaest como outra


explicação para a queda de popularidade. Tendo sofrido queda de preços em 2023,
os alimentos voltaram a pressionar o índice de inflação a partir de outubro. Chama à
atenção que a supersafra de 2023 concentrou-se no primeiro trimestre e que o ano
registrou forte expansão da produção de soja (27,1%) e milho (19%), cana de açúcar
(10,9%) e café (8,2%), intensamente vinculados às exportações – inclusive o milho
nos últimos anos-, as quais responderam por mais metade do crescimento do PIB do
ano passado, 1,7% dos 2,9%. Ao mesmo tempo registrou-se expressiva retração na
produção de trigo (22,8%), laranja (7,4%) e arroz (3,5%). Se entre janeiro e setembro
houve desinflação dos alimentos, de outubro de 2023 a janeiro de 2024 os preços
dessas mercadorias subiram 4,38%. A previsão para a produção de grãos, cereais,
oleaginosas e leguminosas este ano é de queda de 3,2%, o que deve se agravar com
o desastre ambiental no Rio Grande do Sul que concentra 70% da produção de arroz
do país. A percepção de subida dos preços dos alimentos por 73% da população tem
reforçado a iniciativa do governo Lula de retomar os estoques reguladores da CONAB
esvaziados durante o governo Bolsonaro. Entretanto, permanecem os problemas
estruturais de subfinanciamento da agricultura familiar, concentração da estrutura
fundiária e sua orientação para as exportações. Apenas 7% do crédito destinado para
a economia brasileira em 2023 foi contratado a taxas subsidiadas, e o investido na
agricultura representeou apenas 1,6% do PIB. Os gastos do BNDES estão muito
abaixo dos níveis alcançados em 2015, representando aproximadamente 54% dos
mesmos e pequeno crescimento em 2023 frente ao ano anterior. Mesmo a Nova
Política Industrial desenhada pelo governo Lula, que contempla R$ 300 bilhões de
investimentos entre 2023 e 2026, parte com taxas de juros subsidiadas, apresenta um
investimento financeiro bastante modesto para suas metas e necessidades do país, e
caso se realize integralmente representa um montante de aproximadamente 2,7% do
PIB no intervalo de quatro anos, reunindo os setores público e privado. Como
sabemos, a taxa de investimento em 2023 foi de 16,5% do PIB, bastante inferior aos
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 14

níveis de 2021 e 2022, de 17,9% e 17,8%, de 2011-13, quando atingiu 20,7%, e de


1971-80, quando alcançou 21,9%.

Como quer que seja, a elevação dos preços dos alimentos e das contas em
geral não atingiu a aprovação de Lula entre os segmentos mais pobres, segundo a
pesquisa Genial/Quaest. Essa oscilou na margem de erro entre 63% em outubro e
64% em dezembro, em 2023, e 61% em fevereiro de 2024. Já o segmento que
percebe renda familiar entre 2 e 5 salários-mínimos registrou queda acentuada de
aprovação. Em outubro de 2023 e fevereiro de 2024 houve uma queda expressiva de
53% a 45%. No Nordeste, a aprovação se manteve constante em 68% entre outubro
de 2023 e fevereiro de 2024, mas no Sudeste houve queda de 49% a 43% e no Sul,
de 50% a 40% no mesmo período.

Como explicar a queda de popularidade já que a elevação dos preços não


afetou o apoio dos segmentos e regiões mais vulneráveis socialmente?

NOSSA HIPÓTESE: O CENTRISMO E A FRENTE POLÍTICA COM O


NEOLIBERALISMO

Em nossa opinião a queda de popularidade se explica pelos limites estratégicos


em que passou a se mover o governo Lula, que reproduz com maior gravidade a
aliança com o capital financeiro e o rentismo, o agronegócio, o monopólio midiático e
os militares, de gestões petistas anteriores, só superado pela virada na política
monetária do segundo mandato de Dilma, o que limita o espaço para a elaboração de
políticas públicas e articulação com os setores populares.

Se o período de 2004-2013 foi definido em sua maior parte pela aceleração do


crescimento econômico, superávits fiscais, e enorme acumulação de reservas
monetárias em razão do boom das commodities e do forte ingresso de capitais
estrangeiros, ampliando a margem de manobra do governo, o golpe de Estado 2016
e a ascensão do neofascismo colocaram como pedra de toque de sua economia
15 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº1

política a austeridade, chave para reestabelecer altas taxas de superexploração da


força de trabalho. O principal pilar deste processo foi a emenda constitucional 95 que
limitou a variação das despesas primárias à inflação por 20 anos. A crise política da
aliança que sustentou o neofascismo e a sua derrota eleitoral abriram o espaço para
a aprovação da emenda constitucional 126/2022, que possibilitou a substituição do
teto de gastos por projeto de lei complementar enviado ao Congresso para definir as
diretrizes orçamentárias. Este novo quadro jurídico-político permite ao governo
aprovar suas propostas orçamentárias por maioria simples. Entretanto, a conquista
deste espaço estrutural não foi acompanhada da iniciativa para liderar a transição
política do país para um novo ambiente político-ideológico e uma nova coalizão de
forças. Ao contrário, a estratégia adotada por Lula para as eleições de 2022 foi a de
disputar com o fascismo a aliança com o neoliberalismo para isolá-lo, aproximando-
se de vários personagens que participaram do golpe de 2016, mas posteriormente se
afastaram da extrema-direita por suas tentativas de solapar o modelo político liberal e
de articular o protagonismo de uma burguesia emergente em troca de fidelidade
política, o que ameaçava a posição hierárquica de segmentos mais tradicionais e
internacionalizados do grande capital e sua autonomia diante do Estado.

A eleição e a governabilidade passaram a ser buscadas por Lula e os


segmentos hegemônicos do Partido dos Trabalhadores garantindo-se ao grande
capital uma margem de segurança maior e um nível de ameaça menor na defesa de
seus interesses do que a aliança com o fascismo poderia proporcionar. Isso implicou
uma agenda que mesclou contemplar os avanços multilateralistas de proteção ao
meio ambiente; diversificar a política externa para aprofundar a parceria com os
BRICS, a América Latina e os países do Sul Global, abrindo novas oportunidades de
comércio e mecanismos de cooperação financeira e diplomática; manter a política de
austeridade fiscal e sob controle e baixo perfil de atuação os movimentos sociais
organizados; restringir o combate à desigualdade às políticas compensatórias e de
redução da extrema pobreza; gerenciar os avanços conquistados pela ofensiva
neoliberal nas políticas de Estado minimizando os seus efeitos ou revertendo-os
apenas parcialmente; promover a transparência e reduzir o patrimonialismo e a
corrupção na gestão estatal; e limitar o enfrentamento com a extrema-direita nas
forças armadas ao círculo de estreita proximidade a Jair Bolsonaro. Tais diretrizes
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 16

foram e têm sido manejadas como uma condição indispensável para a vitória eleitoral
em 2022 e para a estabilidade política do governo. Em razão dessa concepção tática,
que afasta o espaço para formulações estratégicas do horizonte, Lula descarta realizar
uma ofensiva política ideológica de elevação da consciência e nível organização
popular e a atua cautelosamente dentro do arcabouço neoliberal e dos limites do que
Ruy Mauro Marini chamou de Estado de 4º poder, onde as forças armadas atuam
como guarda pretoriana do grande capital e do imperialismo estadunidense, servindo
como poder moderador e força de dissuasão de avanços sociais e políticos mais
consistentes.

Todavia, o suposto pragmatismo e a inevitabilidade dessa orientação,


reivindicada pelos segmentos centristas do Partido dos Trabalhadores para as
eleições de 2022, devem ser postos em questão, tomando-se como parâmetro a
realidade. Se descartamos a eleição de 2018 por ser atípica e compararmos a votação
de Lula em 2022 com a de Dilma em 2014, veremos que os percentuais gerais são
praticamente os mesmos e a aliança com segmentos da centro-direita e quadros
egressos do PSDB não contribuiu para aumentar o coeficiente eleitoral do bloco de
centro-esquerda. Na região Sudeste, Lula alcançou uma pequena vantagem em
relação a votação de Dilma em 2014, 45,7% versus 43,8%. Na região Sul, Centro-
Oeste, e Nordeste teve votação ligeiramente inferior, respectivamente, 38,2% versus
41,1%, 39,8% versus 42,6%, e 69,3% versus 71,7%. Na região Norte o atual
Presidente da República alcançou o seu resultado mais nitidamente inferior, 49%
versus 56,5%. Em São Paulo, a aliança com Geraldo Alckmin em nada alterou os
resultados eleitorais. A base conservadora, hegemonizada pela centro-direita, migrou
com esmagadora fidelidade para aceitar a liderança da extrema-direita como o seu
novo vértice aglutinador. Em 2010, José Serra alcançou 54,1% no estado e Dilma
45,9%, praticamente a mesma votação de Jair Bolsonaro e Lula 12 anos depois, que
obtiveram 55,2% e 44,8%, e de Tarcísio de Freitas e Fernando Haddad, candidatos
ao governo do estado que receberam 55,3% e 44,7%. Em síntese, os dados mostram
que a aliança com quadros de destaque do antigo PSDB, onde despontam Geraldo
Alckmin e Fernando Henrique Cardoso, foi irrelevante para aumentar a votação de
Lula em 2022, em relação a de Dilma em 2014.
17 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

Em relação às estratégias de médio e longo prazo de disputa do Estado pelo


bloco de centro-esquerda, a defesa da frente antifascista com os neoliberais se torna
ainda mais implausível. O vínculo da centro-esquerda a um paradigma em crise
profunda, o neoliberal, abre o espaço para que seus efeitos a atinjam e a extrema-
direita a acuse de ser parte do establishment, colocando-se demagogicamente como
alternativa por meio de uma agenda que prioriza a violência contra grupos que elege
preferencialmente como inimigos do Estado e da sociedade brasileiros: a esquerda,
os comunistas, a China, os movimentos sociais organizados, o feminismo, os povos
originários, as lutas antirracistas, LGBTQIA+, ecológicas, pela descriminalização das
drogas, pelo desarmamento e contra a violência policial e o encarceramento. A
ascensão da extrema-direita nos Estados Unidos e na União Europeia se explica em
grande parte pela vinculação da social-democracia ao rentismo que desvinculou o
padrão de acumulação de regulações e compromissos sociais com os trabalhadores,
priorizando a geração de capital fictício.

A escolha dos neoliberais como os principais parceiros políticos do governo


Lula leva a opções de políticas públicas extremamente restritivas que comprometem
os gastos em saúde, educação, e serviços públicos em geral. Embora, o governo
Bolsonaro tenha transferido para o novo governo dívidas de R$ 140 bilhões em 2023,
acumulou déficits fiscais de R$ 998 bilhões em 4 anos. A meta inicial projetada por
Haddad nas LDOs de 2024, 2025 e 2026 é de déficit zero em 2024, e superávits de
0,5% em 2025 e 1% em 2026. Após forte pressão dos movimentos sociais
impulsionada pelas greves dos servidores públicos, um pequeno ajuste se
estabeleceu: déficit zero em 2025 e superávit de 0,25% em 2026. O déficit fiscal de
2,3% do PIB apresentado pelo governo federal em 2023, está bem abaixo dos
registrados na União Europeia ou na Zona do Euro em 2022, que atingiram 3,3% e
3,6%. A Comissão Europeia reiterou considerar aceitável o indicador de até 3% do
PIB como déficit fiscal para os países que tenham dívida pública acima de 60% do
PIB. Com exceção de Suécia, Chipre, Irlanda e Croácia, todos os demais 23 países
apresentaram resultados fiscais negativos. Nos Estados Unidos, o déficit alcançou
6,3% do PIB em 2023, superior aos 5,4% de 2022.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 18

A priorização da dimensão fiscal do ajuste das contas públicas em detrimento


da financeira, que volta a marcar os governos petistas na atual gestão, é uma
concessão dramática ao paradigma neoliberal. A aprovação do projeto de lei do
arcabouço fiscal pelo governo limita o crescimento das despesas a 70% da
arrecadação e ao máximo de 2,5% a.a., colocando em questão os pisos
constitucionais da educação e da saúde, conquistas históricas dos trabalhadores e
dos movimentos sociais que Haddad e Tebet sinalizam intenção de flexibilizar por PEC
em futuro próximo. A meta de déficit fiscal zero perseguida pelo ministro Haddad em
2024 está em desalinho à praticada pelos principais Estados do capitalismo ocidental,
sendo ainda mais rigorosa que as expectativas dos agentes do mercado financeiro
registradas na pesquisa Instituto Genial/Quaest, de novembro de 2023. 49%
consideravam que a meta de déficit fiscal proposta pelo governo seria de 0,5%, 18%
que atingiria 0,75% e apenas 20% trabalhavam com a expectativa de déficit zero. O
governo não utilizou o prazo de que dispunha para alterar a meta de déficit fiscal para
2024, reforçando as previsões sustentadas por Haddad contra as pressões de setores
do PT para flexibilizá-las, e agora só poderá fazê-lo por emenda parlamentar.

Não se trata, portanto, apenas de mover-se no paradigma neoliberal, mas de


mover-se ofertando ao grande capital, em particular ao capital financeiro parasitário,
benefícios para que a aliança com o governo Lula e o Partido dos Trabalhadores seja
a sua opção preferencial, mantendo-se a engrenagem do que Ruy Mauro Marini
chamou em seus últimos escritos de economia de transferência, onde o Estado
transfere valor às frações dominantes do capital sem qualquer contrapartida de
produtividade (Martins, 2023, p. 70) (Marini, 1989, p. 40). O efeito concreto dessa linha
de atuação é a realização de políticas para os extremamente ricos e os extremamente
pobres negligenciando um imenso segmento onde a popularidade de Lula cai de
maneira acentuada e compromete as estratégias de hegemonia no médio e longo
prazo da centro-esquerda no Brasil. O esforço em considerar o Brasil, nos governos
petistas, um país majoritariamente de classe média, a partir da gestão de Marcelo
Nery no IPEA, em 2012, como resultado das políticas de distribuição de renda
realizadas, em direção inversa às teses adotadas por Marcio Pochmann, têm o
objetivo de legitimar esse tipo de políticas. Se tomarmos em consideração o salário-
19 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

mínimo necessário do DIEESE e cruzarmos com os dados da PNAD sobre distribuição


de renda, poderemos situar que aproximadamente 75% da população brasileira não
recebe uma renda familiar per capita suficiente para atender às condições
minimamente necessárias de consumo e depende de serviços públicos gratuitos, não
podendo ser relegada ao mercado e à sua variação de preços. Uma das principais
características das classes médias é a capacidade de atender as suas necessidades
de consumo no mercado. Entretanto, 67% das crianças brasileiras estão matriculadas
em escola pública, 77% da população não possui plano de saúde, 42% da população
não está conectada à rede geral ou pluvial de esgoto, apenas 27,7% dos lares
possuem por Tv por assinatura, somente 43% acesso a serviços de streaming e
apenas 40,2% dos domicílios possuem microcomputador.

O bolsa-família atualmente atende a cerca de 30% das famílias brasileiras e


lhes destina 1,5% do PIB. Representa um montante muito menor que os 6,6% do PIB
pagos de juros em 2023, sendo o governo central responsável pela transferência de
5,6% do PIB aos rentistas. A meta fiscalista que elude a natureza financeira do déficit
e da dívida do Estado brasileiro soma-se à pressão dos juros e restringe
significativamente os gastos públicos com o setor real. O Estado limita a oferta e a
qualidade dos serviços e bens públicos e delega ao mercado a atenção das
necessidades básicas de nossa população. O resultado é tanto a precificação das
necessidades sociais encarecendo a atenção das necessidades básica, quanto a
exclusão relativa e absoluta de um enorme segmento socialmente e economicamente
vulnerável dos serviços públicos, aproximadamente 40% da população brasileira que
tem renda familiar entre 2 e 5 salários-mínimos, segundo a pesquisa Genial/Quaest.
É exatamente neste segmento que a queda se faz mais acentuada alcançando 11%
p.p. entre agosto de 2023 e fevereiro de 2024, contra 7% p.p. no segmento de renda
familiar até 2 salários-mínimos e 5% p.p. naqueles que percebem renda familiar
superior a 5 salários-mínimos. Embora tenha havido forte expansão da renda do
trabalho em 2023, de 11,7%, impulsionada principalmente pelo aumento do salário-
mínimo e pela queda do desemprego, as pressões de demanda se chocam com as
restrições da oferta impulsionando o preço dos alimentos diante de uma estrutura
fundiária altamente concentrada, voltada para a exportação e altíssimo custo do
crédito para o investimento do qual dependem os pequenos e médios agricultores.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 20

A insistência do governo em manter a meta de previsão de déficit zero em 2024


e 2025 e até superá-lo em 2026, restringe os efeitos multiplicadores do investimento
sobre a arrecadação, principalmente em situação de alto desemprego aberto, e atinge
violentamente os servidores públicos da educação e da saúde que compõem umas
das frações mais importantes da vanguarda ideológica da classe trabalhadora, capaz
de lançar uma ofensiva ideológica contra o neoliberalismo. Ao invés de acolherem o
movimento sindical destes segmentos, os governos petistas lhes impuseram uma
drástica derrota em 2012, optando pelas políticas fiscais neoliberais, posição da qual
não renunciaram no atual mandato. Tal derrota abriu espaço para a ofensiva da direita
na sociedade civil, o isolamento do governo e o golpe de 2016.

O governo Lula, portanto, não arranha a desigualdade e a superexploração da


força de trabalho que continuam a avançar no capitalismo dependente brasileiro,
apesar das políticas de combate à extrema pobreza. Em 2022, as rendas do 0,1% e
do 1% mais rico eram, respectivamente, 189,2 e 37,6 vezes maior que a dos 95%
mais pobres, havendo se expandido em 87% e 51% contra 33% dos últimos anos
entre 2017 e 2022. Apenas 9% e 36% da renda auferida pelos 0,1% e 1% mais ricos
vinham do trabalho, configurando segmentos fortemente rentistas, que continuam a
se beneficiar das políticas monetárias e fiscal.

Apesar das escaramuças entre o governo Lula e o PT de um lado, e o


Presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, de outro, sobre os níveis das
taxas de juros, nenhuma gestão para retirá-lo do comando do BC por desempenho
insuficiente foi realizada, mesmo tendo o governo maioria no Conselho Monetário
Nacional. Roberto Campos Neto sofreu abertura de processo na CGU para apurar
suspeitas sobre inconsistências contábeis de R$ 1 trilhão. Sua gestão desvalorizou o
Real perante o Dólar em mais de 30% e elevou as taxas de desemprego aberto a
14,9% comprometendo a meta do BC de atingir o bem-estar econômico da sociedade.
Contabilizado o subemprego e o desalento, a taxa de desemprego atingiu 15,8%,
entre janeiro e março de 2024, segundo o IBGE. Temeroso de não alcançar maioria
simples no Senado ou de desagradar o mercado financeiro, Lula preferiu não arriscar
este passo. Muito menos colocar em discussão o fim da autonomia do Banco Central.
21 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

Diante dessa inércia Campos Neto tomou a ofensiva e articula PEC da autonomia
financeira do Banco Central para completar a operacional já aprovada.

O governo Lula não promove nenhuma ofensiva ideológica significativa para


alterar a correlação de forças sociais e políticas, baseando a sua popularidade na
história de lutas, na origem operária e no carisma pessoal do Presidente, cujo tempo
de vida útil nas disputas eleitorais dificilmente se estenderá além do intervalo de 2026-
2030. Não desafia o monopólio dos meios de comunicação, o domínio fundiário do
agronegócio, o protagonismo do capital financeiro, a ofensiva neopentecostal e a
vinculação das forças armadas ao golpe de 1964 e sua concepção restrita e ambígua
de democracia, capaz de metamorfosear-se em fascismo. Tal vulnerabilidade coloca
em risco a sucessão da liderança política no governo federal para o bloco de centro-
esquerda, pois o tempo acentua a crescente perda de nitidez ideológica e a ausência
de uma individualidade que possa compensá-la. Se houve ampliação de recursos para
o Ministério da Cultura, as universidades públicas sobrevivem com orçamentos
restritos, menores que em 2023, e queda relativa de alunos, atualmente apenas 22%
das matrículas no ensino superior; a Empresa Brasileira de Comunicações mantem-
se com limitações econômicas e a TV Brasil atinge somente 0,2% da audiência, não
havendo jamais os governos petistas associado nosso país à Telesur, ou atuado para
reconstruí-la como parte de uma possível revitalização da UNASUL. Se a reforma
agrária se mantém em ritmo lento, havendo Lula reservado a quinta parte dos recursos
reivindicados pelo MST para o tema no ano corrente, as igrejas evangélicas gozam
do apoio do governo federal para PEC que amplia as isenções tributárias para seus
conglomerados empresariais. Finalmente, nos 60 anos do golpe de 1964, Lula declara
não se interessar pelo tema, mantém sepultada a Comissão da Verdade, abandona o
projeto do Museu da Memória e dos Direitos Humanos, apesar de o Brasil ser o talvez
único país da América do Sul sem justiça de transição e liderar o ranking de números
de homicídios no mundo. Se por um lado, há sinais no núcleo duro do governo de
intenção de flexibilizar os pisos constitucionais da saúde e educação, levando a
manifestações contrárias de Nísia Trindade e Camillo Santana, ministros da saúde e
educação, José Mucio Monteiro, ministro da defesa, articula com desenvoltura PEC
para estabelecer piso constitucional de 2% do PIB para gastos militares, em cortejo
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 22

do governo às forças armadas, recuperando iniciativa de Celso Amorim em 2014,


quando exercia o cargo, para contemplar antigas aspirações dos militares.

No âmbito da política externa, o governo assume uma orientação contraditória,


multilateralista e centrista, buscando ampliar a margem de manobra internacional do
país ao vinculá-lo a um novo eixo geopolítico emergente que tem seus pilares mais
ativos, hoje, na China e na Rússia, mas ao mesmo tempo não desafia a dependência
e o imperialismo na América Latina, buscando o caminho cada vez mais estreito da
coexistência entre forças rivais de um mundo que aprofunda a sua bifurcação: de um
lado, o imperialismo estadunidense e a OTAN, e de outro um novo bloco
multilateralista que se organiza através da articulação do Sul Global para reverter
assimetrias mundiais e construir um ambiente internacional cooperativo, plural,
democrático e pacífico. Se o Brasil assume protagonismo discursivo nos conflitos no
Oriente Médio, ancorado no BRICS e se torna sede das conferências do G-20, na
integração latino-americana assume um perfil baixo, não exercendo papel
estruturante.

Lula assume posição de destaque em temas sobre o qual tem pouca


capacidade de decisão institucional, mas avança pouco em temas específicos da
região onde o peso da influência política, financeira e ideológica brasileira pode ser
muito maior. Se denunciou corretamente o genocídio palestino perpetrado pela política
da grande Israel de Netanyahu, mantém congelada a UNASUL e na VIII Conferência
da CELAC não se dedicou a temas sensíveis como a crise da democracia, a
penetração do narcotráfico nas estruturas de poder, os conflitos territoriais como o de
Essequibo e as pressões imperialistas sobre a fronteira mexicana. O Projeto de
Decreto Legislativo 548/2012 que ratifica a entrada brasileira no Banco do Sul jamais
entrou em votação no Congresso Nacional, foi retirado da pauta de votação em 2015
e o governo Lula não demonstrou nenhuma intenção de retomá-lo.

Limitada pelo compromisso com a dependência que assume um perfil


financeiro extremamente parasitário e predatório na fase atual do capitalismo mundial
e pela adesão a preceitos do imperialismo liberal dos Estados Unidos, cada vez mais
23 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

descolado do desenvolvimento das forças produtivas da América do Sul, mas fiador


das políticas de austeridade, dos limites sociais da democracia brasileira, e de uma
integração regional de baixa densidade, incapaz de desafiar sua hegemonia no
Hemisfério Ocidental, a política internacional do país não é capaz de realizar a sua
vocação de liderança continental, mantendo subaproveitada as possibilidades
regionais e os projetos de desenvolvimento nacionais.

Batizada de altiva e ativa, e não de soberana, no lugar de independente, dos


anos 1960, nossa política externa parece estar mais interessada em destacar
características de interação e adaptação em um ambiente externo onde pretende se
mover, do que em promover e liderar um novo padrão internacional onde se quer
chegar. É exatamente a falta de compromisso com um projeto soberano que coloca
em risco o progressismo na política externa e nas políticas públicas do governo Lula.
Suas dimensões parecem ser insuficientes ou limitadas para uma época em que as
confrontações se aceleram, onde a extrema-direita se nutre da insatisfação de
segmentos populares com a limitação dos projetos de democracia da centro-esquerda
para propor o giro a sistemas políticos de transição ao fascismo, questionando a
natureza da democracia e as reais intenções das esquerdas. Enfrentar o fascismo e a
extrema-direita de forma consistente exige um outro tipo de estratégia política que a
aliança com as oligarquias liberais decadentes não pode proporcionar.

CONCLUSÕES

No Brasil contemporâneo prevalece hoje a disputa entre a centro-esquerda e a


extrema-direita pela aliança com o grande capital e segmentos estratégicos do Estado
brasileiro, como as forças armadas. A centro-esquerda abandonou a crítica ao
capitalismo dependente brasileiro e busca disputar a sua gestão. Nessa disputa dá
lances altos como o abandono da memória, justiça e verdade, rígida política de
austeridade fiscal, controle dos segmentos de vanguarda tecnológica do proletariado
-como os servidores públicos da ciência, educação e saúde -, possível desvinculação
do piso constitucional da saúde e educação em benefício do orçamento da defesa, e
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 24

manutenção dos projetos de desenvolvimento e integração regional em baixa


intensidade para não ameaçar a hegemonia dos Estados Unidos no hemisfério
ocidental, ainda que o multilateralismo da política externa nos aproxime da China
através dos BRICS.

Não se trata de um limite externo imposto pela correlação de forças, mas


principalmente de uma escolha interna por acomodação, a qual não se pode lançar o
epíteto de realismo porque sua sustentabilidade é frágil, principalmente quando não
se conta mais com o boom das commodities e dos ingressos de capitais estrangeiros,
o que esvazia o espaço para políticas centristas. Vai se atualizando no século XXI, no
centenário da morte de Lenin, o que o autor russo e soviético chamou de burocracia
e aristocracia operárias, um segmento intermediário entre as massas e a grande
burguesia que aufere uma parcela das altas taxas de mais-valor por meio de posições
estratégicas na gestão, cuja principal expressão organizacional foi a formação de um
partido social-democrata que ocupa dimensões centrais no capitalismo monopolista
de Estado. Entretanto, tanto Lenin quanto Bukharin destacaram este fenômeno em
países imperialistas que captavam transferências de mais-valor internacionais,
criando uma base econômica para políticas de reforma moderadas e contenção das
reivindicações dos trabalhadores. Aqui, a evolução do PT aponta para a mesma
degeneração que ocorreu na social-democracia europeia. Com uma diferença: somos
um país dependente baseado na superexploração dos trabalhadores e sem condições
de formular uma alternativa imperialista, subimperialista, ou social-chauvinista sólida
apesar da pretensão de dedicar 2% do PIB para as forças armadas. Poderá um partido
deste tipo estabelecer uma base de massas sólida em um país dependente, ancorado
na superexploração dos trabalhadores, em um contexto desfavorável como o de crise
do padrão neoliberal e transição do sistema mundial para o caos sistêmico?

O momento atual do quadro político brasileiro revela-se dramático. A evolução


de Lula e da direção do Partido dos Trabalhadores parece ser a de convertê-lo em
uma máquina partidária corporativa que coloca seus interesses de reprodução como
organização acima dos interesses populares e propõe uma partilha de poder com o
grande capital na gestão do Estado brasileiro, onde assegura para si uma fatia da
25 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

administração para auferir altos salários de gestão e oferecer empregos a sua


militância, garantindo os meios de reprodução material ao funcionamento de um
partido de massas em uma sociedade liberal. Para isso afasta do horizonte político
tudo que signifique choque e risco e ameace a sua segurança, convertendo-se no
braço organizado de origem proletária do grande capital. Oferece a este a
tranquilidade política pelo controle dos movimentos sociais. A aliança com o grande
capital inclui suas frações liberais e mais internacionalizadas, como o capital
financeiro, o monopólio midiático e o capital industrial, as mais tradicionais, como
agronegócio, as emergentes como os monopólios dos segmentos de serviços
(educação e saúde) e as empresas neopentecostais, entre outras. Inclui ainda os
militares de alta patente. Não há outra razão para o Brasil dirigido pelo PT jamais ter
se convertido em sócio da Telesur, não ter feito uma justiça de transição, ter mantido
Henrique Meirelles e Joaquim Levy no Banco Central, perseguir déficit zero e
superávits fiscais, ameaçar eliminar os pisos constitucionais da saúde e da educação,
resistir à negociação com os servidores públicos, ter apoiado a intervenção militar no
Haiti reconectando os militares brasileiros ao Comando Sul e decidir comprar US$ 1
bilhão em equipamentos militares de Israel após denunciar sua política como
genocida. Não há outra explicação para Lula engavetar o projeto do Museu da
Memória e da Verdade, cancelar atos em memória dos 60 anos do golpe de 1964, não
recriar a Comissão Nacional da Verdade. Chama atenção ainda o fato de Washington
Quaquá, Vice-Presidente Nacional do PT, votar contra a prisão de Francisco Brazão,
acusado do assassinato de Marielle.

A contradição entre o realismo tecnoburocrata de origem operária, petista, e o


discurso idealista superficial de sua liderança maior, que garante a adesão das
massas, pode ser fatal para o seu projeto de poder. Pesquisa Quaest/Genial de 2 a 6
de maio de 2024 indica que 55% da população considera que Lula não merece um
segundo mandato, embora vença o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas,
fortemente ligado a Jair Bolsonaro, por estreita margem. Entre os que votaram em
Lula no segundo turno em 2022, 23% considera que o atual Presidente não merece
um novo mandato. Se destaca ainda a forte rejeição no segmento de 2 a 5 salários-
mínimos, onde 57% consideram que ele não merece um novo mandato. Abre-se o
espaço para a ascensão do fascismo que se nutre da decadência do liberalismo
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 26

político neoliberal e das esquerdas com ele comprometidas para gerir o neoliberalismo
como padrão de reprodução do capital. O declínio do neoliberalismo põe em crise a
democracia formal sem inclusão social e a extrema-direita reivindica para si a
condição antissistêmica dirigindo-a contra o liberalismo político, enquanto aprofunda
o neoliberalismo, a destruição de direitos sociais e individuais, a dependência e a
violação à soberania nacional. Abre-se um cenário de dúvidas: terá a centro-esquerda
condição de evitar a vitória do fascismo no curto e médio prazo? Poderá ela se
reinventar? Ou será necessário um processo de destruição criativa para a emergência
de uma nova esquerda hegemônica capaz de atender às necessidades de nosso
povo? A aliança entre o fascismo e o neoliberalismo será capaz de bloqueá-la ou
retardá-la? Por quanto tempo? Essas questões estão em aberto e serão as lutas
sociais que irão respondê-las nos próximos anos.

REFERÊNCIAS

Bukharin, N. A economia mundial e o imperialismo. Buenos Aires: Pasado y Presente:


1971 [1915].

Lenin, Vladimir Ilitch. A Falência da II Internacional. São Paulo: Kairos, 1979 [1915]

- -. Imperialismo fase superior do capitalismo. São Paulo: Boitempo. 2021[1916]

Marini, Ruy Mauro (1989) Estado, grupos económicos y proyectos políticos en Brasil
(1945-1988). Mimeo

Martins, Carlos Eduardo. Ruy Mauro Marini e a dialética do capitalismo


contemporâneo. Reoriente: Estudos sobre marxismo, dependência e sistemas-
mundo. v. 3, n.1, p. 38-73, 2023
Disponível em https://revistas.ufrj.br/index.php/reoriente/article/view/58395
27 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº1

A ESCALADA DA GUERRA NO ORIENTE MÉDIO


Bernardo Kocher*

Em meados de abril o ataque do Estado sionista à Faixa de Gaza, iniciado logo


após os episódios de 7 de outubro de 2023, produziu uma nova conformação na
equação de poder no Oriente Médio. Há seis meses está em marcha uma “prática
social genocida”1 cujas consequências se farão sentir por décadas entre a população
local. Esta situação ensejou a quase total destruição física da Faixa de Gaza e a
tentativa de neutralização enquanto ente coletivo legítimo do povo do enclave, não
estando claro ainda qual será o mecanismo utilizado pelo Estado sionista para finalizar
a implementação de tal intento. Este cenário foi agravado após o atentado ilegal -
segundo as leis e tratados internacionais em vigor - da embaixada iraniana em
Damasco em 13 de abril de 2024. A retaliação do governo persa foi simbolicamente
forte, por não causar expressivos danos materiais e vítimas, mas indica com clareza
a probabilidade de assistirmos ao início de uma nova onda de violência;
diferentemente do que ocorreu em Gaza (uma guerra assimétrica entre o exército
sionista e a insurgência palestina) o potencial do conflito que está agora se delineando
é uma “verdadeira” guerra entre dois hegemons regionais: o Estado de Israel x o Irã.

O atual cenário de convulsão política foi delineado há duas décadas após os


atentados às Torres Gêmeas em setembro de 2001, a derrubada de Sadam Hussein
do poder no Iraque e o deslocamento da política externa da Arábia Saudita e de outros
países da região para uma posição não hostil aos interesses ocidentais. Estes e outros
eventos provocaram o apagamento da agenda palestina ao deslocar o foco do
problema dos direitos desta população para a ótica de combate ao terrorismo. A
eventual escalada para uma guerra ampla expõe uma crise regional. Esta coloca o
Oriente Médio num momento crucial de redefinição de importantes posições de dois
atores estatais tanto no plano regional e no mundo muçulmano e no Sul Global (no

*Professor associado 4 da Universidade Federal Fluminense


1 Cf. FEIERSTEIN, Daniel. El Genocídio como práctica social. Entre el nazismo y la experiencia
argentina. Hacia un análisis del aniquilamiento como reorganizador de las relaciones sociales, Ciudad
de México, Fondo de Cultura Económica, 2021, p. 36
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 28

caso do Irã) quanto na esfera da ação da sua posição sub-imperialista (no caso do
Estado de Israel).

Tomemos ainda em conta um outro conflito severo, que consideramos ser


referência para os dias que correm, a Guerra Irã x Iraque (1979-1988). Naquele
momento o enfrentamento entre dois os países do mundo árabe-muçulmano acabou
por inviabilizar como uma opção política tanto o que era então chamado de “Terceiro
Mundo” quanto sua proposta de reforma da economia mundial, a Nova Ordem
Econômica Internacional. Tamanho o impacto deste conflito que a principal instituição
política dos países em desenvolvimento em meio à disputa bi-polar, o Movimento de
Países Não-Alinhados, fraturou-se de forma profunda. A partir deste cenário ficou
inviável a atuação coletiva efetiva por parte deste grupo de países na busca de uma
posição não dependente das economias capitalistas centrais, isto em plena crise de
convergência macroeconômica, de grande impacto na década de 1970. Tudo indicava
que haveria uma reformulação das instituições e práticas formuladas nos pós 2a.
Guerra Mundial. Talvez em função da situação política iniciada pelo início da guerra,
a orientação vitoriosa para a execução de tais reformas das estruturas
macroeconômicas – que se tornaram orientadoras universais da formatação de
políticas públicas desde os anos de 1980 – tenha vindo dos países centrais, e foi
designada de neoliberalismo. Os países do Terceiro Mundo, desunidos após vinte e
cinco anos de busca de um caminho comum, não lograram participar da formulação
de novas normas econômicas. Estas foram formuladas unilateralmente pelos EUA, o
choque dos juros e o início do que o historiador Fred Halliday chamou de “2a. Guerra
Fria”.

A presente análise conjuntural pretende dar conta do passado recente e,


quando necessário, indicar questões presentes, como parte da compreensão de um
processo que aponta para uma realocação do Oriente Médio como foco central das
principais tensões e crises do sistema internacional.
-
29 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

Quando estiver encerrado definitivamente a agressão ao povo palestino,


perpetrada pelo Estado de Israel na Faixa Gaza, seremos forçados a olhar para a
História do Oriente Médio no primeiro quartel do século XXI como uma totalidade,
dividida em três partes: a primeira é o 11 de setembro de 2001, e depois a invasão do
Afeganistão seguida pela do Iraque; a segunda parte são as revoluções sociais que
eclodiram em parte do Oriente Médio em 2011, a “Primavera Árabe”; finalmente, o
terceiro momento é a tentativa de destruição física e simbólica do povo palestino que
está em curso na Faixa de Gaza e (até agora) a indicação de eclosão de uma guerra
regional entre Irã e o Estado sionista. Se nada mais ocorrer durante longo tempo após
o encerramento da atual crise que possua o escopo destes três dramáticos episódios
teremos que tratá-los como parte de um único processo, mesmo que cada um possua
sua dinâmica própria.

Este conjunto de conflitos possuem raízes históricas longínquas no crucial ano


de 1979. Esta data parece ser o momento de convergência de inúmeras crises
internacionais (as mais estruturais desde o fim da 2a. Guerra Mundial, quando se abriu
o ciclo do que Eric Hobsbawm chamou de “25 anos de ouro” do capitalismo) e que
neste ano se tornaram visíveis. Ocorreram inúmeros fatos de relevo neste período, a
maioria deles tendo vinculação direta com o Oriente Médio. Entre eles citamos: o 2o.
Choque do Petróleo, o choque dos juros, a invasão soviética no Afeganistão, a vitória
da Revolução Iraniana, a vitória da Revolução Sandinista, a assinatura dos acordos
de Camp David, e a invasão da Grande Mesquita (em Meca) e a sua retomada por
tropas sauditas e francesas.

Tudo o que ocorreu é decorrente do rearranjo das classes sociais em meio a


uma aguda crise econômica (agudizando a persistente instabilidade macroeconômica
existente desde fins da década de 1960) que combinou a inflação dos preços com a
recessão econômica (a estagflação). Tal cenário de crise propiciou o início da rota de
reformas estruturais (privatização, desregulamentação, vulnerabilização do direito ao
emprego e dos demais direitos sociais) que afetaram a classe operária em todo o
mundo. Após o ciclo de prosperidade que também alcançou o Oriente Médio, a classe
operária perde suas referências políticas e sociais passando a viver uma instabilidade
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 30

econômica, política e institucional. Com a vulnerabilização da identidade material


coletiva e subjetiva da classe operária, no mundo árabe-muçulmano são reanimadas
antigas manifestações de valorização da religião como orientadora da vida em
sociedade, agora chamada de “islã político”2. Na Palestina o fim da 1a. Intifada (1987-
1993) marcou o início do “ajuste” local com a correlação de forças delineada no final
da década de setenta, incorporando a agenda do islã político no interior da sua vida
política e social. O fim da URSS (1989) também contribuiu para criar um vazio de
opções para a situação local. Aqui presenciamos tanto o encerramento da
bipolaridade das superpotências como também o fim da “Guerra Fria Árabe”, entre
Estados adeptos do panarabismo e as “monarquias”.

-
Ao analisarmos a conjuntura de crise que se abriu em 7 de outubro de 2023
temos que ter em conta, inicialmente, que a Faixa de Gaza não é causa do conflito
regional atual, mas, antes, é produto do que foi delineado no seu exterior. Encurralada
fisicamente (terra, mar e ar) por Israel e Egito, abandonada tanto pela solidariedade
árabe (pan-arabismo) e/ou muçulmana (ummah) quanto pela orientação
humanista/civilizatória do ocidente (direitos humanos), inviabilizada politicamente pelo
logro de várias resoluções não cumpridas da ONU favoráveis à melhoria das suas
condições, restou à sua imensa população concentrada num pequeno enclave
contendo altíssima taxa demográfica conviver com sua realidade material precária
causada pela “prática social genocida” dos sionistas.

A crise atual possui um marco histórico conjuntural basilar: o voto majoritário


que o islã político obteve em 2006 nas eleições legislativas que iriam formar um
governo. O resultado do pleito não foi simplesmente uma opção pela afirmação da
religião como condutora da vida pública, mas, antes, foi a primeira votação definidora
da representatividade política do povo palestino que se tornou plebiscitária. A eleição
expressou os fracassos de todos os envolvidos nas infrutíferas negociações para a

2Para uma definição do termo “islã político” e sua pertinência na análise do Oriente Médio cf. HEKMANT,

Mansoor. “A ascensão e queda do Islã Político”.


IN: https://www.marxists.org/portugues/hekmat/2001/mes/40.htm.
31 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

implementação da fórmula dos dois Estados, promovido pelos Acordos de Oslo (1993).
A vitória do Hamas no pleito não ultrapassou os 45% dos votos e a derrota do Fatah
não foi inferior a 41%3. Caso este resultado fosse indicado numa pesquisa de boca de
urna poderia ser considerado um empate técnico, se a margem de erro fosse de 2%.
Mesmo considerando que na Faixa de Gaza a densidade eleitoral do Hamas foi mais
expressiva do que na Cisjordânia, o pleito foi proposto para escolher representantes
para o parlamento como um todo; talvez daí tenha surgido um ódio especial dos
dirigentes sionistas para com a população de Gaza e a percepção distorcida que eles
desenvolveram de que o islã político seria o marco definidor das perspectivas políticas
da sociedade civil no enclave. Não, o resultado eleitoral refletiu uma resposta do eleitor
palestino ao cotidiano de “negociações sem solução”, logo seguidas da brutal
continuidade da “prática social genocida” sionista. Nesta clave, o voto vitorioso do islã
político neste pleito representou o “pelo menos eles querem lutar contra a ocupação
do Estado de Israel e fazer algo pelos palestinos”, já que a OLP a) desistiu da
orientação de confrontar o sionismo; b) não construiu o Estado da Palestina; e, c)
tornou-se um apêndice da política sionista de expansão dos assentamentos na
Cisjordânia.

Assim, constatamos uma realidade que deve necessariamente ser tomada em


conta para a análise da crise atual: a população palestina não possui nem capital
político acumulado o suficiente nem experiência em vida democrática e muito menos
instituições estatais consolidadas para lidar com forças externas gigantescas que
permitem os sionistas adotarem a limpeza étnica; não é, portanto, crível tratar a
população que votou somente uma vez numa referência automática para a construção
de uma representação política baseada no islã político. Tais forças externas, oriundas
tanto da Europa e EUA quanto dos próprios países árabes, fornecem positividade e/ou
leniência e/ou aprovação para a narrativa que, aproveitando-se deste suporte material
e imaterial, incorpora o ponto de vista sionista nas suas decisões sobre a causa
palestina. Com este ponto de partida favorável, o sionismo sente-se liberado de
quaisquer ônus e, então, passa a acusar cinicamente o povo palestino pela origem

3Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Elei%C3%A7%C3%B5es_parlamentares_na_Palestina_em_2006.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº1 32

dos problemas em que foram envolvidos. Enfim, a relação povo palestino-islã político
na Faixa de Gaza não pode ser suposta em preconceitos, pois o isolamento proposital
a que estão submetidos não fornece condições para a populaçãoexerça livremente
suas opções políticas. Devemos considerar que existe, tal como em qualquer
sociedade sem as amarras do referencial genocida a que estão submetidos os
palestinos, uma pluralidade e riqueza de ideias e correntes políticas presentes na
sociedade civil local.

Desde o início dos ataques à Gaza em outubro de 2023 e o aprofundamento


da limpeza étnica no enclave a situação política do Oriente Médio se deteriorou.
Estados e regiões/grupos políticos das mais variadas origens passaram a fazer parte
de um cenário de guerra regional com características muito próprias. A situação em
Gaza expôs uma quantidade imensa de tensões que estavam ocultas numa espécie
de “guerra mundial” regional onde o Estado de Israel, Europa ocidental e EUA agridem
o povo palestino, os países vizinhos apenas interagem diplomaticamente mantendo
uma posição olímpica, o Irã aciona atores políticos por ele apoiados econômica e
militarmente, a África do Sul e o Sul Global procuram justiça e Rússia e China
observam e esperam.

O principal grupo a interagir com os problemas de Gaza é o libanês Hezbollah


(Partido de Deus). Eles atacam com mísseis o território do Estado sionista, que por
sua vez revida com bombardeiros aéreos alcançando alvos sensíveis. Para os
sionistas o resultado é o deslocamento da população da fronteira com o Líbano para
posições protegidas, criando um fluxo de refugiados interno dependente da decisão
do Hezbollah em ampliar o escopo dos bombardeios que promove com mísseis que
atinjam mais profundamente o território do Estado sionista. A guerra aberta com este
grupo político localizado no sul Líbano é inviável sem uma prévia destruição da
estrutura física da malha urbana e, como recurso já utilizado na invasão sionista em
2006, a possibilidade de maior desgaste é a de bombardear Beirute, no norte do
Líbano. Adentraram neste cenário os Houthis, do Iemen (do Norte), que possuem
posição estratégica ímpar: o controle natural do estreito de Bab-el-Mandeb, sendo
33 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

capazes de bloquear com mísseis e drones não muito sofisticados a entrada de navios
comerciais de grande porte no Mar Vermelho e, daí, inviabilizando a passagem da
navegação pelo Canal do Suez. Os constantes ataques israelenses a altos oficiais
militares iranianos na Síria e os atentados às tropas americanas em suas bases no
Iraque e Síria (bem como a reação a estes) apontam outras duas vertentes do
agravamento da atual crise.

Consideramos que, para entender a complexidade do quadro regional, existe


no Estado sionista uma orientação para a formação de uma pax israelensis4. Esta
seria uma forma de controle e dominação dos países vizinhos, prenúncio de uma nova
expansão territorial para consolidar o projeto inicial do sionismo europeu, o Grande
Israel5. A assinatura dos Tratados de Abraão (2020) e o posterior encaminhamento de
acordo de normalização de relações diplomáticas com a Arábia Saudita seriam uma
quase consolidação da fase de pacificação do entorno do Estado sionista. Aqui o fator
econômico integrar-se-ia ao processo de formatação da pax israelensis,
estabelecendo (finalmente) laços de interdependência entre o hegemon (Estado
sionista) com os países vizinhos ou próximos. Os episódios promovidos pela
insurgência palestina em 7 de outubro ao Estado sionista alterou esta rota dos
acontecimentos – impedindo a sua execução ao menos no curto prazo -, produzindo
o esgarçamento das tensões regionais, tornando-as visíveis.

Todos os atores que litigam atualmente contra o Estado de Israel contam com
o apoio material e político do Irã, expressivo, pioneiro e poderoso representante do
islã político. O país persa enfrenta a ameaça de uma instabilidade política induzida
por forças externas, diferença marcante em relação ao rival sionista. Esta situação é
ao mesmo tempo muito mais complexa e também mais simples do que a posição do
Estado sionista. Estado Nacional com fronteiras e instituições definidas há milênios,
herdeiros de tradições políticas sólidas, e com Estado forte, o Irã não possui uma

4KOCHER, Bernardo. “O Sionismo é um Sistema. Introdução a uma análise estruturante da invasão da


Faixa de Gaza a partir de outubro de 2023 .” IN: https://operamundi.uol.com.br/opiniao/bernardo-
kocher-o-sionismo-e-um-sistema/
5PETRAS, James. “O plano é criar a Grande Israel”. IN: https://contrapoder.net/entrevista/o-plano-e-

criar-a-grande-israel/.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 34

necessidade obsessiva de expansão das fronteiras ou colonialismo econômico. Ao


contrário, ele luta contra a dominação econômica e interferência política do
imperialismo europeu e norte-americano. Seu objetivo é blindar interna e
externamente seu espaço nacional para que este não seja dominado por forças
estrangeiras, como ocorreu durante a dominação colonial inglesa e neo-colonial norte-
americana. Sua posição geopolítica o obriga a estar perenemente elaborando
estratégias para a defesa da sua “soberania total” colocando o país num pró-ativismo
perene para dar conta da gestão de atores estatais e não-estatais fora do seu território
e dentro do espectro do islã político. Por seu turno, o intento dos Estados Unidos e do
Estado de Israel é a eliminação de qualquer tentativa iraniana de controle de parte do
mundo muçulmano; para o país persa a exportação das suas ações políticas e
militares não é, no entanto, uma opção. A guerra aberta e direta também não é para o
Irã uma alternativa aceitável, pois o longo conflito com o Iraque desgastou o país e
expôs seu território. Atualmente o Irã encontra-se numa rota virtuosa de crescimento
econômico e integração com a elaboração de uma contra-hegemonia do Sul Global,
via Brics, o que reforça ainda mais sua premente necessidade de estabilidade.

-
A análise acima foi desenvolvida antes do ataque iraniano ao território
israelense em 13 de abril de 2024, por conta de uma retaliação ao bombardeamento
com vítimas à sua sede consular em Damasco. A partir de agora devemos considerar
se estamos ou não numa contagem regressiva para o início de um conflito regional
com consequências globais. A questão aqui é perceber se uma nova guerra regional
envolvendo o Irã trará consequências tão danosas para o “Sul Global” (nova
denominação do que fora chamado até a década de 1990 de “Terceiro Mundo) quanto
as que pressupomos terem existido na guerra que este país travou com o Iraque.

Por um lado, a demonstração de que o espaço aéreo do Estado sionista é


poroso foi ensejado pela exposição pública de um arsenal de centenas de armas de
longo alcance (drones e mísseis), o que denuncia a existência de um estoque maior
e mais poderoso deste tipo de armamento pelas forças armadas persas. Dada a
35 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº1

distância de cerca de mil quilômetros entre as duas fronteiras as opções de conflito


quase que se restringem a este tipo de armas. Também podem ser alvos os proxies
que atuam mais próximos das fronteiras dos dois países. Neste sentido, o Estado de
Israel possui mais opções do que o Irã. Seu ataque aos proxies iranianos (no Líbano
– Hezbollah, na Síria, no Iraque e no Iemên – Houtis) podem ser executados com a
aviônica de última geração, fornecida aos sionistas pela potência líder, os EUA. Por
seu turno, estes mesmos proxies possuem armamento análogos (se bem que menos
potentes) aos dos iranianos e também podem atingir o território ocupado pelos
sionistas. Estas armas atingiriam o alvo com menor tempo de vôo e, certamente, com
mais precisão. Se não tiverem o intento explícito da destruição, o lançamento destas
unidades sobre o território israelense certamente produzirá o efeito de saturamento
dos equipamentos de interceptação da defesa do país (principalmente o “domo de
ferro”), o que daria aos mísseis e drones lançados do território iraniano maior poder
de destruição já que estariam fornecendo, assim, uma melhor oportunidade de atingir
o seu alvo sem a interceptação do inimigo.

No ataque iraniano de 23 de abril, o Estado de Israel contou com o suporte de


aliados regionais, a Jordânia e a Arábia Saudita, que participaram da “batalha aérea”
para abater manualmente o que foi lançado pelo Irã. Vieram estas duas forças aéreas
a complementar o suporte basilar dos EUA, Inglaterra e França, transformando-se em
uma espécie de “proxies de luxo” do Estado sionista.

Um outro aspecto importante a ser considerado num eventual conflito aberto é


o fato de que (tal como já havia ocorrido na Guerra Irã x Iraque) atingir os centros
nevrálgicos do poder iraniano (político e econômico) é ainda mais difícil. Eles estão
localizados no oriente do país, o que imporia um percurso ainda maior de vôo de
drones e mísseis lançados pelo Estado sionista. Este, por seu turno, pelo seu tamanho
reduzido (tanto longitudinalmente quanto latitudinalmente), e concentrando sua
produção econômica e poderio militar e político em curtas distâncias uns dos outros,
está infinitamente mais vulnerável ao efeito que uma arma de forte impacto numa
região possa afetar uma área vital próxima ou distante, cessando ou limitando
severamente o fornecimento do bem ou serviço a que esta estava destinado.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 36

Assim, dependendo apenas da capacidade não revelada (mas amplamente


suposta e/ou conhecida pelos meios de comunicação e estudos acadêmicos) do
poderio dos armamentos de longo alcance iranianos, uma eventual guerra entre as
duas potências regionais que disputam a conquista de hegemonia no Oriente Médio
possui uma baixa taxa de previsibilidade, se se considerar apenas a capacidade dos
dois Estados isoladamente. Aqui o que conta não é tanto a capacidade destrutiva de
cada um dos eventuais contendores, mas a possibilidade de agregação de aliados e
meios materiais, capazes de dar suporte para a continuidade da conflagração e/ou
evitar a agressão do inimigo. Neste sentido, a maior vulnerabilidade é o da economia
do Estado sionista, que não possui autonomia, ou seja, riqueza social o suficiente para
manter o alto padrão de vida da sua classe trabalhadora/força militar sem o concurso
do apoio dos aliados. Deve-se lembrar, no entanto, que estes podem ser recrutados
com facilidade.

Neste sentido apontamos que, independentemente dos resultados militares


intrínsecos, caso haja uma guerra aberta, a relação que o Estado sionista está
buscando formatar ao tentar agendar um conflito armado com o Irã é agregar força
material e política para (na eventual derrota ou fragilização do Irã) produzir a pax
israelensis. Não concordamos com a interpretação rasa e recorrente de que o estímulo
contínuo dado pelo Estado de Israel para que o Irã se enrede neste cenário de
provocações e inicie uma guerra, causando a atração dos países ocidentais
(principalmente os EUA) para o lado israelense, seja um processo articulado para
evitar o encerramento do governo desgastado primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.
Este estaria, segundo esta perspectiva, adiando a sua deposição devido a problemas
na alçada judicial que o governante enfrenta face à descoberta de corrupção que ele
está envolvido. Encontram-se análises que apontam que o conflito com o Irã é um
mecanismo do atual governo de retirar a atenção dos problemas militares e
humanitários decorrentes da invasão da Faixa de Gaza. Tais avaliações são
personalistas e negam o que temos como pressuposto, a existência de um “sistema”
sionista de poder regional em contínua expansão sobre os territórios circundantes ao
37 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

atual Estado sionista. O conflito com o Irã não é produto das ambições pessoais de
um dirigente carismático, mas uma correlação de forças oriunda no interior do “Deep
State” sionista em articulação com o imperialismo “clássico” que moldou
meticulosamente várias fronteiras dos Estados Nacionais do Oriente Médio na defesa
dos seus interesses econômicos. Estes foram responsáveis pela própria criação da
expressão “Oriente Médio”, que é produto desta preocupação em formatar através de
uma region building um processo de controle de Estados Nacionais soberanos, mas
fracos e dependentes do poder militar norte-americano e/ou europeu para se
manterem.

Se o cenário de guerra que se estabelece enfraquecer o Irã estaria aberto o


caminho para que o Estado sionista se transforme em um hegemón regional sem
concorrentes. Este processo está sendo demarcado há décadas (diríamos desde a
assinatura dos Acordos de Camp David, em 1979). Tal estrutura comporia um grande
poderio militar (do Estado sionista) com o econômico (oriundo principalmente da
riqueza trazida com a extração de petróleo), transformando o Oriente Médio numa
área de influência diretamente comandada pelo Estado de Israel (quem sabe
substituindo os EUA e os antigos colonizadores europeus) mesmo que ainda
submetido à dinâmica do capitalismo desenvolvido que viabiliza diariamente a sua
existência. Ou seja, o Estado sionista exerceria com plenitude a sua função de país
sub-imperialista, na acepção do termo tal como definida por Rui Mauro Marini.

A insurgência na Faixa de Gaza intentou interromper esta trajetória de


pacificação embutida na pax israelensis que estava sendo executada colocando no
piloto automático o esmaecimento da causa palestina. Perante a crise aberta pela
insurgência em 7 de outubro a pax israelensis foi velozmente reelaborada pelo Estado
de Israel, passando de um processo pacífico de negociações diplomáticas para a
expansão do conflito tanto na Cisjordânia e na Faixa de Gaza (consorciando limpeza
étnica, política social genocida e aquisição territorial) quanto com o único rival com
poderio militar, o Irã.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, 1 38

Nota-se que tal posição tem sido eficaz operacionalmente. A política social
genocida na Faixa de Gaza e a expulsão, prisão de cidadãos sem ordem judicial,
roubo de terras e assassinatos contínuos do povo palestino na Cisjordânia continuam
com o apoio ativo dos países aliados. Esta adesão solidária ao projeto de pax
israelensis é facilitado pela assimilação por estes aliados de que todo o povo palestino
está irremediavelmente comprometido com o islã político, representado pelo Hamas,
que é tido como um proxy do Irã. Os aliados viabilizam o fornecimento de bens e
serviços necessários tanto a continuidade da vida social da população do Estado
sionista quanto do massacre genocida que está em curso na Faixa de Gaza, malgrado
alguns deles adotem críticas públicas ao processo que sustentam materialmente!!! Em
13 de abril foram efetivos no combate aos artefatos que percorriam os céus da região.
Como dissemos acima Arabia Saudita e Jordânia se compuseram com as forças anti-
Irã. As três potências imperialistas estrangeiras (EUA, Inglaterra e França)
compareceram para amparar esta estratégia, o que acabou por expor a existência de
um fio desencapado: ao invés de terem seus interesses defendidos na região pelo
Estado sionista tiveram que defendê-lo para evitar que o ataque iraniano se
transformasse na guerra repudiada por todos mas desejada pelo Estado sionista. Este
não possui as condições militares e econômicas para tal empreitada e está, pelas
contínuas ações de provocação ao Irã, procurando empurrar a conta da guerra para
seus aliados. Desconsiderando egoísta e levianamente as consequências de um
conflito com o Irã na economia global, no mercado de petróleo e de armas, além de
possíveis conexões que o país persa poderia formar para suportar o esforço de guerra,
os sionistas procuram desesperadamente através da guerra dar conta de forma
imediata da execução com baixo custo daquilo que chamamos de “sionismo externo”.6

O Estado sionista tenta continuamente impor aos aliados os custos para


executar a defesa de um projeto próprio sem considerações com as perspectivas dos
aliados. Aqui está em curso a metáfora que John Mearsheimer elaborou para analisar
a relação da política externa norte-americana com o seu aliado sionista: “é o rabo que
abana o cachorro”. Já que não possui condições de isoladamente ir a uma guerra com

6Idem, ibidem.
39 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

consequências imprevisíveis, o Estado sionista está procurando, desde 7 de outubro,


estabelecer a pax israelensis através da universalização do seu conflito local. Seu
intento é colocar o Irã numa posição defensiva política para construir sua hegemonia
sobre os escombros de uma fantasia típica do imperialismo. Explorando preconceitos,
racismo e uma estratégia inconfessa de apropriação de trabalho social para o interior
da sua economia nacional, o objetivo do Estado sionista é o de manter o “ocidente
coletivo” livre de uma ameaça islâmica, pagando por isso o preço que for necessário.
O sionismo está apostando que sua principal fraqueza seja a causa da sua força.

Finalmente, concluímos que a crise aberta em 7 de outubro criou uma


oportunidade para o “sionismo interno”7 repaginar o “sionismo externo”. O objetivo
sempre foi e será construir a pax israelensis a partir da criação de um espetáculo
dantesco de matança e destruição da vida política, econômica e social de parte do
mundo árabe/muçulmano, tão ao gosto da esquecida tese do “choque de civilizações”8.
Até agora somente uma metade deste projeto está sendo implementado; graças ao
preparo, experiência, caracterização precisa da sua estratégia de inserção na
economia global a partir da definição de seus interesses nacionais e astúcia das
políticas externa e de defesa do Irã, a segunda parte deste projeto macabro está sendo
contornado.

-
São recentes as informações noticiadas que a decisão de invasão de Rafah (no
sul da Faixa de Gaza), onde se encontra um último bastião dos insurgentes, já foi
tomada pelo governo israelense com o apoio e aprovação do governo Joe Biden.
Alega-se que esta ação agressiva se transformou numa válvula de escape para que o
Estado sionista não seja constrangido a reagir no momento ao ataque do Irã ao seu
território, o que provavelmente produzirá um outro ataque iraniano. De qualquer forma,
pontuamos que, ao menos temporariamente, o governo sionista dará uma atenção
suplementar ao sionismo interno. Esta é a sua zona de conforto, pois a dominação

7Idem, ibidem.
8HUNTINGTON, Samuel. O choque das civilizações e a recomposição da nova ordem mundial. Rio de
janeiro: Objetiva, 1997.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 40

desta última parte do enclave é certa. Por outro lado, adiando a decisão de aquecer
os instrumentos que poderiam fazer eclodir uma guerra regional, rechaçada pelos
financiadores do Estado sionista, o governo deste país ganha tempo para elaborar
uma nova estratégia de agendamento da crise com o Irã. O governo sionista tenta
tornar o país persa partícipe de uma guerra que não deseja através de um erro de
conduta na sua política externa e de defesa.

Sofrendo da inevitável mudança contínua da conjuntura produzida pela análise


dedicada a compreensão de fatos contemporâneos, recebemos a informação no
momento de encerramento deste relatório de que o Estado sionista promoveu um (não
assumido) ataque de retaliação ao Irã. Seu escopo minimalista (cerca de três micro
drones) lançados ao que parece do interior do próprio território iraniano não
produziram nenhum impacto físico. O que deve ser notado neste episódio é a
promoção de uma movimentação especulativa na mídia sobre o ocorrido. Este
contexto indica uma característica muito típica da ação do Estado sionista: produzir
uma indução analítica que aponte uma situação maior do que os fatos ocorridos, uma
verdadeira “engenharia dos fatos” ou “intervenção cognitiva”. A contínua aplicação da
manipulação dos eventos é típico da ação sionista, sempre tergiversando sobre suas
reais intenções e práticas para colocar em evidência sua agenda política.

P.S.: Dedico as palavras e análises acima ao nosso colega professor de História,


o israelense Meir Baruchin. Ele tem se colocado corajosamente de público contra a
matança do povo da Faixa de Gaza pelo Estado sionista. Meir Baruchin já foi preso por
algum tempo, como parte de um processo intimidatório, demitido de seu emprego e
sua licença para exercer o magistério foi cassada pelo Ministério da Educação.
41 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

MILITARIZAÇÃO E FINANCEIRIZAÇÃO: A ECONOMIA DO IMPÉRIO GUIADA


PELA MÁQUINA DE GUERRA
Denise Lobato Gentil*

A relação entre o capitalismo e as guerras é um dos assuntos mais envolventes


e intrigantes, porque o observador se depara com os principais motores da história e
interpretá-los é um desafio dos mais complexos. Os grandes conflitos podem ser
analisados sob muitos ângulos. Um deles é a articulação entre o regime de
acumulação financeira do Ocidente e sua crescente militarização. A relação entre as
finanças e o complexo industrial militar ainda é, sem dúvida, imprescindível para
entender a dinâmica da guerra e é por essa trilha que o presente artigo se arriscará,
usando como estudo de caso a economia dos Estados Unidos.
Na era da financeirização acelerada do século XXI, a obtenção de lucros ocorre
mais profundamente por meio de canais financeiros do que através do comércio e
da produção de mercadorias. A indústria de defesa, que figura amplamente na
economia dos Estados Unidos, é também meio de acumulação da riqueza financeira.
Os conflitos na Ucrânia e em Gaza estão levando os EUA e a Europa a
seguidos recordes na produção e comercialização de armas de guerra. Em 2023, o
gasto militar dos EUA foi de US$916 bilhões. Os 31 membros da OTAN chegaram ao
montante de US$1,341 trilhão, enquanto o gasto mundial foi de US$2,4 trilhões
(SIPRI, 2024). São patamares semelhantes ao da Segunda Guerra Mundial.
Qual seria o impacto do gasto militar na economia estadunidense, que equivale
a 38% do total mundial e como este se conecta com a financeirização? Pode-se tomar
como caminho de investigação o impacto do gasto militar sobre a taxa de lucro, a
dívida pública e o mercado de ações.
Os EUA têm uma economia estimulada pelo crescimento da máquina de
guerra, conhecida por keynesianismo militar. Entre autores marxistas, Arrighi (1994)
argumenta que financeirização e militarização são fenômenos que se reforçam
mutuamente nos EUA desde o período pós-Segunda Guerra Mundial. Baran e Sweezy

*Doutora em Economia. Professora do Instituto de Economia da UFRJ. E-mail de contato:


[email protected]
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 42

(1966) argumentaram que a estagnação é o estado normal do capitalismo e que, para


evitar o crescimento econômico lento e o declínio das taxas de lucro há dois caminhos:
por um lado, aumenta-se os gastos improdutivos, como os gastos militares; e, por
outro, o capital migra para o setor financeiro, ou seja, muda para operações com
capital fictício. Militarização e financeirização tornaram-se, assim, respostas a menor
lucratividade do sector produtivo devido à insuficiência crônica de demanda agregada,
causada, por sua vez, pela superacumulação.
O gasto militar gera forte estímulo a diversos setores da economia (efeito de
transbordamento), tanto por criar demanda por componentes produzidos em outras
indústrias, quanto pelas elevadas taxas de empregos diretos e indiretos que produz.
A geração de P&D é um vetor fundamental do gasto militar. A indústria de defesa cria
tecnologias de ponta que podem ser incorporadas às indústrias civis, levando a saltos
tecnológicos que provocam enormes lucros. Poucos setores da economia são tão
carregados de tecnologia de ponta e empregam uma força de trabalho tão altamente
qualificada, com salários elevados, quanto a indústria de defesa.
Estima-se que 50% de toda a pesquisa científica das universidades dos EUA é
financiada pela indústria de defesa. Foi dela que surgiram produtos que permitiram
aos EUA manter sua liderança tecnológica como a internet, satélites de comunicação
e navegação, GPS, supercomputadores, eletrônica embarcada para aeronaves,
computadores acoplados, drones, câmeras digitais, forno micro-ondas, medicamentos
e muitos outros. Os investimentos militares em inteligência artificial, robótica,
nanotecnologia, biotecnologia, energia e materiais aumentaram a produtividade de
diversos setores da economia e criaram inúmeros outros.
Armas e equipamentos militares são mais funcionais à acumulação de capital
do que os bens civis. Se a força motriz do capitalismo é o lucro, então as armas têm
uma vantagem crucial em comparação aos demais bens, na medida em que podem
reforçar a hegemonia política e econômica e são rapidamente utilizadas ou tornadas
obsoletas, o que garante uma demanda infinita, ajudando assim a absorver o
excedente (Elveren, 2019).
Evidentemente que, ao lado dos fatores econômicos relevantes, existem
motivos estratégicos para o gasto militar, como usar o poder militar para sustentar a
43 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

hegemonia da nação central sobre países capitalistas periféricos e regular a rivalidade


entre os países aliados. A militarização estadunidense é amplamente
instrumentalizada para proteger a ideologia neoliberal de austeridade fiscal e
monetária e impor a agenda de aprofundamento da financeirização, cuja
implementação causa efeitos sociais dramáticos nos países dependentes, de forma
que a economia de guerra é útil para reprimir a resistência na periferia. Portanto,
financeirização e militarização se reforçam mutuamente e, embora existam muitos
outros determinantes do gasto militar, vamos nos concentrar apenas nos financeiros.

GASTO MILITAR E TAXA DE LUCRO

Um estudo recente, que avaliou um conjunto de 30 países ao longo de 64 anos


(1950-2014), confirma que o efeito do gasto militar tem papel neutralizador da
tendência à queda da taxa de lucro (Elveren 2019). É preciso realçar, entretanto, que
os impactos do gasto militar sobre a taxa de lucro são mistos: as respostas dependem
do contexto estrutural historicamente específico; e, o efeito neutralizante da queda, se
aplica aos países exportadores de armas, mas não aos países importadores.
Quanto à relação entre o aprofundamento da financeirização e o aumento do
gasto militar, verificou-se que é bastante significativa, tendo sido confirmada em
pesquisa realizada por Akçagün e Elveren (2021), para o caso dos Estado Unidos
durante o período de 1949-2019. Neste estudo foram consideradas as variáveis de
financeirização comumente utilizadas na literatura e foram aplicados vários métodos
econométricos. Os referidos autores demonstraram que o aumento da financeirizaçao
é paralelo ao declínio da taxa de lucro, conduzindo a maior elevação no total de gastos
militares. Essa conclusão precisa de alguns desdobramentos.
A financeirização tem efeitos contraditórios, pois tanto pode entravar quanto
impulsionar a taxa de lucro (Stockhammer 2009). Por um lado, gera efeitos positivos
que evitam a queda da taxa de lucro, porque aumenta a oferta de crédito para famílias
e empresas, mantendo elevada a demanda agregada. Por outro lado, a
financeirização tem impactos negativos, ao ampliar a parcela financeira do lucro e
subtrair parcela que iria para investimento produtivo. Com o declínio do investimento,
cai o lucro operacional do setor produtivo o que, tendencialmente, mantém a taxa de
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº1 44

lucro mais baixa. O resultado final vai depender de algum fator exógeno como as
exportações e/ou o gasto militar. É essa a dinâmica econômica que parece influenciar
no avanço da militarização da economia estadunidense, onde os orçamentos de
defesa são gigantescos. O gasto militar é positivamente relacionado com o lucro
financeiro e com o lucro não financeiro. Em outros termos, o gasto militar eleva a taxa
geral de lucro, e ainda, verifica-se nas sondagens dos números que o gasto militar tem
mais forte relação com o lucro financeiro (Akçagün e Elveren, 2021).
O gráfico 1 a seguir ilustra o comportamento de longo prazo da taxa de lucro
das corporações não financeiras nos Estados Unidos para o período de 1929-2022.
Após propensão ao declínio ocorrido em várias décadas, a taxa de lucro inicia uma
tendência de leve subida depois de 2000, interrompida por duas quedas específicas,
na crise de 2008 e na crise da pandemia de Covid, em 2020. É notável a tendência de
forte elevação da taxa de lucro com o início da Guerra na Ucrânia em 2022, um conflito
de alta intensidade na qual o complexo industrial militar americano tem um papel
decisivo tanto na fase de preparação (que remonta a 2014) como no prolongamento
do conflito.

Gráfico 1: Estados Unidos - Taxa de Lucro das Corporações Não Financeiras 1929-2022

12

10

Fonte: BEA - U.S. Bureau of Economic Analysis. Elaboração própria.

Segundo dados do economista marxista Michael Roberts (2024), usando uma


série longa para os anos 1960-2021, a margem de lucro do setor não financeiro nos
45 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº1

EUA cresce desde 2010. Nos seus cálculos recentes Roberts mostra que estão em
níveis recordes (mais de 16% em 2021/22) e não muito aquém dos níveis mais
elevados da era de ouro do crescimento capitalista em meados da década de 1960.
Porém, esse o efeito positivo não é o mesmo para todos os setores. Atinge
principalmente as sete megaempresas norte-americanas de tecnologia e de meios de
comunicação social e empresas de energia; o resto das empresas norte-americanas
estão a registrar baixa rentabilidade do seu capital. Na verdade, estima-se que 50%
das empresas norte-americanas cotadas não são lucrativas (Roberts, 2024).

O gráfico 2, de dois eixos, apresenta o lucro da indústria financeira e não


financeira dos Estados Unidos (eixo da esquerda) comparativamente ao gasto militar
(eixo da direita). Os dados apontam que as três variáveis estão positivamente
correlacionadas e com tendência de crescimento no período 1949-2023. Porém, o
aumento do lucro não financeiro acompanha o aumento dos gastos militares com
montantes mais acelerados.

Gráfico 2: Estados Unidos - Lucro e Gasto Militar, 1949 - 2023 (Em US$ bilhões de 2023)

3000 1000
Finanancial and Non Financial Industry - Real

900
2500
800
Real Military Expenditure

700
2000
600
Profit

1500 500
400
1000
300

200
500
100

0 0
1949
1952
1955
1958
1961
1964
1967
1970
1973
1976
1979
1982
1985
1988
1991
1994
1997
2000
2003
2006
2009
2012
2015

Lucro da Indústria Financeira Lucro da Indústria Não Financeira Gasto militar

Fonte: Para o lucro da indústria - BEA (U.S. Bureau of Economic Analysis); para o gasto militar -
SIPRI (Stockholm International Peace Research Institute). Deflator: CPI - Consumer Price Index.
Elaboração própria.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 46

GASTO MILITAR E DÍVIDA PÚBLICA NOS ESTADOS UNIDOS

O Tesouro americano é o grande demandante da indústria de defesa e a dívida


pública dos EUA é principal “arma de guerra”, fazendo o encontro entre o poder político
e militar com o dinheiro dos especuladores e banqueiros (Fiori, 2004).
Para Fantacci e Gobb (2018), desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a
mobilização militar, que permitiu aos EUA impor sua hegemonia, foi financiada por
uma forma de dívida que não se destina a ser reembolsada, mas a flutuar
indefinidamente nos mercados financeiros internacionais. “O capital móvel [capital
rentista] representa a forma última das finanças de guerra. O livre mercado de capitais
surge, por um lado, como uma resposta às exigências financeiras da Guerra Fria; por
outro lado, contribuiu para a perpetuação de uma condição de beligerância constante
por parte dos EUA” (Fantacci e Gobb, 2018, p. 93).
O financiamento da guerra se dá pela compra os títulos do Tesouro pelo Fed
(Federal Reserve) e pelo setor privado (bancos comerciais são os segundo maiores
compradores dos papéis). Por esse mecanismo, ocorre grande especulação com
títulos públicos, onde bancos, empresas e famílias do topo da pirâmide social ganham
emprestando ao governo, aumentando o patrimônio financeiro às custas da ampliação
da dívida pública. Isso causa grave problema distributivo na sociedade americana
onde a acumulação de ativos financeiros nas mãos do 1% mais ricos tem passado por
uma escalada sem precedentes. Os trabalhadores se ressentem, porque tais recursos
ao invés de estarem a serviço da destruição da vida de outros trabalhadores, poderiam
estar aplicados em políticas de geração de empregos produtivos, saúde pública,
infraestrutura e transferências de renda voltadas ao combate à desigualdade social.
Os países do resto do mundo, incluindo os países da periferia estadunidense,
compram os títulos da dívida pública americana. Como descreveu Michael Hudson
(2002), os capitalistas do resto do mundo que mantêm relações comerciais com os
EUA recebem dólares pelo que vendem e parte desses recursos são empregados em
Wall Street na compra de ações e títulos da dívida pública. Os EUA, que têm déficit
comercial, empregam esses dólares que retornam, para cobrir o saldo negativo do
balanço de pagamentos. É por esse canal que países da periferia “financiam” o
47 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

governo americano, suas forças armadas, complexo militar industrial e as guerras


promovidas pelo império. Esse é o nexo fundamental entre o poder bélico americano
e o dólar. Hudson infere que as reservas internacionais dos países da periferia como
China, Brasil e demais governos do resto do mundo foram injetados na economia
mundial não por causa do comercio exterior, nem mesmo por causa do investimento
estrangeiro, mas pelos gastos militares. Foi o Estado americano, especificamente o
setor militar, que empurrou dólares para as economias estrangeiras, diz o autor.
Em janeiro de 2024 a dívida pública dos EUA, segundo o Departamento do
Tesouro, ultrapassou US$ 34 trilhões, três trilhões a mais que em 2022, quando estava
em torno de US$ 30,93 trilhões. O déficit público foi de US$ 1,5 bilhão nos primeiros
11 meses do ano fiscal de 2023, um aumento de 61%. O gráfico 3 apresenta o
comportamento da taxa de crescimento real da dívida bruta do governo geral (DBGG)
e do gasto militar no período 2001/2022. Como se vê, a dinâmica da dívida pública
americana está simbioticamente ligada ao gasto militar, mostrando a existência de
uma relação estrutural entre as duas variáveis, porque demonstram correlação em
nível e em taxa de variação.

Gráfico 3: Estados Unidos - Taxa de crescimento real da Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) e do
Gasto Militar - 2001-2022 (%)

30

25

20

15

10

-5

-10
Gasto militar DBGG

Fonte: DBGG (Dívida Bruta do Governo Geral): World Economic Outlook. Gasto Militar: Stockholm
International Peace Research Institute - SIPRI. Deflator: CPI. Elaboração própria.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 48

GUERRA E BOLSA DE VALORES

A guerra é um poderoso instrumento de acumulação financeira na bolsa de


valores NYSE. De fato, a relação entre financeirização e militarização se manifesta
também pelo canal da especulação com as ações de empresas vinculadas complexo
militar industrial. As cinco gigantes da indústria de defesa (RTX - Raytheon, Lockheed,
Northrop Grumman, Boing e General Dynamics) apresentam valorização financeira
muito acima da média do mercado, impulsionada pela elevadíssima injeção de
dinheiro do governo para a compra de armas e equipamentos, a exemplo do que
ocorre em período recente para abastecimento das guerras na Ucrânia e em Gaza. A
cada autorização do Congresso americano de verbas para defesa, há picos no preço
das ações do setor. Isso confere a essas corporações um grande poder de barganha
e influência sobre rumos da política, principalmente em ano de eleições, quando
atuam como patrocinadoras de campanhas de candidatos. Gasto público, dívida
pública e bolsa de valores desenham um horizonte amplamente favorável para a
expansão de seus negócios e em benefício de uma elite rentista parasitária que vive
da máquina de guerra do Estado americano.
Entre os anos 2000 e 2023, as ações da Lockheed se valorizaram, em termos
reais, em aproximadamente 1.143%; Raytheon, 176%; Boing, 144% e a General
Dynamics, 329%.
A indústria de defesa, inserida no ambiente altamente financeirizado da
economia norte-americana, funciona segundo a lógica de maximização do valor do
acionista (shareholder value) em que os lucros são preferencialmente destinados à
distribuição de dividendos e ganhos de capital em detrimento de investimentos. Deve-
se acrescentar que os CEOs dessas empresas, que recebem elevada remuneração,
estão também entre os favorecidos. A pressão pela adoção de uma lógica de
rentabilidade financeira compromete a oferta e a capacidade tecnológica e de
inovação, o que pode estar na raiz da explicação da perda de competitividade para a
indústria militar russa e chinesa, como está ficando claro nos campos de batalha da
Ucrânia. O setor de defesa estadunidense tem se movido por objetivos especulativos
mais que produtivos, enquanto seus principais adversários possuem complexos
49 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

militares industriais estatais, concentrados no esforço de proteção e segurança


nacional.
Para Payne (2022), em suas tentativas de encontrar lucros irrestritos, o capital
financeiro penetrou na esfera militar, resultando na financeirização da guerra, à
medida que financiadores e investidores se tornaram profundamente entrelaçados
com o complexo militar industrial. A financeirização se afina com o fortalecimento das
forças armadas, entrelaçando bancos, gestores de fundos especulativos e grande
número de financiadores individuais que se transformaram em acionistas de empresas
militares dos EUA (Payne, 2022)
Nessa relação entre finanças e militarização, emergem os interesses dos
gestores de ativos e dos grandes bancos, uma vez que são os principais acionistas
das cinco gigantes do setor de defesa. São eles: BlackRock, Vanguard, State Street,
Fidelity, Capital Group, JPMorgan Chase, Morgan Stanley, Newport Trust Company,
Longview Asset Management, Massachusetts Financial Services Company e Bank of
America, para citar apenas alguns (Gott; Seidman, 2023). Herrera (2013) fornece
informações valiosas a esse respeito: “No início dos anos 2000, a proporção
controlada pelo capital financeiro atingiu 95,0% da Lockheed Martin, 85,9% para a
Stewart & Stevenson Serviços, 84,7% para Comunicações L-3, 82,8% para Northrop
Grumman, 76,0 % da General Dynamics, 70,0 % para Raytheon, 66,0 % para Titan,
65,0% para Boeing, etc.” (Herrera 2013: 170).

BREVES CONCLUSÕES

A economia estadunidense do século XXI está amplificando seus mecanismos


de proteção através do totalitarismo neoliberal, que lança mão da financeirização e da
militarização para resolver suas contradições internas e crises de hegemonia. As
saídas, cada vez mais estreitas, estão comprometendo esforços produtivos com
investimento civil, destruindo o já limitadíssimo sistema de proteção social e colocando
em perigo a própria condição de sobrevivência humana no planeta. Genocídio,
ameaças nucleares e conflitos mundiais intermináveis são consequências dessa
lógica levada até o último limite. Os 600 mil mortos do exército ucraniano e os 50 mil
civis palestinos não sensibilizam uma economia guiada pela especulação
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 50

descontrolada e pela máquina de guerra. O sistema financeiro favorece a guerra e a


guerra fortalece os ganhos rentistas, se retroalimentando.
Não obstante, é veloz a dilapidação de sua capacidade de legitimação e
sustentação hegemônica. A falência da estratégia militarista e a insurgência dos
países que formam a resistência ao mundo Ocidental aponta para o surgimento de
uma nova ordem multipolar. Expor a lógica do gasto militar e das finanças
mostrando seus vetores é um meio de ajudar a fortalecer a repulsa à ordem
mundial monocentrista, que se alimenta morbidamente da energia gerada pelas
próprias mazelas que cria.

REFERÊNCIAS
AKÇAGÜN, Pelin & ELVEREN, Adem Yavuz (2021). Financialization and
Militarization: an Empirical Investigation. Political Economy Reserch Institute (PERI),
Working Paper no. 545, jun.
ARRIGHI, Giovanni. (1994). The Long Twentieth Century Money, Power, and the
Origins of Our Times. London and New York: Verso.
BARAN, P. and SWEEZY, P. (1966). Monopoly capital: An essay on the American
economic and social order. New York: Monthly Review Press.
ELVEREN, Adem Yavuz (2019). The Economics of Military Spending: a marxista
perspective. Routledge Frontiers of Political Economy.
FANTACCI, Luca & GOBBI, Lucio (2018). Mobile Capital as the Ultimate Form of War
Finance. In: PIXLEY, Jocelyn & FLAM, Helena. Critical Junctures in Mobile Capital.
Cambridge University Press.
FIORI, José Luis (2004). O poder global dos Estados Unidos: formação, expansão e
limites. In: FIORI, J.L. (Org.) O Poder Americano. Petrópolis, Vozes.
GOTT, Molly & SEIDMAN, Derek. Corporate Enablers of Israel’s War on Gaza.
Site Eyes on the ties, 26/10/2023. Disponível em:
https://news.littlesis.org/2023/10/26/corporate-enablers-of-israels-war-on-gaza/
HUDSON, Michael Hudson (2002). Super-Imperialismo. Pluto Press Release.
51 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 2

PAYNE, Corey (2022). Financialization Feeds Endless War. Site Convergence.


Disponível em: https://convergencemag.com/articles/financialization-feeds-endless-
war/
ROBERTS, Michael (2024). Profits: margins and rates. Michael Roberts Blog.
SIPRI - Stockholm International Peace Research Institute (2024). Global military
spending surges amid war, rising tensions and insecurity. Disponível em:
https://www.sipri.org/media/press-release/2024/global-military-spending-surges-
amid-war-rising-tensions-and-insecurity
STOCKHAMMER, Engelbert (2009). The finance-dominated accumulation regime,
income distribution and the present crisis. Austria, Papeles de Europa 19, p. 58-81.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 52

CHINA, RÚSSIA. ALVÍSSARAS

Elias Jabbour *

Em encontro ocorrido em março de 2023 entre os presidentes Xi Jinping e


Vladimir Putin, em Moscou, o presidente chinês em sua despedida expôs ao seu
homólogo russo que ambos estariam operando “mudanças jamais vistas em cem
anos”. A leitura destas palavras pode ser múltipla, incluindo às ocorrências
desencadeadas pela Revolução Russa de 1917 e seu processo histórico que incluiu
eventos interligados desde a derrota do nazismo e do fascismo na Europa e na Ásia
e a própria Revolução Chinesa de 1949. Na verdade, a Revolução Russa pautou o
século XX, da mesma forma que na medida em que sua filha dileta (a Revolução
Chinesa) vai tomando as rédeas da economia internacional.
Quem apostaria em meio aos trágicos acontecimentos do final da década de
1980 e o final da União Soviética em 1991 que três décadas depois o socialismo
(China) corresponderia a 30% da produção industrial do mundo e já desafia a
hegemonia tecnológica exercida pelo capitalismo central durante séculos? Além
disso, conforme nos lembra o professor Javier Vadell, promove um processo de
globalização – inclusiva e produtiva – que está a substituir aquela baseada nas
finanças? Como a maior exportadora de valores de uso de nossa época, a geografia
econômica do mundo está a mudar completamente em uma reversão do Consenso
de Washington. A China exporta trens, portos, aeroportos, hospitais, escolas,
cidades planejadas etc. Mas também está a frente de processos de industrialização
de países periféricos como Bolívia, Zimbábue, Quênia, Indonésia etc inaugurando
novos esquemas de planificação do comércio exterior que estão a mudar a face da
periferia. Voltarei ao caso chinês mais adiante.
O caso russo não é menos interessante e vale a pena maior concentração.
Em visão de processo histórico podemos dizer que a Revolução Russa de 1917
solucionou a questão nacional de um gigantesco país da periferia europeia. O final

*Professor Associado da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de


Janeiro (FCE-UERJ) e de seus Programas de Pós- Graduação em Ciências Econômicas (PPGCE) e
em Relações Internacionais (PPGRI). Autor, com Alberto Gabriele, de “China: o socialismo do século
XXI”. Vencedor do Special China Award 2022.
53 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

da experiência soviética, por sua vez, recoloca no centro dos destinos da Rússia a
sua independência nacional. O pós-URSS não foi seguida pelo reconhecimento do
lugar da Federação Russa no concerto das nações. Ao contrário, foi iniciado um
processo de contínuo cerco militar, indução ocidental a movimentos separatistas
internos e humilhação nacional. Ou seja, passado o desmanche nacional da década
de 1990 ganha força a consciência para quem a vitória completa do Ocidente sobre
qualquer rastro de autonomia nacional ou sistema social estranhos ao capitalismo
liberal demanda, tendo a Iugoslávia como laboratório, no desmembramento
territorial da Rússia.
Diante desta realidade, desde a ascensão de Vladimir Putin ao poder na Rússia,
o país rapidamente se reorganiza enquanto capitalismo de Estado. Ou seja, grande
parte do antigo estoque de ativos estatais foi agrupado sob forma de conglomerados
estatais e uma série de empresas localizadas em setores estratégicos da economia foi
reestatizada. Desde o início dos anos 2000 o país organizou a formação de grandes
conglomerados estatais. Atualmente conta com cerca de 60 conglomerados nos mais
diversos setores da economia, desde óleo e gás até aeroespecial. Eis um ponto
fundamental na resposta sobre a resiliência russa às sanções. A retomada de uma
“economia de guerra”. Interessante notar, neste sentido, que não estamos a lidar com
uma economia que espelha, como a maioria dos países, sua pauta de exportações.
Ao contrário. A particularidade russa é a de ser uma economia industrial, apesar de
ser exportadora de matérias primas. A indústria corresponde a 26,6% do PIB e o setor
de serviços, 67,8%. A questão da segurança alimentar foi alçada ao grau máximo
desde a onda de sanções lançadas em 2014. Os dados são claros e abrangentes: A
Rússia mais do que dobrou sua produção de cereais desde o início deste século. Saiu
de 64 milhões de toneladas em 2000/2001 para 146,2 em 2022/2023. Em 2016, a
Rússia conseguiu igualar a produção de cereais de toda a ex-URSS (que incluía um
grande celeiro, a Ucrânia). Um grande esquema de substituição de importações fora
lançado e passou a ser um princípio fundamental da política industrial russa. Em
princípio, aplicou-se às compras governamentais e posteriormente estendidas às
compras das empresas públicas e mesmo das empresas privadas.
Com esses dados, ainda superficiais, em vista não poderíamos nos
surpreender que apesar de o país sofrer desde 2022, um verdadeiro ataque
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 54

econômico que foi muito além de tudo o que já havia sido feito contra Irã, Coreia do
Norte, ou mesmo China – com previsão inicial das duas potências anglo-saxônicas e
de seus aliados europeus era de que PIB russo caísse cerca de 30% já em 2022, a
inflação alcançasse a casa do 50%, e o rublo russa se desvalorizasse algo em torno
dos 100% - a Rússia resistiu ao impacto imediato das sanções econômicas em 2022.
Em 2023, o PIB russo cresceu 3,5%, sua taxa de desemprego caiu para 2,9%, sua
massa salarial aumentou 8%, sua renda per capita 5% e sua produção industrial
aumentou 9,4%, entre março e agosto do mesmo ano.
Voltamos ao fator China. Irresistível não relacionar o sucesso russo em mitigar
as sanções sem observar uma mudança em sua estratégia comercial pós-2014. Não
é novidade que a China (e a Índia) ampliou sua participação na cesta de exportações
de óleo e gás russos1. Porém, o que importa são os projetos nascidos desde meados
da última década que ao consolidarem uma tendência de longo prazo de unificação
dos territórios econômicos de China e Rússia também se constrói a base material e
territorial do que Xi Jinping chamou de “mudanças jamais vistas em cem anos”. Esta
joint-venture territorial, uma junção dos projetos de “União Eurásica” (Rússia) e
“Iniciativa Cinturão e Rota” (China) começaram a operar com o lançamento da rede
de gasodutos “Força da Sibéria” inaugurada em 2020 e que pode ser considerada o
turning point da estratégia russa de diversificação de receptores de gás e óleo fora
da Europa. A história deste projeto inicia-se no enigmático ano de 2014. Em 21 de
maio de 2014, Rússia e a China assinaram um acordo de gás de 30 anos com um
investimento no valor de US$ 400 bilhões para viabilizar o projeto. A construção teve
início em setembro de 2014. Essa rede de gasodutos fora completada no ano
passado (2023) com uma extensão de 3.371 km dentro do território chinês, dividida
em três seções - norte, centro e sul. Termina em Xangai, passando por nove
províncias e regiões autônomas, ligando- se à rede de gasodutos do Nordeste, à
rede de gasodutos Shaanxi-Pequim e à rede de gasodutos Oeste-Leste. Mais: A

1 A partir de janeiro de 2023, a China passou a liderar a demanda por petróleo russo (55,2 milhões de
toneladas métricas por dia, com base em média de 30 dias consecutivos); é evidente a queda abrupta
de exportações para a União Europeia desde o início do conflito na Ucrânia quando tanto a UE como
os EUA impuseram sanções às importações de petróleo da Rússia. A UE proibiu as importações
marítimas de petróleo bruto a partir de 5 de dezembro de 2022, enquanto os EUA proibiram todas as
importações de petróleo e produtos petrolíferos da Rússia em 8 de março de 2022
55 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

China deverá ultrapassar a União Europeia como principal consumidor de gás natural
russo após a entrada em funcionamento do gasoduto Força da Sibéria 2 até 2030.
O gasoduto, atualmente em construção, transportará o gás das reservas de Yamal,
na Sibéria Ocidental - a principal fonte de abastecimento de gás à Europa - para a
China. O “Força da Sibéria 2” deve ser analisado com visão de conjunto. Trata-se
do maior movimento feito pela Rússia no sentido de, no estratégico, se desvencilhar
da dependência do mercado europeu de gás. Ou seja, deverá substituir o Nord
Stream 2, que deveria ligar a Rússia à Europa, mas foi abandonado devido ao conflito
na Ucrânia. Uma grande implicação estratégica: ao atravessar todo o território russo
chegando à Mongólia Interior, além de se tornar um passo decisivo na consolidação
da União Eurásica, também é fator que deverá ter grandes impactos no mercado de
energia no mundo. A ver.
Indo mais à fundo estamos a observar a elevação a outro patamar da divisão
social do trabalho em toda a região que envolve tanto Rússia e China quanto em
relação aos seus países fronteiriços. Além disso, a “Economia de Projetamento”
chinesa, além de abrir margem a outra forma superior de acumulação, de orientação
socialista e baseada em “novas forças produtivas qualitativas” está a espraiar sua
influência pela África e Oriente Médio. Em conjunto com a Rússia, tem sido a
inspiração fundamental aos povos em luta pela independência nacional no Níger, Mali,
Burkina Faso em contraposição aberta ao marxismo ocidental e acadêmico que
espelham a decadência da filosofia ocidental pela via do ceticismo e do niilismo
histórico ao separar o mundo entre democracias x autocracias e uma visão negativa
da presença chinesa no Sul Global. A emergência de Rússia e China é mais uma
evidência histórica para quem a Europa deixou, há quase 150 anos, de representar
uma espécie de totalidade civilizatória. A Revolução Russa já fora uma demonstração
de que o eixo da civilização já estava se movendo para fora do “centro”. Tendência
que as revoluções nacionais e populares na periferia tenderam a comprovar. A
esquerda e a perspectiva patriótica e socialista não morreram. O que morreu foi a
filosofia europeia, levando consigo o sopro de vida que o marxismo um dia representou
por lá. Lênin livrou o marxismo da Europa. O caminho está sendo apontado por China
e Rússia. Os dois países que, no século XX, inauguraram a fase da transição da pré-
história da humanidade ao início da verdadeira aventura humana
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 56

na Terra. Não é mera coincidência. Alvíssaras.


57 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

PÊNDULO DE LOBITO: ANGOLA E A GEOPOLÍTICA ENTRE AS GRANDES


RIVALIDADES MUNDIAIS

Javier Vadell*

A política externa pendular de Angola, tendo como ponto focal o porto de Lobito,
levantou muitas questões. Desde o fim da Guerra Civil, Angola é um país muito
próximo da China. Recentemente, um aceno aos Estados Unidos lançou dúvidas
sobre essa relação privilegiada.

A GRANDE SOCIEDADE SINO-ANGOLANA PÓS-COLONIAL

A geopolítica está diretamente relacionada ao controle de mercados e recursos


estratégicos por parte das grandes potências. No continente africano, Angola tornou-
se uma peça crucial do tabuleiro geopolítico imerso na rivalidade sino-americana. O
que está em jogo hoje? E até que ponto a política externa do governo do presidente
João Lourenço pode aproveitar uma conjuntura global crítica e navegar pelas fendas
da rivalidade entre grandes potências?

A guerra civil angolana foi o conflito mais longo de África, durando 27 anos e
culminando em 2002. A partir dessa nova realidade pacificada, pode-se dizer que o
parceiro comercial e diplomático extrarregional mais confiável foi a República Popular
da China (RPC), que estimulou o comércio e promoveu investimentos em
infraestrutura. Angola, um grande produtor de petróleo, também se tornou uma fonte
de abastecimento para a economia da China, variando de 7% a 9% do total de petróleo
que a RPC importa do mundo.

A China tem sido um ator fundamental desde a reconstrução pós-Guerra Civil


e o principal parceiro comercial de Angola desde então. Os números são realmente
chocantes. Em 2022, segundo dados oficiais sistematizados pela Agência de

* Professor de Relações Internacionais da PUC-MG e pesquisador do CLACSO


RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 58

Cooperação Internacional do Japão, o comércio internacional de Angola com a RPC


representou 57,5% do total das exportações, seguindo-se a Índia com 7,7%. Os
Estados Unidos da América (EUA) foram o terceiro maior parceiro comercial, com
5,3%.

A assimetria no comércio é evidente a favor da China e isso também está


relacionado com a falta de diversificação das exportações de Angola, uma vez que a
produção de petróleo prevalece na estrutura do PIB com quase 29% do total. De
acordo com os mesmos dados, na composição dos produtos exportados de Angola
em 2021, o petróleo representou 83%. Nas importações, embora com parceiros
comerciais mais diversificados, a China também lidera com 15% do total, seguida de
Portugal com 12% e muito atrás os EUA com 5%.

A irmandade da China com os países africanos é reforçada com a criação do


Fórum de Cooperação China-África (FOCAC), inaugurado em 2000, como uma
plataforma minilateral para o fortalecimento das relações de cooperação em sentido
holístico, uma vez que o paradigma chinês de cooperação, ao contrário da porção
ocidental da OCDE, inclui comércio e investimento. No ano seguinte, a RPC aderiu à
Organização Mundial do Comércio e, em abril de 2002, a paz foi assinada em Angola,
após a sangrenta guerra civil. Esta parceria bilateral sino-angolana foi reforçada com
a assinatura do Memorando de Entendimento (MdE) da Iniciativa Cinturão e Rota
(BRI1) durante a reunião ministerial do FOCAC realizada em Pequim em 2018.

O timing foi oportuno para ambos os lados: para a China, pela necessidade
urgente de recursos naturais e energéticos e pelo estreitamento dos laços
diplomáticos com os países africanos, e para Angola, pela necessidade prioritária de
reconstruir a nação. Neste cenário, a China foi crucial para a reconstrução de Angola,
participando em muitos projetos significativos.

Em aproximadamente vinte anos, a RPC participou: (a) da construção do novo


aeroporto de Luanda com investimentos de US$ 450 milhões; b) da reabilitação do
caminho-de-ferro de Luanda (444 km), com um custo de 90 milhões de dólares; c) da
expansão da rede elétrica de Luanda com a China National Machinery and Export

1 Iniciativa Cinturão e Rota (BRI).


59 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

Corporation, com a obrigação de subcontratar 30% do valor à empresas angolanas;


d) da reabilitação da linha férrea Namibe-Menongue (900 km) com um investimento
de 2.000 milhões de dólares; e) de investimentos significativos em transportes
públicos urbanos no valor aproximado de 500 milhões de dólares para as províncias
de Luanda, Benguela, Huambo, Uíge e Malange, com a aquisição de 5.500 viaturas
– com a exigência do governo angolano de que parte dos veículos seja montada no
país; (f) da construção, em 2006, do atual Hospital Geral de Luanda, com um custo
total de US$ 8 milhões, dos quais US$ 6 milhões foram concedidos pela China e os
restantes US$ 2 milhões financiados por Angola; g) Construção, equipamento e
transferência de conhecimentos em 53 instituições de ensino tecnológico. Entre elas,
a construção de 13 institutos politécnicos secundários – gestão agrícola,
administração etc. – em 2007 e mais de 21 em 2009.

Por fim, como menciona o título de nossa análise, devemos destacar aquele
que talvez seja o mais importante trabalho de interconectividade na geopolítica
regional. A recuperação da linha ferroviária Lobito (Benguela)-Luau (Moxico) com mais
de 1.300 quilômetros ligando o porto de Lobito, no Atlântico, à fronteira de Angola com
a República Democrática do Congo (RDC) e a Zâmbia. O custo do investimento foi de
aproximadamente US$ 1,8 bilhão. Três mil trabalhadores angolanos e cerca de mil e
quinhentos trabalhadores chineses trabalharam nesta obra.

O CORREDOR DO LOBITO E A POLÍTICA EXTERNA DO PÊNDULO DE ANGOLA

Em 2017, o novo presidente de Angola, João Lourenço, tinha dois objetivos


principais: 1) implementar políticas públicas para diversificar a economia orientada
para a exploração petrolífera e investir na agricultura e na autossuficiência alimentar;
2) diversificação da política externa para reduzir a dependência da China. Ou seja,
diversificar os parceiros de negócios para ganhar margens de autonomia. O impulso
para esta dupla diversificação teve altos e baixos e teve impacto na política
macroeconômica de Angola, no entanto, foi durante o segundo mandato de Lourenço
que o ambiente geopolítico mudou a favor do país africano.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 60

Em tempos de narrativas da Guerra Fria, refletindo uma complexa rivalidade


entre China e EUA, os países do Sul Global encontram-se em uma encruzilhada. Além
disso, o conflito na Ucrânia e o fracasso das sanções contra a Federação Russa
despertaram o interesse dos EUA em se aproximar dos grandes produtores de energia
e recursos minerais.

Neste contexto, o aceno de Angola ao Ocidente está condicionado por fatores


nacionais e internacionais. Alguns analistas não só elogiaram a mudança de Lourenço
na política externa angolana, como afirmaram, em 2022, que a lua de mel com a China
havia acabado. Foram afirmações prematuras?

O conflito na Ucrânia, que envolve a Federação Russa e os países da


Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), para além daquele país,
desencadeou dois processos que estavam latentes. O primeira foi uma espécie de
insubordinação do Sul Global recusando-se a aplicar sanções à Rússia, o que acabou
deixando-os estéreis e, por outro lado, uma preocupação crescente dos EUA em se
aproximar de países do Sul Global que produzem petróleo e minerais estratégicos.

Neste contexto, o Presidente João Lourenço, reeleito em 2022, fez uma visita
aos EUA em novembro de 2023. O encontro com o presidente Joe Biden promoveu
as relações diplomáticas e a cooperação bilateral em alto nível. Além de prometer
incentivos ao comércio e investimentos, o foco de interesse foi o corredor de Lobito.
Este complexo de interconectividade inclui: o porto de Lobito e uma ferrovia de mais
de 1.300 quilômetros cuja reconstrução foi levada a cabo pela China, como acima se
destacou. Esta linha ferroviária liga Angola à RDC e à Zâmbia e catapulta ambos os
países para os mercados globais. O objetivo de sua revitalização é melhorar o acesso
aos mercados dos Estados Unidos e da União Europeia para minerais estratégicos de
ambos os países.

Os líderes de Angola estão conscientes de que o seu país é um território-chave


e um eixo geopolítico crucial da África subsaariana, e não apenas por causa das suas
reservas petrolíferas. O corredor de Lobito assegura o fluxo de recursos minerais
estratégicos da RDC para o porto atlântico com um potencial extraordinário. A ferrovia
não só se conecta com o interior da República Democrática do Congo como também
61 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº1

tem uma rota planejada para ligá-la à Zâmbia, um país mediterrâneo muito interessado
em ligar o Oceano Pacífico, via Tanzânia2, com o Atlântico, via Angola. Vale a pena
notar que todos os quatro países subsaarianos mencionados são signatários do MdE
da BRI, uma plataforma de infraestrutura liderada pela China.

Neste cenário, a aposta dos EUA em Angola é ousada e vai além dos anúncios
bombásticos a que Washington nos habituou. Biden e Lourenço discutiram os
principais investimentos econômicos dos EUA em Angola, nomeadamente através da
emblemática Parceria para Infraestruturas e Investimentos Globais (PGI) do
presidente norte-americano no Corredor de Lobito, com mais de 1 mil milhões de
dólares em financiamento norte-americano.

Esses investimentos incluem o apoio a mais de 180 pontes rurais, a


modernização da conectividade digital 4G e 5G em todo o país, a introdução do
primeiro aplicativo de dinheiro móvel, o fornecimento de 500 megawatts de energia
solar para a rede nacional e mais US$ 1 bilhão mobilizado para o maior investimento
ferroviário na África.

Em janeiro deste ano (2024), a aposta norte-americana duplicou com a visita


do secretário de Estado Anthony Blinken a Angola. Na ocasião, os dois países
assinaram um conjunto de 15 instrumentos de cooperação que incluíam: parcerias
sustentáveis em setores como agricultura, comércio, telecomunicações, energia
renovável, refino de petróleo, exploração espacial e defesa e segurança.

A equidistância pragmática parece ser a receita de Angola nestes tempos


turbulentos. Durante a visita de Blinken, o ministro dos Negócios Estrangeiros
angolano, Tete Antonio, disse que "Angola é um país aberto ao mundo e as
necessidades são tantas que há espaço para cooperação". Teve ainda o cuidado de
deixar claro que: "engana-se quem pensa que a visita de Blinken significa um
distanciamento da Rússia, que durante décadas foi o principal apoiante do Movimento
Popular de Libertação de Angola (MPLA), partido no poder, ou mesmo da China".

2É importante lembrar que, na década de 1960, a RPC financiou o maior projeto de infraestrutura da
África. A Ferrovia Tanzânia-Zâmbia, conhecida como Uhuru ou Tanzara Great Railway, permite à
Zâmbia uma saída para o Oceano Índico.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 62

CHINA DÁ O GOLPE FINAL, MAS ANGOLA BALANÇA O PÊNDULO

O contrato de concessão do corredor de Lobito foi assinado pelo Governo


angolano e por uma sociedade mista europeia, o consórcio Lobito Atlantic Railway
(Trafigura, Mota Engil e Vecturis) em julho de 2023. Sua duração é de 30 anos,
podendo ser prorrogada por mais 50 anos, caso a concessionária opte por construir
os ramais de Luacano (Mixico, fronteira com a RDC) e Jimbé (Zâmbia). Em janeiro de
2024, o primeiro carregamento de minério da região de Katanga, na RDC, chegou ao
porto de Lobito com 16 vagões.

Paralelamente ao sucesso do projeto do corredor de Lobito, neste mesmo ano


de 2024 há o grande reencontro entre Angola e China, que começou com o acordo de
proteção recíproca de investimentos em dezembro de 20233 e foi consumado com a
visita do Presidente João Lourenço ao país asiático em março de 2024. Durante o
encontro, os líderes dos dois países anunciaram que levarão as relações bilaterais a
um novo patamar. O resultado foi variado e muito promissor para o país africano.
Ambos os países assinaram acordos nas áreas de intercâmbio e cooperação em
desenvolvimento econômico, ecologia verde e projetos de baixo carbono. Além dos
acordos assinados que também preveem o perdão da dívida e o trabalho conjunto
para diversificar a economia angolana, o encontro entre Xi Jinping e João Lourenço,
em Pequim, consolidou as relações bilaterais para estabelecer uma parceria
estratégica abrangente.

Em um cenário de incerteza típico de um período de transição, a disputa por


recursos e mercados é crucial no tabuleiro geopolítico global e essa disputa é
atravessada por uma rivalidade cada vez mais clara entre China e Federação Russa
contra os EUA e seus seguidores ocidentais na Europa, Israel e aliados históricos no
Pacífico. Nesse contexto, algumas potências médias regionais se dão ao luxo de
navegar pelos interstícios da rivalidade, capitalizar seu potencial e diversificar sua

3 Pequim cancelou as tarifas de importação sobre 98 produtos angolanos que começaram a entrar no

mercado chinês a partir de 25 de dezembro de 2023. Este benefício foi alargado a outros países
africanos.
63 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

dependência para ganhar margens de autonomia nesse emaranhado mundo


multicêntrico. Angola parece ser um exemplo claro desta jogada arriscada.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 64

PORTUGAL: ENTRANDO NO CICLO EUROPEU CONTEMPORÂNEO POR UMA


“VIA BRASILEIRA”
Carlos Serrano*

APRESENTAÇÃO

As últimas eleições parlamentares portuguesas, no dia 10 de março, levaram


Portugal, por uma “via brasileira”, ao ciclo europeu contemporâneo. Definiremos esse
ciclo através de algumas características latas, não imediatamente reconhecíveis em
todos os estados europeus, existindo, no entanto, rasgos gerais transversais,
tendências que ganham formas e temporalidades distintas conforme as formações
econômico-sociais, ou seja, a materialização histórico-concreta do modo de produção
capitalista com as realidades nacionais. Por isso, antes de definir o ciclo, vejamos a
dinâmica portuguesa, que explica o “atraso” português de entrada nesse ciclo.

A história e particularidade de Portugal no ambiente europeu é o de ser um país


semiperiférico, um capitalismo retardatário, que sofreu o seu processo de
conformação do capitalismo – com concentração e centralização de capitais – pelo
alto, a partir da iniciativa do fascismo; que teve sempre uma existência voltada para
fora, primeiro através do mais longo império colonial (e o último), entre 1415 e 1999,
e depois com a entrada na Comunidade Econômica Europeia (CEE, hoje União
Europeia (UE)), em 1985; esta realidade é derivada em grande parte de sua posição
geopolítica, da ameaça existencial secular espanhola, que levou à dependência
precoce para com a Inglaterra; o agravamento da dependência econômica nas últimas
décadas, com a desnacionalização e desindustrialização da economia, e a inserção
subalterna enquanto provedor de bens de serviço não-transacionáveis (em particular,
o turismo), de bens industriais ligados ao agronegócio, como vinicultura e cortiça, e de
alguns bens de luxo, mas não centrais, como calçados; a emigração como fator
marcante e válvula de escape das tensões sociais e, apenas muito recentemente, a

*Mestre em Ciência Política UHLT (Lisboa) e pesquisador do Laboratório de Estudos sobre


Hegemonia e Contra-Hegemonia (LEHC)
65 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

imigração, que tem servido como elemento para garantir os mecanismos de


superexploração de trabalho em um país de pequena população, cada vez mais
envelhecida, e onde os jovens têm emigrado. Acrescente-se como particularidade
histórica, ainda que recente, a Revolução dos Cravos, que em 25 de abril deste ano
completa cinquenta anos, e que pôs fim ao regime fascista mais longo da história. Esta
foi iniciada por um levante das forças armadas, em particular do baixo-oficialato
(“capitães de Abril”), desencantada com a situação do país e desejosos de pôr fim à
guerra colonial que desde 1961 vinha sangrando o país. Em seguida houve a entrada
das forças populares e uma radicalização revolucionária, com medidas econômicas e
sociais transformadoras, freada apenas por um corte com o golpe de 25 de novembro
de 1975. Esta última revolução democrática, social e operária europeia do século XX,
teve uma dinâmica própria, com suas particularidades, por sua vez: sua dimensão
internacional (em sua origem, uma questão internacional, a descolonização africana;
em seu fim, a posição geopolítica portuguesa e a sua participação na Aliança Atlântica;
pelo meio a preocupação estadunidense de que significasse um fenômeno de dominó,
com a emergência de um Mediterrâneo vermelho, ainda que tecnicamente Portugal
não seja parte do Mediterrâneo); e seu caráter quase pacífico, caindo o regime de
podre, mas sem um ajuste de contas com os agentes repressivos e os colaboradores
do regime (que não foram poucos). Toda esta particularidade da formação econômico-
social portuguesa explica que tenha entrado de forma retardatária no ciclo político
europeu que, em nossa opinião, vem sendo gestado desde o início dos anos 2000,
mas que alguns países começam a apresentar esta tendência antecipadamente, como
a Itália, com a reforma política de 1993. Em certos pontos, Portugal chega atrasado
mesmo ao penúltimo ciclo político europeu, que viu a crise dos partidos comunistas
ocidentais.

O que estou a chamar de ciclo político europeu contemporâneo é uma refração


das tendências mundiais, com a crise econômica do neoliberalismo – ainda que as
concepções básicas de mundo, a mundivisão neoliberal, completamente vitoriosa,
com reflexos sobre os limites ideológicos do polo oposto, a esquerda. Este ciclo é
caracterizado pelo esfacelamento da esquerda – em particular à esquerda da social-
democracia; por uma maioria política de centro-direita e direita, e o fortalecimento da
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 66

extrema-direita; ideologicamente por uma crescente securitização do discurso público,


em particular da imigração e contra o eixo sino-russo; pelo aprofundamento do
conservadorismo político e uma hegemonia ideológica neoliberal na economia, em
que pendularmente se vai de uma política de austeridade à políticas de retoma
econômica com instrumentos incapazes de reverter o processo de financeirização da
economia (como o período Draghi no BCE, entre 2011 e 2019), e combinações disto
pelo meio. Até agora a centro-direita e direita tradicional na Europa têm tido políticas
distintas em relação às forças da extrema-direita. Inicialmente foi predominante a
construção de um cordão sanitário, mas com a fragilização da esquerda, cada vez
mais procedem com uma normalização dessas forças, inclusive, com uma “estratégia
papagaio”, de mimetizar a agenda e políticas da extrema-direita. A hegemonia
ideológica neoliberal reflete-se na esquerda com a adoção de agendas políticas “pós-
materiais”, que vão muito adiante dos níveis de consciência da população, em geral
detendo-se não em políticas de luta contra a opressão, mas no campo das lutas de
identidades; abandonando políticas soberanas e a classe operária; e aceitando, não
como política das elites, a integração econômica europeia neoliberal, a
desindustrialização e a posição subalternizada à potência decadente estadunidense,
mas como destino ou mesmo como elementos progressistas. A luta ambiental,
também característica, é feita não em uma perspectiva casada com a justiça social e
de desenvolvimento, mas de negação do desenvolvimento e/ou alteração de padrões
de consumo (ainda que existam setores minoritários com outra perspectiva).

Marcante no cenário português, que o distinguia do resto do cenário europeu,


era a inexistência de uma extrema-direita e de partidos abertamente neoliberais; a
presença de uma esquerda à esquerda da social-democracia com grande expressão,
em particular a presença de um Partido Comunista forte e ortodoxo; e certo equilíbrio
na comunicação social no eixo direito-esquerda. Era comum ao ciclo político europeu
anterior, que se manteve por mais tempo – diferentemente do caso italiano como já
referido – um bipartidarismo consolidado entre centro-esquerda e centro-direita (PS e
PSD), em que acessoriamente era incorporado no caso de governos da centro-direita
o CDS-PP, partido que servia de abrigo para todas as forças mais à direita do
67 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

espectro, sem um perfil definido por isso (originalmente democrata-cristão, depois


agregado populistas de direita e neoliberais, com a presença de fascistas, mas sem
este carácter marcado), um verdadeiro catch-all party do espectro mais à direita.
Também vem do ciclo anterior, do qual se manteve, a partir da deriva neoliberal da
social-democracia, a manutenção de um caráter progressista de bandeiras contra a
opressão (como a aprovação do direito ao aborto em plebiscito) e a implantação de
uma política de descriminalização do consumo da droga.

Contudo, a partir de 2011, toda a estrutura que vinha consolidada desde o início
dos anos oitenta, com a normalização do regime democrático burguês (tendo como
marco a revisão constitucional de 1982 e a extinção do Conselho da Revolução, por
meio do qual o Movimento das Forças Armadas exercia uma tutela sobre a nova
democracia), começa a ruir. Isto ocorre pois chega, com toda a força, os efeitos da
crise imobiliária internacional, com grande impacto em Portugal, onde veio a se
combinar a decadência produtiva iniciada com a reversão das conquistas econômicas
democráticas da Revolução dos Cravos e a entrada na CEE (com um salto após a
introdução do euro, que limitou a política monetária, beneficiando a Alemanha) à
política equivocada de apostar na área de bens não-transacionáveis e um governo
social-democrata, do Partido Socialista, dirigido por um articulador considerado
corrupto (e com fortes indícios reais), José Sócrates. Esta crise é vendida em nível
nacional como resultado exclusivo da governação socialista. Com o fim do XVIII
Governo Constitucional, após a rejeição pela coligação negativa de PSD, CDS-PP,
PCP e BE contra o novo Programa de Estabilidade e Crescimento, e a demissão do
Primeiro-Ministro, ascendeu um governo de centro-direita e direita, ultra-neoliberal,
liderado por Pedro Passos Coelho, que realizou uma política recessiva, indo para além
das imposições da Troika que eles trouxeram ao país, verdadeira força diretiva,
composta pela Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário
Internacional. Causaram forte emigração, decadência econômica, destruição do que
restava do setor econômico público e retirada de direitos dos trabalhadores e
aposentados.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 68

Nas eleições ocorridas em 2015, a aliança troikista volta a vencer, mas com
maioria relativa e em minoria em relação ao conjunto das esquerdas (PS, BE, CDU
(PCP e PEV)). A partir da iniciativa do PCP, o cordão sanitário imposto até aquele
momento às forças à esquerda da social-democracia no jogo parlamentar e
governativo começa a cair: o secretário-geral Jerónimo de Sousa propõe uma política
de viabilização parlamentar, realizada por acordo em torno de uma série de
restituições de direitos, aceito pelos demais partidos de esquerda, garantindo um
governo de minoria do PS, reeleito depois em 2019 da mesma forma (mas tendo ficado
à frente desta vez, com maioria relativa). Contudo, como ocorreu na Europa, qualquer
forma de apoio – que foi da viabilização parlamentar à entrada no governo – das forças
à esquerda da social-democracia produziu uma debacle eleitoral desta pela absorção
dos eleitores pela social-democracia. O “cordão sanitário” à esquerda, apesar de
inviabilizar governos de esquerda e o crescimento da esquerda à esquerda da social-
democracia (PS), mantinha um espaço próprio que desacelerava a transição de votos
para a social-democracia (mas que lentamente já ocorria, por exemplo, no Alentejo,
com a perda lenta, mas constante, de votos do PCP para o PS). Apesar da
necessidade da chamada “geringonça” contra um novo governo de destruição
nacional, a dificuldade das demais forças de esquerda (PCP, PEV e BE) de se
diferenciarem, por um lado, dos elementos de não-avanço, e a incapacidade de
colherem os louros dos avanços, levou a um desgaste que culminou no erro de uma
nova coligação negativa que rejeitou, pela primeira vez na democracia, o orçamento
de Estado, em 2021, levando a novas eleições, e uma punição pelos eleitores que
deram uma maioria absoluta ao PS (beneficiada também pela extremamente eficaz e
responsável gestão da pandemia e pelo medo da crescente ameaça fascista).

A nova configuração que sai das urnas em 2022 diminui a pressão à esquerda
do PS, fortalecendo os setores menos progressistas do partido (derrota dos “Jovens
Turcos” de Pedro Nuno Santos), e faz com que o governo estabilize na manutenção
da situação e não desenvolva saídas potenciais. Problemas econômicos que vinham
se acumulando, agravados pelos efeitos da massificação do turismo (motor da retoma
económica pós-crise), com a gentrificação e uma crise urbana tremenda, foram
69 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

agravados pela nova fase da crise ucraniana com a operação militar especial russa e
a especulação decorrente sob a ruptura das cadeias produtivas (já rompidas durante
a pandemia) e elevação dos custos do gás e eletricidade (problema real na Alemanha,
especulativo em Portugal, não dependente do fornecimento russo), e a inflação dos
alimentos, que tornou os baixos salários portugueses – já pressionados pelo aumento
dos aluguéis e preços de imóveis – ainda mais claros. Ia se configurando uma
tempestade perfeita, que explodiu em fins do ano passado e que culminou nas novas
eleições que levaram Portugal, definitivamente, a entrar no ciclo político europeu
contemporâneo. Mas, a condição que se coloca é: que elementos fizeram uma
aceleração tão grande do processo de transformação interna em Portugal que, em
poucos anos, passou de um país descolado do ciclo europeu para que assuma de
forma tão desenvolvida este ciclo?

A nossa hipótese é que chega, seja pelos laços históricos entre o país e o Brasil,
seja pelas largas comunidades de brasileiros em Portugal, de portugueses no Brasil
(e também de portugueses nos EUA, que ampliam essa tendência, como trataremos
depois); seja pela similaridade de aspectos das duas formações sociais (inclusive pela
aproximação portuguesa da dinâmica da dependência latino- americana); bem como
pelos laços históricos dos fascistas tupiniquins e dos fascistas lusitanos (que remontam
à proximidade entre os integralismos dos dois lados do oceano, o lusotropicalismo, e
mesmo a imigração para o Brasil da ditadura empresarial-militar dos principais
dirigentes políticos e econômicos do salazarismo, como o próprio Marcello Caetano
para o Rio de Janeiro) por mimetismo, interpenetração, conexões e afinidades
eletivas; foi através de uma via brasileira que Portugal entrou no atual ciclo
fascistizante europeu, resultando no crescimento de um partido fascista, o Chega. Este
que, poucos meses depois da aceitação da sua inscrição partidária, em 9 de Abril de
2019, pelo Tribunal Constitucional (apesar de contrariar a Constituição da República
Portuguesa), elege nas legislativas do mesmo ano seu líder e principal articulador, o
“Bolsonaro” português, André Ventura, como deputado único; passa para uma
bancada de doze deputados em 2022, se tornando a terceira força política nacional; e
conquista este ano de 2024 uma bancada quatro vezes maior, novamente como
terceira força, com 48 deputados, e primeiro partido no
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 70

espectro da direita, com exceção do PSD, a ter mais de um milhão de votos, elegendo
– intenção bloqueada na legislatura anterior – o sombrio Diogo Pacheco de Amorim
como um dos vice-presidentes da Assembleia da República. Esta figura pode não
dizer nada aos de fora de Portugal, mas tem uma história notável nas hordas de
extrema-direita: foi dirigente do Movimento Democrático de Libertação de Portugal
(MDLP), uma organização terrorista fascista responsável por ataques bombistas
durante o verão quente de 1975 e o Processo Revolucionário em Curso (PREC), que
vitimou, entre outros, o militante da organização maoísta União Democrática Popular
(UDP), e candidato à Assembleia Constituinte, Padre Max, e sua aluna, Maria de
Lurdes Ribeiro Correia. Ele ainda foi militante do CDS-PP e um dos fundadores do
fascista Partido da Nova Democracia, já extinto.

A ASCENSÃO FASCISTA EM PORTUGAL

Em 28 de Setembro de 1974, o presidente general António Spínola, em


articulação com os elementos mais reacionários existentes no pós-25 de Abril, tentou
realizar uma manifestação da chamada “maioria silenciosa”, que foi frustrada pela
ação da frente revolucionária, e levou à demissão de Spínola. Claramente, esta não
era uma maioria, fosse silenciosa ou não. Da mesma forma, como demonstraram os
resultados eleitorais de 10 de março, em que 75% dos eleitores votaram em partidos
não-fascistas, e o desfile popular do 25 de abril deste ano, em que não havendo
números oficiais é considerada já a maior manifestação da história do país, ao menos
desde o 1º de maio de 1974, o fascismo não é uma maioria, é uma minoria social.
Contudo, é uma minoria cada vez menos silenciosa. E com um crescimento
expressivo. Se somarmos os votos do partido que é identificado como fascista,
claramente, o Chega, ao do Iniciativa Liberal (que é o equivalente ao Partido Novo no
Brasil, em que seu ultraneoliberalismo o aproxima, tanto em programa econômico,
como cada vez mais nas outras áreas, dos fascistas), o ADN (partido negacionista da
COVID e da crise climática, contra os direitos LGBTQI+) e o Ergue-te (antigo PNR)
veremos que a evolução deles é considerável. O ADN, inclusive, foi o partido que mais
cresceu proporcionalmente entre as eleições de 2022 e 2024, passando de 10 mil
71 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

votos para 100 mil (ainda que não tenha eleito nenhum deputado), com apoio principal
do setor evangélico, inclusive financeiro e político de líderes brasileiros, como os
pastores Marco Feliciano e Silas Malafaia. Esta organização é impulsionada por ex-
membros evangélicos do Chega que consideram que este se moderou.

Nas eleições de 2015 para 2019 e 2022, grande parte da votação dos novos
partidos de extrema-direita, do qual o ex-PNR e atual Ergue-te não conseguiu se
aproveitar, foi devido à migração de votos da direita tradicional CDS-PP e do PSD
(antes centro-direita e atualmente direita). O CDS-PP inclusive, só retornou ao
parlamento em 2024 graças à aliança com o PSD, pois pela primeira vez em sua
história ficou fora da AR, em 2022. Contudo, o crescimento do Chega e do IL, mas
principalmente do primeiro, entre 2022 e 2024, só tem uma explicação: a redução da
abstenção eleitoral, que vinha crescendo desde os mínimos históricos na primeira
eleição pós-fascismo para a Constituinte em 1975 (8,34%), com quebras pontuais e
ligeiras na tendência em 1980, 2002 e 2005. Já em 2022, parte do crescimento da
extrema-direita, após a maior abstenção de todas em 2019, foi deste fator, e entre
2022 para 2024 foi claramente esta a principal causa: a participação eleitoral passou
de 48,57% de eleitores (5.251.064 votantes) em 2019, para 51,42% de eleitores
(5.563.497 votantes) em 2022, para 59,84% de eleitores (6.473.789 votantes) em
2024. Note-se que se houve um aumento dos inscritos para votar, relevante entre
2015 e 2019 (o que explica em parte o crescimento da abstenção, pela alteração do
universo de inscritos totais como eleitores (9.682.553 em 2015 para 10.810.674 em
2019), isto não se viu entre 2019 e 2024, mantendo sempre a mesma fasquia
(10.820.337 em 2022 e 10.818.226 em 2024). Um indicador ainda mais importante foi
o distrito de Faro, único onde o Chega (com 27,19% dos votos) ficou à frente do PS
(25,46%) e da AD (aliança PSD, CDS-PP e PPM) (22,39%), e foi onde a abstenção
mais caiu (10,48 pontos percentuais menos do que 2022). Neste distrito, o Chega teve
nas eleições de 2022 12,3%. Outro exemplo: em Santarém, a abstenção caiu, entre
2022 e 2024, 8,83 p.p., e a votação do Chega cresceu 12,41 pp. Poderia se seguir,
mas é desnecessário, pois este é o padrão. No total, a votação do Chega cresceu
10,89 p.p. de 2022 para 2024, e a abstenção caiu 8,42%, não explicando tudo, mas
grande parte do aumento de votos.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 72

Figura 1: Evolução total de votos nas legislativas da extrema-direita em Portugal


(2015, 2019, 2022 e 2024).
1800000
1597320
1600000

1400000

1200000
Ergue-te
1000000 ADN

800000 IL
688837
Chega
600000
TOTAL
400000
152633
200000
27629

0
2015 2019 2022 2024

Fonte: Gráfico construído pelo autor a partir de dados do CNE


Nota: Em 2015 existia apenas o atual Ergue-te, que concorreu em 2015 e 2019 ainda sob seu nome antigo (PNR).
O ADN surge pela mudança de nome do PDR (surgido em 2015), que concorreu às eleições em 2015 e 2019, mas
há uma alteração de natureza, que nos faz considerar que diferentemente do Ergue-te introduz um corte que vai
para além da alteração de nome, por isso não são contabilizados nos partidos de extrema-direita os votos do PDR.

A grande questão é descobrir o porquê desse enorme contingente da


população votar nos partidos de extrema-direita. Uma das explicações que vem sendo
cogitadas é um sentimento anti-imigração. De fato, algumas das zonas importantes
de onde vieram os votos de extrema-direita, como o Algarve (que coincide com o
distrito de Faro), o Alentejo e a Grande Lisboa são as zonas de maior imigração no
país. Contudo, em geral a imigração não é de grande escala no país, comparado com
o conjunto da população – é mesmo uma das porcentagens mais baixas entre os
países europeus, mesmo que a percepção da presença imigrante, provavelmente pela
concentração espacial e pelo peso importante em vários setores, como na construção
civil, hotelaria, restaurantes, no setor turístico em geral, faça com que a distorção entre
a percepção do total de imigrantes pela população e a porcentagem real seja das
maiores na Europa, como revelam os sucessivos relatórios estatísticos anuais do
73 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

Observatório das Migrações de Portugal. A mudança também no perfil de imigração,


com o crescimento de grupos vindos da Ásia, pode também alterar a percepção da
integração destes imigrantes pela população. Contudo, os relatórios estatísticos
também demonstram que Portugal vem sucessivamente se destacando pela positiva
na percepção da imigração como algo positivo. E mesmo o discurso fascista sendo
cada vez mais anti-imigração, é notável que não seja o centro discursivo (o principal
é o discurso moral, à Bolsonaro, e anticorrupção), e que o inimigo principal discursivo
não seja o imigrante em geral. Isto deriva desta visão majoritária favorável da
população à imigração. Lembremos, e não deve ser de menor importância, que muitos
portugueses já viveram na emigração ou tem parentes que vivem fora do país,
inclusive onde as forças fascistas são muito mais centradas no discurso anti-
imigração. A ascensão de André Ventura, ainda quando candidato pelo PSD à Câmara
Municipal de Loures, foi voltado contra os ciganos, única minoria étnica histórica, e
este é um elemento ainda presente. Outro fator central para que a xenofobia seja um
elemento importante, mas não em primeiro plano, é a presença de largas comunidades
de imigrantes brasileiros e venezuelanos (estes últimos na Madeira, principalmente)
que são em sua maioria conservadores e favoráveis aos partidos fascistas. A
comunidade brasileira, inclusive, é a maior comunidade imigrante.

Então, onde encontraremos as bases para o descontentamento que move estes


movimentos fascistas? O primeiro elemento é a existência de parte da população que
nunca se reviu no regime democrático. Entre estes estão, por exemplo, muitos – mas
não todos, obviamente – dos chamados “retornados”, ex-colonos das colônias
africanas que enxergam no regime democrático, no 25 de Abril, como culpado da
perda de propriedade, posição social ou de estilo de vida, já que com a descolonização
tiveram de retornar às pressas para Portugal continental (meio milhão só de Angola e
Moçambique, chegando em apenas um ano). Poderíamos apontar aqui outros fatores:
o crescimento das forças fascistas na Europa, EUA e Brasil; o crescimento da
comunidade brasileira, com muitos evangélicos de denominações fascistizantes; e,
apesar dos resultados favoráveis econômicos, dos limites da
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 74

governação do Partido Socialista nos últimos anos, amplificado pela ação do judiciário
e das mídias.

Os governos do PS tiveram grande avanço enquanto estavam condicionados


pelo acordo que criou a “geringonça”, ocorrendo a reposição de vários direitos, a
criação do passe único intermodal (por exemplo, para um cidadão adulto, o passe
custa quarenta euros mensais e dá direito a se utilizar todos os transportes públicos
da grande Lisboa), entre outras medidas. A gestão da pandemia também foi
destacada em nível internacional como de excelência. Contudo, a pandemia
destampou a realidade do sistema público de saúde, posto sob pressão, e que levou
a que depois da superação desta os limites acumulados por sucessivos governos em
relação ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) aparecessem. A recuperação da crise
econômica pós-governo da Troika foi também puxado em grande parte pelo turismo
de massas, com efeitos perturbadores da estrutura e da vida social e comunitária em
todo o país, em particular nas grandes cidades, com forte pressão sobre o mercado
de arrendamento e de compra e venda de imóveis, com uma bolha especulativa
crescente e a gentrificação decorrente. O custo de vida, que em geral era baixo para
padrões europeus, e assim compensava até certo ponto os baixos salários, começou
a ser pressionado, primeiro pela situação no mercado imobiliário, mais ainda depois
da pandemia, e pela especulação em torno à Guerra na Ucrânia, levando a que as
condições de vida da população sofressem um enorme revés. As medidas do PS
foram insuficientes para reverter este quadro, ainda quando importantes, como os
subsídios para o auxílio ao arrendamento e os aumentos extraordinários de
aposentadorias. Neste cenário, a direita viu uma possibilidade de retomar ao governo,
porém, a fraqueza de seus líderes, como Rui Rio e depois Luís Montenegro, no PSD,
abriu espaço para que a contestação recaísse nas mãos de um líder carismático
fascista, André Ventura, ainda que não fosse esse o plano inicial dos grandes meios
de comunicação.

E estes meios de comunicação foram fundamentais na amplificação de uma


série de indícios de corrupção no governo. Alguns meios de comunicação, como a
75 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

CMTV, apostam também permanentemente no terrorismo midiático sobre a segurança


pública, repetindo e amplificando casos pontuais, criando uma sensação de
insegurança em um dos países mais seguros do mundo. E combinaram-se assim dois
fenômenos: a grande comunicação social tradicional a criar um ambiente de
descrédito das instituições, e as redes sociais a disseminarem, seguindo o padrão
brasileiro do “gabinete do ódio”, falsas informações, teorias conspiratórias e
propaganda de extrema-direita. Contudo, a importância da televisão no caso
português é fundamental, pois segundo estudo divulgado em 2022, intitulado
“Inquérito às Práticas Culturais dos Portugueses em 2020”, do Instituto de Ciências
Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL) e financiado pela Fundação Calouste
Gulbenkian, 90% dos portugueses assistem televisão diariamente, acima da média
europeia de 81%, e entre os idosos chega aos 98%, sendo precisamente os
noticiários, reportagens e informação os mais visionados por 81%, bem à frente de
filmes (57%), que estão em segundo lugar (Pais, Magalhães & Antunes, 2022).
Conforme estudo do o MediaLab, centro de investigação do Instituto Superior de
Ciências do Trabalho e a Empresa (ISCTE-IUL) focado na comunicação em espaço
público, se em 2016 havia entre os comentadores fixos na televisão um equilíbrio entre
direita e esquerda (23 de esquerda e 22 de direita), em 2023 há um predomínio de
direita (37 contra 25), e se em 2016 havia 8 comentadores sem orientação política
identificável, hoje há o dobro, 16 (e sabemos que quando não há identificação clara
da orientação ideológica, isso normalmente significa um alinhamento à direita, ao
senso comum). O mesmo estudo identifica que “em 2023, na televisão, tal como nas
edições anteriores deste relatório (2016, 2019, 2020, 2022), verifica-se entre os
comentadores com espaço semanal de opinião e tendência política definida, uma
maior proporção de comentadores posicionados à direita do espectro político (60% do
total), face aos de esquerda (40%). A análise a outros media em 2023, permite
constatar que esse desequilíbrio, em favor da direita, também se encontra na rádio
(55% vs. 45%) e de forma mais acentuada nos meios online (64% vs. 36%)” (Cardoso
& Couraceiro, 2024, p.16). E, “nos canais generalistas da TDT (televisão digital
terrestre), ou seja, RTP1 e RTP 2, SIC e TVI, o perfil tipo é de homens de direita,
embora os canais RTP se distingam por um maior equilíbrio em termos políticos”
(Cardoso & Couraceiro, 2024, p.38).
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº1 76

Colaborando para construir este clima de insatisfação social e de radicalização


à direita existem particularidades, mas que são adaptadas em relação ao que foi
utilizado no Brasil com as manifestações de massa de 2013: a mobilização por
sindicatos inorgânicos em relação ao quadro das centrais tradicionais; mobilizações
das forças de segurança por fora mesmo dos quadros sindicais e a tentativa de criação
pelo fascismo de estrutura sindical própria. Podemos referir a atuação da Ordem dos
Enfermeiros, equivalente ao conselho profissional no Brasil, em particular de sua
então bastonária, a enfermeira Ana Rita Cavaco, que atuou, por exemplo, com
ostensividade no ataque ao governo e no suporte às manifestações de sindicatos
independentes de enfermeiros, inclusive em greves longas. Foram levantadas,
inclusive, suspeitas de que a Ordem e setores privados de saúde tenham dado
contribuições para um crowdfunding para apoiar a greve. Ana Rita Cavaco é
sabidamente ligada ao PSD e amiga de André Ventura, do Chega, tendo mesmo se
feito presente na II Convenção Nacional do Chega, em 2020 (LUSA, 2020, s.p.). O
Chega anunciou, a copiar neste caso o modelo do espanhol VOX e seu “Solidaridad”,
em 2022, “um movimento sindical, em alternativa à CGTP-IN e à UGT,
tradicionalmente mais ligados à esquerda […] (e) decidiu promover – não criar, porque
não o pode fazer por lei –, dialogar para incentivar a criação de uma federação
sindical” (Gomes, 2022, s.p.). Contudo, até agora, esta iniciativa não avançou (seja
por ser um espaço que está muito ocupado por outras forças políticas, seja pelo
próprio universo de sindicalização que está a cair em toda a Europa).

Mais importante, no entanto, é a entrada fascista nas forças policiais, que se


aconteceu no Brasil via milícias, ocorreu lá via um movimento organizado por fora das
estruturas sindicais tradicionais, o Movimento Zero. Este “surgiu em 2019 depois da
condenação de vários agentes da Divisão da Amadora por agressões a seis jovens
da Cova da Moura” (Araújo, 2024, s.p.). Como assume um dirigente do Chega, “há
muito que ‘o Chega tem nas forças de segurança, através do Movimento Zero,
centenas de apoiantes’ […] Um coronel da GNR admite: ‘Sabemos que o Chega tem
agregado efetivos nas forças de segurança, que veem naquele partido o único que
77 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

defende as suas reivindicações.’ Pedindo anonimato por ‘questões disciplinares’,


explica que ‘há grupos formais e informais do Movimento Zero e os protestos
promoveram uma onda forte de novas adesões’” (Araújo, 2024, s.p.).

Desta forma, o Chega se configurou – similarmente ao bolsonarismo – em uma


frente fascista de cristãos ultra-conservadores, fascistas do velho regime, membros
do judiciário golpista, da polícia e do grande empresariado neoliberal. Se a aposta
central da grande burguesia continua voltada ao PSD e o IL, o Chega é um plano B
importante. E, antes mesmo do enorme sucesso eleitoral recente, já alguns grandes
empresários avançavam em seu apoio, por exemplo, em jantar organizado em 2020
em sua quinta, por João Maria Bravo, que “é dono do grupo Sodarca, certificado pela
NATO, e lidera o fornecimento de armas, munições, tecnologia e equipamento militar
ao Estado, Forças Armadas e de segurança. No seu conjunto de empresas inclui-se
a Helibravo, com uma frota de helicópteros e um avião executivo para diversos fins,
entre eles o combate a incêndios” (Carvalho, 2020, s.p.). A ideologia fascista
transborda de seu ódio ao 25 de Abril e ao regime democrático: “‘Desde 1974 que o
País se afunda, e este já é o governo mais caro de sempre [o do PS]. O André
[Ventura, líder do Chega] é o único que coloca o dedo na ferida e fala do que queremos
ouvir. Faz propostas honestas, pretende pôr o País na ordem, combater a impunidade
e fazer a economia florescer’” (Carvalho, 2020, s.p.). Estava presente, também,
“Miguel Félix da Costa, cuja família liderou, durante 75 anos, a filial portuguesa da
multinacional de lubrificantes Castrol. O empresário encabeça a Slil, holding com
participações no imobiliário de luxo, hotelaria e turismo, e gere a Sociedade Agrícola
de São Cristóvão, na Herdade de Mata Ladrões, em Montemor-o-Novo” (Carvalho,
2020, s.p.), e que afirmava que “‘o que me levou a apoiar André Ventura foi a
preocupação com a política das esquerdas mais radicais que pretendem destruir os
nossos valores e cultura’, explicou à VISÃO, resignado à incapacidade de PSD e CDS,
‘órfãos de líderes tipo Sá Carneiro ou Paulo Portas, fazerem oposição eficaz e
imporem-se como alternativa política’. Segundo ele, está em curso ‘um ataque nunca
visto aos nossos valores e princípios, manipulado por uma extrema-esquerda
insaciável. O desafio do Chega é conseguir despertar e motivar uma direita
adormecida que não vota e apenas sabe criticar. Ventura tem capacidade de mover
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 78

montanhas e arrastar milhões de potenciais votantes’, crê o empresário, satisfeito por


ver no partido guarida para as suas causas: iniciativa privada pujante, ‘forças de
segurança fortes, motivadas e bem equipadas’, dignidade para profissionais de saúde
e uma Justiça que ‘acabe com a corrupção que ela própria criou e fomenta’” (Carvalho,
2020, s.p.). Outros também lá estavam, como Carlos Barbot, “patrão do império
industrial Barbot, cujos negócios vão das famosas tintas ao imobiliário, e de Portugal
continental às ex-colónias (Angola, Moçambique e Cabo Verde), com passagem
também pela Zona Franca da Madeira” (Carvalho, 2020, s.p.).

A OPERAÇÃO POLICIAL QUE DERRUBOU UM GOVERNO DE MAIORIA


ABSOLUTA E O PAPEL PRESIDENCIAL NO GOLPE

Contudo, apesar de todas estas movimentações, apesar de tudo, em 2022 o


PS conseguiu maioria absoluta para governar. A queda só poderia vir, então, por uma
renúncia do Primeiro-Ministro (PM), António Costa, e mesmo assim se esta fosse
aceita pelo Presidente da República (PR), Marcelo Rebelo de Sousa, e que este, por
sua vez, optasse por não devolver ao Partido Socialista o direito à indicação de um
novo PM e preferisse dissolver a Assembleia da República e chamar novas eleições.
Este cenário, improvável, acabou por ocorrer e levar às novas eleições de 10 de março
de 2024. Isto revela as opções políticas do PR, figura historicamente da direita, ligado
ao PSD, do qual já foi inclusive líder partidário, e a incapacidade de o Partido Socialista
entender o perigo que Marcelo representava para o campo progressista e não ter
lançado um candidato de esquerda para impedir a reeleição de Marcelo em 2021.
Contudo, apesar de tudo, o que revela muito da cabala das forças judiciárias e policiais
– e a colaboração dos meios de comunicação e dos setores empresariais – foi a razão
para a demissão do PM, já desgastado por toda a campanha orquestrada por anos
contra ele e o governo, somado ao desgaste natural de sua governação, inclusive por
seus próprios limites: a Operação Influencer.

Como bem definiu o jornalista do Correio Braziliense, Vicente Nunes, em seu


blog, “a Operação Influencer foi deflagrada em 7 de novembro de 2023, seguindo o
79 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

modelo da Operação Lava-Jato no Brasil, com toda a sua espetacularização. O nome


do então primeiro-ministro foi citado no último parágrafo de uma nota à imprensa
emitida pela Procuradoria-Geral da República (PGR)” (Nunes, 2024b, s.p.). Nesta
mega-operação, largamente coberta pelos meios de comunicação, “foram realizadas
buscas e apreensões nos ministérios de Infraestrutura e de Ambiente e da Ação
Climática. Os chefes das pastas — João Galamba e Duarte Cordeiro, respectivamente
—foram indiciados e responderão a processos. Além do chefe de gabinete de Costa,
foram presos na operação de contou com mais de 140 policiais, o empresário Diogo
Lacerda Machado, que se apresenta publicamente como amigo do primeiro-ministro
demissionário; o presidente da Câmara de Sines, Nuno Mascarenhas; o CEO da
empresa Start Campus, Afonso Salema; e o diretor Jurídico e de Sustentabilidade da
companhia, Rui Oliveira Neves” (Nunes, 2023, s.p.). As acusações versariam sobre
supostos favorecimentos do governo “à empresa Lusorecursos na exploração da mina
de lítio em Montalegre, mesmo ela não fazendo parte do grupo que obteve o direito
de prospecção. Esse benefício foi concedido pela Agência Portuguesa do Ambiente
(APA), que também está na mira do Ministério Público. O mesmo favorecimento teria
sido dado à Start Campus para a exploração de hidrogênio no Porto de Sines” (Nunes,
2023, s.p.).

Esta ação do Ministério Público, inclusive com erros bizarros, como o de


transcrição que colocou António Costa, primeiro-ministro, como suspeito, no lugar do
Ministro da Economia e do Mar, António Costa Silva, foi derrubada pelo Tribunal da
Relação de Lisboa, para quem o MP “não conseguiu apresentar nenhuma prova de
que Costa e os então ministros tinham favorecido um grupo de empresários” (Nunes,
2024b, s.p.). Para este Tribunal, “a Operação Influencer foi um fiasco e o Ministério
Público confundiu um debate de ideias a casos de prevaricação. As ligações
telefônicas interceptadas a pedido dos procuradores apontam discussões dentro do
governo passado sobre temas de interesse do país, como investimento em
empreendimentos que resultariam na criação de empregos” (Nunes, 2024b, s.p.). E,
“no máximo, na avaliação da Justiça, poderia ter havido tentativa de lobby, o que não
é crime em Portugal. O próprio Ministério Público admite que ainda não tem provas
contra todos os nove acusados de corrupção. Os procuradores dizem que ‘continuam
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 80

trabalhando para comprovar as acusações’” (Nunes, 2024b, s.p.). É a versão


portuguesa do “não tenho provas, mas tenho convicções” do malfadado procurador
brasileiro da Lava-Jato.

Contudo, a verdade sobre os fatos só veio à tona depois de que a intenção


mobilizadora já tinha se concretizado: derrubar o governo de maioria absoluta do PS
e asfaltar o caminho para o retorno da direita e o crescimento da extrema-direita (uma
outra operação espetacular na Madeira, governada pelo PSD, serviu também para
desgastar a direita tradicional no início deste ano). Esta foi amplificada pelos meios de
comunicação, e com o auxílio mesmo da propaganda de empresas, como a rede Ikea,
que fez anúncios espalhados por todo o país a brincar com a suposta corrupção de
assessor de Costa.

Em uma versão acelerada da Lava-Jato, mais pontual – ainda que não solta no
espaço, pois antecedida por várias outras ações de descredibilização – mas que
serviu aos objetivos propostos, tivemos numa ação de lawfare a derrubada de um
governo de esquerda, a colocação de um governo de direita e um salto na força do
fascismo em Portugal. Por uma via brasileira, por esta via brasileira, com todos os
elementos possíveis (de líderes evangélicos brasileiros aos viúvos da ditadura,
passando por policiais, Judiciário e meios de comunicação) Portugal entra,
infelizmente para seu povo e para o progresso no mundo, no ciclo europeu político-
ideológico contemporâneo.

REFERÊNCIAS

Araújo, Amadeu. 2024. “Movimento Zero toma conta do protesto das forças de
segurança”. Expresso, 11 de Janeiro.
Cardoso, Gustavo & Couraceiro, Paulo (Coordenadores). 2024. Comentário político
nos media 2023 Análise ao comentário politico em Televisão, Rádio e Meios online
em Portugal. Lisboa: MediaLab Iscte.
81 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 2

Carvalho, Miguel. 2020. “Grande investigação: os empresários e as redes que apoiam


Ventura”. Visão, 23 de Julho.
LUSA. 2020. “Bastonária dos enfermeiros foi à Convenção do Chega "dar um beijo de
amiga" a Ventura”. TSF, 20 de setembro.
Nunes, Vicente. 2024a. “Evangélicos brasileiros mostram força nas eleições de
Portugal”. Correio Braziliense, 13 de abril de 2024.
https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2024/03/6817569-evangelicos-
brasileiros-mostram-forca-nas-eleicoes-de-portugal.html.
. 2024b. “A real de Portugal: Justiça derruba acusações de corrupção contra
António Costa”. Correio Braziliense, 18 de abril.
https://blogs.correiobraziliense.com.br/vicente/a-real-de-portugal-justica-derruba-
acusacoes-de-corrupcao-contra-antonio-costa/
. 2023. “Investigado por corrupção, primeiro-ministro de Portugal renuncia”.
Correio Braziliense, 7 de novembro.
https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2023/11/6651601-portugal-primeiro-
ministro-renuncia-apos-denuncias-de-corrupcao.html
Pais, José Machado, Magalhães, Pedro e Antunes, Miguel Lobo (coordenadores).
2022. Inquérito às práticas culturais dos portugueses 2020: síntese dos resultados.
Lisboa: ICS.
Silva, Patrícia J. da. 2021. “Lawfare no contexto da operação Lava Jato”. In Lawfare
como ameaça aos direitos humanos = Lawfare as a threat to human rights, organizado
por Helena Esser dos Reis & Osmar Pires Martins Júnior (orgs.), 2ª ed, 20-38. Goiânia:
Cegraf, UFG.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 82

GRÃ-BRETANHA E ALEMANHA
Ricardo Gomes*

GRÃ-BRETANHA – O ENCOLHIMENTO DOS TORIES

No segundo semestre desse ano teremos eleições gerais na Inglaterra. O


provável cenário aponta para uma derrota acachapante do Partido Conservador
(Tories) – talvez a maior em sua longa história de mais de 300 anos – e o retorno ao
poder do Partido Trabalhista (Labour) depois de 14 anos. Essa catástrofe eleitoral tem
um único culpado, o próprio Partido Conservador. Desde que assumiu o poder numa
chapa com o Partido Liberal em 2010 - e sozinho a partir de 2014 – os Tories são os
únicos responsáveis pelo acentuado declínio material e moral da Inglaterra.

O país ainda não se recuperou da grave crise do Capital de 2008. O receituário


econômico aplicado ao longo desses anos não catapultou a Inglaterra para níveis
positivos de crescimento, ao declínio no índice de desemprego, ao aumento da renda
da população, a uma inflação controlada, a uma melhora nos serviços públicos, e um
maior volume de investimentos estruturais. Muito pelo contrário. O retorno ao
irresponsável, ineficaz e arrogante thatcherismo vem levando o país a uma realidade
cada vez mais repulsiva. A alternativa pela “austeridade” provou ser mais uma vez
uma ideia perigosa.

O trabalhador médio na Inglaterra está 14 mil libras mais pobre se


compararmos com o contexto pré crise de 2008. De 2010 - 2019, o gasto público
despencou de 41% a 35% do PIB. Para os Tories, tudo isso era válido, pois os tempos
da ‘irresponsabilidade’ estavam sendo substituídos pela era da austeridade. A
Inglaterra crescia a 1.8% em 2013 provando ser o primeiro país europeu a sair da
crise financeira. A austeridade era a bola da vez, o discurso vencedor.

*Doutorando do Programa de Pós Graduação em Economia Política Internacional da Universidade


Federal do Rio de Janeiro (PEPI/UFRJ)
83 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

O aumento nos índices de imigração e o dinamismo de Londres, mascaravam


a realidade da vida nacional, de baixos salários, de precariedade do trabalho num
contexto de subinvestimento crônico.

Uma das áreas mais afetadas foi o sistema de saúde britânico, um orgulho
nacional. A agenda da austeridade provocou um aumento exponencial na mortalidade
infantil e no retorno do raquitismo. Afetou diretamente as mulheres congelando a
expectativa de vida das mesmas, principalmente nas classes menos afortunadas, é
claro.

Esse pano de fundo foi responsável pela onda nacionalista que tomou o país
resultando no Brexit. Nas áreas mais afetadas pela agenda da austeridade o partido
de Nigel Farage recebeu muito apoio, validando o seu discurso anti-imigração e anti-
UE – a União Europeia acorrentava o desenvolvimento da Inglaterra. Os Tories nada
fizeram para frear Farage, pelo contrário, embarcaram na onda.

Um Estado sucateado provoca uma sensação de pessimismo e de falta de


alternativas. Os conservadores construíram essa verdade, vendendo a austeridade
como a única alternativa ao socialismo. Entretanto, ao insistir nesse modelo nos
últimos 14 anos, os Tories são os únicos responsáveis pela decadência material e
moral da Inglaterra.

Com índice de desemprego a 5.2%, um crescimento econômico baixo de 1.3%


em média nos últimos 10 anos, o sucateamento do sistema de saúde, índices sociais
negativos, um subinvestimento crônico e posições morais duvidosas de membros do
parlamento, principalmente dos quadros dos Conservadores (Boris Johnson durante
a pandemia da covid-19), favorece a esquerda e principalmente o Partido Trabalhista.

Entretanto, essa oportunidade é um desafio muito grande para o Labour.


Nesses últimos 14 anos o desempenho do Partido Trabalhista vem sendo
decepcionante - preso aos argumentos de duas lideranças pouco convincentes: Ed
Miliband e Jeremy Corbyn. Vis-à-vis um cenário perturbador, a oposição defende cada
vez mais uma agenda mais para o centro, fracassando no enfrentamento direto dos
graves problemas da nação. A nova liderança trabalhista, Keir Starmer não agride
diretamente as duas decisões importantes do contexto político do país: a austeridade
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 84

e o Brexit. Os Conservadores determinam a agenda e a oposição se esquiva. Isso é


um retrato fidedigno e decepcionante das esquerdas globais.

A política externa da Inglaterra permanece inalterada e permanecerá assim


mesmo com o retorno do trabalhismo ao poder. A aliança automática com Washington
e a crise Rússia-Ucrânia fortalecem ainda mais essa posição. Entretanto, a população
abaixo dos 65 anos, em geral, se move cada vez mais para uma maior aproximação
com a União Europeia.

O Partido Trabalhista precisa combater a desigualdade econômica, a


desigualdade na saúde e salvaguardar a democracia. A austeridade é uma péssima
ideia. Ela serve apenas para disciplinar, domesticar e enjaular os menos favorecidos
(principalmente a classe trabalhadora) e oferece nada como alternativa.

A generalização pura e simples de qualquer macromodelo, sem levar em conta


a tipicidade em cada sociedade equivale a combater resfriados ordinários com
potentes antibióticos ou a tratar graves casos de infecção hospitalar com aspirina e
chás caseiros. Desafios gigantes não podem ser combatidos com soluções simplórias
e de pouca ou nenhuma eficácia.

ALEMANHA

Em junho de 2023, o Chanceler alemão Olaf Scholz e a Ministra de Relações


Exteriores Annalena Baerbock, tornaram público pela primeira vez na história da
Alemanha, uma Estratégia de Segurança Nacional para o país. O documento procura
fornecer uma visão geral da política externa alemã e fortalecer uma relação
interministerial coesa sobre o tema da segurança nacional. Essa guinada inédita
acontece em um contexto europeu de extrema instabilidade e turbulência, a saber:
uma crise econômica compartilhada, revoltas sociais, uma guerra em território
europeu e o retorno ameaçador do fascismo.

É seguro afirmar que a guerra Rússia-Ucrânia foi, entre os problemas


mencionados acima, o que mais abalou a estrutura política e econômica da Alemanha.
85 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

Os índices econômicos alemães são preocupantes, com um baixíssimo nível de


crescimento. Nesse processo, o problema da desindustrialização alemã está
diretamente relacionado a guerra. A Alemanha suspendeu todos os contratos de
energia com o seu principal fornecedor, a Rússia, atingindo em cheio a
competitividade da economia alemã - abalada também pela agenda neoliberal de
Merkel onde testemunhou-se uma queda brutal de investimentos estruturais
necessários. Não obstante, essas decisões provocaram um aumento significativo de
42% no preço da energia resultando em greves constantes nos transportes e de
protestos recorrentes no ambiente agrícola.

A divulgação dessa Estratégia de Segurança Nacional foi anunciada vis-à-vis


esse cenário perturbador. A Alemanha propõe investir 2% do PIB na defesa em 2024
e atingir 3.5% em 2025-2026. Não obstante, a Alemanha conclama o restante da
Europa a fazer o mesmo – abandonar uma política industrial competitiva e substitui-
la por uma indústria de guerra. O problema aqui é como financiar essa empreitada.
Scholz insiste que a nova estratégia foca mais na política externa e não na escalada
belicista. A resiliência alemã está pautada na diversificação das suas cadeias de
suprimentos, segundo o Chanceler. As constantes viagens de Scholz, inclusive para
o Brasil, provam isso - defendem agentes do governo. Essa diversificação, inclui a
China, é claro. No documento, a potência asiática é caracterizada como um
competidor e rival sistêmico de alta relevância. Entretanto, a China é vista como um
parceiro de muita importância para a Alemanha.

A Alemanha alerta que é impossível prescindir da relevância da China em


assuntos globais. Analistas chineses interpretam esse discurso alemão como um
esforço pragmático inacabado. A preservação da cooperação entre os dois países
inevitavelmente provoca uma oposição direta de Washington – principalmente se
Trump for eleito em novembro. A Alemanha procura se afastar do discurso ideológico
diante da China, o seu maior parceiro comercial, ao mesmo tempo mantendo a sua
posição autônoma e de liderança no continente europeu mesmo com as pressões de
Washington e de outros aliados regionais contra a China.

Não podemos relativizar esse possível processo de rearmar a Europa, liderado


pela Alemanha. Como José Luís Fiori alerta: “ Mas como ensina a história da Primeira
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 86

Guerra Mundial, quando os europeus voltam às armas, eles também podem voltar à
guerra”.

REFERÊNCIAS

BLYTHE, Mark. Austeridade: a história de uma ideia perigosa. Autonomia Literária,


São Paulo 2017.

FIORI, José Luiz. O Novo Projeto Alemão Para a União Europeia. Em Boletim
Observatório Internacional do Século XXI No. 4 2024.

Global Times: Berlin unveils 1st national security strategy; tries to 'preserve autonomy'
Disponível: https://www.globaltimes.cn/page/202306/1292603.shtml.

MATTEI, E., Clara. A Ordem do Capital: como economistas inventaram a austeridade


e abriram caminho para o fascismo. Boitempo, São Paulo, 2023.

World Politics Review: Britain’s Tories Are Facing an Extinction-Level Event.


Disponível: https://www.worldpoliticsreview.com/uk-elections-conservatives-
canada/?one-time-read-code=285388171217563697085
87 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

120 DIAS DE GOVERNO DE EXTREMA-DIREITA NA ARGENTINA


Julio C. Gambina*

O primeiro trimestre do governo de Javier Milei já passou, assumido como um


"libertário" e "anarcocapitalista", que se gaba de realizar o "maior ajuste da
humanidade" 1 e ao mesmo tempo convocar empresários a investir na Argentina
porque é "um excelente caso de negócios para entrar e ganhar muito dinheiro".
A identificação de Milei com a ordem capitalista e sua vocação para fazer
funcionar um sistema em evidente crise, não só em seu território, mas em todo o
planeta, é clara. Milei defende uma concepção de política econômica para o mundo
inteiro. Foi o que disse em Davos, no Fórum Econômico Mundial 2 e na cúpula
conservadora nos EUA.3
Seu alinhamento político internacional é com os EUA e Israel, sem rodeios,
numa pregação contra qualquer alternativa ao capitalismo, seja o socialismo, o
populismo, em que só inclui a esquerda nessa categoria, assim como o feminismo, o
ambientalismo ou qualquer demanda que restrinja a dinâmica da exploração da força
de trabalho e da pilhagem dos bens comuns.
As manifestações discursivas contra os presidentes do México, Colômbia ou
Brasil fazem parte de uma diatribe agressiva contra Cuba, Nicarágua ou Venezuela
em nosso território, mas especialmente contra a China e os países sancionados
unilateralmente por Washington e seus aliados na Europa e na Ásia.
A Argentina com Milei faz parte da ofensiva de extrema-direita que visa
consolidar a ofensiva do capital contra o trabalho, a natureza e a sociedade.

* Professor da Universidade Nacional de Rosário e Vice-Presidente da Sociedade de Economia Política


da América Latina (SEPLA) e Pnvestigador de CLACSO
1 Diario La Nación de 6/4/2024, em: https://www.lanacion.com.ar/politica/milei-dijo-que-hizo-el-ajuste-

mas-grande-de-la-humanidad-y-aseguro-que-la-educacion-publica-es-una-nid06042024/
2 Davos 2024: Discurso especial de Javier Milei, presidente da Argentina, 19 Jan 2024, em:

https://es.weforum.org/agenda/2024/01/davos-2024-discurso-especial-de-javier-milei-presidente-de-
argentina/
3 Casa Rosada, Presidência. Discurso do Presidente da Nação, Javier Milei, na Conferência de Ação

Política Conservadora (CPAC), em Washington, Estados Unidos, em:


https://www.casarosada.gob.ar/informacion/discursos/50371-palabras-del-presidente-de-la-nacion-
javier-milei-en-la-conferencia-politica-de-accion-conservadora-cpac-en-washington-estados-unidos
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 88

BENEFICIADOS E PREJUDICADOS

Passados 4 meses, fica evidente a identificação em seu governo de quem são


os beneficiários e quem são os perdedores da política econômica.
Entre os beneficiários, tudo se refere às primeiras provisões tomadas desde 10
de dezembro de 2023. Naquela época, foi providenciado:
a) uma desvalorização, com um dólar que passou de 400 para 800 pesos e
com programas de desvalorização de 2% ao mês para ser negociado atualmente a
864 pesos por dólar segundo o BCRA (Banco Central de La República Argentina);
b) a liberalização de preços, possibilitando a remarcação de bens e serviços
favorecendo os lucros concentrados do setor hegemônico de negócios locais e
estrangeiros.
Ambas as dinâmicas permanecem, pois há forte pressão para aprofundar o
curso da desvalorização cambial e continuar com o realinhamento dos preços
relativos, especialmente o aumento das tarifas de serviços públicos. A realidade é um
aumento inflacionário da moeda local e da moeda estrangeira.
É um caminho que fez a inflação disparar em dezembro de 2023 para o dobro
da maior marca do governo anterior, em novembro do ano passado, de 12,8% para
25,5%, que anualizada até fevereiro de 2024 chegou a 276,2%; com uma projeção da
ordem de 190% para todo o ano de 2024, de 20,6% em janeiro, 13,2% em fevereiro,
estimativa semelhante para março e se for cumprida uma projeção de um dígito
mensal a partir de abril ou maio.
Os grandes vencedores, então, são os setores mais concentrados da produção
e exportação locais, incluindo o agronegócio, setores de hidrocarbonetos e da
mineração, justamente os mesmos setores transnacionalizados que o governo aponta
como motores da recuperação após o piso recessivo que a economia atual vive.
Algo que já consta dos dados de janeiro, onde a Estimativa Mensal da Atividade
Económica (EMAE) "registrou uma queda de 4,3% na comparação interanual e de
89 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

1,2% face a dezembro na medição ajustada sazonalmente". Entre os poucos setores


com dados positivos está o agroexportador e a mineração.4
O setor industrial mostra indícios de recessão, como indicam as estatísticas
oficiais: "Em fevereiro de 2024, o Índice de Produção Industrial Industrial (IPI da
Manufatura) mostra queda de 9,9% em relação ao mesmo mês de 2023. O acumulado
dos dois primeiros meses de 2024 mostra queda de 11,1% em relação ao mesmo
período de 2023".5
Um fato importante é que essa fração de referência dos vencedores não inclui
a maioria da sociedade argentina. Por essa razão, os principais beneficiários da
política do governo são os produtores e exportadores mais concentrados, os grandes
investidores estrangeiros e o setor associado à especulação e às finanças.
Dessa forma, os rumos da economia argentina favorecem as expectativas dos
capitalistas globais e locais que olham com interesse e atenção para o que está
acontecendo na Argentina, uma vez que todas as condições macroeconômicas são
geradas para investir em um território que gera um retorno mais do que adequado.
A questão importa, porque a Argentina está condicionada pela dívida externa,
especialmente pelo acordo com o FMI, seja o empréstimo de Mauricio Macri em 2018,
seja a renegociação do governo de Alberto Fernández em 2022, que aumenta a
dependência da dívida até 2034.
A Argentina é auditada trimestralmente pelo FMI e sendo um pagador em série
de seus compromissos externos, ou renegociando-os em troca de perda de soberania,
oferece excelentes oportunidades de renda para investidores que buscam altos lucros
em tempos de crise global.
As contas financeiras estão dando sinais para esses grandes investidores
internacionais, devido à redução da diferença entre as diferentes taxas de câmbio e à
diminuição do risco-país, com crescimento nas avaliações de títulos e ações.
Nesse contexto, destaca-se o crescimento das reservas internacionais, que
estavam em 21,2 bilhões de dólares em dezembro passado e chegaram a 28,2 bilhões
em março. É uma conquista baseada em um saldo comercial positivo de 3,2 bilhões,

4 INDEC. Estimador Mensal da Atividade Económica, EMAE a partir de janeiro de 2024, em:
https://www.indec.gob.ar/uploads/informesdeprensa/emae_03_24628F2CA7A0.pdf
5 INDEC. Índice de Produção Industrial Industrial. Fevereiro de 2024, em:
https://www.indec.gob.ar/uploads/informesdeprensa/ipi_manufacturero_04_24FF1C1F75A2.pdf
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 90

mas ainda mais, no atraso no pagamento das importações de 9,3 bilhões. A isso deve
ser somada a perda de moeda estrangeira devido ao pagamento de juros e outros
aspectos que somam mais de 8.100 milhões.6
Os beneficiários da política do governo Milei são setores econômicos altamente
concentrados, associados à grande produção e exportação de agricultura, energia e
mineração. Todos eles estão associados e ligados à grande propriedade fundiária, à
grande burguesia local e aos investidores estrangeiros.
Se estes são os vencedores, fica claro quem são os perdedores. Em primeiro
lugar, há os aposentados e os trabalhadores ativos, aos quais se somam os pequenos
e médios setores do empresariado que vinculam sua renda ao poder aquisitivo da
renda popular.
Para o primeiro, a questão é dramática, reitera o que vem acontecendo nos
últimos governos, já que a fórmula de atualização da renda previdenciária não resolve
as necessidades dos aposentados e pensionistas, que hoje estão no patamar de 685
mil pesos mensais e a maioria, dois terços dos aposentados (7 milhões de pessoas),
recebem algo como um terço do que precisam para uma vida digna e adequada a
idosos.
Em termos salariais, temos que 40% dos trabalhadores estão em situação
irregular, flexibilizada, com contratos sem previdência. Os rendimentos destes
trabalhadores em situação irregular são piores do que os rendimentos dos
trabalhadores do Estado, que vivem atualmente uma situação de demissões
generalizados: o governo fala em 15 mil desligamentos durante a Semana Santa e
fontes sindicais estão a investigar o número concreto e real dessas demissões, mas o
próprio presidente indicou que o objetivo é despedir 70 mil trabalhadores contratados.
Na verdade, os trabalhadores contratados por um ano agora são reduzidos para três
meses. É uma espada permanente de Dâmocles sobre os funcionários contratados
pelo Estado. O Estado é o maior contratante em situação de irregularidade, portanto,
é o que mais precariza a força de trabalho na Argentina.
Os salários dos trabalhadores irregulares são os que estão em pior situação,
os que mais perderam, seguidos pelo Estado e depois pelo setor privado regularizado.

6 MATE, em: https://mateconomia.com.ar/


91 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

Com duas questões importantes como agravante, uma, que o governo tem dito
que não endossará atualizações de paridade, segundo avancem os acordos entre
patrões e trabalhadores, o que demonstra os limites da liberdade de mercado:
liberdade de preços para aumentar os preços no mercado, menos o preço da força de
trabalho, um preço que é controlado e que exigirá greves e conflitos. Por outro lado,
estão em curso negociações para restabelecer o imposto de renda sobre os salários,
o que colocaria os trabalhadores com altos rendimentos em relação à média de volta
a pagar impostos para cobrir as necessidades de recursos do país e das províncias.
Como se vê, beneficiários muito concentrados e grande parte da população
argentina prejudicada por essa política de concentração de renda e riqueza.

CONSENSO E DISPUTA POLÍTICA

A resistência cresce no contexto de descontentamento com a inflação e a


recessão, resistência essa que ainda não se tornou um projeto alternativo diante da
desconfiança e das críticas aos governos anteriores, especialmente ao peronismo e
sua hegemonia kirchnerista.
O tema é interessante pela hegemonia peronista no movimento popular desde
1945 e pela proeminência de uma nova geração de ativismo social nos últimos anos
sob a liderança de Néstor Kirchner e Cristina Fernández.
A esquerda também é afetada e remete suas dificuldades a problemas
históricos que se originam na emergência peronista como expressão da
representação de massas.
A rigor, a dimensão cultural e social da esquerda deve ser considerada, para
além da representação institucional, e mesmo dos vínculos políticos entre as franjas
sociais, territoriais e políticas da esquerda e o peronismo, como parte de uma busca
de novas articulações para a reorganização do movimento popular.
A extrema direita, por meio da mídia e das redes sociais, vem exercendo uma
efetiva política de intervenção cultural para desqualificar o peronismo, o kirchnerismo
e, nesse contexto, a esquerda como um todo.
Como mencionamos antes, para Milei, tudo é igual, "comunismo, socialismo,
kirchnerismo, peronismo, populismo, feminismo, ambientalismo".
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº1 92

A questão é como reconstruir a identidade popular para além das identidades


tradicionais e sintetizar a resistência generalizada às demandas democráticas, contra
as demissões e a perda do poder aquisitivo da renda popular, com um projeto político
anticapitalista, anti-imperialista e por transformações profundas contra a exploração e
a pilhagem.
É uma preocupação que reconhece o debate intelectual e político, em vários
espaços sociopolíticos, sindicais e territoriais, de um militante ativo que se reconhece
na tradição peronista ou na esquerda, e que nem sempre articulou suas propostas
políticas ou civilizatórias em conjunto.
Não é apenas um tema de debate local, mas também global, que remete à
discussão sobre o tema da mudança e da revolução, bem como às identidades
políticas necessárias na perspectiva da luta contra a ofensiva capitalista, da direita e
da ultra-direita, como no caso da Argentina e de outros países da região e do mundo.
Na verdade, o que se propõe é um debate estratégico para dar direção a uma
perspectiva de emancipação no presente e no futuro próximo. É um debate estrutural
diante da permanência de um projeto que já começa a apresentar sua estratégia para
as eleições de meio de mandato em 2025 e para renovar o mandato presidencial em
2027.
Somos chamados a construir uma alternativa política contra e para além do
capitalismo.
93 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS NO MÉXICO EM 2024


Adrián Sotelo Valencia*

As eleições presidenciais realizar-se-ão no México no dia 2 de junho de 2024.


Com uma população total de 129.076.767 habitantes este ano, os cadernos eleitorais
oficiais totalizam 100.184.305 eleitores registados.
Está em disputa a presidência, 64 mandatos de senadores pelo princípio da
maioria relativa, 32 de senadores pelo princípio da representação proporcional, 32 de
senadores de primeira minoria, 300 deputados pelo princípio da maioria relativa e
200 deputados pelo princípio da representação proporcional.
Os principais partidos na corrida são o Partido Ação Nacional (PAN), o Partido
Revolucionário Institucional (PRI) e o Partido da Revolução Democrática (PRD), que
juntos formam a oposição ao governo federal sob a coligação Fuerza y Corazón por
México (Força e Coração pelo México). Por outro lado, os partidos Morena, Partido
del Trabajo (PT) e Verde Ecologista (PVEM) registaram-se sob o nome de coligação
Sigamos Haciendo Historia (Coligação Continuemos a Fazer História). Um terceiro
candidato pertence ao chamado Movimiento Ciudadano (MC), que lançou a
candidatura de Jorge Álvarez Máynez, que até há pouco tempo era desconhecido e
com poucas probabilidades de vencer as eleições presidenciais.
No espectro eleitoral formal, pode dizer-se que por um lado, a direita e a
extrema-direita estão representadas na Coligação Fuerza y Corazón por México e,
por outro, a supostamente progressista, embora não de esquerda como se afirma,
Coligação Sigamos Haciendo Historia, enquanto o chamado Movimiento Ciudadano
procura posicionar-se entre as duas coligações políticas.
Embora os respectivos programas e políticas de governo ainda não tenham
sido delineados, o denominador comum é a continuidade, no caso de Morena, e a
franca e aberta reiteração, por parte da coligação de direita, das políticas
neoliberais baseadas no mercado, na livre iniciativa, no investimento estrangeiro e
nas privatizações.

* Professor Titular do CELA/UNAM


RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 94

A política do governo de saída caracterizou-se por uma mistura de


desenvolvimentismo e neoliberalismo dos anos 70 com a imposição do Tratado de
Livre Comércio México-Estados Unidos-Canadá (T-MEC), que rege e regula a
dependência histórico-estrutural do nosso país.
As principais pesquisas dão uma larga vantagem à candidata de Morena à
presidência, Claudia Sheinbaum, em parte graças ao trabalho de promoção do próprio
presidente através das suas conferências matinais, entre 20 e 30 pontos percentuais,
o que criou um elevado nível de otimismo na sua vitória. Xóchitl Gálvez, a candidata
da direita (diz-se que se trata de uma competição entre mulheres!), têm estado a
reduzir essa vantagem, mas é difícil definir hoje uma tendência.
Em todo o caso, com toda a carga subjetiva, ideológica e política que trazem
consigo, as pesquisas são apenas um testemunho do momento em que são aplicadas
e nada mais. Temos os casos recentes da Argentina com Milei e, antes disso, com
Guillermo Lasso no Equador. Nada é definitivo, tudo depende das convulsões
políticas, das lutas de classes e das surpreendentes mudanças de última hora no
comportamento dos eleitores.
Nas eleições anteriores, em 2018, cerca de 30 milhões de cidadãos
abstiveram-se de votar. Ninguém sabe agora como é que essa multidão se vai
comportar nas eleições de 2 de junho. O que é certo é que se trata de um universo
que pode alterar a geometria eleitoral a favor ou contra qualquer uma das
coligações.
Até agora, a questão mais sensível para a maioria da população mexicana é
a violência e a insegurança causadas pela proliferação de grupos criminosos de
narcotraficantes e o fato de o governo, em quase cinco anos de administração, ter
deixado muito a desejar. Assassinatos, feminicídios, desaparecimentos forçados,
massacres, julgamentos sumários, confrontos entre bandos de traficantes e entre
eles e o exército federal, e o aumento da migração são a realidade quotidiana no
México. Embora se tenha verificado alguma recuperação dos postos de trabalho
perdidos durante a pandemia do coronavírus, sobretudo em termos de trabalho
assalariado remunerado com benefícios legais, a insegurança no emprego, a
95 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

precariedade salarial e a informalidade continuam a ser, em média, elevados. As


estatísticas oficiais do INEGI, em regra, não computam a taxa de desemprego e
subemprego, mas a taxa média de desocupação, que é um indicador mais generoso
que não contabiliza totalmente a população real sujeita ao desemprego e
desocupada, de modo que o México pode ter a “menor” taxa de “desemprego” do
mundo. Este absurdo não se ajusta à realidade social e laboral, nem as milhares e
milhares de pessoas que todos os dias vagueiam pelas ruas do país e da Cidade do
México à procura de alguma atividade que lhes permita sobreviver.

O atual governo, desde o início, promoveu os famosos “programas sociais”:

• Pensão para o bem-estar dos idosos.


• Programa para semeadores “Semeando a vida”
• “Jovens construindo o futuro”
• Bolsa de assistência “Benito Juárez” para o ensino básico
• Apoio ao bem-estar das crianças de mães trabalhadoras
• Produção para o bem-estar.
• Crédito para pecuaristas “Ganadero a la palabra”

Muitos destes programas, geralmente recomendados pelo Banco Mundial para


tentar aliviar a pobreza extrema e a marginalização social, mas sem a resolver nas
suas raízes, já existiam e tinham sido implementados pelos governos neoliberais do
PRI e do PAN. Não há nada de novo a este respeito.
Numa simplificação extrema, muitos chegaram a identificar a chamada Quarta
Transformação (4T) (que não é mais do que um slogan de campanha e de governo)
com projetos extrativistas como o chamado “Trem Maia”, a refinaria Dos Bocas, o novo
aeroporto Felipe Ángeles ou o Corredor Interoceânico, entre outros. Mas não houve
reformas estruturais profundas, como a reforma fiscal para o grande capital nacional
e estrangeiro, nem foi pedida ao país a realização de uma Assembleia Constituinte
que servisse de plataforma para o arranque do 4T. Esta não foi sequer contemplada
pelo governo por razões que não ficaram claras, apesar da atual constituição política,
embora com múltiplas reformas, datar de 1917.
A disputa eleitoral de 2 de junho de 2024 promete ser competitiva em termos
de participação dos cidadãos, mas qualquer que seja a coligação vencedora, quer
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº1 96

seja a do neoliberalismo no seu extremo mais extremo, quer seja a do neoliberalismo


rejuvenescido com conotações desenvolvimentistas e progressistas, o projeto
capitalista dependente mexicano continuará enquanto as classes sociais e as forças
dominantes envolvidas não se envolverem na sua transformação.
97 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

CONFLITO VENEZUELA E GUIANA: ESSEQUIBO, PETRÓLEO E IMPERIALISMO


Heitor Silva*

O artigo se propõe a explicar as razões, origens, desenvolvimento e


desdobramentos do contencioso entre a República Bolivariana de Venezuela e a
República Cooperativa da Guiana sobre a região de Essequibo. Apesar da postura
crítica à crença de cunho positivista na neutralidade da ciência, procuramos
apresentar fatos em detrimento de julgamentos morais ou ideológicos sobre o litígio.

Figura 1: Localização da Venezuela, Essequibo e Guiana

Fonte: France 24/AFP

O conflito decorre de uma reivindicação histórica da Venezuela sobre um


território fronteiriço com a Guiana, a região do Essequibo pertencente a Guiana desde
1899, quando era uma colônia britânica e que desde essa época foi contestado pela
Venezuela. Fica localizada a oeste do território da Guiana, ocupa 159 mil km2 e
representa 70% do território desse país. É uma área maior do que o estado do Ceará

*Economista, professor, pesquisador bolsista da Fiocruz, membro do Lab. de


Hegemonia e Contra- hegemonia da UFRJ, Dr. Planejamento Urbano UFRJ.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 98

(148.886 km2), Inglaterra ou Grécia. Moram na região 125 mil pessoas, menos de
30% dos moradores da zona central da cidade de São Paulo (431.106 habitantes) e
cerca de 80% dos habitantes são indígenas, segundo o censo do país.

Figura 2: Comparação da área de Essequibo com Inglaterra e Grécia

Fonte: Arte G1, 09/12/2023

O PETRÓLEO COMO CATALISADOR DA CRISE


A decisão da Guiana de conceder uma concessão de exploração a ExxonMobil,
adversária do atual governo venezuelano, em região ainda em litígio, sem consultar
a Venezuela e nem estabelecer um percentual da renda petroleira para a Venezuela
fez a disputa ganhar novo elemento.

A descoberta de grandes reservas de petróleo no mar da Guiana ocorreu em


2015, quando a ExxonMobil, em parceria com a Hess Corporation e a CNOOC da
China, encontrou petróleo na bacia de Stabroek. Desde então, foram feitas várias
descobertas adicionais, em 2024 o potencial estimado da região é de
11 bilhões de barris de petróleo, sendo que cerca de 450 mil barris por dia já são
produzidos atualmente (CNN, 2013).
99 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

Figura 3: Blocos com petróleo descobertos na costa da região de Essequibo e distribuição dos
proprietários de cada parte dos blocos

Fonte: Poder Naval

Além das reservas marítimas há na parte terrestre do Essequibo o Takutu


Graben, que entrecorta a fronteira com o Brasil e pode ter ricos depósitos de "petróleo
leve". Essa variação do mineral tem preço maior devido a maior produtividade em:
gasolina, diesel e combustível de aviação.
A região também possui outras riquezas minerais, segundo Reybert Carrillo
(BBC, 2023), geógrafo da Universidade de Los Andes, na Venezuela, a região faz
parte do Maciço Guianês, também conhecido como Escudo das Guianas. Nessa
região está o Arco Mineiro do Orinoco, uma área de exploração de mais de 111.800
km² que possui grandes reservas de ouro, cobre, diamante, ferro, bauxita e alumínio,
entre outros minerais, por exemplo a mina Omai, vide figura a seguir, entre 1993 e
2005, produziu mais de 3,7 milhões de onças de ouro. O geógrafo Temitope Oyedotun
(BBC, 2023), da Universidade da Guiana, acrescenta ainda a existência de manganês,
urânio e os recursos hídricos dos rios Cuyuní, Mazaruní, Kuyuwini, Potaro e Rupununi.
O potencial para geração de energia hidrelétrica do Potaro, com nove cachoeiras,
entre as quais se destacam as Tumatumari e Kaieteur com queda livre de até 227
metros, ou seja, é cinco vezes mais alta que as Cataratas do Niágara, localizadas
entre os EUA e o Canadá.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 100

Figura 4: Exploração de outro na região do Essequibo

Fonte: BBC

O REFERENDO REALIZADO PELA VENEZUELA SOBRE ESSEQUIBO


A estratégia adotada pelo governo venezuelano para a questão do contencioso
é simultaneamente interessante e muito diferente das adotadas pelo atual governo
brasileiro, ao invés de travar o debate externo apenas no campo diplomático e o
interno exclusivamente no Congresso, a arena interna escolhida foi esclarecer e
envolver a população no debate através de um referendo consultivo. A questão é tão
profunda para o povo venezuelano que a proposta de referendo foi endossada e
votada tanto pelos chavistas como pela oposição. Como consequência no dia
03/12/2023, segundo o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) venezuelano, 10,5 milhões
de eleitores participaram do referendo. O resultado foi que 95,93% aceitaram
incorporar oficialmente Essequibo ao mapa da Venezuela e conceder cidadania e
documento de identidade aos mais de 120 mil guianenses que vivem no território.
Apenas 4,07% discordaram da proposta.
A participação popular foi tão massiva e favorável a proposta do governo que
mesmo um órgão de imprensa da extrema direita brasileira, como a Jovem Pan,
101 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº1

contrário ao governo venezuelano, ao publicar imagens não escapou de mostrar o


apoio popular.

As cinco perguntas do referendo eram:


1a. "Você está de acordo em rejeitar por todos os meios, conforme a lei, a linha
fraudulentamente imposta pelo Laudo Arbitral de Paris de 1899, que visa privar-nos
de nossa Guiana Essequiba?". Teve 97,83% de aprovação.
2a. "Você apoia o Acordo de Genebra de 1966 como o único instrumento jurídico
válido para alcançar uma solução prática e satisfatória para Venezuela e Guiana, em
torno da controvérsia sobre o território da Guiana Essequiba?". Recebeu apoio de
98,11%.
3a. "Você está de acordo com a posição histórica da Venezuela de não reconhecer a
Jurisdição da Corte Internacional de Justiça para resolver a controvérsia territorial
sobre a Guiana Essequiba?". Esta foi a que teve menos aprovação: 95,4%.
4a. "Você está de acordo em se opor, por todos os meios dentro da lei, à pretensão
da Guiana de dispor unilateralmente de um mar cuja delimitação ainda está pendente,
de maneira ilegal e em violação ao direito internacional?" Recebeu o "sim" de 95,94%.
5a. “Você está de acordo com a criação do estado da Guiana Essequiba e que se
desenvolva um plano acelerado para a atenção integral às populações atual e futura
deste território, que inclua, entre outros, a outorga de cidadania e cédula de identidade
venezuelana, conforme o Acordo de Genebra e o direito internacional, incorporando
consequentemente o dito estado ao mapa do território venezuelano?".

DESENVOLVIMENTO DO CONTENCIOSO ENTRE VENEZUELA E GUIANA


SOBRE A REGIÃO DE ESSEQUIBO

A disputa remonta a fundação da Venezuela no século XIX, quando da


independência da Espanha, declarada pelo congresso nacional, no dia 5 de julho de
1811 e em 1819 houve a união das províncias que hoje formam os países da
Venezuela Colômbia, Panamá e Equador incluindo a Guiana Essequiba. A partir de
1840, a disputa entre o Reino Unido e a Venezuela se acirrou quando foi descoberta
a existência de ouro na região com o Reino Unido ampliando seu domínio na região,
acrescentando mais de 80.000 km² à sua colônia. Em 1876, pessoas que falavam
inglês já haviam se estabelecido na bacia do rio Cuyuní, apesar de estar em território
venezuelano. Trabalhando para Londres, o explorador Robert Schomburgk acreditava
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 102

que os ingleses poderiam reivindicar aquela área. Ali nasceu a mina de ouro de Omai,
que se tornaria uma das maiores fontes de renda tanto da colônia Guiana inglesa
quanto da República Cooperativa da Guiana.
A seguir, apresentamos um quadro resumo dos eventos mais importantes
envolvendo a disputa pelo Essequibo.
Tabela 1: Quadro resumo de dois séculos de disputa
1777 O Império Espanhol funda a Capitania Geral da Venezuela, subentidade territorial que
inclui Essequibo.
1811 A Venezuela torna-se independente da Espanha e Essequibo passa a fazer parte da
nascente república.
1814 O Reino Unido adquire a Guiana Inglesa, com cerca de 51.700 km², através de um
tratado com os Países Baixos que não define a sua fronteira ocidental.
1840 Londres nomeia o explorador Robert Schomburgk para definir a fronteira. Pouco
depois, é inaugurada a Linha Schomburgk, que ampliava a Guiana em quase 80.000
km².
1841 A disputa começa oficialmente quando a Venezuela denuncia uma incursão do Império
Britânico em seu território.

1886 Uma nova versão da Linha Schomburgk é publicada, reivindicando mais território.
1895 Os Estados Unidos intervêm sob a Doutrina Monroe após denunciar que a fronteira foi
ampliada de "maneira misteriosa" e recomenda que a disputa seja resolvida em
arbitragem internacional.
1899 É emitida a Sentença Arbitral de Paris, uma decisão favorável ao Reino Unido, com a
qual o território cai oficialmente sob domínio britânico.
1949 É tornado público um memorando do advogado norte-americano Severo Mallet-
Prevost, parte da defesa da Venezuela na disputa em Paris, no qual ele denuncia que
os juízes não foram imparciais, cabe ressaltar que eram dois árbitros britânicos, dois
norte-americanos, um russo e nenhum representante venezuelano. Os
posicionamentos de Severo Mallet-Prevost e outros documentos, revelado bem mais
tarde, servem para que a Venezuela declare a sentença "nula e sem efeito".
1966 Três meses antes de conceder a independência à Guiana, o Reino Unido firma com a
Venezuela o Acordo de Genebra, o qual reconhece a reivindicação venezuelana e se
compromete a buscar soluções para resolver a disputa.
2013 A Corte Internacional de Justiça (CIJ), em Haia, que julga a disputa, proibiu a Venezuela
de tentar anexar Essequibo ao seu território enquanto não houvesse o julgamento.
Fonte: Elaboração do autor
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 104

TENSÕES DECORRENTES DA POSIÇÃO VENEZUELANA

A declaração do General Padrino Lópes, ministro da Defesa da Venezuela em


audiência no Senado, foi uma resposta as declarações da General Laura J.
Richardson Chefe do Comando Sul dos Estados Unidos e mostram a gravidade da
situação:
“(...) ela afirma que nós, venezuelanos, mantemos a República Cooperativa da Guiana
sobrecarregada. Essa é uma visão imperialista e ninguém os está convidando para esta
disputa, essas questões são inteiramente entre a Venezuela e a República Cooperativa da Guiana.
Mas depois querem ordenar exercícios militares permanentes em tudo o que é fachada e nas
águas a delimitar o Território de Essequibo e querem envolver-se de forma irresponsável, portando
meios militares e correndo o risco de criar uma situação difícil isso vai contra a paz regional, que os
países da América Latina e do Caribe assinaram com muita veemência para declarar nossa região
como uma zona de paz, e essa zona está em perigo devido à presença do Comando Sul e a Força
Armada Nacional Bolivariana de Venezuela (FANB) está ali implantada através da Operação “Sifontes”,
para proteger as águas que pertencem indiscutivelmente à Venezuela no âmbito do Acordo de
Genebra, para buscar uma solução prática e satisfatória entre as partes e além disso agir de acordo
com o que foi acordado nos últimos acordos assinados no ano passado”. Fonte: Ministério da
Defesa da Venezuela.
Tentando uma distensão houve, no dia 14 de dezembro de 2023 (MATRAVOLGYIDA, 2023),
uma reunião entre os presidentes da Venezuela, Nicolás Maduro, e da Guiana, Irfaan Ali, ambos se
comprometeram a não utilizar a violência para solucionar a controvérsia. Apesar disso, os países não
abriram mão de suas reivindicações, principalmente em matéria petroleira, a questão central.
Após a reunião o presidente guianês disse que o país "tem todo o direito de exercer sua soberania
dentro de seu espaço territorial, para aprovar e facilitar qualquer investimento, parceria, negócio,
colaboração, cooperação e emitir qualquer licença ou concessão".

Carlos Mendoza Potellá (ESTANISLAU, 2023), economista, professor emérito


da Universidade Central da Venezuela e pesquisador da área do petróleo vê
dificuldades para um acordo entre os dois países devido a interferência dos EUA na
defesa dos interesses da Exxon Mobil o que torna impossível uma parceria que
envolva essa empresa, nas palavras dele: "O ex-presidente da Exxon Mobil Rex
Tillerson foi nomeado Secretário de Estado dos EUA no governo Trump, logo após
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 104

deixar a presidência da empresa, para promover uma política agressiva contra a


Venezuela a chamada política de "pressão máxima", que tinha como objetivo forçar
a saída de Maduro do poder. Para Potellá talvez sejam possíveis acordos com outras
empresas, como a Shell, a BP, a Chevron, menos com a Exxon porque “os interesses
deles e da PDVSA são antagônicos" (ESTANISLAU, 2023). É importante observar que
o governo venezuelano e a Exxon Mobil têm relações conturbadas desde 2008,
quando Chávez avançou na nacionalização da indústria petroleira e a empresa se
retirou do país, exigindo indenizações maiores do que as pagas pelo governo. A
empresa processou o governo venezuelano em tribunais internacionais, exigindo
complemento nas indenizações, mas perdeu, o que cria dificuldade dos dois lados
para negociações, lembrando ser essa empresa a maior exploradora de petróleo no
Essequibo.

POSSIBILIDADES DE PARCERIAS ENTRE VENEZUELA E GUIANA

O chanceler da Venezuela cogitou possíveis explorações conjuntas na região, citando como


exemplo os acordos com Trinidad e Tobago no campo de gás fronteiriço Dragão, onde as
empresas exploradoras são Shell e BP. Essa é uma possibilidade, mas a interferência do
governo dos EUA em defesa da Exxon Mobil é um empecilho de difícil resolução.

REFERÊNCIAS

ABDALA, Vitor Referendo na Venezuela aprova incorporação de Essequibo. Agência Brasil, Rio
de Janeiro, 04/12/2023. Disponível em:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2023-12/referendo- na-venezuela-
aprova-incorporacao-de-
essequibo#:~:text=Os%20eleitores%20venezuelanos%20aprovaram%2C%20em,%C3%A9%2
0reivindicad a%20pela%20na%C3%A7%C3%A3o%20vizinha. Acesso em: 14/04/2024.
105 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

AGUIAR, Paloma Silva de Oliveira. Essequibo em foco: um estudo de caso do Contencioso


Sulamericano. 2016. 110f. Dissertação. Universidade Federal de Roraima, Boa Vista, 2016.
CNN. Entenda a riqueza de Essequibo e como ela contribuiu para o crescimento da Guiana.
14/12/2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/entenda-a-riqueza-
de-essequibo-e-como- ela-contribuiu-para-o-crescimento-da-guiana/ Acesso em:
14/04/2024.
ESTANISLAU, Lucas. Petróleo em jogo: entenda como reservas no Essequibo influenciam
disputa entre Venezuela e Guiana. Brasil de Fato, Caracas, 21/12/2023. Disponível em:
https://www.brasildefato.com.br/2023/12/21/petroleo-em-jogo-entenda-como-reservas-
no-essequibo- influenciam-disputa-entre-venezuela-e-guiana Acesso em: 14/04/2024.
Global Oil and Gas Extraction Tracker, Global Energy Monitor, versão de março de 2024.
Disponível em: https://globalenergymonitor.org/projects/global-oil-gas-extraction-
tracker/download-data/ . Acesso em: 14/04/2024.
JOGO DO PETRÓLEO: conheça as reservas de 'ouro negro' da Guiana reivindicadas pela
Venezuela. O Globo, Rio de Janeiro, 12/12/2023. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/mundo/epoca/noticia/2023/12/12/jogo-do-petroleo-conheca-as-
reservas-de- ouro-negro-da-guiana-reivindicadas-pela-venezuela.ghtml . Acesso em:
14/04/2024.
MATRAVOLGYIDA, Elizabeth. Presidente da Guiana se reúne com Nicolás Maduro nesta
quinta-feira (14). CNN, São Paulo, 14/12/2023. Disponível em:
https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/presidente-da- guiana-se-reune-nesta-quinta-
feira-com-nicolas-
maduro/#:~:text=O%20presidente%20da%20Guiana%2C%20Irfaan,em%20S%C3%A3o%20Vi
cente%20e%20Granadinas. Acesso em: 14/04/2024.
Ministerio del Poder Popular del Despacho de la Presidencia y Seguimiento de la Gestión de
Gobierno. LA VERDAD SOBRE EL ESEQUIBO. Ediciones de la Presidencia de la República.
Caracas – Venezuela 2015. Disponível em:
http://www.consulvenevigo.es/subido/LA%20VERDAD%20DEL%20ESEQUIBO%20LIBRO.pdf
Acesso em: 14/04/2024.
PAREDES, Norberto. Venezuela: as riquezas da região da Guiana que Maduro quer anexar.
BBC, 26/11/2023. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0k29pdkypxo
Acesso em: 14/04/2024.
PETRÓLEO NO MAR DA GUIANA ACIRRA DISPUTA TERRITORIAL COM A VENEZUELA SOBRE A
REGIÃO DE ESSEQUIBO. Poder Naval, 1/12/2023. Disponível em:
https://www.naval.com.br/blog/2023/12/01/petroleo-no-mar-da-guiana-acirra-disputa-
territorial-com- a-venezuela-sobre-a-regiao-de-essequibo/ Acesso em: 14/04/2024.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 106

MINISTERIO DEL PODER POPULAR PARA RELACIONES EXTERIORES. Guayana Esequiba historia
de un Despojo. Caracas - Venezuela -2015.
107 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

PARAGUAI, BASTIÃO ANTI-CHINA DOS EUA NA REGIÃO


Idilio Méndez Grimaldi*

Consolidação do tráfico de cocaína, fraude eleitoral, controle do aparato estatal


por organizações mafiosas, aprofundamento da desigualdade e concentração de
riqueza, renúncia à soberania e alinhamento irrestrito à diplomacia anglo-saxônica nos
fóruns internacionais são alguns dos ingredientes que abonam o domínio absoluto dos
Estados Unidos e de suas corporações sobre a existência do Paraguai. É o quadro
em que o poder imperial e seus aliados, como Taiwan, Israel e Europa, planejam
conter o avanço da China e dos BRICS na região, sob a intervenção direta do
Comando Sul, por meio da crescente militarização de atividades estratégicas.
Há pouco mais de uma década, após o golpe de Estado que derrubou o governo
de Fernando Lugo (2012), o Paraguai era praticamente o único vassalo leal dos
Estados Unidos na região, enquanto as relações comerciais e de investimento da
China no subcontinente se aprofundavam. Essa é a razão pela qual o Paraguai
mantém relações irrestritas com Taiwan desde 1957, quando a ditadura do general
Stroessner, no âmbito da Guerra Fria, virou as costas para a China, sob a proteção
das imposições de Washington. Os herdeiros de Stroessner, que permanecem no
poder até hoje, após a derrubada do ditador há 35 anos, não mudaram nem um pouco
essa posição anticomunista e antichinesa, que atualmente são de grande valor para a
geopolítica dos Estados Unidos e da Otan.
Se inscreve nessa ordem o controle da hidrovia Paraguai-Paraná por parte dos
Estados Unidos. O governo de Abdo Benítez (2018-2023), sob as imposições do
Comando Sul, concedeu ao Corpo de Engenheiros da Marinha dos EUA o controle da
hidrovia, supostamente para manter a navegabilidade e facilitar o comércio de
produtos agrícolas controlados por transnacionais do agronegócio.
Com a chegada de Javier Milei à Casa Rosada, na Argentina, o controle da
hidrovia pelos Estados Unidos agora é total até sua foz no Rio da Prata. Milei entregou
todo o controle da hidrovia até o Rio da Prata aos militares norte-americanos.

* Pesquisador independente. Membro do GT China e do World Power Map, CLACSO.


RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 108

200 TONELADAS DE COCAÍNA POR ANO

A preocupação por parte dos Estados Unidos com a hidrovia não é tanto por
conta da soja e outros produtos agrícolas que são transportados por essa importante
artéria fluvial até o restante do mundo: é a cocaína. Estimativas de organizações
internacionais e não governamentais mostram que o Paraguai é um hub logístico para
o tráfico de cocaína, estimado em 200 toneladas por ano, destinadas principalmente
à Eurásia. O valor da cocaína no velho continente é da ordem de 30.000 dólares por
quilo, então 200 toneladas significam 6.000 milhões de dólares, um quinto do PIB
nacional.
O apoio logístico passa basicamente pelas embarcações do agronegócio que
transportam cocaína pela hidrovia em meio aos produtos primários de exportação,
além do apoio do setor financeiro para a lavagem desses milhões de dólares em
circulação, fluxo financeiro sob controle absoluto do Federal Reserve, o Banco Central
dos Estados Unidos que está empenhado em salvar o dólar de seu colapso gradual.
O tráfico de cocaína também é uma das razões da perene e acirrada luta
interoligárquica no Paraguai, ultimamente com a intervenção direta do Departamento
de Estado e do Comando Sul. Sob o governo de Abdo Benítez, os EUA encurralaram
seu aliado de longa data, o ex-presidente Horacio Cartes, acusado de ser
significativamente corrupto, entre outros, por supostamente manter laços com a
organização político-militar libanesa Hezbollah. No entanto, contraditoriamente, esta
entidade é inimiga feroz de Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro de Israel, que é
amigo próximo e associado de Horacio Cartes.
É aí que se cruza o interesse do regime sionista de Israel nos assuntos das
organizações criminosas que governam o Paraguai. Cartes, quando foi presidente da
República (2013-2018), visitou o amigo Netanyahu em diversas ocasiões, assim como
Jair Bolsonaro, do Brasil, e, recentemente, Javier Milei, da Argentina.
Nos últimos anos, os Estados Unidos mantiveram Cartes, que não pode viajar
para o exterior há vários anos por medo de ser detido e deportado para aquele país,
de pé. Ele acusa diretamente seu sucessor, Abdo Benítez, ambos do Partido
Colorado, de ser o principal articulador de todas as acusações do Departamento de
109 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

Estado contra ele. Ele e seus associados, incluindo o ex-presidente Juan Carlos
Wasmosy, bem como aliados financeiros do Brasil, Chile e Argentina, teriam perdido
bilhões de dólares ao longo dos anos.

FRAUDE ELEITORAL

Os estrategistas que assessoravam Horácio Cartes o fizeram ver que a única


maneira de permanecer no poder e preservar sua riqueza era manter o Partido
Colorado no governo, colocando como presidente da República um de seus asseclas,
como o é Santiago Peña. Enquanto isso, o próprio Horácio Cartes preside o partido.
No entanto, a vitória eleitoral de Peña em abril de 2023 foi ofuscada por alegações de
fraude eleitoral, com apoio de seu amigo Mauricio Macri, ex-presidente da Argentina
e aliado do presidente Milei. Macri forneceu as urnas eletrônicas ao Tribunal Eleitoral
do Paraguai, por meio do Consórcio MSA/Excelsis, de Sergio Orlando Angelini,
denunciado na própria Argentina por promover e facilitar fraudes eleitorais nas
eleições provinciais.
Os mais de 100 observadores internacionais nem sequer objetaram as
alegações de fraude eleitoral, para perplexidade da grande maioria da população que
votou contra o aparato mafioso, enquanto a imprensa corporativa, aliada do capital
financeiro internacional, convenientemente silenciava qualquer denúncia que pudesse
deslegitimar o governo Peña. A "estabilidade" do sistema também agrada à imprensa,
embora atualmente seja um "inimigo" do governo Peña.
O que tudo isso significa? Que os aliados dos Estados Unidos podem
transgredir todas as normas, leis nacionais e acordos internacionais, desde que a luta
contra a expansão da China seja garantida e obstaculizar os BRICS em toda a região,
a ponto de a Argentina de Milei ter desprezado e humilhado os membros daquela
organização ao rejeitar seu convite para ingressar na organização.
Para isso, o imperialismo promove a crescente militarização das relações
internacionais no continente, a começar pela região de Essequibo, onde a Venezuela
mantém uma disputa territorial com a Guiana, rica em petróleo que a americana
ExxonMobill explora à vontade. Essa mesma milícia, liderada pela general Laura
Richarson, a versão militar da infame Victoria Nuland, é a que dá total apoio ao
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 110

governo infante de Daniel Noboa, do Equador, que em prova de sua abjeção ordenou
o recente assalto à embaixada mexicana para prender um exilado naquele posto
diplomático em um ato de agressão sem paralelo contra uma nação soberana, cujo
presidente, López Obrador, não é simpático à Casa Branca.
A mesmo Richarson é quem está conduzindo as aventuras de Javier Milei na
Argentina, que cedeu uma base naval aos Estados Unidos na Terra do Fogo, tudo
para se contrapor à China e, ao mesmo tempo, encurralar o Brasil até que uma
mudança de governo seja alcançada por outro que seja favorável aos Estados Unidos
e seus aliados em sua luta para sufocar a expansão dos BRICS e, eventualmente, da
China.
Como pode ser visto neste breve resumo, o Paraguai, uma ninhada da
geopolítica imperial, desempenha um papel fundamental no coração do continente, a
ponto de até o próprio Elon Musk expandir o serviço de sua empresa Starlink para
cobrir a imensa região do Chaco paraguaio com sinais de satélite, uma rota
privilegiada de cocaína que desce das terras altas até as margens do rio Paraguai.
111 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

O PERIGO E AS CONTRADIÇÕES DA POLÍTICA ECONÔMICA DA BOLÍVIA NO


SEIO DO POVO
Luis Miguel Gomez Cornejo Urriola*

INTRODUÇÃO

A cisão do partido Movimiento al Socialismo (MAS), o giro neoliberal da política


do Presidente da Bolívia, Luis Arce, a escassez de dólares no país devido à queda
das reservas internacionais e exportações, a resposta do governo em matéria de
política econômica, os bloqueios das estradas por parte dos seguidores do ex-
Presidente Evo Morales em diferentes regiões do país — como La Paz, Cochabamba
e Santa Cruz —, e as lutas judiciais de Evo Morales são o fio vermelho que costura o
presente trabalho. Propomos, como reflexão crítica, pensar primeiro de onde vem o
perigo que as massas podem enfrentar nas lutas contra as forças reacionárias nas
suas diversas formas. Quando mencionamos o perigo em si, temos de mencionar que
não nos referimos ao aspecto subjetivo, mas ao aspecto objetivo da questão; não à
posição formal que os reacionários ocupam na luta, mas ao seu resultado material nas
contradições no seio do povo. Concluímos que isso pode levar a um possível declínio
da esquerda nas eleições presidenciais de 2025.

CISÃO E TENSÃO POLÍTICA NA CÚPULA DO MOVIMIENTO AL SOCIALISMO E


AS DECISÕES JUDICIÁRIAS

As principais forças políticas internas e externas que orquestraram o golpe de


Estado do ano 2019, ou seja, golpe realizado pela oposição dominada pelas elites
nacionais e pelos interesses imperialistas neoliberais dos Estados Unidos, levaram
Evo Morales a se refugiar, primeiro, na Argentina e, depois, no México, o que resultou
em uma crise económica e política.
Evo, durante os seus três mandatos presidenciais (2006-2009; 2009-2014; e
2014- 2019), a partir da sua identidade e políticas étnicas, procurou promover as

*Doutorando em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano


e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 112

nacionalizações dos recursos naturais, como os hidrocarbonetos que se encontravam


à mercê do capital privado estrangeiro financeirizado, obtendo impactos positivos na
economia boliviana, por meio da venda e exportação de gás natural para os mercados
da Argentina e do Brasil, reduzindo os níveis elevadíssimos de desigualdade social
no país que afetam substancialmente os povos originários. Desta forma, Evo, com o
apoio dos partidos progressistas e das esquerdas, esforçou-se por consolidar um
governo que ouviu e resolveu as demandas provenientes do povo e dos subalternos.
A cisão partidária dentro do MAS pelo controle do partido gera um problema de
liderança política. Por um lado, temos o ex-presidente Evo Morales e principal figura
pública do MAS e, pelo outro, temos o atual presidente Luis Arce e também
Choquehuanca (vice-presidente da República), que foram expulsos do partido MAS.
O assunto judiciário tenta barrar Evo das eleições de 2025. O Tribunal Constitucional
de Bolívia, a principal instituição do sistema judicial do país, revogou a possibilidade
de um presidente ou vice-presidente permanecer no cargo por mais de dois mandatos,
consecutivos ou alternados, permitindo-lhe ser candidato no ano de 2025, e anulou a
medida que permitia sua eleição no ano de 2019. Contudo, deu-se um golpe de Estado
e o ex-presidente renunciou ao cargo devido à alegações de fraude por parte dos
grupos reacionários.
Perante esta investida jurídica, mais de 4.200 manifestantes, liderados por
organizações camponesas que apoiam o ex-presidente Evo Morales, bloquearam a
circulação em 24 pontos do país, exigindo assiduamente a convocação de “eleições
judiciais”, que deveriam ter sido realizadas no final do ano passado, para definir os
juízes dos tribunais superiores do país. Esse processo foi suspenso devido à carência
de uma pré-seleção de candidatos, que deveria ser definida na Assembleia Legislativa
Plurinacional (ALP). Os 19 bloqueios isolaram o departamento de Cochabamba,
localizado na região central do país, principal bastião político do ex-presidente Evo
Morales.
O ex-presidente e líder do Movimiento al Socialismo (MAS), Evo Morales,
enfatiza que o presidente Luis Arce e o vice-presidente David Choquehuanca
impediam e boicotavam uma possível solução para o conflito social. Dentro desta
correlação de forças entre os apoiadores de Evo e os Arcistas, e para pôr fim aos
113 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

bloqueios, foi criada uma Comisión Bicameral y Multipartidaria visando consensos na


Asamblea Legislativa Plurinacional (ALP), encabeçada pelo vice-presidente
Choquehuanca, em conjunto com as três principais forças políticas do país, para
permitir a elaboração da Ley Transitória de las Elecciones Judiciales e, assim, dar
cesse aos bloqueios de estradas que perduraram por 12 dias. Tal como estabelece a
Constitución Política del Estado Plurinacional de Bolívia de 2009, a eleição das mais
altas autoridades judiciais e constitucionais deveria ter sido realizada no ano passado,
mas foi adiada por uma combinação de fatores políticos e operadores dos tribunais.
A decisão mais criticada, qualificada de inconstitucional pelos partidários de
Evo, foi a auto prorrogação dos magistrados e conselheiros que cumpriram o seu
mandato em 31 de dezembro. A exigência do afastamento destas autoridades foi o
ponto de discórdia que impediu um acordo político que pusesse fim à incerteza política
nacional. Após cinco dias de discussão, os presidentes das câmaras legislativas, os
líderes das bancadas e os presidentes das comissões envolvidas assinaram um
acordo para garantir as eleições judiciais de 2024. No entanto, o acordo não foi
assinado pelo vice-Presidente Choquehuanca, que declarou um recesso em
dezembro, dilatando a convocação do diálogo.
Na sequência destes acontecimentos políticos, inicia-se na Câmara de
Deputados duas questões cruciais que entraram na agenda pública. A primeira
questão se refere à aprovação de sete projetos de lei para o “financiamento da agenda
económica” e a segunda, à demissão dos magistrados auto extensivos e
autodefinidos, ou seja, uma forma de autoproteção jurídica entre si, entre alguns porta-
vozes do governo e o Ministro da Justiça.
Os protestos tiveram consequências na economia boliviana devido à falta de
alimentos, medicamentos e escassez de bens de primeira necessidade, em resultado
do bloqueio das principais rodovias da Bolívia, causando prejuízos em setores como
o turismo, uma vez que os protestos ocorreram durante o carnaval de Oruro. Além
disso, este fato paralisou o abastecimento de combustível nas principais regiões do
país, como La Paz, Cochabamba e Santa Cruz, encarecendo alguns produtos básicos.
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 114

ESCASSEZ DE DÓLARES NO PAÍS DEVIDO À QUEDA DAS RESERVAS


INTERNACIONAIS E SUAS EXPORTAÇÕES

Após a escassez de dólares na Bolívia, o governo de Luis Arce deu uma


reviravolta na política econômica, reconhecida mundialmente desde que Evo Morales
chegou à presidência em 2006 com o partido Movimiento al Socialismo (MAS),
rompendo com os seus ideais com ações como a subvenção da compra de
combustíveis e o controle das exportações, e passando atualmente por uma reforma
de cunho neoliberal da política econômica de liberalização da economia nacional e de
maiores alianças entre o público e o privado, visto que as reuniões entre o Executivo
com o setor privado eram quase insólitas desde a chegada do MAS ao poder.
Interpretamos este giro na política econômica como uma estratégia para as próximas
eleições de Luis Arce em 2025.
O governo boliviano, com base neste arco de alianças entre o público e o
privado, garante que normalizará o cenário de escassez de dólares no país. Destaca-
se, dentro desta política neoliberal recente, o enfraquecimento das restrições às
exportações e a criação de um leilão de diesel para os grandes produtores. Uma das
condições de exportação de produtos reside no fato de o país só poder exportar
gêneros alimentícios quando o abastecimento do mercado local estiver garantido.
Assim, os exportadores têm de obter um certificado de abastecimento antes de
venderem sua mercadoria ao exterior. Os alimentos e produtos como soja, carne,
açúcar, entre outros, estarão isentos de requerer este certificado, como solução para
a crise de divisas.
A Bolívia enfrenta uma situação de escassez de combustível. As importações
de combustível aumentaram relativamente, assim como os episódios de escassez de
abastecimento, intensificando as queixas. especialmente dos produtores de cereais,
razão pela qual estes poderão, a partir do momento atual, participar em um leilão de
diesel através do monopólio estatal YPF-B, no qual poderão licitar acima do preço
oficialmente fixado a fim de assegurar o abastecimento imprescindível para manter
suas empresas em funcionamento. Desta forma, o governo considera relevante o fato
115 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

de o subsídio ao combustível ser uma grande pressão fiscal, uma vez que, com o
leilão, poderá vendê-lo a um preço mais próximo do preço externo.
Em março do ano passado, foram denunciadas multidões de cidadãos
bolivianos devido à falta de acesso a dólares em bancos e casas de câmbio. Como
solução para este problema cambial, o governo anunciou que o Banco Central de
Bolívia (BCB) — banco cuja função é determinar e executar a política monetária;
executar a política cambial; regular o sistema de pagamentos; autorizar a emissão de
moeda; e, finalmente, administrar as reservas internacionais (BCB, 2024) — fornecerá
dólares.
O país tem um regime de taxa de câmbio fixa estabelecido pelas autoridades.
No entanto, os importadores que precisam operar nas divisas estadunidenses
protestam já que os bancos lhes aplicam uma comissão de até 20% quando tentam
negociar. Consequentemente, este fato agravou a escassez visto que a burguesia
nacional e uma parte da pequena burguesia optaram por dólares no exterior em vez
de possuir esse dinheiro na Bolívia (BCB, 2024).
A contradição inerente a este tipo de neoliberalização econômica reside na
dificuldade do governo e do capital privado em contrariar o pagamento das
importações. Desta forma, a falta de dólares dificulta a capacidade do governo e do
setor privado de pagar as importações. Trata-se de um encargo cada vez maior para
a economia boliviana, especialmente no que se refere a artigos críticos e/ou bens de
uso público, como os hidrocarbonetos, que o país compra atualmente no estrangeiro
e que se tornaram escassos nos últimos tempos no território boliviano. No entanto, o
governo argumenta que a carência de combustível se deve a sabotagens internas e
que a situação é temporária.
Para contrabalançar os impactos econômicos e sociais decorrentes destas
medidas, o governo espera reduzir em US$100 bilhões de dólares por ano o custo do
subsídio aos combustíveis. Ante a baixa disponibilidade de dólares no sistema
financeiro e o aumento do custo das divisas no “mercado negro” que substituiu
efemeramente o “mercado paralelo”, o Instituto Boliviano de Comércio Exterior (IBCE)
lançou medidas neoliberais para evitar a crise econômica e política gerada pelo
governo de Arce, que está desacelerando e enforcando os setores produtivos e
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 116

comerciais que utilizam dólares para comprar e/ou exportar produtos e mercadorias
e/ou contratar serviços no exterior.
Esta escassez de dólares, de acordo com os partidários do governo, geraria
problemas substanciais com os setores agropecuários, florestais, industriais,
farmacêuticos, comerciais e exportadores, visto que seriam afetados ao terem que
parar as suas atividades e operações em curto prazo, levando a uma crise de
sobreprodução, aumento de custos, preços e inflação, impactando na queda do
emprego e crescimento do PIB.
Vale ressaltar que as exportações caíram pouco mais de US$2,8 bilhões de
dólares em 2023 e houve um déficit comercial de aproximadamente US$700 bilhões
de dólares após três anos de superávit comercial, o que leva à baixa circulação do
dólar no país (IBCE, 2024). No âmbito do giro neoliberal que o governo de Arce propõe
para “evitar” a crise que é iminente a curto prazo, decidiram implementar as seguintes
diretrizes com o objetivo de dolarizar o país:

1. Libertar totalmente as quotas de exportação e promover as exportações não


tradicionais em setores de reação imediata (agricultura/agroindústria,
floresta/madeira, turismo) através de um grande pacto com o setor exportador,
como gerador ideal de divisas;
2. Eliminar o Impuesto a las Transacciones Financieras (ITF), considerando que
pune desnecessariamente o uso de divisas e desincentiva o uso de dólares no
sistema financeiro;
3. Permitir a livre venda de dólares no mercado paralelo, de modo a acabar com
o processo especulativo do “mercado negro” derivado da perseguição aos
“cambistas” que sempre canalizaram os dólares em um mercado aberto e
competitivo, que não existe atualmente;
4. Aprovar créditos externos na Asamblea Legislativa Plurinacional (ALP) e
recorrer a organismos multilaterais para receber apoio financeiro;
5. Emitir títulos em dólares a uma taxa atrativa através do Banco Central de
Bolívia (BCB), sob seguro financeiro e com a garantia do Estado, para
aumentar as Reservas Internacionales Netas, atrair capital externo, assim
117 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

como parte dos US$10 mil bilhões de dólares que estão fora do sistema (IBCE,
2024).

CONCLUSÕES

O nosso esforço no seguinte artigo pretende mostrar a conjuntura atual na


Bolívia. Para isso, faz-se necessário retomar às perguntas iniciais deste trabalho sobre
o perigo político: para onde vai a esquerda boliviana; o que ela quer no momento atual
diante ao avanço da ofensiva neoliberal no país, do fascismo e de outros movimentos
reacionários que renascem nos países do capitalismo central e em vários países da
região?
O perigo está em saber e perceber de que lado se encontra a ameaça contra
os proletários. Neste caso em particular, consideramos a ofensiva neoliberal na Bolívia
por parte do desvio do governo Arce e o ressurgimento dos fascistas na região. As
ameaças se percebem com a cisão do partido Movimiento al Socialismo (MAS); o giro
neoliberal da política do presidente da Bolívia, Luis Arce; a crise judicial gerada pela
decisão do Tribunal Constitucional Plurinacional de Bolivia (TCP); a escassez de
dólares no país devido à queda das reservas internacionais e exportações; os
deslocamentos dos seguidores de Evo frente aos temas judiciários; os bloqueios das
estradas que perduraram por 12 dias e a carência de combustível. Tudo isto reside
nos perigos que as massas do altiplano padecem atualmente. Os neoliberais
pretendem enganar as massas, afirmando que a crise econômica e política é
temporária, mas torna-se claro que o caminho optado por Arce resultará em processos
de neoliberalização de políticas públicas, a partir de um arco de alianças entre o
público e privado, o que servirá para desregularizar o papel do Estado e barrar os
avances das políticas identitárias e étnicas realizadas pelo ex-presidente Evo Morales,
que promoveram as nacionalizações dos principais recursos naturais que estavam à
tutela do capital privado, do capital financeirizado e do capital fictício, que foram
reconhecidas pelos impactos positivos na economia do pais quando o próprio Arce foi
Ministro da Economia.
Observamos uma situação sumamente complicada e delicada nos interesses
da esquerda na corrida para as próximas eleições do ano de 2025. Apesar do atual
RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1 118

contexto de caos sistêmico e da crise hegemônica dos EUA no sistema mundial, o


país, reconhecido pelas transformações sociais levadas a cabo pelos governos de
Evo, faz um giro nas suas políticas para as políticas neoliberais vilmente propostas
por Arce. Temos uma forte preocupação com a incerteza política e a fragilidade
institucional do governo Arce face às políticas neoliberais, que, como já sabemos,
conduzem os países periféricos a serem mais dependentes e à degradação das suas
políticas econômicas e sociais, obtendo resultados desastrosos na sociedade civil com
processos de mercantilização e privatização extensiva da terra. Além disso, geram
expulsão forçada das populações camponesas e urbanas, reconversão do direito de
propriedade em propriedade privada, destruição do meio ambiente a todo o custo,
demissões massivas da força produtiva e mercantilização plena da vida.
O processo de desenvolvimento e as lutas de classes da Bolívia, entendido
como um fenômeno particular, tem uma série de contradições dentro do seio do povo
— como a contradição dentro do próprio MAS; outra entre o MAS e os neoliberais de
Arce; outra entre as classes oprimidas e o imperialismo; entre o imperialismo e os
neoliberais; entre o proletariado e a burguesia; entre os camponeses e a burguesia
urbana; e contradições entre os diversos movimentos reacionários. No entanto, nem
todas elas podem ser tratadas da mesma forma, uma vez que cada uma tem um
carácter específico e, ao mesmo tempo, estas duas particularidades dialéticas têm
características inerentes próprias, não sendo possível tratá-las da mesma forma e
aprofundá-las a sua plenitude neste breve documento.
O perigo das massas e a questão da perigosidade não se refere à diluição dos
neoliberais em outros grupos reacionários do imperialismo e/ou da burguesia nacional
e suas diferentes formas, e também não se refere à manutenção destes grupos de
sua independência e individualidade, ou sua posse de forças para imprimir o seu selo
organizativo partidário, porque consideramos a diluição e superação da burguesia
como um fator histórico.
É claro que em uma situação historicamente concreta, os elementos do
passado e do futuro se misturam, e muitas vezes ambos caminhos entrelaçados e se
confundem um com o outro. Por tanto, assim como Lenin nos mostrou em 1905, ao
explicar, na conjuntura da época, que as tarefas políticas devem ser colocadas em
119 RECORTES DA CONJUNTURA | VOL. II, Nº 1

uma situação concreta para, desse modo, ser possível compreender a conjuntura
nacional e, por conseguinte, a ação política, de forma material, temos que a não
análise de uma situação concreta pode levar à sua teoria equivocada que, por sua
vez, em sua própria natureza resulta em uma conjuntura equivocada que, por
conseguinte, leva-nos a uma ação equivocada. A união, portanto, entre teoria e prática
como ferramenta ativa é indispensável para compreender o real, entender a
conjuntura e enxergar a realidade concreta.
Dito isso, consideramos que o partido MAS e Evo Morales, como seu principal
representante, não devem nunca esquecer a inevitável luta de classes do proletariado
boliviano pelo socialismo, mesmo que isso seja contra seus interesses pessoais. A
luta contra movimentos reacionários, imperialistas e neoliberais do país e da região
faz parte da tarefa revolucionária, hoje mais que nunca. Assim, disso decorre a
necessidade absoluta de que o MAS, como partido político, seja independente e
rigorosamente de classe. Sobre à miopia política de Evo, atribuímo-la à falta de um
programa político do MAS — não um programa desatualizado, mas um programa
novo, que considere novos métodos de ação e táticas que correspondam ao caráter e
aos objetivos dos proletários bolivianos até as últimas consequências e que atendam a
uma nova palavra de ordem: a superação do capitalismo via o socialismo.

REFERÊNCIAS

BANCO CENTRAL DE BOLIVIA. Banco Central de Bolivia 2011-2024: La Paz, 2023.


Disponível em <https://www.bcb.gob.bo/>. Acesso em 20 de abril de 2024.
INSTITUTO BOLIVIANO DE COMERCIO EXTERIOR. Santa Cruz, 2023. Disponível
em <https://ibce.org.bo/noticias-detalle.php?idNot=930>. Acesso em 21 de abril de
2024.
LÊNIN, Vladímir. Duas táticas da social-democracia na revolução democrática.
São Paulo: Editora Boitempo, 2022 [1905].
. Imperialismo fase superior do capitalismo. São Paulo: Editora
Boitempo. 2021[1916].
TSE-TUNG, M. A. O. Sobre a prática e sobre a contradição. São Paulo: Expressão
Popular, 1999

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