Pratica Psicológica Na Perspectiva Fenomenológica
Pratica Psicológica Na Perspectiva Fenomenológica
Pratica Psicológica Na Perspectiva Fenomenológica
Prática Psicológica
na Perspectiva
Fenomenológica
2 Carmem L. B. T. Barreto, Henriette T. P. Morato e Marcus T. Caldas (Orgs.)
ISBN: 978-85-362-
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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
Prática Psicológica
na Perspectiva
Fenomenológica
Autores:
Ana Lúcia Francisco Laiz Maria Silva Chohfi
Ana Maria Santana Luciana Oliveira Lopes
Ana Paula Noriko Cimino Luciana Oushiro
Ananda Kenney da Cunha Nascimento Luciana Szymanski
André Prado Nunes Maria Luisa Sandoval Schmidt
André Rostworowski Marcus Túlio Caldas
Andrea Cristina Tavelin Biselli Maria Eugênia Calheiros de Lima
Angela Nobre de Andrade Marilia Hiromi Takeshita
Barbara Eleonora Bezerra Cabral Nilson Gomes V. Filho
Bruna Luiza Ferreira Rafael Auler de Almeida Prado
Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto Regina Coeli Araujo da Silva
Danielle de Fátima da Cunha Cavalcanti de Rodrigo da Silva Rodrigues Lermes
Siqueira Leite Sáshenka Meza Mosqueira
Ellen Fernanda Gomes da Silva Shirley Macêdo Vieira de Melo
Franciane Seco Delavia Sílvia Raquel Santos de Morais
Heloísa Szymanski Suely Emília de Barros Santos
Henriette Tognetti Penha Morato Tatiana Benevides Magalhães Braga
Joyce Cristina de Oliveira Rezende Wedna Galindo
Curitiba
Juruá Editora
2013
4 Carmem L. B. T. Barreto, Henriette T. P. Morato e Marcus T. Caldas (Orgs.)
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
SOBRE OS AUTORES
André Rostworowski
Graduado em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universi-
dade de São Paulo (IPUSP) e especialista em Prática Psicológica em Insti-
tuições também pelo IPUSP. E-mail: [email protected].
Heloísa Szymanski
Psicóloga, doutora em Psicologia da Educação pela PUC/SP,
professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, do-
cente do programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia da Educação,
coordenadora do Grupo de Pesquisa em Práticas Educativas e Atenção
Psicoeducacional na Escola, Família e Comunidade, pesquisador 1 CNPq,
autora do livro A Relação Família Escola: Desafios e Perspectivas. E-mail:
[email protected].
Luciana Oushiro
Psicóloga formada pela Universidade de São Paulo – USP, cursa
especialização em Prática Psicológica em Instituições e aperfeiçoamento em
Orientação Profissional e de Carreira (Serviço de Orientação Profissional –
SOP), ambos pelo Instituto de Psicologia da USP. E-mail: luciana.oushiro@
gmail.com.
Luciana Szymanski
Docente do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católi-
ca de São Paulo – PUC/SP e psicoterapeuta. Atua na área de psicologia da
educação e clínica, com ênfase no pensamento fenomenológico-existencial.
Participa do Grupo de Pesquisa em Práticas Psicoeducativas e Atenção
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
Wedna Galindo
Doutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade de
Pernambuco – UNICAP; Bolsista da Fundação de Amparo à Ciência e
Tecnologia do Estado de Pernambuco – FACEPE. É psicóloga no Centro
de Testagem e Aconselhamento em DST/HIV-Aids – CTA Recife. E-mail:
[email protected].
12 Carmem L. B. T. Barreto, Henriette T. P. Morato e Marcus T. Caldas (Orgs.)
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
PREFÁCIO
PALAVRAS INICIAIS
Carmem Barreto
Henriette Morato
Marcus Túlio Caldas
18 Carmem L. B. T. Barreto, Henriette T. P. Morato e Marcus T. Caldas (Orgs.)
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
SUMÁRIO
Parte 1
Psicologia e Fenomenologia: a Ação Psicológica na Prática e
na Pesquisa em Instituições
• Reflexões para Pensar a Ação Clínica a Partir do Pensamento de Heidegger:
da Ontologia Fundamental à Questão da Técnica
Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto ................................................................... 23
• Algumas Considerações da Fenomenologia Existencial Para a Ação
Psicológica na Prática e na Pesquisa em Instituições
Henriette T. P. Morato .......................................................................................... 47
• Repercussões do Pensamento Fenomenológico nas Práticas Psicoeducativas
Heloisa Szymanski Luciana Szymanski................................................................ 73
• Atitude Fenomenológica Existencial e Cuidado na Ação Clínica
Rafael Auler de Almeida Prado Marcus Túlio Caldas .......................................... 91
• Apontamentos Críticos à Teoria da Mudança de Carl Rogers
Maria Luisa Sandoval Schmidt ........................................................................... 103
• A Análise Existencial como Terapia de Neuroses Coletivas: o Pensamento
Social de Viktor Frankl na Perspectiva de Clínica Ampliada
Marcus Túlio Caldas Maria Eugênia Calheiros .................................................. 143
• A Questão de Pesquisa como Bússola: Notas sobre o Processo de Produção de
Conhecimento em uma Perspectiva Fenomenológica Existencial
Barbara Eleonora Cabral Henriette T. P. Morato ................................................ 155
• Merleau-Ponty e Gadamer: Possibilidade de se Pesquisar a Prática de
Psicólogos Clínicos
Shirley Macêdo Marcus Túlio Caldas ................................................................. 179
Parte 2
Das Modalidades de Prática à Pesquisa em Instituições
• Psicodiagnóstico Colaborativo: Contribuições da Perspectiva Fenomenológica
Existencial
Danielle de Fátima da Cunha Cavalcanti de Siqueira Leite Carmem Lúcia
Brito Tavares Barreto.......................................................................................... 201
• O Psicodiagnóstico Interventivo/Colaborativo e Formação do Psicólogo:
Relato de uma Experiência
Andrea Cristina Tavelin Biselli Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto .............. 227
20 Carmem L. B. T. Barreto, Henriette T. P. Morato e Marcus T. Caldas (Orgs.)
Parte 3
Prática Psicológica e Saúde
• Unindo Buracos: a Construção de uma Rede de Atenção em Saúde a Partir do
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP)
Laiz Maria Silva Chohfi Joyce Cristina de Oliveira Rezende Luciana Oushiro
Rodrigo da Silva Rodrigues Lermes André Rostworowski Henriette Tognetti
Penha Morato ...................................................................................................... 417
• Prática Psicológica em Saúde Pública: a Dimensão Ético- -Política do
Cuidado nas Policlínicas
Ana Paula Noriko Cimino Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto....................... 439
• Prática Psicológica em Saúde: Acolhimento e Zelo
Ana Maria de Santana ......................................................................................... 469
• Compreendendo a Prática da Atençao Psicossocial em Saúde Mental no
Processo de Desinstitucionalização
Luciana Oliveira Lopes Nilson Gomes Vieira Filho........................................... 485
• Psicologia e Saúde Coletiva: Notas para Debate
Wedna Cristina Marinho Galindo Ana Lúcia Francisco ..................................... 501
• Acompanhamento Terapêutico: da Urgência de um Dispositivo a uma
Modalidade de Ação Clínica
Ananda Kenney da Cunha Nascimento Marcus Túlio Caldas ............................ 519
Parte 1
PSICOLOGIA E FENOMENOLOGIA
A Ação Psicológica na Prática e
na Pesquisa em Instituições
22 Carmem L. B. T. Barreto, Henriette T. P. Morato e Marcus T. Caldas (Orgs.)
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
1 INTRODUÇÃO
1
Sofrimento humano, no contexto do presente texto, é compreendido como limitação inter-
pretativa da abertura de sentido do ser humano compreendido como Dasein, e que se
apresenta como manutenção de uma percepção de si cristalizada e restritiva, diante das di-
versas possibilidades de existir no mundo.
26 Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto
2
A Psicologia, nessa passagem, foi influenciada pela crise vivida pela filosofia no final do
século XIX, principalmente pelas propostas formuladas por Dilthey as quais não serão
trabalhadas no presente texto, considerando os objetivos propostos.
28 Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto
3
Mistério aqui, considerado a partir de uma compreensão heideggeriana, é a condição em
que reside o vigor que possibilita o desvelamento daquilo que chamamos conhecimento.
30 Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto
4
Narrativa compreendida no sentido explicitado por Walter Benjamin ao assinalar a falên-
cia das narrativas tradicionais, na modernidade, que poderiam proporcionar aos membros
de uma comunidade uma experiência que possa ser dita e significada.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
5
Entrevista que, segundo o desejo de Heidegger, só foi publicada após seu falecimento em
maio de 1976. Para consulta, recorreu-se à publicação de 1994, composta por um conjunto
de textos, denominada de “Escritos Políticos”. Nessa publicação utilizou-se a tradução de
Jean Launay publicada no ‘Mercure de France’ em Paris, 1977.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
gger chama atenção para a diferença entre a técnica e sua essência, já que a
essência não é algo propriamente técnico. A técnica seria um conjunto de
meios para alcançar um fim, cabendo ao homem articular e julgar os meios
necessários para o alcance dos fins – técnica instrumental. Já com relação à
essência da técnica, Heidegger interroga a definição da técnica como instru-
mento, considerando-a como ponto de partida para o pensamento voltado
para a compreensão da verdadeira essência da técnica, pois “somente o ver-
dadeiro nos leva a uma livre relação com o que nos toca a partir de sua es-
sência” (Heidegger, 2001a, p. 45).
Nessa direção, Heidegger recorre ao pensamento grego, no qual a
causalidade é pensada na sua dimensão original como deixar surgir e vir à
presença, como trazer à luz o que se apresenta, como poiésis – produzir
como deixar trazer o que foi produzido, retirando-o do velamento (Verbor-
genheit) para o desvelamento (Unverborgenheit). Assim a poiésis é um tra-
zer à luz o que se encontrava velado e estaria vinculada à concepção de ver-
dade como aletheia – a verdade em seu sentido originário como desvela-
mento –, diferente da concepção da verdade como veritas – compreendida
como adequação entre a coisa e a ideia – mas que impediria compreender a
essência originária da técnica. Nessa direção, haveria uma distinção entre o
desocultar como “pro-duzir” (Her-stellen), um pôr-se adiante à luz, e o deso-
cultar que desafia e põe a natureza como fonte de recursos disponíveis.
Ao lado dessa reflexão, Heidegger (2001a) considera que o ente
desocultado pela tecnologia moderna, colocado e demandado para seu em-
prego contínuo, assume a posição ontológica que denominou por “subsistên-
cia”, disponível para qualquer agenciamento tecnológico. Assim, “a palavra
‘subsistência’ eleva-se agora à categoria de um título. Ela significa nada
menos que o modo pelo qual tudo o que é tocado pelo desocultamento desa-
fiante se essencializa” (Heidegger, 2001a, p. 61).
Além da natureza, o próprio homem como ente também estaria dis-
ponível para o agenciamento tecnológico de sua produção, conservação, des-
truição e reprodução. Esse é o ponto extremo a que chega o diagnóstico heide-
ggeriano sobre o perigo implícito na técnica moderna denominada como “dis-
positivo” (Gestell). Dispositivo que demarca o modo como o nosso presente
assume sua dimensão “historial”, seu caráter ontológico enquanto época histó-
rica determinada, diferente de outras épocas. Cada época histórica, compreen-
dida não como sucessão de momentos cronológicos, mas como modalidades
distintas de “abertura” na qual os entes vêm a ser o que são, se constitui como
resposta humana a um determinado modo de desocultamento dos entes em seu
ser. Assim, o dispositivo seria o modo como hoje nos relacionamos conosco,
com os demais homens e com tudo o que há na modernidade.
40 Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
7 REFERÊNCIAS
Agamben, G. (2010). O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos.
Almeida, F. M. (1999). Aconselhamento Psicológico numa visão fenomenológico-existencial:
cuidar de ser. In: Morato, H. T. P. Aconselhamento Psicológico Centrado na pessoa: novos
desafios. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Barreto, C. L. B. T. Compreendendo a constituição e a mudança no espaço psicológico: da mo-
dernidade à contemporaneidade. In: Simposium. Recife, PE: ano 3, numero especial, 5-17, 1999.
Barreto, C. L. B. T. (2006). A ação clínica e os pressupostos fenomenológicos existenciais.
Tese de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo. São Paulo.
Boss, M. (1977). Angústia, Culpa e Libertação: Ensaios de psicanálise existencial. São Paulo:
Duas Cidades.
Carneiro, L. Introdução. (1995). In: Heidegger, M. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tem-
po Brasileiro.
Critelli, D. M. (2006). Analítica do Sentido: uma aproximação e interpretação do real de
orientação fenomenológica. São Paulo: EDUC/Brasiliense.
Duarte, A. (2010). Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio
de Janeiro: Florense Universitária.
Feijoo, A. M. L. C. (2011). A existência para além do sujeito: a crise da subjetividade moder-
na e suas repercussões para a possibilidade de uma clínica com fundamentos fenomenológico-
existenciais. Rio de Janeiro: Edições IFEN: Via Verita.
Figueiredo, L. C. (2009). As diversas faces do cuidar: novos ensaios de psicanálise contempo-
rânea. São Paulo: Escuta.
Heidegger, M. (1989). Ser e tempo. Petrópolis: Vozes.
Heidegger, M. (1959). Serenidade. Lisboa: instituto Piaget.
Heidegger, M. (1994). Escritos Políticos: 1933-1966. Lisboa: instituto Piaget.
Heidegger, M. (1995). Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
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Heidegger, M. (2001b.). Seminários de Zollikon. São Paulo: EDUC; Petrópolis, RJ: Vozes.
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(Org.). Fenomenologia e Análise do Existir. São Paulo: Universidade Metodista de São Bernardo
do Campo.
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In: Castro, D. S. P. (Org.). Fenomenologia e Análise do Existir. São Paulo: Universidade
Metodista de São Bernardo do Campo.
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Vazquez, J. (1999) Angústia e desamparo numa perspectiva heideggeriana. In: Perspectiva
Filosófica.São Paulo: v. VI, n. 11. p. 145-157.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES DA
FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL
PARA A AÇÃO PSICOLÓGICA NA
PRÁTICA E NA PESQUISA
EM INSTITUIÇÕES
Henriette T. P. Morato
1
Solicitude diz respeito a procurar: composta pelo prefixo pro, que se refere a projeto no
sentido de proyectum, traduzido por lançado adiante e por curar, em sua concepção de
cuidar. Sendo o ser-aí é sempre projetivo, na acepção de lançar-se adiante em direção a
possibilidades, equivale a dizer que o homem é um realizador de possibilidades, sempre
conjuntamente com outros.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
2
Ferir, do latim ferre, em sentido próprio é levar, carregar, suportar. Assim, o mundo é
levado para o eu, impactando-o; por sua vez o eu é trazido ao mundo, respondendo a
esse impacto. (Webster’s Third New International Dictionary, Unabridged. Merriam-
Webster, 2002. Disponível em: <http://unabridged.merriam-webster.com>. Acesso em:
12 ago. 2011)
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
çado acolhido, mesmo que seja, em demasia adversa, numa certa facti-
cidade enigmática, já que o eu é abrigado de tal modo que só pode ver o
que seu olhar permite e ouvir o que é possível. (Almeida, 2005, p. 183)
3
O ontológico refere-se à estrutura de possibilidades e o ôntico à configuração das possibi-
lidades. Só se chega ao ontológico pelo ôntico: compreende-se ontologicamente aquilo
que se apanha onticamente, ou seja, o que está em manifestação. Assim, pela condição
ontológica do encontrar-se, o eu se encontra consigo mesmo inapelavelmente.
4
“Tal como” pode ser compreendido como a coisa mesma hursserliana: o real validado
pela experiência.
52 Henriette T. P. Morato
num certo sentido norteador, aberto pela emoção. Nesse sentido, a emoção é
já uma forma de compreensão apesar de nada ter a ver com a racionalidade:
ela é um modo específico de entendimento.
5
Intervenção como interpor os bons ofícios. (engage to look after or attend to : accept the
responsibility for the care of). (Webster's Third New International Dictionary, Una-
bridged. Merriam-Webster, 2002. Disponível em: <http://unabridged.merriam-webster.
com>. Acesso em: 04 out. 2011)
56 Henriette T. P. Morato
A interpretação permite que qualquer coisa que seja se mostre em sua si-
gnificatividade. É pelo ver-em-torno que o mundo sempre já compreendi-
do se interpreta, o que remete a que o à-mão é clareado pelo enxergar da
compreensão em todo seu contexto de significações. Essa interpretação já
está dada a priori a qualquer ver-em-torno, possibilitando, assim, seu
referenciar-se; apreendendo a serventia, o ver-em-torno decodifica o que
se apresenta. (Almeida, 2005, p. 209)
uso (à-mão). Desse modo, ver de antemão é reconhecer que existe algo da
tradição que também constitui o modo humano de ser, implicando uma con-
cepção prévia da trama de significações: existir em uma situação atravessada
pela cultura conduz a interpretações.
Nessa medida, a ação psicológica, inclinando-se à narrativa do cli-
ente, é interpretativa por requerer identificar como a tradição e a trama de
significações são constituintes de seu modo de ser. É sua tarefa interpretativa
dar a ver como concepções culturais podem estar conduzindo à ausência de
sentido na existência.
6
Sentido etimológico de supervisão, encontrado na expressão latina super videre, mas do
grego theorein (ato de ver, contemplar) (Morato, 1989).
58 Henriette T. P. Morato
7
O substantivo limite remete-se à fronteira que perfaz um horizonte a partir do qual algo
começa a se fazer presente.
60 Henriette T. P. Morato
8
Questiona-se “contrafala”, na medida em que “contra” pode ser compreendida como
“contrária”.
62 Henriette T. P. Morato
9
Historial remete-se à dimensão ontológica humana.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
4 PARA ARREMATAR
10
Por encaminhamento compreende-se o encaminhar-se do próprio cliente em direção ao
que sua demanda lhe desvendou durante a ação psicológica.
11
Morato, H. T. P. (2009). Plantão Psicológico: inventividade e plasticidade. In: Anais do IX
Simpósio de Práticas Psicológicas em Instituições – Atenção psicológica: fundamentos,
pesquisa e prática. Recife: UNICAP, v. 1. pp. 1-15.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
5 Referências
Almeida, F. M. (2005). Ser clínico como educador: uma leitura fenomenológica existencial de
algumas temáticas na prática de profissionais de saúde e educação. Tese (Doutorado em Psi-
cologia Escolar e Desenvolvimento Humano) – Instituto de Psicologia Universidade de São
Paulo.
Arendt, H. (1993). A dignidade da política. 2. ed. Tradução de Helena Martins, Frida Coelho,
Antônio Abranches, César Almeida, Cláudia Drucker e Fernando Rodrigues. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará.
12
Não se trata de compreender a existência segundo o critério de uma concretude aparente;
mas, de compreendê-la como um modo humano de ser.
72 Henriette T. P. Morato
REPERCUSSÕES DO PENSAMENTO
FENOMENOLÓGICO NAS PRÁTICAS
PSICOEDUCATIVAS
Heloisa Szymanski
Luciana Szymanski
1 INTRODUÇÃO
1
ECOFAM – Grupo de Pesquisa em Práticas Psicoeducativas e Atenção Psicoeducacional
a Escola, Família e Comunidade, certificado no CNPq, do Programa de Estudos Pós-
graduados em Educação: Psicologia da Educação, da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo.
74 Heloisa Szymanski e Luciana Szymanski
2 A ENTREVISTA REFLEXIVA
mento detido pelo entrevistado, são formas de procurar uma relação mais
igualitária entre os interlocutores. A entrevista pode ser solicitada tanto por
uma das partes como por outra, mas seu tema será em geral conhecido de an-
temão pelo entrevistador. É importante um planejamento cuidadoso, embora o
entrevistador deva contar com a possibilidade de imprevistos, ou com a novi-
dade de um relato. Nessa preparação anterior devem-se elaborar as questões,
cuidando para que elas criem um clima amigável e possam oferecer oportuni-
dade ao participante de expressar livremente sua experiência. Em um mo-
mento inicial, são trazidas questões associadas à experiência do entrevistado
em relação ao tema, de modo amplo, para que se tome contato com o já com-
preendido, o já vivido e sobre o que se vai falar. As questões seguintes, em
especial a questão desencadeadora, devem voltar-se para a especificidade do
tema que se quer aprofundar (Szymanski et al., 2008). Há tanto um direciona-
mento como uma abertura para digressões e eventualmente para mudanças de
rumo no tratamento de uma dada questão. Um aspecto fundamental da entre-
vista reflexiva, que justifica seu nome, é a contínua troca entre os interlocuto-
res, de forma que o entrevistador expresse continuamente sua compreensão do
que está sendo dito pelo entrevistado, o que chamamos de pequenas devoluti-
vas. Essas intervenções devem ser sempre no sentido de dar a conhecer sua
compreensão, jamais contendo avaliações ou julgamentos. A qualidade da
escuta fica demonstrada a cada intervenção e está diretamente relacionada à
“certificação” por parte do entrevistado de que seu discurso foi compreendido,
o que ocorre ao longo das pequenas devolutivas. Se possível, a entrevista se
completa com um novo encontro em que uma síntese, uma devolutiva com-
pleta, é apresentada ao entrevistado para sua consideração. Caso isso não possa
ocorrer, é necessário fazer um apanhado geral do que foi compreendido pelo
entrevistador ao final da entrevista.
3 ENCONTRO REFLEXIVO
4 PLANTÃO PSICOEDUCATIVO
... oferecer um espaço de escuta e apoio para pessoas que cuidam da so-
cialização/educação de crianças e adolescentes provenientes das cama-
das populares e que, muitas vezes, se sentem acumulados com uma res-
ponsabilidade para a qual não se veem com a preparação e apoio que
gostariam de ter. Essa sobrecarga acaba por gerar conflitos e sofrimento.
(Szymanski, 2004, p. 180)
2
Tradução nossa.
3
Tradução nossa.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
4
Dasein é traduzido como “presença” no texto de Heidegger, M. (1988). Ser e Tempo,
Tradução de M. A. S. Cavalcanti, Petrópolis: Vozes. Utilizaremos, entretanto, o termo cu-
nhado por Heidegger originalmente.
80 Heloisa Szymanski e Luciana Szymanski
nos movimentamos e de onde tiramos nossa subsistência, mas tem a ver com
o que foi construído pelos homens. “Conviver no mundo significa essencial-
mente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em co-
mum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor;
pois, como intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece
uma relação entre homens”. (p. 62)
Heidegger usa o termo “mundaneidade” para expressar o “mundo”
como “conceito existencial-ontológico” (Heidegger, 1988, p. 105). Isto si-
gnifica que, nesse sentido, Dasein é sempre “mundano”, uma vez que é apre-
endido por ele, o é já com e no mundo. Ressalta que é na cotidianidade de
nosso mundo mais próximo que vivemos, lidando no mundo e com as coisas
do mundo (“entes intramundanos”) (Heidegger, 1988, p. 108), numa infini-
dade de modos de se ocupar da vida, num todo articulado de significações.
Estamos “... situados facticamente no mundo diante do outro” (Nunes, 2002,
p. 17), na medida em que Dasein se “fragmenta” em diferentes modos de
ocupação. Isto tem o significado cotidiano (ôntico) de “realizar alguma coisa,
cumprir, ‘levar a cabo’ [...] arranjar alguma coisa” (Heidegger, 1988, p. 95) e
o significado ontológico de “cura”, “cuidado” que veremos mais adiante.
Essa compreensão de ser-no-mundo na ocupação/cura é indissociável de ser-
com-os-outros; existir é coexistir.
Essa compreensão de ser-no-mundo como mundaneidade já nos
põe, em nosso trabalho, na consideração do outro e nós mesmos como habi-
tando mundos que, apesar de trazerem semelhanças, abrigam muitas diferen-
ças e muitos modos de lidar com as situações, objetos e pessoas. Olhar o
outro é considerar seu mundo como constitutivo dele mesmo, isto é, é consi-
derá-lo como uma totalidade. Essa atitude já mostra o “talhamento do olhar”
que a fenomenologia exige, expressão cunhada por Critelli (1996, p. 16),
referindo-se à reflexão do modo humano de ser no mundo.
Ao tratar da constituição do Dasein, Heidegger explicita que este é
um ser que é sua abertura e esclarece que é através dela que está presente no
mundo e para si (p. 186): Dasein é “claridade”, trata-se de um ser “existencial-
mente iluminado” (p. 187). “A presença [Dasein] é a sua abertura” (p. 187).
Nunes (2002) ressalta que a abertura (“abrimento”) ao mundo só é possível
por estarmos “... situados facticamente no mundo e diante dos outros, já sen-
tindo ao pensar e já falando ao sentir” (idem, pp. 17-18). Heidegger chama
facticidade esse “fato de ser”, de “estar-lançado” (Heidegger, 1988, p. 189),
de modo a ter que se desincumbir de existir.
Partir dessa visão de homem já nos coloca em uma atitude de con-
sideração da perspectiva em que os fenômenos se abrem para cada um. Cada
luz ilumina os fenômenos de um modo, ilumina alguns aspectos e não ou-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
torná-lo ‘livre para si’” (idem, p. 41). Diz Heidegger que o ser-com-os-outros
cotidiano oscila entre os dois modos da solicitude, uma hora dominando o
outro, uma hora libertando-o, segundo orientação da paciência e considera-
ção, ou sua deficiência: a desconsideração e negligência, “... para as quais a
indiferença abre caminho” (idem, p. 42).
As noções de ocupação e pre-ocupação, inseparáveis do coexistir,
foram de grande valia para compreendermos o modo das pessoas cuidarem
de sua vida – do trabalho, da família, dos estudos, das memórias, das raízes
culturais, da educação dos filhos, dos alunos, por exemplo – e, igualmente,
do modo como cuidamos do atendimento. Essas noções auxiliam na compre-
ensão das situações que são trazidas para o profissional de saúde e educação,
assim como balizam a direção de suas próprias escolhas nas reflexões que
desenvolvem com as pessoas que o procuram.
5.6 A angústia
Nunes (2002) aponta que Heidegger, acompanhando Kierkegaard,
privilegia a angústia entre as disposições, pois, diferentemente do temor
que se localiza em um objeto ou pessoa ou situação concreta, “aquilo com
que a angústia se angustia é o ‘nada’ que não se revela em parte alguma
[...] a angústia se angustia com o mundo enquanto tal”, o que “... não signi-
fica ausência de mundo”, mas que “... somente o mundo se impõe na sua
mundaneidade” (Heidegger, 1988, p. 250). Como lembra Nunes (2002): “O
perigo que nos espreita e em toda parte nos acua é o mundo como mundo,
originário e diretamente, que se abre para o Dasein desabrigado” (p. 19).
Heidegger nos diz que Dasein, singularizado pela angústia e remetido às
sua possibilidades próprias, se angustia pelo próprio ser-no-mundo, que
não é mais compreendido pelo modo público, impessoal. Se na disposição
revela-se “como se está”, “... na angústia se está estranho. [...] Mas estranhe-
za significa igualmente ‘não se sentir em casa’” (Heidegger, 1988, p. 252).
Nunes esclarece que “é afinal Dasein mesmo que nos angustia, porque já
sem a proteção do cotidiano, revelando-se, então, nesse sentimento; o po-
der ser livre, a possibilidade de escolha, desapossado da familiaridade com
o mundo, tornado inóspito” (Nunes, 2002, p. 20). A familiaridade do coti-
diano esconde essa possibilidade de não se sentir em casa, a inospitalidade
do mundo, mas, por outro lado, a angústia singulariza Dasein, põe-no di-
ante de si mesmo, retira-o “... de sua decadência e lhe revela a propriedade
e impropriedade como possibilidades de ser” (Heidegger, 1988, p. 255).
Heidegger lembra que a angústia é rara e nem sempre é ativada por um
evento grandioso na vida da pessoa: “A angústia pode surgir nas situações
mais inofensivas” (Heidegger, 1988, p. 253).
Muitas vezes profissionais da saúde e educação são procurados
por pessoas que se encontram nesse momento de confronto com suas pos-
sibilidades, sentindo-se estranhas, com um temor indeterminado, em um
momento de suas vidas em que o cotidiano não oferece respostas confor-
tadoras. Reconhecer esse estado como experiência de angústia pode auxi-
liar o profissional a acompanhar o outro nesse enfrentamento com o seu
si-mesmo, nesse momento de escolhas diante de sua singularidade e suas
possibilidades.
Heidegger (1988) também apresenta a compreensão como parte da
constituição existencial da abertura do Dasein, lembrando que a compreen-
são está sempre “sintonizada” (idem, p. 198) com o humor. O filósofo afirma
que, “em seu caráter existencial de projeto, a compreensão constitui o que
chamamos de visão da presença [Dasein]” (idem, p. 202). Na “... compreen-
são subsiste existencialmente o modo de ser da presença [Dasein] enquanto
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
poder ser” (idem, p. 198). “Toda presença [Dasein] é o que ela pode ser e o
modo em que é sua possibilidade. Nós nos compreendemos e nos compreen-
deremos sempre a partir de nossas possibilidades, mesmo que não as reali-
zemos efetivamente e, nesse sentido, somos sempre “mais” do que somos de
fato. Também não é menos, referindo-se àquilo que ainda não somos. “Com-
preender é o ser desse poder-ser” e, nesse sentido, Dasein sabe “a quantas
anda o seu poder ser” (p. 200) e pode se perder, se desconhecer e se reen-
contrar em suas possibilidades. A compreensão é o poder ser capaz de propi-
ciar aberturas (Heidegger, 1988, p. 199).
Note-se que o compreender não se refere a uma operação do inte-
lecto, mas a um aspecto da constituição existencial da abertura do Dasein:
somos como compreensão de ser, inclusive como compreensão da possibili-
dade de ser para si mesmo. Como bem sintetiza Critelli (1996, p. 52), Dasein
reconhece suas possibilidades como sua propriedade (está sob sua responsa-
bilidade), como facticidade (ele é lançado, sem escolher onde, quando) e
como projeção (como vir a ser). Olhar para o outro, e para si, na considera-
ção da responsabilidade diante das próprias possibilidades, reconhecendo o
contexto em que fomos lançados e vislumbrando possibilidades de ser po-
dem se constituir em orientações preciosas para o trabalho psicoeducativo,
situando-nos para além do julgamento e das interpretações ligeiras.
Heidegger diz que, “na compreensão, a presença [Dasein] projeta
seu ser para possibilidades” (Heidegger, 1988, p. 204), que podem ser elabo-
radas e apropriadas. Como lembra Nunes, “... essa apropriação não é jamais
algo sem pressuposto: parte de um referencial que se tem (Vorhabe), expli-
cita-se em conceitos prévios (Vorgriffe) e numa certa perspectiva (Vorsicht)”
(Nunes, 2002, p. 18). A interpretação deve partir das coisas elas mesmas e
“não se deve guiar por conceitos ingênuos ou ‘chutes’” (Heidegger, 1988, p.
210), embora sempre se movimente no já pré-compreendido.
A essa “elaboração das possibilidades projetadas na compreensão”
(p. 204) Heidegger chama de interpretação. “O que se interpreta [...], que se
explicita na compreensão, possui a estrutura de algo como algo” (p. 205). Na
interpretação há a indicação do para quê e, na articulação da compreensão,
desvela-se o sentido. Diz Gadamer: “Quem quiser compreender um texto
deverá sempre realizar um projeto. Ele projeta de antemão um sentido do
todo, tão logo se mostre o primeiro sentido do texto. Esse primeiro sentido
somente se mostra porque lemos o texto já sempre com certas expectativas,
na perspectiva de um certo sentido” (Gadamer, 2002, v. II, p. 75). Mas esse
projeto inicial vai sendo substituído por outros, mais adequados, e “... esse
constante projetar de novo é o que perfaz o movimento semântico do com-
preender e de interpretar” (idem, p. 75). Trata-se de “deixar que ele [texto]
86 Heloisa Szymanski e Luciana Szymanski
5.7 O Sentido
Vimos acima que na interpretação há a indicação do para quê de
alguma coisa, e o “... sentido é aquilo que se articula na abertura da com-
preensão” (Heidegger, 1988, p. 208). Heidegger chama de sentido a pers-
pectiva segundo a qual algo se torna compreensível, sendo existencial do
Dasein e não algo colado aos entes. Para Critelli, sentido é “... o mesmo
que destino, rumo, a direção do existir” (Critelli, 1996, p. 53), que se
“...expressa como um modo de cuidar [ocupar] dos modos de cuidar da
vida” (idem, p. 120). Exemplificando, no trabalho psicoeducativo com edu-
cadores investiga-se o sentido quando se procura compreender como eles
cuidam [se ocupam] dos modos de serem educadores. Tendo a educação de
crianças e adolescentes como seu trabalho (o modo como cuidam de sua
sobrevivência), os educadores podem realizá-lo com prazer, desprazer,
tédio, com interesse em estudar mais e assim por diante, conforme o pro-
jeto que os dirige para o seu trabalho, conforme a solicitação a que respon-
dem. “Ou, em outras palavras, [sentido é] uma destinação em que se abre a
possibilidade de se cuidar de ser, numa certa direção e não outra, por
exemplo” (Critelli, 1996, p. 132). Essas concepções são fundamentais para
nós, uma vez que a indagação pelo sentido nos orienta para compreender as
demandas que nos são feitas pelos pais, educadores e membros da comuni-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
dade. Interrogar pelo sentido pode nos levar a férteis reflexões, pois possi-
bilita o desvelamento das disposições afetivas, das compreensões prévias e
dos desejos que impulsionam os projetos de nossos interlocutores e que
direcionaram suas escolhas até o momento.
6 CONCLUSÃO
7 REFERÊNCIAS
ATITUDE FENOMENOLÓGICA
EXISTENCIAL E CUIDADO
NA AÇÃO CLÍNICA
Rafael Auler de Almeida Prado
Marcus Túlio Caldas
1 INTRODUÇÃO
1
A palavra alemã Sorge que pode ser traduzida por Cura e nos remete ao âmbito daquilo
que podemos denominar por Zelo, cuidado, preocupação/solicitude. Este é um existencial
meditado por Martin Heidegger (1889-1976) na elaboração da sua ontologia fundamental
publicada em 1927 – Ser e tempo. Usa-se o termo cuidado quando refere-se à relação do
ser-aí com as coisas (entes intramundanos) e preocupação ou solicitude para a relação do
ser-aí com os outros (coexistir). Adotar-se-ão neste trabalho as expressões Cura para abar-
car o sentido mais amplo desse existencial e que, portanto, inclui o cuidado como ocupa-
ção na relação do ser-aí com os entes intramundanos e a preocupação quando falamos da
relação do ser-aí com os outros (coexistir).
2
“Ser com os outros”, “sendo com os outros”, diz respeito ao modo como nós nos relacio-
namos, atuamos, sentimos, pensamos, vivemos com os outros.
3
“(Do Gr. On, ontos: o ser, aquilo que é) Palavra utilizada para designar o ser-aí (Dasein)
em sua existência concreta, distinguindo-se do ontológico que diz respeito ao ser em ge-
ral” (Japiassú & Marcondes, 1996, p. 200). O ontológico refere-se ao âmbito das possibi-
lidades de relações que se abrem para o ser-aí.
92 Rafael Auler de Almeida Prado e Marcus Túlio Caldas
2 CUIDADO/CURA/PREOCUPAÇÃO
Esta bela fábula, muito confortante para os homens, uma vez que
indica estarmos em nossa origem instalados em generosa oferta de cuidados,
vai receber do pensador um tratamento bastante peculiar. Compreendendo o
ser do homem como Ser lançado, em ontológica angústia e liberdade, uma
vez que se encontram sem possibilidade de alojamento e destino no conjunto
da natureza, terá seu sistema de ancoragem na metafísica, na técnica e na
filosofia ocidental posto em suspenso pelo pensador. A esse profundo desnu-
damento, a essa vertigem sem paragem, a esse apelo, responde aquele que,
condenado ao esquecimento, lhe acolherá em seu ser-com-os-outros, nesse
agora entremeado de possibilidades de sentido, que, finalmente, pode ser
chamado de mundo do homem. Assim, nossa condição, sermos, antes de se
pensar em qualquer possibilidade de subjetividade, singularidade ou indivi-
dualidade, ser-com. Portanto, insistindo um pouco mais nessa questão, a essa
condição ontológica deve nosso mundo e nossa humanidade.
Retomando de outra maneira uma observação feita acima, a crítica
heideggeriana a uma essência do homem compreendido como filho de Deus,
animal racional, consequência de um processo evolutivo ou mesmo subjeti-
vidade aninhada em uma consciência autofundante, fechada e segura de si
mesma, conduz a pensar o homem como para-fora-de-si, na existência, a ek-
sistir na facticidade do ser-no-mundo.
94 Rafael Auler de Almeida Prado e Marcus Túlio Caldas
3 AÇÃO CLÍNICA
menos clareza sobre eles. Seja frustração, seja carência, seja fraqueza, seja
depressão, seja estresse, ou um incômodo difuso, não claro, algo vem dizer
que não podemos mais ser de determinado modo. É como se uma brechinha
de angústia se abrisse em cada um desses incômodos, uma brechinha capaz
de pôr em questão nossa existência e que possamos nos apropriar de um
modo de ser que seja próprio, que escolhamos uma dada escolha. O seguinte
trecho de Ser e Tempo indica algo nessa direção:
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
mentais da existência que nos atravessam na relação com o outro – e que nos
ajudam a compreender como estamos implicados na relação com nosso paci-
ente – e também naqueles que dizem respeito ao modo como lidamos com o
modo como somos afetados e solicitados pelo mundo enquanto seres-de-
possibilidades e responsáveis por nossa existência. Esses aspectos já nos
ajudam a compreender o sentido fundamental do que vive nosso paciente –
assim como no exemplo do obsessivo-compulsivo – não para estabelecer
uma “intervenção-padrão” a determinado comportamento-padrão, mas para
poder acompanhar o modo como o paciente acolhe e responde às determina-
ções de sua existência.
Se na ação clínica estão presentes as mesmas condições existenci-
ais de outras situações de vida, o que a caracteriza como ação clínica é o fato
de que alguém que é tocado por um questionamento ou sobre o sentido de
determinado ente intramundano no seu horizonte de sentido, ou pelo questi-
onamento do próprio horizonte de sentido, em disposição afetiva mais pró-
xima da angústia, buscar no diálogo com outro uma tematização de sua pré-
compreensão. O outro, o terapeuta, se coloca como aquele cujo cuidado en-
quanto consideração e solicitude pode proporcionar algo assim para o paci-
ente. Conforme comentado anteriormente, tanto determinada disposição
afetiva em que o sofrimento abre o aí do ser-o-aí, como o cuidado enquanto
consideração e solicitude, são ocasiões de apropriação de sentidos e singula-
rização.
5 REFERÊNCIAS
1
A referência a esta tira como exemplo contundente da inescapável tarefa de ser que cabe a
cada indivíduo foi feita pela filósofa Dulce Mara Critelli, em aula ministrada no Instituto
de Psicologia da USP.
2
Pierre Fédida, psicanalista francês que esteve algumas vezes em São Paulo proferindo
palestras e conduzindo supervisões, expressou, numa das ocasiões em que supervisionava
um grupo de psicoterapeutas do qual participei, a opinião de que haveria um tipo de cura,
psiquiátrica, que operava sem que o paciente estivesse nela implicado. Neste tipo de cura,
104 Maria Luisa Sandoval Schmidt
o conjunto de sintomas do indivíduo são vividos e interpretados como corpo estranho eli-
minado por meio das medicações e o indivíduo se restabelece sem um único questiona-
mento sobre o ser que ele é. No tratamento psicanalítico, ainda de acordo com Fédida, a
implicação do paciente é condição fundamental.
3
Para este autor, o conceito de doença psíquica, por comparação ao de doença física, “in-
troduz uma dimensão completamente nova. Neste caso, a imperfeição e a vulnerabilidade
dos seres humanos, assim como sua liberdade e infinitas possibilidades, constituem per se
uma causa de doença. Em contraste com os animais, o homem carece de um padrão inato
e perfeito de adaptação. Ele tem que adquirir um modo de vida à medida que avança nela”
(Jaspers, aput Szasz 1978).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
4
Termo que se refere a um conjunto de abordagens psicológicas influenciadas pelas filoso-
fias fenomenológica e existencialista que tinham como um de seus denominadores co-
muns a crítica às noções deterministas do behaviorismo (primeira força) e da psicanálise
(segunda força).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
II
5
É inevitável experimentar um certo constrangimento ao citar o título da obra de Rogers
em português, pois o mesmo é, talvez, uma das maiores falhas editoriais na tradução de
obras de psicologia no Brasil. O termo paciente no lugar de cliente é significativo e fere as
convicções do autor sobre a importância de abandonar a palavra paciente como forma,
também, de exercer a crítica ao modelo médico. No entanto, como nesse ensaio será usada
a versão do texto em português, torna-se necessário passar pelo constrangimento.
108 Maria Luisa Sandoval Schmidt
III
6
No mesmo comentário já citado anteriormente, Rogers admite, por um lado, não ter estu-
dado filosofia existencial e, por outro, ter tido conhecimento das obras de Soeren Kierke-
gaard e Martin Buber e ter nelas encontrado um apoio para suas próprias ideias.
110 Maria Luisa Sandoval Schmidt
7
A técnica Q ou metodologia Q foi proposta por William Stephenson e derivou de sua
crítica à análise fatorial que se especializou na correlação de testes. Conjunto de princípios
estatísticos, da filosofia da ciência e psicológicos, a metodologia Q buscava correlacionar
pessoas, desenhando estudos de casos ou pesquisas com pequeno número de indivíduos.
Tratava-se de uma metodologia voltada, justamente, para a abordagem de aspectos subje-
tivos tais como indagações, desejos, sonhos, reflexões, quereres, lembranças, entre outros,
enlaçando teoria, dados e experimento. Criando escalas e questionários, procurava ofere-
cer às teorias psicológicas provas e questões desde o ponto de vista da experiência dos in-
divíduos concretos. De acordo com Stephenson (1953): “Q-technique is not a statistical
device that one applies to data, as a bandage is applied to a wound, for want of a better
specific. On contrary, it entails the dovetailing of method, theory, and experiment”. (p.
271). As inúmeras referências à metodologia Q feitas por Rogers sugerem a confiança que
nela depositava como via para o estudo científico dos fenômenos subjetivos.
112 Maria Luisa Sandoval Schmidt
ceber-me dos aspectos subjetivos − se, seja de que maneira for, corto mi-
nha percepção de toda a extensão da sua sensibilidade real − nesse caso
talvez eu seja socialmente destrutivo, embora utilize como instrumento o
conhecimento e os recursos da ciência, ou o poder e a força emocional
das relações subjetivas. E, por outro lado, se estou aberto à minha expe-
riência e posso permitir a todas as impressões do meu complexo orga-
nismo que estejam disponíveis à minha consciência, então estou apto a
utilizar a mim mesmo, minha experiência subjetiva e meu conhecimento
científico, de modo realisticamente construtivo. (Rogers, 1977, p. 202)
IV
8
A mesma tradução que empregou paciente no lugar de cliente no título do livro, emprega
a palavra ego para traduzir o original self. Optou-se, aqui, por manter a palavra ego quan-
do for preciso citar trechos do capítulo, sem contudo adotá-la, pois o conceito de self, em
Rogers, não corresponde ao conceito de ego da psicanálise. Note-se, ainda, que self é am-
plamente divulgado e reconhecido, nos meios acadêmicos e profissionais brasileiros,
como conceito rogeriano.
116 Maria Luisa Sandoval Schmidt
alegações a respeito deste fato fazem analogia direta entre fenômenos fisio-
lógicos de compensação como aqueles desencadeados pela perda de certos
órgãos e os episódios psicológicos de “somatização”. Uma consequência
teórica desta premissa, ainda de acordo com o autor, é que fenômenos parci-
ais só podem ser compreendidos por referência à organização coerente e
finalista que é o organismo.
Todas as necessidades orgânicas e psicológicas definem-se, nesta
perspectiva, como “aspectos parciais de uma necessidade fundamental” do
organismo de “realizar-se a si mesmo na direção de uma maior diferenciação de
órgãos e de funções” ou na direção da maturidade. A diferenciação de órgãos e
funções é simétrica à autorrealização psicológica ou à maturidade da personali-
dade, fazendo parte da mesma tendência natural do organismo humano.
A tendência do organismo para “realizar-se, manter-se e realçar sua
própria experiência” é denominada, por Rogers, de tendência atualizante e
aparece, como ele mesmo destaca, em vários autores: em Goldstein (1940)
como “autorrealização”, Angyal (1941) e Mowrer e Kluckhohn (1944).
O deslizamento da esfera da preservação da vida biológica para
aquela da criação de um mundo humano − onde uma ideia de “autorrealiza-
ção” psicológica, diga-se de passagem, pode fazer sentido − tem suporte no
evolucionismo que, reconhecendo a maior complexidade do organismo hu-
mano, lhe atribui a capacidade de transcender e dominar sua própria natureza
e aquela que lhe é exterior. Duas citações dão conta de expressar, por Ro-
gers, aquilo que ele mesmo pensa.
jeto assustador. Um outro factor que pode estar implicado é que o con-
selheiro aceita todas as experiências, todas as atitudes, todas as percep-
ções. O paciente pode introjectar esse valor social e aplicá-lo às suas
próprias experiências. (Rogers, 1975, p. 500)
9
Para avaliar a empatia, por exemplo, Rogers apresenta a seguinte lista de proposições a ser
submetida a um grupo de observadores: – O terapeuta é perfeitamente capaz de compre-
128 Maria Luisa Sandoval Schmidt
ender os sentimentos do cliente; – O terapeuta não tem qualquer dúvida sobre o significa-
do do que o paciente quer dizer; – Os comentários do terapeuta adequam-se perfeitamente
ao estado de espírito e conteúdo do cliente; – O tom de voz do terapeuta contém a habili-
dade completa para compartilhar os sentimentos do paciente. (Wood, 1994, p. 166)
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
VI
10
A fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty (1994) e A imaginação de Sartre (1978)
são exemplos de estudos que representam, de maneiras diferentes, a complementaridade
entre fenomenologia e pesquisas empíricas desenhadas no espírito do positivismo.
132 Maria Luisa Sandoval Schmidt
11
Em artigo sobre o impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem, Geertz
congrega um conjunto de argumentos sobre o caráter constitutivo da cultura para concluir
que: “Quando vista como um conjunto de mecanismos simbólicos para o controle do
comportamento, fontes de informação extra-somáticas, a cultura fornece o vínculo entre o
que os homens são intrinsecamente capazes de se tornar e o que eles realmente se tor-
nam, um por um. Tornar-se humano é tornar-se individual, e nós nos tornamos individu-
ais sob a direção dos padrões culturais, sistemas de significados criados historicamente
em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas”. (Geertz,
1989, p. 64)
140 Maria Luisa Sandoval Schmidt
REFERÊNCIAS
1
Este texto faz parte do livro Logoterapia e análise existencial: textos de cinco décadas,
publicado no Brasil em 1995, pela Ed. Psy II.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
2
Ainda que este termo esteja sendo usado em conotação próxima à rubrica jurídica (sujeito
como “titular de um direito”), não estaria desvinculado do pensamento cartesiano moder-
no do sujeito enquanto “eu pensante, consciência, espírito ou mente enquanto faculdade
cognoscente e princípio fundador do conhecimento” (Houaiss & Villar, 2009).
146 Marcus Túlio Caldas e Maria Eugênia Calheiros
& Villar, 2009)3. A nossa atenção neste trabalho, após o aclaramento das
concepções franklianas pertinentes ao tema, volta-se para esta modalidade
específica de clínica denominada Análise existencial como terapia de neu-
roses coletivas.
3
Analogamente, o prefixo grego “para-” denota também uma clara relação de complementari-
dade no termo “paramedicina” (Houaiss & Villar, 2009).
148 Marcus Túlio Caldas e Maria Eugênia Calheiros
4
Observe-se que Frankl escreveu “Zur Definition und Klassifikation der Neurosen” no
livro Theorie und Therapie der Neurosen, publicado de 1983 (München/Basel), quando
o panorama político mundial já apontava maior incidência e êxito de grandes movi-
mentos revolucionários de massas – associados ao totalitarismo e ao fanatismo –, em
países orientais.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
5
Provavelmente Frankl se refere a Pierre Marie Janet (1920), médico e psicoterapeuta
francês, discípulo de Charcot, pioneiro na descrição dos transtornos dissociativos como
desagregation mentale (Hales & Yudofsky, 2006, p. 673).
150 Marcus Túlio Caldas e Maria Eugênia Calheiros
6
Karl Bednarik foi um artista plástico austríaco e ativista político contra o Austro-fascismo.
Katalog Österreichischen Nationalbibliothek. Disponível em: <http://www.onb.ac.at/
sammlungen/litarchiv/bestaende_det.php?id=bednarik>. Acesso em: 01 maio 2012.
7
Paul Pollak, psiquiatra nascido na República Tcheca e atuante nos EUA, é também conhe-
cido por ser um empreendedor comprometido com o combate à pobreza dos povos.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
3 REFLEXÕES CONCLUSIVAS
mas não pode saciá-lo quanto à sua necessidade mais essencial, que perma-
nece frustrada: a vontade de sentido. Também acusa a escassez de modelos
que mostrem vidas plenificadas pelo sentido de suas missões. No entanto, foi
sua experiência como prisioneiro dos campos de concentração que lhe trouxe
a percepção de que estar voltado para um sentido não é apenas importante
para viver, mas também para sobreviver, sendo então fundamental a ocor-
rência de uma orientação para o futuro.
O ponto decisivo de seus estudos sobre a importância de valores e
sentido foi a descoberta de que a vontade de sentido é constitutiva da condi-
ção humana. O que Frankl denominou dimensão noética (do grego noûs,
“faculdade intuitiva”, “intelecto”) como sinônimo de espiritual, corresponde
àquela mesma instância que tem na busca de sentido o seu fenômeno mais
humano. Como, então, cuidar deste ser, portador desta dimensão intangível,
sem recursos que possam alcançar este espiritual?
Frankl afirma que a Análise existencial não é uma terapia do orga-
nismo, mas “uma terapia da pessoa, a partir do espiritual que, por si, nunca
chega a enfermar, mesmo nas chamadas doenças mentais” (Frankl, 2008,
p. 63). E, neste sentido, tanto a Análise Existencial quanto a Logoterapia
seriam terapias a partir do espiritual, ou seja, da dimensão não corruptível do
humano. A dimensão espiritual não seria uma dimensão espacial ou cósmica
em si, mas uma dimensão do homem, definida por Frankl como a “verdadei-
ra dimensão do existir humano”. O próprio humano, assim, se constituiria
pelos atos espirituais que “elevam o plano somatopsíquico à dimensão espi-
ritual” (Frankl, 2008, p. 73). E o homem não seria apenas um ser espiritual,
mas uma tri-unidade de corpo, alma e espírito.
Percebe-se que, embora o espiritual seja para Frankl a dimensão
distintiva do humano, não é toda a realidade do homem. A autotranscendên-
cia representa o cerne da existência humana e sua realidade de ser aberto ao
mundo implica ainda estar orientado sempre para além de si mesmo (Frankl,
1997, p. 51). Essa autotranscendência rompe com a imagem monadologista
do homem – condicionado a conservar e restaurar permanentemente sua
homeostase –, em nítido contraste com um “ser homem” que significa estar
sempre orientado ou dirigido a alguma coisa ou pessoa que lhes sejam signi-
ficativas; dedicado a um trabalho ou uma missão; ou simplesmente a amar e
servir ao seu semelhante ou ao seu Deus. Comentando a transcendência na
perspectiva frankliana, Eugênio Fizzotti (1992) afirma que o estudo do ho-
mem deve superar o âmbito da imanência e avançar para a inclusão de sua
transcendentalidade. Lembra este estudioso da obra frankliana, que uma
visão de homem “que se obstina na imanência humana, se enrijece e se torna
antropologismo” (Fizzotti, 1992, p. 219).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
4 REFERÊNCIAS
1 DA PROPOSTA DO TEXTO
1
Este capítulo refere-se a uma versão atualizada do artigo “Considerações metodológicas a
partir da formulação de uma questão para pesquisa”, publicado na Revista de Psicologia
da Unicap Interlocuções (a. 3, n. 1/2, jan./dez. 2003).
2
Em especial, recorremos à dissertação de mestrado de Barbara Cabral, apresentada ao
Programa de Mestrado em Psicologia Clínica da UNICAP em 2004, sob o título Carto-
grafia de uma ação territorial em saúde: transitando pelo Programa Saúde da Família,
orientada por Henriette Morato.
156 Barbara Eleonora Cabral e Henriette T. P. Morato
3
O Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde) consiste em iniciativa
do Ministério da Saúde em articulação com o Ministério da Educação que visa promover
mudanças na lógica do processo formativo em saúde, de modo a aproximá-lo das condi-
ções das redes públicas de saúde e das necessidades dos usuários do SUS, articulando pro-
fessores, profissionais e estudantes de cursos de graduação em saúde na formação de gru-
pos de aprendizagem tutorial.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
4
Anotações a partir do Seminário “O método fenomenológico como investigação: a Analí-
tica do Sentido”, ministrado por Dulce Critelli, em abril de 2002, na Universidade Católi-
ca de Pernambuco, Recife-PE.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
5
Referimo-nos aqui ao sentido originário do verbo pro-duzir, que vem do verbo latino
producere, que é uma locução verbal do advérbio pro+ducere, significando na direção de
conduzir adiante.
164 Barbara Eleonora Cabral e Henriette T. P. Morato
6
LEFE é o Laboratório de Estudos em Fenomenologia Existencial e Prática em Psicologia, do
Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do
168 Barbara Eleonora Cabral e Henriette T. P. Morato
novos matizes com base na experiência vivida nos projetos de pesquisa in-
terventiva. Destaca-se que o trabalho realizado se articula ao pensamento de
autores da Psicologia Social Clínica, que valorizam a importância da clínica
na investigação em ciências humanas, tais como Levy, 2001; Enriquez,
2001; Araújo e Carretero, 2001 e Vieira, 2001 (apud Braga, 2010).
Retomando as pesquisas ilustrativas e a trilha epistemológica acima
indicada, pensou-se que se a proposta seria compreender como profissionais
ligados à ESF encontravam sentido para o que faziam ou, no outro cenário
de pesquisa, como se percebiam na articulação da rede de atenção à saúde
mental, era necessário deles aproximar-se, ouvindo-os contar sobre a experi-
ência na lida diária da prática que exerciam. Ainda mais, se o interesse diri-
gia-se a um tipo de prática, como o da ação territorial em saúde ou do cuida-
do em saúde mental, e a como se realiza, considerando-se que essas ações
são configuradas tendo como eixo o trabalho em equipe, imaginou-se que
seria significativo criar oportunidades de encontro em grupo com esses pro-
fissionais. Em ambos os casos, portanto, surgiu a ideia de criar arranjos me-
todológicos que contemplassem a possibilidade de narração da experiência
desses profissionais em contextos coletivos.
Porém, como poderiam ser constituídos esses grupos? Na primeira
pesquisa, voltada ao sentido da ação territorial em saúde para profissionais
ligados à ESF, os interlocutores seriam solicitados a historicizar essa experi-
ência, a partir do recorte do trabalho, por meio da narração. Após a escolha
do lugar8, apenas um aspecto do problema estava encaminhado, pois o cená-
rio era complexo, constituindo-se de diversos personagens/atores que poderi-
am ser contemplados na formação do grupo. Nessa direção, considerou-se
fundamental constituir um grupo com garantia de representatividade dos
diversos programas e personagens em articulação neste campo, o que ocor-
reu após um reconhecimento do campo de pesquisa. A constituição do grupo
acabou assumindo a característica de um mosaico, pela junção de ato-
res/autores de equipes distintas, mas que se inter-relacionavam por um obje-
tivo comum: operacionalizar um trabalho a partir de uma ação territorial em
saúde, tendo o então chamado Programa Saúde da Família como eixo.
A colheita das narrativas dos interlocutores aconteceu em dois
momentos: uma discussão coletiva com os profissionais, provocada pela
solicitação de que contassem sobre a experiência na prática dirigida à ação
8
Pareceu apropriado, diante do que se pretendia compreender e do lugar onde a prática
profissional da pesquisadora se situou por pouco mais de quatro anos, definir que esses
interlocutores fossem profissionais de saúde pública do município do Cabo de Santo
Agostinho-PE, envolvidos na estratégia de ação territorial em saúde a partir do então
chamado Programa Saúde da Família.
172 Barbara Eleonora Cabral e Henriette T. P. Morato
9
Para um aprofundamento dessa questão, ver Heidegger, M. (1958) “Ciência e Meditação”.
In: Heidegger, M. Essais et conferences. Paris: Galimard.
176 Barbara Eleonora Cabral e Henriette T. P. Morato
marcar pelo estranhamento (interrogação) que ele provoca, para que desse
momento/situação entre fenômeno e pesquisador brote uma possibilidade de
revelação como questão.
Revelado “o que merece ser interrogado” (Heidegger, 1958, p. 20),
promove-se outra aproximação à situação na qual o fenômeno desvelou-se
como franja, a fim de provocar um testemunho e uma veracização por um
modo de pensar a partir da compreensão que esse testemunho demanda. Por
este caminho, abrem-se possibilidades de outro modo de reflexão/pensamen
to/meditação para uma autenticação da franja do real, desvelada como ex-
pressão de um modo de se aproximar do real incontornável.
Assim, o modo de pensar com rigor empreendido pela perspecti-
va fenomenológica existencial se conduz respeitando a historicidade do
humano, pelos meandros de conhecer o incontornável como aletheia, ou
seja, um modo de pensar verdadeiro, como desvelamento na aproximação
com o fenômeno estudado; e não em busca de veritas, ou seja, de repre-
sentação do que se apresenta, como verdade do que se mostra para ser
conhecido ou interrogado. Mantém-se aberta, por esse rigor meditativo, a
possibilidade a outras franjas do real que merecem ser interrogadas, que
podem adquirir o estatuto de questões para pesquisa, em um processo
contínuo de situar o homem em sua existência inquietantemente finita: um
conhecimento por vir.
Assumimos, portanto, a produção do conhecimento como um pro-
cesso de construção de compreensões acerca dos fenômenos, que ocorre na
interlocução do pesquisador com o que ou quem é pesquisado, importando,
sobretudo, o modo como esses encontros ocorrem. Tal perspectiva valoriza a
própria experiência entre humanos – a coexistência – como lócus primordial
para a elaboração de sentido no contexto da existência, implicando afetações,
mobilizações, desalojamentos. Sabendo-se misturado ao real que busca co-
nhecer, tomado não como algo em si, mas fruto de composição na relação
que com ele estabelece, o humano mergulha no processo de interrogar-se
sobre a própria vida e o que nela se perfila. Trata-se de um modo de conhe-
cer pela rota de trânsito entre sentir-pensar, que implica correr riscos e peri-
go, via experiência.
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178 Barbara Eleonora Cabral e Henriette T. P. Morato
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
MERLEAU-PONTY E GADAMER:
POSSIBILIDADE DE SE PESQUISAR A
PRÁTICA DE PSICÓLOGOS CLÍNICOS
Shirley Macêdo
Marcus Túlio Caldas
1 INTRODUÇÃO
1
Pertinente se faz, aqui, lembrar Giorgi (1985) e suas tradicionais ideias ao relacionar
descrição e interpretação. A primeira sendo necessária à descrição do fenômeno vivido
num contexto relacional e a segunda inerente à compreensão que se tem desta vivência.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
Garcia & Jorge, 2006), o que vem favorecendo o interesse por este tipo de
pesquisa e fortalecendo os estudos inseridos no bojo das produções fenome-
nológicas de investigação.
Roratto (2010), ao propor a hermenêutica como fundamento da
pesquisa qualitativa, adverte que o ato de compreender as falas que emergem
do processo dialógico promovido pela pesquisa qualitativa passa necessari-
amente pela hermenêutica, já que esta é a forma de entender as manifesta-
ções linguísticas e suas significações. Neste tipo de pesquisa, segundo o au-
tor, o investigador não está muito preocupado com a busca da verdade e “a
atividade científica passa a ser um empreendimento hermenêutico, estrutura-
do em significados” (p. 179).
Acrescenta ainda o mesmo autor que na pesquisa qualitativa o in-
vestigador revela seu trabalho situado histórica, cultural e pessoalmente.
Além disso, os sujeitos da pesquisa se tornam participantes relacionais, já
que a relação deles com o pesquisador passa a ser dialógica, sendo essencial
a construção conjunta da pesquisa. Ou seja, os sujeitos não são meros forne-
cedores de dados, pois que se tornam interdependentes durante todo o estu-
do, “inclusive na negociação dos significados encontrados” (p. 184). Por isso
o autor defende a pertinência da abordagem filosófica de Gadamer na cons-
trução e na condução de uma pesquisa qualitativa.
Seus argumentos, pensamos, estão pautados na própria tese de Ga-
damer (2003, p. 23) de que “o essencial das ciências do espírito não é a ob-
jetividade, mas a relação prévia com o objeto [...] O homem não se depara
com a realidade e um mundo, mas sempre com interpretações da realidade e
do mundo e, assim, com a realidade e o mundo da interpretação”.
Lawn (2007) esclarece que a proposta filosófica de Gadamer é uma
revisão da hermenêutica clássica, onde o filósofo propõe que a interpretação
está pautada no próprio horizonte de significado do intérprete: “a interpreta-
ção está situada dentro do horizonte mútuo do intérprete e da coisa a ser in-
terpretada” (p. 13). Além disso, todo entendimento humano é basicamente
interpretação. Então, defende ele que a hermenêutica vai além dos limites de
uma interpretação textual, porque o entendimento hermenêutico, além de ser
histórico, dá-se na apropriação e negociação diária do mundo.
Assim, a hermenêutica filosófica gadameriana propõe um intér-
prete que busque entender um texto ou qualquer outro discurso a partir de
um posicionamento como eterno aprendiz que não deve impor sua verdade,
mas se valer de uma verdade coletiva de uma conversa. Inclusive, a concep-
ção de verdade de Gadamer, descrita detalhadamente em Verdade e Método
(2003), leva em consideração que uma verdade apenas pode ser revelada
quando recuperada e restabelecida pelo diálogo, onde o intérprete experien-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
7 EXEMPLO ILUSTRATIVO
2
Optamos pelo termo colaboradores, visto ser mais coerente com a pesquisa fenomenológi-
ca (Moreira, 2004).
3
Na prática, participaram 20 psicoterapeutas, mas três deles, todos participantes de um
mesmo grupo, após o envio da análise preliminar, pediram para ser retirados da amostra.
4
Informações mais precisas sobre estes colaboradores e os resultados da pesquisa serão
comunicados quando da finalização da tese de doutorado de uma das autoras deste texto,
prevista para o início de 2013.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
Parte 2
PSICODIAGNÓSTICO
COLABORATIVO: CONTRIBUIÇÕES DA
PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA
EXISTENCIAL
Danielle de Fátima da Cunha Cavalcanti de Siqueira Leite
Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto
1
O Psicodiagnóstico Interventivo pode ser encontrado na literatura tanto a partir de uma
perspectiva da fenomenologia como da psicanálise, mas, para efeito desse estudo, foram
enfocados os autores que adotam uma orientação fenomenológica existencial.
204 Danielle de F. da C. C. de S. Leite e Carmem L. B. T. Barreto
(...)
Não sabia que caminho tomar
Mas o vento soprava forte,
E segui o caminho para onde o vento me soprava nas costas.
Assim tem sido sempre a minha vida, e assim quero que possa ser sempre –
Vou onde o vento me leva e não me deixo pensar. (Caeiro, in: Pessoa,
2008, p. 160)
estudado em sua face fenomênica. Ele volta-se, pois, para interrogar o que se
procura conhecer sem retirá-lo do movimento circular de desvelamento e
ocultação, próprio à manifestação do ser dos entes.
Nesse sentido, Barreto (2006, p. 154) ressalta que o olhar do pes-
quisador, “atento à complexidade do ser em seu aparecer e ocultar-se”, visa
“descobrir e compreender o sentido de ser daquilo a que se lança, na inten-
ção de conhecer”. Tal olhar, ainda conforme destaca a autora, não é um olhar
individual, mas coexistente que, enquanto condição ontológica do ser ho-
mem, possibilita toda e qualquer compreensão e conhecimento. Impõe, pois,
ao pesquisador assumir o olhar fenomenológico que permite o desvelamento
da teia de nexos, levando à reflexão e ao reconhecimento das interpretações
das problemáticas apresentadas, percorrendo a trilha do sentido.
A compreensão e interpretação do real implicam, nessa perspecti-
va, uma relação de aproximação e distanciamento entre o narrador-
colaborador e o ouvinte-pesquisador, que possibilita o “reconhecimento” de
uma compreensão do fenômeno desvelado no encontro, tendo em vista a
necessidade de interlocução permanente da ação e do sentido das experiênci-
as vivenciadas. Assim, tal caminho revelou-se como o mais adequado à natu-
reza hermenêutica interpretativa da pesquisa. E o texto-narrativo-escrito, que
segue, apresenta-se como compreensão interpretativa do fenômeno-estudado
– que foi desvelado, revelado, testemunhado, veracizado e autentificado pe-
los colaboradores e pelas pesquisadoras –, articulado aos pressupostos epis-
temológicos que sustentam a pesquisa.
Esse filme narra a história de uma jovem chamada Finn, que passa
por momentos decisivos em sua vida. Na tentativa de terminar sua tese e
dividida pela vontade de casar-se com “o amor de sua vida”, e o medo de
perder sua liberdade, viaja para passar três meses na casa de sua avó e de sua
tia-avó. Essas senhoras – que possuem uma relação conflitante, marcada por
rompimentos e feridas abertas no passado – juntamente com mais cinco ami-
gas formam um grupo de mulheres que se reúnem, há décadas, para confec-
cionar colchas de retalhos. Na ocasião, devido ao casamento da jovem, elas
tecem uma colcha que tem como tema: “Onde mora o amor?”. Na medida
em que os retalhos vão sendo bordados, há um resgate das histórias e das
experiências amorosas dessas senhoras, revelando-nos o passado presente e o
presente futuro. Cada um dos retalhos construído apresenta-se como o tecer
da vida afetiva/amorosa de suas protagonistas e revela segredos, sentimentos
e conflitos que, ao serem narrados, permitem a tematização do vivido e o
desvelamento da trama. Tais retalhos unidos possibilitam o surgimento de
algo novo – a colcha de retalhos – que pode ser compreendida como a teia de
sentido que dá vida ao filme. Ou seja, uma compreensão do que é o amor,
que não se reduz à reprodução ou a sobreposição de nenhum dos horizontes
dos interlocutores envolvidos na trama, mas apresenta-se como algo
novo/outro que se dá na interpenetração desses horizontes, numa “fusão” de
horizontes. Nessa direção, a colcha é tecida e destecida, evidenciando a cir-
cularidade temporal própria à existência humana. Todo o filme compõe uma
diversidade de metáforas e seu enredo enfoca as relações humanas, privilegi-
ando, principalmente, as afetivas.
Seguindo a metáfora do filme, buscou-se tecer uma colcha de re-
talho que teve como tema “a prática do Psicodiagnóstico numa clínica feno-
menológica existencial”. Nesta, as narrativas dos psicólogos/interlocutores
são os retalhos que, costurados, possibilitaram o aparecer da colcha. Vale
destacar que, com o intuito de identificar cada interlocutor – resguardando
suas identidades – foram adotados nomes fictícios – correspondendo cada
participante ao nome de um tecido: Veludo, Algodão, Seda e Linho. Com
isto, visou-se contemplar a diversidade dos tecidos dos retalhos que, no apa-
recer da colcha, revelam a multiplicidade na unidade da obra.
Nessa coprodução/encontro, as autoras assumiram o lugar de costu-
reiras, que não apenas unem os retalhos, mas que ao costurá-los, deixam na
colcha algo de si, envolvendo-se com e no processo criativo de “des-
ocultamento” da colcha que se “tece” e “re-tece”. Para tanto, disponibiliza-
ram-se a acolher o fenômeno que se mostra sem retirá-lo de seu movimento
fenomênico e a “costurá-lo”, tendo como linha a perspectiva fenomenológica
existencial, possibilitando uma compreensão interpretativa do fenômeno
interrogado.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
2
Denominação dada pelos interlocutores a suas práticas nesta modalidade de prática psi-
cológica, referendando a compreensão apresentada no livro Psicodiagnóstico: processo de
intervenção, coordenado por M. Ancona-Lopez, publicado originalmente em 1995.
210 Danielle de F. da C. C. de S. Leite e Carmem L. B. T. Barreto
o universo da criança vai variar de caso para caso. Então, eu não tenho
exatamente um estereótipo: todo mundo vai fazer colagem, todo mundo
vai fazer observação lúdica... eu vou variando isso de caso pra caso...
(Linho). Eu não aplico testes com a criança, eu trabalho com a criança
com observações lúdicas, desenho, entendendo o brincar dela, o contar
histórias... (...) eu acredito que a gente pode... trabalhar com a nossa cri-
atividade, com o nosso potencial de pensar em instrumentos que não se-
jam padronizados, para não encaixar... (Seda). Não é que eu não vou, de
jeito nenhum, utilizar o teste, mas que eu vou usar quando e se necessá-
rio... Até porque, o resultado do teste, quando ele é usado, é também tra-
zido e discutido em sessão com os pais. Então, é aplicado determinado
instrumento e nós chegamos a este resultado, vamos pensar a respeito
desse resultado. Ele não vem como uma coisa estática, ele vem como um
dado a ser questionado, a ser conversado sobre... com os presentes, é
outro jeito até de usar a técnica psicológica, aparentemente, tão quadra-
dinha, fechada... (Algodão)
O processo todo é sete sessões... três com os adultos, três com as crian-
ça; já me orientaram fazer tudo junto... Na supervisão me indagaram
por que não faço junto com pais e crianças, fiquei receosa pela condi-
214 Danielle de F. da C. C. de S. Leite e Carmem L. B. T. Barreto
ção ambiental que a Saúde Pública oferece, não há espaço para o gru-
po infantil, imagine com os pais... (...) Junto ao adulto que traz o enca-
minhamento infantil, fazemos, inicialmente, a escuta dos motivos que
mobilizaram para o atendimento psicológico... Nessa, evidenciamos o
sentido que o cuidador atribui à experiência infantil... (...) Buscamos
favorecer uma atenção ao cuidador e a sua criança, solicitantes de
atendimento psicológico... (...) possibilidade de compreender um sofri-
mento, buscando dialogar para intervir, recorrendo às pessoas deman-
dantes, participação e protagonismo... (...) A dialogia permite entender
o quanto estamos distante da concepção do sofrimento, do ponto de
vista de quem sofre... (Veludo).
Sempre que a gente atende a criança, na semana seguinte, converso com
os pais o que foi observado, o que foi pensado, como é que a gente está
vendo aquela criança... E, junto com os pais, ver o que vai ser feito... não
exatamente o que vai ser feito, mas o que precisa ser investigado... (...)
Eu tenho essa “veia familiar”, então gosto de juntar as pessoas e traba-
lhar o que está acontecendo na hora em que está acontecendo... (...) Mas
sempre intercalando, a gente faz uma atividade e volta na semana se-
guinte... conversa com os pais, vê como é que foi isso, como é que eles
entenderam, como é que... como é que está durante a semana... Tendo ou
não a sessão em si, tem o que ser conversado com os pais (Algodão).
[...] causa um espanto muito grande, principalmente, nos alunos que vão...
nos estagiários que participam desse diagnóstico... [...] E aí: “Como é para
uma mãe expor o problema dela na frente de outras mães, na frente de um
grupo de dez ou doze estagiários e de um supervisor”... É... e é interessan-
te, porque o espanto é dos alunos, os pais se sentem super à vontade no
grupo, se sentem superentrosados... [...] é fantástico, tanto para os pais que
passam por este processo como também para os estagiários, quando vão
vivendo essa outra prática psicológica que não aquela – eu mais um paci-
ente dentro de um setting fechado e preservado – vão vendo que é possí-
vel... fazer Psicologia de diversas maneiras... (Algodão).
3
O sentido de “conversação” aqui adotado diz respeito à compreensão apresentada por
Gadamer (1999, 2004).
218 Danielle de F. da C. C. de S. Leite e Carmem L. B. T. Barreto
Uma vez eu tinha um grupo que tinha... sei lá... uma criança de seis anos,
dois de nove anos e uma de onze anos. Então, era bem discrepante a ida-
de dos mais velhos para os mais jovens. Existia um casal de pais que
achava que o filho deles era superdotado e, na verdade, ele não era. [...]
E, na hora dos cartazes, eles foram direto ao cartaz do menino de onze
anos, reconhecendo como se fosse do filho deles, que tinha seis anos,
porque aquele cartaz era mais organizado, mais bonito, mais harmonioso
e tal. [...] a partir da experiência, possibilitou o reconhecimento dos pais
sobre as expectativas deles sobre essa criança (Linho).
A ideia é trazer um livro que fale da criança, mas que não precise neces-
sariamente trazer os fatos da criança... [...] mas transformar isso numa
metáfora em que a criança possa se reconhecer nela e até para ficar mais
acessível, para a criança, o que compreendemos... A gente, também, traz
a nossa compreensão psicológica para o mundo da criança, para facilitar
220 Danielle de F. da C. C. de S. Leite e Carmem L. B. T. Barreto
É muito interessante também você ver como é que essa mãe reage ouvin-
do a história dela de uma vez só, quando ela chegou, o que é que foi
acontecendo... (...) Tudo que está no relatório já foi, de algum jeito, tra-
balhado ou discutido. (...) Só vem ali a história, a história confirmada no
papel e ela vai ouvir de um outro jeito, porque ela vai ouvir tudo junto,
mas isso já vem sendo dito, até para a criança, até para as mães... (Seda).
Então, no final do processo é elaborado um relatório e ele é lido na ínte-
gra para os pais, e eles têm a possibilidade de ainda consertar alguma
coisa que foi mal entendida ou o que foi mal interpretado, ou o que não é
bem assim, e a versão final do relatório só pode ser emitida depois dessa
sessão em que foi lido pra eles. Porque aí mostra, de fato, que o relatório
está sendo escrito junto com eles... (Algodão).
[...] não acho que o encaminhamento deva fazer sentido pra mim, porque
eu posso achar muitas coisas, mas eu preciso chegar junto com esses pais
a essa necessidade, a essa demanda; e quando isso acontece... eu não te-
nho nunca nenhum problema. Na maioria das vezes, isso vem inclusive
deles, não desse modo: “ah, eu quero que meu filho faça uma psicotera-
pia”, mas eles denunciam: “olhe, eu acho que ele melhorou, mas ainda
falta alguma coisa, eu quero dar continuidade”... Aí eu prossigo... Mas
eu procuro ir no compasso junto com os pais, de tal forma que isso seja
também a opinião deles e não só a minha...
[...] quando ficou claro o que aconteceu, e para que ela precisa dar con-
tinuidade a esse processo, a maneira como ela chega ao encaminhamento
é muito mais apropriada do que está acontecendo. Não é o psicólogo
mandou: “Eu voltei aqui, porque a psicóloga falou que era pra eu vol-
tar”. Ela minimamente entendeu, ela teve uma compreensão do que foi
222 Danielle de F. da C. C. de S. Leite e Carmem L. B. T. Barreto
dito, do quanto que ela faz parte disso, do quanto ela está inserida nessa
história, ela ou a criança, ou quem for encaminhado ou para atendimento
infantil, ou pra família, ou se a mãe for encaminhada para psicoterapia
breve, ela, a mãe... Ela vem apropriada deste lugar, não é simplesmente:
“eu estou aqui porque o psicólogo mandou eu estar aqui”, ou, “me diz
você o que eu estou fazendo”... (Algodão).
zonte o “âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de
um determinado ponto” (Gadamer, 1999, p. 452).
Compreender implica um jogo constante de horizontes, em que os
interlocutores se encontram em constante interrogação, sem que um horizonte
se sobreponha ao outro, mas permitindo que algo novo se desvele. Dessa for-
ma, a fusão de horizontes não corresponde ao estabelecimento de um acordo
ou contrato que se possa determinar previamente, mas a uma possibilidade
compreensiva que emerge em uma conversação entre dois ou mais horizontes,
isto é, interlocutores. Toda conversação, “fusão de horizontes”, implica em os
interlocutores estarem “dispostos a isso e que procurem fazer valer em si
mesmos o estranho e o adverso” (Gadamer, 1999, p. 563).
É nessa perspectiva que compreendemos o Psicodiagnóstico Colabo-
rativo, como espaço de abertura para o mistério, para o inesperado, que convo-
ca a seus coparticipantes (psicólogos e clientes) a pôr-se em xeque, possibili-
tando-os ampliar seus campos de circunvisão acerca do fenômeno interrogado,
“des-ocultando” outras possibilidades compreensivas que poderão ser mobili-
zadoras de transformações significativas. Apresenta-se como uma “con-versa-
ação”, “conversa-ação”, que possibilitará, através de uma fusão de horizontes,
conhecer facetas/outras do fenômeno que se revela. Logo, a compreensão –
interpretação que resulta desse encontro, não se constitui em diagnóstico preci-
so advindo da capacidade metódica e teórica do psicólogo, mas é, antes, um
campo comum de interlocução entre todas as partes envolvidas nesse processo,
que se revela a partir do compartilhamento de experiências e compreensões.
Vale lembrar que compreender / interpretar, para Heidegger, não é
apenas um ato de tomar conhecimento de algo, mas remete a um apropriar-
se, a uma atestação em primeira pessoa. Sendo assim, toda e qualquer com-
preensão que se desvele nesse processo deve ser legitimada pelo cliente que,
ao colocá-la em xeque, apropria-se do sofrimento e pode vislumbrar outros
modos de ser-no-mundo.
Toda interpretação que resulta deste processo é considerada como
uma possibilidade compreensiva e, dessa forma, não busca superar a distân-
cia necessária entre os horizontes do psicólogo e do cliente, mas possibilitar
a fusão entre os horizontes, que, como uma ponte, permite o tráfego entre as
duas margens do rio. Tal atitude aproxima-se mais do fazer do poeta como
bem apresenta Gadamer (2010, pp. 130-131):
(...)
Dessa forma, deveríamos admirar todos os tradutores de poesia que não nos
ocultam totalmente a distância em relação ao original e, no entanto, cons-
troem uma ponte sobre esta distância. Eles são quase como intérpretes. Mas
eles são mais. Intérpretes produzem interrupções. A maior ambição daquele
que interpreta não pode ser outra senão que nossa interpretação também
permaneça uma fala intermediária, que ela se insira na releitura dos textos
originais como óbvia e aí desapareça. Em contrapartida, o rastro copoeti-
zante do tradutor permanece para toda a nossa leitura e compreensão um
arco firmemente fundado, uma ponte que é trafegável dos dois lados. A tra-
dução é, por assim dizer, uma ponte entre duas línguas como entre duas
margens em uma mesma terra. Sobre tais pontes passa um tráfego constan-
temente fluente. Esta é a marca distinta do tradutor. Não se precisa esperar
por nenhum barqueiro que traduza alguém. Alguns certamente precisarão
de ajuda para se orientar do outro lado – e permanecerão viandantes solitá-
rios. Talvez ele encontre, vez por outra, alguém que o ajude junto à leitura e
à compreensão. Toda leitura de um poema é a cada vez uma tradução.
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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
O PSICODIAGNÓSTICO
INTERVENTIVO/COLABORATIVO E
FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO: RELATO
DE UMA EXPERIÊNCIA
Andrea Cristina Tavelin Biselli
Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto
1 DO PSICODIAGNÓSTICO TRADICIONAL AO
PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO/COLABORATIVO:
RUPTURAS NECESSÁRIAS
além da falência dos sistemas explicativos que construiu sobre suas causas,
necessitando assim de uma atenção mais demorada de ambos os participan-
tes (psicólogo e cliente) não sendo necessário para isso iniciar uma pesquisa
sobre toda a história do cliente.
Silvia Ancona-Lopez (2002) contribui com essa visão crítica e res-
salta que o cliente quando procura ajuda não está preocupado com o nome
que é dado ao processo, mas que ele espera ser acolhido em seu sofrimento.
Portanto, se o profissional desconsiderar o pedido e postergar a intervenção,
poderá empobrecer um encontro rico em possibilidades.
Dessa forma, as possibilidades de esclarecimento e reflexão por
parte do cliente, que dependeriam da ajuda do psicólogo, se concentrariam
nas entrevistas finais (Santiago, 2002). Isso ocorre porque nesse modelo, a
ideia de intervenção se remete sempre ao processo de psicoterapia. Assim,
o psicodiagnóstico tradicional não é considerado comumente como uma
prática interventiva, pois além de se dar em um número determinado de
encontros, é entendido como prática de investigação, avaliação ou seleção,
não podendo ser percebido como um momento passível de abrir novas
perspectivas ou trazer mudanças positivas para o cliente (Ancona-Lopez,
S., 2002).
Nessa direção, o processo perde muito de seu sentido, já que não
desperta interesse e utilidade para o cliente e configura-se como “uma rela-
ção e uma expectativa de que o saber, o conhecimento, a atitude mental ativa
no processo são privilégio ou dever somente do psicólogo” (Santiago, 2002,
p. 13). Desse modo, numa atitude equivocada, o cliente delega ao profissio-
nal a plena responsabilidade de chegar a uma compreensão e explicação
acerca do que acontece com ele próprio, baseando-se na crença de que ape-
nas o terapeuta tem condições de lhe fornecer sugestões úteis. Tal postura,
ainda de acordo com essa autora, pode corresponder a uma necessidade de-
fensiva do cliente e, caso o psicólogo assuma esse lugar, a tendência é que se
estruture uma relação assimétrica, que coloca o cliente à margem do proces-
so compreensivo que vai sendo construído no diagnóstico. Uma relação des-
se tipo poderia estar alicerçada nas fantasias de impotência de um e onipo-
tência do outro podendo dificultar um trabalho clínico efetivo, pois se fun-
damenta na “negação das capacidades ou potencialidades do cliente, negação
dos limites do psicólogo, negação da dificuldade de se realizar um trabalho
profícuo com tantas distorções perceptivas e sem a participação compreensi-
va do cliente” (Santiago, 2002, p. 13).
Para Yehia (2002), o psicodiagnóstico tradicional se constitui numa
etapa importante do processo para o psicólogo que o realizou por oferecer
uma segurança para o encaminhamento, todavia, pouco contribui com o cli-
232 Andrea Cristina Tavelin Biselli e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto
ente e o futuro terapeuta. Ocorre que, quando o processo não se torna signifi-
cativo para os pais, não os mobiliza a dar continuidade ao encaminhamento
e, então, quando questionados sobre o referido processo, eles limitam-se a
repetir as queixas iniciais, acrescidas de uma indicação terapêutica.
Marília Ancona-Lopez e seus colaboradores (2002), após vários
estudos e questionamentos em relação às suas práticas, apontam uma outra
forma de realização do psicodiagnóstico, acrescentando-lhe ao valor com-
preensivo, o valor terapêutico. A proposta é a do psicodiagnostico psicodia-
gnóstico interventivo/colaborativo, ressaltando a necessidade de acolher o
cliente em seu sofrimento no momento da queixa inicial, levando em conta
as considerações e compreensões trazidas na primeira entrevista assumindo
assim, desde logo um caráter interventivo.
Intervenção advém do latim intervenire e significa meter-se de
permeio, ser ou estar presente, assistir, interpor os seus bons ofícios. Silvia
Ancona-Lopez (2002, p. 26), ilumina tal significado da definição apresenta-
da por Freire em um dicionário da língua portuguesa, ampliando seu enten-
dimento.
Para a autora supracitada,
3 RELATO DA EXPERIÊNCIA
critor de sucesso. Ele estava em busca de adotar uma criança, quando fatal-
mente sua jovem esposa falece, deixando-o viúvo. Desde tal tragédia, ele res-
guarda-se sentimentalmente, fechando-se para as experiências afetivas, própri-
as à vida. Porém, após dois anos de sua perda, o serviço social entra em con-
tato para informar a possibilidade de uma adoção. Liz, sua irmã, tenta dissua-
di-lo da ideia, alegando os perigos da paternidade. Mas ele, finalmente resolve
tentar, adotando o “problemático” Dennis. Assim como David, Dennis vive
trancafiado em seu mundo de fantasia, acreditando ser um marciano em mis-
são de exploração na Terra. Dennis, na busca de cumprir sua missão – conhe-
cer este mundo chamado Terra – utiliza-se de uma câmera fotográfica, regis-
trando seus momentos e experiências vivenciadas, bem como todas as “coisas-
terrenas-estranhas” que chamam sua atenção. Tais fotografias, metaforica-
mente, vão montando uma história, a sua história, a construção de um mundo
de sentido. Repleto de esquisitices e extremamente inteligente, não resta a
David outra opção, a não ser mergulhar nesse mundo no qual seu filho vive e
aceitá-lo do jeito que é revelando, assim, um modo próprio de ser-pai.
Ensinando a viver é um roteiro adaptado do livro “Martian Child”,
do escritor de ficção científica David Gerrold, que se tornou um bestseller.
Este apresenta um relato real da vida do autor com seu filho adotivo, sendo
uma história comovente que, como a tradução do título destaca, nos ensina a
viver, privilegiando a singularidade da vida. Por esta obra, o autor recebeu
diversos prêmios de literatura.
Seguindo a metáfora do filme, busco contar a historia da minha
“viagem exploratória” ao mundo do psicodiagnóstico interventi-
vo/colaborativo num grupo de pais e crianças. Desta forma, minhas narrati-
vas são as “diversas fotografias” tiradas durante a “viagem”. Para identificá-
las, utilizo como recurso a fonte Comic Sans MS, que as fotografias tiradas.
Ao final, o texto, aqui apresentado, revela-se como o painel da “expedição”
foi montado. Tais fragmentos não serão utilizados na íntegra; aparecerão de
maneira indiscriminada com a intenção de apresentar como cada encontro foi
vivido e compreendido.
Uma sequência de acontecimentos permeou o caminho da minha
escolha sobre fazer o estágio em clínica na perspectiva fenomenológica
existencial culminando com o tema da monografia.
No início de fevereiro deste ano, iniciamos o estágio na perspectiva
fenomenológica existencial na clínica-escola da Universidade. Antes de co-
meçarmos atender, realizamos muitos estudos sobre o pensamento heidegge-
riano e a Daseinsanalyse.
“Fui me apaixonando a cada leitura, e discussões realizadas, sendo
esta, para mim, uma grande descoberta. Com um toque de magia, era como
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
Senti hoje que o grupo está criando uma identidade e uma cumplicida-
de, percebo isso quando elas trocam olhares, convoca a outra a falar,
pede opinião. No espaço do grupo elas falam e são ouvidas, refletimos
sobre as questões apresentadas – desveladas, tematizadas – e muitas
demonstram que ampliaram suas possibilidades, relatando uma possí-
vel melhora sobre a queixa da criança, devido a uma mudança de
postura delas.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
6 REFERÊNCIAS
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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
PLANTÃO PSICOLÓGICO NO
DEPARTAMENTO JURÍDICO DO
“XI DE AGOSTO”: RELATO DE
PLANTONISTAS
André Prado Nunes
Henriette T. P. Morato
1
Laboratório de Estudos e Prática em Fenomenologia Existencial do Departamento de
Psicologia Escolar e da Aprendizagem do Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo (LEFE-IPUSP).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
2
Pode-se considerar que a queixa seria compreendida como a emergência de um sinal de
crise, na formulação pré-concebida tanto de um problema quanto do “espaço psicológico”
a ele reservado. Por sua vez, a demanda seria compreendida como a urgência por uma
atenção psicológica, não concebida a priori, para construção de sentido possível, através
da investigação cuidadosa da situação de crise (Morato, 1999; Nunes, 2006).
260 André Prado Nunes e Henriette T. P. Morato
nos vemos refletidos e vemos aos outros, ou melhor, em nós e nos outros,
nós mesmos. Daí a importância da supervisão coletiva, pois o grupo se
constitui uma galeria de espelhos. Sendo o mundo humano essencial-
mente co-existência, o conhecimento do outro supõe a compreensão on-
tológica da existência como ser da coexistência. A compreensão de si
fundamenta-se no reconhecimento da coexistência e, ao mesmo tempo,
constitui-se como ponto de partida para a compreensão do outro. Coe-
xistência é também co-estranheza. (...) a experiência imediata, a desco-
berta que fazemos da alteridade, apóia-se no encontro com o espelho. O
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
Um dos estagiários de Direito veio falar com a gente, pedindo nossa aju-
da. Disse que estava com um caso horrível, e ficava mostrando trechos do
processo para a gente. Ele disse que a moça estava ali esperando por ele,
e talvez fosse bom a gente falar com ela. Até então não havia entendido a
demanda dele para aquele caso, e perguntamos: mas você acha que de-
vemos falar com ela por qual motivo? Ele desconversou, e acabou falan-
do que não tinha certeza se queria pegar aquele caso. Aí compreendi que
ele estava mostrando detalhes do caso, para justificar o porquê de não
querer pegá-lo. Então dissemos isso a ele. Ele concordou, e percebemos
que, talvez, a sua dificuldade estava em dizer ao seu “superior” no D.J.
que não queria aquela defesa. Então conversamos sobre isso, sobre o fato
de o caso ter vindo da defensoria pública, o que exigia defesa por parte
do D.J., mas não uma defesa específica dele. De como seria falar com o
superior sobre a sua recusa, e o aconteceria em seguida. (...) Retomei o
fato dele querer que conversássemos com a moça que estava sofrendo a
ação. Dissemos que poderíamos falar com ela sim, mas se ele estava es-
perando um aval, um “laudo” ou coisa parecida, aí não teríamos como
ajudar. Poderíamos falar com ela no sentido de entender algum sofri-
mento, ou ajudá-lo caso ele quisesse que estivéssemos presente para co-
264 André Prado Nunes e Henriette T. P. Morato
municá-la do seu afastamento do caso. Ele agradeceu, mas disse que na-
quele dia isso não seria necessário.
Estava me sentindo um pouco (bastante) perdida. Mais do que não ter lu-
gar, muito pior, não tínhamos o que fazer e por isso fomos tomar café.
Ficamos um tempo conversando e o assunto principal foi nosso papel no
D.J. (...) Será não há nada mais a fazer, além de cuidar dos casos que nos
encaminhavam? Parece que não há nada o que fazer. E na busca disso,
perguntei ao colega o que ele achava se na triagem nós nos apresentás-
semos aos clientes, como estudantes de Psicologia e nos dispuséssemos a
conversar com aqueles que quisessem, enquanto esperavam para ser
atendidos. Pensei em perguntar aos calouros o que achavam disso, até
para estimular a pensar nosso lugar em conjunto. Ele não gostou muito
da ideia, pois temia que ficássemos como “posto” de reclamações das
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
pessoas que nos procurassem. (...) Nesse meio tempo perguntei a uma
estagiária o que ela achava se a gente ficasse na triagem nos apresentan-
do, e ela disse que não era suficiente. As pessoas não iriam falar conosco.
Era melhor se acompanhássemos alguns casos com os próprios estagiá-
rios, que ela mesma fazia isso. (...) Não ligo de pessoas em geral não sa-
berem o papel do psicólogo, mas me incomoda o fato de eu mesma não
ser capaz de quebrar os preconceitos do senso comum em relação à Psi-
cologia. (...) Em outro momento, uma senhora me perguntou se eu traba-
lhava lá e se eu poderia ajudá-la. Expliquei que era estudante de Psico-
logia e se ela quisesse conversar estaria à disposição. Ela não queria
conversar e apenas perguntou se eu sabia onde estava uma estagiária.
(...) Depois essa senhora me chamou e falou que uma mulher estava com
um problema sério, a filha batia nela, e me pediu para que eu conversas-
se com ela. Dirigindo-me à mulher perguntei se ela gostaria de conversar
enquanto esperava. Ela não mostrou nenhum interesse e disse que queria
apenas ser atendida logo.
mento algum, somente mais no final quando tentava nos convencer de que
tudo o que ela falava era verdade. (...) Ficamos muito angustiados. Eu me
senti sem ter absolutamente nada a fazer. Quando terminou, sentamos ar-
rasados, com o estagiário que acompanhou o caso e o estagiário da tria-
gem, como que sem energias, impotentes...
derada louca, pois tem um processo por ter sido utilizada como laranja
em uma compra de terras que envolve muitas coincidências e persegui-
ções, tão estranho que chega a ser difícil de acreditar. Retomamos o as-
sunto de como a loucura e a razão estão próximas, de como é difícil li-
mitá-las e como isso mexe muito conosco.
Um menino da triagem comentou que, eles geralmente entravam na fa-
culdade com um pensamento muito idealizado, achando que só iam pegar
grandes casos, e que o bom de entrar no D.J. era que eles caiam na rea-
lidade e passavam a ver “a vida como ela é”: pessoas que não tinham di-
nheiro nem para pegar o ônibus, gente que mal conseguia entender por
que estava sendo processada etc.
Logo em seguida ele veio até a cozinha e puxou assunto, começando com
perguntas sobre psicanálise. Ele disse que se interessa muito pelo assun-
to, e que é professor de uma escola da rede pública. Falou por muito
tempo sobre os problemas que se enfrenta como professor, os casos de
violência e indisciplina que presencia, que se sentem impotentes diante de
toda a situação, fazendo diversos desabafos. Conversamos com ele algum
tempo sobre isso.
Perguntamos aos membros da diretoria porque renovaram o convite, e
eles disseram que a Psicologia fazia falta. Um estagiário veterano falou
que sentia falta da Psicologia porque percebia que a nossa presença e
atuação facilitavam a comunicação entre ele e o assistido. Às vezes a pes-
soa fica muito nervosa e não consegue falar sobre o caso, e que a Psico-
logia junto facilitava o entendimento.
4 CONSIDERAÇÕES POSSÍVEIS
3
O termo apropriação se refere a ações que se tornam próprias e legitimas para o sujeito no
responder aos seus anseios e não no sentido de uma adequação irrefletida ao que se revela
“aí” disposto.
4
A noção fenomenológica existencial de “destino” liga-se à noção de temporalidade e
desvela-se como movimento de lançar-se adiante na tarefa do cuidado de ser, buscando
sentido para o existir. Deste modo, não há um caminho prévio e nem se trata de um “lu-
gar” de chegada, mas de um dos aspectos da condição humana. Esse “lançar-se” compre-
ende que constantemente o sujeito é interpelado por situações a quais precisa responder,
sendo que o não responder, a indiferença, a mentira, a imitação, a fraude, entre outras
ações, já são respostas possíveis, pois o ser constitui-se na impropriedade e no coletivo-
mundo. Assim, tal ideia busca diferenciar-se das noções humanistas de destino que se ali-
cerçam, em sua maioria, na dicotomia homem-mundo, a partir da qual se cria a noção de
um “si mesmo”, desembocando na ideia de incentivar o homem como dono de seu desti-
no. Ressalta-se que o tema é extenso e necessita de maior atenção, o que desviaria o artigo
de seus objetivos. Deste modo indica-se a tese de Almeida (2005) para aprofundamento
desta temática.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
5 REFERÊNCIAS
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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
1
Infelizmente, a entrevista de Foucault não foi traduzida para o português. Assim, o trecho
citado foi traduzido, pela autora, do original em áudio francês, que se encontra nas refe-
rências bibliográficas.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
ções dos homens com o mundo, com os outros e consigo, incluindo o campo
da saúde. Ao buscar compreender o cuidado em saúde como procedimento
de controle do real, o ideário moderno não considera que, ao contrário dos
objetos criados por um artífice, a saúde não é criada pelo médico ou pela
equipe de saúde. O domínio do homem sobre o mundo que ele mesmo cons-
trói pela criação de artefatos humanos não é o mesmo que ele venha a ter
sobre aspectos do real que não se constituíram a partir dele. Para Gadamer
(2006), “a exploração técnica das riquezas naturais e a remodelação artificial
de nosso meio ambiente tornaram-se tão planificadas e amplas que suas con-
seqüências ameaçam o ciclo natural das coisas e desencadeiam processos
irreversíveis em grande escala” (p. 15).
Neste mesmo sentido, a dominação do corpo e da natureza é uma
ilusão que coloca o fazer médico em questão: o paciente pode melhorar
mesmo sem os cuidados da equipe de saúde e pode piorar apesar de seus
esforços, embora a expectativa de que a técnica preveja e controle tais pro-
cessos faça parte de nossa cultura. Diversas situações no cotidiano das insti-
tuições de saúde demonstram a hegemonia desta acepção e suas vicissitudes,
tais como a culpabilização do médico perante o óbito, a desconfiança em
relação ao fazer psicológico, que não apresenta meios de comprovar seu
controle sobre o comportamento e as emoções dos sujeitos, as dificuldades
da equipe de saúde em lidar com situações que escapam à rotina dos proce-
dimentos, os problemas de comunicação entre equipe de saúde, pacientes e
familiares.
A segunda questão é o fato de que a perspectiva biologizante e téc-
nica exclui de seu campo de conhecimento aspectos menos concretos, quan-
tificáveis e controláveis das experiências de saúde e doença, tais como o
sofrimento e os afetos (Figueiredo, 1995), a loucura (Foucault, 2001) e, é
claro, a morte (Ariès, 1977). Na tentativa de manter a uma distância obser-
vável os processos de saúde e doença, perpetua-se o distanciamento entre
médico, enquanto sujeito epistêmico, e paciente, enquanto objeto de estudo.
Foucault (2001) descreve esta relação, afirmando que o médico escuta o
discurso do paciente “não para tomá-lo a sério”, mas para auscultar neste
discurso “os sinais de uma doença séria, ou seja, uma doença do corpo”.
Neste sentido, o discurso médico é raro, se relacionando apenas à nomeação
nosológica da patologia e à prescrição do tratamento. Esta concepção para o
atendimento em saúde ainda é preeminente na formação de muitos profissio-
nais (Faria & Santos, 2011; Campos, 1999) e se expressa, por exemplo, na
fragmentação dos procedimentos e na necessidade de distanciamento de
muitos profissionais em relação às vivências nas instituições de saúde, pois
não há espaço nem legitimação para a discussão de temas presentes no coti-
diano de trabalho, como as relações interpessoais e o sofrimento perante o
282 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.
quem somos em nosso agir cotidiano, em nosso lidar com o mundo, na me-
dida em que, a cada momento, colocamos em jogo nossas possibilidades de
ser. Assim, cuidado designa “a condição existencial de possibilidade de ‘cui-
dado com a vida’” (p. 265). Para Heidegger, o lidar com os artefatos do
mundo, dado pela ocupação, e o lidar com outros, dado pela preocupação,
caracterizam nossos modos de cuidar. A preocupação consiste, dessa manei-
ra, na expressão do cuidado como modo próprio de nossa relação uns com os
outros: somos-com-outros e a partir desta coexistência constituímos um
mundo comum, dado pelas relações de sentido que compartilhamos, pelas
experiências familiarizadas, pela abertura às possibilidades que somos. Se
“O outro nos vem ao encontro em sua co-presença no mundo” (p. 171), a
abertura compartilhada de nossas possibilidades de ser constitui o sentido do
mundo comum.
Na preocupação, podemos lidar com outros de modo deficiente,
por exemplo, pela indiferença, modo que caracteriza a convivência cotidiana.
De modo positivo, podemos substituir outros em suas ocupações, o que ocor-
re no hospital, por exemplo, quando um técnico de enfermagem higieniza um
paciente que não pode tomar banho por si mesmo, ou ainda podemos nos
antepor a outros, questionando por seu existir e libertando-o para o próprio
cuidado de si. Embora o modo substitutivo de cuidar seja necessário no con-
texto hospitalar, em que muitas vezes as condições do próprio cuidado se
encontram restringidas ou fragilizadas, cabe a observação de Heidegger
(1999) de que este modo de cuidar pode servir à dominação do outro: se este
é dependente do meu cuidado, possuo a decisão sobre aquilo que lhe é ne-
cessário e sobre quem ele é. Desta maneira, a necessidade de substituição nas
ocupações daqueles que se encontram fragilizados em sua capacidade de
cuidar de si pode misturar-se ao discurso técnico e à organização instituída,
prevalentes na instituição hospitalar, fragilizando ainda mais a autonomia
dos internos e familiares.
Com atenção a este aspecto, resgatar o cuidado que se antepõe ao
outro, interrogando pelo modo como cada um cuida de existir, inclusive
quando entrega seu cuidado a outros, permite a apropriação da experiência
de cada um e, no contexto hospitalar, a ressignificação do adoecer. É neste
âmbito, do cuidado antepositivo, da constituição do sentido das experiências
e das possibilidades de sua transformação, que podemos situar a ação psico-
lógica e a dimensão da linguagem que ela abre. Sá (2000) resgata o sentido
da caracterização realizada por Heidegger do cuidado antepositivo para a
práxis psicológica, cuja essência é a interrogação pelo sentido do existir. Ao
abrir espaço para o testemunho e a compreensão de uma experiência, a atua-
ção psicológica revisita e constitui seu sentido e, desta maneira, as possibili-
dades abertas pelo existir em cada situação.
286 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.
2
Todos os nomes de pacientes e familiares foram trocados para preservar sua identidade.
296 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.
que não usara o batom e a plantonista deixou-o ao lado da cama, dizendo que
ficaria ali, caso decidisse usá-lo. Após a saída das plantonistas, Ana pediu o
batom e um pente a outros cuidadores, dizendo que se arrumaria para se sen-
tir bonita, tirar a aparência de doente e esperar seu marido. Uma dificuldade
deste atendimento foi a necessidade frequente de contato físico de Ana. Ela
estava nua e solicitava toques das plantonistas, que encontraram dificuldade
de expor à paciente que não poderiam ficar tão próximas, pois deviam evitar
contaminação. Ana também tinha grande dificuldade de perceber a possibili-
dade do cuidado de si, mostrando-se fragilizada e demandando constante-
mente o outro, sendo este aspecto discutido no decorrer do atendimento com
ela, como, por exemplo, no enfrentamento da situação de adoecimento, in-
ternação e transferência para a UTI. Neste contexto, a intervenção na ação,
pelo gesto de expor o batom, possibilitou uma ressignificação da experiência
de internação, permitindo-lhe maior autonomia.
O plantão psicológico no hospital geral envolveu o encontro com a
finitude humana, em casos de pacientes em estado terminal e seus familiares,
sofrendo imensuravelmente diante da possibilidade ou realidade da morte.
Foram estas as ocasiões mais angustiantes da atuação no contexto hospitalar,
marcadas pelo silêncio: a dificuldade de pacientes, familiares e profissionais
em se falar diretamente sobre a morte, sendo sua expressão restrita a olhares
e relatos da condição de saúde do paciente, esteve presente em grande parte
dos atendimentos.
Um destes atendimentos foi solicitado por Marta, filha de uma se-
nhora em estado terminal e vegetativo, que iniciou relatando sua vontade de
levar a mãe de volta para casa, pois achava que poderia cuidar melhor dela,
pois se sentia cansada no ambiente hospitalar. Apesar do quadro clínico da
mãe, ela não aventava o risco de morte. Após escutá-la, o diálogo com a equi-
pe médica permitiu conhecer o quadro clínico da paciente e direcionar a inter-
venção com Marta. A paciente realmente possuía poucos dias de vida, levando
as plantonistas a discutir como o adoecer da mãe vinha sendo vivenciado por
Marta, que não atinava para a gravidade do quadro. Ao falar sobre a interna-
ção, Marta foi percebendo que não poderia levar a mãe para casa, pois estava
muito debilitada e necessitava de cuidados médicos, e passou a considerar a
possível perda. As plantonistas acompanharam o processo de queda no quadro
clínico da mãe e fortalecimento emocional que Marta desenvolvia comparti-
lhando seus sentimentos e sendo acolhida em sua dor existencial diante da
perda próxima da mãe. Pelo amparo construído no testemunho de sua experi-
ência, Marta conseguiu se apropriar de sua situação, elaborando uma reorgani-
zação da sua vida quando a perda se concretizasse. No último encontro, Marta
aparentava exaustão e angústia, pois a mãe não passara bem à noite, perdendo
sinais vitais. Quando as plantonistas a interrogaram, ela não conseguia colocar
302 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.
se a cada plantão uma mudança neste sentido: ela relatava ligar o rádio me-
nos vezes, pois conseguiu perceber que ele poderia se cansar de ouvir o tem-
po todo, assim como ela também se cansava, e que falar com Artur era bom,
mesmo sem ter certeza de que ele a ouvia, pois a esperança que lhe gerava
ajudava a suportar o ambiente impessoal que as vezes sentia no hospital.
Posteriormente, Lia passou a infantilizar Artur, tratando-o como
bebê e docilizando a voz, em expressões como: “O meu bebê passou bem esta
semana, não deu trabalho nenhum para a mamãe”. Lia exprimia a dificuldade
em encontrar um modo de contato com Artur, vivenciando sua fragilidade e a
necessidade de protegê-lo e ao mesmo tempo obliterando o contato com a
possibilidade da paralisia ou morte. As plantonistas interrogaram sobre o
modo como ela o tratava antes do acidente e Lia reconhece a diferença, permi-
tindo às plantonistas questionar o movimento de infantilização em sua nova
condição, tema retomado amiúde nos atendimentos. Conforme ela foi se apro-
priando da condição de ter um filho doente, por meio do amparo vivenciado no
acompanhamento constante recebido no plantão psicológico, Lia passou a
mudar esta sua atitude, voltando a cuidar do filho como adulto.
Neste momento, as plantonistas começaram a abordar a possível
morte de Artur, que se encontrava cada vez mais debilitado. A princípio Lia
mudava de assunto ou dispensava as plantonistas, evitando o tema da perda,
simultaneamente tão próxima. Num segundo momento, Lia ouvia, mas inter-
rompia a conversa pedindo para ajudá-la em suas atividades ou com cuida-
dos do filho. Deste modo, Lia sinalizava seu ritmo para construir a elabora-
ção da morte do filho no âmbito da fala e simultaneamente exprimia a neces-
sidade de amparo. Por mais evidente que fosse o sofrimento perante a morte
vagarosa do filho e a importância de sua expressão, Lia vivenciava também a
impotência de uma situação que não podia evitar. Assim, as plantonistas aos
poucos procuravam construir um canal de abertura para falar sobre este so-
frimento. Foi pela confiança criada nos gestos de cuidar, diretamente dispen-
sados a Lia e Artur e que não ocorriam nos procedimentos da equipe de saú-
de, que ela conseguiu falar, aos poucos, sobre a dificuldade de contatar a
morte, bem como sobre seu desgaste por estar ali todo tempo, sem descanso
ou pausa. Relatou sentir falta da vida em casa, de cuidar de suas coisas pes-
soais e especialmente do trabalho. A partir da abertura de Lia para si mesma,
passou-se a considerar seu modo de estar no hospital e as plantonistas ques-
tionaram se não havia outra pessoa que poderia ficar um dia no hospital em
seu lugar, o que Lia negava, afirmando que “todos tinham suas vidas” e não
poderiam ficar ali. Aos poucos associou essa impossibilidade ao seu medo de
não estar ao lado do filho quando ele morresse e de se sentir culpada por
isso. Assim, criou-se um espaço para falar da insegurança e das tentativas de
controle frente à imponderabilidade da morte e da vivência de desamparo
304 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.
6 REFERÊNCIAS
ADOLESCENTES, INFRAÇÕES E A
PRÁTICA PSICOLÓGICA NA
JUSTIÇA JUVENIL
Sáshenka Meza Mosqueira1
Henriette Tognetti Penha Morato
1
Este capítulo apresenta conteúdos do mestrado desta autora (Mosqueira, 2008) articulados
à elaboração de estudos realizados em pesquisa de doutorado em andamento.
2
Será apresentada aqui a realidade de São Paulo Capital, lugar de residência e pesquisa da
autora.
314 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato
autonomia passa a ser vista como fonte de riscos. Entre os riscos contem-
porâneos mais temidos está o envolvimento com o mundo do crime e da
violência.
De acordo com Adorno, Bordini e Lima (1999) a compreensão da
adolescência como problema é contemporânea da associação entre juventude
e delinquência. Desde o início do século XX, nos Estados Unidos, surgem
teorias sociológicas que concebem a delinquência juvenil como resultado de
um contexto social em que falta autocontrole e controle social, especialmente
aquele que deveria ser exercido pelos pais e educadores. Eram também con-
sideradas as precárias condições de vida social, a pobreza de oportunidades
de inserção social dos jovens e, principalmente, a baixa oferta de lazer e
ocupação do tempo livre de forma considerada socialmente construtiva. As-
sim, atribuía-se a essa condição a razão de adolescentes imersos na pobreza e
privados de viver sob adequadas condições sociais de existência, associa-
vam-se a quadrilhas e bandos que, comumente, cometiam crimes. Social-
mente percebidas como fonte de inesgotáveis conflitos entre os jovens e suas
comunidades, essas formas de associação pareciam estar na origem da esca-
lada da criminalidade violenta.
No Brasil, diversos estudos sociológicos, econômicos, psicológicos
e de saúde pública (Adorno; Bordini & Lima, 1999; Amin et al., 2010;
Coimbra & Nascimento, 2005; Oliveira & Assis, 1999; Trassi, 2006) consi-
deram que a desigualdade econômica e social brasileira, além de dificultar o
pleno crescimento e desenvolvimento de milhões de adolescentes, coloca-os
em circunstâncias em que, aprisionados a comunidades em que impera o
descaso do Estado, veem no ingresso na criminalidade possibilidades de
manutenção, crescimento e autoafirmação. No geral, residentes em comuni-
dades periféricas nas grandes cidades, em moradias inadequadas, com seve-
ras restrições ao consumo de bens e serviços, falta de qualidade no ensino,
relações familiares e interpessoais fragilizadas e violência em todas as esfe-
ras de convivência são as condições cotidianas da experiência da maioria dos
jovens que chegam ao sistema de justiça juvenil.
Paralelamente às análises supracitadas debruçadas nos fatores so-
ciais ou ambientais, encontra-se também a corrente de compreensão bioló-
gico-psicológica que estuda fatores internos e individuais como aspectos
que podem estar relacionados com o envolvimento com a criminalidade.
Diferentes estudos buscam medir e identificar a estrutura da personalidade,
os níveis cognitivos, a flexibilidade mental, o funcionamento cerebral ade-
quado ou desviante e os diferentes diagnósticos psicopatológicos de quem
comete infrações ou crimes graves (Bordin & Offord, 2000; Jozef et al.,
2000; Morana; Stone & Abdalla, 2006; Morana, 2003; Pino & Werlang,
2008; Schmitt et al., 2006).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
dos neutros, nos moldes positivistas, não sai de uma postura cientificista que
o impede de ver, ouvir e compreender quem com ele fala e o contexto de
relações sociais e de poder em que ambos se inserem. A autora citada recorre
também a Chauí (1980 apud Patto, 2010) que se refere à “escuta fina” que a
ambiguidade da fala dos depoentes, por ela chamados de “dominados”, re-
quer. Poderíamos estender esta reflexão para pensar sob essa lente não ape-
nas a fala do nosso depoente, mas também os dados com os quais buscamos
estabelecer interlocução, pois eles expressam um modo de olhar para esses
jovens, e para seus modos de ser-no-mundo; modo este revelador do pensa-
mento que acompanha o juízo que se faz deles. Na compreensão de Chauí é
sobre o intérprete, no caso o pesquisador, que recai o peso da ideologia que
cega um olhar crítico e reflexivo da realidade pesquisada. No entanto, pode-
ríamos, também, indagar: e a ação do psicólogo, que avalia os adolescentes
como meio de gerar subsídios para decisões judiciais, não se torna também
ideológica e até burocrática? E a dos operadores do Direito no âmbito da
Justiça Juvenil? O padrão do pensamento ideológico é aquele que somente
vê e ouve o que “sabe” que verá e ouvirá, furtando-se de dar luz ao que de
inédito se revela ainda que sob aspecto familiar.
A categoria fator de risco se refere marcadamente a uma construção
técnica do arcabouço científico da saúde, da medicina e da psicopatologia;
porém, procuro aproximar-me dessa leitura do mundo de parte significativa da
população adolescente na procura de estabelecer interlocução com a narrativa
de um jovem a fim de perseguir compreensão do fenômeno infracional e seu
contexto como passo imprescindível de quem se propõe a refletir a intervenção
nessa área. Barreto (2010, pp. 43-44), citando Heidegger (2001), aponta para
esta possibilidade de trânsito na investigação do ser-homem:
3
O Código de Menores de 1979 foi uma revisão do Código Mello Matos de 1929, porém
pouco mudava sua abordagem repressiva e arbitrária para a infância e juventude pobre.
4
Será apresentada aqui a realidade de São Paulo Capital, lugar de residência e pesquisa da
autora.
5
Antiga Unidade de Atendimento Inicial (UAI) da Fundação CASA. Estas informações
foram colhidas em depoimentos de profissionais que trabalham diretamente com este pú-
blico nesta fase do percurso socioeducativo (psicólogos, promotores, defensores, juízes).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
De acordo com o regimento interno da F. CASA este tipo de atendimento inicial é realiza-
do em caráter excepcional e atendendo ao disposto no art. 175 do ECA.
6
Arts. 171, 172, 173 e 175, § 1º do ECA.
7
Procedimento realizado pelo promotor em que o adolescente é interrogado sobre o ato
infracional que lhe é atribuído. É lavrado um documento com as respostas do adolescente
e com a sugestão do promotor quanto ao caso que será juntado aos autos do processo para
posterior decisão judicial.
8
O termo “representação” nesta circunstância é usado para referir o fato do promotor, como
representante do MP, decidir solicitar que o processo prossiga para apuração do ato infracio-
nal e posterior decisão de aplicação de medida socioeducativa. Durante a oitiva informal tam-
bém é possível que o promotor sugira apenas uma advertência ou, ainda, uma remissão que
equivale a um perdão judicial e o encerramento do processo sem necessidade de apuração do
ato ou aplicação de medida. Isto ocorre apenas em casos em que os adolescentes estão envol-
vidos em situações leves, por exemplo, uma briga de escola sem maiores consequências.
9
Embora o art. 183 do ECA seja muito claro quanto a este prazo ser improrrogável há
relatos de profissionais que dizem de casos excepcionais em que houve determinação ju-
dicial para permanência de mais 45 dias em internação provisória. Ainda, cabe fazer
constar que todos os procedimentos definidos devem ser comunicados à família e respon-
sáveis para o devido acompanhamento de acordo com o art. 184.
320 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato
10
Conforme disposto nos arts. 115, 116, 117, 118, 120, 121 e 122 do ECA.
11
Lei promulgada em janeiro de 2012, em vigor desde abril.
12
Art. 38 do ECA.
13
Art. 4º, incs. I e III.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
14
O capítulo IV do SINASE em seus arts. 52 a 59 estabelece que o PIA deve ser elaborado
pela equipe técnica da UI, o adolescente e sua família ou responsáveis. O prazo para ela-
boração do PIA no caso de internação é de 45 dias após o ingresso do jovem na unidade,
já para as medidas em meio aberto esse prazo é de 15 dias. A autoridade judiciária deve se
pronunciar sobre o PIA em até 3 dias após o recebimento deste.
15
Dados sobre o número de processos de adolescentes atendidos pelo DEIJ e dos casos
atendidos pela ETJ do Fórum do Brás foram solicitados à Corregedoria do DEIJ e à chefia
322 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato
a real demanda dos juízes seria muito maior caso houvesse possibilidades de
avaliação de maior número de adolescentes.
Os critérios que os operadores do Direito utilizam para sugerir, no
caso das partes, e determinar, no caso dos juízes, esta avaliação podem girar
em torno de aspectos diretamente relacionados ao adolescente ou à crítica que
se faz do trabalho realizado pela instituição executora da medida. Sobre o
adolescente considera-se: seu histórico anterior e durante a internação; a gravi-
dade do ato infracional cometido; a reiteração de atos infracionais e/ou des-
cumprimento de outras medidas socioeducativas; dúvidas quanto ao respaldo
que a família pode oferecer; sinais de ausência de “criticidade” e, em conse-
quência, uma suspeita de tratar-se um caso de desvio ou transtorno de perso-
nalidade, ou psicológico, que precise de outros encaminhamentos não aponta-
dos pela Equipe Técnica da UI. Quanto às críticas ao trabalho desenvolvido
das unidades de internação, na maior parte das vezes, referem-se a dúvidas
quanto: ao jovem ter tido condições de cumprir os objetivos propostos no PIA;
e, à sugestão de substituição de medida dever-se de fato à compreensão técnica
do adolescente estar apto a sair em liberdade ou dever-se a necessidades da UI
quanto ao número de internos e/ou dificuldades de lidar com o adolescente.
A avaliação com a ETJ ocorre, no geral, após algumas semanas da
determinação judicial e é realizada em uma entrevista com o adolescente e
uma entrevista com a família. As entrevistas são marcadas no mesmo dia e
acontecem separadamente, isto é, enquanto o jovem é entrevistado pelo psi-
cólogo a família passa com um assistente social para depois inverter. Alguns
dos profissionais costumam conversar entre uma e outra entrevista para com-
partilharem as percepções tanto do jovem quanto da família. O laudo é elabo-
rado a partir da leitura dos processos completos e das entrevistas realizadas.
Raramente é marcado um retorno ou segunda entrevista com o adolescente e
sua família.
O conteúdo do laudo psicológico produzido pela ETJ atende à soli-
citação dos juízes e costuma oferecer subsídios para embasar decisões tanto
de liberação quanto de manutenção da medida socioeducativa. Os aspectos
avaliados são os que geraram dúvidas aos operadores do Direito e, embora
haja em parte dos membros da equipe uma crítica ao uso que se faz da equi-
pe e do laudo, responde-se à demanda do judiciário de orientar a decisão.
que merecem sanção penal rigorosa? E diante do real que se apresenta dos
jovens em conflito com a lei, como nossa ação profissional nas instituições
que os atendem se articula a ele?
O envolvimento de adolescentes em atos infracionais provoca questi-
onamentos quanto ao tratamento e/ou sanção adequados que devem ser dados
ao jovem em conflito com a lei com vistas a que este não torne a infracionar.
Discussões polêmicas surgem a partir de críticas dirigidas ao modo como o
sistema de justiça juvenil aplica as medidas socioeducativas estipuladas pelo
ECA para adolescentes que transgridem as leis. Para alguns, o ECA é visto
como instrumento eficaz de proteção, garantia de direitos e responsabilização
de crianças e adolescentes. Em posição diametralmente oposta, encontram-se
aqueles que suspeitam ser instrumento legal inaplicável à sociedade brasileira,
pois, a criminalidade juvenil cresce porque os adolescentes não são punidos ou,
quando o são, as medidas socioeducativas são brandas se comparadas à gravi-
dade atos praticados entre eles: furto, roubo, tráfico de drogas, porte de arma e
em, número muito menor, latrocínio, homicídio, estupro. Juristas discutem a
delicada relação entre os traços pedagógicos e punitivos das medidas socioedu-
cativas que, sob equivocada interpretação, dão lugar à ideia de impunidade se
sobrepor à de inimputabilidade (Konzen, 2005; Saraiva, 2010). Esta inadvertida
leitura produz reivindicações de maior punição advindas da sociedade, e al-
guns operadores do Direito, assim como os profissionais que avaliam os ado-
lescentes, atendem ao “clamor por justiça” produzindo decisões que, além de
injustas, ganham traços perversos. Este é o caso da aplicação/manutenção de
internação sob a justificativa de proteger, isto é, o uso tutelar e discricionário
da legislação garantista característico do que Méndez (2011) denomina de
“neomenorismo”. Em meio a esta realidade de diversas e opostas compreen-
sões sobre a aplicação da lei com adolescentes autores de infrações, nota-se
que é reduzido o espaço de discussão e intervenção, em meios acadêmicos,
instâncias políticas, jurídicas e de execução, quanto ao que diz respeito a fato-
res de risco de envolvimento com o crime como base de estratégias de preven-
ção de reiteração. Isto é, pensar na realidade para a qual o adolescente egresso
do sistema socioeducativo retornará16.
Antes de passarmos à apresentação do que se considera como fator
de risco e quais os que se destacam na realidade destes jovens nos aproxima-
remos deles através de dados estatísticos que nos revelam a quem nos refe-
rimos quando falamos em adolescente em conflito com a lei atualmente.
16
Em relatórios do Programa Justiça ao Jovem do Conselho Nacional de Justiça, de visitas a
todas as unidades de internação e semiliberdade dos 26 Estados brasileiros, é mencionada
apenas um programa de acompanhamento de jovens egressos do sistema socioeducativo
no Rio Grande do Sul.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
17
Segundo dados do Censo 2010 do IBGE.
18
Segundo Silva e Gueresi (2003), de acordo com o primeiro mapeamento do sistema socio-
educativo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e o Departamento da
Criança e do Adolescente da Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça,
para cada grupo de 10.000 adolescentes existiam apenas três (2,88) jovens privados de li-
berdade. Após quase 10 anos esse número mais do que triplicou, enquanto ao número de
adolescentes, entre 12 e 17 anos, na população aumentou menos de 1 milhão.
326 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato
19
Disponível em: <www.funase.pe.gov.br/estatistica/2012>. Acesso em: abr. 2012.
20
A FUNASE não especifica quais as infrações que estão consideradas nesta categoria. De
acordo com a lista de infrações podem estar incluídas infrações de menor incidência, po-
rém a gravidade das mesmas pode variar entre Injúria, dirigir sem habilitação, porte ilegal
de arma, receptação, formação de quadrilha até atentado violento ao pudor ou estupro,
entre outras.
21
Disponível em: <http://www.fundacaocasa.sp.gov.br/images/midia/PesquisaInternos.pdf>.
Foi solicitado à F. CASA dados atualizados quanto ao número de adolescentes que cum-
prem medidas de privação e restrição de liberdade, além de estatísticas das infrações que
levaram à determinação das medidas mais rigorosas.
22
Roubo Qualificado corresponde ao uso de arma na infração.
23
A pesquisa da F. CASA inclui entre estas: extorsão, descumprimento de medida anterior-
mente aplicada, dano, ato obsceno, violação de domicílio, tráfico de drogas, ameaça, re-
ceptação, porte ou uso de drogas.
24
Nesta categoria se incluem: estupro, atentado violento ao pudor, sequestro ou cárcere
privado, latrocínio, infanticídio, homicídio doloso, homicídio culposo.
2525
Não é especificado na pesquisa a quais outras infrações se referem.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
Para que se entenda o que é uma investigação e uma análise do real des-
envolvidas pela Analítica do Sentido é necessário que se tenha presente,
primeiro, que metodologicamente a ela importa a explicitação da nature-
za, digamos assim, e do modo da interrogação que põe em andamento.
[...] O modo da interrogação é determinado exatamente por aquilo que
se quer saber e não pelos recursos técnico-operacionais que se possa pôr
em prática. O fundamento do método fenomenológico está dado, sobretu-
do, por aquilo que se busca compreender. (pp. 28-29, grifos do autor)
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
26
A infração cometida não será mencionada, pois a Juíza Corregedora que autorizou as
entrevistas proíbe a exposição desta informação ainda que a identidade do adolescente
seja preservada.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
1. O “planejamento” e a realidade
[Depois do período de internação]... Acho que não mudou muita coisa
não... porque a gente começa a fazer aqueles planejamentos... “Quero
sair... quero ir pra faculdade... quero trabalhar assim... assim... assado”
Mas chega aqui fora e é totalmente diferente... totalmente diferente!...
Lembra o que meu irmão falou que quando eu saísse ia ter serviço na loja
que ele está trabalhando... Já vai dar dois meses e até agora nada! Esses
dias... eu fui lá no Brás atrás de um bico... e também não deu certo... Aí
você começa a desanimar... Se você quiser mudar... lógico você muda e
tal... Eu mesmo penso assim: “Fazer o que eu fiz antes da internação
nunca mais! Não quero fazer isso mais nunca na minha vida”27... Mas...
tipo... roubar... essas coisas... eu tenho coragem de fazer...
Naquele momento [internado]... você planeja tudo pro futuro: “No meu
futuro quero isso... isso... isso!” Aí... às vezes... não é tudo do jeito que
tava planejando... Não tem como você acertar o dia de amanhã... Tipo
eu... fui lá procurar o emprego... Me disseram que o menino chegou antes
e que já estava em teste... e que era pra voltar na segunda-feira... Mas na
segunda-feira eu nem fui... Não tenho dinheiro pra gastar se locomoven-
do... Era pra ser ajudante geral...
Lá dentro eu estava planejando uma coisa e aqui fora é totalmente dife-
rente... Tem que procurar emprego... procurar serviço porque sem...
não dá... né? Depende de cada um e da situação também... e da situa-
ção também.
2. Os amigos, um passeio e uma escolha
Esses negócios de não saber mesmo o que pode acontecer... de nem sem-
pre ser do jeito que você planeja é verdade mesmo... Esses dias estava
falando com o Dido [outro amigo com quem morou junto]... Nós era mó
trabalhador... dava a maior ripa do caramba e hoje em dia não quer nem
saber de trampar... Porque nós não tinha vergonha nenhuma... porque
nós chegava nas pessoas para vender rosas... Tinha que trocar ideia pra
27
Apesar de a infração ter sido citada no depoimento, neste momento da opta-se pela omis-
são da mesma, pois na autorização das entrevistas concedida pela Juíza Corregedora do
DEIJ, proíbe-se a menção da mesma.
338 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato
poder vender, né?... Aí nós não tinha vergonha nenhuma... E hoje em dia
ele está jogado... tipo largadão... está vagabundão mesmo...
Esses dias eu fui com ele aqui no Lago dos Marrecos... que é um lugar
de passeio... Chamei ele: “Ô Dido!... Desce aqui!”... Ele mora no Car-
rão... mas de vez em quando ele fica aqui no morro... Tem uns colegas
dele e as tias dele por aqui... Também não pode ficar num lugar só... ele
também zoou um cara por lá... Ele e o irmão dele que está preso zoa-
ram um cara lá... Então está embassado... não pode ficar num lugar
fixo... Aí aquele dia que chamei... ele estava indo para o Lago dos Mar-
recos... Eu gosto dele pra caramba... aí eu falei: “Eu vou lá com
você”... Porque eu também tinha que ir lá pra Vila Maria para trocar
um tênis que tinha comprado para meu irmãozinho e que usou e saiu
todas as fitinhas... Aí eu fui lá trocar... Depois... quando estávamos indo
pro Lago dos Marrecos... trocando ideia... perguntei o que ia fazer lá e
ele me fala “Pá... vou ver se pego algum tênis de algum boy lá”... Ai eu
falei: “Ah! Então vamos voltar mano... Vou ficar me arrastando aí por
causa de um tênis?... Eu aqui... pá... tirando um lazer e você vai ficar
zoando?”... Aí eu peguei e falei: “Mano... vou sair fora!”.... Mas ver o
Dido assim fica meio embassado... Porque uma pessoa que você gosta
assim... querendo ou não você acaba perdendo... Tipo quando você está
no crime... você está sujeito a tudo né? A morrer... a ser preso... Tam-
bém não foi fácil falar que não ia com ele zoar... Não é tranquilo... Eu
sei que ele vai ficar meio chateado... Assim... vai falar: “O menino já
passou por isso e agora está dando pra trás”... Vai ficar meio chatea-
do... mas depois ele vai entender... Acho que ele pode entender depois...
Não vi mais depois disso...
3. A família e a morte da mãe
Esses dias teve um culto aqui em casa e a minha irmã estava falando e
contando do dia que tudo aconteceu28... Como ela é crente falou que na-
quele dia ela estava falando com Deus... “Por que com a minha mãe?...
Tenho fé que o Senhor pode levantar ela”... Estava conversando com
Deus... e nada Dele responder... Aí que o médico veio falar com ela: “Ela
morreu mesmo”... Acho que ela morreu na hora porque perdeu muito
sangue... Foi o meu padrasto... Ele tinha muito ciúmes dela... Quando
minha mãe estava conversando com alguém aí embaixo... Conversando!...
Ele já descia... de cara fechada... Aí ela se tocava e já concluía a conver-
sa e subia... Qualquer rapaz da rua que ele visse conversando com ela...
ele já ficava com cara fechada... Uma vez até eu trouxe um menino aqui
em casa... Trouxe não! Na verdade... ele me ligou... Já estava aqui no Li-
mão... aquele amigo meu que estava aqui em casa quando você veio...
Então... quando o Nego estava aqui também teve uns problema já com o
meu padrasto...
28
Denilson refere-se aqui ao assassinato da mãe pelo padrasto, enquanto ele estava traba-
lhando fora da cidade. Este acontecimento já havia sido relatado pelo telefone, mas quan-
do fui visitá-lo Denilson quis contar mais detalhes.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
No dia que ele matou minha mãe... ele chegou meio bêbado... Não sei
também se ele estava drogado... Sei lá... Os únicos que estavam em casa
eram as minhas duas irmãs pequenas e o meu irmãozinho André... Então
ele aproveitou a situação que não tinha ninguém em casa... Eu estava na-
quele serviço lá de ajudante de caminhoneiro... O meu irmão mais velho
estava trampando... Estava todo mundo trampando!... E ele entrou aqui e
perguntou para minha irmãzinha se minha mãe estava lá dentro... Ela
falou que estava... minha irmãzinha sem entender nada... Inocente... Ele
chegou ali dentro e começou a discutir com a minha mãe... Aí uma das
meninas tinha ido pegar uma cama aqui na vizinha... Minha mãe conti-
nuou fazendo almoço pra ele e ele discutindo... Ela nem dava aquela
atenção... deixava ele falando... porque bêbado... né?... Fala pra caram-
ba!... Ela não deve ter dado muita atenção pra ele falando... Aí... não
sei... acho que ele pegou a faca... também não sei como tudo aconteceu...
Aí... aqui... estava tudo sujo de sangue quando eu cheguei aqui!... Che-
guei à noite... e a minha irmã falou: “A mãe morreu!”... Eu não me con-
formei ainda!... Não queria saber de fato como é que foi e tal... Aí... de-
pois que fiquei sabendo que foi o Zeca29 que matou ela... Aí já subiu o
sangue... Perguntei: “Cadê ele?!”... Fiquei com vontade de ir atrás dele e
de matar ele mesmo! Fiquei com vontade!... Aí meu irmão falou: “Não!...
Não!... Ele já está preso!”... Aí eu fiquei na maior neurose... maior raiva
mano! Maior raiva mesmo!... Eu não quero ver esse maluco na minha
frente!... Tomara que eu não encontro ele!... Se ele tiver que morrer lá
dentro... que ele morra lá dentro... Porque se eu encontrar com ele... não
sei qual vai ser minha reação não!... Vou pra cima dele mesmo!... Aí...
acho que vai ser ou eu ou ele... Porque ele não tinha motivo pra ele fazer
isso aí... Ainda chegou nos policias que perguntaram: “Por que que você
fez isso?” e ele falou: “Pra dar um corretivo nela”... Não teve considera-
ção nenhuma!... Maior safadão!... Aproveitou que não tinha ninguém em
casa para fazer isso daí... Os meninos estavam trabalhando... Só os pe-
quenos... e eles não iam poder fazer nada... Mesmo assim... a minha ir-
mãzinha tinha ido pegar a cama lá... a outra foi fazer não sei o quê lá...
Estava só ele aqui dentro mesmo! Só meu irmãozinho... Eles chegaram e
ele falava assim: “A mãe... ó...”.... e balançava a cabeça... Ele fazia as-
sim porque quando a cachorrinha morreu ele aprendeu... então ele só
falava: “A mãe... ó...”. e balançava a cabeça dizendo que a mãe tinha
morrido... E falava: “Pai...”.... Falava que era o pai dele que tinha mata-
do ela... a minha mãe... Me falaram que tem que passar ele pela psicólo-
ga porque pode causar um problema mais pra frente... Aí tem que ver isso
daí... Ele entende tudo... ele só não consegue falar direito... mas ele é es-
perto... Entende tudo!... Então tem que ver isso daí porque foi forte pra
caramba o que ele viu... e ele entende! Esse negócio que ele não fala di-
reito... minha mãe já estava vendo... estava tudo marcado... Só que agora
não sei onde e quando é... Mas vou ver lá no Hospital Belmira se não en-
29
O padrasto.
340 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato
caminham para algum lugar... Porque foi o pai dele que fez isso... né?...
Só ele que é filho do Zeca...
Depois que meus irmãos mais velhos casarem... que vai ser no final do
ano eu que vou ficar com os meus irmãos mais novos... Tem o de 17 anos
que essa semana me disse que vai tirar a carteira de reservista, as duas
meninas mais novas e o Andrezinho... Aí vai ser do meu jeito... né
mano?... Eles respeitam mais os mais velhos... Não é fácil tomar conta de
tudo!... A situação não está fácil!... Está bem complicada!
4. Sobre trabalho e mais responsabilidade
Tinha um trampo lá... que estava tudo certo... mas só que eu tinha que ter
os documento tudo em dia... Tudo na mão já... Era só levar lá que estava
empregado... Mas eu tenho que correr atrás desses documentos... É!...
Porque para entrar em alguma firma tem que ter... título de eleitor... e re-
servista... Então!... Aí eu fui lá tirar o título... e me falaram que tem que
ter a reservista... porque eu já passei da idade... Aí eu fui ver a reservista
e falei que tinha problema físico... e eles falaram que vai ter que ter um
atestado médico... Tenho que ter o atestado para tirar a reservista e de-
pois já faz o título para poder arranjar outro emprego... Porque não es-
tou querendo voltar lá pro trampo de ajudante de caminhoneiro... Porque
lá é muito puxado... Agora só faz uma viagem por dia... porque pra fazer
duas você tem que carregar o caminhão hoje para ir lá amanhã!... Antes
compensava... quase todo dia você dava duas viagens... Agora fica só
uma viagem por dia... Fica se matando por pouco!... Cada viagem é 35
reais... fora um lanche que você faz... porque tem que tomar café e almo-
çar lá... Para almoçar é sete reais mais ou menos... Não compensa...
Eu ainda tenho que pagar o aluguel de 100 reais lá... porque a menina
que eu estava enrolado ficou grávida... Então eu estou pagando o alu-
guel dela... Não estava querendo ter filho... Mas aconteceu!... Então...
eu tô pagando lá... Já paguei dois meses adiantado e metade do tercei-
ro... porque aí... caso fizer algum bico aqui... já termino de pagar...
Tem que ver se faço algum bico... sei lá... Porque também tem essa
responsabilidade...
Vou ajudar no que eu puder... mas não vou casar com ela... Pra se juntar
tem que gostar bastante... Porque você vai dividir a sua vida com a outra
pessoa... Pra casar tem que gostar muito... E eu não gosto dela e tal... Ela
até insistiu... mas depois ficou por isso mesmo... Não deu certo não!...
Nós estamos para ir lá buscar um berço... que uma mulher deu pra ela...
Então... vamos buscar lá na Vila Yara... lá do outro lado... Tem que pegar
um carrinho pra ir lá buscar... É!! A situação não está fácil não!!...
4.2 E Agora?
Faltam palavras para escrever, para descrever, para comunicar o
ouvido, o visto, o sentido. Sente-se como se o percurso testemunhado fosse
um constante perder: perder os seres queridos, perder os amigos, perder a
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
nas falas destes jovens, mostrando-se, às vezes, uma oscilação entre posturas
de onipotência e de impotência frente a determinadas circunstâncias. A este
jogo próprio do ser adolescente e das demandas e necessidades de seu cír-
culo familiar soma-se, entre outras tantas determinações, o implacável apelo
consumista de uma sociedade em que tudo vale para ter, ainda que isto não
zele do ser.
“Ah! Então vamos voltar mano!... Vou ficar me arrastando aí
por causa de um tênis?...”. Denilson em seu relato reflete sobre o possível
destino de seu amigo que se arriscava ao cogitar assaltar por um par de
tênis, ou ao se manter com más companhias. Porém, suas próprias consi-
derações poderiam ser colocadas para ele. A relação de amizade que se
mantém, apesar do tempo transcorrido durante a internação, com colegas e
amigos que atualmente estão envolvidos direta, ou indiretamente, com o
crime apresentam-lhe um impasse. O que teria lhe possibilitado a liberda-
de de dizer ‘não’ ao convite a infracionar? A preocupação do jovem com o
amigo, assim como também, a firmeza da negativa, mesmo que acompa-
nhada do receio de aborrecê-lo, estariam ancorados na confiança em si
mesmo e ao que quer para a própria vida? De qualquer modo, a reflexão
de Denilson, acompanhada da preocupação com a reação do amigo, revela
o acidentado terreno em que circulam os ex-internos expostos a reencon-
tros amistosos ou não.
Visitando os bairros e favelas da periferia de São Paulo percebe-
se claramente como estes adolescentes podem ser, ao mesmo tempo, alvos
de agressões ou possíveis agressores, dado o envolvimento passado, ou
ainda vigente, com o mundo crime. No caso de Denilson e seu amigo, a
recusa de colaborar, e até mesmo de concordar, com o provável roubo
ou assalto para pegar um tênis transcorreu tranquilamente como apresenta
a narrativa. No entanto, não é dessa forma que ocorre geralmente. Não é
sempre bem vista a recusa a infracionar e, também, não é sempre que a
resposta será negativa. Logo no início dos trechos apresentados Denilson
admite a possibilidade de roubar diante das dificuldades que se apresen-
tam para conseguir um trabalho. Sua ação vai na direção de trabalhar,
ainda que ganhando muito pouco como ajudante de caminhoneiro. Porém,
sua situação familiar mudou bruscamente. Além de ter que ajudar a criar
seus irmãos mais novos hoje também responde por um filho. Sua negativa
a acompanhar o amigo em um assalto junto à consideração de voltar a
infracionar indicam movimentos de ida e vinda intrínsecos à situação
crítica e à ambiguidade humana. O percurso a seguir dispõe-se cheio de
obstáculos a transpor quando reapresentadas as circunstâncias em que
esses jovens se mobilizaram na luta pela consecução dos objetivos a que
se propõem.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
5 CONSIDERAÇÕES... FINAIS?
30
O Decreto 53.427 de 16 de setembro de 2008 cria a Unidade Experimental de Saúde,
subordinada à Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo para cumprir determinações do
Poder Judiciário de tratamento psiquiátrico em regime de contenção de jovens adultos
com diagnóstico de distúrbio de personalidade de alta periculosidade que forem interdita-
dos pelas Varas de Família e Sucessões. Isto é, após cumprirem prazo máximo de interna-
ção os jovens quando avaliados como portadores de personalidade antissocial são encami-
nhados para internação e tratamento sem prazo de soltura.
346 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato
6 REFERÊNCIAS
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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
A PRÁTICA DE PSICÓLOGAS EM
INSTITUIÇÕES DE ONCOLOGIA
PEDIÁTRICA DO RECIFE-PE
Sílvia Raquel Santos de Morais
Angela Nobre de Andrade
1
Interdisciplinar é um termo usado para se referir a um modo de trabalho onde a troca de
saberes entre as diferentes áreas de conhecimento torna-se um imperativo, na tentativa de
superar as possíveis limitações. Esse esforço em dialogar e compor novos saberes ultra-
passa a junção de disciplinas. Nessa forma de operar, os atores envolvidos priorizam a
troca efetiva e sistemática de conhecimentos em prol de um trabalho integrado, resolutivo
e eficaz.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
1 METODOLOGIA
2
Ontologia significa o estudo do que é, do que existe, ou seja, é a investigação sobre a
questão do Ser, enquanto Hermenêutica refere-se à possibilidade de interpreta-
ção/apropriação dos sentidos que emanam da questão do ser. Sendo assim, a ontologia
heideggeriana é considerada uma ontologia fundamental ou hermenêutica já que constitui
uma investigação sobre a questão do Ser, bem como a interpretação dos sentidos que
emanam da questão do ser.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
ções para os atores envolvidos. Sendo assim, nosso interesse não foi apenas
o de obter e interpretar dados, mas o de coconstruir conhecimentos mediante
um processo dialógico e um engajamento efetivo no contexto estudado. Com
isso, a perspectiva Fenomenológica heideggeriana foi eleita como possibili-
dade de elucidação da prática do psicólogo em OP.
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
3 RESULTADOS E DISCUSSÕES
3
Colheita de dados é um termo utilizado na metodologia fenomenológica em vez de coleta
de dados, pois se presume que a palavra coleta dá uma ideia de ir ao encontro de algo que
já existe ou está pronto. Já colheita nos remete ao sentido de construção coletiva e proces-
sual dos dados na qual o pesquisador recolhe as experiências dos participantes através de
uma relação dialógica.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
4
Humanização pode ser entendida aqui como “estratégia de interferência no processo de
produção de saúde, levando em conta que sujeitos sociais, quando mobilizados, são capa-
zes de modificar realidades, transformando-se a si próprios neste mesmo processo” (Mota
& Cols., 2006, p. 324).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
5
Ôntico designa os fenômenos perceptíveis sensorialmente, refere-se à instância dos fatos
que englobam objeto, coisas e entes dotados do ser da presença (todos os humanos).
6
Ontológico é uma expressão que se refere ao ser do humano.
358 Sílvia Raquel Santos de Morais e Angela Nobre de Andrade
O trabalho do psicólogo tem algo de intuitivo porque você lida com sen-
timento o tempo todo. É o que rola na relação! É a relação de confiança
que estabeleço. As pessoas vão falar dos medos mais profundos que têm
na vida. (...) às vezes é preciso construir e criar situações. E só a prática
te dá isso! Não tem livro que te dê isso! A prática e o dia a dia é que fa-
zem você descobrir isso! (Colaboradora 8-E)
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
vacidade dos envolvidos. Mesmo diante desse movimento, admitem que não
se trata de uma “prática distanciada” do outro, já que se transita em um “es-
paço propício” para afetar e ser afetado.
Com o tempo, a prática tende a se ancorar, cada vez mais, na pró-
pria experiência das psicólogas que a realizam. Isso foi visto como um modo
não só de superar as lacunas do processo formativo, mas também como des-
dobramentos de um exercício ético, que acolhe o outro como lhe chega, re-
conhecendo a impossibilidade de controle sobre os acontecimentos da OP.
O trabalho envolve ações que oscilam entre as dimensões ôntica e
ontológica, ultrapassando a execução de procedimentos técnicos, pois, mes-
mo quando não é possível alcançar a remissão de sintomas, ainda assim é
possível antecipar-se ao outro e não ser consumido pelo “ter que fazer algu-
ma coisa”, nem que essa coisa seja “eliminar a doença a qualquer custo”. As
colaboradoras nos ensinaram que estar-enfermo significa que ainda temos
possibilidades, mesmo que limitadas, mas temos! E isso é ponto-chave para a
prática do psicólogo, pois, a partir dessa compreensão, a angústia do “ter que
fazer alguma coisa” e a “sensação de impotência do não saber o que fazer”
redimensionam o saber-fazer do psicólogo, que passa a sintonizar e acolher
“o que ocorre no e pelo encontro com o outro e não simplesmente a planejar
ou tentar controlar previamente os acontecimentos do encontro com a alteri-
dade”. Nessa forma de prática, o psicólogo não se atém à doença ou ao dia-
gnóstico, mas às experiências do humano que adoece. Assim, a sua ética
(forma de estar com o outro) constitui o maior balizador de suas ações. En-
tão, passa a não se basear somente em um dado aporte teórico, pois esse
fundamento facilmente se ‘diluiu’ diante da fluidez do binômio morte-vida.
Sendo assim, a prática foi descrita como uma atitude ou posicionamento
ético perpassado por uma escuta atenta e sensível em prol da investigação e
produção de sentidos.
Em OP, talvez pela iminência constante de morte, pelo modo de
conceber os encontros humanos e, ainda, pela afetação que o sofrimento visí-
vel de crianças desperta, psicólogos e demais profissionais de saúde são cons-
tantemente convocados a romper com o individualismo, a desconstru-
ir/redimensionar o que aprenderam na formação acadêmica e a re-inventar
modos interventivos por meio da experimenta-ação cotidiana. Em outras pala-
vras, é colocando a própria experiência sob investigação que tais profissionais
podem revisar a própria prática e construir uma práxis calcada no pensamento,
que medita e não somente no pensamento, que calcula. Em outros termos,
seria uma prática que se aproxima da noção grega de técnica enquanto techné
(arte, invenção). Tanto que a neutralidade não foi uma prerrogativa valorizada
pelas colaboradoras desta pesquisa. Ressaltamos que a desconstrução desse
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
5 REFERÊNCIAS
A AÇÃO DO PSICÓLOGO E A
ESCUTA DOS CONFLITOS
NAS ORGANIZAÇÕES
Regina Coeli Araujo da Silva
Ana Lúcia Francisco
1 TRAJETO PERCORRIDO
1.1 Participantes
Participaram da pesquisa 07 psicólogos, todos atuando em regime
de vínculo empregatício nas empresas onde trabalham na área de Gestão de
Pessoas e que realizam práticas psicológicas voltadas para o conjunto de
trabalhadores de suas respectivas organizações, em Recife/PE. Considerou-
se a diversidade de características desses participantes, tais como, tempo de
empresa, cargo e natureza da organização (pública e privada). Do grupo de
profissionais, apenas uma profissional é vinculada, através de concurso, a um
órgão público. Outra é empregada de uma instituição de economia mista,
sem fins lucrativos, mas o contrato é regido pelas normas previstas na CLT.
Os outros cinco profissionais são funcionários de empresa da economia pri-
vada. Apenas um participante é de gênero masculino. Em termos de posição
na estrutura de cargos da empresa, quatro participantes estão em cargos de
gestão (gerente/encarregado), os outros ocupam função de analista de Recur-
sos Humanos ou Capital Humano. Os nomes fictícios atribuídos aos atores
sociais foram definidos a partir de características observadas durante as en-
trevistas. Pôde-se perceber que, apesar das adversidades vividas por estes
profissionais, suas falas eram permeadas por sentimentos e expressões mar-
cantes de “vida”, revelando posturas de coragem e de crença nas possibili-
dades de seu trabalho, inspirando a proposição de codinomes tais como:
semeadora da Reflexão, semeadora da emoção, semeadora do resultado,
entre outros.
1.2 Recursos
O recurso utilizado para a compreensão da experiência dos psicó-
logos-participantes da pesquisa foi uma entrevista semidirigida, tendo como
questão norteadora a experiência vivida como psicólogo(a) na organização.
A partir desta “provocação”, as narrativas eram aprofundadas através de
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
1.3 Procedimento
As entrevistas, previamente agendadas, foram todas realizadas nas
dependências das empresas onde os profissionais de psicologia trabalham,
em local apropriado e segundo a conveniência dos participantes. Ao se inda-
gar sobre a experiência do profissional de psicologia em algumas organiza-
ções (públicas e privadas), buscou-se problematizar a sua escuta clínica di-
ante dos conflitos e no acolhimento das apreensões e questionamentos a ele
direcionados. As entrevistas foram transcritas e literalizadas, procurando
obedecer, com o máximo de fidelidade, seus silêncios e pontuações.
2 CONSIDERAÇÕES
1
Expressão nossa.
382 Regina Coeli Araujo da Silva e Ana Lúcia Francisco
(...) eu acho que não tinha que haver esse distanciamento tão grande... o
psicólogo clínico precisava ter essa visão de organização, também. E o
psicólogo organizacional tinha que ter essa visão clínica. É fundamental.
Como você vai trabalhar em um ambiente organizacional se você não
está habilitado para trabalhar com o comportamento humano? Com a
abordagem humana, como um todo? É uma pena. Mas, enfim, Nós temos
que correr para suprir essas lacunas, não é? (Semeadora da Comunicação)
3 REFERÊNCIAS
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lis: Vozes.
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da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Ed. Atlas.
386 Regina Coeli Araujo da Silva e Ana Lúcia Francisco
1
Pesquisadora principal.
2
Orientadora da pesquisa.
3
Texto adaptado de Silva, E. F. G. da: Paternidade adotiva: um afeto con-sentido, 2011.
Trabalho de Conclusão de Curso de graduação em Psicologia, na Faculdade do Vale do
Ipojuca – FAVIP – Caruaru/PE.
388 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos
Desse modo, para intervir nesse cenário no qual, diante do monopólio mater-
no, cabe ao pai uma parcela “insignificante” no processo de criação dos fi-
lhos, há necessidade de mudanças das organizações sociais, políticas, eco-
nômicas e, o que considera indissociável, das mentalidades.
Lyra (2004), tendo a mesma constatação que Ramires (1997), res-
salta que em nossa sociedade as tarefas associadas ao cuidado infantil são
comumente atribuídas às mulheres, como uma espécie de “condição natural”
de ser feminino. Raras vezes os homens são questionados acerca de desejos,
direitos e compromissos relativos ao exercício da paternidade. Por este viés
estrutural são desqualificados os modos de comportamentos que não se en-
caixem a este princípio. Ou seja, ser homem e não ser “cabra macho”4 é in-
compreensível, “desviante”; assim como ser mulher e não demonstrar fragi-
lidade e doçura é, no mínimo, estranho. A norma absoluta implica na margi-
nalização e dominação das outras formas de viver as masculinidades. Assim,
homens e mulheres são alocados, ou, em alguns casos, se deixam colocar
impotentes e incapazes de resistir, interferir para a mudança. Para assegurar
tais argumentos, Connell (1995, p. 197) comenta: “Os homens gays se tor-
nam alvos sistemáticos do preconceito e da violência. Homens afeminados e
débeis são constantemente humilhados. Os homens negros, nos Estados Uni-
dos (como na África do Sul) sofrem, massivamente, de níveis mais altos de
violência letal do que os homens brancos”.
Modelos como esses são questionáveis – a masculinidade, assim
como a feminilidade, não são objetivas, mas construídas em uma teia de
relações sociais, políticas, econômicas e culturais e só podem ser compreen-
didas no espaço em que emergem, com os significados próprios de ser ho-
mem e mulher de cada sociedade (Louro, 2004).
O cenário atual reafirma e propaga a chamada “crise da masculini-
dade” (Medrado, 1997; Nolasco, 1993), cujo contraste entre o efetivamente
vivido e o ideologicamente representado gera as ambiguidades expressas nas
práticas e concepções do universo masculino na atualidade. A partir dessa
compreensão, entende-se que os estudos sobre masculinidades devem incor-
porar a perspectiva de gênero, analisando-os de um ponto de vista relacional
e não identitário. Com relação a isso, Olavarría, (2004, p. 87) comenta:
4
Termo regional ligado à cultura machista na qual o homem é visto como forte, provedor.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
5
Disponível em: <http://www.papai.org.br/> Acesso em: 14 nov. 2011.
392 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos
papel de ajudantes nos cuidados com a prole e voltam sua atenção, prioritari-
amente, para prover financeiramente a família. A análise das entrevistas rea-
lizadas aponta para o sentido de paternidades múltiplas, nas quais o modelo
tradicional e o novo coexistem e se alteram na experiência de um mesmo pai.
A adoção para esses pais é atravessada também por duas significa-
ções recorrentes na literatura desta temática: a primeira delas é a infertilidade
como motivação para adoção e a segunda é a busca por uma criança recém-
nascida com as características desejadas pela família (Weber, 2011). Com
relação à experiência da paternidade, os entrevistados a descreveram como
muito boa e de valor imensurável, afirmando que, para ambos, a chegada da
criança acarretou mudanças na rotina familiar, tendo em vista que a mesma
passou a ser prioridade, inclusive em relação às esposas. Interessante menci-
onar o olhar de um dos entrevistados, quando ele expressou as dificuldades
da adoção, colocando-a como uma barreira a ser atravessada, sabendo que
esta foi assumida após esgotar as possibilidades da paternidade inicialmente
desejada, a biológica (Andrade, Costa & Rossetti-Ferreira, 2006). Pensando
a adoção como forma incomum de ter filhos, Schettini (2008) comenta que a
adoção aparece, para muitas pessoas, como uma solução para uma “falha”
biológica ou psicológica.
Os arranjos familiares, presentes no mundo inteiro, esbarram na
ideia de pluriparentalidade, trazida por Uziel (2000). Os divórcios, os reca-
samentos e as adoções refletem a permeabilidade das fronteiras da família,
apontando para a noção de rede que amplia o espaço de circulação dos mem-
bros e incorpora os laços construídos com a convivência e a partir do desejo.
Essa perspectiva de pluralidade de laços “desafia a lógica da primazia do
biológico sobre o social” (Uziel, 2000, p. 7). Compactuar com isso é fechar-
se diante de configurações familiares cujo eixo de construção não seja o ge-
nético. A paternidade adotiva, por exemplo, pode ser identificada como uma
resistência a modelos tradicionais de paternidade.
Silva (2010), com um olhar psicanalítico, investigou significados e
motivações acerca da paternidade adotiva. Os sentidos revelados pelos en-
trevistados diante da paternidade adotiva foram: realização plena como pai;
vivência insubstituível; vocação; paternidade enquanto um desafio produtor
de um elevado grau de satisfação; descoberta e opção de afeto. Nas narrati-
vas destes pais foi percebido que a motivação para adoção está, intimamente,
relacionada à impossibilidade de terem filhos biológicos. Os mesmos tam-
bém ligam a adoção a um complemento, realização e felicidade. No intuito
de compreender a paternidade adotiva, este trabalho de pesquisa se propôs a
olhar a paternidade adotiva numa perspectiva fenomenológica existencial,
meandros pouco habitados, imprevisíveis e direcionados pelo afeto.
394 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos
somados a tantos outros, direcionam para uma adoção sem preparação e com
grandes chances de ser mal sucedida. Atualmente, apesar das mudanças de
enfoques e avanços, o processo jurídico para a adoção é considerado lento e
burocrático pela maioria dos adotantes. Tais dificuldades passam a ser, de
certa forma, um facilitador para que ocorram ilegalidades na esfera da ado-
ção. A realidade patenteia que há muito a ser feito para que os direitos alcan-
cem a vida real.
Em pesquisas realizadas por Weber (2004, 2011) com pais e filhos
adotivos, foi visto que preconceitos são causadores de mitos e fantasias ne-
gativas sobre a adoção no Brasil. Dentre os achados, a autora menciona o
preconceito direcionado à adoção de crianças maiores, aos traços de evidên-
cia física diferentes dos pretendentes, a dificuldade de falar acerca da origem
biográfica, o temor de serem discriminados socialmente e o medo de psico-
patologias hereditárias. Com relação a isso, Schettini (2007, p. 23) comenta:
“a escassez de estudos científicos no Brasil, principalmente quantitativos,
determinou que a adoção fosse tratada de forma preconceituosa, alimentando
fantasias e mitos”. Nesse sentido, a pesquisa realizada mostrou-se relevante
social e academicamente ao divulgar a cultura da adoção como uma modali-
dade de arranjo familiar, em detrimento a preconceitos e crendices que difi-
cultam e impedem a adoção.
É sabido que as culturas, em geral, são tatuadas pela diversidade;
olhando para essa realidade, Louro (2004, p. 51, aspas da autora) salienta:
“as sociedades da modernidade são caracterizadas pela diferença, elas são
atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem
uma variedade de diferentes posições de sujeito – isto é, de identidades –
para os indivíduos”. Mediante isso, faltaria a noção de alteridade entre os
indivíduos? É possível questionar também a noção de “normalidade”: afinal,
quem/o que seria normal e quem/o que seria diferente?
Torna-se pertinente perguntar sobre o “peso do sangue” na nossa so-
ciedade que ecoa e afeta os modos relacionais, em destaque, os familiares.
Diferentemente desse olhar, é possível compreender a família como um con-
ceito unívoco, mas numa perspectiva sociocultural, dinâmica, que abranja os
variados laços existentes, afirmando, assim, os modos de ser-família, de vin-
culação entre as pessoas. Santos (2005, p. 35) ao olhar fenomenologicamente
para essa realidade, afirma que é preciso atentar para “o que se mostra no fe-
nômeno de ser-na-convivencialidade-entre (no ser-na-relação-familiar)”. Os
laços biológicos como “unicamente verdadeiros” foram pauta dos achados de
Vieira (2004), que ao estudar a adoção em uma população de classe média
percebeu a prevalência, na adoção, do desejo de imitar a biologia. De acordo
com a autora os adotantes desejam crianças menores e com características
398 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos
físicas semelhantes às suas. A mesma comenta que essa preferência está atre-
lada a uma tentativa de reproduzir fielmente a experiência que teriam se hou-
vessem concebido o filho. Acerca disso afirma de maneira contundente: “entre
aqueles em que esses temores acham-se mais exacerbados, imitar a biologia é
um artifício que os ajuda a conter as próprias inseguranças” (Vieira, 2004, p.
117). Em contraposição a essa norma, autores como Weber (2011) e Paiva
(2004) colocam a adoção afetiva em sobreposição à ligação biológica, de
modo que é por meio da afetividade que é possível ser família.
Para lidar com questões como essas, a nova Lei de Adoção (Brasil,
2009) prevê uma preparação prévia dos futuros pais e o acompanhamento
familiar pós-acolhimento da criança ou adolescente, com o desígnio de asse-
gurar o direito à convivência familiar. Acerca disso, é possível assinalar que
o jurídico não dá conta da singularidade de cada família, de cada casal, pois
há sempre um vir-a-ser, um modo de ser que requer uma escuta diferenciada.
Sendo a Psicologia estudiosa do terreno da singularidade humana, esta é
convidada a inclinar-se para essa demanda e a assistir essa clientela em seus
desejos, angústias, limitações e estranhezas, acolhê-la e acompanhá-la nos
seus modos possíveis de serem mães e pais adotivos e vivenciarem a adoção.
gia senão pela interdependência relativa, transitando pelo ‘entre’, isto é, re-
metendo-se tanto à ordem dos fenômenos vitais e de suas leis vinculadas a
perspectivas cientificistas, quanto à ordem dos fenômenos expressivos e dos
seus significados vinculados a perspectivas compreensivas?”.
Além disso, o acontecer da singularidade humana, em seus modos
infindáveis de ser, “exige do profissional de psicologia abertura ao inusitado,
à reinvenção da sua forma de trabalhar, à revisitação da teoria psicológica e
da concepção de subjetividade que sustenta sua proposta de intervenção clí-
nica” (Barreto, 2006, p. 197). Este pensamento condiz com o que Critelli
(2004) afirma a respeito da não pertença do ser humano a coisa alguma, ou a
ideologias de qualquer ordem. Sabendo que a determinação em algo fixo não
faz sentido para o modo fluido do humano, é que a Psicologia Fenomenoló-
gica Existencial propõe afastar-se de uma posição de domínio do saber e da
garantia de um asseguramento proposta pela representação e o conceito.
É oportuno salientar que o lugar da clínica é o do cuidado e que cabe
ao/a psicólogo/a cuidar do ser e acompanhá-lo no desvelar de suas possibilida-
des de cuidar de si. A partir dessa visão, fala-se num caráter libertador da Psi-
cologia, quando esta mostra-se como abertura para que o cliente experiencie
novos modos de ser no mundo com os outros. É no, e por meio do entrelaça-
mento entre os modos de ser-com do cliente e do psicólogo que se dá o en-
contro. Se constituindo, portanto, enquanto movimento dialético de escu-
tar/dizer de si e do outro. Tais assertivas denotam o caráter de mutualidade da
ação clínica e afirmam que o sendo-aí é que torna possível a produção de sen-
tido (Morato, 1999). É interessante fazer menção que o acontecer clínico se faz
de modo aberto com o mundo e com os outros, se reportando assim à nossa
condição existencial de “ser-com”. Nessa direção, está implícita a abertura à
via afetiva, no sentido de ser tocado, marcado pela experiência.
A clínica também possibilita um contato com a nossa própria estra-
nheza. Experiência não confortável e angustiante, é imprescindível para a
coexistência, para lidar e acolher o diferente, com a alteridade em nós e a do
outro. Sobre isso, é possível perceber a dificuldade do humano em lidar com
as incompletudes próprias, levando, não raras vezes, ao desconforto e desa-
lojamento com o diferente do outro, ao passo que este reflete o estranho ou
até mesmo o familiar em nós. Diante da “falência” de referenciais pautados
predominantemente no “eu”, e também da presença do estranho; como pen-
sar a ação clínica na atualidade, quais atravessamentos são necessários fazer
para se desvincular dos moldes metafísicos das ciências naturais e poder
acolher o outro/alteridade?
Pensar em Clínica é trazer à luz uma ação interventiva (Lévy,
2001). O que a define, conforme Figueiredo (1996, p. 40) é a sua ética gera-
400 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos
6
Davi e Rui são nomes fictícios visando a preservação da identificação dos sujei-
tos/narradores.
402 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos
Quem os vê ao longe, caminhando lado a lado,/ Crê, por tal estado que se
trata de um casal./ Ela, moça fina, mais mulher do que menina;/ Ele, já
grisalho, de agasalho, coisa e tal./ E aos passos lentos, desatentos as pes-
soas,/ Como se nesse tempo fosse feito só pra os dois./ Ricos os momen-
tos, relembrando coisas boas./ E o que vem depois, depois.../ Eu, que já
os conheço, sei a história por outro lado/Ela é sua filha; ele, o pai que
adotou./ Lá nos tempos idos, que chamamos de passado,/ Ela, abandona-
da, teve um lar que abraçou./ E pra quem não tinha, nem futuro, nem pre-
sente,/ Deu-se, de repente, nova chance de viver./ Ele e sua esposa, mes-
mo sacrificialmente,/ Deram pra menina teto e pão, razão de ser,/ Como
o Deus, o Pai, a nós tem feito cada dia./ Nós, que desgarrados, mal sa-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
Davi – Quando a minha esposa voltou das férias eu fiquei mais com eles
durante o dia! Por eu trabalhar com representação... tenho uma flexibili-
dade grande no horário... então era eu quem os pegava na escola... dava
banho... botava para jantar!
Davi – [...] toda madrugada eu acordo e faço o mesmo que papai fazia...
ele ia no nosso quarto ver como estavam! Isso é legal porque eu os cu-
bro... para colocar o ventilador de um jeito diferente também!
Rui – Ele está ligado mesmo!... gosta de estar comigo! Minha família
percebe isso... minhas irmãs que são da área de saúde percebem essa in-
teratividade... esse calor humano entre eu e ele!
Ellen – É afeto?
Rui – Afeto e grande!!! Muito... muito... muito!
O afeto, tanto para Rui quanto para Davi possui um caráter trans-
formador na relação com seus filhos, permitindo que estes elaborem experi-
ências de abandono outrora vivenciadas, e possam estabelecer vínculos de
parentesco e modos outros de ser-no-mundo. De maneira intensa declararam:
Rui – Onde tem amor o medo desaparece! E eu acho que não há ser hu-
mano nenhum... por mais indisciplinado... que não se dobre diante do
amor verdadeiro!!! Não é esse amor cobrança... esse amor querendo mo-
dificar as pessoas... é o amor aceitando o indivíduo como ele é!
Davi – Ela disse7 “Eu sou a princesa e o senhor é o príncipe de diaman-
tes!” Então sair do bruxo para o príncipe de diamante foi uma conquista!
Uma conquista que não foi muito minha... mas muito mais dela!
Davi – Ser pai de dois filhos gêmeos... um casal... então fechou assim! Há
três meses foi o batizado deles na Igreja Anglicana que eu faço parte... eu
fiz a frase do cartão que dizia assim... Um dia pedimos a Deus dois fi-
lhos... mas ele nos deu dois anjos!.
Com esses depoimentos, podemos ver que estes pais rompem com
a indissolubilidade dos laços biológicos e apresentam paternidades derivadas
de relações de escolhas e proximidade, fato que contribui, significativamen-
te, para uma nova cultura de adoção, fundamentada na afetividade (Schettini,
Amazonas & Dias, 2006).
No horizonte de problematização da pesquisa, a questão do precon-
ceito invadiu, com seus tentáculos, a adoção, o que se apresenta a seguir:
7
Referindo-se a sua filha.
406 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos
Rui – Todos ficaram felizes quando o registro saiu! Minha mãe mesmo
queria ver... ela disse... ‘meu nome está lá no registro?’ Eu disse que
‘sim... está lá como avó!’ ‘É mesmo é?’ Eu disse... ‘ele agora é neto ofi-
cial!
Rui – Outra coisa que percebi é que ele... junto comigo... tem modificado
as atitudes de muitas pessoas ao meu redor com relação à adoção... a
cuidar dos filhos biológicos!
Ellen – Você se considera... junto com Caio... um exemplo de relação pa-
rental?
Rui – Muito! E ele é um exemplo!
Ellen – Exemplo de quê?
8
Nome fictício. Caio é o filho de Rui.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
Davi – Hoje Pedro9 já fala tudo... ele veio dizer que entende porque bri-
gamos com eles... que é no intuito de educar! Embora... nessa noite ele
disse que não queria voltar mais para creche! Ouvindo isso eu disse ‘fi-
lho... vocês não vão voltar mais para a creche! Você lembra daquele do-
cumento que o juiz fez?’ É incrível esse fantasma!... eu sabia que isso ia
acompanhá-lo por um tempo... mas eu pensei que já não havia!
9
Nome fictício. Pedro é filho de Davi.
10
Nome fictício. Ana é filha de Davi.
408 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos
Rui – Eu acho que talvez eu seja pai e mãe! Essa experiência de pai sol-
teiro significa isso... que você consegue se desdobrar... ser pai e mãe ao
mesmo tempo! O sentimento é dobrado!
Rui – Um conselho que eu dou na sua pesquisa... é que todos possam ou-
vir ou ler bem claro... ser pãe é maravilhoso! Porque você consegue vis-
lumbrar um mundo de sentimentos que quando você é só pai não conse-
gue ver!
7 REFERÊNCIAS
Parte 3
como falta nem como um vazio irrecuperável, mas sim como abertura de
possibilidades e comunicação, uma vez que, pelo contato entre as institui-
ções, seria possível a criação de outros modos de ação para contemplar um
melhor atendimento à comunidade. Os fios que atam a rede seriam as interli-
gações entre as instituições parceiras e, consequentemente, o caminho que
seus atores sociais e clientes poderiam percorrer sempre que se fizesse ne-
cessário.
1
Já fizeram ou ainda fazem parte do grupo da Rede, além dos autores deste capítulo: Alan
Rizério de Oliveira, Ana Módena, Anne Kling, Barbara Melo, Clélia Souza, Daniel Schu-
nemann, Gustavo Giolo Valentim, Jacqueline Ferreira dos Santos, Juliana Henriques, Juli-
ano Watanabe, Laura Baruffaldi, Livia Gaetani, Rodrigo Dicezare (todos do IPUSP). De
outras unidades: Gabrielle Dias (EACH/USP), Marina Di Napoli Pastore (FOFITO/USP),
Mirella dos Santos (FOFITO/USP), Nicole Cordone (FOFITO/USP) e Regis Halves
(EE/USP).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
3 COMO FAZEMOS...
4 A CARTOGRAFIA: CONCEITO
Acho uma iniciativa muito boa e acho que é algo necessário que vem co-
brir uma lacuna. E espero poder ler depois o trabalho, e que seja feito um
guia para que os laboratórios tenham essa informação de uma forma fa-
cilitada, clara, uma cartografia, um mapeamento. E as informações para
que então, por exemplo, você está aqui, pega um livrinho e vê tudo. É
aparentemente simples mas não é.
7 EN-CAMINHANDO CLIENTES
8 ENCAMINHAMENTOS FUTUROS
2
O site encontra-se em desenvolvimento (www.tecendoumarede.wordpress.com).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
que se deixa afetar pelo estranho, por aquilo que não é da ordem do re-
presentacional ou de seus códigos familiares, e ao acolher a alteridade
e a produção de diferença emergente, vive um processo transformador e
instituinte de novos modos de estar no mundo. Transmuta-se do lugar
da explicação sobre para o lugar do aprender com ou aprender entre.
(Andrade & Morato, 2004, p. 347)
cuidar (de si mesmo, do mundo, das coisas e dos outros homens) que dife-
renciam o Dasein dos demais entes.
Em tal contexto, Critelli (2006) ainda indica que o ser é entregue
aos cuidados do homem em três dimensões. A primeira é o cuidado do ser
como propriedade em que o homem responde pelo cuidado, desvelando,
através de um trabalho, as possibilidades de acontecimento do ser. A segun-
da dimensão é o ser como facticidade, em que não há a possibilidade de re-
cusar o cuidar de ser. E a terceira dimensão é o ser como horizonte, como
uma possibilidade lançada, ou seja, como projeção de horizonte no tempo.
Tais modos se estruturam sob tríplice aspecto, ou seja, diz “do que se vai
cuidar do que não se vai cuidar; de como se vai cuidar e/ou não cuidar; de
como se vai cuidar do cuidar mesmo” (p. 133). Nesse sentido, essa escolha
diz dos modos de cuidar, que estão envolvidas na trama de mundo, no con-
texto de significação que desvela traços culturais. Já o modo de cuidar da-
quilo que se tomou sob cuidados revela os estados de ânimo, presentes no
âmbito do sentido, que desvelam modos ontológicos do cuidar: própria ou
impropriamente.
O modo de cuidar impróprio, impessoal ou inautêntico consiste em
um não apropriar-se de seus próprios cuidados e viver de acordo com um
determinado padrão estabelecido sem questioná-lo. Já o modo de cuidar pro-
priamente, pessoal ou autêntico, é um exercício de aprender a ser quem se
pode ser; dar conta das escolhas que se pode fazer sob nosso cuidado, com-
preendendo os diversos atravessamentos que a existência possui. Assim, o
modo próprio diz da possibilidade que nos pertence de ser e que ninguém
pode exercer por nós, revelando e constituindo aos poucos nossa existência.
É nesse horizonte de cuidado que esse trabalho busca compreender
a dimensão ético-política da prática do psicólogo na Saúde Pública, especifi-
camente nas Policlínicas. Busca desvelar a trama de mundo e de significa-
ções que se estabelecem na clínica nesse contexto, pois o cuidado compreen-
dido enquanto uma dimensão fundante do homem é também visto “do ponto
de vista ôntico, no âmbito do trabalhar, tomando-se trabalhar no sentido mais
amplo” (Heidegger, 2009a, p. 251).
Diante desse contexto, um cuidado que desvela a dimensão ético-
política da profissão indica uma postura profissional norteada pela experiên-
cia, voltada, assim, para uma prática que contemple os sofrimentos que
emergem do serviço em que estão inseridos, considerando as especificidades
desveladas no encontro com o outro. Outra postura possível, diferente dessa,
é encontrada no modelo clínico tradicional de atuação que tem sido hegemô-
nico no profissional recém-formado, modelo esse sustentado nos consultóri-
os particulares e norteado por técnicas, indicando, assim, uma atuação volta-
450 Ana Paula Noriko Cimino e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto
2 MATERIAL E MÉTODOS
1
Provocadora como pro-vocar, no sentido de conduzir ao dizer.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
ções. Tal postura, apesar de ser acompanhada por uma fala que indica a ne-
cessidade de superar preconceitos, desvelou uma atitude que indica uma
descontextualização da população atendida e do trabalho exercido junto ao
serviço público, ao restringir o número de atendimentos e perceber o homem
fora da complexidade do contexto no qual ele vive e encaminha sentido.
[...] completei um ano aqui [...] a experiência que eu tenho aqui é muito
boa [...] aqui o modelo funciona muito bem [...] me formei há trinta anos
atrás... e há trinta anos seria uma heresia falar em atendimento sem um
ônus monetário para o paciente [...] e eu fui vendo que tinha outras for-
mas de pensar... outras formas de encarar o mundo... a prática [...]
quando eles (os clientes) procuram... têm um envolvimento... mas a gente
percebe que eles não tem uma compreensão da importância que tem esse
tratamento... do processo... fica uma coisa assim meio solta... (Psi D)
[...] eu iniciei aqui na policlínica em 1999 [...] eu tento fazer... uma es-
cuta analítica... muito embora a gente fuja... muitas vezes da prática por-
que [...] as características da população que a gente recebe aqui [...] de-
mandam algumas formas de administrar as questões que fogem do que é
tecnicamente repassado pra gente na universidade [...] se eu fosse aten-
der... por exemplo... ficando apenas calada e escutando... muito embora
seja a pratica da questão da psicoterapia de base analítica... elas não iri-
am entender... (Psi E)
Veja só no serviço público precisamos ser bem [...] eclético... temos que
trabalhar com os recursos que a gente pode [...] são atendimentos indivi-
duais das mais diversas situações... que é rico para mim... como profissi-
onal... pois... de tudo... agente vê... e de tudo a gente recebe... e para isso
temos que se adequar um pouco [...] lógico que tenho uma linha que me
norteia mas tenho que ser bem flexível quanto a isso... (Psi B)
cia... consciência de que precisa [...] inclusive também dentro dos aten-
dimentos que são de rotina... há exigência... às vezes... até uma pressão...
pra que seja aplicada só a psicoterapia breve... que dura em torno de três
meses... (Psi E)
[...] tem pessoas que fazem o processo... eu acho até mais que longo... no
sentido do que se espera de um serviço público [...] porque agente procu-
ra trabalhar mais com a psicoterapia breve... mais focal. (Psi B)
[...] eu trabalho com psicoterapia e alguns profissionais limitam o tempo
de atendimento... a duração do processo... eu não tenho feito isso até
porque a gente recebe muitos casos graves [...] não limito e até hoje nun-
ca me foi cobrado... que eu tivesse alguma rotatividade... eu sei que al-
guns profissionais trabalham assim... mas não é o meu caso... (Psi C)
[...] você tem o que é instituído... pelo sistema e pela formação profissio-
nal... no sentido de abordar o outro e favorecê-lo numa experiência que
possa viabilizar aberturas... e que sabemos ser possível porque a teoria
da clínica afirma que é possível... mas... isso não impede de surgir nos
atendimentos uma interrogação... o que seria ajuda?... o que seria cuida-
do?... [o que seria] uma atenção para o usuário que existe em contextos...
eu diria... estranhos aos meus?... aí ficamos nessa situação... me faltam
as palavras para comunicar a minha experiência clínica no ambulatório
público de saúde... (Psi A)
Outro caso também que aconteceu que a gente... muitas vezes... deixa de
fazer o papel de psicólogo... e pela própria necessidade da desestrutura-
ção do serviço... a gente fazer outros papéis [...] E... vamos trabalhar o
que é que uma mulher agredida... não ela especificamente... mas quais os
canais que existem... de proteção para as mulheres que sofrem agressão...
e isso era um papel que não era meu... porque eu não tinha o papel in-
formativo... mas nessa ausência... nessa pobreza... de pessoas que possam
esclarecer... orientar... conscientizar [...] E isso... é um trabalho que não
está previsto em modelo nenhum da municipal de saúde... e que precisava
que houvesse uma estruturação... pra que esses problemas pudessem ser
canalizados pros profissionais que efetivamente pudessem dar condução
ao problema... (Psi E)
[...] mas a gente percebe que eles não tem uma compreensão da im-
portância que tem esse tratamento... do processo... fica uma coisa assim
meio solta... e não cabe a gente ficar explicando... a gente explica mais
faz parte de toda uma cultura [...] aí aparece muitos pacientes nessa
faixa de idade (crianças) que quando a gente vai conversar qual é o
problema?... os pais que não conseguem dar limites aí trazem pra cá...
e dizem mesmo... por que não me obedece e ‘não-sei-mais-o-que’ e eu
quero que a senhora dê um jeito... aí fica aquela coisa e aí eu como sou
muito objetiva eu digo esse menino não está precisando de uma psicó-
loga não... psicóloga não é para colocar limites... não é para educar...
aí corto logo... (Psi D)
[...] falar da experiência clínica não é fácil... não tenho uma idéia clara do
que faço na minha prática [...] minha experiência nesta Policlínica... é...
favorecer uma dialogia... não sei bem os passos a seguir... atender lá é pro-
cessual mesmo... sabe?... É um fazer que se revela no momento da intera-
ção... um processo... você não tem uma forma pré-configurada para fazer...
a demanda do usuário completa uma outra dimensão... delineando o passo
seguinte... o usuário solicita uma resposta que muitas vezes não cabe em
nossos modelos... não atendo José da mesma forma que eu atendo Paulo...
mesmo orientada em nortes de atenção que a clínica estabelece... o setting
terapêutico auxilia... na Saúde Pública há um setting específico... (Psi A)
A sala de psicologia é uma sala muito inóspita [...] eu atendo alguns dias
na sala de psicologia mas outros não é possível porque existem pessoas
que estão trabalhando há anos nesse local [...] então é um trabalho que
liberta do setting ideal... então eu não faço da sala... um impeditivo para
eu desenvolver meu trabalho... eu trabalho muito mais no diálogo [...] eu
acho que tem pessoas que fazem disso como um ‘Cavalo de Troia’... mas
isso não me impede de trabalhar não... e eu nunca recebi nenhuma queixa
nesse sentido... eu acho que as pessoas estão precisando tanto de um es-
paço... de uma escuta... (Psi C)
[...] um outro caso que é... [por exemplo] eu tenho uma paciente de 83
anos que chegou aqui encaminhada pelo psiquiatra [...] tinha perdido o
marido [...] e neta aproveitando da fragilidade e ingenuidade dela [...]
deixou ela sem dinheiro e endividada... e quando ela soube foi um choque
terrível pra ela [...] quando ela chegou aqui que eu olhei eu pensei... o
que é que eu vou fazer com uma pessoa de 79 anos com um quadro des-
ses... aí o que minhas terioas diziam não cabia para um caso desse... aí
eu procurei uma literatura atualizada... aí eu vi... grupos com pessoa da
terceira idade são ótimos... pois leva eles para passear e se divertir mas
não era o caso... não tem como... e resultado eu comecei a tratar dessa
senhora e ela se recuperou totalmente e em pouco tempo até... e tudo que
eu estou vivenciando hoje é contrário... vai contra mesmo a minha forma-
ção acadêmica... e formação acadêmica não é aquela da faculdade mas
toda uma teoria mesmo que eu aprendi... que fala sobre isso... então...
digo que é totalmente inadequada até... (risos). (Psi D)
[...] vez por outra... a gente... às vezes... aqui... precisa quebrar o que a
técnica preconiza na faculdade... aquele modelo todo bonitinho... tudo
bem linear que a gente aprende. Às vezes a gente tem que dar um corte
sem ter a certeza do que está fazendo certo... mas... às vezes... guiada por
uma questão mais... talvez não técnica... mas por uma questão cidadã... E
de repente a gente deixa um pouco a técnica de lado e torna-se pessoa.
Eu acho que isso não pode ser aplicado numa rotina... não. Mas em al-
guns momentos a gente pode... abrir mão... um pouco... da técnica pura e
simples... até porque as técnicas também tem as suas falhas... (Psi E)
A lista de espera eu não tenho controle [...] por exemplo... a semana pas-
sada eu tinha duas vagas foram marcadas duas pessoas e não vieram ne-
nhuma das duas... e as vezes acontece da gente marcar 4 ou 5 acolhi-
mentos... a primeira entrevista... e não aparece ninguém... aí é onde eu
coloco... essas pessoas que vem pra cá não sabem... a gente sabe de todas
as dificuldades... mas não sabem direito o que é... muitos que vem pra cá
não sabem o que significa vir semanalmente... (Psi D)
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
ção sobre vida em sofrimento. Instigam roda de conversa que põem em elas-
ticidade a tensão entre o senso comum das culturas populares e a do conhe-
cimento científico, destinados à promoção da saúde.
O Plantão Psicológico como procedimento de atenção em saúde
vem auxiliando o usuário a compreender experiências de sofrimento, real-
çando seu protagonismo frente à promoção de cuidado. As narrativas de
sofrimento comunicadas nesses atendimentos apresentam nexos significati-
vos da trama constituinte da pessoa, de situações vividas por ela, sinalizando
vestígios da experiência coletiva de seu grupo e de sua comunidade, norte-
ando, dessa forma, sentidos para uma prática psicológica contextualizada em
saúde.
Sabe-se que a doença, como experiência de mal-estar, constitui-se
situação-problema que altera atitudes exercidas no cotidiano da lida diária.
Como lembra Rabelo (1999), demanda medidas normalizadoras, viabilizado-
ras de recursos que transformam vivências geradoras de rupturas em esque-
mas simbólicos, interpretativos e de reintegração ao viver cotidiano. Como
experiência, a doença põe em evidência o ser-doente-em-situação. Nesse
sentido, os modelos culturais ajudam a reorganizar o enfermo no enfrenta-
mento a ela. É preciso estar atento as instâncias socioculturais presentes no
sentido atribuído ao fenômeno doença, pelas quais o sujeito, na sua vivência
de aflição, define, legitima, comunica e negocia significados para o sofri-
mento, integrando-se a outros.
Na situação de enfermidade, é imprescindível possibilitar a comu-
nicação sobre o que se vive. Isso permite a elaboração de mecanismos cons-
truídos pelo doente para lidar com a aflição gerada pela experiência com
enfermidade. Dessa feita é importante ter disponibilidade para escutar metá-
foras sobre o infortúnio vivido. Nos procedimentos viabilizados, o usuário
pode transformar a experiência incoativa de sentir-se mal em algo que pode
ser comunicado, compartilhado e administrado na interação com outros
como realça Rabelo (1999).
Em campos sanitários, nos caminhos percorridos junto ao usuário,
os procedimentos instituídos como um saber fazer não vêm se mostrando, de
maneira esperada, como atenção adequada ao que se apresenta como deman-
da. Sabe-se que é no encontro com o usuário/outro, em proximidade, que se
elabora sentido para uma práxis em espaços de saúde. A atitude clínica via-
bilizadora de uma atenção psicológica não se configura como algo que pode
ser apreendido, assimilado como referência em modelos de atuação para um
saber fazer. Como diz Morato (2008), a prática psicológica é antes de tudo,
originária, decorrente da experiência vivida no contato, sinalizando abertura
para articulação de sentidos sobre atenção nesse contexto.
476 Ana Maria de Santana
dado que o contexto institucional pede um olhar atento, para que se desconstrua
o habitual e o tradicional que não contempla a experiência da contemporanei-
dade. Promove uma des-construção desse tradicional, abrindo brechas para a
invenção de práticas pertinentes à demanda e à necessidade, tanto dos profissi-
onais que nelas atuam, quanto à clientela que a ele recorre. Um fazer que exija
aberturas para a criatividade e a flexibilidade nos procedimentos, que possa
garantir uma relação funcional da Psicologia Clínica com a sociedade, especi-
almente com aqueles de camadas menos favorecidas que representam a con-
juntura atual em que vive grande parte da população brasileira, usuária do SUS.
Nesse sentido, realça-se que o atendimento psicológico não vem
mais se configurando como ajuda, termo que pode remeter a atitudes assis-
tencialistas inclusas nas ações sanitárias, mas sim como uma atenção em
zelo, próximo do sentido de um cuidar advindo das trocas realizadas por
meio da comunicação das experiências em interlocução junto a outro. Inseri-
do numa escuta, o usuário se esforça para dar sentido às demandas não so-
mente de cunho pessoal, mas aquelas associadas às experiências de seu cole-
tivo. Nesse sentido, zelo diz respeito à acepção clínica de exercer o cuidado
que lhe é próprio, viabilizando ressignificação nas vivências; elaboração de
sentidos; aberturas de outros; permitindo avaliar recursos pessoais e da co-
munidade, disponíveis para o enfrentamento de situações-problema.
No campo da saúde pública, há um realce significativo para as prá-
ticas que viabilizam a inserção do usuário na sua comunidade. Parece que a
compreensão de cidadão-no-mundo vem embasando ações clínicas que nor-
teiam, atualmente, procedimentos em saúde mental. Inspirados, talvez, pelo
saber prático dos movimentos reformistas sanitários. Esse olhar demanda
abertura para um fazer numa dimensão transdisciplinar, em que é preciso
transpor abordagens teóricas compreensivas e de atuação para responder
fenômenos clínicos revelados nesse contexto. Sabe-se que as demandas por
cuidado, comunicadas pelo usuário, não podem vir a serem compreendidas
por meio de um único viés teórico-prático. Entende-se que é seccioná-lo em
dimensões que levam a uma percepção parcializada de sua vivência como
usuário/cidadão. Nesse caminho é possível pensar que no cotidiano das prá-
ticas recursos socioculturais revelados nas experiências do usuário, assim
como aqueles que estão em sua comunidade, podem ser acionados como vias
importantes para a promoção de seu bem estar.
Nesse sentido, saúde é compreendida como processo de vida que
ocorre em situação exigindo integração e comunicação das experiências num
mundo interativo com outros. Decorre da existência, o cotidiano que a invia-
biliza deve ser evidenciado, repensado nas intervenções. Daí, a importância
de inserir, nas ações clínicas psicológicas em rede pública, conhecimentos
contextualizados sobre a população assistida. Isso requer alargamento na
482 Ana Maria de Santana
5 REFERÊNCIAS
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484 Ana Maria de Santana
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
COMPREENDENDO A PRÁTICA DA
ATENÇAO PSICOSSOCIAL EM SAÚDE
MENTAL NO PROCESSO DE
DESINSTITUCIONALIZAÇÃO
Luciana Oliveira Lopes
Nilson Gomes Vieira Filho
1 INTRODUÇÃO
finais de semana, e enfim, a gente tá muito longe disso. Acho que o CAPS
tem que funcionar integralmente, para depois pensar em mudar alguma
coisa. (TNS 1)
Eu confesso que ainda não realizei o meu sonho de trabalhar em um
CAPS assim de maneira integral, tipo 40 horas, com uma remuneração
adequada. (TNS 6)
Acho que o trabalho interdisciplinar ajuda, quer dizer tenho certeza que
ajuda. Ajuda com certeza, porque aí você deixa de ter só aquela visão
médica, só a visão do medicamento, só a visão do psicólogo. Acho que
você procura conhecer um pouco mais de todas as áreas para poder estar
ajudando mais de perto o usuário e procurando dar a ele o melhor mes-
mo do que você tem como profissional. (TNS 3)
deveria, não como seria o ideal. Mas eu sinto que a equipe tem essa pre-
disposição assim, essa visão de equipe. (TNS 3)
Como positivo destaco a questão das boas relações que nós temos, o res-
peito que todos nós temos uns com os outros, e com os pacientes também
né. O que é fundamental, porque somos servidores públicos e o nosso
trabalho é direcionado para essas pessoas, então a gente consegue ter um
momento de interação com outros profissionais, mas essa parte de fato tá
carente, nota-se uma carência. (TNS 1)
O PTI seria a forma com que esse usuário seria atendido na unidade de
cuidado, quais seriam as atividades que iriam beneficiá-lo enquanto pes-
soa, dentro do seu adoecimento, dentro de suas necessidades. Porque na
verdade a instituição tem aquele roteiro, tem aquela atividade, mas como
o próprio nome diz individual é de acordo com a necessidade daquela
pessoa. E assim a gente sempre orienta, não só a consulta médica, a con-
sulta médica é também uma parte, mas tem também todos os outros aten-
dimentos que são importantes nesse contexto, então seria mais ou menos
um plano de cuidado com essa pessoa, voltada para ele, dentro do con-
texto da instituição. (TNS 2)
Nem sempre o PTI é elaborado nesse primeiro momento, às vezes a
gente precisa de uma avaliação, precisa de uma avaliação médica para
saber um pouco mais, e é a partir daí a gente elabora esse projeto.
(TNS 5)
Entendo que o PTI seriam ações e intervenções específicas para cada in-
divíduo. Como cada um é um, as intervenções as ações são diferentes, de-
vem ser pensadas para aquela pessoa, naquele contexto de vida, planejar
ações e intervenções dentro desses contextos. Eles são elaborados dentro
do acolhimento, mas também ele é construído com a convivência do usu-
ário aqui. Você (o terapeuta) percebe ainda alguns outros aspectos que
não foram percebidos no acolhimento, quando você (o terapeuta) forma o
vínculo percebe outros aspectos. (TNS 3)
Então, uma coisa que eu noto, uma grande parte, eu não tenho uma esta-
tística para falar, mas uma grande parte dos pacientes não segue o bási-
co do projeto terapêutico inicial, vamos dizer assim, inicial, para a gente
ir conhecendo melhor, avaliar outras dificuldades, outras facetas da vida
do indivíduo. Os profissionais que fazem o acolhimento se encarregam de
fazer isso, mas eu não vejo adesão do usuários. (TNS 1)
Eu não sei quantos profissionais que trabalham na Atenção Básica tem afi-
nidade com as coisas chamadas mentais. Eu não sei quantas equipes de sa-
úde têm coragem, têm humildade, respeito, para fazer uma abordagem
junto ao doente mental. Ir à equipe de saúde deveria ser o papel do CAPS,
ordenar a rede, tal, mas também eu não critico muito os colegas. Imagina,
digamos assim, o psicólogo tem um grupo lá, digamos de 15 pessoas para
atender, para desenvolver um trabalho que já tá planejando a um tempão,
tem coisas que não entrar na nossa agenda, na nossa rotina, não temos
uma programação para irmos naquele centro de saúde. (TNS 5)
Então o meu papel hoje é bem menor do que eu gostaria de ter. eu gosta-
ria de interagir mais com os pacientes, eu gostaria de estar ali, outra ati-
vidade que não a de ficar só sentado atendendo. (TNS 1)
Acho que tem aquilo: o que deveria fazer, aquilo que a gente tenta fazer,
aquilo que a gente dá conta de fazer. A gente sabe da forma que deveria
funcionar, tem esse conhecimento, mas faz muito daquilo que dá para fa-
zer, a gente tem nossa rotina de atividade, que a gente procura seguir,
tenta resolver de que melhor forma pode acolher melhor o usuário, mas
sempre dentro de uma angustia muito grande, de estar fazendo o que con-
segue, mas de não é o que deveria, deveria fazer de outra forma, para que
a coisa desse certo. (TNS 3)
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
5 REFERENCIAS
1 INTRODUÇÃO
1
Para aprofundamento, ver Figueiredo e Santí, 2006.
506 Wedna Cristina Marinho Galindo e Ana Lúcia Francisco
dos, já que explica alguns fatores do social, mas não consegue desenvolver
uma análise que integre e articule os diferentes níveis da realidade social.
A corrente teórica, que Barus-Michel (2004) associa ao desenvol-
vimento da Psicologia Social, investiu na compreensão de fenômenos sociais
extensivos, como a produção de bens, a cultura, a guerra, a religião. São
teóricos expoentes dessas formulações S. Freud e K. Marx, além de seus
seguidores. Da contribuição do pensamento marxista, a autora destaca a ideia
de que “o ser humano é social” (Barus-Michel, 2004, p. 27), distanciando-o
de uma pretensa natureza humana, de um psicológico que o definiria.
Das contribuições da psicanálise, a autora faz uma advertência e al-
guns destaques. Adverte que se o profissional intervier, considerando apenas o
inconsciente, corre o risco de tomar para si o poder e, assim, passar “ao largo
da clínica, o que talvez, seja para a psicologia social, a herança essencial da
psicanálise” (Barus-Michel, 2004, p. 40). Quanto aos destaques, pontua: a) o
conceito de transferência, cuja contribuição se estende para todas as ciências
humanas, já que sendo o ser humano o objeto de observação/intervenção, o
que se obtém é sempre da ordem da relação; b) a nova noção de objeto de
estudo/intervenção como sujeito, isto é, aquele que fala, deseja, muda, dife-
rente de um objeto estático, manipulável pelos rigores da ciência; c) o disposi-
tivo do tratamento proposto por Freud, que põe em destaque, para análise, a
relação inconsciente, fantasmática, pela abordagem da transferência.
Essas breves notas da história da Psicologia ilustram o argumento
de que o surgimento e desenvolvimento dessa disciplina estão diretamente
relacionados ao cenário sócio-histórico no qual se dão as suas formulações.
Essa perspectiva distancia-se, portanto, de qualquer tentativa de encontrar a
verdade sobre o ser humano. Construções sociais em torno do ser humano é
que dizem desse objeto de estudo. Assim, considera-se pertinente pensar a
Psicologia distanciada de referenciais positivistas, essencialistas, racionalis-
tas sobre o ser humano.
2
Para aprofundar: <http://www.objetivosdomilenio.org.br/>.
514 Wedna Cristina Marinho Galindo e Ana Lúcia Francisco
Ao ser concluído o prazo que havia sido definido para receber pro-
postas dos outros grupos, o clima da sessão do grupo foi de tristeza e frustra-
ção, pela constatação de que outros grupos não deram atenção à proposta. A
única contribuição veio de um grupo de adolescentes, coordenado pela mes-
ma facilitadora, que ao trabalhar a questão com os adolescentes, ouviu deles
a sugestão de acrescentar mais um jeito que seria o oitavo: Manter ambiente
limpo. Outros grupos de usuários, bem como o grupo de profissionais técni-
cos e o grupo de profissionais administrativos, não responderam à demanda.
O grupo de adultos que iniciou o processo lidou, com certa dificul-
dade, com a ausência de contribuições e a constatação de que sua sugestão
não tinha sido levada a sério por outros integrantes do Caps. A expressão da
insatisfação, frustração, raiva, enfim, dos diversos sentimentos envolvidos na
situação, foi importante para o grupo se fortalecer diante da falência de seus
projetos. A constatação de pouca força política diante da instituição como
um todo, era inevitável. E considerar tal situação foi estratégico para se re-
fletir sobre que lugar os usuários ocupam nesse contexto.
Ainda que esse conteúdo não tenha sido aprofundado explicita-
mente, entende-se que a experiência como um todo foi muito importante
para os usuários, que vivenciaram a liberdade de elaborar projetos, a inquie-
tação de negociá-lo diante de pares (participantes do grupo), o desconforto
de ter suas opiniões desconsideradas, o desafio de organizar-se para colocar
em prática os projetos, a frustração de não ter apoio de outros. Enfim, ao
indagar ao grupo, diante do clima de frustração e perda instalado, o que fazer
com o seu projeto, a facilitadora parece ter colocado em marcha a possibili-
dade de lutar, apesar dos dissabores. Um breve momento de resistência, com
expressões do tipo: “não adianta nada, ninguém está interessado”, deu lugar
a outro em que o grupo decidiu acolher o que se tornou o oitavo jeito, envia-
do pelo grupo de adolescentes e escrever os jeitos em cartolina simples, co-
lando-as nos espaços estratégicos dentro dos espaços coletivos, no Caps.
O que aparentemente poderia ser entendido como uma experiência
frustrada, não foi assim compreendida pela facilitadora, que identificava pro-
cessos significativos no grupo: de fortalecimento das relações interpessoais, de
aprimoramento em suas práticas de cidadania, como a participação em deci-
sões, controle social de ações, vivência democrática, de forma geral. Isso inclu-
sive se confirmou quando, quase dois anos após passada a experiência, a facili-
tadora ao visitar o Caps (pois não desenvolvia mais atividades lá) encontrou,
como trabalho produzido pelos usuários em oficina terapêutica, placas com
identificação de salas e outras placas com sugestão de posturas, atitudes. Con-
feccionadas com disco vinil, papel, tinta, cola, além de outros materiais, as
placas estavam fixadas na área social da unidade de saúde, e lembravam em
516 Wedna Cristina Marinho Galindo e Ana Lúcia Francisco
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
5 REFERÊNCIAS
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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO:
DA URGÊNCIA DE UM DISPOSITIVO A
UMA MODALIDADE DE AÇÃO CLÍNICA
Ananda Kenney da Cunha Nascimento
Marcus Túlio Caldas
1 METODOLOGIA
recendo no esquema físico como portas fechadas, paredes altas, arame farpa-
do, florestas, o que desencadeava um processo de isolamento, enfraquecimento
da autonomia e da individualidade, gerando dependência da instituição e coisi-
ficação do ser, além de favorecer a estigmatização da pessoa que ia em busca
(ou era levada forçosamente) de cura e se deparava com um tratamento que a
distanciava ainda mais de sua reabilitação, entre outras coisas porque causava
medo de reinserção no convívio social (Goffman, 1974/1961).
Então, por ter caráter de fechamento, Goffman (1974/1961) nome-
ou o hospital psiquiátrico de instituição total, assim como outras instituições
que tenham como características de funcionamento o atendimento a pessoas
internadas que vivenciam situações semelhantes, por um período de tempo
indeterminado, sob a imposição de uma vida fechada, separada da sociedade
e controlada por uma equipe dirigente rigorosa e formal.
Deste modo, “a instituição total é um híbrido social, parcialmente
comunidade residencial, parcialmente organização formal; aí reside seu es-
pecial interesse sociológico” (Goffman, 1974/1961, p. 22). Entretanto, essas
instituições não substituem algo já formado pela cultura, mas fazem com que
ocorra um afastamento de algumas oportunidades de comportamento, cons-
tituindo o que o autor afirma ser a primeira mutilação do eu. O internado
desempenhava vários papéis no mundo externo ao hospital, mas essa nova
situação o perturba e favorece com que passe por um processo de descaracte-
rização e tenha diversas reações psicológicas à doença e ao adoecer. Embora
alguns dos papéis possam ser restabelecidos pelo internado, se e quando ele
voltar para o mundo, outras perdas são irrecuperáveis.
Tais questões fizeram com que profissionais de saúde começassem
a criticar tais práticas abusivas e entrassem em vigor discussões de caráter
político-ideológico que articulavam sobre uma Reforma Psiquiátrica, a qual
veio questionar a noção de saúde/doença mental e constituiu-se em um mo-
vimento cuja principal tentativa foi a de supressão dos manicômios na Euro-
pa Ocidental e nos Estados Unidos, expandindo-se posteriormente para ou-
tros países, entre eles o Brasil (Amarante, 2007).
Simões (2005) nos lembra que a movimentação político-ideológica
das reformas psiquiátricas teve mais visibilidade desde as duas grandes
Guerras Mundiais, pois a sociedade voltou o seu olhar para os hospitais psi-
quiátricos que em nada se diferenciavam dos campos de concentração. Sendo
assim, reflexões começaram a serem realizadas, fermentando as primeiras
experiências de reformas diante das constatações de absoluta falta de digni-
dade humana.
Amarante (2007) acrescenta que dentre várias experiências, desta-
cam-se algumas que foram mais marcantes, devido ao caráter de inovação e
522 Ananda Kenney da Cunha Nascimento e Marcus Túlio Caldas
aos seus princípios por parte dos atores envolvidos – cada uma das esfe-
ras do governo, por parte do serviço, da equipe, dos profissionais atuan-
tes em cada caso. O segundo diz respeito à construção de um espaço de
continência e pertença dos acompanhantes terapêuticos, que seja externo
ao serviço onde realizam seu trabalho, preservando essa dimensão do
fora que o caracteriza. [...] terceiro elemento: a utilização de uma teoria
da clínica como caixa de ferramentas para o trabalho. Não a teoria, mas
uma teoria, somada a outras, do campo da história, ciências sociais, ar-
tes, geografia [...] o quarto refere-se à disponibilidade para o encontro
com o outro, tanto da parte do acompanhante como da pessoa a ser
acompanhada. Há uma dimensão de risco nesse encontro, de entrega ao
outro, de abertura ao desconhecido e ao inesperado, de onde pode emer-
gir a invenção, de que nem sempre se é capaz. (pp. 119-120)
Isto porque,
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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540 Ananda Kenney da Cunha Nascimento e Marcus Túlio Caldas
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica
ÍNDICE ALFABÉTICO
542 Carmem L. B. T. Barreto, Henriette T. P. Morato e Marcus T. Caldas (Orgs.)
Editoração: Acabamento:
Adriana P. V. R. da Cruz Afonso P. T. Neto
Elisabeth Padilha Anderson A. Marques
Elizete Sizanoski Bibiane A. Rodrigues
Carlos A. P. Teixeira
Índices: Lucia H. Rodrigues
Emilio Sabatovski Luciana de Melo
Iara P. Fontoura Maria José V. Rocha
Tania Saiki Marilene de O. Guimarães
Marlon Ribeiro
Impressão: Nádia Sabatovski
Lucas Fontoura Rosinilda G. Machado
Marcelo Schwb Terezinha F. Oliveira
Willian A. Rodrigues
“.”