Pratica Psicológica Na Perspectiva Fenomenológica

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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Prática Psicológica
na Perspectiva
Fenomenológica
2 Carmem L. B. T. Barreto, Henriette T. P. Morato e Marcus T. Caldas (Orgs.)

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ISBN: 978-85-362-

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D’Ouro – 4400-096 – Vila Nova de Gaia/Porto – Portugal

Editor: José Ernani de Carvalho Pacheco

Barreto, Carmem Lúcia Brito Tavares.


B??? Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenológica./
Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto./ Curitiba: Juruá, 2013.
542p.

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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto


Henriette Tognetti Penha Morato
Marcus Túlio Caldas
Organização

Prática Psicológica
na Perspectiva
Fenomenológica
Autores:
Ana Lúcia Francisco Laiz Maria Silva Chohfi
Ana Maria Santana Luciana Oliveira Lopes
Ana Paula Noriko Cimino Luciana Oushiro
Ananda Kenney da Cunha Nascimento Luciana Szymanski
André Prado Nunes Maria Luisa Sandoval Schmidt
André Rostworowski Marcus Túlio Caldas
Andrea Cristina Tavelin Biselli Maria Eugênia Calheiros de Lima
Angela Nobre de Andrade Marilia Hiromi Takeshita
Barbara Eleonora Bezerra Cabral Nilson Gomes V. Filho
Bruna Luiza Ferreira Rafael Auler de Almeida Prado
Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto Regina Coeli Araujo da Silva
Danielle de Fátima da Cunha Cavalcanti de Rodrigo da Silva Rodrigues Lermes
Siqueira Leite Sáshenka Meza Mosqueira
Ellen Fernanda Gomes da Silva Shirley Macêdo Vieira de Melo
Franciane Seco Delavia Sílvia Raquel Santos de Morais
Heloísa Szymanski Suely Emília de Barros Santos
Henriette Tognetti Penha Morato Tatiana Benevides Magalhães Braga
Joyce Cristina de Oliveira Rezende Wedna Galindo

Curitiba
Juruá Editora
2013
4 Carmem L. B. T. Barreto, Henriette T. P. Morato e Marcus T. Caldas (Orgs.)
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

SOBRE OS AUTORES

Ana Lúcia Francisco


Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Cató-
lica – PUC/SP. Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação
em Psicologia Clínica na Universidade Católica de Pernambuco. Coorde-
nadora da Linha de Pesquisa Práticas Psicológicas Clínicas em Instituições
do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica na Universidade
Católica de Pernambuco. Líder do Grupo de Pesquisa Psicologia Clínica.
Representante junto ao CRP 02 do Grupo de Trabalho Avaliação Psicológi-
ca. E-mail: [email protected].

Ana Maria de Santana


Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de
Pernambuco – UNICAP. Docente do Curso de Psicologia da Universidade
de Pernambuco com atividade de ensino e pesquisa em Programas de
Graduação e de Pós-Graduação. Psicóloga da Secretaria de Saúde do
Recife. E-mail: [email protected].

Ana Paula Noriko Cimino


Psicóloga. Mestranda em Psicologia Clínica pela Universidade
Católica de Pernambuco – UNICAP. Docente da Faculdade IBGM – Ins-
tituto Brasileiro de Gestão & Marketing. Membro do Laboratório de Psi-
cologia Clínica Fenomenológica Existencial da UNICAP. E-mail: anano-
[email protected].

Ananda Kenney da Cunha Nascimento


Mestranda em Psicologia Clínica na linha de pesquisa Práticas
Psicológicas Clínicas em Instituições pela Universidade Católica de Per-
nambuco – UNICAP. Psicóloga. Acompanhante terapêutica em formação.
E-mail: [email protected].
6 Carmem L. B. T. Barreto, Henriette T. P. Morato e Marcus T. Caldas (Orgs.)

André Prado Nunes


Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela
Universidade de São Paulo – USP. Membro e pesquisador do Laboratório
de Estudos e Prática em Psicologia e Fenomenologia Existencial da Univer-
sidade de São Paulo. Co-organizador da obra “Aconselhamento Psicológico
numa perspectiva Fenomenológica Existencial”. E-mail: andrepn@usp. br.

André Rostworowski
Graduado em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universi-
dade de São Paulo (IPUSP) e especialista em Prática Psicológica em Insti-
tuições também pelo IPUSP. E-mail: [email protected].

Andrea Cristina Tavelin Biselli


Psicóloga. Mestranda em Psicologia Clínica pela Universidade
Católica de Pernambuco – UNICAP. Membro do Laboratório de Psicologia
Fenomenológica Existencial – LACLIFE da UNICAP. Psicóloga do Instituto
de Medicina Integrada Prof. Fernando Figueira – IMIP, Responsável pelo
Setor de Ginecologia e Obstetrícia. E-mail:[email protected].

Angela Nobre de Andrade


Psicóloga e Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação
da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. E-mail: anobre@
terra.com.br.

Barbara Eleonora Bezerra Cabral


Docente do Colegiado de Psicologia da Universidade Federal do
Vale do São Francisco – UNIVASF. Especialização em Saúde Coletiva
(CPqAM/FIOCRUZ). Mestrado em Psicologia Clínica pela Universidade
Católica de Pernambuco – UNICAP. Doutora em Psicologia pela Universi-
dade Federal do Espírito Santo – UFES. Interesses principais de pesquisa:
prática do psicólogo em instituições do SUS, formação, atenção e trabalho
transdisciplinar em saúde. E-mail: [email protected].

Bruna Luiza Ferreira


Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica – PUC Minas.
E-mail: [email protected].
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto


Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo – USP,
Professora adjunta da Graduação em Psicologia e do Programa de Pós-
-graduação em Psicologia Clínica da UNICAP, Coordenadora do Laborató-
rio de Psicologia Clínica Fenomenológica Existencial – LACLIFE da Uni-
versidade Católica de Pernambuco – UNICAP, Coordenadora do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da UNICAP, Membro do Grupo
de Pesquisa no Diretório CNPq- Psicologia Clínica, Vice-coordenadora do
GT 34 da ANPEPP. E-mail: [email protected].

Danielle de Fátima da Cunha Cavalcanti de Siqueira Leite


Doutoranda em Psicologia Clínica do Programa de Pós-graduação
em Psicologia Clínica da UNICAP. Mestre em Psicologia Clínica pela Uni-
versidade Católica de Pernambuco – UNICAP e membro do Laboratório de
Psicologia Clínica Fenomenológica Existencial – LACLIFE. E-mail: danie-
[email protected].

Ellen Fernanda Gomes da Silva


Psicóloga e mestranda em Psicologia Clínica pela Universidade
Católica de Pernambuco – UNICAP. E-mail: [email protected].

Franciane Seco Delavia


Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais –
PUC Minas. E-mail: [email protected].

Heloísa Szymanski
Psicóloga, doutora em Psicologia da Educação pela PUC/SP,
professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, do-
cente do programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia da Educação,
coordenadora do Grupo de Pesquisa em Práticas Educativas e Atenção
Psicoeducacional na Escola, Família e Comunidade, pesquisador 1 CNPq,
autora do livro A Relação Família Escola: Desafios e Perspectivas. E-mail:
[email protected].

Henriette Tognetti Penha Morato


Professora Doutora do Departamento de Psicologia da Aprendi-
zagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia
8 Carmem L. B. T. Barreto, Henriette T. P. Morato e Marcus T. Caldas (Orgs.)

da USP (IPUSP). Pós-doutorado na Universidade Paris 7. Vasta produção


bibliográfica e produção técnica, com diversas premiações/homenagens.
Coordena o Laboratório de Estudos em Fenomenologia Existencial e Práti-
ca em Psicologia – LEFE (IPUSP). Líder do Grupo de Pesquisa no Diretó-
rio CNPq “Aprendizagem Significativa na formação de profissionais de
saúde e educação”. E-mail: hmorato@usp. br.

Joyce Cristina de Oliveira Rezende


Graduanda em Psicologia pela Universidade de São Paulo – USP,
advogada formada pela mesma instituição e mediadora capacitada pelo
Instituto de Mediação e Arbitragem do Brasil (IMAB). E-mail: jocris@
gmail.com.

Laiz Maria Silva Chohfi


Psicóloga formada pela Universidade de São Paulo – USP, espe-
cialista em Prática Psicológica em Instituições e Mestranda em Psicologia
Escolar e do Desenvolvimento Humano também pelo Instituto de Psicologia
da USP, membro do Laboratório de Estudos em Fenomenologia Existencial –
LEFE. E-mail: [email protected].

Luciana Oliveira Lopes


Psicóloga, mestre em psicologia pela Universidade Federal do
Amazonas – UFAM. E-mail: [email protected].

Luciana Oushiro
Psicóloga formada pela Universidade de São Paulo – USP, cursa
especialização em Prática Psicológica em Instituições e aperfeiçoamento em
Orientação Profissional e de Carreira (Serviço de Orientação Profissional –
SOP), ambos pelo Instituto de Psicologia da USP. E-mail: luciana.oushiro@
gmail.com.

Luciana Szymanski
Docente do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católi-
ca de São Paulo – PUC/SP e psicoterapeuta. Atua na área de psicologia da
educação e clínica, com ênfase no pensamento fenomenológico-existencial.
Participa do Grupo de Pesquisa em Práticas Psicoeducativas e Atenção
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Psicoeducacional à Escola, Família e Comunidade – ECOFAM, no Progra-


ma de Estudos Pós-graduados em Educação: Psicologia da Educação, da
PUC/SP. E-mail: [email protected]

Maria Luisa Sandoval Schmidt


Professora Associada do Instituto de Psicologia da Universidade
de São Paulo, coordenadora do Serviço de Aconselhamento Psicológico –
SAP e do Laboratório de Estudos do Imaginário – LABI do Instituto de Psi-
cologia da Universidade de São Paulo – IPUSP. E-mail: maluschi-
[email protected].

Marcus Túlio Caldas


Médico psiquiatra. Doutor em psicologia pela Universidade de
Deusto, Espanha. Membro do Laboratório de Psicologia Clínica Fenome-
nológica Existencial – LACLIFE da Universidade Católica de Pernambuco –
UNICAP. Professor Adjunto da Graduação e da Pós-graduação em Psico-
logia Clínica da UNICAP. E-mail: [email protected].

Maria Eugênia Calheiros De Lima


Médica pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e douto-
randa em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco –
UNICAP. Membro da comissão científica da Associação Brasileira de Logote-
rapia e Análise Existencial – ABLAE e atual diretora da Associação Pernam-
bucana de Logoterapia – APELO. E-mail: [email protected].

Marilia Hiromi Takeshita


Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica – PUC-Minas.
E-mail: [email protected].

Nilson Gomes V. Filho


Psicólogo, Doutor em Psicologia Clínica, Pós-doutorado em Psi-
cologia Clínica. E-mail: [email protected].

Rafael Auler de Almeida Prado


Psicólogo. Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Cató-
lica de Pernambuco – UNICAP. Membro do Laboratório de Psicologia Clí-
10 Carmem L. B. T. Barreto, Henriette T. P. Morato e Marcus T. Caldas (Orgs.)

nica Fenomenológica Existencial – LACLIFE da UNICAP. Doutorando em


Psicologia Clínica pela UNICAP. E-mail: [email protected].

Regina Coeli Araujo da Silva


Mestre em Psicologia Clínica, psicoterapeuta corporal, docente
e coordenadora pedagógica dos cursos de Pós-graduação do Libertas/
Recife. Especialista em psicologia organizacional, trabalhou nas áreas de
gestão de pessoas empresas nacionais e multinacionais. E-mail: libertas@
libertas.com.br.

Rodrigo da Silva Rodrigues Lermes


Graduando em psicologia pela Universidade de São Paulo – USP;
bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PI-
BIC (2011) e Aprender com Cultura e Extensão (2010) no projeto “Unindo
buracos: a construção de uma Rede de Atenção em Saúde a partir do Insti-
tuto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP)”.
E-mail: [email protected].

Sáshenka Meza Mosqueira


Doutoranda, Mestre, Graduada e Licenciada em Psicologia pela
Universidade de São Paulo. Professora Adjunta da Universidade Paulista.
Pesquisadora, professora convidada e supervisora clínica do Laboratório de
Estudos em Fenomenologia Existencial e Prática em Psicologia (LEFE-
IPUSP). E-mail: sasha@usp. br ou [email protected]

Shirley Macêdo Vieira de Melo


Psicóloga e Administradora. Especialista pela Universidade Cató-
lica de Pernambuco – UNICAP, Mestre pela Pontifícia Universidade Católi-
ca (PUC-Campinas) em Psicologia Clínica. Atualmente é Professora Assis-
tente do Colegiado de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São
Francisco e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Clínica da UNICAP. E-mail: [email protected].

Sílvia Raquel Santos de Morais


Psicóloga e Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal
de Pernambuco – UFPE. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

do Rio Grande do Norte – UFRN. Doutora em Psicologia da Saúde pela


Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. Professora Adjunta do
Colegiado de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco
– UNIVASF. E-mail: [email protected].

Suely Emília de Barros Santos


Mestra em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de
Pernambuco – UNICAP. Docente da Universidade de Pernambuco – UPE
(Garanhuns) e da Faculdade do Vale do Ipojuca – FAVIP. Coordenadora do
Núcleo de Estudos em Psicologia Fenomenológica Existencial – NUEFE da
UPE e do Laboratório de Práticas Psicológicas e Organizações Sociais –
LAPOS da FAVIP. E-mail: [email protected]

Tatiana Benevides Magalhães Braga


Doutora, Mestre, Graduada e Licenciada em Psicologia pela Uni-
versidade de São Paulo – USP, Professora Adjunta da Pontifícia Universi-
dade Católica de Minas Gerais – PUC, Supervisora Clínica, pesquisadora e
professora convidada do Instituto de Psicologia da USP. E-mail: tabra-
[email protected].

Wedna Galindo
Doutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade de
Pernambuco – UNICAP; Bolsista da Fundação de Amparo à Ciência e
Tecnologia do Estado de Pernambuco – FACEPE. É psicóloga no Centro
de Testagem e Aconselhamento em DST/HIV-Aids – CTA Recife. E-mail:
[email protected].
12 Carmem L. B. T. Barreto, Henriette T. P. Morato e Marcus T. Caldas (Orgs.)
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

PREFÁCIO

Solicitação encaminhada ao Prof. Dr. Jesus Vazquez


14 Carmem L. B. T. Barreto, Henriette T. P. Morato e Marcus T. Caldas (Orgs.)
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

PALAVRAS INICIAIS

A prática psicológica apresenta-se respaldada por diferentes es-


colas e teorias psicológicas, desenvolvidas em diferentes países da Europa e
dos Estados Unidos, marcadas, no século XX, pela esperança na ciência
como conhecimento que solucionaria grande parte dos problemas e sofri-
mentos humanos. Nessa direção, a Psicologia, ao assumir o paradigma da
ciência moderna, passa a operar com modelos teórico-explicativos, assu-
mindo intervenções fundadas em procedimentos técnicos, baseados em um
paradigma ‘cientificista’ que considera a existência humana de uma ordem
da natureza passível de representação matemática e de controle. Tal para-
digma, fundado na ontologia metafísica e enredado por uma discussão
epistemológica, permanece atado na crença de uma única via de acesso à
verdade do ser do homem – a razão instrumental.
Por sua vez, a fenomenologia, ao discutir a perspectiva metafísica
sobre o ser e a verdade, aponta para a necessidade de ruptura da reificação
da metafísica e da soberania de sua ontologia – a unicidade da verdade e a
busca de uma perspectiva de conhecimento que seja absoluta, respaldada
pela precisão metodológica do conceito. Propõe um modo essencial de pen-
sar que está dado a todo homem como condição ontológica. Por tal pers-
pectiva, pensar é uma condição pela qual a vida foi dada ao homem, que
difere da possibilidade ôntica de articular raciocínios com vistas a prever e
controlar a natureza e o homem. O pensar é uma força que emerge do pró-
prio homem, compreendido como ser-no-mundo, instaurando-o na sua hu-
manidade, na sua fundamental provocação para ser.
Muitos têm sido os esforços, a partir de então, para pensar inter-
venções psicológicas que pudessem responder às necessidades dos homens
frente ao mundo contemporâneo simultaneamente globalizado e fragmenta-
do. É por essa direção que a fenomenologia se apresentou como uma possi-
bilidade de compreensão da prática psicológica no cotidiano de instituições
de saúde e educação, buscando responder ao modo humano no mundo atual.
Tal compreensão norteia as reflexões dos diversos autores que
compõem o presente livro, que tem como objetivo discutir a prática psicoló-
gica em instituições e a contribuição da Fenomenologia na constituição de
tais práticas. A proposta é apresentar modalidades de prática psicológica
16 Carmem L. B. T. Barreto, Henriette T. P. Morato e Marcus T. Caldas (Orgs.)

desenvolvidas em instituições, como também, discutir a compreensão dos


fenômenos psicológicos e as possibilidades de pesquisar a ação de psicólo-
gos clínicos, inspirando-se na fenomenologia.
Nessa empreitada, foram contempladas as discussões e as produções
dos componentes do GT 34 – “Práticas Psicológicas em Instituição: atenção,
desconstrução e invenção”, da ANPEPP – Associação Nacional de Pesquisa e
Pós-Graduação em Psicologia, grupo esse atuante nessa temática desde 1998.
Também colaboraram professores pesquisadores dos seguintes laboratórios e
programas de pós-graduação: Laboratório de Psicologia Clínica numa pers-
pectiva Fenomenológica Existencial – LACLIFE, do Programa de Pós-
Graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco –
UNICAP; do Laboratório de Estudos em Fenomenologia Existencial e Prática
em Psicologia – LEFE, do Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo – IPUSP, do Laboratório do Imaginário – LABI – do IPUSP; do Pro-
grama de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Hu-
mano do IPUSP; do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Educação
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, e do Programa
de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
No livro, que agora apresentamos, encontra-se uma significativa
contribuição no sentido de pensar a Psicologia, mais especificamente a prá-
tica psicológica e a pesquisa, numa perspectiva da fenomenologia. Espera-
mos que os textos selecionados possam deixar claro aos leitores o momento
de travessia pelo qual passa a prática psicológica, ao apresentarem questio-
namentos sobre os fundamentos teóricos tradicionais da Psicologia Clínica
e suas possibilidades para compreender e atender à demanda psicológica
própria ao momento contemporâneo.
De uma maneira mais específica, visa apresentar as possibilidades
da Fenomenologia, em especial da Fenomenologia Existencial de Martin Hei-
degger, para refletir e pensar a constituição ‘existencial’ de uma Psicologia
Clínica que, ao escapar do modelo de teoria e pesquisa científica tradicional,
possa apontar para novas possibilidades de tematização da prática e da pes-
quisa em Psicologia. Por essa perspectiva, procura compreender a ação psi-
cológica historicamente contextualizada em instituições para depreender, atra-
vés de pesquisa interventiva, a implicação de suas dimensões ética e política.
Na Parte I – Psicologia e fenomenologia: a ação psicológica na
prática e na pesquisa em instituições estão reunidos oito capítulos que se
propõem a refletir a possibilidade de articular algumas considerações da
Fenomenologia e da Analítica Existencial de Heidegger para pensar como a
ação do psicólogo pode ser contemplada por pesquisa dessa ação em ação:
pesquisa interventiva participativa. Revelam um espaço de discussão e de
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

constituição da ação clínica do psicólogo, a partir de pressupostos fenome-


nológicos, e sua implicação nas instituições de saúde e educação, como
também na produção de conhecimento.
A Parte II – Das modalidades de prática à pesquisa em instituições
constitui-se de oito capítulos cujo foco volta-se para pesquisas que nortearam
a compreensão e a constituição das diversas modalidades de prática psicoló-
gica em instituições de saúde. Tecem compreensões sobre modalidades de
Psicodiagnóstico Colaborativo, de Plantão Psicológico, entre outras, tendo
como norte as ações desenvolvidas por psicólogos em instituições diversas:
Clínica-escola, Hospital Geral e Oncologia Pediátrica, Departamento Jurídi-
co, abrangendo a ação do psicólogo nas organizações em geral.
Na Parte III – Prática Psicológica e Saúde, o contexto dos seis
textos revela uma ação psicológica em movimento, com realce para sua
dimensão ético-política no âmbito da atenção psicossocial na saúde pública.
Se, por um lado, alguns textos discutem a compreensão de clínica como
“cuidado”, outros realçam o processo de desinstitucionalização no tocante
à saúde mental e respeito ao ser humano.
Finalizando, cumpre realçar o esforço empreendido, pelos autores e
organizadores, na busca de contribuir para pensar a prática psicológica numa
outra perspectiva: a da fenomenologia como questionadora de um pensamento
hegemônico de conhecimento. Buscando alcançar tal objetivo, os textos abar-
cam diversas perspectivas fenomenológicas, apresentando possibilidades de
compreensão da ação psicológica e da pesquisa em Psicologia considerando-
se a historicidade na constituição do modo humano de ser. Desse modo, im-
porta assinalar que não é nossa intenção a construção de outra teoria psicoló-
gica, tampouco a aplicação da Filosofia à Psicologia, pois reconhecemos que
se trata de campos distintos. Na realidade, todo o empenho deste livro consti-
tui-se numa atitude ousada para pôr o pensamento em andamento, assim po-
dendo contribuir para a constituição da prática psicológica desarticulada da
dimensão técnica e prescritiva que norteou a construção da Psicologia como
ciência. Nessa direção, podemos, ainda, dizer que se tentou com a fenomenolo-
gia um diálogo, no sentido gadameriano, na busca de uma fusão de horizontes
que possibilitasse nortear a ação do psicólogo e do pesquisador para os desa-
fios da vida dos “homens em tempos sombrios”, como diria Hannah Arendt.

Carmem Barreto
Henriette Morato
Marcus Túlio Caldas
18 Carmem L. B. T. Barreto, Henriette T. P. Morato e Marcus T. Caldas (Orgs.)
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

SUMÁRIO
Parte 1
Psicologia e Fenomenologia: a Ação Psicológica na Prática e
na Pesquisa em Instituições
• Reflexões para Pensar a Ação Clínica a Partir do Pensamento de Heidegger:
da Ontologia Fundamental à Questão da Técnica
Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto ................................................................... 23
• Algumas Considerações da Fenomenologia Existencial Para a Ação
Psicológica na Prática e na Pesquisa em Instituições
Henriette T. P. Morato .......................................................................................... 47
• Repercussões do Pensamento Fenomenológico nas Práticas Psicoeducativas
Heloisa Szymanski Luciana Szymanski................................................................ 73
• Atitude Fenomenológica Existencial e Cuidado na Ação Clínica
Rafael Auler de Almeida Prado Marcus Túlio Caldas .......................................... 91
• Apontamentos Críticos à Teoria da Mudança de Carl Rogers
Maria Luisa Sandoval Schmidt ........................................................................... 103
• A Análise Existencial como Terapia de Neuroses Coletivas: o Pensamento
Social de Viktor Frankl na Perspectiva de Clínica Ampliada
Marcus Túlio Caldas Maria Eugênia Calheiros .................................................. 143
• A Questão de Pesquisa como Bússola: Notas sobre o Processo de Produção de
Conhecimento em uma Perspectiva Fenomenológica Existencial
Barbara Eleonora Cabral Henriette T. P. Morato ................................................ 155
• Merleau-Ponty e Gadamer: Possibilidade de se Pesquisar a Prática de
Psicólogos Clínicos
Shirley Macêdo Marcus Túlio Caldas ................................................................. 179

Parte 2
Das Modalidades de Prática à Pesquisa em Instituições
• Psicodiagnóstico Colaborativo: Contribuições da Perspectiva Fenomenológica
Existencial
Danielle de Fátima da Cunha Cavalcanti de Siqueira Leite Carmem Lúcia
Brito Tavares Barreto.......................................................................................... 201
• O Psicodiagnóstico Interventivo/Colaborativo e Formação do Psicólogo:
Relato de uma Experiência
Andrea Cristina Tavelin Biselli Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto .............. 227
20 Carmem L. B. T. Barreto, Henriette T. P. Morato e Marcus T. Caldas (Orgs.)

• Plantão Psicológico no Departamento Jurídico do “Xi de Agosto”: Relato de


Plantonistas
André Prado Nunes Henriette T. P. Morato ........................................................ 255
• Solicitude como Modo de Cuidar: Atenção Psicológica como Cartografia
Clínica e Plantão Psicológico em Hospital Geral
Tatiana Benevides Magalhães Braga Bruna Luiza Ferreira Marilia Hiromi
Takeshita Franciane Seco Delavia ...................................................................... 279
• Adolescentes, Infrações e a Prática Psicológica na Justiça Juvenil
Sáshenka Meza Mosqueira Henriette Tognetti Penha Morato ............................ 313
• A Prática de Psicólogas em Instituições de Oncologia Pediátrica do Recife-PE
Sílvia Raquel Santos de Morais Angela Nobre de Andrade................................ 349
• A Ação do Psicólogo e a Escuta dos Conflitos nas Organizações
Regina Coeli Araujo da Silva Ana Lúcia Francisco............................................ 369
• Paternidade Adotiva: a Escolha por uma Aproximação de Afeto Con-Sentido
Ellen Fernanda Gomes da Silva Suely Emilia de Barros Santos......................... 387

Parte 3
Prática Psicológica e Saúde
• Unindo Buracos: a Construção de uma Rede de Atenção em Saúde a Partir do
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP)
Laiz Maria Silva Chohfi Joyce Cristina de Oliveira Rezende Luciana Oushiro
Rodrigo da Silva Rodrigues Lermes André Rostworowski Henriette Tognetti
Penha Morato ...................................................................................................... 417
• Prática Psicológica em Saúde Pública: a Dimensão Ético- -Política do
Cuidado nas Policlínicas
Ana Paula Noriko Cimino Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto....................... 439
• Prática Psicológica em Saúde: Acolhimento e Zelo
Ana Maria de Santana ......................................................................................... 469
• Compreendendo a Prática da Atençao Psicossocial em Saúde Mental no
Processo de Desinstitucionalização
Luciana Oliveira Lopes Nilson Gomes Vieira Filho........................................... 485
• Psicologia e Saúde Coletiva: Notas para Debate
Wedna Cristina Marinho Galindo Ana Lúcia Francisco ..................................... 501
• Acompanhamento Terapêutico: da Urgência de um Dispositivo a uma
Modalidade de Ação Clínica
Ananda Kenney da Cunha Nascimento Marcus Túlio Caldas ............................ 519

Índice Alfabético ................................................................................................... 541


Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Parte 1

PSICOLOGIA E FENOMENOLOGIA
A Ação Psicológica na Prática e
na Pesquisa em Instituições
22 Carmem L. B. T. Barreto, Henriette T. P. Morato e Marcus T. Caldas (Orgs.)
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

REFLEXÕES PARA PENSAR A AÇÃO


CLÍNICA A PARTIR DO PENSAMENTO
DE HEIDEGGER: DA ONTOLOGIA
FUNDAMENTAL À QUESTÃO
DA TÉCNICA
Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

“A condição terrena do homem atual está ameaçada


em seu âmago. Mais ainda: a perda da condição
terrena não é causada apenas pelas circunstâncias
externas e fatídicas, nem tampouco consiste apenas
na negligência e superficialidade do modo de vida
dos homens. A perda da condição terrena provém do
espírito da época em que nascemos. (...) O propria-
mente assustador não é o fato de que o mundo se
torne cada vez mais técnico. Muito mais assustador
é o fato de que o homem não esteja preparado para
esta modificação do mundo, que nós não tenhamos
condições de, numa confrontação adequada, meditar
ponderadamente sobre aquilo que ocorre, sobre
aquilo que propriamente acontece nessa época”.
Martin Heidegger

Sumário: 1. Introdução. 2. A Constituição da Psicologia como Ciência.


3. A Fenomenologia Existencial de Heidegger. 4. A Ação Clí-
nica e os Pressupostos Fenomenológicos Existenciais. 5. A
Determinação da Essência da Técnica Moderna e a Ação Clí-
nica. 6. Considerações Finais. 7. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Não é unânime o modo como as teorias psicológicas definem a


compreensão de ação clínica. Observa-se uma diversidade de concepções
24 Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

teóricas e técnicas e de propostas de intervenção. Essa multiplicidade aponta


para a necessidade de revisitação à teoria psicológica e à concepção de sub-
jetividade que sustentam a proposta de intervenção clínica e, desse modo,
reconhecer o modo como tematizam o ser do homem. No caso da Psicologia
clínica, tais teorias apresentam respostas fundadas e mapeadas pela episteme
dominante da modernidade ocidental, representada pela tradição metafísica
em que o sujeito humano é instituído como o centro das crenças, das normas
e valores e, da própria realidade. Tal tradição, ao identificar ser e ente, con-
cebe este último como objeto a ser apropriado, controlado, dominado. A
Psicologia, na busca de constituir-se ciência, não fugiu dessa tradição. Afas-
tou-se do acesso ao simples que “encaminha o caminhar” e mantém a digni-
dade daquilo que “merece ser interrogado” e buscou a plena posse do ente,
não considerando a condição ontológica do existir humano fecundado pelo
mistério do tempo e da finitude.
Nessa direção, ao assumir a herança do pensamento moderno, a
Psicologia, ao operar com modelos teórico-explicativos, propõe protocolos
técnicos na tentativa de prever e controlar o comportamento humano e
garantir o retorno ao “equilíbrio mental” com promessas de felicidade e
liberdade relacionadas às descobertas científicas e tecnológicas. Apresen-
ta-se assim circundada pela técnica que, por vezes, se transforma em sua
segunda natureza, determinando a relação que estabelece com os fenôme-
nos existenciais, reduzindo sua dimensão plural e multifacetada a um
conjunto de causas, princípios e leis que vão orientar a compreensão do
sofrimento que aflige o cliente, como também o modo como a ação clínica
é exercida.
Diante de tal contexto surge a inquietação sobre o exercício de uma
clínica psicológica decorrente de uma proposta pensada na modernidade,
época histórica instituída quando as relações do homem com os demais entes
se dão por meio de exigências e imperativos da ciência e da técnica. Técnica
pensada por Heidegger em sua essência, o que possibilita ressaltar a diferen-
ça entre o desocultar como pro-dução – por adiante – e o desocultar, que
disponibiliza a natureza como fundo de reserva e o homem como o ente que
assume o papel de explorador desse fundo. Partindo dessa perspectiva, torna-
se necessário pensar aquilo que a ciência e a técnica não conseguem pensar,
de modo a abrir brechas para outro modo de pensar que questione as conse-
quências destrutivas do fazer tecnocientífico e suas repercussões no esque-
cimento do ser, colocando em risco a existência do ser humano.
Inquietação ampliada quando se pensa o momento atual, que se
pode chamar de contemporâneo. Contemporaneidade que assinala para um
futuro caracterizado pelo controle tecnológico da vida biológica e social,
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

pela intensificação da violência cotidiana, pela desertificação da natureza.


Tal horizonte parte da hipótese de que a vida humana está exposta a toda
sorte de riscos na modernidade técnico-científica e assinala a dinâmica de
valorização da vida acompanhada por uma atitude de depreciação e descarte
dessa mesma vida (Duarte, 2010).
Na tentativa de compreender o contemporâneo, retoma-se o cami-
nho percorrido por Agamben (2010) ao indicar que “a contemporaneidade,
portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e,
ao mesmo tempo, dele toma distâncias” (p. 59). Ainda segundo o autor, essa
relação implica uma aderência ao tempo através de uma dissociação e um
anacronismo. Portanto, implica manter o olhar fixo no seu tempo, numa ati-
tude de não se deixar cegar pelas luzes que emanam deste tempo, mantendo
a busca de perceber e interpelar o escuro como algo que lhe concerne. Nessa
direção, ser contemporâneo é manter-se no seu tempo, percebendo a luz que
procura nos alcançar e não consegue fazê-lo no escuro do presente, mas que
permanece em viagem até nós. É por isso que para Agamben, ser contempo-
râneo é uma questão de coragem, já que significa “... ser capaz não apenas de
manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escu-
ro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós” (2010,
p. 65).
Considerando tais reflexões, é possível pensar que o desafio atual
da Psicologia clínica é pensar a ação clínica a partir da percepção dos pontos
de falha ou de quebra de um fazer que não mais acolhe as demandas de so-
frimento1 manifesto no tempo atual e conseguir fazer dessa fratura o lugar de
compromisso e de encontro entre os tempos e as gerações de psicólogos com
suas teorias e suas práticas.
Tal tarefa não é fácil, já que implica perceber as dificuldades e in-
suficiências da Psicologia clínica atual compreendida, no presente texto,
como o “escuro do presente”. Nessa direção, pensar em uma ação clínica
contemporânea implica abrir-se para a percepção da luz projetada por esse
“escuro” no passado, habitado por fazeres vinculados às teorias e às técnicas
psicológicas tradicionais, e poder acolher a afetação desse passado como
capacidade de construir respostas para as trevas/demandas atuais. Desse
modo, a Psicologia clínica ao ser questionada no “escuro” que apresenta para
acolher as demandas do sofrimento do homem atual, precisa, inicialmente,
perceber a falha/insuficiência desveladas pelo seu tempo.

1
Sofrimento humano, no contexto do presente texto, é compreendido como limitação inter-
pretativa da abertura de sentido do ser humano compreendido como Dasein, e que se
apresenta como manutenção de uma percepção de si cristalizada e restritiva, diante das di-
versas possibilidades de existir no mundo.
26 Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Insuficiência que pode ser associada ao modo como o ser do ente é


compreendido pelo pensamento metafísico, dando origem a teorias psicoló-
gicas que visavam à eficiência das práticas clínicas, voltadas para a busca do
autoconhecimento ou para a descoberta do verdadeiro eu ou da verdadeira
identidade. Nessa direção, privilegiam o modelo explicativo e adaptativo e
reafirmam a configuração de uma subjetividade e de um psiquismo previa-
mente constituídos, confluindo para considerar a vida humana como resulta-
do de estratégias e cálculos operatórios oriundos de uma sociedade em que a
perspectiva tecnocientífica assume a posição de critério exclusivo de avalia-
ção e validação, não considerando os pressupostos ontológicos/metafísicos
que fundamentam seus procedimentos metodológicos, os quais se apresen-
tam perigosos para o Ser do ser humano. (Duarte, 2010)
Por esse caminho, configura-se o objetivo do presente trabalho. Ao
configurar a desconstrução da metafísica empreendida por Heidegger em Ser
e tempo, principalmente no que concerne à identificação de ser e ente e o
subsequente esquecimento do ser, busca delinear novas possibilidades de
pensar a ação clínica, apontando para outros modos desse fazer. Em tal per-
curso, considera, ainda, no Heidegger tardio, o ultrapassamento da ciência
por meio do pensamento meditativo, não metafísico e não científico, abrindo
brechas para modos de pensar que podem favorecer a constituição “existen-
cial” de uma Psicologia clínica que, ao escapar do modelo de pesquisa cientí-
fica tradicional, possa apontar para novas possibilidades de tematização dos
fenômenos psicológicos e da ação clínica.

2 A CONSTITUIÇÃO DA PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA

Na tentativa de questionar as insuficiências que as práticas psicoló-


gicas tradicionais apresentam, no tempo atual, para acolher tanto o sofri-
mento humano como as exigências de inserção do psicólogo em outros espa-
ços que fogem da caracterização tradicional de clínica psicológica, torna-se
necessário fazer um breve resgate dos pressupostos subjacentes à constitui-
ção da Psicologia clínica.
Para constituir-se ciência, a Psicologia teve como pressuposto
epistemológico o conhecimento científico moderno norteado por um saber
que defendia a construção de uma ordem do mundo no plano do saber. A
constituição da ciência moderna apresenta-se no contexto da racionalidade
operativa, desenvolvendo-se no seio das ciências naturais do século XVII.
Esse paradigma científico apresenta uma visão do mundo e da vida específi-
cas, onde o racional passa a ser considerado a nova essência humana, apre-
sentando, sob a influência de Descartes, um mundo matemático, uniforme e
geométrico. É o momento áureo da afirmação da consciência e de suas repre-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

sentações, levando a uma centralização na razão, provocando a cisão do ho-


mem moderno. Tem como pressuposto metateórico a ideia de ordem e de
estabilidade do mundo, com uma visão de tempo reversível, defendendo
como hipótese fundamental o determinismo mecanicista. Em tal contexto, a
ideia de sujeito na modernidade é consolidada pela emergência do método,
para que, dessa forma, possa manipular, controlar e explorar o mundo, ge-
rando uma cultura voltada para as questões do conhecimento, visando à pro-
dução e a validação das crenças (Barreto, 1999).
É nesse contexto que emerge o espaço psicológico, dentro de uma
tradição na qual o método das ciências naturais era aplicado às ciências sociais.
Essa situação metodológica exigia operar uma cisão na experiência do sujeito,
separando o conhecedor ideal, que deveria apresentar-se com uma subjetivida-
de ascética e expurgada, do sujeito encarnado, constituído pelo singular, afetá-
vel e finito. O verdadeiramente “real” é, na modernidade, o que se dá na forma
de representações claras e distintas de um sujeito purificado do conhecimento.
O caráter histórico das teorias psicológicas, ao apoiar-se na tradi-
ção metafísica, reafirma a positividade de um psiquismo, apresentado como
propriedade de um “eu” dotado de uma essência e que se apresenta interiori-
zado, voluntarista e racional. Essa situação, no entanto, gera divergências
que refletem as contradições do próprio projeto da constituição da Psicolo-
gia, que, enquanto ciência independente, procura reconstruir as relações do
homem consigo mesmo, com os outros homens e com o mundo a partir das
mais diversas teorias “explicativas” que ainda se encontram presentes no
momento contemporâneo.
Importa ainda ressaltar a influência das filosofias da subjetividade
e sua ênfase no sujeito como fundamento autofundante do mundo e das re-
presentações que, ao apresentarem um sujeito que pensa a si mesmo e que
posiciona os objetos, estabelecem a base para a dicotomia sujeito e objeto.
As teorias psicológicas constituíram-se nessa direção, pressupondo uma inte-
rioridade e a constituição de um “eu” substancializado, localizado no tempo
e no espaço, dotado de determinações e sentidos prévios, com privilégio do
modelo explicativo, próprio das ciências da natureza (Feijoo, 2011).
No entanto, com o reconhecimento da Fenomenologia como outra
possibilidade de interpretação do real, o modelo teórico explicativo assumido
pela Psicologia passa, gradativamente, a ser substituído por um modelo des-
critivo e compreensivo2. A partir desse período, reconhece-se a necessidade

2
A Psicologia, nessa passagem, foi influenciada pela crise vivida pela filosofia no final do
século XIX, principalmente pelas propostas formuladas por Dilthey as quais não serão
trabalhadas no presente texto, considerando os objetivos propostos.
28 Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

de superar a cisão sujeito e objeto, assume-se a intencionalidade da consci-


ência e o método de descrição como via de acesso ao conhecimento. A pro-
posta de uma Psicologia Fenomenológica a partir de Husserl confirma a fe-
nomenologia como orientação metodológica para as ciências humanas, entre
elas, a Psicologia, que se configuram como “ciências compreensivas”.
Essa diferença tão significativa possibilita reconhecer que as ciên-
cias compreensivas são influenciadas pelas descrições fenomenológicas da
estrutura da consciência e ressaltam os conceitos de intencionalidade, tempo-
ralidade e horizonte da consciência. Tais estruturas gerais da consciência
deram origem ao esboço de diversas fenomenologias referentes a diversas
regiões do ser – fenomenologias regionais, como a fenomenologia da per-
cepção de Merleau-Ponty. Entretanto, todas elas indicam formas próprias de
configuração da temporalidade e das experiências, constituindo a fenome-
nologia, não como método com procedimentos definidos, mas diluída na
obra de seus pensadores: Husserl, Merleau-Ponty, Heidegger e Lévinas, en-
tre outros.
Tal movimento filosófico é caracterizado pela superação da hege-
monia do pensamento representacional e da noção de verdade por adequação
e correspondência vinculada à produção do conhecimento sustentado sobre a
precisão metodológica do conceito. A linguagem deixa de ser concebida
como mero instrumento para a representação da realidade e passa a ser con-
siderada como constitutiva da própria condição humana de existir. Enquanto
a metafísica instaura o conhecimento sobre a segurança da precisão meto-
dológica e da representação/conceito fundada na relação entre sujeito epis-
têmico e seu objeto, a ruptura provocada pelos pensadores acima referidos
vai apontar para a possibilidade do conhecimento fundado na própria ontolo-
gia humana, condição em que a vida é dada ao homem (Critelli, 2006).
O resultado moderno e contemporâneo da necessidade de vincular
o pensamento e o conhecimento ao controle de sua representação vai desem-
bocar no modo técnico como o homem ocidental habita o mundo, com a
desvalorização ética do homem e a supremacia dos modelos técnicos e cal-
culantes de controle do mundo e do próprio homem. Tal modelo fundamenta
uma diversidade de compreensões e concepções de teorias e práticas psico-
lógicas culminando na “era das escolas” com suas oposições paradigmáticas
e amarras dogmáticas. No entanto, pode-se dizer, parafraseando Figueiredo
(2009), que a “era das escolas” entrou em crise desde a década de oitenta,
dando lugar a um “atravessamento de paradigmas” onde velhas oposições
teóricas são desfeitas e novas perspectivas emergem na tentativa de abrigar
as “novas patologias” como também outras possibilidades de inserção do
psicólogo em espaços de atuação fora dos enquadres tradicionais da psicote-
rapia clássica de consultório.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Diante de tal contexto, pergunta-se como pensar a Psicologia na


atualidade, que atravessamentos precisa fazer para se desvincular do modelo
das ciências naturais fundado em determinações essenciais e poder acolher o
estranho e a alteridade com a produção da diferença emergente? Como rom-
per com a prática psicológica circunscrita pela técnica e proveniente de teo-
rias psicológicas fundadas no positivismo e na metafísica, e poder acolher a
possibilidade de uma ação clínica mediada pelo “mistério”3 e pela busca da
verdade como “desocultamento”, profundamente imbricada com a ética e a
estética da tragédia? Apesar de se reconhecer hoje a dispersão do pensa-
mento psicológico e a falência da “era das escolas”, ainda se tem dificulda-
des de, no campo da ação clínica, atravessar as fronteiras definidas que de-
marcam os diagnósticos e as intervenções clínicas por territórios teóricos e
limitações de domínio.
Daí a necessidade de revisitar o território psicológico tendo por tarefa
questionar seus pressupostos ontológicos e analisar a possibilidade de adotar
novos pontos de partida mais originários, capazes de orientar a aproximação da
Psicologia aos fenômenos clínicos de modo mais radical, respeitoso e aderente
às suas manifestações existenciais imediatas no nosso tempo e no nosso con-
texto de globalização da objetificação e reiteração técnicas.

3 A FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL DE HEIDEGGER

É nesse contexto que se ressalta a importância do diálogo com o


pensamento de Heidegger, já que delineia uma compreensão filosófica crítica
e desconstrutiva da modernidade, expondo os riscos que apresenta para a vida
humana, submetida a um destino tecnocientífico. Época histórica instituída
quando as relações do homem com o homem e com os demais entes se dão a
partir das exigências e imperativos da ciência moderna. A proposta metafísica,
transmitida historicamente, recai no esquecimento do ser, situação que se foi
agravando até chegar ao tempo atual e institui relações do homem com os
outros homens e demais entes consolidadas pelas exigências e imperativos da
ciência e da técnica. Portanto, não é de estranhar que na modernidade a ques-
tão do ser torne-se absurda e sem sentido, destinada ao esquecimento.
Nessa direção convém frisar que, seguindo o pensamento de
Heidegger, o esquecimento moderno da questão do ser não é um aconteci-
mento isolado, traz implicações éticas e políticas para a existência humana
apresentando um diagnóstico filosófico da modernidade, que vai ter suas

3
Mistério aqui, considerado a partir de uma compreensão heideggeriana, é a condição em
que reside o vigor que possibilita o desvelamento daquilo que chamamos conhecimento.
30 Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

repercussões, entre outras dimensões, na constituição das ciências humanas,


em especial na Psicologia. Essa situação demarca a necessidade constante de
posicionamento crítico e investigativo diante das teorias psicológicas e de
suas propostas de ação clínica.
Nessa direção, uma reviravolta nas teorias psicológicas é provoca-
da pelo questionamento, feito por Heidegger, aos conceitos filosóficos mo-
dernos – subjetividade, objetividade, representação, verdade, humanismo –
considerados como sintomas de uma determinada (in)compreensão do ser.
No que concerne ao humanismo, Heidegger em Sobre o Humanismo (1995)
ao responder a uma das perguntas de Jean Beaufret, aponta que todo huma-
nismo se funda na interpretação metafísica do homem e “articulado no bi-
nômio de essência e existência, determina o ser do homem como a realização
(existência) das possibilidades (essência) de animalidade e racionalidade,
quer confira o primado à essência quer faça prevalecer a existência em suas
varias dimensões” (Carneiro Leão, 1995, p. 12). Ao ressaltar tal articulação,
Heidegger chama atenção para uma fundamentação da determinação do ser
que não é questionada pela metafísica, remetendo o “Sentido do Ser” para o
esquecimento.
Em tal compreensão, fundada na objetificação e conceituação do
ser do homem, predomina a interpretação técnica do pensamento típica das
ciências da natureza, mas como indica Heidegger, “diferente das ciências, o
rigor do pensamento não reside apenas a exatidão artificial, isto é, técnico-
teórica dos conceitos. O rigor do pensamento se edifica na medida em que
seu dizer permanece, exclusivamente, no elemento do Ser e deixa vigorar a
simplicidade de suas múltiplas dimensões” (1995, p. 27).
Tal afirmação ressalta o risco do pensar se transformar em técnica
na busca da explicitação das causas últimas e aponta para a necessidade de
superar a metafísica, repensando a “Essência do Ser” a partir da experiência
fundamental do esquecimento do ser. Nessa direção, a metafísica exige ser
repensada no fundamento de sua possibilidade e assim ser superada em seu
esquecimento, o que suscita a atitude de arrancar o ser do homem da inter-
pretação metafísica, repensando-o em relação ao ser.
Para tanto, importa retomar a crítica heideggeriana ao modo de
pensar metafísico, caracterizado pela apreensão conceitual das coisas media-
da por pressuposto teórico que viabiliza conclusões válidas e definitivas e,
assim, considerar a sua proposta de resgatar a compreensão do ser que outro-
ra se revelou para os pensadores pré-socráticos, buscando seu sentido, es-
quecido pelo pensamento metafísico. Esse outro modo originário de pensar
funda-se na diferença ontológica fundamental entre o ser (das Sein) e o ente
(das Seiende), pensados não como dualidade, mas em sua recíproca remis-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

são, conforme expressos pelo pensamento grego inaugural. O ente é tudo o


que apreendemos pelos sentidos e seu modelo de representação está subordi-
nado a relação de causa e efeito. O ser “se dá” como abertura originária,
lugar onde a invisibilidade do ser torna-se visível. No entanto, só o homem é
o único ente capaz, pela linguagem, de colocar a questão do ser.
Para Heidegger, o homem é compreendido como Dasein – “ser-o-
aí” –, ente que habita o aí, na abertura (Da), onde compreende o ser das coi-
sas (sein) e estabelece condições de possibilidade para o homem ser propri-
amente o que “é”. As demais denominações – sujeito, individuo, Self, alma,
consciência histórica – são perspectivas ônticas forjadas na interpretação
metafísica da essência do homem apreendida como simples presença, como
ente simplesmente dado (Heidegger, 2001b).
Importa ressaltar que, apesar de fazer parte da totalidade do ente, o
homem tem relação peculiar com o ser, porque este é revelado através do
sentido prévio que as coisas têm para ele. Essa pré-compreensão é ontológi-
ca, ou seja, é compreensão dada de forma imediata, pré-reflexiva, implícita,
desligada de qualquer estrutura maior de compreensão. Assim, a compreen-
são não se identifica mais com a representação, pois não se refere a nenhum
objeto em particular estando, agora, vinculada a possibilidades, ao projeto de
um horizonte onde algo pode acontecer. Essa distinção representa um marco
no rompimento com a perspectiva metafísica, na qual o conceito de repre-
sentação, como correspondente do objeto que pretende definir, ocupa um
lugar de relevância. Compreender, numa dimensão heideggeriana, refere-se a
ser esse poder-ser, estando o homem exposto à tarefa de ser sendo. Desse
modo, o mundo apresenta-se como projeto compreensivo originário, que
abre a possibilidade para a constituição de si mesmo, a partir de um hori-
zonte hermenêutico existencial onde tudo o que “é” pode-ser.
Sendo assim, o “ser-o-aí” existe compreendendo e como abertura
para o encontrar-se, inconfigurável por uma forma de compreensão vincula-
da à explicação. Tal compreensão, ao iluminar mundos – espaço do projetar-
se –, possibilita seu configurar e aparecer como o lugar em que o homem,
enquanto Dasein, habita. De acordo com Vazquez, “o homem é como se
compreende e se compreende sempre como ‘bem ou mal’ disposto. Não há
neutralidade afetiva na pré-compreensão, que é a própria presença”. (1999,
p. 148, grifos do autor). A disposição afetiva é um existencial, corresponde
onticamente aos humores cotidianos, manifestando-se compreensivamente.
Daí, a disposição afetiva e a compreensão constituírem o modo de ser do
homem, já que é sendo que ele se abre para si mesmo.
No entanto, o Dasein não tem, na maioria das vezes, a experiên-
cia de ser si mesmo, pode ser reflexo de atitudes irrefletidas, um ponto
32 Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

onde as prescrições do comportamento impessoal e público se entrecruzam,


não sendo especificamente ninguém. Assim, a existência humana se cons-
titui na ambiguidade profunda de seu ser: ontologicamente ser possível e,
por isso, entregue a onticidade imprópria de seu existir, atado e enredado
nas formas públicas de compreensão. Seu ponto de partida apresenta-se no
decaimento, isto é,

na tendência constitutiva do homem a entender-se desde a sua inserção


impessoal no “mundo” das ocupações; tendência a entender-se “como
todo o mundo”, à luz das coisas com que nos ocupamos, no modo do pa-
lavreado, da curiosidade, da ambiguidade. Essa tendência a mergulhar
na “publicidade” revela que o homem foge de ser si mesmo como de seu
poder-ser propriamente, que se desvia de si mesmo. (Vazquez, 1999, p. 149,
grifos do autor)

Na decadência, o homem se desvia e se retira de si mesmo, sentin-


do-se ameaçado pela própria presença, angustiando-se por seu próprio ser-
no-mundo. O que o ameaça não é algo concreto e determinado; a angústia o
remete, na decadência, à sua singularidade, a seu próprio poder-ser-no-
mundo. Essa é a função libertadora da angústia: arrastar a presença para a
propriedade de seu ser enquanto possibilidade de ser aquilo que já “é”, reti-
rando o homem da aparente segurança de sua fuga decadente. Na realidade o
homem foge da estranheza inerente à presença enquanto ser-no-mundo lan-
çado, descentrado, como projeto projetante, desde o seu ser situado numa
tradição, numa cultura, numa época. Mas, exatamente porque é possibilida-
de, pode extraviar-se e desconhecer-se. Se estivesse enclausurado em uma
subjetividade reguladora, as circunstâncias se acomodariam à consciência;
no entanto, como está entregue ao mundo, projetando-se, pode extraviar-se,
desconhecer-se e também encontrar-se de novo com sua responsabilidade
para experienciar a “si mesmo”, descobrindo-se como tarefa de poder-ser.
É principalmente diante da impossibilidade de qualquer possibili-
dade – o morrer – que o Dasein procura refúgio na superficialidade do coti-
diano, buscando, assim, escapar da angústia diante da finitude que o paralisa,
apesar de ser por meio dela que apreende o sentido de sua singularidade,
podendo ser reconduzido ao encontro de sua totalidade enquanto ser, afas-
tando-se da superficialidade objetivante do cotidiano.
Nessa direção, o existir humano nunca se reduz a uma simples
presença, pois esse existir supõe um ser também ausente, já que é um-ser-
para-a-morte, que acontece independente de todos os aspectos e de todas as
razões, revelada na angústia diante da impossibilidade, isto é, do “nada”. O
“nada” é a possibilidade de vir-a-ser algo, é o fundo sem fundo que não é
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

representável, mas que possibilita a mostração do ser. No mundo, nem tudo


pode ser representado e explicado, é necessário respeitar áreas que devem
permanecer em penumbra, pois são elas que guardam as possibilidades do
novo.
O ser humano pode aprender a viver projetando-se na direção do
“nada” ou agarrando-se a entes/verdades que parecem sólidos, estáveis, e
que possibilitam uma ilusória experiência do não vazio, de fugir do “nada”.
Experiência que remete à negatividade ontológica originária do homem,
apontando para a ausência de determinações prévias e para a indetermina-
ção constitutiva do ente humano, lançado no mundo como possibilidade de
poder-ser. No entanto, continuar vivo como humano supõe a possibilidade
de ser arrancado dessa indeterminação para poder-ser, implicando na cons-
trução do novo e na descoberta deste “estranho-em-nós” que nos habita e
só é desvelado, do silêncio do barulho do cotidiano em momentos de reco-
lhimento do ser.
Tal compreensão coloca em cheque a noção de verdade vinculada à
perspectiva metafísica, que é compreendida como adequação, conveniência
ou correspondência. A fenomenologia existencial assume, a partir de Heide-
gger, a verdade como aletheia, compreendida como desocultação, como
abertura do ser-aí que permite o mostrar-se dos entes. Nessa dimensão, os
entes podem figurar-se, desfigurar-se e refigurar-se, implicando a desoculta-
ção do fenômeno, o que permite nomeá-lo, instituindo um lugar para que
exista e possa ser reconhecido. Desvinculada do ideal metafísico, a verdade
está associada à possibilidade de revelação e transfiguração. Supõe vela-
mento, desvelamento, simulação; está associada ao caminhar do ser no mun-
do, suportando a impotência e a incidência, assumindo a angústia como par-
teira do movimento em caminho ao “nada”, recolhendo-se nos momentos de
silêncio que antecedem ao nascimento, à abertura para a vida, à descoberta
do mundo e das possibilidades de existir (Barreto, 2006).
Esse percurso ressalta a necessidade de repensar a “Essência do
Ser” a partir da experiência fundamental do esquecimento do ser, operada
pela metafísica. Tal esquecimento possibilita pensar certos acontecimentos
do mundo contemporâneo como: a exploração técnica e a econômica do
mundo, a transformação do tempo em rapidez instantânea e simultânea, o
desaparecimento do tempo como história e a desvalorização da hierarquia
entre os acontecimentos históricos. Acontecimentos não radicados exclusi-
vamente no homem, mas na história (Geschichte) do ser enquanto metafísi-
ca, e que realçam a força da ciência e da técnica moderna com seu interesse
voltado para os entes em sua possibilidade de cálculo, organização e previsi-
bilidade, relegando o ser ao estatuto de um nada, destinado ao esquecimento.
34 Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Tal diagnóstico filosófico da modernidade, empreendido por Heidegger, de


modo crítico e desconstrutivo, permite a abertura de novas brechas para o
pensamento e para a ação presente (Duarte, 2010).
Nessa direção, o estatuto hermenêutico ontológico da Analítica
Existencial, apresentada em Ser e tempo, possibilita avanço importantíssimo
na tentativa de desvencilhar a história do pensamento ocidental de suas ori-
gens metafísicas. Nesse contexto, ao descerrar os fundamentos da moderni-
dade e abrir o paradigma da existência, tal estatuto não poderia levar a outra
compreensão da ação clínica constituída em debate com o espírito da época
que a configurou?
É nessa direção que novas possibilidades de pensar a ação clínica
podem ser apresentadas e discutidas, acolhendo e deixando-se afetar pela
dimensão ontológica existencial do acontecer humano, ao modo de Heide-
gger. Aponta, talvez, para a necessidade de desconstrução fenomenológica
da ciência psicológica, remetendo seus componentes metafísicos à origem
comum não metafísica; encaminha-se, então, para outra compreensão do
modo de Ser do ser humano, compreendido como pura possibilidade, fragili-
dade permanente, como pura abertura e tarefa de ser-no-mundo.

4 A AÇÃO CLÍNICA E OS PRESSUPOSTOS


FENOMENOLÓGICOS EXISTENCIAIS

Antes de qualquer tentativa de pensar a ação clínica numa perspec-


tiva fenomenológica existencial, importa reconhecer o perigo de aplicar o
pensamento filosófico para propor mais uma teoria com propostas de inter-
venções definidas e prescritivas. Apesar de se reconhecer que não é esse o
caminho que pretendemos seguir. Ao retomar a construção da Psicologia
como ciência e ao reconhecer suas origens na ciência moderna, questiona-se
a possibilidade de uma ação clínica não mais submetida às perspectivas fun-
dadas na subjetividade moderna e aponta-se para a possibilidade de uma
clínica com pressupostos fenomenológicos existenciais.
Nessa direção, retoma-se a compreensão de Dasein e suas “estrutu-
ras existenciais” no intuito de encaminhar o pensar para uma clínica psicoló-
gica aberta aos questionamentos dos diversos modos de ser do homem, com-
preendido como incompletude e indeterminação, como abertura e tarefa de
ser. Daí importa chamar atenção para a noção de “estruturas existenciais”
que, ao modo de Heidegger, emergem com o acontecimento do existir. Tais
estruturas não estão atreladas a uma propriedade individualizada anterior à
existência e, do mesmo modo que o ser-o-aí, não aparecem como algo sim-
plesmente dado.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Partindo da compreensão do homem como “ser-o-aí”, desprovido


de essencialidades e estruturas psíquicas construídas previamente, é possível
apontar para a possibilidade de pensar a ação clínica desvinculada da com-
preensão do ser do homem como mera presentidade, mero jogo de forças
determinado pelo princípio da causalidade. Essa desconstrução inclui a ten-
tativa de desfazer as metáforas explicativas subjacentes ao material clínico
interpretado, o qual deve ser repensado em termos do poder-ser constitutivo
do estar-aí.
Tal posicionamento remete à necessidade de pensar a clínica não
mais vinculada a uma ação clínica restrita à hegemonia da técnica e dos li-
mites traçados pela dicotomia operada pelo pensamento ocidental e mantida
pela Psicologia. Clínica, no presente contexto, é pensada a partir do termo
grego Kline; assim estaria vinculada ao inclinar-se para acolher aquele que
precisa de cuidado.
Ao pensar a clínica como cuidado, a ação clínica desloca-se do
âmbito das teorias e técnicas psicológicas para aquela da existência, compre-
endida como abertura originária ao ser dos entes enquanto pré-compreensão
e à condição de estar lançado em uma facticidade temporal. Também possi-
bilita uma fundamentação ontológica ao cuidado clínico, desvinculando-o da
teorização científica e das “escolas de psicologia” que defendem uma con-
cepção humanista, subjetivista, técnica e emocional.
Cuidado, ao modo de Heidegger, remete à configuração da existência
humana que se apresenta como “estrutura de cuidar”, dimensão ontológica do
modo de ser do Dasein constitutivamente compreendido como temporalidade.
Importa ressaltar que Heidegger (1989), ao compreender o cuidado (Sorge)
como ocupação (Besorgen) e preocupação/solicitude (Fürsorgen), possibilita
mediar a compreensão da ação clínica como “ação preocupada”, atenta ao
modo como o cliente vive o seu cuidar, a sua existência, a sua história.
Tal compreensão de cuidado aponta para outra compreensão da
ação clínica do psicólogo que, ao assumir a clínica como modo próprio de
cuidar, afirma a importância de dar sentido às vicissitudes da existência
como também à implicação/afetação da presença do psicólogo clínico que
cuida das diversas funções do cuidar. Assim, a ação clínica converge para
intervenções implicadas no movimento de experienciação do cliente, acom-
panhando-o na tarefa de apropriar-se do que já sabe pré-reflexivamente, te-
matizando as experiências que vão desvelando-se no existir.
Essa ação exige uma conversão epistemológica, evitando qualquer
objetivação e determinismo da experiência narrada, que funcionaria como
paradigma prévio, eficaz mas incapaz de manter-se na abertura à acontecên-
cia, portanto, cego para o fenômeno na sua singularidade.
36 Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Nessa direção a ação do psicólogo clínico estaria comprometida em


“(...) por em claro a possibilidade de estabelecer outras formas de relação e
habitar outros mundo, abrindo para o outro a possibilidade de liberdade
onde o outro é deixado entregue ao seu poder-ser. Atitude que afirma o cui-
dado como constituição ontológica do ser humano, já que o homem não tem
cuidado, é cuidado” (Almeida, 1999, p. 46, grifos do autor).
Atento à narrativa4 do cliente, o psicólogo clínico abre a possibili-
dade para o cliente se comprometer com a narrativa de sua própria história
de vida, assumindo-se como cuidado, na tentativa de vislumbrar um modo
outro de estar no mundo, diferente das cristalizações aprisionantes, o que
implica criar um sentido possível, respondendo ao destino. Assim, o cliente
toma sob seu cuidado a sua existência, respondendo, propriamente, ao modo
como é “afetado” pelas coisas ou pelos outros que estão aí, no mundo.
O ser humano existe lançado no mundo, na facticidade do cotidia-
no, enredado nas circunstâncias estruturais já interpeladas pelo público. A
interpretação pública do mundo circunscreve o sentido do existir humano
como projeto e tarefa. No entanto, é nesse mundo, a partir dele e contra ele
que o homem, se possível, pode se “desmisturar”, resgatando seu ser próprio.
Assim, tem como tarefa cuidar da própria existência que se apresenta como
pura possibilidade e abertura ao ser. Desse modo, é livre para o mais peculiar
poder-ser: modalizar, impropriamente, suas possibilidades cotidianamente
como a-fim-dos-outros ou acolher criativamente, desde o mundo, seu próprio
destinar-se, suspenso em suas possibilidades, existindo a-fim-de-si-mesmo
(BARRETO, 2006).
Para Medard Boss, a ação clínica pode ser compreendida como: “...
o fato dela mesma ser livre e permitir aos homens tornarem-se livres dentro
dela. Como psicoterapeutas queremos, no fundo, libertar nossos pacientes
para si mesmos [...]. Com a libertação psicoterápica queremos levar nossos
pacientes ‘apenas’ a aceitar suas possibilidades de vida e dispor delas li-
vremente e com responsabilidade” (1977, p. 61, grifos do autor).
Desse modo, a clínica como cuidado remete a um “aguardar” paci-
ente e solícito, acompanhando o cliente no “desvelamento” das inúmeras
possibilidades e modos-de-ser no mundo, na procura pela “verdade” de sua
história, da qual fazem parte o vigor de ter sido (o passado) e o que está por
vir (o futuro). Ser temporal é constitutivo do Dasein, e é no aí do ser-o-aí que
o tempo se dá, tempo em que futuro, passado e presente se alcançam recipro-

4
Narrativa compreendida no sentido explicitado por Walter Benjamin ao assinalar a falên-
cia das narrativas tradicionais, na modernidade, que poderiam proporcionar aos membros
de uma comunidade uma experiência que possa ser dita e significada.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

camente, numa dinâmica totalmente diferente do tempo linear, cujo passar


pode ser acompanhado pelo relógio ou calendário. Tempo que suporta e abre
a possibilidade do Dasein, cujo fundamento é não ser, se entregue à tarefa de
vir-a-ser no horizonte da temporalidade.
A clínica como cuidado é consequência direta da desconstrução
empreendida pelo pensamento heideggeriano em Ser e tempo, ao enfatizar
os riscos e perigos decorrentes do processo de objetificação operado pelas
ciências e que lançaria o “Dasein nos sofrimentos de sua a-patridade, isto
é, exila o homem do aí (Da) de sua pátria essencial, empurrando-o na der-
relição e no ‘abandono, longe do ser’” (Michelazzo, 2000, p. 110, grifos do
autor). Nesse contexto, a ação clínica não estaria mais vinculada a proce-
dimentos técnicos, já que a ciência perdeu sua originalidade, exclusividade
e força para pensar o existir humano. As ciências são consideradas por
Heidegger, em Ser e tempo, como “necessariamente insuficientes” em sua
própria estrutura científica para acolher o ser do ente. Ao se ocuparem dos
entes, buscando resultados verificáveis, as ciências não tematizam a com-
preensão a priori de ser já que não têm acesso à constituição ontológica
dos entes que investigam (Duarte, 2010).

5 A DETERMINAÇÃO DA ESSÊNCIA DA TÉCNICA


MODERNA E A AÇÃO CLÍNICA

Caminhando na tentativa de pensar a ação clínica desvinculada


do domínio da técnica, fenômeno essencial da ciência moderna, envere-
damos pelos escritos de Heidegger dos anos 40 e 50, nos quais o procedi-
mento desconstrutivo se tornaria mais radical, passando a exigir o ultra-
passamento (Überwindung) da ciência e da própria filosofia pelo pensa-
mento não metafísico e que poderia favorecer “a constituição de discipli-
nas científicas existencialmente fundadas, as quais escapassem dos dile-
mas e perigos em que a pesquisa científica tradicional se enreda sem sabê-
lo” (Duarte, 2010, p. 142).
Tal mudança paradigmática só é possível orientando os passos do
pensamento em direção ao caminho que conduza à superação da metafísica.
Mas, como adverte Michelazzo (2000), superar a metafísica não pode ser um
simples projeto de nossa vontade consciente, já que se trata de um “destino”
aqui compreendido como aquilo que o âmbito da verdade do ser nos dispen-
sa. E, diante disso que o destino nos envia, “podemos tomar três atitudes:
resignarmo-nos, revoltarmo-nos ou meditar. Somente a terceira é a que pode
trazer transformações, pois é a única que verdadeiramente é capaz de entrar
em diálogo com o que o destino nos remete” (Michelazzo, 2002, p. 11).
38 Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

No entanto, importa ressaltar que, ao propor a superação da metafí-


sica identificada à época da técnica, Heidegger não está propondo o abando-
no ingênuo da técnica e da metafísica, nem jamais investiu contra a técnica,
mas procurou considerar criticamente a falta de reflexão a seu respeito, ope-
rada pela época moderna. Como esquecimento do ser, a metafísica não é
substituída por outra concepção do ser ou visão do mundo, mas é superada
no esquecimento do ser pelo reconhecimento da diferença ontológica entre
ser e ente. Tal superação se dá no pensamento que medita o domínio incon-
dicional da técnica e abre a possibilidade de assumir esse domínio como
destinação, ao marcar outra relação pensante para o modo de descobrimento
técnico do ser dos entes. Possibilidade que se apresenta pela redescoberta de
modos mais originários do desvelamento do ser dos entes via pensamento
meditativo.
Essa outra atitude, desprovida de qualquer certeza quanto à sua re-
alização, foi denominada por Heidegger de “serenidade (Gelasseneheit) para
com as coisas”. Assim, “A serenidade em relação às coisas e a abertura ao
segredo são inseparáveis. Concedem-nos a possibilidade de estarmos no
mundo de um modo completamente diferente. Prometem-nos um novo solo
sobre o qual nos possamos manter e subsistir (atehen und bestehen), e sem
perigo, no seio do mundo técnico” (Heidegger, 1959, p. 25).
Mas, este modo novo de pensar não pode ser tornado visível, nem
pode predicar e emitir valorações morais. Para Heidegger, na entrevista que
concedeu à revista Der Spiegel em 19665, “talvez se possa aventurar o se-
guinte: ao mistério da superpotência planetária da essência impensada da
técnica moderna responde a provisoriedade e a insignificância do pensar, que
procura refletir sobre esse impensado” (Heidegger, 1994, p. 225). Nessa
mesma entrevista, esclarece que esse novo modo de pensar se encaminha
para pensar de antemão os tempos que virão a partir das dimensões atuais e
impensadas da era atual, sem pretensões de profecia, contribuindo para que o
homem estabeleça outra relação, suficientemente rica e verdadeira, com a
essência da técnica. Este outro modo de pensar a peculiaridade da técnica
moderna “pode abrir a possibilidade de que o homem da era da técnica expe-
rimente a vinculação a um apelo, que ele esta capacitado para ouvir, e ao
qual, sobretudo, ele mesmo pertence” (Heidegger, 2009, p. 39).
Mas como escutar esse apelo e adotar outra postura com relação
àquilo que na técnica é essencial? Ao pensar a essência da técnica, Heide-

5
Entrevista que, segundo o desejo de Heidegger, só foi publicada após seu falecimento em
maio de 1976. Para consulta, recorreu-se à publicação de 1994, composta por um conjunto
de textos, denominada de “Escritos Políticos”. Nessa publicação utilizou-se a tradução de
Jean Launay publicada no ‘Mercure de France’ em Paris, 1977.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

gger chama atenção para a diferença entre a técnica e sua essência, já que a
essência não é algo propriamente técnico. A técnica seria um conjunto de
meios para alcançar um fim, cabendo ao homem articular e julgar os meios
necessários para o alcance dos fins – técnica instrumental. Já com relação à
essência da técnica, Heidegger interroga a definição da técnica como instru-
mento, considerando-a como ponto de partida para o pensamento voltado
para a compreensão da verdadeira essência da técnica, pois “somente o ver-
dadeiro nos leva a uma livre relação com o que nos toca a partir de sua es-
sência” (Heidegger, 2001a, p. 45).
Nessa direção, Heidegger recorre ao pensamento grego, no qual a
causalidade é pensada na sua dimensão original como deixar surgir e vir à
presença, como trazer à luz o que se apresenta, como poiésis – produzir
como deixar trazer o que foi produzido, retirando-o do velamento (Verbor-
genheit) para o desvelamento (Unverborgenheit). Assim a poiésis é um tra-
zer à luz o que se encontrava velado e estaria vinculada à concepção de ver-
dade como aletheia – a verdade em seu sentido originário como desvela-
mento –, diferente da concepção da verdade como veritas – compreendida
como adequação entre a coisa e a ideia – mas que impediria compreender a
essência originária da técnica. Nessa direção, haveria uma distinção entre o
desocultar como “pro-duzir” (Her-stellen), um pôr-se adiante à luz, e o deso-
cultar que desafia e põe a natureza como fonte de recursos disponíveis.
Ao lado dessa reflexão, Heidegger (2001a) considera que o ente
desocultado pela tecnologia moderna, colocado e demandado para seu em-
prego contínuo, assume a posição ontológica que denominou por “subsistên-
cia”, disponível para qualquer agenciamento tecnológico. Assim, “a palavra
‘subsistência’ eleva-se agora à categoria de um título. Ela significa nada
menos que o modo pelo qual tudo o que é tocado pelo desocultamento desa-
fiante se essencializa” (Heidegger, 2001a, p. 61).
Além da natureza, o próprio homem como ente também estaria dis-
ponível para o agenciamento tecnológico de sua produção, conservação, des-
truição e reprodução. Esse é o ponto extremo a que chega o diagnóstico heide-
ggeriano sobre o perigo implícito na técnica moderna denominada como “dis-
positivo” (Gestell). Dispositivo que demarca o modo como o nosso presente
assume sua dimensão “historial”, seu caráter ontológico enquanto época histó-
rica determinada, diferente de outras épocas. Cada época histórica, compreen-
dida não como sucessão de momentos cronológicos, mas como modalidades
distintas de “abertura” na qual os entes vêm a ser o que são, se constitui como
resposta humana a um determinado modo de desocultamento dos entes em seu
ser. Assim, o dispositivo seria o modo como hoje nos relacionamos conosco,
com os demais homens e com tudo o que há na modernidade.
40 Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

No entanto, adverte-nos Heidegger (2001a), o perigo supremo não


consiste na moderna tecnologia, mas sim em que o dispositivo da técnica
moderna, considerado como único modo de desocultar, pode ofuscar todos
os outros modos de desocultamento, inclusive aquele que possibilita levar o
ente à presença como acontecimento no sentido originário de poiésis e a
concepção de verdade como o “acontecer do desocultar”. Nessa direção ne-
nhuma ação humana, considerada na sua dimensão instrumental, pode trans-
formar a essência da técnica. Só outra relação entre homem e ser, que só
poderia ser esperada e preparada na ausência de qualquer certeza quanto à
sua realização, pode transformar a essência da técnica moderna, visto que a
técnica moderna se configura como “abertura ontológica na qual os entes
fazem sua aparição no nosso tempo”. (Duarte, 2010)
Nesse ponto, retomamos a “serenidade para com as coisas”, associ-
ada por Heidegger (1959) ao pensamento meditativo como outro modo de
preparar o acontecimento de outra relação com o ser – pensar o ser em sua
verdade, em seu acontecimento historial. O pensamento que medita aponta
para a necessidade de não permanecer vinculado a um único modo de repre-
sentação (dispositivo), exige que nos ocupemos com o que parece inconcili-
ável, à primeira vista. Ao reconhecer diferentes modos de pensar, Heidegger,
em Serenidade (1959), aponta para a simultaneidade da atitude de dizer sim
– pensamento que calcula – e não – pensamento que reflete – em relação ao
mundo técnico. Tal atitude aponta para o fato do homem não poder exercer
um controle voluntário do uso da técnica moderna nem deter o curso do des-
envolvimento científico-tecnológico. No entanto, tal situação não significa
ficar resignado diante do avanço científico e técnico, mas exercer a atividade
de pensar o destino moderno em que todos se encontram.
Para tanto é necessário estabelecer uma relação livre com a essên-
cia da técnica, via pensamento meditativo, na busca do mistério de toda ati-
tude de desocultamento. Importa ressaltar que, na perspectiva heideggeriana,
o homem só se torna livre na medida em que “pertence ao âmbito do desti-
no” (Heidegger, 2001a). Tal liberdade é distinta da noção moderna de livre
determinação do querer humano via razão, presente na perspectiva huma-
nista. É pensada na sua dimensão ontológica como atenção solícita ao envio
historial que o homem contemporâneo foi lançado.
Assim, a essência da técnica mostra-se profundamente ambígua e
misteriosa, arrastando consigo a possibilidade ameaçadora de poder vetar ao
homem voltar-se para o descobrimento mais originário e fazer assim a expe-
riência de uma verdade mais inaugural. Nesse momento de sua reflexão,
Heidegger intervém com a iluminação poética de Hölderlin – “Ora, onde
mora o perigo é lá que também cresce o que salva” (Heidegger 2001a, p. 31).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Assumindo a inspiração do poeta, é possível pensar que o perigo


e a salvação se dão escondidas, em silêncio e no seu tempo. Daí decorre a
importância de questionar a essência da técnica já que nela repousam as
raízes da força salvadora – apenas onde surge o perigo, é possível pensar o
próprio perigo em sua essência e assim instaurar uma relação livre com o
próprio ser, um deixar-ser que não tenha como fim calcular e planejar tudo
o que é.
Pensar a essência da técnica em seu caráter historial é pensá-la
como um envio que suscita a participação do homem, enquanto aquele que
aceita resguardar e proteger a essência da verdade, consentindo em enviar o
acontecimento do desocultar, portanto aquilo que salva.
Desse modo a nossa relação com o mundo técnico pode se tornar
mais livre com relação às determinações essenciais de nossa época, suscitan-
do outros sentidos possíveis para a existência do homem moderno, acossado
pela técnica e pela ciência. É, portanto, possível pensar uma relação mais
tranquila com o mundo da técnica se,

Deixamos os objetos técnicos entrar no nosso mundo quotidiano e ao


mesmo tempo deixamo-los fora, isto é, deixamos repousar em si mesmo
como coisas que não são algo de absoluto, mas que dependem elas pró-
prias de algo superior. [...] Nessa atitude já não vemos as coisas apenas
do ponto de vista da técnica. Tornamo-nos clarividentes e verificamos
que o fabrico e a utilização de máquinas exigem de nós, na realidade,
uma outra relação com as coisas que, não obstante, não é sem sentido.
(Heidegger, 1959, p. 24)

Ao reconhecer essa outra possibilidade de relacionar-se com o


mundo da técnica, Heidegger ressalta a profunda modificação que está
acontecendo na relação do homem com a natureza e o mundo, alertando que
o sentido que rege essa transformação permanece obscuro. O sentido do
mundo técnico oculta-se – é algo que se oculta de nós e se oculta exatamente
por vir ao nosso encontro, como bem diz Aganbem (2010), ao tentar com-
preender o contemporâneo. Assim, o mistério, intrínseco ao sentido do mun-
do técnico, demanda uma atitude de “abertura ao mistério” que junto à “se-
renidade em relação às coisas”, são inseparáveis e;

Concedem-nos a possibilidade de estarmos no mundo de um modo com-


pletamente diferente. Prometem-nos um novo solo sobre o qual possamos
manter o subsistir (stehen und bestehen), e sem perigo, no seio do mundo
técnico. A serenidade em relação às coisas e a abertura ao mistério dão-
nos a perspectiva de um novo enraizamento, que agora se desvanece ra-
pidamente. (Heidegger, 1959, p. 25)
42 Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Com muito cuidado, ousa-se tentar uma compreensão da clínica


como a possibilidade de criar um espaço de reflexão e tematização deste
modo histórico de desvelamento, ou seja, um espaço para meditar, uma
abertura a outros modos de pensar. Pensar que pode permitir a apropriação
do jogo histórico que nos constitui e que pode revelar o modo instrumental
como nos relacionamos com os outros, com as coisas e com o mundo.
Tal modo de pensar exige esforço e carece de cuidado atento e si-
lencioso, na escuta daquilo que está próximo e que diz respeito a cada um de
nós neste mundo dominado pela técnica, com transformações em todas as
representações dominantes, inclusive no modo como o homem se relaciona
com os outros homens, as coisas e o mundo.
O espaço da clínica pode apresentar-se como possibilidade de re-
fletir sobre estas relações na busca de um novo enraizamento e, desse modo,
pôr-se a caminho via reflexão. Para isso é preciso reconhecer o aprisiona-
mento operado pelo pensamento que calcula, ao indicar um sentido único na
direção de uma representação ou de modo de ser no mundo, consigo mesmo
e com os outros. O pensamento que medita aponta para o mistério e o que é
aparentemente inconciliável, permitindo correr riscos de soltar os objetos, de
questionar as relações e os modos como nos ocupamos das coisas. Desse
modo, pode-se utilizar os objetos tal como podem ser utilizados e, simulta-
neamente, pode-se deixá-los repousar em si mesmos, impedindo que nos
absolvam e que nos aprisionem.
Como a ação clínica acontece via linguagem, importa refletir a
possibilidade de pensar a linguagem não como veículo da comunicação de
algo que acontece no interior do homem, nem como adequação entre con-
ceito e ideia. Em todo pensamento heideggeriano, a linguagem é pensada
ontologicamente a partir da consideração da abertura – o modo no qual se
manifesta o próprio existir humano –, constituída pela compreensão, dispo-
sição e discurso. Diferentemente de Ser e tempo, onde a linguagem é pen-
sada como abertura (Erschlossenheit) propiciada pela apropriação de si
mesmo, no Heidegger tardio, a linguagem é pensada como abertura (Offe-
nheit), na dimensão de clareira do ser, cujo dizer revela o que diz na sua
correspondência silenciosa com o ser que pertence à linguagem. Importa
realçar que o discurso, em conexão com a compreensão e a compreensibili-
dade, se dá a partir das possibilidades existenciais da escuta e do silêncio,
enraizadas no existencial do discurso. O ouvir está fundado no escutar si-
lencioso e em sua compreensão, supondo um calar que possibilita tanto o
escutar a si mesmo e ao outro, como escutar o chamado silencioso do ser
em seus envios epocais. Já o falar não é o mesmo que dizer, dizer significa
mostrar, deixar aparecer, deixar ver e ouvir.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

No período da ontologia fundamental, a análise da linguagem esta-


va vinculada à analítica existencial e voltava-se para desvelar o caráter de
abertura do ser-o-aí em seu comportar-se para com o próprio ser. O Heide-
gger tardio deslocou a ênfase da existência enquanto abertura manifesta no
modo de comportar-se do ser-o-aí com o próprio ser, para ek-sistência (Ek-
sistenz), compreendida como correspondência para o aberto do ser enquanto
tal. Na Kehre, Heidegger não mais afirma a linguagem como modo de ser do
ser-o-aí, mas indica que pensar a essência da linguagem é remeter o homem
ao lugar da sua ‘essência’, ao “recolhimento do acontecimento-apropriador”.
Nesse momento é possível articular a relação entre ser, linguagem e pensa-
mento meditativo. Isto é, é pelo pensamento meditativo que o ser vem à lin-
guagem que passa a ser compreendida como a casa do ser.
Nessa direção, pensar a ação clínica, inspirada no Heidegger tardio,
remete a pensar a linguagem de maneira meditativa que supõe um expor-se à
experiência ao estranho. Assim, a ação clínica não estaria voltada para res-
ponder a um conhecimento científico (teorias psicológicas), vinculado à lin-
guagem enquanto veículo da transmissão de informações sobre os sofrimen-
tos humanos, que tentaria encontrar e explicar a causa de determinados ‘dis-
túrbios da existência’. A ação clínica implicaria sofrer uma experiência com
a linguagem que se abre à experiência do pensamento que interroga e não
explica o ser da linguagem.
Assim, apenas outro pensamento e outra linguagem poderiam aju-
dar ao homem a situar-se e buscar esclarecimento sobre o nosso momento
contemporâneo de desenraizamento – de ausência de pensamento e de lin-
guagem. Tal virada é necessária pois “somos muitas vezes pobres-em-
pensamento; ficamos sem-pensamentos com demasiada facilidade. A ausên-
cia-de-pensamentos é um hóspede sinistro que, no mundo actual, entra e sai
em toda parte” (Heidegger, 1959, p. 11).
Nessa direção, pode-se questionar: poderia a ação clínica “propi-
ciar’ ao homem assumir a sua capacidade de pensar, capacidade que lhe é
inerente, apesar de estar numa época em que é comum a fuga de pensamen-
tos? Tenta-se refletir esse questionamento tendo como suporte o texto “Sere-
nidade” de Heidegger.
Como o homem está “destinado a pensar”, a fuga de pensamentos é
compreendida como fenômeno epocal, “e deriva do facto de o Homem não
querer ver nem reconhecer essa mesma fuga” (Heidegger, 1959, p. 12). Nes-
se mesmo texto Heidegger afirma que

O Homem actual negará mesmo, redondamente, está em fuga de pensa-


mento”. Afirmará o contrario. Dirá – e com pleno direito – que em época
44 Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

alguma se realizaram planos tão avançados, se realizaram tantas pesqui-


sas, se praticaram tantas investigações de forma tão apaixonada, como
actualmente. Com toda a certeza. Esse dispêndio de sagacidade e refle-
xão foi de extrema utilidade. Um tal pensamento será sempre indispensá-
vel. Mas convém precisar que será sempre um pensamento de um tipo es-
pecial. (Heidegger, 1959, p. 13)

Com essa colocação Heidegger explicita o pensamento calculante,


que, por não ser um pensamento que medita, não é um pensamento que re-
flete sobre o sentido que atravessa tudo o que existe. Como o homem é o ser
que pensa e medita, ele pode seguir o caminho da reflexão considerando seus
limites. Mas, tal modo de pensar exige esforço, carece de cuidados e tem que
saber aguardar o desvelar do fenômeno, na busca de um novo enraizamento,
perdido no espírito do tempo da época em que estamos vivendo.
Diante de tal situação, Heidegger (1959) interroga a possibilidade
do: “Homem ou a obra humana medrar do solo da terra natal e crescer em
direção ao Éter, ou seja, em direção à extensão (Weite) do céu e do espírito?
Ou cairá tudo nas tenazes do planejamento e do cálculo, da organização e da
automatização?” (p. 17).
Ao proferir tal questão, Heidegger indica, na celebração comemo-
rativa da morte de Conradin Kreutzer, a possibilidade de refletir sobre a per-
da de enraizamento de nossa época, alertando para o perigo do domínio do
modo de pensar calculante que poderia passar a ser exercido como o ‘único’
pensamento admitido no momento atual. Caso isso aconteça, o homem teria
rejeitado o que lhe é mais próprio, o fato de ser um ser que reflete. Alerta
para a importância de “salvar essa essência do homem. Por isso o importante
é manter desperta a reflexão” (Heidegger, 1959, p. 26).
Seria muita ousadia pensar a situação clínica como um espaço que
possa aguardar, de modo respeitoso e silencioso, a reflexão meditante sobre
o modo como o cliente está vivendo a sua vida e como está compreendendo
o momento atual? A ação clínica poderia possibilitar o alvorecer do estranho
e a possibilidade da emergência de sentido que resulte da reflexão decorrente
do pensamento meditativo? A própria ação clínica não deveria estar atraves-
sada pelo pensamento meditativo, não mais ancorada em dimensões metafí-
sicas e prescritivas na busca da remissão dos sintomas e na retomada da se-
gurança ocasionada pela fuga de pensamentos?
Com essas questões, apresentam-se reflexões/interrogações sobre a
ação clínica mediada pela questão da técnica moderna, alertando que se en-
contram em trânsito aquecidas pelas situações clínicas e pelo pensamento
heideggeriano.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como já foi dito, não é pretensão, da presente reflexão, aplicar o


pensamento de Heidegger para criar uma nova corrente psicológica, mas
encontrar subsídios, no seu modo de pensar, para refletir novas possibilida-
des para a Psicologia e, em especial, para a ação clínica.
Assim, pode-se ousar dizer que a Psicologia, enquanto ciência, se for
pensada na sua radicalidade, não pode prescindir das estruturas ontológicas da
fenomenologia existencial e da compreensão da técnica enquanto poiésis e
aletheia. Desse modo, afasta-se do modelo de pensar metafísico que originou o
pensamento do ocidente e a construção da ciência e da técnica moderna, como
também fundamentou a construção da Psicologia como ciência moderna.
Ainda que haja poucas referências, no pensamento de Heidegger,
sobre uma possível relação da analítica existencial e as ciências humanas e,
em especial, com a Psicologia, seu modo de pensar a condição humana como
Dasein possibilita refletir sobre a constituição de uma Psicologia intemporal
e uma análise existencial do psiquismo humano (Stein, 1988). Ainda segun-
do o autor citado, Heidegger “não vê, portanto, na análise das estruturas
invariantes sob o ponto de vista temporal do estar-aí uma necessária colisão
com as interpretações que se apresentam como empresa das diversas ciênci-
as humanas ocupadas com as interpretações de questões existenciais no
nível empírico” (STEIN, 1988, p. 92).
Para além da analítica existencial, a partir do Heidegger da segunda
metade dos anos 40, vai-se consolidando a limitação da atitude científica em
termos dos procedimentos metódicos de objetivação do ente, já que o inte-
resse técnico-científico está voltado para assegurar, de maneira planejada e
calculada, as possibilidades de produção, reprodução e até destruição, visto
que a ciência e a técnica moderna se tornaram cada vez mais intervencionis-
tas. Tal atitude, ao implicar uma nova determinação ontológica de tudo o que
há como subsistência, considera o próprio homem como agenciamento tec-
nológico de sua produção.
Este perigo, alertado por Heidegger (1959), pode também se apre-
sentar na configuração da ação clínica, perfazendo uma Psicologia mediada
pelas representações diagnósticas e por intervenções prescritivas e técnicas
como procedimentos destinados a atingir um determinado fim – a cura dos
sintomas. Desse modo, é possível, manipular, controlar, tamponar e objetivar
o sofrimento humano.
Diante de tal possibilidade, encaminha-se, ainda que de modo incon-
cluso, reflexões no sentido de pensar a ação clínica como um modo de estar
com o outro/cliente, que poderá manter-nos despertos, no aguardar, silencioso
46 Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

e atento, o pensamento que medita, já que “a serenidade para com as coisas e a


abertura ao mistério nunca nos caem do céu. Não são frutos do acaso (nichts
Zu-fälliges). Ambas medram apenas de um pensamento determinado e ininter-
rupto”. (Heidegger, 1959, p. 26).

7 REFERÊNCIAS
Agamben, G. (2010). O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos.
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Barreto, C. L. B. T. (2006). A ação clínica e os pressupostos fenomenológicos existenciais.
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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES DA
FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL
PARA A AÇÃO PSICOLÓGICA NA
PRÁTICA E NA PESQUISA
EM INSTITUIÇÕES
Henriette T. P. Morato

Sumário: 1. Ser Clínico: uma Possibilidade de Leitura Fenomenológica


Existencial. 2. Linguagem: Dizer e Ouvir para “Fazer Senti-
do”. 3. Para a Ação Psicológica na Prática e na Pesquisa em
Instituições. 4. Para Arrematar. 5. Referências.

Buscar aproximar a Psicologia, como ciência, da Filosofia, como


teoria do conhecimento, é tarefa im-pertinente. São modos de pensar que
nem sequer caminham em paralelo. Cumpre ao filósofo resgatar o caminho
próprio da Filosofia, enquanto ao psicólogo talvez seja possível caber com-
preender o modo de ser psicólogo como humano que é, não pelo modelo de
cientista da Psicologia.
Desse modo, este trabalho se resume a uma ousadia: procurar articular
algumas considerações da Fenomenologia (analítica) Existencial de Heidegger e
a ação psicológica, no modo como ocorre na prática e na pesquisa em institui-
ções. O caminho a percorrer envereda pelos existenciários e, a partir deles, poder
compreender o modo de ser clínico pela sua acontescência em campo.
Nesse percurso, recorre-se a uma tese de doutorado (Almeida, 2005)
orientada pela autora, que buscou compreender Aconselhamento Psicológico
por uma leitura fenomenológica existencial. Entremeando, será tentada uma
interpretação, tomando por base alguns textos anteriores a respeito de compre-
ensões da prática e pesquisa em projetos de intervenção em instituições.

1 SER CLÍNICO: UMA POSSIBILIDADE DE LEITURA


FENOMENOLÓGICA EXISTENCIAL

O termo clínica, provindo do grego kline, significa cama; assim


clínica significaria debruçar-se sobre alguém que está ao leito. Clinicar seria
48 Henriette T. P. Morato

debruçar-se ou inclinar-se para poder apreender e escutar aquele que precisa


de cuidado em mal-estar. Clínica, então, seria uma modalidade da solicitude1,
fundamentada na escuta.
De fato, ser-com implica em não apenas fazer com outros, mas tam-
bém através e por eles, já que, ao preocupar-se com possibilidades de outros, o
ser-aí realiza também suas possibilidades. Nesse sentido, psicólogos da saúde
e da educação são íntima e explicitamente engajados nesse ofício: o ser psicó-
logo deve compreensivamente mover-se no âmbito do ser-com, no modo de
ser clínico, pois o outro é sempre alguém com o qual o psicólogo profissio-
nalmente se pre-ocupa: solicitude não é ocupação, mas pre-ocupação.
Partindo de considerações de Heidegger (1927/1984) acerca da so-
licitude, há duas formas básicas e extremas: a do modo da substituição e a do
modo liberador. No primeiro, toma-se o lugar do outro em sua tarefa de cui-
dar de ser, retirando-o de realizador de suas próprias possibilidades. Refere-
se a quando o profissional da saúde e da educação, ao invés de acompanhar
seu cliente em suas possibilidades, como testemunha, compreende-o por
interpretações de diversas teorias explicativas, ou por prescrições tecnica-
mente padronizadas, por atitude autoritária portadora da verdade sobre a
experiência: substitui o cuidado do outro por si mesmo. Já no modo libera-
dor, compreende-se o outro diante de suas próprias possibilidades, encarre-
gando-o de seu poder-ser para conduzir-se em dada situação, pertinente-
mente a seu ser-no-mundo.
Na experiência cotidiana, o primeiro modo, na esfera da saúde, re-
vela-se por um saber fazer algo a alguém, intencionando atenuar o sofrimento
do outro. Quanto ao segundo, quando uma supervisão educativa atenta ao
modo como o supervisionando é tocado pelo cliente, possibilita que o psicólo-
go se compreenda nesse encontro, para poder dar seu testemunho como possí-
vel encaminhamento de uma história a seus cuidados; atento ao modo como é
mobilizado em sua experiência com o supervisionando, o supervisor dirige sua
atenção na ressonância estabelecida entre este e seu cliente, pois cuida do ou-
tro se dirigindo tanto a cenas do passado, quanto ao futuro, dando lugar à paci-
ência, visto que a solicitude apresenta-se sob viés temporal.
Desse modo, como ser-com, o ser-aí é para si mesmo e para ou-
tros, circulando o mundo da alteridade com o qual se implica e refere na
teia de significatividade na qual é. Aparece em seu estado de aberto em seu

1
Solicitude diz respeito a procurar: composta pelo prefixo pro, que se refere a projeto no
sentido de proyectum, traduzido por lançado adiante e por curar, em sua concepção de
cuidar. Sendo o ser-aí é sempre projetivo, na acepção de lançar-se adiante em direção a
possibilidades, equivale a dizer que o homem é um realizador de possibilidades, sempre
conjuntamente com outros.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

próprio ser-no-mundo, porém também é do lançado ao mundo pelo outro,


sempre o descobrindo numa certa mundanidade à qual se reporta: compre-
endendo o outro, o eu sabe de si mesmo através do outro em seu mundo.
Assim, o eu nunca é dado a partir de si mesmo: é um poder-ser que desen-
volve possibilidades dadas pelo mundo, pois que lançado, o ser-aí aceita ou
refuta os modos através dos quais os outros cuidam de ser, identificando-se
ou distinguindo-se. Por esse modo de ser, percebe diferenças ante a alteri-
dade, simultaneamente desenvolvendo características específicas e organi-
zando estilos que o diferenciam dos outros, nem sempre se revela como
autenticidade.
Assim, a condição de ser-em e de ser-com do ser-aí recolhe e ex-
pressa, como logos, a maneira de ser do homem: pode dizer algo porque já
recolheu, reuniu, juntou esse algo junto a outro (de legen em alemão como
colocar junto). Como conhecimento, recolher refere-se a captar o que foi
visto, sendo possível falar sobre algo que se apreendeu, escutou. Desse
modo, compreender, dizer e escutar são muito próximos e articulados, ex-
pressando o modo pelo qual o eu já se encontra no mundo junto a outros: o
eu sempre é numa forma afetiva, humoral, de encontro com o que está acon-
tecendo, constituindo o seu ser-no-mundo uma fatia de sua história. Para
Almeida (2005, p. 178), “O encontrar-se, condição ontológica da manifesta-
ção ôntica do encontro humoral com o que há no mundo, surge da possibili-
dade do homem como ser-no-mundo, sendo os humores a manifestação pela
qual a vida é dada ao humano”.

1.1 Ser Afetado


Uma escuta clínica atenta aos estados de humor, sendo possível,
através deles, compreender o aí (mundo) no qual cada um está situado: medo
em mundo ameaçador; mau humor em mundo que falha; alegria em mundo
vibrante; angústia em mundo inóspito e carente de sentido, revelando o cotidi-
ano transitar de uma emoção para outra. A este modo Heidegger (1927/1984)
denomina de indiferença afetiva cotidiana: movimento com emoções sem
grandes diferenças, uniformizadas e sem ressonância intensa.
O estado de humor, como abertura para o mundo, revela o modo do
ser aí nesse mundo: é nessa afetividade que está mais plenamente entregue a si
mesmo como quem de fato é, e não pela ideia que tem do mundo. Através da
emoção, o eu situa-se no mundo, compreendendo tal situação, pois a apreensão
do mundo dá-se através do modo pelo qual o eu nele se insere. Emoção, por
emergir do mundo, não é algo interno, mas sim se apresenta através do próprio
ser-no-mundo: a emoção refere-se a como se está no mundo em tal preciso
momento.
50 Henriette T. P. Morato

Se as emoções expressam a situação na qual o eu já está imerso,


mostrando sua circunstância, considerar a emoção algo intrapsíquico de um
sujeito, como pregam teorias psicológicas, é algo a ponderar. Na constituição
de ser aí, o mundo fere2 o eu, que, por sua vez, a ele se refere, respondendo
na justa medida em que é ferido. Afetando o eu, o mundo lhe é revelado
nesse toque, implicando que o real só é real por ser experienciado de certa
maneira, e não originariamente, modelado por conceito. “Implacavelmente,
há uma realidade que se abre por uma emoção e uma emoção que se esculpe
numa realidade” (Almeida, 2005, p. 182): a emoção abre o real, que, por sua
vez, dispõe o eu em determinado estado de ânimo.
Na ação psicológica, pela escuta clínica pode-se captar que o mun-
do do cliente/narrador se converte numa ameaça por feri-lo ameaçadora-
mente, respondendo com temor. Assim, compreende-se que não há um ato
de vontade pelo qual se constitua uma emoção para ser vivida: a emoção
convoca o eu, numa dada circunstância e o eu é por ela colhido. Tocado ina-
pelavelmente pelos acontecimentos mundanos, “ao eu é entregue a responsa-
bilidade de ser, respondendo a uma dada situação, mesmo que cale e não aja”
(Almeida, 2005, p. 182).
Mas como essa condição pode expressar-se e ser compreendida
pela ação psicológica?

No entanto, apesar de ser colhido, é o eu quem vive essa emoção: o eu é


inescapável de si através de seus humores e dores. Inclinando-se ao eu
com dores, o clínico não apreende um funcionamento psíquico perturba-
do por vicissitudes ou traumas, mas uma situação dolorosa composta por
circunstâncias e por outros. Apresentando-se na condição de uma situa-
ção, na qual o eu é testemunhado no momento preciso de seu sofrimento e
procura por cuidado, o Plantão [Psicológico] é um espaço possibilitador
para que a situação do narrador possa desvelar-se em inteireza e com-
plexidade articuladas: debruçando-se sobre a narrativa, o psicólogo pode
silenciosamente escutar os desvios de rumo de uma história, que clama
por um sentido pertinente. (Almeida, 2005, p. 182)
Ser quem se é diz de caráter de ser e aparecer para si mesmo já acolhido
numa dada existência, numa determinada circunstância, e não numa rea-
lidade dada como algo independente do eu. Pelo olhar clínico, apreende-
se que a rejeição é um tipo de acolhimento, pois o homem é sempre lan-

2
Ferir, do latim ferre, em sentido próprio é levar, carregar, suportar. Assim, o mundo é
levado para o eu, impactando-o; por sua vez o eu é trazido ao mundo, respondendo a
esse impacto. (Webster’s Third New International Dictionary, Unabridged. Merriam-
Webster, 2002. Disponível em: <http://unabridged.merriam-webster.com>. Acesso em:
12 ago. 2011)
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

çado acolhido, mesmo que seja, em demasia adversa, numa certa facti-
cidade enigmática, já que o eu é abrigado de tal modo que só pode ver o
que seu olhar permite e ouvir o que é possível. (Almeida, 2005, p. 183)

Encontrar-se é a condição de possibilidade pela qual o eu percebe


sua facticidade: por seus humores, o eu apanha-se em sua facticidade, atuali-
zando como é ferido e como se refere, por ser uma abertura numa facticida-
de, de uma facticidade e para uma facticidade, constituindo-se no modo pelo
qual o eu é no mundo já acolhido3. Desse modo, na ação psicológica, debru-
çando-se solicitamente sobre uma história que clama por um redestinar-se, o
clínico é atingido pela experiência narrada, constituindo sua própria experi-
ência pela referência a ela: sua compreensão do cliente dá-se por ressonância
e não por empatia (Morato, 1989). Isto porque a compreensão empática diz
poder compreender o narrador indo ao mundo fenomenal da experiência
“como se fosse ele”, assim, promovendo uma objetivação da subjetividade
tanto do cliente quanto do psicólogo. Fenomenologicamente, compreende-se
o outro tal como se foi por ele afetado, dada a condição de ser-com. Numa
entrevista de Plantão, implica pôr-se diante do outro para trabalhar com o
que está acontecendo, primeiramente, tal como4 se é tocado pelo cliente: a
compreensão é originariamente afetiva e acontece no encontro do psicólogo
com o cliente, acontecendo no entre, por ressonância.
Assim, o encontrar-se do plantonista com o cliente não pode ser
tomado como recurso para mero acolhimento afetivo incondicional, mas
sim pelo olhar do tratamento ontológico do encontro: por sua própria con-
dição de ser, se encontra com outro e a si mesmo. Ou seja, por não ser téc-
nica de aproximação e acolhimento, “o encontro toca a historicidade: mani-
festando-se pelo passado, interroga-se pelo que está comprometido no pre-
sente e futuro. O encaminhamento dessa interrogação atrela-se ao estado de
ânimo de cliente e plantonista, afetado pelo testemunho narrado” (Almeida,
2005, p. 184).
É a experiência humorada/afetiva que abre a possibilidade do ser-
aí deparar-se consigo mesmo, pois a emoção efetua a realização do real,
dando significatividade a tudo que é: é por ela que o ser humano se dá conta
de quão intransferível é sua possibilidade de ser, expressa no próprio estar
presente num mundo aí lançado: o eu sempre está lançado numa situação,

3
O ontológico refere-se à estrutura de possibilidades e o ôntico à configuração das possibi-
lidades. Só se chega ao ontológico pelo ôntico: compreende-se ontologicamente aquilo
que se apanha onticamente, ou seja, o que está em manifestação. Assim, pela condição
ontológica do encontrar-se, o eu se encontra consigo mesmo inapelavelmente.
4
“Tal como” pode ser compreendido como a coisa mesma hursserliana: o real validado
pela experiência.
52 Henriette T. P. Morato

num certo sentido norteador, aberto pela emoção. Nesse sentido, a emoção é
já uma forma de compreensão apesar de nada ter a ver com a racionalidade:
ela é um modo específico de entendimento.

O estar lançado não é caótico, pois o eu já se descobre numa situação


acolhido por e nela, mesmo que sob a forma da rejeição, o que implica
que há vários modos de acolhimento acontecido num entrelaçamento, no
qual o eu, circunstancialmente, se experiencia. Todas as relações huma-
nas são, assim, conotadas pelas emoções, o que alude a que o procurar
pelos outros, por exemplo, a solicitude do conselheiro ou psicoterapeuta,
sempre se dá numa relação sentida e, por isso, consistente. (Almeida,
2005, p. 186)

Através das emoções, o eu descobre-se ser-no-mundo com outros,


não podendo deixar de considerar sua circunstância e facticidade. Talvez por
isso, na entrevista psicológica clínica, a referência direta aos sentimentos do
cliente propicia um alargamento da compreensão do que está experiencian-
do, favorecendo-o não paralisar-se em uma dada situação. Citando Arendt
(1993), é pela compreensão que o homem se reconcilia com o mundo, tor-
nando-o familiar e novamente transitável. Ou seja, descobre-se no mundo,
entendendo primeiro a mundanidade, os outros e si mesmo, pois que as emo-
ções se originam do modo de habitar o mundo, modo esse cultural.
Testemunhado pelo psicólogo, o cliente compreende que seu des-
tino não é dado a priori nem pelo livre arbítrio, já que habitar o mundo
orienta sua existência: pela facticidade do mundo e emoções que o afetam,
o eu entende-se como alguém que tem direção, isto é, se destina por ires e
vires na coexistência, percebendo-se na espacialidade do existir por aproxi-
mações e afastamentos. Refere-se à possibilidade do homem em dirigir-se –
um sentido.
Capturando o homem, o estado de ânimo/afetabilidade permite que
este permaneça sempre referido a algo por aproximação ou distanciamento,
porém sempre aberto a uma direção. As emoções chamam ao sair (cair) e ir
para o mundo, tornando-o público na co-existência: embora atente a si, está
voltado para o mundo. O único humor que não procede do mundo é a angús-
tia: “sua proveniência é do poder-ser mais peculiar do eu, o que a torna no
exclusivo estado de ânimo que o afasta do mundo, aproximando-o de si
mesmo” (Almeida, 2005, p. 186). Desse modo, enquanto as emoções reve-
lam a condição humana de aberta ao mundo, a angústia traz a experiência da
ausência de mundo (do nada): “se todas as emoções possibilitam que se ha-
bite o mundo, a angústia nasce da ocorrência de um mundo inabitável, o qual
clama para ser reabitado; a angústia é uma requisição para que o eu, sem
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

morada e carente de sentido e destinação, habite de novo o mundo” (Almeida,


2005, p. 187).
A vida cotidiana, pautada pela ameaça, abre ao homem compreen-
der sua existência como uma carga/peso que pode esmagá-lo, provinda de
algo do mundo ou junto aos outros. Ademais, nada nem ninguém pode de-
fendê-lo contra a morte: sempre está lançado em perigo, sendo sua condição
ontológica compreender tanto ser quanto não ser. Ao assumir atitudes de
prevenção em relação à sua existência, a proteção de si mesmo não é uma
aproximação de si mesmo, mas de dirigir a atenção àquilo que, provindo do
mundo, o ameaça. Focado no perigo que pode atingi-lo, não foca si mesmo
como segurança; ao contrário, há incerteza quanto a acontecimentos no
mundo que podem feri-lo.

Uma entrevista de Plantão é uma situação acolhedora na qual, às aves-


sas desse exemplo acima, algo pode ser desmascarado do falso caráter
ameaçador, emergido na circunstância de uma existência, na qual, ha-
vendo uma preponderância absoluta do medo, se teme por qualquer pas-
so em direção à assunção de possibilidades mais próprias. Esse desmas-
caramento pode abrir o aconselhando num outro estado de ânimo, o qual
permite que esse algo apareça numa outra perspectiva; o aconselhando
pode deixar-se tocar de uma nova maneira pelo que antes só se apresen-
tava ameaçadoramente. Seu ver-em-torno via como temível quaisquer
desses passos, porque seu estado de ânimo hegemônico era o temor. Nes-
ses termos, cada emoção dá liberdade a tudo que se apresenta segundo o
tipo de abertura que proporciona, conferindo-lhe, assim, consistência.
(Almeida, 2005, p. 194)

Em outras palavras, algo temido nem sempre se apresenta assim;


diz respeito a tirá-lo do lugar no qual se apresenta pela emoção de temor;
temer é dar liberdade, pois deixar ser e aparecer é aletheia. Nesse sentido,
contrariamente ao pensamento cartesiano, o verdadeiro se dá a ver pelas
emoções: o que é verdadeiro de algo se apresenta torna-se o que é, aberto
pelo que é sentido e não pelo que é pensado. A sensação experienciada é
aletheia, dando liberdade para o que é pelas emoções.
É ação psicológica abrir o cuidar de ser sob própria responsabili-
dade como bem-vindo, levando o cliente a assumir-se como referência de
si mesmo para possibilidades dada pela situação: destinar-se em apropria-
ção. Porém, sendo temerária a angústia que abre à propriedade, o cliente
pode responder a ela com desespero, des-responsabilizando-se por si
mesmo. É próprio da ação psicológica acompanhar o cliente paralisado em
projetar-se, abrindo o benefício da dúvida quanto à “certeza temerosa”
experienciada.
54 Henriette T. P. Morato

Assim, a ação psicológica na prática seria um modo de o psicólogo


procurar pelo cliente que cuida de ser si mesmo, testemunhando a narrativa
do vivido como cuidado (Morato, 2006). Nesse sentido, fenomenológica-
-existencialmente, a experiência diz do ser-aí como abertura temporal: “diz
respeito a um dado projetar-se, pelo qual, vindo a si, o eu volta a si, reto-
mando determinados modos do sido e, assim, se torna presente numa dada
situação, atualizando uma determinada ação” (Almeida, 2005, p. 199).
Como testemunha de uma narrativa, o psicólogo é afetado pelo que
é experienciado pelo cliente: é próprio à clínica psicológica agir debruçando-
se na direção do encontrar-se do cliente e do psicólogo, desvelando-os a si
mesmos via compreensão originária de si, manifestada pelo modo como se é
tocado em cada situação. Na mesma direção, o psicólogo pesquisador enca-
minha sua investigação pelos vestígios da narrativa do pesquisado, compre-
endida como elaboração de experiência, ao mesmo tempo em que também
registra suas sensações e compreensões prévias em “diários de bordo”, a fim
de compor uma cartografia do contexto pesquisado (Morato, 2007).
Resgatando Heidegger (1927/1984), Almeida (2005, p. 201) diz
que a “clínica só pode acontecer à medida que já se está aberto numa afe-
tação, possibilitando um acesso direto à própria historicidade e não perso-
nalidade e identidade do eu; o conselheiro deve permanecer atento à
abertura do aconselhando, atentando à maneira pela qual é tocado nessa
relação, o que se constitui numa compreensão originária.” Para Gendlin
(1978/1979), a partir de Heidegger, a propriedade da afetabilidade (befin-
dlichkeit) abre a possibilidade da ação psicológica como cuidado por abrir
ao psicólogo experienciar em si a própria manifestação de disposições
humorais, por ele denominadas “felt-sense”: o real dado no próprio ato de
experienciar (Morato, 2009). Seria legítimo dizer que a ação psicológica
junto ao singular ôntico possibilita aproximar-se do ser humano como tal,
isto é, a humanidade de cada um?

1.2 A Compreensão e Interpretação


Compreender refere-se à apreensão do que está na abertura junto a
outros; ou seja, diz do a fim de que da condição de existir, abrindo ao homem
seu poder-ser e a dimensão de ser como projeto do ser-aí. Nesse sentido, o
compreender acompanha sempre o encontrar-se: não há humor que já não
seja compreensivo, como também não há compreensão que não seja humo-
rada. O aberto ao mundo é compreensão no sentido originário, já que desti-
nar-se ao mundo é destinar-se a si mesmo: ser-no-mundo é abertura para o
que o ser-aí se interessa. Nessa abertura encontra-se a significativida-
de/interpretação do mundo, apresentada pela cultura (costumes, moral, leis,
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

saberes); o compreender já está aí no fenômeno, uma vez que o compreendi-


do é o desvelado.
Sendo o compreender projetivo (aquilo a que se dirige), numa in-
tervenção5 psicológica isso se pode se mostrar quando o cliente se vê possí-
vel, não nas referências, trazidas, mas em cada gesto seu em relação a elas. É
tarefa da ação psicológica clarear que, antes de ir em direção a algo, o eu vai
em direção ao que lhe é possível ser, diretamente implicado ao cuidar con-
creto realizado a cada momento: é pelo cuidado que se abre ao poder ser
(realizar possibilidades), sendo o real possibilidades e não necessidades.
Assim, vir a ser através do cuidar, confere à humanidade do homem o caráter
de inauguração. Desse modo, numa ação psicológica procurar ser testemu-
nhado em sua experiência pode ser manifestação do poder-ser re-clamando
re-destinar-se a re-inaugurar sua história. Isto porque o possível é o que ain-
da não é, mas cujo significado pode ser antevisto pela compreensão.
A possibilidade já é anunciada no contexto em que a existência é
lançada, ou seja, numa circunstância; podendo ser a partir do que já lhe é
dado, o eu não é livre de sua circunstância, porém para poder ser além. O eu
é livre para resgatar possibilidades ainda não configuradas; voltando-se para
a realização do que ainda não é, o agir humano instaura a liberdade. Com-
preender é abertura para o possível, isto é, projetar-se sobre possibilidades,
apreendidas não por entendimento, abrindo o poder-ser para responder em
situação: trazer à luz o possível do oculto, não como saber/conhecer, mas
como abarcar o sentido da existência humana, ou seja, pelo modo como vai
se constituindo pela vida, situado num mundo junto a outros.
Testemunhado pelo psicólogo, o cliente pode expressar como se
encontra no mundo em relação aos demais, avaliando o quanto está na dire-
ção ou não de seu poder-ser e o quanto necessita de certa sujeição, necessária
para prosseguir em seu projeto. É compreendendo em situação que se faz
possível ao homem desconsiderar seu modo próprio de ser por convenientes
determinações culturais.
É nesse sentido que também se encaminha a ação psicológica em
prática e pesquisa em instituições. Para este presente trabalho, recorremos a
projetos, realizados por laboratórios universitários a partir de solicitações de
instituições (públicas) de saúde, educação e segurança pública, de atenção
psicológica tanto para usuários e seus familiares como para funcionários e

5
Intervenção como interpor os bons ofícios. (engage to look after or attend to : accept the
responsibility for the care of). (Webster's Third New International Dictionary, Una-
bridged. Merriam-Webster, 2002. Disponível em: <http://unabridged.merriam-webster.
com>. Acesso em: 04 out. 2011)
56 Henriette T. P. Morato

profissionais que nelas atuam. Iniciados em 2000, mantiveram-se alguns por


8 anos, enquanto outros se iniciaram em 2007 e ainda se mantêm. Desfiando
a prática psicológica tradicional (Morato, 2009) constituíram-se em elemen-
tos para pesquisa interventiva participativa (Szymanski & Cury, 2004), am-
bas relendo a ação psicológica pela ótica da Fenomenologia Existencial. O
questionamento implicava em considerar precisamente a compreensão da
condição humana em suas dimensões de ser-aí-no mundo-com outros, a qual
seria possível ser contemplada visto a ação ocorrer numa instituição, poden-
do se dar a ver bem como a todos os atravessamentos manifestos que impli-
cam em seu modo de ser interpelado (Morato, 2008).
Sendo o poder-ser direcionado a sentido e duração, a compreensão
se manifesta temporalmente como interpretação, decodificando o compreen-
dido como possibilidades projetadas no compreender. Dizendo respeito ao
modo pelo qual tudo se apresenta, constitui-se num como, sendo a interpre-
tação aquilo que é. Existencialmente, a estrutura do como é uma interpreta-
ção articuladora, enunciada por proposição. “Sucintamente, a compreensão
do possível desdobra-se temporalmente na interpretação, que sustenta a pos-
sibilidade de entendimento da proposição, a qual pertence à ordem da língua
e pela qual se exibe a interpretação” (Almeida, 2005, p. 203).
No contexto da ação psicológica, ocorre um jogo interpretativo en-
tre psicólogo e cliente através de enunciados como expressão de dada inter-
pretação, o que permite ao cliente elaborar possibilidades por ele projetadas.
Assim, interpretar não é obtenção de informações para explicar “funciona-
mento” mental por teoria explicativa. Refere-se a preencher lacunas presen-
tes numa forma de compreensão do projetar-se desse cliente, manifesto em
seu temporalizar-se, ou seja, de que modo um futuro incerto remete a even-
tos do passado dificultando sua atualização.
Isto porque o homem já é imerso em trama de significações cultu-
rais interpretadas: o que a ele se abre já se abre num fundo de cultura que
demanda compreensão prévia interpretativa. Assim,

A interpretação permite que qualquer coisa que seja se mostre em sua si-
gnificatividade. É pelo ver-em-torno que o mundo sempre já compreendi-
do se interpreta, o que remete a que o à-mão é clareado pelo enxergar da
compreensão em todo seu contexto de significações. Essa interpretação já
está dada a priori a qualquer ver-em-torno, possibilitando, assim, seu
referenciar-se; apreendendo a serventia, o ver-em-torno decodifica o que
se apresenta. (Almeida, 2005, p. 209)

Tudo que é existe numa totalidade de nexos significativos, no con-


texto prévio (de antemão) da tradição, adquirindo um caráter de utilidade e
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

uso (à-mão). Desse modo, ver de antemão é reconhecer que existe algo da
tradição que também constitui o modo humano de ser, implicando uma con-
cepção prévia da trama de significações: existir em uma situação atravessada
pela cultura conduz a interpretações.
Nessa medida, a ação psicológica, inclinando-se à narrativa do cli-
ente, é interpretativa por requerer identificar como a tradição e a trama de
significações são constituintes de seu modo de ser. É sua tarefa interpretativa
dar a ver como concepções culturais podem estar conduzindo à ausência de
sentido na existência.

Sentido é a direção, o rumo para onde se vai, estando, assim, atrelado ao


destinar-se; o destino último da existência é a morte, última paragem do ser.
Ainda que não visível em si, o sentido é uma armação sem a qual o mundo
não se arruma, organiza; configurando-se somente na dimensão humana,
todos os demais entes são carentes de sentido. Fenomenológica existencial-
mente, a pergunta pelo ser não se dirige ao que é, porém ao sentido de ser;
por esse viés, a pergunta pelo ser não passa pelo significado dos entes, os
quais só fazem sentido quando são apanhados em modos de existir, desen-
volvidos pelo homem. O sentido em si é inarticulável; sendo um fundo invi-
sível, atua como um fundamento sobre o qual tudo o que é pode aparecer em
sua especificidade. (...) só numa destinação é que algo faz sentido. Nessa
medida, já que o sentido é inerente à estrutura da compreensão, o que não
faz sentido não chega a ser compreendido; o estado de compreensível de
algo apóia-se sobre um fundo, que é o sentido. (Almeida, 2005, p. 213)

Pela proposta fenomenológica, o sentido é inerente ao projetar-se


humano: destinar-se. Vir a ser diz de algo manifesto, mas desdobrando-se a
um poder-ser. O que tem sentido é a existência do homem, pois apenas ele
pode compreender sua direção, imprimindo modos que são e como podem
ser: sentido é a direção na qual o humano articula os fatos de sua vida. Dessa
forma, desorientar-se expressa ausência de sentido, que clama pela necessi-
dade de encontrar-se.
É este o preciso momento que a ação psicológica entra em cena: a
emergência da urgência por sentido. Presta-se à demanda do cliente para
encaminhamento de si testemunhado por outro, o psicólogo, inclinado à sua
historicidade. Por outro lado, mas na mesma direção, na supervisão do psi-
cólogo, como situação de aprendizagem, atentamente inclinada à compreen-
são do cliente pelo supervisionando, a ação psicológica do supervisor abre
um “ver além”6: dirige-se ao modo como o supervisionando foi tocado na

6
Sentido etimológico de supervisão, encontrado na expressão latina super videre, mas do
grego theorein (ato de ver, contemplar) (Morato, 1989).
58 Henriette T. P. Morato

situação do atendimento e de supervisão, como forma de dar a ver como


através de sua disposição afetiva abriu-se uma compreensão interpretativa do
cliente, e pelo qual o cliente surge em sua singularidade.
Contudo, ser tocado, compreender/interpretar não esclarece a
questão do sentido se não houver uma sinalização responsiva a essas mani-
festações. Sendo no mundo com outros, o compreendido desdobra-se pela
ordem da língua em comunicação: apreender e responder o que se mostra
por palavras, para que outros apreendam o que foi apreendido, tornando-o
comum, pois o dizer “torna presente tudo o que é para o ser-no-mundo, que
sempre coexiste com outros” (Almeida, 2005, p. 219), ampliando tanto o
próprio ouvir quanto o mundo como mundo comum pela significação co-
municativa.
Assim, numa situação de ação psicológica de prática e pesquisa em
instituições, o testemunho do psicólogo, atento ao dizer narrativo de quem o
solicita, possibilita um recolhimento para ampliar a compreensão de cir-
cunstâncias de vida por meio do desvelar sentido para re-encaminhamento de
direção. Nesse sentido, pela ressonância afetiva ao expresso junto a outros e
com ferramentas à mão, uma interpretação esclarecedora da experiência vi-
vida pode se apresentar e sugerir a continuidade de uma história.
Por esses projetos, a ação psicológica tem desvelado como o falar
só consegue permitir que palavras possam conduzir a uma interpretação caso
se apresentem apontando direção/sentido. Porém, palavras podem indicar
sentido quando partem do sentimento/disposição afetiva, referindo que ser
afetado/sentir é o fundo/sentido da palavra.

O sentir abre-se como um sentido, em que a existência se põe, sendo o


aí em que se forja o falar. De novo, fala-se do Plantão e também da su-
pervisão como um exercício do logos, já que, nessas situações, pelo
jogo interpretativo, se evoca o sentido e não o pensado, o qual, para
adquirir tal condição, precisa destacar-se do sentido para tornar-se
ante-os-olhos, num distanciamento sem envolvimento; o jogo interpre-
tativo só pode acontecer na emergência da afetação do conselheiro,
psicoterapeuta, supervisor, aconselhando, analisando e estagiário,
dando-se numa absoluta proximidade, em que o envolvimento elicia a
confiança. (Almeida, 2005, p. 224)

Nesses termos, a ação psicológica possibilita o clareamento de uma


situação para tomada de decisões, testemunhando uma narrativa de história
lacunar. O narrar, vindo por meio de conteúdos, vê-se atravessado pelo jogo
da interpretação como historicidade, dando a ver-se um entre que nem sem-
pre conduz a um destinar-se pertinente, mas sim à lacuna de sentido. Por ser
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

atravessado pela cultura, o homem é lançado no âmbito da pluralidade; con-


tudo, buscando ser quem é, como singularidade, nem sempre suporta a an-
gústia de seu ser ser-no-mundo com outros, levando-o a rupturas em sua
história. Pela ação psicológica, é possível “reintegração pelo jogo interpre-
tativo, que, operando no âmbito do desvelamento, traz à tona o fio de sentido
seguido” (Almeida, 2005, p. 221), que possibilita ao cliente recorrer a seus
próprios recursos para ir adiante rumo a ser singular.

2 LINGUAGEM: DIZER E OUVIR PARA “FAZER SENTIDO”

Para Heidegger, o falar origina-se de logos, do verbo legein, cuja


tradução é falar. Simultaneamente ao sentir e compreender, o falar é originá-
rio para o homem: é por ele que se expressa a articulação entre ser afetado e
compreender, dando a ver o sentido. É fundamento ontológico-existenciário
da linguagem, pelo qual o mundo dito e interpretado pelo homem expressa
articuladamente sua significação: logos é fala/expressão de compreensibili-
dade do mundo, por reunião e separação de palavras como significado, arti-
cular ou desarticular sentido/significações.
Na ação psicológica clínica, o falar é modo fundante de procedimen-
to. Inclinado à narrativa, o falar se apresenta como um falar sobre ou a respeito
de, ou seja, daquilo do que se fala, num primeiro momento. Entretanto aquilo
do que se fala se fala a outro, constituinte do ser-com: o cliente fala de experi-
ência ao psicólogo. Porém, ao falar deixa entrever algo não presente no falado,
mas ocultamente expresso, como se a própria fala falasse por entre lacunas de
compreensão (Critelli, 2002). Nesse sentido, a fala é comunicação, revelando
intenções de quem fala, por outros modos que não por palavras: noticia algo. É
esta a brecha da possibilidade interpretativa da ação psicológica.
Desse modo, fala é comunicação, pois o homem é no mundo falando
com outros, abrindo possibilidade para o que é comum entre homens: aquilo
que é familiarmente compartilhado em coexistência, condição de ser humano.
Ser psicólogo expressa a especificidade mesma do ser-com no sen-
do-com: o cuidado a que se dirige é solicitude pela pré-ocupação com o ou-
tro em seu padecimento. É essa a tarefa da ação psicológica:

não se desincumbe de sua ação de cuidar limitante7, balizada, circuns-


crita numa situação de atendimento, procurando pelo outro naquilo
que, nessa situação, possa ser testemunhado, o que possibilita um es-

7
O substantivo limite remete-se à fronteira que perfaz um horizonte a partir do qual algo
começa a se fazer presente.
60 Henriette T. P. Morato

clarecimento norteador ao aconselhando; assim, não se trata de ocu-


par-se com o aconselhando, fazendo um mero encaminhamento nos
moldes de uma triagem. Numa entrevista de Plantão, a comunicação
não se dá como transporte de mensagens e vivências entre aconselhan-
do e conselheiro; o ser-com, condição de ser do ser-aí, já é patente nas
manifestações do encontrar-se e nos desdobramentos temporais da
compreensão, que se dão em concomitância, o que é expresso no jogo
interpretativo pela fala. (...) A fala articula tanto o sentido fundado no
sentir quanto o desdobramento das possibilidades projetadas no com-
preender, assim, vinculando o encontrar-se ao compreender e alimen-
tando o ser comum. (Almeida, 2005, p. 224)

Nessa direção, a experiência da comunidade apresenta-se dentro de


uma circularidade: articula-se pelo cocompreendido e cosentido, estofo do
jogo interpretativo numa ação que se proponha terapêutica ou educativa. Ao
falar, o que se comunica é também uma notificação, manifestada pelo modo
(modalidade) como se expressa a forma como foi tocado pelo mundo e como
o compreende.
A fala só pode articular uma compreensibilidade por sua dimensão
do ouvir, constituinte básico do compreender, como apreender com. O ouvir
dispõe um proceder em relação ao outro: acompanha-o, nega-o, não o ouve,
acolhe-o, opõe-se a ele; sem o ouvir, não há acolhimento das crenças embu-
tidas no estado de interpretado, impossibilitando a comunidade humana, pois
ninguém ouve o não compreendido. É a interpretação, desdobrando o com-
preendido, que é a expressão do significado da realidade, tendo linguagem
como organizadora do mundo. A fala difícil e raramente traz o estranho, já
que é a articulação do já interpretado.
Se o ouvir ocorre como possibilidade fundante do humano, o es-
cutar é uma sua realização; nunca se escuta ruídos puros, porém, já imbrica-
dos na interpretação já articulada. A escuta permite a vinculação entre os
homens, pois o ser-com acontece articulado pelo ouvir: o que está pendente é
aberto pelo escutar. Contudo, o ouvir pode realizar-se como um mero escu-
tar, não levando adiante qualquer crença e interrompendo a comunicação
entre os falantes.
A ação psicológica, como debruçar-se sobre o sofrimento do outro,
constitui-se em solicitude apoiada na escuta: o ouvir radical. Acompanhar o
cliente na expressão do que lhe dói, urge apreendê-lo em sua realidade e
sentido do existir, é escuta que pode permitir se manifestarem certos ele-
mentos norteadores vindos da tradição, mas que emperram a singularização.
Clinicamente, nunca se escutam queixas puras, mas já mescladas no caldo
interpretativo de sua realidade, estado de interpretado no qual se forjam as
relações da vida em situações com outros, em família, social e no trabalho.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Também, é pela escuta que se estabelece a relação com o psicólogo, fundada


na confiança pelo bom ouvinte. A escuta clínica, pelo ouvir, é fundamental
em qualquer situação demandante de ampliação da compreensão. Em proje-
tos de atenção psicológica em instituições, nas modalidades de Plantão, Psi-
codiagnóstico Colaborativo, Plantão Psicoeducativo, Supervisão de Apoio e
Oficina de Recursos Expressivos, o ouvir se apresenta como abertura à com-
preensão de mal-estares em relações situadas, indicando caminhos para
aprendizagem significativa como direção/sentido.

O falar propriamente dito é o falar com outros, o que se dá pela enuncia-


ção de proposições; é resposta a uma escuta que já realizou a articulação
do interpretado, tratando-se de uma contra-fala, que faz parte de um
mesmo circuito, como complemento do compreendido. Nesse sentido, o
falar propriamente dito, tomado como contra-fala da escuta, é um dizer;
contudo, esse falar pode assumir as vezes de um mero falar, associado a
uma mera escuta. (Almeida, 2005, p. 225)

O dizer do psicólogo se apresenta como contrafala8 própria ao jogo


interpretativo. Nesse sentido, responde completando e abrindo possibilidade
de ampliar a compreensão emergente do cliente; assim, apreende temporal-
mente a experiência narrada, conduzindo à indicação de sentido. O dizer
responsivo do psicólogo, pela escuta primeira, completa o círculo da com-
fiança (fiar-se-com): “ser fiador do outro no encontro, o que acarreta que se
acredite nesse dizer que, por ter recolhido, expressa aquilo que é, constituin-
do-se na contra-fala do bom ouvinte” (Almeida, 2005, p. 225).
Outra dimensão da fala, além do dizer e ouvir, diz respeito ao calar,
que colhe e acolhe o ouvido. É uma forma de dizer, articulando o compreen-
dido, embora se revele no silenciar, não expressando o compreendido em
palavras, pois o compreensível, para além da palavra, pode ser apreendido
pelo silêncio: é a silenciosidade como fala. Silêncio não é mutismo, pelo
qual nada se tem a dizer.

Falando sem palavras, no silêncio, o calar refere-se a uma compreensão


que “calou fundo”; cala porque corta a palavra pela genuinidade da inter-
pretação. A compreensão funda, não passível de apreensão em palavras,
debuta no silêncio: ao genuíno falar compete o calar, no qual fulgura o
sentido. O insight, acontecimento fundante em qualquer situação terapêuti-
ca e de aprendizagem, ocorre na silenciosidade; pelo jogo interpretativo,
abre-se, caladamente, ao aconselhando a direção em que seu existir nave-

8
Questiona-se “contrafala”, na medida em que “contra” pode ser compreendida como
“contrária”.
62 Henriette T. P. Morato

ga, possibilitando-lhe uma visão clara e genuína de seu mundo e o discer-


nimento de seu poder-ser nesse mundo. (Almeida, 2005, p. 228)

Sendo a condição fundante do homem ser-em, é um aí aberto, ou


seja, o si-mesmo, como centro dessa clareira, pode exercer o logos que, ou-
vindo, dizendo e calando, tira o véu e traz à luz a coisa mesma como real-
mente é. Por recolher e expressar, falar se constitui num desvelar o mundo,
os outros e si mesmo.
Assim, na situação de ação psicológica clinica e/ou de aprendiza-
gem acontece o exercício do logos como aletheia. O Plantão Psicológico e a
Supervisão de Apoio, modalidades da ação psicológica, ocorrem como um
acontecimento; trata-se de uma paragem na qual o psicólogo, debruçado e
atento à narrativa, testemunha o entre, ou seja, a condição do cliente de ser
em história. Através do jogo interpretativo, é possível deixar ver um sentido
na temporalização de uma experiência: “uma história oculta, mas repleta de
lacunas, agora passíveis de serem perscrutadas pelo exercício do logos”,
revelando filamentos desconectadamente conexos.
Dá-se a ver que o falar não é apreensível por análise formal, mas sua
acontescência é própria ao humano, e pela qual constitui sua humanidade em
seu falar cotidiano. Como cada um de nós se humaniza pela forma aprendida
em dada cultura, somos também, ao mesmo tempo, todos nós e nenhum. Desse
modo, o homem tem na fala a possibilidade de se inserir no mundo, expres-
sando/comunicando sua compreensão de mundo comum pelo falar cotidiano,
que a todos captura. Nesse sentido, esse falar é impessoal, dizendo respeito ao
que Heidegger denomina por impropriedade, que exerce imperativo domínio
no humano. Se a questão fundamental é ser humano como se é humano, a fala
como falada no cotidiano, por todos nós, a fala imprópria, é aquela que possi-
bilita uma compreensão, por “pôr em andamento a publicidade em suas for-
mas de equivalência, uniformização e distanciamento”, empurrando cada um
para o mundo comum: o cotidiano, estando na dimensão da impropriedade,
apresenta um modo característico de falar, cujas três formas Heidegger deno-
mina falação, avidez de novidades e ambiguidade.
O modo de ser do ser-aí poder realizar seu ser mostra que a lingua-
gem originariamente não é um sistema. Sustenta-se como um enunciado de
uma interpretação prévia, pois expressa algo já interpretado. Nesses termos,
a fala regula o que é comum entre os homens, um modo cultural de apreen-
são do mundo que tudo articula. Desse modo, o que se interpreta não são
fatos em si, mas modos de ser.
Pela sua abertura, o ser aí encontra-se com si mesmo no mundo
com outros através da linguagem, numa rede de significatividade por ela
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

apresentada. É ela que intermedeia, pela abertura, o ser-aí junto ao mundo e


outros. Assim, a fala mesma é um modo de abertura, pelo qual o eu cuida de
ser, cuidando de como é no mundo: é isso que a fala fala. Nessa medida, o
falar cotidiano é possibilidade de manter o contato junto a outros no mundo,
garantindo o real; daí não importar sobre o que se fala, mas que se fale.
A “falação” (“falar por falar”) é uma dimensão da fala cotidiana que
não explora o que se passou, mas apenas permite a circulação do falado, man-
tendo julgamentos e crenças pelos quais cada um se vai constituindo, susten-
tando a trama da realidade e explicitando a condição de homem (Heidegger,
1927/1984). Trata-se de um levar adiante da fala, favorecendo a entrada na
publicidade, porém sem uma apropriação do que é dito. “Põe-se veladamente
em cena o que é falado, sabendo-se tudo por alto; embora não tenha o propó-
sito de promoção de engano, ao invés de explicitar, o falar da falação vela”
(Almeida, 2005, p. 229).
Numa situação de ocorrência da ação psicológica, dois aspectos da
falação podem se apresentar. O primeiro diz respeito a que é pela falação que
o cliente se introduz, trazendo o já é interpretado e comum; no entanto, não
há como negar que esse momento é possibilidade de entrar em contato com
sua experiência. Por sua vez, o segundo revela como o cliente se traz longe
de ser propriamente, mas como que guiado por circunstâncias da realidade
de um mundo inóspito. Nesse sentido, esses dois aspectos permitem compre-
ender como a versão primeira da experiência trazida pelo cliente chega sob a
forma de queixas, ou seja, a emergência do mal estar incômodo sentido pelas
circunstâncias da vida. É especificidade da ação psicológica como atenção e
cuidado, a tarefa de, acompanhando a realidade apresentada pela falação do
cliente, sugerir-lhe, através do jogo interpretativo, encaminhar-se para a
apropriação de si mesmo, ou seja, dizer de sua demanda/necessidade, como
urgência na procura por poder ser (Morato, 2006).
Junto à falação, surge a “avidez de novidade” (Heidegger, 1927/
1984): maneira da fala cotidiana apoiada no ver à distância, ou seja, vendo
tudo por cima, não se demorando junto a nada, passando rapidamente para o
que vem depois. “É sofreguidão de acúmulo do visto pelo aspecto, o que
incide numa dissipação, pela qual o eu não tem paragem e, assim, moradia;
passando-se rapidamente a outros aspectos, instala-se um distanciamento
para que não haja envolvimento. Está-se diante da perdição do eu...” (Almeida,
2005, p. 230).
No tocante à “ambiguidade” (Heidegger, 1927/1984), refere-se a
um modo cotidiano da fala acerca de possibilidades que não podem ser atua-
lizadas, apenas rastreadas, numa esfera pública em que tudo parece ser aces-
sível, com uma consequente compreensão subliminar de que pode ser feito.
64 Henriette T. P. Morato

Essa forma é bem reconhecida no discurso tanto político, notadamente ideo-


lógico-partidário, quanto institucional: há uma essencial e evidente ambigui-
dade entre o falar e agir. Afinal, a ambiguidade pressupõe que não se saia do
lugar, pois requer uma ação, que, se realizada, provocaria restrições. Desse
modo, impede as alternativas do agir pela fala das possibilidades. Realizar
alguma possibilidade aventada implicaria sair-se da impessoalidade, dando a
ver a própria irresponsabilidade. Pela fala ambígua, mantém-se o descom-
promisso em fazer o que deve ser feito, relegado à dimensão da suspeita.

No cotidiano, busca-se a impessoalidade, porque não se quer puxar para


si o gasto que uma situação configurada possa deflagrar. Embora se
queira algo, não se suporta que aconteça, ou seja, deseja-se profunda-
mente uma realidade diferente, mas recusa-se, também, profundamente
que o sonhado se torne real. Quem age responde pela realização do que
estava em possibilidade: o eu é colocado em questão e cobrança; perma-
necendo no possível, o eu exime-se de qualquer responsabilidade. Por
isso é que a ambigüidade resolve a questão na fala, dispensando qual-
quer realização, que pode abortar ou fracassar. (Almeida, 2005, p. 229)

É nesse sentido que a tarefa da ação psicológica em instituições di-


rige-se a testemunhar o outro fugidio em sua responsabilidade perante o que
lhe diga respeito. Procura servir como “cama elástica” ao outro em seu lento
tempo de empreendimento para poder ser si mesmo, contrastando com o
tempo rápido da fala cotidiana. “O tempo do fazer genuíno dá-se sob a égide
do empenho, que medra no silêncio: a silenciosidade é realizadora, já o
marketing não faz, só fala”. O psicólogo acompanha o cliente que ainda
teme fracassar caso se empenhe em realizar uma possibilidade cabível. Tes-
temunhando a ameaça, possibilita ao cliente tanto discernir sua situação e
como disponibilizar-se para a consecução de seu projeto. Contudo, a ambi-
guidade caminha sobre um saber dar conta de uma situação, não pela pres-
crição do que deve ser feito, mas por suspeitas: “se isso... então...”, resolven-
do pela fala e não pela ação, visto operar por projeções. Porém estas surgem
não como possibilidades próprias, mas aquelas disponíveis a todos, esco-
lhendo fazer algo no âmbito do público no qual se perde, por prevalecer o
ninguém. É deste modo que a fala cotidiana, pela ambiguidade, falação e
avidez de novidades aproximam os homens entre si, mas sem que se esteja
com o outro, porém com todos.
Assim, na ação psicológica, em instituições de saúde ou educação,
precisamente pelo caráter do “todos nós... ninguém”, há que cuidar para
acompanhar o cliente em suas peculiaridades de ser conforme suas possibili-
dades públicas de realização, a fim de não se estar “contra” ele, na dissimu-
lação peculiar, mas não deliberada, ao ser um com o outro na cotidianidade.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Afinal, competir e não cooperar revela ser um contra o outro também um


modo de ser-com.
Na fala cotidiana, sendo na impropriedade, o ser-aí é impessoal-
mente equivalente a outros modos de ser: um desvio de si, abafando a an-
gústia para a propriedade. Assim, embora a tarefa de ser humano convoque
para a impropriedade, sempre permanece a abertura de ser quem se é na pro-
priedade. Isto porque ser si mesmo não é dado a priori, mas sim vai se afir-
mando que ser si mesmo ocorre pela aprendizagem, na fala da coexistência,
mesmo que se desviando, já que ser-aí é uma absorção de ser lançado aí no
mundo prévio.

Está-se diante do fenômeno denominado por Heidegger (1927/1984) de


queda, que, de modo algum, significa que o eu nasça formado e depois
decaia; trata-se de ser absorvido pelo mundo no qual é lançado: não é
posterior, mas integrante ao nascimento. Assim, não se trata de um novo
fenômeno, porém a junção das condições de lançamento e absorção. Sen-
do capturados, tragados pelo mundo, os homens são submissos a modos
de usar os úteis e sujeitados aos outros, por exemplo, na moralidade; o
ser-no-mundo é anterior à percepção do eu e a queda, tanto condição da
própria existência, quanto situação presente e permanente. A captura do
eu pelo mundo dá-se na e pela fala cotidiana. Na falação, o eu flutua, sem
base, num lago de como se é dito; na avidez de novidades, está em todas
as partes e, ao mesmo tempo, em nenhuma; na ambigüidade, nada está
ocultado à compreensão do eu, com o propósito de reforço da situação
anterior. Realizando-se através desse falar uns com os outros, a queda
apresenta quatro características fundamentais: sedução, tranqüilização
ou aquietamento, alienação e enredamento, as quais se intercambiam
num movimento contínuo de derrubamento, no qual uma é levada para
outra, perfazendo um redemoinho. (Almeida, 2005, p. 230)

Sempre é possível que pela falação já se possa encontrar si mesmo


recorrendo a interpretações já dadas no público para dizer o que se é (usos e
costumes). Isto seduz pois significa já ter uma resposta para si de antemão,
encobrindo a angústia para apropriar-se do poder-ser, reconhecendo-se bem
situado no mundo. Desse modo, tranquilizado, os outros passam a ser a refe-
rência de ser, porém alienado de si mesmo absorto que é pelo mundo. Assim
enredado em si mesmo em suas questões, diluído nos outros, porém aquieta-
do, ocorre a sensação de estar conduzindo sua vida adiante, embora a presu-
mida segurança esteja no que é dado e não apropriado de si.
Na ação psicológica, através do exercício do logos, acompanha-se
como naquilo que crer seu próprio o cliente está interpretando-se pelo que é
dado, perdendo-se de si nas vozes comuns. Nem se dá conta como esse modo
de ser impessoal o incomoda, desespera e faz sofrer pela ausência de sentido
66 Henriette T. P. Morato

próprio. Enredado, interpreta a angústia por sensações corpóreas, aflito e


desamparado que está.
Nessa situação de atropelado por si mesmo, o cliente prende-se à
ocupação percebendo, contudo, que está sendo derrubado, mas não por si
mesmo. “É nessa dimensão da queda, como experiência da impropriedade,
que se tem a maior dimensão do que é ser-no-mundo; no dia-a-dia, o eu está
nesse enovelamento. É um modo de ser que significa estar no mundo, habi-
tando-o” (Almeida, 2005, p. 231).
É pelo jogo interpretativo que o psicólogo pode acompanhar o cli-
ente, realçando o enovelamento em que se encontra, buscando juntos re-tecer
fios para que ele se encaminhe em seu poder-ser no mundo como é. Debru-
çado atento, pela com-fiança cooperativa, o psicólogo pode agir, legitimado
pelo cliente, na direção do des-envolvimento da própria experiência para
sentido de ser si mesmo.

3 PARA A AÇÃO PSICOLÓGICA NA PRÁTICA E NA


PESQUISA EM INSTITUIÇÕES

O des-enrolamento da experiência do humano pela ação psicológi-


ca revela-se também uma escuta afinada com a ação educativa. Educar, do
latim educere, compõe-se pelo prefixo ex (para fora) e pela palavra ducere
(conduzir, levar, guiar), referindo-se a conduzir para fora, ou seja, promover
que algo possível de si possa surgir (eduzir) no mundo pelo ensinar e apren-
der. Ensinar, do latim insignare, remete a in-signum (em sinal): como diz
Rosa (1989), aquele que ensina não se ensimesma, mas sim sai de si, indi-
cando sinais no mundo que são relevantes para o aprendiz. Por sua vez,
aprender vem do latim ad-prendere, cujo prefixo ad (por, para) indica dire-
ção, enquanto prendere diz de tomar, agarrar, pegar. Assim, aprendizagem
refere-se a fazer uso de sinais no mundo que apontem para mudanças: apren-
diz é aquele que se transforma em trânsito pela existência, narrando sua ex-
periência para levá-la adiante e abrir brechas para outras aprendizagens. Por
sua vez, a experiência, pela ótica fenomenológica existencial, sendo uma
abertura temporal, na qual presente, passado e futuro se copertencem, é a
manifestação da historicidade do ser aí: faz-se como acontecimento e apre-
senta-se, pela fala, como narrativa, a qual se constitui num dizer no fazer
situado.
O psicólogo, seja numa entrevista de Plantão em clínica-escola ou
em cartografia por uma instituição de saúde ou de educação, mantendo-se
inclinado à narrativa daquele com quem fala, está sempre investigando a
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

experiência clinicamente, experiência essa que, vindo do mundo com outros,


se apresenta enovelada no público, porém sem fio de sentido ao narrador.
Em outras palavras, a ação psicológica conduz-se a ir por entre os vestígios
do vivido para desocultar outras facetas que se mostram nas situações de
homens e atores institucionais. Buscando desenredar a experiência da trama
sedutora de significados na qual se encontra, acompanha o cliente testemu-
nhando sua narrativa pela desorientação e desamparo para, junto a ele, suge-
rir o encaminhar-se para fora de seu sofrimento, levando-se adiante dessa
urdidura do público na qual se enroscou. E isso só pode acontecer em expe-
riência em ação, ou seja, quando a interpretação da compreensão pudesse
conduzir-se para “fora do perigo”, considerando a etimologia latina de expe-
riência: ex-perire.
Estruturando-se a partir da escuta, a ação psicológica, amparada na
perspectiva fenomenológica existencial, conduz-se pela narrativa na prática e
na pesquisa, já que ambas dizem de experiência e história que urgem por
uma compreensão mais ampla. Na trilha do sofrimento na história, outros
modos de seu enfrentamento são perseguidos pela atenção e cuidado psico-
lógicos, sem jamais percorrer modelos clássicos de triagem, amparados no
psicodiagnóstico tradicional ou na psicopatologia, nem de intervenção, quase
sempre acompanhamento psicoterápico. Apenas emerge no encontro entre o
cliente e o psicólogo/pesquisador como testemunha que autoriza e legitima
uma continuação da história desse cliente numa dimensão em que possa
existir em bem estar e autenticidade.
A ação psicológica, por esta ótica, sempre se vincula a uma situa-
ção, que tem tanto uma vertente institucional referida à pertença do profissi-
onal e do cliente, quanto uma vertente vinculada à realidade sociocultural e
existencial do cliente e do psicólogo. Desse modo, é importante que busque
uma compreensão da realidade do cliente para cotejá-la com o que a realida-
de da instituição pode oferecer. Assim, a ação psicológica pode ser ainda
caracterizada como uma prática e pesquisa psicossocial.
De qualquer forma, nela importa a demanda do cliente do que
uma explicação que se possa ter dele, assim como também a relação esta-
belecida importa mais do que uma “interioridade” a ser perscrutada. Nesse
sentido, a “interioridade” é manifestada na relação e não tomada como um
“em-si”: a relação é o campo de aparência, tanto dessa “interioridade”
quanto de uma realidade socioeconômica cultural, uma vez que é nela que
a experiência do cliente encontra lugar para ser compreendida e clareada.
Trata-se de contextos originários em que a experiência ocorre, pois não há
homem sem mundo com outros: trata-se de uma perspectiva fáctica, que é
histórica e concreta.
68 Henriette T. P. Morato

A ação psicológica se apresenta para além de âmbito de intimidade,


não se restringindo a qualquer um, mas se referindo a mundo trazido pela
apresentação que cada cliente faz de si próprio. Nesse contexto, emergem
modos de cuidar, já que o cuidar-se de si requer a explicitação da teia de
relações estabelecidas na sociedade, que “sustenta representações que, ideo-
logicamente, vinculam o sofrimento psíquico a fatores individuais, velando
suas determinações sócio-culturais” (Almeida, 2005, p. 232).
Assim, partindo do contexto psico-socioexistencial, a ação psicoló-
gica intenta uma visão compreensiva de sofrimento embutido na narração de
uma história que, embora singular, diz respeito a outras pessoas em vários
contextos. Nesse sentido, o cuidado do pesquisador/psicólogo considera as
questões de quem se é, como se é, com quem se está e onde se está, dando a
ver como modos de cuidado, apoiados na experiência do encontro psicólo-
go/cliente, que consideram a situação existencial do cliente, incluindo a esfe-
ra sociocultural.
Desse modo, na perspectiva fenomenológica existencial, o sofri-
mento psíquico não é da ordem do patológico, assim determinando uma his-
tória. É algo que aparece nessa história, revelando um destinar-se conturbado
no mundo do narrador e em suas situações de vida com outros: enraizado na
história, o sofrimento psíquico diz de um acontecimento pertinente a seu
modo de ser, não sendo considerado como proveniente de doença mental.
Ao mesmo tempo em que a ação psicológica na prática e pesquisa
em instituições contempla um aspecto clínico, também pode apresentar um
elemento educativo, voltado tanto para a formação profissional de psicólogos
quanto de outros profissionais de saúde e educação.
Nos projetos de atenção psicológica, o estudante/estagiário tem a
oportunidade de entrar em contato com as mais diversas realidades trazidas
pela clientela e por instituições, conduzindo-o a pensar o sentido originário
de clínica, de prática, de pesquisa, de intervenção, de público e privado, de
ser quem se é de modo próprio a poder ser. Desse modo, o estagiário experi-
encia debruçar-se não ao entendimento de uma doença, seus mecanismos e
sua repercussão na mente e na conduta de um “doente” ou de uma institui-
ção, mas ao modo de ser do qual emergem as experiências existenciais que
sustentam as atividades da pessoa que está à sua frente, cliente ou ator insti-
tucional. Na perspectiva existencial, a experiência humana não é consequên-
cia de um processo de desenvolvimento da sexualidade, da cognição e da
volição, mas a condição historial9 do homem, fundamentando a constituição
de quaisquer das esferas da experiência pelas quais o homem transita.

9
Historial remete-se à dimensão ontológica humana.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

O modo de condução da ação psicológica nos projetos de atenção


não compreende uma automática continuidade de atendimento aos encontros
com a clientela. Orientam-se a cada encontro a possíveis desdobramentos
para questões apresentadas como demanda, considerando-se, no diálogo com
o cliente, outras intervenções de práticas especializadas ou populares, con-
tando com recursos institucionais, comunitários ou familiares, quando se
fizer necessário. Assim, cliente e psicólogo consideram conjuntamente
aquilo que melhor atende ao que é preciso e não ao que é explicitado como
pedido. Este modo faz-se particularmente pertinente quando o cliente é um
dirigente de uma instituição: compreende-se a necessidade institucional, do
dirigente como seu ator, mas também se abre a perspectiva de considerar
qual a demanda da comunidade a quem está sendo pedida a atenção psicoló-
gica. É a isto que se dirige a cartografia, amparada na atitude clínica.
Ao aluno esta é uma situação que o provoca a procurar por seu
próprio modo de ser psicólogo, não enovelado nas malhas públicas da trama
de significações implicadas em sua formação. Experiencia ele mesmo orien-
tar-se a um poder-ser de modo próprio e não impessoal. Tal aprendizagem se
manifesta em sua forma de cuidar tanto do cliente quanto do autor institucio-
nal, conduzindo o outro a encontrar-se propriamente em sua vida e/ou em
seu trabalho, tornando-se, ele mesmo estagiário, um multiplicador de possi-
bilidades de poder-ser junto a outros: uma aprendizagem significativa.
Esse comprometimento, em várias oportunidades, árduo e sofrido,
aponta a direção que se trilha na ação psicológica: ao invés de circunscrever-
se a aspectos referentes a alterações de personalidade e presença de doenças
psíquicas, trata-se de, decisivamente, atentar à possibilidade de um redesti-
nar-se da existência no que plausivelmente se anuncia. Por esse viés, a histó-
ria pessoal, emergindo da história coletiva, é narrada ao psicólogo/ouvinte, o
qual, via essa intervenção, passa também a ser narrador.
Enquanto uma atividade com sentido educativo na formação pro-
fissional de psicólogo, contemplando a supervisão do trabalho prático e de
pesquisa realizado pelos estudantes/estagiários, a ação psicológica se apre-
senta em dimensão clínico-pedagógica. É o caráter de acompanhamento
junto ao estagiário que constitui a especificidade dessa supervisão: elaborar a
experiência de testemunha de uma história que, de algum modo, o afetou.
Assim, entre o supervisor e o estagiário surgem possibilidades de compreen-
são de si mesmo e do outro, na medida em que o supervisor atenta ao modo
como o estagiário foi tocado, compreensivamente, pelo cliente, suspendendo
as pré-concepções que, normalmente, um aluno de psicologia tem sobre psi-
coterapia e entendimento do sofrimento; na supervisão, a ação psicológica é
experienciada na mesma direção em que foi realizada junto ao cliente.
70 Henriette T. P. Morato

Muitas vezes, a supervisão atém-se a dimensões bem concretas do


atendimento. No entanto, isso não quer dizer orientar-se por uma visão
pragmática do ser humano e da atividade clínica. Trata-se, mais uma vez, de
partir da situação para nela encontrar saídas concretas, plausíveis de postura
e conduta, considerando-se a singularidade de cada encontro. Assim, a pró-
pria ação psicológica constitui-se numa situação de passagem, na qual se
avaliam e decidem os possíveis encaminhamentos10 disponíveis para o en-
frentamento de um sofrimento emergente de uma pessoa que clama por cui-
dados. Desse modo, ação psicológica na prática e pesquisa em instituições,
em seu exercício, requer recursos institucionais e comunitários que possam
redirigir o caminhar de uma existência, requisando uma específica paragem
como abertura de recursos necessários a desdobramento harmonioso de sua
história para tornar tolerável um sofrimento.
Nesse sentido, a ação psicológica demanda uma rede de apoio so-
cial que acompanhar e atender modalidades de cuidados clínicos e/ou peda-
gógicos de que a clientela possa necessitar. Em suma, essa rede de apoio
social constitui-se num “organismo”, em relação mútua, que possibilita a
prática da solicitude própria ao trabalho da ação psicológica, viabilizando a
sequência de atendimentos necessários na realidade emergente.
Sendo realizada dentro da Universidade e de outras instituições pú-
blicas, a elas servindo pelo exercício das responsabilidades civis de ensino,
pesquisa e extensão universitária, compete que os desdobramentos solicita-
dos pela ação psicológica dirijam-se por esses mesmos objetivos. A Univer-
sidade, por sua vez, não se deve constituir em apenas ser um banco de dados
e informações de interesse da comunidade; é sua tarefa poder ser um centro
de referência para os profissionais de várias áreas, possibilitando a circulação
de colaboração, como trabalho de coautoria. Nesse contexto, uma de suas
funções é poder subsidiar pesquisas que concorram na efetivação de modali-
dades de prática da ação psicológica, propiciadoras de tal trabalho: é ação
política11 realizar pesquisas interventivas em instituições demandantes.

4 PARA ARREMATAR

Finalizando, este trabalho teve o propósito de apresentar a possibi-


lidade de uma leitura da ação psicológica na prática e pesquisa de profissio-

10
Por encaminhamento compreende-se o encaminhar-se do próprio cliente em direção ao
que sua demanda lhe desvendou durante a ação psicológica.
11
Morato, H. T. P. (2009). Plantão Psicológico: inventividade e plasticidade. In: Anais do IX
Simpósio de Práticas Psicológicas em Instituições – Atenção psicológica: fundamentos,
pesquisa e prática. Recife: UNICAP, v. 1. pp. 1-15.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

nais de saúde e educação através de uma compreensão fenomenológica


existencial, que subsidiasse sua propriedade de ação humana entre homens.
Nesse sentido, configura-se a necessidade de refletir temáticas pertinentes à
ação psicológica destinada à demanda de humanidade do homem contempo-
râneo. Percorrer tais temáticas implica conduzi-la a pensar sua legitimação
de um agir comprometido a interpor os bons ofícios, ou seja, intervenção,
junto a profissionais de saúde e educação, apresentando-lhes um modo de
pensar diverso daquele implicitamente comprometido com modelos tradicio-
nais explicativos, percorrendo sentido de “homem, existência e história”12.
Assim, esta contribuição consistiu em apresentar temas básicos se-
gundo uma ótica fenomenológica existencial: o modo de ser clínico implica-
do na ação psicológica, ressaltando o ser afetado, a compreensão desdobran-
do-se em interpretação e fala (ouvir, dizer, calar). O desenvolvimento desses
temas é um esforço de leitura de ação psicológica em prática e pesquisa em
instituições de saúde e educação através da ontologia fundamental de Martin
Heidegger, em El ser y el tiempo (1927/1984), recorrendo, a situações dessa
ação em suas várias modalidades. Enfim, a interrogação que se leva adiante
ao abordar tais temáticas é a busca de subsídios para a ação psicológica pela
antropologia filosófica proposta nessa obra, que apresenta uma compreensão
do humano pela aproximação da pergunta pelo ser.
Na experiência da própria prática e da pesquisa na ação psicológi-
ca, a compreensão aqui empreendida abriu questões ainda a serem esclareci-
das. No entanto, procurou-se sempre conservar, ao alcance dos olhos, um
todo que pudesse paulatinamente crescer e, concomitantemente, oferecer
uma possibilidade para encaminhamento do sentido da ação psicológica.
Mas, sem dúvida, o que se pretendeu com essa retomada em perspectiva foi
abrir outros horizontes para uma aproximação existencial da ação psicológi-
ca clínica na prática e na pesquisa em instituições de saúde e educação.

5 Referências

Almeida, F. M. (2005). Ser clínico como educador: uma leitura fenomenológica existencial de
algumas temáticas na prática de profissionais de saúde e educação. Tese (Doutorado em Psi-
cologia Escolar e Desenvolvimento Humano) – Instituto de Psicologia Universidade de São
Paulo.
Arendt, H. (1993). A dignidade da política. 2. ed. Tradução de Helena Martins, Frida Coelho,
Antônio Abranches, César Almeida, Cláudia Drucker e Fernando Rodrigues. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará.

12
Não se trata de compreender a existência segundo o critério de uma concretude aparente;
mas, de compreendê-la como um modo humano de ser.
72 Henriette T. P. Morato

Critelli, D. M. (2002). Caminho existencial. São Paulo: Existentia – Centro de Orientação e


Estudos da Condição Humana.
Gendlin, E. T. (1978/1979). Befindlichkeit: Heidegger and the philosophy of psychology.
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Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.
Morato, H. T. P. (1989). “Eu-Supervisão”: Em cena uma ação buscando significado sentido.
Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano) – Instituto de Psicologia
Universidade de São Paulo.
Morato, H. T. P. (2006). Pedido, Queixa e demanda no plantão psicológico: querer, poder ou
precisar. Anais do VI Simpósio Nacional de Práticas Psicológicas em Instituição – Psicologia
e Políticas Públicas. Vitória – Espírito Santo. UFES, v. 1, pp. 38-43.
Morato, H. T. P. (2007). Pesquisa Interventiva e Cartografia na prática psicológica em insti-
tuições. Anais do VII Simpósio Nacional de Práticas Psicológicas em Instituição - Fronteiras
da Ação Psicológica entre educação e saúde. São Paulo, v. 1, pp. 1-13.
Morato, H. T. P. (2008). Prática Psicológica em Instituições: ação política. Anais do VIII
Simpósio Nacional Prática Psicológica em Instituição - Atenção Psicológica: experiência,
intervenção e pesquisa. São Paulo. v. 1, pp. 1-19.
Morato, H. T. P. (2009). Atenção Psicológica e Aprendizagem Significativa. In: Morato, H. T.
P.; Barreto, C. L. B. T.; Nunes, A. P. (Org.). Aconselhamento Psicológico numa perspectiva
fenomenológica existencial. Rio de Janeiro: Editora: Guanabara Koogan, v. 1, pp. 22-40.
Morato, H. T. P. (2009). Uma Introdução. In: Morato, H. T. P.; Barreto, C. L. B. T.; Nunes, A.
P. (Org.). Aconselhamento Psicológico numa perspectiva fenomenológica existencial – Uma
Introdução. Rio de Janeiro: Editora: Guanabara Koogan.
Morato, H. T. P. (2009). Plantão Psicológico: inventividade e plasticidade. Anais do IX Sim-
pósio Nacional Práticas Psicológicas em Instituições – Atenção Psicológica: fundamentos,
pesquisa e prática. Recife – PE: UNICAP, pp. 31-45.
Szymanski, H. & Cury, V. E. (2004). A pesquisa interventiva em psicologia da educação e
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ROSA, J. G. (1989). Tutaméia. São Paulo: Nova Fronteira.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

REPERCUSSÕES DO PENSAMENTO
FENOMENOLÓGICO NAS PRÁTICAS
PSICOEDUCATIVAS
Heloisa Szymanski
Luciana Szymanski

Sumário: 1. Introdução. 2. A Entrevista Reflexiva. 3. Encontro Reflexivo.


4. Plantão Psicoeducativo. 5. O Trânsito da Fenomenologia
Na Psicologia. 6. Conclusão. 7. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Pretendemos apresentar, neste capítulo, algumas noções do pensa-


mento fenomenológico existencial que contribuíram para fundamentar o
desenvolvimento de práticas profissionais em comunidades e instituições
educacionais. Descreveremos brevemente algumas práticas que se constituí-
ram ao longo de projetos de atenção psicoeducativa implementadas pelo
grupo ECOFAM1 junto a famílias, associações comunitárias e instituições: a
entrevista reflexiva, o encontro reflexivo e o plantão psicoeducativo. O gru-
po ECOFAM é constituído por pesquisadores cujas investigações se dão na
modalidade de pesquisa-intervenção (Szymanski & Cury, 2004) em uma
comunidade da periferia da cidade de São Paulo, desde 1993. Ao mesmo
tempo em que oferecemos programas de atenção psicoeducativa, também
desenvolvemos pesquisas na área. Entendemos por atenção psicoeducativa a
dimensão na qual se inserem várias práticas, aqui denominadas práticas psi-
coeducativas. Trata-se de um conjunto de intervenções de caráter psicológico
e educacional, desenvolvidas por profissionais junto a uma comunidade e/ou
instituição de educação formal e informal, com a finalidade de atender a
demandas de educadores, pais, gestores e demais protagonistas do cenário
educacional. Envolvem ações reflexivas que se concretizam a partir de en-

1
ECOFAM – Grupo de Pesquisa em Práticas Psicoeducativas e Atenção Psicoeducacional
a Escola, Família e Comunidade, certificado no CNPq, do Programa de Estudos Pós-
graduados em Educação: Psicologia da Educação, da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo.
74 Heloisa Szymanski e Luciana Szymanski

contros específicos, como entrevistas, encontros grupais e plantão psicoedu-


cativo, quer em estágios acadêmicos, quer em pesquisas quer como parte de
um trabalho solicitado pela instituição. Implicam a atuação de profissionais
das áreas da Psicologia, Educação e afins, em um “lócus educacional”, en-
tendendo que este universo tão complexo (escolas, centros de educação in-
fantil, abrigos, centros de criança e adolescentes, núcleos socioeducativos,
entre outros) transcende os meros espaços da educação formal, uma vez que
suas questões são permeadas por condições mais amplas como família, tra-
balho e políticas sociais, entre outras. De acordo com essas considerações,
nossas atuações não se limitam somente ao âmbito da “educação” ou “da
saúde mental”, daí o termo “psicoeducativas”.
O trabalho de psicólogos em instituições traz o desafio de criar al-
ternativas de atuação que transcendam o modelo consultorial, hegemônico na
formação de profissionais, mas inadequado para outros contextos que apre-
sentem funcionamento, ritmo e proposta diferentes. As práticas psicoeduca-
tivas que descreveremos abaixo foram propostas como alternativas de atua-
ção nesses locais.
Esse modo de intervenção foi se constituindo a partir de noções
oriundas da fenomenologia existencial, que inspiraram tanto o modo de pro-
ceder e a atitude dos profissionais diante do que se lhes apresentava, como a
compreensão do existir humano que fundamentou suas ações e interpreta-
ções. Apresentaremos a seguir uma breve descrição dessas práticas e as ati-
vidades que as envolvem, para posteriormente refletir sobre algumas noções
da fenomenologia existencial que as fundamentaram.

2 A ENTREVISTA REFLEXIVA

A entrevista reflexiva (Szymanski, 2004) parte do pressuposto de


que uma entrevista pode e deve apresentar uma condição de reflexividade, o
que significa uma relação calcada na horizontalidade entre entrevistador e
entrevistado. Tal procedimento implica uma dinâmica dialógica entre os parti-
cipantes. No caso da entrevista ser realizada para fins de pesquisa, devem ser
levados em conta os procedimentos iniciais de esclarecimento sobre os objeti-
vos do estudo e solicitação de consentimento. No caso da entrevista acontecer
em outro contexto – como por exemplo no trabalho com educadores, famílias
e comunidade, crianças e jovens na escola ou outra instituição –, também são
necessários os esclarecimentos iniciais sobre os objetivos do encontro. Ainda
nesse momento, se for o caso, é desejável que ambas as partes – entrevistador
e entrevistado – se apresentem. Tanto a disponibilidade de dar informações
sobre quem é o entrevistador, como a de valorizar a importância do conheci-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

mento detido pelo entrevistado, são formas de procurar uma relação mais
igualitária entre os interlocutores. A entrevista pode ser solicitada tanto por
uma das partes como por outra, mas seu tema será em geral conhecido de an-
temão pelo entrevistador. É importante um planejamento cuidadoso, embora o
entrevistador deva contar com a possibilidade de imprevistos, ou com a novi-
dade de um relato. Nessa preparação anterior devem-se elaborar as questões,
cuidando para que elas criem um clima amigável e possam oferecer oportuni-
dade ao participante de expressar livremente sua experiência. Em um mo-
mento inicial, são trazidas questões associadas à experiência do entrevistado
em relação ao tema, de modo amplo, para que se tome contato com o já com-
preendido, o já vivido e sobre o que se vai falar. As questões seguintes, em
especial a questão desencadeadora, devem voltar-se para a especificidade do
tema que se quer aprofundar (Szymanski et al., 2008). Há tanto um direciona-
mento como uma abertura para digressões e eventualmente para mudanças de
rumo no tratamento de uma dada questão. Um aspecto fundamental da entre-
vista reflexiva, que justifica seu nome, é a contínua troca entre os interlocuto-
res, de forma que o entrevistador expresse continuamente sua compreensão do
que está sendo dito pelo entrevistado, o que chamamos de pequenas devoluti-
vas. Essas intervenções devem ser sempre no sentido de dar a conhecer sua
compreensão, jamais contendo avaliações ou julgamentos. A qualidade da
escuta fica demonstrada a cada intervenção e está diretamente relacionada à
“certificação” por parte do entrevistado de que seu discurso foi compreendido,
o que ocorre ao longo das pequenas devolutivas. Se possível, a entrevista se
completa com um novo encontro em que uma síntese, uma devolutiva com-
pleta, é apresentada ao entrevistado para sua consideração. Caso isso não possa
ocorrer, é necessário fazer um apanhado geral do que foi compreendido pelo
entrevistador ao final da entrevista.

3 ENCONTRO REFLEXIVO

O encontro reflexivo se assemelha à entrevista reflexiva nos cuida-


dos éticos, na fase inicial de aproximação do grupo para as atividades de
reflexão, na elaboração cuidadosa da questão desencadeadora e nas pequenas
devolutivas feitas ao longo do encontro, assim como em um encontro poste-
rior, quando possível, para apresentação da síntese do encontro. Mas difere
em alguns aspectos: é sempre coletivo, é sempre uma resposta a uma deman-
da feita pelo grupo e pelo caráter das atividades de aproximação ao tema.
Estas atividades envolvem sempre o corpo para expressão de situações vivi-
das e relacionadas ao tema em questão; são atividades vivenciais que possi-
bilitam a imersão do participante na sua experiência com o tema, não só a
partir do discurso, mas sobretudo com sua corporeidade.
76 Heloisa Szymanski e Luciana Szymanski

Merleau-Ponty apresenta o corpo como “entrelaçamento de significa-


ções vividas” (Merleau-Ponty, 1945, p. 188) e como lugar da “apropriação do
espaço, do objeto ou do instrumento” (idem, p. 191). Para exprimir um pensa-
mento, “... o corpo deve em última análise tornar-se o pensamento ou a inten-
ção que significa”2 (p. 239). É no corpo – “... a sentinela que permanece silen-
ciosamente sob minhas palavras e meus atos” (Merleau-Ponty, 1964, p. 13)3 –
que permanecem as memórias, o que vivemos e o que compreendemos, e é
com ele que as expressamos e que, em nosso trabalho, podem ser uma via de
acesso às coisas mesmas, àquilo que dirige a demanda dos participantes. O
corpo se manifesta em ações e, no agir das atividades relacionadas ao tema
solicitado pelos participantes, as memórias saem do esquecimento e tornam-se
vividas e compreendidas no aqui e agora e articuladas no discurso dos partici-
pantes.
No encontro reflexivo há dois momentos em que ocorrem reflexões
que articulam a experiência com a compreensão: o primeiro se dá logo após
a atividade vivencial, quando os participantes narram seus sentimentos, emo-
ções, lembranças e compreensões deflagrados pela atividade; o segundo é
caracterizado por atividades de reflexão que remetem os participantes ao
“aqui agora” da questão trazida pela demanda.

4 PLANTÃO PSICOEDUCATIVO

O plantão psicoeducativo (Andrade, 2005; Melo, 2004; Sanches,


2006; Szymanski, 2004; Tinti & Szymanski, 2009; Walkoff & Szymanski,
2012) é a terceira prática que foi desenvolvida pelo grupo ECOFAM. Nele
propõe-se refletir sobre as demandas psicoeducativas de famílias, educado-
res, jovens, professores, entre outros. O plantão psicoeducativo desenvolveu-
se a partir de um desejo de

... oferecer um espaço de escuta e apoio para pessoas que cuidam da so-
cialização/educação de crianças e adolescentes provenientes das cama-
das populares e que, muitas vezes, se sentem acumulados com uma res-
ponsabilidade para a qual não se veem com a preparação e apoio que
gostariam de ter. Essa sobrecarga acaba por gerar conflitos e sofrimento.
(Szymanski, 2004, p. 180)

Tal atendimento requer formação profissional na área de Psicolo-


gia, pois se trata de uma escuta especializada que, como lembra Mahfoud

2
Tradução nossa.
3
Tradução nossa.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

(1987), exige uma abertura para o inesperado e para a prática de atendimento


único. Embora tenha muito em comum com o plantão psicológico (Morato,
1999), Szymanski observa que o plantão psicoeducativo apresenta aspectos
peculiares como “(...) sua definição de um espaço para reflexão sobre a
prática educativa como elemento organizador da demanda; sua apresenta-
ção como um serviço de apoio para educadores e famílias; sua inserção
institucional em uma instituição educacional”. (Szymanski, 2004, p. 177)
No encaminhamento da entrevista de plantão não há qualquer dire-
cionamento e as questões feitas durante os trabalhos têm o sentido de escla-
recimento da demanda apresentada e de confirmação (ou não) da compreen-
são por parte da pessoa que procurou o serviço.
As três práticas brevemente descritas acima se pautam na reflexivi-
dade das suas intervenções e fundamentam-se no diálogo, na transparência e
na coconstrução do sentido. Apresentaremos a seguir o pensamento teórico-
metodológico que as embasa.

5 O TRÂNSITO DA FENOMENOLOGIA NA PSICOLOGIA

Houve grande influência de várias vertentes do pensamento filosó-


fico, inclusive da fenomenologia, em quase todas as correntes teóricas da
Psicologia e nas práticas que se constituíram nas diferentes áreas de atuação
da Psicologia: clínica, educação, hospitalar, comunitária, trabalho, social,
entre outras. Cada linha de pensamento filosófico traz suas concepções de
mundo, de homem, de conhecimento, de verdade, de realidade que, ao toca-
rem a Psicologia, imprimem rumos muito característicos às teorias e práticas
dessa área do conhecimento.
A fenomenologia contribuiu para a história da Psicologia como
contraponto a um olhar positivista sobre o homem, tanto no contexto cientí-
fico (laboratorial), com os trabalhos da Psicologia da Gestalt, como na clíni-
ca, com os trabalhos pioneiros de L. Binswanger, K. Jaspers e M. Boss, entre
outros (Sá, 1997, Szymanski, 2006). Na área da Psicologia da Educação,
entretanto, essa contribuição ainda é incipiente; a aproximação do olhar fe-
nomenológico para a prática psicológica/educativa em instituições e comu-
nidades constitui-se atualmente num desafio para quem deseja trabalhar nes-
sa perspectiva.
Devemos, entretanto, lembrar a diversidade de caminhos, muitas
vezes divergentes, que se construíram segundo uma perspectiva fenomeno-
lógica. Como lembra Morujão (1995): “O movimento fenomenológico tomou
rumos distintos, influenciou autores das mais diversas áreas, fragmentou-se
78 Heloisa Szymanski e Luciana Szymanski

em orientações tão variadas, contaminando-se por doutrinas de tal modo


antagônicas, que é difícil em alguns pensadores saber qual é a corrente
filosófica de que são representantes”. (p. 2)
Fenomenologia não é uma escola filosófica ou uma doutrina, mas
um pensamento que surgiu como crítica à forma de pensar da ciência tradici-
onal, que se fundamenta em um conceito de verdade e realidade dicotomiza-
do em relação ao sujeito.

5.1 Sobre o Termo Fenômeno


Cabe, tendo em vista a diversidade do movimento fenomenológico,
retomar os conceitos de fenômeno e fenomenologia, como uma forma de
situar a contribuição desse pensamento no nosso trabalho. Uma das dificul-
dades em se definir a fenomenologia deve-se ao fato desse olhar não se colo-
car como teoria, mas como uma possibilidade de compreensão dos fenôme-
nos. Dessa maneira, não é privilégio de um saber específico, ou de uma ciên-
cia (Dartigues, 1973).
Foi com Edmund Husserl (1859-1938) que o termo ‘fenômeno’ pas-
sou a ter uma conotação bastante peculiar, diferente do seu sentido mais co-
mum de algo excepcional, ou algo compreendido independentemente do su-
jeito; refere-se àquilo que se manifesta, sendo que tudo o que aparece, aparece
para alguém. Desta ideia surge o “lema” da fenomenologia husserliana: “voltar
às coisas mesmas”, àquilo que nos aparece, o que nos possibilita outra inter-
pretação da chamada “realidade”. É possível observar, assim, a distância que o
termo fenômeno foi tomando de uma suposta realidade objetivada e de uma
verdade como concordância entre sujeito e objeto, separados um do outro.
Heidegger, em Ser e Tempo (1927), chama atenção para os dife-
rentes significados do termo fenômeno: como aquilo que vem à luz, que se
mostra, que se revela ou, por outro lado, como “aparência”, já que em grego
a expressão ‘fenômeno’ possui também o significado do que ‘se faz ver’,
assim como de “aparência” (Heidegger, 1988, p. 58).

Manifestação e aparência se fundam, de maneira diferente, no fenômeno.


Essa multiplicidade confusa dos “fenômenos” que se apresenta nas pala-
vras fenômeno, aparência, aparecer, parecer, manifestação, mera mani-
festação, só pode deixar de nos confundir, quando se tiver compreendido
desde o princípio o conceito de fenômeno: o que se mostra em si mesmo.
(Heidegger, 1988, p. 61)

Critelli (1996), ao explicitar o que é fenômeno, traz também a no-


ção de ente: “Ente é tudo o que é, o que tem uma manifestação (uma pedra,
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

um carro, uma emoção, ideia, ocorrência...). E manifestação é uma exposi-


ção, um mostrar-se do ente, um trazer-se à luz para um olhar. [...] Os entes
não são objéticos, são fenomênicos. Fenômeno (de onde a fenomenologia
também retira seu nome) é o ente mostrando-se”. (p. 55)
De quem é esse olhar, a quem o fenômeno aparece? Trata-se de um
ente que somos nós mesmos, como indica Heidegger no § 9º de Ser e Tempo,
que temos nossa “essência” na existência (Heidegger, 1988, p. 77). Apre-
sentaremos brevemente, a seguir, o modo de existir descrito por Heidegger
em sua fenomenologia da existência, que tem orientado nossa compreensão
das situações trazidas por educadores, pais e mães que nos procuraram ao
longo de nosso trabalho.

5.2 Ser-aí como Abertura: o Dasein


O presente tópico partirá da noção mais ampla de Dasein, central
no pensamento de Heidegger em Ser e Tempo, para discorrer sobre alguns
desdobramentos inevitáveis a que o termo nos remete. Apresentaremos, as-
sim, algumas noções decorrentes do ser-aí como abertura com a intenção de
se falar sobre uma atitude que, em última instância, fundamenta o trabalho
com instituições e comunidades que pretendemos descrever no artigo.
Pretendemos indicar aqui a visão de homem-existente – denomina-
do Dasein – que esse filósofo nos ofereceu e que escolhemos como eixo
orientador para nosso trabalho. Partimos dessa ideia de homem para compre-
ender que é como Dasein que nos encontramos com as pessoas que atende-
mos, também seres existindo na totalidade indicada acima.
Para Heidegger (1988), é no mundo que se dá a existência; o ser-
no-mundo refere-se a uma unidade, impossível de ser dissolvida e que não
significa “dentro de”, nem uma justaposição entre Dasein e mundo. O “em”
do ser-em-um mundo tem o significado de morar, habitar: “A expressão
‘sou’ se conecta a ‘junto’; ‘eu sou’ diz, por sua vez: eu moro, me detenho
junto... ao mundo, como alguma coisa que, deste ou aquele modo, me é fa-
miliar” (p. 92). Para Heidegger, “mundo” deve ser visto como “fenômeno”,
isto é, “... como o que se mostra enquanto ser e estrutura ontológica” (p. 103)
e um caráter do próprio Dasein4.
Arendt (1991) sintetiza de modo muito esclarecedor o que compre-
ende por “mundo”, lembrando que ele não é meramente um espaço no qual

4
Dasein é traduzido como “presença” no texto de Heidegger, M. (1988). Ser e Tempo,
Tradução de M. A. S. Cavalcanti, Petrópolis: Vozes. Utilizaremos, entretanto, o termo cu-
nhado por Heidegger originalmente.
80 Heloisa Szymanski e Luciana Szymanski

nos movimentamos e de onde tiramos nossa subsistência, mas tem a ver com
o que foi construído pelos homens. “Conviver no mundo significa essencial-
mente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em co-
mum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor;
pois, como intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece
uma relação entre homens”. (p. 62)
Heidegger usa o termo “mundaneidade” para expressar o “mundo”
como “conceito existencial-ontológico” (Heidegger, 1988, p. 105). Isto si-
gnifica que, nesse sentido, Dasein é sempre “mundano”, uma vez que é apre-
endido por ele, o é já com e no mundo. Ressalta que é na cotidianidade de
nosso mundo mais próximo que vivemos, lidando no mundo e com as coisas
do mundo (“entes intramundanos”) (Heidegger, 1988, p. 108), numa infini-
dade de modos de se ocupar da vida, num todo articulado de significações.
Estamos “... situados facticamente no mundo diante do outro” (Nunes, 2002,
p. 17), na medida em que Dasein se “fragmenta” em diferentes modos de
ocupação. Isto tem o significado cotidiano (ôntico) de “realizar alguma coisa,
cumprir, ‘levar a cabo’ [...] arranjar alguma coisa” (Heidegger, 1988, p. 95) e
o significado ontológico de “cura”, “cuidado” que veremos mais adiante.
Essa compreensão de ser-no-mundo na ocupação/cura é indissociável de ser-
com-os-outros; existir é coexistir.
Essa compreensão de ser-no-mundo como mundaneidade já nos
põe, em nosso trabalho, na consideração do outro e nós mesmos como habi-
tando mundos que, apesar de trazerem semelhanças, abrigam muitas diferen-
ças e muitos modos de lidar com as situações, objetos e pessoas. Olhar o
outro é considerar seu mundo como constitutivo dele mesmo, isto é, é consi-
derá-lo como uma totalidade. Essa atitude já mostra o “talhamento do olhar”
que a fenomenologia exige, expressão cunhada por Critelli (1996, p. 16),
referindo-se à reflexão do modo humano de ser no mundo.
Ao tratar da constituição do Dasein, Heidegger explicita que este é
um ser que é sua abertura e esclarece que é através dela que está presente no
mundo e para si (p. 186): Dasein é “claridade”, trata-se de um ser “existencial-
mente iluminado” (p. 187). “A presença [Dasein] é a sua abertura” (p. 187).
Nunes (2002) ressalta que a abertura (“abrimento”) ao mundo só é possível
por estarmos “... situados facticamente no mundo e diante dos outros, já sen-
tindo ao pensar e já falando ao sentir” (idem, pp. 17-18). Heidegger chama
facticidade esse “fato de ser”, de “estar-lançado” (Heidegger, 1988, p. 189),
de modo a ter que se desincumbir de existir.
Partir dessa visão de homem já nos coloca em uma atitude de con-
sideração da perspectiva em que os fenômenos se abrem para cada um. Cada
luz ilumina os fenômenos de um modo, ilumina alguns aspectos e não ou-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

tros, há sempre um aparecimento e um ocultamento. É nessa condição que


encaramos nosso trabalho: como aberturas que somos diante da abertura
que é o outro. Só compreendemos, sentimos e expressamos relativamente
àquilo que iluminamos com nossa abertura. Nenhum ser humano pode ilu-
minar a totalidade de um fenômeno: é nesse sentido que ele é inesgotável.
Isso nos põe, como profissionais, numa atitude de humildade diante do que
se nos apresenta como fenômeno humano, pois sabemos que nossa com-
preensão é sempre relativa à abertura que cada um de nós pode ser, na con-
sideração do nosso mundo e nossa história, nossas disposições e nossos
modos de cuidar de ser.

5.3 A co-Presença na Forma de Ocupação e Pre-Ocupação


Ao indagar sobre Dasein na cotidianidade, Heidegger chega a ou-
tras estruturas originárias do Dasein: o ser-com, a co-presença. Os “outros”,
com os quais Dasein também está, constituem um mundo compartilhado, e
“... a co-presença dos outros vem ao encontro nas mais diversas formas, a
partir do que está à mão dentro do mundo” (idem, p. 171). Da mesma forma
que Dasein se ocupa (sorge) com os objetos do mundo, com os outros Da-
sein Heidegger diz que ele se preocupa (fuersorge). A ocupação e a pre-
ocupação – ou solicitude, conforme tradução de Critelli (1996) – tanto po-
dem ser no modo atento, zeloso, como de modos deficientes e até indiferen-
temente. Um objeto ou utensílio pode ser preservado, aprimorado ou destruí-
do, largado ou esquecido, bem como podemos nos tornar dependentes dele
ou ainda sentirmos aversão a ele. O outro, Dasein como nós, pode ser aco-
lhido ou rejeitado, bem tratado ou maltratado, notado ou ignorado, conside-
rado ou humilhado e assim por diante, na infinidade de modos de ocupação e
solicitude. Nunes (2002) resume muito bem o cuidado e a solicitude: “Preo-
cupado em agir e fazer, e desta forma ocupado com ações e obras, o Dasein
também cuida de outrem. Seja de maneira positiva, negativa ou indiferente, a
existência não é só minha existência, mas também a de outro, comigo com-
partilhada num ser-em-comum (Mitsein)” (p. 17).
Essas noções são preciosas para o trabalho do profissional em saú-
de e educação, pois orientam seu olhar para o modo como as pessoas que os
procuram cuidam de si e dos outros. Igualmente constituem referências para
considerar como se dá sua própria solicitude, se é ocupando a posição do
outro, com respostas prontas e diretrizes estabelecidas ou “antecipando-se” a
ele “em sua existencial possibilidade para ser” (Heidegger, 1981, p. 41).
“Este outro modo de solicitude pertence essencialmente ao autêntico ‘cuidar’ –
isto é, para com a existência do outro e não para um ‘o que’ ele cuida; ele
salva o outro para torná-lo transparente a si mesmo em seu cuidar e para
82 Heloisa Szymanski e Luciana Szymanski

torná-lo ‘livre para si’” (idem, p. 41). Diz Heidegger que o ser-com-os-outros
cotidiano oscila entre os dois modos da solicitude, uma hora dominando o
outro, uma hora libertando-o, segundo orientação da paciência e considera-
ção, ou sua deficiência: a desconsideração e negligência, “... para as quais a
indiferença abre caminho” (idem, p. 42).
As noções de ocupação e pre-ocupação, inseparáveis do coexistir,
foram de grande valia para compreendermos o modo das pessoas cuidarem
de sua vida – do trabalho, da família, dos estudos, das memórias, das raízes
culturais, da educação dos filhos, dos alunos, por exemplo – e, igualmente,
do modo como cuidamos do atendimento. Essas noções auxiliam na compre-
ensão das situações que são trazidas para o profissional de saúde e educação,
assim como balizam a direção de suas próprias escolhas nas reflexões que
desenvolvem com as pessoas que o procuram.

5.4 A Ideia de Propriedade e Impropriedade


Desde o início de sua analítica existencial, Heidegger chama a
atenção para o fato de que o Dasein é sempre chamado “... a apropriar-se de
si mesmo” (Heidegger, 1988, p. 78), que é si “próprio” podendo “... ‘esco-
lher-se’, ganhar-se ou perder-se ou ainda nunca ganhar-se ou só ganhar-se
‘aparentemente’” (p. 78). Esse movimento se dá no encontro com “os ou-
tros”, já que existir é coexistir e o mundo do Dasein é um mundo-com-outros
(p. 170). No coexistir cotidiano, entretanto, segundo o filósofo, estamos “sob
domínio dos outros”, do impessoal, público.

O impessoal desenvolve sua própria ditadura nesta falta de surpresa e de


possibilidade de constatação. Assim, nos divertimos e entretemos como
impessoalmente se faz; lemos, vemos, julgamos sobre literatura e a arte
como impessoalmente se vê e se julga; também nos retiramos das ‘gran-
des multidões’ como impessoalmente se retira; achamos ‘revoltante’ o
que impessoalmente se considera revoltante. (Idem, p. 179)

O impessoal acaba por tirar a responsabilidade do Dasein ao pres-


crever julgamentos e decisões; é todo mundo e ninguém (p. 180), é “a gente”.
A consciência dessa impessoalidade constitutiva de nosso ser-no-
mundo é fundamental para nosso trabalho no sentido de nos precavermos de
nossas próprias ideias e julgamentos preconcebidos quando estivermos como
profissionais diante daqueles que nos procuram. Ao mesmo tempo, podemos
gradativamente refletir com o outro sobre suas crenças, valores e julgamen-
tos, no sentido de buscar o próprio ser próprio – o quem sou – e sair mo-
mentaneamente do impessoal para poder, eventualmente e se for seu desejo,
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

iniciar um movimento de inovação em sua vida. É inevitável estarmos imer-


sos no impessoal, mas, em alguns momentos, as respostas e soluções de
“todo o mundo” não nos servem, em especial quando somos convocados
pela vida para tomar uma decisão própria, na direção de “ser si mesmo”. A
interlocução no âmbito das práticas psicoeducativas oferece a possibilidade
de reconhecer caminhos para a propriedade de si; no entanto, será em algum
momento perdida e depois retomada (ou não), num constante movimento de
aparecimento e ocultação.
Podemos dizer que esse movimento circular de encontrar-se e per-
der-se é constitutivo do existir humano, uma vez que seu ser não lhe é dado
de uma forma definitiva, como com os demais entes, uma vez que podemos
manifestar nosso ser em inumeráveis possibilidades. É diante dessas possibi-
lidades que os homens têm que dar conta de existir.

5.5 Dialogando com os Termos Disposição, Compreensão,


Intepretação e Discurso
Heidegger traz como constituição existencial da abertura do ser que
somos nós [Dasein] a disposição, a compreensão e interpretação e o discur-
so, lembrando que este ser deve ser analisado na sua cotidianidade. Inicia
apresentando-nos a disposição (Befindichkeit), o humor, no sentido de que o
Dasein está sempre em um estado de humor. Este abre o Dasein em seu es-
tar-lançado no mundo, indicando o “fato de ser e ter de ser”, que significa
que não se pode isentar da obrigação de ser. A disposição “... nos revela o
nosso irredutível aí no mundo, onde já nos encontramos lançados” (Nunes,
2002, p. 18). O humor torna possível um “direcionar-se para”, “o humor se
precipita” (Heidegger, 1988, p. 191).
É a disposição que também abre o Dasein para o ser afetado pelo
mundo, no modo de um estado de humor, que no cotidiano se manifesta
como emoções e sentimentos, que abrem o mundo de diferentes maneiras. A
raiva, a alegria, o medo, a ternura nos abrem o mundo de diferentes formas.
Diz Critelli: “Quando, via emoção, as coisas são abertas em seu significado
descobre-se como um eu que existe facticamente, relacionando-se” (Critelli,
1996, p. 98). Essa concepção de abertura põe por terra qualquer intenção de
neutralidade diante do outro: estamos sempre em um modo afetivo diante do
outro também tocado, afetado de um modo particular pelo mundo e pelo
outro (nós e os demais). O mundo se mostra de diferentes maneiras conforme
nossos estados de humor. Daí a importância de estarmos atentos como pro-
fissionais tanto aos próprios estados de ânimo como àquilo que se nos apare-
ce como estados de ânimo dos outros.
84 Heloisa Szymanski e Luciana Szymanski

5.6 A angústia
Nunes (2002) aponta que Heidegger, acompanhando Kierkegaard,
privilegia a angústia entre as disposições, pois, diferentemente do temor
que se localiza em um objeto ou pessoa ou situação concreta, “aquilo com
que a angústia se angustia é o ‘nada’ que não se revela em parte alguma
[...] a angústia se angustia com o mundo enquanto tal”, o que “... não signi-
fica ausência de mundo”, mas que “... somente o mundo se impõe na sua
mundaneidade” (Heidegger, 1988, p. 250). Como lembra Nunes (2002): “O
perigo que nos espreita e em toda parte nos acua é o mundo como mundo,
originário e diretamente, que se abre para o Dasein desabrigado” (p. 19).
Heidegger nos diz que Dasein, singularizado pela angústia e remetido às
sua possibilidades próprias, se angustia pelo próprio ser-no-mundo, que
não é mais compreendido pelo modo público, impessoal. Se na disposição
revela-se “como se está”, “... na angústia se está estranho. [...] Mas estranhe-
za significa igualmente ‘não se sentir em casa’” (Heidegger, 1988, p. 252).
Nunes esclarece que “é afinal Dasein mesmo que nos angustia, porque já
sem a proteção do cotidiano, revelando-se, então, nesse sentimento; o po-
der ser livre, a possibilidade de escolha, desapossado da familiaridade com
o mundo, tornado inóspito” (Nunes, 2002, p. 20). A familiaridade do coti-
diano esconde essa possibilidade de não se sentir em casa, a inospitalidade
do mundo, mas, por outro lado, a angústia singulariza Dasein, põe-no di-
ante de si mesmo, retira-o “... de sua decadência e lhe revela a propriedade
e impropriedade como possibilidades de ser” (Heidegger, 1988, p. 255).
Heidegger lembra que a angústia é rara e nem sempre é ativada por um
evento grandioso na vida da pessoa: “A angústia pode surgir nas situações
mais inofensivas” (Heidegger, 1988, p. 253).
Muitas vezes profissionais da saúde e educação são procurados
por pessoas que se encontram nesse momento de confronto com suas pos-
sibilidades, sentindo-se estranhas, com um temor indeterminado, em um
momento de suas vidas em que o cotidiano não oferece respostas confor-
tadoras. Reconhecer esse estado como experiência de angústia pode auxi-
liar o profissional a acompanhar o outro nesse enfrentamento com o seu
si-mesmo, nesse momento de escolhas diante de sua singularidade e suas
possibilidades.
Heidegger (1988) também apresenta a compreensão como parte da
constituição existencial da abertura do Dasein, lembrando que a compreen-
são está sempre “sintonizada” (idem, p. 198) com o humor. O filósofo afirma
que, “em seu caráter existencial de projeto, a compreensão constitui o que
chamamos de visão da presença [Dasein]” (idem, p. 202). Na “... compreen-
são subsiste existencialmente o modo de ser da presença [Dasein] enquanto
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

poder ser” (idem, p. 198). “Toda presença [Dasein] é o que ela pode ser e o
modo em que é sua possibilidade. Nós nos compreendemos e nos compreen-
deremos sempre a partir de nossas possibilidades, mesmo que não as reali-
zemos efetivamente e, nesse sentido, somos sempre “mais” do que somos de
fato. Também não é menos, referindo-se àquilo que ainda não somos. “Com-
preender é o ser desse poder-ser” e, nesse sentido, Dasein sabe “a quantas
anda o seu poder ser” (p. 200) e pode se perder, se desconhecer e se reen-
contrar em suas possibilidades. A compreensão é o poder ser capaz de propi-
ciar aberturas (Heidegger, 1988, p. 199).
Note-se que o compreender não se refere a uma operação do inte-
lecto, mas a um aspecto da constituição existencial da abertura do Dasein:
somos como compreensão de ser, inclusive como compreensão da possibili-
dade de ser para si mesmo. Como bem sintetiza Critelli (1996, p. 52), Dasein
reconhece suas possibilidades como sua propriedade (está sob sua responsa-
bilidade), como facticidade (ele é lançado, sem escolher onde, quando) e
como projeção (como vir a ser). Olhar para o outro, e para si, na considera-
ção da responsabilidade diante das próprias possibilidades, reconhecendo o
contexto em que fomos lançados e vislumbrando possibilidades de ser po-
dem se constituir em orientações preciosas para o trabalho psicoeducativo,
situando-nos para além do julgamento e das interpretações ligeiras.
Heidegger diz que, “na compreensão, a presença [Dasein] projeta
seu ser para possibilidades” (Heidegger, 1988, p. 204), que podem ser elabo-
radas e apropriadas. Como lembra Nunes, “... essa apropriação não é jamais
algo sem pressuposto: parte de um referencial que se tem (Vorhabe), expli-
cita-se em conceitos prévios (Vorgriffe) e numa certa perspectiva (Vorsicht)”
(Nunes, 2002, p. 18). A interpretação deve partir das coisas elas mesmas e
“não se deve guiar por conceitos ingênuos ou ‘chutes’” (Heidegger, 1988, p.
210), embora sempre se movimente no já pré-compreendido.
A essa “elaboração das possibilidades projetadas na compreensão”
(p. 204) Heidegger chama de interpretação. “O que se interpreta [...], que se
explicita na compreensão, possui a estrutura de algo como algo” (p. 205). Na
interpretação há a indicação do para quê e, na articulação da compreensão,
desvela-se o sentido. Diz Gadamer: “Quem quiser compreender um texto
deverá sempre realizar um projeto. Ele projeta de antemão um sentido do
todo, tão logo se mostre o primeiro sentido do texto. Esse primeiro sentido
somente se mostra porque lemos o texto já sempre com certas expectativas,
na perspectiva de um certo sentido” (Gadamer, 2002, v. II, p. 75). Mas esse
projeto inicial vai sendo substituído por outros, mais adequados, e “... esse
constante projetar de novo é o que perfaz o movimento semântico do com-
preender e de interpretar” (idem, p. 75). Trata-se de “deixar que ele [texto]
86 Heloisa Szymanski e Luciana Szymanski

diga alguma coisa”, consiste em respeitar aquilo que Gadamer chama de


“alteridade do texto” (idem, p. 76). Para esse autor, o movimento da compre-
ensão segue um círculo do todo para a parte e da parte para o todo, buscan-
do-se uma concordância entre a parte e o todo, definindo o que ele chama de
regra hermenêutica.
O que se dá na interpretação de um texto vale para a conversação.
Nesta, o entendimento e a compreensão consistem no acordo quanto a algu-
ma coisa – e é tarefa da hermenêutica buscar e restabelecer o acordo – ou na
participação dos interlocutores em um sentido comum, o que Gadamer cha-
ma de milagre da compreensão (idem, p. 73). Na conversação os interlocuto-
res se “reúnem em uma nova comunidade, [...] [em] uma transformação
rumo ao comum, de onde já não se continua sendo o que se era” (Gadamer,
2002, vol I, p. 556).
Essas noções expressas acima – de compreensão, interpretação e
conversação – são fundantes para o trabalho que desenvolvemos em nossas
pesquisas e intervenções. A conversação está presente em todas as nossas
atividades e procuramos aprimorar continuamente a prática da interpretação
como a busca de construção de um sentido comum para as questões e de-
mandas que nos são trazidas.

5.7 O Sentido
Vimos acima que na interpretação há a indicação do para quê de
alguma coisa, e o “... sentido é aquilo que se articula na abertura da com-
preensão” (Heidegger, 1988, p. 208). Heidegger chama de sentido a pers-
pectiva segundo a qual algo se torna compreensível, sendo existencial do
Dasein e não algo colado aos entes. Para Critelli, sentido é “... o mesmo
que destino, rumo, a direção do existir” (Critelli, 1996, p. 53), que se
“...expressa como um modo de cuidar [ocupar] dos modos de cuidar da
vida” (idem, p. 120). Exemplificando, no trabalho psicoeducativo com edu-
cadores investiga-se o sentido quando se procura compreender como eles
cuidam [se ocupam] dos modos de serem educadores. Tendo a educação de
crianças e adolescentes como seu trabalho (o modo como cuidam de sua
sobrevivência), os educadores podem realizá-lo com prazer, desprazer,
tédio, com interesse em estudar mais e assim por diante, conforme o pro-
jeto que os dirige para o seu trabalho, conforme a solicitação a que respon-
dem. “Ou, em outras palavras, [sentido é] uma destinação em que se abre a
possibilidade de se cuidar de ser, numa certa direção e não outra, por
exemplo” (Critelli, 1996, p. 132). Essas concepções são fundamentais para
nós, uma vez que a indagação pelo sentido nos orienta para compreender as
demandas que nos são feitas pelos pais, educadores e membros da comuni-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

dade. Interrogar pelo sentido pode nos levar a férteis reflexões, pois possi-
bilita o desvelamento das disposições afetivas, das compreensões prévias e
dos desejos que impulsionam os projetos de nossos interlocutores e que
direcionaram suas escolhas até o momento.

5.8 A Escuta e o Silêncio


Em sua análise da constituição existencial da abertura do Dasein,
Heidegger (1988) traz o discurso como “fundamento ontológico-existencial
da linguagem” e um “existencial originário da abertura”, descrito por ele
como estando na “...base de toda interpretação e proposição” (Heidegger,
1988, p. 219). “Dizer algo, de certa maneira, para alguém, numa tonalidade
ou disposição de ânimo, nisso consiste o fenômeno do discurso em sua com-
pleta estrutura significativa” (Nunes, 2002, p. 21). Dasein se abre como dis-
curso, pronunciado pela linguagem, ao articular a compreensão como totali-
dade significativa.
É no discurso que Dasein se pronuncia e partilha o ser-com (Hei-
degger, 1988, p. 221), sempre numa dada disposição e segundo uma inter-
pretação, sendo a escuta e o silêncio possibilidades da linguagem. “Escutar é
o estar aberto existencial da presença [Dasein] enquanto ser-com-outros. A
coexistência, o ser-com, se constitui na escuta, e pode seguir diferentes ru-
mos, como o escutar atento, o não ouvir, ‘resistir, defender-se, enfrentar’”
(idem, p. 222). A escuta inicia-se antes mesmo do discurso do outro, numa
compreensão prévia do que vamos encontrar. Esse aspecto do pensamento de
Heidegger pode nos ajudar a ficar atentos às nossas compreensões prévias
quando atuamos como profissionais que têm na escuta sua ferramenta mais
preciosa.
Heidegger lembra que o silêncio é uma possibilidade constitutiva
do discurso que compreende e dá a entender, além de que, no silêncio, po-
demos nos ouvir e – nos termos desse autor – “abafar a ‘falação’”, que per-
mitirá o “...verdadeiro poder ouvir e a convivência transparente” (idem, p.
224). Levando esse modo de pensar para o trabalho psicoeducativo, reme-
temo-nos à necessidade de investigar como está nossa própria abertura à
compreensão dos fenômenos que observamos, assim como de acompanhar o
outro na sua própria trajetória de compreensão, talvez possibilitando-lhe um
silêncio para ouvir-se.
Na cotidianidade, entretanto, a compreensão, interpretação e dis-
curso do Dasein se manifestam no que Heidegger chama de falatório, curio-
sidade e ambiguidade. O filósofo descreve o falatório como “... a possibili-
dade de compreender tudo sem ter se apropriado de nada” (Heidegger, 1988,
p. 229), ou seja, está perdida na interpretação do “a gente”, do público e im-
88 Heloisa Szymanski e Luciana Szymanski

pessoal. No exercício das práticas psicológicas o falatório reflete-se em ofe-


recer explicações prontas para as questões trazidas ao profissional por aque-
les a quem atende. Essas interpretações, baseadas na experiência com casos
semelhantes ou em teorias, podem constituir-se em uma cortina de fumaça
para a escuta e para um olhar atento ao que está sendo trazido para conside-
ração e cuidado. Da mesma forma, o apego a clichês para a compreensão da
vida e do mundo pode ser um obstáculo para o processo reflexivo, uma for-
ma de falatório que não leva a lugar algum. Trazer a conversação para a ex-
periência vivida é um caminho para desvencilhar-se das explicações prontas
dos clichês. Mas, para conseguir trilhar esse caminho de atendimento, é pre-
ciso uma escuta atenta e o exercício de uma solicitude de antecipar-se ao
outro, como foi dito acima.

5.9 A Curiosidade e a Ambiguidade: Inquietações


A curiosidade é descrita por Heidegger como o modo cotidiano de
“ver” caracterizado por uma inquietação contínua, na busca pelo novo, que o
autor chama de “impermanência” (idem, p. 233), que acaba levando à “dis-
persão”, base do “desamparo”, decorrente do desenraizamento. Investigar
junto àquele que atendemos profissionalmente esse modo de viver na inqui-
etação e de contínua busca pelo novo pode ser um caminho que auxilie no
estabelecimento de uma atitude reflexiva. A ambiguidade refere-se à impres-
são de que tudo foi compreendido e decidido, quando não foi isso o que
ocorreu. “Essa ambiguidade oferece à curiosidade o que ela busca e confere ao
falatório a aparência de que nele tudo se decide” (Heidegger, 1988, p. 235).
Essas noções oferecidas por Heidegger podem ser preciosas indica-
ções para o profissional buscar, durante o trabalho psicoeducativo, uma es-
cuta, uma compreensão e uma linguagem que procurem sempre transcender
o modo impessoal de estar presente nas interações e cuidar, de modo anteci-
patório, das pessoas que o procuram acompanhando-as na sua jornada de
construir, naquele momento, um modo próprio e singular, de conhecer as
experiências de sua vida e de pensar seus projetos.

6 CONCLUSÃO

A contribuição da fenomenologia se faz sentir em nosso trabalho


na composição de uma postura que busca a compreensão do discurso daque-
les que nos procuram, de modo a evitar interpretações teóricas prontas, jul-
gamentos baseados na impessoalidade do público, na ambiguidade desenrai-
zada do que todo mundo e ninguém já decidiu como conhecimento domi-
nante.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

A noção heideggeriana de ser-no-mundo-com-os-outros mostrou-


nos a profunda unidade do Dasein, sempre em um mundo, sempre na convi-
vência com os outros. É nesse mundo, e com as demais pessoas, que cada um
compreende a si mesmo, ao outro e a tudo o que acontece. É onde seus pro-
jetos são tecidos, acontecem e, por vezes, desmoronam. O pensamento exis-
tencial foi muito fecundo no seu ensinamento de que somos abertura, afeta-
dos por nossos estados de ânimo, o que define um entendimento sempre
emocionado, como lembra Critelli (1996), e mobiliza para um modo singular
de cuidar de si, do outro e da vida. Essa perspectiva tem sido muito fértil
para orientar a compreensão dos fenômenos que nos são trazidos e que di-
zem respeito ao modo de educar crianças e adolescentes, à vida familiar, a
práticas educativas familiares e escolares, ao exercício da paternidade e ma-
ternidade, ao ser educador/a, à violência, ao desejo de proteger os filhos, à
constante busca de um modo dialógico de educar, de ser educador e inúme-
ros outros. Esse modo de compreender a existência humana também nos
remete à necessidade de estarmos atentos ao nosso próprio modo de cuidar, à
nossa solicitude.
Ao pontuar que estamos inelutavelmente presos à cotidianidade, a
fenomenologia existencial nos tira de uma atitude julgadora e nos faz aceitar
com humildade o contínuo movimento de apropriação e de perda no impes-
soal presente em todos nós. Essa disposição favorece o estar ao lado das
pessoas que atendemos, deixando desvelarem-se novas possibilidades de
enfrentar o eterno movimento oscilatório de abrigo e desamparo que encon-
tramos no mundo.
As noções que se desdobram da noção de Dasein apresentadas
acima na perspectiva do trabalho de escuta do psicólogo ou educador reme-
tem-nos ao que entendemos por atitude fenomenológica. O método, que
como quer Heidegger (1988) “não caracteriza a quididade real dos objetos da
investigação filosófica, mas seu modo, como eles são” (p. 57), nos permite
falar, finalmente, em uma atitude, o que não seria possível no interior de um
arcabouço teórico. A atitude fenomenológica está na base da reflexividade e
do trabalho desenvolvido pela ECOFAM e permite uma ação profissional
que inaugura outro modo de olhar e trabalhar com a “realidade”.

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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

ATITUDE FENOMENOLÓGICA
EXISTENCIAL E CUIDADO
NA AÇÃO CLÍNICA
Rafael Auler de Almeida Prado
Marcus Túlio Caldas

Sumário: 1. Introdução. 2. Cuidado/Cura/Preocupação. 3. Ação Clínica.


4. Considerações Finais. 5. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Primeiramente, cabe um esclarecimento inicial sobre as expectati-


vas que o termo Cura (Sorge)1 “Cura como cuidado ou preocupação” pode
gerar em um texto que fala sobre a clínica. Cuidado e a preocupação (fürsor-
ge) aqui, não se referem a uma modalidade ôntico-existenciária de proteção
psicológica, não têm o sentido de “alerta”, tampouco se referem à formula-
ção de uma nova técnica psicoterápica. Pensamos no sentido ontológico,
conforme proposto por Martin Heidegger (1889-1976). A partir da preocu-
pação enquanto condição existencial de ser-com2 na sua articulação com suas
infindáveis possibilidades existenciárias da condição ôntica3, pretende-se

1
A palavra alemã Sorge que pode ser traduzida por Cura e nos remete ao âmbito daquilo
que podemos denominar por Zelo, cuidado, preocupação/solicitude. Este é um existencial
meditado por Martin Heidegger (1889-1976) na elaboração da sua ontologia fundamental
publicada em 1927 – Ser e tempo. Usa-se o termo cuidado quando refere-se à relação do
ser-aí com as coisas (entes intramundanos) e preocupação ou solicitude para a relação do
ser-aí com os outros (coexistir). Adotar-se-ão neste trabalho as expressões Cura para abar-
car o sentido mais amplo desse existencial e que, portanto, inclui o cuidado como ocupa-
ção na relação do ser-aí com os entes intramundanos e a preocupação quando falamos da
relação do ser-aí com os outros (coexistir).
2
“Ser com os outros”, “sendo com os outros”, diz respeito ao modo como nós nos relacio-
namos, atuamos, sentimos, pensamos, vivemos com os outros.
3
“(Do Gr. On, ontos: o ser, aquilo que é) Palavra utilizada para designar o ser-aí (Dasein)
em sua existência concreta, distinguindo-se do ontológico que diz respeito ao ser em ge-
ral” (Japiassú & Marcondes, 1996, p. 200). O ontológico refere-se ao âmbito das possibi-
lidades de relações que se abrem para o ser-aí.
92 Rafael Auler de Almeida Prado e Marcus Túlio Caldas

compreender como a preocupação pode ser vivenciada na prática clínica


numa postura fenomenológica existencial do psicólogo. O sentido da expres-
são preocupação diz respeito a uma expectativa de que algo possa vir a
acontecer, tal expectativa pode ser vivida de duas maneiras extremas: uma
delas diz respeito a uma preocupação substituidora (Einspringende fürsorge),
onde o ser-aí faz tudo pelo outro, isentando-o em certa medida das suas res-
ponsabilidades, fazer este que pode envolver domínio e manipulação ainda
que sutil; o outro modo diz respeito à preocupação liberadora (Vorspringen-
de fürsorge), possibilitando para o outro condições para que ele possa assu-
mir as suas escolhas, posicionando-se e apropriando-se da tarefa de ‘ter que
ser e de poder ser’. Cabe ressaltar que o termo atitude é propositalmente
usado porque acredita-se que a vinculação existente entre a ontologia de
Heidegger e a ação clínica não acontecem do modo da aplicação de um co-
nhecimento teórico a uma situação prática.
Mal-entendidos como a acusação de que a psicologia fenomenoló-
gica existencial faz a “aplicação” de uma (ontologia) a uma prática são fre-
quentes. Tal equívoco tem implícita a crença de que a psicologia como práti-
ca tem que necessariamente ser a aplicação de um saber estabelecido por
meio do método científico. Partindo desse pressuposto, realmente fica in-
compreensível a “aplicação” de um pensamento para uma prática. No en-
tanto, a relação entre a ontologia de Heidegger e a atuação da prática psico-
lógica acontece em âmbito completamente distinto daquele da aplicação. O
pensamento heideggeriano possibilita reflexão da experiência clínica, orien-
tada por pressupostos ontológicos, não metafísicos, referentes à experiência
humana. As condições existenciais que tal pensamento reflete estão implíci-
tas no modo como o encontro entre psicólogo e paciente se dá, como a com-
preensão entre ambos é possível e como o psicólogo está implicado no pro-
cesso psicoterápico.
Acredita-se que exista uma relação anterior à vinculação entre o
pensamento de Heidegger e a clínica fenomenológica existencial, relação
que, inclusive, fundamenta a clínica. Trata-se da relação entre a ontologia e a
vida. Se a reflexão ontológica pode provocar uma mudança no meu modo de
ser, a partir de uma mudança no modo como me compreendo e compreendo
minha relação com o mundo e com os outros, ela também muda meu modo
de ser clínico. Na preocupação/solicitude, a reflexão cai sobre o modo como
eu me coloco diante do cliente, e pode ajudar a esclarecer se tendo a substi-
tuí-lo na responsabilidade que ele tem sobre sua própria existência, ou se
tendo a ajudá-lo a se apropriar, a seu modo, da lida com as questões ôntico-
existenciárias. Nesse sentido, a noção heideggeriana de cuidado nos parece
especialmente importante para mostrar em que se fundamenta a clínica e
como se dá a vinculação entre filosofia e psicologia.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

2 CUIDADO/CURA/PREOCUPAÇÃO

Heidegger faz uso de um testemunho pré-ontológico para elucidar


o existencial da Cura (Sorge). Tal testemunho encontra-se presente na se-
gunda parte da obra Fausto de Goethe e se refere à fábula 220, das Fábulas
de Higino. Essa fábula medita sobre a essência do homem, e Heidegger a
transcreve no § 42 de Ser e Tempo.

Certa vez, atravessando um rio, Cura viu um pedaço de terra argilosa:


cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe dar forma. Enquanto refle-
tia sobre o que criara, interveio Júpiter. A Cura pediu-lhe que desse espí-
rito à forma de argila, o que fez de bom grado. Como a Cura quis então
dar seu nome ao que tinha dado forma, Júpiter a proibiu e exigiu que fos-
se dado o nome. Enquanto Cura e Júpiter disputavam sobre o nome, sur-
giu Terra (tellus) querendo dar o nome, uma vez que havia fornecido um
pedaço de seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno como árbitro. Sa-
turno pronunciou a seguinte decisão, aparentemente eqüitativa: ‘Tu Jú-
piter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito e tu,
Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como, no entanto,
sobre o nome há disputa, ele deve chamar-se Homo, pois foi feito de hú-
mus. (Heidegger, 2008, p. 266)

Esta bela fábula, muito confortante para os homens, uma vez que
indica estarmos em nossa origem instalados em generosa oferta de cuidados,
vai receber do pensador um tratamento bastante peculiar. Compreendendo o
ser do homem como Ser lançado, em ontológica angústia e liberdade, uma
vez que se encontram sem possibilidade de alojamento e destino no conjunto
da natureza, terá seu sistema de ancoragem na metafísica, na técnica e na
filosofia ocidental posto em suspenso pelo pensador. A esse profundo desnu-
damento, a essa vertigem sem paragem, a esse apelo, responde aquele que,
condenado ao esquecimento, lhe acolherá em seu ser-com-os-outros, nesse
agora entremeado de possibilidades de sentido, que, finalmente, pode ser
chamado de mundo do homem. Assim, nossa condição, sermos, antes de se
pensar em qualquer possibilidade de subjetividade, singularidade ou indivi-
dualidade, ser-com. Portanto, insistindo um pouco mais nessa questão, a essa
condição ontológica deve nosso mundo e nossa humanidade.
Retomando de outra maneira uma observação feita acima, a crítica
heideggeriana a uma essência do homem compreendido como filho de Deus,
animal racional, consequência de um processo evolutivo ou mesmo subjeti-
vidade aninhada em uma consciência autofundante, fechada e segura de si
mesma, conduz a pensar o homem como para-fora-de-si, na existência, a ek-
sistir na facticidade do ser-no-mundo.
94 Rafael Auler de Almeida Prado e Marcus Túlio Caldas

O Dasein, terminologia proposta pelo pensador para a condição


ontológica do ser do homem como ser-no-mundo, terá seus modos de ser
articulados no “cuidado/preocupação”. A propósito, Heidegger chama de
ontologia fundamental o conjunto de reflexões que realiza sobre o ser-do-
homem para diferenciá-lo de outras propostas, denominadas por ele de on-
tologias regionais pelo fato de não refletirem diretamente a relação entre o
Dasein e seu ser, mas partirem de uma determinada região, ou seja, do estu-
do do ser de algo já dado no mundo.
O pensador adota essa concepção visando à apreensão formal da
totalidade do ser-aí enquanto ser-no-mundo na sua existência fática. Sendo a
plena unidade das estruturas que compõem o Dasein, o cuidado/preocupação
vai mostrar a relação dos existenciais: disposição, decadência e compreensão
com as ekstases temporais passado, presente e futuro.
Assim, ao ser fundamentalmente cuidado, o ser do ‘ser-aí-no-
mundo’ pode ser compreendido a partir das relações que estabelece sem-
pre e a cada vez com os entes. Aos entes que não possuem o caráter de
ser-aí, o modo de cuidado é a “ocupação”, enquanto utensílio na trama de
sentidos. A “preocupação” corresponderá ao relacionar-se a entes igual-
mente existentes. Essa por sua vez se dará como “substituição” ou “ante-
cipação liberadora”.
Portanto, estar “enfermo” para a daseinsanalyse não diz respeito a
um modo específico de correspondência, que, a princípio, é uma possibilida-
de de qualquer Dasein, mas ao fato de encontrar-se limitado a esse modo
específico, levando a uma impossibilidade de corresponder a outros apelos
de sentido que se façam prementes em seu existir. Daí que a atenção psico-
lógica deva dirigir-se a essa limitação das possibilidades de relação que o
ser-do-homem pode manter no mundo, ou seja, de sua liberdade.
O modo cotidiano e mediano da “preocupação” com os outros é a
indiferença, a ausência de surpresa e a evidência, que também caracterizam a
“ocupação” com as coisas enquanto instrumentos à mão. Tal modo se coloca
como grande desafio à clínica daseinsanalytica.
O terapeuta disposto a partir do ser-com como aquele que no modo
da “preocupação” e “anteposição” se permite guiar por uma “circunvisão”,
orienta-se por uma compreensão prévia a partir da qual o outro se dá como
co-presente-no-mundo, alcançando o que Heidegger denomina como “consi-
deração” ou “solicitude”. A “consideração” indica uma maneira de ver que
leva em conta a diferença e a importância de tudo com que se lida, enquanto
a “solicitude” comenta sobre o modo ativo de aceitação das tensões, dos
limites e as características diferenciais das situações e modos de ser.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

A partir, portanto do cuidado nas disposições acima comentadas,


será possível sustentar o sentido que, sem afastar o ser-com, permitirá um
modo mais próprio de ser “si-mesmo”.
Fazendo um breve parêntesis, encontra-se em Ser e Tempo uma inte-
ressante indicação que nos possibilita compreender a escolha dos objetos de
estudo da psicanálise. Durante toda essa obra, Heidegger parte de uma análise
de um modo cotidiano e mediano em o homem vem vivendo “quase sempre e
na maior parte das vezes” (termo que o autor repete diversas vezes ao longo da
obra) uma condição ontológica. Esse modo cotidiano e mediano, que Heidegger
chama de uma modificação existencial diz respeito a determinado modo como
nossa sociedade ocidental contemporânea vem vivendo determinada condição
ontológica. E, partindo desse modo ôntico, dos quais os modos existenciários
particulares de cada homem são, na maior parte das vezes, uma variação, ele
nos faz visualizar sua condição de possibilidade ontológico-existencial.
No § 41, cujo título é “O ser da presença como cura”, os exemplos
utilizados para tornar visível a condição ontológica da cura são o desejo e o
impulso (propensão à vida). Desejo e impulso são considerados modificações
existenciais, no sentido de que se “modificam” como modo ôntico-existenciário
– próprio de nossa época – a condição ontológica do cuidado/preocupação
(Sorge). Fica claro, diante da força de ambos enquanto modificações existenci-
ais da cura, na impropriedade e na decadência em que se lança o ser-aí, que a
psicanálise os tenha tomado como seus principais objetos de estudo. A psicaná-
lise inclusive, no seu modo ôntico de compreensão do dasein, explica muito
bem os processos e os caminhos dos impulsos e principalmente dos desejos.
Não é preciso alongar esta questão, pois o que se pretende com este
artigo é, a partir do cuidado, pensar no fundamento existencial que possibi-
lita a prática clínica, já que não se acredita que seja seu conjunto de técnicas
psicoterápicas nem o estabelecimento de um corpo teórico rijo cujo intuito
seja o da explicação dos fenômenos psíquicos dentro de relações de causali-
dade. Esclarecemos, porém, neste sentido, que reconhecemos a validade das
técnicas psicoterápicas e das teorizações psicológicas, somente não se a atri-
bui a elas o fundamento ontológico existencial que possibilita a clínica, que
pretendemos esclarecer com a noção de cuidado (ou cura) para Heidegger.

3 AÇÃO CLÍNICA

Considerando a clínica fenomenologia existencial a partir da analí-


tica existencial de Heidegger, analisa-se a seguinte afirmação que, de certa
forma, sintetiza não toda a estrutura ontológica, evidentemente, mas um as-
pecto dela:
96 Rafael Auler de Almeida Prado e Marcus Túlio Caldas

Como fático, o projetar-se compreensivo da presença está sempre junto


a um mundo descoberto. É a partir dele que o projetar-se recebe suas
possibilidades e, numa primeira aproximação, segundo a interpretação
do impessoal. Essa interpretação já restringiu antecipadamente as pos-
sibilidades de escolha ao âmbito do já conhecido, do que já se pode al-
cançar e suportar, do que é pertinente e conveniente. (Heidegger, 2008,
p. 262)

Nessa afirmação, são colocados diversos aspectos fundamentais da


estrutura ontológica do ser-aí cuja articulação é a cura.
O ser-aí está sempre sendo, e sendo, coloca em jogo o seu poder-
ser. Isso significa que ele é sempre possibilidade de ser alguma coisa, não
pode ser determinado a partir de características que são possibilidades e não
qualidades arraigadas. No entanto ele tem que ser, e ser quer dizer ser num
mundo que já lhe é aberto, compreendendo-se de determinado(s) modo(s).
Embora infinitas, suas possibilidades de ser são dadas pelo mundo em que se
projetou compreensivamente e no qual decaiu. O impessoal são os modos de
ser do mundo, de todos e ninguém, o que é compartilhado. O impessoal
sempre nos dá as possibilidades de ser, já que somos-no-mundo-com-os-
outros. No entanto, na maior parte das vezes, o ser-aí vive as possibilidades
que a interpretação do impessoal fornece sem tê-las propriamente escolhido,
ou seja, impropriamente. Viver impropriamente quer dizer que as possibili-
dades são vividas a partir do conveniente, do modo como todo mundo faz,
sem se dar conta de que são possibilidades, mas como o que habitualmente “
se tem a viver”.
A impropriedade nos protege de nos sentirmos “nada”. Somos nada
na medida em que somos possibilidades de ser e que não somos algo como
aquilo que nos determina como simplesmente dados. Sendo a compreensão
sempre aberta por determinada disposição afetiva, somente na disposição da
angústia podemos nos compreender como seres de possibilidades. Nela,
sente-se o vazio de sermos nada enquanto lugar não definitivo, não garanti-
do. Na angústia, é-nos revelado que somos possibilidades de ser. A angústia
nos é privilegiada porque ela permite que nos compreendendo como respon-
sáveis pelas possibilidades que somos, podemos escolhê-las com proprieda-
de. Isso não quer dizer que sempre que estamos dispostos na afinação da
angústia iremos a seguir nos apropriar de possibilidades que o impessoal nos
disponibiliza. Na verdade, o modo como nos entregamos ao impessoal sem
assumirmos nossas possibilidades como próprias, consiste em uma “fuga” da
angústia, acomodando-nos nos ditames impessoais.
Em determinados momentos de nossa existência, determinados
modos que vínhamos sendo provocam-nos incômodo, tenhamos nós mais ou
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

menos clareza sobre eles. Seja frustração, seja carência, seja fraqueza, seja
depressão, seja estresse, ou um incômodo difuso, não claro, algo vem dizer
que não podemos mais ser de determinado modo. É como se uma brechinha
de angústia se abrisse em cada um desses incômodos, uma brechinha capaz
de pôr em questão nossa existência e que possamos nos apropriar de um
modo de ser que seja próprio, que escolhamos uma dada escolha. O seguinte
trecho de Ser e Tempo indica algo nessa direção:

Apreendido de modo existencialmente originário, compreender significa:


ser, projetando-se num poder ser, em virtude do qual a presença sempre
existe. O compreender abre o poder ser próprio de tal maneira que com-
preendendo, a presença, de algum modo sabe a quantas anda. Esse saber
não significa contudo, ter descoberto um fato mas manter-se numa possi-
bilidade existenciária. O não-saber que lhe corresponde não significa au-
sência do compreender mas deve ser considerado um modo deficiente de
projetar o poder-ser. A existência pode ser digna de questionamento.
Para que este questionamento seja possível, é necessária uma abertura.
(Heidegger, 2008, p. 422)

É nesse sentido que Sá (2002b, p. 262) afirma que “[...] o espaço


terapêutico se mantém no esforço de sustentar a questão, enquanto questão
concernente ao poder ser próprio do Dasein, até o limite em que seu apelo
suscite novas possibilidades de correspondência.” Na clínica o que o tera-
peuta pode oferecer é um espaço em que o cliente possa ir se apropriando de
algumas de suas escolhas, compreendendo e podendo se responsabilizar por
elas, saber que suas escolhas, mesmo que impróprias – o que acontece na
maior parte das vezes –, são dele. É ele quem pode cuidar delas, lidar com
elas, se haver com elas. O compreender é algo fundamental na psicoterapia.
É compreendendo o modo como assume suas possibilidades de ser, numa
determinada abertura dada por incômodo, que consiste numa disposição
afetiva que remete à angústia, como se dela fosse uma variação, que o paci-
ente pode ir se apropriando de seus modos de ser.
Na cotidianidade decadente (no sentido da decadência ontológica
do ser, não num juízo de valor) da impessoalidade em que o ser-aí está ab-
sorto no modo da ocupação com os entes, da preocupação com os outros, ele
se compreende como um eu-sujeito, simplesmente dado. Esse compreender-
se que se reflete na concepção teórica de nossa tradição filosófica em que o
sujeito é colocado separadamente de seu mundo, refere-se a uma de suas
estruturas ontológicas, ou seja, ao modo como ele “é”, ou “tem sido” na
maior parte das vezes. Segundo a tradição, o eu-sujeito lida com seu mundo
exterior a si representando-o através de uma instância chamada consciência
ou psique.
98 Rafael Auler de Almeida Prado e Marcus Túlio Caldas

Voltando à ação clínica, Sá (2002a, 2002b) caracteriza a psicotera-


pia como uma modalidade de prática clínica na qual são explicitadas verbal-
mente ideias e sentimentos. O mesmo autor comenta que, além disso, é fun-
damental estar presente sempre algum grau de apropriação temática do con-
teúdo explicitado. Nesse sentido, é tematizando e apropriando-se de sua pré-
compreensão aberta por uma determinada disposição que o dasein pode cor-
responder, em maior liberdade, ao que lhe vem de encontro no seu mundo
fático.

De início e na maior parte das vezes, o homem encontra-se num mundo


cujo sentido dos entes é simplesmente dado, não sendo portanto tema de
uma apropriação reflexiva. Apenas quando uma coisa ou acontecimento
escapa ao seu lugar esperado na rede de significância instituída como
mundo, surge o estranhamento, a angústia e a demanda nem sempre cor-
respondida de tematização de sentido. Essa demanda pode assumir dois
níveis de abrangência distintos. No primeiro, questiona-se o sentido de
um ente intra-mundano a partir do horizonte de sentido já estabelecido.
No segundo, impõe-se um questionamento mais radical que põe em jogo o
próprio horizonte de sentido enquanto tal e, portanto, os limites do mun-
do (do Dasein como abertura). É neste caso que pensamos ser mais perti-
nente falar em distúrbio ou crise na cotidianidade do Dasein. (Sá, 2002a,
p. 261)

Essa colocação de Sá ainda aponta para o modo como se compre-


ende a doença ou o distúrbio na daseinsanalyse. Se os homens são, e têm que
ser, possibilidades de ser, e todos os modos de ser são compreendidos como
legítimos no sentido de serem o modo como cada um pôde a seu modo lidar
com a sua angústia de ser, não há como classificar determinada possibilidade
como doentia ou como distúrbio. A doença só pode ser compreendida como
restrição de possibilidades de ser, no sentido de restringir a liberdade com
que alguém corresponde aos apelos do mundo na sua facticidade. Assim, a
doença não quer dizer não existência, mas é uma possibilidade da existência.
Ao responder a uma questão de um estudante que lhe questionava se
a Fenomenologia se vale de alguma noção nosográfica, Dietchtchekenian dá
um exemplo bastante ilustrativo. O autor coloca que a Fenomenologia não
nega a nosografia enquanto uma possibilidade de se apreender um aspecto do
fenômeno do ser obsessivo-compulsivo, mas ressalta que isso não basta para
compreender o modo como o obsessivo é fundamentalmente afetado na sua
disposição e o modo como lida com suas possibilidades de ser no mundo que
se lhe abre a partir dessa disposição. Enquanto alguém que vive intensamente a
“explosão da vida”, ser obssessivo-compulsivo “[...] ao mesmo tempo pode ser
visto como o único modo que aquela pessoa encontrou de incluir a ordem na
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

absoluta vitalidade da vida” (Diechtchekenian, 2011, p. 11). O modo “certi-


nho” de ele ser é o modo de alguém que se esforça ao máximo para manter a
organização na vida cuja imprevisibilidade originária lhe é tão perturbadora.

Desse modo, sofrimento reflete a própria condição humana de existir –


pôr-se a caminho apesar da inospitalidade do mundo e da experiência de
desamparo diante dessa tarefa tão humana e angustiante, mas, ao mesmo
tempo, libertadora. Existir é cuidar – a existência se apresenta como pura
possibilidade e abertura ao ser, podendo o homem perder-se ou apropri-
ar-se na existência. (Barreto, 2011, p. 10)

Se o sofrimento pode ser vivido em determinados momentos como


perder-se de si, de modo que não se possa tematizar o que faz sofrer e assim
me apropriar-se deste sofrimento, a procura pela clínica pelo paciente, desde
que sendo uma decisão apropriada, já é um gesto de busca por apropriação
de seu sofrimento. Na clínica, o sofrimento não tematizado e que lhe fazia
estar perdido, pode ser apropriado aos poucos à medida que o diálogo com o
terapeuta possa ajudar o paciente a tematizar seu sofrimento e ouvir aquilo
que o próprio sofrimento aponta. À medida que se apropria dele, o sofri-
mento passa a mobilizar o paciente a outras possibilidades de ser. Por isso, a
ação clínica pode ser compreendida como possibilidade de intervenção do
psicólogo implicado “[...] no movimento de experienciação do cliente, acom-
panhando-o na tarefa de ampliar o que já sabe pré-reflexivamente, possibili-
tando que, na situação clínica concreta e totalmente singular, se compreenda e
assuma o que ele está sendo e no que pode ser (Barreto, 2011, p. 11).
A ação clínica não é diferente da vida. Não é a objetividade nem a
neutralidade e nem o afastamento que garantem sua eficiência. O terapeuta
não pode conduzir voluntariamente o processo, já que o mesmo diz respeito
ao modo como o cliente é afetado pelas questões de sua vida e ao modo
como ele pode, a cada momento, lidar com elas. Com essa constatação, lon-
ge de tentar derrubar outras modalidades de prática psicológica que se fun-
damentem no método científico, pretende-se apenas levar a cabo o fato de
que a clínica acontece porque o homem é ser-com e assim, o modo como
alguém se coloca como terapeuta e o paciente se coloca como paciente é que
possibilita que haja uma ação clínica. Cabe ao terapeuta, portanto, incessan-
temente, estar atento para e refletir sobre o modo como se coloca na relação
a fim de que possa o mais possível colocar-se como alguém que cuida no
modo da consideração e da tolerância, embora saibamos que o cuidado en-
quanto substituição e antecipação liberadora se misturem inevitavelmente.
O que possibilita a ação clínica? Duas condições ontológicas fun-
damentais possibilitam a ação clínica, de modo que ela se configura pelo
100 Rafael Auler de Almeida Prado e Marcus Túlio Caldas

encontro e pela articulação das duas. Primeiro, o cliente enquanto alguém


que sofre é alguém que põe em questão determinado ente intramundano no
horizonte de sentido no qual está lançado ou põe em questão o próprio
horizonte de sentido, de modo que a disposição afetiva que abre a compre-
ensão de seu mundo, ainda não claramente tematizada, possibilita não só o
pôr em questão, mas o apropriar-se de sua questão pela fala, bem como o
apropriar-se do modo como lida com ela. A outra condição diz respeito ao
cuidado enquanto sua modalidade ôntica de consideração e solicitude tam-
bém permite ao outro apropriar-se de suas questões, de suas escolhas e
escolher com propriedade. Dessa forma, o que cabe ao terapeuta é ir-se
dando conta do modo como cuida de seu paciente, a fim de cada vez mais
privilegiar o modo da consideração e da solicitude no seu modo próprio de
ser. É aí, retomando o que se disse no início do texto, na reflexão que ele
faz sobre o seu ser-aí-com-os-outros e assim dele enquanto terapeuta, que a
filosofia de Heidegger pode ajudar, não no modo da aplicação de um co-
nhecimento prévio. Também, evidentemente, o terapeuta o faz por meio de
psicoterapia individual e supervisão.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O grande desafio de ser psicólogo é o desafio de sermos nós mes-


mos, ou seja, de nos apropriarmos também de nossas escolhas, posições e
convicções. Neste “sermos nós mesmos”, o diálogo entre o que carregamos
enquanto nossa pré-compreensão, o que inclui a reflexão teórica, e o novo
que vem ao encontro na prática clínica, é fundamental para podermos estar
abertos e acolher o novo, que, muitas vezes, implica modificar nosso modo
de compreender.
A reflexão teórica pode implicar, sim, aquisição de conhecimentos
e técnicas psicoterápicas, dependendo somente do fato de fazerem sentido
àquele terapeuta específico, no modo próprio de ele ser. No entanto, nenhum
tipo de conhecimento ou técnica é absoluto ao ponto de que, se não for in-
corporado, a ação clínica não terá fundamentação ou estará fadada ao fracas-
so. Insiste-se que o que determina a importância da referência teórica é o
sentido que ela faz ao terapeuta no modo como ele compreende seu ser-no-
mundo-com-os-outros.
Para os terapeutas de atitude fenomenológica existencial, é de im-
prescindível importância apropriar-se de sua pré-compreensão, seus precon-
ceitos, seus pressupostos de modo que não se dirija nossa reflexão teórica a
formulações de referências específicas próprias de teorias psicológicas ou de
técnicas psicoterápicas. Centramos nossa reflexão naqueles aspectos funda-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

mentais da existência que nos atravessam na relação com o outro – e que nos
ajudam a compreender como estamos implicados na relação com nosso paci-
ente – e também naqueles que dizem respeito ao modo como lidamos com o
modo como somos afetados e solicitados pelo mundo enquanto seres-de-
possibilidades e responsáveis por nossa existência. Esses aspectos já nos
ajudam a compreender o sentido fundamental do que vive nosso paciente –
assim como no exemplo do obsessivo-compulsivo – não para estabelecer
uma “intervenção-padrão” a determinado comportamento-padrão, mas para
poder acompanhar o modo como o paciente acolhe e responde às determina-
ções de sua existência.
Se na ação clínica estão presentes as mesmas condições existenci-
ais de outras situações de vida, o que a caracteriza como ação clínica é o fato
de que alguém que é tocado por um questionamento ou sobre o sentido de
determinado ente intramundano no seu horizonte de sentido, ou pelo questi-
onamento do próprio horizonte de sentido, em disposição afetiva mais pró-
xima da angústia, buscar no diálogo com outro uma tematização de sua pré-
compreensão. O outro, o terapeuta, se coloca como aquele cujo cuidado en-
quanto consideração e solicitude pode proporcionar algo assim para o paci-
ente. Conforme comentado anteriormente, tanto determinada disposição
afetiva em que o sofrimento abre o aí do ser-o-aí, como o cuidado enquanto
consideração e solicitude, são ocasiões de apropriação de sentidos e singula-
rização.

5 REFERÊNCIAS

Barreto, C. L. B. T. (2011). A ontologia existencial de Heidegger como possibilidade para


pensar outros modos de constituição da subjetividade e da ação clínica. In: Simpósio Nacional
de Práticas Psicológicas em Instituições – Perspectivas e Rumos da Psicologia na Atualidade,
10. Anais... Rio de Janeiro: UFF, 1CD-ROM.
Dichtchekenian, N. Direito de Resposta – A Fenomenologia. Disponível em: <http://www.
fenoegrupos.com/JPM-Article3/pdfs/nichan_resposta.pdf>. Acesso em: 13 fev. 2011.
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Sá, R. N. (2002b.). A psicoterapia e a questão da técnica. Revista Arquivos Brasileiros de
Psicologia. Rio de Janeiro, v. 54, n. 4, pp. 348-362, out./dez.
102 Rafael Auler de Almeida Prado e Marcus Túlio Caldas
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

APONTAMENTOS CRÍTICOS À TEORIA


DA MUDANÇA DE CARL ROGERS
Maria Luisa Sandoval Schmidt

Jean-Paul Sartre, ao finalizar o livro As palavras, no qual faz o tra-


balho de memória de sua infância, escreveu que “a gente se desfaz de uma
neurose, mas não se cura de si próprio” (Sartre, 1984, p. 182).
Para Sartre, a tarefa de ser quem se é não se confunde com aquela
que assinala as dores de ser com as insígnias da doença (mental) e a cura
como uma espécie de resolução do ser quem se é. Isto faz lembrar uma tira
do cartunista argentino Quino em que a personagem Mafalda grita, indigna-
da: “ Justo a mí me tocó ser yo!”1. Cuidar de ser é a lida de toda e cada exis-
tência humana e não se reduz ao cuidado com a doença.
A clínica psicológica vem sendo pensada e praticada, desde seu
surgimento na modernidade, por um conjunto abundante de propostas teóri-
co-metodológicas que se movem entre o tratamento de neuroses e psicoses e
o oferecimento de uma condição especial para a experiência de auto-
conhecimento, crescimento, desenvolvimento e outras denominações que
procuram desembaraçar-se do modelo psicopatológico de filiação médica.
Mudança e cura, alvos da clínica psicológica, combinadas ou anta-
gonizadas na profusão de abordagens ou linhas psicoterápicas, são figuras
em sintonia com duas maneiras, polares talvez, de interpretar os pedidos de
ajuda: aquela que se cobra num momento de crise para continuar a existir e
aquela que intenta livrar-se de algo que incomoda, como corpo estranho,
como doença, distúrbio ou desvio2.

1
A referência a esta tira como exemplo contundente da inescapável tarefa de ser que cabe a
cada indivíduo foi feita pela filósofa Dulce Mara Critelli, em aula ministrada no Instituto
de Psicologia da USP.
2
Pierre Fédida, psicanalista francês que esteve algumas vezes em São Paulo proferindo
palestras e conduzindo supervisões, expressou, numa das ocasiões em que supervisionava
um grupo de psicoterapeutas do qual participei, a opinião de que haveria um tipo de cura,
psiquiátrica, que operava sem que o paciente estivesse nela implicado. Neste tipo de cura,
104 Maria Luisa Sandoval Schmidt

Mudança ou cura, tratamento ou autoconhecimento, crescimento


ou desenvolvimento não demarcam, claramente, “tipos” de psicoterapia, mas
servem ao pensamento que busca responder à interpelação lançada pela con-
cisa afirmação de Sartre, se se considera que ela diz respeito, também, à clí-
nica psicológica.
Se, por um lado, as noções de tratamento e cura circunscrevem, em
tese, as ações de psicoterapeutas ao trato com a doença, por outro, esbarram
na imprecisão ou, como prefere Szasz (1978), no “escândalo científico” que
são as chamadas doenças mentais.
Szasz (1978) argumenta que o desenvolvimento da psiquiatria mo-
derna tornou literal a metáfora da doença mental, num processo que é a an-
títese do desenvolvimento da medicina. Enquanto a medicina identifica e
classifica as doenças a partir de observações “de mudanças patológicas ma-
croscópicas em órgãos, mudanças microscópicas em tecidos e células, inva-
sões microbianas etc”, a psiquiatria fez proliferar nomes de doenças “inde-
pendentemente de seus correlatos anatômicos, bioquímicos, microbiológicos
ou fisiológicos” criando, portanto, supostas doenças cuja patologia morfoló-
gica foi postulada sem, contudo, jamais ter sido apresentada ou provada
(Szasz, 1978, pp. 191-192).
A expansão da própria noção de doença sob a influência de uma
noção de doença psíquica, por sua vez, remete, como pontua Karl Jasper3, ao
modo de vida, e, é possível acrescentar, ao modo de ser, alargando, perigo-
samente, o território da doença e aquele de seu controle.
Lévi-Strauss (1975), por sua vez, no artigo “O feiticeiro e sua ma-
gia”, também discute, de um outro ângulo, os efeitos “inconvenientes” ad-
vindos da aplicação de terapêuticas psicológicas na situação de incerteza
sobre a doença ou anormalidade.
Ao comparar as terapêuticas psicológicas antigas com a psicanáli-
se, Lévi-Strauss adverte sobre o interesse das primeiras para uma reflexão
sobre os princípios e métodos da segunda. Ele escreve que:

o conjunto de sintomas do indivíduo são vividos e interpretados como corpo estranho eli-
minado por meio das medicações e o indivíduo se restabelece sem um único questiona-
mento sobre o ser que ele é. No tratamento psicanalítico, ainda de acordo com Fédida, a
implicação do paciente é condição fundamental.
3
Para este autor, o conceito de doença psíquica, por comparação ao de doença física, “in-
troduz uma dimensão completamente nova. Neste caso, a imperfeição e a vulnerabilidade
dos seres humanos, assim como sua liberdade e infinitas possibilidades, constituem per se
uma causa de doença. Em contraste com os animais, o homem carece de um padrão inato
e perfeito de adaptação. Ele tem que adquirir um modo de vida à medida que avança nela”
(Jaspers, aput Szasz 1978).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Deixando desenvolver-se sem cessar o recrutamento de seus jurisdicio-


nados que, de anormais caracterizados, se tornam paulatinamente exem-
plos representativos do grupo, a psicanálise transforma seus tratamentos
em conversões; pois somente um doente pode sair curado, um inadaptado
ou um instável só podem sair persuadidos. Vê-se aparecer então um peri-
go considerável: que o tratamento (sem que o médico o saiba, bem enten-
dido), longe de chegar à resolução de uma perturbação precisa sempre
dentro do contexto, se reduz à reorganização do universo do paciente em
função das interpretações psicanalíticas. (Lévi-Strauss, 1975, p. 212)

A afirmação referida à psicanálise serve, parece, às terapêuticas


psicológicas modernas de uma maneira geral, na medida em que o recruta-
mento de suas clientelas recobre tanto a esfera, problemática, daqueles que
receberam um diagnóstico de doente mental quanto aquela dos inadaptados e
instáveis. Sem contar que, do ponto de vista da psicanálise, a neurose é,
muitas vezes, tomada como figura de normalidade.
A hipótese com a qual Lévi-Strauss (1975) trabalha em outro arti-
go, “A eficácia simbólica”, em muitos aspectos complementar ao anterior-
mente citado, é a de que a psicanálise tornar-se-ia assemelhada às terapêuti-
cas tradicionais, na medida em que ficassem provados os fundamentos fisi-
ológicos e bioquímicos das neuroses e psicoses, permitindo afirmar a tera-
pêutica psicológica como método de indução de mudanças orgânicas por
meio da eficácia simbólica.
No embate entre as pesquisas médico-psiquiátricas no âmbito far-
macológico que têm estabelecido relações entre a ação de produtos bioquí-
micos e a suspensão de sintomas psicológicos, reduzindo a compreensão do
sofrimento psíquico a uma questão de cura orgânica e as visões psicotera-
pêuticas que rejeitam esta mesma redução, a hipótese de Lévi-Strauss ocupa
uma posição marginal. À hegemônica medicina psiquiátrica instrumental e
aos interesses comerciais da indústria farmacológica não interessa a cura por
meios simbólicos e às psicoterapias não interessa a delimitação ou circuns-
crição de suas ações a sofrimentos e contextos específicos.
Seja aderindo ao “escândalo científico” da doença mental inven-
tada pela psiquiatria, atuando como coadjuvante do tratamento médico,
seja fazendo uso da doença como metáfora, criando explicações psicopa-
tológicas fundadas na dinâmica da personalidade ou no modo de estrutura-
ção do “aparelho psíquico”, os sistemas psicoterápicos parecem muito
distantes da demarcação sonhada ou indicada por Lévi-Strauss, entre ou-
tros motivos, porque, talvez, não seja possível, para esses sistemas, com o
apoio da cultura ocidental moderna, distinguir a pessoa da neurose ou da
psicose da qual se diz que alguém é portador, bem como o tratamento da
106 Maria Luisa Sandoval Schmidt

conversão. Como a doença não é precisamente estabelecida, ou sequer


existe, inadaptação e instabilidade facilmente ingressam neste terreno mo-
vediço, no qual não é possível tratar a “doença” sem converter o paciente
ou reorganizar seu universo de percepções, sensações e representações
sobre si mesmo e o mundo.
As teorias e práticas psicoterápicas de feição humanista, identifi-
cadas, em meados do século XX, com a chamada Terceira Força4, na qual a
abordagem centrada na pessoa se insere, enfatizaram a psicoterapia como
processo de auto-conhecimento, relativizando o lugar da doença, do trata-
mento e da cura. Ao fazê-lo, assumiram a mudança como uma das figuras
de suas aspirações. A mudança, cuja visibilidade repousa na conduta e nos
modos de ser, opera-se, na perspectiva destas teorias, a partir da reorgani-
zação ou ressignificação do universo de percepções, sensações e valores.
Se, por um lado, estas teorias realizam a crítica ao modelo médi-
co e à “patologização” de modos de sentir e pensar, por outro, tomam es-
tes próprios modos de ser, sentir e pensar como objeto de seus cuidados,
contribuindo para o transbordamento do terapêutico para a esfera do cres-
cimento ou desenvolvimento de indivíduos e grupos, bem como para a
ampliação dos contextos nos quais uma intervenção psicológica clínica
veio a caber.
Na perspectiva liderada por Carl Rogers esta expansão ou trans-
bordamento aparece mais ou menos demarcada pela passagem da fase da
chamada psicoterapia centrada no cliente para aquela denominada aborda-
gem centrada na pessoa, quando o mesmo referencial compreensivo conce-
bido na e para a prática psicoterápica é transposto para o âmbito dos grandes
grupos, das instituições, da educação e das relações interculturais.
Este referencial, que tem origem no exercício e no estudo da psi-
coterapia, concebe uma teoria da mudança constituída pela combinação da
metodologia da ciência positivista e de influências filosóficas da fenomeno-
logia e do existencialismo.
Este peculiar arranjo, em Rogers, opera um movimento de purifi-
cação análogo àquele denunciado por Bruno Latour (1994) em relação ao
antagonismo cultura e natureza, nesse caso, separando a psicoterapia − expe-
riência intersubjetiva − da pesquisa sobre o processo psicoterápico objetiva-
do pelo método científico.

4
Termo que se refere a um conjunto de abordagens psicológicas influenciadas pelas filoso-
fias fenomenológica e existencialista que tinham como um de seus denominadores co-
muns a crítica às noções deterministas do behaviorismo (primeira força) e da psicanálise
(segunda força).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Analisar a teoria rogeriana da mudança tendo em mente o problema


das ambiguidades e imprecisões de limites das psicoterapêuticas modernas e
a confluência de referenciais antagônicos é o propósito deste ensaio.

II

A escrita de Rogers, ora assume um tom especialmente pessoal, ora


faz apelo a uma apresentação de proposições e hipóteses distanciadas de seu
enunciador e logicamente organizadas. Esta passagem de um registro a ou-
tro, que muita vezes acontece em um mesmo texto, parece ser um dos modos
do autor lidar com a oposição entre positivismo lógico e “pensamento exis-
tencial orientado subjetivamente”. Esta oposição, que Rogers tenta integrar,
corresponde, também, como já foi dito, à separação que estabelece entre a
experiência clínica e a pesquisa científica sobre esta experiência e seus efei-
tos em psicoterapeutas e clientes. As formas da escrita indicam a coexistên-
cia de “observações” cujo referente é o encontro existencial com um outro na
situação de atendimento e observações que derivam em hipóteses postas à
prova por instrumentos de medida.
A musculatura, os tecidos, a carne destas formas evocam os conte-
údos da teoria da mudança que se articula, por um lado, a uma visão de ho-
mem ou a uma teoria de personalidade e, por outro, à investigação das con-
dições psicossociais e comunicacionais propícias à transformação.
Como forma e conteúdo encontram-se irmanados em cada texto,
convém, depois deste preâmbulo, indicar os três artigos que serão tomados
como base para a análise.
Para o esclarecimento e a apreciação crítica da posição de Rogers
sobre o embate de paradigmas, o artigo “Pessoa ou ciência? Um problema
filosófico”, publicado, originalmente, em 1961 no livro Tornar-se pessoa, é
central, uma vez que o próprio autor atribuiu-lhe as qualidades de um escrito
que traduziu, de maneira satisfatória, suas opiniões sobre a questão.
O exame das concepções sobre mudança em conexão com a visão
de homem tem como apoio o capítulo XI “Uma teoria da personalidade e da
conduta” do livro A terapia centrada no paciente5, publicado pela primeira

5
É inevitável experimentar um certo constrangimento ao citar o título da obra de Rogers
em português, pois o mesmo é, talvez, uma das maiores falhas editoriais na tradução de
obras de psicologia no Brasil. O termo paciente no lugar de cliente é significativo e fere as
convicções do autor sobre a importância de abandonar a palavra paciente como forma,
também, de exercer a crítica ao modelo médico. No entanto, como nesse ensaio será usada
a versão do texto em português, torna-se necessário passar pelo constrangimento.
108 Maria Luisa Sandoval Schmidt

vez em 1951. Neste capítulo, Rogers procurou reunir as formulações teóricas


até então expostas em seus artigos anteriores sobre psicoterapia e suas con-
sequências para a personalidade.
Por fim, um texto de 1957, “As condições necessárias e suficientes
para a mudança terapêutica de personalidade”, publicado inicialmente no
Journal of Consulting Psychology e apresentado em português no livro
Abordagem Centrada na Pessoa organizado por Wood (1994), servirá à
apreciação da mudança e suas condições psicossociais e comunicacionais.

III

No livro Tornar-se pessoa, Rogers reuniu vários artigos sobre dife-


rentes assuntos, redigidos em diferentes épocas. Cada um deles contém,
como abertura, um pequeno comentário do próprio autor visando situá-lo em
relação às suas preocupações atuais (daquela época).
No comentário ao artigo “Pessoa ou ciência? Um problema filosófi-
co”, Rogers explicita o fato de tê-lo escrito para si mesmo, sem intenção inicial
de publicá-lo, utilizando-o com o propósito de, pessoalmente, “esclarecer um
problema e um conflito crescentes”. Em suas palavras, a origem de tal conflito
“tratava-se de uma oposição entre o positivismo lógico em que eu fora educa-
do e pelo qual tinha um profundo respeito e um pensamento existencial ori-
entado subjetivamente que crescia em mim porque me parecia adequar-se
perfeitamente à minha experiência terapêutica”. (Rogers, 1977, p. 179)
O embate de paradigmas é, desde logo, na introdução do artigo,
colocado nos termos de um conflito pessoal encenado pelo cientista e pelo
psicoterapeuta que o habitam: o investigador pautado pela objetividade, o
terapeuta pela subjetividade e, entre eles, “um embaraço crescente” causado
pela distância entre “a objetividade rigorosa” do cientista e a “subjetividade
quase mística” do psicoterapeuta.
Na abordagem do problema, Rogers procede mantendo a separação
entre os dois protagonistas, descrevendo “as essências” da psicoterapia como
experiência e como objeto da ciência, bem como enumerando as questões do
cientista e aquelas do “experiencialista” para, na conclusão, buscar uma
combinação harmoniosa de ambos.
Em todo o percurso desta luta que assume, de acordo com o próprio
autor, uma forma dramática, o conflito é predominantemente pensado pelo viés
do positivismo, reproduzindo as cisões que foram e são alvos da crítica feno-
menológica e existencialista tais como sujeito e objeto, mundo interno e mundo
externo, razão e sensível, entre outras. Rogers, admitindo não ter estudado de
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

modo mais aprofundado a filosofia existencial e carecendo, portanto, de um


suporte filosófico para pensar o conflito, apoia-se, sobretudo, na visão científica
na qual fora educado. Desta perspectiva, a divisão entre objetividade e subjeti-
vidade impede a sua constituição como pesquisador orientado pela fenomeno-
logia e pelo existencialismo nos quais, no entanto, encontra ideias afinadas com
aquelas que descobre por intermédio da prática psicoterapêutica.
O primeiro protagonista − o terapeuta − é introduzido por sua ine-
rente oposição ao médico e ao cientista. Assim se expressa Rogers em sua
autodefinição como psicoterapeuta:

Lanço-me na relação com uma hipótese, ou uma convicção, de que a


minha simpatia, a minha confiança e a minha compreensão do mundo
interior da outra pessoa provocarão um significativo processo de
transformação. Entro na relação, não como um cientista, não como um
médico que procura diligentemente o diagnóstico e a cura, mas como
uma pessoa que se insere numa relação pessoal. Enquanto eu olhar
para ele como um objeto, o cliente tenderá a tornar-se apenas um objeto.
(Rogers, 1977, p. 181).

Território alheio à objetividade do diagnóstico e da cura, a psicote-


rapia rogeriana retira sua verdadeira significação de dois conceitos: unidade
de experiência e aprendizagem significativa.
Pela unidade de experiência, aspecto fundamental da terapia, Rogers
se aproxima daquilo que a configura como relação “Eu-Tu” (Buber, 1977) por
oposição à visão médico-científica do cliente como objeto. Nela, o cliente deve
poder experimentar, livremente, o que sente e sua compreensão, enquanto que
o terapeuta deve poder deixar-se “flutuar na corrente da experiência ou da
vida” deste outro, tal como ela se apresenta na relação. Não sendo o intento do
encontro entre terapeuta e cliente o diagnóstico e a cura, este se desloca para o
“tornar-se si mesmo” que se traduz numa abertura para os sentimentos e ten-
dências do organismo. Experimentar e escolher aquilo que se é por referência
àquilo que se passa no organismo são, por assim dizer, as consequências psi-
coterapêuticas a que o ideário e a prática rogerianos aspiram.
Ao caracterizar o encontro psicoterapêutico como oportunidade, para
o cliente, de tornar-se quem ele é, Rogers roça os temas da escolha existencial
e da autenticidade caros ao filósofo Kierkegaard cuja obra ele conhecia6. Para
este filósofo, segundo Heller (2002), a escolha existencial significa que:

6
No mesmo comentário já citado anteriormente, Rogers admite, por um lado, não ter estu-
dado filosofia existencial e, por outro, ter tido conhecimento das obras de Soeren Kierke-
gaard e Martin Buber e ter nelas encontrado um apoio para suas próprias ideias.
110 Maria Luisa Sandoval Schmidt

uma pessoa escolhe a si mesma e, desde então, torna-se o que ela é. O


que é escolher a si mesmo? É escolher tudo o que somos: escolher nos-
sa constituição corporal, nossas capacidades mentais, nosso objetivo
moral, nossas predisposições emocionais, nossos pais, o mundo em que
nascemos, nosso país e assim por diante. Nos escolhemos por completo.
(...) O conceito de escolha existencial está também relacionado à cate-
goria do salto. O salto significa que a escolha existencial é uma escolha
absoluta, que não está determinada, por isso falo em salto. (...) A esco-
lha existencial é essa espécie de salto. Salto absoluto porque não se
pode voltar atrás. (...) se você faz uma escolha existencial, está esco-
lhendo a si próprio, e não escolhendo isso ou aquilo, essa ou aquela
pessoa. (Heller, 2002, pp. 42-43)

Para Rogers, contudo, a autenticidade e a escolha por ser quem se é


assume um sentido psicológico de aceitação do organismo. Ele escreve:

O que significa tornar-se no que se é? Isso parece indicar menos medo


das reações organísmicas, reações não refletidas de um indivíduo, uma
confiança progressiva acompanhada mesmo de afeição pelo complexo,
variado e rico sortimento de sentimentos e de tendências que existem em
si ao nível orgânico ou organísmico. A consciência, em vez de ser a senti-
nela de um amontoado de impulsos perigosos e imprevisíveis dos quais só
poucos poderão ver a luz do dia, torna-se o habitante bem instalado de
uma rica e variada sociedade de impulsos, de sentimentos e de concep-
ções que se manifestam como autogovernando-se satisfatoriamente quan-
do não estão guardados com medo ou de um modo autoritário. (Rogers,
1977, pp. 182-183)

A escolha que, no plano filosófico, afirma-se pelo destinar-se no


mundo, em meio à coexistência de homens e objetos (HEIDEGGER, 1986)
ou como o agir em situação (Sartre, 1978), define-se, no plano psicológico
explicitado por Rogers, como acolhimento do mundo interno de sentimentos,
impulsos e concepções ou como fidelidade aos sentimentos vividos de forma
extensa e dilatada no organismo. O ambiente do psicológico, ou o seu fundo,
como salienta Arendt (1992), é o corpo e, nesse sentido, Rogers pensa a es-
colha e a autenticidade em termos estritamente psicológicos.
Por esta razão, a psicoterapia pode ser proposta, também, como uma
espécie de aprendizagem simples composta por “descobertas de auto-
apropriação baseadas na experiência e não em símbolos”. Trata-se de uma
aprendizagem significativa, experiencial e autoapropriante que, tendo o mundo
dos sentimentos como matéria, diferencia-se da aprendizagem cognitiva.
Esta aprendizagem pode, ainda, ser uma “tentativa retardada de fa-
zer corresponder símbolos e significações no mundo dos sentimentos”, arti-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

culando, neste caso, o trabalho intelectual e as vivências pré-reflexivas, a


explicação e o nomear. No entanto, de acordo com Rogers, esta dimensão
mais propriamente associada à necessidade ou ao desejo de comunicar a
experiência não é essencial à psicoterapia. Para o autor: “O único aspecto
necessário é a compreensão íntima de um estado do organismo total, unifica-
do, imediato, “instantâneo”, que sou eu” (Rogers, 1977, p. 185).
Por último, trata-se de uma aprendizagem que pode ser facilitada
pela presença de um interlocutor sensível e respeitoso, mas que não depende,
em nada, de sua capacidade de ensinar algo a alguém.
Assim desenhada, a psicoterapia requer do psicoterapeuta disposi-
ções diversas do controle, da manipulação ou da previsão dos fenômenos ou
acontecimentos de seu devir, fazendo pensar que o desvelamento de seu pró-
prio processo informe a pesquisa ou a investigação que lhe cabe, validando
uma outra forma de conhecimento.
Porém, não é esse o entendimento de Rogers e, portanto, é preciso
dar a palavra ao segundo protagonista, o homem da ciência.
Pela aplicação dos métodos da ciência ao estudo da psicoterapia é
possível, segundo o autor, obter um conhecimento objetivo dos aconteci-
mentos que lhe são intrínsecos, assim como das relações funcionais entre
esses acontecimentos (Rogers, 1977).
O trabalho do método científico é medir, quantificar hipóteses e
estabelecer “leis provisórias” sobre a dinâmica das relações humanas. A
mensuração de “fenômenos subjetivos”, embora apresente dificuldades, tor-
na-se possível, ainda de acordo com o autor, com o desenvolvimento das
medidas psicológicas obtidas por meio de testes objetivos ou projetivos e
escalas como a técnica Q criada por Stephenson (1953)7.
Os exemplos trazidos por Rogers são tirados do universo da pes-
quisa empírica em que transitou nos anos de construção e consolidação da

7
A técnica Q ou metodologia Q foi proposta por William Stephenson e derivou de sua
crítica à análise fatorial que se especializou na correlação de testes. Conjunto de princípios
estatísticos, da filosofia da ciência e psicológicos, a metodologia Q buscava correlacionar
pessoas, desenhando estudos de casos ou pesquisas com pequeno número de indivíduos.
Tratava-se de uma metodologia voltada, justamente, para a abordagem de aspectos subje-
tivos tais como indagações, desejos, sonhos, reflexões, quereres, lembranças, entre outros,
enlaçando teoria, dados e experimento. Criando escalas e questionários, procurava ofere-
cer às teorias psicológicas provas e questões desde o ponto de vista da experiência dos in-
divíduos concretos. De acordo com Stephenson (1953): “Q-technique is not a statistical
device that one applies to data, as a bandage is applied to a wound, for want of a better
specific. On contrary, it entails the dovetailing of method, theory, and experiment”. (p.
271). As inúmeras referências à metodologia Q feitas por Rogers sugerem a confiança que
nela depositava como via para o estudo científico dos fenômenos subjetivos.
112 Maria Luisa Sandoval Schmidt

teoria sobre a psicoterapia centrada no cliente, ou seja, aquele voltado para a


comprovação de suas hipóteses sobre os efeitos positivos no cliente da pre-
sença acolhedora, respeitosa e não avaliativa do terapeuta. Imbuído de forte
pragmatismo, sugere e pratica a investigação de atitudes de aceitação do
terapeuta em relação ao cliente e do cliente em relação a si mesmo por meio
de testes e escalas, bem como aventa a possibilidade de medir “uma aquisi-
ção experiencial” lançando mão da medida de suas repercussões fisiológicas
ou de sua “eficácia” em diferentes campos da vida do indivíduo.
Para entender porque os testemunhos de clientes e terapeutas não
bastam para legitimar suas hipóteses, que buscam no cálculo uma contrapro-
va, é útil prosseguir com a análise do artigo que, após apresentar a aborda-
gem científica da psicoterapia, investe na elaboração dos problemas que
tornam conflituosas as relações entre os dois protagonistas, encaminhando
uma conciliação que Rogers avaliou como satisfatória.
O cientista interpela o psicoterapeuta “experiencial” sobre a incon-
veniência das verdades múltiplas e contraditórias que a subjetividade não
cessa de produzir, sobre a precariedade técnica das psicoterapias, sobre a
imprevisibilidade e a indeterminação da experiência terapêutica.
O “experiencialista”, por sua vez, interroga o cientista sobre as
consequências da objetivação do homem pela ciência, aponta os limites de
um enfoque científico na seara pessoal e íntima da psicoterapia, denuncia a
manipulação e o controle social exercidos com base no conhecimento cientí-
fico e, por fim, indica a ética como mais fundamental que a ciência.
O embate entre os protagonistas pede uma solução que, de prefe-
rência, harmonize os dois pontos de vista que, ao que parece, representam,
para Rogers, o abismo existente entre subjetividade e objetividade. É este
abismo, ou para usar a expressão que o autor preferiu, é esta distância que
necessita ser percorrida com o auxílio de argumentos conciliadores.
A ponte começa a ser edificada pela revisão da concepção de ciên-
cia com a qual Rogers reconhece ter até então operado.
Repara, de início, o fato de ter considerado a ciência como exterior
às pessoas, descobrindo-a como construção subjetiva, humana e, portanto,
impregnada de “valores, fins e objetivos”. Localiza a origem do processo
criativo da ciência na experiência imediata, pessoal e subjetiva de imersão
nos fenômenos que, num segundo momento, o da verificação, sofrerá o con-
trole do método que depura as ilusões, os erros e as deduções da intuição ou
da formação criativa. Em suas palavras:

A metodologia científica é vista neste caso como realmente é: um meio de


evitar que eu me engane relativamente às intuições subjetivas formadas
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

de uma maneira criativa, elaboradas a partir da relação entre eu (sic) e o


meu material. É neste contexto, e talvez seja apenas neste contexto, que
as imensas estruturas do operacionalismo, do positivismo lógico, dos
planos de investigação, dos testes de significação etc, têm o seu lugar.
Estes existem, não independentemente, mas como auxiliares na tentativa
de comprovar o sentimento pressentido, a intuição ou a hipótese subjetiva
com o fato objetivo. (ROGERS, 1977, p. 197)

À verificação pela realidade, que submete as intuições à aprova-


ção do método, segue-se a verificação intersubjetiva que corresponde à
entrada das “descobertas” nos jogos de linguagem aceitos pelas comunida-
des científicas.
Neste reparo à concepção de ciência, a unidade de experiência e a
aprendizagem significativa, por um lado, e a objetividade da ciência, por
outro, primeiro qualitativamente estranhas uma à outra, reaparecem numa
relação de mútuo engendramento e de circularidade: a subjetividade está na
origem da ciência e a ciência, por sua vez, “corrige” os erros e as distorções
desta origem. Descobrindo a ciência como nascida da subjetividade, Rogers
descreve o método científico como “meio eficaz de se precaver da autoilu-
são” que reside, supõe-se, na mesma subjetividade que se expressa na unida-
de de experiência e na aprendizagem significativa. Se o método científico
cumpre o papel de objetivar o saber experiencial, em contrapartida, a sabedo-
ria dos organismos humanos é responsável pelo “bom uso” da ciência, aju-
dando os indivíduos a se direcionarem, de maneira construtiva, para os inte-
resses sociais e coletivos.
Nos processos científicos a dimensão pessoal está presente na es-
colha de seus objetos e, depois, no destino dado ao conhecimento adquirido.
No intervalo entre estas escolhas insere-se a fase metódica da observação
controlada e da aplicação de medidas que tornam o conhecimento seguro. Na
visão de Rogers, as dimensões ética, política e ideológica da ciência perma-
necem na periferia ou às margens do método, tendo por referência as esco-
lhas pessoais dos cientistas que podem e devem ser compreendidas como
subjetivas e experienciais. Em suas palavras:

Aquilo que vou fazer com o conhecimento adquirido através do método


científico − quer seja para compreender, elevar, enriquecer ou para con-
trolar, manipular e destruir − é uma questão de escolha subjetiva e de-
pende dos valores que têm uma significação pessoal para mim. Se, por
medo ou por defesa, eu bloqueio a minha consciência a vastas zonas da
experiência − se apenas sou capaz de observar os fatos que suportam as
minhas atuais convicções e me torno cego para todos os outros − se uni-
camente sou capaz de ver os aspectos objetivos da vida e não posso aper-
114 Maria Luisa Sandoval Schmidt

ceber-me dos aspectos subjetivos − se, seja de que maneira for, corto mi-
nha percepção de toda a extensão da sua sensibilidade real − nesse caso
talvez eu seja socialmente destrutivo, embora utilize como instrumento o
conhecimento e os recursos da ciência, ou o poder e a força emocional
das relações subjetivas. E, por outro lado, se estou aberto à minha expe-
riência e posso permitir a todas as impressões do meu complexo orga-
nismo que estejam disponíveis à minha consciência, então estou apto a
utilizar a mim mesmo, minha experiência subjetiva e meu conhecimento
científico, de modo realisticamente construtivo. (Rogers, 1977, p. 202)

A articulação entre o método científico, concebido como a “melhor


maneira de comprovar nossa intuição organísmica do mundo”, e o saber
experiencial, baliza para uma construtiva edificação e aplicação do conheci-
mento científico, embora pacifique o conflito rogeriano aberto pela tensão
entre objetividade e subjetividade nas pesquisas e nas práticas psicológicas, e
mais especificamente psicoterapêuticas, coloca, para quem a analisa, inúme-
ras questões cuja consideração demandaria uma extensa revisão da episte-
mologia da psicologia.
Não sendo aqui esta a intenção, cabe, contudo, arriscar uma inter-
pretação do sentido desta solução no contexto das concepções de Rogers
sobre a mudança na esfera psicológica.
Subjaz à discussão de Rogers a urgência de combinar o caráter pes-
soal, único e singular da autenticidade e da escolha existencial à desejável
universalidade das condições necessárias e suficientes para a sua ocorrência.
Esta combinação interessa, particularmente, à legitimação da psicoterapia
que deve ser capaz de posicionar-se, no mundo moderno, como lugar íntimo
e protegido para a experiência genuína do indivíduo que se vê ameaçada no
espaço público.
Paralelamente, a pesquisa sobre a psicoterapia deve revelar a natu-
reza genérica e universal da aprendizagem significativa, revelando, no mes-
mo movimento, a psicoterapia como caso particular de relação interpessoal
propícia a tal aprendizagem.
Num plano especificamente psicológico, Rogers projeta a trans-
formação do mundo naquilo que ele deveria ser, ou seja, lugar propício ao
desenvolvimento e ao crescimento humanos potencialmente contidos no
organismo, a partir do paradigma daquilo que, segundo sua experiência, a
relação psicoterapêutica ensina. A verdade desta equação, intuída nas rela-
ções de ajuda prestadas a indivíduos que sofrem, pede a comprovação expe-
rimental e científica de pesquisas empíricas concebidas no espírito do méto-
do positivista para tornar-se convicção. Esta convicção apoia a transposição
desta equação para âmbitos mais amplos da vida social, imaginando, de for-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

ma ingênua, talvez, que uma mudança do mundo depende da mudança “in-


terna” dos indivíduos.
Esta convicção, forjada pelo acordo entre um “pensamento existen-
cial” e o positivismo lógico, não lhe permitiu enxergar o fato de que a auten-
ticidade também é possível em condições adversas e nem encarar o paradoxo
que representa a construção humana de um mundo que lhe é adverso.

IV

No capítulo XI do livro Terapia centrada no paciente, Rogers for-


mula suas principais ideias sobre a dinâmica da personalidade e da conduta.
Qualificando sua teoria como basicamente fenomenológica, indica o con-
ceito de self8 como seu principal apoio.
O texto compõe-se de dezenove proposições acompanhadas de ex-
plicações e exposições de exemplos clínicos. Algumas trazem referências a
pesquisas empíricas realizadas no campo da psicologia da personalidade.
Questões são levantadas em relação àquelas proposições diante das quais
Rogers hesita sobre sua “adequação perfeita” aos fenômenos. De uma manei-
ra geral, considera as proposições como “hipóteses sujeitas a confirmação ou
refutação” (Rogers, 1975, p. 466).
A análise faz-se pela apresentação encadeada da teoria, dispensan-
do a transcrição de cada proposição em separado.
O caráter fenomenológico reconhecido por Rogers existe ao modo
de uma apropriação psicológica da filosofia que, articulando-se a outras in-
fluências da área científica, procura uma explicação lógica e coerente do
indivíduo a partir da prática psicoterápica.
Numa interpretação antecipada, o organismo, além do self, se sali-
enta como conceito organizador de uma visão psicológica de homem.
A primeira proposição define o indivíduo como centro de um mun-
do de experiência em permanente mudança. Este mundo é designado como
campo fenomenal, experiencial ou perceptivo. A existência de cada indiví-
duo acontece neste mundo íntimo constituído por tudo aquilo que é experi-
mentado pelo organismo, quer esse vivido ganhe ou não a consciência.

8
A mesma tradução que empregou paciente no lugar de cliente no título do livro, emprega
a palavra ego para traduzir o original self. Optou-se, aqui, por manter a palavra ego quan-
do for preciso citar trechos do capítulo, sem contudo adotá-la, pois o conceito de self, em
Rogers, não corresponde ao conceito de ego da psicanálise. Note-se, ainda, que self é am-
plamente divulgado e reconhecido, nos meios acadêmicos e profissionais brasileiros,
como conceito rogeriano.
116 Maria Luisa Sandoval Schmidt

Desta definição do campo fenomenal como atmosfera da existência


psicológica desdobram-se, de imediato, uma noção de realidade e outra de
consciência.
Na segunda proposição assevera-se uma “regra de ouro” para a psi-
coterapia, qual seja, a de que o campo perceptivo tal como apreendido e vi-
vido por um indivíduo é, para ele, a realidade. Note-se que Rogers, ao redigir
a proposição, coloca o termo realidade entre aspas, fazendo supor a perma-
nência da “própria realidade” além ou aquém das percepções de um indiví-
duo. Em seus termos:

Vivemos num “mapa” de percepções que nunca é a própria realidade.


(...)
Parece-nos desnecessário estabelecer ou tentar explicar o conceito de
“verdadeira realidade”. Para o objectivo da compreensão dos fenómenos
psicológicos, a realidade é, para o indivíduo, a sua percepção. A não ser
que nos quiséssemos envolver em questões de filosofia, não precisamos de
tentar resolver o problema do que constitui realmente a realidade. Para
os objectivos da psicologia, a realidade é, fundamentalmente, o mundo
particular das percepções do indivíduo, embora a realidade, dentro de
uma óptica social, consista nas percepções que são comuns a vários indi-
víduos, num alto grau. (Rogers, 1975 p. 469)

Este recorte completa-se com o entendimento de que o organismo


reage àquilo que percebe. Portanto, tal concepção de realidade psicológica
serve ao conceito de organismo como fundamento do psicológico. O mundo
compartilhado ou a coexistência são, neste caso, a confirmação “de uma
série de hipóteses” perceptuais testadas e retestadas pelo organismo.
A psicoterapia ilustra o quanto o campo fenomenal é a realidade à
qual o indivíduo responde, quando torna patente que mudanças na percepção
correspondem a modificações na conduta.
A consciência, por sua vez, iguala-se à simbolização das experiên-
cias viscerais e sensoriais do organismo.
As três proposições seguintes vão, pouco a pouco, sedimentando a
posição e o significado de organismo na pronúncia rogeriana.
O significado de organismo, neste caso, remete à base biológica da
conduta humana.
Como toda a vida orgânica, o organismo humano revida àquilo que
percebe de maneira finalizada, organizada e total e, este fato, segundo Ro-
gers, no domínio psicológico, torna inválida qualquer abordagem atomística
ou segmentada da conduta, como quer o behaviorismo. Seus exemplos ou
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

alegações a respeito deste fato fazem analogia direta entre fenômenos fisio-
lógicos de compensação como aqueles desencadeados pela perda de certos
órgãos e os episódios psicológicos de “somatização”. Uma consequência
teórica desta premissa, ainda de acordo com o autor, é que fenômenos parci-
ais só podem ser compreendidos por referência à organização coerente e
finalista que é o organismo.
Todas as necessidades orgânicas e psicológicas definem-se, nesta
perspectiva, como “aspectos parciais de uma necessidade fundamental” do
organismo de “realizar-se a si mesmo na direção de uma maior diferenciação de
órgãos e de funções” ou na direção da maturidade. A diferenciação de órgãos e
funções é simétrica à autorrealização psicológica ou à maturidade da personali-
dade, fazendo parte da mesma tendência natural do organismo humano.
A tendência do organismo para “realizar-se, manter-se e realçar sua
própria experiência” é denominada, por Rogers, de tendência atualizante e
aparece, como ele mesmo destaca, em vários autores: em Goldstein (1940)
como “autorrealização”, Angyal (1941) e Mowrer e Kluckhohn (1944).
O deslizamento da esfera da preservação da vida biológica para
aquela da criação de um mundo humano − onde uma ideia de “autorrealiza-
ção” psicológica, diga-se de passagem, pode fazer sentido − tem suporte no
evolucionismo que, reconhecendo a maior complexidade do organismo hu-
mano, lhe atribui a capacidade de transcender e dominar sua própria natureza
e aquela que lhe é exterior. Duas citações dão conta de expressar, por Ro-
gers, aquilo que ele mesmo pensa.

A força motriz fundamental é a vontade inflexível do indivíduo de lutar


consigo mesmo, um desejo de crescer e de não deixar intacto nada que
impeça o crescimento. (Horney 1942 apud Rogers, 1975, p. 175)
A vida é um acontecimento dinâmico autónomo que tem lugar entre o or-
ganismo e o ambiente. O processo vital não tende apenas a preservar a
vida, mas a transcender o status quo momentâneo do organismo, expan-
dindo-se continuamente e impondo a sua determinação autónoma ao do-
mínio sempre crescente dos acontecimentos. (Angyal 1941 apud Rogers,
p. 48, 1975)

A confiança na tendência atualizante sustenta o trabalho do psico-


terapeuta, e, paralelamente, de modo contínuo, a força desta tendência é pa-
tenteada nos processos psicoterapêuticos. Este é o testemunho de Rogers.
A conduta, neste quadro, é “fundamentalmente o esforço dirigido a
um fim do organismo para satisfazer as suas necessidades tal como as expe-
rimenta no campo apreendido” (Rogers, 1975, p. 474).
118 Maria Luisa Sandoval Schmidt

Assim como Rogers, diante da interrogação sobre os fatores de es-


colha que orientam o organismo de acordo com sua tendência a progredir, é
levado a supor que, eventualmente, o indivíduo confunde a conduta progres-
siva com a regressiva em consequência de uma “má simbolização” da expe-
riência, em relação às necessidades reedita a dúvida sobre sua origem, su-
pondo uma remota base fisiológica.

As necessidades de afeição e de realização, por exemplo, que parecem refe-


rir-se de modo significativo à subsistência e à progressão do organismo, te-
rão uma base biológica? Sob este aspecto poderíamos avançar se dispusés-
semos de investigações bem planeadas. O trabalho de Ribble (1944) e de
outros indica que a necessidade de afeição é uma necessidade fisiológica e
que a criança que não teve um contacto físico íntimo adequado com a pes-
soa da mãe se mantém num estado de tensão fisiológica insatisfeita. Se esse
facto é verdadeiro em relação à criança, torna-se fácil de ver como essa
necessidade, bem como todas as outras, se elabora e canaliza através do
condicionamento cultural, convertendo-se em necessidades apenas com um
fundamento remoto na tensão fisiológica subjacente. (Rogers, 1975, p. 475)
A motivação da conduta é sempre atual e emana da percepção de tensões
e necessidades e parece claro para ele que o organismo cresce e progride
na medida em que reduz ou satisfaz necessidades presentes.

As emoções, os sentimentos ou as atitudes emotivas seguem e fa-


cilitam a conduta, sendo distribuídas em dois tipos: desagradáveis e/ou exci-
tadas e calmas e/ou de satisfação. Tanto umas como outras têm, na ótica
rogeriana, em princípio, uma função construtiva. Em sua explanação: “O
primeiro grupo tende a acompanhar o esforço de busca do organismo, e o
segundo tende a acompanhar a satisfação da necessidade, a experiência
conclusiva. O primeiro grupo manifesta ter como resultado um comporta-
mento integrador e concentrador em relação ao fim, e não um resultado
desintegrador como imaginam alguns psicólogos” (Rogers, 1975, p. 476).
A intensidade da “reação emotiva”, por seu turno, relaciona-se com
o grau em que a conduta é dimensionada para defender ou fazer progredir o
organismo.
O aparecimento da emoção, na proposição VI, marca a primeira re-
ferência a uma oposição ou tensão entre organismo e self. Por esta oposição,
Rogers introduz, à sua maneira, a separação entre cultura e natureza, condu-
zindo-a para a esfera do indivíduo ou pessoa genérica, objeto de sua teoria da
personalidade. Reproduz-se aqui esta referência:

Estas duas proposições (sobre a conduta como reação a necessidades e so-


bre a emoção) foram formuladas e explicitadas como se a conduta se refe-
risse sempre à subsistência e desenvolvimento do organismo. Como veremos
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

nas últimas proposições, o desenvolvimento do ego pode introduzir algumas


alterações, pois a conduta será nessa altura muito mais bem descrita como
enfrentando as necessidades do ego, por vezes contra as necessidades do or-
ganismo, e a intensidade emocional é aferida mais pelo grau de implicação
do ego do que pelo grau de implicação do organismo. (Rogers, 1975, p. 477)

Neste momento, alerta, contudo, que as mesmas podem ser susten-


tadas para o organismo infra-humano e para a criança. Logo se verá que a
diferença advém do self, que nasce do contraste entre experiências do orga-
nismo consigo mesmo e deste com os outros.
Antes de conceituar o self, intercala, ainda, uma proposição de cu-
nho metodológico, assegurando que a melhor visada para compreender a
conduta é aquela que considera o quadro de referência interno de cada indi-
víduo. Defende uma espécie de relativismo psicológico, semelhante ao rela-
tivismo cultural, como “único caminho para compreender a conduta do indi-
víduo de uma forma significativa”. Descrições tais como “conduta por ensaio
e erro”, “alucinações” ou “comportamento anormal” são inferências que
ilustram as projeções dos psicólogos e não a experiência dos indivíduos que
eles estudam ou tentam ajudar.
A perspectiva compreensiva que parte do quadro de referência do
outro esbarra em duas dificuldades interligadas: a extensão da área de expe-
riência ausente da consciência e sua consequente impossibilidade de comu-
nicação. Porém, a expressão livre numa situação sem ameaças expande o
acesso das experiências à consciência e sua comunicação. Por esta razão,
Rogers irá se concentrar nas dimensões facilitadoras da consulta psicológica,
elegendo-as como “um método válido para encarar a conduta a partir do
quadro de referência da pessoa”.
Portanto, insinua-se que, neste texto, a construção da oposição en-
tre self e organismo é seguida, de perto, por aquela de uma prática capaz de
“reaproximar” a imagem de si da experiência de si e, mais que isso, uma
prática capaz de mediar, no indivíduo, natureza e cultura.
O self é definido como uma parte do campo perceptual que se dife-
rencia, pela interação com o ambiente e com os outros, em modelo conceitu-
al e valorativo do eu ou do “mim mesmo”.
Para o autor, o self significa a consciência de ser e de agir que não
se confunde com o organismo: organismo e self são termos que não devem
ser empregados como sinônimos.
As perguntas lançadas em seguida à conceitualização de self são
indicativas da persistente dúvida de Rogers sobre como articular a coexistên-
cia à sua visão do indivíduo psicológico. São elas:
120 Maria Luisa Sandoval Schmidt

Será necessária a interacção social para que um ego se desenvolva? Uma


pessoa, hipoteticamente criada sòzinha numa ilha deserta, teria um ego?
Será o ego fundamentalmente um produto do processo de simbolização?
Será o facto de a experiência poder ser não apenas directamente experi-
mentada, mas simbolizada e manipulada no pensamento, que torna o ego
possível? Será o ego apenas a parte da experiência simbolizada? São es-
tas algumas das questões a que só uma intensa investigação poderá res-
ponder. (Rogers, 1975, p. 480)

Este conjunto de interrogações condensa um imaginário sobre o in-


divíduo cuja imagem de si fosse possível a partir de um organismo e de um
ambiente “puramente” naturais, ao mesmo tempo em que essa possibilidade
dependeria de que o pensamento e a simbolização fossem, também, qualida-
des de um organismo natural, humano, respondendo a um ambiente natural,
a ilha deserta, “fora”, portanto, do mundo humanamente construído.
A ausência de uma linha demarcatória clara entre a experiência da-
quilo que vem do organismo e daquilo que vem do mundo exterior, entendi-
do como ambiente, faz supor um self nascido do controle das experiências
internas e externas, em que o controle é mais decisivo do que a fonte. “Os
elementos que controlamos são considerados como uma parte do ego, mas
quando um objeto, mesmo que seja parte do nosso corpo, está fora do con-
trolo, é experimentado como sendo menos uma parte de nós próprios” (Ro-
gers, 1975, p. 481).
Esta fonte marca, contudo, uma diferença, quando o mundo externo
são os outros. Esta marca inscreve-se pelos valores.
Numa referência ao desenvolvimento da criança, assinala que ela
forma, gradualmente, conceitos sobre si mesma, sobre o ambiente e sobre
sua relação com o ambiente que funcionam como “princípios orientadores”
da conduta. Esta formação deve-se às experiências que são acompanhadas de
valores que têm duas fontes possíveis: a experiência direta do organismo
infantil e a introjeção de valores que não foram diretamente experimentados,
mas que pertencem àquelas pessoas a quem a criança está vinculada.
O divórcio entre self e organismo repousa sobre a eventual incom-
patibilidade ou incongruência entre uma avaliação organísmica e os valores
introjetados que negam a experiência orgânica para se adaptarem às exigên-
cias de outros, especialmente os pais, de quem a criança demanda cuidado e
amor. Experiências positivas do ponto de vista do organismo infantil podem
ser negativamente julgadas pelos cuidadores e a criança, premida pela carên-
cia de afeto, é forçada a negar-lhes simbolização ou a distorcer-lhes, introje-
tando o valor externo “como se” fosse seu. “Desta forma os valores que a
criança liga à experiência divorciam-se do seu próprio funcionamento orga-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

nísmico e a experiência é avaliada em termos das atitudes assumidas pelos


pais ou por outras pessoas que lhe estejam intimamente ligadas” (Rogers,
1975, pp. 483-484).
A estrutura do self, da perspectiva do desenvolvimento, agrupa-se
na tensão entre organismo e mundo externo como uma imagem composta de
autenticidade e impropriedade. Nos dizeres de Rogers: “A partir destas duas
fontes − a experiência directa do indivíduo e a simbolização distorcida das
reacções sensoriais que tem como resultado a introjecção dos valores e con-
ceitos como se fossem experimentados − desenvolve-se a estrutura do ego”
(Rogers, 1975, p. 484).
No decorrer do desenvolvimento, as experiências, na vida de um
indivíduo, têm três destinos possíveis: a) serem apreendidas e simbolizadas
numa relação com o self; b) passarem desapercebidas porque não se relacio-
nam com a estrutura do self; c) serem recusadas à simbolização ou simboli-
zadas de modo distorcido por conta de sua incoerência frente à estrutura do
self.
A distorção ou recusa à simbolização está na raiz do desconforto
ou ansiedade que caracterizam a tensão psicológica. A distorção ou recusa
não se deve, segundo Rogers, ao caráter depreciativo das experiências, mas,
sim, ao seu caráter contraditório e ameaçador em relação à coerência da ima-
gem de si.
É claro que o autor se questiona sobre como se efetiva tal rejeição à
simbolização, uma vez que, logicamente, a simbolização deveria aparecer
como condição para a percepção da ameaça. Recorre, então, a estudos expe-
rimentais da percepção, como os de Postman, Bruner e McGuinnies (1948) e
McCleary e Lazarus (1949), mostrando que os indivíduos são capazes de
discriminar estímulos ameaçadores e não ameaçadores, reagindo a eles de
modo apropriado sem, contudo, reconhecê-los conscientemente. Isto permite
postular uma espécie de “saber sem saber” chamado “subcepção”.
As “subcepções” descrevem, para Rogers, como a simbolização de
experiências ameaçadoras para o self podem ser impedidas, bem como ser-
vem para retratar a ansiedade como indicador da destrutividade de certas
experiências.
A desadaptação psicológica é resultado ou expressão da discre-
pância e incongruência entre “o organismo que faz experiências e o con-
ceito de self cuja influência é determinante na conduta”. A adaptação psi-
cológica, por seu lado, decorre da abertura do self para assimilar simboli-
camente “todas as experiências viscerais e sensíveis do organismo”. “A
melhor definição do que constitui a integração vem a ser a afirmação de
122 Maria Luisa Sandoval Schmidt

que todas as experiências viscerais e sensoriais são acessíveis à consciência


através de uma simbolização adequada e que é ou se refere à estrutura do
ego” (Rogers, 1975, p. 496).
Importante é o cunho permeável da consciência aos impulsos e
sensações, pois dela depende o controle racional da conduta, controle res-
ponsável pelo sentimento de autonomia e autodomínio que caracteriza a
adaptação psicológica.
Adaptação e desadaptação inscrevem-se, assim, no círculo das re-
lações do indivíduo consigo mesmo, uma vez que o chamado mundo externo
é internalizado como “parte” da estrutura do self, parte que pode ser entendi-
da como agente da discórdia “interna”.
O processo de crescimento e desenvolvimento da criança asseme-
lha-se a uma negociação entre “forças da natureza” e “valores sociais” da
qual emerge uma imagem de si estruturada ou organizada de maneira mais
ou menos aberta, mais ou menos defensiva. Quanto mais rígida esta estrutu-
ra, maior a percepção de ameaças; quanto mais compactada esta imagem,
maior a necessidade de defender-se das ameaças às suas consistência e coe-
rência. A neurose, nesta ótica, equipara-se a uma vida psicológica restrita à
manutenção da integridade de um self impermeável à experiência organísmi-
ca que, é bom lembrar, constituiu-se na relação com outros.
A noção de uma “pessoa plenamente funcionante”, aberta às expe-
riências e à sua simbolização, num constante e mutante devir da imagem de
si representa, em Rogers, o ideal do indivíduo maduro, feliz e socialmente
construtivo.
A relação com outros que forjou a “dureza” do self é, também, seu
antídoto, desde que posta como situação não ameaçadora.
O autor reserva para as últimas proposições a exposição sobre a
mudança, enviando-a, necessariamente, para uma reconciliação entre orga-
nismo e self ou imagem de si.
Ali, a psicoterapia figura como situação exemplar e propícia ao re-
encontro do indivíduo consigo mesmo. Trata-se da situação em que a sus-
pensão do julgamento, por parte do terapeuta, configura um “ambiente” hu-
mano, livre de ameaças, no qual o cliente pode conectar suas experiências e,
assim, reorganizar sua imagem de si. Por essa senda:

O conselheiro torna possível a exploração e em qualquer alteração que


apresente, parece possível explorar gradualmente com segurança outros
domínios e por isso as experiências rejeitadas são lenta e provisoria-
mente aceites, tal como uma criança pequena se familiariza com um ob-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

jeto assustador. Um outro factor que pode estar implicado é que o con-
selheiro aceita todas as experiências, todas as atitudes, todas as percep-
ções. O paciente pode introjectar esse valor social e aplicá-lo às suas
próprias experiências. (Rogers, 1975, p. 500)

A análise das “condições exatas e essenciais” que tornam a psicote-


rapia efetiva para a reordenação da imagem de si e para a assimilação de
experiências contraditórias será objeto fulcral das investigações que acom-
panham grande parte da trajetória intelectual de Rogers. Pois, na apreensão e
na aceitação, pelo self, do maior número de experiências orgânicas, reside a
adaptação psicológica e, de outro lado, a substituição de um sistema de valo-
res baseado na introjeção por um processo contínuo de valorização organís-
mica encontra na psicoterapia uma sustentação modelar.
Por último, resta examinar como Rogers transfere para as relações
interpessoais e sociais as conquistas obtidas pelo indivíduo “psicoterapeuti-
zado”.
Vale a pena citar a proposição XVIII na qual esta questão é tocada.
“Quando o indivíduo apreende e aceita num sistema coerente e integrado todas
as suas experiências viscerais e sensoriais, necessariamente compreende me-
lhor os outros e aceita-os como pessoas distintas” (Rogers, 1975, p. 501).
Remeter a evidência desta proposição ao trabalho clínico e a inves-
tigações empíricas (Sheerer, 1949) é indispensável, para o autor, para que
não se pense se tratar de mera aspiração sua. Todavia, convém acrescentar,
que, também, talvez, pela magnitude das consequências que esta crença pro-
voca no pensamento social professado por Rogers.
A explicação para esta proposição repousa na transferência da con-
duta defensiva do indivíduo que rejeita suas experiências para a esfera das
relações interpessoais. Este indivíduo, cujo self inflexível nega simbolização
ao saber orgânico, capta e vive as palavras e os gestos de outros como amea-
ças, atacando-os ou deles se defendendo. Quando, contudo, aceita suas pró-
prias experiências, integrando-as, não precisa mais se defender e nem atacar
os outros, apreendendo-os “como realmente” são.
Desta maneira, os outros, algozes da alienação do indivíduo em
relação a seu organismo, são, ao final, redimidos num duplo sentido: como
“veículos” da “desalienação orgânica” do indivíduo, quando propiciam rela-
ções não ameaçadoras das quais a psicoterapia é um exemplo; como objeto
de uma aproximação compreensiva.
As implicações de sua teoria, no campo das relações sociais, são,
para Rogers, de tal ordem que exigem um recurso à imaginação que permita
dimensioná-las em toda sua extensão.
124 Maria Luisa Sandoval Schmidt

Temos aqui uma base teórica para relações interpessoais, de grupo ou


internacionais salutares. Esta proposição, expressa em termos de psico-
logia social, converte-se na afirmação de que a pessoa (ou pessoas, ou
grupos) que se aceita plenamente a si mesma melhorará necessariamente
a relação com aqueles com quem está em contacto pessoal, devido à sua
maior compreensão e aceitação. Esta atmosfera de compreensão e acei-
tação é o clima mais adequado para criar uma experiência terapêutica e
a conseqüente auto-aceitação da pessoa que nela participa. Temos por-
tanto uma “reacção em cadeia” psicológica que revela enormes potenci-
alidades na resolução de problemas das relações sociais. (Rogers, 1975,
p. 503)

Uma tradução, igualmente imaginária, do pensamento rogeriano


pode ser a seguinte: a “saúde psicológica” do mundo depende da sabedoria
dos organismos humanos − assim como o “bom uso” da ciência − e se pre-
sencia o surgimento de uma ciência psicológica capaz de indicar os meios
para alcançar “relações interpessoais, de grupo e internacionais salutares”.
A teoria de personalidade, construindo uma visão do indivíduo, so-
nha a mudança do mundo pelo viés das relações interpessoais cuja matriz é a
relação psicoterápica.

A transposição do modelo de mudança concebido na prática psi-


coterápica para o âmbito mais largo de grupos, comunidades e relações in-
ternacionais deve muito à insistência tenaz de Rogers em afirmar e compro-
var, mediante a clínica e estudos empíricos, a verdade e a eficácia de uma
equação básica: dada a presença de certas atitudes, conferindo um clima
facilitador às relações psicossociais, então, um processo de crescimento au-
todirecionado ocorre nos indivíduos.
A exposição desta equação é recorrente em sua obra. O artigo “As
condições necessárias e suficientes para a mudança terapêutica de personali-
dade” é considerado, por ele, uma apresentação bastante completa e adequa-
damente formalizada de suas hipóteses e, por essa razão, é tomado como
eixo da análise que se segue.
A pergunta que provoca as pesquisas rogerianas, neste caso, é
aquela sobre as condições psicológicas, tanto necessárias quanto suficientes,
para a ocorrência de “mudanças construtivas na personalidade” ou, dito de
outra maneira, aquela sobre os elementos essenciais para que a mudança
psicoterapêutica aconteça. Seu desejo é apreendê-las por meio de definições
claras e medidas precisas.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Os elementos ou as condições da e para a mudança são buscados na


subjetividade e nas atitudes que conformam as relações psicoterápicas, des-
cartando a atribuição de qualquer valor às técnicas.
Ainda, como preâmbulo à discussão das condições propriamente
ditas, convém notar que o autor não se furta a uma qualificação do que
entende como “mudança terapêutica” ou “mudança construtiva da persona-
lidade”. No espírito pragmático que o anima, troca a consideração “profun-
da e séria” que o tema merece pela sugestão de um significado do senso
comum.

Estas frases significam: mudança na estrutura de personalidade de um


indivíduo, tanto em nível superficial quanto mais profundo, numa direção
que os clínicos concordariam que significa maior integração, menos con-
flito interno, mais energia utilizável para um viver efetivo; mudança de
comportamento, no sentido de um afastamento de comportamentos ge-
ralmente considerados imaturos e na direção daqueles considerados
como amadurecidos. (Rogers in: Wood, 1994, p. 156)

São seis as condições que, primeiramente hipóteses de trabalho,


vão, ao longo do percurso rogeriano, se tornando os alicerces mais confiáveis
de suas propostas práticas nas esferas da psicoterapia, da educação e dos
grandes grupos. Seu enunciado formal é:

Para que uma mudança construtiva de personalidade ocorra, é necessá-


rio que as seguintes condições existam e persistam por um período de
tempo:
1. Que duas pessoas estejam em contato psicológico;
2. Que a primeira, a quem chamaremos cliente, esteja num estado de in-
congruência, estando vulnerável ou ansiosa;
3. Que a segunda pessoa, a quem chamaremos de terapeuta, esteja con-
gruente ou integrada na relação;
4. Que o terapeuta experiencie consideração positiva incondicional pelo
cliente;
5. Que o terapeuta experiencie uma compreensão empática do esquema
de referência interno do cliente e se esforce por comunicar esta experiên-
cia ao cliente;
6. Que a comunicação ao cliente da compreensão empática do terapeuta
e da consideração positiva incondicional seja efetivada, pelo menos num
grau mínimo.
Nenhuma outra condição é necessária. Se estas seis condições existirem e
persistirem por um período de tempo, isto é suficiente. O processo de mu-
dança construtiva ocorrerá. (Rogers in: Wood, 1996, pp. 157-158).
126 Maria Luisa Sandoval Schmidt

A primeira assevera que a mudança só é possível como efeito de


uma relação, implicando o contato entre duas pessoas que registram, no pla-
no experiencial, a percepção de alguma diferença entre elas.
A incongruência do cliente, que vem a seguir, define-se pela per-
cepção de uma discrepância entre “a experiência real do organismo” e sua
representação simbólica. A predisposição para um pedido de ajuda está rela-
cionada à consciência que um indivíduo tem desta incongruência, manifesta-
da na vulnerabilidade e na ansiedade. Uma outra maneira de clarificar esta
mesma condição recorre ao estranhamento ou desconforto nos quais o indi-
víduo, em algum ponto, se vê implicado.
As condições de números 3, 4 e 5 focalizam as três atitudes que se
consagraram como nucleares na formação pessoal e subjetiva de conselhei-
ros, psicoterapeutas e facilitadores, na abordagem centrada na pessoa.
A autenticidade, a aceitação positiva incondicional e a empatia fo-
ram pensadas numa rede de mútuos envolvimentos, sendo identificáveis
mudanças de ênfase e de definição em suas carreiras conceituais no interior
do pensamento rogeriano.
Subvertendo a ordem e a forma em que são apresentadas neste
texto, busca-se um comentário que as apreenda em relativo movimento.
Em 1977, Rogers publicou um artigo no qual reexamina e reavalia
a empatia, comentando os reveses de sua primeira definição e “aplicação” e
propondo sua atualização (Rogers & Rosenberg, 1977).
A conceituação inicial de empatia fazia menção a um estado ou
modo de ser que se concretizava pela “apercepção precisa do quadro de refe-
rências interno de outra pessoa”, composto de emoções e significados pró-
prios. Tratava-se de uma percepção do outro “como se” o percebedor fosse o
outro, mantendo, contudo, uma distância crítica quanto à identificação com
ele (Rogers & Rosenberg, 1977).
Este momento de tematização da empatia esteve vinculado, por um
lado, à técnica da reflexão por meio da qual Rogers e seus colaboradores
buscavam funcionar como uma espécie de espelho dos sentimentos e das
emoções de seus clientes. Por outro, à intensa pesquisa sobre os efeitos das
intervenções, sobretudo verbais, do terapeuta, no “fluxo frutífero de expres-
são significativa” do cliente.
Rogers e seus colaboradores devem ter sido dos primeiros psicólo-
gos clínicos a realizarem gravações em áudio de sessões psicoterápicas. Seu
interesse era permitir a análise minuciosa das respostas dos terapeutas e sua
efetividade na promoção da autoexploração do cliente.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Evidenciando as respostas do terapeuta e a técnica da reflexão, Ro-


gers admite ter construído um aprendizado que melhorou seu trabalho tera-
pêutico, mas surpreende-se, negativamente, com os resultados nefastos da
ênfase depositada na técnica.

Porém, esta tendência a focalizar as respostas do terapeuta teve conseqüên-


cias que me apavoraram. Eu havia enfrentado reações hostis, mas estas
eram piores. Em poucos anos, essa abordagem total passou a ser conhecida
como uma técnica. “Terapia não-diretiva”, dizia-se, “é a técnica de refletir
os sentimentos do cliente”. Ou, numa caricatura ainda pior, “na terapia
não-diretiva repetem-se as últimas palavras do cliente”. Fiquei tão chocado
com essa completa distorção de nossa abordagem que, durante alguns anos,
não disse praticamente mais nada sobre a atenção empática e, quando o fiz,
foi para mostrar a importância de uma atitude empática, tecendo pouquís-
simos comentários a respeito de como ela poderia ser posta em prática no
relacionamento. (Rogers in: Rogers & Rosenberg, 1977, pp. 70-71)

Preferiu discutir a autenticidade e a aceitação incondicional que, não


por acaso, opõem-se, em tese, a qualquer apropriação meramente técnica.
Pela autenticidade introduz a ponderação sobre a presença pessoal
do terapeuta e seu papel decisivo nos processos de mudança do cliente.
Tanto o uso de técnicas quanto a adoção de “fachadas” profissionais são
interpeladas por esta necessidade básica da presença genuína do terapeuta,
significada pela liberdade de “ser quem ele é” e pela consciência de si e de
sua diferença no encontro com o outro.
Pela consideração positiva incondicional trata da apreciação do cli-
ente “a quem se permite ter os próprios sentimentos, suas próprias experiên-
cias”, ensejando a relativização dos valores do terapeuta.
Ao retornar à empatia, prefere defini-la como processo ou constru-
ção da relação psicoterapêutica, ao invés de considerá-la um estado do psi-
coterapeuta. Lançando mão do conceito de significado sentido cunhado por
Gendlin (1962), entende a empatia como uma sensibilidade para ressaltar as
vivências do cliente, ajudando-o a focalizar seu significado sentido.
Para cada condição, Rogers buscou uma definição operacional
que tornasse viável a realização de pesquisas empíricas que medissem seu
grau em relações concretas, associando-as a medidas de mudanças. Basi-
camente, o recurso metodológico para tais estudos e sugestões de estudos
eram as classificações-Q, consistindo de listas de proposições submetidas
à avaliação de sujeitos pertinentes às pesquisas9. Com isso, supunha ser

9
Para avaliar a empatia, por exemplo, Rogers apresenta a seguinte lista de proposições a ser
submetida a um grupo de observadores: – O terapeuta é perfeitamente capaz de compre-
128 Maria Luisa Sandoval Schmidt

possível consolidar a verdade científica das evidências colhidas em sua


experiência clínica.
Sua aspiração foi, contudo, estabelecer, a partir destas condições,
uma espécie de equação básica, expressa de maneira estritamente lógica,
que servisse a toda e qualquer relação psicoterápica e, extensivamente, às
relações interpessoais em diferentes esferas da vida social. Em suas pala-
vras:

Meu propósito foi no sentido de enfatizar a noção de que, em minha opi-


nião, estamos lidando com um fenômeno do tipo se-então, no qual o co-
nhecimento da dinâmica não é essencial para testar as hipóteses. Assim,
ilustrando através de um outro campo: se a substância, que se demons-
trou através de uma série de operações ser a substância conhecida como
ácido hidroclorídico for misturada com outra solução, que se comprovou
através de uma outra série de operações ser hidróxido de sódio, então sal
e água serão produtos dessa mistura. Isto é verdadeiro, quer se atribua
os resultados à magia, ou se explique através dos termos mais adequados
da teoria química moderna. Da mesma maneira, está sendo postulado
aqui que certas condições definíveis precedem certas mudanças também
definíveis e que este fato existe independentemente dos nossos esforços
para explicá-lo. (Rogers, in: Wood, 1994, p. 168)

A simplicidade da formulação da equação segundo a qual se as seis


condições estiverem presentes, então uma mudança construtiva de personali-
dade ocorrerá no cliente, contrasta com sua ambição de ser válida para todo
“tipo” de cliente, investindo contra as classificações psicopatológicas e, es-
pecialmente, aquela que prescreve o tratamento diferenciado para neuróticos
e psicóticos. Contrasta, também, com a afirmação de sua pertinência para
todas as linhas de psicoterapia, investindo, nesse caso, contra uma eventual
determinação da formação intelectual ou da técnica na produção dos “efeitos
positivos e desejáveis” da ajuda psicológica.
O psicodiagnóstico, nesta perspectiva, pode ser necessário para que
o psicoterapeuta se sinta “confortável” ou seguro no encontro com cliente, e,
só nesta medida, ingressa no processo. Porém, não pode ser considerado
como pré-condição para a psicoterapia.
A formação intelectual, por sua vez, não responde pela criação das
condições necessárias e suficientes para a mudança terapêutica da personali-

ender os sentimentos do cliente; – O terapeuta não tem qualquer dúvida sobre o significa-
do do que o paciente quer dizer; – Os comentários do terapeuta adequam-se perfeitamente
ao estado de espírito e conteúdo do cliente; – O tom de voz do terapeuta contém a habili-
dade completa para compartilhar os sentimentos do paciente. (Wood, 1994, p. 166)
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

dade, que demanda, muito mais, um “treinamento” experiencial. Como diz


Rogers: “O treinamento intelectual e a aquisição de informações têm, eu
creio, muitos resultados valiosos − mas tornar-se terapeuta não é um destes
resultados” (Wood, 1994, p. 172).
Por fim, as técnicas só têm importância como mediadoras das con-
dições: uma interpretação como forma de comunicar a consideração positiva
incondicional; o fluxo de associação livre como convite a uma escuta empá-
tica; a análise da transferência ou da contratransferência como sinais de con-
gruência e integração na relação psicoterapêutica.
A radicalidade no abandono de teorias psicopatológicas e da técni-
ca enfatiza as atitudes do terapeuta como aquilo que dá sentido à técnica e a
eventuais concepções sobre o cliente. É desse modo que Rogers entende a
contribuição de sua teoria. “Assim, um dos valores da formulação teórica
apresentada seria o de poder auxiliar os terapeutas a pensar de forma mais
crítica sobre os elementos de sua experiência, atitudes e comportamentos
que são essenciais para a psicoterapia, aqueles que não o são e os que são
até mesmo prejudiciais” (Wood, 1994, p. 176).
Retomando a empatia como processo, deslocando-a de sua identi-
ficação com a técnica da reflexão, Rogers vai alicerçá-la na consideração
positiva incondicional e na autenticidade. Estar com o outro de maneira
empática:

significa deixar de lado, neste momento, nossos próprios pontos de vista e


valores, para entrar no mundo do outro sem preconceitos. Num certo
sentido, significa pôr de lado nosso próprio eu, o que pode ser feito ape-
nas por uma pessoa que esteja suficientemente segura de que não se per-
derá no mundo possivelmente estranho ou bizarro do outro e de que po-
derá voltar sem dificuldades ao seu próprio mundo quando assim o de-
sejar. (Rogers & Rosenberg, 1977, p. 73)

A compreensão empática pede a suspensão do julgamento sobre


o outro e a integridade daquele que compreende, remetendo a um modo
de ser que interessa às relações psicoterápicas, mas não exclusivamente a
elas.
Esta maneira de ser e de estar, segundo Rogers, possibilita “mu-
danças autodirigidas” e localiza o poder na pessoa (cliente, estudante, entre
outros) e não no especialista.
Sobre a última condição, Rogers pouco tem a dizer, exceto que “a
menos que alguma comunicação destas atitudes seja efetivada, tais atitudes
não existem na relação”.
130 Maria Luisa Sandoval Schmidt

VI

A teoria rogeriana da mudança, até aqui sumariada, suscita um lar-


go espectro de problemas endereçados àqueles que, de alguma forma, pen-
sam e praticam uma psicologia clínica inspirada na abordagem centrada na
pessoa.
A recepção e a transmissão das ideias de Rogers no Brasil e, parti-
cularmente, no ambiente acadêmico, exibem as mesmas tendências polares
que, de maneira geral, acompanharam e acompanham a difusão de teorias
psicológicas afeitas às práticas clínicas: uma tendência à institucionalização
de modos de fazer e de pensar que aderem de forma dogmática aos “ensina-
mentos do mestre”, reproduzindo-os e, outra, que, contrapondo-se ao con-
junto teórico-prático que dá corpo a uma proposta psicoterápica, visa a sua
crítica ou a sua desconstrução.
O caráter esquemático destas tendências ajuda a localizar uma re-
gião intermediária na qual a noção de uma teoria inspiradora ou de uma “he-
rança” teórica pode ganhar um sentido concreto que advém do trabalho de
preservá-la, reinventando-a.
O legado de Rogers requer esta espécie de “entrega vigilante” ou
de “engajamento crítico”, pois alia uma certa radicalidade da política da psi-
coterapia a uma ingenuidade sociológica em sua apreensão, um fascínio pela
ciência a uma desconfiança no especialista, um apreço pela lógica a um en-
canto pela intuição, uma simplicidade conceitual a uma grande ambição
pragmática. Reinventá-lo é, igualmente, confrontar suas fragilidades teóricas,
reconhecendo, por outro lado, sua influência ideológica em várias esferas da
vida social e cultural, nos Estados Unidos e alhures.
A indagação sobre as possíveis contradições de uma teoria que se
declara filiada à fenomenologia e ao existencialismo e que, ao mesmo tempo,
quer provar sua verdade por meios positivistas e os prováveis efeitos ideoló-
gicos da rejeição à psicopatologia em nome da mudança conduz a interpreta-
ção que, neste quadro, abriga a teoria rogeriana, procurando responder à
provocação lançada por suas insuficiências.
O primeiro problema, aquele da composição entre ideias fenome-
nológicas e existencialistas e o empirismo, pode ser equacionado a partir da
aceitação, em certos termos, da existência de complementaridade e recipro-
cidade, na leitura de um fenômeno, entre compreensão e explicação.
Esta articulação tanto se respalda numa tradição do pensamento fe-
nomenológico que, desde Husserl, propôs a fenomenologia, também, como
trabalho de esclarecimento dos fenômenos que ingressam no circuito das
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

pesquisas empíricas em ciências humanas10, quanto recebe um tratamento


mais atualizado por parte de Paul Ricouer.
Ricouer (1989), abordando a hermenêutica do texto, da ação e da
história, examina as oposições entre explicar e compreender, entre ciências
da natureza e ciências do espírito, procurando, por meio da imagem de um
“arco interpretativo”, clarear a complementaridade e a reciprocidade que
entre elas pode e deve existir. No plano epistemológico, conclui que:

não há dois métodos, o método explicativo e o método compreensivo.


Estritamente falando, só a explicação é metódica. A compreensão é,
antes, o momento não metódico que, nas ciências da interpretação, se
forma com o momento metódico da explicação. Este momento precede,
acompanha, limita e também envolve a explicação. Em contrapartida,
a explicação desenvolve, analiticamente, a compreensão. Este elo dia-
léctico entre explicar e compreender tem como consequência uma rela-
ção muito complexa e paradoxal entre ciências humanas e ciências da
natureza. Nem dualidade, nem monismo, direi eu. De facto, na medida
em que os processos explicativos das ciências humanas são homogéne-
os com os da natureza, a continuidade das ciências está assegurada.
Mas, na medida em que a compreensão traz uma componente específi-
ca − sob a forma quer da compreensão dos signos na teoria dos textos,
quer da compreensão das intenções e dos motivos na teoria da acção,
quer da competência para seguir uma narrativa na teoria da história
−, nesta medida, a descontinuidade entre as duas regiões do saber é
intransponível. Mas descontinuidade e continuidade formam-se entre
as ciências como a compreensão e a explicação em as ciências. (Ri-
couer, 1989, p. 182)

Para Ricouer, a tarefa da filosofia é constituir um discurso, dife-


rente do científico, buscando dar conta “da relação primordial de pertença
entre o ser que somos e tal região de ser que tal ciência elabora em objecto
pelos processos apropriados”, tarefa à qual a fenomenologia se dedica. To-
davia, para ele, a filosofia precisa, ainda, encarregar-se do movimento de
“distanciação” em que esta pertença é objetivada pela ciência, “movimento
pelo qual explicação e compreensão se apelam no plano propriamente epis-
temológico” (Ricouer, 1989, p. 183).
Vê-se que a articulação intuída por Rogers faz sentido para uma
epistemologia que quer aproximar a compreensão e a explicação e, em sua
condição, esta aproximação procurou “envolver” e “desenvolver” a psicote-

10
A fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty (1994) e A imaginação de Sartre (1978)
são exemplos de estudos que representam, de maneiras diferentes, a complementaridade
entre fenomenologia e pesquisas empíricas desenhadas no espírito do positivismo.
132 Maria Luisa Sandoval Schmidt

rapia ou dizer sua pertença e, ao mesmo tempo, objetivá-la, sem, contudo,


elaborar de maneira consistente aquilo que praticou como modo de conhecer
a relação psicoterápica.
Como já se disse anteriormente, Rogers pensou o conflito entre o
cientista e o psicoterapeuta que nele moravam com os recursos da lógica
positivista, ficando impedido de imaginar uma pesquisa em sintonia com
ideias de cunho fenomenológico e existencial. Paralelamente, sua identifica-
ção com estas tendências filosóficas advinha da necessidade de construir
uma imagem de homem que fosse compatível com as experiências clínicas
sem que, no entanto, se visse obrigado a abandonar o projeto de uma psico-
logia científica.
Esta identificação é, ainda, problemática, pois não deriva do estudo
de autores da fenomenologia e do existencialismo e sim da proximidade de
Rogers com psicólogos humanistas como Rollo May, Abraham Maslow,
entre outros, que vinham empreendendo a transposição teórica destas filoso-
fias para a psicologia, bem como da “insistência” de alguns colegas seus para
que lesse Buber e Kierkegaard, nos quais, acreditavam, encontraria resso-
nâncias de seu próprio pensamento.
Exibindo um grande conhecimento da literatura científica e das
pesquisas empíricas em psicologia, declara sua ignorância em relação à “fi-
losofia existencial”: em seus artigos as raras referências a filósofos recaem
sobre Buber e Kierkegaard.
Parece que sob as rubricas da fenomenologia e do existencialismo,
Rogers encontrou um abrigo, um nome ou uma localização para a sua expe-
riência de psicoterapeuta e seus ensinamentos e não uma filosofia capaz de
desafiá-lo a pensar os fundamentos de suas teorias ou o próprio estatuto do
saber científico. Talvez, tivessem servido à legitimação de sua experiência
pessoal que, como ele mesmo declara, é o fundamento último e irredutível de
suas crenças.
Em um texto autobiográfico ele escreveu:

a experiência é, para mim, a suprema autoridade. A minha própria expe-


riência é a pedra de toque de toda validade. Nenhuma idéia de qualquer
outra pessoa, nem nenhuma das minhas próprias idéias, têm a autoridade
que reveste a minha experiência. É sempre à experiência que eu regresso,
para me aproximar cada vez mais da verdade, no processo de descobri-la
em mim.
Nem a Bíblia, nem os profetas − nem Freud, nem a investigação − nem as
revelações de Deus ou dos homens − podem ganhar precedência relati-
vamente à minha própria experiência direta. (Rogers, 1977, p. 35)
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Sua dívida em relação a Kierkegaard, tal como expressa na abertura


do artigo “Pessoa ou ciência? Um problema filosófico”, não é conceitual mas
“quase terapêutica”. Ele diz: “Se bem que Kierkegaard tivesse vivido há perto
de cem anos, não posso deixar de considerá-lo como um amigo, sensível e al-
tamente receptivo. Julgo que este artigo mostrará a minha dívida para com ele
sobretudo porque a leitura da sua obra me abriu perspectivas e me levou a
confiar e a exprimir a minha própria experiência” (Rogers, 1977, pp. 179-180).
Os fundamentos fenomenológicos e existenciais da teoria rogeriana
são uma questão de difícil abordagem, uma vez que ele os declara sem, po-
rém, discuti-los ou tematizá-los com algum apoio filosófico.
Na verdade, estes fundamentos ficaram por ser construídos, pois as
concepções de homem e de mudança, em Rogers, excluem qualquer catego-
ria capaz de trabalhar, criticamente, as oposições entre sujeito e objeto, mun-
do interno e mundo externo, corpo e consciência, objetividade e subjetivida-
de com as quais o positivismo científico em psicologia opera.
Mesmo a leitura restrita dos dois filósofos citados, Kierkegaard e
Buber, traria elementos para um questionamento desta ordem, o que leva a
crer que Rogers não estivesse “interessado” num fundamento que não fosse a
sua própria experiência.
O indivíduo psicológico é, desta forma, concebido como uma se-
mente que contém em si potencialidades “inatas” e o mundo e os outros são
o ambiente propício ou adverso ao desenvolvimento destas potencialidades.
“Toda pessoa é uma ilha, no sentido muito concreto do termo; a pessoa só
pode construir uma ponte para comunicar com as outras ilhas se primeira-
mente se dispôs a ser ela mesma e se lhe é permitido ser ela mesma”. (Rogers,
1977, p. 33).
A fenomenologia e o existencialismo servem ao argumento da pre-
cedência da experiência, mas de uma experiência cujo referente é o organis-
mo e não a mútua constituição de homem e mundo.
Um conceito, para exemplificar, é sensível a esta interpretação: o
de coexistência, na medida em que dá passagem a um pensamento mediador
ou intersticial entre homem e mundo.
Rogers, de uma certa maneira, desconhece a noção de mundo com-
partilhado na definição psicológica de personalidade. O mundo compartilha-
do é, aí, a arena do confronto do organismo com seu exterior e não a condi-
ção de sua existência que é natural e biológica. No plano ontológico, o autor
dá preferência à natureza em detrimento do mundo humano.
No entanto, Martim Buber (1977), no livro Eu e tu, faz uma feno-
menologia da relação na qual a “co-participação aparece como fundamento
134 Maria Luisa Sandoval Schmidt

ontológico do existir e suas manifestações”: no princípio está a relação que é


diálogo ou palavra que testemunha a origem e o final da existência humana.
De acordo com Newton Aquiles Von Zuben, tradutor e autor da
introdução do livro:

O dialógico é para Buber a forma explicativa do fenômeno do interhuma-


no. Interhumano implica a presença ao evento de encontro mútuo. Pre-
sença significa presentificar e ser presentificado. Reciprocidade é a mar-
ca definitiva da atualização do fenômeno da relação. O entre é assim
considerado como a categoria ontológica dos dois polos envolvidos no
evento da relação. (Buber, 1977, p. XLIII)

Pela categoria do entre, Buber designa o Eu-Tu como modo de to-


talização das relações com a natureza, com outros homens ou com as “essên-
cias espirituais”. A objetivação − da natureza, dos homens, do espírito −, o
Eu-Isso, só acontece por derivação desta totalidade, assumindo as formas do
uso e da experiência.
A separação entre mundo interno e mundo externo, “dentro” e
“fora” pertencem à atitude do Eu-Isso que tanto tem servido às visões psi-
cológicas.
Para Rogers, no princípio está o organismo e a relação, como já se
indicou antes, aparece como derivação e separação da totalidade organísmica.
A fenomenologia, mesmo a de um autor que ele apreciava sobre-
maneira como é o caso de Buber, é, em Rogers, parcial.
Um ponto crucial de sua fragilidade teórica reside, justamente, no
tema da “entrada” na cultura, para o qual a ideia de mundanidade tem muito
a contribuir.
O mundo pode ser objetivado, usado e experimentado por um or-
ganismo, porém, isto está longe de explicar como, psicologicamente, mundo
e indivíduo constituem-se numa relação de presença e reciprocidade.
A formação da criança não parece ser uma mera internalização do
mundo adulto que lhe precede, nem mesmo o resultado do embate entre sen-
timentos próprios e valores impróprios: não é a despeito do mundo que a
criança cresce, mas no mundo, criando mundo.
No trecho a seguir, Buber expõe, a seu modo, este duplo engen-
dramento que supõe, de início, a relação:

A originalidade da aspiração de relação já aparece claramente desde o


estado mais precoce e obscuro. Antes de poder perceber alguma coisa
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

isolada, os tímidos olhares procuram no espaço obscuro algo de indefini-


do; e em momentos em que, aparentemente não há necessidade de ali-
mento, é sem finalidade, ao que parece, que as suaves e pequeninas mãos
gesticulam, procuram algo de indefinido no vazio. Afirmar que se trata de
um gesto animal, é nada exprimir. Pois estes olhares, na verdade, depois
de minuciosas tentativas, se fixarão em um arabesco vermelho de um ta-
pete e dele não se desprenderão até que a essência do vermelho se lhes
tenha revelado. Estes movimentos em contato com um ursinho de pelúcia,
tomarão uma força sensível e precisa e tomarão conhecimento carinhoso
e inesquecível de um corpo completo. Nestes dois fatos, não se trata de
uma experiência de um objeto mas de um confronto, que sem dúvida, se
passa na “fantasia”, com um parceiro vivo e atuante. (...)
Não é verdade que a criança percebe primeiramente um objeto, e, só en-
tão entre em relação com ele. Ao contrário, o instinto de relação é pri-
mordial, como a mão côncava na qual o seu oponente possa se adaptar.
(Buber, 1977, pp. 30-31).

A relação homem-mundo como condição da existência humana


aparece em Heidegger (1986), para quem o ser no mundo com outros é uma
estrutura fundamental do “ser-aí”; em Merleau-Ponty, que estuda a percep-
ção a partir do entrelaçamento corpo-mundo (Coelho Jr & Carmo, 1991); em
Sartre (1978), que concebe o homem como ser em situação.
Rogers, a despeito de sua autodenominada orientação fenomenológi-
ca, interroga-se sobre a possibilidade do homem constituir-se como tal no iso-
lamento ou num estrito contato com a natureza, uma vez que a humanidade do
homem, para ele, repousa na experiência organísmica. Para a fenomenologia,
tal possibilidade é impensável, pois a humanidade do homem é plural e munda-
na: a própria referência à natureza pressupõe a trama significativa que é mundo.
Em consequência deste pensamento que, aparentemente, designa
um lugar central para a relação mas que, de fato, a concebe como derivada e
não fundante, Rogers enxerga a consciência como simbolização da experiên-
cia do organismo ou como simbolização do sentir; a linguagem como tradu-
ção de um sentido mudo; o corpo como pura interioridade; o mundo como
pura exterioridade.
Desconhecendo a visão intersticial que caracteriza a fenomenologia
em suas diversas vertentes, Rogers parece fazer o que Heller (1983) chama
de uma apropriação incompleta de um sistema filosófico.
Para a autora, todo sistema filosófico “incita o receptor a refletir
sobre o modo como deve pensar, como deve agir, como deve viver” (Heller,
1983, p. 33). Embora estas três dimensões sejam inseparáveis “no interior do
edifício filosófico”, no âmbito de sua recepção, a separação não só é possível
como passa a ocorrer de maneira frequente na modernidade. A recepção
136 Maria Luisa Sandoval Schmidt

incompleta consiste, justamente, no isolamento de uma das dimensões −


pensar, agir ou viver −, dando origem, respectivamente, às recepções pelo
guia do conhecimento, política e iluminadora.
Para a leitura que aqui se quer fazer do caso específico de Rogers
interessa, em particular, a figura da recepção política, ou seja, aquela que se
pauta pela reflexão sobre o agir, destacando-a dos outros dois momentos que
compõem o sistema filosófico.
Ainda para Heller, toda filosofia é uma utopia e toda utopia que
não se reconhece como tal “presta-se a se tornar ideologia, mediante a recep-
ção política”. E, conclui: “A recepção ideológica não é nem compreensão
nem mal-entendido, mas consiste em extrair do todo uma ou várias idéias,
valores e formulações, em função da direção para a ação, ou melhor, da dire-
ção para o sucesso na ação” (Heller, 1983, p. 44).
Rogers não se aproxima das filosofias fenomenológicas e existen-
cialistas para pensar o conflito entre os modos de conhecer do processo psi-
coterápico e da ciência: seu modelo para o conhecimento está estabelecido,
em bases aceitáveis, pela ciência positivista que pode e deve tomar a psicote-
rapia como objeto de estudo. Apenas remotamente sugere uma apropriação
iluminadora da obra de Kierkegaard. No entanto, ideias, valores e formula-
ções fenomenológicas e existencialistas informam a ação do psicoterapeuta
em que Rogers se transformou.
A hipótese de uma recepção político-ideológica pode ser esclarece-
dora se se considera o quanto Rogers focaliza e enfatiza a chamada equação
básica segundo a qual determinadas atitudes do psicoterapeuta são condições
necessárias e suficientes para o desencadear de um processo bem sucedido
de autoconhecimento e mudança no cliente.
Esta equação é o fermento de sua militância político-ideológica
crítica no que diz respeito ao poder do especialista e à cultura psicoterápica
que se baseia nas noções de doença, tratamento e cura.
A política das relações interpessoais, inicialmente na psicoterapia
e, depois, nos grupos terapêuticos e institucionais e na educação, constitui-se
pela afirmação da equação básica e pelo exemplo do facilitador como um
“tipo” de terapeuta, propositor de experiências grupais ou professor que en-
carna as atitudes − empatia, aceitação positiva incondicional e congruência −
que, por sua vez, ensejam a autodeterminação e a autogestão de indivíduos e
grupos, confrontando o poder dos especialistas.
Estas atitudes buscam traduzir, na atuação psicológica, uma “atitu-
de fenomenológica” de valorização da consciência pré-reflexiva como “con-
dição de aparição do mundo”, como “raiz do mundo” e da vivência dos indi-
víduos como “critério superior do conhecimento e de orientação e avaliação
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

da vida” (Fonseca, 1998). Trata-se, contudo e portanto, da autodeterminação


e da autogestão psicológicas, em que os settings grupais, sociais servem à
construção do poder pessoal de indivíduos.
Ao empreender o exame dos fundamentos fenomenológicos e
existenciais do legado rogeriano, Afonso Lisboa de Fonseca chama atenção
para o papel que a subjetividade fenomenal e a “validade inquestionável da
fonte vivencial e pré-reflexiva da consciência” desempenham na criação de
um modelo clínico que “protege” o cliente individual e os grupos de ações
objetivantes, autoritárias e manipuladoras derivadas da aplicação de teorias e
técnicas psicoterápicas.
Desta perspectiva, pode-se ler cada uma das atitudes como referi-
das a um princípio de respeito radical ao outro como diferença. Pela aceita-
ção positiva incondicional o facilitador reconhece e confirma o outro como
diferente e autônomo. A empatia, por seu turno, é concebida como processo
de diferenciação do par psicoterápico e não como apropriação compreensiva,
tolerante e bondosa do outro. Relacional, a empatia existe no ser mutuamente
afetado e estar reciprocamente implicado, trabalhando as tensões entre dife-
rentes, criando e recriando alteridades. A congruência ou a genuinidade re-
mete ao abandono da instrumentalização do terapeuta a partir de teorias e
técnicas no trato com o cliente e ao apego à experiência organísmica e ao
vivido como “guias” para a conduta psicoterapêutica. Perpassando as atitu-
des, afirma-se a qualidade dialógica do encontro terapêutico e de seus efeitos
transformadores, formativos e de conhecimento (Fonseca, 1998).
A mudança e o autoconhecimento visados pela psicoterapia, grupos
de encontro e comunidades de aprendizagem consolidam-se pelo incremento
de consciência, liberdade experiencial e afirmação dos indivíduos que, desta
forma, atualizam a tendência organísmica ao crescimento.
Neste ponto, decisivo para a teoria rogeriana, a aproprição das no-
ções fenomenológicas sobre a copertença pré-reflexiva de homem e mundo,
bem como aquela de uma consciência ampliada não equivalente à razão,
trabalha a favor das concepções de experiência organísmica e de avaliação
organísmica da experiência que, por sua vez, permitirão definir a autonomia
e a criatividade do indivíduo psicológico num espaço interior recortado
“contra” o controle heterônomo e a consciência pré-reflexiva como o vivido
que enlaça o indivíduo e seu organismo.
O “funcionamento ótimo da personalidade” como ponto de chega-
da de uma psicoterapia bem sucedida, tal como preconiza Rogers, tem como
critérios, justamente, a autonomia da pessoa medida pela criação de valores
baseados na experiência do organismo e a ascendência da consciência pré-
reflexiva sobre a consciência reflexiva e a imagem de si (Fonseca, 1998).
138 Maria Luisa Sandoval Schmidt

Se, por um lado, esta apropriação de ideias fenomenológicas se


presta à confrontação dos dispositivos de saber e de poder da clínica psicoló-
gica, ensejando uma prática que relativiza uma abordagem teórica e abstrata
dos indivíduos, por outro, parece evadir-se da questão da responsabilidade
do indivíduo pelo mundo, tornando abstrata a vida social. A especificidade
da perspectiva psicológica é construída, nesse caso, tendo como pano de
fundo uma vida social e cultural não diferenciada, amorfa e homogênea cuja
existência é notada, principalmente, como obstruidora do crescimento natu-
ral dos organismos humanos.
Em entrevista concedida por Rogers à revista Veja, por ocasião de
sua visita ao Brasil em 1977, ele reitera esta visão declarando que:

O ser humano, como todos os organismos, tende a crescer e a se atuali-


zar. É claro que todos os fatores sociais, econômicos e familiares podem
interromper esse crescimento, mas a tendência fundamental é em direção
ao crescimento, ao seu próprio preenchimento ou satisfação. (...) A pedra
fundamental da psicologia humanista, pelo menos como eu vejo, é, por-
tanto, essa crença de que o ser humano tem um organismo positivo e
construtivo. (Rogers, 1977, pp. 2-8)

Esta crença dá suporte a uma particular combinação dos conceitos


de experiência, percepção e consciência que perspectiva a mudança psicoló-
gica prescindindo das dimensões social e cultural.
Associando a experiência às sensações viscerais, faz do campo
perceptual aquele no qual algo aparece sob a forma do sentir, oferecendo-
se à simbolização. A simbolização constitui ou equivale à consciência que
recorta uma imagem de si ou estrutura de self no meio mutante, temporal e
coabitado do campo fenomenal ou perceptual. O outro é aí incluído como
elemento de identificação ou diferenciação que espelha o quem alguém é
ou pode ser.
O desconforto psicológico é sempre um estranhamento de si oriun-
do da incongruência entre experiência e imagem de si ou estrutura de self
que, por sua vez, está na origem das condutas defensivas e negadoras.
A hipótese que torna eficaz a psicoterapia é, portanto, nos termos
rogerianos, a de que mudanças no campo perceptual produzem mudanças de
conduta, desde que se entenda o lugar central que o sentir ocupa nos proces-
sos de valoração por meio dos quais o organismo assumiria seu papel de
sábio condutor do crescimento e desenvolvimento pessoal dos indivíduos.
Isto compreendido, a psicoterapia propõe-se como tarefas a busca
de maior congruência entre a experiência e a estrutura de self, o esclareci-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

mento das introjeções de valores “indiretos”, ou seja, de outros ou referidos


às relações com outros e a exploração de um campo de experiências rejeita-
das ou negadas à simbolização. E, espera-se da psicoterapia a diminuição da
ansiedade e da vulnerabilidade provocadas pelo estranhamento de si e pela
“pressão” dos sentimentos negados, a atenuação das atitudes defensivas e
maior flexibilidade e discriminação da imagem de si, aumento da adaptação
às situações de vida, maior aceitação dos outros e suas singularidades e a
constituição de um sistema de valores flexível e adaptável (Wood, 1994).
Unindo o sentir, a percepção, a simbolização e a valoração como
prerrogativas do organismo, a teoria internaliza a mudança, psicologizando-
a. A relação com os outros e com o mundo tem como exemplo ou modelo a
relação entre o psicoterapeuta e seu cliente, instrumentalizada em benefício
do “encontro da pessoa consigo mesma” ou com o princípio capaz de orga-
nizar tanto o sofrimento quanto a plenitude que é o organismo individual.
A cultura e a vida social não podem ser pensados como sistemas
organizadores da experiência a não ser na direção da alienação do indivíduo
em relação a si mesmo11, enquanto a teoria psicológica da mudança se apre-
senta como modelo contra a alienação e, em consequência, a psicoterapia
como utopia de uma cultura e de uma vida social humanistas.
O caráter “libertário” da psicoterapia é, em Rogers, construído pela
afirmação do indivíduo propiciada pela “rejeição temporária da autoridade e
dos valores dos pais e da sociedade” (Wood, 1994). O reconhecimento da
“incompatibilidade” entre valores advindos do organismo e valores sociais e
culturais que sustenta a prática rogeriana é, no plano ideológico, a face de
uma moeda que, em sua outra face, estampa o desconhecimento do cunho
social e cultural dos valores humanistas que informam esta mesma prática.
De modo significativo, ao elencar alguns dos valores compartilhados
pelos terapeutas centrados no cliente norte-americanos, John Keith Wood, co-
laborador próximo de Rogers, destaca “o respeito pela singularidade e o valor
do indivíduo, o direito de ser quem se deseja ser e de desenvolver suas potenci-
alidades, o direito a um tratamento igual pelas autoridades e as mesmas oportu-

11
Em artigo sobre o impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem, Geertz
congrega um conjunto de argumentos sobre o caráter constitutivo da cultura para concluir
que: “Quando vista como um conjunto de mecanismos simbólicos para o controle do
comportamento, fontes de informação extra-somáticas, a cultura fornece o vínculo entre o
que os homens são intrinsecamente capazes de se tornar e o que eles realmente se tor-
nam, um por um. Tornar-se humano é tornar-se individual, e nós nos tornamos individu-
ais sob a direção dos padrões culturais, sistemas de significados criados historicamente
em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas”. (Geertz,
1989, p. 64)
140 Maria Luisa Sandoval Schmidt

nidades de prosperidade para todos”, acrescidos de “uma participação ativa no


trabalho para alcançar seus objetivos e poder reivindicar seus direitos, confian-
ça no futuro e em uma vida melhor e a crença de que os problemas podem ser
resolvidos através do esforço, da concentração e da introspecção” (Wood, 1994,
pp. 199-200). Estes são valores liberais cuja feição está em sintonia com os
valores hegemônicos professados pela democracia norte-americana.
Se, por um lado, a teoria da mudança da personalidade rogeriana
produziu efeitos políticos e ideológicos “progressistas” no combate ao auto-
ritarismo das práticas psicoterápicas fundamentadas nos saberes e poderes
instituídos em torno da noção de doença mental, por outro, reforçou a men-
talidade individualista que vigora nas sociedades capitalistas liberais.
Como adverte Lévi-Strauss (1975), sem o recorte de uma especifi-
cidade do sofrimento, as terapêuticas psicológicas modernas tornam-se dis-
positivos de persuasão dos inadaptados e instáveis, funcionando como reor-
ganizadoras do universo do paciente, produzindo uma espécie de conversão
às ideias e aos valores de suas teorias.
No caso da teoria rogeriana, a imagem da conversão faz sentido
quando se pensa em sua cruzada pela salvação do indivíduo, cruzada na qual
a liberdade pessoal é ganha contra a responsabilidade social, em nome de
valores humanistas.
Wood, por sua vez, salienta que “a ênfase no self pessoal enquanto
realidade exclusiva não proporcionou uma perspectiva suficientemente ampla,
com a qual seja possível compreender grupos de indivíduos e demais fenôme-
nos que, por sua natureza, envolvam outras realidades” (Wood, 1994, p. 203).
Não se trata, contudo, apenas, da insuficiência teórica para com-
preender a mútua implicação de homem e mundo, indivíduo e sociedade,
mas das consequências desta insuficiência na esfera de uma prática que pode
assumir matizes conformistas na medida em que a liberdade e a mudança são
concebidas num plano estritamente individual, pessoal e interior.

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142 Maria Luisa Sandoval Schmidt
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

A ANÁLISE EXISTENCIAL COMO


TERAPIA DE NEUROSES COLETIVAS:
O PENSAMENTO SOCIAL DE VIKTOR
FRANKL NA PERSPECTIVA DE
CLÍNICA AMPLIADA
Marcus Túlio Caldas
Maria Eugênia Calheiros

Sumário: 1. O Pensamento Social de Frankl. 2. A Análise Existencial como


Clínica Ampliada. 3. Reflexões Conclusivas. 4. Referências.

1 O PENSAMENTO SOCIAL DE FRANKL

Os aspectos sociais da existência humana não se constituem o alvo


do interesse do pensamento frankliano. O leitmotiv da sua vida e da sua obra
foi, invariavelmente, a condição humana em sua vulnerabilidade. Seja para
compreender, cuidar ou preservar a humanidade deste humano, todos os
esforços intelectuais desenvolvidos por Frankl serviram a este propósito. A
sua perspectiva dos aspectos sociais não escapa a esta tendência, especial-
mente manifesta nos seus estudos sobre a massificação do humano, fenôme-
no que começava a se delinear no pensamento europeu na primeira metade
do século XX, embora partindo da realidade social consequente ao intenso
processo de industrialização e urbanização do século anterior.
Atento às transformações sociais, Viktor Frankl percebeu a relação
entre, por um lado, as novas formas de sofrimento que se lhes apresentavam
na prática neuropsiquiátrica; e, por outro lado, a crise histórica estampada no
cenário de uma Europa sobrevivente às duas mais destrutivas catástrofes
bélicas de todos os tempos. É conhecido o espírito dominante nesta época,
marcada pela perplexidade e pelo sentimento de nadificação diante da irraci-
onalidade dos fatos históricos que colapsaram os alicerces materiais e cultu-
rais do mundo europeu.
Como clínico e pesquisador, Frankl somou sua voz à de alguns ou-
tros autores seus contemporâneos, ao apontar duas novas tendências em rela-
144 Marcus Túlio Caldas e Maria Eugênia Calheiros

ção à clínica. A primeira tendência indicava a procura por cuidados médicos


nos casos de sofrimentos de ordem espiritual. A segunda tendência se referia
a sintomas inusitados que passaram a emergir no contexto da sociedade mas-
sificada. Percebendo este alargamento da demanda por cuidado clínico,
Frankl concebeu modalidades clínicas – fundadas na Análise Existencial e na
Logoterapia –, que supôs serem capazes de oferecer ajuda efetiva às inusita-
das faces da dor humana naqueles novos tempos.
Conhece-se o interesse que surgia, na época, pelo estudo e classifi-
cação das neuroses. Com base em suas observações, Frankl engendrou uma
proposta terapêutica ampla, envolvendo o que chamou “cinco aspectos da
Análise Existencial e da Logoterapia”. Em seu trabalho Elementos da Análi-
se Existencial e da Logoterapia1, o autor realiza minuciosa descrição das
possibilidades terapêuticas de cada um dos seus métodos e os fundamentos
da sua classificação. Trata-se de cinco modalidades de cuidado clínico, capa-
zes de abranger desde os quadros neuróticos clássicos às inusitadas deman-
das que passavam a ser observadas.
O nosso foco no presente artigo é, neste conjunto, na modalidade
clínica que Frankl denomina Análise Existencial como Terapia de Neuroses
Coletivas. A começar pela compreensão acerca da ideia de “coletivo” no
pensamento frankliano, atentamos para a distinção que este faz entre socie-
dade e comunidade, de acordo com o modo pelo qual se constituem: a pri-
meira, tendo por fundamento um “si mesmo” impessoal; e a última, fundada
pela possibilidade de um “nós”.
A sociedade de massas trouxe consigo formas de pensar e agir
acríticas e anônimas, nas quais a liberdade e a responsabilidade, que Frankl
considera essenciais à condição humana, sofrem uma diluição no coletivo
indiferençável. As palavras de Frankl aclaram esta divergência:

A diferença parece ainda mais clara falando de “massa” em lugar de so-


ciedade. A comunidade necessita de personalidades, da mesma forma que
toda personalidade necessita da comunidade para poder realizar seu
marco, para ser pessoa. Na massa, pelo contrário, nenhuma personalida-
de humana pode se fazer valer nem se desenvolver. A massa, porém, re-
nuncia de bom grado à personalidade; esta, na realidade, estorva a ma-
sas. (Frankl, 2006, p. 241, destaque do autor)

Aqui se pode entrever um dos motivos pelos quais Frankl assume a


concepção de homem como pessoa: a pessoa “estorva” a massa. A riqueza e

1
Este texto faz parte do livro Logoterapia e análise existencial: textos de cinco décadas,
publicado no Brasil em 1995, pela Ed. Psy II.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

a amplitude da pessoalidade atendem à sua inquietação quanto à subsunção


do humano na estrutura social massificante. Da mesma forma que, ao defen-
der o humano, Frankl não opta por humanismos antropocêntricos de qual-
quer tradição, a opção pela pessoalidade não se faz como adesão tácita a
tradições personalistas predeterminadas. A ideia da pessoalidade frankliana
se constrói como uma visão própria da concepção menos restritiva acerca do
humano, sabendo fazer uso da tradição, da complexidade e da riqueza arque-
ológica da palavra “pessoa”.
Frankl recolhe, ao longo da história do pensamento, o que hoje
pode ser mais significante para expressar uma ideia integral do humano no
âmbito de uma perspectiva existencial e fenomenológica. Rastreando essa
colheita, podemos remontar, inclusive, ao pensamento de Ricardo de São
Vítor, que distingue o sistere – do âmbito natural – do ex-sistere – o ser da
pessoa em seu originar-se –, conforme registra Ferrater Mora (2004, p. 2.263).
Herdando fortes traços schelerianos e agostinianos, sua concepção de pessoa
é, contudo, gestada por uma visão própria e independente. Este autor ainda
esclarece algo central para a compreensão deste termo em Scheler e Frankl: a
pessoa não é tão somente um “ser natural” embora também não seja apenas
um membro do “espírito cósmico”. É um in-dividuum de caráter espiritual,
exatamente por ser a “unidade de atos intencionais superiores” cuja contínua
transcendência de si mesma permite superar a definitiva imersão na realidade
impessoal da “coisa”. Essa transcendência não significa, contudo, que a espi-
ritualidade humana possua um caráter misterioso, mas que a pessoa, mesmo
indivisível, não permanece nos limites de sua própria subjetividade (Ferrater
Mora, 2004, p. 2.264).
Está claro, portanto, por que Frankl evita reduzir a concepção do
homem ao sujeito (do lat. subjectum “posto debaixo”), ainda adotada por
alguns setores do pensamento fenomenológico e existencial2. Evidentemente
porque apenas um humano reduzido ao psicofísico poderia ser “submetido”
às próprias pulsões. E somente um humano destituído do centro “espiritual”
da sua intencionalidade e liberdade poderia, como sub-jectum, render vassa-
lagem às onipresentes estruturas de poder metamorfizadas ao longo das su-
cessivas épocas.
Frankl certamente concorda com Scheler no dizer que, apesar de
havermos descartado as concepções tradicionais sobre o humano, ainda não
possuímos uma ideia una do que seja o homem (Scheler, 2003, p. 5). A op-

2
Ainda que este termo esteja sendo usado em conotação próxima à rubrica jurídica (sujeito
como “titular de um direito”), não estaria desvinculado do pensamento cartesiano moder-
no do sujeito enquanto “eu pensante, consciência, espírito ou mente enquanto faculdade
cognoscente e princípio fundador do conhecimento” (Houaiss & Villar, 2009).
146 Marcus Túlio Caldas e Maria Eugênia Calheiros

ção, comum a ambos, pela pessoalidade do humano, significa preservar a


ideia mais “compreensiva” acerca do homem. Frankl busca claramente uma
concepção capaz de comunicar não apenas a sua vida pulsional submersa no
humus da condicionalidade, mas capaz de conter o seu spirìtus, como um
sopro que se presentifica na própria realidade e insufla na existência as infi-
nitas possibilidades de autocriação na criação do próprio mundo.

2 A ANÁLISE EXISTENCIAL COMO CLÍNICA AMPLIADA

O trato do humano como pessoa possibilitou a Frankl pensar o ho-


mem de forma ampla e independente, evitando recair tanto na “reificação”
do humano, própria do método científico-natural, quanto na sua “essenciali-
zação”, como ocorre na metafísica platônica. Assim, sem desprezar inteira-
mente as conquistas da ciência e da técnica, afirmava que o valor do método
depende da perspectiva em que é usado. Segundo suas palavras, “[...] o que
está em causa não é a técnica, mas sim e sempre aquele que manuseia a téc-
nica, o espírito com que é manuseada” (Frankl, 1995, p. 4). Por outro lado,
sem renunciar ao trato da espiritualidade como dimensão humana, não se
submetia às prescrições dos dogmas religiosos ou teológicos. Esta liberdade,
fundada na plena consciência de não estar nem reificando nem essenciali-
zando o humano, permitiu a Frankl um trânsito desenvolto no campo da psi-
copatologia e da psicoterapia, sabendo fazer um uso mais livre dos conceitos
da primeira para atender às necessidades clínicas da segunda. Isso fez com
que o pathos intrínseco à condição humana pudesse ser tratado em termos de
uma disciplina metodológica flexível, possibilitando uma práxis clínica alar-
gada. Nela, é o método que está “sujeito” ao homem e não o homem ao mé-
todo. Preserva-se, assim, a supremacia do humano e torna-se o método
“compreensivo” em relação às dores de todas as naturezas que se mostram
na relação de cuidado.
As propostas de Frankl constituem uma “clínica de largo espectro”,
pois buscam uma escuta ao homem por inteiro, na multiplicidade e na sin-
gularidade de sua condição física, intelectual, social e espiritual. É previsí-
vel, portanto, que levem em conta não somente as neuroses no sentido estrito
(neuroses psicógenas), mas considerem também as neuroses no sentido
amplo, por ele denominadas “pseudoneuroses”, a exemplo daquelas que
possuem origem orgânica (neuroses somatogênicas), social (neuroses soci-
ogênicas) ou ético-espiritual (neuroses noogênicas). Já as neuroses coletivas
seriam neuroses na acepção “paraclínica”, termo no qual Klinikê (como cui-
dado dispensado ao doente) é antecedido pelo prefixo grego para- (“ao lado
de”), no sentido de proximidade, semelhança e complementaridade (Houaiss
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

& Villar, 2009)3. A nossa atenção neste trabalho, após o aclaramento das
concepções franklianas pertinentes ao tema, volta-se para esta modalidade
específica de clínica denominada Análise existencial como terapia de neu-
roses coletivas.

2.1 A Análise Existencial como Terapia de Neuroses


Coletivas
Uma das cinco modalidades clínicas descritas no texto “Elementos
da Análise Existencial e da Logoterapia” se refere à Análise Existencial
como Terapia de Neuroses coletivas. Demostrando compreender o pensar
sociológico, Frankl destaca que as Neuroses Coletivas não se definem quan-
titativamente, mas qualitativamente. Isso significa que não seria por sua
maior incidência que se tornam coletivas, senão por se constituírem em um
fenômeno específico da época. Registra Frankl ser comum, então, referir-se
às enfermidades do “espírito da época”, registrando que o próprio Sigmund
Freud, em uma carta de 1923 a Hans Blüher, ter-se-ia referido a tempos lou-
cos, que pareciam saídos dos eixos (Frankl, 2008, p. 190).
Interrogando sobre a natureza dessas patologias, Frankl examinava
outros autores seus contemporâneos tais como Weinke, Hirschmann e
Freyhan, que concordavam em afirmar que os séculos anteriores – épocas de
invasões bárbaras, de grandes epidemias e de guerras religiosas – não estive-
ram menos sujeitos à angústia que o nosso tempo. Não lhes parecia, portanto,
apropriado distinguir a atualidade como age of anxiety, mas estudar os reais
motivos pelos quais o quadro clínico das neuroses havia mudado e a sinto-
matologia se tornara diversa. Em diálogo com o pensamento sociológico de
então, Frankl conclui que o ritmo acelerado de vida, antes de ser a causa,
seria uma tentativa falha de superação (Frankl, idem; p. 191-192).
O fenômeno que Frankl identificou como Neurose coletiva, se-
gundo sua observação, se caracteriza por quatro “sintomas” (Frankl, 1995, p.
116; 2008, p. 196) descritos como:
a) ATITUDE DE PROVISORIEDADE – a atitude provisional está
relacionada tanto à ideia de “provisão” – do latim provision –,
que denota a abundância, a exuberância do momento intensa-
mente vivido, quanto à de “provisório” – pelo francês provisoi-
re –, que destaca a impermanência, a existência voltada apenas
para o presente (Houaiss & Villar, 2009). Na postura provisio-

3
Analogamente, o prefixo grego “para-” denota também uma clara relação de complementari-
dade no termo “paramedicina” (Houaiss & Villar, 2009).
148 Marcus Túlio Caldas e Maria Eugênia Calheiros

nal o tempo se apresenta como um contínuo presente, no qual só


é possível viver o dia e para o dia. Segundo Frankl, as pessoas
se comportam como se estivessem continuamente ante a possi-
bilidade da catástrofe atômica.
b) ATITUDE FATALISTA – a postura fatalista adota a inevitabi-
lidade diante do trágico. O ser humano considera impossível di-
rigir o próprio destino, sendo este sempre determinado por for-
ças alheias à sua vontade. O fatalismo, derivado do latim fatalis,
significando tanto “do destino” quanto “funesto”, “mortal”
(Houaiss & Villar, 2009). O destino inexorável determina rigi-
damente todos os acontecimentos. Nessa perspectiva, não há lu-
gar para a esperança ou razão para lutar por transformações.
c) MODO DE PENSAR COLETIVISTA – refere-se ao fenôme-
no do coletivismo, do latim collectivus, “que agrupa, ajunta”
(Houaiss & Villar, 2009). Para Frankl, o pensamento coletivista
corresponde a uma perspectiva que vê o homem apenas no
contexto dos agrupamentos humanos extensos, nos quais deixa
de ser visto e compreendido como pessoa, desaparecendo e tor-
nando-se indiferençável em meio à massa. Pelo cultivo do pen-
sar coletivista, necessariamente, o homem renuncia a si mesmo
como ser livre e como ser responsável, fazendo caso omisso da
sua própria pessoalidade.
d) FANATISMO – o fanatismo significa uma adesão incondicio-
nal a um sistema, doutrina ou facção. Derivado do latim fanati-
cus, significa tanto “divinamente inspirado” quanto “delirante”
(Houaiss & Villar, 2009). O homem fanático geralmente impõe
seu pensamento aos demais, não reconhecendo o seu direito à
diversidade de opinião e, neste sentido, fazendo caso omisso da
pessoalidade do outro homem.
Frankl observou que os dois primeiros sintomas ocorriam princi-
palmente no mundo ocidental, enquanto que os dois últimos incidiam mais
nos países “do Leste”4. Concluiu que todos estes quatro sintomas poderiam
ser traduzidos simplesmente como “fuga à responsabilidade” e “medo à li-
berdade”. Segundo sua concepção, liberdade e responsabilidade são consti-
tutivas da espiritualidade do homem, motivo pelo qual tais sintomas estariam

4
Observe-se que Frankl escreveu “Zur Definition und Klassifikation der Neurosen” no
livro Theorie und Therapie der Neurosen, publicado de 1983 (München/Basel), quando
o panorama político mundial já apontava maior incidência e êxito de grandes movi-
mentos revolucionários de massas – associados ao totalitarismo e ao fanatismo –, em
países orientais.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

relacionados a uma espécie de “fadiga espiritual”, cuja origem estaria no


niilismo predominante na época (Frankl, 1995, p. 117).
Frankl considerava a ocorrência das neuroses noógenas, advindas
de conflitos ético-espirituais, como inversamente proporcional às neuroses
coletivas, pois naquelas se conservava intacta a capacidade de ouvir a voz da
consciência. Dessa forma, ainda que sofresse por causa de uma neurose noó-
gena, seu portador estaria em condições de superar uma neurose coletiva, por
manter sua unidade interna como pessoa. Observava, ainda, que havia sem-
pre uma frustração existencial como pano de fundo, mesmo nos casos em
que uma frustração de outra ordem aparecia em primeiro plano. A pretensão
de base de todo homem seria a uma existência plena de sentido, capaz de
tornar a vida digna de ser vivida (Frankl, 1995, p. 118).
Considerando o caráter de complementaridade das suas propostas
clínicas, Viktor Frankl afirmava que a psicanálise de Freud nos fez conhecer
o desejo de prazer e que a psicologia individual de Adler nos apresentou o
desejo de poder, mas é a vontade de sentido que possui maior importância na
psico-higiene humana. A frustração existencial teria, nos tempos atuais, mai-
or peso na gênese das doenças neuróticas que a não satisfação das pulsões
sexuais ou da aspiração ao reconhecimento (Frankl, 1995, p. 118).
A que se deveria esta realidade? Esses fatos, segundo Frankl, se
devem a dois principais fatores: a progressiva perda do instinto, que repre-
sentaria primitivas formas de autodefesa e preservação; e a recente perda da
tradição – que, no curso da história, havia substituído o instinto –, sendo hoje
representada pela segurança das estruturas sociais e relacionamentos hierár-
quicos protetores. Não podendo mais contar com ambas as fontes de segu-
rança, restaria a incerteza existencial, manifesta pela sensação de vazio inte-
rior e perda do sentido da vida.
A ideia de “vazio de sentido” é de suma importância e presença
constante no conjunto da obra frankliana. É o próprio Frankl que se refere ao
vazio de sentido descrito por Janet5, onde aparece nos portadores das neuroses
psicastênicas, como um sentiment de vide (sentimento de vazio). Lembrando
Schopenhauer em sua afirmação de que a humanidade oscilaria sempre entre a
necessidade e o tédio, Frankl chama a atenção para o fato de que o tédio tem
ocupado mais os médicos que a necessidade. Assim, a maior ocorrência do
tédio no estado de satisfação das necessidades pode ser tomada como prova de
que a plena homeostase não traria realização, mas carência e vazio.

5
Provavelmente Frankl se refere a Pierre Marie Janet (1920), médico e psicoterapeuta
francês, discípulo de Charcot, pioneiro na descrição dos transtornos dissociativos como
desagregation mentale (Hales & Yudofsky, 2006, p. 673).
150 Marcus Túlio Caldas e Maria Eugênia Calheiros

O problema da miséria material das massas tende a ser substituído


por outro problema: o do bem-estar seguido do ócio, lembra Frankl, resga-
tando afirmações de Karl Bednarik6. Com base em observações de Paul Po-
llak7, Frankl defende que a solução dos problemas sociais não acabará com
as enfermidades neuróticas, sucedendo o contrário: os problemas existenciais
irrompem com mais força quando se amenizam os problemas sociais, abrin-
do espaço à problemática espiritual e fazendo com que o homem reconheça
quais são seus verdadeiros problemas existenciais (Frankl, 2008, p. 195).
Observou Frankl que o sentimento de desolação interior pode ser
manifesto ou permanecer latente, insidioso, mostrando-se através de diversas
máscaras. Assim, a vontade de poder, a compulsão pelo trabalho, atividade
social intensa, as bebidas, o jogo, tudo isso esconderia exatamente uma frus-
tração do apelo ao sentido existencial. Contudo, alertando para um possível
“patologismo”, Frankl afirma que o vazio de sentido existencial não é pato-
lógico por si, pois sua forma de ser “existência” representa uma realidade
humana por “antonomásia”, que não deve ser desnaturalizada e patologizada,
ou seja, reduzida a uma deficiência ou um complexo. Na concepção clínica
de Frankl, a frustração de sentido pode ser mobilizada contra a doença psíqui-
ca pela possibilidade concreta de realização de sentido (Frankl, 1995, p. 121).
Diante desta tarefa, o cuidador frequentemente deserta e se desvia
seja para o somático, seja para o psíquico, acredita Frankl. O médico soma-
tologista tentaria afogar o desejo de sentido do paciente com um “coquetel
ataráxico” (do fr. ataraxie, ‘ausência de perturbação’, serenidade), enquanto
que o psicologista, ignorando o espiritual, projetaria o noético no meramente
psíquico (Frankl, 1995, p. 122). A vontade de sentido, porém, consiste em
um fenômeno constitutivamente humano, no qual há sofrimento quer na
condição de saúde, quer na de doença. A frustração existencial não é “neces-
sariamente”, mas “facultativamente” patogênica, sendo que quando produz
efetivamente uma enfermidade, esta será uma neurose noógena, ou seja,
espiritualmente originada.
Esta perspectiva sobre o sofrimento intrínseco à condição humana
reforça o caráter protetor que a Análise existencial teria em relação à Neuro-
se coletiva. Frankl faz alusão a Nietzsche na afirmação de que “só quem tem
um ‘porquê’ viver suporta qualquer como” (Frankl, 1995, p. 123). O buscar e
o encontrar o sentido do seu próprio existir facultaria ao homem o acesso à

6
Karl Bednarik foi um artista plástico austríaco e ativista político contra o Austro-fascismo.
Katalog Österreichischen Nationalbibliothek. Disponível em: <http://www.onb.ac.at/
sammlungen/litarchiv/bestaende_det.php?id=bednarik>. Acesso em: 01 maio 2012.
7
Paul Pollak, psiquiatra nascido na República Tcheca e atuante nos EUA, é também conhe-
cido por ser um empreendedor comprometido com o combate à pobreza dos povos.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

fonte da “força de resistência do espírito”, que cada um tem como possibili-


dade. E, como o sentido existencial é sempre “um sentido ad personam et ad
situationem”, só podemos atribuir relevância terapêutica à realização de sen-
tido reservada a cada pessoa em sua singularidade (Frankl, 1995, p. 124).
Ampliar a percepção do espectro de possibilidades da existência é a
tarefa da Análise Existencial, quer seja em relação ao homem enquanto indi-
víduo, quer seja em relação ao homem enquanto partícipe de uma coletivida-
de. O sentido singular de cada existência é identificado por Frankl como
fator protetor contra – ou terapêutico para – o desaparecimento do humano
na massa. O humano de cada pessoa, considerada como fenômeno único e
irrepetível, estará a salvo da fatídica diluição massificante. Assim, torna-se
mais clara a afirmação de Frankl de que a pessoa “estorva a massa”.

3 REFLEXÕES CONCLUSIVAS

O livro Logoterapia e Análise Existencial possui um capítulo inti-


tulado “Fome de pão e fome de sentido”, oriundo de uma palestra acadêmica
na qual Viktor Frankl narra seu trabalho junto à Jugend in Not (Juventude
em Necessidade), ação oficial da cidade de Viena para assistir jovens no
período após a Primeira Guerra Mundial. Frankl, ainda estudante, participou
desta ação, prestando assistência psicológica a jovens desempregados que se
achavam ociosos e depressivos. Observou que muitos deles, chamados a
realizar uma função a título honorífico e sem remuneração, disseram haver
melhorado da depressão por encontrarem sentido no que faziam, ainda que
permanecessem famintos. Um deles chegou a dizer a Frankl (1995, p. 258):
“[...] o que nos falta não é só o dinheiro [...]; queremos antes, em primeiro
lugar, algo pelo qual possamos viver, algo que nos dê sentido à vida”.
As observações posteriores de Frankl lhe mostraram, no entanto,
que o sentimento de falta de sentido e a depressão a ele relacionada ocorriam
também entre trabalhadores bem sucedidos que, por acharem que a vida não
fazia sentido, intentavam se suicidar. Constatando que importava mais o
vazio interior que o vazio de estômago, Frankl passou a pesquisar este vazio
existencial durante décadas, até chegar à conclusão de que se tratava de uma
“neurose de massa em escala mundial”, o que teria sido possível provar atra-
vés de estudos e estatísticas de pesquisadores de todo o mundo (Frankl,
1995, p. 258).
Persistindo em suas pesquisas, Frankl se interroga acerca das ra-
zões do crescente sentimento de vazio. Atribui inicialmente à sociedade in-
dustrial, que satisfaz todas as necessidades orgânicas e sociais do homem,
152 Marcus Túlio Caldas e Maria Eugênia Calheiros

mas não pode saciá-lo quanto à sua necessidade mais essencial, que perma-
nece frustrada: a vontade de sentido. Também acusa a escassez de modelos
que mostrem vidas plenificadas pelo sentido de suas missões. No entanto, foi
sua experiência como prisioneiro dos campos de concentração que lhe trouxe
a percepção de que estar voltado para um sentido não é apenas importante
para viver, mas também para sobreviver, sendo então fundamental a ocor-
rência de uma orientação para o futuro.
O ponto decisivo de seus estudos sobre a importância de valores e
sentido foi a descoberta de que a vontade de sentido é constitutiva da condi-
ção humana. O que Frankl denominou dimensão noética (do grego noûs,
“faculdade intuitiva”, “intelecto”) como sinônimo de espiritual, corresponde
àquela mesma instância que tem na busca de sentido o seu fenômeno mais
humano. Como, então, cuidar deste ser, portador desta dimensão intangível,
sem recursos que possam alcançar este espiritual?
Frankl afirma que a Análise existencial não é uma terapia do orga-
nismo, mas “uma terapia da pessoa, a partir do espiritual que, por si, nunca
chega a enfermar, mesmo nas chamadas doenças mentais” (Frankl, 2008,
p. 63). E, neste sentido, tanto a Análise Existencial quanto a Logoterapia
seriam terapias a partir do espiritual, ou seja, da dimensão não corruptível do
humano. A dimensão espiritual não seria uma dimensão espacial ou cósmica
em si, mas uma dimensão do homem, definida por Frankl como a “verdadei-
ra dimensão do existir humano”. O próprio humano, assim, se constituiria
pelos atos espirituais que “elevam o plano somatopsíquico à dimensão espi-
ritual” (Frankl, 2008, p. 73). E o homem não seria apenas um ser espiritual,
mas uma tri-unidade de corpo, alma e espírito.
Percebe-se que, embora o espiritual seja para Frankl a dimensão
distintiva do humano, não é toda a realidade do homem. A autotranscendên-
cia representa o cerne da existência humana e sua realidade de ser aberto ao
mundo implica ainda estar orientado sempre para além de si mesmo (Frankl,
1997, p. 51). Essa autotranscendência rompe com a imagem monadologista
do homem – condicionado a conservar e restaurar permanentemente sua
homeostase –, em nítido contraste com um “ser homem” que significa estar
sempre orientado ou dirigido a alguma coisa ou pessoa que lhes sejam signi-
ficativas; dedicado a um trabalho ou uma missão; ou simplesmente a amar e
servir ao seu semelhante ou ao seu Deus. Comentando a transcendência na
perspectiva frankliana, Eugênio Fizzotti (1992) afirma que o estudo do ho-
mem deve superar o âmbito da imanência e avançar para a inclusão de sua
transcendentalidade. Lembra este estudioso da obra frankliana, que uma
visão de homem “que se obstina na imanência humana, se enrijece e se torna
antropologismo” (Fizzotti, 1992, p. 219).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Viktor Frankl esclarece que o homem, “transcendendo a si mesmo,


adentra no mundo, no sentido, no logos. E uma psicologia que mereça cha-
mar-se assim, deve fazer jus às duas metades do seu nome: tanto à psique
como ao logos” (Frankl, 2008, p. 210). É, portanto, admitindo a pessoa espi-
ritual na sua psicoterapia que a obra frankliana logra ser clínica ampliada.
Max Scheler afirma que, num mundo onde as esferas tradicionais estão am-
plamente abaladas, é preciso conceber “uma antropologia filosófica de base
maximamente ampla” (Scheler, 2003, p. 6). Essa máxima amplitude da an-
tropologia scheleriana se mostra na concepção de que o homem é “a unidade
funcional da conjunção entre impulso e espírito”, sendo que estes os dois
atributos do ser se manifestam “na história do espírito humano e na evolução
da vida universal” (Scheler, 2003, p. 89).
A pessoalidade frankliana, em muito devedora de Scheler, está dis-
tanciada dos personalismos e essencialismo tradicionais ou vulgares, sendo
absolutamente própria e inovadora. Afina-se com o pensamento fenomenoló-
gico existencial na forma de um pensar cientificamente humilde, expectante e
aberto ao mistério. Um pensar que, se por um lado, não essencializa o homem,
por outro também não se amolda ao método científico-natural na sua pretensão
reducionista de circunscrever todas as possibilidades do humano.

4 REFERÊNCIAS

FRANKL, Viktor (2008a.). La voluntad de sentido: Conferencias escogidas sobre Logotera-


pia. Viktor Frankl – 3 ed. 2 reimpresión. Barcelona: Editorial Herder.
_____ (1995). Logoterapia e análise existencial: Textos de cinco décadas. Campinas: Editorial
Psy II.
_____ (2003). Psicoterapia e sentido da vida: Fundamentos da Logoterapia e da análise exis-
tencial. 4 ed. São Paulo: Quadrante.
_____ (2008b.). Teoria y terapia de las neurosis: iniciación a la logoterapia e al análisis
existencial. 1 ed. 3 imp. Barcelona: Editorial Herder.
_____ (1978). Psicoanálisis y existencialismo: De la psicoterapia a la logoterapia. Barcelona:
Editorial Herder.
FIZZOTTI, Eugenio. (1992). Frankl e la ricerca del significado della vita. In: _____. Verso
uma Psicologia della Religione: 1. Problemi e protagonisti. Torino (IT): Editrice Elle Di Ci,
p. 203-228.
HALES, Robert; YUDOFSKY, Stuart (2006). Tratado de Psiquiatria Clínica. 4. ed. Porto
Alegre: Artmed.
HOUAISS, Antônio. VILAR, Mauro (2009). Dicionário Houaiss da língua portuguesa (nova
ortografia). Rio de Janeiro: Objetiva.
SCHELER, Max (2003). A posição do homem no cosmos. Tradução e apresentação de Marco
Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
154 Marcus Túlio Caldas e Maria Eugênia Calheiros
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

A QUESTÃO DE PESQUISA COMO


BÚSSOLA: NOTAS SOBRE O
PROCESSO DE PRODUÇÃO DE
CONHECIMENTO EM UMA
PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA
EXISTENCIAL1
Barbara Eleonora Cabral
Henriette T. P. Morato

Sumário: 1. Da Proposta do Texto. 2. Sobre a Questão-Bússola e sua


Função de Indicar a Direção. 3. Dos Trajetos Possíveis: a Im-
portância do Próprio Caminhar. 4. Sobre a Produção de Com-
preensões a Partir da Pesquisa: de que Conhecimento se
Fala?. 5. Referências.

1 DA PROPOSTA DO TEXTO

Este ensaio constitui-se de apontamentos sobre o processo de pro-


dução de conhecimento, a partir de uma perspectiva fenomenológica exis-
tencial, com base na experiência das autoras, tomando-se fragmentos de al-
guns trabalhos a título de ilustração dos pontos de vista defendidos2. Como
argumento central, afirmamos que o cuidado na elaboração de uma questão
de pesquisa constitui etapa primordial para um desdobramento pertinente de
toda a pesquisa, de modo a ser caracterizada como bússola do processo.
Assim, importa refletir sobre o mérito de uma questão. Imaginamos
que toda questão mereça ao menos uma tentativa de resposta. O fato de uma

1
Este capítulo refere-se a uma versão atualizada do artigo “Considerações metodológicas a
partir da formulação de uma questão para pesquisa”, publicado na Revista de Psicologia
da Unicap Interlocuções (a. 3, n. 1/2, jan./dez. 2003).
2
Em especial, recorremos à dissertação de mestrado de Barbara Cabral, apresentada ao
Programa de Mestrado em Psicologia Clínica da UNICAP em 2004, sob o título Carto-
grafia de uma ação territorial em saúde: transitando pelo Programa Saúde da Família,
orientada por Henriette Morato.
156 Barbara Eleonora Cabral e Henriette T. P. Morato

questão qualquer se apresentar, apropriando-se do pesquisador, justifica per


se o movimento de buscar compreensões acerca dela. As questões trazem a
possibilidade de por em ação a inquietação na direção da procura de sentido
e da sensação de conforto que, ilusoriamente, pensamos poder encontrar a
partir de uma resposta suficientemente convincente.
Entretanto, qualquer tentativa de resposta que se descubra – ou ela-
bore – para a questão que nos colocou em movimento irá imediatamente
provocar novas indagações. O inquietar-se é característico do ser humano.
Lançar-se em uma caçada constante para encontrar outros sentidos, outras
configurações, outros horizontes, outras descobertas parece tarefa funda-
mental de quem percebe o destinar-se como marca do humano.
Encarar e reconhecer a mobilização produzida em nós por algo que
nos escapa à compreensão é a atitude básica de quem, além de ser espectador
da vida, assume o desafio de dela se fazer participante, acolhendo a possibi-
lidade, característica da condição humana, de tecer sentido, de fabricar co-
nhecimento. Ao aceitar essa condição de artesão de sentido, de construtor de
conhecimento e de vida, o ser humano passa a se nutrir de seus questiona-
mentos, de suas inquietações, de seu desalojamento diante do ineditismo ou
imprevisibilidade da existência, para produzir-se por ato transformador, ou
seja, por em ação sua capacidade de criar.
Recorrendo a Arendt (2001), pode-se compreender ação em seu ca-
ráter iniciador, como a capacidade de começar, de empreender, de iniciar
algo. Na ação, revela-se o mais próprio do humano: sua possibilidade de
criar, em sua coexistência singular e plural, destacando-se aí o aspecto políti-
co da sua condição. Por ser capaz de agir, pode-se esperar do homem o ines-
perado, sendo-lhe possível realizar o infinitamente improvável. Porque cada
homem é singular na coexistência: na condição da pluralidade, o homem
vive como ser distinto e singular entre iguais.
Pesquisar é uma das infinitas maneiras de exercitar essa possibili-
dade criativa. Toda pesquisa se origina a partir de uma questão. Questões são
próprias do humano, enquanto produtor de sentido, por sua condição de ser
comunicacional. Nessa perspectiva, as inquietações experimentadas pelo
pesquisador referem-se a alguma dimensão de sua existência, refletindo um
não saber(-se) por inteiro: a pessoa se mobiliza por questões que a colocam
diante da impossibilidade (ainda que momentânea) de compreender algo que
lhe diz respeito ou implica de alguma forma. Dito de outro modo, aconteci-
mentos ou fenômenos que se apresentam ao humano demandam um posicio-
namento ou um situar-se em relação ao que se mostra, revelando-se sua con-
dição relacional consigo e com o que o envolve.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Nesse sentido, pesquisar é tão somente construir uma forma de


olhar para algo, de tentar compreender alguma situação que parece enigmáti-
ca a alguém. Cada questão comporta diversos pontos de vista e pode provo-
car diferentes modos de pesquisa. De qualquer maneira, a questão que brota
como crucial para um pesquisador, em determinado momento, tem um cará-
ter próprio, que se relaciona com aquela pessoa em particular. Esse é um viés
assumido, que não invalida ou ignora a necessidade de refletir e buscar escla-
recer a relevância social e pública da pesquisa a ser gestada pela questão. “O
interrogador faz parte do que ele quer saber e do que ele pode ver. Ele é ele-
mento constituinte desse olhar em que tudo o que é tem sua chance de apa-
recer, mesmo que como mera testemunha”, como enfatiza Critelli (2006, p.
149, grifo da autora).
Explicitar ou circunscrever uma questão vai depender de uma relação
extremamente singular entre o pesquisador e a questão. O pesquisador, uma vez
capturado pela inquietação, sente-se compelido a buscar sentido para aquilo que
fez vibrar sua curiosidade. Chegar a uma configuração satisfatória da questão
exige um processo reflexivo, que, por remeter à trajetória do pesquisador e se
relacionar com sua experiência, envolve aproximação com o que vai se desve-
lando paulatinamente como preocupação, numa ação contínua que lembraria a
retirada de camadas de uma cebola: ao fim, não há um “centro” da questão, mas
o que pôde se elaborar no decurso como objetivo crucial a ser atingido a partir
da investigação. Quando se reconhece a questão movente – e isto ocorre apenas
com uma clareza relativa, visto ser a questão escorregadia e multifacetada... –,
parece se apresentar aquilo que é fundante para nortear o trabalho de pesquisa.
Desse modo, a questão se mostra como a bússola da pesquisa, indicando cami-
nhos possíveis para levar a investigação adiante.
Um trabalho de pesquisa assim compreendido é necessariamente
autoral, tecido a partir da experiência do pesquisador, desdobrando-se no
contexto existencial, marcado pela condição de ser-no-mundo-com-outros.
Assumimos que as produções humanas brotam da e na coexistência – simul-
taneamente singular e plural – característica da circunstância de ser humano.
Todo o trabalho de pesquisa – desde o polimento da questão, definição de
objetivos, pesquisa bibliográfica, elaboração do método, trabalho de campo,
produção de compreensões a partir da matéria-prima colhida até a escrita
final do que vai sendo desvelado – é uma experiência, em seu sentido mais
genuíno. Implica, portanto, experimentação de cada etapa e elaboração dos
efeitos das afetações ao longo do processo, em um pensar-sentir contínuo,
considerando o que surge e, sobretudo, como surge no processo de pesquisa.
Destacamos que esse é um modo possível de compreender e realizar pesqui-
sa de caráter fenomenológico.
158 Barbara Eleonora Cabral e Henriette T. P. Morato

2 SOBRE A QUESTÃO-BÚSSOLA E SUA FUNÇÃO DE


INDICAR A DIREÇÃO

Para exemplificar esse modo de pensar, lançaremos mão de experi-


ência acumulada na elaboração de algumas pesquisas delineadas sob esse
prisma, recortando aspectos que importam a essa discussão. Destarte, em
pesquisa sobre ação territorial em saúde desenvolvida no contexto da Estra-
tégia Saúde da Família – ESF (Cabral, 2004), configurou-se a seguinte
questão: como poder refletir acerca da prática de profissionais de saúde
pública, engajados em estratégias de ação no território, através do Progra-
ma Saúde da Família, como geradora de um sentido ético e político, partin-
do da compreensão e experiência destes profissionais?
Em busca dessa reflexão, considerou-se necessário problematizar o
sentido da ação territorial como intervenção em saúde pública, a partir da
experiência de profissionais nela envolvidos. Tal problematização exigia
uma compreensão de como esses profissionais apropriavam-se dessa estraté-
gia de ação territorial, com base nos relatos de suas experiências, além de
uma mapeamento do sentido que eles imprimiam à sua prática nesse modelo
de intervenção em saúde pública. Assim, buscou-se engendrar uma articula-
ção do direção assumida com a possibilidade de um sentido ético e político
no âmbito da atuação em saúde coletiva.
Em outra pesquisa (Cabral et al, no prelo), delineou-se a seguinte
questão-bússola: como profissionais de equipes de Saúde da Família de
Juazeiro-BA se percebem no processo de articulação da rede de cuidados em
saúde mental, após experiência na Linha de Extensão/Ensino/Pesquisa do
PET-Saúde3 sobre essa temática? Mais especificamente, buscou-se cartogra-
far a ação/intervenção em saúde mental de equipes de Saúde da Família
(EqSFs) daquele município, tomando-se cartografia como a descrição e
compreensão das práticas, a partir de uma imersão em campo dos pesquisa-
dores; paralelamente, intencionou-se compreender as responsabilidades que
as EqSF se atribuíam na rede de atenção em saúde mental e, finalmente,
destacou-se o propósito de conhecer como esses profissionais avaliavam as
ações do Grupo PET nas suas unidades de Saúde da Família (USFs) no to-
cante às possíveis repercussões em sua atuação nesse campo.

3
O Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde) consiste em iniciativa
do Ministério da Saúde em articulação com o Ministério da Educação que visa promover
mudanças na lógica do processo formativo em saúde, de modo a aproximá-lo das condi-
ções das redes públicas de saúde e das necessidades dos usuários do SUS, articulando pro-
fessores, profissionais e estudantes de cursos de graduação em saúde na formação de gru-
pos de aprendizagem tutorial.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

As duas pesquisas supracitadas se aproximam no que se refere ao


cenário das práticas que se busca compreender – o da atuação de equipes
da Atenção Primária em Saúde no Brasil – embora em tempos e espaços
diferentes. Em ambas as situações, na tentativa de olhar mais profunda-
mente as inquietações que dispararam as pesquisas – processo que se refere
à tentativa de circunscrever a questão – optou-se por um caminho que re-
correu à fenomenologia existencial, pautada no pensamento de Heidegger,
e a compreensão de narrativa, a partir de Walter Benjamin, por sua arti-
culação com a elaboração de experiência vivida. A seguir, apresenta-se o
motivo dessa escolha.
Em relação à fenomenologia, torna-se importante esclarecer que há
diversas articulações metodológicas possíveis, sendo, portanto, fundamental
indicar a referência teórica que está sendo utilizada. Não nos parece exagero
afirmar que existem “fenomenologias”, tendo em vista as diferentes compre-
ensões e métodos possíveis que se enquadram em uma atitude nomeada de
fenomenológica. Para tanto, torna-se fundamental reconhecer que o pensa-
mento de Husserl inaugurou, mais sistematicamente, um modo fenomenoló-
gico de produção de conhecimento, que implica, até certo ponto, uma ruptura
com a tradição epistemológica do final do século XIX, baseada na separação
sujeito-objeto. Como enfatiza Figueiredo (2000, p. 175), para Husserl os
objetos “são apenas os objetos da e para a consciência, e seu método é a
contemplação imediata destes objetos tais como se dão na experiência es-
pontânea e pré-reflexiva”. Essa valorização da experiência do sujeito na rela-
ção com o objeto e o destaque à perspectiva de intencionalidade da consci-
ência introduzem certamente um diferencial.
Contudo, não obstante a profundidade e rigor do pensamento hus-
serliano, em que poderiam ser destacados diversos aspectos que revelam sua
tentativa de ruptura com o paradigma racionalista hegemônico, de caráter
dualista, compreendemos que a sua caracterização mantém fundamental-
mente um traço essencialista, a partir da valorização das estruturas de uma
consciência transcendental, relativas a um sujeito transcendental. Compreen-
demos que a tradição fenomenológica inaugurada por Husserl revela sua
potência, sobretudo, pelos desdobramentos que provocou no campo da com-
preensão epistemológica, sendo inúmeros os pensadores que partiram do
solo por ele fundado para produzir compreensões em torno do processo de
conhecimento, da existência humana e do próprio mundo em uma perspecti-
va fenomenológica. Essas produções implicaram, em geral, redimensiona-
mentos profundos da fenomenologia, destacando-se aí a filosofia de Heide-
gger, considerado um dos pensadores que romperam com a tradição metafí-
sica de conhecimento, tomando a questão do ser e da verdade não apenas em
seu aspecto epistemológico, mas existencial. De acordo com Critelli,
160 Barbara Eleonora Cabral e Henriette T. P. Morato

As articulações metodológicas emergentes da fenomenologia terão em


comum a interpretação de que o ser não é a identidade lógico-conceitual
do que quer que seja, mas uma condição ontológica do ente homem:
uma condição na qual a vida lhe foi dada e da qual ele tem que dar conta
até seu morrer (como indivíduo e como espécie). (Critelli, 2006, p. 144,
grifo da autora)

Respaldamo-nos em uma atitude fenomenológica que corresponde


a uma visão de mundo específica, que se baseia na interpretação de que ser é
condição ontológica do homem, não podendo ser substantivado ou entifica-
do. Desse modo, ser pode ser referido enquanto expressão verbal, sendo
conjugado de modo singular, a partir da existência de cada homem, e plural,
por ser também coexistência. Tendo como norte a compreensão de homem
como Dasein – ser-aí –, com base no pensamento heideggeriano, destacamos
sua tarefa fundante: cuidar de ser. Sendo abertura e finitude, cabe ao huma-
no traçar, permanentemente, o sentido de ser no mundo com outros.
A fenomenologia existencial de Heidegger fundamenta a analítica
do sentido, elaborada e apresentada por Critelli (2007), enquanto uma arti-
culação metodológica possível ao se optar por uma atitude fenomenológica.
Sua proposta metodológica se respalda, ainda, em elementos do pensamento
de Hannah Arendt. O retorno a Arendt é particularmente relevante conside-
rando as pesquisas tomadas como exemplo nesse texto, por se situarem em
contextos públicos de intervenção em saúde, estando aí implicada a constru-
ção de sentido ético e político para a atuação. A brilhante discussão arendtia-
na sobre a condição humana, ressaltando o agir político – que ocorre entre
humanos, na busca de definição de rumos coletivos – como constitutivo da
coexistência humana, abre possibilidades de compreensão bastante férteis
aos fenômenos estudados. Assim, a partir da analítica do sentido foram ela-
boradas as reflexões que seguem.
Consideramos que a coconstituição homem e mundo, apontada
pela fenomenologia existencial, implica outro modo de compreender o ho-
mem e o mundo. Sendo o homem no mundo, a preconizada separação sujei-
to-objeto como única possibilidade para conhecimento da verdade poderia
ocultar outras vias possíveis de compreensões acerca do que se investiga.
Como seria possível eliminar o humano e os fenômenos da subjeti-
vidade do processo de construção do conhecimento? A proposta de assumir
que o ser humano – simultaneamente singular e plural – e os seus estados de
ânimo constituem peça fundamental na engrenagem que produz conheci-
mento e ciência está implicada na atitude fenomenológica. Tal compreensão
indica uma diferença radical e fundante em relação ao que denominamos,
aqui, de modo tradicional de construção do conhecimento, calcado no ideal
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

científico moderno cunhado por Descartes – e dominante até hoje –, que se


apoia em uma perspectiva dicotômica.
A compreensão da condição ontológica do homem como coexistên-
cia apresenta-o como em meio a uma trama significativa, que o remete à busca
de sentido. Sendo abertura ao ser, é posto ao homem ser como sua tarefa cons-
titutiva primordial. Desta forma, o sentido não é dado nem fornecido. Ainda
que ao nascer o homem seja “enredado”, no sentido de ser jogado em uma
trama já configurada, em um cenário específico, cabe a ele dar um norte, uma
destinação à sua existência. Dar um norte à existência é um empreendimento.
O homem deve responder à tarefa existencial de imprimir um sentido à sua
vida. Fugir ou mesmo aceitar tudo o que já está posto como imposição de um
“destino”, entendido com caráter de fatalismo, serão escolhas possíveis.
O homem não é necessariamente prisioneiro das diversas tramas
em que é colocado ao vir ao mundo. Obviamente, as heranças não podem ser
negadas, mas não têm um caráter determinista nos rumos da sua existência.
O existir do homem é ir-sendo, vir-a-ser, portanto, pleno de possibilidades,
as quais são assumidas, ou não, ao longo desse existir. A direção vai sendo
construída durante a vida, sendo de responsabilidade do próprio humano, o
qual – não se deve esquecer – está inserido em uma teia de relações e afeta-
ções, no mundo, existindo com outros.
Do nascimento à morte, não se pode escapar a esse movimento de
busca de sentido para a existência. A compreensão de que não há sentido dá a
ver a abertura existencial como condição humana. Dar destinação ao ser, tor-
nando-se propriamente o que se é, constitui tarefa intransferível do homem.
Na busca do homem por sentido, o mundo apresenta-se a ele não
como real, ou seja, como mero objeto, lançado diante dele para ser conhecido.
Sendo afetado por ser no mundo com outros, compreender o que se mostra é
fundamental para encontrar-se em meio ao mundo e aos outros. É nesse senti-
do que o homem só pode saber de si, do mundo e dos outros na condição de
situado. Por essa condição, cuidar de existir é a particularidade humana.
A existência humana constitui-se em um universo de possibilida-
des. Nesse sentido, cada compreensão que se apresenta é apenas uma inter-
pretação possível do real, ou, uma das realizações do real. Depreendemos
dessa reflexão a importância de atitudes não arrogantes, na perspectiva de
que não se pode pretender atingir uma verdade que dê conta de todos os fe-
nômenos e que possa ser referendada por todos. Assim, as verdades são
“verdadeiras” apenas em um determinado contexto.
Não se trata aqui de uma compreensão parcial, que revelaria nas
entrelinhas uma crença em uma verdade totalizante. As compreensões são
162 Barbara Eleonora Cabral e Henriette T. P. Morato

contextuais, relativas, circunstanciais, singulares. O homem, sendo no mun-


do e com outros, afeta e é afetado, em uma trama sempre cambiante. Neste
emaranhado, o seu olhar só se constitui enquanto olhar a partir do que é vis-
to; outrossim, o que é visto só se constitui enquanto algo enxergado a partir
do seu olhar.
Portanto, a atitude fenomenológica em pesquisa apresenta-se sem-
pre implicada, longe de qualquer perspectiva de neutralidade, visto que o
sendo aí é que torna possível a produção de sentido. O que o humano realiza
como tarefa de busca de sentido mostra-se também pelo que ele faz como
trabalho em ação; na ação de pesquisar, também se entrelaça a tarefa de bus-
ca de sentido de ser no mundo com outros.
O modo fenomenológico de compreender e realizar pesquisa que
discutimos legitima-se por essas considerações. Implica um fazer e refletir
em ação, elaborando compreensões possíveis acerca de um determinado
fenômeno, seguindo o fluxo da narrativa de nossos interlocutores – ou cola-
boradores da pesquisa. Trata-se, assim, de processo hermenêutico, de produ-
ção de interpretação com base na experiência vivida, envolvendo pesquisa-
dores e interlocutores. Para dar conta dessa proposta, tal método abrange
aspectos específicos, alguns dos quais indicados abaixo4:
– O pesquisador precisa tentar se aproximar dos seus conheci-
mentos prévios em relação ao problema em questão, exercitan-
do um autoesclarecimento;
– O problema em questão sempre está em uma trama, um con-
texto, uma teia de nexos, construída por todos os envolvidos;
– O pesquisador precisa tentar compreender os nexos (como sen-
tido), atentando também ao que está velado;
– É importante que haja um registro das impressões, inclusive das
sensações e sentimentos do pesquisador durante todas as fases
da pesquisa;
– Os sujeitos são interlocutores, sendo importante que nas conver-
sas eles possam expressar as suas percepções, sentimentos e
impressões;
– Na análise dos registros, é importante observar atentamente os
conflitos, os paradoxos e as incongruências, pois neles a trama
se revela de modo ainda mais particular;

4
Anotações a partir do Seminário “O método fenomenológico como investigação: a Analí-
tica do Sentido”, ministrado por Dulce Critelli, em abril de 2002, na Universidade Católi-
ca de Pernambuco, Recife-PE.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

– O sentido buscado não se aprisiona nas diversas formas de seu


registro;
– A pro-dução5 de sentido é infindável, não havendo como prever
desfechos ou resultados;
– O real é compreendido como fenômeno em realização e não
como representação, de modo que sua interpretação é uma bus-
ca de compreensão, não pressupondo, assim, um sentido em si;
– É uma ilusão acreditar que se possa estar de modo neutro em
uma situação;
– Independentemente do instrumento, é importante ter clareza da
intenção, sendo mais importante o modo;
– O pesquisador também é participante;
– Tudo importa – o que aparece e como aparece – pois o sentido
pode se revelar através de qualquer coisa;
– O olhar precisa se voltar para a diversidade;
– À medida que vai sendo desvendada a trama, novas destinações
podem ser impressas ou, ao menos, apontadas.
Todos esses aspectos são tomados como basais no desenvolvi-
mento de um trabalho de pesquisa na perspectiva fenomenológica existencial
defendida. A intrínseca relação apontada entre o sujeito que pesquisa e o seu
“objeto”, provocando a impossibilidade de uma objetividade neutra ou de
uma subjetividade anulada, fundamenta um modo mais flexível diante do
processo de construção do conhecimento. Conhecer, etimologicamente, re-
mete a ir com, a partir da relação entre cognoscere (nascer com) e coire
(coito). De acordo com Telles (1979), citada por Morato (1989), o processo
de conhecimento não prescinde de uma fusão entre sujeito e objeto para nas-
cer, caracterizando-se uma relação de conhecimento com penetrabilidade.
Por outro lado, a realidade não é algo que pode ser apreendido a
partir de um recorte de pesquisa. Qualquer teoria que se construa a respeito
de coisas do mundo é tão somente uma maneira de ver, como indica o senti-
do originário da palavra. O que é factível ao pesquisador é uma interpretação
do real, que “não é uma façanha lógico-conceitual, mas uma possibilidade de
compreensão”, como indica Critelli (2006, p. 151). A adoção de um modo
fenomenológico existencial de pesquisar permite essa flexibilidade, a partir

5
Referimo-nos aqui ao sentido originário do verbo pro-duzir, que vem do verbo latino
producere, que é uma locução verbal do advérbio pro+ducere, significando na direção de
conduzir adiante.
164 Barbara Eleonora Cabral e Henriette T. P. Morato

da compreensão de que a existência é na coexistência. Nesse modo de cons-


trução de conhecimento, intenta-se extrapolar a lógica das polaridades, valo-
rizando-se a mútua afetação e interpenetração, que se revelam na condição
humana de ser no mundo com outros.
Retornando às pesquisas ilustrativas, se a proposta era refletir sobre
o sentido da ação territorial em saúde pública, a partir da experiência de pro-
fissionais dessa área envolvidos com tal forma de intervenção, perguntou-se:
que modo seria mais próprio para se aproximar dos interlocutores a fim de,
cumplicemente, conduzir a questão que deu origem à pesquisa? Naquele
caso, considerou-se pertinente a utilização da metodologia de relatos orais
como via de acesso ao modo como esses profissionais se situavam em sua
prática, que significou proporcionar um espaço para que esses profissionais,
contando de seu fazer, pudessem refletir a respeito de seu papel enquanto
cuidadores, e não meros técnicos de saúde. Um espaço de fala, que se cons-
tituiu como uma forma de cuidar de quem cuida, ou seja, de quem toma o
cuidado do outro como sua principal atribuição. Quiçá seja mais apropriado
referir-se à disponibilização de uma oportunidade para que esses trabalhado-
res, refletindo acerca de sua ação, pudessem cuidar do seu modo de cuidar.
Na pesquisa em que se buscava compreender o modo como profis-
sionais de EsSF se percebiam na rede de atenção em saúde mental, após uma
intervenção via projeto de pesquisa-intervenção por meio do PET-Saúde, que
caminho se revelaria mais pertinente para levar adiante a investigação? A
própria caracterização da proposta da linha de PET-Saúde já implicava uma
inserção em campo dos integrantes, de caráter cartográfico, que viabilizou a
construção de diários de bordo e relatórios que foram fundamentais na cons-
tituição da matéria-prima (como dado “colhido”). Além disto, foram deline-
ados momentos grupais em que os interlocutores foram provocados a falar de
sua experiência como profissionais da Atenção Primária no cuidado em saú-
de mental, estimulando-se a narração de sua experiência nesse campo.
Segundo Critelli (Ibid.), cuidar de ser, tarefa humana por excelên-
cia, estrutura-se sobre uma escolha com tríplice aspecto: a pessoa escolhe do
que vai cuidar, como vai cuidar e como vai cuidar do cuidar. A escolha do
que cuidar e do modo de cuidar são mais culturais, disponíveis a todos,
empreendidos hegemônica e uniformemente por todos, remetendo ao âmbito
da significação, da construção da trama do mundo. Já a escolha do modo de
cuidar do modo de cuidar remete ao âmbito do sentido. Esse sentido mani-
festa-se originariamente através dos estados de ânimo. O sentido que ser faz
se apresenta nos humores, nas emoções.
As questões de pesquisa se lançavam atrás do sentido de cuidar, na
prática de profissionais de saúde engajados na atuação em saúde no territó-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

rio. Criar um espaço para que os trabalhadores contassem de si, falassem de


sua prática em saúde, de sua experiência nesse cuidar do outro, poder-se-ia
revelar como uma oportunidade para que refletissem sobre o cuidado com a
forma de cuidar, perspectivando a possibilidade de construção de um fazer
com sentido ético e político.
A metodologia de relatos orais se sintoniza com uma definição de
narrativa adotada nas duas pesquisas, baseada nas reflexões de Walter Ben-
jamin. Em seu texto “O Narrador” (1985), Benjamin faz uma articulação
entre narrativa e experiência através da análise da figura do narrador. Desta-
cando o caráter artesanal da narrativa enquanto forma de comunicação, este
autor ressalta a ambiguidade que sustenta a elaboração de experiência,
acontecendo a partir de dois polos: o aventurar-se e sair pelo mundo, ou seja,
o viajante, condição que possibilita uma singularização, e o conhecer sua
própria história, no próprio lugar em que se está, ou seja, o sedentário, con-
dição que possibilita atualizar o passado e construir o sentimento de pertença
coletiva.
Ancorando-nos nessa compreensão, defendemos que a elaboração
de experiência implica sair do lugar próprio, tecendo compreensões a res-
peito da vida que se vive, demandando um trânsito existencial, que é a pró-
pria experiência de que brota a produção de sentido; ao mesmo tempo, im-
plica uma apropriação do lugar em que se vive e do modo como se vive, na
busca de construção de sentido como direção. Assim,

a experiência reporta a uma elaboração do fluxo do vivido que ocorre,


no tempo, pela sedimentação e incorporação constantes do diverso e
do plural que compõem a vida de um indivíduo e a narrativa é a forma
de expressão afinada com a pluralidade de conteúdos e a constante
mutação no tempo características dessa elaboração. (Schmidt, 1997,
pp. 67-68)

A autora discute que os relatos que um sujeito faz de sua experiên-


cia adquirem o estatuto de registro dessa experiência, sendo, concomitante-
mente, oportunidades de sua elaboração e de transmissão. Podemos daí de-
preender que relatos, depoimentos, narrações são registros possíveis da expe-
riência, que constituem matéria-prima, em seu estado bruto, sendo fonte de
produção de compreensões no ato de pesquisar. Da articulação entre narrati-
va e experiência, fundamenta-se a importância e pertinência da metodologia
de relatos orais como modo possível de produção de conhecimento.
Se a narrativa pode ser considerada, por um lado, como o modo de
apresentar uma experiência, ou seja, algo pelo qual já se passou, algo que foi
vivenciado e sobre o que se pôde elaborar, e, por outro, como momento do
166 Barbara Eleonora Cabral e Henriette T. P. Morato

próprio desenrolar da experiência, de elaboração da experiência, ela assume


o caráter de forma de comunicação. Narrativa é ação, é forma, é sentido,
podendo ser acessada em diferentes atos, através de diversos conteúdos. A
fim de tornar isto mais explícito, reafirmamos: depoimentos, relatos, históri-
as de vida são nada mais que atos narrativos – remetendo à elaboração de
experiência – que não se deixam aprisionar por estes conteúdos comunica-
dos, entretanto, podem revelar-se por e através deles, como experiência viva.
Dessa maneira, refletiu-se que a construção de um espaço em que
profissionais de saúde comunicassem a experiência da sua prática poderia
ser um caminho possível para o que se buscava: compreender o sentido
dessa prática, pautada na intervenção no território, visando à articulação
disto com um sentido ético e político para esse fazer. Referimo-nos a um
espaço em que as histórias da prática cotidiana pudessem ser contadas, as
dificuldades da lida diária, comunicadas, as conquistas, ditas, enfim, uma
ocasião em que o sentido do que faziam pudesse ser expresso e, funda-
mentalmente, recriado...
Um método proposto nestes termos acaba se configurando como
promotor de experiência ou, mais propriamente, de elaboração de experiên-
cia. Apresenta-se como uma possibilidade de cuidar de quem cuida, propici-
ando que esse cuidador reflita sobre sua forma de cuidar, gerando sentido
para seu fazer, escapando-se a um viés vitimizante ou culpabilizante.
Trata-se, portanto, de uma pesquisa interventiva, tal como discutida
por Andrade, Morato e Schmidt (2007, p. 194), referindo-se ao que, “da
perspectiva fenomenológica existencial e nietzschiana, é constitutivo da in-
vestigação na área das ciências humanas e sociais, ou seja, a propriedade
intrusiva e modificadora da presença do pesquisador num campo de rela-
ções”. As autoras destacam que o cunho intrusivo/modificador próprio dessa
perspectiva de pesquisa se relaciona à intenção de compreender e encontrar
alteridade(s), o que constitui um valor, assumindo-se a interferência da pre-
sença do pesquisador como parte do próprio pesquisar. O caráter interventivo
pode revelar-se, também, na proposta de atuar no atendimento de alguma
demanda/necessidade, reforçando-se a importância da construção democráti-
ca nos modos de interpretá-la e/ou clareá-la.
Nesse contexto, a interação constante entre pesquisadores e partici-
pantes é um alicerce do processo de produção de conhecimento, de forma
que estes não aparecem como sujeitos da pesquisa, mas como atores/autores
na produção conjunta de ações e reflexões sobre o cotidiano das práticas, ou
seja, interlocutores ou colaboradores. Adjetivar a pesquisa como interventi-
va revela seu caráter de provocação, visando à elaboração em torno do que
se faz, partindo da própria experiência. Não se pressupõe, entretanto, uma
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

configuração específica para as transformações que podem e devem ocorrer:


a intervenção acontece no contexto do encontro entre pessoas, em que a pró-
pria presença já se delineia em seu aspecto interventivo.

3 DOS TRAJETOS POSSÍVEIS: A IMPORTÂNCIA DO


PRÓPRIO CAMINHAR

O caminho nunca se oferece inteiro ao viajante. Ele se mostra e se


constrói na medida em que é trilhado, com base na destinação que vai se
definindo ao longo do trajeto, tendo a questão-bússola como norteadora. No
entanto, mais importante que chegar a dado lugar é o próprio caminhar. O
fundamental é prestar atenção ao que vai se revelando durante o trajeto. Esse
é um ponto axial na feitura de uma pesquisa fenomenológica existencial: o
pesquisador-viajante não pode se deixar capturar pela ânsia de chegar ou de
ter bem determinado, previamente, o caminho a percorrer; antes, precisa se
apropriar dos passos do caminho e dos aspectos das paisagens avistadas.
Assim, cada fase da trajetória que vai se delineando está intimamente co-
nectada com a questão que provocou o pesquisar.
Crucial para a investigação, impulsionada a partir de uma questão
de pesquisa, é o modo escolhido para uma aproximação com o fenômeno a
ser compreendido. No caso das pesquisas ilustrativas, os fenômenos que
despertaram o interesse eram: a ação territorial em saúde através da ESF e a
implicação de EqSF na articulação da rede de atenção à saúde mental. A
configuração das questões de pesquisa indicou trajetos possíveis, que parece-
ram interessantes para abordar as práticas e compreensões num cenário espe-
cífico da atenção à saúde que se pretendia melhor conhecer. A definição do
método (em seu sentido originário: o caminhar ou direção a seguir) deve
resultar de um processo de aproximação com a questão-bússola, demandan-
do inventividade e plasticidade na definição dos melhores modos de se apro-
ximar do que se pretende compreender. Entretanto, é fundamental destacar
que o próprio trânsito – durante a pesquisa – sinalizará rotas pertinentes, na
proporção que o pesquisador vai se afetando pelas descobertas ao longo do
caminho, melando-se na própria experiência de pesquisar, o que poderá reo-
rientar os rumos do pesquisar.
Aqui se revela uma articulação possível com a perspectiva carto-
gráfica, que vem sendo experimentada em várias pesquisas interventivas
realizadas no contexto do LEFE6. Também as pesquisas tomadas como ilus-

6
LEFE é o Laboratório de Estudos em Fenomenologia Existencial e Prática em Psicologia, do
Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do
168 Barbara Eleonora Cabral e Henriette T. P. Morato

trativas neste capítulo recorreram à inserção cartográfica como via de com-


preensão das práticas de saúde nos cenários pesquisados. Buscava-se com-
preender a dinâmica das práticas que ocorriam nos territórios pesquisados,
caracterizada como uma densa teia de nexos e sentido a ser desvelada – in-
clusive no modo de construção – a partir do exercício crítico-reflexivo impli-
cado na pesquisa.
A rigor, assumimos que a entrada em campo, num contexto de pes-
quisa, revela-se como ação ética e política, no modo de implicação e respon-
sabilidade. O ato de pesquisar demanda refletir continuamente acerca da
experiência vivida, estando o pesquisador atento às repercussões de sua pre-
sença em campo e do caráter interventivo do pesquisar.
Muito além de uma simples descrição, a cartografia visa uma com-
preensão dos saberes e fazeres por meio do mergulho do pesquisador nos cená-
rios de sua ocorrência: a compreensão vai se forjando a partir da experiência
de trânsito do visitante (pesquisador) nos territórios em que a ação se cria, no
contexto dos encontros com os que ali habitam e/ou circulam. Como indica
Morato (1999), ao longo da peregrinação nos territórios que busca conhecer, o
cartógrafo – pesquisador-viajante – vai marcando e se deixando marcar pelos
encontros vividos, colecionando tatuagens de várias texturas em sua pele-
existência, como o arlequim na história contada por Serres7. Compreende-se,
desse modo, que cartografia não se descola do território em que se transita –
vivo e pulsante. O trabalho do cartógrafo se caracteriza por um arremesso de si
nas tramas existenciais que busca compreender, sendo que esse conhecimento
ocorre – ou se produz – na medida em que participa da vida que ali transcorre,
num compromisso visceral com a vida mesmo e suas intensidades, implicando
uma abertura e sensibilidade ao que ali se constitui como configurações:

O cartógrafo é um verdadeiro antropófago: vive de expropriar, se apro-


priar, devorar e desovar, transvalorado. Está sempre buscando elemen-
tos/alimentos para compor suas cartografias. Este é o critério de suas es-

Instituto de Psicologia da USP, que desenvolve atividades de formação, pesquisa e extensão


sob coordenação da Profa. Dra. Henriette T. P. Morato. <http://www.lefeusp. net/>.
7
Michel Serres, em “Filosofia Mestiça – Le tiers-instruit. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1993”, conta a história de Arlequim que, de volta de uma expedição às terras lunares,
tenta defender, em uma entrevista coletiva, que em toda parte tudo é idêntico ao que pode
ser visto sobre a Terra, decepcionando a audiência. Entretanto, ao tentar sustentar tal afir-
mação, é desmentido por seus vários casacos, que vai tirando um a um: todos uma compo-
sição descombinada, feita de pedaços mil, multicoloridos, como uma espécie de mapa-
múndi, que revelavam as marcas adquiridas pelo trânsito nas terras distantes. “Cebola, al-
cachofra, Arlequim nunca acaba de se desfolhar ou de escamar suas capas cambiantes”
(p. 3), até que fica nu e a grande revelação acontece: tatuada, também a sua pele é como
os seus vários casacos, indicando sua mestiçagem.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

colhas: descobrir que matérias de expressão, misturadas a quais outras,


que composições de linguagem favorecem a passagem das intensidades
que percorrem seu corpo no encontro com os corpos que pretende enten-
der. Aliás, “entender”, para o cartógrafo, não tem nada a ver com expli-
car e muito menos com revelar. Para ele não há nada em cima – céus da
transcendência –, nem embaixo – brumas da essência. O que há em cima,
embaixo e por todos os lados são intensidades buscando expressão. E o
que ele quer é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, in-
ventar pontes para fazer sua travessia: pontes de linguagem. (Rolnik,
1987, s/p, grifos da autora)

Envolto nessa atmosfera de pesquisa-intervenção-viagem, no ato


contínuo de se lançar no campo, o pesquisador alimenta-se dos contatos di-
versos que vive, fazendo anotações sistemáticas do que presencia e participa:
sentimentos, pensamentos, frustrações, alegrias, percepções, impressões,
fragmentos de conversa – pois tudo interessa. Assim, importa elaborar, ao
longo da imersão em campo, textos que registrem principalmente o que brota
das afetações a partir dos encontros vividos. Como é próprio de uma pro-
posta de pesquisa cartográfica, além do que é pesquisado, há uma intenção
de registrar o próprio processo de pesquisar (Passos & Barros, 2010), inclu-
indo as próprias impressões e as que se tem oportunidade de colher dos in-
terlocutores. Tais registros extrapolam, assim, um caráter meramente descri-
tivo, constituindo um diário de bordo, instrumento fundamental em estudos
desse caráter.
Passos e Barros (Ibid.) indicam que a cartografia empreende uma
reversão no sentido tradicional de método: em vez de um caminhar para
atingir metas estabelecidas a priori, valoriza-se, sobretudo, o próprio cami-
nhar – e o que nele vai se constituindo a partir do que é experimentado no
campo. Destacam, assim, que “a diretriz cartográfica se faz por pistas que
orientam o percurso da pesquisa sempre considerando os efeitos do processo
do pesquisar sobre o objeto da pesquisa, o pesquisador e seus resultados”
(Passos & Barros, 2010, p. 17). Estes autores se alinham com uma perspecti-
va de pesquisa-intervenção, compreendendo a inseparabilidade entre conhe-
cer/fazer ou pesquisar/intervir e considerando o plano da experiência como
nascente da construção de conhecimento.
Para Passos, Kastrup e Escóssia (2010), o método cartográfico não
se define por um “conjunto de regras para ser aplicadas, nem um saber
pronto a ser transmitido” (Ibid., p. 201). Trata-se, sobretudo, de um processo
a ser praticado, dado ser aprendido apenas a partir do mergulho na experiên-
cia, referindo-se, muito mais, a um contínuo “refinamento da percepção do
que um apelo a um saber acumulado ou à memória” (Ibid., p. 201). Assim, a
experiência de pesquisa suscita a ampliação da sensibilidade ao que se mos-
170 Barbara Eleonora Cabral e Henriette T. P. Morato

tra relevante, a partir da afetação e do “aprendizado da própria atenção ao


presente vivo” (Ibid., p. 201). As práticas cartográficas propõem-se, especi-
almente, ao acompanhamento de processos, assumindo-se o caráter proces-
sual do pesquisar. Estes autores discutem pesquisa-intervenção, delineando a
cartografia como método, a partir de uma afinidade teórica como o pensa-
mento de Deleuze e Guattari. Cabe frisar que estes filósofos respaldaram
seus modos de compreensão epistemológica, significativamente, na filosofia
nietzscheana.
Neste capítulo, seguimos uma rota para compreensão de cartografia
que repousa na Fenomenologia Existencial. Não obstante, reconhecemos
uma aproximação com a perspectiva acima indicada, sobretudo pela valori-
zação da experiência como fonte de coprodução de conhecimento e pelo
distanciamento do modelo de ciência moderna, que privilegia métodos fun-
damentados na separação sujeito-objeto e no conhecimento representacional.
Como dantes indicado, a cartografia – como modo de conhecer
atuando, pisando no território e entrando em contato com as diversas reali-
dades ali existentes – vem sendo intensa e extensivamente experimentada em
pesquisas interventivas no contexto do LEFE. De acordo com Braga (2010),
evidencia-se a íntima articulação entre clínica e pesquisa assumida nesse
modo de compreender e coproduzir conhecimento, que foi se delineando
com características bem peculiares, especialmente a partir da constituição de
projetos de Atenção Psicológica em Instituições, como a Polícia Militar e a
FEBEM. A cartografia tem sido o nome utilizado para se referir à “práxis de
investigação e configuração do espaço social”, compreendendo-se que

o conhecimento do território implica um reconhecimento do pedido ini-


cial, manifestado por representantes da instituição, a partir de seu ques-
tionamento junto aos atores que partilham o espaço social, desvelando
uma demanda institucional em que se entrelaçam múltiplas visões, angústi-
as e impasses vividos no cotidiano, embora nem sempre expressos e relata-
dos oficialmente. (Braga, 2010, p. 70)

Ainda segundo a autora, a prática cartográfica desenvolvida nestes


projetos foi gestando um modo próprio de investigação, que se articula à
experiência de plantão psicológico vivida em alguns desses contextos insti-
tucionais. Dessa forma, foi constituindo-se uma articulação entre a diferenci-
ação queixa explícita/demanda constituída no processo clínico no plantão
psicológico e a diferenciação entre pedido institucional/demanda dos sujeitos
sociais revelada na cartografia. O entrelaçamento clínica/pesquisa vem, por-
tanto, fortalecendo-se e revelando implicações mútuas ao longo das práticas,
de forma que as próprias compreensões de clínica e pesquisa vão ganhando
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

novos matizes com base na experiência vivida nos projetos de pesquisa in-
terventiva. Destaca-se que o trabalho realizado se articula ao pensamento de
autores da Psicologia Social Clínica, que valorizam a importância da clínica
na investigação em ciências humanas, tais como Levy, 2001; Enriquez,
2001; Araújo e Carretero, 2001 e Vieira, 2001 (apud Braga, 2010).
Retomando as pesquisas ilustrativas e a trilha epistemológica acima
indicada, pensou-se que se a proposta seria compreender como profissionais
ligados à ESF encontravam sentido para o que faziam ou, no outro cenário
de pesquisa, como se percebiam na articulação da rede de atenção à saúde
mental, era necessário deles aproximar-se, ouvindo-os contar sobre a experi-
ência na lida diária da prática que exerciam. Ainda mais, se o interesse diri-
gia-se a um tipo de prática, como o da ação territorial em saúde ou do cuida-
do em saúde mental, e a como se realiza, considerando-se que essas ações
são configuradas tendo como eixo o trabalho em equipe, imaginou-se que
seria significativo criar oportunidades de encontro em grupo com esses pro-
fissionais. Em ambos os casos, portanto, surgiu a ideia de criar arranjos me-
todológicos que contemplassem a possibilidade de narração da experiência
desses profissionais em contextos coletivos.
Porém, como poderiam ser constituídos esses grupos? Na primeira
pesquisa, voltada ao sentido da ação territorial em saúde para profissionais
ligados à ESF, os interlocutores seriam solicitados a historicizar essa experi-
ência, a partir do recorte do trabalho, por meio da narração. Após a escolha
do lugar8, apenas um aspecto do problema estava encaminhado, pois o cená-
rio era complexo, constituindo-se de diversos personagens/atores que poderi-
am ser contemplados na formação do grupo. Nessa direção, considerou-se
fundamental constituir um grupo com garantia de representatividade dos
diversos programas e personagens em articulação neste campo, o que ocor-
reu após um reconhecimento do campo de pesquisa. A constituição do grupo
acabou assumindo a característica de um mosaico, pela junção de ato-
res/autores de equipes distintas, mas que se inter-relacionavam por um obje-
tivo comum: operacionalizar um trabalho a partir de uma ação territorial em
saúde, tendo o então chamado Programa Saúde da Família como eixo.
A colheita das narrativas dos interlocutores aconteceu em dois
momentos: uma discussão coletiva com os profissionais, provocada pela
solicitação de que contassem sobre a experiência na prática dirigida à ação

8
Pareceu apropriado, diante do que se pretendia compreender e do lugar onde a prática
profissional da pesquisadora se situou por pouco mais de quatro anos, definir que esses
interlocutores fossem profissionais de saúde pública do município do Cabo de Santo
Agostinho-PE, envolvidos na estratégia de ação territorial em saúde a partir do então
chamado Programa Saúde da Família.
172 Barbara Eleonora Cabral e Henriette T. P. Morato

territorial em saúde através do PSF; e uma entrevista individual com cada


interlocutor, oferecendo-lhes a oportunidade de acrescentar ou modificar
algo dito por eles no grupo.
O momento coletivo foi pensado como um espaço possível para
expressão do singular no coletivo ao passo que a conversa com cada um
deveria se caracterizar como a possibilidade de autenticação daquilo que foi
construído no grupo, sendo uma oportunidade para pensar o coletivo e ex-
pressar o singular.
No que se refere à pesquisa sobre a percepção de profissionais de
EqSF sobre sua implicação no cuidado em saúde mental, recorreu-se à inser-
ção cartográfica, delineada por meio da participação de miniequipes vincula-
das ao Grupo PET-Saúde Mental, em que foram produzidos diários de campo
e relatórios durante um ano de inserção. Além disso, foram definidos momen-
tos grupais com cada uma das seis EqSF em que a Linha PET foi desenvolvi-
da, configurando-se o que acabamos por batizar de grupos narrativos.
A escolha desse nome decorreu da intenção de promover espaços
de elaboração e comunicação de experiência, via narração, engendradas por
uma pergunta provocadora, voltada a compreender a experiência das EqSFs
na articulação da rede de cuidados em saúde mental. Intentou-se, por esta
via, realçar a experiência dos interlocutores nas suas práticas cotidianas – tal
como narrada –, tomada como matéria-prima da pesquisa, caminho delinea-
do fundamentando-se em elementos do pensamento de Benjamin (Ibid.).
Foram realizados seis grupos narrativos, com os profissionais que
se dispuseram a participar. Cada grupo foi coordenado por integrantes da
miniequipe PET-Saúde Mental de referência para a USF (preceptor e estu-
dantes), que se distribuíram nas funções de facilitador, observador e respon-
sável pelos registros de áudio e vídeo. Aos facilitadores, coube conduzir o
grupo de forma a promover a comunicação/elaboração da experiência, aten-
tando-se aos objetivos da pesquisa, enquanto os observadores ficaram encar-
regados de fazer registros de fatos relevantes – verbais ou não verbais – que
ocorressem durante este processo.
No processo de colheita da matéria-prima, houve a preocupação de
registrar os momentos de interlocução (individuais e grupais), principal-
mente por aparelhos de registro de áudio. É importante perceber que os ca-
minhos indicados permitem evidenciar o caráter interventivo da pesquisa,
aproximando-se do modo próprio de agir da prática psicológica clínica. Con-
sidera-se que na medida em que se abre espaço para que se conte uma expe-
riência, especialmente ao se tratar de um campo tão central na vida, como o
trabalho cotidiano, aí mesmo ocorre a oportunidade para uma elaboração em
torno desse fazer/saber.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Embora a segunda pesquisa tratada tenha acontecido anos depois


da primeira, ficaram evidentes algumas aproximações, a partir da elaboração
desse texto. Daí a possibilidade de tomá-las como exemplos para a discussão
de aspectos referentes ao ato de pesquisar na perspectiva fenomenológica
existencial defendida. Construímos a compreensão de que foram realizados
grupos narrativos também na primeira pesquisa, sem que utilizássemos essa
nomenclatura. O certo é que não se tratava de um grupo focal, tal como indi-
cado na literatura científica corrente, por isso não foi assim enquadrado. A
partir disso, ressaltamos a importância da rigorosa descrição dos passos da-
dos ao longo do trajeto, inclusive os redirecionamentos que possam ocorrer
pelas afetações oriundas da entrada em campo. Mais que categorizações dos
procedimentos utilizados, importa descrever em detalhes os rumos tomados e
os motivos para tanto, sempre em sintonia com a questão de pesquisa cir-
cunscrita e com o que vai se revelando ou constituindo em campo.
Destacamos que recorrer a outras referências epistemológicas e
conceituais ao longo do trajeto – tomando-se a questão como bússola – apre-
senta-se como algo possível: o que quer que se mostre pertinente para a
compreensão do fenômeno poderá ser referido, contanto que possa apontar
algo na direção do esclarecimento da questão-bússola, além de, em alguma
medida, afinar-se com a perspectiva metodológica adotada, sem, com isso,
expressar ecletismo. Como indicado, esta trilha científica afasta-se de pers-
pectivas naturalizantes, metafísicas ou representacionais, seladas pela crença
em essências; em sentido reverso, prescinde da intenção de gerar um conhe-
cimento generalizável, que expresse “verdades”. O que se produz em termos
de conhecimento reflete compreensões possíveis acerca do fenômeno estu-
dado, elaboradas a partir de uma aproximação ocorrida em circunstâncias
singulares, sendo, portanto, contextuais.
Tendo em vista a implicação do pesquisador na experiência de pes-
quisa e a cumplicidade construída com os interlocutores, o retorno a estes
dos resultados e/ou compreensões produzidas, a partir dos encontros realiza-
dos, é compreendido como etapa indispoensável do pesquisar, que se revela,
portanto, como exercício ético-político: investigar é ação política, comparti-
lhada entre homens, por dizer respeito aos negócios entre eles.

4 SOBRE A PRODUÇÃO DE COMPREENSÕES A PARTIR


DA PESQUISA: DE QUE CONHECIMENTO SE FALA?

Como discutido, os trajetos de pesquisa tomados como exemplos se


delinearam a partir das indicações das respectivas questões de pesquisa, con-
siderando também as afetações da entrada em campo. A produção do método
174 Barbara Eleonora Cabral e Henriette T. P. Morato

precisa respeitar o tempo de esclarecimento da questão, revelando a necessi-


dade da própria cartografia do território vivo em que a ação de interesse
ocorre.
Na perspectiva fenomenológica existencial, pode-se compreender a
configuração do método como a construção de um caminho possível para a
realização de um estudo, que vai ganhando contornos mais precisos ao longo
do próprio trânsito do pesquisador pelo campo. Não cabe, portanto, a defini-
ção ou aplicação de métodos padronizados ou previamente arrematados. Na
escrita de um projeto, o que é indicado como método – exigência para apro-
vação nos trâmites dos Comitês de Ética – implica uma direção imaginada a
partir da questão de pesquisa, que se perfilará propriamente com a entrada
em campo.
Nesse sentido, destacamos que o objetivo de qualquer pesquisa em
tal perspectiva é empreender uma compreensão qualitativamente singular de
algum fenômeno, como interpretação única do que se apresentou entre intér-
prete (pesquisador) e interlocutor (participantes colaboradores da pesquisa).
Sendo assim, a melhor forma será encontrada a partir do aprofundamento em
cada recorte de pesquisa ou tema sobre o qual se queira debruçar o pesquisa-
dor, considerando-se as repercussões da entrada em campo. Reconfigurações
do método, a partir da experiência em campo, são possíveis e mesmo espera-
das, não constituindo falta de rigor, mas sim, flexibilidade. Essa atitude fle-
xível do pesquisador, permeável às afetações do campo, contrapõe-se à rigi-
dez ou tentativa de controle dos fenômenos, estando sintonizada com uma
compreensão epistemológica que se distancia da intenção de produção de
conhecimento como verdade metafísica ou transcendental. Ela é permitida
ou mesmo exigida no tipo de pesquisa defendida nesse texto.
Referir que as considerações em torno da construção do método a
partir de uma questão, respaldada em uma perspectiva fenomenológica exis-
tencial, tratam de uma pesquisa qualitativamente singular implica em esca-
par da polaridade qualitativo versus quantitativo tal como frequentemente é
tematizada. Quantidade e qualidade não se diferem apenas pela questão do
conteúdo numericamente presente, que apontaria para a necessidade de me-
dição concreta e explícita para a apreensão e/ou comparação dos fenômenos
pesquisados. Compreende-se que o que sela uma distinção é a origem do
modo de pesquisar e o sentido para onde tal modo aponta.
Partindo-se de uma perspectiva de apreensão do real (enquanto
universal) pela sua representação via razão, independentemente de adotar-se
uma perspectiva qualitativa ou quantitativa, busca-se a verdade e o conheci-
mento representacional. Contudo, tais óticas – qualitativa e quantitativa –
acabariam se aproximando, dado se balizarem pela mesma origem de fun-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

damentação, relacionada à hegemonia do que Heidegger (1959) denomina de


pensamento que calcula, ou seja, que busca controlar, dominar, apreender a
“verdade” das coisas.
Desse modo, qualitativamente outra – singular – seria uma pers-
pectiva de buscar conhecer – pela reflexão, pensamento, meditação – aquilo
que se mostra (fenômeno), para, então, formular uma questão a ser interro-
gada por essa reflexão, pautando-se, assim, pelo modo de pensar fenomeno-
lógico, como bússola pertinente à questão. Tratar-se-ia da valorização do
pensamento que medita, que reflete sobre o sentido que reina em tudo que
existe9.
Discutindo a questão da técnica moderna, Heidegger (Idid.) indica
que ambos os modos de pensamento – que calcula e que medita – são legíti-
mos e necessários na existência humana, cada qual à sua maneira. Indica,
assim, a atitude de serenidade como uma saída possível diante da predomi-
nância da técnica no modo da exploração (esquecida de seu sentido originá-
rio de techné e poiésis), que implicaria dizer “sim” à utilização inevitável dos
produtos da técnica moderna (e por que não dizer contemporânea?) e, si-
multaneamente, dizer “não”, vetando nossa absorção total por eles, a ponto
de esgotarem a natureza. Há que se preservar uma abertura ao segredo, ao
mistério, ao sentido oculto no mundo técnico, em aliança à serenidade. O
homem é um ser que reflete, que medita, sendo necessário manter desperta a
reflexão. Esse caminho de reflexão seria o solo possível de um futuro enrai-
zamento. Com base nessa discussão, portanto, apontamos a necessidade de
valorização de modos outros de produção de conhecimento científico...
Método seria compreendido, portanto, como um modo de pensar
para encontrar uma franja do real e não um modo de pensar por raciocínio,
cálculo ou categorização de conteúdo para achar o real em si. Tal compreen-
são seria uma forma possível de se atentar ao alerta de Heidegger (1958, p. 19)
de que “a situação que domina o ser da ciência, isto é, da teoria do real, é o
Incontornável inacessível, que é constantemente desconsiderado”.
Por essa compreensão, um modo fenomenológico existencial,
como pensar, percorre a trilha do sentido e não do conteúdo. É por essa re-
leitura da analítica do sentido que nos aproximamos de Critelli (Ibid.) para
sugerir possibilidades metodológicas. A questão do desvelamento do real
que se oculta, apresentada como origem do pensar a partir do contato com o
que se apresenta, conduz a outras possibilidades de um rigor metodológico,
enquanto modo de pensar. Implica inclinar-se ao fenômeno, permitindo-se

9
Para um aprofundamento dessa questão, ver Heidegger, M. (1958) “Ciência e Meditação”.
In: Heidegger, M. Essais et conferences. Paris: Galimard.
176 Barbara Eleonora Cabral e Henriette T. P. Morato

marcar pelo estranhamento (interrogação) que ele provoca, para que desse
momento/situação entre fenômeno e pesquisador brote uma possibilidade de
revelação como questão.
Revelado “o que merece ser interrogado” (Heidegger, 1958, p. 20),
promove-se outra aproximação à situação na qual o fenômeno desvelou-se
como franja, a fim de provocar um testemunho e uma veracização por um
modo de pensar a partir da compreensão que esse testemunho demanda. Por
este caminho, abrem-se possibilidades de outro modo de reflexão/pensamen
to/meditação para uma autenticação da franja do real, desvelada como ex-
pressão de um modo de se aproximar do real incontornável.
Assim, o modo de pensar com rigor empreendido pela perspecti-
va fenomenológica existencial se conduz respeitando a historicidade do
humano, pelos meandros de conhecer o incontornável como aletheia, ou
seja, um modo de pensar verdadeiro, como desvelamento na aproximação
com o fenômeno estudado; e não em busca de veritas, ou seja, de repre-
sentação do que se apresenta, como verdade do que se mostra para ser
conhecido ou interrogado. Mantém-se aberta, por esse rigor meditativo, a
possibilidade a outras franjas do real que merecem ser interrogadas, que
podem adquirir o estatuto de questões para pesquisa, em um processo
contínuo de situar o homem em sua existência inquietantemente finita: um
conhecimento por vir.
Assumimos, portanto, a produção do conhecimento como um pro-
cesso de construção de compreensões acerca dos fenômenos, que ocorre na
interlocução do pesquisador com o que ou quem é pesquisado, importando,
sobretudo, o modo como esses encontros ocorrem. Tal perspectiva valoriza a
própria experiência entre humanos – a coexistência – como lócus primordial
para a elaboração de sentido no contexto da existência, implicando afetações,
mobilizações, desalojamentos. Sabendo-se misturado ao real que busca co-
nhecer, tomado não como algo em si, mas fruto de composição na relação
que com ele estabelece, o humano mergulha no processo de interrogar-se
sobre a própria vida e o que nela se perfila. Trata-se de um modo de conhe-
cer pela rota de trânsito entre sentir-pensar, que implica correr riscos e peri-
go, via experiência.

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interventiva em instituição: etnografia, cartografia e genealogia. In: M. M. P. Rodrigues, & P.
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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

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cartografia de práticas clínicas em contextos institucionais e comunitários. Tese de Doutorado,
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Saúde da Família em Juazeiro-Ba: repercussões do PET-Saúde como dispositivo formativo e
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178 Barbara Eleonora Cabral e Henriette T. P. Morato
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

MERLEAU-PONTY E GADAMER:
POSSIBILIDADE DE SE PESQUISAR A
PRÁTICA DE PSICÓLOGOS CLÍNICOS
Shirley Macêdo
Marcus Túlio Caldas

Sumário: 1. Introdução. 2. A Pesquisa Fenomenológica no Estudo de


Experiências Humanas. 3. Maurice Merleau-Ponty, a Inter-
subjetividade e a Epoché Incompleta. 4. Hans-Georg Gada-
mer, a Tradição e a Fusão de Horizontes. 5. Instrumentos Fa-
voráveis a um Estudo Fenomenológico Hermenêutico da Expe-
riência. 6. Proposta de Condução e Análise de Dados numa
Pesquisa Fenomenológica Hermenêutica. 7. Exemplo Ilustrati-
vo. 8. Considerações Finais. 9. Referências. 1. Introdução.

1 INTRODUÇÃO

A década de 1990 representou um avanço considerável no interesse


e na prática de estudiosos da psicologia humanista pela pesquisa fenomeno-
lógica no Brasil. Diversos estudos começaram a ser realizados tomando por
base propostas metodológicas vigentes nos Estados Unidos, como as de Giorgi
(1985) e Moustakas (1994), embora alguns autores nacionais apresentassem
ideias inovadoras, a exemplo do uso da fenomenologia estrutural (Gomes,
1985) e da fenomenologia na pesquisa em educação e/ou no estudo de pro-
cessos terapêuticos (Amatuzzi, 1991; 1993).
Ao longo de vários anos, a fenomenologia husserliana era a base
epistemológica e filosófica fundamental no desenvolvimento dessas pes-
quisas, que enfatizavam basicamente a relação entre o eidético e o empírico
a fim de fornecer elementos ao entendimento do método fenomenológico e
de seu uso pela psicologia (Forghieri, 1993; Holanda, 2001; Goto, 2008).
Pesquisadores brasileiros iniciaram um processo de tentativa de sistemati-
zação da teoria e dos procedimentos deste método, contribuindo sobrema-
neira para uma compreensão mais acurada daqueles que se interessavam
pelo mesmo.
180 Shirley Macêdo e Marcus Túlio Caldas

No entanto, a apropriação do conhecimento de diversas fenomenolo-


gias para além de Husserl (Heidegger, Merleau-Ponty e Gadamer) começou a
ganhar força principalmente após a segunda metade dos anos 2000, época em
que, amadurecendo tanto a aplicabilidade do método fenomenológico na prática
clínica em psicoterapia quanto no ato de pesquisar, psicólogos começaram,
inclusive, a questionar os próprios conceitos da psicologia humanista, tendo,
muitos deles, abandonado a própria área devido a incoerências que passaram a
perceber entre a perspectiva humanista de homem e determinadas abordagens
em fenomenologia (a exemplo daqueles que, ao estudarem mais pormenoriza-
damente Heidegger, perceberam ser incompatível a fenomenologia existencial
com as concepções teóricas e práticas da psicologia humanista de Carl Rogers).
As tendências das diversas formas de pesquisa qualitativa no Brasil
permitem constatar que, no contexto da pesquisa fenomenológica em psico-
logia clínica, muitas propostas têm sido apontadas como efetivas no estudo
de experiências humanas. Fundamentados em diferentes fenomenologias,
autores vêm defendendo diversas maneiras de se fazer pesquisa fenomenoló-
gica, seja atentando para a forma sistemática de conduzir tais pesquisas, seja
refletindo sobre o manejo da técnica utilizada e sobre o papel do pesquisador
no processo, ou, ainda, repensando sobre o processo de participação dos
sujeitos na análise dos resultados.
Como pesquisadores da área, defendemos que nestes tipos de
pesquisa o psicólogo clínico pesquisador deva intervir na realidade pela via
do sentido, construindo a retomada da autonomia subjetiva dos participan-
tes e cumprindo seu papel de agente de transformação de realidades sociais
(Macêdo & Caldas, 2011). Neste sentido, o presente estudo busca apresen-
tar uma possibilidade de conduzir pesquisa a partir de uma metodologia
fenomenológica hermenêutica (Macêdo & Caldas, 2010), considerando-se
as concepções de intersubjetividade e epoché incompleta de Merleau-
Ponty, e Conversação, Tradição e Fusão de Horizontes de Gadamer. Para
fundamentar nossos argumentos, exemplificaremos com um recorte de um
estudo realizado junto a psicoterapeutas humanistas que praticam a Abor-
dagem Centrada na Pessoa no Brasil.

2 A PESQUISA FENOMENOLÓGICA NO ESTUDO DE


EXPERIÊNCIAS HUMANAS

A pesquisa qualitativa vem sendo proficuamente aprofundada nas


ciências humanas e sociais. Neste âmbito, o conhecimento vai sendo cons-
truído de acordo com as realidades que são próprias de sujeitos inseridos em
determinados grupos sociais. Denzin et al. (2006), ao organizarem o livro O
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

planejamento da pesquisa qualitativa, nos presenteiam com um compêndio


de formas diferentes de conduzir pesquisas qualitativas. Nessas formas de
pesquisar, no entanto, a linguagem tem uma importância considerável, pois
que é por meio dela que os grupos e sujeitos, assim como os pesquisadores,
expõem seus pontos de vista, suas opiniões, suas representações e, até mes-
mo, o sentido de suas experiências.
Uma investigação qualitativa que foca o sentido e os significados
da experiência humana para indivíduos que a vivenciam é a pesquisa feno-
menológica. Podemos dizer, acompanhando o pensamento de Schwandt
(2006), que, ao focar o significado daquilo que os outros estão fazendo e
dizendo, este tipo de pesquisa qualitativa é um terreno ou uma arena propícia
para a crítica científica.
Diante deste posicionamento epistemológico, consideramos que
uma pesquisa verdadeiramente fenomenológica está pautada numa teoria
crítica, tal como proposta por Santos (2000), que busca compreender um
fenômeno sem reduzi-lo à realidade, mas tentando cartografar um campo de
alternativas de possibilidades para transformar o que já teórica e empirica-
mente foi estabelecido. Neste sentido, o que se pretende construir com uma
pesquisa fenomenológica é um conhecimento a partir de uma crítica ao pró-
prio conhecimento, um conhecimento-emancipação, por onde se pretende
dar visibilidade ao fenômeno estudado.
Desta maneira, defendemos estudos mais coerentes com a visão de
mundo dos pesquisadores, cujos paradigmas de abordagem à realidade este-
jam em sintonia com fundamentos metodológicos de pesquisa, beneficiando
a sociedade com produções científicas sistemáticas e aplicáveis às experiên-
cias humanas.
Ao focar experiências humanas, assumimos uma postura predomi-
nantemente humanista-fenomenológica de pesquisar (Macêdo, 1998a, 1998b,
1998c, 1999a, 1999b, 2000, 2006), ou seja, um modo de pesquisar centrado
nos significados que as pessoas atribuem às suas experiências e as compar-
tilham num contexto de diálogo. Portanto, a metodologia adotada passa a ser
a qualitativa a partir de uma atitude fenomenológica.
A investigação qualitativa de inspiração fenomenológica, na ótica de
Holanda (2006), não se define instrumentalmente, mas epistemologicamente,
pois que é apoiada no processo de construção do conhecimento. Nela se inclui
a subjetividade no próprio ato de investigar, tanto do pesquisador como do
sujeito investigado, reconhecendo-se a alteridade. Certamente que esta postura
responde a exigências éticas no campo das práticas psicológicas, que se con-
frontam, cada dia mais, com a necessidade de reconhecer a alteridade como
constitutiva de subjetividades singulares (Coelho & Figueiredo, 2004).
182 Shirley Macêdo e Marcus Túlio Caldas

Compreendendo a metodologia fenomenológica na prática clínica


em Psicologia como permitindo uma compreensão fundamentada na análise
da intersubjetividade (Augras, 1994), em que o fenômeno transparece na
interseção das experiências dos sujeitos envolvidos em determinado estudo,
consideramos que situações experienciadas e narradas por sujeitos numa
situação de diálogo grupal são uma fonte fidedigna de dados de pesquisa
fenomenológica. Assim, nossa proposta é promover um diálogo entre pares
para produzir conhecimento.
Trata-se, portanto, de uma proposta de pesquisa fenomenológica
hermenêutica, que, segundo Moustakas (1994), tem foco na consciência e na
experiência, partindo-se de si próprio, a partir de uma circunscrição histórica,
para expandir o conhecimento. Para Amatuzzi (1996), este tipo de pesquisa
considera a interpretação como essencial à compreensão.
Holanda (2001), ao analisar os tipos de pesquisa fenomenológica
propostos por Amatuzzi (1996), salienta que a peculiaridade de qualquer um
destes tipos é o estabelecimento da relação de pesquisa: “o sujeito pesquisa-
dor não prescinde de sua participação no ato de pesquisar, ao contrário, é co-
participante junto ao sujeito vivencial, dado que é, também, com o outro, um
sujeito intencional” (p. 51).
Acreditamos que se partirmos da fenomenologia de Maurice Mer-
leau-Ponty e da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, é possível
ao pesquisador tentar elucidar o vivido, via interpretação1, para alcançar uma
conclusão. Seguindo, também, outra definição de Amatuzzi (2001), conside-
ramos que um estudo deste âmbito consiste numa pesquisa de natureza, já
que o pesquisador parte dos fatos para chegar a uma teoria ou conceito, pois
uma pesquisa só é verdadeiramente fenomenológica quando: “pretende dar
conta do que acontece, pelo clareamento do fenômeno. Não pretende verifi-
car, mas construir uma compreensão de algo” (AMATUZZI, 2001, p. 17).

3 MAURICE MERLEAU-PONTY, A INTERSUBJETIVIDADE


E A EPOCHÉ INCOMPLETA

Consideremos, aqui, uma perspectiva em pesquisa fenomenológica


sedimentada pela filosofia de Merleau-Ponty. Para isso, realizaremos um re-
corte na obra deste filósofo e não o todo de sua filosofia. Interessa-nos, para a
construção de nossas ideias, seus conceitos de intersubjetividade e epoché in-

1
Pertinente se faz, aqui, lembrar Giorgi (1985) e suas tradicionais ideias ao relacionar
descrição e interpretação. A primeira sendo necessária à descrição do fenômeno vivido
num contexto relacional e a segunda inerente à compreensão que se tem desta vivência.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

completa, categorias que iremos descrever de forma articulada a partir de suas


obras e de leituras, principalmente, de estudiosos brasileiros sobre as mesmas.
Em Fenomenologia da Percepção (1945/2006), este filósofo argu-
menta que o método fenomenológico trata de descrever e não de explicar
nem analisar. Sua proposta metodológica consiste numa tentativa de alcançar
o sujeito consagrado ao mundo, não o sujeito empírico, mas o sujeito copar-
ticipe do mundo, que atribui sentido a este mundo.
Amatuzzi (2008), ao discorrer sobre a psicologia humanista, desta-
ca bem este posicionamento, quando afirma que “o homem só aparece na-
quilo que ele tem de mais próprio, com a questão do sentido, não com a
questão da causa explicativa [...] A decifração do sentido só será um discur-
so no presente se for vivencial, experiencial, uma vivência do próprio senti-
do criando novos sentidos”. (pp. 11-12)
Para Merleau-Ponty (1945/2006), a ciência participa na elucidação
do sentido do fenômeno, que se revela, portanto, de forma mediata e de difí-
cil acesso. Assim, o mundo é descoberto pelo sujeito que constrói o conhe-
cimento nele mesmo, “enquanto horizonte permanente de todas as suas co-
gitationes e como uma dimensão em relação à qual ele não deixa de se situar”
(p. 9). É nesta perspectiva que consiste a principal diferença entre a fenome-
nologia husserliana e a merleau-pontyana, pois nesta última o filósofo enten-
de que “o maior ensinamento da redução fenomenológica é a impossibilida-
de de uma redução completa” (p. 10).
Merleau-Ponty não se refere a uma consciência intencional, tal
como vemos em Husserl, mas a uma consciência perceptiva e uma intercor-
poreidade. Para Husserl, o outro, a outra consciência, existe independente de
minha consciência. É minha consciência intencional que favorecerá que eu
conheça esse outro. Ou seja, o outro só existe na consciência intencional,
como uma experiência do meu ego. Desta maneira, no plano da consciência
intencional, o mundo vivido é sempre singular, mesmo que intencionalmente
dirigido a algo ou a alguém. Portanto, nesta visão não se poderia falar de um
mundo compartilhado, comum a todos (Coelho Jr., 2002).
Merleau-Ponty, no entanto, rompe com esta limitação da fenome-
nologia de Husserl e seu idealismo subjetivista, ao falar de corporeidade e
intercorporeidade. Aprofundando a noção husserliana de consciência inten-
cional e intersubjetividade, ele falará de uma consciência aberta ao mundo: a
consciência perceptiva. Seu intento é situar a consciência no corpo e o corpo
no mundo, pois, tal como proposta por Husserl, a consciência tende a fugir
do mundo, transformando-o num simples correlato do pensamento e das
representações. Ao contrário, Merleau-Ponty coloca o próprio corpo no nú-
cleo do sujeito, pensando o sujeito como encarnado.
184 Shirley Macêdo e Marcus Túlio Caldas

Sua noção é de que a consciência, sendo compreendida como per-


ceptiva, está inextrincavelmente ligada ao corpo, em permanente diálogo
com o mundo, e a relação do homem com o mundo se dá pela relação direta
corpo-mundo, pois que é corpo vivido, corpo no mundo. Esta ideia o permiti-
rá avançar na compreensão da relação eu-outro, mas não no âmbito da inter-
subjetividade concebida a partir da consciência intencional, mas visada a
partir da experiência do corpo, pela intercorporeidade: o eu e o outro são
órgãos de uma só intercorporeidade.
Na opinião de Furlan (2000), Merleau-Ponty propõe uma visada di-
ferenciada de Husserl sobre as investigações científicas na revelação do sen-
tido do fenômeno, que, para ele, não se confunde com uma descrição imedi-
ata do sentido vivido, pois a fenomenologia “não se confunde com um pri-
mitivismo que busca um contato originário com o Ser independente das in-
vestigações da ciência” (Furlan, 2000, p. 177). O que ocorre é que a ciência
também opera através da experiência e se acrescenta às experiências comuns
do mundo da vida. Assim, o conhecimento tem um caráter frente ao senso-
-comum: o de atribuir-lhe, também, um sentido. A vivência perceptiva, por-
tanto, é experiência fundante do processo de conhecimento.
Percebemos, aqui, que esta perspectiva nos apresenta outra ideia do
que Husserl denominou de epoché (ou redução eidética ou suspensão de a-
prioris): o conhecimento científico é um dado a ser considerado, pois que
está encarnado no cientista. Para Merleau-Ponty, o que conta para o homem
é o sentido que os estímulos têm para si, e não o estímulo enquanto fenôme-
no físico apenas, ou seja, o objeto de conhecimento tem um sentido para
quem o estuda, e não é um objeto separado para o qual uma consciência teria
que suprimir o conhecimento sobre ele. O conhecimento, neste caso, permite
o acesso à experiência fenomenal e a epoché se apoia no conhecimento que
conduz ao fenômeno.
Não estamos, assim, nos referindo a uma intuição originária, mas à
percepção, que é doação de uma presença autêntica. Ao publicar La structure
du comportement (1942), Merleau-Ponty adverte que um sentido se forma
não pela intervenção do entendimento, mas do corpo, pois é o corpo que se
reúne para ver; é ele que apreende a intencionalidade do outro na comunica-
ção, através do qual, poderíamos dizer, o cientista se junta à significação do
outro, que habita seu próprio corpo, quando ele, o cientista, constitui o signi-
ficado do comportamento do outro para si. A experiência de uma consciência
por parte de outra consciência exige encarnação constitutiva e a alteridade do
outro está subordinada a uma alteridade primeira (que é a do mundo).
A análise eidética husserliana, indispensável ao homem que busca
o conhecimento dos fatos, respondia pela compreensão da essência ou do
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

sentido do ato intencional (Veríssimo & Furlan, 2006). Merleau-Ponty, no


entanto, atenta para o que descreve este tipo de análise que sempre acaba por
ver o homem como o portador da reflexão e não como parte do mundo. Se,
ao contrário, temos outra visada sobre o homem do conhecimento, conce-
bendo-o como homem mundano, os fatos sobre os quais ele trabalha, longe
de limitar sua compreensão do fenômeno, são para ele o lugar de uma possi-
bilidade de reapropriação deste fenômeno.
Aqui vale lembrar a crítica que Merleau-Ponty (1945/2006) faz ao
“prejuízo do mundo objetivo”, considerada por Veríssimo e Furlan (2006)
como a versão merleau-pontyana da redução fenomenológica. Esse prejuízo
se daria porque a percepção, se constituída apenas a partir daquilo que pres-
supomos estar nas coisas, perderia de vista o significado perceptivo, já que
todo objeto é percebido num horizonte de sentido. Enfim, o sujeito da per-
cepção está sempre em comunicação vital e prática com o mundo, sendo o
sentir inerente a este sujeito em relação concreta com o mundo. Portanto, os
sentidos que vivenciamos e comunicamos ao mundo são encarnados, são
elaborados no contato do corpo com o mundo e o sentir, desta feita, habita o
percebido.
Resta dizermos que não se pode, ao tentar conhecer a experiência
de um outro, suspender a-prioris porque estaríamos ocultando o sujeito que
conhece o mundo do mundo a ser conhecido, e isto é um contrassenso, por
que corpo e mundo são a mesma textura ontológica. Ashworth (1996), ao
adotar a perspectiva merleau-pontyana em pesquisa, vai nos presentear com
um esclarecimento crucial: ao se referir à redução fenomenológica proposta
por Husserl, destaca que há algo que não se reduz numa pesquisa fenome-
nológica: o fato do pesquisador e do sujeito da pesquisa estarem num mundo
de interação social, envolvidos com o que ele denomina de reciprocidade de
perspectivas.

4 HANS-GEORG GADAMER, A TRADIÇÃO E A FUSÃO DE


HORIZONTES

Diante destas ideias, consideramos viável articular o método feno-


menológico de Merleau-Ponty, pautado na intersubjetividade, com a her-
menêutica filosófica de Gadamer, no que este denominou de conversação. E,
aqui, novamente, não estaremos ocupados em aprofundar toda a obra gada-
meriana, mas conceitos chaves como: conversação, tradição e fusão de hori-
zontes.
Estudos fenomenológicos utilizando postulados gadamerianos são
recentemente promovidos no Brasil (a exemplo de Caregnato et al., 2005;
186 Shirley Macêdo e Marcus Túlio Caldas

Garcia & Jorge, 2006), o que vem favorecendo o interesse por este tipo de
pesquisa e fortalecendo os estudos inseridos no bojo das produções fenome-
nológicas de investigação.
Roratto (2010), ao propor a hermenêutica como fundamento da
pesquisa qualitativa, adverte que o ato de compreender as falas que emergem
do processo dialógico promovido pela pesquisa qualitativa passa necessari-
amente pela hermenêutica, já que esta é a forma de entender as manifesta-
ções linguísticas e suas significações. Neste tipo de pesquisa, segundo o au-
tor, o investigador não está muito preocupado com a busca da verdade e “a
atividade científica passa a ser um empreendimento hermenêutico, estrutura-
do em significados” (p. 179).
Acrescenta ainda o mesmo autor que na pesquisa qualitativa o in-
vestigador revela seu trabalho situado histórica, cultural e pessoalmente.
Além disso, os sujeitos da pesquisa se tornam participantes relacionais, já
que a relação deles com o pesquisador passa a ser dialógica, sendo essencial
a construção conjunta da pesquisa. Ou seja, os sujeitos não são meros forne-
cedores de dados, pois que se tornam interdependentes durante todo o estu-
do, “inclusive na negociação dos significados encontrados” (p. 184). Por isso
o autor defende a pertinência da abordagem filosófica de Gadamer na cons-
trução e na condução de uma pesquisa qualitativa.
Seus argumentos, pensamos, estão pautados na própria tese de Ga-
damer (2003, p. 23) de que “o essencial das ciências do espírito não é a ob-
jetividade, mas a relação prévia com o objeto [...] O homem não se depara
com a realidade e um mundo, mas sempre com interpretações da realidade e
do mundo e, assim, com a realidade e o mundo da interpretação”.
Lawn (2007) esclarece que a proposta filosófica de Gadamer é uma
revisão da hermenêutica clássica, onde o filósofo propõe que a interpretação
está pautada no próprio horizonte de significado do intérprete: “a interpreta-
ção está situada dentro do horizonte mútuo do intérprete e da coisa a ser in-
terpretada” (p. 13). Além disso, todo entendimento humano é basicamente
interpretação. Então, defende ele que a hermenêutica vai além dos limites de
uma interpretação textual, porque o entendimento hermenêutico, além de ser
histórico, dá-se na apropriação e negociação diária do mundo.
Assim, a hermenêutica filosófica gadameriana propõe um intér-
prete que busque entender um texto ou qualquer outro discurso a partir de
um posicionamento como eterno aprendiz que não deve impor sua verdade,
mas se valer de uma verdade coletiva de uma conversa. Inclusive, a concep-
ção de verdade de Gadamer, descrita detalhadamente em Verdade e Método
(2003), leva em consideração que uma verdade apenas pode ser revelada
quando recuperada e restabelecida pelo diálogo, onde o intérprete experien-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

cia, num encontro hermenêutico, a surpresa do inesperado, frustrando ex-


pectativas e confrontando certezas prévias.
A experiência da verdade é vivida na tensão entre a novidade e
aquilo que já se conhecia de experiências passadas – ao que Gadamer chama
de tradição. Neste ínterim, o intérprete se abre para possibilidades que nunca
se esgotam, que são infinitas, num posicionamento não dogmático e num
contínuo movimento de abertura à experiência.
Lawn (2007) deixa claro que as ideias de Gadamer levam à com-
preensão de que um investigador ou pesquisador, aqui denominado intérpre-
te, é parte daquilo que está investigando. Portanto, pesquisador e objeto de
pesquisa são indivisíveis. Isto permite dizer que o entendimento humano é
sedimentado em um círculo hermenêutico, no qual o todo deve ser compre-
endido em relação às suas partes, e estas ao todo, pois “o significado é mais
bem-entendido como uma transação dinâmica entre as partes e o todo” (p. 69).
Nesta ótica, o entendimento hermenêutico é mais dialógico e inter-
ativo quanto mais houver uma versão coletiva do entendimento. Esta versão
se daria pela conversação, onde se intercruzam diversos horizontes. Para
Gadamer, quando duas pessoas conversam, um terceiro elemento surge: a
linguagem. Na fusão de horizontes, ou seja, no intercruzamento de diversas
visões panorâmicas ou perspectivas de mundo, num movimento de diacronia
e sincronia de tradições, os horizontes fazem conexão e se engajam num
diálogo.
O ato hermenêutico da interpretação envolve o entendimento da-
quilo que foi observado de forma a comunicar a compreensão (Kincheloe &
Mclaren, 2006). Schwandt (2006) destaca que a hermenêutica filosófica de
Gadamer defende um intérprete um indivíduo engajado em uma análise críti-
ca. Esta análise resulta da compreensão como uma condição do ser humano:
compreensão é interpretação. Consiste numa estrutura básica de nossa expe-
riência de vida. Desta feita, não se pode suspender, como nos preceitos hus-
serlianos, a tendenciosidade ou os preconceitos sócio-históricos herdados,
fazendo um esforço para se livrar deles. O pesquisador não pode se distanci-
ar de sua história, de sua experiência, de suas pré-concepções, pois estas são
uma força viva que penetra toda compreensão.
Schwandt (2006) propõe, então, que é somente num encontro dia-
lógico com o estranho ao pesquisador que ele pode se abrir para se arriscar e
testar suas ideias preconcebidas e seus preconceitos, pois a compreensão é
participativa, conversacional e dialógica.
Gadamer (2004), em conversa com Silvio Vietta, um ano antes da
sua morte, declara:
188 Shirley Macêdo e Marcus Túlio Caldas

Lo que caracteriza a la conversación frente a la forma endurecida de las


proposiciones que buscan su fijación escrita es precisamente que el len-
guage realiza aqui em preguntas y respuestas, em el dar y tomar, em el
argumentar em paralelo y em ponerse de acuerdo, aquella comunicación
de sentido cuya elaboración como arte es la tarea de la hermenêutica.
(Gadamer, 2004, p. 11)

Seria, então, a compreensão produzida no diálogo e não reproduzi-


da pelo intérprete por meio de uma análise do diálogo que ele procura com-
preender. Aqui o significado não é descoberto pelo intérprete, mas negociado
mutuamente no ato da interpretação, a partir de um consenso. E, nesta com-
preensão consensual do significado, o intérprete muda em sua forma de ver e
conceber o mundo.

5 INSTRUMENTOS FAVORÁVEIS A UM ESTUDO


FENOMENOLÓGICO HERMENÊUTICO DA EXPERIÊNCIA

A técnica numa pesquisa científica deve estar coadunada com o


tipo de estudo que se deseja realizar. Também é importante que a técnica
traga subsídios de condução coerente com a perspectiva e visão de mundo do
pesquisador.
Na proposta ora apresentada, consideramos que se pode interagir
três técnicas num estudo fenomenológico hermenêutico: grupos de discus-
são, entrevista grupal com pergunta disparadora e narrativa da experiência.
Falaremos brevemente sobre estas três técnicas antes de propormos como
analisar os dados recolhidos num estudo deste tipo, e, por fim, apresentare-
mos um exemplo demonstrativo no qual conduzimos uma pesquisa fenome-
nológica hermenêutica da experiência.
Grupos de discussão são considerados por Laville e Dione (1999)
como um instrumento original em pesquisa qualitativa. Num contexto grupal
os sujeitos podem defender suas opiniões e contestar a dos outros. Tal técni-
ca permite ao pesquisador aprofundar sua compreensão das respostas obtidas
no próprio ato de pesquisar. Para isso, deve ser promovido com poucos su-
jeitos, utilizar perguntas abertas e permitir que as pessoas se expressem.
A entrevista grupal, por sua vez, é indicada quando o entrevistador
quer explorar atitudes, opiniões e comportamentos, assim como observar os
processos de consenso e divergência (Turato, 2003).
Uma entrevista grupal pode lançar mão de técnicas tradicionais de
entrevista: semidirigida, dirigida ou aberta. No caso de uma pesquisa qualitati-
va de enfoque fenomenológico, consideramos que a entrevista aberta deva ser
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

a única levada a efeito, já que o que se pretende é colocar o sujeito em contato


com a experiência, tendo o pesquisador que se conduzir pelos significados que
vão emergindo no seu diálogo com o sujeito e não por esquemas previamente
elaborados. No entanto, é importante não perder de vista os objetivos da pes-
quisa e, desde que se faça pertinente, intervenções interrogativas podem ser
usadas como possibilidade de se conduzir o processo.
Consideramos que a entrevista aberta numa pesquisa fenomenoló-
gica hermenêutica deva ser conduzida a partir de uma pergunta disparadora.
A pergunta disparadora foi um instrumento inicialmente proposto por Ama-
tuzzi (1993), que a defende como uma interjeição que coloca o sujeito em
contato com suas experiências e permite que este as descreva, de modo que o
pesquisador alcance os significados das mesmas.
Recentemente, Amatuzzi (2009) destacou que o foco das pesquisas
em psicologia humanista é o contexto da experiência interpessoal, o que
promove a aproximação cada vez mais sistemática entre esta área de saber e
a psicologia fenomenológica: “elucidação do vivido, baseada na considera-
ção de experiências concretas e situadas, conduzindo a uma compreensão
teórica que possibilite lidar melhor com o fenômeno” (p. 96).
A pergunta disparadora tem a função de abrir o diálogo e o pesqui-
sador deve ficar atento ao fenômeno que emerge, podendo inserir outras per-
guntas ao longo da entrevista, de acordo com sua compreensão no momento
do diálogo, o que lhe abre espaço para ir atendendo aos objetivos da pesquisa.
Moreira (2004) destaca que este tipo de pergunta permite ao pes-
quisador desvelar significados os mais diversos. A autora deste projeto tam-
bém já se utilizou de perguntas disparadoras em pesquisas fenomenológicas
(por exemplo, MACÊDO, 1998a e 2006) e concluiu como a mesma é frutífe-
ra para compreensão de significados da experiência para os sujeitos, sejam
significados culturais (referentes aos valores do sujeito); psicológicos (que
dizem respeito a aspectos cognitivos, afetivos e emocionais); e ideológicos
(por exemplo, os significados possivelmente compartilhados por sujeitos que
experienciam determinada realidade).
Numa pesquisa fenomenológica hermenêutica, a pergunta dispara-
dora pode ser utilizada no intuito de viabilizar narrativas da experiência por
parte dos colaboradores e pesquisador(es) envolvidos, através das quais dá-
se ênfase às experiências intencionais destes sujeitos, procurando tornar pre-
sentes as experiências vividas por eles. O pesquisador, por sua vez, atua não
só como facilitador no acesso ao vivido, oferecendo aos colaboradores pos-
sibilidade de efetivamente falarem sobre suas experiências, mas também
como sujeito participante, ao compartilhar de experiências que favoreçam a
condução do diálogo grupal.
190 Shirley Macêdo e Marcus Túlio Caldas

Já a narrativa da experiência, inicialmente teorizada por Benjamin


(1994), se torna um instrumento promissor nos estudos em psicologia. Nos
trabalhos publicados por Dutra (2002) e Pereira, Caldas e Francisco (2007),
por exemplo, constatou-se como este instrumento é fundamental às pesquisas
em psicologia clínica.
Jovchelovitch e Bauer (2002) argumentam que não há experiên-
cia humana que não possa ser expressa na forma de uma narrativa: “Através
da narrativa, as pessoas lembram o que aconteceu, colocam a experiência
em uma sequência, encontram possíveis explicações para isso, e jogam
com a cadeia de acontecimentos que constroem a vida, individual e social”
(Jovchelovitch & Bauer, 2002, p. 91).
É neste sentido que a narrativa, num contexto de diálogo, por exem-
plo, preserva perspectivas particulares de uma forma mais autêntica. Ela é rica
porque se refere a uma experiência pessoal e tende a ser detalhada com enfoque
em acontecimentos e ações. Jovchelovitch e Bauer (2002) ainda acrescentam
que os sujeitos da narrativa dão conta do tempo, do lugar, dos motivos e pontos
de orientação, dos seus planos, das suas estratégias e habilidades.
Portanto, estas três técnicas de pesquisa qualitativo-fenomenológica
sendo usadas de forma articulada fornecem um instrumental sistemático de
condução de um tipo de estudo que privilegia o contato, o diálogo, a contes-
tação de ideias, o consenso e o contrassenso, a produção de sentido conjunta
no compartilhar experiências humanas que sejam objetos de estudo do pes-
quisador.

6 PROPOSTA DE CONDUÇÃO E ANÁLISE DE DADOS


NUMA PESQUISA FENOMENOLÓGICA HERMENÊUTICA

Consideramos que uma pesquisa fenomenológica se faz ao cami-


nhar. Assim, não se deve pretender adotar receitas prévias nesta proposta de
investigação. Este foi um equívoco cometido por muitos pesquisadores que,
ao ensaiarem a prática da pesquisa fenomenológica, copiavam em todas as
linhas procedimentos apriorísticos como os passos de análise propostos por
Giorgi (1985), Amatuzzi (1993) ou Forghieri (1993).
Ao conduzir pesquisas fenomenológicas, Macêdo (2000; 2006)
constatou como a abertura ao processo de análise dos dados permite se criar,
ao caminhar, um procedimento de análise, mesmo que se tenha por base
sistematizações propostas por outros autores anteriormente. As fontes de
análise de dados podem permear a tentativa de sistematização do processo,
mas nunca predefinir quais serão os passos efetivos a serem percorridos.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Amatuzzi (2009) apresenta uma opinião bastante pertinente sobre


condução de pesquisa fenomenológica quando argumenta que tal pesquisa
busca elucidar o vivido baseada na consideração de experiências concretas e
situadas. Assim, o pesquisador começa com um encontro com um fenômeno,
onde recolhe informações entrando em uma situação previamente planejada.
Para isso ele deve sair do seu gabinete e ir ao encontro do fenômeno, anotan-
do, registrando e/ou gravando. Neste encontro, deve dialogar, perguntar,
questionar, observar e facilitar o acesso dos sujeitos à experiência. Parte de
um ouvir sistemático, concreto, específico, e não apenas um ouvir genérico.
É um ouvir de imersão e convívio. Depois, ele volta ao seu gabinete, exerce
um segundo olhar, procedendo à análise do que ele trouxe do seu encontro.
Seguindo essa premissa, numa pesquisa fenomenológica hermenêu-
tica que se utilize dos três instrumentos de pesquisa descritos no tópico anterior,
propomos como sistematização de condução e de análise de dados:
a) Definir os sujeitos e o grupo foco de pesquisa a ser estudado.
b) Agendar previamente o encontro com sujeitos que se disponibi-
lizem a participar do estudo, preservando princípios éticos per-
tinentes à pesquisa qualitativa.
c) Ir ao encontro destes sujeitos munido de gravador, lápis e papel,
assim como tendo noção dos objetivos geral e específicos da
pesquisa.
d) Promover a discussão grupal a partir da pergunta disparadora,
participando ativamente do diálogo, estando atento às narrativas
dos sujeitos e sem receio de narrar experiências que lhe venham
à tona no momento do diálogo, o que permite criar um contexto
intersubjetivo pautado na epoché incompleta, assim como per-
mitindo o confronto de tradições fundamentado na fusão de ho-
rizontes.
e) Estar atento ao tempo predefinido para o diálogo, sem, no en-
tanto, deixar-se ser rigidamente controlado por ele, mas tendo
clareza de que o processo precisa ter início, meio e fim.
f) Ao terminar o encontro, de volta ao seu local de trabalho, trans-
crever o diálogo gravado no grupo de discussão na íntegra, a
fim de, ao entrar em contato com as gravações das discussões,
descrever os elementos significativos da experiência do que foi
compartilhado entre pesquisador e sujeitos da pesquisa. A es-
crita e escuta destas transcrições devem estar focadas nas narra-
tivas dos sujeitos envolvidos nos grupos de discussão, a partir
das quais se tenta apreender significados de suas experiências.
192 Shirley Macêdo e Marcus Túlio Caldas

g) Após a descrição destes elementos, encaminhar a cada sujeito


integrante do grupo a análise preliminar realizada, a fim de
que os mesmos revisem o material, deem sugestões, acrescen-
tem novos elementos e/ou realizem mudança(s) no material. É
importante, nesta etapa, definir um prazo de retorno dos su-
jeitos, considerando-se o tempo que se tem para a finalização
da pesquisa.
h) Após esta revisão, procede-se com a sistematização final dos
elementos da experiência para que se possam oferecer contri-
buições a um parâmetro teórico sobre o fenômeno investigado.

7 EXEMPLO ILUSTRATIVO

O exemplo que apresentamos a seguir se pautou no estudo de expe-


riências profissionais de psicólogos clínicos humanistas diante de demandas
de sofrimento humano no trabalho. Sob o critério da amostragem não proba-
bilística (Turato, 2003), os colaboradores2 desta pesquisa foram 17 psicólo-
gos3, 16 escolhidos intencionalmente pela pesquisadora, que também foi
considerada colaboradora da pesquisa. Os pesquisados atuam no âmbito da
psicoterapia centrada na pessoa em diferentes localidades do Brasil.
Os colaboradores foram convidados a participar por e-mail, meio de
comunicação que permitiu agendar um horário em comum acordo com todos os
possíveis participantes de cada grupo. Foram considerados como critérios de
inclusão nos grupos de discussão que tais psicoterapeutas se disponibilizassem
a participar do estudo, que possuíssem um mínimo de três anos de experiência
como psicoterapeutas centrados na pessoa e que tivessem tido ao longo da sua
prática profissional experiência com clientes cujas demandas eram de sofri-
mento no trabalho. E como critério de exclusão o sujeito não poder, por qual-
quer motivo, participar dos encontros de discussão4.
Os cinco grupos de discussão ocorreram em diferentes momentos e
em diferentes locais que foram disponibilizados por clínicas em que alguns
desses psicoterapeutas atuavam. Nestes grupos, os psicoterapeutas narraram e

2
Optamos pelo termo colaboradores, visto ser mais coerente com a pesquisa fenomenológi-
ca (Moreira, 2004).
3
Na prática, participaram 20 psicoterapeutas, mas três deles, todos participantes de um
mesmo grupo, após o envio da análise preliminar, pediram para ser retirados da amostra.
4
Informações mais precisas sobre estes colaboradores e os resultados da pesquisa serão
comunicados quando da finalização da tese de doutorado de uma das autoras deste texto,
prevista para o início de 2013.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

compartilharam, num contexto dialógico, suas experiências sobre atendimentos


clínicos quando o foco era demanda de sofrimento humano no trabalho.
Os encontros duraram, cada um, em média 1h30 e foram gravados
e posteriormente transcritos, com a devida autorização dos colaboradores ao
assinarem Termos de Consentimento Livre e Esclarecido.
A discussão foi iniciada a partir de uma entrevista grupal cuja per-
gunta-disparadora foi: Como se dá a sua experiência na clínica quando a
demanda do cliente é sofrimento no trabalho?
Portanto, foram as experiências narradas pelos colaboradores da
pesquisa, à luz de um enfoque qualitativo, que foram compreendidas no es-
paço de relação pesquisadora (que buscou compreender as experiências,
sendo ela mesma psicoterapeuta humanista) e psicoterapeutas (que adotam
em suas práticas a perspectiva centrada na pessoa em psicoterapia), para,
posteriormente, ser descrito o fenômeno investigado e construído um parâ-
metro teórico sobre o mesmo (ação clínica humanista diante de demandas de
sofrimento humano no trabalho).
Durante os encontros, a pesquisadora participou ativamente do diálo-
go, criando um contexto intersubjetivo, sem esforço cognitivo ou afetivo para
afastar de si certos a-prioris que conhecia/possuía sobre o fenômeno investiga-
do, a abordagem clínica em psicoterapia em questão ou mesmo sobre a catego-
ria dos profissionais participantes. Consideramos que este posicionamento per-
mitiu a prática da epoché incompleta como defendida por Merleau-Ponty.
O diálogo foi conduzido pela conversação através da qual a pesqui-
sadora favoreceu ao grupo e a ela mesma testar e contestar suas verdades,
tanto que, ao fim de cada conversa, a maioria dos sujeitos, inclusive a pró-
pria pesquisadora, apresentava um posicionamento diferente em relação
àquele que defendia no início sobre o tema investigado, a prática adotada por
eles e pelos colegas do grupo ou mesmo sobre as experiências que iam nar-
rando durante a coleta.
Após a coleta de cada grupo, a pesquisadora procedeu à transcrição
e análise do material coletado, realizando, ao final, um texto que se mesclava
com trechos completos extraídos das narrativas dos sujeitos (incluindo as
dela mesma) e interpretação, que respeitava os objetivos específicos traçados
para a pesquisa. Esta interpretação se pautava por uma leitura crítica daquilo
que para a pesquisadora era seu foco de estudo: ação clínica humanista diante
de demandas de sofrimento no trabalho.
Após a análise de cada grupo, a pesquisadora as encaminhou por e-
mail para cada participante de cada grupo. Nem todos os sujeitos deram re-
torno ao e-mail enviado, mas houve a resposta de pelo menos dois sujeitos
194 Shirley Macêdo e Marcus Túlio Caldas

de cada grupo participante. Alguns retornaram justificando a não possibili-


dade momentânea de ler o material encaminhado, devido a compromissos
profissionais; outros analisaram rapidamente e responderam prontamente ao
e-mail recebido; alguns ficaram muito curiosos em ler a análise do diálogo,
enquanto outros enviaram suas observações ao final do prazo de retorno
definido pela pesquisadora (um mês).
Dentre estes sujeitos, a maioria concordou com a análise realizada
pela pesquisadora para o grupo do qual eles participaram. Alguns poucos,
que não concordaram, expuseram seus questionamentos ou mesmo pediram
que a pesquisadora refletisse sobre os termos que a mesma usou no texto da
análise. A alguns deles foi preciso dar esclarecimentos, também por e-mail,
sobre expressões merleau-pontyanas ou gadamerianas e, ao entenderem tais
termos, os sujeitos terminaram concordando com a análise realizada. Em
outros casos, a pesquisadora reformulou e adequou ao que os sujeitos reco-
nheciam como sendo necessário ser acrescentado e/ou modificado no texto
da análise. E houve, ainda, três sujeitos que pediram para ser retirados da
amostra por não considerarem adequada a metodologia de análise e a análise
nos termos da pesquisadora.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Discorrer sobre uma pesquisa fenomenológica é um desafio. Não


só porque é preciso que nós consigamos nos fazer compreendidos no uso do
método a partir das diversas fenomenologias, mas também porque o grau de
liberdade que vamos adquirindo ao longo do tempo de maturação na condu-
ção de pesquisas nos permite defender um ponto de vista que, por sua pró-
pria natureza, se atualiza a cada estudo finalizado.
O que constatamos ao final do estudo anteriormente descrito de
forma breve foi que o uso desta metodologia favoreceu evidenciar que o
conhecimento do pesquisador não deve ser suprimido no momento do diálo-
go, servindo como alavanca para desencadear uma discussão altamente pro-
fícua quando os agentes envolvidos compartilham experiências profissionais
comuns à do próprio pesquisador.
Além disso, numa pesquisa desta natureza, o entendimento her-
menêutico é mais dialógico e interativo quanto mais houver uma versão co-
letiva do entendimento, versão que se dá pela conversação, onde se intercru-
zam diversos horizontes. Neste ínterim, os sujeitos repensam suas verdades e
contestam-na, garantindo a criação, pela linguagem, de uma outra verdade
que nasce no contexto do diálogo.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

No exemplo demonstrativo, os psicólogos clínicos psicoterapeutas


repensaram não só a prática adotada, questionando seus posicionamentos
políticos, como também a própria teoria que embasa seus modelos de abor-
dagem à subjetividade, suas atitudes frente aos clientes e suas respectivas
demandas, assim como seus limites de atuação diante das demandas em
questão. Também questionaram suas inserções enquanto sujeitos que com-
partilham significados com seus clientes.
Por sua vez, a pesquisadora, ao intervir pela via do sentido da expe-
riência, sem perder de vista seus objetivos, favoreceu um movimento de
sincronia e diacronia de tradições, possibilitando a ela e aos sujeitos, através
da linguagem, chegar a uma nova verdade sobre seus conhecimentos teórico-
práticos.
Foi possível evidenciarmos, além disso, que aqueles psicoterapeu-
tas mais dogmáticos e tradicionais se impediram um diálogo respaldado por
uma abertura à contestação de suas verdades, enquanto aqueles que estavam
mais disponíveis expuseram sem receio suas práticas.
É possível concluir, portanto, que a metodologia adotada favoreceu o
alcance dos objetivos pretendidos, apresentando-se como uma possibilidade de
se desenvolver pesquisa fenomenológica hermenêutica. Mesmo que, ao anali-
sar solitariamente as narrativas, a pesquisadora termine não considerando cer-
tas partes do diálogo, porque elas não tiveram sentido para a mesma, se consi-
derarmos o conceito de intersubjetividade de Merleau-Ponty, veremos que esta
análise tem sentido no que foi compartilhado entre pesquisador e pesquisado.
O que pode ser confirmado quando do envio das análises preliminares aos
sujeitos que, em sua maioria, concordavam com a pesquisadora.
Por fim, sugerimos que experiências profissionais de outras abor-
dagens em psicologia clínica, assim como experiências de outras naturezas
sejam investigadas, a fim de se testar a utilidade de tal procedimento no âm-
bito dos estudos de experiências humanas.

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198 Shirley Macêdo e Marcus Túlio Caldas
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Parte 2

DAS MODALIDADES DE PRÁTICA


À PESQUISA EM INSTITUIÇÕES
200 Shirley Macêdo e Marcus Túlio Caldas
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

PSICODIAGNÓSTICO
COLABORATIVO: CONTRIBUIÇÕES DA
PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA
EXISTENCIAL
Danielle de Fátima da Cunha Cavalcanti de Siqueira Leite
Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Não basta abrir a janela


Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há arvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
(Caeiro, In: Pessoa, 2008, p. 157)

Sumário: 1. Percorrendo o Caminho: Estratégia Metodológica. 2. Possi-


bilidade Compreensiva: Interrogando o Fenômeno. 3. O Psi-
codiagnóstico Colaborativo: Tecendo Algumas Considerações.
4. Referências.

O Psicodiagnóstico, como modalidade de prática psicológica, surge


no fim do século XIX, junto com a Psicologia Clínica, sendo fortemente
influenciado pelo paradigma técnico-cientificista (Cunha, 2002). Esta prática
psicológica, em sua origem, foi fortemente marcada pela psicometria, sendo
os testes psicométricos os principais, senão os únicos instrumentos utiliza-
dos. Esse modelo do Psicodiagnóstico buscava “a exatidão dos dados coleta-
dos” e compreendia “o homem como uma soma de características ou de fato-
res passíveis de mensuração”, sendo “o método quantitativo” a base de sus-
202 Danielle de F. da C. C. de S. Leite e Carmem L. B. T. Barreto

tentação de tais estudos, das investigações e da prática psicológica (Yehia,


2009, p. 65). Nessa perspectiva, o Psicodiagnóstico voltava-se para medir,
quantificar e avaliar as estruturas psicológicas do paciente, seguindo o rigor
médico-científico predominante na época.
Em oposição a essa prática e devido à difusão da psicanálise no
âmbito universitário, muitos psicólogos transferiram a dinâmica do processo
psicanalítico para a ação do Psicodiagnóstico. Entretanto, tais profissionais
não levaram em consideração as especificidades dessa prática, supervalori-
zando as técnicas psicanalíticas e renegando os testes psicométricos a um
segundo plano (Ocampo & Arzeno, 2003).
Buscando um enquadramento para o Psicodiagnóstico, Ocampo e
Arzeno (2003, p. 11) propõem um modelo que objetiva “conseguir uma des-
crição e compreensão, a mais profunda e completa possível, da personalida-
de total do paciente ou do grupo familiar”, visando a realizar o encaminha-
mento terapêutico necessário. Tal proposta não se satisfaz em apenas quanti-
ficar e mencionar os elementos constitutivos da personalidade do paciente,
mas se dispõe a realizar um panorama preciso e completo de cada caso, ten-
tando obter os aspectos patológicos e adaptativos do paciente. Para alcançar
tal objetivo, o profissional faz uso de algumas técnicas – entrevista semidiri-
gida, testes ou técnicas projetivas e entrevistas de devolução – buscando
abranger aspectos significativos do passado, presente (diagnóstico) e futuro
(prognóstico) do paciente. Nessa perspectiva, o Psicodiagnóstico é uma prá-
tica bastante delimitada com começo, meio e fim, com separação nítida entre
a primeira fase – a coleta de informações – e a etapa final, momento da de-
volutiva e de realizar a indicação terapêutica. Constitui-se, pois, em uma
prática investigativa e/ou avaliativa, não se comprometendo com a mobiliza-
ção e o desvelamento de sentido e/ou com a ampliação da compreensão
acerca do vivido por parte do paciente.
Esse Psicodiagnóstico Tradicional ainda hoje é utilizado por psi-
cólogos que se dedicam à realização dessa modalidade de prática psicológi-
ca. Entretanto, alguns psicólogos já apresentam duras críticas a essa prática,
que mobilizam rupturas e outros modos de fazer/pensá-la. Nesta direção,
Yehia (2009, p. 65) alerta que:

(...) seja com os testes de nível intelectual, mais diretamente associado


à tradição psicométrica, seja com os testes projetivos e a entrevista,
procedimentos decorrentes dos conhecimentos trazidos da psicanálise,
encontramos o psicólogo enveredado por algo já constituído (as teo-
rias e as técnicas), a partir do que se investigava o objeto de estudo,
com o qual não podia se envolver sob o risco de perder a precisão dos
resultados.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Assim, a autora ressalta que tal aparente neutralidade almejada


constitui-se numa armadilha perigosa, uma vez que o psicólogo, ao basear-se
em algo já constituído (as técnicas e as teorias), terá dificuldades em reco-
nhecer e separar o que realmente foi observado e o que resultou de suas
compreensões teóricas prévias. Destarte, tal prática sustenta e corrobora para
o desenvolvimento de uma relação assimétrica, em que o psicólogo, detentor
do saber, encontra-se no topo hierárquico, e o paciente e seus familiares,
meros informantes e receptores passivos – constituem a base de tal pirâmide.
Conforme Santiago (1995), este modelo do Psicodiagnóstico volta-
se para atender a necessidade do psicólogo de conhecer e diagnosticar o que,
por sua vez, pode intensificar a ansiedade do paciente, atrapalhando o desen-
rolar do processo e dificultando o seu engajamento no atendimento posterior
– no encaminhamento realizado pelo psicólogo. A esse respeito, Yehia
(1995) observou em sua prática que os pais – nos casos de atendimentos à
criança – que passam pelo Psicodiagnóstico Tradicional, na maior parte das
vezes que comparecem ao encaminhamento realizado, demonstram-se pouco
motivados. E quando são questionados sobre o processo, limitam-se a repetir
as queixas iniciais, agora acrescidas de uma indicação terapêutica.
Partindo, pois, de tais críticas, Ancona-Lopez, M. (1995), Ancona-
-Lopez, S. (1995), Yehia (1995), Santiago (1995), Cupertino (1995), entre ou-
tros psicólogos/pesquisadores apontam para outro modo de fazer/pensar o Psi-
codiagnóstico, que não apenas considera seu valor investigativo, mas também
destaca seu valor compreensivo e terapêutico. Eles o denominam de Psicodia-
gnóstico Interventivo1, ao enfatizar sua dimensão interventiva/terapêutica, des-
tacando que o cliente deve ser acolhido em seu sofrimento desde o primeiro
contato/encontro, e que as compreensões e considerações trazidas por este de-
vem ser levadas em conta durante todo o processo.
Para Yehia (1995) este outro modo de fazer/pensar o Psicodia-
gnóstico constitui-se num espaço de cooperação, onde ambas as partes –
psicólogo e cliente – são chamados a assumir-se ativamente no processo,
possibilitando o compartilhamento das impressões, compreensões e inter-
pretações sobre o vivido. Estas não precisam ser iguais ou complementares,
podendo ser até mesmo opostas. Mas será fundamental que tais compreen-
sões e interpretações sejam compartilhadas, e que ambos, terapeuta e cliente,
envolvam-se num jogo compreensivo. Nessa perspectiva, psicólogo e cliente
encontram-se, a partir de pontos de vistas diferentes, mas igualmente im-
portantes, colaborando na tarefa de desvelar sentido e possibilidades da

1
O Psicodiagnóstico Interventivo pode ser encontrado na literatura tanto a partir de uma
perspectiva da fenomenologia como da psicanálise, mas, para efeito desse estudo, foram
enfocados os autores que adotam uma orientação fenomenológica existencial.
204 Danielle de F. da C. C. de S. Leite e Carmem L. B. T. Barreto

existência de um deles, o cliente (Cupertino, 1995). Não há, pois, uma


compreensão – diagnóstico – fechada e inalterada; mas todas as proposi-
ções teóricas serão apenas possibilidades de compreender o fenômeno e
não a única e verdadeira possível.
Nessa perspectiva, o Psicodiagnóstico reavalia as atitudes do cli-
ente e do psicólogo – este último estará “mais interessado em acompanhar
seu cliente a engajar-se em um processo contínuo de autodiagnóstico em vez
de se limitar a compreender sozinho o problema” (Yehia, 2009, p. 66, grifo
da autora) – enquanto o cliente, ao engajar-se no processo, constitui-se em
um parceiro/interlocutor ativo na busca de desvelamento de sentido e na
ampliação de sua demanda. Assim, o Psicodiagnóstico caracteriza-se como
um processo de coparticipação e de coconstrução de sentido; sendo, a partir
desta compreensão, que Yehia (2004) aponta para a dimensão colaborativa
dessa prática psicológica, nomeando-a Psicodiagnóstico Colaborativo.
Partindo dessa compreensão, o presente trabalho visou refletir/in-
terrogar a modalidade de prática do Psicodiagnóstico Colaborativo/Interven-
tivo, buscando ampliar a compreensão dessa dimensão colaborativa, a partir
de uma conversação com outros psicólogos que também realizam esta práti-
ca numa perspectiva fenomenológica existencial.

1 PERCORRENDO O CAMINHO: ESTRATÉGIA


METODOLÓGICA

(...)
Não sabia que caminho tomar
Mas o vento soprava forte,
E segui o caminho para onde o vento me soprava nas costas.
Assim tem sido sempre a minha vida, e assim quero que possa ser sempre –
Vou onde o vento me leva e não me deixo pensar. (Caeiro, in: Pessoa,
2008, p. 160)

A metodologia utilizada segue uma pesquisa de natureza fenome-


nológica hermenêutica, privilegiando a compreensão interpretativa fundada
na Hermenêutica Filosófica de Gadamer, articulada à ontologia do ser de
Heidegger. Conforme ressalta Schwandt (2008), nesta estratégia metodológi-
ca, o pesquisador tem um papel ativo na construção do sentido desvelado
pela pesquisa, rompendo com a compreensão tradicionalista de observação
neutra, guiada pelo paradigma metafísico que legitima a visão dicotômica
sujeito-objeto como essência do processo do conhecimento.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

A compreensão, nessa perspectiva, deixa de ser assumida como um


processo apenas intelectual, passando a ser entendida como uma possibilida-
de da existência do ser humano (Dasein), do poder-ser. Nessa direção,
Vattimo (1996, pp. 35-36) lembra que:

A impossibilidade de sair da precompreensão que já sempre temos do


mundo e dos significados (uma vez eliminado o pressuposto do ser das
coisas entendido como simples-presença) não é algo negativo ou limi-
tante, não constitui a nossa própria possibilidade de encontrar o mun-
do. O conhecimento não é um ir do sujeito para um “objeto” simples-
mente-presença ou vice-versa, a interiorização de um objeto (originari-
amente separado) por parte de um sujeito originariamente vazio. O co-
nhecimento é antes a articulação de uma compreensão originária em
que as coisas estão já descobertas. Esta articulação chama-se inter-
pretação (Auslegung).

A interpretação, portanto, constitui-se na própria compreensão, cor-


respondendo à coelaboração das “possibilidades projetadas no compreender”
(Heidegger, 2008, p. 209). Nesse sentido, o conhecimento apresenta-se como
elaboração constitutiva e originária da relação com o mundo que constitui o
Dasein, estando remetido à compreensão do círculo hermenêutico.
Gadamer, assim como seu mestre Heidegger, concebe a compreen-
são em sua dimensão ontológica, mas se volta para o movimento da compre-
ensão e da situação hermenêutica em sua especificidade. Dessa forma, reco-
nhece a “tradição” como fundamental ao processo do conhecimento e não
mais vê os pressupostos como sendo uma forma distorcida do “pensamento
que precisa ser lapidado antes de vermos o mundo corretamente” (Lawn,
2007, p. 12). Pelo contrário, para o autor, todo conhecimento presume a
existência de pressupostos (de uma tradição) que, ao serem colocados em
xeque, possibilitam a própria compreensão/interpretação.
Nessa perspectiva, a interpretação implica um encontro de hori-
zontes que abre o Dasein para a possibilidade de rever e refletir suas tradi-
ções. Estas não são algo imutável e congelado no passado, mas estão sempre
em movimento contínuo de reivindicações do presente e do futuro, que pos-
sibilitam transformações. Assim, para Gadamer o conhecimento acontece
pela fusão de horizontes, e não na reprodução racional do discurso que o
intérprete pretende compreender.
Importa ressaltar que a presente pesquisa buscou interrogar a mo-
dalidade de prática psicológica do Psicodiagnóstico a partir de uma perspec-
tiva da clínica fenomenológica existencial articulada à hermenêutica filosófi-
ca de Gadamer, visando ampliar a compreensão de sua dimensão colaborati-
206 Danielle de F. da C. C. de S. Leite e Carmem L. B. T. Barreto

va. Nessa jornada, teve-se como interlocutores (colaboradores) profissionais


de psicologia que realizam o Psicodiagnóstico numa perspectiva fenomeno-
lógica existencial.
Como possibilidade para viabilizar o “encontro” da pesquisadora
com seus interlocutores (colaboradores da pesquisa), visando ao desvela-
mento da teia de nexos que acontece na circularidade da situação hermenêu-
tica, adotou-se como “instrumento” para a colheita, a narrativa como pro-
posta por Walter Benjamim (1994). Este compreende a figura do narrador
como aquele que se debruça à elaboração da experiência. O narrador, ao
narrar, fala de si, mas não limita o campo da interpretação, impondo a ação
ao ouvinte/leitor. A arte da narrativa, ao mesmo tempo em que possibilita ao
narrador elaborar sua experiência, permite ao ouvinte/leitor “incorporar” as
coisas narradas a sua experiência, possibilitando-os ampliarem seus campos
de circunvisões/seus horizontes compreensivos.
Esse “instrumento” – ao lançar mão da figura do narrador – ressalta
a ambiguidade que sustenta a elaboração da experiência, condição que possi-
bilita a singularização e também conhecer a própria história, a partir do lugar
em que se está. Assim, a narrativa pode ser utilizada como “instrumento”,
colocando-se à disposição da interrogação da ação que se pretende compre-
ender. Ela possibilita a circunscrição de acontecimentos da vida do narra-
dor/colaborador que interessam ao ouvinte/pesquisador, o qual, por sua vez,
interfere no relato propondo a região da experiência do narrador que lhe inte-
ressa. A narrativa é, nesse sentido, um momento de encontro do pesquisador
com a dimensão circunscrita das experiências dos colaboradores necessárias
à elaboração da pesquisa.
A pergunta provocadora que possibilitou dar início às narrativas
foi: “A partir de sua experiência, como você compreende o Psicodiagnóstico
Interventivo/Colaborativo?”.
O grupo de colaboradores foi formado por quatro profissionais de
Psicologia, sendo três mulheres e um homem. Uma das mulheres trabalha em
um ambulatório, estando vinculada ao serviço público de saúde da cidade do
Recife, e os outros três, em clínicas-escola de universidades particulares da
cidade de São Paulo. Todos os psicólogos/interlocutores trabalham com o
Psicodiagnóstico com famílias (crianças e seus pais/responsáveis), podendo
este acontecer de modo individual ou grupal.
Como movimento de desvelamento do real, adotou-se a Analítica
do Sentido, como proposta por Critelli (2007), que parte da perspectiva hei-
deggeriana e do pensamento de Hannah Arendt. Tal método busca o olhar
que vê a manifestação dos modos e do movimento do fenômeno a ser conhe-
cido, procurando “apreender”, “distinguir” e “expressar” o fenômeno-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

estudado em sua face fenomênica. Ele volta-se, pois, para interrogar o que se
procura conhecer sem retirá-lo do movimento circular de desvelamento e
ocultação, próprio à manifestação do ser dos entes.
Nesse sentido, Barreto (2006, p. 154) ressalta que o olhar do pes-
quisador, “atento à complexidade do ser em seu aparecer e ocultar-se”, visa
“descobrir e compreender o sentido de ser daquilo a que se lança, na inten-
ção de conhecer”. Tal olhar, ainda conforme destaca a autora, não é um olhar
individual, mas coexistente que, enquanto condição ontológica do ser ho-
mem, possibilita toda e qualquer compreensão e conhecimento. Impõe, pois,
ao pesquisador assumir o olhar fenomenológico que permite o desvelamento
da teia de nexos, levando à reflexão e ao reconhecimento das interpretações
das problemáticas apresentadas, percorrendo a trilha do sentido.
A compreensão e interpretação do real implicam, nessa perspecti-
va, uma relação de aproximação e distanciamento entre o narrador-
colaborador e o ouvinte-pesquisador, que possibilita o “reconhecimento” de
uma compreensão do fenômeno desvelado no encontro, tendo em vista a
necessidade de interlocução permanente da ação e do sentido das experiênci-
as vivenciadas. Assim, tal caminho revelou-se como o mais adequado à natu-
reza hermenêutica interpretativa da pesquisa. E o texto-narrativo-escrito, que
segue, apresenta-se como compreensão interpretativa do fenômeno-estudado
– que foi desvelado, revelado, testemunhado, veracizado e autentificado pe-
los colaboradores e pelas pesquisadoras –, articulado aos pressupostos epis-
temológicos que sustentam a pesquisa.

2 POSSIBILIDADE COMPREENSIVA: INTERROGANDO O


FENÔMENO

O difícil em uma colcha de retalhos assim...


é que cada um [dos retalhos] foi feito por alguém diferente...
Preciso agrupá-los de certa maneira que deem equilíbrio e harmonia ao
desenho...
Primeiro, precisa-se de um tema...
(Ana, in: Moorhouse, 1995)

Na tentativa de desvelar o acontecimento que se dá no tex-


to/narrativo/escrito que se apresenta, recorreu-se à metáfora da tessitura de
uma colcha de retalhos usada pelo filme americano “How to make an ameri-
can quilt” – intitulado em português como “Colcha de Retalhos”, citado na
epígrafe acima.
208 Danielle de F. da C. C. de S. Leite e Carmem L. B. T. Barreto

Esse filme narra a história de uma jovem chamada Finn, que passa
por momentos decisivos em sua vida. Na tentativa de terminar sua tese e
dividida pela vontade de casar-se com “o amor de sua vida”, e o medo de
perder sua liberdade, viaja para passar três meses na casa de sua avó e de sua
tia-avó. Essas senhoras – que possuem uma relação conflitante, marcada por
rompimentos e feridas abertas no passado – juntamente com mais cinco ami-
gas formam um grupo de mulheres que se reúnem, há décadas, para confec-
cionar colchas de retalhos. Na ocasião, devido ao casamento da jovem, elas
tecem uma colcha que tem como tema: “Onde mora o amor?”. Na medida
em que os retalhos vão sendo bordados, há um resgate das histórias e das
experiências amorosas dessas senhoras, revelando-nos o passado presente e o
presente futuro. Cada um dos retalhos construído apresenta-se como o tecer
da vida afetiva/amorosa de suas protagonistas e revela segredos, sentimentos
e conflitos que, ao serem narrados, permitem a tematização do vivido e o
desvelamento da trama. Tais retalhos unidos possibilitam o surgimento de
algo novo – a colcha de retalhos – que pode ser compreendida como a teia de
sentido que dá vida ao filme. Ou seja, uma compreensão do que é o amor,
que não se reduz à reprodução ou a sobreposição de nenhum dos horizontes
dos interlocutores envolvidos na trama, mas apresenta-se como algo
novo/outro que se dá na interpenetração desses horizontes, numa “fusão” de
horizontes. Nessa direção, a colcha é tecida e destecida, evidenciando a cir-
cularidade temporal própria à existência humana. Todo o filme compõe uma
diversidade de metáforas e seu enredo enfoca as relações humanas, privilegi-
ando, principalmente, as afetivas.
Seguindo a metáfora do filme, buscou-se tecer uma colcha de re-
talho que teve como tema “a prática do Psicodiagnóstico numa clínica feno-
menológica existencial”. Nesta, as narrativas dos psicólogos/interlocutores
são os retalhos que, costurados, possibilitaram o aparecer da colcha. Vale
destacar que, com o intuito de identificar cada interlocutor – resguardando
suas identidades – foram adotados nomes fictícios – correspondendo cada
participante ao nome de um tecido: Veludo, Algodão, Seda e Linho. Com
isto, visou-se contemplar a diversidade dos tecidos dos retalhos que, no apa-
recer da colcha, revelam a multiplicidade na unidade da obra.
Nessa coprodução/encontro, as autoras assumiram o lugar de costu-
reiras, que não apenas unem os retalhos, mas que ao costurá-los, deixam na
colcha algo de si, envolvendo-se com e no processo criativo de “des-
ocultamento” da colcha que se “tece” e “re-tece”. Para tanto, disponibiliza-
ram-se a acolher o fenômeno que se mostra sem retirá-lo de seu movimento
fenomênico e a “costurá-lo”, tendo como linha a perspectiva fenomenológica
existencial, possibilitando uma compreensão interpretativa do fenômeno
interrogado.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Dando início à tessitura da “colcha-de-retalhos”, vale ressaltar que


o Psicodiagnóstico Interventivo2 caracteriza-se: “[...] essencialmente, por
duas questões: uma é a participação ativa dos pais no processo de Psicodia-
gnóstico; e outra é a intervenção dos psicólogos junto à criança e junto aos
pais (Linho)”.
Nesse sentido, os pais passam a ser vistos como “[...] colaborado-
res, eles são coparticipantes nesse processo, eles são atuantes... (Linho).
Ajudam a construir o Psicodiagnóstico e tiram o psicólogo do lugar de de-
tentor do saber, de que a responsabilidade de diagnosticar a criança é só do
psicólogo... (Algodão). Os pais são participantes ativos. No diagnóstico que
eu faço... deixam de ser meros informantes da história de vida da criança...
(Seda)”.
E no que diz respeito às intervenções, Algodão e Seda ressaltam
que:

São feitas devoluções parciais, ao longo do processo, a gente vai pensan-


do em voz alta e vai dando para eles que caminhos que a gente está se-
guindo, que a gente está pensando, que a gente está investigando... (Al-
godão). A gente está fazendo, o tempo todo, devolutivas parciais... Eu vou
contando, a cada sessão, o que eu vou percebendo, quando eu vou perce-
bendo, não é que a gente tenha a obrigação de perceber coisas em todos
os momentos ou em todas as sessões... (Seda).

Importa destacar que tal compreensão do Psicodiagnóstico amplia


o sentido de intervenção e atribui outro lugar aos pais/responsáveis nesse
processo, possibilitando pensar este contexto como uma prática interventiva,
que interrogará o fenômeno no momento em que se desvela. A ação clínica
passa a privilegiar a experiência do cliente, caracterizando o Psicodiagnósti-
co Interventivo como um espaço co-operativo, onde psicólogo e cliente (pais
e crianças) são concebidos como personagens principais desse enredo. Foi,
pois, a partir dessa compreensão de pais/responsáveis e psicólogos como
coparticipantes que Yehia (2004, 2009) primeiro apontou para a dimensão
colaborativa dessa prática clínica.
Nessa direção, o Psicodiagnóstico apresenta-se como:

uma forma diferente de ofertar cuidado... diferente daquela outra em que


era um degrau para a ludoterapia (...) tem sua especificidade... sim... uma

2
Denominação dada pelos interlocutores a suas práticas nesta modalidade de prática psi-
cológica, referendando a compreensão apresentada no livro Psicodiagnóstico: processo de
intervenção, coordenado por M. Ancona-Lopez, publicado originalmente em 1995.
210 Danielle de F. da C. C. de S. Leite e Carmem L. B. T. Barreto

outra modalidade de atuação clínica... como posso dizer?... de se relaci-


onar com as mães, com a criança... me ensina sobre elas... (...) Os deta-
lhes na história – nas narrativas – são muitos, desalojam configurações
tradicionais de assistência. Assim, aprendo muito no Psicodiagnóstico.
(...) “Uma atenção”... uma “atenção, como resposta possível à compre-
ensão do vivido como mal-estar... precisam falar... dialogar... [...] favo-
rece e ajuda a cuidar... Eu entendo como possibilidade de comunicar... de
trocas importantes, amplia o sentido que temos de demanda e de inter-
venção... um processo que envolve relações, falas, escuta, vínculos, in-
sight... em que se inicia, mas não se tem claro o término da atenção favo-
recida... (Veludo).

Ao abrir espaço para acolher o mistério da vida, o fenômeno em


sua singularização e em seu movimento de “des-ocultação”, o psicólogo não
mais se caracteriza como um técnico “detentor do saber que oferece respos-
tas às perguntas trazidas pelos clientes” (Yehia, 1995, p. 119), mas é, antes
de tudo, uma pessoa que possui conhecimentos específicos, que podem vir
ao encontro para acompanhar o cliente a se apropriar de sua experiência,
assumir-se como narrador de sua própria história. Todavia, importa deixar
claro que tais conhecimentos (compreensões) não correspondem à verdade
única e universal, mas a uma possibilidade de se olhar para o fenômeno que
se desvela. Dessa forma, abre-se a possibilidade de deixar vir, ao encontro,
aquilo que se mostra, viabilizando o “des-cobrir” de uma compreensão con-
junta entre psicólogo e cliente.
Como destacam Pompeia e Sapienza (2011, p. 131), ao psicólogo é
possível “apenas” comprometer-se com o cliente a trilhar “um caminho em
que, juntos, se aproximarão da história vivida por ele, dos seus modos de ser
consigo mesmo e com os outros, dos seus planos de futuro, do que tem
constituído a sua vida, incluindo aí aquilo que o fez buscar a ajuda psicológi-
ca. Nessa perspectiva, importa assumir a atitude fenomenológica, atitude de
questionamento, desapego, para a qual nada se encontra, inicialmente super-
valorizada ou excluída a partir de pressupostos teóricos fundamentados. Não
havendo nada que já seja previamente sabido ou predeterminado.
A atitude fenomenológica – recorrendo ao poema de Alberto Caeiro
(Pessoa, 2008, p. 49) – apresenta-se como um aprender a desaprender, pois:

O que nós vemos das cousas são as cousas.


Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seriam iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?
O essencial é saber ver,
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Saber ver sem estar a pensar,


Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

Para tanto, assumir a atitude fenomenológica implica um despir-


se, nós que trazemos a alma vestida necessitamos aprender a pôr em xeque
nossos pressupostos e prática, disponibilizando-nos a ver e ouvir as coisas
(fenômenos) como se mostram. A ação clínica vincula-se, assim, à noção
de Cuidado (Sorge), distanciando-se de uma atitude prescritiva e explicati-
va. Enquanto Cuidado, a ação clínica pode ser compreendida como um
aguardar que acompanha o cliente em um processo de “des-cobrimento”,
que o “con-voca” a assumir sua tarefa de “cuidar-de-ser” de um modo
“mais singularizante”. Importa deixar claro que assumir tal atitude e com-
preensão da ação clínica na prática do Psicodiagnóstico, implica o psicólo-
go lançar-se em terrenos movediços nunca antes navegados, não sendo
possível derterminá-lo previamente, mas tão somente acompanhar o cami-
nho em seu caminhar.
A partir dessa perspectiva, o Psicodiagnóstico apresenta-se como
uma prática psicológica de difíceis “definições” e grande complexidade,
sendo, muitas vezes, complicado tentar de-marcá-la, visto sua impossibilida-
de de se encaixar ou reduzir-se a um único modo de fazer/pensá-la – “Deixa-
me ver por onde é que eu começo...”. (Linho). “Não sei bem como falar...
Vou contar o que faço, talvez você possa entender...”. (Veludo). “Deixa eu
voltar a como é que eu comecei essa prática, porque talvez fique mais fácil
de explicar o caminho...”. (Algodão) – Assim, parece que falar do Psicodia-
gnóstico, tentar tecer uma compreensão dessa prática a partir da fenomeno-
logia existencial, nos convoca a ser narradores-atores de nossa própria histó-
ria, possibilitando o desvelar de uma diversidade de modos e formas de
compreender/pensar tal prática. Implica, pois, um questionar-se constante,
212 Danielle de F. da C. C. de S. Leite e Carmem L. B. T. Barreto

demandando disponibilidade e abertura para o inesperado, não se resumindo


a modelos padronizados e/ou previamente definidos.
O Psicodiagnóstico, nesta perspectiva, apresenta-se como um espa-
ço de abertura, reflexão e acolhimento ao sofrimento humano, que lança o
psicólogo em direção à imprevisibilidade e privilegia a flexibilidade e a cria-
tividade como condições importantes da ação clínica. Nesse sentido, Linho,
Seda e Algodão revelam que nesse processo compreensivo, o que vai ser
considerado para possibilitar interpretar, traduzir em palavras

o universo da criança vai variar de caso para caso. Então, eu não tenho
exatamente um estereótipo: todo mundo vai fazer colagem, todo mundo
vai fazer observação lúdica... eu vou variando isso de caso pra caso...
(Linho). Eu não aplico testes com a criança, eu trabalho com a criança
com observações lúdicas, desenho, entendendo o brincar dela, o contar
histórias... (...) eu acredito que a gente pode... trabalhar com a nossa cri-
atividade, com o nosso potencial de pensar em instrumentos que não se-
jam padronizados, para não encaixar... (Seda). Não é que eu não vou, de
jeito nenhum, utilizar o teste, mas que eu vou usar quando e se necessá-
rio... Até porque, o resultado do teste, quando ele é usado, é também tra-
zido e discutido em sessão com os pais. Então, é aplicado determinado
instrumento e nós chegamos a este resultado, vamos pensar a respeito
desse resultado. Ele não vem como uma coisa estática, ele vem como um
dado a ser questionado, a ser conversado sobre... com os presentes, é
outro jeito até de usar a técnica psicológica, aparentemente, tão quadra-
dinha, fechada... (Algodão)

Assim, realizar o Psicodiagnóstico numa perspectiva da fenome-


nologia existencial implica poder dizer sim e não, ao mesmo tempo, à tecni-
cidade própria à Psicologia como ciência e profissão, a todo esse arsenal de
conhecimento e instrumentos que circunscreve o campo da prática psicológi-
ca. Tal atitude pode ser uma possibilidade de “resgate” da ação clínica das
armadilhas e armaduras próprias ao modo de ser tecnicista ocidental. Acerca
dessa atitude de dizer sim e não à técnica, Heidegger (2000, p. 24, grifo do
autor) aponta que é importante deixarmos:

[...] os objectos técnicos entrar em nosso mundo quotidiano e ao mesmo


tempo deixamo-los fora, isto é, deixamo-los repousar em si mesmos como
coisas que não são algo absoluto, mas que dependem elas próprias de
algo superior. Gostaria de designar esta atitude do sim e do não simultâ-
neos em relação ao mundo técnico, com uma palavra antiga: a serenida-
de para com as coisas (die Gelassenheit zu den Dingen).
Nesta atitude já não vemos as coisas apenas do ponto de vista da técnica.
Tornamo-nos clarividentes e verificamos que o fabrico e a utilização de
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

máquinas exigem de nós, na realidade, uma outra relação com as coisas


que, não obstante, não é sem-sentido (sinn-los). Assim, por exemplo, a
lavoura e a agricultura transformam-se em indústria alimentar motoriza-
da. Não restam dúvidas que aqui – bem como noutros domínios – se está
a operar uma transformação profunda na relação do homem com a natu-
reza e com o mundo. O sentido que rege esta transformação permanece,
todavia, obscuro.

Para o filósofo, “a origem da técnica reside na maneira como nos


defrontamos com a natureza. Se a deixamos acontecer por si – como na re-
presentação grega antiga da aletheia – ou se a provocamos”, como faz a téc-
nica moderna (Safranski, 2005, p. 463).
O modo de pensar metafísico – origem da técnica moderna – con-
cebe a natureza (o mundo) – e até mesmo o homem – como fundo inesgotá-
vel de reserva que pode ser comprovado e explicado por meio de cálculos e
fórmulas matemáticas, podendo, assim, ser manipulado e reproduzido. Nessa
direção, tudo que é passa “a ser conformes ao modo de ser do homem e à sua
verdade” (Duarte, 2010, p. 28), aumentando cada vez mais a vontade de
controle e poder. Sob esta primazia, tudo que é e/ou existe (ou pode vir a ser)
passa a ser representado intelectualmente, apreendido (e reduzido) a imagens
conceitualizadas e universalizadas, inclusive o ser do homem. O mundo tor-
na-se, assim, obscuro, desenraizado, superficial, desprovido de raízes e refe-
renciais ontológicos (Heidegger, 2000). E a ação clínica reduz-se a “técnicas
psicológicas” que podem ser aplicadas visando-se à apreensão da verdade
acerca do ser investigado/avaliado, possibilitando alcançar um resultado
“[...] previsto com exatidão, segurança e rapidez [...]” (Pompeia & Sapienza,
2011, p. 127).
Em oposição a essa concepção da técnica moderna, o filósofo res-
gata a compreensão de téchne, presente no modo de ser dos artesães, que
possibilita que a obra se revele do seu próprio ocultamento. Nessa compre-
ensão, a ação clínica apresenta-se como aguardar, que se coloca junto ao
cliente velando o “des-abrochar” de uma possibilidade compreensiva.
Aguardar, não no sentido de passividade, mas em aguardar, o que deixa
“aberto aquilo porque aguardamos” (Heidegger, 2000, p. 43).
Indo nessa direção e, ao mesmo tempo, contrapondo-se a ela, os
interlocutores/psicólogos revelam em suas narrativas formas singulares da
ação clínica acontecer no Psicodiagnóstico Interventivo:

O processo todo é sete sessões... três com os adultos, três com as crian-
ça; já me orientaram fazer tudo junto... Na supervisão me indagaram
por que não faço junto com pais e crianças, fiquei receosa pela condi-
214 Danielle de F. da C. C. de S. Leite e Carmem L. B. T. Barreto

ção ambiental que a Saúde Pública oferece, não há espaço para o gru-
po infantil, imagine com os pais... (...) Junto ao adulto que traz o enca-
minhamento infantil, fazemos, inicialmente, a escuta dos motivos que
mobilizaram para o atendimento psicológico... Nessa, evidenciamos o
sentido que o cuidador atribui à experiência infantil... (...) Buscamos
favorecer uma atenção ao cuidador e a sua criança, solicitantes de
atendimento psicológico... (...) possibilidade de compreender um sofri-
mento, buscando dialogar para intervir, recorrendo às pessoas deman-
dantes, participação e protagonismo... (...) A dialogia permite entender
o quanto estamos distante da concepção do sofrimento, do ponto de
vista de quem sofre... (Veludo).
Sempre que a gente atende a criança, na semana seguinte, converso com
os pais o que foi observado, o que foi pensado, como é que a gente está
vendo aquela criança... E, junto com os pais, ver o que vai ser feito... não
exatamente o que vai ser feito, mas o que precisa ser investigado... (...)
Eu tenho essa “veia familiar”, então gosto de juntar as pessoas e traba-
lhar o que está acontecendo na hora em que está acontecendo... (...) Mas
sempre intercalando, a gente faz uma atividade e volta na semana se-
guinte... conversa com os pais, vê como é que foi isso, como é que eles
entenderam, como é que... como é que está durante a semana... Tendo ou
não a sessão em si, tem o que ser conversado com os pais (Algodão).

Fazer/Pensar o Psicodiagnóstico a partir de uma clínica fenomenoló-


gica existencial, permite-nos, pois, “des-ocultar” modos singulares da ação
clínica. Veludo narra suas dificuldades diante do contexto da Saúde Pública,
onde percebe ser complicado realizar encontro dos pais/responsáveis e suas
crianças (filhos) juntos, delimitando o Psicodiagnóstico a sete encontros. Al-
godão ressalta sua própria história, formação como psicólogo, destacando a
importância dos pais/responsáveis se apropriarem de seu espaço, no processo
do Psicodiagnóstico, para assumirem a direção desse caminhar de modo con-
junto ao psicólogo, apontando para a dimensão colaborativa desta prática.
Assim como nossos colaboradores/interlocutores, realizamos o Psi-
codiagnóstico tanto de modo individual, como em grupo – com famílias
(crianças e seus responsáveis) – não havendo uma delimitação prévia do que
vai acontecer a cada processo, a cada encontro, a cada grupo. O Psicodia-
gnóstico “se inicia, mas não se tem claro o término da atenção favoreci-
da...”. (Veludo). Nossa experiência lança-nos, pois, diante da imprevisibili-
dade desse acontecer, visto não ser possível pre-ver, pré-determinar o que vai
acontecer, qual caminho será percorrido, onde se há de se chegar ao final.
Importa destacar ainda que, como três dos nossos interlocutores,
nossa prática com o Psicodiagnóstico acontece no espaço-temporal de uma
clínica-escola, tendo-se por referência temporal a duração de um semestre, o
que possibilita em média dez a doze encontros. Dentro desse período, acon-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

tecem alguns encontros apenas com os pais/responsáveis, outros com as cri-


anças e outros com os pais/responsáveis junto com as crianças (a família). A
ordem e o como eles acontecerão não são previamente definidos, isso depen-
derá do caminho assumido por aquela família individual ou pelo grupo,
quando constituído por várias famílias juntas – o caminho desvela-se, pois,
no próprio caminhar. Assim, é possível afirmar que nenhum grupo ou pro-
cesso individual do Psicodiagnóstico é igual a outro, pois cada um tecerá e
re-tecerá sua própria história, seu próprio caminho. Regatando a metáfora da
colcha de retalho, vale lembrar que cada processo, como uma coprodução
artesanal, sempre será único e singular.
Destarte, cabe chamar atenção para a necessidade de “cuidar” da
prática clínica no processo do Psicodiagnóstico, visto que o enquadramento
prévio em um modo de fazer/pensá-la pode constituir-se em uma armadilha,
ao negligenciar a multiplicidade e a complexidade dessa prática em prol de
um engessamento, transformando-a em uma técnica que pode ser aplicada
para se chegar a um fim predefinido – o diagnóstico e o possível encami-
nhamento. Faz-se, assim, necessário que a atitude fenomenológica seja fun-
dante da ação clínica, permitindo acolher a experiência como norteadora da
intervenção, o que também nos lança em direção da dimensão colaborativa
dessa prática clínica.
Vale ressaltar que o Psicodiagnóstico quando ocorre em grupo,
principalmente no contexto de uma clínica-escola – que conta com a partici-
pação dos estagiários – ainda

[...] causa um espanto muito grande, principalmente, nos alunos que vão...
nos estagiários que participam desse diagnóstico... [...] E aí: “Como é para
uma mãe expor o problema dela na frente de outras mães, na frente de um
grupo de dez ou doze estagiários e de um supervisor”... É... e é interessan-
te, porque o espanto é dos alunos, os pais se sentem super à vontade no
grupo, se sentem superentrosados... [...] é fantástico, tanto para os pais que
passam por este processo como também para os estagiários, quando vão
vivendo essa outra prática psicológica que não aquela – eu mais um paci-
ente dentro de um setting fechado e preservado – vão vendo que é possí-
vel... fazer Psicologia de diversas maneiras... (Algodão).

Tal prática, ao pôr em xeque a prática psicológica tradicional, am-


plia a ação clínica para além de um determinado setting terapêutico, trazendo
assim grandes contribuições para a formação dos psicólogos e estagiários.
Seda, Linho e Algodão chamam atenção, ainda, para o quanto esse processo
em grupo pode ser significativo também para os pais, ao possibilitarem olhar
para um fenômeno a partir de diversos horizontes, ampliando seus campos
compreensivos de circunvisão, pois
216 Danielle de F. da C. C. de S. Leite e Carmem L. B. T. Barreto

À medida que o grupo vai acontecendo, eu acho que acaba acontecendo um


processo de compartilhamento de experiências, um processo de troca, onde
a experiência do outro serve como intervenção para as demais partes (Li-
nho). A mãe, quando chega, ela acha que o problema dela é único (...)
quando se depara com outras mães, com crianças naquela idade ou da
mesma faixa etária, ela vê que ela não é a única, vê que aquilo que ela está
passando, às vezes, até faz parte do crescimento, faz parte do desenvolvi-
mento da criança e já não se sente mais tão sozinha no mundo... (Algodão).
As mães acabam percebendo que existem diversas formas de lidar e acabam
experimentando o que a outra faz. (...) só o fato de ser em grupo, já propõe
uma intervenção, pela diversidade de experiências que acabam acontecendo
no grupo (Linho). E isso é muito importante, porque às vezes a gente, como
psicólogos, não fala algo que uma outra mãe fala... (...) Então, são traços de
experiência que acabam abrindo um campo de possibilidades... de enxergar
essa criança e... e o jeito dela funcionar no mundo... (Seda).

A relação grupal parece possibilitar aos pais experienciarem outros


modos de ser-no-mundo, ampliando seus campos compreensivos a partir do
encontro com outros pais que se apresentam, ao mesmo tempo, em suas
aproximações e distanciamentos enquanto poder-ser-singular. Tal fenômeno
também pode acontecer no que diz respeito às crianças, visto que: “As crian-
ças acabam também aproveitando a experiência do outro, quer dizer, aquele
que é tímido acaba aprendendo, de certo modo, com aquele que é agressivo,
e aquele que é agressivo acaba se contendo na experiência com aquele que é
tímido (Linho)”.
O Psicodiagnóstico em grupo abre, ainda, espaço para coconstru-
ção de vínculos-afetivos e de redes sociais que possibilitam aos participantes
(pais e/ou responsáveis; e crianças) se sentirem acolhidos e se disponibiliza-
rem para o outro, ampliando assim as possibilidades de compreensão de si-
mesmo, dos outros e do mundo. Desse modo, contribui para a “despatologi-
zação” do sofrimento humano como uma possibilidade própria do poder-ser-
faticamente-no-mundo. Pois é possível observar:

[...] que o grupo toma dimensões maiores. Então, as pessoas na recepção


já continuam, já começam a conversar e continuam conversando no aten-
dimento. Algumas mães descobrem que moram perto uma da outra e for-
ma-se uma rede entre elas que tem sido bem legal e, isso faz também
parte do [Psico]diagnóstico e tem contribuído também para a solução
dos problemas, solução quanto à compreensão do problema da criança.
[silêncio]... (Algodão).

Essa troca de experiência – dentro ou fora do grupo; entres os cli-


entes; entre cliente e psicólogo – ao possibilitarem uma “fusão de horizon-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

tes” – que outros compreensões sejam “des-ocultadas” em uma “conversa-


ção”3 – permite-nos pensar a dimensão colaborativa do Psicodiagnóstico.
Importa destacar que a “fusão de horizontes” implica uma atitude de abertura
para o outro, para a alteridade e para o próprio mistério da vida, visto que o
ser do homem é disposição afetiva e pré-compreensão.
Nas falas dos nossos interlocutores, assim como em nossa prática,
o Psicodiagnóstico revela-se como uma possibilidade de “cuidado” disponi-
bilizado para acolher a “família sofrente”, ao romper com a compreensão da
criança-problema. Constitui-se, assim, como uma prática psicológica que,
apesar de não ser uma terapia de família, possibilita “acolher” a família,
permitindo a apropriação da problemática vivida. Vale lembrar que os
pais/responsáveis quando procuram ajuda psicológica para seu(s) filho(s),
sua(s) criança(s)

[...] chegam buscando... uma compreensão da criança... e eu entendo


essa criança como um cliente identificado, ou seja, alguém traz essa cri-
ança com uma questão... A partir desse momento, essa família já é o cli-
ente... (...) os pais passam... a ser também clientes à medida que ali tem
um responsável... que também tem a função de cuidador, mas também tem
a função de mulher, de homem, de que trabalha... Eu entendo a criança
como emergente dessa dinâmica. Então, a partir daí os pais... eles estão
presentes o tempo todo... durante o processo. (...) Eu atendo pais e crian-
ças... com a mesma frequência. É claro que se eu percebo que eu preciso
falar mais... com a mãe, eu vou fazer isso, mas... não tem: “Eu vou ver a
criança, porque a criança é que está com dificuldade, que está com pro-
blema”. Tem ali uma família que está junta com isso, que veio junto. (...)
Todos os momentos são momentos que a gente permite que o cliente se
apresente, que ele se mostre, para a gente. Isso é uma compreensão... Di-
agnóstico é isso, não é? É você compreender. Então, todos os elementos
que você pode lançar para compreender, você lança... (Seda).

Assim, Seda abre para outra compreensão de diagnóstico, este deixa


de ser algo definido por meio de aplicações técnicas, para ser concebido en-
quanto compreensão que emerge das relações psicólogo-clientes (família),
cliente-cliente que privilegia a “experienciação”. Tal compreensão nos coloca
diante da dimensão colaborativa dessa prática, ao nos permitir compreender o
“diagnóstico” como possibilidade compreensiva acerca do fenômeno interro-
gado que se revela no encontro dos campos de circunvisão de cada interlocutor
desse jogo-compreensivo. Essa nova compreensão não se constitui pela sobre-
posição de um horizonte sobre outro, mas no próprio interrogar-se.

3
O sentido de “conversação” aqui adotado diz respeito à compreensão apresentada por
Gadamer (1999, 2004).
218 Danielle de F. da C. C. de S. Leite e Carmem L. B. T. Barreto

Ao apresentar-se como possibilidade de acolhimento à família so-


frente, o Psicodiagnóstico possibilita aos pais/responsáveis irem se apropri-
ando de seus modos de ser-no-mundo-com-seus-filhos. Ao ampliarem seus
campos de circunvisão, pelo copartilhamento de suas experiências, possibi-
litam transformações, e, às vezes, nem chegamos a “[...] intervir junto à
criança... [...] E [...] as mães comentam: “Doutora ela mudou”. Entendo
esta mudança porque a mãe se posicionou diferente com a criança e com seu
mundo...”. (Veludo).
Tal experiência revela a importância de um trabalho “con-junto”
com a família, uma vez que a criança está-no-mundo-em-uma-teia-de-relações,
constitutiva do seu poder-ser. Essas mudanças observadas pelos
pais/responsáveis, de algum modo desvelam transformações nos modos de ser-
desses-pais/responsáveis-com-estas-crianças. Pois, ao “des-alojar” a família de
sua familiaridade cotidiana, abre-se a possibilidade de que transformações
significativas nos modos de ser-daquela-família se “des-ocultem”, na medida
em que podem ir se apropriando de suas histórias. Mas, vale deixar claro que
“[...] apropriar-se de sua história é aceitá-la como a sua, retomar e rever os
significados e os sentidos do já vivido, do que está sendo vivido agora e poder
ver que o tempo está sempre aberto [...]” (Pompeia & Sapienza, 2011, p. 138).
Nessa perspectiva, as possíveis estratégias ou recursos que podem
vir à mão no acontecer de um Psicodiagnóstico, não são mais compreendidos
enquanto técnicas que devem ser aplicadas para se subtrair um diagnóstico
correto acerca da personalidade do paciente. Mas, apresentam-se como ins-
trumentos que fazem parte da teia de nexo, do mundo, constitutivos da ação
clínica, que podem ser acionados em sua instrumentalidade para contribuir
com a ampliação da demanda que se busca compreender.

Uma vez eu tinha um grupo que tinha... sei lá... uma criança de seis anos,
dois de nove anos e uma de onze anos. Então, era bem discrepante a ida-
de dos mais velhos para os mais jovens. Existia um casal de pais que
achava que o filho deles era superdotado e, na verdade, ele não era. [...]
E, na hora dos cartazes, eles foram direto ao cartaz do menino de onze
anos, reconhecendo como se fosse do filho deles, que tinha seis anos,
porque aquele cartaz era mais organizado, mais bonito, mais harmonioso
e tal. [...] a partir da experiência, possibilitou o reconhecimento dos pais
sobre as expectativas deles sobre essa criança (Linho).

Entre os possíveis instrumentos que podem ser acionados no pro-


cesso do Psicodiagnóstico, os interlocutores ressaltaram as visitas escolares e
as domiciliares, que nos permite “[...] ver os outros ambientes em que a cri-
ança está inserida [...]” (Algodão). A experiência de Seda traz à luz a rele-
vância dessas visitas para o processo do Psicodiagnóstico, visto que
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

a criança está inserida numa rede de significações, relações... Então, é


importante que... a criança passa um bom tempo na escola... é importante
que você conheça como é que esta escola vê essa criança, pensa essa cri-
ança... Não só como uma criança que está aprendendo, num sentido mais
pedagógico... mas também das relações que ela vai estabelecendo na es-
cola com os iguais, com as figuras de autoridade... e da produção, do
rendimento escolar da criança... (...) E a visita domiciliar?... Eu acho
fundamental... É claro que também os responsáveis e a criança têm que
concordar... (...) Eu acho que ela é muitas vezes reveladora, algumas ve-
zes ela não serve só de... ajuda para reafirmar alguma coisa que você já
vem percebendo, de uma forma mais concreta, mas eu acho que ela tam-
bém é surpreendente... Às vezes... ela traz uma dimensão que a fala não
dá conta... (...) ela revela um jeito... revela um modo de estar, de viver,
que revela o jeito da pessoa. Não só da família, como da criança. Eu
acho que a visita revela... de um jeito, pelas escolhas ou pelas não esco-
lhas, pelo jeito que a visita é conduzida, como é que essa família te rece-
be... (Seda).

Tais visitas podem trazer contribuições significativas para a com-


preensão do Psicodiagnóstico, na medida em que possibilitam tanto ao psi-
cólogo como aos clientes se aproximarem de outras facetas do fenômeno,
facilitando o “des-ocultamento” de outros modos de ser-com-no-mundo,
dando movimento à compreensão. Apresentam-se como possibilidades de
trazer à luz alguns aspectos omitidos ou obscuros do modo de ser do cliente,
revelando facetas do fenômeno que possam passar despercebidas ou perma-
necerem no ocultamento nas falas das crianças e seus pais/responsáveis.
Nessa perspectiva, a compreensão da visita “ultrapassa a mera noção de téc-
nica ou estratégia, podendo se constituir em um momento de grandes possi-
bilidades investigativas” (Corrêa, 2004, p. 38) que ampliam a compreensão
diagnóstica.
No que diz respeito ao “des-fecho” do processo, principalmente
com as crianças, apresenta-se como possibilidade a “co-construção” e a
“contação” (“conta-ação”) de histórias. Essas histórias se constituem em
narrativas que contemplam a experiência da criança em uma linguagem pró-
xima ao seu mundo, sendo um “instrumento” solicitado enquanto uma/outra
possibilidade “co-elaborativa” da sua história pela criança e sua família. A
este respeito, Algodão e Seda lembram que

A ideia é trazer um livro que fale da criança, mas que não precise neces-
sariamente trazer os fatos da criança... [...] mas transformar isso numa
metáfora em que a criança possa se reconhecer nela e até para ficar mais
acessível, para a criança, o que compreendemos... A gente, também, traz
a nossa compreensão psicológica para o mundo da criança, para facilitar
220 Danielle de F. da C. C. de S. Leite e Carmem L. B. T. Barreto

o acesso dela... (Algodão). Vão sendo construídos durante o Psicodia-


gnóstico, e construindo não sou eu com a criança, mas eu a criança, os
pais, o que a gente vai... observou na casa, tudo isso... (...) a gente faz um
livrinho de história. (...) Isso é importante, porque a criança pode rever
aquela história e decidir como é que ela reage também... (Seda).

No que se refere ao “des-fecho” com os pais, os interlocuto-


res/psicólogos apontam a possibilidade da “co-construção”, no último en-
contro, de um relatório do processo. Este traria uma “síntese” das compreen-
sões “des-ocultadas” no caminhar percorrido no Psicodiagnóstico, deixando
claro para os pais/responsáveis o horizonte compreensivo vislumbrado pelo
psicólogo. Todavia, importa lembrar que tais compreensões são apenas um
modo de olhar/interpretar o fenômeno interrogado, e mesmo neste momento
não deve ser visto como algo fechado e acabado – pois “[...] não é algo que
eu vou impor: ‘chegamos a esse resultado e pronto, não tem mais o que fa-
zer’ [...]” (Algodão). Fazendo uso desse instrumento em suas práticas, Seda
e Algodão compreendem que

É muito interessante também você ver como é que essa mãe reage ouvin-
do a história dela de uma vez só, quando ela chegou, o que é que foi
acontecendo... (...) Tudo que está no relatório já foi, de algum jeito, tra-
balhado ou discutido. (...) Só vem ali a história, a história confirmada no
papel e ela vai ouvir de um outro jeito, porque ela vai ouvir tudo junto,
mas isso já vem sendo dito, até para a criança, até para as mães... (Seda).
Então, no final do processo é elaborado um relatório e ele é lido na ínte-
gra para os pais, e eles têm a possibilidade de ainda consertar alguma
coisa que foi mal entendida ou o que foi mal interpretado, ou o que não é
bem assim, e a versão final do relatório só pode ser emitida depois dessa
sessão em que foi lido pra eles. Porque aí mostra, de fato, que o relatório
está sendo escrito junto com eles... (Algodão).

Em nossa experiência, os “des-fechos” dos Psicodiagnósticos –


tanto com a(s) criança(s) como com os pais/responsáveis – têm acontecido
de diversas maneiras, seguindo o caminhar apontado pelo fenômeno que se
manifesta/interroga-se. Com as crianças, já foram realizadas brincadeiras
guiadas por elas que possibilitaram o encerrar do processo; “co-elaboração”
de histórias; já foi trabalhado trechos de filmes, trazendo-se em metáforas a
história-vivida pela(s) criança(s); já aconteceu uma festa de encerramento,
sugerida e organizada pelos pais/responsáveis; entre tantas outras possibili-
dades surgidas-realizadas. Com os pais, normalmente, realizamos um en-
contro em que tanto as compreensões dos pais com as nossas são valoriza-
das, e um momento em que podemos pôr em xeque todas as compreensões
“des-ocultadas” durante o processo, chegando a um “des-fecho”; “co-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

elaborando” uma compreensão que, ao mesmo tempo em que fecha o pro-


cesso, abre muitas outras possibilidades.
Ainda sobre o “des-fecho” no Psicodiagnóstico, Linho observa, em
sua prática, que

Com muita frequência, quando chega ao final do processo, os pais dizem


que a questão trazida foi resolvida. São raros os casos em que isso... em que
a questão não está completamente resolvida e você precisa re-encaminhar,
vamos dizer assim, para uma psicoterapia ou para algo assim... na maioria
das vezes, as questões se resolvem no final do semestre... Na verdade, o que
eu percebo muito é que há uma mudança no olhar dos pais para com seus
filhos, e essa mudança promove uma mudança na criança.

Importa, assim, destacar que, na maior parte das vezes, ao final do


processo, as famílias – ao se apropriarem de seus sofrimentos, suas histórias
– “des-cobrem” soluções para aquilo que as levaram a procurar ajuda psico-
lógica, ampliando seus campos de circunvisão. Nessa perspectiva, o próprio
encaminhamento para um processo posterior, seja psicoterápico ou não, cor-
responde apenas a um dos possíveis “des-fechos”. Acerca desta possibilida-
de, Linho ressalta:

[...] não acho que o encaminhamento deva fazer sentido pra mim, porque
eu posso achar muitas coisas, mas eu preciso chegar junto com esses pais
a essa necessidade, a essa demanda; e quando isso acontece... eu não te-
nho nunca nenhum problema. Na maioria das vezes, isso vem inclusive
deles, não desse modo: “ah, eu quero que meu filho faça uma psicotera-
pia”, mas eles denunciam: “olhe, eu acho que ele melhorou, mas ainda
falta alguma coisa, eu quero dar continuidade”... Aí eu prossigo... Mas
eu procuro ir no compasso junto com os pais, de tal forma que isso seja
também a opinião deles e não só a minha...

Assim compreendido, o encaminhamento pode configurar-se em


uma situação significativa tanto para o psicólogo como para o cliente, tor-
nando-se uma “decisão” conjunta apropriada, e não uma prescrição médica.
Desse modo, mesmo quando há necessidade de dar continuidade ao processo
terapêutico em outro espaço, o encaminhamento é vivenciado de outro
modo, pois

[...] quando ficou claro o que aconteceu, e para que ela precisa dar con-
tinuidade a esse processo, a maneira como ela chega ao encaminhamento
é muito mais apropriada do que está acontecendo. Não é o psicólogo
mandou: “Eu voltei aqui, porque a psicóloga falou que era pra eu vol-
tar”. Ela minimamente entendeu, ela teve uma compreensão do que foi
222 Danielle de F. da C. C. de S. Leite e Carmem L. B. T. Barreto

dito, do quanto que ela faz parte disso, do quanto ela está inserida nessa
história, ela ou a criança, ou quem for encaminhado ou para atendimento
infantil, ou pra família, ou se a mãe for encaminhada para psicoterapia
breve, ela, a mãe... Ela vem apropriada deste lugar, não é simplesmente:
“eu estou aqui porque o psicólogo mandou eu estar aqui”, ou, “me diz
você o que eu estou fazendo”... (Algodão).

Por fim, vale ressaltar que, tanto a ampliação das possibilidades


compreensivas “des-ocultadas” durante todo o processo como a própria
apropriação do encaminhamento e/ou “des-fecho” pelos familiares, supõe
uma compreensão implicada em um jogo constante de “perguntas e respos-
tas”. Nesse sentido, a compreensão não é “somente a captação imediata do que
contém a expressão”, (Gadamer, 1999, p. 394), mas corresponde “ao desco-
brimento do que há para além da interioridade oculta, de maneira que se
chega a conhecer esse oculto. Mas isso significa que a gente tem de se haver
com isso. Nesse sentido vale para todos os casos que aquele que compreende
se compreende, projeta-se a si mesmo rumo à possibilidade de si mesmo”.

3 O PSICODIAGNÓSTICO COLABORATIVO: TECENDO


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Podemos dizer “sim” à utilização inevitável dos


objectos técnicos e podemos ao mesmo tempo dizer
“não”, impedindo que nos absorvam e, desse modo,
verguem, confundam e, por fim, esgotem a nossa
natureza (Wesen).
Heidegger, 2000, p. 23

A análise compreensiva hermenêutica das narrativas possibilita


apontar para uma compreensão do Psicodiagnóstico Colaborativo fundada na
Analítica Existencial de Heidegger (Dasein, ser-aí, ser-no-mundo, ser-em,
ser-com, existência) e na Hermenêutica Filosófica de Gadamer, privilegian-
do a concepção da compreensão como “fusão de horizontes”.
Importa destacar que, para Gadamer, a compreensão não está vin-
culada a uma verdade prévia e constituída anteriormente (Casanova, 2010).
Assim, não é possível falar em verdade, pelo menos como um conhecimento
absoluto e imutável. A verdade passa a ser compreendida como aletheia e
remete-se à interpretação do ser. Assim como, para seu mestre Heidegger, a
compreensão é uma condição ontológica do existir humano, “[...] é o modo
de ser da pré-sença, na medida em que é poder-ser e ‘possibilidade’” (Gada-
mer, 1999, p. 392).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Toda compreensão é sempre, antes, um compreender-se, para o


qual o sentido do intérprete e do interpretado não são simplesmente dados
previamente, mas, apenas historicamente. Desse modo, resgata o sentido de
tradição, não como pressupostos que necessitam ser superados, porém en-
quanto “pré-conceito” que possibilita o próprio compreender. “Pré-conceito”
ou “pré-julgamento”, não se refere ao modo de pensamento herdado da mo-
dernidade, que precisa ser lapidado antes de possibilitar uma visão correta do
mundo (Lawn, 2007), é pré-constitutivo de todo e qualquer processo do
compreender.
Para Gadamer, a tradição – derivação do latim, da palavra tradire,
que significa “passar adiante” – remete-se à atividade de transmissão de um
conhecimento de geração a geração. Todavia, tal passagem, antes de ser uma
transmissão ingênua, constitui-se em um movimento constante de reelabora-
ção, reinterpretação. Nesse aspecto, Gadamer (1999, p. 439) destaca que:

A antecipação de sentido, que guia a nossa compreensão de um texto, não


é um ato da subjetividade, já que se determina a partir da comunhão que
nos une com a tradição. Porém, essa comunhão está submetida a um pro-
cesso de contínua formação. Não se trata simplesmente de pressuposição,
sob a qual nos encontramos sempre, porém nós mesmos vamos instau-
rando-a, na medida em que participamos do acontecer da tradição e
continuamos determinando-a, assim, a partir de nós próprios.

Portanto, compreender não se refere a um ato de reprodução da


opinião do outro, mas é produzir, compreender o outro a partir do próprio
horizonte do intérprete. Nessa perspectiva, a “contribuição produtiva do in-
térprete é parte inalienável do próprio sentido do compreender”, todavia isto
não quer dizer que toda compreensão constitui-se em pressupostos subjetivos
arbitrários e privados, uma vez que o que se busca conhecer é o único crité-
rio dotado de validade. Para tanto:

A distância insuperável e necessária entre os tempos – as culturas, as


classes, as raças – é um momento supra-subjetivo, que confere tensão e
vida a todo compreender. Pode-se descrever este fenômeno também do
seguinte modo: o intérprete e o texto possuem cada qual seu próprio “hori-
zonte” e todo compreender representa uma fusão de horizontes. (Gadamer,
2004, p. 132)

Toda compreensão inicia-se como uma interpelação, uma interro-


gação, possibilitando pôr em xeque os horizontes do intérprete, abrindo a
possibilidade para o surgimento de uma outra/nova compreensão. Nessa
direção, toda compreensão se dá em uma fusão de horizontes, sendo hori-
224 Danielle de F. da C. C. de S. Leite e Carmem L. B. T. Barreto

zonte o “âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de
um determinado ponto” (Gadamer, 1999, p. 452).
Compreender implica um jogo constante de horizontes, em que os
interlocutores se encontram em constante interrogação, sem que um horizonte
se sobreponha ao outro, mas permitindo que algo novo se desvele. Dessa for-
ma, a fusão de horizontes não corresponde ao estabelecimento de um acordo
ou contrato que se possa determinar previamente, mas a uma possibilidade
compreensiva que emerge em uma conversação entre dois ou mais horizontes,
isto é, interlocutores. Toda conversação, “fusão de horizontes”, implica em os
interlocutores estarem “dispostos a isso e que procurem fazer valer em si
mesmos o estranho e o adverso” (Gadamer, 1999, p. 563).
É nessa perspectiva que compreendemos o Psicodiagnóstico Colabo-
rativo, como espaço de abertura para o mistério, para o inesperado, que convo-
ca a seus coparticipantes (psicólogos e clientes) a pôr-se em xeque, possibili-
tando-os ampliar seus campos de circunvisão acerca do fenômeno interrogado,
“des-ocultando” outras possibilidades compreensivas que poderão ser mobili-
zadoras de transformações significativas. Apresenta-se como uma “con-versa-
ação”, “conversa-ação”, que possibilitará, através de uma fusão de horizontes,
conhecer facetas/outras do fenômeno que se revela. Logo, a compreensão –
interpretação que resulta desse encontro, não se constitui em diagnóstico preci-
so advindo da capacidade metódica e teórica do psicólogo, mas é, antes, um
campo comum de interlocução entre todas as partes envolvidas nesse processo,
que se revela a partir do compartilhamento de experiências e compreensões.
Vale lembrar que compreender / interpretar, para Heidegger, não é
apenas um ato de tomar conhecimento de algo, mas remete a um apropriar-
se, a uma atestação em primeira pessoa. Sendo assim, toda e qualquer com-
preensão que se desvele nesse processo deve ser legitimada pelo cliente que,
ao colocá-la em xeque, apropria-se do sofrimento e pode vislumbrar outros
modos de ser-no-mundo.
Toda interpretação que resulta deste processo é considerada como
uma possibilidade compreensiva e, dessa forma, não busca superar a distân-
cia necessária entre os horizontes do psicólogo e do cliente, mas possibilitar
a fusão entre os horizontes, que, como uma ponte, permite o tráfego entre as
duas margens do rio. Tal atitude aproxima-se mais do fazer do poeta como
bem apresenta Gadamer (2010, pp. 130-131):

Quando um verdadeiro poeta transpõe os versos de um outro poeta para


sua língua, esta transposição pode se tornar um verdadeiro poema. Neste
caso, contudo, o poema passa quase a se mostrar mais como o seu pró-
prio poema do que como o poema do autor original.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

(...)
Dessa forma, deveríamos admirar todos os tradutores de poesia que não nos
ocultam totalmente a distância em relação ao original e, no entanto, cons-
troem uma ponte sobre esta distância. Eles são quase como intérpretes. Mas
eles são mais. Intérpretes produzem interrupções. A maior ambição daquele
que interpreta não pode ser outra senão que nossa interpretação também
permaneça uma fala intermediária, que ela se insira na releitura dos textos
originais como óbvia e aí desapareça. Em contrapartida, o rastro copoeti-
zante do tradutor permanece para toda a nossa leitura e compreensão um
arco firmemente fundado, uma ponte que é trafegável dos dois lados. A tra-
dução é, por assim dizer, uma ponte entre duas línguas como entre duas
margens em uma mesma terra. Sobre tais pontes passa um tráfego constan-
temente fluente. Esta é a marca distinta do tradutor. Não se precisa esperar
por nenhum barqueiro que traduza alguém. Alguns certamente precisarão
de ajuda para se orientar do outro lado – e permanecerão viandantes solitá-
rios. Talvez ele encontre, vez por outra, alguém que o ajude junto à leitura e
à compreensão. Toda leitura de um poema é a cada vez uma tradução.

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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

O PSICODIAGNÓSTICO
INTERVENTIVO/COLABORATIVO E
FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO: RELATO
DE UMA EXPERIÊNCIA
Andrea Cristina Tavelin Biselli
Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Sumário: 1. Do Psicodiagnóstico Tradicional ao Psicodiagnóstico In-


terventivo/Colaborativo: Rupturas Necessárias. 2. A Pers-
pectiva Fenomenológica Existencial e suas Influências na
Clínica Psicológica. 3. Relato da Experiência. 4. Relato de
Experiência como Compreensão do Vivido. 5. Considerações
Finais. 6. Referências.

Este estudo visou compreender a experiência da formação do esta-


giário na Clínica-escola na modalidade de psicodiagnóstico interventi-
vo/colaborativo. Buscando contextualizar o psicodiagnóstico como modali-
dade de prática psicológica, enfocando a dimensão interventivo/colaborativa,
apresentar a perspectiva fenomenológica-existencial e suas influências na
clínica psicológica e compreender a experiência como estagiária facilitadora
do psicodiagnóstico interventivo/colaborativo.
Assim, a clínica-escola foi escolhida para estagiar por abarcar um
campo de possibilidades de contato com diversas situações que enriquecem o
conhecimento da prática psicológica trabalhando com uma clientela diversi-
ficada, além da possibilidade de exercitar o sentido ético-político da profis-
são. Ao ingressar no estagio na clínica-escola, desvelou-se um grande desa-
fio: trabalhar com crianças. Diante da decisão de enfrentar esse desafio, ini-
ciou-se a proposta de estudar o psicodiagnóstico interventivo/colaborativo.
Diante desse contexto, convém ressaltar que a prática psicológica
clínica compõe-se de uma diversidade de atuações, compreensões e concep-
ções teóricas. Diante dessa diversidade, a modalidade de prática psicológica
e a concepção de clínica estão sendo alvo de estudos e pesquisas, privilegi-
ando a articulação destas com o social e o institucional.
228 Andrea Cristina Tavelin Biselli e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Na ação prática, o psicólogo, na maioria das vezes, reproduz o modo


como aprendeu as teorias clínicas, aplicando as técnicas e fazendo conexões em
busca de uma resposta adequada à demanda, não explorando as possibilidades
oferecidas pela situação prática. Tal atuação representa o modelo de formação
acadêmica tradicional em que pressupõe uma prática decorrente da teoria.
Trazendo tal discussão para o campo do psicodiagnóstico, este sur-
ge ao mesmo tempo da psicologia clínica, onde o papel do psicólogo era o de
aplicar e corrigir os testes psicológicos da melhor forma possível, medindo,
quantificando e avaliando as estruturas do cliente segundo o modelo médico-
científico predominante na época.
Dentre os vários modelos de psicodiagnóstico tradicional destaca-
se o de Ocampo e Arzeno (2003, p. 11). Este modelo de psicodiagnóstico
tem o objetivo de descrever e compreender a personalidade total do paciente,
ou do grupo familiar para que pudesse realizar o encaminhamento terapêuti-
co necessário. Ainda hoje este modelo é difundido e utilizado por psicólogos,
porém, recebeu várias críticas sobre o modo de fazer/pensar, principalmente
no que tange a coletar dados que forneçam ao psicólogo, uma segurança para
o encaminhamento posterior à psicoterapia individual, quando o paciente
será realmente atendido no seu sofrimento.
Considerando tal contexto, e através de muitos estudos, Marília
Ancona-Lopez e seus colaboradores (2002) apontam outra forma de realiza-
ção do psicodiagnóstico não descartando o seu valor compreensivo, mas
considerando e acreditando no seu valor terapêutico. Desta forma, o psicodi-
agnóstico interventivo/colaborativo destina-se ao cuidado do outro, servindo
aos interesses da clientela na medida em que as compreensões têm efeito em
sua vida, proporcionando transformações (Cupertino, 2002). Assim, o psico-
diagnóstico configura-se como uma modalidade de prática psicológica que
possibilita o acolhimento da demanda do cliente a partir do primeiro contato.
Para se compreender a dimensão colaborativa do psicodiagnóstico
interventivo – de pais com crianças – a partir da psicologia fenomenológica
existencial, se faz necessário recorrer às contribuições advindas da fenome-
nologia existencial de Heidegger, que possibilita pensar tal situação como
compreensiva, interventiva, colaborativa.

1 DO PSICODIAGNÓSTICO TRADICIONAL AO
PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO/COLABORATIVO:
RUPTURAS NECESSÁRIAS

A história da origem do psicodiagnóstico coincide com o surgi-


mento da psicologia clínica fundada por Witmer, em 1896, que procurou
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

transferir o método científico experimental para questões psiquiátricas,


opondo-se à abordagem especulativa típica da psicopatologia de então e
dando assim grande impulso à psicologia clínica. Desde então vem sofrendo
diversas mudanças e rupturas no que se refere aos procedimentos e metodo-
logias utilizados (Cunha, 2002).
No início, o psicodiagnóstico destinava-se a medir, quantificar e
avaliar as estruturas psicológicas dos pacientes, utilizando-se do modelo
médico-científico predominante nesta época, com o objetivo de conhecer a
personalidade do paciente através de testes psicológicos. Desta forma, a tare-
fa do psicólogo consistia em aplicar e corrigir os testes psicológicos dentro
de um rigor científico.
Nesse contexto, a psicologia era uma ciência com a proposta de
estudar e descrever seu objeto de estudo, não dispondo de uma aplicabilidade
direta quanto à intervenção clínica, a qual pertencia aos médicos. O psicólo-
go era considerado apenas um técnico que não havia desenvolvido, no que
concerne à intervenção, uma tecnologia própria, na qual pudesse se amparar
e da qual pudesse fazer uso (Morato, 1999).
Segundo Yehia (1994),

a psicometria contribuiu muito para o desenvolvimento do psicodiagnós-


tico, sendo fortemente influenciada pelo paradigma científico dominante
na época. (...) buscava-se a exatidão dos dados coletados. Compreendia-
se basicamente o homem como uma soma de características ou de fatores
passíveis de mensuração, e o método quantitativo se constituía na base de
sustentação para o estudo, a investigação e a pratica da psicologia. (p. 1)

Para Vorcaro (2002), a adesão e incorporação de conceitos da psi-


canálise colocaram em questão a neutralidade observadora do psicólogo,
levando-o a refletir sobre os limites dos instrumentos que utilizava. Conse-
quentemente, as técnicas projetivas de avaliação são introduzidas no psicodi-
agnóstico sob a influência da psicanálise, fazendo com que, ao longo dos
anos, a atividade quantitativa cedesse o lugar a uma atividade de caráter in-
terpretativo, privilegiando a entrevista psicológica como meio de pesquisa
(Yehia, 2009).
Dentre os vários modelos de psicodiagnóstico tradicional, está o mo-
delo proposto por Ocampo e Garcia Arzeno, o qual orienta grande parte dos
psicólogos em sua prática. Este modelo caracteriza o psicodiagnóstico como
uma prática bem delimitada e que tem como objetivo compreender e descrever
o mais completa e profundamente possível a personalidade total do paciente
e/ou do grupo familiar. Envolve ainda, os aspectos pretéritos, presentes (dia-
gnóstico) e futuros (prognósticos) dessa personalidade, onde o psicólogo obtém
230 Andrea Cristina Tavelin Biselli e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

um panorama preciso do caso para a formulação das recomendações terapêuti-


cas adequadas (Ocampo & Garcia Arzeno apud Santiago, 2002).
Neste modelo, os papéis do psicólogo e do cliente ficam bem de-
marcados: de um lado o paciente que solicita ajuda e de outro o psicólogo
que se propõe a ajudar, o que se configura num processo bipessoal psicólo-
go-cliente de duração delimitada com início, meio e fim. Desta forma, o
psicólogo exercerá um papel ativo, será o detentor do conhecimento teórico-
técnico necessário para realizar e planejar a seleção de testes a serem aplica-
dos visando à compreensão da personalidade do cliente e/ou do seu grupo
familiar. O cliente, por sua vez, estará assumindo o lugar daquele que se
submete a uma bateria de testes e fornece informações necessárias para que o
psicólogo realize o processo diagnóstico.
Este modelo apresentado ainda é bastante difundido; entretanto, vá-
rias críticas lhe foram sendo feitas, principalmente quando é identificado a
uma coleta de dados que propicia uma maior ‘segurança’ para que o psicólo-
go possa atender o cliente em seu sofrimento ao realizar um encaminha-
mento onde, na maioria das vezes, a indicação é a psicoterapia individual.
Yehia (2002, p. 115), ao referir-se ao psicodiagnóstico infantil tra-
dicional, afirma:

O psicodiagnóstico infantil realizado nos moldes tradicionais consta de


uma ou duas entrevistas com os pais, para que o psicólogo entre em
contato com a queixa, a dinâmica familiar e o desenvolvimento da crian-
ça, de testagem da criança e, depois de avaliados os testes e integradas
às informações obtidas, de uma ou duas entrevistas devolutivas, nas quais
o psicólogo apresenta aos pais suas conclusões diagnósticas e sugere os
passos seguintes a serem trilhados: psicoterapia da criança, orientação
aos pais, psicomotricidade etc.

A autora citada observa que na prática, os pais, nos casos de aten-


dimentos com criança, e os clientes adultos que passaram pelo psicodiagnós-
tico tradicional, quando comparecem aos atendimentos indicados pelo pro-
cesso, mostram-se pouco motivados e, quando questionados a respeito do
processo anterior, se limitam a repetir as queixas acrescidas de uma indica-
ção terapêutica. Santiago (2002) afirma que tal postura contribui para que a
ansiedade do cliente se intensifique, o que dificulta o desenvolvimento do
processo e o engajamento do cliente no atendimento posterior (psicoterapia).
Ainda segundo a autora supracitada, o cliente ao buscar auxílio
psicológico está num momento muito particular de sua vida, e não consegue
sozinho dar conta da situação. Essa busca denuncia a insuficiência de medi-
das tomadas anteriormente para a resolução dos problemas que o afligem,
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

além da falência dos sistemas explicativos que construiu sobre suas causas,
necessitando assim de uma atenção mais demorada de ambos os participan-
tes (psicólogo e cliente) não sendo necessário para isso iniciar uma pesquisa
sobre toda a história do cliente.
Silvia Ancona-Lopez (2002) contribui com essa visão crítica e res-
salta que o cliente quando procura ajuda não está preocupado com o nome
que é dado ao processo, mas que ele espera ser acolhido em seu sofrimento.
Portanto, se o profissional desconsiderar o pedido e postergar a intervenção,
poderá empobrecer um encontro rico em possibilidades.
Dessa forma, as possibilidades de esclarecimento e reflexão por
parte do cliente, que dependeriam da ajuda do psicólogo, se concentrariam
nas entrevistas finais (Santiago, 2002). Isso ocorre porque nesse modelo, a
ideia de intervenção se remete sempre ao processo de psicoterapia. Assim,
o psicodiagnóstico tradicional não é considerado comumente como uma
prática interventiva, pois além de se dar em um número determinado de
encontros, é entendido como prática de investigação, avaliação ou seleção,
não podendo ser percebido como um momento passível de abrir novas
perspectivas ou trazer mudanças positivas para o cliente (Ancona-Lopez,
S., 2002).
Nessa direção, o processo perde muito de seu sentido, já que não
desperta interesse e utilidade para o cliente e configura-se como “uma rela-
ção e uma expectativa de que o saber, o conhecimento, a atitude mental ativa
no processo são privilégio ou dever somente do psicólogo” (Santiago, 2002,
p. 13). Desse modo, numa atitude equivocada, o cliente delega ao profissio-
nal a plena responsabilidade de chegar a uma compreensão e explicação
acerca do que acontece com ele próprio, baseando-se na crença de que ape-
nas o terapeuta tem condições de lhe fornecer sugestões úteis. Tal postura,
ainda de acordo com essa autora, pode corresponder a uma necessidade de-
fensiva do cliente e, caso o psicólogo assuma esse lugar, a tendência é que se
estruture uma relação assimétrica, que coloca o cliente à margem do proces-
so compreensivo que vai sendo construído no diagnóstico. Uma relação des-
se tipo poderia estar alicerçada nas fantasias de impotência de um e onipo-
tência do outro podendo dificultar um trabalho clínico efetivo, pois se fun-
damenta na “negação das capacidades ou potencialidades do cliente, negação
dos limites do psicólogo, negação da dificuldade de se realizar um trabalho
profícuo com tantas distorções perceptivas e sem a participação compreensi-
va do cliente” (Santiago, 2002, p. 13).
Para Yehia (2002), o psicodiagnóstico tradicional se constitui numa
etapa importante do processo para o psicólogo que o realizou por oferecer
uma segurança para o encaminhamento, todavia, pouco contribui com o cli-
232 Andrea Cristina Tavelin Biselli e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

ente e o futuro terapeuta. Ocorre que, quando o processo não se torna signifi-
cativo para os pais, não os mobiliza a dar continuidade ao encaminhamento
e, então, quando questionados sobre o referido processo, eles limitam-se a
repetir as queixas iniciais, acrescidas de uma indicação terapêutica.
Marília Ancona-Lopez e seus colaboradores (2002), após vários
estudos e questionamentos em relação às suas práticas, apontam uma outra
forma de realização do psicodiagnóstico, acrescentando-lhe ao valor com-
preensivo, o valor terapêutico. A proposta é a do psicodiagnostico psicodia-
gnóstico interventivo/colaborativo, ressaltando a necessidade de acolher o
cliente em seu sofrimento no momento da queixa inicial, levando em conta
as considerações e compreensões trazidas na primeira entrevista assumindo
assim, desde logo um caráter interventivo.
Intervenção advém do latim intervenire e significa meter-se de
permeio, ser ou estar presente, assistir, interpor os seus bons ofícios. Silvia
Ancona-Lopez (2002, p. 26), ilumina tal significado da definição apresenta-
da por Freire em um dicionário da língua portuguesa, ampliando seu enten-
dimento.
Para a autora supracitada,

Meter-se de permeio: indica atuação. Posição ativa de alguém que in-


terfere, que se coloca entre pessoas, que de algum modo estabelece um
elo, uma ligação. Interpor os seus bons ofícios: ação de quem tem algum
preparo em determinada área e põe seus conhecimentos à disposição de
quem deles necessita. Ação de quem acredita no que faz. Estar presente:
(...) parece indicar uma posição. Alguém a quem se pode recorrer e que
está inteiro na situação. Assistir: indica ajuda, cuidado, apoio. (Ancona-
Lopez, S. 2002, p. 26)

A intervenção, portanto, pode ser definida como o assumir de uma


posição (por parte do profissional) que cria condições para um processo de
apropriação (por parte do cliente), levando a construções significativas na
compreensão da demanda (Ancona-Lopez, S., 2002, p. 26).
Para Morato (1999, p. 84) “(...) propiciar relações de ajuda é uma
prática que envolve um comprometimento político”, referindo-se a uma
ação: “convocação do profissional como ser humano a experienciar e agir,
conforme as condições de sua humanidade”. Tal reflexão não é pertinente
apenas à prática psicodiagnóstica, mas remete-se a toda atuação clínica. Des-
se modo, no psicodiagnóstico interventivo/colaborativo a intervenção se dá,
inicialmente, a partir de um pedido de ajuda imediata e da “predisposição por
parte do cliente de iniciar um movimento no sentido da mudança” (Ancona-
Lopez, S. 2002, p. 33).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Strydom (citado por Yehia, 2009, p. 66, grifos do autor), sugere


que o diagnóstico ou formulação do problema seja uma “ação mutuamente
negociada e não a ação de um cientista estudando neutros”. Redefine a tarefa
do profissional transformando-a na “busca de se chegar a uma compreensão
mutua junto com o cliente, onde os fatos significam algo, ao invés de perse-
guir a informação precisa”.
Diante dessa visão, Yehia (2009) afirma que o psicodiagnóstico
possa configurar-se como uma situação na qual o cliente é considerado um
parceiro ativo do processo e o psicólogo será aquele que facilitará mudanças
positivas, possibilitando uma gama maior de escolhas e estimulando um
viver com novas perspectivas. Ainda segundo a autora, enquanto o atendi-
mento não tiver um sentido para o cliente, ele continuará se limitando a se-
guir a indicação do profissional como se este fosse uma autoridade ficando
difícil contar com a sua colaboração ativa.
A demanda trazida pelo cliente nem sempre é explicita; cabe ao
psicólogo a tarefa de refletir com o cliente sobre a queixa e ampliar suas
compreensões chegando à demanda. Para que isso aconteça,

(...) o psicólogo deverá estar interessado em acompanhar seu cliente a


engajar-se em um processo contínuo de auto-diagnóstico em vez de se li-
mitar a compreender sozinho o problema. Consequentemente, o cliente
torna-se um parceiro ativo e envolvido no diagnostico e na solução de
seus, adquire maiores possibilidades de continuar acessando o significa-
do de suas experiências, transformando-o em conhecimento pessoal, que
pode ser utilizado na solução de problemas futuros. (Yehia, 2009, p. 66)

Desse modo, a intervenção enquanto ação clínica busca a amplia-


ção da demanda e a tematização do sofrimento, e pode possibilitar a emer-
gência de novas compreensões sobre a crise vivida. O processo tornar-se-á
significativo para os envolvidos, acolhendo o cliente em seu sofrimento e
permitindo que a demanda se amplie convidando-o a assumir um papel
ativo.
Assim, no psicodiagnóstico interventivo/colaborativo se estabelece
uma situação de cooperação entre psicólogo e cliente, pelo qual a capacidade
de observação, aprendizagem e compreensão, de ambas as partes, constitui a
base indispensável para o trabalho. Pais e psicólogo, são equivalentes, obser-
vam-se a si mesmo e ao outro buscando compartilhar a compreensão do que
está sendo vivenciado (Yehia, 2002, p. 119).
A autora acima citada (2004) ressalta o caráter colaborativo do
processo psicodiagnóstico:
234 Andrea Cristina Tavelin Biselli e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Desta maneira, não estaremos procurando os aspectos internos do clien-


te, que fazem com que tal ou qual coisa se manifeste desta ou daquela
maneira, mas trabalhamos sempre no entre (ser no mundo com os ou-
tros), no modo como as coisas aparecem, no significado que elas têm
para o psicólogo e o cliente, considerando que cada um de nós toma, o
tempo todo, decisões pessoais, dando sentido à sua própria existência.
(Yehia, 2004, p. 68)

Portanto, a mudança se mostra na atitude do psicólogo junto ao cli-


ente nessas situações, bem como na compreensão daquilo que está sendo
vivenciado. Essa mudança de postura sugere que o psicólogo se liberte dos
conceitos rígidos e aplicação das técnicas na prática, adotando uma atitude
de abertura para o inesperado, para o que se desvela diante das intervenções,
levando o cliente a confrontar-se com seus comportamentos usuais refletindo
sobre eles e ampliando o campo de possibilidades de novos modos de estar-
no-mundo (Ancona-Lopez, S., 2002).
Segundo Yehia (2009), o psicodiagnóstico interventivo/colaborativo
utiliza-se dos mesmos procedimentos do Psicodiagnóstico Tradicional:
entrevistas com os pais e a criança, anamnese, observação lúdica, testes
(intelectual, psicomotores, projetivos). Durante as entrevistas iniciais, ge-
ralmente com os pais, o psicólogo tem o conhecimento da queixa e amplia-
ção da demanda e é estabelecido o contrato de trabalho, ou seja, quais as
condições mínimas para que juntos (pais e psicólogo) possam compreender
o que está acontecendo. Nos encontros com as crianças, o psicólogo busca
compreender com elas, através do lúdico, qual o estilo de construção de
mundo, qual seu “projeto de mundo”. Esta compreensão se dá através da
conversa do psicólogo com a criança a respeito de suas observações, rela-
cionando a situação presente à vivida em seu cotidiano. Os testes, caso
necessário, são integrados no todo e fazem parte da compreensão global da
criança, no sentido de orientar uma sugestão do que poderá ser feito. Eles
são dispositivos dos quais se pode lançar mão, para ajudar a compreender o
vivido sem, portanto, fechar um diagnóstico, como acontece no psicodia-
gnóstico tradicional (Yehia, 2002).
Contudo, segundo Yehia (2009), há também outros dois recursos
que podem ser utilizados para ampliar a visão sobre a criança. São eles a
visita escolar e a visita domiciliar. A visita domiciliar (Correa, 2004) permite
ao psicólogo conhecer as pessoas que não podem vir às consultas, conversar
com elas, saber como as idas ao psicólogo são vistas por elas. Possibilita-lhe
conhecer o espaço o qual a criança dispõe na casa e na família, seus brinque-
dos, o quarto onde dorme. Poderá observar, ainda, a relação entre os mem-
bros da família, pois uma observação direta poderá ser diferente daquela
percebida através das falas dos pais ou da criança.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Já a visita escolar, segundo Maichim (2006), é importante no senti-


do de que é lá que a criança passa boa parte do seu dia e, muitas vezes, é o
disparador do encaminhamento psicológico. Na escola, a criança estabelece
várias relações com os outros e constitui novas redes de significados. Conhe-
cer as relações da criança com o professor, com os colegas e outros profissi-
onais da escola, possibilitará ao psicólogo ampliar o olhar sobre ela. É im-
portante que se conheça a relação que os pais estabelecem com a escola e as
expectativas que têm em relação a ela.
Ao final do processo, há o momento da devolutiva que é feita em
um encontro com os pais e outro encontro com as crianças.
A devolutiva aos pais se dá no sentido de se construir uma compre-
ensão conjunta de todo o processo do qual participaram.
Na devolutiva com as crianças, Yehia (2002) aponta que no modo
tradicional a devolutiva era feita verbalmente gerando dificuldades na com-
preensão da informação e desconforto na relação psicólogo-cliente gerando
uma situação de insignificância para a criança. Após alguns questionamentos
e estudos sobre a devolutiva para as crianças a autora propõe, baseada no
trabalho de Safra (1993), que seja construído um livro de história com as
compreensões obtidas nos encontros. As histórias contemplam a realidade da
criança expressada através de um mundo mágico e fantástico em que animais
e coisas ganham fala, sentimentos, se relacionam, facilitando-lhe a assimila-
ção e apropriação de sua própria história, seus medos, conflitos, defesas, o
modo como se relaciona com os outros, com o mundo em geral. Assim a
criança teria a oportunidade de construir o final da história, dando sua pró-
pria conclusão. Dessa forma a devolutiva torna-se terapêutica para as crianças
e os pais, pois a história é levada para casa e pode ser revisitada (Yehia, 2002).
Para a autora acima citada o psicodiagnóstico interventivo/colabora-
tivo como uma modalidade de prática psicológica contempla uma perspecti-
va fenomenológica existencial.

2 A PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA EXISTENCIAL E


SUAS INFLUÊNCIAS NA CLÍNICA PSICOLÓGICA

Para estabelecermos um diálogo com a prática do psicodiagnóstico


interventivo/colaborativo, faz-se necessário contextualizar a perspectiva
fenomenológica existencial, que ampara meu fazer clínico. Em seguida, se-
rão apontadas suas contribuições à clínica psicológica.
O pensamento de Edmund Husserl originou uma das mais férteis
correntes da filosofia moderna – a fenomenologia, movido pela questão:
236 Andrea Cristina Tavelin Biselli e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

como fundamentar de modo absolutamente seguro o conhecimento? Ele


acreditava que os esforços filosóficos de Descartes e Kant não foram sufici-
entes para assegurar a fundamentação necessária. Propõe à filosofia, nesta
direção, uma atitude crítica radical, em que para algo ser conhecido deve
mostrar-se em toda a sua evidência.
Para o filósofo, a atitude natural – que abarca a atitude científica e
a do senso comum – considera as coisas como existentes em si mesmas,
independente de sua relação com uma consciência. Esse tipo de atitude su-
põe uma natureza em si e da qual não há possibilidade de experienciar. Ao
contrário, a atitude fenomenológica (ou filosófica) “deve ater-se apenas
àquilo que se dá à experiência, tal como se dá: o que chamamos de fenôme-
no” (Sá, 2005, p. 319). Ainda conforme ressaltado pelo autor, a palavra fe-
nômeno deriva da palavra grega phainomenon, que significa o simples apa-
recer dos entes. Nesta perspectiva, Husserl vai postular que para a ciência
primeira – a fenomenologia – que “todo objeto é sempre objeto-para-uma-
consciência e nunca objeto em si, e toda consciência é sempre consciência-
de-um-objeto e nunca consciência vazia” (Sá, 2005, p. 320).
Husserl privilegia a intuição sobre o pensamento conceitual. O
termo intuição designa a visão direta e imediata de um ente, seja ele sensível
ou não e difere-se do pensamento discursivo, dedutivo ou conceitual. Assim,
o elemento essencial da atitude filosófica é o procedimento intuitivo, sendo a
intuição a via de acesso ao fenômeno. É na intuição que está o interesse pró-
prio da fenomenologia: a correlação entre sujeito e objeto. O estudo dessa
correlação é constituído pela análise descritiva das estruturas da consciência,
não no sentido de uma consciência introspectiva, mas uma consciência que
tem como característica essencial a intencionalidade e remete-se ao mundo
cuja constituição apenas se dá nessa referência (Sá, 2005, p. 320).
Outro filosofo alemão, aluno de Husserl e um dos mais influentes
pensadores do século XX é Martin Heidegger (1889-1976).
A grande questão que motivou Heidegger a ingressar na filosofia
foi o sentido do ser. Em 1927 publicou sua obra mais conhecida, Ser e Tem-
po (Sein und Zeit), onde trata a questão do ser trilhando caminhos diferentes
aqueles propostos pela tradição, interrogando o “sentido do ser” e não “o que
é o ser” (Sá, 2005, grifos do autor). Considerava necessário “elaborar uma
interpretação ontológica do existir humano em geral, isto é, uma interpreta-
ção que diga respeito às estruturas que constituem o ser do homem enquanto
existente” (Sá, 2005, p. 323).
De acordo com o autor supracitado (2005, p. 325), ao método apre-
sentado para o questionamento ontológico, Heidegger denominou “fenome-
nologia hermenêutica”, considerando que “o sentido que se desvela através do
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

homem, nunca se dá a partir de algum a priori transcendental; é sempre inter-


pretação”. A interpretação, nessa perspectiva, visa “dirigir-se às coisas mes-
mas” que nada converge com a coisa “em-si” da tradição metafísica, refere-se
sempre a um retorno às “coisas mesmas” tal como elas aparecem ou se dão
para a consciência, isto é, o fenômeno tal como ele se apresenta. Estamos as-
sim, diante da crítica que Heidegger faz à ciência e à técnica moderna.
O pensar ocidental fundamentou-se no paradigma metafísico com a
esperança de conceber o conhecimento seguro, verdadeiro. Desse modo,
acreditava-se ter ido além do modo de pensar originário que concebe o ser do
real como totalidade englobando o ser e o não ser. Entretanto, os pré-
socráticos – também conhecidos como os pensadores originários – compre-
endiam a verdade do ser como aletheia, ou seja, o que se desvela a partir do
ocultamento. Desta forma, tudo o que “é”, está sempre em sintonia com a
alteridade, com a qual tanto se opõe como se relaciona, constituindo, ao
mesmo tempo, uma identidade e uma distinção (Michelazzo, 1999).
Mas o paradigma metafísico, ao buscar o conhecimento como ver-
dade indubitável, distancia-se de tal compreensão originária e privilegia ape-
nas a parte iluminada (revelada, que pode ser vista) do real. Nesta direção,
caracteriza-se como um modo de pensar essencialista que visa responder o
que é o ser. A este respeito, Heidegger afirma que a metafísica esquece a
“diferença ontológica” entre ser e ente apenas por revelar o ente em detri-
mento do sentido do ser, questão fundamental. Para o filosofo, a técnica ins-
trumentaliza a ação humana com o objetivo de alcançar determinados fins
numa relação de causalidade. Neste sentido, a ação humana é guiada e tem
como referência a razão tecnológica, perspectiva que influenciou a constitui-
ção da Psicologia como ciência (Michelazzo, 2002).
Acerca de tal contexto, Heidegger (2009, p. 298) diz que: “Às vezes
me pergunto de que maneira os jovens médicos, em seu envolvimento exces-
sivo com o conhecimento profissional, podem se desprender da simples prá-
tica. Mas este caso não é isolado; a dificuldade se mostra em todo lugar. No
futuro esta dificuldade deverá aumentar com o predomínio da técnica”.
O pensamento de Heidegger é a abertura de possibilidades para se
questionar a prática psicológica tradicional, proporcionando elementos para
refletir a ação clínica sem o domínio da técnica e afastando os processos
prescritivos voltados para o tratamento e a cura (Michelazzo, 2002). Nessa
direção, a questão principiaria já que, segundo Sá (2005, p. 325), “Heidegger
designa como Dasein (ser-aí) o modo de ser deste ente que mesmo somos”.
Há uma grande diferença entre o homem e os entes que não tem seu modo de
ser: “o homem não possui uma essência anterior à existência, antes, o que ele
é, seu ser, está sempre em jogo no seu existir”.
238 Andrea Cristina Tavelin Biselli e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Existência para Heidegger, segundo Spanoudis (1985, p. 22),


“guarda seu sentido etimológico original – EK-SISTENCIA –, quer dizer,
algo que emerge, torna-se manifesto, desvela-se”. Nessa compreensão de
existência, Heidegger assinala o existir humano – Dasein – “como sendo
uma “clareira” que possibilita perceber, compreender, entender e conhecer
a totalidade dos significados de tudo o que encontramos no mundo”. A
clareira constitui as muitas maneiras onde “tudo o que é se torna presente,
manifesta-se e se esclarece; assim como sentimos, agimos, pensamos, en-
fim como vivemos”.
Segundo Michelazzo (2002, p. 190), a palavra Dasein não pode ser
resumida apenas à sua tradução: existência. É preciso considerar que Heide-
gger a toma através de uma significação ontológica: “Dasein quer dizer que
o homem é um ente que habita aí, na abertura (Da), onde ele compreende o
ser das coisas (sein)”. Nesse sentido, segundo Sá (2005), o ser-no-mundo
revela uma unidade estrutural ontológica da existência do Dasein, que re-
mete a três momentos característicos da totalidade desse fenômeno: o mundo
como estrutura de sentido; o quem é no mundo, revelado de início como
impessoalidade cotidiana; e o modo de ser-em um mundo, onde a estrutura
se desdobra em compreensão e disposição.
A compreensão, segundo Heidegger, é um existencial, afastando-se
da noção de função como algo que poderá ou não se dar. Ela sempre se dará.
É abertura do ser-no-mundo. Na abertura da compreensão, o mundo se dá na
medida em que o dasein é no mundo, ou seja, contexto de sentidos, possibi-
lidades e significados. Dasein e mundo são coexistentes, co-originários. Da-
sein, neste sentido, é sempre sendo no mundo. Quando o modo de ser é sim-
plesmente dado na relação de ocupação, instrumentalidade, o Dasein tende a
fechar-se ao sentido do ser. Assim, o indivíduo passa a viver na cotidianida-
de, assumindo-se num modo de ser simplesmente dado. Porém, quando algo
rompe essa cotidianidade, abre-se a possibilidade de que outros sentidos,
outros modos de ser se desvelem (Rodrigues, 2006).
A interpretação, nesta perspectiva, constitui-se como condição para
tematizar e elaborar as possibilidades previamente compreendidas, própria
do processo de compreensão. Para Heidegger a compreensão e a interpreta-
ção sintonizam-se com o humor (disposição afetiva). A disposição afetiva
(humor), a compreensão e o discurso (linguagem) constituem o modo de ser
da abertura do ser-no-mundo (Rodrigues, 2006).
De acordo com o autor supracitado (2006), o discurso poderá dar-
se pela palavra, pelo silêncio, pela escuta, pela leitura, pelo sonho, por todas
as formas de expressão do ser-no-mundo. Através dele o homem se mostra
como ente que é ficando implícito na fala o ocultamento e o desocultamento.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

A hermenêutica, nesse sentido, possibilita o desvelamento, mas não de forma


explicativa e sim como compreensão e interpretação.
A de-cadência é o que caracteriza o modo de ser da cotidianidade
que pode ser compreendida como fuga. Essa fuga é a fuga do Dasein de seu
poder ser mais próprio. Nesse modo de ser da cotidianidade apresentam-se
os existenciais apontados por Heidegger: angústia, temor, morte, clamor e
débito (Rodrigues, 2006).
A angústia é a fuga de si mesmo vislumbrada através da abertura
dada por ela própria. É a angústia frente ao nada frente à própria condição de
ser no mundo, mundo de possibilidades. Ela rompe quando, ao deparar-se
consigo mesmo, acontece a estranheza pela falta de familiaridade. Assim, a
fuga representa a busca de familiaridade, do sentir-se em casa próprio do
modo impessoal (Rodrigues, 2006).
Segundo ao autor acima citado, “

Heidegger aponta o parentesco fenomenal entre temor e angústia. No


entanto, a disposição do temor, por se dar na impropriedade, é muito
mais comumente reconhecida do que a angustia, embora seja esta que,
através do desvio da de-cadência torne possível o temor. O que se teme
é sempre um ente que vem ao encontro dentro do mundo. (Rodrigues,
2006, p. 61)

Desta forma, o que se teme tem um caráter determinado de dano,


levando o ser à ilusão da possibilidade de fugir deste dano, enquanto que na
angústia o pelo que se angustia é indeterminado. A angústia se dá frente a
ruptura de significados, frente ao nada, tira o homem da sua zona de conforto
e previsibilidade. Esse dar-se conta se faz doloroso, quase que insuportável,
pois ele toma o indivíduo, o enche em toda a sua plenitude, levando o ho-
mem a buscar no passado a familiaridade perdida.
A morte é a possibilidade iminente e insuperável de não poder mais
estar presente. Para Heidegger, o ser é sempre ser-para-a-morte, ser-para-o
fim. Existindo, o ser está lançado para a morte. O Dasein permanece, a maior
parte das vezes, ausente a essa condição. Sabe-se com certeza da morte,
como possibilidade mais própria e a antecipação da morte permite libertar o
Dasein da condição de impessoalidade para assumir-se como si-mesmo, de
modo mais próprio (Rodrigues, 2006).
A possibilidade de transitar do impessoal para o poder ser-si-
mesmo, assumindo o que lhe é próprio, é chamado de clamor. O clamor é
um modo de discurso, se dá no silêncio, na ausência de referências univer-
sais, no rompimento de todas as determinações medianas. O discurso se-
240 Andrea Cristina Tavelin Biselli e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

ria, assim, a possibilidade do Dasein sair da condição do impessoal e


assumir-se na escolha de seu destino. A liberdade é condição de abertura
que coloca o Dasein numa posição de livre correspondência aos sentidos
(Rodrigues, 2006).
O estar em débito é compreendido como condição daquilo que o
Dasein é, ou seja, testemunha o seu limite enquanto existente. Ao estar no
impessoal, o dasein encontra-se na ilusão da completude ou a julga como
uma possibilidade que lhe é dada. O clamor convoca o Dasein a assumir-se
em sua condição originária como estando em débito. Valores e verdades
ditadas pelo impróprio perdem sua força, abrindo para a possibilidade de
singularização (Rodrigues, 2006).
No universo onde tudo é familiar e rico em sentido, a previsibilida-
de e a lógica são soberanas e se torna um lugar confortável e seguro. Porém
quando algo acontece e denuncia a falência do sistema, colocando em evi-
dência sua natureza, surge a angústia. A angústia se dá frente a essa ruptura
de significados, frente ao nada, tirando o homem da sua zona de conforto e
previsibilidade. Esse dar-se conta se faz doloroso, quase que insuportável,
pois toma o individuo, o enche em toda a sua plenitude, podendo levar o
homem a buscar no passado a familiaridade perdida (Rodrigues, 2006).
Medard Boss (1903-1990), psiquiatra e psicoterapeuta suíço, vis-
lumbrou no pensamento heideggeriano novas possibilidades para o exercício
da atividade psicoterapêutica. Através de um contato por carta com o filóso-
fo, iniciou-se um longo e regular intercâmbio por aproximadamente trinta
anos. Desde então, alguns encontros aconteceram e Heidegger pode transmi-
tir pessoalmente suas ideias a um grupo de médicos e psicoterapeutas em
seminários organizados por Boss, algumas vezes por ano. Boss compilou e
editou esses encontros sob o titulo de Seminários de Zollinkon em 1987,
constituindo-se material de grande importância e interesse para reflexões
sobre a psicoterapia e o fazer clínico (Sá, 2005).
Daseinsanalyse é uma palavra oriunda da obra Ser e Tempo, signi-
fica “análise do Dasein” – “ser-aí”, refere-se à tematização ontológica das
estruturas existenciais constitutivas do homem. Segundo Sá (2005, p. 331),
“a Daseinsanalyse clínica constitui, no entanto, uma aplicação ôntica da
analítica heideggeriana, pois cada fenômeno que vem a luz no diálogo clíni-
co deve ser discutido a partir do contexto factual concreto em que surge e
nunca reduzido genericamente a uma estrutura existencial”.
Assim, a clínica seria o espaço de tematização e apropriação do
projeto de vida do cliente por ele mesmo. Cabe ao terapeuta estar junto ao
cliente, no processo de compreensão e interpretação, dando-lhe condições
de se apropriar de suas escolhas, facilitando o surgimento de novas possi-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

bilidades de sentido e afastando-se da rigidez e restrição em que se encon-


tra (Rodrigues, 2006).
Segundo Barreto (2008, p. 6), o “sentido” remete a uma dimensão
de cuidado, implicando que o homem existe cuidando do seu existir, que ele
“toma sob seu cuidado o que pertence a sua existência”.

...a ação clínica busca propiciar ao cliente tornar-se narrador de si mes-


mo pela escuta atenta do psicólogo, que cuida do exercer de um dizer
apropriado e encarnado. O psicólogo clínico atua comprometido com o
significado-sentido, apontado na relação com o cliente, agora ouvinte.
Tentando manter o transitar, abre a possibilidade para o cliente também
se comprometer com a narrativa de sua própria história de vida e cami-
nhar na passagem da vivência para a experiência, assumindo-se explici-
tamente, como cuidado, ao vislumbrar um destino possível. (Barreto,
2008, p. 6)

Assim, a clínica se constitui pela linguagem. A linguagem é algo


primordial: é através dela, do diálogo terapeuta-paciente e da compreensão
que algo é construído. Essa não é a linguagem comum da representação,
trata-se da linguagem da poiésis, que significa poesia, mas que também si-
gnifica criação e produção em sentido mais amplo. Poiésis é a linguagem
que busca o interlocutor em seu espaço de liberdade e, quando há a compre-
ensão, ela é gratuita, emocional e sem necessidade de argumentação mediada
pela razão. Assim sendo, a comunicação pode ou não acontecer. Mas, quan-
do há a compreensão, a experiência torna-se extremamente significativa
(POMPÉIA, 2004).
Deste modo, clínica é a procura da verdade através da linguagem
da poiésis, sendo verdade compreendida como Aletheia, o que não pode ser
esquecido, o que pode ser recordado. Recordar vem de um radical latino cor-
cordis que significa coração. Portanto, Aletheia não é somente o que não
pode ser esquecido, mas aquilo que se pode por de novo no coração (POM-
PÉIA, 2004)
Nesse sentido, para Barreto (2008), a prática clínica, compreendida
como ser livre de interpretações teóricas fundamentadas em uma psicologia
subjetiva e técnica, permitirá ao cliente que se torne livre dentro dela. A ação
do psicólogo, pautada numa conduta ético-política, seria objetivada a libertar
os pacientes para si mesmos para aceitarem suas possibilidades de vida, po-
dendo dispor delas livremente e com responsabilidade.
Diante do que foi exposto, de acordo com Figueredo (1996, p. 39),
o pensamento de Heidegger pode ser trazido “para perto das questões que se
fazem ou se podem abrir a partir da clínica”, podendo contribuir também
242 Andrea Cristina Tavelin Biselli e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

para as questões que se abrem a partir da prática no psicodiagnóstico. Esse


pensamento possibilita uma contraposição ao processo tradicional – a prática
psicológica do Psicodiagnóstico como exclusivamente diagnóstica – pensan-
do-o, a partir de Heidegger, como uma situação interventiva e colaborativa.

3 RELATO DA EXPERIÊNCIA

Minha experiência como estagiária, facilitadora em grupos de Psi-


codiagnóstico Interventivo/Colaborativo de pais com crianças, aconteceu no
Serviço de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP),
sob supervisão da Profa. Dra. Carmem Lúcia B. T. Barreto na perspectiva
fenomenológica existencial.
Como “instrumento”, aporto-me nas anotações registradas em meu
“Diário de Bordo” (ou Diário de Campo), que se constitui da narrativa –
escrita dos sentimentos e impressões vivenciadas nos atendimentos ao(s)
cliente(s). A realização deste “Diário de Bordo” foi solicitada pela superviso-
ra no início do estágio, tendo sido aconselhado que tais registros fossem
escritos logo após o termino de cada encontro, privilegiando, assim, a expe-
riência vivenciada.
Mas, o que é um “Diário de Bordo”?
Para Aun (2005), “Diários de Bordo” são narrativas em forma de
escrita, feitas por um protagonista, a próprio punho, disposto a compartilhar
uma experiência. Ao comunicar algo vivido e sentido, “um Diário é como o
tecer da várias estórias interligadas. Estórias essas também tecidas por entre
outras narrativas” (p. 18). Dessa maneira, os “Diários de Bordo” refletem,
mostram, anunciam e denunciam “o mundo em torno, os outros e nós mes-
mos” (p. 19). Portanto, não se tratam apenas de relatos descritivos, são, so-
bretudo, a narração biográfica da “experiência de um profissional do lugar de
quem comunica o modo como ocorreu o revelar-se do outro a esse profissio-
nal/ pesquisador” (p. 19). São momentos de “criação de sentido” que deno-
tam a experiência plural e única de quem escreve.
Segundo Benjamim (1985, apud Barreto, 2006, p. 19):

A narrativa que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no


campo, no mar e na cidade – é ela própria, num certo sentido, uma forma
artesanal de comunicação, ela não esta interessada em transmitir o
“puro de si” da coisa narrada como uma informação ou relatório. Ela
mergulha a coisa na visão do narrador para em seguida retirá-la dele,
assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do olei-
ro na argila do vaso (grifos do autor).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Nessa perspectiva, Barreto (2006, p. 22) ressalta que o registro da


experiência possui um caráter interventivo, considerando que: “quando se
abre um espaço para se contar uma experiência a outra pessoa acolhedora
do relato, a fim de se compreender e se dar passagem às experiências vivi-
das, aí mesmo ocorre a oportunidade de elaboração em torno desse fazer”.
Nessa direção, utilizarei os fragmentos do “Diário de Bordo” como
possibilidade de compreensão do vivido, acreditando poder aproximar as
narrativas da prática realizada, com a intenção de clarear minha compreen-
são. Sendo assim, o texto-narrativo-escrito, que apresento, constitui-se numa
tentativa de tematização de minha experiência como estagiária de Psicologia
na prática psicológica do psicodiagnóstico interventivo/colaborativo de pais
com crianças, revelando-se como uma compreensão interpretativa do vivido.

4 RELATO DE EXPERIÊNCIA COMO COMPREENSÃO DO


VIVIDO

Presumo que haja um em cada grupo.


Um estranho que nunca se encaixa.
Bem, este era eu... David Gordon.
Encontrei uma fuga nas minhas histórias.
Minha imaginação era como um foguete e me levava
para longe, de onde podia olhar para a vida de uma
distância segura...
Que é o que eu faço agora com meus livros...
(...) Às vezes esquecemos que as crianças acabaram
de chegar a Terra...
Elas são como alienígenas, seres de muita energia e
puro potencial em uma espécie de missão explorató-
ria e estão aprendendo o que significa ser humano.
David – filme “Ensinando a Viver”, 2007

Como possibilidade de compreensão do vivido e acreditando estar


aproximando as narrativas o mais próximo possível da prática realizada, de
forma a clarear ao leitor minha compreensão, recorro à metáfora de contar
histórias através das fotografias do filme americano “Martian Child” – enti-
tulado em português como “Ensinando a Viver”, citado na epígrafe acima.
O filme narra a história de um homem chamado David, que, quando
criança, sempre se sentiu excluído, e cresceu sonhando com o dia em que os
ETs viriam levá-lo para o espaço. Sua imaginação o transformou em um es-
244 Andrea Cristina Tavelin Biselli e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

critor de sucesso. Ele estava em busca de adotar uma criança, quando fatal-
mente sua jovem esposa falece, deixando-o viúvo. Desde tal tragédia, ele res-
guarda-se sentimentalmente, fechando-se para as experiências afetivas, própri-
as à vida. Porém, após dois anos de sua perda, o serviço social entra em con-
tato para informar a possibilidade de uma adoção. Liz, sua irmã, tenta dissua-
di-lo da ideia, alegando os perigos da paternidade. Mas ele, finalmente resolve
tentar, adotando o “problemático” Dennis. Assim como David, Dennis vive
trancafiado em seu mundo de fantasia, acreditando ser um marciano em mis-
são de exploração na Terra. Dennis, na busca de cumprir sua missão – conhe-
cer este mundo chamado Terra – utiliza-se de uma câmera fotográfica, regis-
trando seus momentos e experiências vivenciadas, bem como todas as “coisas-
terrenas-estranhas” que chamam sua atenção. Tais fotografias, metaforica-
mente, vão montando uma história, a sua história, a construção de um mundo
de sentido. Repleto de esquisitices e extremamente inteligente, não resta a
David outra opção, a não ser mergulhar nesse mundo no qual seu filho vive e
aceitá-lo do jeito que é revelando, assim, um modo próprio de ser-pai.
Ensinando a viver é um roteiro adaptado do livro “Martian Child”,
do escritor de ficção científica David Gerrold, que se tornou um bestseller.
Este apresenta um relato real da vida do autor com seu filho adotivo, sendo
uma história comovente que, como a tradução do título destaca, nos ensina a
viver, privilegiando a singularidade da vida. Por esta obra, o autor recebeu
diversos prêmios de literatura.
Seguindo a metáfora do filme, busco contar a historia da minha
“viagem exploratória” ao mundo do psicodiagnóstico interventi-
vo/colaborativo num grupo de pais e crianças. Desta forma, minhas narrati-
vas são as “diversas fotografias” tiradas durante a “viagem”. Para identificá-
las, utilizo como recurso a fonte Comic Sans MS, que as fotografias tiradas.
Ao final, o texto, aqui apresentado, revela-se como o painel da “expedição”
foi montado. Tais fragmentos não serão utilizados na íntegra; aparecerão de
maneira indiscriminada com a intenção de apresentar como cada encontro foi
vivido e compreendido.
Uma sequência de acontecimentos permeou o caminho da minha
escolha sobre fazer o estágio em clínica na perspectiva fenomenológica
existencial culminando com o tema da monografia.
No início de fevereiro deste ano, iniciamos o estágio na perspectiva
fenomenológica existencial na clínica-escola da Universidade. Antes de co-
meçarmos atender, realizamos muitos estudos sobre o pensamento heidegge-
riano e a Daseinsanalyse.
“Fui me apaixonando a cada leitura, e discussões realizadas, sendo
esta, para mim, uma grande descoberta. Com um toque de magia, era como
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

se a cada leitura e discussão as coisas fossem se interconectando no meu


mundo, fazendo sentido”.
A clínica-escola foi escolhida para estagiar por abarcar um campo
de possibilidades de contato com diversas situações que enriquecem o co-
nhecimento da prática psicológica trabalhando com uma clientela diversifi-
cada, além da possibilidade de exercitar o sentido ético-político da profissão.
Foi nesta que se desvelou meu maior desafio: trabalhar com crianças.
Diante da decisão de enfrentar esse desafio, iniciou-se a proposta
de estudar o Psicodiagnóstico Interventivo/-Colaborativo. Nesta direção, um
pequeno grupo de estudos foi formado e acontecia uma vez por semana. Em
tais encontros, reuníamo-nos para discutir e estudar o que a literatura especi-
alizada traz acerca desta prática psicológica.
A partir desses encontros, decidimos que no primeiro semestre a
prática do Psicodiagnóstico seria realizada de modo individual e não grupal,
dando, assim, início aos atendimentos.
“A ansiedade e o medo estavam presentes, permeavam meus estu-
dos, mas com o passar do tempo só a ansiedade permaneceu”.
Os estudos continuaram, seguiram-se os atendimentos individuais e
surge, então, a ideia de relatar minha experiência como estagiária-
facilitadora neste processo do Psicodiagnóstico Interventivo/Colaborativo no
trabalho de conclusão de curso.
No início do segundo semestre, começamos a nos organizar de modo
a darmos início à prática do Psicodiagnóstico Interventivo/Colaborativo em
grupo de pais com crianças. Inicialmente, a equipe era formada por mim, mais
uma colega do estágio, por uma mestranda (supervisora de campo) e pela su-
pervisora, responsável por nós perante a clínica-escola. Dividimos a responsa-
bilidade de realizar a recepção da clientela que participaria do processo do
Psicodiagnóstico Interventivo/Colaborativo entre mim e a outra estagiária e,
assim, demos início a esta primeira acolhida aos pais que procuravam o Servi-
ço de Psicologia.
No final de agosto, tínhamos recepcionado uma boa quantidade de
pais e pudemos começar a pensar na formação dos grupos. Devido à deman-
da, resolvemos formar três grupos: um na terça-feira à tarde, coordenado
pela supervisora de campo e a outra estagiária; um na quarta-feira pela ma-
nhã, por mim e a outra estagiária; e um na quinta-feira a tarde, sob a minha
responsabilidade e da supervisora de campo. Nesta oportunidade, já contá-
vamos com a colaboração de mais duas colegas da iniciação científica (PI-
BIC), que tinham como temática geral o Psicodiagnóstico Interventi-
vo/Colaborativo e a professora Carmem como orientadora.
246 Andrea Cristina Tavelin Biselli e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Assim, em meados de setembro iniciamos os encontros. Estava


bastante ansiosa para me deparar com o inesperado e para que as mães com-
parecessem. Tinha como porto seguro a presença da supervisora de campo
que já tinha vivenciado experiências semelhantes.
“Antes de iniciar o encontro, estava muito ansiosa. A ansiedade
crescia. Será que todas as mães viriam?... Acredito que a presença da supervi-
sora de campo foi um porto seguro... Fez-me sentir segurança e tranquilidade”.
No dia e hora marcados, arrumamos a sala e esperamos as mães
chegarem. Tínhamos como planejamento da primeira sessão a discussão e a
apresentação do processo do Psicodiagnóstico que realizaríamos, e uma di-
nâmica de apresentação, que acreditávamos possibilitar o estabelecimento de
uma relação e permitia que eles (os pais e as mães) se apresentassem. A par-
tir daí, estaríamos abertas para o inesperado. Convidamos as mães a entrarem
na sala e nos apresentamos. As alunas da iniciação científica estavam pre-
sentes, pois participariam do processo. Falamos do contrato de trabalho,
enfatizando a necessidade da colaboração dos pais e demos início a dinâmica
de apresentação, que tinha como tema: “Quem sou eu”.
“As mães vieram. Fiquei muito feliz em vê-las. Observar como
cada uma lidava com a tarefa proposta era para mim uma atividade muito
interessante. Já tinha estado com aquelas mães uma vez e algumas atitudes
me faziam lembrar esse nosso encontro”.
Após os pais terminarem a primeira parte da dinâmica, a constru-
ção de um cartaz que falasse deles, pedimos que falassem sobre o que tinham
feito, possibilitando, assim, que eles se apresentassem. Depois desse mo-
mento, a supervisora de campo necessitou realizar uma intervenção de modo
a estimulá-los a falarem o que os fizeram procurar o Serviço e quais eram
suas preocupações.
Por eu ter tido um primeiro encontro com elas não me sentia à
vontade em fazer intervenções para que falassem sobre suas queixas:
“Senti que uma intervenção minha pudesse soar como se eu quises-
se expor o que antes me tinha sido dito na entrevista de recepção, e por acre-
ditar que elas diriam o que achassem necessário. A intervenção sendo feita
por outra pessoa me soava de forma mais suave”.
Assim, à medida que as mães falavam sobre suas queixas, a super-
visora de campo intervinha e colocava a questão para o grupo, mobilizando
as outras mães a falarem e refletirem. Elas, todas, participavam. O movi-
mento do grupo era mobilizador. Eu continuava observando, e esperei o
momento em que me senti mais à vontade para poder intervir. Marcamos o
segundo encontro com as mães.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Iniciava-se uma “viagem exploratória” num mundo, por mim, ja-


mais visitado – o trabalho do Psicodiagnóstico Interventivo/Colaborativo em
grupo.
Na supervisão, um estagiário solicita-nos a acolher, no grupo, uma
avó, que tem a guarda judicial do neto e encontra-se angustiada frente as
suas dificuldades com ele, por seu modo de ser agressivo. Esta senhora esta-
va sendo atendida, individualmente, por esse colega do estágio, que nos re-
lata os problemas vivenciados pela a avó e a criança. Neste contexto, tal
questão foi discutida com a supervisora e decidimos marcar uma entrevista
com esta avó com intuito de clarear melhor a situação vivida e possibilitar
sua participação no encontro seguinte do grupo.
Os imprevistos estão sempre nos rodeando, e ali estava um deles.
Apesar de ser avisada que o encontro seria somente com a família, a avó
levou seu neto-filho, pois não tinha com quem deixá-lo. Ao buscar solucio-
nar tal imprevisto, fomos procurar por algum colega estagiário que estivesse,
porventura, na clínica e que pudesse ficar com a criança pelo período de
realização do encontro com os pais. Dois colegas, sendo um do nosso grupo
de supervisão de estágio e outro do grupo de supervisão da Gestalt-terapia,
disponibilizaram-se e ficaram com a criança. Ficamos mais tranquilas, nós as
facilitadoras e a avó, pois a criança estaria acompanhada enquanto estivés-
semos reunidas no grupo com as mães.
“O encontro foi bastante interessante, as mães começaram a falar
sobre suas questões, outras opinavam, davam sugestões, contavam experiên-
cias semelhantes. Começava haver ali uma troca entre os membros do grupo.
Observar o movimento do grupo me deixou fascinada, quantas coisas esta-
vam podendo ser ditas, compartilhadas”.
Ao final do encontro, perguntamos às mães como se sentiam. Elas
falaram sobre o que foi conversado e trouxeram algumas reflexões, possibi-
litando ampliar a tematização e a compreensão do que foi vivido. Nesta oca-
sião, uma mãe me chama a atenção, pois ao ser solicitada a falar, diz que
nada mais tem a dizer, pois já tinha falado muito. Todavia, havia permaneci-
do a maior parte do grupo em silêncio. Não era um silêncio calado, mas que
muito dizia e que refletia sua atenção e disposição para as falas das demais
mães, que de algum modo pareciam contemplá-la:
“Uma mãe me chamou atenção quando disse ao final do encontro
que havia falado muito. Fiquei pensando como ela podia ter falado tanto se
ficou calada a maior parte do encontro. Ao escrever sobre isso posso com-
preender que como tudo o que foi dito ali também falava um pouco dela,
então era como se ela tivesse falado tudo aquilo”.
248 Andrea Cristina Tavelin Biselli e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Nós, eu e a supervisora de campo, também fizemos intervenções,


colocando nossas compreensões sobre o que estávamos dialogando e as es-
tendemos para o grupo.
Na supervisão, foi possível colocar em conversação a experiência
vivenciada no grupo, o que possibilitou o diálogo tanto entre a equipe como
com os demais estagiários que fazem parte do estágio em fenomenologia
existencial, sob supervisão da professora Carmem. Tal contexto possibilitou
o acontecer de uma fusão de horizontes, revelando outras possibilidades de
atendimentos. Ficou claro, ainda, como tinha sido importante a ajuda dada
por nosso colega de estágio ao ficar com a criança durante o encontro com os
pais e como sua compreensão acerca deste nos permitia ampliar nossas pró-
prias compreensões sobre esta família. Devido a tal importância, surgiu a
proposta deste colega, também, participar do grupo, dos demais encontros
que estavam por vir. Mas tal participação, antes, deveria ser acordada com os
pais, que poderiam vetá-lo. Nesse dia, surgiu, ainda, a possibilidade de outra
colega de estágio, que tem formação em arte terapia, trabalhar com as mães
enquanto estivéssemos nos encontros em que participariam apenas as crian-
ças. Tal contexto me possibilitou perceber a integração do grupo de estágio e
a importância de tal disponibilidade, como ilustra o recorde abaixo:
“Sinto a interação do grupo de estagiários, há sintonia, colaboração
e participação. Faz-me bem trabalhar com eles. Acredito que, de certa forma,
contagiei meus colegas em relação ao meu trabalho com o grupo do Psicodi-
agnóstico, ao relatar minhas experiências, e eles se dispuseram a colaborar”.
No encontro seguinte, pudemos observar que o grupo se identificou
e que, ali, foram criados laços de amizade entre as mães, como se respeitam
e se disponibilizam para o encontro, acolhendo-se:

Senti hoje que o grupo está criando uma identidade e uma cumplicida-
de, percebo isso quando elas trocam olhares, convoca a outra a falar,
pede opinião. No espaço do grupo elas falam e são ouvidas, refletimos
sobre as questões apresentadas – desveladas, tematizadas – e muitas
demonstram que ampliaram suas possibilidades, relatando uma possí-
vel melhora sobre a queixa da criança, devido a uma mudança de
postura delas.

Nesse sentido, nossa experiência autoriza a concordar com Yehia


(2002,) quando ela afirma que:

Muitas vezes, ainda durante o processo, os pais começam a experimentar


novas formas de relacionamento com o filho, (...) frequentemente, refe-
rem-se a mudanças de atitudes. A extensão e o tipo dessas mudanças po-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

dem servir de indicadores para a flexibilidade dos pais, sua capacidade


para prosseguir sozinhos ou a necessidade de encaminhamento psicote-
rápico uma vez encerrado o psicodiagnóstico. (p. 129)

Após alguns encontros com os pais, tivemos o primeiro encontro


apenas com as crianças, tendo sido este muito significativo. Após as apresen-
tações, para possibilitar que o falar fosse colocado em movimento pedimos
para que as crianças nos dissessem o motivo de terem vindo ao encontro.
Como o pai do marciano – do filme acima abordado – se permitiu
ser levado ao universo do filho, eu – enquanto estagiária-facilitadora – busquei
adotar uma postura parecida, o que me possibilitou que cada uma das crianças
e pais vivenciassem sua aventura no papel de tripulantes desta “viagem”.
Nesse encontro, inicialmente, algumas das crianças (meninos e
meninas) reuniram-se em torno de um jogo, sendo as regras deste, ditada por
eles. Na medida em que o jogo ia acontecendo, a supervisora de campo, que
acompanhava o grupo, apontava algumas das dificuldades que já se desvela-
vam, dificuldades que tinham em relação ao jogo e as regras estabelecidas, já
revelando seus próprios modos de ser-no-mundo. Após certo tempo transcor-
rido, alguns destes meninos procuraram o estagiário-facilitador (nosso colega
de estágio que agora fazia parte do grupo) e, com este, começaram um novo
jogo, no qual as regras eram vigiadas pelo estagiário. Eles adoraram e pedi-
ram para continuar, no encontro seguinte, a jogar com ele. Tal movimento
muito diz sobre o modo de ser destas crianças e possibilita algumas compre-
ensões, embora nunca definitivas e inflexíveis. Intervimos, pois, junto às
crianças, apresentando-lhes, numa linguagem própria a elas, quais eram nos-
sas compreensões acerca do que estava acontecendo, chamando-os, assim, a
se apropriarem de seus modos de ser.
As mães estavam em outro grupo com a estagiária da arte terapia.
“As mães que participaram do grupo de arte terapia aparecem para
encontrar seus filhos sorrindo e demonstrando felicidade, alegria. Sinto que o
encontro foi bom para elas. Depois a colega estagiária relata o quanto foi bom
tanto para as mães como para ela poder proporcionar momentos significativos”.
No outro encontro com as crianças, elas trouxeram respostas para o
questionamento inicial acerca do que elas estavam fazendo ali, quem éramos
nós e por que seus pais tinham procurado ajuda.
“Eles chegaram e sentaram-se nas almofadas. Começaram dizendo
que agora sabiam por que estavam ali – porque “aperriavam” muito as mães.
Eles perguntaram a elas. Fiquei surpresa! Ao perguntarmos se eles sabiam
fizemos uma intervenção e eles buscaram saber o que estava acontecendo e
porque deveriam estar ali”.
250 Andrea Cristina Tavelin Biselli e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Os grupos foram novamente formados. Alguns dos meninos procu-


raram, mais uma vez, o estagiário-facilitador, dando continuidade à brinca-
deira iniciada no encontro passado. Mas algumas das crianças preferiram
ficar sozinhas, desenhando.
“É interessante ver as crianças brincando, desenhando, elas são
muito diferentes daquelas relatadas pelas mães. Posso perceber as diferenças
entre o que as mães falaram e o que elas apresentam. Estávamos com onze
crianças, muitas com queixa de hiperatividade, agressividade, mas nada de-
monstra essa queixa. Será que estamos falando das mesmas crianças?”.
Nos encontros com as mães e as crianças, as crianças tomaram a
iniciativa de convidar as mães para brincar, desenhar, ficar junto. Um pouco
tímidas, elas cedem ao convite dos filhos. Acerca desses encontros, os com-
preendo como:

momentos mágicos. Sinto que foram momentos especiais, momentos de


encontro entre eles – mães e crianças. Ali, eles tiveram tempo um para o
outro. Parece-me que isso foi significativo para as mães e para os filhos.
Vamos passeando por entre eles e fazemos algumas intervenções quando
achamos necessário, elas dizem que nunca tiveram um tempo só com o
filho e que aquele momento estava sendo especial.

A viagem, com a “missão exploratória” ao mundo do Psicodiagnós-


tico Interventivo/Colaborativo – enquanto estagiária do Serviço de Psicologia
–, está perto de terminar. Mas algumas compreensões já são desveladas.
Nos encontros finais com as mães, refletimos juntos como elas per-
cebem suas queixas iniciais e as ampliações que o processo as possibilitaram
no modo de ver e compreender seus filhos e seu contexto familiar. Isto, por
sua vez, tem me possibilitado construir algumas compreensões acerca desta
prática psicológica, como mostra tal fotografia:

Ao ouvir as mães relatarem a importância dos momentos de participação


e reflexão no grupo; de terem tido um tempo para estar a sos com seus
filhos e poder brincar, dar atenção a eles, compreendi o quanto o Psico-
diagnóstico tinha sido significativo para elas. Percebo que já não se co-
locavam numa postura de ver o filho como um problema, compreendiam
que aquele comportamento denunciava uma relação muito estreita com o
modo deles serem-no-mundo, enredado por uma trama de sentidos da
qual elas faziam parte.

Elas relataram, ainda, que já haviam mudado algumas posturas, que


outras precisariam ainda mudar e que percebiam necessitar de ajuda de um
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

profissional de Psicologia para se entenderem melhor e poderem, assim,


estar de outro modo com seus filhos.
A perspectiva fenomenológica existencial, fundada na dimensão
ontológica do ser do homem, possibilita outro olhar sobre a situação de
psicodiagnóstico apontando para outras possibilidades de intervenção na
modalidade de prática do Psicodiagnóstico Interventivo/Colaborativo. Pos-
sibilita aos integrantes do grupo – mães, crianças e psicólogo – outro modo
de se relacionarem e assim, assumir uma condição de existir mais própria.
Neste contexto, a atitude colaborativa do grupo foi propiciada e conduziu
as mães a se apropriarem da demanda de seus filhos, das suas próprias de-
mandas e da demanda das outras famílias envolvidas. Assim, o grupo foi
sendo constituído como um lugar de convivência das diferenças e seme-
lhanças, do compartilhar compreensões e experiências, no qual, como vi-
vendo em mundo com outros, todos eram afetados e afetavam, provocando
alguma transformação. À medida que isso ia acontecendo, ou seja, que as
nossas compreensões eram compartilhadas, construíamos em conjunto pos-
síveis caminhos que permitiram ampliar o campo de compreensão da de-
manda de cada cliente.
Como já foi apontado, cada encontro deveria durar cerca de uma
hora e trinta minutos, sendo realizados três encontros com os pais/respon-
sáveis, três apenas com as crianças, dois com toda a família (pais e crianças),
um de desfecho com a criança e outro com os pais/responsáveis. Entretanto,
devido à perspectiva fenomenológica existencial, compreendíamos que tal
“enquadramento” não era algo rígido e inflexível e que poderíamos assumir
o caminhar apontado pelo grupo. No grupo de psicodiagnóstico interventi-
vo/colaborativo, em questão, foram realizados doze encontros, sendo três
com pais, dois com as crianças, dois com os pais e as crianças e três com os
pais. Ainda, dois encontros de devolutiva, um para as crianças e outro para
os pais.
Diante do que foi observado, refletido e compreendido, este grupo
assinalou a necessidade de acompanhamento terapêutico para a maioria dos
pais – no caso das mães, além de procurarem compreender melhor questões
de dificuldades de aprendizagem apresentadas por algumas das crianças.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos estudos e da experiência vivenciada, as distinções entre


o psicodiagnóstico tradicional e o psicodiagnóstico interventivo/colaborativo
foram tematizadas. No modelo do psicodiagnóstico tradicional o psicólogo
252 Andrea Cristina Tavelin Biselli e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

se propõe a ajudar o cliente no sentido de fornecer dados para que haja o


encaminhamento, tendo assim um papel ativo de planejar e selecionar os
testes a serem aplicados visando à compreensão da personalidade do cliente
e/ou do seu grupo familiar; o cliente é o que solicita a ajuda, tem um papel
passivo, informa e realiza os testes propostos. Já no psicodiagnóstico inter-
ventivo/colaborativo estas atitudes são questionadas, o psicólogo ao assumir
uma atitude de acolhimento, de intervenção e colaboração possibilita ao cli-
ente refletir, tematizar e construir compreensões significativas em relação à
demanda. Desta forma, o cliente é um parceiro ativo do processo e o psicó-
logo atua como facilitador de mudanças positivas, permitindo ao cliente
maiores possibilidades de escolhas e lhe estimulando a viver com novas
perspectivas.
Com isso, aponta-se que a diferença de um modelo para o outro é a
mudança na atitude do psicólogo que, desde o primeiro momento quando
acolhendo o sofrimento do cliente, estabelece um contrato de trabalho onde a
dimensão colaborativa deverá ser assumida para que haja o sucesso do pro-
cesso – compreensão do que está sendo vivenciado por ambos, psicólogo e
cliente.
Esta atitude que o psicólogo assume é a base de abertura para todo
o desenrolar do Psicodiagnóstico.
A compreensão através das narrativas sobre o psicodiagnóstico in-
terventivo/colaborativo apontou possibilidades compreensivas para as ques-
tões apresentadas como queixa, que foram sendo ampliadas e compartilha-
das. Aponta ainda que tal atuação permitiu vislumbrar outras compreensões,
desvelando a demanda não explicitada na queixa que motivou a procura por
atendimento psicológico.

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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

PLANTÃO PSICOLÓGICO NO
DEPARTAMENTO JURÍDICO DO
“XI DE AGOSTO”: RELATO DE
PLANTONISTAS
André Prado Nunes
Henriette T. P. Morato

Sumário: 1. O Departamento Jurídico: Estrutura e Organização. 2 O


Plantão Psicológico no Departamento Jurídico “XI de Agos-
to”. 3. O Atendimento no D.J.: a Experiência dos Plantonistas.
4. Considerações Possíveis. 5. Referências.

1 O DEPARTAMENTO JURÍDICO: ESTRUTURA E


ORGANIZAÇÃO

O Departamento Jurídico “XI de agosto” – D.J. – é um órgão atre-


lado ao Centro Acadêmico “XI de agosto”, da Faculdade de Direito do Largo
São Francisco da Universidade de São Paulo. O D.J. é a maior e mais antiga
organização não governamental em atividade na América Latina, visando à
prestação de assistência jurídica gratuita à população considerada “pobre na
acepção jurídica do termo”, isto é, com renda familiar de até três salários
mínimos. Atualmente situado na Praça João Mendes, centro de São Paulo, o
D.J. foi fundado em 1919 e ocupa dois blocos do Edifício Jurídico, com mais
de duzentos trabalhadores divididos entre estagiários, advogados orientado-
res e advogados colaboradores, sendo responsável por mais de quinhentos
atendimentos mensais.
O espaço físico do D.J. é composto de recepção e sala de espera,
baias de atendimento, diretoria, sala dos estagiários, cozinha, sala de com-
putadores, banheiros e biblioteca. Os clientes têm acesso apenas à recepção e
sala de espera, baias e banheiros; as outras áreas são exclusivas para os esta-
giários. Os estagiários de Direito do D.J. são alunos da própria Faculdade de
Direito do Largo São Francisco, divididos em três categorias diferentes: es-
tagiários administrativos, de campo (vareiros) e plantonistas.
256 André Prado Nunes e Henriette T. P. Morato

Os primeiros são alunos do primeiro ano encarregados da recepção


dos clientes, triagem socioeconômica, triagem jurídica e encaminhamento ao
estagiário plantonista. Os estagiários de campo são alunos do segundo ano,
incumbidos do acompanhamento dos processos junto aos fóruns da capital.
Após quatro meses nessa função, têm a opção de se submeterem a uma ava-
liação para tornarem-se estagiários plantonistas. Estes são alunos do terceiro
ano em diante, que ainda não obtiveram sua colação de grau, cuja função é
prestar assistência jurídica, orientando o cliente sobre seus direitos, esclare-
cendo dúvidas, participando de audiências e encaminhando o cliente para
serviços de Psicologia e Assistência Social, caso este deseje.
O número de atendimentos efetuados pelo D.J. é limitado pela es-
trutura física, recursos financeiros e disponibilidade dos estagiários. Assim o
departamento não se compromete a acolher todos os casos que lhe são trazi-
dos, exceto os casos advindos do convênio com a Procuradoria Geral do
Estado.

2 O PLANTÃO PSICOLÓGICO NO DEPARTAMENTO


JURÍDICO “XI DE AGOSTO”

Em 2001, houve um pedido da diretoria do D.J. por uma parceria


com o LEFE1 para um trabalho voltado à comunidade atendida pelo depar-
tamento e aos estagiários de Direito, na área da Psicologia. Esta parceria
compreende reflexões sobre as possibilidades de interlocução entre as áreas
de Direito e Psicologia, consideradas suas singularidades. Neste sentido, esta
parceria não se propôs a estruturar um serviço de Psicologia Jurídica, mas
uma possibilidade de intervenção psicológica contextualizada. Esta interven-
ção compreendia uma ação clínica que parte de uma compreensão presente
na etimologia grega da palavra clínica (klinein), na qual surge a ação de “in-
clinar-se para” como possibilidade de atenção e cuidado das singularidades
ali presentes no que elas apresentassem no contato com os estagiários de
Psicologia. Para uma compreensão mais pertinente desse trabalho é signifi-
cante esclarecer mais detalhadamente as noções contidas nessa proposta
antes de se avançar para o relato dos plantonistas.
Atenção e cuidado são termos caros para a Psicologia de perspecti-
va fenomenológica existencial, pois guardam diversos ranços com práticas
médicas, assistencialistas e de outras áreas psicológicas. Compreende-se que

1
Laboratório de Estudos e Prática em Fenomenologia Existencial do Departamento de
Psicologia Escolar e da Aprendizagem do Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo (LEFE-IPUSP).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

o cuidado “como condição constituinte fundamental (ontológica) do existir


humano não exclui as diversas formas de relações afetivas, como as inclui,
constituindo-se a condição fundamental de todas as possibilidades de com-
portamento concreto” (Barreto & Morato, 2009, p. 46). Assim, cuidado refe-
re-se à possibilidade do homem lidar com sua condição de ser-aí, lançado no
mundo com outros. Desse modo, homem não tem cuidado, é cuidado. Mes-
mo as formas mais impróprias de cuidado ou o próprio descuido incluem-se
nos modos do homem de responder às afetações realizadas no e pelo mundo.
O cuidado contempla o encaminhar uma comunicação rumo a sentido, ori-
entando significados que possibilitam o questionamento, a reflexão e o situ-
ar-se do sujeito na direção do bem estar. O bem estar não é compreendido
como um ponto de chegada estático e definido, mas se refere à possibilidade
de trânsito, movimentação e deslocamento do ser nas suas condições deli-
mitadas concretamente (Nunes, 2006). Por sua vez, atenção refere-se a “estar
junto a”, abrindo à escuta aquilo que se apresenta na busca por uma compre-
ensão que não ocorre necessariamente pelo encadeamento lógico dos fatos
comunicados. Ela contempla a prontidão do olhar e da escuta que, situando o
psicólogo, possibilita que ele situe o sujeito demandante por cuidado.
Por esta via, atenção e cuidado não buscam ser disponibilizados
como instrumentos disciplinares de supostos especialistas detentores de sa-
beres técnicos claros e precisos sobre o bem-estar e a saúde do indivíduo. As
compreensões apresentadas destinam-se a esclarecer que aquele que é alvo
de cuidado e atenção não deve ser visto como alguém subjugado, inferiori-
zado ou mesmo objetificado, mas como um ser que possui recursos para lidar
com as situações de crise e a própria existência. Esses recursos podem ser
desvelados e constituídos, muitas vezes, no espaço de contato com o planto-
nista de Psicologia (coexistência) durante o atendimento em Plantão Psicoló-
gico. Eles revelam modos singulares de responder às afetações do existir,
não devendo ser tomados como modelos ou técnicas a serem copiados e
transpostos para outras situações e sujeitos.
Deste modo, busca-se evidenciar que “o que” é cuidado nessa pro-
posta de intervenção não é somente o “sofrimento” como tradicionalmente
aparece em diversas queixas de atendimento, mas, de um modo mais amplo,
busca-se atentar e cuidar das relações que ocorrem no contato dos estagiários
de Psicologia com o público atendido e os funcionários e estagiários desta
instituição. Neste contato, essas relações podem assumir diversas e imprevi-
síveis formas, desde dúvidas, curiosidades e questionamentos sobre informa-
ções e assuntos pontuais até, eventualmente, a expressão de pedidos de ajuda
e queixas de sofrimentos variáveis (Aun, 2005). Compreender a necessidade
de intervenção e atendimento somente quando se configura uma queixa clara
de sofrimento reduz a abrangência dessa proposta em Psicologia. O cuidado
258 André Prado Nunes e Henriette T. P. Morato

do contato nas relações que se estabelecem busca propiciar um conduzir


adiante do sujeito na sua tarefa de existir mediante a inospitalidade dos
acontecimentos e também na condução adiante de questões que, em dado
momento da vida, se mostraram incontornáveis para sua compreensão. Ou
seja, o sofrimento aqui não é algo a ser eliminado, mas refere-se a um as-
pecto da condição humana que é o de sofrer como sustentar a própria tarefa
do existir conduzindo-se adiante na produção de sentido. Conduzir adiante
seria propiciar, no contato das relações, a compreensão e a continuidade de
uma história que pode se encontrar, em determinadas situações, barrada ou
incontornável (Oliveira, 2006).
No percurso de esclarecer a proposta de intervenção psicológica
conduzida, o laboratório universitário assume que esta intervenção deva ser
contextualizada e não partir de algum modelo pronto de atendimento psico-
lógico para efetivar a sua parceria com a instituição jurídica. A intervenção
psicológica parte de uma investigação clínica pautada inicialmente em um
pedido feito pelos representantes da instituição. Tal pedido de ajuda apre-
senta uma compreensão prévia do sentido da Psicologia e suas possibilidades
de atuação, assim como também revela uma compreensão do sentido da ins-
tituição e da destinação e encaminhamento do problema expresso no pedido.
Diante deste panorama, antes de se pensar em algum tipo de atendimento
propriamente dito, é necessário atentar para esse pedido, abrir outras possi-
bilidades de escuta e compreensão, fazê-lo circular no contato que se esta-
belece logo nas primeiras relações e visitas. Esta ação reflexiva contempla o
sentido de cuidado uma vez que, frequentemente, nas compreensões prévias
enrijecidas e institucionalizadas percebem-se situações de sofrimento e perda
de sentido naturalizadas nas relações e no “fazer” cotidiano. Entretanto, dife-
rentemente de uma Psicologia Jurídica, pautada em um caráter mais técnico
do que clínico, o projeto de Plantão Psicológico não busca uma análise ins-
titucional e nem pretende realizar mudanças institucionais. Ele busca instau-
rar e manter o caráter instituinte de um espaço e de uma escuta atenta às
singularidades presentes na instituição. Nesta perspectiva, embora o projeto
se inicie a partir de um pedido de intervenção realizado pela diretoria do
departamento jurídico, a atuação dos plantonistas resguarda uma autonomia
perante este pedido, de modo a preservar o sigilo dos atendimentos e o espa-
ço clínico de cuidado às singularidades.
Uma compreensão pertinente de Plantão Psicológico pode ser efe-
tivada a partir da metáfora da “árvore grande”: um lugar onde o viajante
encontra acolhimento, sombra e repouso. Nessa metáfora, as pessoas seriam
viajantes e seguiriam seu caminho de árvore em árvore. Assim, o Plantão
Psicológico é um lugar em que aquele que chega pode se apropriar reflexi-
vamente daquilo que carrega, onde pode olhar para si, pensar seu caminho.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Esse “lugar” não se refere apenas ao espaço onde o Plantão é disponibiliza-


do, a saber, no mesmo espaço dos atendimentos jurídicos e nos outros espa-
ços de circulação do departamento. Esse “lugar” se refere também a uma
situação de “estar junto a” um plantonista disponível para que o usuário
“apropriar-se do que até o momento se apresentava como questão obscura”
(Oliveira, 2006, p. 67). Nesse encontro não há pretensão de desvelar todas as
possibilidades e interpretações do encontro, mas busca-se dirigir uma comu-
nicação rumo a sentido, ou seja, atentar para aquilo que emerge do encontro
para coapreender o que até então se mostrava sem sentido. Nessa perspecti-
va, o encaminhamento e o acompanhamento psicológicos são caminhos pos-
síveis, mas não necessários.
O Plantão Psicológico se inseriu no Departamento Jurídico a fim de
proporcionar esse acolhimento a todos aqueles que, naquele espaço da insti-
tuição, chegarem até o plantonista, inclusive os estagiários de direito e os
funcionários do Departamento. Na perspectiva da psicologia fenomenológica
existencial, o plantão é uma modalidade de atendimento psicológico que se
propõe a acolher as pessoas que o procuram no momento de sua angústia,
auxiliando-as no esclarecimento de sua demanda. Neste sentido, compreen-
de-se que o termo “aconselhamento”:

... refere-se, neste caso, a uma peculiar atenção para a experiência do


cliente no momento em que procura ajuda, que inclui não apenas o que
convencionalmente se entende por queixa, mas o modo como o cliente
vive esta queixa, os recursos subjetivos e do entorno sócio-psicológico de
que dispõe para cuidar de seu sofrimento, bem como as expectativas e
perspectivas que se apresentam a partir da busca de auxílio. (Schmidt,
2004, p. 174)

Quando há demanda psicológica, muitas vezes esta não aparece de


forma muito clara. É preciso delimitar as queixas jurídicas das psicológicas,
pois embora na vivência do cliente esses âmbitos encontrem-se muitas vezes
indissociáveis, para os plantonistas é fundamental não ocupar o lugar do
estagiário de direito. Comumente, é preciso também clarear a quem a queixa
se refere na relação estagiário-cliente, pois o pedido inicial orientado para o
atendimento do cliente revela, muitas vezes, uma demanda do estagiário de
direito para que o plantonista acompanhe-o junto ao cliente2. Desse modo o

2
Pode-se considerar que a queixa seria compreendida como a emergência de um sinal de
crise, na formulação pré-concebida tanto de um problema quanto do “espaço psicológico”
a ele reservado. Por sua vez, a demanda seria compreendida como a urgência por uma
atenção psicológica, não concebida a priori, para construção de sentido possível, através
da investigação cuidadosa da situação de crise (Morato, 1999; Nunes, 2006).
260 André Prado Nunes e Henriette T. P. Morato

plantonista deve estar constantemente atento, principalmente ao modo como


as pessoas chegam até ele, muitas vezes de maneira desinteressada, informal:
o “saber-fazer” do plantonista é trabalhado a partir das afetações que ocor-
rem no campo, a partir da presença constante.
Os plantonistas foram organizados em duplas que trabalhavam em
dias diferentes e os atendimentos também eram realizados em dupla, com
exceção de situações em que aparecem mais de um caso no mesmo momen-
to, ou quando alguma conversa “informal” com algum plantonista se estende
de modo a caracterizar um plantão. Essa forma de atuação em duplas tem o
intuito de propiciar amparo também aos estagiários da Psicologia, pois estes
podem ajudar-se mutuamente no atendimento e, posteriormente, conversar
sobre os casos atendidos e apoiarem-se no cuidado a suas angústias.
Outro importante suporte aos estagiários é a supervisão semanal de
plantão. A supervisão é um espaço de reflexão em que o grupo de plantonis-
tas discute os casos atendidos com um supervisor, assim como o modo como
eles foram afetados pelos atendimentos, buscando desvelar e refletir sobre as
sensações e impressões despertadas no contato com o outro, seja ele cliente
jurídico ou estagiário de Direito. A supervisão é assim um momento de aco-
lhimento e olhar para o plantonista. Nesta supervisão também estão presentes
os supervisores de campo, que são aqueles plantonistas com maior experiên-
cia de atendimento na instituição e que auxiliam e acolhem os plantonistas
mais recentes no próprio espaço de Plantão Psicológico na instituição. En-
tretanto, esta função só foi criada e legitimada a partir da continuidade do
projeto e da formação de novos grupos de plantonistas, a partir dos quais
alguns plantonistas mais experientes passaram a ocupar tacitamente este
“lugar” de reconhecimento e apoio para, posteriormente, serem explicitados
nessa nova função (Aun, 2005; Nunes, 2006).
Os supervisores, por sua vez, também participam de uma supervi-
são com a coordenação do LEFE e com supervisores de outros projetos do
Laboratório, denominada de “supervisão de supervisão” (Braga, 2010). Tais
supervisões ancoram-se no fenômeno do espelhamento a partir do qual:

nos vemos refletidos e vemos aos outros, ou melhor, em nós e nos outros,
nós mesmos. Daí a importância da supervisão coletiva, pois o grupo se
constitui uma galeria de espelhos. Sendo o mundo humano essencial-
mente co-existência, o conhecimento do outro supõe a compreensão on-
tológica da existência como ser da coexistência. A compreensão de si
fundamenta-se no reconhecimento da coexistência e, ao mesmo tempo,
constitui-se como ponto de partida para a compreensão do outro. Coe-
xistência é também co-estranheza. (...) a experiência imediata, a desco-
berta que fazemos da alteridade, apóia-se no encontro com o espelho. O
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

espelho é a porta para a visão do outro mundo. Ao olharmo-nos no es-


pelho podemos não reconhecer a própria imagem, como diante de um
enigma: o espelho reflete a imagem que, sendo imagem, não é si mesmo,
no entanto, é também si mesmo, pois é o reflexo, a imagem refletida do
rosto que se coloca à sua frente. (Henriques, 2005, p. 13)

Diante deste cenário compreensivo da organização do projeto de


Plantão Psicológico no Departamento Jurídico “XI de agosto”, conforme
efetivado pelo LEFE, pode-se encaminhar a proposta de se debruçar sobre os
relatos dos psicólogos plantonistas sobre suas experiências neste projeto de
extensão universitário.

3 O ATENDIMENTO NO D.J.: A EXPERIÊNCIA DOS


PLANTONISTAS

A partir de trechos destacados de diários de bordo elaborados


pelos plantonistas, o Plantão no D.J. continuará a ser revelado, só que a
partir de relatos de quem o constitui. O diário de bordo é um importante
instrumento de pesquisa, no qual o plantonista transcreve descrições e re-
flexões como um viajante em terras distantes (Schmidt, 1999; Aun, 2005).
Em suas páginas elementos familiares e estranhos revelam possibilidades
de compreensão do trajeto percorrido. O diário de bordo revela-se parte
fundamental da cartografia institucional que percorre todo o Projeto de
Atenção Psicológica ao Departamento Jurídico “XI de Agosto”. Nesse
sentido ele se refere à possibilidade do plantonista situar-se e ir situando o
outro à medida que caminha (Nunes, 2006). Esse situar-se possibilita que a
ação clínica torne-se mais efetiva.
Na trajetória do projeto, o grupo de plantonistas acompanhou al-
guns atendimentos jurídicos realizados pelos estudantes de Direito. Pode-se
observar nestes atendimentos que as queixas jurídicas muitas vezes vêm
atreladas a histórias de sofrimento, injustiça, angústia e ansiedade. Pode-se
perceber que ter alguém do Plantão a quem recorrer nesses casos traz apoio
ao estagiário de Direito. Ou seja, para o estagiário de direito, o psicólogo
plantonista pode também ser um mediador entre ele e o cliente, conforme é
desvelado nos trechos abaixo:

Gostei bastante do atendimento e de como ele seguiu apesar de não ter


tido um enfoque claramente psicológico. Fiquei um pouco angustiada por
imaginar que deveriam ter muitas questões emocionais a serem trabalha-
das, mas depois pensei que se a senhora não trouxe muito essas questões
talvez não devêssemos nos esforçar muito para resgatá-las mesmo, já que
262 André Prado Nunes e Henriette T. P. Morato

estamos num contexto de plantão. Na verdade achei que, como na semana


passada, nossa presença foi bastante importante pra o estagiário e o ad-
vogado, talvez até mais do que para a cliente em si.
Finalmente uma estagiária nos viu conversando e exclamou: Vocês são
da Psicologia! Que bom! E começou a contar que estava precisando da
gente para conversar em um caso no qual um homem matou sua ex-
esposa. Ele diz que é culpado, mas que atirou porque havia uma sombra
atrás da dela e, ao atirar na sombra, atingiu a ex-mulher. A estagiária
frisou que um tirou pegou na cabeça. O homem matou a esposa na frente
dos filhos. O promotor e o juiz estão “tocados” pela história, e o objetivo
do D.J. é que o homem seja condenado a 10 anos, para que ele saia com
cinco, pois se ele for para o manicômio judiciário – “onde as condições
são piores que na cadeia” – ele não sai mais, pois ninguém assinaria que
ele está bom para sair, e ele não receberia tratamento. A estagiária aca-
bou falando que estava com medo pelos filhos, temia que esta paranoia se
virasse contra eles. Na verdade pareceu para mim que ela não quer ape-
nas nossa opinião, ela foi lá para meio que desabafar. Ela falava que ti-
nha pena do cara, não queria que ele fosse preso, mas também expressa-
va sua preocupação quanto a ele voltar sua paranoia em direção às cri-
anças.
Nesse caso a minha entrada foi solicitada de forma muito pontual: era a
mim pedido esclarecer se haveria a possibilidade de correr um processo
contra uma determinada psicóloga que supostamente haveria quebrado a
ética e passado informações confidenciais a terceiros. Escutei o relato do
casal, mas não me senti à vontade para configurar um atendimento, como
usualmente eu o concebia. Escutava e buscava esclarecer os aconteci-
mentos, mas sempre tendo em mente essa pontualidade e funcionalidade.
Não soube definir a diferença entre o que eu e o estagiário de direito fa-
zíamos, embora em teoria, as diferenças fossem claras. (...) logo após o
atendimento, ainda me encontrava meio perdido, eu o estagiário troca-
mos algumas palavras sobre o caso e ele disse também estar confuso e
que o caso era difícil e complicado mesmo. Achei muito legal esse mo-
mento de troca após o atendimento.

Nesse modo de atendimento em conjunto com o estagiário de Di-


reito surgiram dúvidas sobre o “lugar” do psicólogo na instituição e as possi-
bilidades de configuração de atendimento pouco usuais. Era evidente que o
estagiário de Direito se beneficiava deste contato: o plantonista entrava junto
no atendimento jurídico e poderia esclarecer dúvidas, dialogar com os clien-
tes e, nessa postura de “estar junto ao” estagiário, conseguia diminuir a ansi-
edade que o atendimento jurídico produzia em muitos estagiários. Tal con-
tato revelava que o aluno de Direito não estava sendo cuidado nas suas pró-
prias angústias, medos e expectativas frente ao que, para muitos, era a pri-
meira experiência de atendimento e estágio. Desvelava-se que a supervisão
dos casos jurídicos era, na maioria das vezes, estritamente técnica e não abria
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

espaço para contemplar outros sentidos da experiência para o estagiário.


Revelar essa angústia era visto como sinal de exposição e fraqueza e, desse
modo, essas conversas, quando existiam, permaneciam no plano da informa-
lidade e das conversas de corredor entre colegas. Por esta via, o Plantão Psi-
cológico do modo como era oferecido à instituição jurídica, legitimava esse
espaço de cuidado aos estagiários de Direito como também pertinente no
processo de formação profissional, além da mera instrução técnica.
Por outro lado, os psicólogos plantonistas também evidenciavam
certa dificuldade em legitimar o sentido de Plantão na instituição jurídica
como espaço de cuidado a esses estagiários no seu próprio ambiente de tra-
balho. Os relatos evidenciam que a referência dos plantonistas era o cliente
que buscava auxílio jurídico e, desse modo, não havendo propriamente uma
queixa psicológica esclarecida ou formalizada, surgia a crise a partir de uma
sensação de “não lugar”. Muito dessa crise também se deve ao pressuposto
de que o atendimento psicológico deva seguir o modelo do consultório parti-
cular. Nesse sentido, muito trabalho de supervisão em grupo pôde contribuir
para que os plantonistas efetivassem um modo de atendimento em instituição
que fosse pertinente às demandas dos sujeitos que ali circulavam. Vale lem-
brar que, sendo uma instituição jurídica, os clientes chegam sempre à procu-
ra de orientação e encaminhamentos jurídicos e não, propriamente, de aten-
ção psicológica. Assim, a maioria dos atendimentos ocorre quando o estagiá-
rio de Direito pede a presença da Psicologia para acompanhar seu atendi-
mento ou aceita prontamente quando esta opção lhe é oferecida:

Um dos estagiários de Direito veio falar com a gente, pedindo nossa aju-
da. Disse que estava com um caso horrível, e ficava mostrando trechos do
processo para a gente. Ele disse que a moça estava ali esperando por ele,
e talvez fosse bom a gente falar com ela. Até então não havia entendido a
demanda dele para aquele caso, e perguntamos: mas você acha que de-
vemos falar com ela por qual motivo? Ele desconversou, e acabou falan-
do que não tinha certeza se queria pegar aquele caso. Aí compreendi que
ele estava mostrando detalhes do caso, para justificar o porquê de não
querer pegá-lo. Então dissemos isso a ele. Ele concordou, e percebemos
que, talvez, a sua dificuldade estava em dizer ao seu “superior” no D.J.
que não queria aquela defesa. Então conversamos sobre isso, sobre o fato
de o caso ter vindo da defensoria pública, o que exigia defesa por parte
do D.J., mas não uma defesa específica dele. De como seria falar com o
superior sobre a sua recusa, e o aconteceria em seguida. (...) Retomei o
fato dele querer que conversássemos com a moça que estava sofrendo a
ação. Dissemos que poderíamos falar com ela sim, mas se ele estava es-
perando um aval, um “laudo” ou coisa parecida, aí não teríamos como
ajudar. Poderíamos falar com ela no sentido de entender algum sofri-
mento, ou ajudá-lo caso ele quisesse que estivéssemos presente para co-
264 André Prado Nunes e Henriette T. P. Morato

municá-la do seu afastamento do caso. Ele agradeceu, mas disse que na-
quele dia isso não seria necessário.

Percebe-se que essa possibilidade de parceria entre a Psicologia e


o Direito se efetiva a partir de um movimento de investigação dos planto-
nistas, que circulavam nos corredores e ambientes da instituição, não se
isolando no interior de uma sala. Essa circulação propiciava conversas e
aproximações que poderiam gerar frutos como atendimentos, mas que,
sobretudo, marcavam aos estagiários de Direito que os plantonistas de Psi-
cologia estavam constantemente presentes e disponíveis, mesmo que não
fossem constante e explicitamente solicitados. Essa presença à disposição
também revela uma possibilidade de cuidado. Neste sentido surgiu a afir-
mação de um dos psicólogos plantonistas de que “talvez nosso papel lá –
no D.J. – seja acolher aquilo que surge”. Assim, aos poucos, esse “não
lugar” inicial da perda de referências e questionamento dos modelos tradi-
cionais e pressupostos de atendimento foi cedendo espaço para a compre-
ensão de que o Plantão poderia ser referência de cuidado ao estagiário de
Direito no próprio espaço do seu estágio, algo que já era realizado em ou-
tros projetos do LEFE, mas não com alunos de outras graduações, desse
modo diferenciado sem sobrepor os objetivos de cada formação profissio-
nal. Assim, buscou-se legitimar um espaço de cuidado para o estagiário de
Direito na instituição, uma vez que entrar em contato com o sofrimento das
pessoas, suas condições sociais e emocionais, muitas vezes gera no estagiá-
rio sensações de desamparo e impotência.
Entretanto, ao longo da trajetória desse projeto de Plantão Psicoló-
gico, nem sempre o caminhar revelou-se claro e preciso, como talvez possa
sugerir o encadeamento desse trabalho. Na angústia para sair desse “não
lugar”, o grupo de plantonistas acabava ocupando espaços e funções dentro
da instituição jurídica que se revelavam desastrosos, embora sempre produ-
zissem conhecimento e reflexão:

Estava me sentindo um pouco (bastante) perdida. Mais do que não ter lu-
gar, muito pior, não tínhamos o que fazer e por isso fomos tomar café.
Ficamos um tempo conversando e o assunto principal foi nosso papel no
D.J. (...) Será não há nada mais a fazer, além de cuidar dos casos que nos
encaminhavam? Parece que não há nada o que fazer. E na busca disso,
perguntei ao colega o que ele achava se na triagem nós nos apresentás-
semos aos clientes, como estudantes de Psicologia e nos dispuséssemos a
conversar com aqueles que quisessem, enquanto esperavam para ser
atendidos. Pensei em perguntar aos calouros o que achavam disso, até
para estimular a pensar nosso lugar em conjunto. Ele não gostou muito
da ideia, pois temia que ficássemos como “posto” de reclamações das
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

pessoas que nos procurassem. (...) Nesse meio tempo perguntei a uma
estagiária o que ela achava se a gente ficasse na triagem nos apresentan-
do, e ela disse que não era suficiente. As pessoas não iriam falar conosco.
Era melhor se acompanhássemos alguns casos com os próprios estagiá-
rios, que ela mesma fazia isso. (...) Não ligo de pessoas em geral não sa-
berem o papel do psicólogo, mas me incomoda o fato de eu mesma não
ser capaz de quebrar os preconceitos do senso comum em relação à Psi-
cologia. (...) Em outro momento, uma senhora me perguntou se eu traba-
lhava lá e se eu poderia ajudá-la. Expliquei que era estudante de Psico-
logia e se ela quisesse conversar estaria à disposição. Ela não queria
conversar e apenas perguntou se eu sabia onde estava uma estagiária.
(...) Depois essa senhora me chamou e falou que uma mulher estava com
um problema sério, a filha batia nela, e me pediu para que eu conversas-
se com ela. Dirigindo-me à mulher perguntei se ela gostaria de conversar
enquanto esperava. Ela não mostrou nenhum interesse e disse que queria
apenas ser atendida logo.

Nesse precioso trecho do relato de uma plantonista, pode-se perce-


ber primeiramente a angústia de estar “sem lugar” na busca pela compreen-
são das possibilidades e do papel do Plantão naquele contexto. Algumas
alternativas são pensadas e discutidas e surge a figura do supervisor de cam-
po, como sendo aquele plantonista a quem os outros dirigem suas dúvidas e
propostas. Ele esclarece que não se poderia oferecer o serviço de Plantão
logo na triagem aos clientes do departamento jurídico, pois isto significaria
abrir um serviço de atendimento em paralelo ao serviço prestado pelos esta-
giários de Direito. Tal proposta impediria a construção de uma parceria efe-
tiva com o Direito e se sobreporia ao próprio objetivo da instituição jurídica.
Nesse sentido, fica evidente a partir do relato que nem sempre os clientes
aceitam conversar com os estagiários de psicologia, já que muitos chegam ao
Departamento Jurídico com uma demanda de justiça social, que aparece
sempre sob forma de queixa jurídica, embora, muitas vezes, ela não se cons-
titua numa causa jurídica. Por isso, esses clientes têm a expectativa de serem
atendidos apenas e tão somente por estagiários de Direito, pois associam o
atendimento com um psicólogo a desequilíbrio mental e o entendem como
negativa de seu direito à justiça. A partir deste relato também é possível per-
ceber como a experiência de Plantão suscita questionamentos no próprio
estagiário referente aos seus pressupostos em relação à prática psicológica,
evidenciando essa proposta de estágio como lugar privilegiado para a cons-
tituição de uma formação profissional eticamente responsável.
Por esta via, é possível afirmar que o público atendido pelo D.J.
acompanha certo perfil: são pessoas de baixa renda, selecionados a partir de
uma triagem socioeconômica, que apresentam alguma queixa jurídica que
muitas vezes encontra-se atrelada a uma demanda psicológica. A maioria dos
266 André Prado Nunes e Henriette T. P. Morato

casos atendidos pelos plantonistas da Psicologia refere-se a pessoas extre-


mamente solitárias, moradores de rua, ou pessoas com sintomas psicóticos,
que de alguma forma apresentam um grande sofrimento:

Quando chegamos ao D.J., a sala de espera estava muito lotada, muito


mais do que nos outros dias. Ficamos um tempo próximas às baias e logo
a responsável pela triagem veio falar conosco sobre uma senhora que se-
gundo ela estava muito “tristinha”, pois era HIV positivo e tinha trans-
torno bipolar. Perguntou se poderíamos atendê-la, informando que já ha-
via perguntado se ela queria. Perguntei qual era a questão jurídica e ela
explicou rapidamente que, “além de tudo isso ainda tinham invadido a
casa dela”.
Disse morar num terreno baldio e viver da pensão que recebe por conta
de uma aposentadoria por uma cegueira em um dos olhos (...), prefere
assim mesmo, já se acostumou, se vira bem sozinha. Essa fala me chocou
bastante, me passou a imagem de uma pessoa ‘calejada’, acostumada
com o sofrimento... Por outro lado, também pensei bastante que as refe-
rências que ela tem do que é estar bem, do que é conforto, por exemplo,
são outras diferentes das nossas, por isso acho que fiquei mal; de acordo
com minhas referências é inconcebível essa situação de vida para uma
pessoa.
Logo depois, veio um estagiário de direito dizer-nos que, como tinha sido
ele que tinha atendido o cara na triagem, ele iria contar um pouquinho
para nós como tinha sido. Ouvimos. Ele nos disse que, logo quando o
cara chegou, ele começou a chorar desesperadamente e que o cara esta-
va muito mal. Segundo o estagiário, quando ele conversou com o João,
ele estava mais calmo, mas não queria falar da cena do assassinato.
Quando, no final, teve que falar, disse o estagiário que ele ficou muito
emocionado. Disse que o cara parecia muito inteligente e que, talvez por
isso, sabia que fatores ‘traumáticos’ de sua história poderiam ajudar no
seu caso: ficou, então, contando sobre como a sua infância tinha sido
conturbada, sobre os casos e abuso de drogas na sua família etc. Segun-
do o estagiário, ‘o cara podia ser louco, mas não era burro’.
Um estagiário da triagem veio nos procurar porque tinha uma mulher
“muito louca”. Atendemos com um estagiário de direito uma mulher de
60 anos que chegou contando casos de perseguições e armações contra
ela. Sua queixa jurídica era a de uma quantia em dinheiro ganha num
processo trabalhista e que tinha sumido. A partir daí começou a nos
contar histórias diversas, todas de caráter persecutório. De um modo ge-
ral, falava de armações dos canais de televisão contra ela e sua família,
que a televisão controlava as pessoas por satélite e sabia de tudo o que
acontecia. (...) Ela realmente tinha documentos desse processo traba-
lhista do qual falou, mas não eram do jornal mencionado e os valores pa-
receram ser diferentes. O que me chamou muito a atenção foi a total falta
de afeto em sua fala; contou-nos acontecimentos horríveis e traumáticos,
de sofrimentos seus e de sua família sem alterar o tom emocional em mo-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

mento algum, somente mais no final quando tentava nos convencer de que
tudo o que ela falava era verdade. (...) Ficamos muito angustiados. Eu me
senti sem ter absolutamente nada a fazer. Quando terminou, sentamos ar-
rasados, com o estagiário que acompanhou o caso e o estagiário da tria-
gem, como que sem energias, impotentes...

Como serviço de atendimento gratuito oferecido à população no cen-


tro da capital, o departamento jurídico descortinava-se como porta de entrada
de diversos casos, sob o pretexto e a queixa da busca por “justiça”. Em muitos
atendimentos acompanhados com os estagiários de Direito, tal busca não con-
seguia ser formulada em termos jurídicos e gerar um processo, o que causava
frustração e impotência a todos os envolvidos na relação. Nesses casos de difí-
cil resolução, a “justiça” trazia muito mais o seu inverso: a marca da desigual-
dade social presente em nossa sociedade e as diversas formas de sofrimento e
violência física, moral e “psíquica” aos quais eram submetidos aqueles menos
favorecidos economicamente e que viviam sob a égide dos processos de exclu-
são, silenciamento social e produção da loucura. Sem dúvida, o contato com
essa realidade afetou cada um dos plantonistas, possibilitando reflexões sobre o
sentido e os limites da prática psicológica em nossa organização social.
No que tange às questões referentes às políticas de saúde mental,
há uma falta de possibilidades institucionais de acolhimento com qualidade
para esse sofrimento. No âmbito dos clientes atendidos no Plantão Psicológi-
co no Departamento Jurídico do Centro Acadêmico “XI de Agosto”, isto se
expressou no fato de que há grandes dificuldades em se fazer encaminha-
mentos para instituições públicas de saúde mental. Tais dificuldades diziam
respeito à falta de vagas disponíveis nessas instituições e ainda à falta de
vínculos socioinstitucionais entre o Plantão Psicológico, o Departamento
Jurídico e tais instituições públicas. Como consequência, os clientes que
necessitariam de atendimentos psiquiátricos ou psicoterapêuticos retornavam
sucessivas vezes ao D.J. em busca de um auxílio que transcendia as reais
possibilidades de ajuda que o serviço oferecia. Mostrou-se, assim, essencial e
urgente a formação de uma rede socioinstitucional de apoio ao Plantão Psi-
cológico, a partir do conhecimento e contato dos serviços públicos de saúde.
Retornando ao relato dos plantonistas, o sofrimento presente em
muitos atendimentos não conseguia ser facilmente categorizável em termos
de loucura e normalidade. Os limites entre essas zonas mostravam-se arbitrá-
rios e insuficientes para se trabalhar uma compreensão possível da experiên-
cia de Plantão naquela instituição, conforme revela o seguinte trecho:

Entramos novamente nesse assunto da loucura e a estagiária revelou que


ficou pensando que se sua mãe viesse ao D.J. provavelmente seria consi-
268 André Prado Nunes e Henriette T. P. Morato

derada louca, pois tem um processo por ter sido utilizada como laranja
em uma compra de terras que envolve muitas coincidências e persegui-
ções, tão estranho que chega a ser difícil de acreditar. Retomamos o as-
sunto de como a loucura e a razão estão próximas, de como é difícil li-
mitá-las e como isso mexe muito conosco.
Um menino da triagem comentou que, eles geralmente entravam na fa-
culdade com um pensamento muito idealizado, achando que só iam pegar
grandes casos, e que o bom de entrar no D.J. era que eles caiam na rea-
lidade e passavam a ver “a vida como ela é”: pessoas que não tinham di-
nheiro nem para pegar o ônibus, gente que mal conseguia entender por
que estava sendo processada etc.

Para os plantonistas e para os próprios estagiários de Direito a con-


vivência cotidiana e próxima com a loucura era frequente e suscitava os mais
diversos questionamentos, medos e angústias. Muitas vezes, a confusão
mental presente num relato era fruto de uma ansiedade inicial do contato do
cliente com os “advogados” e não parte de um delírio. Como saber a não ser
sentando com o cliente e colocando-se à disposição para ouvir suas queixas?
Muitos clientes não traziam consigo as marcas da estigmatização presentes
em muitos pacientes psiquiátricos e que facilmente os identificava logo na
triagem do serviço. Nesses atendimentos, o “normal” e o “patológico” se
aproximavam perigosamente à medida que o cliente desvelava a sua história.
Seria verdade? Seria delírio? Seria possível existir uma realidade tão miserá-
vel, árida e violenta como aquela revelada? O perigo não residia tanto na
possibilidade do plantonista aproximar-se da sua própria loucura ao perceber
a arbitrariedade das convenções e convicções das regras que regem as rela-
ções e contratos sociais, mas sim no “reducionismo psicológico” da tentativa
de compreensão do sofrimento presente nas situações de atendimento.
O Plantão no D.J. evidenciava os limites de abrangência e atuação
do psicólogo diante de situações e condições de vida que produzem a loucura
como possibilidade do indivíduo, no delírio, viver uma “realidade” menos
aterrorizante e cruel do que aquele em que ele concretamente vivia. Embora
a sensação de impotência nesses casos fosse frequente, a reflexão sobre o
Plantão era possível. Discutia-se a necessidade de trabalho com outros pro-
fissionais de saúde como, por exemplo, assistentes sociais e psiquiatras. Dis-
cutiam-se as possibilidades de encaminhamento para serviços públicos e a
rede SUS. Questionava-se uma atuação ética e efetiva da Psicologia diante
do cenário de miséria social e abandono que os clientes apresentavam. Pen-
sava-se como o Plantão Psicológico, mesmo oferecendo tão pouco, propicia-
va o retorno desses clientes. Parecia que somente o fato do plantonista estar
ali presente e à disposição já era de grande auxílio para muitos que peram-
bulavam pelas ruas e cortiços ou que ficavam reclusos em seus domicílios.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Ter um outro a quem se dirigir parecia já produzir efeitos terapêuticos, mes-


mo que quase nenhum encaminhamento ou proposta fossem realizados.
Embora incomodados, os plantonistas abriam-se à possibilidade de
estar junto a esses indivíduos e buscavam alternativas e soluções nas discus-
sões em grupo e nas supervisões. Por outro lado, essas experiências faziam
com que os estagiários de Direito evitassem o atendimento de casos de cli-
entes considerados “loucos”, depositando no serviço de Plantão Psicológico
toda a responsabilidade de cuidar de uma demanda que surgira da própria
abertura do serviço jurídico. Neste sentido, com o passar do tempo foi-se
percebendo que a Psicologia estava ocupando o lugar de “depositária da
loucura”, conforme alguns relatos apontam:

Num outro momento, chamamos um advogado para atender um caso que


era considerado “louco”, mas que não sabíamos se haveria alguma cau-
sa jurídica presente. Esse advogado entrou no atendimento colheu suas
informações, informou-lhe sobre os documentos necessários, levantou-se
e saiu. Depois do atendimento não ocorreu abertura de espaço para fa-
larmos nada sobre o que ele considerava acerca do caso e nem para tro-
ca nenhuma. Algumas semanas depois eu ainda escutei dele a seguinte
frase ao nos cumprimentar: “E aí continuam fazendo o trabalho sujo?”.
A gente entregou uma carta do D.J. para o cliente e pedimos para ele
entregá-la ao psiquiatra que o atende. Não há nada em termos jurídicos a
ser feito. Mas não deveria ser um estagiário de Direito a dizer isto? Ele
não estava lá, só enviou a carta. E o que a gente fala? Porque o seu Al-
mir não tem muito claro o que é psicólogo de estagiário de direito. Eu
também não tive isso claro hoje. O estagiário que orienta o caso não
pôde estar presente. (...) E ficou sem sentido atendê-lo sem o estagiário.
Na semana passada chegou uma mulher lá, que estava tendo um chilique
e tinha epilepsia. Então, eles mandaram para gente, só que falaram assim
“Vai lá falar com ela porque ela não pode ser atendida aqui, porque ela é
de outra cidade, de Guarulhos, e a gente está com medo de chegar e falar
isso e a mulher ter um treco”.

Muitas vezes ouviam-se frases como: “Tem um louco aí para vo-


cês”, ou “Será que vem algum louco hoje?”. Ansiosos para atender e para ter
algum lugar de reconhecimento na instituição, os plantonistas aceitavam
esses encaminhamentos e em pouco tempo a própria triagem já selecionava
os clientes que deveriam passar pelo “Serviço de Plantão”. A justificativa
dos estagiários de Direito, de modo geral, era a de que cliente diagnosticado
com algum tipo de transtorno ou problema mental é considerado inimputá-
vel, o que o deixa sob custódia da justiça, dificultando ou mesmo impossibi-
litando a abertura de qualquer processo, caso houvesse demanda jurídica.
Embora a justificativa fosse pertinente e revela-se uma diferenciação do
270 André Prado Nunes e Henriette T. P. Morato

modo de atendimento e escuta da Psicologia e do Direito, ela passou a enco-


brir outras dificuldades que permeavam a instituição jurídica e o estágio ali
realizado.
Primeiramente o contato com aquela demanda social vinculada à
miséria e desigualdade social impunha ao estagiário uma escuta mais ampla
do que a mera coleta de informações técnicas: a maioria dos clientes neces-
sitava que o seu sofrimento fosse legitimado pelos estagiários e, desse modo,
relatavam longas histórias de violência e exclusão, quando não traziam fa-
miliares e crianças ao atendimento para corroborar a sua versão e “sensibili-
zar” o estagiário. Até mais do que isso, muitas vezes os clientes colocavam o
estagiário no lugar de “salvador” e última esperança de recurso para obten-
ção de ganho em sua causa e, por conseguinte, de justiça em sua vida. Mes-
mo que a princípio o estágio no D.J. se apresentasse como “voltado às causas
sociais”, os estagiários de Direito não tinham qualquer apoio para lidar com
as angústias, questionamentos e especificidades que aqueles atendimentos
suscitavam. Como mencionado anteriormente, a supervisão de casos jurídica
era, em grande parte, estritamente técnica. Diante desses incômodos e da
ausência de lugar para cuidar desses aspectos, institui-se o serviço de Psico-
logia como depositário de tudo aquilo que aparecia no D.J. e não tinha espa-
ço para ser cuidado. Pelos relatos é possível perceber que inicialmente isso
ocorrera com os casos psiquiátricos e sem resolução jurídica, mas em pouco
tempo, qualquer caso que não se enquadrasse na realidade jurídica já era
encaminhado aos psicólogos. Observa-se então que a triagem enviava aos
plantonistas clientes que aparentavam ansiedade, nervosismo ou comporta-
mentos não usuais, como falar alto demais, ou muito baixo, gesticular muito
ou aparentar estar muito apático.
Enfim, o espectro da “loucura” ampliou-se para os mais diversos
comportamentos revelando, neste período, um movimento de intolerância
para a diversidade apresentada num serviço público gratuito. Parte desse
movimento era um responder às angústias de muitos estagiários de Direito
que, então, compreendiam que a Psicologia poderia substituir e ocupar-se de
tudo o que revelasse alguma carga emocional ou sofrimento. Na medida em
que essas angústias não eram vistas e cuidadas pela instituição, mais enca-
minhamentos de “ordem emocional” apareciam no Plantão Psicológico. Ou-
tra parte desse movimento era um responder ao grande número de casos en-
caminhados pela Procuradoria de Assistência Jurídica (PAJ) e que deveriam
ser assumidos pelo D.J., com o risco de perda de verbas e bolsas caso as
metas estabelecidas não fossem alcançadas.
Esse cenário gerou a burocratização do atendimento na instituição
jurídica, como modo de não entrar em contato com a angústia e sensação de
impotência dos atendimentos e conseguir realizar um número elevado de
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

atendimentos. Tal burocratização se revelava em atendimentos estereotipa-


dos e mecânicos nos quais os estagiários de Direito mal se dirigiam aos cli-
entes, priorizando os papéis e documentos. Nesse panorama, o próprio servi-
ço de Plantão Psicológico também passou por uma burocratização de suas
funções e objetivos, assumindo o lugar destinado pela instituição jurídica e
passando a substituir o serviço jurídico em muitos atendimentos. Não é de se
espantar que, em pouco tempo, os plantonistas de Psicologia passaram a
revelar, nos relatos de diários de bordo e nas supervisões, incômodos sobre o
sentido do trabalho e a necessidade de atendimento em conjunto com os
estagiários de Direito. Percebeu-se então, nas supervisões, como o Serviço
havia se institucionalizado em determinados padrões de atendimento e estava
sendo usado pela instituição jurídica para dar conta de atendimentos que
geravam sensações de impotência e confusão nos estagiários.
Nesse sentido, buscou-se, a partir das supervisões, questionar esse
movimento de institucionalização das relações. O lugar de “depositário da
loucura” e dos incômodos ocupado pelo Plantão deveria ser revisto e traba-
lhado junto à diretoria, funcionários e estagiários para que outras soluções
pudessem ser pensadas. Do modo institucionalizado, tal funcionamento re-
velava que a Psicologia agindo em paralelo e não em conjunto com o Direito
legitimava que aqueles conteúdos e demandas não diziam respeito ao aten-
dimento jurídico, justificando a abordagem meramente técnica de casos que,
ao contrário, revelavam a necessidade de uma escuta atenta às carências,
injustiças e violências vivenciadas pelos usuários do D.J. Abrir-se-ia assim a
possibilidade da Psicologia contribuir para a construção de um serviço jurí-
dico eticamente voltado à defesa dos excluídos socialmente, a partir do cui-
dado aos estagiários de Direito e aos plantonistas de Psicologia no contato
com essa realidade. Afinal, o serviço de Plantão Psicológico não se prestava
a oferecer respostas e soluções prontas e imediatas, mas estar juntos com os
estagiários, efetivando trocas de conhecimento e experiência, na construção
de um ambiente de aprendizagem recíproca:

Quando os clientes foram embora, o estagiário chamou-nos para conver-


sar no café. Ele começou a falar da questão jurídica, explicar que ele
achava que seria muito difícil o juiz suspender o pagamento da pensão.
Conversamos também sobre nossas impressões do caso e ele mostrou-se
muito interessado. No final, confessou que tem dificuldades de lidar com
casos de família, que prefere os cíveis e os trabalhistas, pois “não precisa
lidar tanto com o humano”. Foi uma conversa muito boa em minha opi-
nião, com muitos elementos importantes.
O movimento na sala de espera já era bem pequeno, e então se formou no
corredor uma grande roda de conversa, com todas as pessoas da triagem.
(...) uma estagiária que já está no final da faculdade, entrou na conversa
272 André Prado Nunes e Henriette T. P. Morato

também e ao comentar a decisão de um juiz em um caso seu se mostrou


revoltada com o fato de algumas decisões serem tomadas por pessoas que
nunca trabalharam e passaram a faculdade inteira se preparando para o
concurso e que depois de três anos podem ser juízes. Achei a discussão
sobre esse tema muito interessante e foi possível perceber como eles en-
xergam o trabalho deles no D.J., a importância que este trabalho tem.
(...) depois pensei como é importante o trabalho de aproximação do pes-
soal que trabalha ali, e como aquele dia propiciou isso, uma possibilida-
de de conversar, conhecê-los melhor e falar sobre o que podemos fazer,
em que podemos ajudar.

É nessa sempre constante dinâmica desconstrução de lugares já


instituídos, a partir de uma ação clínica atenta e cuidadosa, que atua o psi-
cólogo plantonista, e é nela que ele adentra a partir de uma ação-intervenção
de desinstitucionalização dos lugares fixos. Nessa dinâmica de não ter um
lugar fixo e, ao mesmo tempo, perceber-se assumindo lugares estereotipados,
cômodos e rígidos, o Plantão trabalha no sentido de, ao esclarecer os seus
atravessamentos e afetações, propiciar possibilidades de compreensão e cui-
dado às singularidades presentes na instituição jurídica, constituindo novas
significações para as relações de atendimento e estágio.
É interessante observar que o lugar do plantão psicológico no DJ é
um lugar que precisa ser reconstituído o tempo todo devido à rotatividade
tanto dos próprios estagiários de Direito, da Diretoria do D.J., quanto da pró-
pria equipe de plantonistas. E embora haja essa rotatividade, os papéis exerci-
dos por cada um ali dentro, muitas vezes, encontram-se fortemente instituídos.
Assim, com relação aos estagiários de Direito, houve a dificuldade de mostrar-
lhes a amplitude do atendimento em Plantão e fazê-los compreender os benefí-
cios do atendimento conjunto, tanto para os clientes quanto para si próprios.
Nesse sentido, a ação clínica revela a sua face instituinte ao propiciar ações de
desconstrução de modos estereotipados e vazios de relações institucionaliza-
das. Por esta via, pode se revelar a possibilidade do Plantão também oferecer
acolhimento a questões particulares e específicas dos estagiários de Direito, na
efetivação de possibilidades não previstas de atendimento, mas totalmente
pertinentes no cuidado às demandas presentes na instituição:

Conversamos com ele no café depois de atendimento e ele disse sobre a


cirurgia de redução do estômago que fez cinco anos atrás e como isso
havia afetado a personalidade dele e sua relação com o mundo, falou so-
bre os casos de família que prefere não pegar por não terem “vilões”, e
também sobre por que resolveu aceitar aquela defesa: ele tem um pai
também violento que tornava a convivência insuportável, e que foi o mo-
tivo que o fez sair cedo de casa. Achei interessante ele contar coisas da
vida dele para a gente na copa, de forma descontraída.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Logo em seguida ele veio até a cozinha e puxou assunto, começando com
perguntas sobre psicanálise. Ele disse que se interessa muito pelo assun-
to, e que é professor de uma escola da rede pública. Falou por muito
tempo sobre os problemas que se enfrenta como professor, os casos de
violência e indisciplina que presencia, que se sentem impotentes diante de
toda a situação, fazendo diversos desabafos. Conversamos com ele algum
tempo sobre isso.
Perguntamos aos membros da diretoria porque renovaram o convite, e
eles disseram que a Psicologia fazia falta. Um estagiário veterano falou
que sentia falta da Psicologia porque percebia que a nossa presença e
atuação facilitavam a comunicação entre ele e o assistido. Às vezes a pes-
soa fica muito nervosa e não consegue falar sobre o caso, e que a Psico-
logia junto facilitava o entendimento.

A partir da compreensão dos diários e relatos dos plantonistas do


Plantão Psicológico percebe-se o constante movimento de desvelamento-
encobrimento de sentido para o projeto. Não se trata de “resgatar” possibili-
dades perdidas no processo de institucionalização do próprio Plantão, pois
não há um retorno ao sentido inicial do projeto. Quando os plantonistas re-
tomam significados encobertos pela rigidez apreendida da dinâmica institu-
cional, já estão marcados pela experiência dessa investigação clínica e nunca
retornam os mesmos.
Por fim, a inserção desse serviço se deve ao reconhecimento mútuo
dos advogados e psicólogos de que o estágio em atendimento jurídico é o es-
paço de surgimento de dificuldades na formação dos estagiários de direito.
Essas dificuldades são provenientes de conflitos decorrentes do exercício de
sua profissão e que não encontram espaço de cuidado e atenção no curso for-
mal de sua graduação. Tais dificuldades podem se remeter ao próprio contato
do estagiário de direito com o cliente e a possibilidade de uma escuta que defi-
na adequadamente uma solução jurídica diante um caso concreto. Produzindo
sofrimento e stress, essas dificuldades muitas vezes retardam o próprio enca-
minhamento jurídico. O lugar do psicólogo, portanto, é a escuta e o cuidado do
sofrimento deste estagiário frente ao sofrimento de seu cliente.

4 CONSIDERAÇÕES POSSÍVEIS

O laboratório LEFE trilhou um caminho possível de estágio e for-


mação no campo de Aconselhamento Psicológico com a constituição do
projeto de Plantão Psicológico no D.J., para além da abordagem proposta por
Carl Rogers. Nesta trajetória também é possível afirmar a constituição de
uma terceira via de atuação profissional mais próxima das demandas sociais
274 André Prado Nunes e Henriette T. P. Morato

e que se diferencia das práticas laboratoriais/experimentais e da psicoterapia


em consultório particular.
Nesse sentido, a compreensão dos relatos apresentados revela a
pertinência da constituição de modalidades de prática psicológica que re-
nunciam à necessidade de conceber um modo de subjetivação destacada e
desvinculada dos aspectos institucionais, culturais e sociais, inclusive, do
contexto concreto e real no qual ela se presentifica respeitando singularida-
des. Isso se encontra presente nas experiências vividas de não dualidade
entre sujeito e instituição, nos atravessamentos revelados pelo sujeito em
suas ações. Se, por um lado, essa perspectiva produz uma fragilidade na
autonomia do sujeito, ao apresentá-lo constituído por outros atravessa-
mentos, por outro lado não nega a possibilidade de um situar-se desse su-
jeito nessa condição e da realização de ações reflexivas e apropriadas3.
Assim, buscou-se romper com uma visão romântica do sujeito, no sentido
de que sua constituição e destinar-se independeriam do contexto e dos
atravessamentos que o constituem. Por outro lado, também se buscou
afastar de um polo disciplinar de compreensão do sujeito, pois mesmo
constituído por aspectos que não lhe são pronta e integralmente entregues à
compreensão, a questão do sentido lhe é apresentada como tarefa para rea-
lização, sendo esse um constante movimento de destinar-se que demanda
um responder situando-se (Critelli, 1996)4.
Embora o Plantão Psicológico possa se revelar como serviço à ins-
tituição, o que fundamentalmente o constitui é uma ação clínica que configu-
ra um espaço clínico na relação com os sujeitos dentro da instituição. Foi se
percebendo, que para preservar e cuidar do espaço, o Plantão não poderia se
dispor somente como serviço: tal termo acabava por assumir uma série de

3
O termo apropriação se refere a ações que se tornam próprias e legitimas para o sujeito no
responder aos seus anseios e não no sentido de uma adequação irrefletida ao que se revela
“aí” disposto.
4
A noção fenomenológica existencial de “destino” liga-se à noção de temporalidade e
desvela-se como movimento de lançar-se adiante na tarefa do cuidado de ser, buscando
sentido para o existir. Deste modo, não há um caminho prévio e nem se trata de um “lu-
gar” de chegada, mas de um dos aspectos da condição humana. Esse “lançar-se” compre-
ende que constantemente o sujeito é interpelado por situações a quais precisa responder,
sendo que o não responder, a indiferença, a mentira, a imitação, a fraude, entre outras
ações, já são respostas possíveis, pois o ser constitui-se na impropriedade e no coletivo-
mundo. Assim, tal ideia busca diferenciar-se das noções humanistas de destino que se ali-
cerçam, em sua maioria, na dicotomia homem-mundo, a partir da qual se cria a noção de
um “si mesmo”, desembocando na ideia de incentivar o homem como dono de seu desti-
no. Ressalta-se que o tema é extenso e necessita de maior atenção, o que desviaria o artigo
de seus objetivos. Deste modo indica-se a tese de Almeida (2005) para aprofundamento
desta temática.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

burocratizações e institucionalizações que, justamente pelos “não ditos” e


“naturalizações”, dificultavam o olhar e a escuta que circulam, questionam e
intervêm. Ou seja, o termo marcava um determinado atravessamento, mas foi
imprescindível que os plantonistas re-esclarecessem a sua ação ali está mar-
cada por uma imprevisibilidade e pode assumir diversas formas, que em
nada se aproximam à configuração rígida de um serviço.
A ação clínica que fundamenta o Plantão Psicológico é marcada,
sobretudo, por uma prontidão de sentidos do psicólogo, que pode ou não
intervir naquele momento. Isto não significa que, de algum modo, ele não foi
marcado pela experiência e, na supervisão, mesmo em campo e no próprio
espaço de Plantão, essa experiência pode produzir significados, instrumenta-
lizando-o na medida em que se situa na instituição.
As conversas informais, os olhares, o silêncio e o não dito são
constitutivos dessa ação clínica em situação, e não somente o atendimento
individual com o cliente. Por outro lado, o atendimento individual pode en-
contrar-se desvinculado de um esquema processual, sem, contudo, perder a
sua efetividade terapêutica, visto que o sujeito a quem esse atendimento se
dirige pode ser compreendido como não processual: ele pode se desvelar na
emergência da situação, na ocorrência de um acontecimento tendo o presente
como trânsito desses acontecimentos.
Também é possível acrescentar que o Plantão Psicológico no De-
partamento Jurídico oferece um espaço de formação teórico-prática já a alu-
nos a partir do segundo ano de graduação, o que tem se mostrado um desafio
enriquecedor. Mesmo com o serviço bem estabelecido na instituição, a cada
ano a direção e grande parte dos estagiários do departamento mudam e o
trabalho de investigação e esclarecimento é retomado. Isso possibilita que os
plantonistas, e o próprio supervisor, possam descobrir novas demandas por
atenção psicológica e reconstituir o nosso lugar na instituição e o sentido do
trabalho. Desse modo, se revela a pertinência de um serviço que oferece,
para os alunos de graduação, a possibilidade de troca com outra disciplina
que também se volta à população que é o Direito.
Nesse sentido, o LEFE, assim como a universidade pública na qual
se insere, coloca-se como local privilegiado para contribuições efetivas vi-
sando o exercício do bem estar em comunidade numa ação ética reflexiva e
contextualizada através de projetos de extensão universitária (Morato, 1999;
Santos, 1999). As contribuições remetem a uma articulação entre a universi-
dade e a comunidade, construindo alternativas de “aplicação” da Psicologia
que não expurguem o senso comum referente a uma compreensão da “reali-
dade social” por seus próprios cidadãos. Desse modo: “A Universidade deve
ser um ponto privilegiado de encontro entre saberes. A hegemonia da univer-
276 André Prado Nunes e Henriette T. P. Morato

sidade deixa de residir no caráter único e exclusivo do saber que produz e


transmite para passar a residir no caráter único e exclusivo da configuração
de saberes que proporciona”. (Santos, 1999, p. 224).
Assim, não se tratava de abandonar os saberes científicos, criados e
reproduzidos na Universidade, mas de redimensionar a sua “aplicabilidade”
num contexto ético, tanto na formação universitária quanto na prestação de
serviços, visando à construção de saberes contextualizados. A participação
da Universidade torna-se uma via para a realização de estratégias que abar-
quem a melhoria de políticas públicas. Neste sentido assume-se uma postura
ética perante esse sujeito ou instituição demandante, que visa um cuidado
efetivo das singularidades ali presentes. Tal postura também se revela na
consideração de que esse projeto de extensão universitária implanta serviço,
marcando-se como presença: uma constância e uma permanência na institui-
ção, e não intervenções pontuais, predeterminadas e, enfim, distantes da rea-
lidade vivida pelos sujeitos nesse contexto.
Apesar de esse trecho ter sido percorrido, muitas questões ainda se
colocam como possibilidade investigativa. A relação Psicologia-Direito pode
produzir discussões interessantes com relação a diversos elementos, entre
eles, as diferenças e aproximações da escuta de cada Disciplina, o modo da
formação na área de Humanidades a que cada uma delas se propõe e as dife-
rentes concepções de verdade e justiça, que por vezes são temas de conversas
no espaço de Plantão. Essa rica possibilidade de construção de um espaço
interdisciplinar ainda não foi devidamente explorada e coloca-se como perti-
nente nesse projeto. Por esse caminho mostra-se um terreno interessante
também os discursos que os usuários de Plantão fazem sobre esses dois te-
mas acima citados e como eles, muitas vezes, configuram o lugar de Direito
em Justiça Social ou mesmo Justiça Divina. O atravessamento da loucura
com a miséria social também é um aspecto que provoca o grupo a buscar
reflexões, assim como as possibilidades e limites de atendimento nessa pers-
pectiva. Mas esse trajeto ficará para uma próxima vez...

5 REFERÊNCIAS

Almeida, F. M. (2005). Ser clínico como educador: uma leitura fenomenológica existencial de
algumas temáticas na prática de profissionais de saúde e educação. Tese de doutorado, Uni-
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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

cológico numa perspectiva fenomenológica existencial: uma introdução. Rio de Janeiro:


Guanabara Koogan.
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278 André Prado Nunes e Henriette T. P. Morato
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

SOLICITUDE COMO MODO DE


CUIDAR: ATENÇÃO PSICOLÓGICA
COMO CARTOGRAFIA CLÍNICA E
PLANTÃO PSICOLÓGICO EM
HOSPITAL GERAL
Tatiana Benevides Magalhães Braga
Bruna Luiza Ferreira
Marilia Hiromi Takeshita
Franciane Seco Delavia

Sumário: 1. Cartografando o Hospital Geral por Meio do Plantão Psi-


cológico. 2. A Clínica em Ação: Relatos de Atendimentos. 3. O
Papel da Psicologia: o Plantão Psicológico como Atitude Clí-
nica. 4. Um Encontro com a Finitude Humana. 5. A Dimensão
Ético Polícia do Plantão Psicológico: Saúde e Cenário Social.
6. Referências.

O campo da saúde enquanto espaço de estudo de disciplinas cientí-


ficas se configurou a partir dos ideais nascentes na Idade Moderna, engen-
drados, sobretudo, a partir do século XVII, pela estruturação metodológica
e matematizada do conhecimento através da filosofia cartesiana e baconia-
na, cujo principal expoente tornou-se a física clássica de Newton. Este pro-
jeto epistemológico da modernidade propunha descrever o real a partir de
uma linguagem matemática, verificável e controlável, promovendo ações
de expurgo ou controle dos aspectos da experiência que escapassem à con-
cepção de um sujeito epistêmico pleno (Figueiredo, 1995). Na acepção
cartesiana proposta pelo Discurso do Método (Descartes, 1988), o real de-
veria ser decomposto em suas partes mais simples para estudo, de forma
que os conhecimentos resultantes poderiam ser reunidos em uma equação,
que o descreveria objetivamente. Além disso, a consciência, entendida
como uma substância encarregada da tarefa do pensamento, se distinguiria
do corpo e das percepções do mundo sensível, cujos processos seriam deci-
fráveis pelo método.
280 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.

Esta compreensão do conhecimento influenciou a sistematização


das ciências no século XIX, levando, no campo da saúde, ao detrimento do
discurso e dos aspectos subjetivos dos processos de saúde e doença, para um
privilégio do corpo orgânico enquanto espaço por excelência das operações
de saúde, cuja verdade seria encontrada pela medicina (Foucault, 2005).
Assim, como afirma Foucault, “No século XIX, a burguesia encontra na
medicina, no cuidado do corpo e da saúde, uma espécie de racionalismo co-
tidiano”1. Desta maneira, no século XIX, “a saúde (santé) substituiu o bem-
estar (salût)”. Influenciada por este ideário moderno, a lógica biologizante se
baseia na lesão e na doença (Basaglia, 1989; Foucault, 2001). Tal concepção
pode ser observada nas primeiras conceituações médicas de saúde, que a
definem como ausência de doença orgânica. Embora tal noção tenha sido
reformulada no campo da saúde pública, sendo adotado em 1948 o conceito
de estado de completo bem-estar físico, psíquico e social pela Organização
Mundial de Saúde (Who, 1946), ainda encontramos a referência a um mo-
delo idealizado e fragmentado de corpo e de sujeito, baseado na representa-
ção cartesiana. Mesmo aspectos psíquicos ou sociais são frequentemente
considerados a partir da perspectiva do modelo explicativo baseado nas rela-
ções causais, como as pesquisas em psicologia hospitalar que buscam relaci-
onar doenças a traços de personalidade (Spink, 2001).
Visando situar a atuação do psicólogo, três questões relacionadas a
esta noção de saúde devem ser destacadas. A primeira, analisada por Gada-
mer (2006), é a sua concepção como técnica pela modernidade. Consistindo
a técnica num modo de mediação entre os homens e o mundo (Heidegger,
2007), ela permitiria a manifestação das possibilidades do real. Neste senti-
do, a técnica não deve ser compreendida de modo meramente instrumental,
pois “não é, portanto, meramente um meio. É um modo de desabrigar” (Hei-
degger, 2007, p. 280). Ou seja, a técnica desvela possibilidades de nossa
experiência com o mundo, e, neste desvelar, constitui a realidade para nós,
dada em Heidegger pela compreensão grega da verdade pela palavra
aletheia, que se refere àquilo que é desvelado na relação com as coisas. No
entanto, a técnica moderna não se compreende como um modo de mediação
que desvela algumas possibilidades entre outras, mas é considerada como
única via possível de construção do real, dada pela criação de objetos não
presentes na natureza, sobre os quais seu criador teria controle (Gadamer,
2006). Assim, assistimos no contexto contemporâneo à ampliação da con-
cepção instrumental como modo de compreender tudo o que envolve as rela-

1
Infelizmente, a entrevista de Foucault não foi traduzida para o português. Assim, o trecho
citado foi traduzido, pela autora, do original em áudio francês, que se encontra nas refe-
rências bibliográficas.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

ções dos homens com o mundo, com os outros e consigo, incluindo o campo
da saúde. Ao buscar compreender o cuidado em saúde como procedimento
de controle do real, o ideário moderno não considera que, ao contrário dos
objetos criados por um artífice, a saúde não é criada pelo médico ou pela
equipe de saúde. O domínio do homem sobre o mundo que ele mesmo cons-
trói pela criação de artefatos humanos não é o mesmo que ele venha a ter
sobre aspectos do real que não se constituíram a partir dele. Para Gadamer
(2006), “a exploração técnica das riquezas naturais e a remodelação artificial
de nosso meio ambiente tornaram-se tão planificadas e amplas que suas con-
seqüências ameaçam o ciclo natural das coisas e desencadeiam processos
irreversíveis em grande escala” (p. 15).
Neste mesmo sentido, a dominação do corpo e da natureza é uma
ilusão que coloca o fazer médico em questão: o paciente pode melhorar
mesmo sem os cuidados da equipe de saúde e pode piorar apesar de seus
esforços, embora a expectativa de que a técnica preveja e controle tais pro-
cessos faça parte de nossa cultura. Diversas situações no cotidiano das insti-
tuições de saúde demonstram a hegemonia desta acepção e suas vicissitudes,
tais como a culpabilização do médico perante o óbito, a desconfiança em
relação ao fazer psicológico, que não apresenta meios de comprovar seu
controle sobre o comportamento e as emoções dos sujeitos, as dificuldades
da equipe de saúde em lidar com situações que escapam à rotina dos proce-
dimentos, os problemas de comunicação entre equipe de saúde, pacientes e
familiares.
A segunda questão é o fato de que a perspectiva biologizante e téc-
nica exclui de seu campo de conhecimento aspectos menos concretos, quan-
tificáveis e controláveis das experiências de saúde e doença, tais como o
sofrimento e os afetos (Figueiredo, 1995), a loucura (Foucault, 2001) e, é
claro, a morte (Ariès, 1977). Na tentativa de manter a uma distância obser-
vável os processos de saúde e doença, perpetua-se o distanciamento entre
médico, enquanto sujeito epistêmico, e paciente, enquanto objeto de estudo.
Foucault (2001) descreve esta relação, afirmando que o médico escuta o
discurso do paciente “não para tomá-lo a sério”, mas para auscultar neste
discurso “os sinais de uma doença séria, ou seja, uma doença do corpo”.
Neste sentido, o discurso médico é raro, se relacionando apenas à nomeação
nosológica da patologia e à prescrição do tratamento. Esta concepção para o
atendimento em saúde ainda é preeminente na formação de muitos profissio-
nais (Faria & Santos, 2011; Campos, 1999) e se expressa, por exemplo, na
fragmentação dos procedimentos e na necessidade de distanciamento de
muitos profissionais em relação às vivências nas instituições de saúde, pois
não há espaço nem legitimação para a discussão de temas presentes no coti-
diano de trabalho, como as relações interpessoais e o sofrimento perante o
282 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.

adoecer. O médico e a equipe de saúde apenas falam como representantes do


discurso médico (Foucault, 2005; Clavreul, 1983), negando que sua compre-
ensão do mundo baseia-se em sua disposição afetiva (Heidegger, 1999), em
favor da manutenção de uma objetividade que seria garantidora do estatuto
científico de seu saber e seu fazer.
Nesta perspectiva, cuja realidade da doença se encontra na concre-
tude do corpo, o discurso é desacreditado não apenas por seu caráter inter-
pretativo, mas também por sua aproximação a aspectos imateriais, como o
afeto e o imaginário. Ora, é exatamente o campo do discurso, do afeto e da
experiência que veio a se tornar objeto das práticas psicológicas, seja na
constituição de técnicas que pretendiam o controle desta experiência, seja na
crítica e desconstrução da lógica da modernidade (Figueiredo, 1991). Toda-
via, os saberes psicológicos então constituídos, ainda influenciados pelo
caráter estanque das disciplinas científicas, formularam práticas muitas vezes
baseadas numa compreensão intrapsíquica do sujeito que, se considerava a
dimensão do afeto e do discurso, desconsiderava outros elementos da experi-
ência, tais como o contexto social (Spink, 2001). A crítica a estas dicoto-
mias, engendrada por algumas abordagens psicológicas e outros campos das
ciências humanas (Morin, 2002, Heidegger, 2001; Foucault, 1991) redunda,
no campo da saúde, no reconhecimento do caráter multidimensional e multi-
causal dos processos de saúde e doença (Spink; 2001, Gadamer, 2006), le-
vando à adoção de uma perspectiva construcionista para a formulação de
saberes e práticas em saúde (Spink, 2001).
No entanto, o modelo médico baseado numa perspectiva exclusi-
vamente clínica e biológica, que Cunha (2005) denomina modelo biomédico,
ainda é hegemônico nas instituições de saúde. Assim, cabe considerar e in-
tervir em torno das práticas discursivas construídas no interior das institui-
ções, visando a uma concepção mais integrada da saúde, segundo a qual os
processos de saúde e doença são uma expressão das experiências vividas
num dado contexto existencial. Para Foucault (2002), as instituições se
constituem a partir da reificação de práticas discursivas, que passam a legi-
timar a realidade da experiência vivida em seu contexto. Cabe acrescentar
ainda a observação de Bleger (1993), segundo a qual as instituições tendem a
suplantar seus objetivos em prol do modo de organização que estruturaram.
Desta maneira, a institucionalização do discurso biomédico construiu espa-
ços e processos nas instituições de saúde que, embora questionados no cam-
po teórico, necessitam de reflexão, novas modalidades de atuação e proces-
sos de questionamento político para serem superados no plano das práticas.
Tome-se como exemplo a atuação multidisciplinar (Spink, 2001). Embora
haja atualmente certo consenso quanto à importância das equipes multipro-
fissionais, é preciso lembrar que cada disciplina parte de perspectivas epis-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

temológicas diferentes, constituídas na lógica moderna de cisão dos campos


do real. Assim, se não ocorre o questionamento dos limites e possibilidades
de cada perspectiva, cuja superação é tanto cognitiva quanto afetiva, corre-se
o risco de encontrar na especialização uma lógica a partir da qual quanto
mais aumenta o conhecimento das especialidades, mais aumenta o desconhe-
cimento do todo (Spink, 2001) e do sentido (Arendt, 2000).
Neste cenário, o hospital emerge como a instituição de saúde mais
expressiva do modelo biomédico, já que tanto a estrutura hospitalar baseada
em “procedimentos tecnológicos” (Campos, 1999) quanto a condição de
submissão do interno à rotina hospitalar já caracterizam uma limitação de
suas possibilidades de escolha e ação. Em contraposição, por exemplo, a um
ambulatório, em que o paciente pode ou não seguir as recomendações pres-
critas pelo médico, no hospital há menor necessidade da adesão do paciente
para a execução dos procedimentos (Cunha, 2005). Diversos recursos, como
a sedação, a contenção do paciente ao leito, a proibição de circulação, a res-
trição de visitas, a designação do paciente pelo número do leito, na medida
em que garantem o distanciamento do médico em relação ao paciente e a
perspectiva do corpo como objeto do saber da equipe de saúde, levam a uma
diminuição das possibilidades de escolha cotidiana, caracterizando uma res-
trição de sua autonomia.
Esta organização institucional redunda, para o paciente, em experi-
ências que expressam desconsideração da necessidade de diálogo sobre as
ações de saúde: o isolamento social, a invasão do espaço do corpo e do eu,
manipulado mecanicamente, a incompreensão em relação ao procedimento
adotado, explicado em linguagem pouco acessível, a divisão da intimidade
com pessoas estranhas que ocupam o mesmo quarto, cuja organização é rea-
lizada sem consideração com as relações que os pacientes estabelecerão en-
tre si, entre outras (Barrica, 2001; Kovács, 2011). Por outro lado, a organiza-
ção hospitalar também cria dificuldades para a equipe de saúde, no manejo
de aspectos não relacionados diretamente à doença física: diante de um óbi-
to, de um pedido de escuta, do sofrimento de um paciente, a equipe sente-se
muitas vezes ao mesmo tempo despreparada e exigida.
Nesta conjuntura, a Psicologia encontra um importante campo de
atuação, já que também procura construir um conhecimento acerca da reali-
dade dos processos de saúde e doença, no entanto o faz a partir do instru-
mento que a medicina tradicional reduz ao silêncio: o discurso. A atuação do
psicólogo possui, desta maneira, o importante papel de dar voz aos atores
sociais nas instituições de saúde, possibilitando, por um lado, o empodera-
mento, isto é, a constituição da autonomia dos sujeitos pela legitimação das
significações que atribuem à experiência, e por outro lado, a constituição de
284 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.

um saber dialogado sobre o adoecer e a promoção da saúde. Nesta direção, a


psicologia encontra aproximações com a política, no seu sentido amplo de
espaço para a ação e o discurso compartilhado (Arendt, 2001).
No entanto, para que a psicologia possa transitar por este campo de
maneira a possibilitar a expressão das vivências e a apropriação ampla de si
– da experiência vivida, do próprio corpo, da internação, das relações esta-
belecidas no espaço hospitalar – é necessário um redirecionamento da pers-
pectiva sobre o homem e a saúde. Para Heidegger (1999), o homem vem
sendo compreendido desde a Antiguidade a partir de sua racionalidade. A
definição de Aristóteles do homem como “animal racional” já antecipa a
formulação moderna, restringindo a compreensão do sentido do existir. Tal
sentido apenas se apresenta ao considerar a relação entre homem e mundo,
que Heidegger (1999) exprime pela expressão dasein, designando a condição
humana de encontrar-se sempre em relação com o mundo, no modo como
somos afetados pelas experiências, no modo como o mundo se abre diante de
nós a partir delas e no modo como nos expressamos e nos posicionamos
diante do mundo. Neste sentido, as nossas experiências são sempre configu-
radas por nossa relação com o mundo e nos colocam diante da questão que
somos para nós mesmos e diante da tarefa de ser quem somos. O dasein é
aquele que, sendo, coloca em jogo seu próprio ser. Existimos por meio desta
relação com o mundo, na medida em que respondemos àquilo que se nos
apresenta, e desta maneira Heidegger (1999) resgata o mito romano do cui-
dado, também traduzido como “cura”:

Certa vez, atravessando um rio, “Cura” viu um pouco de terra argilo-


sa; cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe dar forma. Enquanto
refletia sobre o que criara, interveio Júpiter. A ‘Cura’ pediu-lhe que
desse espírito à forma de argila, o que ele fez de bom grado. Como a
“Cura” quis então dar seu nome ao que tinha dado forma, Júpiter a
proibiu e exigiu que fosse dado o seu nome. Enquanto “Cura” e Júpiter
disputavam sobre o nome, surgiu também a Terra (tellus) querendo dar
o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedaço de seu corpo. Os
disputantes tomaram Saturno como árbitro. Saturno pronunciou a se-
guinte decisão, aparentemente equitativa: “Tu, Júpiter, por teres dado
o espírito, deves receber na morte o espírito e tu, Terra, por teres dado
o corpo, deves receber o corpo. Como, porém, foi a ‘Cura’ quem pri-
meiro o formou, ele deve pertencer à ‘Cura’ enquanto viver. Como, no
entanto, sobre o nome há disputa, ele deve se chamar ‘homo’, pois foi
feito de humus (terra)”. (Heidegger, 1999, p. 264)

Nesta acepção, “cura” ou “cuidado” têm tanto o sentido de “zêlo”,


“dedicação”, quanto o sentido de “esforço” ou “ocupação”: cuidamos de ser
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

quem somos em nosso agir cotidiano, em nosso lidar com o mundo, na me-
dida em que, a cada momento, colocamos em jogo nossas possibilidades de
ser. Assim, cuidado designa “a condição existencial de possibilidade de ‘cui-
dado com a vida’” (p. 265). Para Heidegger, o lidar com os artefatos do
mundo, dado pela ocupação, e o lidar com outros, dado pela preocupação,
caracterizam nossos modos de cuidar. A preocupação consiste, dessa manei-
ra, na expressão do cuidado como modo próprio de nossa relação uns com os
outros: somos-com-outros e a partir desta coexistência constituímos um
mundo comum, dado pelas relações de sentido que compartilhamos, pelas
experiências familiarizadas, pela abertura às possibilidades que somos. Se
“O outro nos vem ao encontro em sua co-presença no mundo” (p. 171), a
abertura compartilhada de nossas possibilidades de ser constitui o sentido do
mundo comum.
Na preocupação, podemos lidar com outros de modo deficiente,
por exemplo, pela indiferença, modo que caracteriza a convivência cotidiana.
De modo positivo, podemos substituir outros em suas ocupações, o que ocor-
re no hospital, por exemplo, quando um técnico de enfermagem higieniza um
paciente que não pode tomar banho por si mesmo, ou ainda podemos nos
antepor a outros, questionando por seu existir e libertando-o para o próprio
cuidado de si. Embora o modo substitutivo de cuidar seja necessário no con-
texto hospitalar, em que muitas vezes as condições do próprio cuidado se
encontram restringidas ou fragilizadas, cabe a observação de Heidegger
(1999) de que este modo de cuidar pode servir à dominação do outro: se este
é dependente do meu cuidado, possuo a decisão sobre aquilo que lhe é ne-
cessário e sobre quem ele é. Desta maneira, a necessidade de substituição nas
ocupações daqueles que se encontram fragilizados em sua capacidade de
cuidar de si pode misturar-se ao discurso técnico e à organização instituída,
prevalentes na instituição hospitalar, fragilizando ainda mais a autonomia
dos internos e familiares.
Com atenção a este aspecto, resgatar o cuidado que se antepõe ao
outro, interrogando pelo modo como cada um cuida de existir, inclusive
quando entrega seu cuidado a outros, permite a apropriação da experiência
de cada um e, no contexto hospitalar, a ressignificação do adoecer. É neste
âmbito, do cuidado antepositivo, da constituição do sentido das experiências
e das possibilidades de sua transformação, que podemos situar a ação psico-
lógica e a dimensão da linguagem que ela abre. Sá (2000) resgata o sentido
da caracterização realizada por Heidegger do cuidado antepositivo para a
práxis psicológica, cuja essência é a interrogação pelo sentido do existir. Ao
abrir espaço para o testemunho e a compreensão de uma experiência, a atua-
ção psicológica revisita e constitui seu sentido e, desta maneira, as possibili-
dades abertas pelo existir em cada situação.
286 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.

No cenário das instituições hopitalares, marcado pelo discurso téc-


nico pautado no procedimento, tal acepção da práxis psicológica significa
ainda a abertura a outras dimensões dos processos de saúde e doença não
contempladas pela técnica, como a experiência do próprio corpo, dos limites
de um controle sobre a saúde, da situação de internação e suas implicações
para o tratamento. Isso não significa desconsiderar o olhar que o saber ténico
pode desvelar sobre os processos de saúde e doença, mas buscar ampliar as
perspectivas de compreensão, refletindo sobre a condição de pacientes, fa-
miliares e profissionais de saúde a partir do nexo total dos fenômenos que se
desvelam no contexto hospitalar.
Na perspectiva da compreensão do sentido da experiência, a práxis
psicológica se revela ainda mais pertinente nos momentos em que esta leva
ao questionamento do existir. Para Heidegger, cotidianamente tomamos nos-
so existir como simplesmente dado, ou seja, normalizamos nossas experiên-
cias como se estas seguissem um curso natural. No entanto, os aconteci-
mentos que questionam nossa compreensão prévia do mundo e os desnatura-
lizam, por assim dizer, nos colocam em contato com a angústia, ou seja, a
disposição afetiva que remete ao desalojamento de sentido e de relações
significativas. A angústia nos revela nossa condição no mundo: estamos
lançados neste mundo em que constituímos relações de sentido e familirari-
dade que, no entanto, não nos garantem nenhum controle, lugar ou certeza
sobre nosso existir e os significados que a ele atribuímos. Se, por um lado,
esta condição nos lança no mundo sem o amparo de um direcionamento pré-
vio, ela também nos liberta para nossas possibilidades de ser.
É com a experiência de acontecimentos que rompem a trama exis-
tencial cotidiana tecida com o mundo, que podemos designar como crise
(Procópio, 2000), que o psicólogo entra em contato no hospital. Pacientes,
familiares e profissionais vivem processos de rompimento, transitório ou
permanente, de muitas dimensões do cotidiano: a capacidade de trabalho, o
controle sobre o próprio corpo, a interrupção de projetos e sonhos, o contato
com a morte. Assim, vai se delineando o papel do psicólogo no sentido de
possibilitar uma abertura para o testemunho da angústia e para lidar com as
situações de sofrimento e perda de sentido do existir que se apresentam fre-
quentemente no ambiente hospitalar. O psicólogo, nesse panorama, propicia
aos atores sociais um espaço para a ressignificação da experiência a partir da
crise, buscando compreender seu sentido no intuito de favorecer sua apropri-
ação por cada um, nas transformações singularizantes que ela permite na
relação entre o dasein e o mundo.
É nessa perspectiva que se articulam, no presente trabalho, a carto-
grafia clínica (Braga, 2010, Aun & Morato, 2009) e o plantão psicológico
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

como diferentes modalidades de prática psicológica e dimensões de uma


pesquisa interventiva. Interrogando o sentido dos fenômenos que se apre-
sentam no cotidiano institucional, tais modalidades de prática procuram co-
nhecer as relações estabelecidas e significados constituídos na experiência e,
simultaneamente, permitir a ampliação para outras significações possíveis,
remetendo cada ator social a seu existir em situação.
A cartografia clínica consiste no contato com o território instituci-
onal: é a apresentação dos psicólogos a cada pessoa que circula pela institui-
ção – paciente, funcionário, familiar – e, ao mesmo tempo, o questionamento
do seu papel, o conhecimento de seu relato sobre a experiência e o sentido do
lugar. Dessa maneira, a cartografia clínica realiza o desenho da paisagem
institucional, que expressa as relações de significado e sentido constituídas
por aqueles que nela habitam. Neste sentido, podemos recorrer à concepção
de Heidegger (2001b) no tocante à relação do dasein com o espaço: a espaci-
alidade e os modos de familiaridade que tecemos com o que nos cerca cons-
tituem nossos modos de habitar o mundo. Na imersão da paisagem instituci-
onal, as percepções, os relatos colhidos, o contato com o cotidiano compõem
o acesso aos modos de habitar o espaço presentes no território. Desta manei-
ra, a cartografia clínica atua como interrogação pelo sentido do lugar, dado
pelos atores sociais na sua relação com o espaço concreto. Busca-se, assim,
acompanhar as rugosidades do território: seus caminhos de facilitação, suas
obstruções, suas vias de acesso, forjadas pelas representações e relações
constituídas a partir dele.
Por meio da narrativa dos atores sociais, torna-se possível refletir so-
bre a inserção da práxis psicológica: os relatos incluem diferentes demandas,
narram conflitos, apresentam os horários de maior circulação de pessoas, as
dificuldades da equipe de saúde com cada paciente, as angústias de familiares.
Neste sentido, a cartografia clínica permite organizar o atendimento de modo a
contemplar as demandas apresentadas na paisagem social. Podemos relacionar
esta construção da paisagem social à concepção proposta por Rolnik (2000),
para quem cartografar é ao mesmo tempo transformar a paisagem, acompa-
nhando os movimentos da produção de territórios existenciais e as suas meta-
morfoses. O recurso à cartografia clínica surge com dupla função: conhecer a
instituição por meio do discurso de seus atores e dar-se a conhecer por meio da
apresentação e do diálogo sobre a intervenção psicológica a ser realizada. As-
sim, a cartografia clínica acompanha e realiza, ao mesmo tempo, as ressignifi-
cações do mundo habitado, trazendo à luz suas outras possibilidades. Arendt
(2000) resgata a dimensão política do relato da experiência, em sua função de
constituição da capacidade de julgamento e interpretação do mundo e da pre-
servação da memória coletiva. Assim como historiadores e poetas, aqueles que
ouvem e narram o vivido possuem a importante função de permitir a constitui-
288 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.

ção de um ethos, de um conjunto de referências que torna reconhecível o espa-


ço e o tempo compartilhados. Neste sentido, a abertura para o relato e a cons-
tituição do sentido comum ao lugar apresenta uma dimensão política, já que
publiciza redes de significações e resgata o âmbito relacional do espaço, na
constituição de referências compartilhadas que compõem seu ethos subjacente.
Dois instrumentos participam e registram este movimento: a supervisão clínica
e os diários de bordo (Braga, 2010, Aun & Morato, 2009).
Na supervisão clínica, os plantonistas relatam suas experiências na
instituição, compartilhando vivências e significações, criando referências
quanto às relações sociais nela estabelecidas, partilhando informações que
permitem uma ampliação da compreensão do território, dada pelo entrecruza-
mento dos múltiplos olhares que dela participam. Assim, a supervisão permite
revisitar o vivido e compreender suas possibilidades de sentido, ressituando os
plantonistas para uma nova imersão no território. Os diários de bordo são re-
gistros da experiência dos plantonistas no campo, descrevendo as paisagens
institucionais e o modo como cada profissional foi afetado por elas. Diários de
bordo permitem, assim, uma narrativa das impregnações vividas por cada um e
um registro da intervenção em seu desenrolar no tempo, acompanhando as
fissuras, movimentos e rugosidades do território. Os diários de bordo de cada
plantonista são, ainda, comentados pelo supervisor, que dialoga com os regis-
tros escritos, interrogando por seu sentido e buscando fazer com que cada
plantonista possa ampliar a reflexão sobre sua práxis no campo.
É a partir da cartografia que se delineia o plantão psicológico. O
conhecimento do território ao mesmo tempo cria o espaço a partir do qual
todos, no contato direto com o psicólogo, podem solicitar atendimento, pedir
orientação ou simplesmente narrar sua experiência e organiza o próprio
atendimento, na medida em que orienta o modo como os plantonistas circu-
lam pela instituição. O plantão psicológico é uma modalidade de atendi-
mento em que o psicólogo se disponibiliza à escuta em instituição e horário
predeterminados, porém sem enquadre prévio com relação ao número de
sessões, ao foco a ser abordado ou ao local em que se realizará. Desta manei-
ra, qualquer pessoa pode se dirigir ao psicólogo em plantão psicológico em
uma instituição ou comunidade para abordar sua queixa ou indicar outras
pessoas para atendimento. Podem ainda haver situações em que o psicólogo
identifica a necessidade de atuação, se apresenta e se coloca disponível aos
atores sociais, ou ainda situações em que o diálogo constante com os atores
sociais, mesmo sem a manifestação direta de um pedido de atuação, permite
intervenções no cotidiano de trabalho.
Num hospital geral, o plantão psicológico é caracterizado, inicial-
mente, pela constante apresentação da equipe, já que há rotatividade de paci-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

entes, familiares e algumas vezes de funcionários. A característica de cons-


tante reapresentação relaciona-se à cartografia clínica e permite que ela con-
tinue criando pontos de contato e desenhando a paisagem das transformações
institucionais. Frequentemente, no próprio ato de apresentação da equipe,
ocorrem pedidos por atendimento próprio ou de familiares, pacientes e cole-
gas de trabalho.
Assim, o oferecimento de um espaço de escuta e elaboração da ex-
periência no momento de rompimento com o cotidiano e contato com a fini-
tude (Heidegger, 1999), característico da internação, permite a intervenção
na emergência da experiência de sofrimento ou crise, abundante no contexto
hospitalar. Muitas vezes, tais situações mobilizam diversos atores sociais,
seja no esclarecimento quanto a orientações e prescrições realizadas pela
equipe de saúde, seja na solicitação pela presença do psicólogo em momen-
tos de realização de procedimentos invasivos ou angustiantes ou ainda na
elaboração da experiência do adoecer e do contato com a perspectiva de per-
da da autonomia ou da morte.
A partir do pedido inicial, o relato da experiência vivida no hospital
permite sua elaboração e ressignificação, descortinando novos modos de
compreender a própria situação e levando à construção de uma demanda
junto ao plantonista. É a partir desta demanda construída no plantão psicoló-
gico que ocorre o encaminhamento, seja para a continuidade de um atendi-
mento psicológico, seja na constituição de novos modos de ação e relação no
cotidiano, seja na solicitação de outros profissionais da instituição hospitalar.
O encaminhamento é concebido, deste modo, não como a passagem para um
determinado serviço, mas como constituição do modo pelo qual cada um se
encaminha em sua existência, apropriando-se dos direcionamentos e do sen-
tido do cuidado de si. O plantão psicológico abrange, neste prisma, todos os
atores sociais, atuando junto aos funcionários não apenas no apoio ao traba-
lho de outros prosfissionais em interconsultas ou no atendimento de pacien-
tes indicados pela equipe, mas também na abertura de um espaço de elabora-
ção das experiências destes profissionais, havendo situações de procura pelos
plantonistas para a expressão de questões relativas a conflitos de trabalho ou
dificuldades com a instituição, ao próprio fazer profissional frente ao sofri-
mento humano ou a experiências pessoais menos relacionadas ao contexto
hospitalar.
Na multiplicidade de suas atuações, o plantão psicológico pode
permitir a circulação do discurso, em práticas como a interconsulta, as reuni-
ões de equipe, o acolhimento às famílias e atendimentos em grupo. Tais prá-
ticas se configuram a partir da atenção aos acontecimentos do cotidiano ins-
titucional: diante do emergir de situações de sofrimento, conflito ou necessi-
290 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.

dade de diálogo, tais práticas permitem a circulação da palavra entre diversos


atores sociais. Os grupos permitem a discussão conjunta da experiência do
adoecer, abrindo um espaço para que todos, enquanto portadores do vivido,
tenham legitimidade para abordá-lo, e deslocando do médico o foco único de
verdade sobre o adoecer e o cuidado de si. Frequentemente, o atendimento
psicológico em grupo ocorre a partir do oferecimento do espaço de plantão
psicológico, entre pacientes ou familiares que se encontram no mesmo
quarto. Algumas vezes, tal espaço permite também o fortalecimento de laços
ou a elaboração de conflitos entre familiares e pacientes que irão conviver no
mesmo espaço durante a internação. O acolhimento às famílias permite o
esclarecimento das situações de internação, principalmente frente a espaços e
procedimentos cujas representações sociais são muito negativas, como a
entrada na UTI, o coma induzido ou procedimentos no coração, e ao mesmo
tempo permite a troca de informações o compartilhamento das experiências
de internação. As interconsultas e reuniões de equipe podem consistir em
momentos importantes para a inclusão do discurso e da experiência do paci-
ente na sua compreensão pela equipe de saúde. Embora o plantão psicológi-
co seja destinado a qualquer indivíduo que esteja na instituição hospitalar e
perceba a necessidade de um acompanhamento psicológico, na presente pro-
posta interventiva os atendimentos psicológicos foram mais frequentes entre
pacientes e acompanhantes, devido tanto à cultura hospitalar, voltada ao
paciente, quanto à própria situação de sofrimento causado não somente pela
doença, mas também pela hospitalização e suas consequências.

1 CARTOGRAFANDO O HOSPITAL GERAL POR MEIO DO


PLANTÃO PSICOLÓGICO

O hospital em que ocorreu a intervenção era inicialmente dividido


em três alas: enfermaria, CTI e ala psiquiátrica. Este hospital é referência
para amputação e tratamentos cardíacos, possuindo um alto índice de inter-
nação de cardiopatas e pacientes diabéticos. Atende em sua maioria SUS,
com aproximadamente duzentos leitos. Posteriormente, passou por uma re-
forma para ampliação, sendo recentemente inaugurado um setor exclusivo
para pacientes particulares e oriundos de convênio.
A intervenção psicológica foi proposta através de estágio supervi-
sionado. No primeiro contato com a instituição, foi possível perceber alguns
conflitos entre membros da equipe, que refletiram no modo como a interven-
ção foi recebida. Assim, embora o estágio tivesse já sido autorizado pelo
hospital, alguns profissionais da enfermagem questionaram sua realização,
revelando um conflito entre a enfermagem e o setor responsável pelo estágio.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Dessa maneira, uma das primeiras atividades realizadas foi apresentar a


equipe entre todos os setores do hospital para o esclarecimento da proposta
de atendimento em plantão psicológico.
Um cuidado tomado pela equipe de plantonistas a partir do conflito
inicial foi o de se apresentar inicialmente ao setor de enfermagem, demons-
trando possibilidade de atender pacientes por indicação desta equipe. Este
procedimento possuía tanto a intenção de demonstrar respeito e a intenção de
contribuir com o trabalho do setor após a identificação da tensão institucio-
nal quanto o de reapresentar a proposta do plantão psicológico de maneira
que a equipe a compreendesse. Após algum tempo de contato e reapresenta-
ção, o primeiro encaminhamento realizado por esta equipe foi o de uma pa-
ciente de longa permanência com complicações no tratamento, que não pos-
suía visitas e, segundo o setor, “estava deprimida”. Ao longo do atendimento
a paciente foi compreendendo melhor sua condição e a necessidade do tra-
tamento para evitar novas complicações, o que também permitiu adaptar-se
melhor aos procedimentos de enfermagem. Este desenvolvimento levou a
equipe de enfermagem a também solicitar constantemente os plantonistas de
psicologia, principalmente no caso de pacientes muito solicitantes, com difi-
culdades de adaptação ao tratamento ou com pouco amparo de uma rede
psicossocial.
Os plantonistas apresentavam-se a pacientes e funcionários, expli-
cando sua função e simultaneamente abrindo espaço para a escuta de qual-
quer demanda que se apresentasse por parte dos atores institucionais. A par-
tir deste processo constitui-se a cartografia clínica: a abertura do espaço para
escuta psicológica permitiu ao mesmo tempo o acesso aos discursos e relatos
dos atores sociais, que expressam sua vivência do lugar e seus modos de
habitá-lo (Heidegger, 2001b). Entre os pacientes e acompanhantes, durante a
própria apresentação da proposta, muitos solicitavam atendimento e alguns
indicavam pessoas próximas para atendimento posterior. Assim, o serviço foi
se estabelecendo na instituição a partir do diálogo junto aos atores institucio-
nais e da aproximação dos profissionais em relação ao atendimento realiza-
do, de modo a criar uma institucionalidade para a proposta.
Ao longo do processo, pode-se observar que a demanda do hospital
foi se modificando de acordo com mudanças em sua estrutura. A implanta-
ção da ala particular e novos leitos de UTI levou ao contato com novos paci-
entes, com demandas diferentes, como por exemplo, pessoas com doença
renal e dores na coluna e a ampliação da faixa etária atendida. Nesse sentido,
o movimento cartográfico de compreender as diferentes relações com o lu-
gar, atentando ao que se apresenta como demanda na instituição, permaneceu
durante todo o processo interventivo.
292 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.

Os atendimentos em grande maioria ocorreram com mulheres. A


maioria dos pacientes internados era idosa e a maioria dos acompanhantes do
gênero feminino. Desta maneira, a supervisão direcionou-se, em alguns mo-
mentos, para a compreensão do contexto que cerca o cuidado da saúde da
mulher e do idoso, bem como o modo como é realizado o atendimento dos
profissionais da saúde com estes pacientes. Algumas questões surgidas no
atendimento a idosos foram a perda de funções e de autonomia devido a
limitações físicas, o contato mais próximo com a possibilidade da morte e
vivências de perdas de pessoas próximas. Neste sentido, algumas situações
como isolamento, diminuição na participação em conversas, expressão de
tristeza, ansiedade e medo, se mostraram inicialmente em alguns atendi-
mentos.
Entre as pessoas atendidas, a doença renal também foi muito pre-
sente, afetando aspectos orgânicos, psicológicos e sociais. A maioria dos
pacientes se queixava de dores causadas pelos cálculos renais. Entre pacien-
tes da ala particular, quase não foram realizadas perguntas sobre a doença:
estes diziam conhecer seus efeitos, sua gravidade, sua terapêutica e seguir as
orientações para o tratamento e para redução das complicações. Neste senti-
do, pode-se perceber um maior grau de orientação sobre à doença pelo aces-
so à escolaridade, informação e recursos de saúde, desvelando o importante
papel da educação e do acesso a boas condições socioeconômicas na preven-
ção da saúde e no comprometimento do paciente com o tratamento. Neste
contexto, o atendimento psicológico foi direcionado a outros aspectos, como
por exemplo, o relacionamento com os filhos, questões envolvendo o traba-
lho, outros problemas de saúde, a impaciência por estar internado e a depen-
dência da hospitalização.
Outro aspecto relevante foi a ambiguidade com que a internação
frequentemente é vivida: por um lado, os pacientes consideram a hospitaliza-
ção positiva, pela expectativa de melhora do estado de saúde e de cuidado
num momento em que este não é mais possível por si; por outro lado, vivem
a rotatividade de pessoas com quem dividem o quarto, a manipulação do
próprio corpo por terceiros, o isolamento, a dificuldade em se ocupar, a inse-
gurança quanto ao próprio estado de saúde. Diversos pacientes mencionaram
medo ou ansiedade por não saber sua real situação clínica, por não entender
a linguagem médica, por esperar procedimentos cirúrgicos, pela falta de sua
rotina habitual ou mesmo pela própria doença, que acaba por limitar suas
condições de vida. Muitos se queixaram ainda de se sentir sozinhos e da falta
de visitas de familiares e amigos, muitas vezes criando expectativas em torno
do momento de visitação e decepcionando-se quando ao final do dia nin-
guém aparecera no hospital. Todos os pacientes diziam desejar voltar para
casa para estar perto das pessoas queridas e voltar à rotina diária, além de
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

preocuparem-se com o pagamento de contas e o cuidado de pessoas próxi-


mas. A intervenção psicológica dirigiu-se a diversas dimensões destas expe-
riências: a escuta do relato das experiências, buscando favorecer sua elabora-
ção, algumas orientações mais diretas com relação ao estado clínico, tornan-
do mais acessível a linguagem e as orientações fornecidas por outros profis-
sionais, o auxílio no contato e no diálogo entre pacientes internados, familia-
res e acompanhantes.
Embora em geral os pacientes tenham se mostrado satisfeitos com
o atendimento hospitalar, houve situações paradigmáticas do distanciamento
entre pacientes e equipe de saúde: as principais insatisfações diziam respeito
à dificuldade de entender o próprio estado de saúde, não explicado clara-
mente, à falta de acesso ao atendimento, em que algumas vezes o médico
avisava que passaria no quarto e não comparecia ou demorava, e à falta de
consideração de outros aspectos para além do corpo. Duas situações em
plantão psicológico podem expressar estas questões. Na primeira, uma auxi-
liar de enfermagem, para realizar um procedimento em uma paciente na UTI,
retirou o lençol da parte superior de seu corpo, deixando-a parcialmente nua.
A paciente ficou visivelmente constrangida e a intervenção da psicologia
ocorreu no sentido de rearrumar o lençol de modo que ficasse exposto ape-
nas o espaço necessário para o procedimento. A auxiliar de enfermagem
acompanhou o processo e posteriormente a paciente comentou o ocorrido,
agradecendo a intervenção. Noutra situação, familiares procuraram a equipe
de psicologia após a visitação do paciente na UTI, queixando-se de que o
médico provocara o coma do paciente, já que ele chegara ao hospital consci-
ente. Solicitada a relatar o que ocorrera, a família afirmou que o médico ha-
via afirmado ter colocado a paciente em coma induzido. A equipe passou
então a traduzir em linguagem acessível o procedimento realizado, explican-
do que com ele o paciente não sentiria dor e poderia voltar à consciência em
melhores condições de saúde assim que a medicação fosse interrompida.
Outro importante aspecto que se apresentou no contato com os pa-
cientes foi o impacto da falta de boas condições econômicas e psicossociais
no desenrolar dos processos de saúde e doença. A maioria dos pacientes
internados teve como importante fator de adoecimento a ausência de uma
organização de vida que permitisse estratégias e hábitos de promoção da
saúde e prevenção de agravos, expressa em condições dignas de trabalho,
renda, alimentação, nutrição, educação, moradia, saneamento, transporte e
lazer. Assim, a ênfase na assistência meramente curativa e individual, além
de sobrecarregar o sistema de saúde e os leitos dos hospitais, faz com que os
pacientes cheguem ao hospital em piores condições de saúde, dificultando a
recuperação. No plantão psicológico, foi possível perceber que a doença
frequentemente esteve relacionada a um precário cuidado da saúde ao longo
294 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.

da vida. Amiúde pacientes hipertensos e diabéticos não tinham acesso à dieta


adequada, seja por obstáculos financeiros, seja pela ausência de conscienti-
zação sobre seu quadro de saúde e de formação de hábitos saudáveis ao lon-
go da vida. Muitos pacientes residiam em zona rural e não tinham acesso a
transporte público eficaz, dificultando o deslocamento a serviços de saúde, o
que os levava a protelar cuidados preventivos. Assim, o cuidado médico
geralmente se iniciava com a enfermidade já instalada com algum grau de
gravidade, dificultando tanto a cura quanto o controle de doenças e acarre-
tando problemas na organização familiar, na continuidade do tratamento
após alta hospitalar e nas possibilidades de manutenção de uma vida ativa.
A partir da percepção de movimentos, transformações e direciona-
mentos nos territórios existenciais, constituiu-se a ação clínica. Entender
como a instituição e o contexto social mais amplo estão presentes nas vivên-
cias dos sujeitos é importante para compreender como se forjam as articula-
ções e experiências no contexto existencial de cada um, permitindo não ape-
nas uma elaboração mais abrangente de cada situação presente, mas ainda
intervir nas relações entre equipe de saúde, pacientes, familiares e na própria
atuação dos plantonistas.

2 A CLÍNICA EM AÇÃO: RELATOS DE ATENDIMENTOS

O plantão psicológico no hospital foi disponibilizado a qualquer


indivíduo que estivesse na instituição hospitalar e percebesse a necessidade
de um acompanhamento psicológico. Na medida em que ocorria a apresenta-
ção do serviço, muitos funcionários, pacientes e familiares expressavam
necessidade de atendimento ou indicavam encaminhamentos. Neste sentido,
a proposta de plantão psicológico, em que a escuta clínica pode se realizar no
mesmo momento de emergência de uma queixa, mostrou-se pertinente por
possibilitar o atendimento no momento mesmo da apresentação do serviço.
A abertura deste espaço de escuta capaz de acompanhar o que emerge no
presente favoreceu a aproximação aos atores sociais, tornando o serviço de
plantão psicológico uma referência na instituição. Ao longo de cada plantão
psicológico, a elaboração de uma demanda a partir da queixa inicial direcio-
nou-se tanto ao encaminhamento a vários setores do hospital, muitas vezes
demandando o trabalho em equipe multidisciplinar, como à ressignificação e
encaminhamento dos próprios projetos de vida. Para ilustrar tais aspectos,
sete experiências de plantão psicológico serão relatadas a seguir.
Quanto à indicação de encaminhamentos, uma articulação impor-
tante foi se construindo com a equipe de enfermagem, que inicialmente pos-
suiu alguma dificuldade em compreender o papel da psicologia, todavia no
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

decorrer da intervenção foi dialogando com os plantonistas diante de situa-


ções em que as queixas de pacientes ou acompanhantes saíam do âmbito
estritamente orgânico. O primeiro encaminhamento realizado por esta equipe
foi o de Mara2, 62 anos, internada há seis meses devido a um quadro de
complicações no tratamento de uma fratura no fêmur. Ela não recebia visitas
e, segundo o setor, “estava deprimida”.
A partir da apresentação da equipe de plantonistas, Mara se mos-
trou receptiva, relatou que gostava de conversar e estava se sentindo muito
sozinha, pois a outra paciente com quem dividia o quarto não conversava
muito. Mara afirmou, desde o primeiro encontro, que as visitas lhes seriam
agradáveis, pois poderia contar muitas histórias sobre a sua vida. Essa atitude
permaneceu na maior parte do processo e, ao longo do ano, em quase todas
as visitas Mara recebia as plantonistas com um sorriso. De início, os atendi-
mentos foram realizados sempre pela mesma plantonista a pedido de Mara,
que após algumas visitas relatou associá-la à sua neta, expresando a vivência
de familiaridade e acolhimento trazida pelo espaço do plantão psicológico
em contraposição à vivência de isolameno que relatara no hospital.
Na relação com a plantonista, Mara mostrava insegurança quanto a
outros modos de contato no hospital, atribuindo a esta plantonista o cuidado
de si, que podemos associar à concepção de Heidegger (1999) de um cuidado
substitutivo. Mara tinha dificuldades em aceitar ser atendida por outro plan-
tonista ou que a plantonista atendesse outros pacientes, revelando vivenciar
uma dependência afetiva. Esta atitude pode ainda ser relacionada ao papel
submisso ao discurso médico que ela vinha exercendo durante sua longa
internação, incorporando a perda da autonomia, lamentando a perda de ativi-
dades e referindo a si mesma como incapaz de realizá-las. Expressando esta
dependência, sua impotência foi percebida pela plantonista, que se sentiu
também com dificuldades para ajudá-la. Apresentava-se o que alguns autores
denominaram espelho mágico (Morato et al., 1999; Nunes et al., 2001). No
movimento descrito pelo espelho mágico, vivências e discursos institucionais
são impregnados nos sujeitos, de modo que, assim como Mara incorporara o
lugar institucional em que havia sido colocada no hospital, a plantonista era
tomada pelo sentimento de impotência que Mara demonstrava.
A equipe de plantonistas buscou levar Mara a questionar o sentido
de seu cuidado, apropriando-se de sua possibilidade de elaborar sua experi-
ência e construir recursos para lidar com as dificuldades advindas com o
adoecimento e a internação. A ação clínica procurava então aproximar-se de
um cuidado antepositivo (Heidegger, 1999), que auxiliasse Mara a se apro-

2
Todos os nomes de pacientes e familiares foram trocados para preservar sua identidade.
296 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.

priar de si. Neste intento, adotou-se a estratégia interventiva de inserir outra


plantonista nos atendimentos seguintes, que passaram a ser realizados em
dupla para que outra referência de contato se firmasse, criando uma relação
de confiança na qual Mara pudesse compreender que, independentemente da
pessoa que a atendesse, poderia ser auxiliada, se apropriando de seu cuidado.
Posteriormente, alguns atendimentos ocorreram apenas com a segunda
plantonista e Mara conseguiu prosseguir abordando suas dificuldades com o
processo de adoecer. O recurso à entrada de outra plantonista permitiu uma
intervenção na ação, provocando uma experiência de desvelamento de outra
possibilidade para ela – o cuidado acontecendo fora da relação de dependên-
cia, a partir da sua ação de solicitar cuidado. Esta experiência diretamente
vivida na situação de plantão psicológico permitiu uma mudança na forma
como Mara se relacionava com a plantonista que a atendia e com as demais
plantonistas, aceitando inclusive intervenções realizadas por outros membros
da equipe.
Após esta intervenção, outras questões puderam ser abordadas. Ma-
ra relatou um estranhamento de sua autoimagem no hospital, já que estava há
muito tempo sem realizar cuidados pessoais que lhe eram rotineiros, como
com o cabelo e as unhas, e a dificuldade em lidar com a inatividade, passan-
do o dia no leito. Possuía ainda dificuldade em compreender seus limites e
possibilidades físicas no quadro de adoecimento em que se encontrava. A
discussão com a equipe de enfermagem permitiu orientar melhor a paciente,
e aos poucos esta foi percebendo que havia perspectiva de melhora, embora
lenta, e que ela tinha condições de realizar algumas atividades, como andar
pelo hospital na cadeira de rodas. O diálogo com a equipe permitiu ainda
certas modificações referentes aos procedimentos utilizados com Mara: pas-
saram a ser permitidos certos acessórios, como brincos, lixas e esmalte de
unha, o que até então não ocorria. Isto contribuiu para que Mara conseguisse
relacionar o momento presente de internação à sua autoimagem anterior ao
adoecimento, constituindo uma vivência mais articulada de si mesma no
tempo e permitindo que mesmo no contexto hospitalar existissem possibili-
dades das quais ela podia se apropriar, em que sua melhora não estivesse
somente sobre o cuidado do outro, mas também no seu comprometimento e
responsabilidade sobre si.
Após alguns meses, Mara trouxe uma questão que evidencia
como a administração hospitalar pode sobrepujar as questões psicossociais
relacionadas à internação. Embora, em geral, considerasse que mais ga-
nhou do que perdeu com a hospitalização, ressaltou que seu aspecto mais
difícil foi a rotatividade de outras mulheres com quem dividia o quarto: ela
via todas as pessoas sendo internadas e obtendo alta, sendo que ela conti-
nuava internada e, além disso, eram laços construídos e separados rapida-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

mente. Após conversas das plantonistas com a equipe de saúde do hospital,


abriu-se a possibilidade de se inserir no quarto pacientes com quadro clíni-
co que demandaria maior tempo de internação, ampliando o bem-estar de
Mara. Esta passou também a fazer planos de visitar um filho no exterior
após a alta, lidando com uma das preocupações narradas aos plantonistas: a
perspectiva de não encontrar outras atividades e relações após alta hospi-
talar. Assim, foi possível perceber melhora não apenas no seu quadro clíni-
co, mas em seu modo de lidar com sua saúde, na perspectiva frente ao tra-
tamento e à possibilidade de alta e no modo como respondia às situações de
dificuldade com as quais se deparava, o que também permitiu adaptar-se
melhor aos procedimentos hospitalares.
A partir das mudanças percebidas com Mara, a equipe de saúde
como um todo passou a solicitar constantemente as plantonistas, sobretudo
nos casos mais urgentes, com maiores dificuldades de adaptação ao trata-
mento ou com pouco amparo de uma rede psicossocial. Entre os atendimen-
tos realizados por demanda, encontrava-se uma paciente de 53 anos, Lívia,
extremamente angustiada e ansiosa quanto ao futuro. Após ouvir o pedido da
enfermagem, a equipe dirigiu-se ao quarto, apresentou o plantão psicológico
e Lívia relatou sua experiência no hospital, se apropriando deste espaço e
solicitando que sua filha, que a acompanhava na internação, se retirasse do
quarto para conversar a sós com as plantonistas. Lívia apresentara vários
episódios de convulsão e estava à espera por uma cirurgia para retirada de
tumor encefálico. Ela já havia conversado com o médico e estava consciente
dos riscos no pós-operatório, incluindo chance de paralisia total do lado di-
reito do corpo. A escuta de sua narrativa voltou-se à elaboração conjunta da
situação pelas três plantonistas e a paciente, buscando compreender a vivên-
cia presente: seus medos e sentimentos mais expressivos, a perspectiva de
reorganização de seu cotidiano, bastante ativo, no caso de paralisia, e a preo-
cupação com a família. Para Lívia, era doloroso pensar sobre o risco de pa-
ralisia e, não conseguindo expressar por palavras todo seu sofrimento, pas-
sou a chorar. Conforme relatava sua percepção de sua condição, desencade-
ou-se uma crise convulsiva. Ela segurou a mão da plantonista com força,
pedia para que chamassem o médico e simultaneamente expressava em seu
gesto a necessidade de que a plantonista cuja mão segurava ficasse com ela.
Assim, duas plantonistas chamaram a equipe médica enquanto
outra permaneceu com a Lívia, amparando-a enquanto a equipe não chega-
va ao quarto. Nessa situação, ficou muito clara a referência de cuidado que
a paciente criou na relação com a plantonista, continuando em contato com
ela enquanto os procedimentos médicos eram realizados. A importância da
ação psicológica foi evidente também para a equipe médica, que não ques-
tionou a presença da plantonista junto à paciente, mas reconheceu uma
298 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.

facilitação de seu próprio trabalho. O atendimento possibilitou um amparo


e escuta do seu sofrimento no momento mesmo da experiência concreta
que ela estava vivendo, na emergência da situação de desamparo, medo e
angústia que gerava a demanda psicológica. A atenção psicológica no pró-
prio momento da emergência da situação de crise, como parte integrante do
atendimento oferecido pela equipe de saúde, possibilitou uma experiência
de amparo favorecedora da elaboração da situação de adoecimento, auxili-
ando um melhor restabelecimento de Lívia após a crise convulsiva. Consi-
derou-se importante uma nova visita para conversar com os familiares, que
haviam se mostrado apreensivos, além do fato de que a filha mais nova
permanecia no hospital há duas semanas, relatando grande exaustão física e
psicológica. Assim, no período pós-cirúrgico, em que a paciente encontra-
va-se sedada na UTI, novos plantões psicológicos foram realizados, envol-
vendo os familiares da paciente (duas filhas e o esposo). Os familiares
abordaram a cirurgia e pós-cirúrgico da paciente, mas principalmente suas
crenças, pensamentos e sentimentos frente ao quadro clínico de Lívia, bem
como à sua recuperação.
Apesar de a família expressar seu sofrimento, havia dificuldade em
abordar questões relativas ao adoecer de Lívia, principalmente no diálogo
com a própria paciente. Como relata Barica (2001), muitos pacientes e fami-
liares têm dificuldades em falar sobre questões atinentes ao adoecimento, já
que participam da mesma cultura de exclusão de aspectos concernentes ao
sofrimento e à morte, num processo que Kovács (2011) denominou clandes-
tinização do morrer. Abordar a situação de adoecimento e possibilidades de
complicações no plantão psicológico permitiu à familia autorizar-se a narrar
e compartilhar sua vivência. Além do espaço aberto com a família para a
narrativa e elaboração do modo como todos estavam vivenciando aquele
momento, também se discutiu possíveis formas de cuidado com a paciente
no período de recuperação, como por exemplo, a possibilidade de futura-
mente a paciente ser acompanhada por uma fisioterapeuta para reabilitar os
movimentos, além do acompanhamento psicológico.
Em atendimento posterior, Lívia expressava a ambiguidade de sua
experiência: estava fisicamente mais disposta, porém fragilizada pela crise
convulsiva e pela operação recente. Expressando vivenciar uma crise e re-
cente perda de referências (PROCÓPIO, 2001), ela oscilava muito entre
grande ansiedade e profunda melancolia, mas também buscava preparar-se
para enfrentar os possíveis tratamentos que se iniciariam. Na apropriação do
processo de adoecimento, o diálogo com a família após a sua cirurgia, possi-
bilitado pela discussão entre esta e os plantonistas, permitiu um suporte den-
tro da realidade concreta para que ela ficasse mais preparada para eventuais
readaptações frente a uma possível nova condição.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Posteriormente, tornou-se evidente que o plantão psicológico tor-


nou-se referência no cuidado às vivências associadas ao adoecer. Quando a
equipe entrou no quarto, a paciente segurou as mãos de duas plantonistas,
indicando precisar de atendimento. Ao mesmo tempo, a filha sinalizou à
outra plantonista o desejo de conversar. Interrogada se queria sair do quarto
para um diálogo mais reservado, afirmou preferir permanecer, para que a
mãe não percebesse e ficasse apreensiva. Diante deste relato, a plantonista
sugeriu que elas se dirigissem ao banheiro e conversassem entre a porta do
banheiro e o quarto, para manter a privacidade e simultaneamente ficarem
visíveis à mãe. A jovem relatou dúvidas e medos em relação à saúde de
Lívia. O médico disse que não removera um dos nódulos devido à sua lo-
calização no cérebro, que elevaria o risco de complicações ou mesmo de
morte na operação, além da grande chance deste tumor ser maligno. A filha
afligia-se com o tratamento de quimioterapia e radioterapia que a mãe po-
deria fazer, indicando dúvidas quanto ao melhor hospital, por exemplo. A
plantonista pontuou ser preciso aguardar o resultado dos exames para se
trabalhar com realidades concretas quanto ao diagnóstico, e a partir daí,
discutir junto ao médico as orientações sobre o tratamento mais adequado.
A filha apresentava ainda dúvidas sobre a necessidade e o modo como ex-
por para Lívia seu real quadro clínico. Novamente, a família manifestava
dificuldades em falar sobre o processo de adoecer e a plantonista abriu a
possibilidade de estar presente nas situações de conversa tanto com a paci-
ente quanto com o médico.
Destacaremos ainda relatos de plantão psicológico que ilustram a
atuação em equipe multidisciplinar. Na primeira situação, pouco antes de
um procedimento médico de emergência (inserção de um cateter via jugu-
lar), uma paciente mostrava agonia e medo acentuados. A explicação sobre
o procedimento, fornecida no contexto hospitalar de racionalidade técnica,
foi suficiente para a orientação sobre cuidados físicos, mas não abria espaço
para que a paciente pudesse exprimir seu sofrimento. A equipe de saúde
percebeu esta demanda, no entanto não se sentia confortável ou capacitada
para atendê-la. Diante disso, o próprio médico orientou a paciente sobre a
alternativa de recorrer ao plantão psicológico. Após finalização das condu-
tas médicas, a paciente procurou o plantão psicológico, buscando compar-
tilhar o seu sofrimento. Nesta ocasião, assim como acontecera com Lívia, a
paciente ficou de mãos dadas com a plantonista durante todo o atendimento.
Percebeu-se então que o “dar as mãos” mostrou-se um gesto muito signifi-
cativo em situações de procedimentos invasivos, colocando-se como uma
experiência amparadora de contato físico num momento de insegurança
concreta quanto ao corpo e ao eu, contribuindo para a elaboração e expres-
são dos sentimentos.
300 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.

O diálogo com a equipe multidisciplinar destacou-se também no


atendimento realizado com Júlia, 65 anos, diabética e com hipertensão arte-
rial. Ela trazia várias dúvidas quanto ao seu estado de saúde, às condutas do
tratamento e, sobretudo, à restrição alimentar. A dieta havia sido baseada em
seu quadro clínico, com risco iminente de amputação devido a ferimentos
decorrentes do diabetes. Diante desta demanda, instituiu-se um diálogo mul-
tiprofissional com a nutricionista do hospital para esclarecer dúvidas em
relação à alimentação e aos cuidados adequados à sua recuperação, emba-
sando o atendimento psicológico. Solicitou-se ainda que ela contatasse Júlia
para ouvir suas dúvidas e orientá-la e se pode compreender o sentido do
plantão psicológico na elaboração da demanda e seu encaminhamento espe-
cífico. Por um lado, as dúvidas de Júlia a afligiam e ela manifestava dificul-
dades em lidar com suas restrições e sua condição de saúde. Por outro lado,
havia um problema prático de acesso às informações: Júlia precisava enten-
der a função dos alimentos em sua dieta e possíveis riscos de não segui-la.
Assim, o plantão psicológico ofereceu um espaço de escuta e elaboração da
experiência que permitiu a identificação de uma demanda a outro profissio-
nal e a mediação do diálogo entre este e a paciente, configurando o encami-
nhamento.
Outro relato traz o problema dos limites do contato físico e da in-
vasão do corpo. Uma enfermeira encaminhara Ana, 45 anos, paciente oriun-
da de convênio, pois ‘estava deprimida’ e sentia-se sozinha. Quando duas
plantonistas se dirigiram a Ana, ela segurou as mãos de ambas e permaneceu
fazendo carinho ou segurando forte, agradecendo por estarem lá. Por vezes
Ana acariciava os cabelos das plantonistas ou pedia um abraço, outras vezes
ela mesma abraçava as plantonistas e chorava, dizendo sentir-se ansiosa,
solitária e triste, pois para ela era muito difícil estar no hospital – sentia sau-
dade de casa, do marido e da família. Um médico interrompeu o atendimento
para aferir a pressão de Ana, que lhe relatou falta de ar. Este lhe deu uma
bronca, dizendo que ela havia se deitado e se levantou rápido demais e que
talvez fosse transferi-la para UTI. Ana disse sentir-se desrespeitada pelo
modo como o médico a tratou e apreensiva frente à possibilidade de ser
transferida para UTI. Chorou e repetiu muito que não queria ser transferida,
pedindo amiúde para que as plantonistas não a deixassem sozinha, ir para a
UTI e nem colocar o tubo de traqueostomia. As plantonistas interrogaram
sobre suas vivências e percepções pelas quais temia a UTI, explicando-lhe
que poderiam ampará-la, mas a decisão sobre condutas se baseava no quadro
clínico e cabia aos médicos.
Ana foi se acalmando e se disse ansiosa para rever o marido na vi-
sita. Comentou que era vaidosa e gostava de passar batom, então uma das
plantonistas perguntou se ela o havia levado e gostaria de passá-lo. Ana disse
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

que não usara o batom e a plantonista deixou-o ao lado da cama, dizendo que
ficaria ali, caso decidisse usá-lo. Após a saída das plantonistas, Ana pediu o
batom e um pente a outros cuidadores, dizendo que se arrumaria para se sen-
tir bonita, tirar a aparência de doente e esperar seu marido. Uma dificuldade
deste atendimento foi a necessidade frequente de contato físico de Ana. Ela
estava nua e solicitava toques das plantonistas, que encontraram dificuldade
de expor à paciente que não poderiam ficar tão próximas, pois deviam evitar
contaminação. Ana também tinha grande dificuldade de perceber a possibili-
dade do cuidado de si, mostrando-se fragilizada e demandando constante-
mente o outro, sendo este aspecto discutido no decorrer do atendimento com
ela, como, por exemplo, no enfrentamento da situação de adoecimento, in-
ternação e transferência para a UTI. Neste contexto, a intervenção na ação,
pelo gesto de expor o batom, possibilitou uma ressignificação da experiência
de internação, permitindo-lhe maior autonomia.
O plantão psicológico no hospital geral envolveu o encontro com a
finitude humana, em casos de pacientes em estado terminal e seus familiares,
sofrendo imensuravelmente diante da possibilidade ou realidade da morte.
Foram estas as ocasiões mais angustiantes da atuação no contexto hospitalar,
marcadas pelo silêncio: a dificuldade de pacientes, familiares e profissionais
em se falar diretamente sobre a morte, sendo sua expressão restrita a olhares
e relatos da condição de saúde do paciente, esteve presente em grande parte
dos atendimentos.
Um destes atendimentos foi solicitado por Marta, filha de uma se-
nhora em estado terminal e vegetativo, que iniciou relatando sua vontade de
levar a mãe de volta para casa, pois achava que poderia cuidar melhor dela,
pois se sentia cansada no ambiente hospitalar. Apesar do quadro clínico da
mãe, ela não aventava o risco de morte. Após escutá-la, o diálogo com a equi-
pe médica permitiu conhecer o quadro clínico da paciente e direcionar a inter-
venção com Marta. A paciente realmente possuía poucos dias de vida, levando
as plantonistas a discutir como o adoecer da mãe vinha sendo vivenciado por
Marta, que não atinava para a gravidade do quadro. Ao falar sobre a interna-
ção, Marta foi percebendo que não poderia levar a mãe para casa, pois estava
muito debilitada e necessitava de cuidados médicos, e passou a considerar a
possível perda. As plantonistas acompanharam o processo de queda no quadro
clínico da mãe e fortalecimento emocional que Marta desenvolvia comparti-
lhando seus sentimentos e sendo acolhida em sua dor existencial diante da
perda próxima da mãe. Pelo amparo construído no testemunho de sua experi-
ência, Marta conseguiu se apropriar de sua situação, elaborando uma reorgani-
zação da sua vida quando a perda se concretizasse. No último encontro, Marta
aparentava exaustão e angústia, pois a mãe não passara bem à noite, perdendo
sinais vitais. Quando as plantonistas a interrogaram, ela não conseguia colocar
302 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.

em palavras toda sua dor. As plantonistas seguraram a sua mão, amparando-a


para que pudesse chorar. Ela agradeceu o apoio durante o difícil período de
perda da mãe. A morte desta ocorreu no final da tarde e um aspecto relevante
foi seu noticiamento: quando as plantonistas buscaram notícias da paciente
posteriormente, auxiliares de enfermagem referiram ironicamente o óbito,
dizendo entre risos que ela havia ‘ido para o céu’ e revelando também dificul-
dades em lidar com a morte em seu fazer. Percebe-se o despreparo de todos
para compreender a morte enquanto condição humana: se para pacientes e
familiares, a perda gera não aceitação e silêncio, para a equipe de saúde a
morte se distancia na figura de um anônimo que morre.
A perda no hospital pode ainda ser ilustrada pelo caso de Artur, jo-
vem de 22 anos que sofrera um acidente de carro, ficando em estado vegeta-
tivo. Ao conversar com a enfermeira responsável, foi possível entender a
gravidade de seu quadro clínico, que regredia a cada dia, sem perspectiva de
melhora. O primeiro desafio foi a comunicação com Artur, tentada por soli-
citações de resposta, de toques, gestos, apertos de mão e pelos movimentos
dos olhos. Raramente e com grande esforço Artur mostrava compreender que
falavam com ele, o que era importente para sua estimulação e sua mãe, Lia.
A intervenção permitiu o contato de Artur com outras pessoas, pois todos os
procedimentos realizados manipulavam seu corpo a partir de saberes técni-
cos, sem contato direto, como se Artur fosse um corpo sem vida. A possibi-
lidade de comunicação também provocou mudanças no olhar de Lia, que
vivenciava um grande sofrimento: desde o acidente de Artur, ela permanecia
direto no hospital, ao lado do leito.
O sofrimento vivido por Lia se revelava na atitude diante do adoe-
cimento: ela havia feito do quarto um santuário, com fotos do filho, imagens
de santos e um rádio, que ficava ligado o tempo todo na cabeceira do leito e
que ela justificava pelo filho sempre ter gostado de música. Diante disso,
algumas questões foram levantadas com Lia: se aquele era o tipo de música
de que Artur gostava, se ele estaria gostando de ouvir música o dia todo ou
podia estar cansado em alguns momentos. Dialogando com Lia, evidencia-
ram-se suas dificuldades em entrar em contato com Artur naquela situação,
utilizando o rádio ligado como modo de evitar sua angústia. Nos encontros,
Lia aos poucos se avizinha do processo que vivia ao lado do filho e atenta
para a perspectiva de reorganização de sua situação de vida frente ao adoe-
cer. Foi possível então sua participação no processo de comunicação com
Artur. Este foi difícil para Lia, que jamais o ensaiou diante das plantonistas,
dizendo que os médicos não lhe davam certeza de que Artur poderia enten-
dê-la. Assim, as plantonistas passaram a participar, durante o atendimento,
da rotina de cuidados que Lia dispensava a Artur, em gestos como erguer a
cama ou trazer objetos, como modo de mostrar que a amparavam. Percebeu-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

se a cada plantão uma mudança neste sentido: ela relatava ligar o rádio me-
nos vezes, pois conseguiu perceber que ele poderia se cansar de ouvir o tem-
po todo, assim como ela também se cansava, e que falar com Artur era bom,
mesmo sem ter certeza de que ele a ouvia, pois a esperança que lhe gerava
ajudava a suportar o ambiente impessoal que as vezes sentia no hospital.
Posteriormente, Lia passou a infantilizar Artur, tratando-o como
bebê e docilizando a voz, em expressões como: “O meu bebê passou bem esta
semana, não deu trabalho nenhum para a mamãe”. Lia exprimia a dificuldade
em encontrar um modo de contato com Artur, vivenciando sua fragilidade e a
necessidade de protegê-lo e ao mesmo tempo obliterando o contato com a
possibilidade da paralisia ou morte. As plantonistas interrogaram sobre o
modo como ela o tratava antes do acidente e Lia reconhece a diferença, permi-
tindo às plantonistas questionar o movimento de infantilização em sua nova
condição, tema retomado amiúde nos atendimentos. Conforme ela foi se apro-
priando da condição de ter um filho doente, por meio do amparo vivenciado no
acompanhamento constante recebido no plantão psicológico, Lia passou a
mudar esta sua atitude, voltando a cuidar do filho como adulto.
Neste momento, as plantonistas começaram a abordar a possível
morte de Artur, que se encontrava cada vez mais debilitado. A princípio Lia
mudava de assunto ou dispensava as plantonistas, evitando o tema da perda,
simultaneamente tão próxima. Num segundo momento, Lia ouvia, mas inter-
rompia a conversa pedindo para ajudá-la em suas atividades ou com cuida-
dos do filho. Deste modo, Lia sinalizava seu ritmo para construir a elabora-
ção da morte do filho no âmbito da fala e simultaneamente exprimia a neces-
sidade de amparo. Por mais evidente que fosse o sofrimento perante a morte
vagarosa do filho e a importância de sua expressão, Lia vivenciava também a
impotência de uma situação que não podia evitar. Assim, as plantonistas aos
poucos procuravam construir um canal de abertura para falar sobre este so-
frimento. Foi pela confiança criada nos gestos de cuidar, diretamente dispen-
sados a Lia e Artur e que não ocorriam nos procedimentos da equipe de saú-
de, que ela conseguiu falar, aos poucos, sobre a dificuldade de contatar a
morte, bem como sobre seu desgaste por estar ali todo tempo, sem descanso
ou pausa. Relatou sentir falta da vida em casa, de cuidar de suas coisas pes-
soais e especialmente do trabalho. A partir da abertura de Lia para si mesma,
passou-se a considerar seu modo de estar no hospital e as plantonistas ques-
tionaram se não havia outra pessoa que poderia ficar um dia no hospital em
seu lugar, o que Lia negava, afirmando que “todos tinham suas vidas” e não
poderiam ficar ali. Aos poucos associou essa impossibilidade ao seu medo de
não estar ao lado do filho quando ele morresse e de se sentir culpada por
isso. Assim, criou-se um espaço para falar da insegurança e das tentativas de
controle frente à imponderabilidade da morte e da vivência de desamparo
304 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.

que marcava suas experiências com o adoecer do filho, buscando relacionar


estas questões às possibilidades do cuidado de si e de sua saúde que Lia pre-
cisava também desenvolver. Foi então que Lia, em conversa com a família,
decidiu voltar para casa aos finais de semana, ficando sua filha ou seu mari-
do no seu lugar. Poucas semanas depois, Artur veio a óbito.

3 O PAPEL DA PSICOLOGIA: O PLANTÃO PSICOLÓGICO


COMO ATITUDE CLÍNICA

No contato com as demandas dos atores sociais, foi possível obser-


var que a centralidade das práticas hospitalares nos procedimentos técnicos
não favorecia a narrativa da experiência frente a situações de intenso desam-
paro. Pacientes e familiares traziam, nos relatos dirigidos à equipe de planto-
nistas, diversas questões relacionadas à condição de internação: a dificuldade
de compreender a situação de estar doente ou internado, saudades de casa,
relatos de problemas pessoais que percebiam como relacionados à situação
de adoecimento, medo da cirurgia, medo da morte, ansiedade, incerteza
frente ao tratamento.
Resgatando com Heidegger (1999) o sentido do existir humano, a
condição do encontrar-se nos revela em relação com o mundo, a partir da
compreensão, da disposição afetiva e da linguagem. Ao ser afetado pela an-
gústia, o dasein encontra-se com sua própria condição existencial de abertura
e poder-ser, cuja linguagem é o silêncio. Nas narrativas testemunhadas no
hospital geral, a angústia se apresentou amiúde como disposição afetiva rela-
cionada à condição de crise e desalojamento – rompimento com o habitar
cotidiano desvelado no adoecer e no contato com a finitude, desconstruindo
significações já constituídas na relação com o mundo. A escuta destes relatos
permitiu desdobrar possibilidades de significação do vivido, acompanhando
o modo como cada um foi afetado e a expressão da experiência, permitindo
um projetar-se para as possibilidades de ser. Testemunhar tais experiências,
interrogando pelo modo como cada um vem sendo em seu percurso existen-
cial, mostrou-se significativo e enriquecedor para pacientes e familiares, na
constituição de novas possibilidades de sentido a partir da situação angusti-
ante vivenciada pelo adoecer.
No decorrer da narrativa, o testemunho clínico acompanha os mo-
dos como cada um é afetado pelo mundo e a ele se refere na linguagem, cri-
ando novas expressões e compartilhamentos da experiência na dimensão do
ser-com. Nesse sentido, os relatos de atendimentos exemplificam maneiras e
estratégias para voltar-se ao outro, buscando acompanhar o modo como este
se mostrava ao lidar com a internação, permitindo simultaneamente a inves-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

tigação, a atuação e a intervenção clínica. Ações como dar as mãos e auxiliar


em pequenos cuidados para iniciar a construção de um espaço de expressão
de experiências silenciadas, desvelar possibilidades da autoimagem por meio
de estratégias como pintar as unhas e passar batom ou abrir possibilidades de
ocupação do tempo livre dentro do hospital expressaram o sustentar, junto ao
outro, a experiência do adoecer. Tais gestos permitiram a comunicação, tor-
nando a experiência comum em seu duplo sentido – próxima e compartilhá-
vel – quando os envolvidos ainda não se encontravam em condições de
abordar diretamente a crise e o sofrimento vividos. Construiu-se assim um
caminho para reconhecer a necessidade de refletir sobre o significado do
existir, do adoecer, da responsabilidade sobre si, mobilizando recursos pró-
prios de cada pessoa para seu processo de reestabelecimento.
Neste sentido, pode-se afirmar que o contexto do hospital geral im-
plica intervenções não apenas por meio da palavra, mas de diversos modos
da linguagem que permitam o favorecimento da ampla expressão e questio-
namento do sentido das experiências. É na dimensão da contínua construção
do estar com outros de maneira pertinente ao modo como cada se relaciona
com o mundo um que se faz a atenção psicológica, tanto no diálogo com a
equipe multidisciplinar quanto no atendimento a internos e familiares. A
atenção psicológica se apresenta como modalidade do cuidar que se dá na
dimensão da solicitude: a interrogação pela experiência permite desvelar as
vivências dos atores institucionais em aspectos como sua saúde, o cuidado
com a saúde de outros, tratamento, recuperação, mudanças ocorridas e per-
cebidas no processo de internação, as possibilidades de intervenção, a rela-
ção entre o adoecer e outros aspectos do existir.
Conhecer como a instituição modifica suas relações também foi im-
portante para a práxis psicológica, permitindo compreender como são geradas
essas relações e como afetam a situação institucional da equipe, dos pacientes
e das próprias plantonistas. A partir da cartogafia clínica, foram compreendi-
das as mudanças nos territórios existenciais, as questões trazidas à clínica psi-
cológica, os percursos para um diálogo com a equipe de saúde. É na apreensão
ampla das significações constituídas com o espaço e no espaço que se podem
promover transformações a partir das demandas trazidas pelos atores sociais.
Assim, o plantão psicológico levou também à alteração de alguns aspectos da
dinâmica do hospital, como a escolha do leito para o qual o paciente seria en-
caminhado. Igualmente, mudanças na rotina hospitalar, como a construção de
uma nova ala, implicaram uma constante reorganização do plantão psicológico
para favorecer a disponibilidade do atendimento da instituição e contemplar de
modo pertinente as tranformações na demanda.
A permanência do plantão psicológico ao longo de dois anos possi-
bilitou o contato contínuo com os atores institucionais e com as transforma-
306 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.

ções na instituição, permitindo a adaptação de estratégias interventivas, a


reorganização de horários de atendimento, o conhecimento dos diversos ser-
viços e o diálogo constante com outros profissionais, além de funcionar
como uma referência para o hospital. A partir daí, atuamos como interlocuto-
res entre os profissionais presentes na instituição. Nesta circunstância, coube
também aos plantonistas, a ampliação de recursos de comunicação que pro-
piciassem a melhoria do contato e do diálogo entre pacientes, acompanhantes
e equipe de saúde.
Na constante atenção aos movimentos institucionais, o plantão psi-
cológico mostrou-se pertinente por suas características próprias. Disponibili-
zando uma escuta clínica que se volta a todos que a demandarem, esta modali-
dade interventiva se mostra versátil para contemplar as diversas situações nas
quais as demandas psicológicas emergem, pois constrói a ação clínica no pró-
prio momento de sua aparição e no diálogo com quem a solicita. Assim, o aten-
dimento em plantão psicológico abrangeu desde a orientação direta, no trabalho
conjunto com outros profissionais para o esclarecimento de dúvidas em relação
ao tratamento, dietas ou tradução de termos técnicos numa linguagem compre-
ensível ao paciente, até a criação de espaços de escuta para a subjetividade em
meio a uma instituição orientada pela lógica do procedimento técnico, permi-
tindo a elaboração das vivências de desamparo presentes no próprio momento
em que o atendimento é realizado. Neste último sentido, é importante ressaltar
o aspecto de alguns atendimentos em que a intervenção psicológica se consti-
tuiu por meio de ações concretas, através do encaminhamento a profissoinais,
do acompanhamento de cuidados em saúde, do toque, que permitiram trans-
formar a situação vivida no próprio momento de seu acontecer. Esta interven-
ção na ação desvelou momentos em que a simples presença do plantonista no
compartilhamento das situações de adoecimento possibilitava, paulatinamente,
a construção de um espaço para abordar vivências e situações silenciadas.
Em muitas ocasiões, a simples escuta ou um único atendimento
permitiu uma elaboração das queixas trazidas. A utilização de diferentes
estratégias de compartilhamento das experiências foi contribuindo para o
reconhecimento da importância da ação psicológica na instituição. Nesta
conjuntura, o serviço foi se estabelecendo a partir do diálogo junto aos atores
institucionais e da aproximação dos profissionais em relação ao atendimento
realizado, de modo a criar uma institucionalidade para a proposta. No en-
tanto, em algumas situações, houve dificuldade dos plantonistas em lidar
com demandas da equipe de saúde para controlar ou prever o comportamento
ou um suposto estado de saúde mental ao qual o paciente deveria chegar.
Tais expectativas apontam para a hegemonia da lógica pautada na técnica,
que também se encontra frequentemente presente na formação em psicologia
e nas representações sociais sobre a profissão.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

4 UM ENCONTRO COM A FINITUDE HUMANA

O plantão psicológico no hospital geral implicou também um encon-


tro com a finitude da vida. O sofrimento de pacientes e familiares em estado
terminal apresentou diversas dimensões: grande dificuldade ou impossibilidade
de comunicação, mesmo quando o paciente permanece consciente, limitações
de movimentos e locomoção, dor física, o olhar e pesar de familiares e amigos,
além da imensurável dor existencial diante da possibilidade de morte. Foram
estes, sem dúvidas, os momentos mais angustiantes da atuação no contexto
hospitalar. Como aponta Heidegger (1999), o encontro com a finitude joga o
dasein na situação de desalojamento: além da perspectiva de perda dos vínculos
e relações de sentido que constituíram até então a experiência, a morte traz à
tona o desconhecido, aquilo que não pode ser controlado pela razão.
Em seu sentido negativo, a morte é tomada de modo vago, conside-
rada como término físico da vida. No entanto, o dasein pode também reconhe-
cer seu ser-para-a-morte, considerando que a morte é um fenômeno que se
manifesta na própria existência humana. Nesta perspectiva, a morte faz parte
da condição existencial do homem, não sendo uma possibilidade distante, mas
constantemente presente no existir (Heidegger, 1999). Estando sempre frente
às nossas possibilidades de ser, vivemos a experiência da incompletude, pois
colocamos sempre em jogo nosso vir a ser. Encerrando as possibilidades de
ser, a morte consiste na possibilidade última do dasein: nossa existência ape-
nas se completa com a morte, levando-nos a alcançar nossa possível integrida-
de. A morte se faz presente não apenas na perspectiva do deixar de ser, mas na
convivência com outros que morrem: a experiência com a morte daqueles com
quem compartilhamos o existir nos remete à nossa própria morte. Aquele que
morre se torna presente em sua ausência – permanecemos com ele em nosso
ser-com, tornando a morte individual uma experiência coletiva. Nesta direção,
o incômodo ante a morte de alguém advém do fato de que experimentarmos a
morte indiretamente no outro que morre, revelando-nos a angústia, a abertura e
incompletude originária que somos, num mundo que nos gera estranhamento e
no qual nascemos como estrangeiros.
Numa sociedade em que os processos racionais passaram a organizar
as relações, a morte ganha uma feição de clandestinidade, vista como um tabu,
sendo mesmo reconhecida como sinônimo de fracasso. Nas experiências de
atendimento no hospital, evidenciou-se o despreparo para lidar com a morte,
vivida a partir do desespero – da recusa de todas as possibilidades de ser – ou
do silêncio, da recusa em apropriar-se da finitude em curso que aparece de uma
forma muito perceptível no adoecer, tornando a vivência da morte muito dolo-
rosa. A morte é então vivida como tema a evitar, sendo frequente o atendimento
de acompanhantes, familiares e pacientes completamente fragilizados pela pos-
308 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.

sibilidade ou a realidade da morte. Impregnado pela visão mecanicista e carte-


siana, o contexto hospitalar vive a contradição entre a crença de que a técnica e
a ciência poderiam prever e controlar todos os males, e a impossibilidade de
ação diante da morte. Quase não se fala diretamente sobre a morte, apenas
compreende-se esta situação através de olhares e relatos da condição de saúde
do paciente, tanto por acompanhantes quanto por profissionais de saúde.
Entre a equipe de saúde, percebe-se diante disso um movimento de
afastamento dos afetos relacionados à morte, associado a momentos de ansie-
dade no trato com os pacientes. A negação da morte pode ser percebida em sua
denominação como óbito, muitas vezes relatado de maneira meramente formal
ou percebido como incapacidade da equipe para combatê-la. Nesse sentido, a
pressuposição de que seria possível controlar a morte torna-se um modo de
lidar com a própria finitude da vida. Frente às dificuldades no trato com a
morte, a ação psicológica visa sustentar a angústia junto aos atores sociais,
permitindo uma abertura para sua expressão pelo acompanhar dos afetos de
cada envolvido. Importa ao psicólogo o sentido dado por aquele que está do-
ente, bem como por seus familiares, à doença, à vida e à possibilidade do mor-
rer. A partir da escuta e da ampliação de possibilidades para o modo como
cada um significa a morte, tona-se possível lidar com a sua constante presença
no ambiente hospitalar. Neste sentido, há necessidade não apenas de atendi-
mento psicológico de pacientes e familiares, mas de diálogo com os profissio-
nais de saúde, visando refletir sobre esta condição da existência e do trabalho
no cuidado em saúde. Resgata-se neste contato com a equipe a diferença entre
o trato das ciências naturais frente aos fenômenos – a busca de relações de
causa e efeito na construção de modelos explicativos – e a perspectiva das
ciências humanas – a reconstrução do nexo da totalidade de relações de senti-
do a partir da qual um fenômeno se apresenta. Dilthey (2012) diferencia esses
modos de conhecimento como explicar, ação das ciências naturais, e compre-
ender, dimensão das ciências humanas. Esta distinção permite dar lugar ao
âmbito do sentido: explicar a morte, ação possível para a equipe de saúde, não
é o mesmo que compreendê-la, ou seja, resgatar seu sentido no contexto de
significações e relações em que ela ocorreu.

5 A DIMENSÃO ÉTICO POLÍCIA DO PLANTÃO


PSICOLÓGICO: SAÚDE E CENÁRIO SOCIAL

Um aspecto de grande significância da atuação psicológica na ins-


tituição hospitalar foi o desenvolvimento de práticas no sentido da promoção
da saúde, favorecendo o cuidado de si e a valorização de ações de saúde que
passam a ter sentido no cotidiano, tornando possível uma atuação transfor-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

madora, em que o desenvolvimento da autonomia dos atores socais, pelo


resgate de seu papel enquanto coautores de sua história, torna-os sujeitos da
própria saúde. Neste sentido, a atuação psicológica, trabalhando no resgate
da significação que cada um atribui à experiência do adoecer e das possibili-
dades de exploração dos recursos disponíveis para o encaminhamento de si,
permite contribuições para a promoção da saúde.
Uma importante dimensão do resgate da autonomia foi a possibilida-
de de sustentação da experiência junto ao outro. Nesta direção, cabe resgatar o
sentido da atenção psicológica, considerada como a “atitude de permanecer
com”, que possibilita o compreender. A ação fundamental da práxis psicológica
neste contexto é atenção à dinâmica de acontecimentos que se desenrolam a
cada momento no contato com o espaço institucional: a expressão dos afetos, o
movimento de cada um frente a si mesmo e ao outro, as relações estabelecidas
com o plantonista, com a equipe, com os familiares, com a hospitalização. A
intervenção se pauta na atitude clínica de solicitude frente ao outro, em que
cada fala, movimento, expressão ou pedido é compreendido a partir da escuta
daquilo que emerge como questão e do encaminhamento de si que cada um
expressa. Nesse sentido, podemos dizer que o lugar do plantão não é um espaço
prévio, mas o próprio plantonista, promovendo a escuta da subjetividade no
contexto público. Este espaço clínico criado no contexto hospitalar legitima
publicamente os sofrimentos e vivências perante o adoecer, na contramão da
consideração exclusiva do corpo no cuidado em saúde. Assim, assegurando a
privatividade da experiência subjetiva, permite emergir dificuldades e sofri-
mentos que dizem respeito às condições institucionais e às políticas de saúde,
usualmente individualizados, o que deslegitima sua dimensão pública.
Neste sentido, o plantão psicológico abriu um espaço para a circu-
lação e questionamento dos processos de saúde e doença, colocando em cena
a dimensão usualmente negada na concepção tradicional de saúde: a experi-
ência de cada um com o adoecer e o corpo para além do âmbito exclusiva-
mente biológico. Contribuiu, assim, para desconstruir a visão tradicional
centralizada no corpo físico em favor de uma compreensão transdisciplinar
dos processos de saúde e doença. Este questionamento permitiu revisitar as
referências e discursos instituídos por meio da circulação dos discursos ne-
gados, no relato das experiências de pofissionais sobre as dificuldades insti-
tucionais, no relato de pacientes sobre aspectos do adoecer não considerados
pela equipe de saúde, no relato de familiares sobre os problemas de acesso
aos serviços de saúde, entre outros. Nessa direção, a escuta ampla dos atores
sociais, legitimando a palavra de cada um, atua no sentido da superação afetiva
das dicotomias entre corpo, experiência subjetiva e cenário político-social.
As novas possibilidades de abordar as questões de saúde na práxis
psicológica levaram à criação de espaços institucionais e de momentos peda-
310 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.

gógicos para a transformação dos sujeitos sociais no cenário dos serviços de


saúde, atingindo a todos que compõem o ambiente hospitalar, servidores e
usuários. Para tanto, foi de suma importância que a atuação psicológica consi-
derasse a cartografia constantemente na instituição, visando recompor e atuali-
zar os elementos das práticas de saúde, bem como os seus objetos, os meios de
trabalho, as atividades realizadas, os objetivos do psicólogo na instituição e
também para que, a partir dessa experiência democrática, sejam instauradas
novas relações técnicas e sociais. Neste sentido, uma importante experiência
no processo de formação em psicologia foram as intervenções pautadas no
atendimento único, que rompem com a visão tradicional do atendimento psi-
cológico e muitas vezes se apresentam desafiadoras do ponto de vista pessoal,
com uma presença e uma consciência atenta na relação terapêutica.
O papel do psicólogo no hospital teve como objetivo principal,
portanto, a atenção ao sofrimento e aos modos de cuidado de si no adoecer
no contexto de hospitalização, pois a saúde é um fenômeno no qual todas as
dimensões da existência – físicas, psíquicas, sociais etc. – se entrelaçam. É
notório que muitas patologias orgânicas têm seu quadro clínico agravado por
questões emocionais, bem como as condições emocionais podem influenciar
em problemas orgânicos. Assim, a saúde deve ser considerada de forma
multidisciplinar no contexto hospitalar, com a participação de médicos, psi-
cólogos, enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas, entre outros profissionais.

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312 Tatiana B. M. B., Bruna L. F., Marilia H. T. e Franciane S. D.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

ADOLESCENTES, INFRAÇÕES E A
PRÁTICA PSICOLÓGICA NA
JUSTIÇA JUVENIL
Sáshenka Meza Mosqueira1
Henriette Tognetti Penha Morato

Sumário: 1. Pontos de Partida. 2. Lugares de Encontro do Psicólogo


com Adolescentes em Conflito Com a Lei2. 3. Os Adolescentes
em Conflito com a Lei no Brasil e em São Paulo. 4. Companhia
à Procura de Sentido... 5. Considerações... Finais?. 6. Refe-
rências.1 Pontos de Partida

Ariès (1973), em seu estudo referência sobre a infância e a adoles-


cência, apresenta a concepção de que essas categorias constituem-se constru-
ções sociais e históricas. A representação da adolescência como fase inter-
mediária entre a infância e a vida adulta é fenômeno contemporâneo à emer-
gência e à consolidação da sociedade moderna em fins do século XVIII, no
mundo ocidental. Conforme apontam historiadores e sociólogos o surgi-
mento da adolescência como acontecimento a ser investigado por diversos
saberes – médico, psicológico, religioso, pedagógico, jurídico, policial – é
desencadeado por complexos processos de mudança social. Mudanças que
incidiram na estrutura da família, na esfera educacional, no âmbito do traba-
lho e produção, nas relações sociais entre pares e diferentes, transformando
rapidamente a organização econômica, política e social.
É nesse contexto de acelerada transformação que a adolescência
passa a ser percebida como problema e, enquanto tal, fonte de preocupa-
ções e inquietações sociais. O adolescente adquire maior autonomia, espe-
cialmente nas grandes metrópoles industriais, o que lhe confere certa inde-
pendência quanto a suas escolhas – profissional, vestuário, consumo, lazer,
iniciação de atividade sexual, grupos de identificação – porém, esta mesma

1
Este capítulo apresenta conteúdos do mestrado desta autora (Mosqueira, 2008) articulados
à elaboração de estudos realizados em pesquisa de doutorado em andamento.
2
Será apresentada aqui a realidade de São Paulo Capital, lugar de residência e pesquisa da
autora.
314 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato

autonomia passa a ser vista como fonte de riscos. Entre os riscos contem-
porâneos mais temidos está o envolvimento com o mundo do crime e da
violência.
De acordo com Adorno, Bordini e Lima (1999) a compreensão da
adolescência como problema é contemporânea da associação entre juventude
e delinquência. Desde o início do século XX, nos Estados Unidos, surgem
teorias sociológicas que concebem a delinquência juvenil como resultado de
um contexto social em que falta autocontrole e controle social, especialmente
aquele que deveria ser exercido pelos pais e educadores. Eram também con-
sideradas as precárias condições de vida social, a pobreza de oportunidades
de inserção social dos jovens e, principalmente, a baixa oferta de lazer e
ocupação do tempo livre de forma considerada socialmente construtiva. As-
sim, atribuía-se a essa condição a razão de adolescentes imersos na pobreza e
privados de viver sob adequadas condições sociais de existência, associa-
vam-se a quadrilhas e bandos que, comumente, cometiam crimes. Social-
mente percebidas como fonte de inesgotáveis conflitos entre os jovens e suas
comunidades, essas formas de associação pareciam estar na origem da esca-
lada da criminalidade violenta.
No Brasil, diversos estudos sociológicos, econômicos, psicológicos
e de saúde pública (Adorno; Bordini & Lima, 1999; Amin et al., 2010;
Coimbra & Nascimento, 2005; Oliveira & Assis, 1999; Trassi, 2006) consi-
deram que a desigualdade econômica e social brasileira, além de dificultar o
pleno crescimento e desenvolvimento de milhões de adolescentes, coloca-os
em circunstâncias em que, aprisionados a comunidades em que impera o
descaso do Estado, veem no ingresso na criminalidade possibilidades de
manutenção, crescimento e autoafirmação. No geral, residentes em comuni-
dades periféricas nas grandes cidades, em moradias inadequadas, com seve-
ras restrições ao consumo de bens e serviços, falta de qualidade no ensino,
relações familiares e interpessoais fragilizadas e violência em todas as esfe-
ras de convivência são as condições cotidianas da experiência da maioria dos
jovens que chegam ao sistema de justiça juvenil.
Paralelamente às análises supracitadas debruçadas nos fatores so-
ciais ou ambientais, encontra-se também a corrente de compreensão bioló-
gico-psicológica que estuda fatores internos e individuais como aspectos
que podem estar relacionados com o envolvimento com a criminalidade.
Diferentes estudos buscam medir e identificar a estrutura da personalidade,
os níveis cognitivos, a flexibilidade mental, o funcionamento cerebral ade-
quado ou desviante e os diferentes diagnósticos psicopatológicos de quem
comete infrações ou crimes graves (Bordin & Offord, 2000; Jozef et al.,
2000; Morana; Stone & Abdalla, 2006; Morana, 2003; Pino & Werlang,
2008; Schmitt et al., 2006).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Independente de quais forem as diversas razões que levam um ado-


lescente, ou um adulto, a cometer alguma infração, deve-se considerar que não
é possível definir com exatidão fatores determinantes da conduta infracional ou
identificar fatores etiológicos de uma determinada psicopatologia e/ou transtor-
no de personalidade associadas ao comportamento delinquente. O certo é que
há algumas décadas fala-se sobre os adolescentes em conflito com a lei sob
olhares, via de regra, parciais que acentuam a preocupação e dificuldade em
diferenciar o mito, muitas vezes criado pelo pânico social, da realidade que se
perde de vista diante da exacerbação ou da minimização do que é real. Embora
se saiba que a produção de saber nunca é completamente imparcial, livre de
interpretações pessoais e ideológicas, sabe-se também que a produção científica
a serviço de qualquer ideologia pode ser senão inócua, perigosa.
Não obstante a expectativa criada em relação à produção de conhe-
cimento e da avaliação psicológica no meio jurídico seja a de proporcionar
dados e subsídios precisos a partir de teorias e técnicas que examinam o ser
adolescente infrator quanto a seus diagnósticos, prognósticos e tratamentos para
definir sentenças e encaminhamentos, os dados estatísticos sobre esta popula-
ção, assim como os fatores de risco a ela associados serão abordados, neste
trabalho, sob referencial fenomenológico existencial. Nesta perspectiva procuro
aproximação de dados de realidade da adolescência em conflito com a lei com
o intuito de ver o que se desvela a partir da interlocução entre o que se escreve
sobre os adolescentes e sobre o que um deles diz de sua experiência conside-
rando que,

Se mesmo as coisas apreendidas como simplesmente subsistentes depen-


dem do ser-junto-a da existência para se desvelar desse modo, então sua
verdade, isto é, o seu modo de ser desveladas, não jaz em nenhuma su-
posta qüididade, indiferente ao modo como o homem se coloca ao lado
delas como desvelador. A verdade dos entes, seu modo de aparecer, é
correlativa ao “olhar pré-compreensivo” com o qual o ser-aí humano
lhes co-responde. (Sá, 2010, p. xvi, grifo nosso)

Essa compreensão de verdade do pensamento fenomenológico


existencial se oferece como possibilidade de trânsito entre vias de conheci-
mento do ser-homem herdados da metafísica, origem da ciência e técnica
modernas, e outras possibilidades de compreensão do que se aponta como
fator de risco de infração no existir adolescente.
A proposta deste trabalho traz em sua base o que Patto (2010)
aponta como “compreender incompreendidos”. Bourdieu (1997 apud Patto,
2010) alerta e convoca para o cuidado com o risco da má escuta e interpreta-
ção do pesquisador que, em função de construir conhecimento com resulta-
316 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato

dos neutros, nos moldes positivistas, não sai de uma postura cientificista que
o impede de ver, ouvir e compreender quem com ele fala e o contexto de
relações sociais e de poder em que ambos se inserem. A autora citada recorre
também a Chauí (1980 apud Patto, 2010) que se refere à “escuta fina” que a
ambiguidade da fala dos depoentes, por ela chamados de “dominados”, re-
quer. Poderíamos estender esta reflexão para pensar sob essa lente não ape-
nas a fala do nosso depoente, mas também os dados com os quais buscamos
estabelecer interlocução, pois eles expressam um modo de olhar para esses
jovens, e para seus modos de ser-no-mundo; modo este revelador do pensa-
mento que acompanha o juízo que se faz deles. Na compreensão de Chauí é
sobre o intérprete, no caso o pesquisador, que recai o peso da ideologia que
cega um olhar crítico e reflexivo da realidade pesquisada. No entanto, pode-
ríamos, também, indagar: e a ação do psicólogo, que avalia os adolescentes
como meio de gerar subsídios para decisões judiciais, não se torna também
ideológica e até burocrática? E a dos operadores do Direito no âmbito da
Justiça Juvenil? O padrão do pensamento ideológico é aquele que somente
vê e ouve o que “sabe” que verá e ouvirá, furtando-se de dar luz ao que de
inédito se revela ainda que sob aspecto familiar.
A categoria fator de risco se refere marcadamente a uma construção
técnica do arcabouço científico da saúde, da medicina e da psicopatologia;
porém, procuro aproximar-me dessa leitura do mundo de parte significativa da
população adolescente na procura de estabelecer interlocução com a narrativa
de um jovem a fim de perseguir compreensão do fenômeno infracional e seu
contexto como passo imprescindível de quem se propõe a refletir a intervenção
nessa área. Barreto (2010, pp. 43-44), citando Heidegger (2001), aponta para
esta possibilidade de trânsito na investigação do ser-homem:

Por sua vez, a condição humana proveniente do modo de pensar heide-


ggeriano levanta questionamentos sobre o mostrar-se do ser-homem e o
acesso que este exige a partir de sua singularidade, denunciando a insu-
ficiência do conhecimento científico-natural para compreender o ser-
homem específico. O ser exige uma identificação própria, o que não si-
gnifica abandonar a ciência, mas “chegar a uma ação refletida, conhe-
cedora com a ciência e verdadeiramente meditar sobre seus limites”.

O pensamento fenomenológico existencial, amplamente desenvol-


vido por Heidegger (1889-1976), principalmente em Ser e Tempo (1927),
propõe uma ontologia fundamental que apresenta uma compreensão de ser e
verdade que confronta a ontologia metafísica, constituída e constituinte da
ciência e técnica modernas. Desta forma, a interpretação fenomenológica não
pretende nada mais do que mostrar o que é óbvio: uma perspectiva é apenas
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

uma perspectiva, a despeito do que a longa tradição metafísica insiste em


validar (Critelli, 1996/2006). Ainda, “[...] enquanto a metafísica instaura a
possibilidade de conhecimento sobre a segurança da precisão metodológica
do conceito, a fenomenologia o instaura sobre a angústia. [...] Enquanto a
metafísica fala de forma lógica do ser, a fenomenologia fala dos modos in-
findáveis de ser”, afirma Critelli (1996/2006, pp. 15-16, grifo do autor).
Certamente, o que se pretende com esta proposta de interlocução não
é a superação, mas a desconstrução do que se apresenta, nas teorias e técnicas
das Psicologias, como construções redutoras do ser do homem a simples rela-
ções de causalidade (Loparic, 1994). Desta forma, o estudo e aprofundamento
na filosofia fenomenológica existencial, ou analítica do dasein, aspiram à pos-
sibilidade de um trânsito desembaraçado do pensamento positivista, fortemente
enraizado e por isso pouco percebido, a uma compreensão e análise que con-
temple o contínuo realizar-se do ser-aí no mundo. Ainda a este respeito:

Não se trata, portanto, nem de adquirir um conhecimento sistemático a


ser aplicado, nem de incrementar nossa capacidade de reflexão, mas de
enveredar por caminhos de pensamento que nos podem, talvez, conduzir
a novos ângulos e a novas possibilidades de experiência. Na verdade
trata-se, sobretudo, de deixar-se conduzir por ela em diversas e nada
previsíveis direções. Insisto na palavra talvez: há uma quota de incerteza
em toda experiência (...) Não há nada de antemão assegurado. Creio que
esta forma de encontro com o pensamento heideggeriano (...) é não só a
mais prudente, como a que mais faz justiça ao que Heidegger tentava nos
dizer. (Figueiredo, 1994, p. 44, grifos do autor)

Neste sentido, como pensar a articulação dos conhecimentos já exis-


tentes na área da saúde (Psicologia, Psiquiatria, Psicopatologia) na busca de
melhor compreender o adolescente que se atende e avalia? Como lançar olhar
para representações sobre o que é saudável o que oferece risco de forma a iden-
tificar limites e também possibilidades para pensar a intervenção junto à reali-
dade de adolescentes e jovens “em conflito com a lei”? Como não ficarmos
também em conflito ao indagar sobre nossa responsabilidade na organização
social que inclui estes adolescentes e jovens adultos pela exclusão?
Aos psicólogos que atuam diretamente com estes adolescentes e jo-
vens essas interrogantes falam ainda mais alto. A presença do psicólogo, tanto
em âmbito forense, junto às Varas Especiais da Infância e Juventude (VEIJ) e
ao Departamento de Execuções da Infância e Juventude (DEIJ) dos Tribunais
de Justiça de São Paulo e Pernambuco, como nas unidades de privação e res-
trição de liberdade da Fundação CASA/SP e Fundação de Atendimento Socio-
educativo de Pernambuco (FUNASE/PE), cumpre funções específicas. Fun-
ções definidas formalmente dentro da regulamentação da proteção integral que
318 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato

deve viger no atendimento socioeducativo do adolescente; porém, é também


condicionada de acordo com a dinâmica e necessidade dessas instituições.
Assim, a atuação do profissional de Psicologia atende a demandas que se esta-
belecem de acordo com a estrutura de controle, normalização, ordenamento e
vigilância próprios da instituição jurídica e de aprisionamento.
A proposta deste capítulo é oferecer subsídios para pensar em in-
tervenções e encaminhamentos contextualizados e em consequência com-
promissados ética e politicamente. Aspira-se a colocar em discussão ele-
mentos que, embora óbvios, consideram-se de maneira restrita na atuação
dos profissionais que atendem a esta população no recorte proposto. Ou,
quando levados em conta os fatores de risco assumem ainda o lugar de con-
dições determinantes do que na perspectiva do Código de Menores3 (1979)
se reconhecia e tratava como “situação irregular” que, claramente, tendia a
definir uma “infância perigosa”. A promulgação da Lei 8.069/90, o Estatuto
da Criança e do Adolescente, composta por 267 artigos, é o resultado de um
movimento da sociedade na década de 1980 que buscava provocar uma mu-
dança de paradigma quanto ao tratamento da infância e juventude. No en-
tanto, a letra da lei, ainda que com 22 anos de história, ainda mantém-se
distante do que acontece na prática, tanto no que concerne às medidas de
proteção quanto às socioeducativas da Parte Especial que regulamenta a as-
sistência e a contenção. A presença ainda marcante da lógica punitiva e retri-
butiva age determinando fluxos e modos de proceder restritos dos profissio-
nais das diversas áreas envolvidas (assistência social, psicologia, educação,
direito), pois seu encontro se dá em um campo de forças que, por vezes, não
convergem na construção de projeto que atenda aos princípios de responsa-
bilização e de garantia de direitos como o ECA dispõe.

2 LUGARES DE ENCONTRO DO PSICÓLOGO COM


ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI4

O encontro do psicólogo com o adolescente que infracionou pode


acontecer, em um primeiro momento, em São Paulo Capital, no Centro de
Acolhimento Inicial5 (CAI) da Fundação CASA. Imediatamente após a apre-

3
O Código de Menores de 1979 foi uma revisão do Código Mello Matos de 1929, porém
pouco mudava sua abordagem repressiva e arbitrária para a infância e juventude pobre.
4
Será apresentada aqui a realidade de São Paulo Capital, lugar de residência e pesquisa da
autora.
5
Antiga Unidade de Atendimento Inicial (UAI) da Fundação CASA. Estas informações
foram colhidas em depoimentos de profissionais que trabalham diretamente com este pú-
blico nesta fase do percurso socioeducativo (psicólogos, promotores, defensores, juízes).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

ensão, em caso de flagrante, é de lavrado o Boletim de Ocorrência na dele-


gacia, e caso o ato infracional seja grave, ou, ainda, quando o adolescente é
preso por mandado de busca e apreensão encaminha-se o jovem para o CAI.
Os adolescentes chegam ao CAI diante da impossibilidade de serem apre-
sentados imediatamente ao Ministério Público. São atendidos por analistas
técnicos, um psicólogo ou um assistente social, que fazem um registro inicial
dos dados pessoais e familiares do adolescente com a finalidade de se produ-
zir uma “impressão técnica” que apresentará o adolescente aos promotores
que o ouvirão no prazo máximo de 24 horas ou no primeiro dia útil após sua
apreensão6. Durante a oitiva informal7 junto ao Ministério Público (MP) se
define se o adolescente será representado8 pelo promotor ou não, e neste
momento a “impressão técnica” do CAI da Fundação CASA já cumpre o
papel de oferecer informações importantes sobre o adolescente e o contexto
pessoal e familiar do momento em que foi apreendido.
O adolescente será invariavelmente atendido pelo psicólogo da
equipe técnica das Unidades de Internação Provisória (UIP) na F. CASA
caso, após passagem por oitiva informal do MP, for solicitado pelo promotor
e determinado pelo juiz, a internação provisória do adolescente até ser apu-
rado o ato infracional pelo qual está sendo representado. Via de regra, trata-
se de adolescentes apreendidos em flagrante cometendo ato infracional de
maior potencial ofensivo, isto é, ameaçando ou ferindo gravemente a tercei-
ros, ou adolescentes com histórico de reiteração de infrações ou descumpri-
mento de outras medidas socioeducativas em meio aberto. A permanência na
UIP não deve ultrapassar os 45 dias9.

De acordo com o regimento interno da F. CASA este tipo de atendimento inicial é realiza-
do em caráter excepcional e atendendo ao disposto no art. 175 do ECA.
6
Arts. 171, 172, 173 e 175, § 1º do ECA.
7
Procedimento realizado pelo promotor em que o adolescente é interrogado sobre o ato
infracional que lhe é atribuído. É lavrado um documento com as respostas do adolescente
e com a sugestão do promotor quanto ao caso que será juntado aos autos do processo para
posterior decisão judicial.
8
O termo “representação” nesta circunstância é usado para referir o fato do promotor, como
representante do MP, decidir solicitar que o processo prossiga para apuração do ato infracio-
nal e posterior decisão de aplicação de medida socioeducativa. Durante a oitiva informal tam-
bém é possível que o promotor sugira apenas uma advertência ou, ainda, uma remissão que
equivale a um perdão judicial e o encerramento do processo sem necessidade de apuração do
ato ou aplicação de medida. Isto ocorre apenas em casos em que os adolescentes estão envol-
vidos em situações leves, por exemplo, uma briga de escola sem maiores consequências.
9
Embora o art. 183 do ECA seja muito claro quanto a este prazo ser improrrogável há
relatos de profissionais que dizem de casos excepcionais em que houve determinação ju-
dicial para permanência de mais 45 dias em internação provisória. Ainda, cabe fazer
constar que todos os procedimentos definidos devem ser comunicados à família e respon-
sáveis para o devido acompanhamento de acordo com o art. 184.
320 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato

As Varas Especiais da Infância e Juventude (VEIJ) julgam as re-


presentações apresentadas pelo Ministério Público de adolescentes envolvi-
dos em atos infracionais. Os juízes das VEIJ ouvem as partes (promotoria e
defensoria) e a partir da apuração do ato infracional e da produção de provas
que confirmem ou descartem a autoria da infração, julgam e decidem, caso
haja necessidade, a medida socioeducativa a ser aplicada. A este primeiro
momento do processo denomina-se de Fase de Conhecimento.
As medidas socioeducativas que podem ser aplicadas, conforme dis-
posto no ECA10, são: advertência, obrigação de reparar dano, prestação de
serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação, poden-
do em alguns casos o juiz determinar combinação de medidas. Aplicada a
medida socioeducativa pelos juízes da fase do conhecimento, encerra-se este
momento e o processo passa a correr no DEIJ. De acordo com a Lei 12.59411,
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) e o ECA, o
cumprimento da advertência e da reparação de danos, quando aplicadas isola-
damente, além das medidas de proteção que possam também ser determinadas
serão executadas nos autos do processo de conhecimento12.
A execução das medidas Prestação de Serviços à Comunidade, Li-
berdade Assistida, Semiliberdade e Internação são acompanhadas e fiscali-
zadas pelos juízes do Departamento de Execuções da Infância e Juventude
(DEIJ). O DEIJ recebe periodicamente avaliações das equipes multiprofissi-
onais (psicólogos, assistentes sociais, pedagogos) das entidades de atendi-
mento que executam a medida socioeducativa aplicada judicialmente e, a
partir delas, julgam a permanência, a substituição ou a extinção da medida.
Segundo o SINASE13, compete ao Estado, entre outras atribuições, formular,
instituir, coordenar e manter Sistema Estadual de Atendimento Socioeduca-
tivo, além de criar, desenvolver e manter programas para a execução das
medidas de internação e semiliberdade. No caso de São Paulo a entidade
responsável pela execução das medidas restrição ou privação de liberdade é a
Fundação CASA e em Recife a FUNASE. A implementação de programas
de execução de medidas em meio aberto é competência dos municípios em
articulação com equipamentos públicos de saúde e educação, além de esta-
belecer parcerias com organizações não governamentais.
A medida socioeducativa privativa de liberdade, conforme aponta o
art. 121 do ECA, deve ser aplicada somente em casos excepcionais e deve durar
o menor tempo possível. Esta medida não tem prazo determinado de duração

10
Conforme disposto nos arts. 115, 116, 117, 118, 120, 121 e 122 do ECA.
11
Lei promulgada em janeiro de 2012, em vigor desde abril.
12
Art. 38 do ECA.
13
Art. 4º, incs. I e III.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

não podendo exceder o prazo máximo de 3 anos. A permanência do jovem no


cumprimento desta medida deve ser avaliada em prazo não superior a seis me-
ses após seu ingresso na entidade. Esta avaliação é realizada pelos setores pe-
dagógico e técnico das Unidades de Internação (UI’s) sendo que o relatório
psicológico cumpre papel de destaque exercendo significativa influência nas
sugestões das partes (defesa e promotoria) e nas decisões judiciais, por ser con-
siderado subsídio técnico de fundamental importância. O psicólogo das unida-
des de internação produz seus relatórios informando o juiz quanto à evolução
do adolescente e o faz a partir de seus atendimentos que, no geral, ocorrem a
cada 15 dias durante o tempo do cumprimento da medida. Deste modo, geral-
mente os primeiros relatórios chamados de “relatório de acompanhamento”
descrevem: o modo como o adolescente chega à unidade e a fase de adaptação
à rotina institucional; a evolução do Plano Individual de Atendimento (PIA)
que fora elaborado para ele, e junto com ele, logo após a internação14; o modo
como ele se refere ao ato infracional cometido; e, o envolvimento da família no
acompanhamento do adolescente. Já no relatório chamado de “conclusivo” a
equipe técnica sugere a substituição da medida de internação por outra menos
gravosa e devem justificar essa solicitação apontando uma evolução consistente
do jovem dentro do programa. Na parte psicológica é destacado pelos juízes um
aspecto denominado de “criticidade” que se refere ao modo como o adolescente
avalia seu envolvimento com o meio infracional. O psicólogo deve informar
como, e se, o adolescente incorporou valores condizentes a uma boa convivên-
cia em sociedade e se este conta com o apoio da família no acompanhamento
de seu egresso e inserção nos encaminhamentos que se fizerem necessários.
A Equipe Técnica do Juízo (ETJ) pode ser convocada pelos juízes, às
vezes seguindo sugestão das partes, tanto na fase do Conhecimento quanto na
fase de Execução, porém a realidade de São Paulo diz de uma maioria maciça
de determinações de avaliação pelo juízes do DEIJ. Esta determinação ocorre,
também na maior parte dos casos, logo após a apresentação de relatórios con-
clusivos das equipes técnicas das unidades. Isto é, a ETJ é chamada a avaliar o
jovem que está aguardando a decisão judicial após avaliação apresentada pela
Equipe Técnica da UI. Considerando o número de processos que tramitam no
DEIJ trata-se de uma minoria de adolescentes que recebem esta indicação de
avaliação15, porém esta restrição se deve à ETJ atuar com equipe reduzida, pois

14
O capítulo IV do SINASE em seus arts. 52 a 59 estabelece que o PIA deve ser elaborado
pela equipe técnica da UI, o adolescente e sua família ou responsáveis. O prazo para ela-
boração do PIA no caso de internação é de 45 dias após o ingresso do jovem na unidade,
já para as medidas em meio aberto esse prazo é de 15 dias. A autoridade judiciária deve se
pronunciar sobre o PIA em até 3 dias após o recebimento deste.
15
Dados sobre o número de processos de adolescentes atendidos pelo DEIJ e dos casos
atendidos pela ETJ do Fórum do Brás foram solicitados à Corregedoria do DEIJ e à chefia
322 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato

a real demanda dos juízes seria muito maior caso houvesse possibilidades de
avaliação de maior número de adolescentes.
Os critérios que os operadores do Direito utilizam para sugerir, no
caso das partes, e determinar, no caso dos juízes, esta avaliação podem girar
em torno de aspectos diretamente relacionados ao adolescente ou à crítica que
se faz do trabalho realizado pela instituição executora da medida. Sobre o
adolescente considera-se: seu histórico anterior e durante a internação; a gravi-
dade do ato infracional cometido; a reiteração de atos infracionais e/ou des-
cumprimento de outras medidas socioeducativas; dúvidas quanto ao respaldo
que a família pode oferecer; sinais de ausência de “criticidade” e, em conse-
quência, uma suspeita de tratar-se um caso de desvio ou transtorno de perso-
nalidade, ou psicológico, que precise de outros encaminhamentos não aponta-
dos pela Equipe Técnica da UI. Quanto às críticas ao trabalho desenvolvido
das unidades de internação, na maior parte das vezes, referem-se a dúvidas
quanto: ao jovem ter tido condições de cumprir os objetivos propostos no PIA;
e, à sugestão de substituição de medida dever-se de fato à compreensão técnica
do adolescente estar apto a sair em liberdade ou dever-se a necessidades da UI
quanto ao número de internos e/ou dificuldades de lidar com o adolescente.
A avaliação com a ETJ ocorre, no geral, após algumas semanas da
determinação judicial e é realizada em uma entrevista com o adolescente e
uma entrevista com a família. As entrevistas são marcadas no mesmo dia e
acontecem separadamente, isto é, enquanto o jovem é entrevistado pelo psi-
cólogo a família passa com um assistente social para depois inverter. Alguns
dos profissionais costumam conversar entre uma e outra entrevista para com-
partilharem as percepções tanto do jovem quanto da família. O laudo é elabo-
rado a partir da leitura dos processos completos e das entrevistas realizadas.
Raramente é marcado um retorno ou segunda entrevista com o adolescente e
sua família.
O conteúdo do laudo psicológico produzido pela ETJ atende à soli-
citação dos juízes e costuma oferecer subsídios para embasar decisões tanto
de liberação quanto de manutenção da medida socioeducativa. Os aspectos
avaliados são os que geraram dúvidas aos operadores do Direito e, embora
haja em parte dos membros da equipe uma crítica ao uso que se faz da equi-
pe e do laudo, responde-se à demanda do judiciário de orientar a decisão.

do setor de Psicologia. De acordo com depoimentos de alguns operadores do Direito no


mês de abril de 2012 o DEIJ atendeu 11.700 processos de adolescentes em cumprimento
de medidas socioeducativas (meio aberto e meio fechado) na capital. Também por depoi-
mentos de membros da ETJ sabe-se que em média são atendidos em torno de 70 adoles-
centes por mês. Cabe destacar que os adolescentes atendidos pela ETJ estão, em sua maio-
ria, cumprindo medida de internação.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Nota-se que parte dos operadores do Direito, principalmente, promotores e


juízes, esperam que o psicólogo indique explicitamente a medida que acha
conveniente ser aplicada ao caso a partir de sua avaliação. A este respeito
surgem questionamentos quanto à atribuição dos psicólogos neste campo de
atuação, o peso que tem sua avaliação e o poder da produção do saber psi
sobre o adolescente avaliado, nas condições em que é avaliado. Relatos de
psicólogos da ETJ, de promotores, defensores e juízes indicam que a suges-
tão dos laudos da ETJ, e principalmente o psicológico, são, via de regra,
utilizados como embasamento técnico para a definição do processo do ado-
lescentes. Isto significa que o laudo psicológico e a sugestão do profissional
quanto à medida a aplicar é, no geral, seguida pelos operadores do Direito.
O encontro dos psicólogos e os adolescentes em âmbito forense
ocorre em um campo onde opera um jogo de forças que se revela no contato
desses dois atores, mas que em muito os ultrapassa. Os adolescentes se veem
frente a um novo avaliador que se apresenta para avaliar/medir sua resposta à
expectativa e, por vezes, à exigência de: assumir sua culpa; mostrar-se ama-
durecido e crítico quanto a seu comportamento pregresso; compromoter-se
com o cumprimento da lei e de não mais infracionar. Estas exigências pro-
vêm não só dos operadores do Direito ou dos psicólogos integrantes das
equipes técnicas de ambas as instituições, mas da sociedade como um todo.
E isso nos inclui. Não é isso que esperamos de um jovem que infracionou?
Que se arrependa, que assuma a culpa e que se comprometa, e cumpra, com
a promessa de não mais infracionar?
Apresentar os lugares de encontro dos adolescentes privados de li-
berdade com o psicólogo tinha o intuito de mostrar em quais os momentos de
seu percurso no sistema socioeducativo e na justiça juvenil são acompanha-
dos e avaliados pelos profissionais da Psicologia. Considerando que o psi-
cólogo ao avaliar encarna uma demanda que não é somente dele ou dos ope-
radores do Direito, mas de uma ordem social da qual fazemos parte, passe-
mos agora a ver quem e quantos são os adolescentes que se encontram priva-
dos de liberdade e quais infrações por eles cometidas. A seguir traça-se um
panorama dos fatores de risco presentes no cotidiano destes adolescentes.

3 OS ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI NO


BRASIL E EM SÃO PAULO

3.1 Quem São e Quantos São Eles?


Afinal de contas, quem são eles? Anjos ou demônios? Adolescen-
tes que já desde crianças necessitavam proteção social e legal? Ou, infratores
324 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato

que merecem sanção penal rigorosa? E diante do real que se apresenta dos
jovens em conflito com a lei, como nossa ação profissional nas instituições
que os atendem se articula a ele?
O envolvimento de adolescentes em atos infracionais provoca questi-
onamentos quanto ao tratamento e/ou sanção adequados que devem ser dados
ao jovem em conflito com a lei com vistas a que este não torne a infracionar.
Discussões polêmicas surgem a partir de críticas dirigidas ao modo como o
sistema de justiça juvenil aplica as medidas socioeducativas estipuladas pelo
ECA para adolescentes que transgridem as leis. Para alguns, o ECA é visto
como instrumento eficaz de proteção, garantia de direitos e responsabilização
de crianças e adolescentes. Em posição diametralmente oposta, encontram-se
aqueles que suspeitam ser instrumento legal inaplicável à sociedade brasileira,
pois, a criminalidade juvenil cresce porque os adolescentes não são punidos ou,
quando o são, as medidas socioeducativas são brandas se comparadas à gravi-
dade atos praticados entre eles: furto, roubo, tráfico de drogas, porte de arma e
em, número muito menor, latrocínio, homicídio, estupro. Juristas discutem a
delicada relação entre os traços pedagógicos e punitivos das medidas socioedu-
cativas que, sob equivocada interpretação, dão lugar à ideia de impunidade se
sobrepor à de inimputabilidade (Konzen, 2005; Saraiva, 2010). Esta inadvertida
leitura produz reivindicações de maior punição advindas da sociedade, e al-
guns operadores do Direito, assim como os profissionais que avaliam os ado-
lescentes, atendem ao “clamor por justiça” produzindo decisões que, além de
injustas, ganham traços perversos. Este é o caso da aplicação/manutenção de
internação sob a justificativa de proteger, isto é, o uso tutelar e discricionário
da legislação garantista característico do que Méndez (2011) denomina de
“neomenorismo”. Em meio a esta realidade de diversas e opostas compreen-
sões sobre a aplicação da lei com adolescentes autores de infrações, nota-se
que é reduzido o espaço de discussão e intervenção, em meios acadêmicos,
instâncias políticas, jurídicas e de execução, quanto ao que diz respeito a fato-
res de risco de envolvimento com o crime como base de estratégias de preven-
ção de reiteração. Isto é, pensar na realidade para a qual o adolescente egresso
do sistema socioeducativo retornará16.
Antes de passarmos à apresentação do que se considera como fator
de risco e quais os que se destacam na realidade destes jovens nos aproxima-
remos deles através de dados estatísticos que nos revelam a quem nos refe-
rimos quando falamos em adolescente em conflito com a lei atualmente.

16
Em relatórios do Programa Justiça ao Jovem do Conselho Nacional de Justiça, de visitas a
todas as unidades de internação e semiliberdade dos 26 Estados brasileiros, é mencionada
apenas um programa de acompanhamento de jovens egressos do sistema socioeducativo
no Rio Grande do Sul.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Segundo dados do Levantamento Anual do Sistema Socioeducativo


2010, sistematizados pela Coordenação do Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo (SINASE), Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da
Criança e dos Adolescentes e Secretaria de Direitos Humanos da Presidência
da República (SNPCA/SDH), até novembro de 2010 havia 17.703 adoles-
centes em restrição ou privação de liberdade no Brasil. Isto é, 0,08 da popu-
lação adolescente, entre 12 e 17 anos completos, do Brasil que conta hoje
com 20.666.57517. Aproximadamente há 8,8 jovens cumprindo medidas so-
cioeducativas mais gravosas para cada 10.000 adolescentes18.
Do total de jovens restritos ou privados de liberdade 12.041 en-
contravam-se em internação, 3.934 em internação provisória e 1.728 em
semiliberdade. São Paulo é o estado que mais concentra a população ado-
lescente e também o maior número de adolescentes restritos ou privados de
liberdade. Até 2010 eram 6814 adolescentes cumprindo internação (5.107),
internação provisória (1.168) e semiliberdade (539). O segundo lugar em
número de adolescentes cumprindo estas medidas é o estado de Pernambu-
co, com 1.456 adolescentes dos quais: 1.023 estavam internados, 264 cum-
priam internação provisória e 169 semiliberdade. Esses altos números per-
fazem uma proporção adolescentes/adolescentes privados de liberdade
muito maior à nacional nestes dois estados: em São Paulo para cada 10.000
adolescentes há 17,8 privados ou restritos em sua liberdade; em Pernambu-
co, a proporção e de 14,8. Estes dois estados ocupam o 3º e 4º lugar, res-
pectivamente, nesta proporção ficando atrás apenas do Distrito Federal
com 29,7 e Acre com 19,7.
Outro indicador apresentado pelo Levantamento Anual (SINASE;
SNPDCA; SDH/PR) é a relação de jovens inseridos em meio fechado e em
meio aberto que é de 1 jovem privado ou restrito de liberdade para cada 2
cumprindo medida em meio aberto (PSC ou LA). Neste indicador, Recife
e São Paulo, como vários outros estados, apresentam uma relação de 1:1, o
que indica que no momento a escolha da medida socioeducativa me meio
aberto não é priorizada tal como preconizado pelo ECA e o SINASE. So-
bre os altos números de adolescentes cumprindo medida e meio fechado
ou de semiliberdade podem considerar-se algumas possibilidades de com-
preensão: que os atos infracionais cometidos pelos adolescentes são mais

17
Segundo dados do Censo 2010 do IBGE.
18
Segundo Silva e Gueresi (2003), de acordo com o primeiro mapeamento do sistema socio-
educativo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e o Departamento da
Criança e do Adolescente da Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça,
para cada grupo de 10.000 adolescentes existiam apenas três (2,88) jovens privados de li-
berdade. Após quase 10 anos esse número mais do que triplicou, enquanto ao número de
adolescentes, entre 12 e 17 anos, na população aumentou menos de 1 milhão.
326 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato

graves devido ao contexto de violência em que eles se encontram; a pres-


são exercida pela sociedade e pela mídia quanto à necessidade de punição
de atos infracionais como modo de prevenção; a falta ou ineficiência de
programas de execução de medidas e meio aberto; ou, entre outras, uma
cultura que favorece à privação de liberdade no Judiciário que julga prote-
ger ao determinar uma internação ao adolescente ou ao impedir que este
saia da unidade.
Sobre as infrações cometidas por adolescentes restritos ou privados
de liberdade, apresentamos a seguir os dados mais recentes divulgados pela
F. CASA (SP) e pela FUNASE (PE). Segundo a FUNASE19 dados referentes
ao mês de fevereiro de 2012 indicam um total de 1.502 meninos e meninas
cumprindo medidas de semiliberdade, de internação provisória e de interna-
ção. Apenas 5% desse total, isto é, aproximadamente 75 são adolescentes
mulheres. Dentre as infrações que se destacam entre as meninas estão o tráfi-
co de entorpecentes com 43%, homicídio com 11%, tentativa de homicídio
7%, roubo ou assalto 6%, furto 4% e a categoria outros20 com 29%. No caso
dos meninos, em número de 1.426, os atos infracionais que se sobressaem
são roubo/assalto com 36%, tráfico de entorpecentes com 20%, homicídio
com 15%, furto com 5%, tentativa de homicídio com 5%, porte ilegal de
arma 4%, ameaça com 2% e a categoria outros com 13%. Segundo publica-
ção da F. CASA21, em pesquisa realizada com amostra de 1.190 adolescentes
que cumpriam medida socioeducativa de internação em 2006, as infrações
que os levaram à privação de liberdade foram: roubo simples, qualificado e
porte de arma22 correspondendo a 51% da amostra, infrações de média gra-
vidade23 19%, crimes contra a vida com uso de violência24 14%, lesão corpo-
ral 9%, furto 5%, e outros25 2%.

19
Disponível em: <www.funase.pe.gov.br/estatistica/2012>. Acesso em: abr. 2012.
20
A FUNASE não especifica quais as infrações que estão consideradas nesta categoria. De
acordo com a lista de infrações podem estar incluídas infrações de menor incidência, po-
rém a gravidade das mesmas pode variar entre Injúria, dirigir sem habilitação, porte ilegal
de arma, receptação, formação de quadrilha até atentado violento ao pudor ou estupro,
entre outras.
21
Disponível em: <http://www.fundacaocasa.sp.gov.br/images/midia/PesquisaInternos.pdf>.
Foi solicitado à F. CASA dados atualizados quanto ao número de adolescentes que cum-
prem medidas de privação e restrição de liberdade, além de estatísticas das infrações que
levaram à determinação das medidas mais rigorosas.
22
Roubo Qualificado corresponde ao uso de arma na infração.
23
A pesquisa da F. CASA inclui entre estas: extorsão, descumprimento de medida anterior-
mente aplicada, dano, ato obsceno, violação de domicílio, tráfico de drogas, ameaça, re-
ceptação, porte ou uso de drogas.
24
Nesta categoria se incluem: estupro, atentado violento ao pudor, sequestro ou cárcere
privado, latrocínio, infanticídio, homicídio doloso, homicídio culposo.
2525
Não é especificado na pesquisa a quais outras infrações se referem.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Percebe-se que em ambas as pesquisas as infrações que se desta-


cam são as equiparadas com o que o Código Penal considera delitos contra o
patrimônio. Os dados atualizados de Pernambuco revelam uma tendência
percebida entre os profissionais que atuam junto a este público de ter au-
mentado, significativamente, nos últimos anos, o envolvimento de adoles-
centes, homens e mulheres, com o tráfico de entorpecentes. É também digno
de atenção o percentual de infrações que envolvem grave ameaça ou violên-
cia, em torno de 20% se somarmos os homicídios e as tentativas na pesquisa
atual de Pernambuco, e de 14% na pesquisa de 2006 em São Paulo. Porém,
sobre os dados apresentados é necessário considerar que se trata de pesquisas
realizadas com adolescentes que cumpriam ou cumprem as medidas socioe-
ducativas mais severas, devido à gravidade do ato praticado. Cumpre, tam-
bém, assinalar que de acordo com ambas as publicações, constam infrações
leves como dirigir sem habilitação, injúria ou destruição de patrimônio men-
cionados como motivos da internação contrariando a doutrina de proteção e
garantia de direitos. Estas ressalvas são feitas para o leitor se atentar aos
números absolutos e contexto dos quais falamos para dimensionar, de manei-
ra mais próxima do real que se apresenta, a incidência das infrações e o re-
corte a partir do qual se produzem não só os dados mas também as repre-
sentações que temos da relação adolescência-violência.
A partir dos dados apresentados é possível ter um retrato mais real
do número de adolescentes envolvidos com o crime e quais os atos infracio-
nais que os levam a cumprir privação e restrição de liberdade. Percebe-se
que o número de adolescentes no sistema socioeducativo e seus respectivos
atos infracionais, principalmente em meio fechado, não sustentam a afirma-
ção, alardeada pela mídia, de que são os menores de 18 anos os principais
agentes da violência no país. Ainda são os adultos os responsáveis pela mai-
oria absoluta dos crimes, e também dos crimes mais graves, registrada nas
instituições de segurança pública. Por outro lado, seria irresponsável restar
importância ao que se expressa nos números das pesquisas. Embora baixos,
se comparados com a população em geral e com a população carcerária, os
índices e os números são expressivos e reveladores e mostram a urgência de
pensar em alternativas de intervenção para prevenir e evitar que os adoles-
centes optem pelo caminho do crime ou se mantenham nele.
Como mencionado anteriormente, muito se fala e se escreve sobre o
que se deve fazer com o adolescente infrator. As discussões vão desde defesas
totais e irrestritas dos jovens beirando posturas protecionistas extremas que se
afastam do princípio de responsabilização que o ECA preconiza, até argumen-
tos a favor de punições mais rigorosas para os jovens, muitas vezes alimentadas
pelas primeiras, e vice-versa. Neste cenário é que surge a constante discussão
quanto à redução da idade de imputabilidade penal, produto da construção do
328 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato

mito de impunidade, como uma possibilidade de controle dos adolescentes que


infracionam. Árduas e nem sempre férteis são as discussões que enveredam
para a questão de como “tratar” e/ou “punir” o adolescente em conflito com a
lei. Enquanto isso, perdem espaço a discussão, a elaboração e implementação
de estratégias de intervenção e prevenção tanto com jovens que vivem em situ-
ações que os coloca em situação de vulnerabilidade e risco de envolvimento
infracional, quanto com jovens que após cumprir medida de internação voltam
para condições de sobrevivência que pouco favorecem à possibilidade de se
inserir no mercado de trabalho e em cursos profissionalizantes que lhes permi-
tam um trânsito diferente àquele no qual infracionaram.
Conforme apontam diversos estudos (Beloff, 1998; Gómez-Fraguela
et al., 2006; Shader, 2003; Unicef, 1998) o fenômeno de delinquência juvenil
está longe de ser uma exclusividade do Brasil. Países com diferentes níveis
de desenvolvimento econômico e social apresentam incremento na participa-
ção dos jovens em atos delinquentes. Exemplos dessa realidade são os Esta-
dos Unidos, Espanha, Austrália, além de países da América Central e do Sul.
Pensar nas origens deste fenômeno mundial exige reflexão e articulação de
fatores econômicos, culturais, políticos e psicológicos a fim de tentar apro-
ximação das condições que tornam um adolescente mais, ou menos, vulnerá-
vel. No entanto, geralmente os grandes investimentos governamentais, tanto
de países mais ricos como dos países em desenvolvimento, como os latino-
americanos, são direcionados à área de segurança pública, ao sistema prisio-
nal e ao sistema judiciário (Cerqueira; Carvalho; Lobão & Rodrigues, 2007).

3.2 Placas de Perigo no Caminho: o que se Diz sobre


Fatores de Risco de Infração e a Compreensão de
Processos de Vulnerabilização
De acordo com Farrington (apud Shader, 2003) recentemente a
área da Justiça Juvenil, nos Estados Unidos, tem adotado a abordagem pró-
pria da Saúde Pública para compreender as causas de atos infracionais e pen-
sar em formas de prevenção. O autor chama essa tendência recente de para-
digma do fator de risco, cuja ideia base é identificar os principais fatores de
risco para delinquir e as ferramentas e métodos adequados para combatê-los.
Shader (2003) define fator de risco como característica, variável, ou perigo,
que quando presente implica para determinado indivíduo uma maior proba-
bilidade, se comparado com qualquer indivíduo da população geral, de des-
envolver uma doença ou de sofrer algum prejuízo ou dano. Estudos nacio-
nais e internacionais (Assis & Constatino, 2005; Gómez-Fraguela et al.,
2006; Pacheco & Hutz, 2009; Wasserman et al., 2003) apresentam pesquisas
que identificam fatores de risco em âmbito individual, familiar, escolar e da
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

comunidade. Destaca-se que o fator de risco pode aumentar a probabilida-


de de cometer algum ato infracional, porém não produz diretamente a infra-
ção. É importante ressaltar que a grande maioria de jovens expostos a múlti-
plos fatores de risco nunca delinquiram ou cometeram atos violentos. Além
disso, a identificação de fatores de risco é, no geral, enriquecida pela conco-
mitante identificação de fatores de proteção, que são condições que ao inter-
agir com fatores de risco reduzem sua influência sobre o comportamento do
adolescente. Assim, a compreensão dos fatores de proteção não pode presu-
mir ausência de riscos ou características opostas às de risco. Por exemplo, o
apoio e monitoramento familiar pode moderar o possível efeito negativo que
a falta de boas condições socioeconômicas causa no comportamento de um
adolescente que vive na pobreza.
Por outro lado, numa visão crítica e complementar à elaboração e
uso da noção de fator de risco, pesquisadores americanos e brasileiros pro-
blematizam os desdobramentos da análise de risco própria e pertinente ao
conhecimento epidemiológico. Segundo Ayres (2002) não se trata de negar a
utilidade do conceito de risco, porém não se deve perder de vista seus limites
diretamente relacionados com a construção de hipóteses e análises em estu-
dos epidemiológicos que buscam domínio sobre os determinantes dos pro-
blemas e suas respectivas soluções. O alerta do autor impõe-se frente à ten-
dência de valer-se principalmente de associações probabilísticas para orien-
tar prevenção e intervenção. Essa compreensão aponta erros frequentes que a
perspectiva de análise de risco pode produzir: rotular, generalizar, cristalizar,
isolar, paralisar. Além de universalizar, dessubjetivar, despolitizar e descon-
textualizar (Mann & Tarantola, 1996 apud Ayres, 2002).
Na direção contrária aos erros acima mencionados, busca-se uma
outra possibilidade de compreender os aspectos da realidade dos adolescen-
tes estudados como fatores de risco. Acselrad (2006) assinala o trânsito entre
a noção de risco à noção de vulnerabilidade: “buscou-se melhor articular as
condições que favorecem a suscetibilidade de sujeitos a agravos”. O autor
cita Ayres para explicitar que:

Enquanto com a noção de risco buscou-se “calcular a probabilidade de


ocorrência” de um agravo em um grupo qualquer com determinada ca-
racterística, “abstraídas outras condições intervenientes”, com a noção
de vulnerabilidade procura-se “julgar a suscetibilidade” do grupo a esse
agravo, “dado um certo conjunto de condições intercorrentes”. (Ayres,
1997 apud Acselrad, 2006, p. 1)

Acselrad (2006) afirma que a busca de elementos para a caracteri-


zação objetiva da vulnerabilidade dos sujeitos requer a consideração impres-
330 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato

cindível da vulnerabilização como processo e a condição de vulnerabilidade


como relação. De acordo com o autor, o processo de vulnerabilização é, no
geral, analisado à luz de tres fatores: individuais, político-institucionais e
sociais. No entanto, seguindo por essa via de reflexão, embora a vulnerabilida-
de se considere como socialmente produzida, as práticas político-institucionais
costumam funcionar vulnerabilizando certos grupos sociais, pois, justamen-
te, mantêm o foco da observação e o lócus da execução de ações “preventi-
vas” ou de “assistência” nos indivíduos. Deste modo, a condição de vulnera-
bilidade é posta nos sujeitos sociais sem considerar os processos que os tor-
nam vulneráveis, tornando o Estado e a sociedade autores principais do pro-
cesso de vulnerabilização. Este processo sustenta-se em relações de vulnera-
bilidade que se concretizam historicamente entre diferentes segmentos sociais,
em contraposição à compreensão de vulnerabilidade como carências especí-
ficas de indivíduos, apontando a necessidade de mudança nas relações de pes-
soas e grupos no amplo espaço social onde se inserem (Acselrad, 2006).
Estas considerações apresentam, ao passo que problematizam, as-
pectos da realidade vivida por adolescentes considerados como fatores de
risco pelos estudos consultados, buscando convidar o leitor ao caminhar que
este capítulo propõe: um trânsito crítico entre categorias e modos de explica-
ção que a produção científica disponibiliza e outras possibilidades de com-
preensão de fenômenos da existência humana.
Entre os aspectos individuais, as pesquisas apontam características
como agressividade explícita no comportamento infantil, consideradas fator
de risco de posterior envolvimento em infrações. Estudos confirmam existir
uma correlação positiva entre hiperatividade, problemas de concentração ou
atenção, impulsividade e posterior comportamento violento. Farrington
(apud Assumpção, 2008) afirma que baixos níveis intelectuais, déficits nas
funções executivas que exigem atenção sustentada e concentração além de
bom raciocínio abstrato, formação de conceitos, capacidade de planejamento
e controle de comportamentos inadequados também podem predizer envol-
vimento com atividades violentas (p. 185). Baixo desempenho escolar e des-
envolvimento cognitivo pobre diminuem as aspirações acadêmicas contri-
buindo para a evasão do sistema educativo formal. A baixa performance das
crianças e adolescentes pode estar relacionada a algum distúrbio de aprendi-
zagem, porém, na maioria dos casos, trata-se de outras contingências desen-
cadeando dificuldades de aprender e de relacionamento no ambiente escolar.
Entre elas, como aponta Assumpção (2008, p. 153), doenças crônicas, pro-
blemas psicossociais ou carências globais.
Em Psiquiatria Infantil o Transtorno de Conduta (TC) é o distúrbio
que mais leva os pais a procurar auxílio médico (Mondoni, 2009). Por um
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

lado, há autores que afirmam que o Transtorno de Déficit de Atenção e Hipe-


ratividade (TDAH) e o Transtorno Desafiador de Oposição (TOD), cuja sin-
tomatologia pode apresentar-se ainda na infância, podem evoluir para o TC
na adolescência. Por outro, autores afirmam que TDHA, TOD e TC podem
apresentar-se como comorbidades um do outro, ou, ainda, dos distúrbios de
aprendizagem e de escolarização. Geralmente, sem acompanhamento ou
tratamento adequados, também são considerados pelos especialistas como
possíveis preditores de comportamentos antissociais na fase adolescente,
podendo implicar em atividades ligadas à delinquência. São de fundamental
importância o diagnóstico diferencial ao momento em que as dificuldades se
apresentam e, principalmente, intervenções que considerem o entorno da
criança e do adolescente para superar visões deterministas e individualizan-
tes. Não obstante manifestações agressivas chamem mais a atenção nesta
fase do desenvolvimento, excessivo retraimento também deve ser um sinal
que merece atenção. Agressivos e hiperativos ou retraídos e deprimidos, os
adolescentes enfrentam nesta fase da vida um momento decisivo quanto ao
que se define de projeto existencial, ou aquilo que faz com que a vida mereça
ser vivida. A angústia gerada pela descoberta de ser responsável pela própria
existência provoca, e isto não só nos adolescentes, comportamentos que, por
vezes, surpreendem a eles mesmos. Nesta medida, comportamentos agressi-
vos ou antissociais podem, também, ser compreendidos como pedidos de
ajuda que, em alguns casos, requerem intervenções de profissionais especia-
lizados (psiquiatras, psicólogos, educadores) para acompanhar os jovens e os
pais ou responsáveis. O cuidado com estas manifestações de comportamento
deve-se ao fato de que o aparecimento de sintomas de transtornos de condu-
ta, por exemplo, quando confirmados em idade adolescente possuem maiores
probabilidades de desaparecimento na idade adulta do que quando surgem
durante a infância. Contudo, vale o esclarecimento que sob perspectiva psi-
quiátrica e psicopatológica os atos antissociais, um dos sintomas do TC,
referem-se a um leque abrangente de comportamentos que incluem, ou não,
transgressão das leis. Desta forma, infringir as leis não implica necessari-
amente estar doente, isto é, envolvimento com atos infracionais não é sinô-
nimo de doença; assim como, não necessariamente um adolescente que
transgride leis é um criminoso.
A baixa qualidade da educação formal oferecida durante os poucos
anos em que os adolescentes permanecem na escola retrata uma realidade
desoladora em relação à escolarização e à alfabetização dos jovens. Os dados
da pesquisa da Fundação CASA (2006) com adolescentes internos mostram
que 85% não havia concluído o Ensino Fundamental quando deveriam, pela
média de idade dos entrevistados de 16,7 anos, cursar o Ensino Médio. Além
disso, o aumento na porcentagem de adolescentes no Ensino Médio após a
332 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato

internação não necessariamente indica um progresso no nível de escolariza-


ção, pois as aulas do ensino regular na F. CASA são ministradas para grupos
que incluem 3 faixas etárias e 3 séries/anos de escolarização propiciando ágil
promoção e não necessariamente aprendizagem e alfabetização.
Ao longo dos anos as pesquisas e levantamentos demográficos e
acadêmicos apontam os adolescentes homens, afrodescendentes, pobres
(com renda familiar de até 2 salários mínimos, quando existe renda), anal-
fabetos ou semianalfabetos, como maioria entre o universo de adolescentes
em conflito com a lei (Assis & Constantino, 2005; Coimbra & Nascimento,
2005; Silva & Guerise, 2003; Sdh; Snpdca & Sinase, 2011). Essas caracte-
rísticas não são em si fatores de risco e podem ser consideradas como con-
dições reveladoras de processos de vulnerabilização. Estamos diante de
uma associação de condições factuais que, segundo comprovam as pesqui-
sas, podem influenciar os adolescentes a procurar pertencimento, reconhe-
cimento e satisfação pela via de comportamentos transgressores. No en-
tanto, cabe destacar que o risco não está na condição de ser negro ou pobre,
e sim nas condições adversas (miséria, analfabetismo, desemprego, violên-
cia, impossibilidade de consumo) que, em geral, esta população enfrenta
em seu cotidiano. Desta forma, ressalte-se que é a intensa condição de vul-
nerabilização e constante marginalização, próprias à inclusão pela exclusão
social sofrida por essa população, que constituem aspectos que podem fa-
vorecer a entrada no mundo infrator. É para esses espaços e relações mar-
cados pela negligência, abandono e pobreza que devem ser direcionados os
programas de prevenção.
Em relação a atividades remuneradas os adolescentes, em número
significativo, tiveram alguma experiência laboral no mercado informal, com
baixíssima remuneração e sem nenhum direito trabalhista contemplado.
Convém lembrar que o mercado de trabalho para jovens de baixa e fraca
escolaridade é bastante restrito. Frente à ausência de boas opções, muitos
jovens se inserem no tráfico de drogas ou outras atividades ilegais por se
mostrarem alternativas rentáveis que oferecem, de imediato, possibilidades
de satisfazer necessidades não somente de ordem básica, mas também de
consumir roupas, games, música, assim como qualquer outro adolescente
(ZALUAR, 2000; TRASSI, 2006). Eles não querem só comida. Ajudante ou
servente de pedreiro, lavador de carros, ajudante de mecânico, ambulante,
panfletagem, ajudante geral, marceneiro, entregador de pizza são as ativida-
des que se destacam entre as disponíveis no restrito mercado de trabalho em
que conseguem ingressar.
No tocante ao ambiente e respaldo familiar, considerados como
potentes fatores de proteção, percebe-se que a falta de supervisão dos pais,
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

ausência devido ao trabalho, dificuldades em impor disciplina, separação e


afastamento dos pais, relacionamentos familiares marcados por agressões
físicas e emocionais, precário diálogo intrafamiliar, psicopatologias nos ge-
nitores, comportamentos antissociais e/ou delitivos de outros membros da
família podem ser consideradas situações de risco. No geral, as mães são
chefes de família e respondem pelos filhos. Sozinhas, passam a maior parte
do tempo fora, cuidando da casa e de filhos de outros e delegando o cuidado
dos próprios filhos a terceiros, familiares, vizinhos, ou aos filhos mais ve-
lhos. Punições severas constantes também são consideradas falta de habili-
dade para exercer a paternidade ou maternidade. Maus tratos, de pais e cui-
dadores, além de pouca interação e diálogo com os pais, podem favorecer às
possíveis influências de pares que valorizam comportamentos delinquentes
aumentando a probabilidade de envolvimento com a criminalidade (Pacheco
& Hutz, 2009; Silva & Guerise, 2003).
Os fatores de risco da comunidade são associados ao local de resi-
dência e da vizinhança com quem se estabelece laços sociais. A necessidade
de aceitação e a dificuldade de enfrentar rejeição, próprias de adolescentes,
influenciariam, de acordo com os pesquisadores, a aceitar envolver-se em
atividades ilegais incluindo-se nestas a posse e o tráfico de drogas como
apontado nas pesquisas da F. CASA e FUNASE. Pesquisas confirmam que a
ausência do Estado nos bairros da periferia das grandes cidades desampara
seus habitantes devido à falta de estrutura de serviços públicos básicos, além
da falta de oportunidades de formação e capacitação profissional e conse-
quente falta de emprego. Ainda, a realidade brasileira mostra que as comuni-
dades de favelas, não raro são assistidas pela estrutura que o tráfico de dro-
gas oferece a seus moradores. Essa realidade configura-se situação de alto
risco para os adolescentes que passam a ter como referência de sucesso jo-
vens envolvidos na criminalidade, contrastando com o nulo ou baixo poder
aquisitivo dos pais.
Nestas circunstâncias a permanência na escola pode constituir-se
como um fator de proteção conforme mostram estudos analisados por Gallo
e Williams (2005) apontando para a importância das estratégias utilizadas
nas escolas para atender a esta população. Políticas de extremo rigor como
suspensão, expulsão ou controle e vigilância com adolescentes que apresen-
tam comportamentos indesejados não diminuem os riscos de reiteração des-
tes. Percebe-se que estas políticas afetam de forma desigual algumas mino-
rias, o que causa efeito contrário ao que se quer atingir. Escolas que ofere-
çam ensino de qualidade, atividades que contemplem a realidade dos jovens
podem tornar-se mais atraentes para os adolescentes que alegam abandonar a
escola por falta de interesse provocado, muitas vezes, pelo fracasso escolar
que revela falhas na mão dupla das relações de ensino-aprendizagem.
334 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato

Diante deste cenário, a atenção das instituições e profissionais que


atendem a jovens que vivem seu adolescer em circunstâncias de vulnerabili-
zação é extremamente necessária para traçar projeto junto a eles que conside-
re a realidade de origem e para a qual voltarão após a internação. Talvez este
olhar atento possa ser base de pensar intervenções que levem a diminuir os
índices de reiteração de envolvimento com o meio infracional e/ou com ati-
vidades que a ele conduzem.

3.3 A Caminho da Compreensão


Critelli (1996/2006), inspirada em Heidegger e Arendt, apresenta a
Analítica do Sentido como uma articulação metodológica em fenomenologia.
Considera a investigação do homem “como todo querer saber, querer com-
preender que se lança interrogante em direção àquilo que o apela, que o
afeta, que provoca sua atenção e interesse” (p. 28). O querer saber, neste
momento, inclina-se sobre a interlocução entre situações consideradas fato-
res de risco infracional no cotidiano de adolescentes e a experiência de um
jovem logo após sua desinternação narrada em depoimento a seguir apre-
sentado.
O depoimento é tratado como narrativa à luz do que Benjamin
(1987) articula como elaboração do vivido. Procura-se partir da experiência
deste adolescente para compreender como são por ele vividas as situações
conhecidas pelos saberes como fatores de risco. Nessa direção, a narrativa
considera-se a um só tempo relato e registro da experiência e ocasião de
revisitar o vivido propiciando, inevitavelmente, uma reflexão e nova elabo-
ração do que se apresenta permitindo o desvelamento constante de sentido
(Cabral & Morato, 2003). A reflexão a partir do depoimento recorrerá à in-
terpretação como compreensão de sentido, articulando o que se apresenta na
literatura como fatores de risco com a experiência do depoente. O trânsito
entre a narrativa e os dados apresentados dos adolescentes constitui o cami-
nho de investigação quase artesanal, por ser construído no percurso em an-
damento sintônico com o que se busca compreender, e não explicar. De
acordo com Critelli (1996/2006):

Para que se entenda o que é uma investigação e uma análise do real des-
envolvidas pela Analítica do Sentido é necessário que se tenha presente,
primeiro, que metodologicamente a ela importa a explicitação da nature-
za, digamos assim, e do modo da interrogação que põe em andamento.
[...] O modo da interrogação é determinado exatamente por aquilo que
se quer saber e não pelos recursos técnico-operacionais que se possa pôr
em prática. O fundamento do método fenomenológico está dado, sobretu-
do, por aquilo que se busca compreender. (pp. 28-29, grifos do autor)
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Assumo um distanciamento radical da inútil tentativa metafísica de


fugir dos enganos das aparências, amparando-me na compreensão de sentido
como modo fenomenológico de aproximação do real que se apresenta. Tra-
balha-se, desta forma, realçando o que a narrativa traz à luz como aconteci-
mento, expressão temporal e existencial, do ser-no-mundo-com-outros, con-
dição ontológica de coexistência ou pluralidade. É a partir da fala como
acontecimento, próprio da narrativa, que se torna possível o aparecimento
fenomênico do que se quer investigar. No entanto, o movimento de realiza-
ção deste aparecer consuma-se, ou torna-se real, quando: alguém desoculta
algo e provoca seu desvelamento; desocultado e desvelado é expresso pela
linguagem e conduzido à revelação; depois de dito e revelado é visto e ouvi-
do como testemunho; após compartilhado passa por veracização a depender
da relevância pública do que se desoculta; quando algo é veracizado passa
ainda por autenticação a partir do modo afetivo e singular com que toca
quem desse desocultamento é testemunha (Critelli, 1996/2006). Para a Ana-
lítica do Sentido o acontecer destas fases constitui o movimento de realiza-
ção do real. Cabe ressaltar que este movimento não obedece a uma lógica
linear, não se dá na ordem acima, mas fundamentalmente de forma simultâ-
nea. Nesta direção, a narrativa é tratada como fenômeno iluminado tanto por
si própria, como pelo meu olhar que interrogante se lança como abertura no
desejo de compreender o que se desvela.
Contudo, de acordo com Critelli (1996/2006), o que se desoculta
no encontro de olhares necessita da linguagem como forma de conservação
do aparecer, como modo de cuidar do desvelamento, a fim de alcançar a
revelação do que inevitavelmente será novamente velado. É por meio da
função comunicativa que a linguagem conserva aquilo que é revelado como
compreensão de alguém para outro alguém, assim entramos no terreno do
que a autora denomina de testemunho. O homem fala entre homens e ao
fazê-lo, ao revelar sua compreensão de algum fenômeno, confirma sua pró-
pria existência, seus modos de ser e estar-no-mundo. O desvelado e revela-
do necessita da consolidação que o compartilhar com outros outorga: uma
trama significativa comum – o mundo. Neste sentido, o testemunho dos
homens entre homens é que outorga realidade àquilo que se apresenta como
compreensão das coisas e de si mesmos. O testemunhar apresenta-se reve-
lador da condição de pluralidade, de coexistência do ser homem, funda-
mentando assim qualquer possibilidade de conhecimento. Ainda, ao contrá-
rio do modelo metafísico de investigação, que busca na exatidão do método
a consolidação do que se define por verdade no método de aproximação e
interpretação do real se realiza por meio da constante veracização que os
homens dão às coisas. Se para o pensamento científico positivista a conside-
ração dos modos de expressão da afetabilidade do homem desqualifica e
336 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato

joga por baixo o estatuto de veracidade de qualquer tipo de conhecimento,


para o pensamento fenomenológico existencial contemplar as emoções hu-
manas ou os estados de ânimo como base de qualquer compreensão é o
passo em direção à autenticação como mais um movimento de consecução
do real (Critelli, 1996/2006).

4 COMPANHIA À PROCURA DE SENTIDO...

4.1 O Dizer de um Jovem Ex-Interno


O depoimento de Denilson foi escolhido por se apresentar revela-
dor da situação em que jovens ex-internos se encontram em liberdade. Aos
15 anos, após se entregar recebe medida de internação devido a infração
grave26. O tempo de internação ultrapassou em algumas semanas os três
anos, limite máximo de privação de liberdade. Durante o longo tempo na
unidade preferia manter-se distante de participar em qualquer movimento de
tumulto ou, até mesmo, de discutir as regras da “casa” com jovens e funcio-
nários, pois percebia que eram discussões que só provocavam desentendi-
mentos entre eles. Questionava-se, incansavelmente, sobre o porquê das
consecutivas negativas aos pedidos de Liberdade Assistida, solicitados pela
equipe técnica da UI aos juízes do DEIJ, apesar de seu bom comportamento e
bom desempenho nos estudos. Ponderava a gravidade da infração, porém a
manutenção da medida perdia o sentido ao considerar que havia participado
e aproveitado todas as atividades pedagógicas oferecidas na UI. Inclusive,
finalizado o terceiro colegial havia ingressado, após realizar prova de admis-
são, em uma universidade particular que mantinha convênio com a F. CASA.
Os questionamentos apontavam, inequivocamente, à infração. Sua história
era considerada com foco apenas na infração e, sob este olhar, deliberava-se
sobre a situação do momento e seu futuro próximo. Assim, era um adoles-
cente autor de ato infracional grave cuja desinternação era consecutivamente
negada. Desconsiderava-se a história em desenvolvimento, aquela que se
construía durante o tempo presente.
Três anos de internação transcorreram e depois de repetidas entre-
vistas com a Equipe Técnica do Judiciário e de exames psiquiátricos e testes
de personalidade solicitados pelo DEIJ, Denilson foi liberado depois de
cumpridos os 18 anos de idade e o tempo máximo de internação. A demora
na desinternação parecia obedecer apenas à preocupação de haver algum

26
A infração cometida não será mencionada, pois a Juíza Corregedora que autorizou as
entrevistas proíbe a exposição desta informação ainda que a identidade do adolescente
seja preservada.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

distúrbio que pudesse indicar reiteração, e não à elaboração de um projeto de


egresso e reinserção.
Os depoimentos foram colhidos, revisados e autorizados após dois
a cinco meses de liberdade assistida. Nesta ocasião apresentarei trechos da
narrativa de Denilson que mostram a realidade que vivia após a internação.
Cabe esclarecer que os trechos destacados fazem parte de depoimentos co-
lhidos em alguns encontros. Nos momentos de revisão do que foi dito, como
testemunharemos ao ler o dizer de Denilson, revisitava-se também o vivido,
antes, durante e após o período de internação.

1. O “planejamento” e a realidade
[Depois do período de internação]... Acho que não mudou muita coisa
não... porque a gente começa a fazer aqueles planejamentos... “Quero
sair... quero ir pra faculdade... quero trabalhar assim... assim... assado”
Mas chega aqui fora e é totalmente diferente... totalmente diferente!...
Lembra o que meu irmão falou que quando eu saísse ia ter serviço na loja
que ele está trabalhando... Já vai dar dois meses e até agora nada! Esses
dias... eu fui lá no Brás atrás de um bico... e também não deu certo... Aí
você começa a desanimar... Se você quiser mudar... lógico você muda e
tal... Eu mesmo penso assim: “Fazer o que eu fiz antes da internação
nunca mais! Não quero fazer isso mais nunca na minha vida”27... Mas...
tipo... roubar... essas coisas... eu tenho coragem de fazer...
Naquele momento [internado]... você planeja tudo pro futuro: “No meu
futuro quero isso... isso... isso!” Aí... às vezes... não é tudo do jeito que
tava planejando... Não tem como você acertar o dia de amanhã... Tipo
eu... fui lá procurar o emprego... Me disseram que o menino chegou antes
e que já estava em teste... e que era pra voltar na segunda-feira... Mas na
segunda-feira eu nem fui... Não tenho dinheiro pra gastar se locomoven-
do... Era pra ser ajudante geral...
Lá dentro eu estava planejando uma coisa e aqui fora é totalmente dife-
rente... Tem que procurar emprego... procurar serviço porque sem...
não dá... né? Depende de cada um e da situação também... e da situa-
ção também.
2. Os amigos, um passeio e uma escolha
Esses negócios de não saber mesmo o que pode acontecer... de nem sem-
pre ser do jeito que você planeja é verdade mesmo... Esses dias estava
falando com o Dido [outro amigo com quem morou junto]... Nós era mó
trabalhador... dava a maior ripa do caramba e hoje em dia não quer nem
saber de trampar... Porque nós não tinha vergonha nenhuma... porque
nós chegava nas pessoas para vender rosas... Tinha que trocar ideia pra

27
Apesar de a infração ter sido citada no depoimento, neste momento da opta-se pela omis-
são da mesma, pois na autorização das entrevistas concedida pela Juíza Corregedora do
DEIJ, proíbe-se a menção da mesma.
338 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato

poder vender, né?... Aí nós não tinha vergonha nenhuma... E hoje em dia
ele está jogado... tipo largadão... está vagabundão mesmo...
Esses dias eu fui com ele aqui no Lago dos Marrecos... que é um lugar
de passeio... Chamei ele: “Ô Dido!... Desce aqui!”... Ele mora no Car-
rão... mas de vez em quando ele fica aqui no morro... Tem uns colegas
dele e as tias dele por aqui... Também não pode ficar num lugar só... ele
também zoou um cara por lá... Ele e o irmão dele que está preso zoa-
ram um cara lá... Então está embassado... não pode ficar num lugar
fixo... Aí aquele dia que chamei... ele estava indo para o Lago dos Mar-
recos... Eu gosto dele pra caramba... aí eu falei: “Eu vou lá com
você”... Porque eu também tinha que ir lá pra Vila Maria para trocar
um tênis que tinha comprado para meu irmãozinho e que usou e saiu
todas as fitinhas... Aí eu fui lá trocar... Depois... quando estávamos indo
pro Lago dos Marrecos... trocando ideia... perguntei o que ia fazer lá e
ele me fala “Pá... vou ver se pego algum tênis de algum boy lá”... Ai eu
falei: “Ah! Então vamos voltar mano... Vou ficar me arrastando aí por
causa de um tênis?... Eu aqui... pá... tirando um lazer e você vai ficar
zoando?”... Aí eu peguei e falei: “Mano... vou sair fora!”.... Mas ver o
Dido assim fica meio embassado... Porque uma pessoa que você gosta
assim... querendo ou não você acaba perdendo... Tipo quando você está
no crime... você está sujeito a tudo né? A morrer... a ser preso... Tam-
bém não foi fácil falar que não ia com ele zoar... Não é tranquilo... Eu
sei que ele vai ficar meio chateado... Assim... vai falar: “O menino já
passou por isso e agora está dando pra trás”... Vai ficar meio chatea-
do... mas depois ele vai entender... Acho que ele pode entender depois...
Não vi mais depois disso...
3. A família e a morte da mãe
Esses dias teve um culto aqui em casa e a minha irmã estava falando e
contando do dia que tudo aconteceu28... Como ela é crente falou que na-
quele dia ela estava falando com Deus... “Por que com a minha mãe?...
Tenho fé que o Senhor pode levantar ela”... Estava conversando com
Deus... e nada Dele responder... Aí que o médico veio falar com ela: “Ela
morreu mesmo”... Acho que ela morreu na hora porque perdeu muito
sangue... Foi o meu padrasto... Ele tinha muito ciúmes dela... Quando
minha mãe estava conversando com alguém aí embaixo... Conversando!...
Ele já descia... de cara fechada... Aí ela se tocava e já concluía a conver-
sa e subia... Qualquer rapaz da rua que ele visse conversando com ela...
ele já ficava com cara fechada... Uma vez até eu trouxe um menino aqui
em casa... Trouxe não! Na verdade... ele me ligou... Já estava aqui no Li-
mão... aquele amigo meu que estava aqui em casa quando você veio...
Então... quando o Nego estava aqui também teve uns problema já com o
meu padrasto...

28
Denilson refere-se aqui ao assassinato da mãe pelo padrasto, enquanto ele estava traba-
lhando fora da cidade. Este acontecimento já havia sido relatado pelo telefone, mas quan-
do fui visitá-lo Denilson quis contar mais detalhes.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

No dia que ele matou minha mãe... ele chegou meio bêbado... Não sei
também se ele estava drogado... Sei lá... Os únicos que estavam em casa
eram as minhas duas irmãs pequenas e o meu irmãozinho André... Então
ele aproveitou a situação que não tinha ninguém em casa... Eu estava na-
quele serviço lá de ajudante de caminhoneiro... O meu irmão mais velho
estava trampando... Estava todo mundo trampando!... E ele entrou aqui e
perguntou para minha irmãzinha se minha mãe estava lá dentro... Ela
falou que estava... minha irmãzinha sem entender nada... Inocente... Ele
chegou ali dentro e começou a discutir com a minha mãe... Aí uma das
meninas tinha ido pegar uma cama aqui na vizinha... Minha mãe conti-
nuou fazendo almoço pra ele e ele discutindo... Ela nem dava aquela
atenção... deixava ele falando... porque bêbado... né?... Fala pra caram-
ba!... Ela não deve ter dado muita atenção pra ele falando... Aí... não
sei... acho que ele pegou a faca... também não sei como tudo aconteceu...
Aí... aqui... estava tudo sujo de sangue quando eu cheguei aqui!... Che-
guei à noite... e a minha irmã falou: “A mãe morreu!”... Eu não me con-
formei ainda!... Não queria saber de fato como é que foi e tal... Aí... de-
pois que fiquei sabendo que foi o Zeca29 que matou ela... Aí já subiu o
sangue... Perguntei: “Cadê ele?!”... Fiquei com vontade de ir atrás dele e
de matar ele mesmo! Fiquei com vontade!... Aí meu irmão falou: “Não!...
Não!... Ele já está preso!”... Aí eu fiquei na maior neurose... maior raiva
mano! Maior raiva mesmo!... Eu não quero ver esse maluco na minha
frente!... Tomara que eu não encontro ele!... Se ele tiver que morrer lá
dentro... que ele morra lá dentro... Porque se eu encontrar com ele... não
sei qual vai ser minha reação não!... Vou pra cima dele mesmo!... Aí...
acho que vai ser ou eu ou ele... Porque ele não tinha motivo pra ele fazer
isso aí... Ainda chegou nos policias que perguntaram: “Por que que você
fez isso?” e ele falou: “Pra dar um corretivo nela”... Não teve considera-
ção nenhuma!... Maior safadão!... Aproveitou que não tinha ninguém em
casa para fazer isso daí... Os meninos estavam trabalhando... Só os pe-
quenos... e eles não iam poder fazer nada... Mesmo assim... a minha ir-
mãzinha tinha ido pegar a cama lá... a outra foi fazer não sei o quê lá...
Estava só ele aqui dentro mesmo! Só meu irmãozinho... Eles chegaram e
ele falava assim: “A mãe... ó...”.... e balançava a cabeça... Ele fazia as-
sim porque quando a cachorrinha morreu ele aprendeu... então ele só
falava: “A mãe... ó...”. e balançava a cabeça dizendo que a mãe tinha
morrido... E falava: “Pai...”.... Falava que era o pai dele que tinha mata-
do ela... a minha mãe... Me falaram que tem que passar ele pela psicólo-
ga porque pode causar um problema mais pra frente... Aí tem que ver isso
daí... Ele entende tudo... ele só não consegue falar direito... mas ele é es-
perto... Entende tudo!... Então tem que ver isso daí porque foi forte pra
caramba o que ele viu... e ele entende! Esse negócio que ele não fala di-
reito... minha mãe já estava vendo... estava tudo marcado... Só que agora
não sei onde e quando é... Mas vou ver lá no Hospital Belmira se não en-

29
O padrasto.
340 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato

caminham para algum lugar... Porque foi o pai dele que fez isso... né?...
Só ele que é filho do Zeca...
Depois que meus irmãos mais velhos casarem... que vai ser no final do
ano eu que vou ficar com os meus irmãos mais novos... Tem o de 17 anos
que essa semana me disse que vai tirar a carteira de reservista, as duas
meninas mais novas e o Andrezinho... Aí vai ser do meu jeito... né
mano?... Eles respeitam mais os mais velhos... Não é fácil tomar conta de
tudo!... A situação não está fácil!... Está bem complicada!
4. Sobre trabalho e mais responsabilidade
Tinha um trampo lá... que estava tudo certo... mas só que eu tinha que ter
os documento tudo em dia... Tudo na mão já... Era só levar lá que estava
empregado... Mas eu tenho que correr atrás desses documentos... É!...
Porque para entrar em alguma firma tem que ter... título de eleitor... e re-
servista... Então!... Aí eu fui lá tirar o título... e me falaram que tem que
ter a reservista... porque eu já passei da idade... Aí eu fui ver a reservista
e falei que tinha problema físico... e eles falaram que vai ter que ter um
atestado médico... Tenho que ter o atestado para tirar a reservista e de-
pois já faz o título para poder arranjar outro emprego... Porque não es-
tou querendo voltar lá pro trampo de ajudante de caminhoneiro... Porque
lá é muito puxado... Agora só faz uma viagem por dia... porque pra fazer
duas você tem que carregar o caminhão hoje para ir lá amanhã!... Antes
compensava... quase todo dia você dava duas viagens... Agora fica só
uma viagem por dia... Fica se matando por pouco!... Cada viagem é 35
reais... fora um lanche que você faz... porque tem que tomar café e almo-
çar lá... Para almoçar é sete reais mais ou menos... Não compensa...
Eu ainda tenho que pagar o aluguel de 100 reais lá... porque a menina
que eu estava enrolado ficou grávida... Então eu estou pagando o alu-
guel dela... Não estava querendo ter filho... Mas aconteceu!... Então...
eu tô pagando lá... Já paguei dois meses adiantado e metade do tercei-
ro... porque aí... caso fizer algum bico aqui... já termino de pagar...
Tem que ver se faço algum bico... sei lá... Porque também tem essa
responsabilidade...
Vou ajudar no que eu puder... mas não vou casar com ela... Pra se juntar
tem que gostar bastante... Porque você vai dividir a sua vida com a outra
pessoa... Pra casar tem que gostar muito... E eu não gosto dela e tal... Ela
até insistiu... mas depois ficou por isso mesmo... Não deu certo não!...
Nós estamos para ir lá buscar um berço... que uma mulher deu pra ela...
Então... vamos buscar lá na Vila Yara... lá do outro lado... Tem que pegar
um carrinho pra ir lá buscar... É!! A situação não está fácil não!!...

4.2 E Agora?
Faltam palavras para escrever, para descrever, para comunicar o
ouvido, o visto, o sentido. Sente-se como se o percurso testemunhado fosse
um constante perder: perder os seres queridos, perder os amigos, perder a
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

oportunidade do emprego, perder a tranquilidade para recomeçar, perder a


ilusão, perder os “planejamentos”, perder o medo, perder o medo de tirar
vidas, perder o medo de perder a vida, perder a vida... Perplexidade é o que
geram alguns episódios da curta história de vida de garotos que, ao falar de
si, por vezes, emudecem os ouvintes. As possibilidades que se apresentam no
horizonte vislumbrado são restritas. A fragilidade do projetar-se ganha con-
cretude irrefutável, insofismável, irremediável ao momento de re-encontro
com o mundo “em liberdade”.
O encontro frente a frente com o incerto acontece apesar dos “pla-
nejamentos” que Denilson aponta como insuficientes em liberdade. E dentre
tantas surpresas e inesperados que o futuro próximo lhe reservava, duas mar-
caram sua vida de forma radical em menos de seis meses de desinternação: a
partida de sua mãe e o anúncio da chegada de um filho.
Intentos e iniciativas de mudança, ainda que em planos discretos,
podem sustentar-se diante de realidades e situações drásticas como as des-
critas pelo jovem narrador? Como compreender a condição de abertura de
possibilidades da existência em situações dramáticas que tendem à restrição
do sentir, do agir, do pensar, do aspirar?
Enquanto em outras camadas da população observa-se a permanên-
cia dos filhos jovens adultos em casa, sob os cuidados dos pais, percebe-se
na história de vida de Denilson, e na de muitos adolescentes egressos, que os
jovens são convocados pela realidade a ocuparem o lugar de responsável do
grupo familiar. A ausência de um, ou dos dois genitores impele os jovens a
assumirem responsabilidades de chefes de família que vão desde a criação e
formação de irmãos mais novos que, sem seu apoio ficariam desamparados,
até o desejo de adquirir um lugar seguro para morar e constituir família.
Responsabilidades de grande significância que apontam para a mudança de
padrões de conduta e de relações intergeracionais, que trazem imbricados
novos valores de socialização da juventude (Trassi, 2006).
Nestas circunstâncias, a possibilidade de trabalho direcionado para
os jovens seria de extrema importância, mas lamentavelmente postos de tra-
balho para jovens são escassos. Como relatado por Denilson, a atividade que
conseguiu realizar foi, sem regulamentação e em consequência sem nenhum
benefício, como ajudante de caminhoneiro. Considerando a baixa remunera-
ção recebida e a necessidade de passar a semana fora de casa em função das
viagens tratava-se de uma ocupação que não poderia mais levar adiante. A
urgência de uma outra atividade remunerada estava posta, pois agora era dele
que dependiam os irmãos mais novos.
A expectativa de sair da internação e passar de ser “só mais um
problema” da família para fazer parte da solução estão fortemente presentes
342 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato

nas falas destes jovens, mostrando-se, às vezes, uma oscilação entre posturas
de onipotência e de impotência frente a determinadas circunstâncias. A este
jogo próprio do ser adolescente e das demandas e necessidades de seu cír-
culo familiar soma-se, entre outras tantas determinações, o implacável apelo
consumista de uma sociedade em que tudo vale para ter, ainda que isto não
zele do ser.
“Ah! Então vamos voltar mano!... Vou ficar me arrastando aí
por causa de um tênis?...”. Denilson em seu relato reflete sobre o possível
destino de seu amigo que se arriscava ao cogitar assaltar por um par de
tênis, ou ao se manter com más companhias. Porém, suas próprias consi-
derações poderiam ser colocadas para ele. A relação de amizade que se
mantém, apesar do tempo transcorrido durante a internação, com colegas e
amigos que atualmente estão envolvidos direta, ou indiretamente, com o
crime apresentam-lhe um impasse. O que teria lhe possibilitado a liberda-
de de dizer ‘não’ ao convite a infracionar? A preocupação do jovem com o
amigo, assim como também, a firmeza da negativa, mesmo que acompa-
nhada do receio de aborrecê-lo, estariam ancorados na confiança em si
mesmo e ao que quer para a própria vida? De qualquer modo, a reflexão
de Denilson, acompanhada da preocupação com a reação do amigo, revela
o acidentado terreno em que circulam os ex-internos expostos a reencon-
tros amistosos ou não.
Visitando os bairros e favelas da periferia de São Paulo percebe-
se claramente como estes adolescentes podem ser, ao mesmo tempo, alvos
de agressões ou possíveis agressores, dado o envolvimento passado, ou
ainda vigente, com o mundo crime. No caso de Denilson e seu amigo, a
recusa de colaborar, e até mesmo de concordar, com o provável roubo
ou assalto para pegar um tênis transcorreu tranquilamente como apresenta
a narrativa. No entanto, não é dessa forma que ocorre geralmente. Não é
sempre bem vista a recusa a infracionar e, também, não é sempre que a
resposta será negativa. Logo no início dos trechos apresentados Denilson
admite a possibilidade de roubar diante das dificuldades que se apresen-
tam para conseguir um trabalho. Sua ação vai na direção de trabalhar,
ainda que ganhando muito pouco como ajudante de caminhoneiro. Porém,
sua situação familiar mudou bruscamente. Além de ter que ajudar a criar
seus irmãos mais novos hoje também responde por um filho. Sua negativa
a acompanhar o amigo em um assalto junto à consideração de voltar a
infracionar indicam movimentos de ida e vinda intrínsecos à situação
crítica e à ambiguidade humana. O percurso a seguir dispõe-se cheio de
obstáculos a transpor quando reapresentadas as circunstâncias em que
esses jovens se mobilizaram na luta pela consecução dos objetivos a que
se propõem.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

5 CONSIDERAÇÕES... FINAIS?

O mal-estar nas relações humanas que está presente no cotidiano


indica ser próprio da época atual este modo de conviver: sentir-se vulnerável.
Sendo assim, a desconfiança e o medo nesta nossa época não têm ancoradou-
ro específico, pois a violência cotidiana que todos experienciamos não é
compreensível ainda que se busque explicá-la por relações simplistas de
causa e efeito, perdendo-se de vista a complexidade e a múltipla determina-
ção e modos de expressão deste fenômeno.
Nessa direção, será que as representações construídas a respeito
destes jovens, não servem à necessidade de uma sociedade imersa na cultura
do medo? Uma sociedade que precisa apontar para alguém e dizer: “são eles
os perigosos”. E envolvidos como estão, ou estiveram, em atos infracionais,
não são alvo pertinente para esta acusação? Não são convenientes depositá-
rios das imagens desenhadas e relacionadas à insegurança, violência e agres-
sividade? A tendência é naturalizar a relação destes jovens com as expres-
sões de violência. E mais, embora o agir delinquente deles os revele, de for-
ma singular como jovens em conflito com a lei, urge notar que eles são ex-
pressão de um viver coletivo que, também, nos diz respeito e interpela.
A resposta à indagação de quais são as causas do fenômeno infra-
cional está longe de ser exata e sempre estará, apesar da ânsia de achar a
causa e a solução. O desenvolvimento saudável de um ser humano depende
de inúmeros fatores que interagem em diversos níveis. Os fatores de risco
para a delinquência, amplamente discutidos por estudos científicos, citados
neste trabalho, produzem eco na experiência do jovem cuja narrativa nos
conduziu ao arriscado mundo dos egressos da F. CASA. É necessário reiterar
que os fatores de risco aqui apresentados, a partir das pesquisas citadas, são
compreendidos por esta autora como condições que podem interferir na situ-
ação infracional que os jovens vivenciam em parte de suas vidas. De forma
alguma são considerados como fatores determinantes de comportamentos
infracionais, ou de outro tipo. Colocar em interlocução os estudos de fatores
de risco e a narrativa da experiência de um jovem ex-interno procura voltar o
olhar para as relações de vulnerabilidade e processos de vulnerabilização em
que muitos dos adolescentes brasileiros conduzem seu existir, incorrendo,
por vezes, em infrações. Desta forma, alerta-se o leitor para o cuidado im-
prescindível na compreensão das situações vividas por adolescentes que,
infracionando ou não, vivem cotidianamente o real apresentado tanto nos
estudos de fatores de risco quanto na narrativa de Denilson. A atenção deve
voltar-se a nós mesmos, à tendência de explicarmos o inexplicável de modo
causalista e, não raro, individualizante de condições de existência que dizem
de um modo coletivo de viver em sociedade. Busca-se, ainda, tornar explí-
344 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato

citas a urgência e a carência de estratégias de prevenção eficientes nas inter-


venções junto a estes adolescentes.
Apesar de serem os delitos contra o patrimônio os que mais condu-
zem estes jovens a ingressar no sistema de justiça juvenil conclui-se, pelos
dados estatísticos e pela narrativa, que não são as situações de miséria as
únicas que se relacionam diretamente com a escolha do crime. Neste sentido,
além das estratégias de combate à pobreza, tornam-se imperativas interven-
ções que atuem com grupos de jovens que, seduzidos pelo ritmo consumista
característico da sociedade, se envolvem em ações criminosas por se oferece-
rem como possibilidades atraentes.
Intervenções na área da saúde, educação e esporte, articuladas aos
interesses dos jovens e da comunidade seriam fundamentais durante a fase de
desenvolvimento em que o pertencimento ao grupo se torna referência de
existência. Atividades que reforcem a formação de identidade, de acordo
com suas origens e preferências, para encaminhá-los a escolhas saudáveis
seriam importantes para quem passa pelo adolescer num mundo que, muitas
vezes, nos conduz a adoecer.
Possibilidades de formação e capacitação para o ingresso no mer-
cado de trabalho podem mudar o rumo no percurso de vida destes jovens. A
lamentável situação socioeconômica familiar, e o lugar que estes ocupam em
seus grupos familiares, explicitam a urgência quanto a um novo olhar para a
regulamentação do trabalho dos adolescentes. Já que é um fato a necessidade
de trabalho destes jovens, regulamentá-lo de forma que seja conciliável, ou
condicionado aos estudos pode transformá-lo em fator de proteção em meio
a um sem número de situações de vulnerabilização.
O consumo e a manipulação de substâncias entorpecentes preocu-
pam pelo viés duplo que eles carregam na vivência dos adolescentes. O con-
sumo de drogas está sempre associado aos grupos de pertencimento que o
adolescente escolhe que, nos casos mais graves, podem favorecer não só à
dependência da substância, mas também à fácil passagem da posse ao tráfico
de drogas. Cabe ainda ressaltar que esta realidade não é exclusividade dos
jovens pobres que residem nas periferias. Contudo as intervenções devem
abordar este fator considerando que, por vezes, tráfico de drogas é contem-
plado como atividade remunerada e, muitas das vezes, melhor remunerada
que aquelas a que eles têm acesso.
Quanto ao que se expõe sobre a presença de transtornos como
TDAH, TOD, TC como fatores de risco para a infração nada se pode afirmar
a partir da narrativa de Denilson ou dos dados estatísticos. No entanto seria
necessária uma investigação mais detalhada por ser este um tema que provo-
ca intensa discussão nos meios jurídicos. De fato, a presença da Psicologia
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

na área jurídica ainda destina-se, principalmente, à avaliação do risco de


reiteração e da periculosidade dos infratores, maiores ou menores. Na área da
Infância e Juventude em São Paulo, a discussão da avaliação e diagnósticos
de Transtorno Personalidade Antissocial em alguns jovens ganhou espaço na
última década desencadeando a criação da Unidade Experimental de Saúde30.
Embora muito questionada em termos éticos, políticos e jurídicos essa foi
uma das respostas encontradas para a perplexidade que provocam infrações
gravíssimas praticadas por adolescentes.
O mergulho nos dados estatísticos e no mundo experienciado por um
jovem egresso da F. CASA mostra que a realidade destes adolescentes pouco
se altera no decorrer dos anos reforçando a urgência de se criar novas formas
de intervenção que enveredem por caminhos de desconstrução de mitos que
ora demonizam ora vitimizam jovens que requerem ações interventivas éticas
e políticas que em muito diferem de iniciativas como a da UES.
Assim, o pensamento fenomenológico existencial, permite envere-
dar por caminhos de reflexão que busquem a desconstrução de teorias e téc-
nicas da prática da Psicologia científica, abrindo passos para a compreensão
do ser humano enquanto ser sempre em realização. Trabalharmos como psi-
cólogos e clínicos do humano nos impõe o desafio de estarmos atentos à
tendência, quase inabalável, de reduzir o ser humano a mero produto de rela-
ções de causalidade. Contudo, como valer-nos do que nos dizem os saberes
já estabelecidos para debruçar-nos eticamente sobre a realidade a investigar e
na qual se pretende intervir? Constitui-se difícil tarefa essa de transitar entre
o instituído e o instituinte a fim de construir novos caminhos na prática psi-
cológica. Fato: sair da compreensão causalista e enveredar para um olhar
fenomenológico existencial dos modos de ser homem é desajolador na práti-
ca profissional. Neste sentido, Andrade e Morato (2004) dizem:

Tal postura exige, entretanto, que o psicólogo se despoje de um saber teóri-


co modelar, para se implicar política e eticamente com as problemáticas ali
suscitadas. Estas são sempre contextuais e multifacetadas, não comportan-
do uma explicação simplificada ou um saber psicológico apriorístico. Tra-
ta-se, antes, de um lugar de riscos, em que a experimentação, as tentativas
de que algo se produza estão sempre presentes, num esforço permanente de

30
O Decreto 53.427 de 16 de setembro de 2008 cria a Unidade Experimental de Saúde,
subordinada à Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo para cumprir determinações do
Poder Judiciário de tratamento psiquiátrico em regime de contenção de jovens adultos
com diagnóstico de distúrbio de personalidade de alta periculosidade que forem interdita-
dos pelas Varas de Família e Sucessões. Isto é, após cumprirem prazo máximo de interna-
ção os jovens quando avaliados como portadores de personalidade antissocial são encami-
nhados para internação e tratamento sem prazo de soltura.
346 Sáshenka Meza Mosqueira e Henriette Tognetti Penha Morato

trabalho conjunto e solidário; trabalho em que não existe um especialista a


dar respostas, mas uma construção conjunta de novos sentidos e ações.
Não se trata, aqui, de descaracterizar o psicólogo de seu saber de ofício.
Pelo contrário, trata-se de um resgate desta dimensão ética que deveria
ser imanente ao saber de ofício do psicólogo. [...] Um trabalho voltado
para trans-formações das relações sociais exige um desmonte perma-
nente das cristalizações que impedem a instituição de outros modos de
estar no mundo; de outras “formas” de afetamento, em que a diferença
não aparece como algo a ser negado ou excluído, mas exatamente como
aquilo que possibilitará a criação, as mudanças nos sistemas – pensa-
mento, relações, crenças, entre outros – cristalizados. (p. 348)

Ir e voltar no olhar para o que as teorias e técnicas da Psicologia


têm a oferecer, no terreno de investigação e na intervenção, além de transitar
por entre esses modos de fazer e saber Psicologia é assumir grandes riscos no
ofício de ser psicólogo/psicóloga. É constante desalojamento. Será ele capaz
de manter a ação alerta frente a posturas ideológicas, arriscadas, presentes na
área da adolescência em conflito com a lei? Quanto aos cenários desvelados
e testemunhados na procura por sentido neste trabalho, urge debruçar-se com
maior abrangência sobre o diálogo que se estabelece entre as esferas do Di-
reito e a Psicologia em cuja interlocução define-se o percurso dos adoles-
centes em conflito com a lei no sistema socioeducativo. Dada a relevância e
atualidade do tema é responsabilidade comum a todos apontar a demanda de
cuidado existente para melhor compreender um fenômeno que se apresenta
preocupante: adolescentes e infrações.

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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

A PRÁTICA DE PSICÓLOGAS EM
INSTITUIÇÕES DE ONCOLOGIA
PEDIÁTRICA DO RECIFE-PE
Sílvia Raquel Santos de Morais
Angela Nobre de Andrade

Sumário: 1. Metodologia. 2. Procedimentos Metodológicos. 3. Resulta-


dos e Discussões. 4. Considerações Finais. 5. Referências.

A prática do psicólogo em Oncologia Pediátrica (OP) passou a


ser discutida há aproximadamente duas décadas. A maioria da literatura
especializada e publicada a respeito trata de questões sobre: a) O impacto do
diagnóstico e tratamento do paciente com câncer (Santos, 2002; Carvalho,
1994, 2002); b) Grupos de familiares de pacientes com câncer (Valle,
1994; Françoso, 1993, 1996); e c) A espiritualidade e suas influências no
tratamento do câncer (Valle, 2004). Trata-se, pois, de um tema atual, mas
ainda repleto de lacunas, sobretudo no que diz respeito à contextualização
do saber-fazer cotidiano em instituições de média e alta complexidade
sanitária.
A psicologia da saúde é um campo teórico-prático que abriga a
prática em diversos cenários, a exemplo da oncologia. Tal campo estuda os
fatores biopsicossociais envolvidos no processo de adoecimento, conside-
rando as repercussões da vida emocional sobre o orgânico e vice-versa e
destacando-se como uma alternativa de promoção e prevenção sanitária.
Cabe, portanto, aos profissionais que atuam nesse contexto, desenvolver
modelos de intervenção interdisciplinar. Com isso, assiste-se a uma verda-
deira mudança na postura do psicólogo frente às instituições de saúde, pois:

se antes o psicólogo só participava do processo saúde-doença quando


estava inserido em programas de saúde mental, hoje é cada vez maior a
demanda por profissionais de Psicologia que possam atuar em equipes
multidisciplinares em hospitais, casas de apoio, postos de saúde e outras
entidades ou instituições. (Campos, Rodrigues, Machado & Alvarez,
2007, p. 636)
350 Sílvia Raquel Santos de Morais e Angela Nobre de Andrade

Cardoso (2007) adverte que os profissionais de oncologia devem


estar cientes que lidam com crianças doentes e não somente com a doença
em si, sendo inviável qualquer tipo de intervenção terapêutica direcionada a
uma criança sem os seus familiares e cuidadores. Além disso, outra regra
básica é a disponibilidade e capacidade para o trabalho interdisciplinar1, de
forma a resguardar o princípio da integralidade.
Holland e Almanza-Muñoz (2007) afirmaram que a OP cuida de
pacientes com câncer com o objetivo de proporcionar bem-estar através de
uma abordagem psicossocial, da incorporação de cuidados paliativos e da
valorização dos aspectos espirituais/religiosos, tendo em vista a crescente
abertura às questões emocionais relativas à doença. Portanto, o foco prioritá-
rio de atenção do psicólogo nessa área recai sobre a tríade: crianças, familia-
res e profissionais da equipe de saúde.
No Brasil, Cavicchioli, Menossi e Lima (2007, p. 1) se referiram
à OP como uma área em avanço, tendo em vista que: “Aproximadamente
70% das crianças acometidas pelo câncer podem ser curadas se o diagnós-
tico for precoce e a doença adequadamente tratada. No entanto, a cura
nem sempre é possível, principalmente quando o diagnóstico ocorre já em
fase avançada da doença”.
Na Europa e, mais especificamente na Espanha, Durá e Ibañez
(2000) mencionaram que os três principais focos de ação/trabalho de psi-
cólogos em Psico-Oncologia são: 1) as características de personalidade
associadas ao desenvolvimento e/ou progressão do câncer; 2) os progra-
mas de intervenção psicossocial dirigidos ao doente com câncer e 3) os
aspectos psicológicos implicados na prevenção dessa doença. De modo
semelhante isso também tem sido descrito em algumas publicações no
Brasil a respeito da Psico-Oncologia, a exemplo de Carvalho (1998), Valle
(1997) e Costa Júnior (1999, 2001). Contudo, trabalhos abordando a práti-
ca de psicólogos em OP no Brasil ainda são raros, sobretudo na região
Nordeste. Em pesquisa bibliográfica realizada (com base nos últimos vinte
anos) a partir de publicações científicas nacionais e internacionais, identi-
ficamos (até o momento) apenas dois trabalhos sobre crianças com câncer
no nordeste, os quais mesmo assim não tiveram como foco a prática psi-
cológica.

1
Interdisciplinar é um termo usado para se referir a um modo de trabalho onde a troca de
saberes entre as diferentes áreas de conhecimento torna-se um imperativo, na tentativa de
superar as possíveis limitações. Esse esforço em dialogar e compor novos saberes ultra-
passa a junção de disciplinas. Nessa forma de operar, os atores envolvidos priorizam a
troca efetiva e sistemática de conhecimentos em prol de um trabalho integrado, resolutivo
e eficaz.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

O primeiro trabalho consiste no relato de um projeto de implantação


de recursos lúdicos em um hospital público de Recife-PE. Esse trabalho foi
realizado por Pedrosa, Monteiro, Lins; Pedrosa e Melo (2007) e descreve que
os usuários avaliaram positivamente o projeto, tendo em vista que o mesmo
cumpriu com seu objetivo de tornar o ambiente hospitalar mais agradável à
criança portadora de câncer, favorecendo seu desenvolvimento por meio de
leituras e brincadeiras, apesar da doença e da internação. O segundo trabalho é
um levantamento do perfil epidemiológico do câncer infantil entre 465 paci-
entes atendidos em uma unidade especializada de Salvador-BA nos anos de
1995 a 2003. Diniz, Regis, Brito, Conceição e Moreira (2005) ressaltaram que
os tipos de câncer mais comuns foram leucemias, seguidas por linfomas e
osteosarcomas, com maior incidência em crianças do sexo masculino. A prin-
cipal causa de óbito foram os neuroblastomas e em apenas 4% dos casos foram
identificados exposição anterior a algum agente tóxico. Considerando que a
análise dos possíveis fatores de risco foi prejudicada devido à falta de registros
desses aspectos (na maioria dos prontuários consultados), os autores admitiram
a necessidade de novos estudos sobre o tema a fim de associar os possíveis
fatores de risco nessa região geográfica específica.
De um modo geral, os trabalhos publicados no Brasil sobre a atua-
ção de profissionais junto a crianças com câncer discutem principalmente: 1)
a vivência de enfermeiros na Oncologia Pediátrica – Françoso e Valle,
(1999); Avellar, Iglesias e Valverde (2007); 2) as vivências das crianças com
câncer (Valle, 1997, 2001) e vivência de pais de crianças com câncer (Costa
& Lima, 2002) e 3) a vivência de médicos oncologistas com a criança porta-
dora de câncer e seus familiares (Capparelli, 2004).
Até então, a maioria das publicações brasileiras concentra-se nas
regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, tendo surgido apenas em meados da
década de 1990 do século XX. Ademais, priorizam a criança com câncer e
seus familiares e advêm maciçamente das áreas de enfermagem e medicina,
denotando que a psicologia ainda se encontra à margem de tais discussões e
ilustrando o quanto carece de avanços nesse âmbito.
Os estudos sobre os profissionais que atendem a crianças com câncer
têm privilegiado: a) o discurso psico-ocupacional de diversos trabalhadores da
OP: médico, secretário, psicólogo, farmacêutico, enfermeiro e auxiliares de
enfermagem. (Ramalho & Nogueira-Martins, 2007); b) a figura do médico em
OP (Amaral, Valle & Capparelli, 2004). Nas demais pesquisas encontradas, a
ênfase recorrente das discussões tem sido os profissionais de enfermagem.
Diante disso, elegemos como foco de atenção o saber-fazer de psi-
cólogos em OP com os objetivos de compreender/cartografar a prática desses
profissionais e de explicitar suas concepções de cuidado. Mas, para fins des-
352 Sílvia Raquel Santos de Morais e Angela Nobre de Andrade

se artigo, delinearemos apenas o primeiro objetivo, já que se trata de um


recorte de uma pesquisa maior de doutorado.
O aporte teórico utilizado foi a perspectiva fenomenológica exis-
tencial e mais especificamente, a ontologia2 fundamental/hermenêutica de
Martin Heidegger (1889-1976). A partir dessa ótica, consideramos que todo
o processo de construção de conhecimento se apoia na experiência humana do
existir em sua temporalidade e historicidade no mundo. (Heidegger, 1999).

1 METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa qualitativa de caráter fenomenológico e


interventivo. É qualitativa porque considera a análise das experiências dos
atores envolvidos, a inclusão da implicação no processo de investigação
(tanto a do pesquisador como a do pesquisando) e a abrangência do fenôme-
no pesquisado, de modo a realçar a sua circunscrição junto aos demais fe-
nômenos socioeconômico-culturais (Holanda, 2006). Moreira (2009) acres-
centa que as características desse tipo de pesquisa são: a ênfase na interpre-
tação em vez de quantificação e na subjetividade em vez de na objetividade;
além da flexibilidade na condução da pesquisa; a orientação para o processo
e não para o resultado; a preocupação com o contexto e a experiência dos
envolvidos; bem como o reconhecimento do impacto/relevância sobre a situ-
ação pesquisada.
O caráter fenomenológico da pesquisa advém do método fenome-
nológico, o qual visa recolher a experiência dos participantes, de forma a
mediá-las, traduzi-las e interpretá-las em seu processo de desvelamento
(Schmidt, 2006; Duarte 2008). Isso nos remete ao “como” de uma investiga-
ção, que põe em andamento perguntas e reflexões a partir do que é vivido,
propondo caminhos para se chegar à compreensão e fundamentando-se,
principalmente, pelo modo com que se experiencia e se entra em contato
com o mundo. Assim, a compreensão dos fenômenos ocorre enquanto des-
velamento numa dada situação, tempo e espaço (Perez, 2004).
Já o caráter interventivo da pesquisa foi eleito como possibilidade
de investigação, já que toda e qualquer ação de pesquisa pressupõe implica-

2
Ontologia significa o estudo do que é, do que existe, ou seja, é a investigação sobre a
questão do Ser, enquanto Hermenêutica refere-se à possibilidade de interpreta-
ção/apropriação dos sentidos que emanam da questão do ser. Sendo assim, a ontologia
heideggeriana é considerada uma ontologia fundamental ou hermenêutica já que constitui
uma investigação sobre a questão do Ser, bem como a interpretação dos sentidos que
emanam da questão do ser.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

ções para os atores envolvidos. Sendo assim, nosso interesse não foi apenas
o de obter e interpretar dados, mas o de coconstruir conhecimentos mediante
um processo dialógico e um engajamento efetivo no contexto estudado. Com
isso, a perspectiva Fenomenológica heideggeriana foi eleita como possibili-
dade de elucidação da prática do psicólogo em OP.

2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A pesquisa ocorreu no cotidiano de cinco instituições especiali-


zadas no tratamento de câncer infantil do município de Recife-PE. Partici-
param nove psicólogas (denominadas de colaboradoras) provenientes de
quatro serviços públicos e de um serviço privado. Apenas uma das colabo-
radoras não pôde continuar até a fase final da pesquisa, tendo realizado
apenas a entrevista inicial. As demais continuaram, sendo que duas delas
não participaram do grupo focal devido à incompatibilidade de horários.
As outras sete participaram de todos os procedimentos propostos. Vale
ressaltar que todas as colaboradoras são do sexo feminino, possuíam entre
2 a 18 anos de prática em OP e tinham outros vínculos empregatícios,
exercendo atividades em outros setores, tais como: consultórios particula-
res, faculdades e clínicas.
Os cuidados éticos envolveram a submissão e aprovação do projeto
em três comitês de ética em pesquisa com seres humanos (sendo duas delas
em comitês de dois estabelecimentos participantes), a assinatura do Termo
do Consentimento livre e esclarecido (TCLE) e a emissão de Cartas de Anu-
ência por todas as instituições participantes. Todas as colaboradoras foram
informadas quanto aos procedimentos metodológicos utilizados, sendo-lhes
atribuídos nomes fictícios (colaboradoras 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9) por uma
questão de sigilo. Os critérios de inclusão das mesmas foram: estar emprega-
da e/ou ser uma prestadora de serviço em instituições públicas ou privadas
de OP; possuir pelo menos um ano de prática em OP e estar trabalhando
(diretamente) no campo da assistência às crianças com câncer. Todas foram
previamente informadas sobre os objetivos e procedimentos usados ao longo
da pesquisa. Incluímos instituições públicas e privadas devido ao pequeno
número de psicólogos atuantes nessa área em Recife-PE.
Os instrumentos utilizados para a colheita de dados foram: 1) diári-
os de campo constando o registro das observações realizadas in loco, 2) en-
trevistas individuais contendo duas perguntas norteadoras: como é para vo-
cês trabalhar com crianças que têm câncer? Como você concebe o cuidado
em OP? e 3) grupo focal com o tema: cuidado e Oncologia Pediátrica: con-
cepções e práticas de psicólogos em Recife-PE.
354 Sílvia Raquel Santos de Morais e Angela Nobre de Andrade

As técnicas utilizadas para o tratamento dos dados foram a narrati-


va segundo Benjamin (1994) e a literalização (Schmidt, 1990). Para Benja-
min (1985), narrar é criar sentidos, é intercambiar/transmitir experiências
mediante o relato do vivido. A literalização consiste em transformar as nar-
rativas orais em um texto literário, ou seja, é “editar” os testemunhos dos
participantes de uma pesquisa sem perder de vista o seu sentido, mas supri-
mindo repetições excessivas, erros de concordância e condensando as falas
em parágrafos que versam sobre o mesmo assunto.
Todas as literalizações das entrevistas e do grupo focal foram envi-
adas para as colaboradoras via correio eletrônico a fim de que as mesmas
editassem/confirmassem as suas narrativas e as devolvessem. Além disso, o
processo devolutivo da pesquisa foi realizado concomitante a encontros pre-
senciais mensais, nos quais os diálogos entre as pesquisandas e a pesquisado-
ra foram configurando e coconstruindo os dados.
A colheita de dados3 se processou com a efetivação da leitura e re-
flexão das entrevistas (E), do grupo focal (GF), das observações de campo
(OC) e das notas dos diálogos (D) com as colaboradoras. Vale ressaltar que
as observações de campo e os diálogos com as colaboradoras encontram-se
diluídos na escrita e nos comentários reflexivos.
A proposta de análise dos dados foi realizada com base na Analíti-
ca do Sentido de Critelli (2007), que, por sua vez, é oriunda da Ontologia
Hermenêutica Heideggeriana e consiste em perguntar ao fenômeno o que
queremos saber sobre ele e não em aplicar o que já sabemos a respeito dele.
Em outras palavras, parte-se da seguinte questão: Como as coisas nos apare-
cem? Com isso, o mais importante não foram os recursos técnicos e operaci-
onais utilizados no interrogar, mas sim, o que se quis saber e o modo de se
interrogar a respeito disso.

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

A prática psicológica em OP apareceu marcada, sobretudo, pela coe-


xistência de três aspectos constitutivos: longo período de acompanhamento de
pacientes e familiares, envolvimento afetivo e proximidade entre os atores en-
volvidos, além da intensidade no que diz respeito aos vínculos estabelecidos.

3
Colheita de dados é um termo utilizado na metodologia fenomenológica em vez de coleta
de dados, pois se presume que a palavra coleta dá uma ideia de ir ao encontro de algo que
já existe ou está pronto. Já colheita nos remete ao sentido de construção coletiva e proces-
sual dos dados na qual o pesquisador recolhe as experiências dos participantes através de
uma relação dialógica.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

“(...) de modo geral é esse contato muito longo com os pacientes.


Não é um paciente que você vê duas ou três vezes! É um paciente que fica
anos a fio com você! (...) O trabalho com OP já me envolve bastante e acho
que não tem como escapar desse envolvimento!” (Colaboradora 8-E).
Quanto maior o tempo de convivência com os pacientes, maior
também é a possibilidade de aproximação com os mesmos devido à perspec-
tiva de continuidade do tratamento oncológico. Contudo, algumas colabora-
doras destacaram que esse longo período pode trazer implicações diversas,
tais como: contribuir para o desenvolvimento de pesquisas, favorecer um
maior conhecimento dos pacientes e familiares, repercutir no modo-de-estar-
no-mundo dos profissionais da equipe, desencadear vínculos duradouros,
impulsionar a reabilitação e a reinserção social, dentre outros. Isso apontou
para a assertiva heideggeriana de que o homem é um ser-no-mundo-com-os-
outros. Assim, ele nunca é absolutamente independente dos outros e está no
mundo como compreensão e disposição afetiva. E o mundo não seria a mera
soma das coisas, mas a condição para que as “coisas sejam” e é nessa relação
que o homem constrói uma totalidade de significados.
No que se refere aos impactos desse longo e intenso convívio para a
vida dos profissionais da equipe, uma das colaboradoras destacou situações de
adoecimento, estresse, depressão e esgotamento vivida pelos cuidadores de sua
equipe: “Dentro da Oncologia tem uma coisa que anda me preocupando que é
exatamente o longo tempo do profissional trabalhando sem os recursos ade-
quados, gerando diversas formas de adoecer, seja o ‘burnout’, seja a depressão
(...). Já ocorreu de duas médicas pararem no psiquiatra mesmo! (...) acho que a
gente tem que estar atento a isso” (Colaboradora 8-E).
Ao testemunhar o depoimento acima, recordamos o cuidado en-
quanto condição ontológica do humano. Essa narrativa nos alerta para a
impossibilidade de se desenvolver um trabalho de qualidade sem a devida
apropriação do cuidar de Ser. A fuga da angústia por si só não é garantia de
“proteção ou imunidade ao sofrimento” em OP, pois quando o profissional
permanece na dimensão do “todos nós”, corre o risco de realizar apenas
uma preocupação que não liberta o outro para o seu cuidar de ser. Vale res-
saltar, contudo, que o contato constante com a angústia dilacera/consome a
existência, podendo trazer intenso sofrimento e adoecimento para os atores
envolvidos.
Esse cenário, repleto de situações que envolvem a dor e o sofri-
mento de crianças, familiares e, também, o possível desgaste dos profissio-
nais de saúde, alerta para o desenvolvimento de uma prática integral, na
qual a criança seja considerada como um ser integral e não apenas como
um corpo doente. Isso se aproxima das narrativas de nossas colaboradoras
356 Sílvia Raquel Santos de Morais e Angela Nobre de Andrade

e corrobora com as diretrizes do Programa de Assistência Integral à Saúde


da Criança (PAISC) do Ministério de Saúde.
“Aqui é uma coisa mais humana que exige muita doação. Tenho
que ver aquela pessoinha como um todo e não como um rótulo” (Colabo-
radora 6-E).
“Não estamos lidando com uma doença e sim com um ser huma-
no, que sente, tem medo, anseios; devemos ter uma escuta atenta ao todo”
(Colaboradora 3-D).
Foi notável a preocupação em desenvolver uma prática que leve em
conta a singularidade do ser criança em sua dimensão mais ampla de saúde
(Dias & Motta, 2004). A expressão “coisa mais humana” atesta tal preocupa-
ção, remetendo ao processo de humanização4 em saúde. Em OP, a humani-
zação tende a se transformar em uma atitude ético-estético-política de dispo-
nibilidade afetiva em prol da corresponsabilidade e qualificação dos vínculos
na produção de saúde (Mota, Martins & Véras, 2006).
“Trabalhamos muito junto das crianças, e elas por si só são muito
afetivas: abraçam, beijam sentam junto. Eu não conseguiria trabalhar de ou-
tra forma”. (Colaboradora 4-E)
Para a maioria das colaboradoras, a noção de neutralidade não
combina com a prática desenvolvida em OP, existindo apenas enquanto ideal
acadêmico calcado em uma lógica distante da realidade hospitalar.
“Essa coisa da neutralidade que a gente aprende não combina com
a prática que desenvolvo” (Colaboradora 8-E).
“A forma como lido e olho para os pacientes é diferente, não tem
aquela coisa de neutralidade absoluta!” (Colaboradora 7-E).
Assim, “a cientificidade neutra do psicólogo já não se sustenta”
(Andrade & Morato, 2004, p. 346), pois quando o complexo (leia-se a imi-
nência de morte das crianças, principalmente) entra em cena no hospital,
todo controle, manipulação e poder se tornam ineficazes. (Falcón, Erdmann
& Meirelles, 2006).
Sobre a morte de crianças doentes, Kovacs, Esslinger, Vaiciunas
Ee Souza (2008, p. 26) assinalam: “a possibilidade de morte de uma criança
é uma situação que pode favorecer a emergência de intensos sentimentos na
equipe de cuidados”. Tal assertiva nos ajuda a compreender o trânsito das

4
Humanização pode ser entendida aqui como “estratégia de interferência no processo de
produção de saúde, levando em conta que sujeitos sociais, quando mobilizados, são capa-
zes de modificar realidades, transformando-se a si próprios neste mesmo processo” (Mota
& Cols., 2006, p. 324).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

colaboradoras por entre as dimensões ôntica5 e ontológica6 do cuidado, ora


oscilando entre a aproximação e o afastamento, ora oscilando entre a abertu-
ra e o fechamento. Ademais, a prática pode ser influenciada pelos significa-
dos atrelados ao câncer infantil e aos seus possíveis desdobramentos. Isso
nos remeteu a importância do compartilhar (mediante o ouvir e o dizer) ex-
periências mobilizadoras de afetos. Acompanhar situações que envolvem
saúde-doença, morte-vida, dor-alegria é algo que pode conferir sentido ao
trabalho do psicólogo em OP, já que é no cotidiano das interações que cada
um dos envolvidos (pacientes, familiares e profissionais) vai se apropriando
do seu poder-ser-si-próprio.
“O sentido de minha prática está em trabalhar com as dificuldades
que as pessoas têm e acompanhá-las” (Colaboradora 7-E).
A proximidade e o longo período de tempo, ao mesmo tempo em
que caracterizam a prática em questão, também foram percebidos como as-
pectos que podem dificultar o saber-fazer cotidiano e comprometer a fluidez
do movimento (contínuo e necessário) de afastamento e aproximação.

Uma coisa que dificulta o nosso trabalho na OP e na Oncologia de modo


geral é esse contato que a gente tem muito longo com esse paciente. (...)
você fica tão envolvida que você precisa aprender a ter seu tempo tam-
bém! (Colaboradora 8-E)
Quando falei de sensibilidade, também falei em técnica. Essas duas coi-
sas acontecem na OP. Você começa a identificar quando percebe o sen-
timento, que é vivencial. E quando tem uma técnica, você tenta olhar para
esse sentimento também. Há como se misturar e se afastar, não é? Então
é essa aproximação e esse afastamento. (Colaboradora 2-E)
As situações não podem me tirar de tempo, mas ao mesmo tempo, as situ-
ações não podem deixar de mexer comigo, porque se deixar de mexer
comigo eu não serei uma boa profissional. (Colaboradora 9-E)

Isso fica mais claro com a fala de algumas colaboradoras ao discor-


rerem sobre a impossibilidade de uma prática sem afetações, já que ela ocor-
re no encontro com humano em sua alteridade: Exemplo disso: “Tem afeto
porque você convive!” (Colaboradora 2-E)
O uso da técnica em OP, não significa, necessariamente, desconsi-
derar a alteridade das crianças e de seus familiares. A liberdade para “dizer
sim e dizer não” à técnica em um dado momento não significa que o psicó-

5
Ôntico designa os fenômenos perceptíveis sensorialmente, refere-se à instância dos fatos
que englobam objeto, coisas e entes dotados do ser da presença (todos os humanos).
6
Ontológico é uma expressão que se refere ao ser do humano.
358 Sílvia Raquel Santos de Morais e Angela Nobre de Andrade

logo esteja se eximindo do seu papel ou exercendo a profissão de ‘qualquer


jeito’. Ao contrário, isso nos lembra da postura de serenidade anunciada por
Heidegger, que consiste em não em se prender única e exclusivamente ao
uso da técnica. A técnica não seria um simples meio para se alcançar um fim,
mas uma forma de desencobrimento, de desvelamento de sentido, de produ-
ção da verdade (aletheia) (Heidegger, 2002). E é isso que o psicólogo em OP
busca fazer: facilitar o desvelamento de sentidos que circulam por entre os
atores envolvidos, e assim, promover o cuidado.
Diante desse cenário, há narrativas que atestam o quanto essa práti-
ca é mesmo forjada a partir da experiência cotidiana e dos saberes tácitos
(Figueiredo, 1996).

O trabalho do psicólogo tem algo de intuitivo porque você lida com sen-
timento o tempo todo. É o que rola na relação! É a relação de confiança
que estabeleço. As pessoas vão falar dos medos mais profundos que têm
na vida. (...) às vezes é preciso construir e criar situações. E só a prática
te dá isso! Não tem livro que te dê isso! A prática e o dia a dia é que fa-
zem você descobrir isso! (Colaboradora 8-E)

A esse respeito, Figueiredo (1993, p. 92) nos diz:

(...) a atividade profissional do psicólogo requer uma incorporação dos


saberes psicológicos às suas habilidades práticas de tal forma que mesmo
o conhecimento explícito e expresso como teoria só funciona enquanto
conhecimento tácito; o conhecimento tácito do psicólogo é seu saber de
ofício, no qual as teorias estão impregnadas pela experiência pessoal e as
estão impregnando numa mescla indissociável; este saber de ofício é ra-
dicalmente pessoal, em grande medida intransferível e dificilmente comu-
nicável.

Além disso, é guiada por conhecimentos explícitos/científicos e


também por conhecimentos implícitos/práticos. Isso se aproxima do que
Figueiredo (1996) anuncia a respeito da profissão do psicólogo e dos acha-
dos de Susaki, Silva e Possari (2006). Estes dois últimos autores afirmam
que o conhecimento utilizado na prática dos profissionais de saúde é fruto da
experiência cotidiana.
Com isso, não estamos afirmando que a prática psicológica em OP
seja meramente intuitiva, senão não haveria a necessidade de uma formação
acadêmica que capacitasse o psicólogo a atuar de modo científico. O uso da
técnica não compromete, necessariamente, o respeito à alteridade, sendo a
técnica necessária (em muitos momentos), para que esses profissionais não
sejam vistos apenas como “aqueles que “conversam ou emitem conselhos”.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Trata-se de um trabalho guiado, primordialmente, pela sustentação da an-


gústia, orientado para a produção de sentidos e, norteado por um dado ethos
e perspectiva de humano.
As práticas sofreram modificações ao longo do tempo. Tais mu-
danças foram ocorrendo inclusive no referencial teórico escolhido e na pos-
tura de abertura para com o outro. Com o passar do tempo, as mesmas passa-
ram a se apoiar (ainda mais) na própria experiência, superando condutas
tecnicistas/reducionistas, reordenando a suposta ‘neutralidade’, e respaldan-
do seu saber-fazer em um dado modo de estar no mundo (ética). Tal posicio-
namento ético fundamenta-se, principalmente, na abertura para com a alteri-
dade e no acolhimento que não se deixa capturar nem reduzir aos ideais ou
leis de conduta (Andrade & Morato, 2004).
Para que a prática psicológica em OP seja desmistificada em ter-
mos das conotações que costumam ter para a sociedade em geral, foi aponta-
do o potencial interventivo/esclarecedor dessa pesquisa, bem como, a dimen-
são afirmativa do trabalho do psicólogo em OP.

Acho que sua pesquisa talvez venha esclarecer e justificar o trabalho do


psicólogo em OP que as pessoas tendem a achar insuportável ou que só
tem dor e sofrimento! Mas existe o outro lado da história! Eu espero que
na sua coleta de dados essa coisa fique mais clara para as pessoas! É
possível desenvolver uma prática psicológica em OP onde não exista
apenas dor e sofrimento! É difícil trabalhar o tempo todo com uma coisa
que promova sofrimento no outro. Acho isso difícil e eu não o faço! (Co-
laboradora 5-E)

O “aspecto contraditório” da prática também foi mencionado, ten-


do em vista um cenário repleto de sofrimento em virtude do câncer, mas
também, capaz de gerar satisfação nas colaboradoras devido aos efeitos de
seu trabalho.
“Acho que estou no lugar certo porque tenho satisfação. É tão contra-
ditório falar em satisfação nesse contexto da Oncologia Pediátrica! Mas existe
satisfação quando vejo meu trabalho surtindo efeito” (Colaboradora 9-E).
Para lidar com tais desafios, as colaboradoras se referiram à criação
e ao uso de algumas estratégias de enfrentamento, tais como: trocas e diálo-
gos com a equipe, atividades de lazer, cuidado com a saúde, momentos de
ócio e de autocuidado, psicoterapia e supervisão como ferramentas indispen-
sáveis para a sustentação de uma prática eficaz e comprometida. Assim, o
autocuidado foi apontado como dispositivo indispensável para uma retroali-
mentação da prática e do cuidado.
360 Sílvia Raquel Santos de Morais e Angela Nobre de Andrade

“Eu tenho buscado investir em minha qualidade de vida: procuro


ter hábitos saudáveis como uma boa alimentação e respeitar minhas horas de
sono. Compareço a consultas médicas e faço exames periodicamente, faço
psicoterapia há anos (...) cuido de mim porque passo a me conhecer melhor,
saber mais de minhas necessidades” (Colaboradora 7-D).
O cerne do exercício em OP encontra-se no cuidar do outro e no
cuidar de si, aproximando-se do que Borges e Waldow (2008) recomendam
para a prática de enfermeiras em unidades pediátricas. Sem o autocuidado,
tal exercício não se sustentaria por si só, tendo em vista as demandas com-
plexas da área. O autocuidado preconizado pelas psicólogas foi narrado em
termos de submissão ao processo psicoterápico, estudos, lazer, exercícios
físicos, exames periódicos, cuidados com a alimentação e oportunidades de
vivências prazerosas. Além da delimitação e do cultivo de um espaço para o
cuidado de si, a prática dessas psicólogas tem instigado as mesmas se atenta-
rem e respeitarem mais os próprios limites.
A inserção em OP trouxe algumas implicações/repercussões para
a existência das colaboradoras, tais como: aprendizado, gratificação, ma-
turidade, redimensionamento de problemas, resiliência e superação. Em
síntese, algumas das dimensões transformadoras desse ofício foram des-
critas abaixo:

A minha humanidade é cuidada quando atendo os pacientes e familiares


na OP. (Colaboradora 9-D)
O que mudou nisso tudo? Nossa, mudou muita coisa! Mudou minha visão
de mundo, de vida, de tudo. Mudei como pessoa. (Colaboradora 4-E)
Depois que comecei a trabalhar aqui, eu sou outra pessoa completamente
diferente, no sentido de dar mais valor à vida, às pessoas que estão pró-
ximas de mim! (Colaboradora 6-E)
Trabalhar com essas crianças trouxe amadurecimento! Percebi que mi-
nha escuta melhorou, inclusive minha experiência no trabalho clínico fi-
cou diferente, mais livre e com mais possibilidades e aproximação. Acre-
dito que esse trabalho me trouxe autoconhecimento e me deixou mais cui-
dadosa! (Colaboradora 7-E)
Esse trabalho trouxe para mim essa coisa de não valorizar tanto os meus
problemas, de entender que eu preciso cuidar de mim também porque se-
não, adoeço. (Colaboradora 8- E)
Minha prática em OP me rendeu como aprendizado principalmente, a
valorização da vida! (Colaboradora 5-E)

Não houve um consenso quanto às especificidades da prática com


crianças e com adultos com câncer. Algumas ressaltaram haver diferenças no
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

modo de acolher e acompanhar as demandas da infância e em alta complexi-


dade sanitária, enquanto outras não enfatizaram tal diferença.

Vejo diferenças no trabalho do psicólogo que trabalha em alta complexi-


dade para aquele que não trabalha nesse nível de atenção em saúde, pois
o paciente de alta complexidade passa mais tempo no hospital, tem voltas
programadas de acordo com o tratamento. (Colaboradora 4-E)
Eu não consigo separar a criança com câncer de outros pacientes adultos.
Para mim não existe uma diferença entre as faixas. (Colaboradora 2-E)
A especificidade que eu vejo no tratamento de criança é que ela precisa
desses recursos e da criatividade. A questão do vocabulário é importan-
tíssima. Eu preciso traduzir sempre! (Colaboradora 1-E)
Tem uma diferença no atendimento feito a crianças e feito ao adulto em
Oncologia (...) do ponto de vista emocional é mais fácil lidar com adulto
que tem um discurso diferenciado e discute questões que envolvem o tra-
tamento; e com a criança isso não acontece diretamente, por isso vamos
utilizar outros recursos e seguir por outros caminhos. (Colaboradora 8-E)

Apesar do maior impacto da morte de crianças, as colaboradoras


pareciam ‘bem familiarizadas’ com o contexto da morte, e mesmo revelando
dificuldades inerentes face à impossibilidade de cura e às consequências do
tratamento, afirmaram o cuidado (independente de circunstâncias) e a vida
em seu poder-ser.
“É um cuidado que não se restringe ao ‘curativo’, vai além. O cuida-
do em OP envolve a família e a rede social do paciente” (Colaboradora 7-D).
Para além do cuidado, destacou-se a necessidade de se fazer um
trabalho clínico de modo a inclinar-se em uma escuta atenta e sensível das
crianças, familiares e, muitas vezes, até da própria equipe.
“Na minha experiência, a prática psicológica com criança que tem
câncer é muito parecida com a forma que atuo na clínica. Não é uma transfe-
rência da atuação da clínica em si, mas segue mais ou menos as mesmas
diretrizes” (Colaboradora 2-E).
A incorporação de saberes de outras áreas (como a medicina) e o
desenvolvimento de atividades de educação em saúde também foram menci-
onados como imperativos da prática. Tais atividades foram descritas como
sinônimo de: orientação aos familiares (palestras, rodas de conversa, grupos,
folhetos), intervenções que simulam e preparam as crianças e seus cuidado-
res para os procedimentos e como atividades que utilizam recursos lúdicos e
didático-pedagógicos (brinquedos, jogos, desenhos, livros ilustrados e carti-
lhas sobre o câncer infantil, materiais psicopedagógicos).
362 Sílvia Raquel Santos de Morais e Angela Nobre de Andrade

É importante no trabalho com crianças, a sensibilidade e o resgate do lúdi-


co, pois no hospital essa coisa da criança fica um pouco de lado. A gente
usa muito o lúdico e o reconhece que essa é uma questão importante (...)
em OP tem que haver uma compreensão da realidade, um preparo com de-
senhos e uma atenção ao que esses desenhos e as construções com massa
de modelar querem falar para a gente. (Colaboradora 7-E)

Além disso, a disponibilidade afetiva em estar com o outro, a tole-


rância e a paciência também foram mencionados como perpassando o modo
do psicólogo trabalhar em OP.
“O diferencial da prática do psicólogo em OP é a disponibilidade
interna, a empatia para compreender o que é dito nas entrelinhas ou o que
não é dito. O desejo de cuidar, o desprendimento e a coragem para lidar com
a dor do outro e sua própria dor” (Colaboradora 7-D).
A prática em OP se mostrou como afirmativa, focalizando o que o
outro pode (abertura) e não o que ele não pode (fechamento). Mesmo diante
de um cenário tão complexo, as colaboradoras destacaram a possibilidade, a
potência, o devir, o ‘ainda não’ dos atores envolvidos.

É a importância de se trabalhar também com família para não colocar


aquele paciente no lugar de doente eternamente, o bichinho, o coitadinho,
o que não pode, o que tem que ficar à margem. Eu acho que nossa prática
envolve essa inclusão e isso também parte do paciente, pois a partir do
momento que ele se sente bem, ele vai reivindicar esse lugar junto à sua
família e à sociedade. (Colaboradora 4-GF)

Nem mesmo diante dos paradoxos e das demandas desalojadoras


de uma prática com o poder de desconstruir paradigmas, as colaboradoras
pareciam se esforçar para se livrar das incertezas e da angústia que acompa-
nham o modo-de-estar com essas crianças em OP. Sendo assim, questiona-
mos: o que torna essa prática diferente da prática de psicólogos em outros
campos de atuação? Talvez tal especificidade resida na conotação inten-
sa/constante de imprevisibilidade face à iminência do morrer infantil, nos
significados quase sempre de “não cura” atrelados ao câncer, na condição de
fragilidade física notável das crianças, nas sequelas do tratamento, na possí-
vel interrupção precoce da vida, nos encontros com a alteridade e no possível
“reencontro” do psicólogo com o seu universo infantil.
A conjuntura destes aspectos converge para o acontecer dessa prá-
tica. Não obstante, gera afetações que envolvem questões bioéticas, tais
como o morrer digno, a autonomia da criança (muitas vezes impossibilitada
de exercê-la), os valores atribuídos à vida, as diversas interpretações sobre o
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

câncer, o risco de obstinação terapêutica por se tratar de uma vida ainda em


desenvolvimento. E para lidar com tamanha complexidade, a maioria das
colaboradoras mencionou a sua vinculação com o sagrado por meio da vi-
vência da espiritualidade e da fé, principalmente, a partir de seu trabalho
com crianças em sofrimento oncológico. Essa vinculação parece conferir
sentido ao trabalho desenvolvido, funcionando também como uma espécie
de coadjuvante no processo de enfrentamento do câncer infantil.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O exercício da Psicologia em OP é uma prática legitimada e asse-


gurada por lei (Portaria 3.535 do Ministério da Saúde de 14.10.1998). É co-
letiva em sua execução e desafiadora em seu contexto, sendo permeada por
paradoxos e possibilidades, inclusive a de experimentar o poder-ser próprio
diante de uma doença grave como o câncer. Assim, caracteriza-se pela coe-
xistência de três dimensões constitutivas: 1) o longo período de acompanha-
mento de pacientes e familiares, envolvimento afetivo e proximidade entre
os atores envolvidos, 2) a intensidade no que diz respeito aos vínculos esta-
belecidos entre os atores envolvidos e, 3) as repercussões/afetações que tudo
isso promove nos modos-de-ser e de estar-no-mundo de cada um dos atores
envolvidos.
Essas três dimensões são aspectos definidores do saber-fazer, exer-
cendo repercussão no modo das psicólogas estarem-com-os-outros. Isso ten-
de a gerar vínculos, que não raro, provocam afetações diversas, sobretudo em
momentos críticos de reincidiva, de não resposta ao tratamento e de óbito.
Um dos imperativos do saber-fazer em OP é o trabalho coletivo
mantido pelo diálogo constante e por encontros sistemáticos. Na experiência
das entrevistadas, isso tem ocorrido efetivamente, dadas as especificidades
da área, tais como: morte precoce de crianças, perdas, conflitos familiares,
negligência dos pais, privação de recursos materiais, presença constante de
dor e de procedimentos invasivos, dentre outras condições de vulnerabilida-
de que “exigem” dos profissionais da OP o exercício contínuo de comparti-
lhamento, a disciplina em manter reuniões, além de diálogos sobre o cotidia-
no prático em prol de uma verdadeira “digestão emocional” dos fenômenos,
os quais incidem (de alguma forma) no modo-de-estar-no-mundo de todos os
membros da equipe de saúde.
Além disso, requer um movimento de aproximação-envolvimento
com as demandas emergentes. Nesse movimento, as colaboradoras narraram
que buscam um posicionamento, que resguarde os princípios éticos e a pri-
364 Sílvia Raquel Santos de Morais e Angela Nobre de Andrade

vacidade dos envolvidos. Mesmo diante desse movimento, admitem que não
se trata de uma “prática distanciada” do outro, já que se transita em um “es-
paço propício” para afetar e ser afetado.
Com o tempo, a prática tende a se ancorar, cada vez mais, na pró-
pria experiência das psicólogas que a realizam. Isso foi visto como um modo
não só de superar as lacunas do processo formativo, mas também como des-
dobramentos de um exercício ético, que acolhe o outro como lhe chega, re-
conhecendo a impossibilidade de controle sobre os acontecimentos da OP.
O trabalho envolve ações que oscilam entre as dimensões ôntica e
ontológica, ultrapassando a execução de procedimentos técnicos, pois, mes-
mo quando não é possível alcançar a remissão de sintomas, ainda assim é
possível antecipar-se ao outro e não ser consumido pelo “ter que fazer algu-
ma coisa”, nem que essa coisa seja “eliminar a doença a qualquer custo”. As
colaboradoras nos ensinaram que estar-enfermo significa que ainda temos
possibilidades, mesmo que limitadas, mas temos! E isso é ponto-chave para a
prática do psicólogo, pois, a partir dessa compreensão, a angústia do “ter que
fazer alguma coisa” e a “sensação de impotência do não saber o que fazer”
redimensionam o saber-fazer do psicólogo, que passa a sintonizar e acolher
“o que ocorre no e pelo encontro com o outro e não simplesmente a planejar
ou tentar controlar previamente os acontecimentos do encontro com a alteri-
dade”. Nessa forma de prática, o psicólogo não se atém à doença ou ao dia-
gnóstico, mas às experiências do humano que adoece. Assim, a sua ética
(forma de estar com o outro) constitui o maior balizador de suas ações. En-
tão, passa a não se basear somente em um dado aporte teórico, pois esse
fundamento facilmente se ‘diluiu’ diante da fluidez do binômio morte-vida.
Sendo assim, a prática foi descrita como uma atitude ou posicionamento
ético perpassado por uma escuta atenta e sensível em prol da investigação e
produção de sentidos.
Em OP, talvez pela iminência constante de morte, pelo modo de
conceber os encontros humanos e, ainda, pela afetação que o sofrimento visí-
vel de crianças desperta, psicólogos e demais profissionais de saúde são cons-
tantemente convocados a romper com o individualismo, a desconstru-
ir/redimensionar o que aprenderam na formação acadêmica e a re-inventar
modos interventivos por meio da experimenta-ação cotidiana. Em outras pala-
vras, é colocando a própria experiência sob investigação que tais profissionais
podem revisar a própria prática e construir uma práxis calcada no pensamento,
que medita e não somente no pensamento, que calcula. Em outros termos,
seria uma prática que se aproxima da noção grega de técnica enquanto techné
(arte, invenção). Tanto que a neutralidade não foi uma prerrogativa valorizada
pelas colaboradoras desta pesquisa. Ressaltamos que a desconstrução desse
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

pressuposto metafísico foi importante e nos revelou o que significa desenvol-


ver uma prática realmente “implicada”, ou seja, com envolvimento, seja ele
afetivo, motor ou cognitivo. Sem esse envolvimento, o cuidado não acontece-
ria em OP. Tal envolvimento conserva a perplexidade diante dos fenômenos, o
qual foi traduzido como o exercício de “não impor nem expor o outro” e como
“tentativa de cuidar do outro sem demonstrar-lhe indiferença”.
Por fim, ao investigar sobre a prática psicológica em OP, nos aten-
tamos para a urgente necessidade da Psicologia avançar no que diz respeito
ao saber-fazer voltado para a média e alta complexidade sanitária. As pes-
quisas ainda são escassas e, quando existentes, se concentram na área da
enfermagem e da medicina. Ademais, pouco ou quase nada é ofertado nos
currículos dos cursos de graduação em Psicologia como alternativa para a
discussão/aprofundamento de temáticas relacionadas à prática psicológica
em instituições que lidam diretamente com a iminência de morte. Mesmo
compreendendo que grande parte da formação do psicólogo depende das
escolhas de cada um, questionamos: Como os futuros psicólogos optarão por
algo que sequer existe em seus currículos? Como redimensionar essa reali-
dade em um país, que legisla sobre a obrigatoriedade da presença de psicólo-
gos em equipes de Oncologia e onde o câncer constitui questão de saúde
pública, se nesse mesmo país, não se oferece para os profissionais de saúde
uma formação, que, pelo menos, os introduza no ‘preparo’ para a realidade
da média e alta complexidade em saúde? Com isso, resta ao psicólogo optar
por um saber especializado em termos de pós-graduação, ferindo (em tese)
os princípios de uma formação generalista e contextualizada com as deman-
das emergentes. Diante disso, questionamos: Se disciplinas, estágios e pro-
jetos fossem ofertados (no âmbito da média e alta complexidade sanitária)
durante a graduação, será que não teríamos um maior número de psicólogos
inseridos em serviços de Oncologia e de Oncologia Pediátrica, por exemplo?
Será que tal inserção em fatias emergentes de mercado não contribuiria para
uma maior desmistificação da profissão tanto em segmentos públicos quanto
em segmentos privados? Será que a recente inserção de psicólogos no setor
público de saúde ainda não ocorreu de modo mais efetivo devido à falta de
articulação da categoria e à falta de “preparo” para tal?

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A AÇÃO DO PSICÓLOGO E A
ESCUTA DOS CONFLITOS
NAS ORGANIZAÇÕES
Regina Coeli Araujo da Silva
Ana Lúcia Francisco

Sumário: 1. Trajeto Percorrido. 2. Considerações. 3. Referências.

Dentre as inquietações que motivaram a investigação desta temáti-


ca – a escuta dos conflitos nas organizações – encontra-se a reflexão acerca
da subjetividade do trabalhador, sobretudo quando se considera os efeitos da
ambiência das organizações sobre essa construção subjetiva. O ambiente de
trabalho, resguardadas as características próprias de cada cultura organizaci-
onal, tende a promover, via de regra, um conjunto de comportamentos e so-
frimentos que se expressam na produtividade do trabalhador, no modo como
ele se reconhece na organização e nas relações interpessoais estabelecidas.
Por maior autonomia que tenha o trabalhador, a operacionalização do traba-
lho requer, na grande maioria dos casos, concessões, adaptações, readapta-
ções e, no limite, silenciamento de afetos e desejos. Lentamente o trabalha-
dor passa a caminhar em direção à adaptação profissional, buscando ser
aprovado pela equipe de colegas e pelos respectivos chefes (gestores). Ao
encontro dessas considerações, podemos citar Morato (2004), quando afirma:

O indivíduo contemporâneo é, portanto, aquele capaz de adaptar-se, ca-


lando aquilo que, em sua interioridade, questiona ou é tocado no contexto
de seu existir-em-situação, passando a considerar problemas ou situações
em sua frieza, buscando a excelência e a eficácia. Essa redução cada vez
maior de espaços para a subjetividade e modos de subjetivação atrofia-
dos, implica também reduzir as possibilidades de reflexão acerca do agir
social, gerando uma vinculação perversa aos grupos sociais, na medida
em que promovem a assimilação direta, pelo indivíduo, dos modos de ser
dos grupos sociais a que pertence. (p. 347)

Partindo dessa perspectiva, o caminho para compreender os con-


flitos que emergem da relação entre instituídos e suas instituições perpassa
370 Regina Coeli Araujo da Silva e Ana Lúcia Francisco

pelo reconhecimento dessa ambiência. Ao mesmo tempo em que ela possibi-


lita tranquilidade e segurança, na medida em que as ações são planejadas e
controladas, concomitantemente limita a ação criativa e transformadora do
trabalhador, coautor da produção coletiva que acontece nas organizações.
Outra inquietação que moveu a tessitura deste trabalho repousa na
preocupação acerca do modo de funcionamento organizacional que, geral-
mente, apresenta metas e procedimentos padrões para a realização das tare-
fas, sem levar em conta as diferenças individuais, as condições e os proble-
mas concretos do trabalho e o próprio “modo de ser” de cada trabalhador.
Em outras palavras, parece não haver o reconhecimento ou a consideração da
interação existente entre subjetividade e objetividade. Mesmo tendo em vista
que na situação de trabalho o trabalhador é convocado a realizar tarefas pa-
dronizadas por um conjunto de procedimentos, esse mesmo trabalhador ter-
mina por construir uma forma parcialmente singular, uma espécie de “estilo
próprio” em suas atividades. A desconsideração desse fato parece advir de
uma postura de indiferença por parte daqueles que gerenciam a organização,
como também pelos responsáveis técnicos do trabalho.
Ao lançarmos luz sobre as pesquisas que interrogam o sofrimento
do trabalhador, podemos constatar, segundo Deusdedit-Júnior (2007) “a
grande maioria dos estudos tem focado sua atenção na identificação dos fato-
res de agravo à saúde mental, buscando estabelecer uma correlação entre as
especificidades do trabalho e o tipo de adoecimento encontrado entre os tra-
balhadores” (p. 123). Apesar de ter significado um importante avanço a pu-
blicação, no Brasil, do livro A Loucura do Trabalho, de Christophe Dejours
(1987), fomentando o interesse pela temática em diversos pesquisadores
(Fonseca, 2006; Mendes, 2001; Vieira, 2007); ainda persiste o distancia-
mento entre a produção no campo da saúde mental & trabalho e a clínica,
caracterizando uma espécie de “ausência da categoria trabalho na prática
clínica”. Esta situação vem mostrando sinais de mudança, na medida em que,
progressivamente, alguns autores (Codo, 2004; Vasques-Menezes, 2004,
Tavares, 2004) discutem intervenções que propõem a incorporação da cate-
goria trabalho em atendimentos clínicos, bem como refletem sobre a neces-
sidade de se repensar os modelos clínicos tradicionais, em favor de novas
formas de abordagem dos problemas de saúde mental apresentados por tra-
balhadores que se dirigem aos profissionais de psicologia. Nessa mesma
direção, se situam a clínica social e as pesquisas que se inscrevem numa
perspectiva, tal como reconhece Lévy (2001), caracterizada por “uma dé-
marche específica, simultaneamente de pesquisa e intervenção, junto a gru-
pos e organizações sociais de qualquer natureza, confrontados com situações
de crise que afetam suas estruturas e seus modos de funcionamento, assim
como as pessoas que nelas se encontram implicadas” (p. 13).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

O aporte teórico consultado, bem como as pesquisas realizadas


neste campo, permitiu constatar que até os anos de 1980, o psicólogo nas
organizações não se diferenciava efetivamente de outros trabalhadores que se
submetiam a um trabalho fragmentado e não possuíam uma visão da totali-
dade do contexto em que se inseriam. Faltava-lhe, portanto, uma clara visão
do produto final do seu trabalho (Zanelli, 2002).
Com a aceleração do desenvolvimento tecnológico advinda, so-
bretudo, da transformação digital, novas exigências se colocaram, afetando
não só a organização da sociedade como um todo, mas, talvez, principal-
mente, o mundo do trabalho. A este respeito afirma Siqueira (2009):

Já no que diz respeito à nova realidade social, surgem, aí, continuamente,


novos tipos de relações de trabalho e de estilos de vida. A sociedade atual
parece assumir características voltadas ao desenvolvimento tecnológico e
tudo o que ele acarreta, como as redes de informação e a biotecnologia.
O indivíduo é obrigado a se inserir nessa realidade criada pelo progresso,
adaptando-se de modo a alcançar o atendimento de seus desejos. (p. 27)

Nessa mesma direção, outros estudos enunciam que conflitos e


contradições passaram a compor a cultura empresarial na contemporaneida-
de, na medida em que protagonizam o confronto entre o desejo do sujeito e
as expectativas institucionais. Portanto, faz sentido afirmar que:

a organização do trabalho produz um jogo de forças contraditórias que ope-


ram sobre o trabalhador, levando-o às mais diversas soluções de compro-
missos. Essas contradições são vivenciadas quando entra em confronto o
desejo do sujeito, expresso nas necessidades, aspirações e interesses e a re-
alidade de trabalho, geralmente, marcada pelo produtivismo, desempenho e
excelência. Um exemplo de contradições muito presente nas relações de tra-
balho, hoje, é o “fazer mais versus fazer bem”. (Mendes, 2008, p. 13)

Dentre as práticas psicológicas nas organizações destaca-se a es-


cuta dos conflitos dos trabalhadores que sofrem por não encontrarem saídas
diante dos impasses que emergem. Esta escuta possibilitaria ao psicólogo
cartografar as demandas que lhe são dirigidas nas organizações, descrever os
conflitos existentes entre os trabalhadores e, ainda, identificar as possíveis
estratégias interventivas diante dos conflitos instalados entre esses atores
sociais. Este trabalho de pesquisa, por conseguinte, teve como objetivo geral
investigar a ação do psicólogo clínico como mediador de conflitos entre em-
pregados e seus gestores no contexto das organizações produtivas em que
atuam, problematizando as estratégias utilizadas para suas intervenções, as-
sim como o suporte oferecido pela formação acadêmica desse profissional.
372 Regina Coeli Araujo da Silva e Ana Lúcia Francisco

De forma específica, procurou-se cartografar as demandas dirigidas


ao psicólogo inserido (empregado) na área de Recursos Humanos, bem como
os descrever os conflitos existentes entre trabalhadores e gestores no con-
texto de algumas organizações públicas/privadas e identificar as estratégias
interventivas do psicólogo na mediação dos conflitos instalados entre esses
atores sociais. Procurou-se, também, examinar como o profissional compre-
ende o olhar clínico e a psicologia na prática da mediação de conflitos entre
trabalhadores de uma mesma organização.

1 TRAJETO PERCORRIDO

1.1 Participantes
Participaram da pesquisa 07 psicólogos, todos atuando em regime
de vínculo empregatício nas empresas onde trabalham na área de Gestão de
Pessoas e que realizam práticas psicológicas voltadas para o conjunto de
trabalhadores de suas respectivas organizações, em Recife/PE. Considerou-
se a diversidade de características desses participantes, tais como, tempo de
empresa, cargo e natureza da organização (pública e privada). Do grupo de
profissionais, apenas uma profissional é vinculada, através de concurso, a um
órgão público. Outra é empregada de uma instituição de economia mista,
sem fins lucrativos, mas o contrato é regido pelas normas previstas na CLT.
Os outros cinco profissionais são funcionários de empresa da economia pri-
vada. Apenas um participante é de gênero masculino. Em termos de posição
na estrutura de cargos da empresa, quatro participantes estão em cargos de
gestão (gerente/encarregado), os outros ocupam função de analista de Recur-
sos Humanos ou Capital Humano. Os nomes fictícios atribuídos aos atores
sociais foram definidos a partir de características observadas durante as en-
trevistas. Pôde-se perceber que, apesar das adversidades vividas por estes
profissionais, suas falas eram permeadas por sentimentos e expressões mar-
cantes de “vida”, revelando posturas de coragem e de crença nas possibili-
dades de seu trabalho, inspirando a proposição de codinomes tais como:
semeadora da Reflexão, semeadora da emoção, semeadora do resultado,
entre outros.

1.2 Recursos
O recurso utilizado para a compreensão da experiência dos psicó-
logos-participantes da pesquisa foi uma entrevista semidirigida, tendo como
questão norteadora a experiência vivida como psicólogo(a) na organização.
A partir desta “provocação”, as narrativas eram aprofundadas através de
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

outros eixos temáticos pertinentes aos objetivos propostos, conforme roteiro


(anexo A). A utilização da entrevista semidirigida se justifica na medida em
que se caracteriza por permitir a organização de certo grau de estruturação,
além de possibilitar a fala de forma livre, ao tempo em que as questões são
suscitadas. Minayo (1996) corrobora com esta reflexão e afirma:

o que torna a entrevista instrumento privilegiado de coleta de informa-


ções é a possibilidade de a fala ser reveladora de condições estruturais,
de sistemas de valores, normas e símbolos (sendo ela mesma um deles) e
ao mesmo tempo ter a magia de transmitir, através de um porta-voz, as
representações de grupos determinados, em condições históricas, socioe-
conômicas e culturais específicas. (p. 109)

1.3 Procedimento
As entrevistas, previamente agendadas, foram todas realizadas nas
dependências das empresas onde os profissionais de psicologia trabalham,
em local apropriado e segundo a conveniência dos participantes. Ao se inda-
gar sobre a experiência do profissional de psicologia em algumas organiza-
ções (públicas e privadas), buscou-se problematizar a sua escuta clínica di-
ante dos conflitos e no acolhimento das apreensões e questionamentos a ele
direcionados. As entrevistas foram transcritas e literalizadas, procurando
obedecer, com o máximo de fidelidade, seus silêncios e pontuações.

1.4 Análise dos Dados


Fundamentados nos estudos de Bardin (1977) e orientados pelos
objetivos propostos, buscou-se, para cada eixo temático trabalhado ao longo
da entrevista (ANEXO), atribuir núcleos de sentido, com a finalidade de
apreender o modo como os psicólogos(as) se sentem e percebem o trabalho
que desenvolvem. Esta análise compreende a construção de significados
expressos pelos atores sociais através da exteriorização do seu discurso. As-
sim, operacionalizar o trabalho do pesquisador, não de forma rígida e sim
como uma bússola, norteando e indicando caminhos que o trabalho de pes-
quisa exige, impõe-se como uma tarefa. Trivinos (1987, p. 160), ao utilizar a
análise de conteúdo, tal como conceituada por Bardin (1977), fundamenta-a
nos seguintes termos: “um conjunto de técnicas de análise das comunicações,
visando, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteú-
do das mensagens, a obter indicadores quantitativos ou não, que permitem a
inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção
das mensagens”.
374 Regina Coeli Araujo da Silva e Ana Lúcia Francisco

Como última etapa para a compreensão das entrevistas obtidas, rea-


lizou-se uma análise dos conteúdos mais frequentemente explicitados, de
modo a oferecer ao leitor uma grade de leitura acerca dos sentidos evocados
em cada eixo temático abordado. É possível que não se tenha esgotado as
múltiplas dimensões presentes nas ações desenvolvidas por estes profissio-
nais, mas houve, sem dúvida, esforços para se criar condições para que as
categorias construídas pudessem ser fonte de reflexões.
Nesse ciclo se percebe que a pesquisa se apresenta quase que ple-
namente em formato de espiral e que algumas indagações e busca de res-
postas são provisórias, caminho que instiga novas indagações, criando redes
de sustentação para futuras investigações. O conhecimento é “uma constru-
ção que se faz a partir de outros conhecimentos sobre os quais se exercita a
apreensão, a crítica e a dúvida” (Minayo, 1999, p. 89).

1.5 Resultados e Discussão


Diversas foram as reflexões suscitadas pelas narrativas dos profis-
sionais entrevistados. Optou-se por abordar em conjunto as considerações
pertinentes às demandas, às intervenções e a contribuição da formação em
psicologia para a ação dos psicólogos na escuta dos conflitos, considerando-
se que estão dialogicamente relacionadas.
Percebe-se que ao acolher as demandas que lhe são dirigidas, o dis-
curso construído pelo psicólogo inserido na área de Recursos Humanos re-
produz a ideologia adotada pela empresa, ideologia nitidamente vinculada ao
sistema capitalista. A formação clínica sucumbe ao poder organizacional
prendendo esses profissionais às armadilhas do discurso organizacional da
servidão voluntária e do gerencialismo. Esta constatação nos leva a indagar:
quais as razões para este aprisionamento? O que leva o profissional que foi
formado para escutar o sofrimento humano, buscar, na organização, minimi-
zar conflitos? Por que as estratégias de intervenção usadas são funcionalistas
e cognitivistas? Como a formação clínica pode contribuir para práticas orga-
nizacionais mais emancipatórias e humanas?
Uma leitura cuidadosa da ambiência na qual se encontra “mergu-
lhada” a prática psicológica no mundo do trabalho auxilia a compreensão
acerca da posição assumida pelos psicólogos, a qual favorece uma visão
pragmática do sujeito como objeto de deveres, qualidade que, geralmente,
incorpora o perfil esperado pela equipe de gestores. A obtenção do lucro,
permeada pela cultura de resultado, encontra-se na base dos objetivos a
serem almejados por todos os sujeitos empregados pela organização, in-
cluindo a profissional de psicologia, como “recurso” a ser utilizado para o
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

atingimento das metas organizacionais. Assim, a percepção a seu respeito


torna-se parcial, na medida em que destaca apenas um lado do ser humano:
o que realiza tarefas que lhe são delegadas, em detrimento ao lado dese-
jante desse mesmo sujeito, arrefecido pelas exigências da produção e do
capital. A esse respeito Araújo (2008) afirma que “(...) o trabalhador rara-
mente tem sido considerado sujeito, pessoa de direitos e desejos, restando-
lhe o lugar de sujeito/objeto de deveres. Ele não passa de “força de traba-
lho”, de “recurso humano”, sempre reificado, gerido como coisa, como
qualquer outro instrumento ou máquina a serviço da produção, da acumu-
lação ou do lucro” (Araújo, 2008, p. 54).
Esse sujeito percebido como objetivado e instrumentalizado traduz
a ruptura entre trabalho e desejo, como se, para atingir as metas esperadas
pelo capitalismo de sobreprodução, o ser humano fosse capaz de por de lado
suas angústias e expectativas, mecanismo que lhe daria condições de asse-
melhar-se à neutralidade das máquinas e computadores da área de produção.
Nessa direção, afirma Arendt (2000):

O último estágio de uma sociedade de operários, que é a sociedade de de-


tentores de empregos, requer de seus membros um funcionamento pura-
mente automático, como se tal espécie, e a única decisão ativa exigida do
indivíduo fosse deixar-se levar, por assim dizer, abandonar a sua individua-
lidade, as dores e as penas de viver ainda sentidas individualmente, e aqui-
escer num tipo funcional de conduta entorpecida e “tranquilizada”. (p. 335)

Ao trazer à luz essa tendência no comportamento do trabalhador de


se ver como parte da engrenagem que subjaz ao modus operandi das organi-
zações, sinaliza-se para os perigos instalados no campo das intervenções
psicológicas no mundo corporativo. O profissional passa a ser “avaliado”
em suas ações com base nesse tipo de parâmetro produtivo, não apenas pelos
chefes de plantão, mas, também, pelas estruturas de controle externas à or-
ganização.

Talvez a tentativa de estabelecer um corte entre o campo do trabalho e o


campo do desejo, colocando o campo do trabalho como algo disciplina-
do, tomado pelas estruturas de controle e pelas estruturas hierárquicas e,
de preferência, sem a intervenção do desejo, tenha um propósito: o de
calar o desejo como força potencializadora de novos sentidos e ações,
mantendo com isto a modelização do sistema dominante. (Francisco,
2000, p. 109)

Nesse contexto, o psicólogo se percebe como depositário de de-


mandas contraditórias: as que emanam do sofrimento do trabalhador e aque-
376 Regina Coeli Araujo da Silva e Ana Lúcia Francisco

las provenientes do discurso positivista da gestão organizacional, via de re-


gra, representada pelos líderes (gerentes/chefes/encarregados), que estimu-
lam o comportamento adaptativo nas equipes de trabalho. Diante desse im-
passe, o profissional corre o risco de favorecer, em suas intervenções, o
“desenvolvimento” dos trabalhadores numa perspectiva reguladora, a come-
çar pela modalidade de escuta dos conflitos. Embora, conscientemente, al-
meje o alívio do sofrimento, sua escuta torna-se seletiva, pois busca identifi-
car no discurso do trabalhador, elementos (representações) que possam ser
utilizados na composição de reflexões que devolvam harmonia à relação
homem-trabalho, mesmo que este caminho não passe pela via da ressignifi-
cação, nem por uma análise detalhada dos fatores causadores do mal-estar.
Ao ser requisitado pela gestão para promover, em sua prática, o re-
forço do sistema de valores em voga na organização, mesmo que de modo
não deliberado, o profissional passa a atuar como mais um mantenedor do
poder hegemônico. Dito de outro modo, a escuta dos conflitos tende para o
acolhimento das queixas mais com o intuito de acalmar os ânimos do traba-
lhador, menos para a ressignificação do sofrimento vivido.
Os atores participantes desta pesquisa parecem reconhecer essa du-
pla tarefa que lhes é dirigida.

Da escuta, se isso for para desenvolver a liderança, OK. É o que a gente


chama de coaching, que acontece. Mas, não me venha com a escuta se
não for com esse objetivo, entendeu?... é uma empresa que não puxa por
isso. E, quando puxa, é voltada para o negócio, entendeu? Falta aí o lado
humano mesmo da história. (Semeadora da Reflexão)
(...) Aí a gente ouve o colaborador, vem no gerente, trabalha o gerente
para isso, sem que o colaborador... e trabalha o colaborador. Então, a
gente está trabalhando os dois comportamentos para depois fazer com
que melhore essa relação e melhore esse conflito... porque isso prejudica
na produtividade. (Semeadora da Emoção)

É importante atentar para o fato do psicólogo, em suas interven-


ções, adotar um discurso aparentemente emancipatório. Embora esse seja um
fenômeno recorrente, uma análise detalhada dá conta de que a autonomia do
trabalhador, também chamado “poder descentralizado” que apregoa, por
vezes, como sendo objetivo de sua prática, refere-se mais a um tipo de auto-
gerenciamento do comportamento do trabalhador, de modo que o mesmo
seja capaz de um controle sobre suas próprias ações/reações dentro da orga-
nização para atender a “uma nova estrutura organizacional, caracterizada,
fundamentalmente, por oferecer aos trabalhadores maior grau de “autono-
mia” na organização da produção, por meio do desenvolvimento de meca-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

nismos de controle mais sutis e envolventes” (Heloani, 2008, p. 153). Essa


intenção parece caminhar em direção à evitação de que outros agenciamen-
tos coletivos de subjetivação sejam construídos, distintos daqueles sustenta-
dos pela lógica da produção. Ainda sugere que os conhecimentos específicos
da formação em psicologia, não raro, são emprestados aos objetivos das
questões operacionais e gerenciais, como por exemplo, no caso dos treina-
mentos e dos processos seletivos.

(...) não é trazer a perspectiva da formação para o negócio, é entender as


necessidades do negócio e como é a minha formação, como com os meus
atributos podem colaborar para que aquelas necessidades sejam supri-
midas, ou até para antever uma necessidade que pode surgir pela forma
como o negócio opera. (Semeador do Resultado)
(...) a seleção mexe um pouco com o lado psicólogo por que você está ali
na escuta do candidato, na percepção, não é? Tenta “filtrar” aquilo que
ele está dizendo para você trazer o melhor potencial para dentro da em-
presa, não é? E isso aí é um lado bastante psicólogo dentro da organiza-
ção. Ainda continua ser o de seleção porque você está identificando, está
conhecendo, está praticando uma escuta que no dia a dia você não tem
tanta, tanta prática não. (Semeadora da Reflexão)

Decorrente da necessidade de adaptar-se às características estrutu-


rais do funcionamento organizacional, o psicólogo, via de regra, acata como
identidade funcional títulos de cargos que, de certo modo, reforçam o distan-
ciamento do real propósito de suas contribuições como profissional de psi-
cologia, tais como, analista de recursos humanos e gerente de capital huma-
no. Questões relativas à remuneração salarial e outros ganhos indiretos tam-
bém parecem influenciar a decisão do psicólogo em atuar nas organizações.
Neste sentido, pesquisas dão conta que as empresas oferecem oportunidades
de carreira e elevação de poder aquisitivo e esses fatores atuam como atrati-
vo para grande número de profissionais, dentre eles os das ciências humanas.
No entanto, ao ingressar no mundo do trabalho o profissional vê-se pouco
capacitado para lidar com a ambiência organizacional e, por vezes, é perce-
bido pelo trabalhador como dotado de escassa capacidade crítica para, efeti-
vamente, promover intervenções nas questões estratégicas e processos ge-
renciais, caminho que poderia facilitar a emergência das mudanças necessá-
rias à organização do trabalho. O ingresso na organização, por vezes, é moti-
vado pela aspiração de crescimento funcional, aliada ao desejo de melhoria
salarial e aquisição de vantagens e outros benefícios. Na perspectiva adotada,
concorda-se que “sob o pretexto de não se formar um profissional que ali-
mente a engrenagem da produção em nossa sociedade, forma-se um profissi-
onal despreparado e que, de qualquer modo, encaminha-se para as organiza-
378 Regina Coeli Araujo da Silva e Ana Lúcia Francisco

ções, porque melhor pagam ou porque é necessário sobreviver” (Zanelli,


2002, p. 171).
Corrobora com essas ideias um fragmento de narrativa de uma das
participantes da pesquisa realizada: “(...) eu vim assim... realmente... pelo
desafio, pela própria... pelo salário que era oferecido, as vantagens que a
empresa tinha e por iniciar um processo novo que pra mim... tudo novo”
(Semeadora da Verdade).
As narrativas obtidas também permitiram perceber que a ação do
psicólogo nas organizações é caracterizada por um processo de construção
consciente, que dirige seus cuidados tanto ao colaborador como a seus gesto-
res, reconhecidos como parceiros fundamentais para a realização do trabalho
em coletividade. Revelaram, ainda, que são muitos os desafios vividos pelos
profissionais nesse contexto, considerando-se, principalmente, a condição de
estarem na posição de empregados nas organizações para as quais trabalham,
o que lhes exige a adoção de concepções e posturas que contemplem as di-
mensões próprias à natureza do negócio das empresas, além dos fatores his-
tórico-sociais que engendram a cultura organizacional.

O sistema sociopsicológico formado pela organização e que interessa di-


retamente aos profissionais que lidam com os recursos humanos, inclui os
níveis econômico, político, ideológico e psicológico. Uma vez que esses
níveis operam em um processo integrado para determinar o fenômeno
comportamental nas organizações, a análise e qualquer tentativa de in-
tervenção não deve se dar isolando-os. (Zanelli, 2002, p. 167)

Destaca-se, do conteúdo colhido nas narrativas, a prevalência do


discurso organizacional: tecnicista, objetivista e produtivista. São pouco
mencionados os efeitos dos conflitos no sofrimento dos trabalhadores para os
quais atuam, e menos ainda para eles, embora se perceba nos profissionais
estudados vivência de sofrimento e uso de defesas, bem como discrepâncias
entre o discurso e suas práticas. Mesmo com a participação nos processos de
mudança como, por exemplo, nos modelos de gestão organizacional, ainda é
evidente o nível de submissão e servidão à hegemonia que rege o comporta-
mento e os resultados operacionais. Atuam, sobretudo, numa perspectiva
funcionalista e pouco crítica, usando práticas de seleção, treinamento e ava-
liação.
No entanto, fica claro que a posição adotada pelo psicólogo não é
deliberada, nem voluntária. Há um conjunto de fatores que entram em cena e
que, provavelmente, promoveram o afastamento desse psicólogo da escuta
clínica. Assim como os demais empregados, ele também se encontra refém
do gerencialismo, dos interesses institucionais e da sedução permeada pela
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

cultura organizacional. Quando ocupa posições de gerência, quanto mais


estratégica a posição, corre o risco de vivenciar uma nova forma de servidão
moderna, semelhante à condição de executivo, pois envolve uma dependên-
cia moral e econômica em relação à empresa, provedora do emprego e do
conforto material (DEJOURS, 2008).
Parece, ainda, que a formação em psicologia é insuficiente para dar
conta das novas exigências de cunho tecnológico e tecnicista, deixando o
psicólogo à mercê de cursos que repousam sobre o pragmatismo da empresa
moderna: dinâmica de grupo, formação para realizar coaching, seleção de
pessoal, desenvolvimento de líderes, treinamentos e capacitações. Vale sali-
entar que todas essas formações complementares têm a predominância do
discurso do capitalismo, da globalização, muitas delas com instituições de
formação internacional disponibilizando uma gama de ferramentas didáticas
com possibilidades de aplicação em, praticamente, todo o ocidente. Neste
aspecto, ressalta-se a preocupação com o desamparo teórico/epistemológico
vivido pelos psicólogos nas organizações, fato que resvala na aquisição de
novas competências, muitas delas distantes do escopo da psicologia en-
quanto ciência e profissão.

A desatenção ao preparo para as atividades do psicólogo, organizações,


é uma forma de negação da área. A desatenção não é verificada apenas
quanto aos cursos de pós-graduação. As disciplinas, nos cursos de Psi-
cologia, não vinculam os aspectos metodológicos e de repertório neces-
sários ao futuro profissional. Desvincula-se o preparo do pesquisador do
preparo do profissional para atividades aplicadas, especialmente em or-
ganizações. (Zanelli, 2002, p. 165)

As narrativas sinalizam que, em geral, a atual direção da formação


do psicólogo que trabalha organizações está ligada às demandas imediatas (e
instáveis) do mercado de trabalho com a consequente perda do seu caráter
crítico e reflexivo. Recomendável seria o estudo dos princípios que regem a
teoria e a prática psicológica, com objetivo de revisão, no que tange aos co-
nhecimentos que dizem respeito a essas práticas nas organizações, notada-
mente daquelas que abarcam a inclusão da categoria trabalho na prática da
psicologia clínica (Ferreira Neto, 2004). Afirma este autor:

As novas diretrizes curriculares, mesmo inseridas num projeto explícito


de atrelamento aos padrões de mercado, avançam ao propor uma con-
cepção de currículo não mais centrada somente na grade de disciplinas e
na transmissão de conteúdos padronizados. Elas enfatizam experiências
de produção de conhecimento por meio da associação entre ensino, pes-
quisa e extensão. O currículo passa a ser pensado como sendo o conjunto
380 Regina Coeli Araujo da Silva e Ana Lúcia Francisco

das experiências que promovem a formação e vão além da pura apreen-


são de conteúdos prontos. (p. 182)

Nessa perspectiva refere uma das participantes:

Acho que poderíamos contribuir muito mais se a nossa grade, se a nossa


formação fosse diferente, sabe? (...) o curso de psicologia, para quem
opta por organizacional, em especial, acho que perde muito. Porque você
nem aprofunda no organizacional como deveria, e você perdeu toda a vi-
vência clínica, que é fundamental para a instituição também. (...) Sempre
que eu posso eu tento trazer essa visão clínica, apesar de não ter forma-
ção, para fazer uma escuta diferente aqui, entendeu? (Semeadora da Co-
municação)

Apesar das dificuldades, sem dúvida relevantes, há que se pesar os


inúmeros esforços do psicólogo nas organizações em busca da minimização
do sofrimento do trabalhador, através de práticas que ao longo do tempo vêm
se mostrando frutíferas (coaching, dinâmica de grupo, entre outras). Práticas
que minimamente se dispõem a, de algum modo, ouvir os trabalhadores.
Percebe-se com nitidez a intenção do profissional em fazer uso dos instru-
mentos que encontra ao seu alcance e que, presentemente, incorporam possi-
bilidades de, uma vez utilizados, promoverem alívio das tensões nas relações
de trabalho. O momento histórico/social configura o cenário onde se dão as
intervenções, na medida em que, “o lugar do trabalho clínico corresponde a
uma situação concreta e a um tempo vividos – e não a uma atopia, como o
desejariam as ciências positivas” (Lévy, 2001, p. 20). O profissional encara
os desafios, tenta manter-se atualizado tecnicamente, do modo mais rápido e
com os recursos oferecidos pelo mercado, na medida em que percebe que seu
espaço de atuação – a organização, demanda por respostas em ritmo e situa-
ções peculiares.

2 CONSIDERAÇÕES

Foucault, em O nascimento da clínica (1994), afirma que compre-


ender o sentido e a estrutura da experiência clinica é, sobretudo, retomar o
percurso histórico das instituições nas quais ela se organizou, como forma de
se prevenir a redução e simplificação do método. Seu pensamento acerca da
intervenção clínica ultrapassa os pressupostos do método clínico, refere-se
antes a uma atitude ética em relação ao outro, focando a atenção sobre a
vivência, em seu contexto histórico e particular, que se dá na complexidade
de cada sujeito.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

O mundo do trabalho detém inelutável valor diante do contexto social


e da conjuntura de mundo na qual figuramos como atores sociais. Para atingir
seus objetivos, as organizações dependem, literalmente, de seus trabalhadores,
não raro, em esforços coletivos de produção para se manterem vivas e em
constante movimento, visando a sobrevivência em um mercado francamente
competitivo e globalizado. Esses organismos compostos de verdadeiros aglo-
merados de corpos e mentes estão susceptíveis às vicissitudes que acometem a
convivência humana em seus diversos contextos. Na ação produtiva em coleti-
vidade, inúmeras são as possibilidades de encontros e desencontros que, via de
regra, provocam “turbulências corporativas”1 fazendo o foco de atenção migrar
das tarefas e dos afazeres para a relação homem-trabalho, colocando os atores
frente a frente, imersos em uma sensação de vazio e perda da direção. Sob esse
mesmo ângulo de visão, Lèvy (2001) considera que crises de sentido ocorrem
não só no nível individual, mas, também, na dimensão dos grupos e organiza-
ções. Acontece que os “tremores” que abalam as relações humanas no mundo
do trabalho, (felizmente!) apresentam rebatimentos nas questões gerenciais e
resultados organizacionais, transformando-se em incômodos de natureza insti-
tucional que, não raro, vêm a se constituir demandas para a intervenção clínica.
Nessas situações, é possível que pedidos de ajuda sejam dirigidos ao profissio-
nal de psicologia. Nos termos de Lèvy (2001):

As démarches de intervenção, diretamente implicadas nas démarches orga-


nizacionais, só são possíveis porque a amplitude e a complexidade das
dificuldades são tantas que, ao contrário do que normalmente acontece,
os membros das organizações implicadas estão dispostos a gastar tempo
e a se esforçarem sara se interessar em seu funcionamento coletivo. (Op.
cit., p. 147)

Diante do espaço e da demanda de sofrimento, o psicólogo encontra-


se na posição do clínico que se inclina junto ao leito do paciente, numa alusão à
medicina clássica, da qual as ciências humanas tomaram por empréstimo o
termo clínica. Novas possibilidades de intervenção vêm se configurando e
mostram-se propícias à ressignificação do sofrimento do trabalhador e, conco-
mitantemente, podem subsidiar a escuta clínica dos conflitos nas organizações.
Parece, neste ponto, importante salientar que: “o papel do consultor-interventor
não é só o de organizar ou ajudar na organização, mas de analisar os processos
e as significações, de facilitar deslocamentos de perspectivas, que permitirão
recomposições e recriações do vínculo social” (Barus-Michel, 2001, p. 184).
Mesmo considerando os diversos fatores que se constituíram obstá-
culos para intervenções psicológicas no contexto organizacional, insiste-se que

1
Expressão nossa.
382 Regina Coeli Araujo da Silva e Ana Lúcia Francisco

a ambiência do trabalho solicita uma clinica psicológica cujo foco privilegiado


é a escuta dos trabalhadores para, com eles, “reapreciar a finalidade do trabalho
e das atividades humanas em função de critérios diferentes daqueles do rendi-
mento e do lucro...” (Guattari, 1991, p. 42). Essa modalidade de escuta denota
uma possibilidade do psicólogo para contribuir com práticas organizacionais
mais emancipatórias e humanas. A clínica, vista sob essa perspectiva, exige do
profissional, além de menos vulnerabilidade ao discurso institucional e às ma-
nobras do capital, novos posicionamentos, na medida em que requer liberdade
de pensamento e capacidade crítica em direção ao desejo daquele que sofre. As
intervenções decorrentes dessa modalidade de escuta retomam novos arranjos
compreensivos que possibilitam a ressignificação do sofrimento do trabalhador.
Postas essas considerações, reforçamos a proposição de que

... a abordagem clínica é, principalmente, a abordagem de um sujeito, ou


de um conjunto de sujeitos reunidos em um grupo ou uma organização, às
voltas com um sofrimento, uma crise que os toca por inteiro; o clínico su-
põe sujeitos vivos, desejantes e pensantes, falando igualmente, (...) para
encontrar um sentido para suas emoções, para suas lembranças, ou para
sua história, que eles constroem a cada instante. (Lévy, 2001, p. 20)

Nessa direção é relevante a definição de clínica proposta por Rolnik,


a partir das contribuições de Foucault, Deleuze e Guattari (apud Ferreira Neto,
2004): “clínica como campo transindividual de intensificação de processuali-
dades transformadoras que criem novos modos de subjetivação individuais e
coletivos numa resistência ativa face aos sistemas de submetimento dominan-
tes que nos atravessam” (p. 156). É possível que a clínica praticada sob tal
enfoque viabilize a expressão do sofrimento do trabalhador com o propósito de
que, a partir da elaboração/perlaboração com base no real, possa fazer surgir
vias para a compreensão de sua relação com o trabalho.
Também é importante sinalizar para o necessário aprofundamento
nos estudos das problemáticas do mundo do trabalho, especialmente por
aqueles profissionais que pretendem auxiliar o trabalhador no encaminha-
mento de suas angústias e conflitos no contexto organizacional. Outro aspecto
a ser considerado diz respeito à interdisciplinaridade na formação clínica,
como alternativa que, possivelmente, proporcionará ao psicólogo uma visão
global acerca dos fenômenos que se dão no eixo da relação homem/trabalho.

(...) é verdade que há um tipo de conhecimento que é produzido na clínica e


só nela, mas é um equívoco, tratar a clínica como mera área de conheci-
mento separada de outras áreas a partir de seus temas... (Figueiredo, 2004,
p. 60)
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

(...) eu acho que não tinha que haver esse distanciamento tão grande... o
psicólogo clínico precisava ter essa visão de organização, também. E o
psicólogo organizacional tinha que ter essa visão clínica. É fundamental.
Como você vai trabalhar em um ambiente organizacional se você não
está habilitado para trabalhar com o comportamento humano? Com a
abordagem humana, como um todo? É uma pena. Mas, enfim, Nós temos
que correr para suprir essas lacunas, não é? (Semeadora da Comunicação)

Cientes dos desafios a serem enfrentados, espera-se que este trabalho


tenha contribuído para que a escuta dos conflitos nas organizações seja feita em
prol da constituição da pessoa e da saúde mental do trabalhador. Pessoa com-
preendida como “não é somente algum portador de um projeto voluntário, mas
é também um ser que está em condições de se interrogar, de se lançar ao desco-
nhecido, de ter – segundo a terminologia freudiana – “uma alma de conquista-
dor”, ainda que não descubra nada, se só tem um ligeiro impacto sobre o mo-
vimento do mundo” (Enriquez, 1987, p. 121). É possível que esse caminho pos-
sa conduzir ao despertar do potencial criativo nos grupos produtivos, ao possi-
bilitar que o sujeito/empregado retome seu lugar de ator social, partícipe das
mudanças e novos direcionamentos no campo do trabalho nas organizações.
No que concerne às formas de intervenção de base psicossocial, esse
estudo poderá contribuir para a compreensão e a intervenção diante dos fe-
nômenos que se revelam no âmbito das organizações, relacionando-os aos
preocupantes aspectos sociais e políticos da realidade brasileira. Os resultados
podem, ainda, possibilitar debates profícuos junto às organizações, de forma a
promover uma dinâmica organizacional em que a vivência dos conflitos possa
ser contribuir para uma melhor qualidade de vida ao trabalhador.

Eixos Temáticos e Núcleos de Sentido Construídos a Partir das


Entrevistas
Eixos Temáticos Núcleos de Sentido
™ Pouca receptividade pela área estratégica;
™ Possibilidade de apoiar a diretoria em processos de
mudança de gestão;
™ Voltada para ajudar as pessoas a serem felizes no
Experiência Vivida trabalho;
1 como psicólogo(a) ™ Oportunidade para assessorar diretoria na compreen-
na organização são do próprio perfil como gestor;
™ Conquista do espaço para as práticas psicológicas na
organização;
™ Oportunidade para preservar a saúde psicológica do
trabalhador.
384 Regina Coeli Araujo da Silva e Ana Lúcia Francisco

™ Escutar colaboradores e gestores;


™ Dar atenção aos aspectos motivacionais e de relacio-
namento;
Demandas que são ™ Mediar conflitos entre gestores e colaboradores;
dirigidas ao ™ Acolher e compreender as problemáticas dos trabalha-
2
psicólogo(a) na dores;
organização ™ Atender demanda técnica para desenvolvimento dos
líderes;
™ Realizar processos de recrutamento, seleção, treina-
mento.
™ Cobrança pelo resultado (conflito entre gestores e
colaboradores);
™ Modelos inadequados de gestão, apadrinhamento
(conflito entre gestores e colaboradores);
™ Dificuldades nos processos operacionais e de mudança
Percepção sobre na gestão (conflitos em todos os níveis);
a natureza dos
3 ™ Relações de poder desajustadas (conflito entre gesto-
conflitos na
res e colaboradores);
organização
™ Competição entre os pares (conflito entre gestores);
™ Comunicação e relacionamento pouco cuidados (con-
flito entre gestores e colaboradores);
™ Falta de valorização do psicólogo(a) (conflito no pró-
prio setor de recursos humanos).
™ Somatização e adoecimentos: gastrites, dermatites,
obesidade, hipertensão, dores de cabeça;
Percepção sobre as ™ Redução na produtividade;
ressonâncias dos ™ Perda da motivação;
4 conflitos para o
sofrimento do ™ Baixa da autoestima;
trabalhador ™ Atribuir responsabilidades ao sujeito;
™ Sofrimentos psíquicos: depressão, ansiedade, síndro-
me do pânico alcoolismo.
™ Uso de técnicas para lidar com conflitos: coaching,
dinâmica de grupo;
™ Prática da escuta e suporte à emergência dos conflitos;
™ Compreensão sobre as naturezas dos conflitos para o
Estratégias utiliza- exercício da reflexão;
das pelo psicólo-
5 ™ Prática do diálogo entre os envolvidos nos conflitos;
go(a) na escuta dos
conflitos ™ Ações de assessoria ao nível estratégico da estrutura
institucional;
™ Ações para desenvolver nos gestores a capacidade
para compreender o comportamento de seus colabora-
dores;
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

™ Despertar o potencial de criatividade e resiliência de


gestores e colaboradores ao lidarem com os conflitos;
™ Produção de reflexões com base na análise do perfil de
cada gestor.
™ Possibilitam sensibilidade e flexibilidade para lidar
com os problemas e conflitos;
™ Papel construtivo, promovendo compreensão sobre a
importância de se cuidar dos fatores humanos na orga-
nização;
™ A escuta acerca do sofrimento do trabalhador possibi-
lita que as experiências possam ser compreendidas e
ressignificadas;
™ Não deveria haver distanciamentos entre a formação
do psicólogo clínico do psicólogo organizacional,
Percepção sobre a compreendendo que ambas as leituras são necessárias
contribuição da na organização;
6
Psicologia e da ™ O profissional de psicologia proporciona uma atitude
escuta clínica de acolhimento que facilita o trabalho a ser desenvol-
vido;
™ Numa cultura de resultado, o profissional de psicolo-
gia encontra limitações em sua ação profissional, não
abrangendo atividades que promovam o desenvolvi-
mento humano de forma integral;
™ O profissional de psicologia precisa falar a linguagem
do negócio para o cliente dele, focando mais nos re-
sultados organizacionais;
™ As práticas psicológicas ainda são pouco valorizadas
pela organização.

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386 Regina Coeli Araujo da Silva e Ana Lúcia Francisco

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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

PATERNIDADE ADOTIVA: A ESCOLHA


POR UMA APROXIMAÇÃO DE
AFETO CON-SENTIDO
Ellen Fernanda Gomes da Silva1
Suely Emilia de Barros Santos2

Se quiser seguir-me, narro-lhe; não uma aventura,


mas experiência, a que me induziram, alternada-
mente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me
tempo, desânimos, esforços. Dela me prezo, sem
vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um tanto à
parte de todos, penetrando conhecimento que outros
ainda ignoram
Guimarães Rosa, 1988

Sumário: 1. Um Palco para Contação da Experiência. 2. Transitando


pelas Vicissitudes de Gênero, Masculinidades e Paternidades.
3. A Família como Espaço de Pertencimento: um Deixar-se
Afetar. 4. Afetabilidade e Sentido: uma Possibilidade da Teoria
Apresentar-se Como Referência ao Invés de Conceituação. 5.
Procedimentos Metodológicos: Interrogando a Questão. 6. Te-
cendo a Paternidade Adotiva. 7. Referências.

Este capítulo3 é organizado em duas partes que expressam a singu-


laridade e pluralidade deste trabalho, o qual discorre sobre um relato de pes-
quisa. Na primeira parte o texto recorre à narrativa da experiência da pesqui-
sadora principal, que numa atitude de coparticipação e afetabilidade dá o seu
depoimento acerca da presença da adoção em sua história. Desse modo, por

1
Pesquisadora principal.
2
Orientadora da pesquisa.
3
Texto adaptado de Silva, E. F. G. da: Paternidade adotiva: um afeto con-sentido, 2011.
Trabalho de Conclusão de Curso de graduação em Psicologia, na Faculdade do Vale do
Ipojuca – FAVIP – Caruaru/PE.
388 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos

vezes, o tempo verbal aparece na 1ª pessoa do singular. Na segunda parte


apresentamos o caminhar da pesquisa realizada, através da compreensão da
experiência de ser homem-pai adotivo.
A proposta desta pesquisa tem o humano enquanto foco, este é com-
preendido como um ser projeto, com seus diversos e distintos modos de ser-
no-mundo. A partir de tal perspectiva é que foi encontrado, na fenomenologia
existencial, um modo de compreender esse homem, longe das amarras impos-
tas pelo pensamento determinista, cujo mesmo é tão somente uma sucessão de
fatos enredados num nexo-causal desprovido de sentido existencial.

1 UM PALCO PARA CONTAÇÃO DA EXPERIÊNCIA

Compartilho, a partir de agora, com o leitor, de modo pessoal, um


pouco da minha experiência no momento em que a adoção se faz presente no
palco das minhas vivências, me guiando à escrita deste trabalho de pesquisa.
Academicamente tive um percurso nos estudos de masculinidades, gênero e
paternidades no Programa de Iniciação Científica da Faculdade do Vale do
Ipojuca – FAVIP. Atrelado a isso, como estagiária de Psicologia da Vara da
Infância e Juventude da comarca de Caruaru-PE, deparei-me com uma gran-
de demanda de homens que desejavam ser pais por adoção, em sua maioria,
pelo fato de não conseguiram pela via biológica.
No querer saber que interroga a adoção vi-me afetada com a minha
própria história, recordando memórias enquanto filha. Interessante mencionar
como uma pesquisa foi necessária para que eu doasse mais atenção e cuidado
para a relação pai-filha que experiencio. Estes escritos apontam para um modo
diferente de ver a paternidade e, sobretudo, de vivenciá-la, desejando que esta
seja adotiva, atravessada pela expressão do afeto e do cuidado.
Ao percorrer os meandros desta temática foi possível verificar o ex-
poente número de estudos acerca das masculinidades e paternidades. Con-
quanto, esse crescimento não investe significativamente na reflexão da pater-
nidade adotiva. Essa assertiva tomou como partida a visitação de sites como
Google Acadêmico, Portal de teses e dissertações da Coordenação de Aperfei-
çoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), levantamento deste último
realizado entre os anos de 1987 a 2009, e a Base de Artigos Científico do Sci-
entific Eletronic Library Online (SciELO). Deste modo, a escolha em realizar
esta pesquisa articulando a paternidade e a adoção numa perspectiva fenome-
nológica existencial apresenta-se como relevante para Psicologia, bem como
para outros saberes na contemporaneidade. A importância em discutir essa
temática vem a propósito de que no imaginário social o filho adotivo era, e
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

ainda é, visto como um forasteiro em uma cultura na qual os laços consanguí-


neos são a norma. Semelhantemente, o lugar do pai no contexto familiar tam-
bém era forasteiro, com a convicção do amor materno que legitimava os cui-
dados da prole à mãe, cabia a este o papel de provedor do lar.
Tendo em vista a necessidade da problematização do fenômeno de
ser pai adotivo, esta pesquisa colabora para o exercício da paternidade como
afeto e desejo, bem como para construção de Políticas Públicas relacionadas à
adoção, em especial às chamadas “adoções necessárias”, as quais se referem às
crianças maiores e adolescentes, bem como às que possuem alguma deficiência.
Sabendo que uma pesquisa norteada fenomenologicamente tem na
abertura para construção de sentido, apresento a minha inquietação em forma
de questão provocação: Como é a experiência de ser pai adotivo? Assim
sendo, com esta investig-ação objetivou-se, de modo geral, compreender a
experiência de ser pai adotivo. Para tanto, buscou-se conhecer os possíveis
modos de ser pai adotivo; problematizou-se o lugar do homem no exercício
da paternidade, atrelado às questões de gênero; promoveu-se uma discussão
teórica acerca da adoção; analisou-se as narrativas numa perspectiva feno-
menológica existencial e, por fim, articulou-se os depoimentos a partir de
conhecimentos prévios encontrados.

2 TRANSITANDO PELAS VICISSITUDES DE GÊNERO,


MASCULINIDADES E PATERNIDADES

Ao refletir acerca da historicidade das masculinidades, Medrado


(1997) e Nolasco (1993) apresentam uma masculinidade hegemônica – bran-
ca, heterossexual e dominante. Esse padrão nos reporta a explicações bioló-
gicas e naturalistas de que o sexo masculino é dotado de atributos universais
e imutáveis como a superioridade masculina, a virilidade e a força.
Desde a gênese da humanidade a dicotomia homem/mulher fez-se
presente, quando o homem foi reconhecido na família como provedor mate-
rial, tendo na caça e na pesca um meio de sobrevivência, enquanto a mulher
permanecia em casa, com a obrigação dos afazeres domésticos e a função
cuidadora e educadora da prole (Medrado, 1997; Portella, 2004). No que diz
respeito ao exercício das masculinidades e feminilidades, estudos apontam
que na contemporaneidade estamos vivenciando aberturas de possibilidades
como reflexo dos efeitos das mudanças socioculturais.
Em sua pesquisa sobre o exercício da paternidade, Ramires (1997)
afirma que sendo os cuidados infantis compartilhados por pai e mãe desde a
tenra idade, é possível a formação de modos relacionais não hierárquicos.
390 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos

Desse modo, para intervir nesse cenário no qual, diante do monopólio mater-
no, cabe ao pai uma parcela “insignificante” no processo de criação dos fi-
lhos, há necessidade de mudanças das organizações sociais, políticas, eco-
nômicas e, o que considera indissociável, das mentalidades.
Lyra (2004), tendo a mesma constatação que Ramires (1997), res-
salta que em nossa sociedade as tarefas associadas ao cuidado infantil são
comumente atribuídas às mulheres, como uma espécie de “condição natural”
de ser feminino. Raras vezes os homens são questionados acerca de desejos,
direitos e compromissos relativos ao exercício da paternidade. Por este viés
estrutural são desqualificados os modos de comportamentos que não se en-
caixem a este princípio. Ou seja, ser homem e não ser “cabra macho”4 é in-
compreensível, “desviante”; assim como ser mulher e não demonstrar fragi-
lidade e doçura é, no mínimo, estranho. A norma absoluta implica na margi-
nalização e dominação das outras formas de viver as masculinidades. Assim,
homens e mulheres são alocados, ou, em alguns casos, se deixam colocar
impotentes e incapazes de resistir, interferir para a mudança. Para assegurar
tais argumentos, Connell (1995, p. 197) comenta: “Os homens gays se tor-
nam alvos sistemáticos do preconceito e da violência. Homens afeminados e
débeis são constantemente humilhados. Os homens negros, nos Estados Uni-
dos (como na África do Sul) sofrem, massivamente, de níveis mais altos de
violência letal do que os homens brancos”.
Modelos como esses são questionáveis – a masculinidade, assim
como a feminilidade, não são objetivas, mas construídas em uma teia de
relações sociais, políticas, econômicas e culturais e só podem ser compreen-
didas no espaço em que emergem, com os significados próprios de ser ho-
mem e mulher de cada sociedade (Louro, 2004).
O cenário atual reafirma e propaga a chamada “crise da masculini-
dade” (Medrado, 1997; Nolasco, 1993), cujo contraste entre o efetivamente
vivido e o ideologicamente representado gera as ambiguidades expressas nas
práticas e concepções do universo masculino na atualidade. A partir dessa
compreensão, entende-se que os estudos sobre masculinidades devem incor-
porar a perspectiva de gênero, analisando-os de um ponto de vista relacional
e não identitário. Com relação a isso, Olavarría, (2004, p. 87) comenta:

Nos últimos anos começaram a aparecer indicações de que tanto a mas-


culinidade quanto a paternidade estariam em crise. Surgiram questiona-
mentos e críticas sobre os diversos aspectos da vida dos homens: o exer-
cício que fazem da paternidade e a distância que mantêm das crianças e

4
Termo regional ligado à cultura machista na qual o homem é visto como forte, provedor.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

suas companheiras, a pouca participação na saúde sexual e reprodutiva


de suas mulheres, o grau de violência que manifestam nos espaços públi-
cos, entre outras atitudes. Entre os próprios homens se escutam vozes que
pedem por mais tempo para estar com a família e que desejam participar
mais ativamente do acompanhamento de seus filhos, que reclamam das
condições de trabalho e da remuneração insuficiente para oferecer certa
qualidade de vida para a família.

Para o auxílio nas investigações, os estudos de gênero “fornecem


um meio de decodificar o significado e de compreender as complexas cone-
xões entre várias formas de interação humana” (Scott, 1995, p. 89). Assim,
torna-se cabível observar como um homem aprende sobre o que significa ser
um “homem de verdade” ou a maneira de exercer “corretamente” sua mas-
culinidade em diferentes culturas. Pesquisar masculinidades em contextos
culturais específicos se constitui em uma tentativa de corroborar a não exis-
tência de um tipo único de masculinidade, bem como apontar para a realida-
de de que um mesmo homem pode viver múltiplas masculinidades. Além
disso, conforme salienta Portella (2004), é preciso contribuir para quebrar o
silêncio instalado acerca do homem e das masculinidades.
Referir-se às masculinidadeS e paternidadeS revela-se como uma
atitude desafiadora, tendo em vista a lacuna em relação aos estudos nessa
área. A partir do que foi visto acima acerca de questões de gênero, passamos
a seguir, a refletir como o ser-masculino é atravessado pela paternidade. É
sabido que o “novo homem” lado a lado com o “novo pai” é pauta de notici-
ários e pesquisas na atualidade, anunciando que o homem brasileiro tem
voltado seu interesse para o exercício da paternidade. As leis pós Constitui-
ção Federal de 1988 refletem esse quadro, assuntos como: pensão alimentí-
cia; visitação em casos de separação conjugal; aumento do tempo da licença
paternidade; adoção e guarda compartilhada, concedem direitos e deveres,
nunca cogitados, aos homens (Perucchi, 2008).
A ONG Papai5, como organização social, é desbravadora em defe-
sa do direito e do compromisso da paternidade. Uma de suas campanhas
denominada “Dá licença, eu sou pai!” (2008-2010) almejou estimular os
homens a exercerem o direito de cuidar, solicitando a Licença Paternidade
em caso de nascimento ou adoção de um/a filho/a, bem como promover mo-
bilização pública em prol da ampliação do período da licença: de cinco para,
pelo menos, trinta dias.
O homem, na atualidade, revela-se como fenômeno de estudo pelos
novos canais que foram abertos para pensar as masculinidades. No Brasil,

5
Disponível em: <http://www.papai.org.br/> Acesso em: 14 nov. 2011.
392 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos

por exemplo, essa discussão é recente, tomou fôlego a partir da segunda


metade da década de 90, com uma rede de diálogo fomentada principalmente
por dissertações e teses voltadas ao tema (Medrado, 1997; Oliveira, 2010).
A Conferência Internacional de População e Desenvolvimento
(ICPD), realizada no Cairo (Egito) em 1994 e a IV Conferência Mundial
sobre a Mulher, a qual aconteceu em 1995, em Pequim (China) ressaltaram a
necessidade de maior envolvimento dos homens na vida familiar, com o
intuito de atingir maior igualdade de gênero, bem como de estimular a parti-
cipação masculina no campo da saúde sexual e reprodutiva. Pensar a paterni-
dade é avançar rumo a questões científicas e políticas da Psicologia, levando
em consideração o seu descaso para com esta população (Trindade, 1999).
Concepções arcaicas observam o pai como um homem forte, o
provedor moral e econômico da família, atribuições que o colocam diante
do exercício de um “roteiro paterno”. Essa realidade atesta a máxima de
que “o filho é da mãe” e “o pai é aquele que abre a carteira”. Conquanto,
essa concepção binária vem sendo colocada em cheque. Estudos como os
de Oliveira (2010) e Rodrigues (2009) relatam que, frente à pobreza, as
mulheres de famílias de baixa renda se inseriram no mercado de trabalho,
passando a partilhar o prover com os homens, algo que inquietou muitos
pais pobres, que se viram impotentes em cumprir o papel social de mante-
nedor financeiro da família. Na contemporaneidade, além dessa realidade,
salta aos olhos um pai partícipe nos serviços domésticos e no envolvimento
afetivo dos filhos. Esta compreensão da participação mais efetiva dos homens
na família, particularmente no cuidado para com a criança, é nomeada de
“nova paternidade”, a qual é vivenciada como um desejo e não mais por
obrigação (trindade, 1999).
Sabendo que as demandas da vida cotidiana estão em constante
movimento, Valente (2011, p. 22) problematiza: “O que define o pai? Seria a
pessoa portadora, proprietária, dona do sangue, Gene XY, DNA, espermato-
zoide e/ou seria aquela que sustenta, dá o nome, reconhece em cartório, cui-
da, zela, educa, se responsabiliza por?” Estaria o autor se referindo à possi-
bilidade de uma paternidade por atitude afetiva e de cuidado, ou seja, uma
paternidade adotiva?
Com relação a isso, recorremos também a Dias (2004), quando a
mesma comenta que os vínculos de parentalidade não são encontrados no
campo genético nem na verdade jurídica, mas sim no reconhecimento da
existência de um elo afetivo, que faz gerar um comprometimento mútuo.
Fazendo coro a essa constatação, Andrade, Costa e Rossetti-Ferreira (2006),
investigando as significações da paternidade adotiva de dois homens-pais de
crianças recém-nascidas, revelaram em sua pesquisa que estes assumem um
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

papel de ajudantes nos cuidados com a prole e voltam sua atenção, prioritari-
amente, para prover financeiramente a família. A análise das entrevistas rea-
lizadas aponta para o sentido de paternidades múltiplas, nas quais o modelo
tradicional e o novo coexistem e se alteram na experiência de um mesmo pai.
A adoção para esses pais é atravessada também por duas significa-
ções recorrentes na literatura desta temática: a primeira delas é a infertilidade
como motivação para adoção e a segunda é a busca por uma criança recém-
nascida com as características desejadas pela família (Weber, 2011). Com
relação à experiência da paternidade, os entrevistados a descreveram como
muito boa e de valor imensurável, afirmando que, para ambos, a chegada da
criança acarretou mudanças na rotina familiar, tendo em vista que a mesma
passou a ser prioridade, inclusive em relação às esposas. Interessante menci-
onar o olhar de um dos entrevistados, quando ele expressou as dificuldades
da adoção, colocando-a como uma barreira a ser atravessada, sabendo que
esta foi assumida após esgotar as possibilidades da paternidade inicialmente
desejada, a biológica (Andrade, Costa & Rossetti-Ferreira, 2006). Pensando
a adoção como forma incomum de ter filhos, Schettini (2008) comenta que a
adoção aparece, para muitas pessoas, como uma solução para uma “falha”
biológica ou psicológica.
Os arranjos familiares, presentes no mundo inteiro, esbarram na
ideia de pluriparentalidade, trazida por Uziel (2000). Os divórcios, os reca-
samentos e as adoções refletem a permeabilidade das fronteiras da família,
apontando para a noção de rede que amplia o espaço de circulação dos mem-
bros e incorpora os laços construídos com a convivência e a partir do desejo.
Essa perspectiva de pluralidade de laços “desafia a lógica da primazia do
biológico sobre o social” (Uziel, 2000, p. 7). Compactuar com isso é fechar-
se diante de configurações familiares cujo eixo de construção não seja o ge-
nético. A paternidade adotiva, por exemplo, pode ser identificada como uma
resistência a modelos tradicionais de paternidade.
Silva (2010), com um olhar psicanalítico, investigou significados e
motivações acerca da paternidade adotiva. Os sentidos revelados pelos en-
trevistados diante da paternidade adotiva foram: realização plena como pai;
vivência insubstituível; vocação; paternidade enquanto um desafio produtor
de um elevado grau de satisfação; descoberta e opção de afeto. Nas narrati-
vas destes pais foi percebido que a motivação para adoção está, intimamente,
relacionada à impossibilidade de terem filhos biológicos. Os mesmos tam-
bém ligam a adoção a um complemento, realização e felicidade. No intuito
de compreender a paternidade adotiva, este trabalho de pesquisa se propôs a
olhar a paternidade adotiva numa perspectiva fenomenológica existencial,
meandros pouco habitados, imprevisíveis e direcionados pelo afeto.
394 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos

3 A FAMÍLIA COMO ESPAÇO DE PERTENCIMENTO: UM


DEIXAR-SE AFETAR

Na atualidade, segundo Sarti (2004), não cabe falar em um único


modo de ser família. A mesma é compreendida pela autora acima citada
como uma realidade de ordem simbólica, um mundo de relações comple-
mentares, recíprocas e assimétricas, na qual o público e o privado, o nós e o
outro coexistem. Acrescentamos a família como um espaço polimorfo que,
ao longo da história, ganhou várias significações: enaltecida, porém tida
também como gênese de todos os males; lugar de alienação, servidão e
opressão. Apregoaram sua extinção, contudo as tentativas de combater sua
força foram frustradas. A família continua sendo um lugar de calor, porto
seguro, ambiente propício para “tornar-se homem” e, atualmente, está em
evidência nas Políticas Públicas (Sawaia, 2003).
Refletir acerca da família é localizá-la no tempo, no decorrer
do percurso histórico – a família é e se faz complexa, singular, em cons-
tante transformação e como nativa. Neste pensar a atenção recai para a
visão histórica de Ariès (1981). Na célebre obra História Social da Crian-
ça e da Família, o autor pontua que no Antigo Regime, a família não era
uma escolha afetiva, pairava pelo patrimônio. O sentimento de família tal
como hoje o conhecemos surgiu a partir do século XV e XVI; o século
XVIII é visto como o de maiores mudanças, onde ocorreu claramente a
separação entre o público e o privado, entre a família e a sociedade. Dan-
do um salto na história, o século XX revela fortemente a privatização da
família. O fechamento do ciclo familiar cria uma ditadura da intimidade,
diretamente influenciada pelo modelo capitalista, pautado no individua-
lismo (Ariès, 1981).
A partir da segunda metade do século passado, o mundo conheceu,
progressivamente, intensas transformações. As mudanças sociais – o au-
mento da expectativa de vida, a entrada da mulher no mercado de trabalho,
mulheres como chefes de família, homens como cuidadores dos filhos, rup-
turas e uniões sucessivas – adentram no âmago das relações familiares e
estas tomam roupagens diversas (Sarti, 2004).
Mais precisamente após a Revolução Industrial, a tecnologia pro-
duziu a quebra da identificação da família com a natureza, provocando uma
reordenação simbólica, mudanças nas práticas e nos valores familiares. A
pílula anticoncepcional, ao separar a sexualidade da reprodução, abala o
valor sagrado da maternidade (Sarti, 2004), bem como o teste do DNA que
permite a comprovação da paternidade biológica (Fonseca, 2004), são exem-
plos desses avanços tecnológicos.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

O transitar da paternidade biológica à paternidade social afetiva foi


aberto por influência dos novos arranjos familiares. Dorais (1994, apud Ra-
mires, 1997) discute essa questão ao ponderar que as diversas famílias que se
apresentam na atualidade dão novas roupagens às paternidades, alegando que
os laços biológicos entre pais e filhos não afiançam a ligação permanente
entre eles, principalmente em casos de separação conjugal. Por outro lado,
diante de recasamentos, os homens são chamados a manterem relações pa-
rentais com os filhos de sua companheira, mesmo sem ligações genéticas.
Vale ressaltar a singularidade de cada família, retirando desta um ca-
ráter biológico universal e a configurando como socialmente construída em
contextos históricos específicos. O cenário social atual exige pensar e repensar
a família. Mediante as mudanças que a mesma vem passando, é possível men-
cionar que a perda de referências flexibilizam as fronteiras desta instituição, e
“com seus laços esgarçados, torna-se cada vez mais difícil definir os contornos
que a delimitam” (Sarti, 2003, p. 21). É possível observar que a família não é
passível de conceituação, ela expressa modos diferentes de vinculação de/entre
pessoas. No que se refere à adoção nos contextos familiares, a mesma já foi
vista como um desvio da norma, uma opção para aqueles que fracassaram por
não conseguirem ter filhos biológicos e como um ato de caridade. Todavia,
vem se consolidando uma nova cultura de adoção, fundamentada nos laços
afetivos (Schettini, Amazonas & Dias, 2006).
A partir das diversidades apontadas no debate contemporâneo
sobre o tema, o eixo desse discurso deve ser famílias em sua pluralidade
(Losacco, 2003). Em meio a esses entrelaçamentos, a adoção encontra habi-
tat que não é derivado de vínculos biológicos, mas sim de relações de esco-
lha, proximidade e afeto, ou seja, a família como espaço de pertencimento no
deixar-se afetar.
Cabe aqui, então, conversar um pouco sobre o fenômeno da ado-
ção. Esta pode ser vista como um fenômeno apresentado e sustentado nas
mais variadas sociedades, tendo séculos de existência; conquanto, a mesma
não foi meramente repetida como uma linha de montagem, mas o olhar para
ela sofreu variações e reinterpretações, ganhando um caráter múltiplo ao
longo da história, passando, por exemplo, “Do conceito jurídico de ‘obtenção
de um filho através da Lei’ até a ‘adoção com reais vantagens para a criança’
do nosso Estatuto da Criança e do Adolescente” (Weber, 2004, p. 99, aspas
da autora). Conforme essa mesma autora, mitos, lendas, filmes e novelas
tratam do tema adoção:

Hércules, um semideus, foi adotado por Anfitrião que o preparou para a


vida como seu filho de sangue; [...] a fundação de Roma também envolve
uma história de adoção dos gêmeos, Rômulo e Remo, que foram abando-
396 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos

nados e adotados por uma loba e, posteriormente, educados por pastores.


[...] Na Bíblia encontramos a história de nascimento e da vida de Moisés,
filho das águas, retirado do rio pela filha de faraó, que decidiu criá-lo.
[...] Também existem inúmeros personagens infantis contemporâneos que
exploram o tema: Mogli, o ‘menino-lobo’; Bambam é filho adotivo de
Beth e Barney no desenho Os Flinstones. (Weber, 2004, pp. 100-101, aspas
da autora)

Com tais relatos percebemos que a adoção é um tema presente na


experiência humana: os seres humanos se adotam, ou não. A experiência de
ação clínica da autora principal, como estagiária de Psicologia na Vara da
Infância e Juventude, oportunizou o contato e a afetação com casos de ado-
ção. Ao transitar nesse universo, mostrou-se congruente abordar o tema da
adoção, visto a realidade de abandono e violência que vive uma significativa
parcela de crianças e adolescentes no país. Vale aludir que a adoção foi e é
colocada aqui como escolha, sem condição de obrigatoriedade; a mesma
apresenta-se como uma possibilidade de ser família, cujo afeto é o objeti-
vo/propósito compartilhado.
A adoção mostra-se multideterminada, envolvendo diversas con-
cepções, crenças e valores. Para a Organização Mundial de Saúde (OMS)
adotar é um modo possível de criar redes familiares para a criança que foi
privada de sua família de origem (Paiva, 2004). Na etimologia da palavra
adoção, do latim, temos: ad + optare, onde ad = aproximação no tempo e no
espaço e optare = opção. Nesse sentido, a adoção entra em cena como uma
opção por aproximação, escolha de estar próximo de alguém.
Com vistas a um melhor entendimento, a adoção carece ser con-
textualizada. Comungando com tal pensamento, Souza (2008) salienta que a
cultura da adoção voltava-se para atender os interesses dos adultos. Diferente
disso, a adoção atualmente é cogitada como um conjunto de recursos de uma
política integrada de proteção da infância e juventude, cujo propósito é aten-
der às reais necessidades da criança, proporcionando-lhe uma família que a
abrigue, agasalhe, proteja e ame. Apoiada nisso, Vargas (2006, p. 147) ex-
pressa: “o processo de adoção só se inicia quando se conjuga afetos”. Desta
feita, para que ocorra a possibilidade de formação de vínculos, é mister ob-
servar de um lado a legitimidade das motivações dos pretendentes à adoção,
e de outro as necessidades do adotado.
No caso do Brasil, “a adoção se fez presente de uma forma contrá-
ria aos processos legais” (Siega & Marciel, 2005, p. 127), configurando o
tipo de adoção versada como “adoção à brasileira”. Tal realidade nos chama
a pensar acerca dos preconceitos, temores, excesso burocrático, falta de in-
formação e resistência da população em procurar o judiciário. Estes fatores,
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

somados a tantos outros, direcionam para uma adoção sem preparação e com
grandes chances de ser mal sucedida. Atualmente, apesar das mudanças de
enfoques e avanços, o processo jurídico para a adoção é considerado lento e
burocrático pela maioria dos adotantes. Tais dificuldades passam a ser, de
certa forma, um facilitador para que ocorram ilegalidades na esfera da ado-
ção. A realidade patenteia que há muito a ser feito para que os direitos alcan-
cem a vida real.
Em pesquisas realizadas por Weber (2004, 2011) com pais e filhos
adotivos, foi visto que preconceitos são causadores de mitos e fantasias ne-
gativas sobre a adoção no Brasil. Dentre os achados, a autora menciona o
preconceito direcionado à adoção de crianças maiores, aos traços de evidên-
cia física diferentes dos pretendentes, a dificuldade de falar acerca da origem
biográfica, o temor de serem discriminados socialmente e o medo de psico-
patologias hereditárias. Com relação a isso, Schettini (2007, p. 23) comenta:
“a escassez de estudos científicos no Brasil, principalmente quantitativos,
determinou que a adoção fosse tratada de forma preconceituosa, alimentando
fantasias e mitos”. Nesse sentido, a pesquisa realizada mostrou-se relevante
social e academicamente ao divulgar a cultura da adoção como uma modali-
dade de arranjo familiar, em detrimento a preconceitos e crendices que difi-
cultam e impedem a adoção.
É sabido que as culturas, em geral, são tatuadas pela diversidade;
olhando para essa realidade, Louro (2004, p. 51, aspas da autora) salienta:
“as sociedades da modernidade são caracterizadas pela diferença, elas são
atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem
uma variedade de diferentes posições de sujeito – isto é, de identidades –
para os indivíduos”. Mediante isso, faltaria a noção de alteridade entre os
indivíduos? É possível questionar também a noção de “normalidade”: afinal,
quem/o que seria normal e quem/o que seria diferente?
Torna-se pertinente perguntar sobre o “peso do sangue” na nossa so-
ciedade que ecoa e afeta os modos relacionais, em destaque, os familiares.
Diferentemente desse olhar, é possível compreender a família como um con-
ceito unívoco, mas numa perspectiva sociocultural, dinâmica, que abranja os
variados laços existentes, afirmando, assim, os modos de ser-família, de vin-
culação entre as pessoas. Santos (2005, p. 35) ao olhar fenomenologicamente
para essa realidade, afirma que é preciso atentar para “o que se mostra no fe-
nômeno de ser-na-convivencialidade-entre (no ser-na-relação-familiar)”. Os
laços biológicos como “unicamente verdadeiros” foram pauta dos achados de
Vieira (2004), que ao estudar a adoção em uma população de classe média
percebeu a prevalência, na adoção, do desejo de imitar a biologia. De acordo
com a autora os adotantes desejam crianças menores e com características
398 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos

físicas semelhantes às suas. A mesma comenta que essa preferência está atre-
lada a uma tentativa de reproduzir fielmente a experiência que teriam se hou-
vessem concebido o filho. Acerca disso afirma de maneira contundente: “entre
aqueles em que esses temores acham-se mais exacerbados, imitar a biologia é
um artifício que os ajuda a conter as próprias inseguranças” (Vieira, 2004, p.
117). Em contraposição a essa norma, autores como Weber (2011) e Paiva
(2004) colocam a adoção afetiva em sobreposição à ligação biológica, de
modo que é por meio da afetividade que é possível ser família.
Para lidar com questões como essas, a nova Lei de Adoção (Brasil,
2009) prevê uma preparação prévia dos futuros pais e o acompanhamento
familiar pós-acolhimento da criança ou adolescente, com o desígnio de asse-
gurar o direito à convivência familiar. Acerca disso, é possível assinalar que
o jurídico não dá conta da singularidade de cada família, de cada casal, pois
há sempre um vir-a-ser, um modo de ser que requer uma escuta diferenciada.
Sendo a Psicologia estudiosa do terreno da singularidade humana, esta é
convidada a inclinar-se para essa demanda e a assistir essa clientela em seus
desejos, angústias, limitações e estranhezas, acolhê-la e acompanhá-la nos
seus modos possíveis de serem mães e pais adotivos e vivenciarem a adoção.

4 AFETABILIDADE E SENTIDO: UMA POSSIBILIDADE DA


TEORIA APRESENTAR-SE COMO REFERÊNCIA AO
INVÉS DE CONCEITUAÇÃO

Partindo do pressuposto de que a articulação entre afetabilidade e


sentido são fios condutores para a ação clínica, faz-se oportuno refletir acer-
ca do modo como a teoria se mostra no acontecer de um trabalho numa pers-
pectiva fenomenológica existencial, ou seja, como uma abertura na qual di-
versos olhares são apresentados como referências para o surgimento de ou-
tros questionamentos e outros diálogos. Desse modo, a ação clínica aponta
sentidos para os quais, na busca de compreensão, nos movimentamos, tran-
sitando entre distintos olhares, referenciando a prática ao invés de conceituá-
la. A respeito da fenomenologia, Critelli (2004) narra que a mesma não ob-
jetiva acabar com a metafísica, mas sim, mostrar o quão absoluta ela não é.
Com esse pensamento, abrem-se possibilidades para falar em pontos de vis-
tas do conhecer e da verdade.
Sabendo que o mundo é uma trama de significações fluida e mu-
tante, assim como as pessoas o são, acredita-se que a Psicologia, sozinha,
não responda aos questionamentos sociais, esta carece de diálogo com outros
saberes. É nesse contexto que Barreto e Morato (2008, p. 149, aspas das
autoras) questionam: “Como, então, pensar na constituição de uma Psicolo-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

gia senão pela interdependência relativa, transitando pelo ‘entre’, isto é, re-
metendo-se tanto à ordem dos fenômenos vitais e de suas leis vinculadas a
perspectivas cientificistas, quanto à ordem dos fenômenos expressivos e dos
seus significados vinculados a perspectivas compreensivas?”.
Além disso, o acontecer da singularidade humana, em seus modos
infindáveis de ser, “exige do profissional de psicologia abertura ao inusitado,
à reinvenção da sua forma de trabalhar, à revisitação da teoria psicológica e
da concepção de subjetividade que sustenta sua proposta de intervenção clí-
nica” (Barreto, 2006, p. 197). Este pensamento condiz com o que Critelli
(2004) afirma a respeito da não pertença do ser humano a coisa alguma, ou a
ideologias de qualquer ordem. Sabendo que a determinação em algo fixo não
faz sentido para o modo fluido do humano, é que a Psicologia Fenomenoló-
gica Existencial propõe afastar-se de uma posição de domínio do saber e da
garantia de um asseguramento proposta pela representação e o conceito.
É oportuno salientar que o lugar da clínica é o do cuidado e que cabe
ao/a psicólogo/a cuidar do ser e acompanhá-lo no desvelar de suas possibilida-
des de cuidar de si. A partir dessa visão, fala-se num caráter libertador da Psi-
cologia, quando esta mostra-se como abertura para que o cliente experiencie
novos modos de ser no mundo com os outros. É no, e por meio do entrelaça-
mento entre os modos de ser-com do cliente e do psicólogo que se dá o en-
contro. Se constituindo, portanto, enquanto movimento dialético de escu-
tar/dizer de si e do outro. Tais assertivas denotam o caráter de mutualidade da
ação clínica e afirmam que o sendo-aí é que torna possível a produção de sen-
tido (Morato, 1999). É interessante fazer menção que o acontecer clínico se faz
de modo aberto com o mundo e com os outros, se reportando assim à nossa
condição existencial de “ser-com”. Nessa direção, está implícita a abertura à
via afetiva, no sentido de ser tocado, marcado pela experiência.
A clínica também possibilita um contato com a nossa própria estra-
nheza. Experiência não confortável e angustiante, é imprescindível para a
coexistência, para lidar e acolher o diferente, com a alteridade em nós e a do
outro. Sobre isso, é possível perceber a dificuldade do humano em lidar com
as incompletudes próprias, levando, não raras vezes, ao desconforto e desa-
lojamento com o diferente do outro, ao passo que este reflete o estranho ou
até mesmo o familiar em nós. Diante da “falência” de referenciais pautados
predominantemente no “eu”, e também da presença do estranho; como pen-
sar a ação clínica na atualidade, quais atravessamentos são necessários fazer
para se desvincular dos moldes metafísicos das ciências naturais e poder
acolher o outro/alteridade?
Pensar em Clínica é trazer à luz uma ação interventiva (Lévy,
2001). O que a define, conforme Figueiredo (1996, p. 40) é a sua ética gera-
400 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos

dora de um saber que ultrapassa a aplicação de teorias. Esta, segundo o autor


supracitado, “está comprometida com a escuta do interditado e com a sus-
tentação das tensões e dos conflitos. Talvez o clínico seja a escuta de que
nosso tempo necessita para ouvir a si mesmo naquilo em que lhe faltam as
palavras”.
Percorrendo esse caminho, Figueiredo (1996) assevera que o cam-
po do saber da psicologia está em lugares epistemologicamente diversos,
paradoxais. Assim caracterizada, esse autor propõe a ética, de acordo com a
etimologia do termo éthos, no que se pauta no habitar, como morada. Nesta
perspectiva, a clínica institui uma troca, um encontro no qual o psicólogo
inclina-se diante do outro e dispõe-se a uma experiência criadora de sentido.
Para Lévy (2001, p. 20, aspas do autor):

a abordagem clínica supõe uma démarche, da parte do terapeuta, inter-


ventor ou pesquisador, caminhando às cegas, nesse ‘espaço’ que ele co-
nhece pouco ou nada, e esforçando-se para escutar aqueles que tenta
compreender, especialmente em seus esforços para dar sentido a suas
condutas e aos acontecimentos que tecem sua história. O lugar do traba-
lho clínico corresponde a uma situação concreta e um tempo vivido – e
não uma utopia, como desejariam as ciências positivas.

Neste sentido, o agente do trabalho psicológico é o próprio cliente,


com sua complexidade, questionamentos e limitações. Cabe aos psicólogos
acolher as narrativas e buscar compreendê-las como expressão da experiência
e resistir à tentativa de vê-las como ignorância, sem valor ou já conhecidas.
Benjamin (1985) refere-se à perda da experiência na atualidade, afirmando que
diante da correnteza tecnológica a vida humana transforma-se em mercadoria
disponível. Assim, o homem moderno possui um escasso tempo para refletir
acerca de seus semelhantes e sobre si mesmo. Ser clínico também solicita um
olhar para si, cuidar de si para chegar ao outro. Nessa implicação, é a sensibi-
lidade experienciada no encontro com o outro que abre possibilidades à condi-
ção de conhecimento, compreensão e comunicação para o cuidado, atitude
favorável para o acontecimento da ação clínica (Morato, 1999).

5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS: INTERROGANDO


A QUESTÃO

Neste estudo, na direção de compreender a experiência de ser pai


adotivo, adotou-se a pesquisa qualitativa, cujo caráter descritivo ocupa lugar
de destaque (Minayo, 1994). A pretensão desta concerne em compreender os
fenômenos segundo a perspectiva dos sujeitos participantes da pesquisa. Para
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

investigar esse mundo de sentidos, é imprescindível valorizar a experiência


do humano expressa via narrativa, já que esta se torna reveladora de sentidos
e tem a “magia” de transmitir experiências.
Segundo Benjamin (1985), filósofo alemão, as pessoas estão per-
dendo cada vez mais a faculdade de trocar experiências, e, consequente-
mente, a habilidade de narrar. A narrativa é vista como forma artesanal de
comunicação, que reflete a experiência humana. Com o desejo de trazer à
tona a arte de narrar a própria vida, na qual o narrador bebe da sua experiên-
cia e se implica “como a mão do oleiro na argila do vaso” (Benjamin, 1985,
p. 205), é que recorremos à narrativa proposta por esse autor. A adoção entre
fenomenologia e psicologia é comentada a seguir por Feijoo (1991, p. 33):
“A psicologia fenomenológica visa a descrever com rigor, e não deduzir ou
induzir; mostrar e não demonstrar, explicitar as estruturas em que a experi-
ência se verifica e não expor a lógica da estrutura; por fim deixar transpare-
cer na descrição da experiência suas estruturas e não deduzir o aparente por
aquilo que não se mostra”.
Para tanto, a modalidade de intervenção/investigação escolhida
para colher os depoimentos foi a entrevista, tomando como base a “Entre-
vista Clínica de Pesquisa” (Lévy, 2001, p. 90), a qual está lastreada nas nar-
rativas evocadas pela questão provocadora.
O público participante deste estudo foi composto por homens pais
adotivos que frequentam as reuniões do Grupo de Estudo e Apoio à Adoção
– GEAD/Recife. Em minha experiência como estagiária passei a me debru-
çar com as singularidades que permeiam o universo da adoção. Inquieta com
isso, escolhi entrevistar um homem pai solteiro e outro casado, que com-
põem, respectivamente, uma família monoparental e nuclear. É importante
ressaltar que conheci Davi6 e um pouco de sua história nas reuniões do GE-
AD. Rui, diferentemente, vi apenas uma vez no grupo acima mencionado e
lembro que me chamou atenção aquele homem entrando com um filho com
necessidades especiais no braço. Em contatos mantidos com a coordenadora
do GEAD, foram indicados alguns nomes de possíveis participantes para esta
pesquisa. Dentre as recomendações, Davi e Rui adotaram o lugar de coauto-
res deste estudo, narradores da experiência de ser pai adotivo.
Após terem lido e assinado o Termo de Consentimento Livre
Esclarecido, os depoimentos foram colhidos a partir da seguinte questão
provocadora: “Como é, para você, a experiência de ser pai adotivo?”. Desta-
camos que, mediante a aceitação dos participantes, as entrevistas foram áu-

6
Davi e Rui são nomes fictícios visando a preservação da identificação dos sujei-
tos/narradores.
402 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos

dio-gravadas. Visando a garantia do anonimato, para todos os personagens


envolvidos na pesquisa foram utilizados nomes fictícios. A autenticação das
narrativas aconteceu um mês após a realização das entrevistas. Para tanto, as
narrativas literalizadas foram lidas pelos sujeitos/narradores para que aconte-
cesse a autenticação da mesma, condição para que fossem utilizadas neste
trabalho.
Para a interpretação/compreensão dos fenômenos desvelados, o
método de análise das narrativas foi a “Analítica do Sentido” de Critelli
(2007). Orientada pelos pensamentos de Martin Heidegger e de Hannah
Arendt, a referida autora apresenta a fenomenologia como um novo chão
possível que, ao dirigir-se para o real, investiga a compreensão do sentido do
ser. O sentido de ser, apontado por Critelli (2007, p. 146, grifos da autora) é
“um rumo que apela, uma solicitação que se faz ouvir, um apelo obstinado
que se insinua e persegue”. Deste modo, esta pesquisa expõe a construção de
sentidos da experiência de homens pais adotivos não como sinônimo de si-
gnificado, mas como destino, direção do existir para aquilo que se busca
compreender.
Em meio a tudo isso o lugar do pesquisador não é o da neutralida-
de, mas sim da afetabilidade provocativa. Na pesquisa, “pesquisador(a) e
sujeitos são coautores, uma vez que não é só o(a) sujeito/narrador(a) que se
mostra em seus depoimentos, mas também o(a) pesquisador(a) precisará
mostrar-se” (Santos, 2005, p. 93).
Por fim, e não menos importante, esta pesquisa se mostra também
como interventiva, configurando-se num estar-entre, uma relação entre teoria
e prática, pesquisa e ação, com vistas a construir um conhecimento científico
e a ofertar um cuidado psicológico, este último entendido enquanto atitude,
reportando ao sentido de solicitude a atenção para com o outro.

6 TECENDO A PATERNIDADE ADOTIVA

Quem os vê ao longe, caminhando lado a lado,/ Crê, por tal estado que se
trata de um casal./ Ela, moça fina, mais mulher do que menina;/ Ele, já
grisalho, de agasalho, coisa e tal./ E aos passos lentos, desatentos as pes-
soas,/ Como se nesse tempo fosse feito só pra os dois./ Ricos os momen-
tos, relembrando coisas boas./ E o que vem depois, depois.../ Eu, que já
os conheço, sei a história por outro lado/Ela é sua filha; ele, o pai que
adotou./ Lá nos tempos idos, que chamamos de passado,/ Ela, abandona-
da, teve um lar que abraçou./ E pra quem não tinha, nem futuro, nem pre-
sente,/ Deu-se, de repente, nova chance de viver./ Ele e sua esposa, mes-
mo sacrificialmente,/ Deram pra menina teto e pão, razão de ser,/ Como
o Deus, o Pai, a nós tem feito cada dia./ Nós, que desgarrados, mal sa-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

bemos caminhar,/ Deu-nos o Seu nome e adotou-nos na família,/ E nos


fez pra sempre um lar. (Neto, disco sonoro, 1990)

A intimidade expressa pela menina-mulher e pelo homem grisalho,


à primeira vista, remete à ideia de um casal. Eles andam vagarosamente e,
entre conversas, relembram os momentos vivenciados, como se o tempo,
diante da singeleza daquele momento, não fosse de tanta valia. Munido de
outras lentes, o poeta os reconhece, nesta relação afetuosa, enquanto pai e
filha, pois já tinha se apropriado da história da adoção compartilhada entre
ambos. A menina que, no passado, habitava em um mundo de incertezas ante
ao abandono, foi acolhida nos braços de uma família. Assim o fizeram, se-
melhantemente, ao que Deus Pai realizou ao criar o mundo, a natureza e ao
adotar o humano como filho, coroa da criação.
É bem verdade que às masculinidades, por muito tempo, coube a
identificação de forte, provedor, viril. Esta representação social se expande
em todos os segmentos da vida, conquanto, no que se refere à paternidade,
aos homens, comumente são atribuídas a autoridade, moral e capitania eco-
nômica da família. A participação mais efetiva do homem no contexto fami-
liar, assim como foi descrito na canção acima, causa alguns estranhamentos
e, num primeiro olhar, pode não ser reconhecido como um modo de exercer
a paternidade, baseado no cuidado e expressão de afeto.
Vislumbrando a paternidade adotiva, focando, em especial, nos
pais citados neste estudo, foi possível perceber a presença significante do
afeto nas suas relações parentais. Constata-se que muitos homens, sejam eles
pais adotivos ou não, vêm transitando por este lugar, o que ressalta a quebra
de conservas culturais outrora mencionadas e a abertura de multiplicidades
de paternidades, vivenciadas, escolhidas, desejadas e con-sentidas.
O movimento de realização das discussões propostas neste estudo
são tecidas sob o viés de que a possibilidade de produção de conhecimento
se dá na coexistência dos saberes, assim, a Psicologia exclusivamente não
responde às questões postas na sociedade. Pombo (2005) fundamenta e nutre
essa questão ao abalizar a interdisciplinaridade como um interesse real por
aquilo que o outro tem a dizer sobre determinado fenômeno.
Somado a tal olhar, Bock (2003) assinala que no Brasil a Psicolo-
gia é fortemente marcada por uma história de serviço aos interesses das eli-
tes, como parte disso está o controle e a patologização de comportamentos
que não eram compatíveis com quem detinha o poder. Esse quadro desvela
uma Psicologia distante do âmbito ético-político, com pouca inserção social
e de difícil acesso à população pobre do país. Segundo a autora supracitada
“os psicólogos se puseram de costas para a realidade social, acreditando po-
404 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos

der entender o fenômeno psicológico a partir do próprio homem” (Bock,


2003, p. 26).
Em cena, o presente capítulo pode ser visto como um convite, no
qual como pesquisadoras fomos solicitadas a tecer compreensões e sentidos
acerca do modo como as entrevistas se apresentaram a nós. Ressalta-se que o
olhar, a seguir, configura-se como uma revelação entre ocultamentos, ou
seja, uma possibilidade mediante outras que poderiam ser apontadas. Faz-se
importante mencionar que Rui e Davi, sujeitos/narradores desta pesquisa,
possuem um traço de pertencimento, o ser pai adotivo. Entretanto, suas sin-
gularidades conferem um caráter plural às suas experiências.
Ao passo que as narrativas foram sendo expressas, a questão nortea-
dora deste estudo foi se mostrando e se relevando enquanto fenômeno. Assim,
apontamos inicialmente, que o cuidado se faz presença significante no exercício
da paternidade adotiva. Isso pode ser evidenciado nas seguintes narrativas:

Davi – Quando a minha esposa voltou das férias eu fiquei mais com eles
durante o dia! Por eu trabalhar com representação... tenho uma flexibili-
dade grande no horário... então era eu quem os pegava na escola... dava
banho... botava para jantar!
Davi – [...] toda madrugada eu acordo e faço o mesmo que papai fazia...
ele ia no nosso quarto ver como estavam! Isso é legal porque eu os cu-
bro... para colocar o ventilador de um jeito diferente também!

É perceptível que os pais adotivos se mostram como ruptura do mo-


delo hegemônico de masculinidade, o qual coloca o homem à distância do cui-
dado com os filhos e diretamente ligado à esfera pública, ao trabalho. Entre-
tanto, no diálogo alocado abaixo Rui problematiza a importância da licença
paternidade e abre caminhos para falar nos direitos sexuais e reprodutivos do
homem. Diante disso, vê-se como imprescindíveis estudos que reflitam como
as questões de gênero têm configurado formas relacionais entre homens e mu-
lheres; também é preciso salientar a necessidade de ações, a exemplo da criação
e efetivação de políticas públicas, voltadas para o homem (Portella, 2004).

Ellen – Você teve direito a licença paternidade?


Rui – Cinco dias só! Mas vou falar com meu advogado para abrir prece-
dente... já pensou eu... com noventa dias com ele? Noventa dias de pernas
para o ar só brincando com ele... seria bom demais!

Atrelado às questões anteriormente referidas, o afeto ganha um


vasto lugar no território da paternidade adotiva, como pode ser percebido no
diálogo que segue:
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Rui – Ele está ligado mesmo!... gosta de estar comigo! Minha família
percebe isso... minhas irmãs que são da área de saúde percebem essa in-
teratividade... esse calor humano entre eu e ele!
Ellen – É afeto?
Rui – Afeto e grande!!! Muito... muito... muito!

O afeto, tanto para Rui quanto para Davi possui um caráter trans-
formador na relação com seus filhos, permitindo que estes elaborem experi-
ências de abandono outrora vivenciadas, e possam estabelecer vínculos de
parentesco e modos outros de ser-no-mundo. De maneira intensa declararam:

Rui – Onde tem amor o medo desaparece! E eu acho que não há ser hu-
mano nenhum... por mais indisciplinado... que não se dobre diante do
amor verdadeiro!!! Não é esse amor cobrança... esse amor querendo mo-
dificar as pessoas... é o amor aceitando o indivíduo como ele é!
Davi – Ela disse7 “Eu sou a princesa e o senhor é o príncipe de diaman-
tes!” Então sair do bruxo para o príncipe de diamante foi uma conquista!
Uma conquista que não foi muito minha... mas muito mais dela!

O afeto con-sentido conjugado pelos narradores também aponta na


direção da adoção como um modo de ser família:

Davi – Ser pai de dois filhos gêmeos... um casal... então fechou assim! Há
três meses foi o batizado deles na Igreja Anglicana que eu faço parte... eu
fiz a frase do cartão que dizia assim... Um dia pedimos a Deus dois fi-
lhos... mas ele nos deu dois anjos!.

Com esses depoimentos, podemos ver que estes pais rompem com
a indissolubilidade dos laços biológicos e apresentam paternidades derivadas
de relações de escolhas e proximidade, fato que contribui, significativamen-
te, para uma nova cultura de adoção, fundamentada na afetividade (Schettini,
Amazonas & Dias, 2006).
No horizonte de problematização da pesquisa, a questão do precon-
ceito invadiu, com seus tentáculos, a adoção, o que se apresenta a seguir:

Rui – Em primeiro plano eu não me sinto pai adotivo... eu me sinto pai


mesmo!!!
Rui – Eu não sei o que os outros pais acham da palavra adoção... mas na
minha mente não existe!

7
Referindo-se a sua filha.
406 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos

Este fenômeno revela a existência do preconceito não apenas na


vivência social, mas também no âmbito familiar e pessoal. Tal posiciona-
mento traz a conotação da adoção como forasteira, espúrio (Schettini, 2008)
e, concomitantemente, a paternidade adotiva associa-se a algo de segunda
categoria, tendo em vista que o adotado, por vezes, é percebido como “filho
de estranho” (Queiroz, 2004).
No que se refere a Rui, sua visão acerca da adoção o levou à tenta-
tiva de reprodução biológica de um filho. Isso pode ser evidenciado nas se-
guintes narrativas: “Quando eu entrei no cartório para fazer o registro... para
mim eu estava entrando numa maternidade... como se ele estivesse nascen-
do!” [...] “É como se estivesse nascido de mim!”. Outro aspecto relevante
apontado por Rui faz menção à importância do registro como modo de pa-
tentear a paternidade e a inserção em sua família extensa, o que é possível
ser observado no depoimento abaixo, o qual confere a Caio8 o posto de “fi-
lho/neto oficial”:

Rui – Todos ficaram felizes quando o registro saiu! Minha mãe mesmo
queria ver... ela disse... ‘meu nome está lá no registro?’ Eu disse que
‘sim... está lá como avó!’ ‘É mesmo é?’ Eu disse... ‘ele agora é neto ofi-
cial!

De outro passo, o registro vincula-se à questão do reconhecimento


da paternidade, chamando o homem ao compromisso que engloba o seu
exercício parental. Ao refletir a respeito dos direitos e proteção integral da
criança e do adolescente, Franzolin (2010) chama atenção para o princípio da
paternidade responsável.
Como sentido acerca da questão norteadora desta pesquisa, o titu-
beio do viver, comum no interjogo de humanos, evidencia-se. Em Rui pode
ser percebido quando o mesmo narra sua relação pai-filho e cita Caio como
exemplo, ao mesmo tempo em que aparece como um “problema”:

Rui – Outra coisa que percebi é que ele... junto comigo... tem modificado
as atitudes de muitas pessoas ao meu redor com relação à adoção... a
cuidar dos filhos biológicos!
Ellen – Você se considera... junto com Caio... um exemplo de relação pa-
rental?
Rui – Muito! E ele é um exemplo!
Ellen – Exemplo de quê?

8
Nome fictício. Caio é o filho de Rui.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Rui – Paciência!... tem um problema? Eu tenho um maior!... mas estou


feliz! Você não o vê chorando... ele brinca o tempo todo! Sorri... se di-
verte... vai para debaixo da cama... gosta de fazer palhaçada!

Esta dualidade é revelada, mais uma vez, na postura de Rui quando


ele se questiona, durante o processo de apadrinhamento, a respeito de uma
possível adoção:

Rui – Tudo isso eu vinha avaliando no apadrinhamento... você tem certe-


za se é isso que você quer? Eu olhava para ele... conversava com ele...
você gostaria de ficar aqui com... com!... Eu não conseguia dizer titio...
com seis a oito meses do apadrinhamento eu já dizia papai!

Partindo da dimensão afetiva da adoção, Schettini (1998) expõe


que é necessário ocorrer, por parte dos adotantes, o que ele nomeia de gesta-
ção psicológica do filho adotivo que, analogicamente à gestação biológica,
envolve um misto de sentimentos com relação à paternidade/maternidade.
No que se refere a Davi, a ambivalência presente na paternidade
adotiva personifica-se por meio do que ele denomina de “fantasma”, ou seja,
do receio que os filhos possuíam de outro abandono, bem como da dificulda-
de de adaptação dos mesmos frente a uma nova configuração familiar.

Davi – Hoje Pedro9 já fala tudo... ele veio dizer que entende porque bri-
gamos com eles... que é no intuito de educar! Embora... nessa noite ele
disse que não queria voltar mais para creche! Ouvindo isso eu disse ‘fi-
lho... vocês não vão voltar mais para a creche! Você lembra daquele do-
cumento que o juiz fez?’ É incrível esse fantasma!... eu sabia que isso ia
acompanhá-lo por um tempo... mas eu pensei que já não havia!

Esta característica é, conforme Camargo (2005), fortemente pre-


sente em crianças e adolescentes que passaram por um período extenso de
institucionalização e foram acometidos por múltiplos abandonos. Conquanto,
apontamos que, possivelmente, este fantasma rondou a paternidade adotiva
de Davi provocando estranhezas e familiaridades, trazendo a marca da outri-
dade da adoção como modo de ser família, cuja diversidade/alteridade é si-
gnificativa (Figueiredo, 1996).
Outro ponto interessante de ser mencionado ao olhar para as narra-
tivas de Davi, é o seu lugar frente às atitudes de Ana10, as quais o colocavam

9
Nome fictício. Pedro é filho de Davi.
10
Nome fictício. Ana é filha de Davi.
408 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos

mediante as vicissitudes do bruxo e do príncipe de diamantes. O depoimento


abaixo expressa um sentimento de insegurança, que, provavelmente, habita-
va em Davi ao desejar saber se seria ou não adotado enquanto pai:

Davi – Aí foi engraçado que no Carnaval desse ano fomos brincar em


Olinda... fantasiados... ele foi de super homem e ela de fada! No carro ela
dizia... ‘vamos transformar papai em bruxo e mamãe na princesa!’[...] Eu
passei a ser o príncipe de diamantes dela... veja a diferença! Para con-
quistar isso não foi fácil... acho que foram uns oito meses para ouvir esse
príncipe de diamantes!

Nas paternidades experienciadas por Davi e Rui a família extensa


de ambos aparece como participante do projeto adotivo, conferindo à adoção
um caráter social, que transpõe os limites de quem, inicialmente, motiva-se a
buscar a parentalidade. Desta feita, conforme expõe Schettini (1998), a ado-
ção se processa nas diversas redes sociais, em meio à convivência afetiva.
Outro fenômeno comum aos dois pais foi a procura dos mesmos por uma
rede de apoio, atitude tida como importante, principalmente, em casos de
adoções de crianças maiores ou com necessidades especiais. Essa busca pela
rede pode ser vista nas seguintes narrativas:

Davi – [...] No início da adoção ele foi acompanhado por um psicólogo


e Ana por uma psicóloga! Procuramos a fonoaudióloga... mas o psicó-
logo já tinha sinalizado que acreditava que a gagueira era algo psico-
lógico mesmo! [...] Na terapia eles foram mudando... Pedro foi modifi-
cando a postura... aprendendo a ser mais ele! Foi um processo muito
longo!
Rui – Quando eu cheguei em casa eu disse... ‘o que é que eu faço? Se eu
roubar o menino... perco o emprego!’ Aí... veio aquela luz na mente... ‘li-
gue para a assistente social!’ [...] Disse que não queria me separar dele!
Ela disse... ‘espere!... acalme-se!... me dê dez minutos!’ A assistente soci-
al falou com o juiz responsável por ele... o juiz desceu pessoalmente no
setor de adoção e concedeu a guarda provisória!

Olhando a história da criança e do adolescente no Brasil, bem


como as políticas públicas sociais voltadas para o atendimento desta popula-
ção, observa-se, apesar da promulgação do Estatuto da Criança e do Adoles-
cente, serviços e programas de cunho assistencialista. Diante desta realidade,
salienta-se a necessidade de implementação e efetivação de políticas públicas
destinadas à infância e juventude. Uma vez garantidas políticas de saúde,
educação, habitação, os direitos previstos na legislação podem, numa pers-
pectiva ética, ser assegurados.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Com relação ao direito à convivência familiar como fundamental à


criança e ao adolescente, observa-se uma certa invisibilidade das crianças
maiores, adolescentes e das que possuem necessidades especiais. Assim, esta
realidade postula a carência da promoção de políticas públicas referentes a
este tipo de adoção e a precisão de divulgar, tanto para a sociedade, como
aos entes públicos e civis, uma nova cultura da adoção, que acolha afetiva-
mente as crianças e os adolescentes em suas especificidades.
A paternidade adotiva dos sujeitos/narradores pode ser compreen-
dida como uma mostração dos diversos arranjos familiares da contempora-
neidade. Ambos tiveram a adoção de crianças maiores como via para a pa-
rentalidade, porém, Davi é membro de uma família nuclear e Rui de uma
família monoparental. Essas configurações familiares são reflexos das mu-
danças ocorridas na sociedade ao longo dos tempos e expõem a dificuldade
existente de se definir o que é família na atualidade (SARTI, 2003), revelan-
do, assim, o caráter simbólico e plural da mesma. Tendo isso, é possível
ressaltar que as paternidades não estão afiançadas à genética, mas sim, ao
exercício de possibilidades afetivas.
Em meio à multiplicidade de famílias, Rui apresenta a sua paterni-
dade solteira atrelada à maternidade. Essa associação pode ser percebida nas
narrativas que seguem:

Rui – Eu acho que talvez eu seja pai e mãe! Essa experiência de pai sol-
teiro significa isso... que você consegue se desdobrar... ser pai e mãe ao
mesmo tempo! O sentimento é dobrado!
Rui – Um conselho que eu dou na sua pesquisa... é que todos possam ou-
vir ou ler bem claro... ser pãe é maravilhoso! Porque você consegue vis-
lumbrar um mundo de sentimentos que quando você é só pai não conse-
gue ver!

Ao utilizar a expressão “pãe” vem à mente a questão: estaria


aqui, no depoimento de Rui a paternidade monoparental sendo vista en-
quanto um arranjo incompleto, no qual seja necessária a associação da
maternagem? Se voltarmos o olhar para a família nuclear burguesa, a pa-
ternidade exercida por Rui foge da norma vigente, afirmando as diferen-
ças. Assim, a mesma poderia ser vista com as lentes de Figueiredo (1996),
quando o autor comenta acerca do estrangeiro em nós e no outro que é
causador de incômodo e estranheza. Nesta perspectiva, Rui revela a tensão
de ser-si-mesmo, enquanto pai solteiro e o habitar em meio a esse dife-
rente, o qual a alteridade se faz familiar. Esta representação social também
reflete o encontro entre o arcaico e o novo no que se refere às paternidades
e nos convidam a refletir e divulgar as conquistas alcançadas no campo
410 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos

das masculinidades, em especial, as paternidades cuidadoras, desejadas,


comprometidas e responsáveis (Portella, 2004).
A partir dos sentidos revelados na referente pesquisa, as pesquisa-
doras concordam com a compreensão de Critelli (2007, p. 27), a qual afirma
que “investigar é sempre colocar em andamento uma interrogação” e, com-
prometida com esse querer saber que interroga, esta pesquisa foi gestada
afetivamente. Na condução pela locomoção da paternidade adotiva, hoje, ao
escrever estas últimas palavras, emerge um misto de sentimentos. Entre can-
saços, angústias vivenciadas, renúncias, responsabilidades diversas e muito
prazer na arte da escrita, vem à mente o pensamento de que adotaria “este
filho” de novo, com seu caráter de novidade, e não meramente outra vez,
que, conforme Pompéia e Sapienza (2010) é repetição.
Viver a adoção é tecer uma infinidade de fios, os quais possibilitam
a elaboração de sentidos impregnados de problematizações, denúncias, re-
velações, silêncios, paradoxos, metáforas. Neste tecer, de forma artesanal, o
afeto surge como aquilo que nutre e/ou constitui o vínculo familiar. Desta
feita, a paternidade adotiva distancia-se de um rótulo pejorativo e afirma-se
enquanto relação, cuja via é afetiva.
Compreender o ser homem, pai por adoção é uma tentativa de
aproximação dos modos de ser infinito do humano, desta feita, é possível
falar de uma construção de um projeto interminável de ser pai, em seu
caráter circundante, histórico, no qual presente, passado e futuro se entre-
laçam.
Tecendo a paternidade adotiva, numa perspectiva fenomenológi-
ca existencial, as possibilidades mostram-se ilimitadas e, após aprendiza-
dos, narrativas de experiências, combinações de cores, pontos e formas,
uma nova inquietação surge como abertura para seguir adiante: Como a
práxis psicológica pode contribuir para a efetivação de Políticas Públicas
relacionadas à adoção, particularmente, às chamadas “adoções necessá-
rias” de crianças maiores, de adolescentes e das que possuem necessida-
des especiais?

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414 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Parte 3

PRÁTICA PSICOLÓGICA E SAÚDE


416 Ellen Fernanda Gomes da Silva e Suely Emilia de Barros Santos
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

UNINDO BURACOS: A CONSTRUÇÃO


DE UMA REDE DE ATENÇÃO EM
SAÚDE A PARTIR DO INSTITUTO DE
PSICOLOGIA DA UNIVERSIDADE DE
SÃO PAULO (IPUSP)
Laiz Maria Silva Chohfi
Joyce Cristina de Oliveira Rezende
Luciana Oushiro
Rodrigo da Silva Rodrigues Lermes
André Rostworowski
Henriette Tognetti Penha Morato

“(...) Mas, na mesma botada, puja a definição de


“rede”: uma porção de buracos, amarrados com
barbante”.
Guimarães Rosa, 1985

Sumário: 1. De Rede para Rede. 2. Histórico de Alguns Usos de Redes a


Partir do Século XX. 3. Como Fazemos... 4. A Cartografia:
Conceito. 5. Cartografando: o Caminho Trilhado... 6. Cuidan-
do de Fiadores: Supervisão e Ganhos em Discussão. 7. En-
Caminhando Clientes. 8. Encaminhamentos Futuros. 8. Refe-
rências.

O presente capítulo busca apresentar parte do trabalho de constru-


ção de uma Rede de Atenção em Saúde a partir dos serviços e laboratórios
do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) à luz da
fenomenologia existencial. Primeiramente, contaremos, de forma breve, a
história da tentativa de construção da Rede desde o nascimento do LEFE
(Laboratório de Estudos em Fenomenologia Existencial e Prática em Psico-
logia), em 1998, até os dias atuais. Depois, abordaremos o histórico de al-
418 Laiz, Joyce, Luciana, Rodrigo, André e Henriette

guns usos de rede a partir do século XX para, então, contarmos o nosso


modo de fazer, que se deu, fundamentalmente, por meio da cartografia des-
ses serviços e laboratórios. Apresentaremos, em seguida, o caminho trilhado,
como isso afetou os tecedores da Rede, o modo de encaminhamento dos
clientes e o caminho que pretendemos percorrer a partir daqui, embora este
não se mostre por inteiro a nós, viajantes.
A iniciativa para construção da Rede de Atenção em Saúde interna
ao Instituto de Psicologia da USP (IPUSP) parte do LEFE e seus projetos de
intervenção em instituições de segurança, justiça e de saúde. Mediante a
experiência de diversos profissionais já formados e alunos presentes nos
projetos ainda hoje, levantaram-se questionamentos relacionados às possibi-
lidades de encaminhamentos para casos específicos, que não eram abarcados
pela modalidade de atendimento ali implantada. Surgiu então, durante as
discussões em supervisão, a necessidade da criação de uma Rede de Atenção
em Saúde pela qual a possibilidade de intercâmbio entre instituições/serviços
fosse efetiva, podendo contar como parceiros no cuidado dos usuários que os
procuram, assim como na troca de ideias para construção de conhecimento e
na melhora do atendimento à comunidade.
Todos os projetos conduzidos pelo LEFE desenvolvem a modali-
dade de Plantão Psicológico, ocasião em que o profissional e o cliente vão ao
encontro das dúvidas e estranhamentos emergentes deste contato, colaboran-
do para a compreensão e encaminhamento de ambos para um poder-ser
(Chohfi; Pita & Morato, 2007) através da criação de sentido. Busca, ainda,
compreender a eficácia terapêutica da atenção psicológica ao desamparo,
estabelecendo as bases conceituais para uma intervenção clínica, socialmente
contextualizada e engendrada a partir do encontro entre plantonista e cliente.
Atualmente, alunos do LEFE fazem plantão psicológico, além do Atendi-
mento em Plantão Psicológico (APP) no Centro de Atendimento Psicológico
(CAP) do Instituto de Psicologia da USP, no Hospital Universitário da USP,
no Conjunto Residencial da USP (CRUSP) e no Departamento Jurídico do
Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito da USP. Outras
instituições nas quais o laboratório já ofereceu o serviço de plantão são a 3ª
Companhia do 16º Batalhão da Polícia Militar, Mutirões e na antiga Funda-
ção Estadual para o Bem Estar do Menor (FEBEM), atual Fundação Centro
de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (CASA), além do Projeto
Esporte Talento.
Entendemos rede a partir de Guimarães Rosa (1985), no prefácio I
de Tutameia: rede são buracos atados por fios. Transportando este conceito
de rede para a nossa realidade, os buracos seriam correspondentes à ausência
de algo em determinada instituição. Porém, não consideramos este “buraco”
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

como falta nem como um vazio irrecuperável, mas sim como abertura de
possibilidades e comunicação, uma vez que, pelo contato entre as institui-
ções, seria possível a criação de outros modos de ação para contemplar um
melhor atendimento à comunidade. Os fios que atam a rede seriam as interli-
gações entre as instituições parceiras e, consequentemente, o caminho que
seus atores sociais e clientes poderiam percorrer sempre que se fizesse ne-
cessário.

1 DE REDE PARA REDE

A história da construção da Rede tem início no mesmo momento


em que o LEFE, laboratório de onde parte esta pesquisa, é fundado, em
1998. A primeira rede da qual o LEFE lançou mão foi a construída a partir
do SAP, Serviço de Aconselhamento Psicológico, do qual a fundadora do
LEFE, a Profa. Dra. Henriette Tognetti Penha Morato, fazia parte. Portanto,
neste período, nada é de fato construído a partir do LEFE, somente são utili-
zadas estruturas já edificadas no passado.
No ano de 2003, tem início um curso de aperfeiçoamento a partir
do LEFE. Assim como em todos os cursos ministrados por este laboratório,
há a necessidade do envolvimento em alguma prática, não existindo a possi-
bilidade de acompanhar somente a parte teórica. Dentre as muitas possibili-
dades de práticas figurava já a tentativa de construção de uma rede: já havia
um grupo de alunos e um supervisor envolvidos neste projeto. Porém, du-
rante o curso de aperfeiçoamento, o grupo da rede não conseguiu colocar em
prática o que foi discutido durante as supervisões e, mais uma vez, somente
foi possível se utilizar das estruturas, anteriormente citadas, para contatos e
encaminhamentos que se fizessem necessários.
Alguns anos depois, em 2007, é fundado o Atendimento em Plan-
tão Psicológico (APP), que se trata de um serviço que oferece atendimento
psicológico à comunidade em geral, na modalidade de plantão, na clínica-
escola do Instituto de Psicologia da USP (CAP/IPUSP). O Plantão Psicológi-
co propõe atender, no momento da procura, quem, em um momento de crise,
recorre a profissionais da Psicologia em busca de cuidado. Os plantonistas
oferecem espaço de acolhimento e escuta clínica disponibilizando-se para
acompanhar o cliente na narrativa com que se apresenta ao serviço. O senti-
do do trabalho clínico em plantão é a explicitação dos modos de cuidar de si
de quem se traz em sofrimento para, a partir deles, refletir sobre os possíveis
desdobramentos do encontro. Como um possível desdobramento destes en-
contros em plantão tem-se a necessidade de encaminhamento para outros
serviços que possam atender a demanda do cliente. É neste momento, então,
420 Laiz, Joyce, Luciana, Rodrigo, André e Henriette

que recomeçam as discussões a respeito da construção de uma rede de aten-


ção em saúde a partir do LEFE.
Inicialmente, dois alunos de graduação, Paulo Szyszko Pita e Laiz
M. S. Chohfi (atual supervisora do projeto), fizeram alguns contatos esparsos
com outras clínicas-escola buscando conhecer diferentes modos de se orga-
nizar através de uma rede em saúde. Os contatos com a clínica-escola Ana
Maria Poppovic, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e a clíni-
ca-escola de Psicologia da Universidade Metodista de São Paulo, fazem
parte deste primeiro momento. Ao mesmo tempo, surgiam as mais variadas
necessidades a partir do APP e dos demais serviços de plantão psicológico
oferecidos pelo LEFE em instituições. A partir dessas demandas, foram fei-
tos contatos com alguns Centros de Atenção Psicossociais (CAPs) na cidade
de São Paulo; com outras clínicas-escola – como as da Universidade Paulis-
ta, a Casa Eliane de Grammont – que presta serviços a mulheres em situação
de violência; alguns serviços para drogaditos da Faculdade Paulista de Medi-
cina e alguns hospitais.
Além destes, foram feitos contatos também com alguns serviços
oferecidos no CAP (Centro de Atendimento Psicológico) do Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), como os serviços de
atendimento em Psicologia Escolar e a Clínica Psicológica Durval Marcon-
des. Já como parte do caminho trilhado, surge a necessidade de organizar
essa iniciativa de construção de rede, bem como sistematizar os contatos já
feitos: é nesse momento que a Rede volta a ser, no LEFE, um projeto a ser
desenvolvido com a participação de alunos de graduação e pós-graduação1.
A Rede começa, finalmente, a sair do campo da discussão para se tornar
realidade em seus fios passando a chamar-se “Rede de Atenção em Saúde”
ou simplesmente “Rede”.
Tal grupo começa a se reunir a partir do ano de 2008 e, já nas pri-
meiras discussões, depara-se com a necessidade de conhecer sua própria
casa. Essa necessidade deriva da importância da compreensão da demanda:
quais serviços/especialidades seriam interessantes para o LEFE contar como
parceiros? Existe realmente a necessidade e demanda para a construção de
uma rede? Nesse momento, tem início a cartografia: os alunos de graduação

1
Já fizeram ou ainda fazem parte do grupo da Rede, além dos autores deste capítulo: Alan
Rizério de Oliveira, Ana Módena, Anne Kling, Barbara Melo, Clélia Souza, Daniel Schu-
nemann, Gustavo Giolo Valentim, Jacqueline Ferreira dos Santos, Juliana Henriques, Juli-
ano Watanabe, Laura Baruffaldi, Livia Gaetani, Rodrigo Dicezare (todos do IPUSP). De
outras unidades: Gabrielle Dias (EACH/USP), Marina Di Napoli Pastore (FOFITO/USP),
Mirella dos Santos (FOFITO/USP), Nicole Cordone (FOFITO/USP) e Regis Halves
(EE/USP).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

que faziam parte do grupo começam a se dividir, participar das supervisões


dos demais projetos de pesquisa desenvolvidos pelo LEFE e a trazer o que
puderam refletir a partir disso para discussão em supervisão. Desse período
deriva a iniciação científica de um dos alunos do projeto da Rede que buscou
investigar as diferentes demandas latentes nos vários serviços oferecidos a
partir do LEFE (Watanabe, 2009).
Ao mesmo tempo em que se conhecia a “primeira casa” da Rede,
os alunos também buscavam conhecer a “segunda”: o CAP. Parte disso por
necessidade dos encaminhamentos surgidos no APP e nos demais projetos e,
por outro lado, por necessidade do LEFE de dar-se a conhecer e de conhecer
o ambiente em que habita, cartografar o espaço do qual faz parte para poder
pensar intervenções e possíveis modos de trabalhar em rede. Foram celebra-
das parcerias com outros serviços dentro do CAP durante esse período, mui-
tas das quais o LEFE não tem se utilizado ultimamente, uma vez que a de-
manda da população é sempre cambiante. Vem sendo também construída
uma rede com profissionais de Psicologia, uma vez que percebemos que a
maior demanda é por atendimentos em Psicologia de longo termo. No pre-
sente momento, o grupo da Rede está debruçado em sua história, buscando
compreender o sentido do caminho trilhado até agora. Parte dessa iniciativa
desemboca neste capítulo, que está sendo escrito como meio de narrar e di-
vulgar essa iniciativa.

2 HISTÓRICO DE ALGUNS USOS DE REDES A PARTIR DO


SÉCULO XX

O conceito de rede é algo relativamente novo, que passou a ser


muito utilizado a partir do século XX. Durante este século, os processos de
inovação econômica e tecnológica influenciaram as relações dos indivíduos e
da própria sociedade, através da criação de novas práticas sociais e pela altera-
ção da vivência do tempo e do espaço, como parâmetro da experiência social
(Castells, 1999). Em 1957, com o advento da globalização rumo à era infor-
macional, entre os grandes sistematizadores de técnicas e estratégias dos EUA,
militares e pesquisadores, sob a supervisão do presidente Eisenhower, foi cria-
da a mítica DARPA: Defense Advanced Research Project Agency. Em 1973,
com a elaboração de protocolos de informação, visando à unificação e gerên-
cia de sistemas e redes, a agência possibilita a criação da ARPANET, precur-
sora da internet.
No século XXI, as grandes instituições e corporações assumem
estas inovações para o controle e administração de fronteiras, dispondo-se
de dois modelos para regular o fluxo de informação, representação e poder:
422 Laiz, Joyce, Luciana, Rodrigo, André e Henriette

as redes e as pirâmides. É, sobretudo, a partir da década de 1940, que o


estudo de redes ganha impulso e passa a contar com o surgimento de duas
principais vertentes de pesquisa, no meio acadêmico-científico (Radomsky
& Schneider, 2007).
Para uma vertente, estrutural-funcionalista, em que se considera
que as redes de relações realmente existentes constituem a estrutura social,
ou seja, o conjunto de relações pessoa a pessoa em dada sociedade, “as redes
são a estrutura da sociedade” (Radomsky & Schneider, 2007, p. 255). Para a
outra vertente, a noção de rede descreve as relações primárias do cotidiano e
suas intensidades. Das próprias redes do cotidiano surgem as estratégias e
redes políticas, baseadas em atributos de vínculo e origem.
O trabalho com redes é um exercício, sobretudo, multidisciplinar e
se constitui como “malha de múltiplos fios” (Whitaker, 1993, p. 01). Carac-
teriza-se pela disposição horizontal da circulação de informações, ou seja, o
aproveitamento de cada nó – núcleo intersetorial ou cluster – não assume
maior ou menor relevância na determinação da hierarquia para a circulação
das informações. Sua tecnologia origina-se da observação da estrutura da
natureza, onde não há um chefe ou representante. O objetivo a se alcançar
reside na vontade de seus integrantes que devem, portanto, respeitar as regras
que viabilizem a intercomunicação.
Em contrapartida, as Pirâmides, muito presentes na cultura oci-
dental, são caracterizadas pela circulação vertical das informações (Whi-
taker, 1993). São compostas por níveis hierárquicos e estão fundadas na
possibilidade de representação entre os diferentes níveis e setores, que as
compõem. Seus dirigentes assumem, frente às negociações ou necessidade
de confronto, as perspectivas de poder e contrapoder, para o controle de
padrões de dominação, autoritarismo e manipulação no interior de sua es-
trutura, na possibilidade de lutar e competir por ascensão e controle da
informação na pirâmide.
A adoção do modelo piramidal ou em rede define a trajetória do
sujeito na instituição, quando assume a condução da narrativa acerca de sua
existência. A conjugação da perspectiva piramidal à perspectiva em rede, em
alguns casos, pode ser desejável. Nos modelos piramidais evita-se a cristali-
zação e a determinação de configurações impróprias, que afetem o poder de
decisão entre diferentes níveis hierárquicos. Nos modelos em rede, são des-
bloqueadas e se ampliam as vias de adesão ou afastamento de propostas e
iniciativas, para que se atinja um objetivo comum.
Aderir aos valores de uma sociedade individualista torna-se pro-
blemático para o sujeito, no âmbito de seu ajustamento, quando a necessida-
de de segurança e acesso à identidade comunitária tornaram-se engodo e
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

estão centrados nos moldes do Estado-Nação. O Estado desestruturado, que


não desenvolveu a política do Bem-Estar Social, deve estar descentralizado,
de forma a garantir liberdade ao sujeito, que em meio a uma sociedade polis-
sêmica, galga, ainda que de maneira utópica e fluída, referenciais de identi-
dade, em um regime de colaboração, solidariedade, ajuda mútua, transparên-
cia e eco-responsabilidade.
Em pesquisa qualitativa, as redes podem ser representadas por
meio de genogramas (Wendt & Crepaldi, 2008). Em pesquisa quantitativa,
epidemiológica, para se estudar o comportamento das massas e calcular a
probabilidade de contágio, torna-se inevitável aproximar-se de contribuições
da sociologia, da física e de modelos populacionais, que inspiram a ecologia
e a demografia (Codeço & Coelho, 2008).
Na área da saúde, trabalhar com redes tornou-se um importante
instrumento junto à terapia familiar sistêmica e à operacionalização da soci-
alização de crianças e adolescentes (Sluski, 1997), uma vez que contribui
para a investigação da dinâmica entre os elementos que as compõem. À me-
dida que são manejados os recursos internos, familiares e externos, de rede
do indivíduo, para o estabelecimento de relações de identidade e construção
de histórico pessoal, as redes representam valiosa fonte de nutrição emocio-
nal, retroalimentação/feedback social e cuidados de si.
De acordo com Sluski (1997), as redes podem ser descritas se-
gundo as suas mais variadas dimensões, como em termos: a) de caracte-
rísticas estruturais: tamanho, densidade, composição (distribuição), dis-
persão, homogeneidade/heterogeneidade e tipos de funções; b) de funções
que exercem: companhia social, apoio emocional, guia cognitivo e conse-
lho, regulação social, ajuda material e de serviços, e acesso a novos con-
tatos; c) e de atributos de vínculos: função dominante, multidimensionali-
dade, reciprocidade, intensidade (compromisso), frequência dos contatos e
história.
Cada um dos estudos citados acima tem seu referencial teórico, o
qual acaba por funcionar como uma espécie de bússola guiando o caminho
da pesquisa. A nossa bússola é, juntamente com as experiências narradas, a
fenomenologia existencial. Em se tratando de uma pesquisa com esse olhar,
metodologia é entendida como a construção de um caminho para a realização
de um estudo. Este caminho nunca se oferece inteiro ao viajante, ele se mos-
tra e se constrói na medida em que é trilhado com base no objetivo que é
perseguido. Mais importante do que chegar a um certo lugar, é o próprio
caminhar (Cabral & Morato, 2003). É assim que funciona a tentativa de
construção da Rede: passo a passo, conforme o caminho se oferece, tal qual
o método de pesquisa pelo olhar da fenomenologia existencial.
424 Laiz, Joyce, Luciana, Rodrigo, André e Henriette

3 COMO FAZEMOS...

Método é entendido aqui como um modo de pensar para encontrar


uma franja do real. Mais importante do que o conteúdo é o sentido, buscan-
do-se a aletheia, o modo de pensar verdadeiro, e não a veritas, a verdade que
se mostra para ser conhecida (Cabral & Morato, 2003). “Mantém-se aberta,
por esse rigor meditativo, a possibilidade a outras franjas que merecem ser
interrogadas para situar o homem em sua existência inquietantemente finita:
um conhecimento por vir” (Morato, 2007, p. 7).
Como dito anteriormente, a fenomenologia existencial é um dos
utensílios principais no nosso caminhar, especialmente a fenomenologia
existencial de Heidegger, que fundamenta a analítica do sentido (Critelli,
1996).
Dulce Critelli (1996) elabora a analítica do sentido baseando-se
nos escritos de Heidegger e Hannah Arendt. Trata-se de uma articulação
metodológica possível a partir da fenomenologia existencial assim como
tecida por estes dois autores. A partir dos escritos de Critelli, Cabral e
Morato (2003) indicam que tal método abrange aspectos específicos, des-
critos a seguir.
Segundo as duas autoras, fazem parte da descrição deste método os
seguintes passos:
● O pesquisador precisa tentar se aproximar dos seus conheci-
mentos prévios em relação ao problema em questão, exercitan-
do um autoesclarecimento;
● O problema em questão sempre está em uma trama, um con-
texto, uma teia de nexos, que é construída por todos os envol-
vidos;
● É importante que haja um registro das impressões, inclusive das
sensações do pesquisador durante todas as fases da pesquisa;
● Os sujeitos são interlocutores, sendo importante que nas conver-
sas eles possam expressar as suas percepções;
● Na análise dos registros, é importante observar atentamente os
conflitos, os paradoxos e as incongruências, pois neles a trama
se revela melhor;
● O sentido buscado não se aprisiona nas diversas formas de seu
registro;
● A construção de sentidos é infindável, não havendo como pre-
ver desfechos ou resultados;
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

● O real é compreendido como fenômeno em realização e não


como representação, de modo que sua interpretação é uma bus-
ca de compreensão, não apreendendo, assim, o sentido em si;
● O pesquisador precisa tentar desvelar o que está escondido;
● É uma ilusão acreditar que se possa estar neutralmente em uma
situação;
● Independentemente do instrumento, é importante ter clareza da
intenção, sendo mais importante o modo;
● O pesquisador também é participante;
● Tudo importa – o que aparece e como aparece – pois o sentido
pode se revelar através de qualquer coisa;
● O olhar precisa se voltar para a diversidade;
● O pesquisador precisa tentar conhecer os nexos (sentidos); e
● À medida que vai sendo desvendada a trama, novas destinações
podem ser impressas ou, ao menos, apontadas.
Nesse sentido, resumidamente, segundo Morato:

Dentro da perspectiva fenomenológica existencial, pode-se compreender


metodologia como a construção de um caminho possível para a realiza-
ção de um estudo, não cabendo a definição ou aplicação de um método
padronizado ou pré-configurado. Nessa mesma direção, o objetivo de
qualquer pesquisa em uma tal perspectiva é empreender uma compreen-
são qualitativamente diferente (outra) de algum fenômeno. Sendo assim, a
melhor forma será encontrada a partir do aprofundamento em cada re-
corte de pesquisa ou tema sobre o qual se queira debruçar o pesquisador.
(2007, p. 5)

Ainda de acordo com a fenomenologia existencial, o mundo não é


separado do homem. Este se coloca no mundo dando sentido ao próprio
mundo, a ele mesmo e aos outros. Na medida em que o homem é mundo
com outros, ele afeta e é afetado, em uma teia de relações que está em cons-
tante mudança, “sendo ele invariavelmente mutável” (Morato, 2007, p. 9). O
modo fenomenológico de compreender e realizar pesquisa “implica num
fazer e refletir em ação, criando sentido” (Cabral & Morato, 2003, p. 7).
Walter Benjamin (1985) é quem fornece o segundo utensílio para a
construção dessa rede: a narrativa, de modo a entrelaçar a história do fazer
do ator social com a história da construção mesma. Além disso, parece ilu-
minar algo que se assemelha a postura do pesquisador à luz da fenomenolo-
gia existencial.
426 Laiz, Joyce, Luciana, Rodrigo, André e Henriette

No texto a respeito de Baudelaire (1989), Benjamin comenta a


postura deste autor ao sair às ruas: este se colocava aberto ao choque contra a
multidão, buscando ser afetado, lutar contra a multidão de parisienses com
sua esgrima. Essa parece ser a postura do pesquisador quando guiado pela
fenomenologia existencial: este se coloca disponível para ser tocado, afetado
conforme caminha por entre o labirinto que a ele se apresenta durante o per-
seguir de possibilidades de compreensão que originam a pesquisa. Arrigucci
(1987) faz uma descrição interessante de Cortázar, a qual também podemos
recorrer para a construção e apresentação do que pode ser a postura do pes-
quisador discutida aqui: “às vezes ficava quieto, assumindo a expressão de
quem caçasse, com a atenção desatenta de tudo o mais, alguma coisa no ar”;
ou ainda: “Compensava a timidez e o pudor da confissão com uma disponi-
bilidade completa para o outro, uma inocência primeira, uma quase ingenui-
dade que o entregava desarmado ao que acontecia em torno. E então se es-
pantava: fazia uma cara radiante de espanto a qualquer descoberta”.
Acreditamos ser assim a postura de um pesquisador que aposta na
possibilidade do contato com o outro como meio para construção de conhe-
cimento. Este contato pode ser de choque, como o era para Baudelaire, ou de
alegria e espanto, como era para Cortázar. Nesse sentido é possível aproxi-
mar o pesquisador de um narrador, pois este vai contar, a partir de sua afeta-
ção quando do contato com o mundo, as coisas e os outros, o que pode per-
ceber e refletir. Tratando-se a rede como construção coletiva entre atores
sociais, todos estes são, desta forma, narradores-pesquisadores à medida em
que participam ativamente desta construção.
Como modo de entrelaçar a história do fazer do ator social com a
história da construção da Rede de Atenção em Saúde vem o uso da narrativa
que se faz nesta pesquisa. Em entre-vistas, a narrativa se refere a um espaço
em que as histórias da prática cotidiana podem ser contadas, as dificuldades
da lida diária podem ser comunicadas e compartilhadas, as conquistas podem
ser faladas, enfim, uma oportunidade para que o sentido do que fazem possa
ser dito e re-criado (Chohfi, 2010). Criar um espaço para que esses profissi-
onais contem sua experiência nesse cuidar do outro pode se revelar como
uma oportunidade para que se reflita sobre o cuidado com a forma de cuidar,
perspectivando a possibilidade de construção de um fazer com sentido ético
e político (Cabral & Morato, 2003) no sentido de um melhor cuidado e aten-
dimento à comunidade. Nesse sentido, cuidar de quem cuida, ouvir quem
cuida e juntamente com ele construir e pensar é, em consequência, cuidar
dos clientes e possíveis usuários dos serviços.

Se a narrativa pode ser considerada, por um lado, como o modo de apre-


sentar uma experiência, ou seja, algo pelo qual já se passou, algo que foi
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

vivenciado e sobre o que se pode elaborar, e, por outro, como momento


do próprio desenrolar da experiência, de elaboração da experiência, ela
assume o caráter de forma de comunicação. Narrativa é ação, é forma, é
sentido e pode ser acessada em diferentes atos, através de diversos con-
teúdos. Depoimentos, relatos, histórias de vida são nada mais que atos de
uma narrativa que não se deixam aprisionar por conteúdos, mas sim, po-
dem se revelar por e através deles. (Morato, 2007, p. 11)

Já concluímos a cartografia dos serviços oferecidos no Centro de


Atendimento Psicológico do Instituto de Psicologia da USP(CAP/IPUSP) e,
como dito anteriormente, neste capítulo apresentaremos a própria cartografia
e o que pode ser construído a partir dela até o momento.

4 A CARTOGRAFIA: CONCEITO

Entende-se por cartografia dar voz, aquela que parte da reflexivi-


dade de nosso olhar com muitos outros. Num tear constante, as instituições e
seus atores vão se desvelando em cada gesto, em cada palavra, em cada sen-
sação de incômodo ou constrangimento (Morato, 2007). Cartografar diz de
um acompanhar as vibrações/pulsações, acidentes configurados (Hoodashtian,
2005 apud Morato, 2007). Ou seja, significa conhecer as instituições através
dos atores sociais que as compõem e, através deste conhecer, buscar cami-
nhos e brechas para o contato e intervenções.
Durante a cartografia, os alunos de graduação e de especialização
fizeram entrevistas com os professores responsáveis pelos laboratórios e/ou
com o técnico que trabalha neste serviço. Nas entrevistas, procuramos fazer
as seguintes perguntas: “Como você compreende a estrutura de funciona-
mento do seu serviço de atendimento?”, “Como é sua experiência neste tra-
balho?” e “Como seria para você ser o contato entre seu trabalho neste servi-
ço e uma Rede de Atenção em Saúde para a clientela?”, além de outras que
foram aparecendo no entrevistar. As entrevistas foram transcritas, devolvidas
aos entrevistados e analisadas. Na devolutiva, pode-se ou não firmar uma
parceria com a Rede. Ademais, há supervisão semanal com a mestranda Laiz
M. S. Chohfi, responsável pelo projeto.
Nesse sentido, imbuídos apenas das perguntas abertas citadas aci-
ma, os alunos de graduação e de pós, fiadores da Rede, puseram-se a ouvir e
acompanhar, em sua fluidez e em suas interrupções, a narrativa dos atores
sociais que fazem parte dos serviços em questão. A partir da afetação mútua,
entrevistado e entrevistador construíam um caminho possível para a questão
da formação da parceria. Assim é que se foi construindo o mapa de serviços
e laboratórios existentes: a partir de conversas entrelaçadas.
428 Laiz, Joyce, Luciana, Rodrigo, André e Henriette

5 CARTOGRAFANDO: O CAMINHO TRILHADO...

Até a atual data, foram realizadas 26 entrevistas com os responsá-


veis por diversos laboratórios e serviços do IPUSP. Cada laboratório possui
uma abordagem psicológica específica e pode possuir também um tema,
como casal, família, orientação profissional ou interculturalidade.
Todos os laboratórios possuem uma estrutura piramidal (ou vertical)
de poder, ou seja, há um responsável geral que coordena o laboratório e super-
visiona os outros integrantes. Estes grupos de integrantes são formados por
técnicos e alunos que estão trabalhando em suas pesquisas, ou iniciando está-
gios. Por sua vez, cada laboratório se reporta à diretoria do Instituto de Psico-
logia da USP, finalizando a pirâmide de poder existente dentro do IPUSP. Essa
formatação dos laboratórios difere da horizontalidade constitutiva da Rede, a
qual apresenta certos desafios que serão discutidos mais adiante.
A maioria dos entrevistados se mostrou interessada no projeto, de-
finindo “a Rede um serviço necessário à sociedade”, uma vez que ela cons-
trói o caminho para um serviço mais amplo beneficiando, desta forma, a
todos seus envolvidos. O seguinte trecho retirado de uma entrevista sugere
uma boa aceitação do projeto por parte do entrevistado:

Eu acho bastante interessante por que às vezes a gente precisa de algum


atendimento específico (...) Como eu falei, como o meu [laboratório] tem
um objetivo, que é olhar mais para o casal e para família, então os aten-
dimentos individuais nós não vamos fazer. Então, se de repente, tiver ou-
tro laboratório que a intenção é mais essa, sem dúvida eu acho rico isso,
e acho que seria um trabalho de entrosar esses laboratórios que fazem
muita coisa e muita gente não sabe....

Ou então este outro trecho retirado de uma entrevista com um res-


ponsável de outro laboratório:

O que falta no Brasil é justamente rede de apoio. Nos Estados Unidos, o


cara com câncer já entra numa rede. O HU [Hospital Universitário da
Universidade de São Paulo] está dando a maior força para esse tipo de
coisa, porque é assim que deve funcionar mesmo, não é? Não adianta fa-
zer nada isolado, embora no interior seja mais fácil porque é pequenini-
nho, todo mundo conhece todo mundo. Aqui em São Paulo é a maior difi-
culdade, ninguém fala com ninguém, ninguém se conhece...

Através da cartografia, encontramos multiplicidades que influen-


ciam os entrelaçamentos da Rede como, por exemplo, laboratórios que atuam
sob diferentes referenciais teóricos e metodológicos. Isso se mostrou como
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

um fator angustiante para os entrevistados, que viam o encaminhamento


entre diferentes laboratórios como algo incongruente, o que pode ser obser-
vado no seguinte trecho de uma das entrevistas:

Essa rede é super bem-vinda, a questão é que dentro da psicologia a


gente tem diferentes abordagens. Então, por exemplo, se eu estou con-
victa que a análise do comportamento tem uma abordagem importante
para o autismo e para a orientação de pais, seria muito difícil encami-
nhar para um trabalho psicanalítico. Por outro lado, seria importante
uma integração entre laboratórios de orientação compatível. Então eu
acho que essa rede de apoio social deveria ter uma consistência teórica...

De forma geral, os entrevistados pediam para que os mantivésse-


mos informados sobre o desenvolvimento do projeto, deixando claro que
determinados aspectos precisariam mudar para que a Rede pudesse funcionar
de forma plena. Uma das entrevistadas observou:

Acho uma iniciativa muito boa e acho que é algo necessário que vem co-
brir uma lacuna. E espero poder ler depois o trabalho, e que seja feito um
guia para que os laboratórios tenham essa informação de uma forma fa-
cilitada, clara, uma cartografia, um mapeamento. E as informações para
que então, por exemplo, você está aqui, pega um livrinho e vê tudo. É
aparentemente simples mas não é.

Este trecho evidencia, ainda, a necessidade de uma maior divulga-


ção do projeto e dos laboratórios envolvidos. Neste caso, a entrevistada suge-
riu um “livrinho” para esta função, mas ainda poderiam ser outras formas
como panfletos, o desenvolvimento de um site ou projeto virtual do gênero.
Ao analisar as entrevistas, foi possível observar uma das preocupa-
ções dos entrevistados que diz respeito ao aumento da procura para além da
capacidade de atendimento, de forma a criar uma fila (indesejável) de espera.
Além do aumento de demanda, apresentou-se a questão do “tipo” de pacien-
te. Os laboratórios, através de seus alunos, técnicos e docentes, realizam
produções acadêmicas e, sendo assim, recorrentemente, há protocolos de
atendimento. Dependendo do “tipo” de paciente, este pode ou não ser aten-
dido. Ambos os problemas se explicitam nas frases a seguir de uma técnica
de laboratório:

Uma das implicações de participação na rede seria o encaminhamento de


muitas pessoas em virtude da abertura de nossos serviços e devido à nos-
sa restrição, tanto física, quanto de estrutura para atendimento, o que
poderia inviabilizar a participação na rede. Mas, como há protocolos
430 Laiz, Joyce, Luciana, Rodrigo, André e Henriette

bem definidos e o grupo concorda em respeitá-los, talvez haja possibili-


dade de participação do nosso laboratório para realização de exames.

A mesma entrevistada continua: “Não há restrição desde que o pa-


ciente encaixe-se em um protocolo...”.. Esses problemas aos olhos dos entre-
vistados, juntos, representam o maior receio dos laboratórios em se organizar
em rede.
A dificuldade em construir uma Rede de Atenção em Saúde a partir
dos serviços/laboratórios existentes no IPUSP não é somente sentida e abor-
dada pelos responsáveis e técnicos, como fica claro na parte em que se dis-
cute as multiplicidades que atravessam a construção. Os colaboradores do
projeto da Rede também têm enfrentado desafios para tal. Um deles envolve
a dificuldade em agendar uma conversa com os já citados responsáveis e
técnicos, o que acaba por tornar a tecedura mais vagarosa uma vez que, por
ser uma rede construída fio a fio, nó a nó, quase que artesanalmente, já se
trata de um trabalho que toma tempo.
Para além das dificuldades sentidas pelo grupo, os colaboradores
da Rede, muitas vezes, encontram-se cruzando fronteiras muito bem estabe-
lecidas entre determinados serviços/laboratórios que não possuem interesse,
por conta de problemas de ordem particular, em trabalhar em conjunto. Este
tipo de situação gerou certo constrangimento nos membros do grupo, que
tiveram que se haver com problemas que não lhes diziam respeito nem direta
ou indiretamente. Com muito esforço e persistência da equipe, estes entraves
puderam ser superados para que a Rede pudesse continuar sendo tecida.
Pode-se também perceber, conforme o caminhar pelos fios lança-
dos, que a comunicação entre laboratórios/serviços no IPUSP é um tanto
quanto falha. Esta frase, de uma técnica, exemplifica o que acontece: “De
fato, não se conhece os laboratórios, ainda que estejam no mesmo corredor,
como no nosso caso em que, eventualmente, alguém pergunta se doutora
‘tal’ já chegou e não conseguimos responder apesar de a sala dela estar do
outro lado do corredor e as nossas salas ficarem deste lado”.
Desta forma, percebe-se que a falta de comunicação afeta das mais
diferentes maneiras o Instituto.
Por fim, percebemos que as demandas vêm dos dois lados, tanto
das pessoas que procuram os serviços, quanto dos responsáveis pelos labo-
ratórios, que necessitam de ajuda para que o fluxo de clientes se mantenha
estável. A Rede, portanto, seria uma forma de atender às demandas da po-
pulação que, transitando por possibilidades, poderia ser melhor atendida.
Assim como os serviços, recebendo-a, poderiam se comunicar entre si, de
modo que aquilo que faltasse pudesse ser conferido pelo próximo elo da
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

rede, propiciando que um conhecimento conjunto pudesse ser construído. É


desta forma que a Rede pretende unir os buracos do serviço público de saú-
de, atando serviços e pessoas pelos nós da comunicação.
A partir da cartografia, percebemos que a construção da Rede vai
além da comunicação entre os serviços e laboratórios. Como organismo
vivo, ela precisa ser cuidada constantemente. Faz parte desse cuidado
mantê-la ativa, seja por meio das demandas que nascem do APP, ou por
meio da divulgação da própria Rede, além do cuidado sempre necessário
com aqueles que se propõem a tecê-la: seus fiadores. Trataremos, agora,
destes desdobramentos.

6 CUIDANDO DE FIADORES: SUPERVISÃO E GANHOS EM


DISCUSSÃO

O cuidado com os fiadores da Rede foi, ao longo do tempo, sendo


sentido como tão essencial quanto a alimentação da Rede por contatos e de-
manda. Sem um espaço para a discussão dos problemas, as vitórias, benefí-
cios e impasses, este projeto não teria se concretizado em fios e ações.
O grupo da Rede se encontra semanalmente para discutir, em espa-
ço de supervisão, como prosseguir na construção, quais os próximos passos a
serem dados. Duas características marcantes desse grupo são imprescindíveis
de serem citadas. Uma delas diz respeito à constância do grupo: os partici-
pantes deste variaram pouco ao longo do anos, o que faz com que o mesmo
seja bastante unido e, além disso, que os fiadores se conheçam muito bem e
conheçam os vários estilos de tecedura de cada um. Outro ponto importante é
que o grupo de fiadores, mesmo tendo uma supervisora, trabalha em rede, ou
seja, todos os membros do grupo estão horizontalmente posicionados, não
havendo um “superior” na hierarquia. Partindo de um modo de trabalho ho-
rizontal, já no primeiro contato, mostramos aos laboratórios e serviços um
modo possível de trabalho em parceria, que respeita e une as diferenças.
Ao longo do tempo de projeto, o grupo foi percebendo que, além
dos benefícios à comunidade e aos serviços, os fiadores também se benefi-
ciavam dessa construção. A constância de participação no projeto indicava
fortemente que havia ali algo que beneficiava aqueles que, corajosamente,
punham-se a desbravar os serviços e laboratórios do IPUSP. A discussão
desses benefícios, bem como das dificuldades, foi alvo da monografia ela-
borada por ocasião da conclusão do curso de especialização Prática Psico-
lógica em Instituições da supervisora do projeto. Na monografia intitulada
“Cuidando de fiadores: conhecendo a rede” (2010), a autora Laiz M. S.
432 Laiz, Joyce, Luciana, Rodrigo, André e Henriette

Chohfi busca relatar e discutir como é o trabalho do grupo de construção


da Rede de Atenção em Saúde e de como aqueles que o compõe se perce-
bem em seus papéis.
Durante algumas supervisões, o grupo da Rede se colocou, a con-
vite da supervisora, a fazer uma avaliação do trabalho construído até o mo-
mento e de como isso afetou – ou não, a vida de cada um. A autora da mo-
nografia gravou estes encontros e, após transcrevê-los, teceu uma linha de
sentido, entrelaçando as falas de cada um dos fiadores.
É algo claro para os fiadores que a construção da Rede busca um
movimento instituinte dentro do IPUSP. O grupo busca movimentar a estru-
tura já cristalizada na fragmentação, lançando luz a ela de modo que novos
sentidos possam ser criados.
Outro ponto interessante de ser discutido é o fato de a participa-
ção no projeto da Rede parecer possibilitar, segundo os próprios alunos,
uma formação um tanto diferenciada. Conforme dito por eles mesmos, a
formação em Psicologia no IPUSP acaba por ser, de certa forma, restrita, já
que não se consegue entrar em contato com todos os laboratórios, serviços
oferecidos, pesquisas desenvolvidas por docentes ou técnicos e também
pela grade curricular privilegiar determinadas abordagens. Participando do
projeto, eles conseguiram caminhar como viajantes por entre o IPUSP,
conhecendo mais profunda e amplamente o que este tem a oferecer. Segun-
do eles próprios, isso leva à formação de uma visão mais crítica na medida
em que se conhece melhor o lugar onde estão, além de possibilitar uma
escolha melhor fundamentada no tocante ao caminho que eles querem se-
guir como psicólogos. Ainda falando da formação, durante a discussão
ficou claro certo caráter terapêutico da participação no projeto. Os alunos
comentam de se sentirem mais à vontade em serem quem são, mais “caras-
de-pau”, como disseram. Enfrentando as mais variadas situações, possibi-
litadas pelos diversos tipos de contato que são necessários para a constru-
ção das parcerias, eles vão se experimentando em suas múltiplas facetas.
Conhecendo em si seus vários modos, eles amadurecem e parecem mais
confortáveis, seguros e confiantes. O fato de conversar com o professor de
igual para igual, de percebê-lo como humano, assim como eles são, auxilia
muito neste sentido.
A Rede acaba, portanto, oferecendo-se como possibilidade de cui-
dado e crescimento para uma ampla gama de pessoas. Oferece-se como tal
aos alunos, que usufruem dela para sua formação; para a supervisora, que
pode se experimentar nessa outra posição, deslocando-se um pouco do lugar
já familiar de aluna; aos professores e técnicos que também podem se expe-
rimentar num outro lugar, repensando sua prática em relação aos clientes que
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

necessitam dela e, por fim, oferece-se como possibilidade à comunidade, que


pode circular por entre os vários serviços e laboratórios de modo a ser bem
atendida no que demanda.
Os dois próximos desdobramentos partem dessa reflexão e de uma
tentativa de extrapolar a mais pessoas o que o grupo pôde perceber como
sendo benéfico para ele próprio.

7 EN-CAMINHANDO CLIENTES

Conforme mencionado no início do capítulo, este projeto partiu de


uma demanda sentida nos serviços de atendimento em plantão psicológico
do LEFE para encaminhamento de clientes. Assim, um trabalho que também
vem sendo realizado é juntamente aos supervisores e plantonistas do APP,
para o entrosamento da cartografia dos serviços oferecidos pelos diversos
laboratórios do IPUSP com a sua demanda inicial.
O encaminhamento é pensado quando se percebe a necessidade de
um trabalho que transcende a proposta do plantão e o cliente apresenta-se
mais apropriado de sua demanda. Nesse sentido, a equipe da Rede procura
estar sempre presente durante as supervisões, refletindo juntamente com
supervisores e plantonistas as possibilidades de cuidado que podem ser ofe-
recidas. A ideia é que um encaminhamento mal trabalhado pode resultar em
desencontros e desgastes desnecessários.
Os encaminhamentos podem ocorrer tanto para serviços parceiros
como para profissionais liberais (em sua maioria psicólogos e médicos) que
fazem parte de uma lista de cadastrados da Rede. Um dos pilares da Rede é
que ela é constituída por pessoas. Assim, embora elas se encontrem em ins-
tituições, os contatos são pessoais. Dessa forma, o conhecer o outro torna-se
fundamental para que o trabalho aconteça.
Verificou-se que, conforme os encaminhamentos eram trabalha-
dos, tanto plantonistas como supervisores começaram a ficar mais atentos
para essas questões, e eles próprios começaram a trazer sugestões de en-
caminhamentos (a partir do conhecimento dos serviços parceiros). Ou
seja, aos poucos a Rede vai tecendo seus fios e ligando pessoas, clientes,
plantonistas, supervisores, cadastrados, técnicos e professores dos serviços
parceiros.
Conforme Chohfi:

ficam evidentes dois pontos fundamentais da construção dessa Rede de


Atenção em Saúde à luz da fenomenologia existencial. Ter a quem se re-
434 Laiz, Joyce, Luciana, Rodrigo, André e Henriette

ferir, ao invés de ao que, ou seja, personalizar a relação no encaminha-


mento facilita o processo e diminui a chance de erro. Além disso, acom-
panhar o encaminhamento, uma vez que é o plantonista, junto aos fiado-
res, que pensa o encaminhamento e entra em contato primeiramente com
a pessoa responsável pela porta de entrada do destino, também se faz es-
sencial para que todos os nós do encaminhamento estejam bem amarra-
dos, fazendo com que o cliente seja melhor atendido, com que o planto-
nista sinta-se seguro para encaminhar e com que a rede, que é para ser
um organismo vivo, uma vez que promove circulação, possa de fato exis-
tir e se sustentar. (2011, pp. 31-32)

Portanto, mostra-se fundamental que a relação entre os fiadores e


os nós da Rede, sejam elas instituições ou profissionais liberais, seja o
mais pessoal e profissional possível, para que se possa cuidar adequada-
mente dos clientes que procuram o plantão psicológico. Ainda, é indispen-
sável que a demanda do cliente seja bem trabalhada por parte do planto-
nista, em conjunto com o grupo da Rede por meio da supervisão, para que
este cliente seja realmente en-caminhado, no sentido de que efetivamente
procure o profissional ou instituição sugeridos, para que se cuide e possa
ser cuidado.

8 ENCAMINHAMENTOS FUTUROS

Mediante a inusitada pergunta “E se a Rede acabar, o que sobra-


rá?”, o grupo da Rede discutiu a importância de socializar as informações
obtidas durante a pesquisa. A pergunta nasceu em função do esforço em-
penhado em entender para onde as informações obtidas iriam se, no ex-
tremo, o grupo de estudantes se desvinculasse por conta do término da
graduação, da pós-graduação ou, simplesmente, por mudar para outro gru-
po de pesquisa.
A partir de então, decidiu-se pela construção de um dispositivo que
contemplasse as especificidades daqueles que entraram em contato com a
Rede visando facilitar a comunicação. Nesse sentido, uma das estratégias
adotadas foi o desenvolvimento de um blog que informasse sobre tais servi-
ços/laboratórios e trabalhos realizados nestes e possibilitasse a troca de expe-
riências.
Apesar da Rede, inicialmente, assumir um formato que, de modo
pragmático, remete ao modelo estrelar, conforme demonstrado na figura 1,
em que o grupo responsável pela pesquisa está no centro detendo todas as
informações.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Figura 1 – Rede inicial, estrelar

Contudo, a proposta e todo material gráfico produzido, como


pôsteres para apresentações em congressos, utiliza a figura 2 como logoti-
po, que entendemos representar melhor a possibilidade de acesso democrá-
tico. Desde as linhas de ligação mais grossas até a ausência de linhas entre
imagens, representa-se as teceduras que aconteceram (ou não) e sua con-
sistência.
436 Laiz, Joyce, Luciana, Rodrigo, André e Henriette

Figura 2 – Rede idealizada, democrática

Atualmente, constam no site2 breves resumos relativos aos labo-


ratórios disponibilizados também no site do Instituto de Psicologia da USP
– IPUSP. Em breve, pretendemos disponibilizar trabalhos desenvolvidos
nos laboratórios para consulta e leitura conforme autorização de cada res-
ponsável pela pesquisa em questão. Ao final de algumas semanas, o blog
apresentará os laboratórios em um índice com a quantidade de posts rela-
cionados e outro índice com nome de autores de posts e/ou artigos, facili-
tando a procura por ambos, dando destaque para cada um logo na página
principal.

2
O site encontra-se em desenvolvimento (www.tecendoumarede.wordpress.com).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

A publicação e divulgação do blog será realizada na “Semana de


Psicologia” do IPUSP (segundo semestre de 2012), pois, neste evento, irão
comparecer alunos, pesquisadores, professores, técnicos e a comunidade em
geral. A Rede submeteu uma proposta de um evento em que os participantes
poderão conversar acerca das atividades de pesquisa e extensão que reali-
zam. Este momento também poderá proporcionar a experiência de contato
entre diversas áreas de conhecimento, como a terapia ocupacional, medicina
e serviço social, uma vez que o mesmo não é exclusivo para psicólogos ou
estudantes de psicologia. Esperamos que isso possa enriquecer ainda mais as
discussões e confecções de fios.
A socialização dessas informações e construção de uma rede tem se
mostrado necessárias. Apesar de alguns canais tentarem suprir essa demanda,
os serviços têm informado ao grupo da Rede, através de seus técnicos e pro-
fessores, que o desconhecimento de serviços ou laboratórios existentes “em
uma sala no mesmo corredor que o seu próprio” é uma realidade e, eventu-
almente, as demandas que surgem não são comportadas visto a limitação
física ou tecnológica para alguns atendimentos. Os conflitos políticos tam-
bém são conhecidos e a Rede procura respeitar as diferenças. Porém, tam-
bém compreende a necessidade de articulação, visto que há pessoas com
demandas ou algum sofrimento muito variados a ponto de cada laboratório,
agindo como se fossem ilhas em arquipélagos, não disponibilizarem aos
outros seus recursos para alcançar junto com (ou “para”) cada pessoa um
caminho que permita o processo de retomada e fortalecimento de si.
Os buracos existentes entre “cada ilha” têm, na ausência de agulhas
percorrendo os espaços, promovido uma história entre os serviços marcada por
ações isoladas, de diversos tipos e qualidades, mas ainda assim isoladas. A
partir do momento em que o grupo da Rede foi bem recebido pelas pessoas que
habitam cada ilha, desvela-se mais uma vez o caráter dos buracos que abre
possibilidades e diálogos (como foi possível sentir e vivenciar durante as entre-
vistas). Neste sentido, as atividades e estratégias do grupo buscam ventilar essa
compreensão que permite a ampliação das possibilidades de atenção em saúde.

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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

PRÁTICA PSICOLÓGICA EM SAÚDE


PÚBLICA: A DIMENSÃO ÉTICO-
-POLÍTICA DO CUIDADO NAS
POLICLÍNICAS
Ana Paula Noriko Cimino
Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Sumário: 1. A Dimensão Ético-Política do Cuidado na Clínica Psicológi-


ca. 2. Material e Métodos. 3. Resultados e Discussão. 4. Consi-
derações Finais. 5. Referências.

Este estudo teve como objetivo compreender a dimensão ético-


política do cuidado na prática do psicólogo em Saúde Pública, nas Policlíni-
cas, descrevendo e compreendendo essa prática na tentativa de desvelar a
dimensão ético-política na clínica compreendida enquanto cuidado.
Sob o ponto de vista histórico, é importante considerar que a entra-
da dos profissionais de Psicologia na Saúde Pública se deu a partir da década
de 80 sob a influência da Reforma Psiquiátrica. Momento esse que impôs à
Psicologia uma nova problemática. Tal inserção foi também motivada pela
demanda e pressão do mercado de trabalho que se encontrava em crise, além
dos esforços dos movimentos da categoria na tentativa de redefinir a ação do
psicólogo na sociedade.
Assim, ao longo das décadas de 70 e 80, a saúde teve sua área de
atuação ampliada, o que propiciou abertura de campo para diversos profissi-
onais e, como consequência, a criação de uma nova orientação das políticas
públicas. Além disso, com a crise econômica ocorrida na década de 80, os
atendimentos psicológicos privados ficaram cada vez mais limitados e a
atuação em serviços públicos tornou-se atrativo tanto para profissionais re-
cém-formados quanto para os mais experientes.
Diante desse novo contexto, o psicólogo brasileiro inserido na rede
pública deparou-se com questionamentos sobre sua prática, até então funda-
da em modelos técnico-científicos e orientada pelos grandes sistemas psico-
lógicos sustentados por uma pseudo-unidade da Psicologia. A sua atuação
440 Ana Paula Noriko Cimino e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

passou a ser atravessada por uma série de questionamentos político-sociais


que apontam para a necessidade de construção de práticas que atendam a
essa nova demanda, contextualizando as problemáticas emergentes das di-
versas comunidades atendidas. Gera a necessidade de acolher a demanda das
classes sociais menos favorecidas, o que revolucionou os modelos dos servi-
ços psicológicos tradicionais, voltados para o atendimento de uma minoria
pertencente às classes média e alta.
O crescente envolvimento com os serviços ofertados pelas Unida-
des Básicas de Saúde, vinculadas à assistência em Saúde Pública “vem ge-
rando desafios e angústia para os psicólogos compromissados com uma
transformação pessoal. Para que essa se efetive, faz-se necessária uma outra
postura, uma outra forma de conceber as relações sociais, o homem, a vida”
(Andrade & Morato, 2004, p. 346).
Pesquisas já apontam diversas dificuldades encontradas pelos psi-
cólogos que atuam na Saúde Pública (Yamamoto & Cunha, 1998; Dimenstein,
1998; Lima, 2005; Carvalho; Bosi & Freire, 2009). Os resultados apontam
para três principais fatores dificultadores: a inadequação da formação aca-
dêmica para a atuação do psicólogo em instituições de Saúde Pública, difi-
culdade de adaptar-se às condições de perfil profissional exigido pelo SUS e
a transposição do modelo hegemônico de clínica psicológica tradicional para
o setor público.
Trazendo essa reflexão para o âmbito das Policlínicas da cidade do
Recife, os fatores expostos pelas pesquisas acima mencionadas corroboram
com os indicadores encontrados nas pesquisas realizadas por Barreto e Ci-
mino (2008; 2009; 2010). Além disso, os autores ressaltam como aspectos
dificultadores: o grande número de pacientes, falta de condições físicas e
materiais e número reduzido de profissionais. Apontam para a necessidade
de reformulação do modo de funcionamento do serviço prestado nas Policlí-
nicas, de forma a discutir sobre o papel dessas unidades, buscando uma efi-
caz integração com os outros serviços existentes de modo a potencializar os
atendimentos em número e qualidade. As conclusões assinalam para a neces-
sidade de se repensar a formação acadêmica dos psicólogos, privilegiando
modalidades de prática psicológica que possam acolher a demanda de sofri-
mento dos usuários, possibilitando uma maior articulação com o social. O
atendimento nas Policlínicas exige uma atenção à dimensão coletiva do so-
frimento aliada a uma preocupação ético-política da ação do psicólogo, ação
essa não privilegiada na formação acadêmica tradicional.
É nesse contexto de atenção em Saúde Pública, em especial nas
Policlínicas, que o psicólogo brasileiro vem construindo sua atuação junto à
população atendida. As especificidades demandam dessa atuação maior fle-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

xibilidade por parte dos profissionais, exigindo novas possibilidades de prá-


tica psicológica, contextualizadas com os atravessamentos das dimensões
políticas e sociais na qual sua prática está inserida.

1 A DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA DO CUIDADO NA


CLÍNICA PSICOLÓGICA

Ao longo dos anos, em especial posteriormente à inserção dos psi-


cólogos na rede pública de saúde, a prática profissional vem passando por
modificações que indicam a necessidade de uma ampliação/redirecionamento
na postura profissional. Nesse sentido, aponta-se a dimensão ético-política
como possibilidade norteadora do cuidado psicológico. O caminho a ser
trilhado será problematizado a partir do que Heidegger (2009a) nomeia “téc-
nica moderna” e cujas discussões viabilizaram questionamentos e articula-
ções com a prática do psicólogo.
O pensamento do filósofo Martin Heidegger, que norteia a feno-
menologia existencial ou analítica da existência, tem como um dos temas
centrais a discussão em torno da técnica. Para Heidegger (2009a) é em Des-
cartes que a técnica alcança o status de teoria aplicada com as discussões
sobre o método, e critica a supremacia desse modo de pensar e a idolatria ao
método. Questiona a mensurabilidade e o método, trazendo a noção de cal-
culabilidade, indicando que essa é uma tentativa de dominação dos processos
naturais numa atitude de dominação sobre eles. Heidegger (2009a) afirma
que, na “ciência moderna, o método não só desempenha, como foi dito, um
papel especial, mas a própria ciência nada mais é do que o método” (p. 143).
Assim, percebemos a previsibilidade que a técnica moderna atribui aos fe-
nômenos naturais, e é papel do método assegurar esse caráter e alcançar a
verdade das coisas. Tal verdade não significa a manifestação das coisas, mas
aquilo que pode ser verificado de modo claro e seguro, chegando ao indubi-
tável através da eliminação de tudo que possa ser duvidoso para alcançar a
certeza. Todos os objetos que não são passíveis desse método, baseado na
calculabilidade objetiva, são descartados por serem incertos e inverídicos.
Assim, a técnica moderna impõe uma provocação para que o fe-
nômeno se desvele e se exponha como matéria-prima para a intervenção
técnica, pela qual o controle e a segurança são destacados. Surge, assim, a
“provocação recíproca entre homem e o real – em que o primeiro toma o
segundo como fundo de reserva e o segundo incita o primeiro a procurar as
suas forças escondidas” (Michelazzo, 2002, p. 99). Tal provocação é deno-
minada de Gestell, que seria uma armadilha ou armação em que o homem e a
técnica se provocam reciprocamente. A essência da técnica já se transformou
442 Ana Paula Noriko Cimino e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

no modo de pensar do ocidente que busca em tudo a noção, a ideia ou con-


ceito. Esse domínio sobre as coisas restringe a interpretação do real em que
as coisas são meros objetos.
Diante do exposto, é importante ressaltar que a crítica de Heide-
gger não busca a substituição ou questiona a verdade da técnica moderna.
Mas, sim, ele questiona a forma como o pensamento se aprisionou à técnica
de maneira a pensar que a verdade só pode ser alcançada por meio dela. Nes-
sa direção, em relação à atitude técnica, propõe a postura de serenidade, ex-
plicitada por Heidegger “como postura em que a alma se coloca igualmente
aberta e desapegada em presença de todas as coisas” (Sá, 2002, p. 356). As-
sim é possível estar dispostos a “dizer sim e não” ao paradigma moderno,
sim ao seu uso inevitável e não ao aprisionamento do modo de pensar da
técnica, não lhe concedendo grande superioridade sobre as outras possibili-
dades. Tal postura abrange o que Heidegger propôs como pensamento me-
ditante, que busca a aproximação do real através de um outro enraizamento.
Indica que,

O pensamento meditante exige de nós que não nos fixemos sobre um só


aspecto das coisas, que não sejamos prisioneiros de uma representação,
que não nos lancemos dentro de uma única via, dentro de uma só direção.
O pensamento meditante exige de nós que aceitemos nos deter sobre as
coisas que à primeira vista parecem irreconciliáveis. (Heidegger, 2000,
p. 144, apud Sá; Mattar & Rodrigues, 2006, p. 122).

Nesse sentido, aponta para a necessidade de uma postura que espe-


ra serena, sem, no entanto, projetar expectativas a priori sobre o objeto que
se deseja conhecer. Trata-se de um aguardar sereno que conduz ao sentido do
ser, aberto a todas as possibilidades que se desvelem nesse encontro, sem
impor nenhum a priori nessa relação, cujo modo de desvelamento pertence à
poíesis, que seria levar a luz, e trazer algo para a desocultação. Esse mostrar-
se é compreendido como physis ou da téchne e o comportamento frente à
natureza é um deixar acontecer, aceitando os limites de acontecer. Téchne
refere-se ao conhecimento que se dá pela compreensão, a conhecer no ato de
produzir. O desvelar da téchne consiste em poder ver algo que ainda não está
visível, enquanto produção que “deixa aparecer” o que se oculta.
Considerando a problemática gerada pela técnica moderna e suas re-
percussões no pensamento ocidental, nossa reflexão buscará compreender seus
efeitos no exercício do cuidado exercido pelos psicólogos. Nesse contexto,
resgatando a história da Psicologia, em especial, da Psicologia Clínica, encon-
tram-se diversas linhas que determinam o modo de agir e de compreender as
demandas que chegam até a clínica. Tais conhecimentos são necessários à
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

prática profissional, no entanto não devem engessá-la, tornando o espaço clíni-


co como um mero lugar de aplicação de técnicas, pela qual a forma de com-
preender o sofrimento e a própria prática seriam enquadradas dentro de um
determinado parâmetro: o espaço clínico não pode ser considerado apenas um
local de aplicação de técnicas. O sofrimento vivido pelo cliente demanda uma
escuta singular, não podendo ser colocado dentro de uma determinada catego-
ria e, em seguida, tratado de forma preestabelecida; trata-se de um encontro
rico em possibilidades. A técnica é apenas um dispositivo dentro das diversas
modalidades de prática psicológica, e como tal ser tratada.
Essa forma não implica abandonar as técnicas, mas sim reconhecer
onde seu uso é adequado, bem como os seus limites. É preciso, também, ser
reconhecida a importância dessas técnicas para a Psicologia afirmar-se en-
quanto ciência, mas que isso não é garantia de superioridade e/ou hegemo-
nia. Sá (2002) indica que Heidegger convida a “abordar a realidade, no exer-
cício de uma abertura fenomenológica ao sentido dos entes, principalmente
daquele ente cujo sentido deveria estar sempre em questão na clínica, o pró-
prio homem” (p. 358). Nessa direção, o encontro psicológico se ocupa em
acompanhar o acontecer do ser e ente, na perspectiva do cuidado, em que o
psicoterapeuta participa do acontecer do cliente, vislumbrando, assim, as
diferentes possibilidades de compreensão da sua existência.
Assim, ação clínica implica uma afetação por parte do psicólogo,
uma disponibilização para acolher, compreender e responder à solicitação do
cliente, como ser singular atravessado por diversas dimensões, demandando
uma abertura, que possibilite abertura a um encontro rico de possibilidades.
Tais reflexões acerca da clínica apontam para a necessidade de compreender
a ação dos psicólogos norteada por uma atitude que se aproxima da compreen-
são de pensamento meditante, podendo ser apresentada por uma postura
ético-política. Para tanto, para fins de esclarecimento, faz-se necessário situar a
noção de ética e política adotada neste trabalho.
A ética tem sido tradicionalmente compreendida como sinônimo de
moral, ou seja, aquela que dita padrões, normas, máximas verdades que de-
vem ser seguidas. Uma dualidade fica evidente na visão de ética norteada
pelo agir em que sempre há o que é certo ou errado, verdade ou mentira, e a
vida passa a ser explicada pelos universais que a regulamentam. Essa noção
de ética é apontada por Rocha (2010) como a ética regida pela razão, cujo
precursor foi Sócrates e “que relacionou as máximas éticas tradicionais a
uma visão mais profunda da psyché humana, vendo nela o princípio funda-
mental do ser e do agir do homem” (p. 174). Nesse sentido, a visão de ética
norteada pelo agir aponta para uma dualidade em que sempre há o que é
certo ou errado, verdade ou mentira.
444 Ana Paula Noriko Cimino e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Tal visão indica uma dicotomia também presente no modo de pen-


sar metafísico, já apontado nas discussões sobre a técnica moderna, em que a
diferença produzida na processualidade da vida é considerada erro a ser su-
perado/corrigido. Por esse modo de conceber a ética, encontra-se o homem
teórico, ou seja, aquele que, sob o domínio da racionalidade, possui um su-
posto saber que norteia suas explicações sobre a vida, os outros e o mundo.
E, diante desses fenômenos, possui um arcabouço técnico/teórico para corri-
gir os desvios e ajustá-los à norma regida pela ética dos valores morais.
Apesar das críticas apontadas a esse modo de pensar, o próprio
pensamento heideggeriano, segundo Loparic (2004), considera a impossibi-
lidade de viver sem os recursos técnicos e das normas da ética baseadas na
razão prática; no entanto, alerta para que ela não seja um fim em si mesma.
Diante desses questionamentos, vislumbra-se outra compreensão de ética que
é alvo das nossas reflexões. Essa é compreendida a partir de sua etimologia,
que vem do grego ethos e significa costume, morada, “lugar de morada, es-
paço aberto onde habita o homem” (Heidegger, 1946 apud Corrêa & Batista,
2001, p. 52). Compreende a noção de ética pautada por uma visão norteada
pelo habitar e não pelo agir, ou seja, “designando posturas existenciais e/ou
concepções de mundo capazes de dar acolhimento, assento ou morada à alte-
ridade” (Andrade & Morato, 2004, p. 346).
Nesse sentido, percebemos que há um deslocamento do homem te-
órico, detentor do saber racional, para o homem ético:

que se deixa afetar pelo estranho, por aquilo que não é da ordem do re-
presentacional ou de seus códigos familiares, e ao acolher a alteridade
e a produção de diferença emergente, vive um processo transformador e
instituinte de novos modos de estar no mundo. Transmuta-se do lugar
da explicação sobre para o lugar do aprender com ou aprender entre.
(Andrade & Morato, 2004, p. 347)

Diante desse contexto, Rocha (2010) atenta para a dimensão ética


estar atrelada à dimensão política do humano conforme aponta Aristóteles,
pois, para os gregos, o bem-estar pessoal não é dissociado do bem-estar da
comunidade política na qual estava inserido. Andrade e Morato (2004) rea-
firmam esse pensamento recorrendo à etimologia das palavras ética e política
que, segundo as autoras, impõe uma reflexão da dimensão ético-política da
profissão:

A palavra ética, do grego ethos significa modo de ser, ou maneira pela


qual a pessoa e a sociedade se mostram; essa manifestação dá-se de for-
mas variadas, fundando a habitação quer do lar, quer da polis (em grego,
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

cidade país, lugar). Aí se encontra uma articulação entre ética e política,


comportando a mesma ambiguidade de sanção (dever) e expressão (di-
reito) com prudência e serenidade. (p. 350)

Nessa direção, Hannah Arendt (2000) formula sua “teoria política”


na qual as atividades humanas são realizadas junto aos outros homens na
sociedade. A autora nomeou de vita activa as atividades humanas – labor,
trabalho e ação – consideradas fundamentais, pois correspondem a diferentes
“condições básicas mediante as quais a vida foi dada ao homem na Terra”
(Arendt, 2000, p. 15). Pontua que dessas atividades a ação (práxis) não pode
sequer ser pensada sem ser executada pelo homem e sob a constante presen-
ça dos outros. Ao se referir à esfera política, Arendt busca em Aristóteles a
ideia de que, além da esfera da vida privada, o homem também possui a esfe-
ra pública, e que essas duas esferas que compõem a existência.
Passando para a distinção proposta pela autora das atividades que
compõem a vita activa, encontra-se o Labor, sendo a própria vida sua condi-
ção humana. Trata-se da “atividade que corresponde ao processo biológico
do corpo humano, cujo crescimento espontâneo, metabolismo e eventual
declínio têm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo
labor no processo da vida” (Arendt, 2000, p. 15). Assim, o labor assegura a
sobrevivência do indivíduo e da espécie, produzindo coisas necessárias, mas
de curta duração: compõe o movimento cíclico da natureza, que provê os
meios de consumo para alimentar o processo da vida humana. Percebe-se,
assim, uma íntima ligação entre o labor e o consumo, que alimentam a ne-
cessidade de subsistir, cujo existir ocorre na privatividade do próprio corpo e
afeito aos ritmos da natureza.
Já no que se refere ao trabalho, como produção do mundo artificial
de coisas, sua condição humana é a mundanidade. Assim, o trabalho produz
os artefatos humanos, ou seja, uma atividade produzida pelas mãos do ho-
mem destinada, em sua maioria, ao uso e ao consumo, emprestando aos pro-
dutos o caráter de objetividade do mundo, uma vez que seu fim determinará
a conveniência e precisão dos mesmos, sendo uma criação do homem origi-
nada da necessidade de auxilio, de instrumentalização da atividade humana.
Nessa direção, o fazer, o fabricar e o criar, através do manejo de instrumen-
tos, viabilizam a criação de uma obra que tem a qualidade de durabilidade e
permanência. Convém alertar que Arendt (2000) pontua que tanto o labor
quanto o trabalho são realizados na esfera privada, e que apenas a ação é
executada no âmbito público.
Nesse contexto, surge a reflexão sobre a ação, que é a atividade
humana realizada eminentemente sem a mediação das coisas e da matéria.
Sua condição humana reside na pluralidade, já que, para ser realizada, de-
446 Ana Paula Noriko Cimino e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

pende da participação dos demais humanos singulares, habitando conjunta-


mente o mundo. Arendt (2000) aponta que todos os “aspectos da condição
humana têm alguma relação com a política; mas essa pluralidade é especifi-
camente a condição – não a apenas a conditio sine qua non, mas a conditio
per quam – de toda vida política” (p. 15). Assim, a razão pela qual a plurali-
dade é a condição humana do caráter político da vida inclui o fato de que
ainda sendo todos os mesmos – humanos, são todos diferentes e que essa
característica de diferença jamais será retirada. A ação, portanto, constitui
caráter central do pensamento político, e promove a condição da constituição
da história. É através do discurso que os homens se comunicam, se fazem
entender, se diferenciam e se distinguem constituindo-se; é manifestação que
os torna algo além de simples objetos físicos, mas os caracteriza enquanto
homens. Além disso, a ação e o discurso não podem ser substituídos por
outra atividade humana nem feitos por outro ser que não o próprio homem: a
vida humana sem a ação e o discurso está morta para o mundo.
A abertura ao mundo se dá através das palavras e atos, podendo ser
estimulada pela presença dos outros, mas nunca condicionada. Através do
agir, toma-se a iniciativa ou imprime-se movimento criando algo novo, dan-
do à vida o caráter de imprevisibilidade, de distinção e de singularidade. As
palavras faladas revelam, no discurso, através da ação, o que se fez e o que
se pretende fazer. Assim, a ação só é possível a partir do discurso, pois é
através dele que os homens ativamente revelam quem? através da convivên-
cia humana.
Por possuir esse caráter de revelação, a ação expõe e revela na pa-
lavra, impondo, assim, a condição de estar disposto a correr risco de se re-
velar. Assim, “as histórias, resultado da ação e do discurso, revelam um
agente, mas esse agente não é autor nem produtor. Alguém a iniciou e dela é
o sujeito, na dupla acepção da palavra, mas ninguém é seu autor” (Arendt,
2000, p. 197). Nessa direção, a ação, enquanto práxis, é do domínio da vida
ativa, que, através do discurso – seu instrumento –, põe o homem no âmbito
da vida política e constrói a ética no exercício ativo da palavra. No entanto, a
referida autora aponta que, no mundo moderno, as atividades humanas têm-
se reduzido apenas no nível do labor e do trabalho, na tentativa de eliminar a
pluralidade e suprimir a esfera pública da condição humana contida na ação.
Retomando o foco deste capítulo – a dimensão ético-política do
cuidado na clínica psicológica – trazendo tais reflexões para o âmbito da
prática do psicólogo, buscam-se as contribuições de Figueiredo (2009a).
Este autor constrói seu pensamento em relação à ética das práticas psicoló-
gicas e discursos psicológicos partindo da epistemologia. Nesse sentido, a
história da Psicologia aponta a grande dispersão dos saberes que têm im-
plicações práticas, técnicas e éticas no fazer psicológico. Tal fato tende a
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

gerar um sutil mal-estar mobilizando a angústia que pode bloquear o acesso


à experiência. Caso essa angústia não se manifeste é porque esse humor
pode ter sido convertido em duas reações típicas e perniciosas; são elas: o
dogmatismo e o ecletismo. Por postura dogmática Figueiredo aponta
aquele profissional que se tranca dentro da sua teoria e não se abre para
questionamentos. Assim, os fenômenos só são acolhidos à medida que se
encaixam nos esquemas estabelecidos no modo de pensar do psicólogo. O
autor ainda revela que reconhece o papel e a importância dos sistemas psi-
cológicos, mas as crenças dogmáticas dos profissionais tendem a aprisionar
a experiência e impossibilitar o desvelamento do novo. Quanto à postura
eclética, o profissional faz o uso indiscriminado de crenças, métodos, téc-
nicas e instrumentos de acordo com a sua necessidade, sem uma reflexão
crítica para enfrentar os desafios impostos pela prática, possuindo uma
visão presa no plano do senso comum e sendo nesta visão que o psicólogo
encontra o ponto para unir essas teorias. Em comum, essas duas posturas
bloqueiam a capacidade de experimentar, ou seja, não possibilitando um
entrar em contato com a alteridade.
Nesse espaço de dispersão, aponta ainda outras possibilidades de
lidar com a angústia através de movimentos construtivos e reflexivos. Tais
movimentos partem da experiência da prática para uma reflexão sobre os
recursos teóricos permitindo a elaboração de novos conhecimentos. Assim,

para que o movimento construtivo possa se efetivar é necessário conser-


var aberto o lugar para a experiência, o lugar da alteridade, da negativi-
dade, da transformação. Ora, a abertura e conservação deste espaço é
tarefa da reflexão. A reflexão destina-se, no caso, a elucidar os limites de
cada sistema, seja explicitando seus pressupostos, seja antecipando suas
implicações e consequências, muitas vezes invisíveis a olho nu. (Figueiredo,
2009a, p. 21).

Diante disso, Figueiredo salienta que as questões epistemológicas


têm sido cada vez mais problematizadas e observa que tem sido abandonado
progressivamente o projeto fundacionista do conhecimento científico. Esse
abandono vem corroborar com a ideia de dispersão no espaço de construção
do conhecimento psicológico que, ao delinear conjuntos de normas, valores,
concepções, podem ser nomeadas de “matrizes do conhecimento psicológi-
co”. Essas matrizes se dividiriam em Matrizes Cientificistas, pelas quais a
psicologia é concebida e praticada nos moldes da ciência natural, Matrizes
Românticas, que se opõem ao racionalismo e ao império do método e pro-
põem como o objeto da Psicologia as formas expressivas, e ainda Matrizes
Pós-Românticas, que buscam a interpretação que vai além da compreensão
imediata do sentido.
448 Ana Paula Noriko Cimino e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Trazendo tal discussão para o âmbito da saúde, Figueiredo (2009a)


aponta que “reconhecendo que o ethos de uma comunidade equivale a uma
morada coletiva para seus membros, deve ficar clara a relação direta que
pode ser explorada entre ética e saúde” (p. 71). Baseados no que o referido
autor apresenta, pode-se pensar nessa morada como capaz de acolher a alte-
ridade manifestada pelos usuários dos serviços de saúde. Esse contexto indi-
ca a importância da discussão da ética enquanto morada na saúde, em espe-
cial na saúde pública, em que essa morada coletiva de saúde seria criada na
relação dos usuários e em parceria com os profissionais, abarcando assim a
multiplicidade dos sentidos ali construídos.
Neste contexto, podemos trazer para a reflexão a clínica compreendi-
da enquanto cuidado. Tendo como eixo norteador o pensamento de Heidegger
(2009b) para esta compreensão, convém refletir sobre o ser do homem com-
preendido enquanto Dasein, ou seja, “um ente em que, sendo, está em jogo
seu próprio ser” (p. 258). E, nesse existir o ser é ontologicamente ser-no-
mundo-com-os-outros, desvelando assim que o cuidado nunca é um ato iso-
lado do Dasein, sendo sempre dirigido ao outros e ao mundo, dentro de um
significado especial, como “aquilo que pertence à presença humana ‘en-
quanto vive’” (p. 266), ou seja, no sentido originário.
Diante desse contexto, cuidado é “habitar o mundo e construí-lo,
preservar a vida biológica e atender às suas necessidades, tratar de ser si
mesmo em sua singularidade e pluralidade” (Critelli, 2006, p. 132). Na con-
dição de abertura que constitui o Dasein, o homem encontra-se diante da
tarefa de dar conta do ser ele mesmo e, assim, depara-se com essa responsa-
bilidade – de ter que cuidar de ser – condição presente na ontologia da exis-
tência.
O caráter ontológico do cuidado na sua relação com os outros e
com o mundo possui dois modos fundamentais de manifestação: a ocupação
e a preocupação. Por ocupação temos as relações do Dasein com os entes
simplesmente dados, e a preocupação são as relações do ser como copresen-
ça com os outros. É através desses dois modos de cuidado que o Dasein des-
vela as tramas de sentido das suas relações no mundo.
Nessa direção, Arendt (2000) aponta que esses modos de cuidar
ocorrem através das atividades humanas (labor, trabalho e ação), pelas quais
o homem vai produzindo o mundo e construindo a História através de uma
trama de significados. E os ‘produtos’ resultantes dessa produção revelam o
registro do modo de cuidar e habitar o mundo, ou seja, a forma que se cuida
da existência, desvelando, assim, a destinação do ser – o sentido do ser. As-
sim, Critelli (2006) indica que o sentido do ser “expressa-se como um modo
de cuidar dos modos de se cuidar da vida” (p. 132). E são esses modos de
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

cuidar (de si mesmo, do mundo, das coisas e dos outros homens) que dife-
renciam o Dasein dos demais entes.
Em tal contexto, Critelli (2006) ainda indica que o ser é entregue
aos cuidados do homem em três dimensões. A primeira é o cuidado do ser
como propriedade em que o homem responde pelo cuidado, desvelando,
através de um trabalho, as possibilidades de acontecimento do ser. A segun-
da dimensão é o ser como facticidade, em que não há a possibilidade de re-
cusar o cuidar de ser. E a terceira dimensão é o ser como horizonte, como
uma possibilidade lançada, ou seja, como projeção de horizonte no tempo.
Tais modos se estruturam sob tríplice aspecto, ou seja, diz “do que se vai
cuidar do que não se vai cuidar; de como se vai cuidar e/ou não cuidar; de
como se vai cuidar do cuidar mesmo” (p. 133). Nesse sentido, essa escolha
diz dos modos de cuidar, que estão envolvidas na trama de mundo, no con-
texto de significação que desvela traços culturais. Já o modo de cuidar da-
quilo que se tomou sob cuidados revela os estados de ânimo, presentes no
âmbito do sentido, que desvelam modos ontológicos do cuidar: própria ou
impropriamente.
O modo de cuidar impróprio, impessoal ou inautêntico consiste em
um não apropriar-se de seus próprios cuidados e viver de acordo com um
determinado padrão estabelecido sem questioná-lo. Já o modo de cuidar pro-
priamente, pessoal ou autêntico, é um exercício de aprender a ser quem se
pode ser; dar conta das escolhas que se pode fazer sob nosso cuidado, com-
preendendo os diversos atravessamentos que a existência possui. Assim, o
modo próprio diz da possibilidade que nos pertence de ser e que ninguém
pode exercer por nós, revelando e constituindo aos poucos nossa existência.
É nesse horizonte de cuidado que esse trabalho busca compreender
a dimensão ético-política da prática do psicólogo na Saúde Pública, especifi-
camente nas Policlínicas. Busca desvelar a trama de mundo e de significa-
ções que se estabelecem na clínica nesse contexto, pois o cuidado compreen-
dido enquanto uma dimensão fundante do homem é também visto “do ponto
de vista ôntico, no âmbito do trabalhar, tomando-se trabalhar no sentido mais
amplo” (Heidegger, 2009a, p. 251).
Diante desse contexto, um cuidado que desvela a dimensão ético-
política da profissão indica uma postura profissional norteada pela experiên-
cia, voltada, assim, para uma prática que contemple os sofrimentos que
emergem do serviço em que estão inseridos, considerando as especificidades
desveladas no encontro com o outro. Outra postura possível, diferente dessa,
é encontrada no modelo clínico tradicional de atuação que tem sido hegemô-
nico no profissional recém-formado, modelo esse sustentado nos consultóri-
os particulares e norteado por técnicas, indicando, assim, uma atuação volta-
450 Ana Paula Noriko Cimino e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

da para um modelo que não consegue abarcar todas as nuances da prática em


Saúde Pública.
Diante dessa problemática, a dimensão ético-política do cuidado
solicita um deslocamento do saber do especialista por parte do psicólogo,
que se torna mediador e cuja prática é norteada pelas condições concretas de
vida da população. Nessa direção, privilegia uma atitude que abarca a com-
preensão do existir do cliente, não o desvinculando dos aspectos históricos,
culturais, sociais e econômicos que constituem sua existência. Assim, a di-
mensão ético-política do cuidado comunica que uma “ação clínica pode ser
repensada como espaço, condição de possibilidade para a emergência de uma
forma de reflexão, compreendida como quebra do estabelecido e condição
necessária para novo olhar emergir” (Barreto, 2006, p. 17).

2 MATERIAL E MÉTODOS

A metodologia utilizada recorreu a um enfoque qualitativo numa


perspectiva clínica interventiva de cunho fenomenológico existencial, como
estratégia para o acesso e compreensão da experiência clínica de psicólogos
no âmbito da Saúde Pública. Por ela, os sujeitos colaboradores da pesquisa,
considerados como interlocutores e escolhidos por amostragem intencional,
foram psicólogos vinculados à Rede Municipal de Saúde do Recife que atu-
am nas Policlínicas.
Para apreender a experiência dos psicólogos nas Policlínicas, foi
criado um espaço para que falassem de sua prática, de sua experiência no
atendimento aos usuários. Como possibilidade de instrumento para aproxi-
mação ao questionamento, recorreu-se à narrativa, que propiciou que a expe-
riência fosse “colhida” através do depoimento oral dos profissionais colabo-
radores. Para tanto, foi utilizada a seguinte questão provocadora1: “Fale-me
sobre sua experiência nos atendimentos psicológicos realizados nas Policlí-
nicas”. Ao narrarem suas experiências, foi possibilitada a emergência de
dimensões relevantes e seus significados sobre a ação que desenvolvem nas
diversas Policlínicas. Esse espaço possibilitou ao pesquisador abertura para
desvelar a compreensão da dimensão ético-política do cuidado que os psi-
cólogos exercem nas Policlínicas.
Como método de conhecimento e interpretação dos depoimentos
foi usada a “Analítica do Sentido”, proposta por Critelli (2006). Baseado no
pensamento de Heidegger e, mais tarde, de Arendt, tal método propõe uma

1
Provocadora como pro-vocar, no sentido de conduzir ao dizer.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

metodologia de investigação fundada e orientada pela fenomenologia exis-


tencial, que busca o olhar que vê a manifestação dos modos e do movimento
do aparecer do fenômeno a ser conhecido.
Considerando tal contexto, a “Analítica do Sentido” mostrou-se
como possibilidade de compreensão da experiência dos psicólogos colabora-
dores, apresentando um movimento peculiar para possibilitar o caminho a ser
seguido na análise das narrativas. Tal caminho seguido pelo pesquisador
objetiva compreender e refletir sobre o sentido da ação do psicólogo nas
Policlínicas, buscando o aparecer do fenômeno que chega à existência, tor-
nando-se real quando:

– é tirado de seu ocultamento por alguém, desocultado – DESVELADO


– desocultado, esse algo é acolhido e expresso através de uma linguagem
REVELAÇÃO;
– expresso pela linguagem algo é visto e ouvido por outros – TESTEMU-
NHO;
– testemunhado, algo é referendado como verdadeiro por sua relevância
pública – VERACIZAÇÃO;
– ao ser publicamente veracizado algo é, por fim, efetivado em sua con-
sistência através da vivência afetiva e singular dos indivíduos – AUTEN-
TICAÇÃO. (Critelli, 2006, p. 75, grifos do autor)

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Considerando o caráter interventivo da pesquisa e o modo da inter-


rogação, próprio da Analítica do Sentido, a compreensão e a discussão das
narrativas será desenvolvida na primeira pessoa do singular por buscar o
desvelamento de uma das possibilidades do aparecer do fenômeno, neste
caso o do pesquisador em questão. O movimento fenomênico do aparecer
dos entes em seu ser depende da condição ontológica dos homens perceber-
em e corresponderem (ser-com) a esse aparecer em seus desdobramentos
temporais e existenciais. Assim, o movimento de realização e interpretação
do real depende da percepção de algo por alguém, apresentando-se como o
desocultamento de uma de suas possibilidades em um determinado tempo e
espaço.
Diante daquilo que se quer saber – a ação do psicólogo clínico – as
narrativas dos cinco psicólogos entrevistados desvelaram a dinâmica feno-
mênica, compreendida como vir-a-ser na cotidianidade da existência huma-
na, fundada na coexistência (singularidade e pluralidade) em seus modos de
ser-no-mundo. Assim, para ir desvelando as diversas possibilidades de com-
452 Ana Paula Noriko Cimino e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

preensão do cuidado apontadas pelos psicólogos/participantes que trabalham


em Policlínicas do Recife, foi-se construindo um caminho que guiou pelas
tramas reveladas nos depoimentos. Cada fragmento recortado foi desvelando
possibilidades compreensivas e expressando a pluralidade das diversas for-
mas de conhecer e de interpretar o movimento de realização do fenômeno.
Diante de tal amplitude, percebi que a busca por uma definição que
contemplasse a pluralidade de possibilidades compreensivas era ilusória. A
experiência não é linear e, ao ser comunicada, desvela uma faceta do sentido,
aqui compreendido não como sinônimo de significado, mas como uma soli-
citação que se faz ouvir e que abre possibilidades de realização do real. No
entanto, cada experiência narrada desvelou uma singularidade que atravessou
a compreensão do exercício do cuidado nas Policlínicas. Assim, buscarei
apreender a multiplicidade de sentido expressa por cada psicólogo (singular)
que desvela o modo como cada um compreende a sua experiência no aten-
dimento de clientes nas Policlínicas.
Para conseguir desvelar as diversas “aparências” da manifestação
do sentido, cada uma das narrativas foi considerada um “fio” singular que se
juntará aos demais “fios” desvelados nas outras narrativas, tecendo as mon-
tagens de mundo. Tal possibilidade compreensiva é construída por outros
“fios”: o meu olhar que busca querer compreender a ação dos psicólogos
clínicos nas Policlínicas e o horizonte que possibilita essa compreensão – a
existência humana compreendida como coexistência em seus diversos modos
de ser-no-mundo (perspectiva fenomenológica existencial ao modo de Hei-
degger).

[...] a minha experiência hoje é diferente daquela inicial... eu tenho 15


anos de atuação na Policlínica e... acho que estamos desenvolvendo uma
clínica tradicional assistencialista [...] Os recursos são de uma clínica
psicológica... ainda... voltada para um atendimento tradicional... ou
seja... para uma atenção ambulatorial... os casos que nos chegam... pe-
dem outros procedimentos... e isso para mim é vivido como... preocupa-
ção [...] as histórias apontam... que é preciso realizar uma... práxis psi-
cológica que possa atender outras dimensões da clientela... não contem-
pladas... por uma clínica tradicional [...] e a psicologia clínica não pode-
rá ficar dissociada... encapsulada numa clínica fechada... visando apenas
o sofrimento psíquico... (Psi A)

Nessa direção, a narrativa do Psicólogo A revela uma experiência


atravessada por questionamentos advindos da prática. Os sofrimentos comu-
nicados pelos usuários, acolhidos por um estado afetivo de abertura, mobili-
zaram uma atitude de preocupação e questionamento da prática exercida,
dirigindo-o para buscar outras formas de exercer o cuidado clínico. Essas
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

angústias e questionamentos estão presentes em toda narrativa desse psicólo-


go, como nos revelou o fragmento anterior.

[...] trabalho em ambulatório... no serviço público... há 13 anos [...] no


serviço público precisamos ser bem... eu diria assim... eclético... temos
que trabalhar com os recursos que a gente pode... então... faço aqui aten-
dimento individual [...] a gente procura trabalhar mais com a psicotera-
pia breve... mais focal [...] na demanda [...] a questão socioeconômica
pesa bastante... não é a causa mais é um fator a mais que leva a isso
(adoecimento)[...] eu acho que a psicologia não pode mais se restringir
aos consultórios... se restringir às elites... (Psi B)

Já a prática clínica narrada pelo Psicólogo B apontou para a neces-


sidade de fazer uso de diversos conhecimentos para atender à clientela de
modo a democratizar o acesso das populações menos favorecidas economi-
camente. Revelou, ainda, a importância das questões socioeconômicas no
adoecimento da clientela e a importância de haver uma democratização do
acesso à Psicologia. No entanto, certa discrepância se apresentou, pois, ao
mesmo tempo em que aponta para a necessidade de uma abertura da Psico-
logia para acolher a influência do fator socioeconômico nas populações de
baixa renda, comunica que atua somente fazendo atendimento individual
numa perspectiva de psicoterapia breve. Essa contradição entre o que é idea-
lizado e a prática exercida atravessa a narrativa desse psicólogo, e desvela
um modo de ser que transita entre o questionamento da realidade e a dificul-
dade em se implicar no movimento de mudança de sua prática.

[...] o trabalho que eu desenvolvo aqui no serviço público... na policlíni-


ca... é um trabalho ambulatorial e é um trabalho de psicoterapia com
adolescentes e com adultos [...] e eu trabalho da mesma forma que eu
trabalho no meu consultório particular [...] o fato de serem pessoas que
pertencem a uma classe econômica muito carente mas as necessidades
são necessidades [...] que não diferem da população que tem condições
de pagar... um trabalho particular... são todas angústias relacionadas
com a realidade [...] eu acho que as pessoas devem perder o preconceito
de que trabalhar com a população mais carente... mais desfavorecida...
enfim... não tem acesso a uma cultura... uma educação... que seria o ide-
al... elas não funcionam na psicoterapia de forma diferente tem que tem
acesso... (Psi C)

Por sua vez, o Psicólogo C considera que não há diferença entre as


realidades dos clientes atendidos em consultório particular e os atendidos no
serviço público. Seu discurso parece dar ao consultório particular status de-
masiadamente diferenciado e o torna parâmetro para todas as suas considera-
454 Ana Paula Noriko Cimino e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

ções. Tal postura, apesar de ser acompanhada por uma fala que indica a ne-
cessidade de superar preconceitos, desvelou uma atitude que indica uma
descontextualização da população atendida e do trabalho exercido junto ao
serviço público, ao restringir o número de atendimentos e perceber o homem
fora da complexidade do contexto no qual ele vive e encaminha sentido.

[...] completei um ano aqui [...] a experiência que eu tenho aqui é muito
boa [...] aqui o modelo funciona muito bem [...] me formei há trinta anos
atrás... e há trinta anos seria uma heresia falar em atendimento sem um
ônus monetário para o paciente [...] e eu fui vendo que tinha outras for-
mas de pensar... outras formas de encarar o mundo... a prática [...]
quando eles (os clientes) procuram... têm um envolvimento... mas a gente
percebe que eles não tem uma compreensão da importância que tem esse
tratamento... do processo... fica uma coisa assim meio solta... (Psi D)

A experiência narrada pelo Psicólogo D indica uma atitude de con-


frontamento entre o modelo acadêmico de formação e a prática no serviço
público. No entanto, apesar de apontar outras formas de compreender o cui-
dado exercido, sua percepção do setting clínico ainda está muito presa aos
pressupostos técnicos/teóricos. Esse movimento, evidente no fragmento
abaixo, parece funcionar como fator impeditivo para uma aproximação mai-
or do sofrimento dos usuários, pois ele se mostra atado aos pressupostos de
sua formação apesar de questioná-la constantemente.

[...] eu iniciei aqui na policlínica em 1999 [...] eu tento fazer... uma es-
cuta analítica... muito embora a gente fuja... muitas vezes da prática por-
que [...] as características da população que a gente recebe aqui [...] de-
mandam algumas formas de administrar as questões que fogem do que é
tecnicamente repassado pra gente na universidade [...] se eu fosse aten-
der... por exemplo... ficando apenas calada e escutando... muito embora
seja a pratica da questão da psicoterapia de base analítica... elas não iri-
am entender... (Psi E)

O Psicólogo E, ao relatar sua experiência, consegue refletir criti-


camente e questionar a teoria, o que possibilita uma abertura para outras
possibilidades de exercer a prática. Tal atitude de abertura parece ter sido
mobilizada pela necessidade de atender as especificidades da clientela, de
modo a oferecer um atendimento que acolha o outro fornecendo o cuidado
que a população necessita. Essa atitude permeia toda a narrativa desse pro-
fissional e pode ser percebida no fragmento apresentado anteriormente.
Após essa breve apresentação do modo como os psicólo-
gos/colaboradores compreendem a prática clínica exercida, o foco do trabalho
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

privilegia a tentativa de compreensão da trama do mundo – o real objetivado


– que conserva e comunica o sentido pelo qual o cuidado clínico é exercido
pelos psicólogos/colaboradores. Nessa direção, dois modos de compreender o
cuidado clínico são desvelados: o cuidado enquanto técnica e o cuidado como
dimensão ético-política da profissão. Essas duas possibilidades compreensi-
vas são possíveis, pois ora os psicólogos revelavam uma atitude que se apro-
ximava na dimensão técnica do cuidado, ora os psicólogos revelavam, no seu
discurso, um cuidado atrelado à dimensão ético-política. Apesar de testemu-
nhar essa duas possibilidades, elas não se mostraram como opostas, mas antes
realizaram o movimento fenomênico de aparecer e desaparecer, dependendo
da situação e do contexto. Assim desvelaram o singular e o múltiplo nas ações
clínicas desenvolvidas pelos psicólogos nas policlínicas, como aparece no
relato abaixo em que o Psicólogo A aponta que, nos procedimentos técnicos,
por exemplo, utiliza “recursos [que] são de uma clínica psicológica... ainda...
voltada para um atendimento tradicional... ou seja... para uma atenção am-
bulatorial... os casos que nos chegam... pedem outros procedimentos...”. (Psi
A). No entanto, diante do compromisso que assume junto aos usuários e da
sua atitude de cuidado, percebe que “as histórias apontam... que é preciso
realizar uma... práxis psicológica que possa atender outras dimensões da
clientela... não contempladas... por uma clínica tradicional...”. (Psi A). Algo
semelhante pode ser percebido na narrativa do Psicólogo B, que indica uma
postura de abertura para o cuidado como dimensão ético-política ao apontar
que “[...]a psicologia não pode mais se restringir aos consultórios... se res-
tringir às elites... como sempre... assim... agente via em outras situações...”.
(Psi B). Apesar dessa ressalva, o mesmo profissional aponta um cuidado bas-
tante atrelado à dimensão técnica “tem pessoas que fazem o processo... eu
acho até mais que... longo... no sentido do que se espera de um serviço públi-
co... existe até um trabalho psicoterapêutico até as vezes mais profundo...
porque agente procura trabalhar mais com a psicoterapia breve... mais fo-
cal...”. (Psi B). Essas narrativas apresentam um questionamento importante
no que diz respeito à noção de dualidade presente no pensamento ocidental:
será que podemos ter apenas uma única coisa/possibilidade, uma verdade una
e absoluta? Ou, considerando a perspectiva fenomenológica existencial, a
verdade do ser abre-se como ponto relativo e provisório, fundado na ontologia
humana que aponta para os modos infindáveis de ser? A experiência de flui-
dez constante, de mutabilidade como condição humana aparece no modo
como os psicólogos compreendem o cuidado na ação clínica, ora vinculado à
técnica, ora vinculado à dimensão ético-política. Assim, não é possível fazer
comparações valorativas, pois a própria experiência revela a necessidade de
ora assumir uma postura e ora assumir outra postura já que ambas desvelam
atitude de cuidado com o outro.
456 Ana Paula Noriko Cimino e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Nesse contexto, uma outra possibilidade é apontada como tentativa


de fugir de modelos, conforme indica a narrativa a seguir:

Veja só no serviço público precisamos ser bem [...] eclético... temos que
trabalhar com os recursos que a gente pode [...] são atendimentos indivi-
duais das mais diversas situações... que é rico para mim... como profissi-
onal... pois... de tudo... agente vê... e de tudo a gente recebe... e para isso
temos que se adequar um pouco [...] lógico que tenho uma linha que me
norteia mas tenho que ser bem flexível quanto a isso... (Psi B)

Neste contexto é importante lembrar que a postura eclética é apon-


tada por Figueiredo (2009) como algo que tende a bloquear o acesso à expe-
riência. Essa barreira criada inviabiliza uma abertura que permita ultrapassar
as dificuldades e disponibilizar-se para acolher aquilo que o contexto solicita.
Continuando na tentativa de desvelar os modos como os psicólogos
compreendem o cuidado na ação clínica, uma experiência é relatada dando
realce a uma postura crítica quanto aos procedimentos técnicos já estabeleci-
dos, viabilizando, assim, uma abertura para questionar a prática e propor
mudanças no atendimento aos usuários, como é apresentado no fragmento
seguinte:

[...] quando cheguei na Policlínica... atendíamos de um jeito diferente...


lista de espera em psicoterapias individuais... só havia uma modalidade de
atendimento que era a psicoterapia individual... os pacientes passavam por
uma triagem porque havia uma demanda... posteriormente... entravam na
lista de espera... sendo chamados para fazer psicoterapia individual... o
que tínhamos como procedimento de atenção não contemplava a procura
[...] eu entendia que a clínica psicológica que estava instituída em mim...
essa forma configurada que me dava os passos... na realidade era uma téc-
nica... aprendia por uma teoria e aplicava na prática... foi isso que fiz por
muito tempo... a clientela me fez repensar o fazer clínico importado que
trazia para a Unidade de Saúde... e isso foi motivo de estudo... hoje vejo
que era um fazer como técnica mesmo... entrava nos cursos de capacitação
para aprender... a prática e achava que era só transportar... (Psi A)

Nessa direção, percebe-se que o questionamento do posiciona-


mento técnico permitiu uma atitude de mudança que favorece uma crítica à
transposição do modelo técnico para o local de trabalho, sem reflexão algu-
ma. Apesar desse alerta, alguns profissionais são pressionados a assumir um
modelo predefinido para poder atender a um maior número de clientes.

Infelizmente a gente não está em condições de atender essa demanda... e


o que torna realmente uma questão muito perversa... de você ter a ciên-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

cia... consciência de que precisa [...] inclusive também dentro dos aten-
dimentos que são de rotina... há exigência... às vezes... até uma pressão...
pra que seja aplicada só a psicoterapia breve... que dura em torno de três
meses... (Psi E)

Tais pontuações abrem espaço para um questionamento importante


sobre a questão do tempo de atendimento. Se há a pressão por parte da ge-
rência, se há uma grande clientela que busca o atendimento, se é solicitada a
atenção do psicólogo frente ao sofrimento, qual seria então a postura a ser
adotada frente ao que se apresenta? Diante desses questionamentos duas
possibilidades são indicadas na experiência dos profissionais:

[...] tem pessoas que fazem o processo... eu acho até mais que longo... no
sentido do que se espera de um serviço público [...] porque agente procu-
ra trabalhar mais com a psicoterapia breve... mais focal. (Psi B)
[...] eu trabalho com psicoterapia e alguns profissionais limitam o tempo
de atendimento... a duração do processo... eu não tenho feito isso até
porque a gente recebe muitos casos graves [...] não limito e até hoje nun-
ca me foi cobrado... que eu tivesse alguma rotatividade... eu sei que al-
guns profissionais trabalham assim... mas não é o meu caso... (Psi C)

Assim, retomamos a posição dicotômica entre “ou isto ou aqui-


lo?”... Como profissional que se propôs a acolher e atender ao sofrimento
dos usuários do serviço público de saúde, fico preso às determinações das
instâncias superiores? Ou, já que não há essa cobrança, continuo trabalhando
sem ‘preocupação’ com a rotatividade? Ambas as posturas refletem uma
atitude de exclusão que não abarca a multiplicidade de sentido do social e
revela-se como uma experiência desalojante (Psi A), ressaltando a discre-
pância entre a formação acadêmica e a necessidade da clientela atendida;

[...] você tem o que é instituído... pelo sistema e pela formação profissio-
nal... no sentido de abordar o outro e favorecê-lo numa experiência que
possa viabilizar aberturas... e que sabemos ser possível porque a teoria
da clínica afirma que é possível... mas... isso não impede de surgir nos
atendimentos uma interrogação... o que seria ajuda?... o que seria cuida-
do?... [o que seria] uma atenção para o usuário que existe em contextos...
eu diria... estranhos aos meus?... aí ficamos nessa situação... me faltam
as palavras para comunicar a minha experiência clínica no ambulatório
público de saúde... (Psi A)

Partindo dessa experiência, evidencia-se a necessidade de mudança


que, diante da dificuldade de ser assumida pelo profissional, passa a ser
transferida para as justificativas institucionais. É que “existem poucos profis-
458 Ana Paula Noriko Cimino e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

sionais de psicologia a nível ambulatorial...”. (Psi B), ou seja, há “um déficit


de profissionais imenso [...] mas aí também depende de uma pressão do
nosso sindicato do nosso conselho para que brigue junto à Secretaria de
Saúde...”. (Psi C) diante disso “há exigência... às vezes... até uma pressão...
pra que seja aplicada só a psicoterapia breve...”. (Psi E), somado a isso
existem “poucas salas... recursos ambientais e materiais escassos” no servi-
ço público e além disso, os usuários “não entendem essa necessidade de vir
semanalmente [...] tem uns que entendem... mas as condições socioeconômi-
cas complicam porque não tem condições de pagar a passagem mesmo toda
semana...”. (Psi D).
As lacunas evidenciadas não podem ser assumidas propriamente
pelos psicólogos que resvalam para o modo cotidiano da impessoalidade
objetificada pela inadequação da formação acadêmica, que passa a ser a vilã
para alguns dos psicólogos/colaboradores.

Fiz uma graduação em Universidade e lá não havia nenhuma informação


sobre saúde... não havia nenhuma disciplina que comunicasse o que seria
uma ação clínica em Saúde Pública... minha formação não deu condição
nenhuma para eu atender no campo da saúde [...] eu passei num concur-
so e... achava que sabia fazer clínica em saúde coletiva... me deparei com
uma realidade complexa... nem a instituição de saúde sabia o que era o
fazer do psicólogo [...] na relação com a própria clientela que pude en-
tender... essa clientela veio a me ensinar... porque ela foi comunicando
demandas que solicitaram... uma ação que não estava... configurada nos
procedimentos aprendidos na graduação em psicologia [...] há coisas ali
[na Policlínica]... que não atingimos... fica difícil [...] é uma coisa que
você vê... você sabe que é importante fazer algo... mas você não tem re-
cursos para isso [...] ficamos assim... na interrogação... fica meio sem ter
o que fazer... o que é a clínica psicológica nesse leito que se apresenta?...
o que é favorecer uma atenção a esse sujeito naquilo que ele comunica
sobre o sofrimento vivido?... eu me vejo... é... eu me vejo muitas vezes
perguntando... (Psi A)

Será que apenas a formação acadêmica tem falhado neste sentido


ou existe algo mais? Os limites da formação acadêmica ficam evidentes, mas
como compreender a necessidade de um posicionamento ético-político por
parte dos profissionais de Psicologia? Será que a formação pode acolher esta
preocupação ou esta exige um posicionamento de cada profissional diante da
realidade social?
Na busca de responder a essas questões, reflete-se que a dimensão
ético-política não se refere a conteúdos didáticos e/ou teóricos a serem pas-
sados na academia; trata-se de uma atitude que envolve um compromisso
profissional frente às questões sociais. Exige, assim, uma disposição afetiva
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

de acolhimento da experiência de insuficiência das teorias psicológicas tradi-


cionais para o atendimento das demandas dos clientes que recorrem a servi-
ços públicos. No entanto, a apropriação da insuficiência das teorias tradicio-
nais não acontece de modo fácil; muitas vezes a atitude orientada para o
acolhimento da demanda do cliente é percebida como não fazendo parte do
cuidado exercido enquanto psicólogo.

Outro caso também que aconteceu que a gente... muitas vezes... deixa de
fazer o papel de psicólogo... e pela própria necessidade da desestrutura-
ção do serviço... a gente fazer outros papéis [...] E... vamos trabalhar o
que é que uma mulher agredida... não ela especificamente... mas quais os
canais que existem... de proteção para as mulheres que sofrem agressão...
e isso era um papel que não era meu... porque eu não tinha o papel in-
formativo... mas nessa ausência... nessa pobreza... de pessoas que possam
esclarecer... orientar... conscientizar [...] E isso... é um trabalho que não
está previsto em modelo nenhum da municipal de saúde... e que precisava
que houvesse uma estruturação... pra que esses problemas pudessem ser
canalizados pros profissionais que efetivamente pudessem dar condução
ao problema... (Psi E)
[...] mas a gente percebe que eles não tem uma compreensão da im-
portância que tem esse tratamento... do processo... fica uma coisa assim
meio solta... e não cabe a gente ficar explicando... a gente explica mais
faz parte de toda uma cultura [...] aí aparece muitos pacientes nessa
faixa de idade (crianças) que quando a gente vai conversar qual é o
problema?... os pais que não conseguem dar limites aí trazem pra cá...
e dizem mesmo... por que não me obedece e ‘não-sei-mais-o-que’ e eu
quero que a senhora dê um jeito... aí fica aquela coisa e aí eu como sou
muito objetiva eu digo esse menino não está precisando de uma psicó-
loga não... psicóloga não é para colocar limites... não é para educar...
aí corto logo... (Psi D)

Esses relatos apontam para o predomínio da compreensão intrapsí-


quica do sofrimento, própria das teorias psicológicas enquanto herdeiras da
tradição moderna. Nessa direção, não acolhe as exigências éticas colocadas
pela necessidade de reconhecimento do outro e do mundo na constituição das
subjetivações singulares (Figueiredo, 2009b). A ação clínica não pode ex-
cluir as outras possibilidades, como por exemplo, as ações de caráter infor-
mativo, educativo, entre várias outras possibilidades que podem surgir ali no
encontro com o outro. Heidegger (2009a) aponta nas suas discussões que um
pensamento preso à técnica tende a ter dificuldade em perceber as demais
dimensões da experiência ou, se percebe-as descarta-as, pois elas não são seu
objetivo de estudo. Nesse contexto de discussões sobre o trabalho do psicó-
logo, uma possibilidade é apontada:
460 Ana Paula Noriko Cimino e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Na clínica psicológica... nossa função é exercer o cuidado em saúde


mental [...] recortamos da experiência de sofrimento [...] aquela dimen-
são que... diz respeito a sua singularidade... quando na realidade poderí-
amos exercer uma clínica ampliada em que a nossa intervenção... fosse
além dos muros... esse sujeito vive num contexto que precisa ser inserido
em nossas intervenções [...] percebi que a clínica ali instalada tem veto-
res que precisam ser refletidos... é preciso entender o que é uma clínica
psicológica nesse contexto... nessa instituição... nessa organização social
[...] a clínica de psicologia não está imune... a minha prática ali dentro
também está permeada de vetores que interferem na promoção do cuida-
do... (Psi A)

Tal contexto aponta para as reflexões acerca do cuidado exercido


enquanto dimensão ético-política. Um cuidado permeado por essa atitude
considera que as ações clínicas acolhem tanto o sofrimento manifesto pelo
cliente como as demais dimensões de sua existência. Aponta para a necessi-
dade de se considerar a prática do psicólogo inserida num contexto maior de
atenção que tende a ultrapassar os limites da própria instituição de saúde,
repercutindo assim em mudanças na própria comunidade. Alguns aspectos
são considerados, a seguir, nesse tipo de atenção psicológica:

[...] a gente precisa ter... principalmente... o foco na promoção da saú-


de... Por quê? Porque a gente... fazendo assim... a gente consegue ser
econômico... tanto no sofrimento humano... você pode impedir de um pro-
cesso de instauração de uma neurose mais forte... mais grave... com a
psicoterapia a nível ambulatorial [...] e sustentar esse paciente que a ní-
vel ambulatorial é um ganho pra todos... pro paciente... pra família... pra
sociedade e pro Estado. (Psi E)

Tal depoimento remete para a Reforma Psiquiátrica ao enfatizar a


promoção de saúde na comunidade. Apesar de ter contribuído para a inser-
ção do psicólogo nos serviços públicos de saúde, será que possibilitou um
repensar da prática psicológica exercida? Será que as ações exercidas no
contexto das Policlínicas têm colaborado na direção da promoção de saúde?
Tais questionamentos aparecem no depoimento da Psicóloga A:

[...] ofertamos uma atenção... mas... numa intervenção reduzida... é uma


intervenção possível que sabemos que pode trazer benefícios... uma afe-
tação possível de ser abertura... e que viabiliza modificações... mas é
frustrante... porque cada vez mais percebemos que em saúde o exercício
da cidadania é básico... e a psicologia clínica não poderá ficar dissocia-
da... encapsulada numa clínica fechada... visando apenas o sofrimento
psíquico [...] o meu paciente é a criança... é ela que foi encaminhada...
mas... vive num contexto tão complexo de sofrimento... junto a outros...
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

que a intervenção... feita ali... no espaço clínico... é uma intervenção pe-


quena frente ao que está sendo revelado como sofrimento... eu não tenho
meios... recursos para... intervir no grupo familiar... que instrumentos eu
tenho para... modificar o contexto relacional... produto das experiências
vividas... em que... há uma falta de tudo... de escolaridade... de uma ha-
bitação digna... sem os barracos que encontramos... alimentação... o que
faz a pessoa sobreviver em cidadania. (Psi A)

Assim, percebe-se que a prática em Saúde Pública possibilita questi-


onar a tradição moderna e as teorias psicológicas herdeiras dessa tradição. O
campo da Psicologia confronta-se, cada vez mais, com as exigências ético-
políticas colocadas pela necessidade de reconhecimento das diversas dimensões
da existência humana. Trata-se de exercer uma reflexão crítica sobre as teorias
psicológicas norteadoras das ações clínicas, abrindo espaço para o colhimento
das dimensões política, econômica, social, cultural, existencial, entre outras.
É evidente que essa situação contemporânea aponta para a insufici-
ência da compreensão intrapsíquica de sofrimento regida por leis e funcio-
namentos peculiares e desconhecidos no mundo externo, abrindo espaço para
a exigência ético-política na prática do psicólogo. Este percurso não é fácil,
como já foi visto anteriormente, mas aparece na prática do Psicólogo A como
a necessidade de abrir-se constantemente ao diálogo, seja com os pré-
conceitos, com as teorias, com a instituição...

[...] falar da experiência clínica não é fácil... não tenho uma idéia clara do
que faço na minha prática [...] minha experiência nesta Policlínica... é...
favorecer uma dialogia... não sei bem os passos a seguir... atender lá é pro-
cessual mesmo... sabe?... É um fazer que se revela no momento da intera-
ção... um processo... você não tem uma forma pré-configurada para fazer...
a demanda do usuário completa uma outra dimensão... delineando o passo
seguinte... o usuário solicita uma resposta que muitas vezes não cabe em
nossos modelos... não atendo José da mesma forma que eu atendo Paulo...
mesmo orientada em nortes de atenção que a clínica estabelece... o setting
terapêutico auxilia... na Saúde Pública há um setting específico... (Psi A)

Esse movimento de diálogo tende a promover rupturas com o esta-


belecido nos modelos institucionais e/ou teóricos. No entanto, o cuidado
enquanto dimensão ético-política revela que o setting clínico é composto não
pela ambiência física, mas pelo encontro com o outro. Nessa direção, Sá
(2002) coloca em questão na clínica o próprio homem, participando junto
com ele da experiência do cuidado que busca vislumbrar as diferentes possi-
bilidades da sua existência. Assim, deixamos de lado a dimensão técnica que
impõe alguns requisitos para o setting “ideal” e partimos para uma atenção
“ideal” promovida, conforme a narrativa a seguir indica, pela escuta.
462 Ana Paula Noriko Cimino e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

A sala de psicologia é uma sala muito inóspita [...] eu atendo alguns dias
na sala de psicologia mas outros não é possível porque existem pessoas
que estão trabalhando há anos nesse local [...] então é um trabalho que
liberta do setting ideal... então eu não faço da sala... um impeditivo para
eu desenvolver meu trabalho... eu trabalho muito mais no diálogo [...] eu
acho que tem pessoas que fazem disso como um ‘Cavalo de Troia’... mas
isso não me impede de trabalhar não... e eu nunca recebi nenhuma queixa
nesse sentido... eu acho que as pessoas estão precisando tanto de um es-
paço... de uma escuta... (Psi C)

A ênfase na escuta conduz a um movimento de reflexão e discussão


com os pressupostos teórico/práticos diante daquilo que a clientela solicita: “a
gente tem que se adequar a muitas coisas... que tem que ser flexível... tem que
ser criativo... sem perder as raízes evidentemente...”. (Psi B). Compreende-
mos nesse movimento que a técnica está à disposição da prática e não o con-
trário, pois é o espaço de atenção psicológica ali vivenciada que indica a ne-
cessidade do encontro. As experiências têm apontado que a prática se faz no
caminhar sendo utilizadas diversas ‘estradas’ que tem por objetivo final pro-
mover o cuidado. Tal experiência é revelada na narrativa a seguir que nos in-
dica uma das ‘estradas’ utilizadas pelo psicólogo em sua prática:

Eu trabalho com psicoterapia individual de base analítica... a gente não


faz a psicanálise [...] eu tento fazer... uma escuta analítica... muito embo-
ra a gente fuja... muitas vezes da pratica porque... a própria população...
as características da população que a gente recebe aqui... elas... às ve-
zes... demandam algumas formas de administrar as questões que fogem
do que é tecnicamente repassado pra gente na universidade... são pessoas
de baixa renda... de baixa escolaridade... e que se eu fosse atender... por
exemplo... ficando apenas calada e escutando... muito embora seja a prá-
tica da questão da psicoterapia de base analítica... elas não iriam enten-
der... Até porque trazem também... outras experiências nesse sentido e di-
zem que não ficam com os profissionais porque elas entram... eles estão
mudos e saem ficam calados... então... a gente aqui fica tentando... (Psi E)

Apesar de indicar a inadequação da clínica tradicional, a mudança


que possibilita compreender a prática psicológica fundada na noção de cuidado
enquanto dimensão ético-política é apontada pelo Psicólogo A ao refletir:

[...] eu entendo que a prática psicológica que venho desenvolvendo na


Policlínica é uma atividade no sentido mesmo de práxis... sabe?... práxis
como uma ação que é determinada por si mesmo... por exemplo... quando
começo a atender não tenho passos a priori... bem esclarecidos... de uma
atenção a se desenvolver... não... eu não tenho... a partir da escuta... no
encontro que estabeleço com... o usuário... visualizo o que é dito... o que
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

se revela para mim no contexto das nossas interações... na circulação de


afetos... e outros sinais significativos que irão engendrar respostas possí-
veis às problemáticas vivenciadas no território existencial... (Psi A)

A prática psicológica exercida como práxis remete à compreensão


do cuidado na perspectiva de Hannah Arendt (2000) ao apontar a implicação
do labor, trabalho e ação. Na dimensão pública, os homens executam ações
mais do que o trabalho, levando a perceber-se o caráter político da profissão,
uma vez que esse caráter da vida inclui o fato de que, ainda sendo os mesmos,
enquanto humanos, são todos singulares e que essa característica de diferença
jamais será de nós retirada. As narrativas abaixo ilustram bem essa discussão:

[...] um outro caso que é... [por exemplo] eu tenho uma paciente de 83
anos que chegou aqui encaminhada pelo psiquiatra [...] tinha perdido o
marido [...] e neta aproveitando da fragilidade e ingenuidade dela [...]
deixou ela sem dinheiro e endividada... e quando ela soube foi um choque
terrível pra ela [...] quando ela chegou aqui que eu olhei eu pensei... o
que é que eu vou fazer com uma pessoa de 79 anos com um quadro des-
ses... aí o que minhas terioas diziam não cabia para um caso desse... aí
eu procurei uma literatura atualizada... aí eu vi... grupos com pessoa da
terceira idade são ótimos... pois leva eles para passear e se divertir mas
não era o caso... não tem como... e resultado eu comecei a tratar dessa
senhora e ela se recuperou totalmente e em pouco tempo até... e tudo que
eu estou vivenciando hoje é contrário... vai contra mesmo a minha forma-
ção acadêmica... e formação acadêmica não é aquela da faculdade mas
toda uma teoria mesmo que eu aprendi... que fala sobre isso... então...
digo que é totalmente inadequada até... (risos). (Psi D)
[...] vez por outra... a gente... às vezes... aqui... precisa quebrar o que a
técnica preconiza na faculdade... aquele modelo todo bonitinho... tudo
bem linear que a gente aprende. Às vezes a gente tem que dar um corte
sem ter a certeza do que está fazendo certo... mas... às vezes... guiada por
uma questão mais... talvez não técnica... mas por uma questão cidadã... E
de repente a gente deixa um pouco a técnica de lado e torna-se pessoa.
Eu acho que isso não pode ser aplicado numa rotina... não. Mas em al-
guns momentos a gente pode... abrir mão... um pouco... da técnica pura e
simples... até porque as técnicas também tem as suas falhas... (Psi E)

Esses depoimentos apontam a necessidade de a prática questionar a


teoria. Tal movimento é apontado por Figueiredo (2009) ao indicar que pensar
a experiência da prática e refletir sobre os recursos teóricos é que viabilizam a
elaboração de novos conhecimentos. Desse modo, pode-se pensar sobre a im-
portância dos conhecimentos gerados ali no contexto, através do caminhar dos
psicólogos, como pontos importantes a serem discutidos e difundidos, pois o
“atendimento [é feito] a partir do que a demanda... solicita...”. (Psi A).
464 Ana Paula Noriko Cimino e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Além das dificuldades relatadas no exercício da prática clínica,


pôde-se perceber como o modelo de Saúde instituído no setor público inter-
fere na ação exercida pelos psicólogos nas Policlínicas. Nessa direção, as
narrativas apontam para lacunas no próprio modelo de saúde “o que a gente
faz para sobreviver em relação ao que acontece é estabelecer contatos... na
rede [...] enquanto o profissional... dentro dos limites do possível a gente vai
se ajudando... e vai fazendo com que o usuário sofra o menos possível...”.
(Psi C). Assim, ainda no tocante aos encaminhamentos propostos dentro
desse modelo percebe-se um grande vazio, que é vivenciado com muita an-
gústia por esses profissionais ao apontarem que “hoje a gente se vê obrigada
a encaminhar pro nada... esses pacientes. E é pro nada... mesmo!” (Psi E).
Que modelo é esse de cuidado em saúde coletiva que não prioriza ações de
promoção à saúde integrada?
Como se não bastassem as lacunas da formação profissional, do ser-
viço público, da instituição, tantas outras também foram citadas com angústia
pelos profissionais. Como exemplo, tendo como referência a experiência nar-
rada, trago a questão da quantidade dos usuários do serviço público que bus-
cam atendimento e o pequeno número de profissionais. Essa temática pode ser
compreendida enquanto reveladora da necessidade de ampliação no número de
profissionais para o cuidado na Saúde Pública, como indicam as filas de espe-
ra, revelando que a procura tem sido maior do que a oferta de serviços.

[...] a demanda de psicologia é grande... há momentos de saturação...


quando encontro aquele corredor cheio... e digo para mim mesma... o que
eu tenho é muito pouco para favorecer... não há vagas para a realização
de atendimentos mais específicos que requerem tempo [...] não há vaga
para todo mundo [...] às vezes é preciso selecionar quem entra... isso é
difícil porque os sintomas são graves e o sofrimento mais ainda... (Psi A)

“Selecionar” (Psi A) quem é atendido é uma tarefa que extrapola o


exercício da prática; assim, é necessário abrir mais possibilidades de atendi-
mento aos usuários seja por meio da contratação de novos profissionais
como também através da implantação de outras modalidades de prática não
contempladas na clínica tradicional. Uma demanda está batendo nas portas
das Policlínicas hoje e não está sendo cuidada já que “tem pacientes que
chegam aqui que esperaram mais de dois anos para serem encaminhados ao
psicólogo... que estavam na espera sem poder ser atendido...”. (Psi D). Mais
de dois anos é muito tempo para alguém que busca por cuidado! E parece
que isso não está sendo refletido criticamente por alguns psicólogos, ao cul-
pabilizarem os usuários por sua ausência nas consultas, conforme ilustrado
na narrativa a seguir:
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

A lista de espera eu não tenho controle [...] por exemplo... a semana pas-
sada eu tinha duas vagas foram marcadas duas pessoas e não vieram ne-
nhuma das duas... e as vezes acontece da gente marcar 4 ou 5 acolhi-
mentos... a primeira entrevista... e não aparece ninguém... aí é onde eu
coloco... essas pessoas que vem pra cá não sabem... a gente sabe de todas
as dificuldades... mas não sabem direito o que é... muitos que vem pra cá
não sabem o que significa vir semanalmente... (Psi D)

Uma pergunta, nesse momento, impõe-se: será que ninguém com-


parece aos atendimentos de recepção por não conhecerem a importância do
trabalho do psicólogo ou o tempo de espera já viabilizou outros encaminha-
mentos? Tantas pessoas não são acolhidas e os psicólogos não possuem se-
quer a ideia de quantas são elas, quem são elas, o que as trouxe ali, enfim...
mais lacunas! Acredito que essa lacuna é bem apontada e uma possibilidade
de resposta é encontrada na fala a seguir que envolve uma reflexão ampla e
necessária diante desse contexto:

O principal da profissão da gente é o respeito ao humano [...] talvez por-


que... é a visão de que aqui no serviço público a gente tem a responsabi-
lidade que não se limita só a saúde mental [...] e assim... o cuidado... tem
que ter paixão pela profissão... então tem que ter o amor pela profissão...
senão fica muito limitado... então eu acho que a gente tem que... traba-
lhar com a psicologia... com a comunidade... tem muita gente que discor-
da... eu já ouvi de professores [...] ‘como você consegue fazer psicotera-
pia numa policlínica’... então é... porque não fazer psicoterapia numa
policlínica... eu acho que existe uma demanda... existe um resultado [...]
então eu acho que a pessoa que queira trabalhar no serviço público...
hoje tem muito mais espaço para gente... tem que saber escutar... ouvir e
acreditar que essas pessoas são capazes... como qualquer outro... (Psi C)

Acredito que algum passo foi dado na compreensão do que seria


acolhimento e cuidado; mas, diante disso, percebe-se ainda caber outra per-
gunta: até quando se ofertará, quase que exclusivamente, a psicoterapia indi-
vidual com tantas pessoas aguardando em filas de espera? A questão não é
desmerecer a importância da psicoterapia individual, mas reconhecer como,
onde e quando seu uso é pertinente, bem como também considerar os seus
limites. Há muitas outras possibilidades de modalidades de prática que têm
sido pesquisadas e difundidas e que se mostram mais apropriadas ao acolhi-
mento do sofrimento do usuário nos diversos contextos institucionais. Pois
“a psicologia não pode mais se restringir aos consultórios... se restringir às
elites... como a gente via em outras situações... eu acho que hoje está haven-
do essa abertura” (Psi B), cabendo, assim, aos psicólogos a tarefa de se abrir
e buscar outras formas de promover o cuidado.
466 Ana Paula Noriko Cimino e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Essas reflexões conduzem à compreensão da política enquanto


ação (Arendt, 2000) e da importância do papel do psicólogo: refletir, questi-
onar e tentar mudar, considerando que as mudanças advindas da inserção dos
psicólogos na rede pública de saúde mental partem de um “processo”. Nesse
movimento, os profissionais estão percebendo “outras formas de pensar...
outras formas de encarar o mundo... a prática e o curso não atendia...”. (Psi
D), indicando a importância de abertura de espaços que promovam reflexões
que possam repercutir na prática, através dos serviços oferecidos nas Policlí-
nicas e na Saúde Pública em geral.
Assim, as discussões acima reafirmam a necessidade de pensar o
cuidado atrelado a uma postura que contemple a dimensão ético-política da
profissão. Tal postura vincula o cuidado às dimensões histórico-cultural e
socioeconômica da população atendida facilitando um encontro rico em pos-
sibilidades. Outra importante reflexão diz respeito à necessidade de ampliar
o campo de atuação do psicólogo de modo a assumir uma preocupação efeti-
va com a população antes excluída do cuidado psicológico.
Diante desse contexto, os “fios” que compõem a experiência do
cuidado nas Policlínicas desvelaram uma possibilidade compreensiva e tece-
ram pontos que ora se encontram e ora se distanciam. Suas cores e nuances
em alguns momentos se aproximaram e quase se misturaram e, ainda assim,
não deixaram de ser uma experiência única. Se as experiências forem vistas
“fio” por “fio” outra possibilidade compreensiva será revelada. No entanto,
aqui o cuidado também se fez presente pela forma como tramei os “fios” que
juntos construíram um tecido singular e revelaram aspectos tanto da experi-
ência dos psicólogos como também da minha própria experiência, de como
escolhi “cuidar” e como “cuidei” dessa temática.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo permitiu enriquecer as pesquisas qualitativas


numa perspectiva fenomenológica existencial sobre a atuação do psicólogo
clínico nas policlínicas, sendo uma contribuição importante para apontar
questionamentos e reflexões no âmbito da ação do psicólogo na Saúde Públi-
ca. Os resultados apontam indicadores importantes sobre a prática dos psi-
cólogos, permitindo a ampliação da discussão e o aprofundamento da refle-
xão da ação clínica do psicólogo nos diversos âmbitos da Saúde Coletiva.
O estudo desenvolvido permitiu, ainda, apontar alguns aspectos si-
gnificativos no que se refere ao cuidado exercido pelos psicólogos nas Poli-
clínicas, evidenciando uma prática que revela duas posturas que, de certa
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

forma, refletem a realidade da ação do psicólogo. Ficou evidente a preocupa-


ção com novas possibilidades de prática psicológica que possibilitasse aten-
der à real demanda da clientela, visto ainda estar atreladada a uma prática
vinculada ao modelo tradicional da clínica em Psicologia com ênfase na
psicoterapia individual. Tal posicionamento evidencia a coexistência entre o
cuidado compreendido como técnica, vinculado às perspectivas teóricas pro-
duzidas numa orientação técnico-científica, e a possibilidade de um cuidado
que privilegie a dimensão ético-política da ação do psicólogo.
É importante pontuar que tais posicionamentos permeiam a prática
do cuidado de todos os psicólogos indicando um cuidado que ora se mani-
festa mais próximo à dimensão técnica e ora se aproxima mais da dimensão
ético-política apesar de essas duas posturas representarem perspectivas epis-
temológicas e metodológicas diversas. O cuidado exercido enquanto técnica,
ao reproduzir o sistema instituído pelos modelos teóricos tradicionais da
Psicologia, privilegia uma visão generalizante dos fenômenos psíquicos e
aponta para uma prática descontextualizada. O cuidado como dimensão éti-
co-política possibilita uma reflexão sobre o lugar da prática psicológica em
instituições, apontando para a necessidade de percorrer um vasto campo
interdisciplinar de perspectivas teóricas, buscando referências que possam
ampliar o campo psicossocial da pesquisa e da intervenção clínica. Esse mo-
vimento de trânsito entre as duas posturas aponta para uma prática que con-
templa tanto os aspectos teóricos, na medida em que contempla os procedi-
mentos técnicos no exercício do cuidado, mas, deixando-se afetar pela de-
manda da clientela, promove mudanças geradas pela prática mesma.
Partindo de tal posicionamento, é possível sugerir a necessidade de
uma reflexão sobre as bases conceituais para uma intervenção clínica soci-
almente contextualizada, comprometida com a escuta do sofrimento humano
em situações de crise e engendrada a partir do encontro, aberta para as diver-
sas modalidades de prática psicológica em instituições – Plantão Psicológico,
Psicodiagnóstico Colaborativo e Oficinas de Criatividade – e não apenas
restrita à transposição do modelo de psicoterapia individual para a realidade
institucional.
Nesse sentido, a reflexão desenvolvida pode ser estendida à proposta
de formação do profissional de Psicologia, como possibilidade de resgatar o
sentido de prática clínica socialmente engendrada e preocupada com o bem-
estar da população atendida. Assim, evidencia-se a necessidade de pensar ou-
tras possibilidades de prática psicológica na formação do psicólogo, atentando
para a consideração de modos de estar no mundo considerando os aspectos
institucionais, culturais e sociais, ou seja, a consideração do contexto real e
concreto no qual a prática psicológica acontece, atentando-se ao modo humano
de estar no mundo em instituições e não à dualidade entre homem e instituição.
468 Ana Paula Noriko Cimino e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

PRÁTICA PSICOLÓGICA EM SAÚDE:


ACOLHIMENTO E ZELO
Ana Maria de Santana

Sumário: 1. Saúde e Políticas Públicas. 2. Prática Psicológica em Saúde.


3. Atenção Psicológica e Perspectiva Fenomenológica Existen-
cial. 4. Atenção e Zelo em Saúde. 5. Referências.

Este estudo elege a prática psicológica exercida no âmbito da saúde


como objeto de reflexão. Sabe-se que as instituições de saúde representam
atualmente um espaço significativo para o desempenho de atividades labora-
tivas do psicólogo. Neste âmbito, é visível a exigência que as Políticas Pú-
blicas fazem no tocante à presença de psicólogos com ações valorativas de
promoção a saúde, tanto em territórios sanitários, como em intervenções
clínicas junto a usuários na rede ambulatorial e hospitalar. Esse fato permite
pensar que não se pode ignorar a importância de se rever no currículo da
formação profissional em psicologia, o que poderia contemplar uma prática
conexa ao campo da saúde. Entende-se que nas academias, não se privilegia
de maneira apropriada a experiência clínica em campos transdisciplinares
como vetor importante de aprendizagem e de formação, mesmo sendo refe-
rendada nos projetos pedagógicos do Curso, em disciplinas de natureza prá-
tica, voltadas para esse fim. Como afirma Neto (2011), os profissionais saí-
dos dos cursos de graduação em saúde são ensinados a desenvolver ações
específicas de seu campo de atuação e a ser zelosos na preservação do mes-
mo. Esse autor vem realçar que a integração ensino-serviço foi um dos as-
pectos relevantes, refletidos pela Comissão Nacional de Reforma Sanitária
(CNRS), vista como via importante e necessária para a interação entre teoria
e prática, possibilitando compatibilizar a formação clínica às necessidades de
enfrentamento de demandas no âmbito da saúde. Dessa feita, o serviço uni-
versitário nesse campo deve trabalhar em parceria com a rede do Sistema
Único de Saúde (SUS), sabendo que o mesmo mantém especificidades da
função precípua da formação que o torna diferente de um serviço público de
saúde. Este autor ainda vem mostrar que as tentativas anteriores de integra-
ção entre as instituições formadoras e rede de serviços públicos de saúde
tiveram pouca sustentabilidade, marcadas por adesão político-ideológica de
470 Ana Maria de Santana

docentes, alunos e trabalhadores, mesmo quando institucionalizadas, perma-


neciam dependentes dos arranjos políticos locais.
Nesse caminho, cabe interrogar como vem se revelando a prática
psicológica em espaços interdisciplinares que realçam saúde como propósito
a ser alcançado. Torna-se pertinente indagar acerca do saber ofício do psi-
cólogo frente ao que é solicitado nas tarefas programadas em unidades de
saúde. Tarefas atribuídas, geralmente, por modelos de gestão, impostas como
nortes de ação, pouco refletidas na capilaridade das trocas vivenciadas entre
usuário, técnico e gestores.
Nos treinamentos de formação e de capacitação envolvendo traba-
lhadores do campo da saúde, torna-se evidente uma ênfase dada às modalida-
des de como fazer a promoção do cuidado frente ao que se apresenta como
sofrimento. As diretrizes de ação das políticas públicas, no cotidiano das práti-
cas, servem de rumo e são aplicadas, quase automaticamente, por técnicos sem
se levar muito em conta especificidades do contexto, situação e singularidade
das vivências comunicadas pelo enfermo. Nesse sentido, é possível pensar que
o sentido de cuidar remete a intervenções que competem exclusivamente ao
técnico. O protagonismo de quem comunica sua experiência de sofrimento nas
ações que visam à promoção do cuidado não vem sendo realçado devidamente
nas instituições de saúde. Nesse ínterim, o que se pode afirmar sobre práticas
psicológicas que sinalizam ideia de práxis em que nexos da atenção são teci-
dos a partir da experiência clínica? Como essas práticas vêm sendo elaboradas
em paisagem que a vida se mostra demasiadamente vulnerável a riscos, em
estado de sofrimento? Entende-se que é possível interrogar nexos revelados na
trama do fazer clínico psicológico, realçando o que se apresenta como saber
ofício do psicólogo em âmbitos de saúde, o que vem se mostrando na circun-
vizinhança dessas práticas junto às demandas para o cuidado.
Para tanto, é preciso rever o contexto em que a atenção psicológica
está inserida, realçando o que dele se institui como crença válida e útil às prá-
ticas. Isto porque o trabalho em saúde sinaliza dimensão interpessoal, depen-
dente de evidências e da habilidade para se lidar com a singularidade das pes-
soas. Casos clínicos individuais e/ou comunitários, doenças, risco ou vulnera-
bilidade – acontecem encarnados em sujeitos. Assim, é preciso refletir sobre o
sentido que se atribui ao termo saúde, tarefa a seguir, sendo importante afirmar
que se fez opção em não transitar por vias conceituais, mas vislumbrar paisa-
gens que possam assinalar a compreensão daqueles que a têm como alvo a ser
atingido em ações realizadas em ambulatórios públicos. Nesse caminho, o
trânsito pelas políticas de saúde pode sinalizar como referenciais importantes
que serão aplicados universalmente, norteando, de maneira intensiva, as práti-
cas exercidas por técnicos nas instituições ambulatoriais.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

1 SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS

Saúde diz respeito à bem-estar. Não se sabe bem como enunciar


sua natureza, nem definir por critérios universais o que a constitui. De difícil
compreensão, por se tratar de conjuntura complexa, sinaliza pluralidade de
implicações reveladoras da existência junto a outros no mundo. Traz o senti-
do de positividade e a ideia de estados de vivência sem enfermidade. É alvo
de ações complexas que se mostram na defesa da vida no sentido de prevenir
doenças, cuidar, recuperar e promover bem-estar.
A Organização Mundial de Saúde/OMS relaciona o termo saúde
como estado de vivência, assinalando vetores ambientais, biológicos, sociocul-
turais e psicológicos que afetam o homem em suas inter-relações. Saúde vem se
vinculando a uma ideia de processo, assim como o adoecimento. Percebida
como oscilações na experiência de viver. Atualmente no Brasil, vem sendo
realçada como direito garantido pela Constituição, bravamente conquistado por
trabalhadores da saúde através dos movimentos reformistas sanitários, respon-
sáveis pela instituição de crenças válidas sobre cuidado nesta área. Crenças
formadas a partir da cartografia de experiências clínicas no cotidiano das práti-
cas, que entre outras proposições lançaram a Reforma Sanitária Brasileira como
norte, e nesta sendo criado o Sistema Único de Saúde (SUS) como política
pública, servindo como referencial significativo às práticas profissionais.
Como política pública, o SUS mostra-se norteador das ações em dife-
rentes momentos. Vem sendo exercido por uma diversidade de trabalhadores e
usuários que entram, saem ou permanecem no processo de sua trama. Seus
princípios são orientados por diferentes racionalidades, entre elas a racionalida-
de político-administrativa, legal e de resultados. É movido por diferentes inte-
resses, fazendo do seu desenvolvimento um processo contraditório, paradoxal,
não linear. Nele, perpassam referências significativas que auxiliam ações exer-
cidas por técnicos, evidenciando tramas complexas que é a de assistir à saúde
pública. Os desafios se mostram, inicialmente, no acesso pelo usuário às redes
de atenção e de intervenção, garantidos por direito, que na prática, semelhante a
qualquer outra política, não vem contemplando especificidades das experiênci-
as de adoecimento em âmbitos locais, reveladas em processos dinâmicos sin-
gulares, associadas à cultura de grupos minoritários.
No cotidiano das ações em campos sanitários de saúde pública, ob-
serva-se que o que vem se mostrando como cuidado assenta-se, na maioria
das vezes, numa ótica universal, proveniente dos marcos referenciais das
Diretrizes das Políticas de Saúde que, entre outras, acentuam nexos de atua-
ção objetivando intervenções condizentes frente ao que se mostra como so-
frimento. No entanto, é possível perceber que as práticas norteadas por esses
472 Ana Maria de Santana

fios condutores vêm se mostrando, via de regra, procedimentos normatizados


em atividades eleitas pela lógica de gestão, sem muito a refletir, adequada-
mente, sobre situações inusitadas, oportunas do campo sanitário, obscure-
cendo o que se apresenta, singularmente, no processo saúde-doença. Nessa
compreensão, é importante observar que no âmbito da saúde dados epidemi-
ológicos podem se mostrar nortes às práticas de promoção do cuidado, no
entanto, não auxiliam de maneira nenhuma àquelas situações específicas,
singulares e refratárias aos procedimentos instituídos de cuidado.
Nesse sentido, é possível pensar que nas práticas de saúde as ações
instituídas como procedimentos de cuidados estão sendo enfatizadas demasi-
adamente, sendo reproduzidas na maioria das vezes de forma automática,
dificultando a escuta do que vem se revelar como novo, proveniente da expe-
riência clínica, que não se inclui no sentido universal de sofrimento. Neto
(2011) esclarece que as políticas públicas ao se transformarem em programas
de gestão de governos, perdem parcialmente sua força instituinte. Nessa rou-
pagem, reduzem sua conexão junto aos vetores que as mobilizaram origina-
riamente, advindos e representativos das pressões sociais que as fertilizaram
em movimentos revolucionários do campo da saúde. Voltando a refletir,
nota-se que o contexto das práticas de saúde possui peculiaridades que se
mostram refratárias aos referenciais apregoados pelo SUS como atenção
clínica, instigando ações que contrariam nortes universais a serem seguidos.
No cotidiano das práticas, atitudes de natureza técnica são exerci-
das, na maioria das vezes, vindo a engessar em padrões fixos ações promoto-
ras de cuidado. Nessa perspectiva, retira-se da abordagem clínica aquilo que
lhe é mais significativo – aguardar frente ao que se expõe como sofrimento,
fenomenalizado na experiência clínica, vindo a desalojar modelos de atuação
para quem demanda cuidado. Nessa perspectiva, entende-se que é possível
pela interlocução entre demandante e quem exerce o papel de cuidador tecer
possibilidades que possam contemplar o que de fato precisa ser cuidado – a
existência com enfermidade.
Na construção do SUS, avanços e questões demandam respostas aos
problemas que persistem impondo urgência de aperfeiçoamento no sistema.
Atualmente, nas políticas públicas, acolher o usuário está sendo referendado
como uma ação significativa, importante e exigida nas realizações dos proce-
dimentos junto a ele. Esse acolhimento está sendo visto como um posiciona-
mento frente ao outro/usuário que requer modos de estar com ele, auxiliando-o
e viabilizando aberturas que possam contemplar o cuidado consigo. Envolve
estratégias tanto na atenção clínica como nos modelos de gestão.
Nesse caminho, é possível visualizar no cotidiano das práticas, uma
exigência que acentua acolhimento como forma instituída de posicionamento
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

junto ao usuário, fundamentada em epistemologias cartesianas que transver-


salizam os modelos biomédicos tradicionais em saúde, configurada como
maneira de abordar a quem vem cuidar de si. Diante do inesperado que é
trazido, estranho ao que é sinalizado pelas referências teóricas e diretrizes de
ação, dificuldades são vistas no que concerne à compreensão e intervenções
clínicas frente ao que se apresenta como demanda por cuidado.
Está sendo comum, no exercício de padrões vigentes de atuação, o
profissional ignorar o que advém do sujeito em sofrimento, de modo próprio,
singularmente comunicado, solicitando resposta frente ao que urge como
pedido de ajuda. Muitas vezes a dificuldade do técnico não está em perceber
o que se mostra, mas em como beneficiar quando o usuário busca ajuda por
sentir uma incapacidade momentânea de se dizer, trazendo um apelo de ade-
quação à complexidade móvel de viver.
Não obstante, o acolhimento em saúde revela ser uma diretriz im-
portante para as práticas neste âmbito, servindo como norte para uma atua-
ção voltada em clínica denominada de ampliada, vindo assim, aumentar a
comunicação em dimensões intra e intergrupos, incrementando sociabilidade
entre segmentos que atuam em separado, ampliando grupalidade no cerne
das práticas, desestabilizando fronteiras entre saberes dos territórios de poder
e dos modos instituídos das relações de trabalho.
Entre as diretrizes que compõem as políticas de saúde, avista-se uma
que remete, de forma mais próxima, à prática psicológica nesse âmbito – trata-
se daquela que afirma os sujeitos dizendo deles mesmo como podem caminhar.
Assim é reconhecido um ânimo para realçar a autonomia do usuário como fun-
damento na construção de mecanismos sustentáveis de responsabilização e de
corresponsabilidade entre gestores, pacientes e trabalhadores da saúde, eviden-
ciando vínculos solidários e a participação coletiva no processo de promoção de
cuidado. Nesse sentido, acolhimento diz respeito à formação de rede de conver-
sações, que enfatiza comunicação, envolvendo relação e afetação entre pessoas.
Próximo ao sentido que há na perspectiva de clínica psicológica em sua intri-
gante tarefa de favorecer o cuidado em âmbitos sanitários.
Quando se vincula clínica como problematização de vivências e
construção coletiva do cuidado, como orientam os princípios das políticas
públicas, há evidência de que houve, mesmo que pequena, uma superação do
modelo ambulatorial tradicional de saúde para o alcance de outro em que
estão inseridas as ideias de centro complexo de atenção e de qualificação da
vida. Observa-se nesta trama, o empenho de alguns setores técnicos da saúde
de realizar acanhada desinstitucionalização de saberes e de práticas, procu-
rando contemplar aberturas frente ao que se apresenta na experiência clínica
junto ao usuário, no que ele anuncia como sofrimento. Nessa compreensão, é
474 Ana Maria de Santana

possível interrogar – no exercício em saúde, realiza-se o salto de uma prática


assistencialista, exercida por meio de um tecnicismo proveniente das diretri-
zes, para ações em práxis, ou estão sendo formados novos modelos de atua-
ção fixados por normas de gestão?
Avanços no âmbito da saúde, demandam respostas aos problemas
que persistem, impondo urgência, fato que se revela no automatismo das inter-
venções, causando ao usuário isolamento que afeta sensibilidade, enfraque-
cendo laços coletivos que mobilizam forças de invenção na promoção do cui-
dado. Em campos sanitários é comum perceber nos procedimentos de atenção
ações pontuais, isoladas, descomprometidas com a produção de vínculos. Des-
sa feita, é importante refletir sobre o que as práticas psicológicas clínicas con-
tribuem para a promoção do cuidado em âmbitos ambulatoriais de saúde. É
possível afirmar sobre sua especificidade em campos transdisciplinares de
atenção em saúde pública? Como se ajustam as políticas de promoção à saúde?

2 PRÁTICA PSICOLÓGICA EM SAÚDE

No âmbito da saúde é inegável que a vida não se revela apenas em


cada sujeito, mas entre eles, nos vínculos que os constroem como força ca-
paz de afetar e de ser afetado. O desafio é reativar na clínica dimensões do
coletivo como instância de promoção à vida, instigando construção de redes,
compartilhamento, em que a experiência do encontro venha possibilitar a
invenção de si e do outro, realçando cotidiano como lugar de experimentação
e invenção de modos de viver.
Dessa feita, é possível pensar a prática psicológica no âmbito da
saúde como uma dada atenção, voltada para quem se empenha na comunica-
ção de experiências de sofrimento e que procura atribuir sentido ao que vive
como incongruência. Prática clínica que se mostra adjunta a um leito com a
intenção de intervir voltada para a qualificação da vida, em que é possível
evidenciar a existência em cuidado, sinalizando o que é próprio da ontologia
humana. Tal prática vem se apresentando promotora de vínculos em campos
sanitários, vez que se mostra como ação de aproximação que envolve um
estar com outro. Atenção exercida no sentido de acolhimento que se volta
para o amparo de pessoas na escuta de narrativas de aflição, implicando sa-
beres compartilhados, incertezas e invenções, tomando para si a responsabi-
lidade de abrigar outrem, como afirma Morato (2008).
Nesse sentido, é imprescindível realçar práticas psicológicas de-
nominadas de Plantão Psicológico no campo da saúde. Tais atividades vêm
se revelando como atenção significativa para a elaboração do cuidado con-
tribuindo com formação de vínculos e de espaços em que se opera interlocu-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

ção sobre vida em sofrimento. Instigam roda de conversa que põem em elas-
ticidade a tensão entre o senso comum das culturas populares e a do conhe-
cimento científico, destinados à promoção da saúde.
O Plantão Psicológico como procedimento de atenção em saúde
vem auxiliando o usuário a compreender experiências de sofrimento, real-
çando seu protagonismo frente à promoção de cuidado. As narrativas de
sofrimento comunicadas nesses atendimentos apresentam nexos significati-
vos da trama constituinte da pessoa, de situações vividas por ela, sinalizando
vestígios da experiência coletiva de seu grupo e de sua comunidade, norte-
ando, dessa forma, sentidos para uma prática psicológica contextualizada em
saúde.
Sabe-se que a doença, como experiência de mal-estar, constitui-se
situação-problema que altera atitudes exercidas no cotidiano da lida diária.
Como lembra Rabelo (1999), demanda medidas normalizadoras, viabilizado-
ras de recursos que transformam vivências geradoras de rupturas em esque-
mas simbólicos, interpretativos e de reintegração ao viver cotidiano. Como
experiência, a doença põe em evidência o ser-doente-em-situação. Nesse
sentido, os modelos culturais ajudam a reorganizar o enfermo no enfrenta-
mento a ela. É preciso estar atento as instâncias socioculturais presentes no
sentido atribuído ao fenômeno doença, pelas quais o sujeito, na sua vivência
de aflição, define, legitima, comunica e negocia significados para o sofri-
mento, integrando-se a outros.
Na situação de enfermidade, é imprescindível possibilitar a comu-
nicação sobre o que se vive. Isso permite a elaboração de mecanismos cons-
truídos pelo doente para lidar com a aflição gerada pela experiência com
enfermidade. Dessa feita é importante ter disponibilidade para escutar metá-
foras sobre o infortúnio vivido. Nos procedimentos viabilizados, o usuário
pode transformar a experiência incoativa de sentir-se mal em algo que pode
ser comunicado, compartilhado e administrado na interação com outros
como realça Rabelo (1999).
Em campos sanitários, nos caminhos percorridos junto ao usuário,
os procedimentos instituídos como um saber fazer não vêm se mostrando, de
maneira esperada, como atenção adequada ao que se apresenta como deman-
da. Sabe-se que é no encontro com o usuário/outro, em proximidade, que se
elabora sentido para uma práxis em espaços de saúde. A atitude clínica via-
bilizadora de uma atenção psicológica não se configura como algo que pode
ser apreendido, assimilado como referência em modelos de atuação para um
saber fazer. Como diz Morato (2008), a prática psicológica é antes de tudo,
originária, decorrente da experiência vivida no contato, sinalizando abertura
para articulação de sentidos sobre atenção nesse contexto.
476 Ana Maria de Santana

Em trabalhos anteriores, Santana (2001), mostrou que o atendi-


mento em saúde parece encaminhar para uma compreensão de que o usuá-
rio busca ajuda por sentir uma incapacidade momentânea de se dizer, tra-
zendo um apelo de adequação melhor à complexidade móvel de viver em
cidadania. Procedimentos de atenção, no campo do atendimento psicológi-
co em saúde, parecem estar ajudando o usuário a contar suas histórias vivi-
das, possibilitando novas traduções as suas dificuldades, dando continuida-
de, no tempo presente, suas narrativas. Ficou claro, nos estudos realizados,
que é no âmbito da experiência com o usuário, no encontro vivido com ele,
na estranheza vivida em interação, que a teoria pode engendrar-se e servir
como possibilidade de favorecer respostas às demandas comunicadas.
Após situar por breves linhas nexos da trama da prática psicológica
no contexto da saúde, faz-se necessário transitar agora por acepção do fazer
psicológico na perspectiva fenomenológica existencial em Psicologia. O
intuito é de rever o que vem sinalizar proximidade e distanciamento entre o
que se realiza em saúde e a concepção clínica de cuidado nessa propícia refe-
rência teórica.

3 ATENÇÃO PSICOLÓGICA E PERSPECTIVA


FENOMENOLÓGICA EXISTENCIAL

Revendo estudos realizados por Barreto (2006), no que concerne


à clínica psicológica na perspectiva fenomenológica existencial, encontra-
se que a atitude psicoterapêutica diz respeito ao exercício de consenti-
mento, de suspensão e desconstrução das identificações restritivas da
existência humana. Parafraseando a autora, experiência clínica relaciona-
se à atitude crítica em que o sujeito apreende seu papel constitutivo na
produção de sentido do mundo. Requer um recuo frente às objetivações
realizadas sobre mundo e de si, para uma apreensão de mundo, não como
objeto, mas vinculado à experiência de vivenciá-lo, enquanto abertura de
possibilidades de sentido.
Clínica, na perspectiva acima, está próximo do sentido de atencionar
o outro a exercer o que lhe é próprio de sua ontologia – abertura de sentidos
frente ao que se apresenta como experiência em estreito contato com vivências.
Tal perspectiva clínica renuncia condutas de controle, interpretação e previsão
no processo clínico. O cuidado não se apresenta como algo a ser ofertado pelo
cuidador nem é exercido por ações assistenciais. Na psicologia de cunho feno-
menológico existencial, como lembra Barreto (2006), a clínica acentua a fala
poética como instância que se abre em disponibilidade para a escuta do que não
está disponível, quando desvelado, permite a aventura de des-cobrir e recriar o
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

novo de si e do mundo, ou seja, revela-se como força de abertura e fundação.


No acontecer clínico, compreensão ocorre no diálogo, via afetação exigindo co-
respondência, consenso hermenêutico – nas palavras da autora.
Nessa compreensão, linguagem não seria vista como representação
de objetos mundanos encerrados como reais, mas o que leva algo a ser des-
velado, trazendo para des-ocultação o que está na experiência. Parafrasean-
do, ainda, a autora, diz respeito a um meio universal de experiência. Lugar
em que se é constituído e onde o objeto da experiência se constitui. Nesse
sentido, dizer significa revelar. Na situação clínica em psicologia, o cliente
dá-se a compreender, abre-se a experiência e mantém o não dito como reser-
va permanente (Barreto, 2006).
Dessa feita, clínica na perspectiva fenomenológica existencial,
constitui-se pelo dizer-escutar favorecendo a elaboração da experiência de
sofrimento, des-ocultando o habitual, levando a pessoa a se ver como pro-
dutora de sentido. Experiência que consiste em ser afetado no encontro di-
ante do que se revela como alteridade. A escuta e o disponibilizar-se do psi-
cólogo, se oferecem como ente-a-mão podendo viabilizar aberturas para
elaboração do que precisa ser cuidado.
No âmbito da saúde, o instituído que transversaliza as intervenções
clínicas elege a nosografia como substrato para os modelos de intervenção,
servindo de norte para a compreensão do que se apresenta como sofrimento
nas narrativas de aflição. Dessa forma, cuidar diz respeito a objetivar proce-
dimentos frente ao que se mostra como doença, nela identificando sintomas,
categorizados, que auxiliam uma leitura compreensiva do que ocorre com o
enfermo. Entende-se que a doença enquanto fenômeno intrínseco à natureza
humana exige procedimentos acurados, solicitando por parte dos técnicos,
ações complexas que possam contemplar o corpo em seu estado vívido. No
entanto, acentua-se que na prática médica está sendo possível superar mo-
delos de natureza exclusivamente bio-curativos, mas não se consegue ainda
transcender uma clínica de órgãos em campos sanitários.
Nessa paisagem em que se descortinou, brevemente, o sentido de
clínica em Psicologia Fenomenológica Existencial, é conveniente voltar a
refletir sobre a atuação de psicólogos em territórios sanitários, rever o que
vem se revelando como sentido de prática psicológica nesses espaços.

4 ATENÇÃO E ZELO EM SAÚDE

É inegável que o saber instituído, que envolve o fazer na clínica


psicológica em instituições de saúde, pode se manter fixamente como norma
478 Ana Maria de Santana

organizadora, teórica e técnica nos trabalhos desenvolvidos. Quando não é


importado e se apresenta como produto de uma relação entre teoria e prática,
advindo da experiência do fazer contextualizado, se mostra como atenção
significativa para aquele que busca cuidar de si. No entanto, pode se mostrar
desfalcado de sua função, na promoção da saúde, quando permite mecaniza-
ções de atitudes, constituindo-se como, via de regra, uma ação clínica.
Morato (1999) nos chama a atenção para a especificidade originá-
ria e germinativa da prática clínica como lugar de acolhimento e de escuta.
Alerta para um fazer que saiba ouvir e ver. Ressalta que a ação que se faz
presente na prática antecede as referências teóricas e técnicas que se em-
prestam como modelo para atuação. Essa ação, quando originária, mostra-se
como um processo iniciador decorrente da experiência no contato com o
outro, o qual se constitui como abertura em que se articulam os sentidos do
fazer clínico. É no encontro que se elaboram significados e, posteriormente,
a tematização do fazer psicológico, viabilizando aberturas e transformações
para uma prática clínica pertinente.
Nesse sentido, é possível pensar o atendimento psicológico no âm-
bito da saúde como prática que realça atenção àquele que vem comunicar so-
bre experiências de sofrimentos, que não se vê com sentido sobre vivências e
que recorre a outro para exercer o que lhe é próprio – existência em cuidado.
Por esse norte, a prática psicológica se mostra como disponibilida-
de de atencionar alguém que se vê demandando por cuidado, aproxima-se,
como diz Morato (2008), de intervenção para acompanhamento do sofri-
mento humano em situação de crise. Mostra-se como possibilidade terapêu-
tica de acolher quem sinaliza desamparo. São embasadas por referências
conceituais que servem de norte para intervenções socialmente contextuali-
zadas, engendradas a partir do encontro criado. Nesse propósito, acolher na
perspectiva da Clínica Psicológica diz respeito a um interesse de ouvir com
pré-ocupação de atencionar em receptividade pessoas que comunicam nar-
rativas de aflição, viabilizando junto a elas interlocução e experiências que
podem favorecer abertura de sentidos frente ao que sinalizam.
A prática psicológica vista como exercício de atenção em campos
sanitários, remete ao Aconselhamento Psicológico no seu sentido de prática
clínica que se fundamenta por vieses fenomenológicos existenciais. Mostra-se
como clínica socialmente engendrada, preocupada com a busca de bem-
-estar em vivências vexantes de vida em cidadania. Aqui se avista proximidade
com o sentido que se atribui a cuidado no âmbito da saúde quando se vem
realçar bem estar e qualificação da vida. Nos procedimentos clínicos em Plan-
tão Psicológico, cuidar vem se apresentando como aprendizado de atenção,
viabilizando voz a atores sociais em sofrimento, próximo do que não se enun-
cia facilmente no cotidiano das vivências junto a outros. Mostra-se como prá-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

tica que sinaliza dimensão ético-política norteando a formação clínica de psi-


cólogos, a pesquisa e a extensão em ações interventivas junto a comunitários.
Nessa compreensão, o psicólogo em espaços ambulatoriais, na situa-
ção de encontro, pode vir a facilitar ao usuário da Rede de serviços de saúde a
re-contar suas histórias de vida, de forma a beneficiar compreensão de atuais
dificuldades, permitindo-lhe a continuidade, no tempo presente, de suas narra-
tivas sobre experiências com enfermidade e de vivências de aflição.
Dessa forma, a prática psicológica se apresenta como uma atenção
peculiar voltada para um sujeito que sofre desprovido, momentaneamente, de
sentido sobre o que vive. Atenção numa acepção de abertura para interlocu-
ção e produção de sentidos outros, em que a compreensão e a disposição
afetiva dos atores que ali se encontram na cena clínica, contribuem para in-
terrogar nexos inseridos na experiência de sofrimento.
Nessa perspectiva, atenção se revela como posicionamento clínico,
diz respeito a um inclinar-se diante do outro que traz alteridade, refratário a
teorizações. Diz respeito a escutar alguém que procura ajuda, demandando ser
reconhecido, procurando nortes/sentidos para suas vivências. Clínica que real-
ça formar de cuidar e que vem transcendendo dimensões nosológicas, circuns-
critas em instâncias patológicas, por entender doença como fenômeno psicos-
social, historicamente constituído, sinalizador de uma ideologia vigente.
Assim, o atendimento psicológico visto como atenção implica
apreendê-lo como vetor de promoção à saúde, que vem evidenciar nos pro-
cedimentos o trânsito entre singularidade e coletividade, constitutivas da
experiência do sujeito enfermo. Próximo do que Morato (1999) afirma – uma
prática que busca acolher e revelar o sujeito, na sua condição de fazer e dizer
publicamente, com outros, sobre uma realidade compartilhada e objetiva.
Sendo assim, vem sendo uma experiência ética que partindo de um referen-
cial de si mesmo, de um em casa instituído, reconhece o outro na sua alteri-
dade, irredutível a qualquer conhecimento teórico, refratário ao idêntico.
Por essa compreensão, a atenção psicológica favorecida ao usuário
da Rede de Saúde pode ser delineada como abordagem que se recusa a frag-
mentar o sujeito em partes para compreendê-lo como totalidade significante.
O sentido de prática psicológica como atenção diverge do modelo biomédi-
co, assistencial, curativo que vem norteando, pelas políticas públicas, as
práticas de assistência em ambulatórios públicos.
Enquanto modalidade de atenção, lembrando Santana (2001), o fa-
zer psicológico vem possibilitando ofertas de atenção às demandas da comu-
nidade, a elas recorrendo como pretexto para a formação do psicólogo como
agente social de mudança, posto que o fazer psicológico na instituição de
saúde requer abertura para as dimensões socioculturais, em que a criativida-
480 Ana Maria de Santana

de e a flexibilidade precisam constar nos modos de responder às demandas.


É na condição relacional, constituinte do existir, na sensibilidade experienci-
ada no encontro com o outro, que é propiciada a condição de conhecimento,
compreensão e comunicação para o cuidado clínico. Confirma o que Schmidt
(1999) sinaliza – a unidade de saúde, como esfera social, tem como contri-
buir para a elaboração e à transmissão da experiência do usuário. Suas fun-
ções não visam, apenas, o cuidado com a vida, favorecem o enraizamento
coletivo de sua clientela.
A concepção de prática psicológica inspirada na Abordagem Fe-
nomenológica Existencial evidencia que a doença não mantém a coerência e
a continuidade das narrativas que outorgam o sentido nas vivências comple-
xas e de caos da vida. Alves e Rabelo (1999, pp. 173-174) esclarecem que:

Nas narrativas de aflição, as metáforas desempenham um papel central:


constituem estratégias de inovação semântica, que estendem sentidos ha-
bituais para domínios inesperados, oferecendo assim uma ponte entre a
singularidade da experiência e a objetividade da linguagem, das institui-
ções e dos modelos legitimados socialmente. Tecidas em uma narrativa,
as metáforas dão forma ao sofrimento individual e apontam no sentido de
uma determinada resolução desse sofrimento: permitem aos indivíduos
organizar sua experiência subjetiva, de modo a transmitir aos outros –
familiares, amigos, terapeutas – e a desencadear nestes uma série de ati-
tudes condizentes com a nova situação apresentada.

Dessa forma, acolher no espaço ambulatorial as narrativas em pri-


meira pessoa é entender que elas “representam sistemas de significação
complexos e cambiantes” (Goolishiam, 1996:1994), não podendo, assim, ser
esquecidas nos projetos terapêuticos das ações interdisciplinares em saúde. É
narrando que o sujeito enfermo co-explora o que lhe é familiar, desenvol-
vendo novas complexidades de significado ao que vive como realidade, au-
xiliando na elaboração de sentido voltado a processos desalojantes de se
viver com enfermidade. A atenção psicológica amplifica cuidado podendo
viabilizar interlocução produzindo mudanças sociais, transformando histórias
narradas e favorecendo o relato de outras.
A prática clínica nas unidades de saúde demonstra ser um recurso
importante para o usuário dá sentido às suas experiências e de poder comu-
nicá-las, criando ou legitimando significados para a sua existência de aflição
em cidadania. O atendimento psicológico vem sendo associado a um evento
marcante na vivência, que favorece certos modos de agir diante das situações
trazendo relações de reciprocidade que auxiliam enraizamento coletivo.
Nessa compreensão a atenção que é vista nas práticas psicológicas
em âmbitos de saúde, aponta para referendar o fazer psicológico como zelo,
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

dado que o contexto institucional pede um olhar atento, para que se desconstrua
o habitual e o tradicional que não contempla a experiência da contemporanei-
dade. Promove uma des-construção desse tradicional, abrindo brechas para a
invenção de práticas pertinentes à demanda e à necessidade, tanto dos profissi-
onais que nelas atuam, quanto à clientela que a ele recorre. Um fazer que exija
aberturas para a criatividade e a flexibilidade nos procedimentos, que possa
garantir uma relação funcional da Psicologia Clínica com a sociedade, especi-
almente com aqueles de camadas menos favorecidas que representam a con-
juntura atual em que vive grande parte da população brasileira, usuária do SUS.
Nesse sentido, realça-se que o atendimento psicológico não vem
mais se configurando como ajuda, termo que pode remeter a atitudes assis-
tencialistas inclusas nas ações sanitárias, mas sim como uma atenção em
zelo, próximo do sentido de um cuidar advindo das trocas realizadas por
meio da comunicação das experiências em interlocução junto a outro. Inseri-
do numa escuta, o usuário se esforça para dar sentido às demandas não so-
mente de cunho pessoal, mas aquelas associadas às experiências de seu cole-
tivo. Nesse sentido, zelo diz respeito à acepção clínica de exercer o cuidado
que lhe é próprio, viabilizando ressignificação nas vivências; elaboração de
sentidos; aberturas de outros; permitindo avaliar recursos pessoais e da co-
munidade, disponíveis para o enfrentamento de situações-problema.
No campo da saúde pública, há um realce significativo para as prá-
ticas que viabilizam a inserção do usuário na sua comunidade. Parece que a
compreensão de cidadão-no-mundo vem embasando ações clínicas que nor-
teiam, atualmente, procedimentos em saúde mental. Inspirados, talvez, pelo
saber prático dos movimentos reformistas sanitários. Esse olhar demanda
abertura para um fazer numa dimensão transdisciplinar, em que é preciso
transpor abordagens teóricas compreensivas e de atuação para responder
fenômenos clínicos revelados nesse contexto. Sabe-se que as demandas por
cuidado, comunicadas pelo usuário, não podem vir a serem compreendidas
por meio de um único viés teórico-prático. Entende-se que é seccioná-lo em
dimensões que levam a uma percepção parcializada de sua vivência como
usuário/cidadão. Nesse caminho é possível pensar que no cotidiano das prá-
ticas recursos socioculturais revelados nas experiências do usuário, assim
como aqueles que estão em sua comunidade, podem ser acionados como vias
importantes para a promoção de seu bem estar.
Nesse sentido, saúde é compreendida como processo de vida que
ocorre em situação exigindo integração e comunicação das experiências num
mundo interativo com outros. Decorre da existência, o cotidiano que a invia-
biliza deve ser evidenciado, repensado nas intervenções. Daí, a importância
de inserir, nas ações clínicas psicológicas em rede pública, conhecimentos
contextualizados sobre a população assistida. Isso requer alargamento na
482 Ana Maria de Santana

compreensão de vetores psicossociais e culturais que estão na circunvizi-


nhança das demandas reveladas nos atendimentos.
Nessa compreensão, atencionar em psicologia em campos sanitári-
os, tem a tarefa também de potencializar recursos da comunidade em que o
usuário está inserido, o que implica em diversificar nortes teóricos e acolher
outros, no campo da interdisciplinaridade de saberes. Os movimentos popu-
lares que estimulam a convivência, a troca de experiência e a luta pela quali-
ficação da vida precisam ser refletidos como veículos de atenção clínica.
Sendo de extrema importância que a invenção da Clínica atinja todas as clas-
ses sociais e que a cultura popular possa ser usada como um recurso facilita-
dor das práticas psicológicas em saúde.
Schmidt (1999) assinala que os procedimentos clínicos na instituição
podem propiciar experiências cognitivo-afetivas de vivências pessoais e tam-
bém coletivas, sem deixar de perpassar pela singularidade de cada pessoa as-
sistida. Nestas ações é imprescindível criar modos de atender abertos à plurali-
dade e à singularidade de assistência, receber e favorecer as demandas consti-
tuídas no âmbito social, em que a experiência pode se abrir para o não planeja-
do, para o desconhecido e o inesperado. Nessa leitura, a instituição de saúde se
oferece como espaço social, portadora de condições propícias à elaboração e à
comunicação da experiência singular e coletiva dos sujeitos por ela assistidos.
No campo da saúde, como na existência, o que está em jogo é a rela-
ção entre vínculos e a possibilidade da vida, relação essa que precisa ser pen-
sada, pois o homem parece estar ultrapassando os limites da prudência que
exige liberdade com responsabilidade nos procedimentos que envolvem co-
nhecimento e ação junto a outros em sofrimento. A atitude que favorece a
Clínica Psicológica não tem a tarefa de produzir um efeito no outro, mediante
um processo planejado, revela-se numa atitude que possa favorecer o desvelar
do que não se mostra por si mesmo. Ela se mostra como ação determinada a
partir do que se vive no encontro que sinaliza para o cuidado. Sua técnica é a
de possibilitar o tempo e o espaço de revelação do outro em sua alteridade.
Finalizando, haveria ainda muitas outras considerações a serem
feitas. Contudo, o valor de uma comunicação também se revela pelas inúme-
ras possibilidades de aberturas a explorar e investigar. Deste modo, coloca-se
uma vírgula no final desta informação, sinalizando que outros sentidos po-
dem vir a serem elaborados por aqueles que andam nessas paisagens poden-
do ampliar referências significativas sobre as práticas psicológicas nesse
campo fértil e complexo que é o da saúde pública.
Entende-se que é preciso re-criar formas de fazer e de pesquisar a
Clínica Psicológica em campos sanitários, relativizando antigas fórmulas das
quais a Psicologia precisava assujeitar-se ao paradigma tradicional, cartesia-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

no e científico, em que nestas modelizações, fazia-se pesquisa sobre o fenô-


meno clínico com artifícios que objetivam a dicotomia sujeito/objeto, inseri-
das na tradição moderna de se fazer pesquisa. Não se pode mais se manter
fixo na produção de conhecimentos sobre a clínica, precisa-se hoje, criar
condições de pesquisa que se aproximem do real desse fazer.
Isso leva a pensar que, ao se distanciar das referências conceituais
que orientam as práticas psicológicas, talvez naqueles momentos em que elas
já não servem como resposta aos eventos clínicos, esteja de fato abrindo possi-
bilidades reais de atendimento às demandas comunicadas na Rede de Saúde,
pois vem desalojar processo teórico-prático. É somente buscando outro jeito de
olhar que se vislumbram viabilidades de uma abertura outra, envolvendo es-
colhas e outras maneiras de fazer, permitindo clareiras que iluminam o fazer
clínico psicológico. É desconhecendo, desalojando-se, que a abertura de novas
possibilidades de ação se constitui, ancorando, dessa feita, o trabalho clínico
na experiência tanto do usuário quanto do servidor/cuidador.

5 REFERÊNCIAS

Ferreira Neto, João Leite (2011). Psicologia e Políticas Públicas e o SUS. São Paulo: Escuta;
Belo Horizonte: Fapemig.
Barreto, CLBT (2006). Ação Clínica e os pressupostos fenomenológicos existenciais.
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Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano.
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D. F. Schnitman (Org.). Novos Paradigmas, Cultura e Subjetividade. Porto Alegre: Artes
Médicas, pp. 193-203.
Morato, H. T. P. (1999). Aconselhamento psicológico: uma passagem para a transdisciplinarie-
dade. In: Morato, H. T. P. at al. Aconselhamento Psicológico centrado na Pessoa: novos
desafios. São Paulo: Casa do Psicólogo, pp. 61-88.
_____ (2008). Prática Psicológica em Instituições: ação política. In: VIII Simpósio Nacional
Prática Psicológica em Instituição – Atenção Psicológica: experiência, intervenção e pesqui-
sa. São Paulo, v. 1, pp. 1-19.
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Santana, A. M. (2001). A experiência do usuário como via de re-significação das práticas
psicológicas na Rede Pública de Saúde. 2001. 115 f Dissertação (Mestrado) – Universidade
Católica de Pernambuco – UNICAP. Coordenação Geral de Pós-Graduação e Pesquisa. De-
partamento de Psicologia. Curso de Mestrado em Psicologia Clínica.
Schmidt, M. L. S. (1999). Aconselhamento Psicológico e Instituição: algumas considera-
ções sobre o serviço de aconselhamento psicológico do IPUSP. In: H.T. P. Morato (Org.).
Aconselhamento Psicológico Centrado na Pessoa: novos desafios. São Paulo: Casa do
Psicólogo, pp. 89-103.
484 Ana Maria de Santana
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

COMPREENDENDO A PRÁTICA DA
ATENÇAO PSICOSSOCIAL EM SAÚDE
MENTAL NO PROCESSO DE
DESINSTITUCIONALIZAÇÃO
Luciana Oliveira Lopes
Nilson Gomes Vieira Filho

Sumário: 1. Introdução. 2. Estudo da Prática dos Profissionais Univer-


sitários: Aspectos Teóricos e Metodológicos. 3. Compreenden-
do as Experiências das Pessoas/Profissionais em Situação de
Mudança da Pratica de Cuidados Em Saúde Mental. 4. Consi-
derações Finais. 5. Referencias.

1 INTRODUÇÃO

Com o ciclo da borracha, a modernidade ‘colonizada’ chegou a


Manaus no final do século XIX e com ela, no início de século XX, a institui-
ção manicomial. Essa instituição apresentava a figura do médico como cen-
tral no tratamento da “loucura/doença mental”. A ‘nova’ concepção psiquiá-
trica, descontextualizada e conflitante em relação às concepções culturais da
população nativa, foi introduzida em um ambiente urbano, em rápido cres-
cimento demográfico, com a chegada em massa de muitos migrantes, na
maioria, oriundos da região nordeste.
Não se nota ao longo da história uma expansão da instituição hos-
pitalar psiquiátrica, nem pública ou privada, permanecendo esse estabeleci-
mento a principal referência hospitalar para o Estado do Amazonas até a data
atual. Na instituição hospitalar reformulações internas foram realizadas li-
mitando o espaço e o tempo de internação (curto prazo), acrescentando ainda
um ambulatório nesse conjunto. Alguns idosos ditos ‘crônicos’, menos de 40
pacientes, continuam morando aí nos antigos pavilhões, ora reformados.
Contemporaneamente, essa estrutura hospitalar manicomial funci-
ona como parte de um sistema de organizações sanitárias (incluindo CAPS,
Postos de Saúde, setores de atendimento psiquiátrico e/ou psicológico do
486 Luciana Oliveira Lopes e Nilson Gomes Vieira Filho

SUS etc.), enquanto lugar de internação/contenção, medicalização, de pesso-


as ditas com transtorno mental que se encontram geralmente em situação de
‘crise psicótica’. Elas são encaminhadas, quando, em princípio, se esgota a
capacidade deste sistema em atendê-las, e na maioria das vezes, após alta,
são reencaminhadas às suas instituições de origem. Esse circuito institucio-
nal se retroalimenta constantemente, sobretudo pela inexistência atual de
Centro de Atenção Psicossocial – CAPS III (MS, 2002), ou setor de interna-
ção em saúde mental, em hospital geral, em Manaus.
Esse circuito institucional possibilita a persistência do contagio
com o ‘vírus’ manicomial (Basaglia & Giannichedda, 2005, p. 246) na me-
dida em que as intervenções da estrutura hospital-ambulatório difundem nas
relações com os pacientes as velhas concepções psiquiátricas mescladas com
os estereótipos da loucura, contribuindo assim para a reprodução de proces-
sos de exclusão social, contagiando toda rede interligada a este hospital.
Esses mecanismos institucionalizantes se contrapõem ao processo de desins-
titucionalização (Rotelli, De Leonnardis & Mauri, 1992; Barros, 1994; Viei-
ra Filho & Nóbrega, 2004) proposto para a reforma psiquiátrica brasileira
dando origem a ambiguidades e contradições nem sempre superáveis.
O objetivo deste trabalho é o estudo da prática de profissionais
universitários, incluindo psicólogo(a)s, que experienciaram a implantação de
um CAPS-III adulto e o consequente processo de mudança em suas ações
cotidianas de cuidados em saúde mental, visto que nunca tinham tido qual-
quer experiência de cuidados nesse campo específico. O enfoque psicossoci-
al escolhido articula a prática da atenção psicossocial em saúde mental com
o processo de desinstitucionalização e o contexto local da reforma psiquiátri-
ca em Manaus.

2 ESTUDO DA PRÁTICA DOS PROFISSIONAIS


UNIVERSITÁRIOS: ASPECTOS TEÓRICOS E
METODOLÓGICOS

A prática tem uma lógica própria que não coincide estritamente


com a lógica apreendida pela pesquisa científica sobre esta mesma prática.
Como exemplo, citamos a economia de lógica que supõe “não se mobilizar
mais de lógica do que a prática necessita, faz com que o universo de discurso
em relação ao qual é constituída esta ou aquela classe (...) pode permanecer
implícito porque é implicitamente definido em cada caso na e pela relação
prática com a situação” (Bourdieu, 2009, p. 143). Nesse sentido, o efeito de
teorização (Bourdieu, 2009) revelaria mais uma espécie de imagem em ne-
gativo de alguns aspectos ou propriedades desta prática em outro tempo,
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

possibilitando, entre outros estudos, uma análise da diferenciação e interde-


pendência destes aspectos.
Tentamos compreender a prática pela mediação de um observador
participante (primeira autora) e de um enfoque psicossocial (trabalhado aqui
pelos dois autores) que tem como objeto a experiência vivida por profissionais
no cotidiano em conexão com o processo de desinstitucionalização e no con-
texto da reforma psiquiátrica em Manaus. A ‘des-institucionalização’ é aqui
entendida enquanto processo de desconstrução histórico-cultural da reprodu-
ção da rede de instituições totais de característica manicomial, partícipes dos
mecanismos de controle, contenção e de exclusão social referente à pessoa dita
“louca/doente mental”, concomitante à gradual construção alternativa de outra
rede, com instituições de saúde mental territoriais e outras conexões comunitá-
rias, com características autopoiéticas (Vieira Filho & Nóbrega, 2004) e que
possibilite cuidados integrados em saúde/saúde mental (Bedin & Scarparo,
2011), bem como associados à inclusão social de quem sofre.
O foco da análise na experiência vivida supõe uma dinâmica de in-
terações e de relações de poder nas quais a pessoa/profissional está inserida
tanto na organização sanitária onde trabalha quanto na rede de instituições a
que esta organização está conectada. Em situação de cotidiano, essa experiên-
cia tem sua parte de espontaneidade, de poder ser compartilhada e/ou conflitu-
osa com os outros, de ter um ritual geralmente repetitivo e costumeiro, mas
também a possibilidade de rupturas e descontinuidades. Aspectos que incidem
na orientação da pessoa/profissional nesse ambiente organizacional, na sua
relação com o mundo circundante e na sua percepção subjetiva desse mundo.
Essa percepção estaria mais relacionada com a posição de participa-
ção da pessoa/profissional, maior ou menor engajamento, nas ações práticas e
processo de mudança /desinstitucionalização. Percepção apreendida no que a
afetaria, emocionaria, tocaria subjetivamente, em suas atividades e ações coti-
dianas, sem que tenha havido nas entrevistas realizadas solicitação de uma
reflexão teórico-analítica. Os sentidos e/ou significados emergentes relativos a
essa prática estariam geralmente marcados pelo senso comum, pelo que está se
sucedendo, acontecendo no dia a dia da vida laborativa. E também pelos “es-
quemas de referência” (Schutz, 1994, p. 12), subjetivos e intersubjetivos, inte-
riorizados culturalmente por ela nas suas experiências vividas. Diante de mu-
danças relativamente rápidas esperava-se que a pessoa/profissional teria difi-
culdades em articular esses “esquemas” na ‘nova’ experiência de mudança
institucional que se apresentava como desafio a enfrentar, sendo suscetível de
possibilitar ou não reinvenção destes “esquemas”.
O material utilizado para análise da prática, cujos pressupostos teó-
ricos foram acima descritos, é oriundo de um recorte de uma pesquisa parti-
488 Luciana Oliveira Lopes e Nilson Gomes Vieira Filho

cipante realizada de fato em um CAPS II-Adulto, em Manaus (Lopes, 2011).


Os recursos metódicos utilizados foram entrevistas semiestruturadas com um
roteiro prévio de perguntas abertas, e notas de campo. As entrevistas foram
realizadas com os profissionais de formação universitária do CAPS, no perí-
odo da observação participante, após concordância dos participantes. Todas
as entrevistas foram gravadas em formato digital, sendo posteriormente
transcritas de maneira integral. Essas entrevistas ocorreram em momentos e
contextos diferentes, sendo todas realizadas na instituição, e no período em
que os trabalhadores estavam no exercício de sua atividade. Ressalta-se que
nesse procedimento, mesmo havendo um roteiro de entrevista, não se empreen-
deu um caráter diretivo no momento da entrevista, para que o entrevistado
pudesse comunicar a prática a partir de sua compreensão.
Os participantes da pesquisa (6 entrevistados) foram os profissio-
nais universitários, com o status de Técnicos de Nível Superior (TNS), nas
diversas áreas do conhecimento: psicologia, medicina, terapia ocupacional,
serviço social, enfermagem. Os mesmos compunham a equipe multiprofissio-
nal deste serviço composta pelos TNS acima citados, além de técnicos de
enfermagem, técnicos administrativos e auxiliares de serviços gerais. Res-
salta-se que nesse recorte de pesquisa o foco da análise foram os profissio-
nais com formação universitária.
Os entrevistados foram identificados como TNS 1, TNS 2, TNS 3,
e assim sucessivamente. Não se pretendeu focar diretamente nos psicólogos,
mas no profissional trabalhando em equipe. Tinham idade entre 29 e 56
anos, sendo 02 homens e 04 mulheres. Como forma de validar a participação
voluntária foi solicitado aos participantes a assinatura do Termo de Consen-
timento Livre e Esclarecido, conforme recomendações da Resolução
CNS/MS196/96. Esse projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesqui-
sa com Seres Humanos da Universidade Federal do Amazonas.

3 COMPREENDENDO AS EXPERIÊNCIAS DAS


PESSOAS/PROFISSIONAIS EM SITUAÇÃO DE
MUDANÇA DA PRÁTICA DE CUIDADOS EM SAÚDE
MENTAL

3.1 Uma Desconstrução Contraditória do Circuito


Manicomial na Prática de Cuidados
Antes de mudar, tinha que funcionar corretamente, a sua capacidade es-
tar instalada de verdade, nós teoricamente somos CAPS III, nós devería-
mos ter que funcionar 24 horas por dia, com plantões noturnos, plantões
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

finais de semana, e enfim, a gente tá muito longe disso. Acho que o CAPS
tem que funcionar integralmente, para depois pensar em mudar alguma
coisa. (TNS 1)
Eu confesso que ainda não realizei o meu sonho de trabalhar em um
CAPS assim de maneira integral, tipo 40 horas, com uma remuneração
adequada. (TNS 6)

Este CAPS foi inicialmente inaugurado para funcionar como CAPS


III, na perspectiva de contribuir efetivamente para desconstruir o circuito
manicomial de Manaus. Mas, por motivos políticos regionais, não bem ex-
plícitos, esse funcionamento não teve êxito, passando a ser uma organização
com dois expedientes e administrada como um CAPS II. Condição que vem
colocar em evidência uma desconstrução parcial e contraditória do circuito
manicomial. Um exemplo é quando em determinados casos graves de adoe-
cimento, recorre-se à estrutura hospitalar manicomial para internar o paci-
ente, que retorna pós-alta acometido de mal-estar gerado pelo internato, por
ter experienciado situações constrangedoras e socialmente estigmatizantes,
dificultando seu processo de recuperação da saúde (VIEIRA FILHO, 2011).
Não se nota, nas transcrições acima, referência a movimentos ou
grupos sociais de pressão, com participação dos profissionais do CAPS, que
possam incidir para tentar modificar essa situação política. Percebe-se um
sentimento de frustração pelo que está ocorrendo e uma afirmação de um
dever ser moral sobre como o serviço “tem que funcionar”. A possibilidade
de mudança é percebida como “fora” do eixo da própria dinâmica da equipe
e deslocada para uma espera hipotética de que algum grupo político no poder
possa reverter essa situação.

Hoje eu mudaria um pouco a rotina do atendimento que acontece aqui no


CAPS. Mudaria um pouco de como a equipe tá trabalhando hoje, a gente
precisaria novamente um espaço para estar reunindo, estar conversando,
garantir isso dentro do nosso cronograma de atividade diária. Isso eu
mudaria. (TNS 3)
Os investimentos foram poucos, agente trabalha com essa dificuldade
toda, nós não temos plantão aqui, muitos casos que atendemos aqui, ca-
sos que extrapolam a nossa capacidade técnica naquele momento, neces-
sitam voltar para internação no Hospital Psiquiátrico. (TNS 6)

A possibilidade de mudança se orienta no sentido de modificação


da rotina interna dos atendimentos para se acomodar à frustração de não
trabalhar em um CAPS III. Percebe-se que teria havido, no começo inaugu-
ral, um espaço para reuniões de equipe, conversas informais. Subentende-se
que não estaria havendo esse espaço (reuniões da equipe terapêutica quase
490 Luciana Oliveira Lopes e Nilson Gomes Vieira Filho

não existiam no cotidiano). Há um desejo do profissional (TNS3) de recupe-


ração destes espaços e (re)inseri-los no cronograma de atividades diárias.

Os investimentos foram poucos, agente trabalha com essa dificuldade


toda, nós não temos plantão aqui, muitos casos que atendemos aqui, ca-
sos que extrapolam a nossa capacidade técnica naquele momento, neces-
sitam voltar para internação no Hospital Psiquiátrico. (TNS 6)

Nesse contexto de acomodação ao funcionamento de um CAPS III,


o profissional (TNS6) entende que foram poucos os investimentos para me-
lhoria do serviço, sem que descreva detalhes, apenas afirma que essa situa-
ção é uma dificuldade para o trabalho da equipe. Mas sinaliza a falta de
plantão e que há casos clínicos que extrapolam os limites da capacidade téc-
nica do profissional, por isso são (re)encaminhados ao hospital psiquiátrico.
Essa situação complexa pode ser decorrente da obstrução da organização
CAPS III e a consequente indução de mecanismos manicomiais no circuito
da rede de instituições de saúde mental.

3.2 Um Grupo ‘sem quase’ Reunião de Equipe Terapêutica


Interdisciplinar

Há algum tempo a gente teve mais interdisciplinaridade, hoje em dia eu


vejo que é tanto serviço para tanta gente aqui que cada um está no seu
espaço, cara. A gente tá, são ilhas, uma ilha aqui, outra ali. A gente se
esforça. (TNS 6)
Eu acho que não é muito interdisciplinar. Acho que a gente já foi mais, o
pessoal da psicologia conversa mais, o serviço social... acho que hoje in-
terdisciplinar não acontece, percebo as áreas do saber ainda fragmenta-
das. É difícil manter essa prática. A gente recorre a ela mais nos mo-
mentos em que o usuário requer. Acho que a gente é mais multidiscipli-
nar. (TNS 3)

Diretrizes ministeriais estabelecem para o CAPS uma equipe mul-


tiprofissional que deve trabalhar numa orientação interdisciplinar. Esta ori-
entação não estaria acontecendo tal e qual na prática (TNS 6), mas teria sido
tentada, sem sucesso, no período inaugural, restando o trabalho mais multi-
disciplinar como prática habitual. Cada profissional se instala em uma sala
conforme a sua disciplina, formando um conjunto de ‘ilhas’, ou áreas corpo-
rativas de saberes e poderes fragmentados, tentando evitar conflitos entre si.
Contudo, o profissional (TNS3) diz que haveria a possibilidade de reunião
interdisciplinar da equipe terapêutica, em casos excepcionais, quando se trata
de problemática requerida pela situação de saúde do usuário.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Parece que desgastou-se ao longo do tempo. Isso (a prática interdiscipli-


nar) foi colocada em um plano inferior digamos assim, quando eu acho
que é um momento brilhante para a gente procurar enfim definir as prio-
ridades com o nosso paciente e avaliar melhor, juntar o que todo mundo
está fazendo. (TNS 1)

O profissional (TNS1) percebe que a interdisciplinaridade “des-


gastou-se” com o passar do tempo, sem explicitar como se deu esse desgaste,
apenas sublinha que foi colocada em um “plano inferior” na organização.
Aparece implícito que essa estratégia da equipe não teria sido positiva. Con-
sidera que seria ilustre para a equipe buscar reverter essa lógica. Finalmente,
procurar definir as prioridades da equipe terapêutica com o “nosso” paciente,
unir os fazeres de todo mundo e “avaliar melhor” essa situação.

Acho que o trabalho interdisciplinar ajuda, quer dizer tenho certeza que
ajuda. Ajuda com certeza, porque aí você deixa de ter só aquela visão
médica, só a visão do medicamento, só a visão do psicólogo. Acho que
você procura conhecer um pouco mais de todas as áreas para poder estar
ajudando mais de perto o usuário e procurando dar a ele o melhor mes-
mo do que você tem como profissional. (TNS 3)

O profissional (TNS 3) entende a positividade do trabalho interdisci-


plinar, enfatizando uma relação de saberes/interpretações mais equitativa entre
os profissionais terapeutas, onde não se coloca como hegemônica a visão médi-
ca e psicológica sobre a saúde do paciente. Destaca que a essa partilha igualitá-
ria de saberes como importante para ajudar com maior aproximação o usuário e
introduz o sentido da dádiva do profissional (Martins, 2011) para com ele.
Observou-se que alguns entrevistados seriam reticentes em relação
ao trabalho interdisciplinar, pois entendem que este envolve ações que pode-
riam não ser consideradas específicas da sua área de formação. Acrescente-
se ainda que a gestão de governo regional não demonstra valorizar a inter-
disciplinaridade quando da avaliação administrativa, pois redige relatórios
que fragmentam a produção do trabalho terapêutico, facilitando algumas
justificativas, por exemplo: “isso é desvio de função”, “mas se todo mundo
faz terapia, o que o psicólogo faz?”, “porque você tem que ver o passe livre
do usuário, se você não é assistente social?”.

3.3 Algumas Dificuldades na Comunicação em Equipe nos


Atendimentos ao Usuário
E dentro da equipe a gente tem algumas dificuldades de comunicação,
mas mesmo assim a gente consegue funcionar como equipe, não como
492 Luciana Oliveira Lopes e Nilson Gomes Vieira Filho

deveria, não como seria o ideal. Mas eu sinto que a equipe tem essa pre-
disposição assim, essa visão de equipe. (TNS 3)
Como positivo destaco a questão das boas relações que nós temos, o res-
peito que todos nós temos uns com os outros, e com os pacientes também
né. O que é fundamental, porque somos servidores públicos e o nosso
trabalho é direcionado para essas pessoas, então a gente consegue ter um
momento de interação com outros profissionais, mas essa parte de fato tá
carente, nota-se uma carência. (TNS 1)

Mesmo não havendo praticamente reuniões de discussão clínico-


institucional no CAPS a equipe multiprofissional é percebida (TNS 3,1) em
funcionamento através das ‘boas relações’ entre seus membros, do respeito
mútuo entre eles, entre eles e os pacientes, da imagem idealizada de um
agregado de pessoas/técnicos que se relacionam bem entre si, de interações
com profissionais servidores de outras instituições, apesar de ser destacado
que no real há carência destas interações. Entretanto, algumas dificuldades
de comunicação nessas relações foram anunciadas, mas não explícitas.
O que se observou mais particularmente foram dificuldades de se
conversar sobre os casos clínicos em atendimento que necessitavam de um
trabalho em conexão efetiva entre os membros da equipe. Haveria talvez
uma tendência em investir nas ‘boas relações’ para compensar a ausência
frequente de reuniões da equipe terapêutica. Essa ausência pode ser também
entendida como um acordo tácito para ‘driblar’ e/ou evitar possíveis confli-
tos, pois deste modo os profissionais se esquivam de verbalizar suas opini-
ões, questionamentos, controvérsias. Esse provável acordo tácito, implícito,
pode deslocar esses conflitos do âmbito da coletividade para a esfera do in-
terpessoal, induzindo e/ou estimulando sentimentos de culpa, rejeição, injus-
tiça etc., susceptíveis de produzir sobrecarga de trabalho para o profissional.

3.4 Lacunas no Referencial Teórico e Repercussões nas


Estratégias de Cuidados
O referencial teórico nos ajuda a nos relacionar com os usuários, e isso
foi importante, e isso eu aprendi no CAPS, e com a equipe daqui. Aliás,
isso foi um aprendizado gradual, e também não basta ser, ter, só boas
intenções para trabalhar no CAPS, é um trabalho diferente, com certeza,
é um trabalho que muda a gente, pra respeitar o indivíduo, saber o me-
lhor momento, e interagir com ele independente da patologia do diagnós-
tico que ele tem isso é interessante. (TNS 4)

O referencial teórico enquanto tal não aparece acima explícito, diz


apenas que o aprendeu gradualmente com a equipe do CAPS e que esse aju-
da a se relacionar com os usuários. O profissional (TNS 4) entende que se
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

trata de um trabalho de cuidados em saúde mental diferente do tradicional,


que produz mudança na pessoa/profissional e requer modificações no relaci-
onamento com o usuário, cujas características seriam: respeito mútuo, comu-
nicação com ele respeitando seu momento subjetivo, agir de modo interativo
independente da patologia que ele apresenta.

O CAPS se utiliza de várias estratégias terapêuticas. No começo foi difí-


cil para a equipe e até para os usuários também, porque é totalmente di-
ferente do que todo mundo estava acostumado. Eu acho que aí que está a
maior dificuldade. (TNS 5)
Eu sei que tem um referencial teórico que sempre está lá, e que não dá
para levar isso adiante sem esse referencial teórico, mas nós temos cére-
bro, e tem miolo para construir uma prática, de uma maneira muito posi-
tiva sem que alguém venha de fora e fique querendo nos doutrinar. Acho
que a gente já tem uma capacidade muito boa. (TNS 5)

Para o profissional acima (TNS5) a maior dificuldade que se apre-


sentou no início desta “nova” prática foi a utilização de várias estratégias
terapêuticas às quais tanto os profissionais como os usuários tiveram que se
acostumar. Aparece ambígua a fala sobre o referencial que daria suporte a
essas estratégias; de um lado, este não estaria bem clarificado e de outro
deveria ser construído a partir da prática pelos próprios profissionais que
estão atuando. Mas, alguém de ‘fora’, não funcionário da instituição, ficou
querendo ‘doutrinar’ os profissionais do CAPS ao invés de oferecer uma
formação teórica e prática em coerência com o contexto amazônico, o que
parece ter causado uma reação de rejeição internamente.

Realizo algumas atividades que já são sistematizados, o acolhimento, o


grupo, agora fora aquelas atividades tem aquelas que você vem naquele dia
e não sabe que vai encontrar, são os atendimentos que não sabe que vão
acontecer, sem hora marcada, a convivência diária com os usuários e com
a equipe, que não são programadas, mas acontecem todos os dias. (TNS 3)
Quando se fala da prática eu acho que hoje ainda existem muitos pontos
a serem melhorados, mas acho que é fundamental a prática já realizada
de cuidado, escuta, e acolhimento a pessoa com transtorno. (TNS 2)

O profissional (TNS 3) entende que realiza atividades de cuidados


em saúde mental que são sistematizadas (p. ex. acolhimento, grupo) ou que
não são programadas (p. ex. atendimentos sem hora marcada, convivência
com os usuários e com a equipe nos espaços interativos do CAPS). Se o pro-
fissional (TNS 2) tem consciência que existem pontos a melhorar nessa prá-
tica ele não os explicita quais, ressalva que o quê é fundamental é a prática
de cuidado à pessoa com transtorno, com escuta e acolhimento.
494 Luciana Oliveira Lopes e Nilson Gomes Vieira Filho

3.5 O Terapeuta de Referência (TR): Contradições na


Construção do Projeto Terapêutico Individual (PTI)
Pode assumir o papel de Terapeuta de Referência (TR), em princí-
pio, qualquer um dos Técnicos de Nível Superior (TNS), mas o médico não
realiza essa função nessa instituição. Segundo alguns profissionais, o médico
tem suas atividades centradas no diagnóstico psiquiátrico, na prescrição me-
dicamentosa e no acompanhamento do tratamento ao transtorno mental. Essa
percepção valoriza a figura do médico, considerando-a hierarquicamente
dominante no tratamento, entrando em contradição com o modo de atenção
psicossocial onde é o TR que é o terapeuta principal do usuário.
O projeto terapêutico individual (PTI) do usuário é geralmente en-
tendido pela equipe como referência normativa operacional para o acolhi-
mento, criação de vínculos e de construção de estratégias terapêuticas de
acompanhamento com o usuário. Para a elaboração do PTI parece haver
também uma consciência da necessidade de coconstrução com outros profis-
sionais da equipe, mas o que predomina frequentemente são as atividades
definidas pelo TR, considerando geralmente o diagnóstico psiquiátrico do
médico. Na medida em que o trabalho interdisciplinar é quase inexistente, o
PTI aparece debilitado de sua força coletiva mesmo que o TR procure se
inserir como um mediador entre os outros profissionais e com as pessoas da
rede significativa do usuário.

O PTI seria a forma com que esse usuário seria atendido na unidade de
cuidado, quais seriam as atividades que iriam beneficiá-lo enquanto pes-
soa, dentro do seu adoecimento, dentro de suas necessidades. Porque na
verdade a instituição tem aquele roteiro, tem aquela atividade, mas como
o próprio nome diz individual é de acordo com a necessidade daquela
pessoa. E assim a gente sempre orienta, não só a consulta médica, a con-
sulta médica é também uma parte, mas tem também todos os outros aten-
dimentos que são importantes nesse contexto, então seria mais ou menos
um plano de cuidado com essa pessoa, voltada para ele, dentro do con-
texto da instituição. (TNS 2)
Nem sempre o PTI é elaborado nesse primeiro momento, às vezes a
gente precisa de uma avaliação, precisa de uma avaliação médica para
saber um pouco mais, e é a partir daí a gente elabora esse projeto.
(TNS 5)

O PTI é percebido (TNS 2) enquanto forma de ativismo terapêu-


tico no atendimento ao usuário e direcionado a unidade profissional (TR)
de cuidado em saúde mental do CAPS por intermédio da qual seriam esta-
belecidas as atividades que iriam beneficiá-lo, como pessoa, no âmbito de
seu adoecimento e necessidades. Se a instituição tem seu roteiro de ativi-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

dades, geralmente planejadas, essas atividades são individualizadas de


acordo com as necessidades de cada usuário. Seria aproximadamente um
‘plano de cuidado’ mais direcionado a pessoa/usuária e elaborado com ela.
Considera que a consulta médica é uma parte entre os outros atendimentos
que também são importantes nesse contexto. Mas o segundo profissional
(TNS 5) entende que esse PTI nem sempre é elaborado a partir do acolhi-
mento/recepção do paciente, pois, às vezes, necessita uma avaliação médi-
ca (psiquiátrica) para saber um pouco mais sobre o transtorno mental e a
partir desta elaborar esse projeto.

Entendo que o PTI seriam ações e intervenções específicas para cada in-
divíduo. Como cada um é um, as intervenções as ações são diferentes, de-
vem ser pensadas para aquela pessoa, naquele contexto de vida, planejar
ações e intervenções dentro desses contextos. Eles são elaborados dentro
do acolhimento, mas também ele é construído com a convivência do usu-
ário aqui. Você (o terapeuta) percebe ainda alguns outros aspectos que
não foram percebidos no acolhimento, quando você (o terapeuta) forma o
vínculo percebe outros aspectos. (TNS 3)
Então, uma coisa que eu noto, uma grande parte, eu não tenho uma esta-
tística para falar, mas uma grande parte dos pacientes não segue o bási-
co do projeto terapêutico inicial, vamos dizer assim, inicial, para a gente
ir conhecendo melhor, avaliar outras dificuldades, outras facetas da vida
do indivíduo. Os profissionais que fazem o acolhimento se encarregam de
fazer isso, mas eu não vejo adesão do usuários. (TNS 1)

O profissional (TNS1) entende o PTI sem a dimensão explicita de


‘projeto’, mas na perspectiva de um ativismo terapêutico referente a ações e
intervenções específicas pensadas para a pessoa/usuária e planejadas dentro
dos contextos de sua vida. Essas ações são elaboradas dentro do acolhimento
e também na convivência com o usuário no espaço interno do CAPS. No
acolhimento/recepção o terapeuta (TR) percebe os primeiros aspectos para
essas ações e uma vez o vínculo terapêutico estabelecido aparece outros as-
pectos. O segundo profissional (TNS1) acrescenta que nota que em muitos
dos pacientes em tratamento o projeto elaborado inicialmente vai se modifi-
cando na medida em que se conhece e se avalia outras facetas e dificuldades
da vida do indivíduo/usuário, e quanto a esse “projeto inicial” no acolhi-
mento, ele não observa a adesão do usuário.
Observou-se que para alguns profissionais da equipe essa ‘não ade-
são’ ao PTI é entendida como ‘desinteresse’ por parte do usuário, sem que
seja questionado o pouco diálogo com ele na construção continuada deste
projeto. A inclusão social não aparece geralmente como um aspecto rele-
vante na elaboração do PTI, consequência provável das ações de cuidados
496 Luciana Oliveira Lopes e Nilson Gomes Vieira Filho

mais centradas nos aspectos relacionais e medicamentosos, além de se limi-


tarem mais a intervenções dentro do espaço do CAPS, com pouco planeja-
mento para visitas domiciliares, conexões socioterapêuticas com centro de
convivência, cooperativa social (inexistente em saúde mental) etc.

3.6 Uma Prática de Cuidados com Limitadas Ações em Rede


de Apoio ao Usuário
A questão é cadê a rede? A gente se utiliza de algumas coisas que a gente
tem, por exemplo o Centro de Convivência. Tem alguns usuários que são
acompanhados por lá. Faz uma indicação, mas ir até o centro de convi-
vência, saber o que tem mesmo, a gente não consegue ainda. (TNS 2)
Uma rede fragilizada, não tem rede, são encaminhamentos, você não tem
contato com a instituição para saber como está, não existe a contrarrefe-
rência, então são encaminhamentos. Ele vai, muitas vezes a instituição
manda de volta, não é articulada Fica no encaminhamento, não tem refe-
rência e contrarreferência. (TNS 3)

O primeiro profissional (TNS2) questiona a própria existência des-


se trabalho em rede e dá um exemplo de encaminhamento a um Centro de
convivência onde não há conexões interativas entre ambas as instituições que
possa contribuir para os cuidados em rede da pessoa/usuária. Entendimento
semelhante do outro profissional (TNS3) que acrescenta que nesses encami-
nhamentos, às vezes, o usuário é aceito na instituição indicada, outras vezes
é re-encaminhado ao CAPS. Mas essa falta de articulação seria algo mais
estrutural ligada ao funcionamento geral das instituições de nossa sociedade,
visto que, não trabalham geralmente em rede, ao contrário, umas separadas
das outras, cujo risco para a pessoa/usuária é ser “olhada” e tratada por par-
tes, não integradas, em diferentes intervenções fragmentadas.

Eu não sei quantos profissionais que trabalham na Atenção Básica tem afi-
nidade com as coisas chamadas mentais. Eu não sei quantas equipes de sa-
úde têm coragem, têm humildade, respeito, para fazer uma abordagem
junto ao doente mental. Ir à equipe de saúde deveria ser o papel do CAPS,
ordenar a rede, tal, mas também eu não critico muito os colegas. Imagina,
digamos assim, o psicólogo tem um grupo lá, digamos de 15 pessoas para
atender, para desenvolver um trabalho que já tá planejando a um tempão,
tem coisas que não entrar na nossa agenda, na nossa rotina, não temos
uma programação para irmos naquele centro de saúde. (TNS 5)

O profissional (TNS 5) mostra que inexiste conexão em rede com a


atenção básica nos cuidados em saúde mental como preconiza as normas
ministeriais (matriciamento). Percebe essa situação como algo justificável na
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

rotina institucional e não questiona sobre a possibilidade de mudança na


área. Entende que seria o CAPS responsável a iniciar esse trabalho articulado
com a Saúde da Família, mas, sobretudo, como um dever moral para “orde-
nar a rede”. Entre o dever ser e a realidade da organização prefere não criti-
car muito os colegas. Justifica que no CAPS não existe na programação in-
terna da agenda de atividades de rotina esse tipo de atividade previamente
acordada com o Programa Saúde da Família (PSF). Subentende-se que have-
ria dificuldade em realizá-la. Segundo ele, os profissionais desse Programa
não teriam afinidade, humildade, respeito para uma abordagem junto com os
que ele chamou de ‘doentes mentais’.
Essa representação imaginária dos ‘doentes mentais’ projetada nos
profissionais do PSF não foi observada. Após visitas de estudo em um Posto-
PSF de referência para a área de abrangência territorial do CAPS, constatou-
se que esses profissionais já faziam atendimentos em saúde mental tanto de
pacientes do próprio CAPS quanto de outros serviços públicos que os enca-
minhavam. Foram muito receptivos e se mostraram motivados para um tra-
balho em rede com o CAPS, mas não houve receptividade da equipe deste
último serviço. Observou-se ainda que alguns membros da equipe entendem
que não é papel do CAPS acionar essa rede tendo em vista que o CAPS pro-
põe ser um facilitador da “autonomia” do usuário, e esse deveria por si só
encontrar seus caminhos na sociedade.

3.7 Cotidiano, Contradições da Organização e Sofrimento


no Trabalho
Quanto ao cotidiano, eu acho que o meu cotidiano como profissional
dentro da minha área, empobreceu. Os pacientes notam isso, pelo pouco
tempo que eles vem agora para um atendimento comigo. Eu fico preocu-
pado até quando eu vou conseguir, ter essa parte afetiva, ter, manter,
esse tipo de relação. Isso requer todo um envolvimento, o sistema pressi-
ona o profissional e aí a gente acaba fazendo um trabalho tão limitado,
tão curto, é perigoso. Acho perigoso porque necessitamos de tempo para
avaliar corretamente as situações, isso me preocupa. (TNS 4)

No cotidiano o profissional (TNS) percebe uma dicotomia entre o


envolvimento relacional afetivo desejado para o atendimento com os paci-
entes e a pressão do sistema organizacional que estaria lhe conduzindo a
fazer um trabalho terapêutico com limitações temporais (intervalo muito
curto) que não lhe permite avaliar corretamente as situações vividas nos
atendimentos. Essa dicotomia se mostra como dilema, com efeitos percebi-
dos pelos pacientes, causando-lhe frustração, sendo ainda sentido como um
trabalho profissional empobrecido, perigoso.
498 Luciana Oliveira Lopes e Nilson Gomes Vieira Filho

Então o meu papel hoje é bem menor do que eu gostaria de ter. eu gosta-
ria de interagir mais com os pacientes, eu gostaria de estar ali, outra ati-
vidade que não a de ficar só sentado atendendo. (TNS 1)
Acho que tem aquilo: o que deveria fazer, aquilo que a gente tenta fazer,
aquilo que a gente dá conta de fazer. A gente sabe da forma que deveria
funcionar, tem esse conhecimento, mas faz muito daquilo que dá para fa-
zer, a gente tem nossa rotina de atividade, que a gente procura seguir,
tenta resolver de que melhor forma pode acolher melhor o usuário, mas
sempre dentro de uma angustia muito grande, de estar fazendo o que con-
segue, mas de não é o que deveria, deveria fazer de outra forma, para que
a coisa desse certo. (TNS 3)

O que se faz habitualmente como atividade de cuidados em saú-


de mental é o que o profissional diz conseguir fazer nas limitações e frus-
trações no acolhimento ao usuário. Destaca “uma angústia muito grande”
(TNS 3) por não fazer o que o deveria moralmente praticar como terapeu-
ta. Experiência de sofrimento que aparece marcada pela decalagem entre
a percepção idealizada das tarefas primárias e a condição de impossibili-
dade em praticá-las como deveria. Sem recursos necessários para superar
essa situação individual e coletiva ele se confronta “com um sofrimento
intenso, inextricável, catastrófico” (Kaes et al., 1991, p. 38). Isso significa
que o modo de funcionamento institucional não estaria assegurando um
“sistema meta-defensível” (Kaes et al., 1991, p. 38) adequado para uma
articulação equilibrada entre os mecanismos de defesa do sujeito e da ins-
tituição.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se a perspectiva teórica para análise do material dessa pesquisa


participante é de fundamentação psicossocial, de característica multirrefe-
rencial (Barus-Michel et al., 1996), pode-se dizer que na medida em que os
sentidos/significados são apreendidos partindo da experiência vivida pela
pessoa, em seu mundo circundante (profissional), consciente e intencional, é
possível uma interlocução com a fenomenologia (Giorgi, 2010) que poderá
ser desenvolvida em outra publicação.
A compreensão das experiências vividas pelos profissionais na
prática de cuidados em saúde mental em um CAPS II, em Manaus, colocou
em evidência várias situações contraditórias e de sofrimento no trabalho.
Tentaremos, nessa parte final, esboçar algumas prováveis vias de superação,
ou brechas, para buscar possíveis saídas para a atual “crise” desse serviço
territorial que explicitamos nos parágrafos a seguir.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

O funcionamento efetivo do referido CAPS em CAPS III-adulto,


como foi previsto na fase inaugural, possibilitaria rearranjos estruturais na
organização de trabalho, bem como no conjunto da rede de serviços munici-
pal, dando condições concretas para se iniciar o fechamento definitivo do
hospital psiquiátrico. E, poderia também colaborar para uma ressimbolização
positiva e gradual da “ferida psíquica” produzida pela frustração persistente
dos profissionais entrevistados e pelas disfunções no modo de funciona-
mento da atenção psicossocial relativo ao processo de desinstitucionalização.
A prática de cuidados nesse suposto CAPS III deveria ser inteira-
mente reformulada no sentido de um trabalho cotidiano e efetivo de equipe
interdisciplinar articulado com a atenção básica (Saúde da Família) e a rede
de serviços relacionados às demandas de ajuda e/ou de assistência e/ou de
inserção social da clientela. Condições para um saber/fazer coletivo que su-
põe reuniões frequentes desta equipe, assembleias que contribuam para o
planejamento de cuidados conjunto com os usuários, e outras atividades em
rede de apoio com a comunidade em geral.
A educação permanente, inexistente atualmente, poderia ser im-
plantada em colaboração com instituições universitárias, coerentes com as
políticas publicas na área, não somente para suprir as lacunas do referencial
teórico e prático, mas também como possibilidade de coconstrução de um
saber/fazer mais voltado para a cidadania, inserção social e a liberdade das
pessoas ditas com “transtornos mentais”.

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9, n. 2, pp. 373-379.
Vieira Filho, N. G. (2011). Sofrimento e desinstitucionalização. Construindo redes de apoio
em saúde mental. Mal-estar e Subjetividade. Fortaleza, v. 11, n. 1, pp. 309-333.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

PSICOLOGIA E SAÚDE COLETIVA:


NOTAS PARA DEBATE
Wedna Cristina Marinho Galindo
Ana Lúcia Francisco

Sumário: 1. Introdução. 2. Breves Notas da Pré-História e História da


Psicologia. 3. Uma Psicologia para a Saúde Coletiva. 4. Con-
siderações Finais. 5. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Esse texto expõe reflexões sobre a relação da Psicologia com a Sa-


úde Coletiva na perspectiva de contribuir com o debate sobre a articulação
entre esses campos. Refletir sobre uma Psicologia para a saúde coletiva im-
plica em abordar criticamente o que a própria Psicologia tem para oferecer
ao campo da saúde coletiva cujas demandas têm surgido ao psicólogo, mais
sistematicamente, nas últimas décadas.
As notas reunidas neste texto buscam aproximações com a pers-
pectiva fenomenológica e hermenêutica do trabalho da Psicologia em insti-
tuições públicas de saúde. José Ricardo Ayres (2009, p. 86) associa a feno-
menologia hermenêutica às contribuições de Heidegger, lembrando que este
“convida a pensar o modo de ser dos humanos como uma contínua concep-
ção/realização de um projeto, a um só tempo determinado pelo contexto
onde estão imersos, antes e para além de suas consciências, e aberto à capa-
cidade de transcender essas contingências e, a partir delas e interagindo com
elas, reconstruí-las”.
Os esforços das ciências humanas têm sido dirigidos, de fato, à su-
peração de uma racionalidade instrumental implicada com um positivismo que
não dava conta de abordar adequadamente o ser humano, como objeto de aten-
ção. A própria concepção do que é humano, de como acessá-lo e compreendê-
lo, está intimamente relacionada com o desenvolvimento de construções teóri-
cas e metodológicas para o seu estudo. É nessa direção que Wilhelm Dilthey
(2002) argumentou em defesa de uma distinção entre ciências naturais e ciên-
cias do espírito, sendo a Psicologia incluída neste segundo bloco.
502 Wedna Cristina Marinho Galindo e Ana Lúcia Francisco

Destaca-se, nas construções teórico-metodológicas das ciências


humanas, o recurso à hermenêutica, que, de forma geral, pode ser concei-
tuada como interpretação e compreensão, mas que tem variações em sua
abordagem, como Teoria Hermenêutica; Filosofia Hermenêutica; Her-
menêutica Crítica. Aprofundamentos sobre esses aspectos podem ser fei-
tos pelo leitor interessado. Para o debate aqui proposto, pontua-se que

embora a questão central da filosofia hermenêutica como desenvolvida


por Gadamer, não tome como seu objeto de investigação a ação social,
em si mesma, parece claro que também faz parte dos fundamentos de sua
proposta filosófica um compromisso prático de transformação que gera a
necessidade de distanciamento crítico. (Ayres, 2009, p. 200)

Com essas observações, reiteramos o objetivo de reunir notas ao de-


bate sobre as relações entre Psicologia e Saúde Coletiva, a partir da concepção
de que um olhar atento para o fenômeno em foco é imprescindível para dele se
aproximar; e que a compreensão do que se passa na realidade (de tal fenôme-
no, isto é, a relação entre Psicologia e Saúde Coletiva) envolve disponibilidade
do profissional de saúde em reconhecer os usuários dos serviços, atores ativos,
implicados nos seus próprios processos de saúde-doença.
Uma visada para a posição da Psicologia no cenário brasileiro indica,
que desde os anos de 1970, críticas ao modelo de atenção convencional da psi-
cologia (atendimento individual em consultório particular) começaram a ser
feitas por alguns setores da sociedade e pelos próprios profissionais da área, que
reivindicavam uma Psicologia comprometida com classes sociais menos abas-
tadas. Isto é, criticava-se o modelo de atenção dirigido ao sujeito de classe mé-
dia, que não incluía outras realidades (Ferreira Neto, 2011; Vasconcelos, 2008).
Iniciativas de intervenção diferenciadas do modelo hegemônico da
clínica convencional foram feitas ainda no período da ditadura militar. É o
caso, por exemplo, das experiências realizadas no bojo das mobilizações
sociais em defesa da saúde como direito, cujo movimento sanitário é expo-
ente. Mobilizações no campo da saúde mental, reivindicando alternativas ao
modelo manicomial, também são significativas. Nesse quadro, destacam-se o
movimento pela reforma psiquiátrica e o de luta antimanicomial (Vasconce-
los, 2008; Minayo, 2001).
Na prática, acumulam-se experiências pontuais, de dimensão local.
Supõe-se que muitas dessas situações não ganham publicação em canais de
comunicação convencionais, como artigos e livros científicos. A dissociação
dos campos de produção de conhecimento e execução de ações é importante
questão a considerar, nesse contexto, que merece atenção em espaço especí-
fico, o que não é o objetivo discutir no corpo desse texto.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Em revisão da produção científica sobre a Psicologia na Saúde Pú-


blica, Mary Jane Spink, Vera Menegon, Estêvão Gamba e Milena Lisboa
(2010), identificaram o crescimento da produção a partir da década de 1980.
Para os autores, esse período coincide com a inserção de profissionais de
Psicologia nos serviços públicos de saúde, pela reorientação de políticas
públicas para área, que antecederam ao SUS.
A busca de artigos, a partir de descritores nas bases INDEX/Psi e
LILACS, identificou 48 publicações, cujos temas principais foram prática
profissional e saúde mental. Dos 48 artigos, apenas 27 tratavam de algum
modo, das formas de atuação do psicólogo. É importante registrar que “mais
da metade dos artigos voltados especificamente à Saúde Pública (56%) fez
menção aos aspectos éticos e políticos do sistema de saúde” (SPINK et. al.,
2010, p. 166. grifos dos autores). Na interpretação dos autores, essa produ-
ção mesmo sendo em pequena quantidade (N=27) expressa interessantes
questionamentos, dentre os quais, a possibilidade de ruptura com o ideário
individualista da Psicologia e a superação da cisão entre clínica e política.
Do trabalho de revisão da literatura científica no campo da Psico-
logia e Saúde Pública, Spink et al. (2010, pp. 171-172) concluem que

a produção da Psicologia que está em diálogo com a Saúde é vigorosa,


tende a crescer e, pelo menos em parte, está em consonância com os
princípios do SUS. Ou seja, embora não em sua totalidade, a Psicologia
parece estar participando como co-adjuvante nos esforços de fortaleci-
mento e cristalização de um sistema de atenção à Saúde passível de con-
frontar as desigualdades sociais do país.

Destaca-se, nessa revisão, o compromisso da Psicologia com o


fortalecimento do SUS, inclusive, a partir da revisão de questões que lhe são
marcantes, como o ideário individualista e a separação entre clínica e política.
No que se refere às demandas que o campo da saúde coletiva tem
feito à Psicologia, percebe-se que, desde o final dos anos de 1980, as políti-
cas públicas, de forma geral, e a saúde coletiva, têm contratado muitos pro-
fissionais, dentre eles, psicólogos. O início da construção de um Estado De-
mocrático, a Constituição de 1988 (Ferreira Neto, 2011) e a própria instituci-
onalização do Sistema Único de Saúde/SUS, em 1990, justificam essa aber-
tura de postos de trabalho nos serviços públicos.
A saúde coletiva no Brasil merece ser entendida como movimento
e campo; isto é, reúne reivindicações em defesa da saúde como direito uni-
versal, que têm ocupado a agenda brasileira, em especial, desde os anos de
1970 e, como campo científico, convive com os desafios de produção e de-
mocratização de conhecimentos (Bosi, 2012).
504 Wedna Cristina Marinho Galindo e Ana Lúcia Francisco

É importante ser feito um esclarecimento. Segue-se o posiciona-


mento de Mary Jane Spink e Gustavo Matta (2010), que apoiados em contri-
buições de Birman, Paim e Almeida Filho, defendem a saúde coletiva como
campo científico e de práticas, aberto à participação das ciências humanas,
em oposição à saúde pública. As categorias universalizantes da saúde públi-
ca, cuja implicação com o modelo biomédico em saúde vem desde o final do
século XVIII, são criticadas pelas ciências humanas que têm construído refe-
rências no campo da saúde coletiva. Assim, concorda-se que “a Psicologia
contribui retomando na Saúde a problemática do sujeito e, contanto que as
pesquisas e teorizações sejam definidas de forma crítica, contrapondo-se às
tendências universalizantes e biologizantes da Saúde Pública, enriquece o
campo da Saúde Coletiva”. (Spink & Matta, 2010, p. 42)
Com essa perspectiva, foram organizados dois tópicos. No primei-
ro, elementos da pré-história e da história da Psicologia são pontuados, com
o objetivo de consolidar o argumento da construção social da Psicologia;
essa condição exige que a Psicologia considere o sujeito e a intervenção co-
nectados à realidade, distanciando-se de perspectivas naturalizantes. No se-
gundo tópico, são sugeridos alguns elementos para qualificar a contribuição
da Psicologia à Saúde Coletiva. Os debates seguem em torno da postura do
profissional de Psicologia e de tecnologias de intervenção. As reflexões são
ilustradas com relato de fragmento de experiência com grupo de dependentes
químicos em um Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas
(Caps ad).
A motivação para abordar essa temática está relacionada à experi-
ência da primeira autora como psicóloga em serviços públicos de saúde. A
pesquisa de tese da primeira autora, em desenvolvimento, sob orientação da
segunda, cujo objeto é o aconselhamento em HIV/Aids em Pernambuco, tem
acrescentado elementos a este debate a partir de acesso à literatura científica
sobre os temas em tela e a própria rotina de formação e produção de conhe-
cimento, típica de um curso de doutorado.

2 BREVES NOTAS DA PRÉ-HISTÓRIA E HISTÓRIA DA


PSICOLOGIA

O surgimento da Psicologia como disciplina científica distinta de


outras afins, como a Sociologia, Antropologia e até mesmo a Biologia, me-
rece ser considerado por uma perspectiva crítica. Partilhando o mesmo ob-
jeto de estudo das disciplinas acima citadas, a Psicologia foi obrigada a dis-
cernir seu campo de conhecimento, num esforço de instituir um espaço espe-
cífico para seu desenvolvimento. Essa referência à história da Psicologia é
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

comumente abordada na formação de psicólogos. Segue-se a essa introdu-


ção, a abordagem de referenciais epistemológicos e o desenvolvimento de
perspectivas teóricas, como o behaviorismo, a gestalt, a psicanálise.
Essa história merece ser vista e contada de outro modo, no que
concerne ao que se pode chamar de pré-história da Psicologia, ou as condi-
ções de possibilidade de seu surgimento. Segundo Luís Cláudio Figueiredo e
Pedro Santí (2006), o psicológico como dimensão científica envolve duas
condições – a experiência clara de uma subjetividade privatizada e a experi-
ência da crise dessa subjetividade. A experiência de subjetividade privatiza-
da refere-se ao sentimento de que nossas experiências são íntimas, de que
ninguém tem acesso a elas. Isso se estende a alguns valores: manutenção da
privacidade, desejo de liberdade para decidir o próprio destino, buscar origi-
nalidade, sentimentos de que nossa vida é única.
A descrição do que somos, enquanto ser humano, entretanto, não é
universal e atemporal. “Essa experiência de sermos capazes de decisões,
sentimentos, emoções privados só se desenvolve, se aprofunda e se difunde
amplamente numa sociedade com determinadas características” (Figueiredo
& Santí, 2006, p. 19).
A construção histórica da subjetividade privatizada é aqui apresenta-
da pontualmente, diante de nosso objetivo de argumentar que a Psicologia se
constitui como campo de conhecimento e intervenção, num tempo e espaço
determinados. Isto é, trata-se de uma construção sócio-histórica tanto do cam-
po científico, quanto de seu objeto de estudo. Conforme indicam Figueiredo e
Santí (2006), a noção de subjetividade com a qual convivemos na atualidade,
vem de mais ou menos três séculos, da passagem do Renascimento para a
Idade Moderna. E no final do século XIX dá-se a crise dessa subjetividade.
Tomam-se alguns marcos dessa longa história1. A experiência da
subjetividade privatizada se aprofunda e se universaliza com a constituição
do sistema mercantil, marcado pelas trocas comerciais que substituem a anti-
ga produção coletiva, comum no sistema feudal. “Quando o mercado toma
conta de todas as relações humanas (…) universaliza-se a experiência de que
os interesses de cada produtor são para ele mais importantes do que os inte-
resses da sociedade como um todo e assim deve ser”. (Figueiredo & Santí,
2006, p. 41) Eis a experiência da individualização e a desvalorização da co-
letividade, em curso.
Na cultura ocidental dos séculos XVIII e XIX, duas formas de pen-
samento refletem a experiência de subjetividade privatizada: a ideologia

1
Para aprofundamento, ver Figueiredo e Santí, 2006.
506 Wedna Cristina Marinho Galindo e Ana Lúcia Francisco

liberal iluminista e a ideologia romântica. A ideologia liberal expressa valo-


res da revolução francesa, de que os homens são iguais em direitos, são li-
vres e fraternos entre si. O romantismo, que ganha força no início do século
XIX, caracteriza-se por proclamar a diferença entre os indivíduos, defender a
liberdade de ser diferente.
Ora, em ambas as ideologias expressam-se problemas da experiên-
cia da subjetividade privatizada. As próprias características do sistema de
produção capitalista põem em destaque as incongruências das ideologias
liberal e romântica. Enfim, para o liberalismo, todos são iguais, mas têm
interesses próprios; para o romantismo, cada um é diferente, único, mas é
instado a consumir produtos iguais.
Assim, “quando os homens passam pelas experiências de uma
subjetividade privatizada e ao mesmo tempo percebem que não são tão livres
e tão singulares quanto imaginavam, ficam perplexos” (Figueiredo & Santí,
2006, p. 48-49). Eis o mal-estar que justifica o surgimento de uma psicologia
científica. E esse campo de conhecimento e intervenção surge no bojo do
desenvolvimento do Regime Disciplinar ou Ideologia Disciplinar.
As disciplinas envolvem a elaboração e aplicação de técnicas cien-
tíficas de controle social e individual. Assim, reduzem

o campo de exercício das subjetividades privatizadas, impondo pa-


drões e controles muito fortes às condutas, à imaginação, aos senti-
mentos, aos desejos e às emoções individuais, faz parte de seu modo de
funcionamento dissimular-se, esconder-se, deixando-nos crer que so-
mos cada vez mais livres, profundos e singulares. (Figueiredo & Santí,
2006, p. 46)

No desenvolvimento, propriamente dito, da Psicologia como ciência,


merece atenção a pluralidade de objetos de estudo que esta disciplina toma
para si. A cada esforço de aproximação do que é o ser humano, uma tendência
teórica distinta postula um objeto específico. A esse movimento, Kleber Prado
Filho e Simone Martins (2007, p. 15) chamam de “dança dos objetos”, e se
referem ao período que vai desde o final do século XIX e ao longo do século
XX, marcado pelo “surgimento de várias psicologias concorrentes entre si,
denotando não uma unidade, nem linearidade, mas sim, diversidade e diver-
gência de abordagem dos fenômenos psicológicos”. É assim que temos assisti-
do à diversidade dos objetos das psicologias: mente, fragmento psíquico, com-
portamento, percepções, corpo, discurso, relações, subjetividade. Para os auto-
res, desde o final do século XX, a subjetividade tem assumido o status de ob-
jeto, por excelência, da Psicologia. Nunca é demais lembrar que por nossa
condição de disciplina indisciplinada, isto é, tendo a diversidade como marca,
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

há todo um debate em torno da subjetividade e concepções concorrentes desse


fenômeno. Essa discussão escapa do objetivo deste texto.
Recorta-se da contribuição dos autores, que indicam inspiração nos
trabalhos de Michel Foucault, a sua concepção de que “a subjetividade se pro-
duz na relação das forças que atravessam o sujeito no movimento, no ponto de
encontro das práticas de objetivação pelo saber/poder com os modos de subje-
tivação: formas de reconhecimento de si mesmo como sujeito da norma, de um
preceito, de uma estética de si”. (Prado Filho & Martins, 2007, p. 17)
Assim, focalizada pontualmente a consolidação da subjetividade
como objeto de estudo da psicologia, passe-se agora a reunir notas sobre os
campos de saber considerados indispensáveis para postular encontros possí-
veis entre a Psicologia e a Saúde Coletiva. Trata-se da Psicologia Clínica e
da Psicologia Social.
Na história da Psicologia temos feito uma separação “artificiosa”
entre a psicologia clínica e a psicologia social, tanto na formação de profissi-
onais quanto nas intervenções (Ferreira Neto, 2008). As relações entre esses
dois campos têm sido marcadas por uma “indisposição recíproca” e as tenta-
tivas mais promissoras, no Brasil, vêm do campo da saúde mental, que com a
proposta de atenção psicossocial, tem feito alguns deslocamentos na “atua-
ção de atenção eminentemente clínica, para desenvolver ações grupais e
institucionais” (Ferreira Neto, 2008, p. 63).
Jaqueline Barus-Michel (2004) propõe uma Psicologia Social Clí-
nica (PSC) como área de conhecimento e intervenção, que trazemos ao de-
bate como importante contribuição para se considerar os encontros possíveis
entre Psicologia e Saúde Coletiva. Diferente da Psicologia Social, a PSC
assume o objetivo de compreender as “dinâmicas subjetivas das coletivida-
des”, tendo como objeto o “sujeito social” e não os fenômenos psíquicos que
surgem em situação social.
Ao considerar a história da Psicologia Social, Barus-Michel (2004)
faz interessante análise do desenvolvimento de ideias nesse campo de conhe-
cimento, destacando que se desenvolveu numa dupla problemática – uma
pragmática e uma teórica. Ambas apresentam contribuições importantes para
o desenvolvimento da psicologia social, mas cada uma delas com suas fragi-
lidades.
Assim, a corrente pragmática da psicologia social dedicou-se ao
desenvolvimento de questões práticas, de estratégias de intervenção. Nesse
campo destacam-se as contribuições de Moreno, K. Lewin, C. Rogers, por
exemplo. Ainda que trazendo contribuições importantes para a atuação junto
a grupos, essa perspectiva esbarra na complexidade dos fenômenos estuda-
508 Wedna Cristina Marinho Galindo e Ana Lúcia Francisco

dos, já que explica alguns fatores do social, mas não consegue desenvolver
uma análise que integre e articule os diferentes níveis da realidade social.
A corrente teórica, que Barus-Michel (2004) associa ao desenvol-
vimento da Psicologia Social, investiu na compreensão de fenômenos sociais
extensivos, como a produção de bens, a cultura, a guerra, a religião. São
teóricos expoentes dessas formulações S. Freud e K. Marx, além de seus
seguidores. Da contribuição do pensamento marxista, a autora destaca a ideia
de que “o ser humano é social” (Barus-Michel, 2004, p. 27), distanciando-o
de uma pretensa natureza humana, de um psicológico que o definiria.
Das contribuições da psicanálise, a autora faz uma advertência e al-
guns destaques. Adverte que se o profissional intervier, considerando apenas o
inconsciente, corre o risco de tomar para si o poder e, assim, passar “ao largo
da clínica, o que talvez, seja para a psicologia social, a herança essencial da
psicanálise” (Barus-Michel, 2004, p. 40). Quanto aos destaques, pontua: a) o
conceito de transferência, cuja contribuição se estende para todas as ciências
humanas, já que sendo o ser humano o objeto de observação/intervenção, o
que se obtém é sempre da ordem da relação; b) a nova noção de objeto de
estudo/intervenção como sujeito, isto é, aquele que fala, deseja, muda, dife-
rente de um objeto estático, manipulável pelos rigores da ciência; c) o disposi-
tivo do tratamento proposto por Freud, que põe em destaque, para análise, a
relação inconsciente, fantasmática, pela abordagem da transferência.
Essas breves notas da história da Psicologia ilustram o argumento
de que o surgimento e desenvolvimento dessa disciplina estão diretamente
relacionados ao cenário sócio-histórico no qual se dão as suas formulações.
Essa perspectiva distancia-se, portanto, de qualquer tentativa de encontrar a
verdade sobre o ser humano. Construções sociais em torno do ser humano é
que dizem desse objeto de estudo. Assim, considera-se pertinente pensar a
Psicologia distanciada de referenciais positivistas, essencialistas, racionalis-
tas sobre o ser humano.

3 UMA PSICOLOGIA PARA A SAÚDE COLETIVA

Os elementos reunidos acima sobre a pré-história e a história da


Psicologia convidam ao interessante desafio de se pensar o que a Psicologia
tem a contribuir com a saúde coletiva nos moldes como o Sistema Único de
Saúde/SUS está formatado no Brasil. A última década do século XX, no
país, foi cenário da institucionalização do SUS. Desde então, a Psicologia
tem sido provocada a contribuir com a consolidação desse Sistema.
Apresentam-se pontualmente, a partir da literatura científica em
torno dos temas abordados, proposições para uma Psicologia que responda às
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

demandas da saúde coletiva e esteja implicada com o fortalecimento do SUS.


Os esforços são em dialogar com a perspectiva de que a Psicologia supere
suas próprias limitações, construídas ao longo da história. Intenta-se pensar a
Psicologia a partir de perspectiva crítica, considerando as aproximações com
o político. Tais esforços conectam-se àqueles compromissos identificados
por Spink et al. (2010) de superar o ideário individualista da Psicologia, e
aproximar a dimensão clínica da política. Em que pese a complexidade do
debate em tela e os diversos aspectos envolvidos na questão, foram reunidas,
neste texto, proposições em torno de dois elementos: o contexto social mais
amplo e a relação profissional de saúde-usuário. Fragmento de experiência
da primeira autora na facilitação de grupos em um Caps ad ilustra o debate.
Sendo o SUS constituído a partir de mobilizações e disputas políti-
cas, é importante lembrar que esse cenário está em contínuo movimento e
transformação. São interesses distintos que lutam, entre si, num campo de
forças em disputa.
Na história recente do Brasil, a implantação de políticas sociais univer-
sais mais efetivas e de qualidade e [sic] de atenção psicossocial só se
vem dando com enorme esforço das forças políticas de cunho democráti-
co-popular, em um enfrentamento direto com a tendência hegemônica ne-
oliberal de sucateamento das políticas públicas em geral. (Vasconcelos,
2008, p. 54)

Ao profissional de Psicologia cabe se inteirar do contexto social


mais amplo no qual são tomadas decisões políticas, de investimento econô-
mico, enfim, de planejamento das políticas de saúde. Compreender o que se
passa nesse campo de forças em disputa é importante para qualificar a postu-
ra profissional. Entender os contextos contribuirá para esclarecer sobre as
demandas formuladas à Psicologia e sobre as alternativas de resposta a essas
demandas, caso não concordemos com o que seja preconizado para nosso
campo de trabalho.
É importante que o profissional de saúde comprometa-se, de fato,
por sua prática, em consolidar e fortalecer o SUS, dada a implicação desse
sistema com o respeito aos direitos humanos e o enfrentamento de desi-
gualdades sociais. Tal tarefa não é tão simples, inclusive, considerando o
“consenso entre os estudiosos de que o âmago das contradições do SUS (…)
se centra no descompasso entre sua proposta de uma política pública univer-
salizante e os projetos neoliberais de reforma do Estado que foram reiterados
a toda América Latina, buscando desonerar o setor público e focalizar sua
atuação (Minayo, 2001, pp. 33-34).
O lugar que se defende para o profissional de psicologia, portanto,
distancia-se das perspectivas de intervenção meramente racional, técnica. É
510 Wedna Cristina Marinho Galindo e Ana Lúcia Francisco

imprescindível ao profissional identificar, compreender os diversos vetores


presentes no campo de atuação (éticos, ideológicos, emocionais, inconscientes,
dentre outros) para, enfim, construir posicionamento produtivo de seu traba-
lho. É da ordem de um paradoxo (Barus-Michel, 2001) o desafio de muitas
intervenções a que o profissional é convocado. Quem demanda a intervenção
geralmente espera eficiência do profissional, que precisa na relação com as
pessoas/grupos, proporcionar a estes, a busca/construção de sentidos para sua
prática, condição para que os sujeitos acessem os significados de suas ações.
O aparente desconforto desse lugar, a que é convocado a ocupar o
profissional, pode ser minimizado ao compartilhar uma concepção do social
e de sujeito, não naturalizada, não previsível, que não se defina a priori a
partir de pressupostos e “verdades” consolidadas. Tanto o social (realidade)
como o sujeito são construções cujos contornos se dão no/a partir do campo
de forças do contexto em questão.
No que se refere ao social tomemos contribuições de Ernesto La-
clau (1996), que defende uma concepção radicalmente política para se consi-
derar a realidade social. Esta, concebida como um vazio, nomeado de inde-
cidibilidade estrutural, será preenchida por conexões entre os elementos dis-
poníveis no campo discursivo do debate político. Tais conexões são contin-
gentes e não previsíveis a priori. É o que parece ter ocorrido na história re-
cente do Brasil que, segundo diagnóstico de Vasconcelos (2008), apresenta-
do no início desse item, forças democrático-populares conseguiram superar
as forças neoliberais hegemônicas e instituir políticas públicas universais,
como as de saúde. O campo de disputas, nessa perspectiva, é valorizado
como realidade de onde emergem as decisões e, portanto, são formatadas as
políticas públicas.
De acordo com essa lógica, os sujeitos são agentes ativos na cons-
trução de sentidos para a realidade. Assim, é conveniente falar em constru-
ção de subjetividades, em modos de subjetivação, engendrados na/pela reali-
dade, em oposição a uma identidade, uma interioridade do sujeito, uma indi-
vidualidade. O sujeito descentrado, também “vazio de sentidos a priori”, tal
como a realidade, é o que define o sujeito político que, num campo aberto de
disputas, articula-se com outros, em torno de valores, concepções, que com-
partilhados, tentam se impor no campo político de disputas.
Aproxima-se essa perspectiva das formulações de Michel Foucault
(2006; 2007) de que o que define o sujeito é construído no jogo de forças da
história das verdades sobre ele. Por isso as relações de saber/poder são es-
tratégicas para se compreender sobre os modos de subjetivação. Assim, ex-
clui-se da compreensão do sujeito, qualquer tentativa de um organizador
transcendente (Ferreira Neto, 2004), que ouse propor-lhe definições a priori.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

A postura esperada do profissional de Psicologia, de acordo com


essas ideias, é a de mediador, de facilitador de processos, cujo protagonismo
é dos sujeitos envolvidos. No caso do trabalho em serviços públicos de saú-
de, a relação com os usuários merece atenção específica.
A concepção de que as políticas públicas em saúde envolvem defi-
nições de caráter macrossociais (como as definições em torno de aportes
financeiros), que estão em relação com questões microssociais, como os que
envolvem a relação do profissional com o usuário da saúde, conduzem a
discutir alguns aspectos. Não cabe, por exemplo, nesse contexto, ao profissi-
onal de Psicologia, utilizar-se de dispositivos com os quais foi orientado a
lidar nas relações com sua clientela, típicos de um contrato de um indivíduo
com um profissional liberal, como o que se faz num consultório particular.
De fato, o deslocamento da condição de profissional liberal para a
de trabalhador social no campo das políticas públicas, vem sendo feito pelo
profissional de Psicologia, desde o final dos anos de 1980, tanto na formação
quanto na atuação, ainda que tenha um “caráter de tendência emergente”
(Ferreira Neto, 2011, p. 25). Isso significa dizer que a clínica privada ainda é
uma área de forte atuação dos profissionais de Psicologia, mesmo com o
incremento de assalariados no setor público.
Ao integrar a rede de profissionais dos serviços públicos de saúde,
o psicólogo precisa inscrever seu trabalho no campo específico da saúde
coletiva, distanciando-se da prática liberal da profissão. Assim, os procedi-
mentos junto aos usuários dos serviços de saúde precisam considerar aspec-
tos do contexto social mais amplo. No que se refere ao contato do profissio-
nal com o usuário, propriamente dito, pontuam-se alguns elementos.
Contribuições de Emerson Merhy (2009; 2007) são muito estrutura-
doras da prática da Psicologia na Saúde Coletiva, se bem que o autor se refere
a qualquer profissional de saúde, não exclusivamente psicólogos. Merhy
(2009, p. 283) defende a construção de um “modelo tecnoassistencial centrado
no usuário” em oposição ao modelo biomédico, com a perspectiva de construir
relações solidárias entre trabalhadores da saúde e usuários. Segundo o autor, o
trabalho em saúde, semelhante ao trabalho em educação, é produção não mate-
rial. Trata-se do que ele chama de “trabalho vivo em ato”, isto é, que se faz, no
momento mesmo em que está acontecendo o encontro entre trabalhador e usu-
ário. Para esse tipo de trabalho, o autor defende o uso de tecnologias leves,
como o acolhimento, o olhar, a atenção, a escuta, enfim, tecnologias de rela-
ção, de encontros entre subjetividades. Tais tecnologias diferenciam-se das
duras (equipamentos) e das leves-duras (saber estruturado).
Com foco na relação trabalhador-usuário, a intervenção ocorre no
espaço intercessor (Merhy, 2009, p. 286). Com o termo tomado de G. Deleuze,
512 Wedna Cristina Marinho Galindo e Ana Lúcia Francisco

Merhy define “intercessor [como] o encontro ‘entre’ que em si é um aconte-


cimento produtivo, disparador de novos processos de subjetivação”.
Conforme diagnóstico anunciado por Merhy (2009, p. 288),
“nos modelos tecnoassistenciais predominantes hoje na saúde, no Brasil, as
relações entre usuários dos serviços de saúde e trabalhadores se produzem
em espaços intercessores preenchidos pela ‘voz’ do trabalhador e pela ‘mu-
dez’ do usuário, como se o processo de relação trabalhador-usuário fosse
mais do tipo da ‘interseção objetal’”.
Na avaliação do autor, é o tipo de intercessão partilhada que se
apresenta como produtiva na intervenção em saúde. Nela, trabalhador e usu-
ário relacionam-se num campo aberto para o que ocorre na relação, como
atores implicados no processo. É considerando essa dinâmica na rotina do
trabalho em saúde, que se pode compreender o tipo de relação que se esta-
belece. Para Merhy (2009, p. 290), um espaço de interseção partilhada sem-
pre será acolhedor de ruídos, isto é, de forças instituintes dos processos em
curso. “A possibilidade de escutar os ruídos do cotidiano institucional é parte
de ferramentas analisadoras dos processos institucionais e pode permitir a
reconstrução de novos modos de gerir e operar o trabalho em saúde”.
É importante abordar a questão das intervenções grupais, coletivas,
já que essa demanda é presente na saúde coletiva. Pela crítica ao modelo
hegemônico de clínica liberal, em Psicologia (Ferreira Neto, 2004), histori-
camente, temos construído interessantes experiências no trabalho com gru-
pos, nomeadas de intervenções psicossociais (Vasconcelos, 2008). Assim,
com inspiração na metodologia operativa de Pichon-Rivière (1998a; 1998b),
sugere-se que a prática com grupos atenda às concepções já apontadas ante-
riormente, seja no que se refere à construção da realidade e da subjetividade,
seja no que diz respeito ao produtivo espaço intercessor entre profissional e
usuários, na perspectiva da promoção de saúde. O grupo define-se por tomar
para si uma tarefa (meta, objetivo), por reunir as pessoas em torno dele e, por
essas pessoas se reconhecerem interligadas por tal tarefa (Alonso, 2006).
A realização da tarefa, como atividade objetiva, concreta do grupo,
está implicada com outra atividade, com a própria formação do grupo, tarefa
esta subjetiva, que envolve tensões, conflitos, enfim, a abordagem das rela-
ções entre participantes. Três etapas compõem o trabalho grupal: a pré-
tarefa, a tarefa e o projeto. Na pré-tarefa, o grupo experimenta movimentos
de resistência à execução da tarefa, que, geralmente, sinalizam para os des-
confortos decorrentes da convivência entre participantes, de temores que tal
realidade impõe. É por não se conhecerem (pelo menos diante da tarefa em
questão) que os participantes podem se inquietar e expressar sentimentos
como medo de não ser aceito, medo de perder suas referências pessoais,
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

dentre outros. O curioso é que no momento da pré-tarefa, o grupo geralmente


não consegue dar conta de ações para a realização da tarefa, propriamente
dita. Mas, conseguindo passar bem por esse momento, os participantes avan-
çam para a realização da tarefa, graças à percepção de diferenças entre eles e
identificação de habilidades específicas de cada um. Então, é o sentimento de
não plenitude que colabora neste momento, para que o grupo execute seu
objetivo. Alcançando essa etapa, o grupo consegue vivenciar o momento do
projeto, isto é, situação em que o facilitador é dispensável, em que o grupo
constrói para si novas metas; que desenvolve maturidade para vivenciar no-
vos processos (Pereira, 2001; Pichon-Rivière, 1998a).
A postura do profissional nesse processo é importante, no sentido
de colaborar para que o grupo vivencie cada momento e avance. Quanto
mais posicionar-se como facilitador do grupo, mais contribuirá para sua con-
solidação e realização de objetivos. Caracteriza o clima grupal, nessa pers-
pectiva, a abertura de canais de comunicação, o respeito a todas as expres-
sões, relações marcadas pela horizontalidade, tanto entre o grupo e o facilita-
dor, quanto entre participantes.
Este debate é aqui ilustrado com um fragmento de experiência da
primeira autora como facilitadora de grupos em um Caps ad. Trata-se de
um grupo de adultos, em sua maioria dependentes de álcool. Em uma ses-
são grupal, ocorrida em 2005, foi sugerida a atividade em torno dos 8 jeitos
de mudar o mundo. Cartões de papelão continham os 8 jeitos de mudar o
mundo, sendo cada cartão correspondente a um dos oito jeitos, a saber: 1)
Acabar com a fome e a miséria. 2) Educação básica de qualidade para to-
dos. 3) Igualdade entre os sexos e valorização da mulher. 4) Reduzir a
mortalidade infantil. 5) Melhorar a saúde das gestantes. 6) Combater a
Aids, a Malária e outras doenças. 7) Qualidade de vida e respeito ao meio
ambiente. 8) Todo mundo trabalhando pelo desenvolvimento. Com 16 par-
ticipantes no grupo, naquela sessão, após contextualizar ao grupo a ideia
dos 8 jeitos..2., formaram-se duplas de trabalho, pela proximidade em que
estavam sentados os participantes. Cada dupla pegou, aleatoriamente, um
dos oito cartões. Por um momento, a dupla conversou sobre a mensagem
contida naquele cartão. A tarefa, orientada aos participantes, era tão so-
mente entender a mensagem, comentar sobre ela e depois partilhá-la entre
os outros participantes. Como não conheciam sobre a iniciativa dos 8 jei-
tos..., o grupo mostrou-se motivado e implicado com a tarefa. No momento
de partilha, cada dupla apresentava o que entendera do cartão às suas mãos.
Várias associações interessantes foram feitas pelos participantes, sempre
remetendo à vida no planeta, como melhorá-la. Já no momento de debate

2
Para aprofundar: <http://www.objetivosdomilenio.org.br/>.
514 Wedna Cristina Marinho Galindo e Ana Lúcia Francisco

final, após todas as apresentações, um dos participantes sugere “e se a


gente pensasse os 8 jeitos de mudar o Caps?”. Recortando essa provocação
do conjunto de questões em diálogo no momento, a facilitadora indagou ao
grupo sobre tal empreitada. Após algumas expressões, ficou evidente a
mobilização do grupo para pensar sobre jeitos de melhorar a convivência
no Caps, assunto que foi retomado na sessão seguinte.
A produção do grupo elencou 7 jeitos de melhorar a convivência
no Caps, a saber: 1) Cumprimentar as pessoas. 2) Respeitar diferenças de
opiniões, valores. 3) Cumprir regras. 4) Não julgar o outro. 5) Não existir
privilégios. 6) Valorizar o tratamento. 7) Garantir atendimento semanal para
cada usuário. Tão importante quanto os sete conteúdos que emergiram do
trabalho, foi o processo do grupo para construir essas propostas e os seus
desdobramentos. A própria construção das sete propostas ocupou certo tem-
po do grupo, isto é, não foi realizado em uma única sessão. Nesse espaço,
houve a oportunidade de vivenciar discordâncias, diferenças, inquietações,
de modo a desenvolver um respeito mútuo às singularidades e a suportar o
espaço político de disputa, como eivado de tensões e conflitos.
Diante da construção consolidada dos 7 jeitos... a facilitadora inda-
gou ao grupo sobre o quê fazer com isso. Nessa situação, o grupo foi provo-
cado a exercer o protagonismo diante da instituição Caps. Isto é, foi ofereci-
da ao grupo a oportunidade de considerar a prática, a ação, além da constru-
ção racional, idealizada de pressupostos para a convivência. Dialogar sobre o
quê fazer com sua produção, envolveu também várias sessões do grupo, que,
ao refletir sobre as diversas ideias que emergiram, foi dirigido a duas tarefas
em paralelo. Uma delas dizia respeito a abordar a questão do poder no Caps
e aprofundar estudos sobre o espaço de Assembleia, espaço esse que, institu-
cionalmente por excelência, é para debate e decisões, no qual os usuários
têm voz e voto. A constatação de que esse espaço não estava acontecendo na
unidade de saúde, e que não fora aproveitado adequadamente pelos usuários,
contribuiu para o grupo avançar sobre possibilidades de participação na As-
sembleia, no sentido de interferir positivamente na rotina e decisões do Caps.
A Assembleia emergiu como espaço onde poderiam ser apresentados os 7
jeitos... e submetidos à apreciação da plenária. Diante da ausência desse es-
paço, o grupo optou por sistematizar a experiência dos 7 jeitos... e apresentar
a outros grupos do Caps (grupos de usuários; de profissionais técnicos; de
profissionais administrativos), acolhendo deles sugestões para propor melho-
rias na convivência. Para colocar em prática tal estratégia, a facilitadora pro-
pôs ao grupo definir um modo de organizar isso. Assim, o grupo distribuiu
responsabilidades, prazos e uma comissão de monitoramento da ação entre
os membros. Todo esse exercício envolveu a abordagem e manejo de tensões
e conflitos no grupo, na perspectiva de fortalecer o seu protagonismo.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Ao ser concluído o prazo que havia sido definido para receber pro-
postas dos outros grupos, o clima da sessão do grupo foi de tristeza e frustra-
ção, pela constatação de que outros grupos não deram atenção à proposta. A
única contribuição veio de um grupo de adolescentes, coordenado pela mes-
ma facilitadora, que ao trabalhar a questão com os adolescentes, ouviu deles
a sugestão de acrescentar mais um jeito que seria o oitavo: Manter ambiente
limpo. Outros grupos de usuários, bem como o grupo de profissionais técni-
cos e o grupo de profissionais administrativos, não responderam à demanda.
O grupo de adultos que iniciou o processo lidou, com certa dificul-
dade, com a ausência de contribuições e a constatação de que sua sugestão
não tinha sido levada a sério por outros integrantes do Caps. A expressão da
insatisfação, frustração, raiva, enfim, dos diversos sentimentos envolvidos na
situação, foi importante para o grupo se fortalecer diante da falência de seus
projetos. A constatação de pouca força política diante da instituição como
um todo, era inevitável. E considerar tal situação foi estratégico para se re-
fletir sobre que lugar os usuários ocupam nesse contexto.
Ainda que esse conteúdo não tenha sido aprofundado explicita-
mente, entende-se que a experiência como um todo foi muito importante
para os usuários, que vivenciaram a liberdade de elaborar projetos, a inquie-
tação de negociá-lo diante de pares (participantes do grupo), o desconforto
de ter suas opiniões desconsideradas, o desafio de organizar-se para colocar
em prática os projetos, a frustração de não ter apoio de outros. Enfim, ao
indagar ao grupo, diante do clima de frustração e perda instalado, o que fazer
com o seu projeto, a facilitadora parece ter colocado em marcha a possibili-
dade de lutar, apesar dos dissabores. Um breve momento de resistência, com
expressões do tipo: “não adianta nada, ninguém está interessado”, deu lugar
a outro em que o grupo decidiu acolher o que se tornou o oitavo jeito, envia-
do pelo grupo de adolescentes e escrever os jeitos em cartolina simples, co-
lando-as nos espaços estratégicos dentro dos espaços coletivos, no Caps.
O que aparentemente poderia ser entendido como uma experiência
frustrada, não foi assim compreendida pela facilitadora, que identificava pro-
cessos significativos no grupo: de fortalecimento das relações interpessoais, de
aprimoramento em suas práticas de cidadania, como a participação em deci-
sões, controle social de ações, vivência democrática, de forma geral. Isso inclu-
sive se confirmou quando, quase dois anos após passada a experiência, a facili-
tadora ao visitar o Caps (pois não desenvolvia mais atividades lá) encontrou,
como trabalho produzido pelos usuários em oficina terapêutica, placas com
identificação de salas e outras placas com sugestão de posturas, atitudes. Con-
feccionadas com disco vinil, papel, tinta, cola, além de outros materiais, as
placas estavam fixadas na área social da unidade de saúde, e lembravam em
516 Wedna Cristina Marinho Galindo e Ana Lúcia Francisco

muito, aquele trabalho sobre os 7 jeitos... Ao indagar ao facilitador da oficina


terapêutica sobre de onde vinha a motivação para aquelas placas de sugestão de
postura, foi dito que alguns usuários sugeriram, e isso foi trabalhado na oficina.
O grupo decidiu, então, construir, além das placas de sinalização, algumas que
lembram aspectos importantes para garantir uma boa convivência no Caps.
Daquele grupo de adultos, que inicialmente construiu os 7 jeitos...,
soubemos que alguns usuários têm assumido posições estratégicas em im-
portantes espaços políticos, como o Conselho de Gestão da Unidade; Con-
selhos de Saúde; Representações de Classe (profissional). Essa constatação é
um importante sinalizador do impacto positivo do trabalho com aqueles usu-
ários, cujo fragmento aqui relatado é um exemplar.
Essa pequena experiência ilustra o debate sobre as possíveis contri-
buições da Psicologia à Saúde Coletiva. No caso citado, viu-se como a inter-
venção, comprometida com o usuário e com o seu protagonismo no exercício
da cidadania, pode gerar impactos positivos, alguns identificados no momento
mesmo da vivência da atividade e ao longo do tempo. O posicionamento da
facilitadora já na escolha da tarefa – de abordar os 8 jeitos de mudar o mundo –
sugere atenção ao contexto social mais amplo. Ao trazer para um grupo de
adultos, dependentes químicos, a história de iniciativa da Organização das Na-
ções Unidas/ONU para resolver os maiores problemas do planeta, considera-os
interlocutores desse projeto, reconhecendo, assim, a possibilidade de participa-
rem ativamente no que diz respeito à sua realidade. Claro que não estava pre-
visto trabalhar com o grupo sobre a convivência no Caps. Se tal sugestão fosse
dada pela facilitadora, certamente não contaria com a implicação do grupo tal
como ocorreu com a ideia surgida do processo grupal. A posição de facilitado-
ra, portanto, é estratégica para que os usuários assumam positivamente o lugar
de construtores de sua realidade, e assim, exercitarem a cidadania.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Psicologia tem muito a contribuir com a Saúde Coletiva no Bra-


sil, o que já vem fazendo (Spink, 2010), em especial, quando novos postos
de trabalho foram abertos aos profissionais de Psicologia, para dar conta das
demandas do SUS (Ferreira Neto, 2011). A eficaz intervenção da Psicologia,
entretanto, é alcançada a partir de contínua postura crítica dos profissionais,
tanto no que se refere a como considerar a realidade social mais ampla e o
sujeito para o qual é dirigida a intervenção, quanto no que diz respeito ao
arsenal tecnológico disponível no campo psi. Portanto, é imprescindível con-
siderar a complexidade que envolve o campo da atuação do profissional de
Psicologia na Saúde Coletiva.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Tanto a realidade quanto o sujeito para o qual são formatadas as


políticas (indivíduos ou grupos) são constituídos no jogo de forças presente
no contexto em questão. Nesse caso, destaca-se a construção social da subje-
tividade, em detrimento de quaisquer esforços em naturalizar o indivíduo, de
associar a ele aspectos de uma pretensa interioridade, individualidade. As-
sim, constitui renovado desafio, compreender com que sujeito se interage nas
diversas situações que a prática profissional nos impõe.
A intervenção, por sua vez, precisa considerar, além da construção
social da subjetividade, o campo de forças no qual aspectos de ordem econômi-
ca, política, cultural, religiosa, constituem vetores que merecem ser identifica-
dos pelos profissionais, a fim de que seu trabalho esteja comprometido com a
promoção da saúde, com o bem-estar da população. O risco que corre o profis-
sional de Psicologia, nesse caso, é o de reproduzir práticas cujo impacto seja a
manutenção de contextos sociais de opressão, injustiça, desigualdades, que
mantenham a população refém de procedimentos e lógicas sociais de exclusão.
Assim, defende-se o deslocamento da Psicologia na direção de po-
sicionamento ético-político em suas práticas. A possibilidade de romper com
o ideário individualista pode dirigir a Psicologia a perspectivas de construção
de subjetividades implicadas com a realidade sócio-histórica, entendida
como postura produtiva para o saber-fazer neste campo. A possibilidade de
superar a cisão entre clínica e política, igualmente coloca-se em posição dife-
renciada quanto ao modo de considerar as demandas que são dirigidas aos
psicólogos e às possíveis respostas a elas. Articular clínica e política, assim
como articular os campos historicamente construídos como psicologia clíni-
ca e psicologia social, parece ser estratégico na necessária revisão e constru-
ção de novas proposições por parte da Psicologia.
A postura ético-estética-política aqui proposta merece ser trabalhada
nos processos de formação de psicólogos, como estratégia para, cada vez mais,
posicionarmos a Psicologia como campo de conhecimento e intervenção em
defesa dos direitos humanos e do fortalecimento de sociedades democráticas.

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Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO:
DA URGÊNCIA DE UM DISPOSITIVO A
UMA MODALIDADE DE AÇÃO CLÍNICA
Ananda Kenney da Cunha Nascimento
Marcus Túlio Caldas

Sumário: 1. Metodologia. 2. Loucura e Saúde Mental: das Instituições


Totais à Rede Social. 3. O Acompanhamento Terapêutico como
Dispositivo. 4. Acompanhamento Terapêutico: da Inspiração a
uma Modalidade de Ação Clínica. 5. Considerações Finais. 6.
Referências.

Este estudo foi gerado com base em inquietações, indagações, li-


mites, distanciamentos, encontros e encantamentos que os autores têm expe-
rienciado no decorrer de suas andanças pelo universo da saúde mental, en-
volvidos no tratamento de pessoas em sofrimento psíquico, físico ou ambos.
Tais questões motivadoras foram percebidas a partir de algumas
experiências inquietantes dos autores que se depararam com situações de
entraves no tratamento de algumas pessoas em sofrimento psíquico, pois, em
algumas situações, faltava um profissional que fosse além dos muros da ins-
tituição ou que desempenhasse atividades mais específicas com algumas
dessas pessoas que, perceptivelmente, ou já estavam no momento de se des-
ligar do vínculo institucional ou necessitavam de uma atividade comple-
mentar mais ativa e pontual no seu projeto terapêutico singular. Estas situa-
ções denunciaram a carência da presença do profissional Acompanhante
terapêutico (At) inserido no seio dessas equipes implicadas em uma ação
clínica de cuidado para com essas pessoas.
Portanto, pautados nas responsabilidades profissional, educacional
e social, nos propomos, a partir de discussões, elucubrações, aproximações e
articulações, contribuir com a clínica do Acompanhamento Terapêutico
(AT), com as pessoas mais próximas, com o meio acadêmico e científico, em
geral. Isso porque, com base nessa trajetória que temos percorrido, constata-
mos a necessidade de apresentar esta modalidade de ação clínica que ainda é
desconhecida por alguns e mal compreendida por outros.
520 Ananda Kenney da Cunha Nascimento e Marcus Túlio Caldas

Assim sendo, este artigo objetivou descrever a urgência da criação


do AT como uma modalidade de ação clínica. Para tanto, buscamos, inicial-
mente, pesquisar o momento de emergência histórica do AT, para assim
compreendê-lo como dispositivo de cuidado e descrevê-lo como modalidade
de ação clínica.

1 METODOLOGIA

Realizamos um estudo sistemático a respeito da temática em tese,


desenvolvido a partir de textos literários, cujo material elaborado está acessí-
vel ao público em geral, constituído principalmente de livros e artigos cientí-
ficos. Este tipo de pesquisa pode esgotar-se em si mesma ou fornecer instru-
mental analítico para qualquer outro tipo de pesquisa. (GIL, 1991/1987;
Vergara, 2003).
Este estudo vislumbrou uma articulação entre textos literários e os
conhecimentos que vêm sendo debatidos e refletidos entre os autores, a partir
das experiências deles, da formação em AT que um dos autores está cursan-
do e das temáticas que vêm sendo discorridas em eventos e discussões com
profissionais da área, o que possibilitou não só a interpretação dos textos mas
também o entendimento desses, pois o diálogo entre os autores, enquanto
leitores e pesquisadores, e os textos possibilitou uma abertura para novos
modos de compreensão acerca do tema.
A seleção dos textos procurou ser abrangente, uma vez que esse
campo tem uma construção teórica muito diversificada, contudo, buscamos
alcançar parte dessa abrangência através dos principais autores do Brasil e da
Argentina.

2 LOUCURA E SAÚDE MENTAL: DAS INSTITUIÇÕES


TOTAIS À REDE SOCIAL

O tratamento com os chamados transtornos mentais sofreu grandes


mudanças a partir do final do século XIX. Mudanças essas que se confirmam
em nossos dias. Antes o modelo psiquiátrico clássico hospitalocêntrico impera-
va, tendo como principais características: exclusão, cronificação e violência, o
que provocava transformações dramáticas na vida das pessoas internadas, afe-
tando-as em seus aspectos biológico, psicológico e social. (Amarante, 2007).
A dinâmica do hospital era estruturada para atender aos objetivos de
controle, alienação e separação dos internos da vida social, muitas vezes apa-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

recendo no esquema físico como portas fechadas, paredes altas, arame farpa-
do, florestas, o que desencadeava um processo de isolamento, enfraquecimento
da autonomia e da individualidade, gerando dependência da instituição e coisi-
ficação do ser, além de favorecer a estigmatização da pessoa que ia em busca
(ou era levada forçosamente) de cura e se deparava com um tratamento que a
distanciava ainda mais de sua reabilitação, entre outras coisas porque causava
medo de reinserção no convívio social (Goffman, 1974/1961).
Então, por ter caráter de fechamento, Goffman (1974/1961) nome-
ou o hospital psiquiátrico de instituição total, assim como outras instituições
que tenham como características de funcionamento o atendimento a pessoas
internadas que vivenciam situações semelhantes, por um período de tempo
indeterminado, sob a imposição de uma vida fechada, separada da sociedade
e controlada por uma equipe dirigente rigorosa e formal.
Deste modo, “a instituição total é um híbrido social, parcialmente
comunidade residencial, parcialmente organização formal; aí reside seu es-
pecial interesse sociológico” (Goffman, 1974/1961, p. 22). Entretanto, essas
instituições não substituem algo já formado pela cultura, mas fazem com que
ocorra um afastamento de algumas oportunidades de comportamento, cons-
tituindo o que o autor afirma ser a primeira mutilação do eu. O internado
desempenhava vários papéis no mundo externo ao hospital, mas essa nova
situação o perturba e favorece com que passe por um processo de descaracte-
rização e tenha diversas reações psicológicas à doença e ao adoecer. Embora
alguns dos papéis possam ser restabelecidos pelo internado, se e quando ele
voltar para o mundo, outras perdas são irrecuperáveis.
Tais questões fizeram com que profissionais de saúde começassem
a criticar tais práticas abusivas e entrassem em vigor discussões de caráter
político-ideológico que articulavam sobre uma Reforma Psiquiátrica, a qual
veio questionar a noção de saúde/doença mental e constituiu-se em um mo-
vimento cuja principal tentativa foi a de supressão dos manicômios na Euro-
pa Ocidental e nos Estados Unidos, expandindo-se posteriormente para ou-
tros países, entre eles o Brasil (Amarante, 2007).
Simões (2005) nos lembra que a movimentação político-ideológica
das reformas psiquiátricas teve mais visibilidade desde as duas grandes
Guerras Mundiais, pois a sociedade voltou o seu olhar para os hospitais psi-
quiátricos que em nada se diferenciavam dos campos de concentração. Sendo
assim, reflexões começaram a serem realizadas, fermentando as primeiras
experiências de reformas diante das constatações de absoluta falta de digni-
dade humana.
Amarante (2007) acrescenta que dentre várias experiências, desta-
cam-se algumas que foram mais marcantes, devido ao caráter de inovação e
522 Ananda Kenney da Cunha Nascimento e Marcus Túlio Caldas

impacto, tendo em comum: a oposição ao modelo psiquiátrico clássico, a luta


pela desospitalização e a sustentação na teoria psicanalítica. O autor divide
essas experiências em três grupos que se assemelham por suas crenças ideo-
lógicas, princípios e propostas, seguem:
No primeiro grupo, estão a Comunidade Terapêutica (Inglaterra –
Maxwell Jones) e a Psiquiatria Institucional apoiada na Psicoterapia Institu-
cional (França – François Tosquelles) que acreditavam que o fracasso estava
na forma de gestão do próprio hospital e, portanto, a solução seria introduzir
mudanças na instituição.
O segundo grupo é composto pela Psiquiatria de Setor (França –
Bonnafé) e pela Psiquiatria Preventiva (Estados Unidos – Gerald Caplan), as
quais eram pautadas na crença de que o modelo hospitalar estava obsoleto e,
por isso, deveria ser desmontado gradativamente e, em paralelo, deveriam
ser construídos serviços assistenciais qualificadores do cuidado terapêutico,
tais como: hospitais-dia, oficinas terapêuticas, centros de saúde mental, entre
outros, em óbvia oposição ao modelo anterior.
Por fim, no terceiro grupo está a Antipsiquiatria (Inglaterra – Laing
e Cooper) e a Psiquiatria Democrática (Itália – Franco Basaglia, seguido por
Franco Rotelli) que consideravam o termo reforma inadequado, pois, de
acordo com a etimologia da palavra, segundo o Instituto Antônio Houaiss
(2007), essa significaria apenas uma mudança introduzida em algo para fins
de aprimoramento e obtenção de melhores resultados; nova organização,
nova forma; renovação.
Desse modo, tais movimentos puseram em xeque o modelo cientí-
fico psiquiátrico clássico, questionaram as instituições assistenciais e propu-
seram a desconstrução do modelo psiquiátrico de tutela e exclusão, a substi-
tuição dos serviços de saúde mental e dos tratamentos oferecidos pela lógica
hospitalocêntrica. E, de modo mais radical, recomendaram à estrutura social
uma revisão de valores e de práticas excludentes e discriminatórias, numa
tentativa de gerar uma nova relação entre loucura e sociedade e, de pôr a
doença entre parênteses e não a pessoa doente. Isso para que a atenção dos
profissionais de saúde estivesse voltada à pessoa em sua totalidade e com-
plexidade e o trabalho em prol dela funcionasse de modo interdisciplinar e
psicossocial (Amarante 2007; Alves, 2005).
Nesse período, no Brasil, a assistência à saúde era realizada pela
iniciativa privada ou através de filantropia, não tendo o poder público res-
ponsabilidade sobre a saúde em geral. Com isso, os excluídos da sociedade,
entre eles os loucos, os mendigos, os marginais, tinham como destino as
prisões, as ruas ou as celas especiais das Santas Casas de Misericórdia do
Rio de Janeiro. Diante dessa realidade, com o intuito de proporcionar um
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

tratamento adequado aos loucos que estavam abandonados à própria sorte,


foi fundado, em 1852, o Hospital Psiquiátrico D. Pedro II, no Rio de Janeiro
(Alves, 2005; Oliveira, 2010).
No final da década de 1970, eclode o movimento da Reforma
Psiquiátrica Brasileira em um contexto de organização social e civil contra
a ditadura militar. Particularmente o ano de 1978 foi marcado pela polêmi-
ca em torno da assistência pública à saúde mental, provocada por várias
experiências sem grandes repercussões e pelo Movimento dos Trabalhado-
res de Saúde Mental (MTSM). Esse último se preocupou com a desinstitu-
cionalização, o modelo de atenção e o saber médico, aproximando-se mais
dos usuários e de seus familiares, distanciando-se, por sua vez, de suas
alianças com o Estado. Nos anos seguintes, o MTSM alcançou grande re-
percussão e liderou os acontecimentos que fizeram avançar a luta com ca-
ráter antimanicomial (Simões, 2005).
Nos anos 1980, tais movimentos se consolidaram e provocaram
inúmeras transformações cotidianas nas práticas, saberes e valores sociais e
culturais. No entanto, a partir do final desta década, “o objeto da desinstitu-
cionalização deixou de ser o manicômio e passou a ser a doença mental, já
que não bastava destruir o manicômio, sendo necessário superá-lo” (Simões,
2005, p. 64).
Contudo, para firmar este processo, alguns acontecimentos foram
decisivos, assim como nos diz Simões (2005), entre eles: a instituição do dia
18 de maio como o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, a realização de
uma intervenção na Casa de Saúde Anchieta (hospício privado) pela Prefei-
tura de Santos e o surgimento do projeto de Lei 3.657/89 do Deputado Fede-
ral Paulo Delgado que desencadeou um conjunto de leis e foi transformada
na Lei 10.216, sancionada em 6 de abril de 2001, prevendo, principalmente,
a extinção progressiva dos manicômios e a criação de serviços substitutivos.

Neste contexto, toma forma o Movimento pela Reforma Sanitária, tendo em


vista a abertura e livre acesso da população à assistência à saúde. Tais
ações culminam na inclusão na atual Constituição Federal, promulgada em
1988, em seu art. 196, da noção de saúde enquanto direito de todos e dever
do Estado e, em 1990, na aprovação da Lei 8.080, também chamada Lei
Orgânica da Saúde, a qual institui o Sistema Único de Saúde, que preconi-
za a criação de uma rede pública e/ou conveniada – de caráter comple-
mentar – de serviços de saúde, tendo em vista a atenção integral à popula-
ção nos níveis de prevenção, promoção e reabilitação. (Alves, 2005, p. 48)

Podemos afirmar que estas leis supramencionadas se constituíram


como base para que novas leis, normas, decretos e pactos fossem elaborados
524 Ananda Kenney da Cunha Nascimento e Marcus Túlio Caldas

e promulgados posteriormente, assim como a Lei 8.142/90 – lei comple-


mentar à Lei Orgânica da Saúde, a Norma Operacional Básica/96, a Norma
Operacional Básica de Assistência à Saúde/2002, o Pacto Pela Saúde/2006, o
decreto 7.508 de 28.06.2011, entre outros documentos que buscam uma me-
lhor operacionalização dos princípios e diretrizes que estão previstos na le-
gislação vigente e, também, que buscam resolubilidade para as problemáticas
que vêm encontrando a legislação brasileira. Conquistas essas que foram
possíveis, principalmente, devido à inclusão do controle social – participação
da comunidade – nas decisões no campo da saúde mental.
Nessa direção, no final do século XX, surgem os primeiros serviços
substitutivos ao hospital psiquiátrico, entre eles os CAPS – Centro de Aten-
ção Psicossocial (CAPS I, II e III – transtorno, CAPSi – infantil, CAPSad –
álcool e outras drogas), os NAPS – Núcleos de Atenção Psicossocial, as
Residências Terapêuticas (atendimento de longa permanência em instituições
asilares, voltado aos pacientes psiquiátricos que não têm possibilidade de
restituir seus vínculos familiares) e os PSF – Programa Saúde da Família
(Simões, 2005; Alves, 2005).
Dentre as experiências inovadoras no Brasil, destacam-se: a Nossa
Casa, em São Lourenço do Sul e a Pensão Protegida Nova Vida, em Porto
Alegre, ambas no Rio Grande do Sul e o Centro de Atenção Psicossocial
Prof. Luiz Cerqueira, em São Paulo, criado em 1987, mesmo ano em que
aconteceu a 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental no Rio de Janeiro
(Simões, 2005; Santos et al., 2000).
Experiência precursora aos movimentos que estávamos comentan-
do, e que merece um lugar nessa história da loucura no Brasil é a da Dra.
Nise da Silveira – psiquiatra brasileira, inspirada pela Psicologia analítica de
C. G. Jung – que data da década de 1940, isto é, muito antes do movimento
da Reforma Psiquiátrica. Inconformada com os métodos de tratamento ofe-
recidos aos doentes mentais da época, conseguiu desconstruir conceitos e
ações relacionados ao cuidado em saúde mental, fundando, em 1946, a Seção
de Terapia Ocupacional, no Centro Psiquiátrico Nacional Engenho de Den-
tro, no Rio de Janeiro. Instalou atividades com caráter predominantemente
expressivo, através da arte como recurso terapêutico, a qual permitia o aces-
so direto ao mundo interno dos pacientes, proporcionando maior autonomia a
eles, o que contrariava a opinião da psiquiatria da época, pois ela percebia o
esquizofrênico destituído de afetividade e iniciativa. Entretanto, sua prática
provou que era justamente pela via do afeto que se tornava possível a pene-
tração no mundo fechado dessas pessoas, ajudando-as a se reaproximarem da
realidade, isto por acreditar que o afeto é um fator estruturante da condição
humana. Então, por fim, “como fruto do trabalho iniciado [...] foi criado, em
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

1952, o Museu de imagens do Inconsciente” (Oliveira, 2010, p. 33) no mes-


mo local.
Todas essas experiências demonstram tentativas de reestruturação
da atenção em saúde mental, pois se tratam de mudanças na resposta social
à loucura que trazem implicações de caráter ético, clínico, político e ideo-
lógico (Furtado & Campos, 2005). Entretanto, ainda há impasses entre os
princípios e diretrizes que foram estabelecidos, pautados nestas alterações
no campo da saúde mental, e o plano operacional executado nos novos
serviços “de portas abertas, de base territorial, com maior interlocução com
a comunidade” (Pande & Amarante, 2011, p. 2.068) que auxiliam a compor
a rede social.
Quando nos referimos aqui à rede social,

Estamos falando do princípio da intersetorialidade, isto é, de estratégias


que perpassem por vários setores sociais, tanto no campo da saúde mental
e saúde em geral, quanto das políticas públicas e da sociedade como um
todo. Em outras palavras, os serviços de atenção psicossocial devem sair
da rede do serviço e buscar na sociedade vínculos que complementem e
ampliem os recursos existentes. Devem articular-se com todos os recursos
existentes no campo da saúde mental, isto é, com a Rede de Atenção à Saú-
de Mental (outros serviços de atenção psicossocial, cooperativas, residên-
cias de egressos ou outras pessoas em situação de precariedade social,
ambulatórios, hospitais-dia, unidades psiquiátricas em hospitais gerais), e
no campo da saúde em geral (Estratégia Saúde da Família, centros de saú-
de, rede básica, ambulatórios, hospitais gerais e especializados etc.) ou no
âmbito das políticas públicas em geral (ministério público, previdência so-
cial, delegacias, instituições para crianças, idosos, desassistidos em geral,
igrejas, políticas educacionais, de esporte, lazer, cultura e arte, turismo,
transporte, ação e bem-estar social etc.), e, finalmente, no âmbito dos re-
cursos criados pela sociedade civil para organizar-se, defender-se, solida-
rizar-se. As políticas de saúde mental e atenção psicossocial devem organi-
zar-se em “rede”, isto é, formando uma série de pontos de encontro, de
trajetórias de cooperação, de simultaneidade de iniciativas e atores sociais
envolvidos. (Amarante, 2007, p. 86, grifo nosso)

Apesar de todos os esforços, propostas e criação de serviços, auto-


res discutem sobre empecilhos no processo da reforma no campo da saúde
mental, a qual está para além da reforma institucional. Pela sua complexida-
de, percebemos a necessidade de acrescentar novos atores que possam aten-
der às demandas existentes.
Pande e Amarante (2011) afirmam que, por haver impasses, embo-
ra tenham surgido novos serviços, ainda assim “retornam a crítica à institu-
cionalização e a reflexão sobre a ‘nova cronicidade’, assim como o entendi-
526 Ananda Kenney da Cunha Nascimento e Marcus Túlio Caldas

mento de que tais serviços podem criar novas formas de institucionalização,


cronificação ou até mesmo manicomialização” (p. 2.068), o que denota um
desafio para o movimento desinstitucionalizador, pois o que se percebe é a
evidente persistência da cronicidade nos doentes psiquiátricos, mesmo com o
fechamento dos hospícios.
Salientamos que estamos concebendo o doente psiquiátrico crôni-
co, assim como define Desviat (2008/1999, p. 89-90): “[...] aquele que pade-
ce de uma doença que se prolonga no tempo e que afeta sua qualidade de
vida, limitando suas capacidades e tornando-o dependente de atendimento
sanitário e social”.
Nessa direção, a produção da chamada ‘nova cronicidade’ pelas
novas instituições, tem implicações diretas com a “... dívida histórica para
com o resultado de um passado malfadado da psiquiatria” (Desviat,
2008/1999, p. 89) e, portanto, ela se constitui como uma demonstração da
falência da intenção de restituir o estatuto terapêutico do campo psiquiátrico,
a qual “resultou na construção de um sistema complexo de prestações que,
reproduzindo e multiplicando a lógica somente negativa da desospitalização
selecionam, decompõem, não se responsabilizam, abandonam” (Rotellii;
Leonardis & Mauri, 2001/1990, p. 24, grifo dos autores).
Isso acontece, porque esse novo modelo de tratamento, ainda não
rompeu em definitivo com o paradigma psiquiátrico clássico, com isso, os
novos serviços assumem uma lógica empresarial e especialista que selecio-
na a demanda de acordo com a competência, o perfil do atendimento ofere-
cido e as exigências do próprio serviço, o que “faz com que as pessoas
sejam separadas, “despejadas”, jogadas de um lado para outro entre com-
petências diferentes e definitivamente não sejam de responsabilidade de
ninguém e sim abandonadas a si mesmas” (Rotelli; Leonardis & Mauri,
2001/1990, pp. 22-24).
Partindo desta ideia, Rotelli, Leonardis e Mauri (2001/1990) enten-
dem que esta problemática está pautada na lógica em que foi criado o siste-
ma de saúde mental, o qual se desenvolveu junto ao hospital psiquiátrico e
funciona como circuito, isto é, abandona o modo de funcionamento segrega-
dor das instituições totais e trabalham com a concepção

[...] da “dinâmica” da circulação entre serviços especializados e presta-


ções pontuais e fragmentadas [...] O circuito é, entretanto, também uma
espiral, ou seja, um mecanismo que alimenta os problemas e os torna
crônicos. Não por acaso, o dilema central e dramático dos sistemas de
saúde mental nascidos das reformas não são mais os velhos pacientes
crônicos egressos dos hospitais psiquiátricos com a desospitalização, mas
os novos crônicos. (p. 23).
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Compreendendo esse processo, Desviat (2008/1999) nos alerta que


“torna-se cada vez mais evidente a cronicidade dos hospitais-dia, dos centros
de reabilitação e até a cronicidade da crise [...] – a cronicidade “crítica” da
demanda aguda nos serviços de emergência” (p. 92). Com isso, é preocu-
pante perceber que o fenômeno da cronicidade adquire uma nova roupagem,
visto que um extenso grupo que não passou por asilos e que tiveram ou não
hospitalizações breves em unidades psiquiátricas, ainda assim vivencie a
dependência dos serviços de saúde mental, tal como os antigos crônicos das
instituições totais.
Nesse contexto, demonstra-se cada vez mais a necessidade não só
de instituições e programas para enfrentar a cronicidade grave e incapaci-
tante, mas de profissionais, como o AT, que realizem um trabalho comple-
mentar, atuando, de forma mais ativa, nesse processo. Desse modo, o que os
autores estão chamando de “nova cronicidade”, trata-se de velhos procedi-
mentos cronificadores em instituições que se pretendem transformadoras.
Diante dessa realidade, percebemos quão difícil é dar uma resposta
a essas questões sem introduzir novos elementos de ruptura, dentre eles a
clínica do AT. Pois, por mais revolucionária que seja uma instituição e por
melhores intenções que tenha uma reforma, ela herdará uma série de pro-
blemas do modelo anterior. Assim sendo, é preciso que a reforma prossiga,
possibilitando outras rupturas que sejam clínicas, isto é, que favoreçam re-
flexões e mudanças de postura diante do cuidado com o outro.
Perante as diferentes perspectivas dos autores aludidos sobre a
“nova cronicidade”, percebemos que

[...] não há um único caminho possível ou um só esforço capaz de fazer


frente à extensa tarefa de transpor os princípios da reforma psiquiátrica
para o plano das práticas. A educação permanente dos trabalhadores, a
avaliação sistemática das novas práticas, a inclusão da perspectiva dos
usuários no processo (Soalheiro, 2003; Vasconcelos, 2003), dentre ou-
tras, são vias importantes e necessárias ao estabelecimento dos novos
referenciais na prática cotidiana de atenção em saúde mental. (Furtado &
Campos, p. 117)

No entanto, mesmo diante de um sistema complexo que está pro-


penso a reproduzir a institucionalização, quando na prática seleciona, frag-
menta, não se responsabiliza e abandona, precisamos atentar que, neste con-
texto, há um jogo de forças com diversas linhas de fuga. Assim sendo, “os
serviços podem, a um só momento, cronificar, restringir, segregar, proteger,
bem como libertar, favorecer autonomia, cidadania e protagonismo” (Pande
& Amarante, 2011, p. 2.075), o que sinaliza que a reforma psiquiátrica está
528 Ananda Kenney da Cunha Nascimento e Marcus Túlio Caldas

em processo, necessitando continuamente reformular suas intenções e pro-


postas, favorecendo a operacionalização dessas.
Com base no panorama que compõe o pano de fundo do AT, pode-
mos apreciá-lo de modo mais apropriado e contextualizado, pois como nos diz
Oliveira (2010), é esclarecendo a construção deste processo histórico e, conse-
quentemente, dos princípios que fundamentam a criação de alguns serviços de
cuidado em saúde mental que chegaremos a uma melhor compreensão do que
vem a ser o AT e quais as especificidades desta atividade na nova rede de cui-
dado proposta por alguns autores e profissionais da área de saúde mental.

3 O ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO COMO


DISPOSITIVO

Ao pesquisar na literatura a definição de AT, encontramos uma di-


versidade de respostas que são justificadas devido à versatilidade operacional
e à heterogeneidade que estão imbricadas nesta prática clínica, a qual instiga
diversas questões, tais como: o AT é uma profissão? É uma técnica? É uma
estratégia de tratamento? É uma função? É uma inspiração para aperfeiçoar a
prática de outras profissões?
Essas, entre outras indagações, fazem-nos concebê-lo, inicialmente,
assim como Mauer e Resnizky (2011), Palombini (2006) e outros autores
contemporâneos como um dispositivo, no sentido primeiro que Michel Fou-
cault atribuiu a essa palavra, o que foi levado adiante por Gilles Deleuze.
Foucault (1985) apresenta o dispositivo como uma rede que se es-
tabelece entre elementos de um conjunto heterogêneo, são eles: “discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, me-
didas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais
e filantrópicas” (p. 244). Ou seja, o dispositivo abarca o dito e o não dito, o
visível e o invisível e, se constitui “como um tipo de formação que, em um
determinado momento histórico, teve como função principal responder a
uma urgência” (p. 244).
Desse modo, neste estudo, estamos considerando o AT, bem como
os movimentos das Reformas Sanitária e Psiquiátrica, dentre outros, como
dispositivos, pois concentram três características principais: respondem a
uma urgência histórica, constituem-se como um conceito multilinear e estão
apoiados a outros dispositivos que lhes são contemporâneos (Marcello, 2009).
Assim sendo, o AT surge como linha de fuga do padrão que já es-
tava estabelecido, isto é, rompe com o instituído, quebra a hegemonia do
modelo clássico psiquiátrico, denunciando suas práticas abusivas e, atual-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

mente, enuncia a insuficiência dos serviços substitutivos de saúde mental.


Isso porque, “todo dispositivo se define pelo que detém em novidade e cria-
tividade, e que ao mesmo tempo marca a sua capacidade de se transformar,
ou de desde logo se fender em proveito de um dispositivo futuro” (Deleuze,
1996, p. 92).
Por esse viés, o AT como dispositivo tem uma natureza estratégica e,
“[...] portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no
entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem mas que
igualmente o condicionam. É isto, o dispositivo: estratégias de relações de
força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles” (Foucault, 1985,
p. 246).
Deleuze (1996), corroborando com as ideias de Foucault, afirma
que o dispositivo, por se tratar de um conjunto multilinear, comporta linhas
que, além de serem de naturezas diferentes, seguem direções diferentes e se
movimentam, traçando processos que estão sempre em desequilíbrio, são
elas: “[...] linhas de visibilidade, linhas de enunciação, linhas de força, linhas
de subjectivação, linhas de brecha, de fissura, de fractura, que se entrecru-
zam e se misturam, acabando umas por dar noutras, ou suscitar outras, por
meio de variações ou mesmo mutações de agenciamento” (p. 89).
Por linhas de visibilidade, Deleuze (1996) compreende ser uma
dimensão do dispositivo que é composto por regimes de luz que quando se
propagam iluminam figuras variáveis e objetos inseparáveis de um dispositi-
vo, porém ao mesmo tempo em que tornam algo visível, encobrem outro,
tornando-o invisível. No entanto, o que fica visível por si próprio se enuncia
“com as suas derivações, as suas transformações, as suas mutações” (p. 85).
Dessa maneira, as linhas de enunciação, assim como as de visibilidade, ou
seja, os regimes de enunciados e de luz se referem à historicidade dos dispo-
sitivos, porque eles são “máquinas de fazer ver e fazer falar” (p. 84).
Quanto às linhas de força, elas se produzem, perpassam por to-
dos os lugares de um dispositivo, entrecruzam as coisas e as palavras,
“estabelecem o vaivém entre o ver e o dizer” (Deleuze, 1996, p. 85), sendo
assim cada linha de força “Invisível e indizível [...] está estreitamente
enredada nas outras e é todavia desenredável” (p. 85). A linha de subjeti-
vação também é uma linha de força, mas trata de um processo de indivi-
duação, de produção de subjetividade – dimensão do si mesmo, fabricado
e modelado pelo social.
No entanto, as linhas de brecha, de fissura e de fratura correspon-
dem à capacidade do dispositivo de se romper, de transformar-se, em prol de
um dispositivo posterior, isto é, elas são o extremo limite que esboçam a
passagem de um dispositivo a outro. (Cabral, 2005; Deleuze, 1996).
530 Ananda Kenney da Cunha Nascimento e Marcus Túlio Caldas

Baseando-se nas ideias de Foucault e Deleuze, Cabral (2005) nos


diz que os dispositivos comportam três dimensões: “saber (linhas de visibili-
dade e enunciação), poder (linhas de força) e subjetivação (relação consigo e
com o mundo, ou a dobra do Fora – linha de subjetivação)” (p. 78) e é possí-
vel percebê-las em ação no AT.
A primeira dimensão, saber, é demonstrada pela prática do AT
permitir e também favorecer que o sujeito compareça, ou seja, que o discurso
da pessoa em sofrimento seja ouvido e estimulado, por valorizar que cada
um detém saber sobre si mesmo. Já a segunda dimensão, o poder, fica explí-
cita pelo modo do profissional acompanhante e do acompanhado se dispuse-
rem na relação, a qual “não se baseia em uma hierarquia entre o poder do
especialista versus a ausência de poder do acompanhado” (Cabral, 2005, p.
84), onde uns são considerados detentores do poder e outros despossuídos,
mas sim, ambos os sujeitos detêm alguma forma de poder que, por sua vez,
“produz saber, gera discursos e práticas, constitui formas de subjetivação”
(p. 84). Assim sendo, essa relação horizontal prima pela equidade, o que
inclui diferenças e regras que não se estabelecem pela ordem hierárquica,
mas pelo vínculo fraterno, como expõem Mauer e Resnizky (2011), reconhe-
cendo sua capacidade de tecer o laço social.
Por fim, a terceira dimensão, subjetivação, por dizer respeito ao con-
junto de práticas de si através das quais o sujeito se constitui sendo produzido e
moldado pelo social, pode ser vivida de dois modos extremos: “relação de alie-
nação (assujeitamento a um modo de produção de subjetividade hegemônico) e
o processo de singularização (invenção de novas coordenadas de produção
subjetiva)” (Cabral, 2005, p. 84); dessa forma, uma das funções do acompa-
nhante é “auxiliar o sujeito acompanhado a romper com as formas de assujei-
tamento em que normalmente está aprisionado e investir no processo de singu-
larização, inventando, assim, novos modos de produção subjetiva” (p. 84).
Mauer e Resniky (2011) acrescentam que a concepção de uma
subjetividade em constante produção legitima a ideia de um psiquismo
aberto, capaz de transformar-se ao longo da vida e que contextualiza a doen-
ça mental como passível de transformação resiliente, a partir de encontros
significativos com um outro capaz de produzir novas marcas.
Por conseguinte, podemos afirmar que, em sua prática, o AT “é
essa rede que articula os elementos desse conjunto, que os põe a funcionar”
(Palombini, 2006, p. 119), pois ele assume uma dimensão clínica e política,
envolvendo quatro elementos básicos:

O primeiro elemento remete à presença da reforma psiquiátrica, na for-


ma de discursos, leis, medidas administrativas, entre outros, e a adesão
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

aos seus princípios por parte dos atores envolvidos – cada uma das esfe-
ras do governo, por parte do serviço, da equipe, dos profissionais atuan-
tes em cada caso. O segundo diz respeito à construção de um espaço de
continência e pertença dos acompanhantes terapêuticos, que seja externo
ao serviço onde realizam seu trabalho, preservando essa dimensão do
fora que o caracteriza. [...] terceiro elemento: a utilização de uma teoria
da clínica como caixa de ferramentas para o trabalho. Não a teoria, mas
uma teoria, somada a outras, do campo da história, ciências sociais, ar-
tes, geografia [...] o quarto refere-se à disponibilidade para o encontro
com o outro, tanto da parte do acompanhante como da pessoa a ser
acompanhada. Há uma dimensão de risco nesse encontro, de entrega ao
outro, de abertura ao desconhecido e ao inesperado, de onde pode emer-
gir a invenção, de que nem sempre se é capaz. (pp. 119-120)

Mauer e Resnizky (2011) corroboram o que Palombini (2006) afir-


mou acima e acrescentam que o vínculo fraterno que surge deste encontro entre
acompanhante e acompanhado é iluminado pelo regime de luz próprio desse
dispositivo. As autoras também fazem menção à característica constitutiva do
dispositivo: a heterogeneidade que se aplica ao campo da formação em AT, à
diversidade da prática clínica, à multiplicidade de formulações teóricas que o
fundamentam, à inserção desse profissional em uma equipe interdisciplinar, às
funções do acompanhante e à regulação de seu exercício profissional.
Por fim, Mauer e Resnizky (2011) concluem que, por meio do con-
ceito foucaultiano de dispositivo, o qual se define por sua gênese, tornou-se
possível caracterizar o AT como uma estratégia clínica, assim como elas
afirmaram no primeiro livro que publicaram em 1985, pois o AT como dis-
positivo apresenta natureza estratégica.
Desse modo, as autoras supracitadas nos alertam que a identidade
do AT é definida por uma territorialidade imprecisa, mutável e passível de
crises, o que implica uma contínua descoberta de novas dimensões, novas
linhas, as quais formam sempre processos em desequilíbrio. Todavia, elas
também nos lembram que grandes pensadores avançaram estimulados por
crises, por isso nos aconselham a utilizarmos essa modalidade como fonte de
inspiração para encarar nossas próprias incongruências.

4 ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO: DA INSPIRAÇÃO


A UMA MODALIDADE DE AÇÃO CLÍNICA

Na década de 1960, na Argentina, o Dr. Eduardo Kalina – psiquia-


tra argentino – insatisfeito com a conjuntura limitante das alternativas para o
tratamento em saúde mental, cria o AT com o intuito de dar uma
532 Ananda Kenney da Cunha Nascimento e Marcus Túlio Caldas

[...] cobertura total à vida de nossos pacientes, em especial aos drogados.


[E afirma:] Criei uma equipe de “acompanhantes terapêuticos” e de
professores especializados que colaboraram e colaboram conosco, esten-
dendo nossa ação terapêutica durante o dia e a noite; todos os dias da
semana e ao longo de todos os dias do ano, dentro e fora do âmbito da
internação. (Kalina, 1988/1986, p. 24)

Isto porque,

Não tínhamos nenhuma clínica preparada, mas, eu comecei a desenvolver


uma equipe de abordagem múltipla, tomando um modelo que fui criando
a partir das teorias psicanalíticas de Bleger e de outros modelos combi-
nados. Foi aí que também criei o Acompanhamento Terapêutico, como
uma modalidade de tentar juntar estes jovens a voltar a recuperar um di-
álogo e uma capacidade de viver de maneira mais normal. (Proença &
Lapastini, 1999, p. 61)

Deste modo, o AT como profissão “surgiu enquanto empírica, sem


mais (nem menos) respaldo que o pedido desesperado de uma prática clínica
que era insuficiente” (Mauer & Resnizky, 2008, p. 45). Confirmando que o
AT surgiu de uma inspiração e foi se constituindo como “um modelo de
trabalho cujos fundamentos surgiam da prática à teoria” (p. 109).
Todavia, em um primeiro momento, Kalina (1988/1986) chama
esse profissional de “amigo qualificado”, nomenclatura que foi questionada
pelo seu caráter amistoso, o que possibilitou reflexões, entre elas: mesmo
podendo estabelecer fortes laços afetivos com o paciente, o AT não é um
amigo. Portanto, com o intuito de se atingir o caráter terapêutico e profissio-
nal desejado, logo essa terminologia foi modificada para “acompanhante
terapêutico”, por esse profissional fazer parte de uma equipe terapêutica, por
realizar uma tarefa assistencial e por ser remunerado pelo seu trabalho.
Com o fracasso das abordagens terapêuticas clássicas com relação
a certos pacientes, esse profissional foi-se tornando necessário em diversos
outros países do mundo, entre eles o Brasil, onde chegou também na déca-
da de 1960. Sendo tal modalidade clínica trazida pelo Dr. Marcelo Blaya,
psiquiatra que teve sua formação nos Estados Unidos, praticou e ensinou a
residentes na Clínica Pinel, em Porto Alegre, chamando a esse profissional
de “atendente psiquiátrico”. Posteriormente, essa prática clínica chegou ao
Rio de Janeiro, conduzida pela Dra. Carmem Dametto – psiquiatra brasilei-
ra e aprendiz do Dr. Marcelo Blaya – que a implementou na Clínica Villa
Pinheiros, chamando a este profissional de “auxiliar psiquiátrico”. Entre-
tanto, apenas no final da década de 1970, essa prática clínica chega a São
Paulo, mas só é utilizada como função em 1981, no Instituto A CASA, com
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

a denominação de “amigo qualificado”, pois sofreu influência direta de


psicanalistas argentinos (Barretto, 2005/1998; Dametto, 1987; Piccinini,
2001; Simões, 2005).
De acordo com Simões (2005), a literatura nos mostra que não há di-
ferença entre os objetivos e as funções dos “atendentes psiquiátricos” e dos
“auxiliares psiquiátricos”, tendo apenas o segundo um caráter mais psicanalíti-
co, pois ambos tinham por função cuidar e ficar com o paciente dentro dos
hospitais, relacionando-se com ele de modo informal e, principalmente, acom-
panhá-lo em atividades cotidianas externas aos muros da instituição, o que de-
limitava o campo de atuação desses profissionais, diferindo-os dos demais.
Dametto (1972) demonstra isso quando afirma que

O auxiliar ou atendente psiquiátrico é uma inovação no hospital, decor-


rentes da introdução de métodos advindos da compreensão dinâmica
aplicados às atividades rotineiras junto aos doentes. [...] Com a psiquia-
tria dinâmica, o enfermeiro, agora chamado atendente ou auxiliar psi-
quiátrico, passa a ocupar uma posição de grande destaque no trabalho
diário. Não é exagero dizer que, sem ele, pouco podemos fazer pelo do-
ente internado. [...] A função do auxiliar, teoricamente, é acompanhar o
doente. É estar junto, verdadeiramente, em qualquer hora; é incentivá-lo
a atividades construtivas, reprimi-lo em atividades destrutivas, ampará-lo
na hora da angústia. É estar com o paciente, na “dele” [...] Não é fazer
as coisas por ele, alimentando a dependência. (pp. 102-103)

No entanto, percebe-se que esses profissionais diferem quanto ao


seu perfil, sendo os atendentes, geralmente, pessoas leigas e estudantes da
área de saúde mental, pois o que mais importava na seleção deles eram ca-
racterísticas de personalidade favoráveis ao exercício dessa função. Já os
auxiliares eram, em sua maioria, estudantes de psicologia e psiquiatria que
tinham interesse pela área clínica e, portanto, já tinham uma compreensão
sobre doença/saúde mental (Simões, 2005).
Para atender a esse perfil, Dametto (1972) afirma que, durante a
seleção dos auxiliares, enfatiza as características de personalidade do candi-
dato, percebendo se ele tem condições de estabelecer uma relação positiva e
franca tanto com o paciente quanto com a equipe e o supervisor. Para conhe-
cê-las, diz que realiza “uma entrevista psiquiátrica tradicional” (p. 116). Isso
porque, a autora concebe que, para o paciente, “o auxiliar não é só seu
acompanhante, o representante do médico, mas a pessoa que lida diaria-
mente com o doente a maior parte do tempo” (p. 103, grifo nosso).
Vale salientarmos que, conhecendo a Dra. Carmem Dametto, in-
clusive um dos autores trabalhou com ela durante alguns anos e a outra
534 Ananda Kenney da Cunha Nascimento e Marcus Túlio Caldas

autora a entrevistou recentemente, sabemos que a expressão grifada acima


não tem conotação de classe profissional, pois eram auxiliares psiquiátri-
cos: estudantes de medicina, psicologia, engenharia, dentre outras classes
profissionais.
A autora ainda salienta que não deve ser esquecida a experiência
dos psiquiatras mais antigos, os quais puderam acompanhar as transforma-
ções dos manicômios, portanto, eles podem testemunhar, ou seja, apenas eles
que vivenciaram tais situações é que podem narrar suas experiências. Além
disso, ela também fala da complexidade da formação do AT que não pode ter
apenas o conhecimento de psicologia e de psiquiatria, inclusive pela própria
construção histórica do AT. É importante este depoimento da Dra. Carmem
Dametto, inclusive com um alerta para novas gerações de que o horizonte de
ação do AT foi sempre de luta.
No entanto, na década de 1980, no Brasil, todas essas nomenclatu-
ras sofreram modificação, igualando-se às da Argentina, porque, de acordo
com Simões (2005), o AT foi se expandindo e ampliando sua clientela, a
qual, anteriormente, estava voltada para psicóticos adultos e, a partir de en-
tão, passou a abranger de crianças a idosos em outras condições de saúde
incapacitantes, o que inclui: toxicomania, pessoas com comprometimento
orgânico, deficiências físicas e mentais, pacientes pré e pós-cirúrgicos, além
das pessoas em sofrimento psíquico.
Rossi (2010) corrobora que o AT vem expandindo seu campo de
atuação bem como sua clientela, pois atualmente tem desenvolvido trabalhos
em diversos ambientes e com diversos públicos, dentre eles podemos desta-
car: escolas, com crianças desde dificuldades de integração social ou escolar
até transtornos graves como autismo; idosos em situação de doenças termi-
nais; alcançando ultimamente o âmbito jurídico. É importante salientar que
os ATs têm trabalhado com pessoas que não se encontram em crise, mas que
precisam (re) estabelecer o laço social, ou serem incentivados a (re)inserir-se
educativa, laboral e recreativamente; além de continuar agindo em situações
de emergência, crises, em seu momento agudo.
O autor supracitado ainda acrescenta que a atividade que o AT de-
sempenha é

[...] de forma ambulatória, no entorno habitual – familiar e social – do


sujeito: domicílio, rua, bares, cinema, clubes, parques, shopping, escola
etc. Busca utilizar o espaço de circulação do paciente para promover ou
sustentar um projeto terapêutico e para isto se vale da cotidianidade. Sua
ação se desenvolve no território urbano, no espaço e no tempo cotidiano
do paciente. (p. 45, grifo nosso, tradução nossa)
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

Mesmo com essa amplitude, Simões (2005) assinala que, na lite-


ratura, a função de acompanhar o cliente em momentos pontuais era função
tanto do amigo qualificado como é do AT, independente das atividades ocor-
rerem internas ou externas em uma clínica. Entretanto, vale ressaltar que
“[...] há uma predominância nas atividades em lugares externos” (pp. 76-77).
Assim sendo, o AT constituiu-se um trabalho auxiliar e comple-
mentar aos outros dispositivos de cuidado e, por isso, o AT, para desempe-
nhar sua função, necessita estar inserido em uma equipe composta por dife-
rentes profissionais (Bustos & Frank, 2011; Rossi, 2010).
Perante as especificidades de cada caso que venha a ser acompa-
nhado, podemos pensar em composições de equipes distintas, podendo elas
serem formadas basicamente por: psicoterapeuta de abordagem familiar,
administrador psiquiátrico, psicoterapeuta individual e um ou mais ATs, de
acordo com a necessidade do cliente. Mas se for avaliado que o cliente já
está em condições de começar outras atividades mais específicas, pode-se
incluir professores especializados (Mauer & Resnizky, 2008).
Entretanto, se não houver essa diversidade de profissionais atuando
no caso, como os citados anteriormente, além de geriatras, neurologistas,
entre outros, o art. 9º do Código de Ética dos Acompanhantes Terapêuticos
formulado pela AATRA – Asociación Acompañantes Terapéuticos de La
República Argentina (Associação de Acompanhantes Terapêuticos da Repú-
blica Argentina) prevê que o At tem por obrigação estar em contato, mini-
mante, com o profissional que está a cargo do tratamento do acompanhado,
para que ele oriente a tarefa a ser desempenhada no acompanhamento. Caso
não haja esse profissional responsável, o At deverá abster-se de intervir no
caso (Bustos & Frank, 2011).
Diante dessa dimensão conquistada pelo campo do AT, concepções
distintas passaram a serem elaboradas para melhor defini-lo. Porém, Rossi
(2010) diz que é preciso que compreendamos, inicialmente, o que o AT não é:
“Nem psicoterapeuta, nem analista. Nem assistente ou trabalhador social.
Nem educador especial, nem professora de recuperação. Nem enfermeiro
psiquiátrico. Nem vigilante, curador ou segurança particular. Nem secretário.
Nem amigo, nem familiar” (p. 43, grifos do autor, tradução nossa).
Para ilustrar a compreensão que predomina na literatura da clínica
do AT, desde seu surgimento, Carvalho (2004) nos diz que o AT se mostra
como uma alternativa aos tratamentos que estavam em vigor, mas se mostra-
vam falhos e insuficientes, portanto, esta clínica “[...] se apresenta como um
recurso de vanguarda na atenção à saúde mental” (p. 22).
Rossi (2010) por sua vez, define o AT como
536 Ananda Kenney da Cunha Nascimento e Marcus Túlio Caldas

[...] um recurso clínico especializado que opera desde uma abordagem


psicoterapêutica, de forma articulada com o profissional ou a equipe
terapêutica que o indica. Se inclui no tratamento interdisciplinar de pa-
cientes severamente perturbados, em situações de crises ou emergênci-
as, e em casos recorrentemente problemáticos ou que resistem à inter-
venção pelas estratégias psicoterapêuticas clássicas. (p. 45, grifo do
autor, tradução nossa)

No entanto, com o intuito de compreendermos melhor a especifici-


dade dessa clínica, sugiro que recorramos à etimologia da palavra “acompa-
nhar” que, de acordo com o Instituto Antônio Houaiss (2007), vem do latim
accompaniáre – conjunto de pessoas que comem seu pão conjuntamente –
que diz de um estar ou ficar com ou junto a (alguém), constantemente ou
durante certo tempo; fazer companhia a; conviver ou compartilhar as mes-
mas situações com, ou ser companheiro de; deslocar-se junto com, ou seguir
na mesma direção (de algo ou alguém); ir ou viajar com, na companhia de; ir
atrás de, seguir; realizar a mesma ação ou atividade que (outrem); ter o
mesmo comportamento ou agir da mesma maneira que; agir conjuntamente
ou em colaboração com; fazer ou formar um par ou um conjunto com ou-
tra(s) coisa(s), fenômenos(s); ajuntar, acrescentar; observar, manter a atenção
ou interesse voltado para (algo, ou alguém, que está em movimento, em des-
envolvimento, mudança, ação ou atividade) durante um período de tempo e,
eventualmente, participando do processo ou interferindo nele; presenciar,
assistir a (algo que é exposto ou apresentado, ou uma sucessão de eventos,
episódios, o desenrolar de um fato, história, drama).
Sendo assim, a partir de um verbo transitivo direto, ou seja, uma
palavra que exprime uma ação, a qual exige um parceiro e um complemento,
e que demonstra movimento, deslocamento, percebemos a especificidade, a
profundidade e a proposta desta prática clínica que, desde o princípio, vem
buscando nomear e nortear do modo mais adequado o seu fazer. Pela especi-
ficidade de sua profissão, o AT tem a possibilidade de intervir junto ao outro,
terapeuticamente, em instituições, na comunidade ou a céu aberto, e esse
modo peculiar de estar junto ao acompanhado apresenta uma possibilidade
de ação que transcende o próprio campo da prática, constituindo-se como
uma modalidade de ação eminentemente clínica.
Vale ressaltar que compreendemos a ação clínica como um modo
de atenção e de cuidado que se defronta com os modos-de-ser de um profis-
sional, os quais se manifestam numa dimensão ôntica através de suas inter-
venções. Portanto, ação clínica diz de um inclinar-se, ou seja, trata-se de
uma ação voltada à atenção e ao cuidado com o sofrimento do outro, consti-
tuindo-se uma condição originariamente humana, fundamentada em pressu-
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

postos ontológicos, desvencilhada do modo de concebê-la tecnicamente,


próprio das ciências naturais (Barreto, 2006).
Isso fica claro quando recorremos à etimologia da palavra (verbo)
clínicar, que vem do grego klinó e significa “inclinar-se”, de onde deriva-se
klísis que é “inclinação”, Kline que é “leito” e, por fim, klinikós que é “rela-
tivo ao leito”, o que se configurou tardiamente no exercício da profissão de
médico, o qual “visita pacientes acamados” (Instituto Antônio Houaiss, 2007).
Desse modo, a ação clínica é compreendida neste estudo em sua
propriedade originária, a qual diz de um “inclinar-se ao leito” e, como nos
diz Barreto (2006), ser clínico trata-se de estar disponível para o outro, apro-
ximando-se dele, deixando-se afetar por ele. Então, o clínico é aquele que se
inclina para ajudar, que trata o Ser com uma atenção cuidadosa, na qual o
paciente – aquele que passa por uma experiência de sofrimento – é acompa-
nhado em direção à saúde e ao bem-estar, promovendo-se, assim, um exercí-
cio de apropriação de si, de cuidar de si, ampliando suas possibilidades de
existir na cotidianidade.
Contudo, podemos pensar que o AT desempenha sua função de
acordo com o movimento da “experienciação (experiência em ação) do cli-
ente, [pois] tenta acompanhar esse trânsito: diz da afetabilidade, compreensi-
bilidade hermenêutica e comunicabilidade que constituem o acontecimento
clínico” (Barreto, 2006, p. 177).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluímos que o AT é uma estratégia clínica e política que teve


como pano de fundo o movimento pela desospitalização, pautado na Refor-
ma Sanitária, culminando no processo da Reforma Psiquiatra brasileira, o
que gerou transformações de caráter ético, clínico, político e ideológico no
campo da saúde nas últimas décadas, pois passou a ser uma questão de polí-
tica pública – dever do Estado –, visando a atender integralmente à popula-
ção – direito de todos – em todos os níveis de complexidade, isto é, preven-
ção, promoção, recuperação e reabilitação.
Destarte, o AT constitui-se um dispositivo por, principalmente,
buscar atender a uma urgência histórica com caráter de novidade e criativi-
dade, aliando-se a outros dispositivos passados e contemporâneos, o que
possibilita, por meio de suas fissuras, a produção de novos dispositivos e
favorece também transformações.
Percebemos que as transformações possibilitadas pela criação do
AT até o momento atual não se deram apenas no campo da saúde mental,
538 Ananda Kenney da Cunha Nascimento e Marcus Túlio Caldas

pois o AT foi tomando uma dimensão que, rapidamente, ultrapassou seus


objetivos iniciais, visto que sua operacionalização possibilitou a ampliação
do atendimento a uma vasta clientela, de crianças a idosos em sofrimento
psíquico e/ou físico. Além disso, a clínica do AT permite um trânsito fluido
entre acompanhante e acompanhado por diversos lugares que constituem a
rede social, na qual estão inseridos.
Pautados nessa perspectiva compreensiva, o AT também se cons-
titui como uma nova modalidade de ação clínica, pois propõe uma ação
voltada a uma atenção cuidadosa para com o sofrimento do outro, em busca
do exercício do cuidado de si e da ampliação de possibilidades, configu-
rando-se como um trabalho auxiliar e complementar aos outros dispositivos
de cuidado.

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540 Ananda Kenney da Cunha Nascimento e Marcus Túlio Caldas
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica

ÍNDICE ALFABÉTICO
542 Carmem L. B. T. Barreto, Henriette T. P. Morato e Marcus T. Caldas (Orgs.)

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“.”

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