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HISTÓRIA E LITERATURA: UM DESTAQUE

NA OBRA AUTOBIOGRÁFICA DE CAROLINA


MARIA DE JESUS

HISTORY AND LITERATURE: A


HIGHLIGHT IN THE AUTOBIOGRAPHIC WORK OF
CAROLINA MARIA DE JESUS

Romildo Rodrigues Neves Júnior1


Universidade Federal de Catalão (UFCat)

Resumo: O presente artigo tem Abstract: This article has as


por objetivo problematizar objective to problematize some
algumas considerações acerca do considerations on the Field of
campo da Literatura e da História. Literature and History. To carry out
Para realizar o estudo, levamos em the study, we take into account the
consideração a obra autobiográfica autobiographical work of Carolina
de Carolina Maria de Jesus, Diário Maria de Jesus, Diário de Bitita
de Bitita (1986) à qual é possível (1986), to which it is possible to
realizar uma análise da conjuntura carry out an analysis of the historical
histórica na primeira metade do conjuncture in the first half of the
século XX. Tendo como referência twentieth century. With reference to
os literatos e historiadores que the writers and historians who
abordaram esses campos, foi approached these fields, it was
possível obter resultados dos quais possible to obtain results of which
destacamos a importância que se we emphasize the importance that is
faz do entrelaço da Literatura e made of the interweaving of
História para uma leitura sensível Literature and History for a sensitive
do passado. reading of the past.

Palavras-chave: História; Keywords: History; Literature;


Literatura; Autobiografia Autobiography

1
Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão (UFG/RC) e
mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em História,
Cultura e Formação de Professores da Universidade Federal de Catalão (UFCat), sob orientação
do Prof. Dr. Valdeci Rezende Borges (PPGH-MP). E-mail: [email protected].
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Veredas da História, [online], v. 12, n. 1, p. 91-104, jul., 2019, ISSN 1982-4238

Os estudos entre História e Literatura passam a ser um rico campo de


pesquisa para essas duas áreas, sobretudo no Brasil a partir dos anos de 1990 e
foi ganhando forças e se desenvolvendo até os dias atuais. Nas décadas de
1980 e 1990, a aplicação e os entendimentos da Nova História Cultural
começaram a alargar suas fronteiras, e sua visão de representações de mundo
ganham espaço, graças à interdisciplinaridade de áreas como Antropologia,
Psicologia, Sociologia, Ciências Políticas, Linguagens (Literatura) com a História.
Assim, em especial a literatura assume um novo papel dentro da
historiografia. Agora estando como suporte para mostrar as análises acerca das
diversas facetas que o mundo apresenta, não somente concreto, mas com
pitadas de subjetividades dos homens que também fazem parte desse tempo e
espaço da mesma literatura.
Entender esse processo dentro da Literatura e da História é permitir-se,
pois, na medida em que essas duas áreas se envolvem, elas nos possibilitam
analisar o mundo à nossa voltae, portanto, aproveitar desses diálogos é ampliar
as fronteiras do conhecimento. Enclausurar-se já não é mais a questão dentro
das vertentes do saber, na medida em que usamos da História comoteoria e da
Literatura enquanto ficção para expor um fato. Estamos propondo dar
continuidade à articulação entre os ofíciosde historiador e literato.
O presente artigo tem por objetivo desenvolver e problematizar algumas
considerações acerca do campo da Literatura, em especial a literatura
autobiográfica destacando elementos essenciais da obra póstuma de Carolina
Maria de Jesus2 na sua obra Diário de Bitita (1982) e da História enquanto teoria
e disciplina.

2
Carolina Maria de Jesus nasceu no dia 14 de março de 1914, na cidade de Sacramento, Minas
Gerais. Foi criada por sua mãe, lavadeira, com mais sete irmãos. Com o apoio de uma das
freguesas de sua mãe, é matriculada aos sete anos no colégio espírita Alan Kardec, onde
desenvolve interesse pela leitura e pela escrita. Durante a infância e a adolescência, Carolina
vive em diversas cidades do interior de Minas e São Paulo, quase sempre trabalhando como
lavradora. Em 1937, Carolina se muda para a cidade de São Paulo e vai morar na favela do
Canindé, na zona norte da capital paulista. Trabalha como catadora de papel e, nas horas vagas,
registrava o cotidiano da favela em cadernos que encontrava no material que recolhia. Em 1960,
o livro autobiográfico “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”, com edição de Audálio
Dantas, é publicado com uma tiragem de dez mil exemplares. Com o sucesso das vendas,
Carolina, recebe homenagens da Academia Paulista de Letras e da Academia de Letras da
Faculdade de Direito de São Paulo. Nos anos seguintes, publica “Casa de Alvenaria: Diário de
uma Ex-favelada” (1961); “Pedaços da Fome” (1963) e “Provérbios” (1965). Apesar do sucesso
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A historiadora, escritora e poeta Sandra Jatahy Pesavento destaca que os


homens “[...] desde sempre, expressaram pela linguagem o mundo do visto e do
não visto, através das suas diferentes formas: a oralidade, a escrita, a imagem, a
música”. (2006, p. 2) O que para os historiadores do século XIX parecia
inimaginável, com a Nova Historia Cultural, os estudos de História passaram a
levar em consideração todas essas produções e expressões do ser humano para
se entender o processo histórico, e com essas ações os homens e mulheres
inseridos(as) na sociedade produzindo cultura.
Para Clifford Geertz (2012, p. 24), o conceito de cultura está para além de
“[...] um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os
acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela
é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma
inteligível [...].” Cultura, que segundo esse autor, é um sistema de signos
interpretáveis, de símbolos com significados que os próprios seres humanos
teceram os quais são entrelaçados como em uma teia. Assim, ele assume a
Cultura como sendo essas teias que tem seus significados decifrados por meio
de um procedimento interpretativo. (GEERTZ, 2012, p. 15).
Uma das formas de expressão e representação da cultura de um povo é
através da arte, em especial da Literatura, pois é através dessa que a língua,
como instrumento de comunicação e produtor de identidades, realiza algumas
de suas funções sociais, se fazendo conhecida e tornando-se possível a sua
manifestação. Além do mais, percebemos uma estreita relação entre a História e
a Literatura que são formas diferentes de observar, dizer e descrever o mundo.
Para Pesavento (2012, p. 81- 82), a História e a Literatura são capazes de:

editorial inicial, aos poucos a escritora retorna à condição de catadora de papel e é


praticamente esquecida. No dia 13 de fevereiro de 1977, Carolina Maria de Jesus falece em São
Paulo. Outras seis obras foram publicadas após sua morte, compiladas a partir dos cadernos e
materiais deixados por ela. Em 2017, sua história foi registrada por Tom Farias em “Carolina –
Uma Biografia”, publicada pela editora Malê. Dentre essas obras póstumas, está o livro do qual
usaremos nesse artigo para estudo e análise, intitulado “Diário de Bitita” (1986).
Concentraremos especialmente em algumas considerações teóricas e depois sobre o tema da
Revolução de 30, assim como a questão das desigualdades étnico-raciais geradas pela
escravidão.
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[...] explicar o presente, inventar o passado e imaginar o futuro.


São ambas as formas de representar inquietudes e questões
que mobilizam os homens em cada época de sua história e,
nesta medida, possuem um público destinatário e leitor. A
literatura permite o acesso à sintonia fina ou ao clima de uma
época, ao modo pelo qual as pessoas pensavam o mundo, a si
próprias, quais os valores que guiavam seus passos [...]. Ela
representa o real, ela é fonte privilegiada para a leitura do
imaginário.

Através da literatura é possível ao homem lidar com suas necessidades,


anseios, expectativas, sonhos e sublimar os seus desejos e fantasias, além de se
reconhecer enquanto sujeito no mundo em que está. Sem falar na possibilidade
de reencontro das épocas passadas com a contemporaneidade que ela
proporciona e o contanto com as gerações passadas. Por conseguinte, acessar
um texto literário, seja ele uma figuração do tempo atual ou passado é poder
acessar relações sociais e culturais que naquele estão ancoradas e resguardadas
de cair no esquecimento.
O sociólogo e crítico literário Antonio Candido (2004) aponta que a
literatura tem uma função humanizadora e transformadora, devido a sua
complexidade enquanto forma de representação não só da cultura, mas das
emoções de quem escreve e de quem lê, bem como é conhecimento no sentido
amplo da palavra. Walter Benjamin (1996 apud BARONE, 2007, p. 116) destaca
outra característica da Literatura, que está baseada na “[...] ideia da função
terapêutica da narrativa, na medida em que narrar permite a transmissão de
‘experiências’ humanas e ao narrar é possível organizar experiências
traumáticas, caóticas, díspares, abrindo espaço para a construção ou
reconstrução da identidade e do mundo do leitor.”
Na medida em que entendemos que a Literatura é formadora de
identidades culturais, podemos perceber o quanto de nós há na Literatura, pois
começamos a identificarmo-nos com os momentos históricos vividos, figurados
e compartilhados entre nós e o social. Como vimos, essa identificação vai se
dando através do imaginário veiculado e experimentado em comum entre os
sujeitos sociais. Na esfera ampla da produção literária, um gênero literário que
consegue nos envolver e desvelar o mundo da representação, o campo do
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imaginário, é o estilo de escrita autobiográfica, uma das formas de narrativas de


si.
Leonardo dos Santos Neves e Helder de Moraes L. Pinto (2013, p. 9)
destacam que o “[...] gênero (auto)biográfico tem sido objeto de estudos por
historiadores,em especial micro-historiadores, na medida em que coloca no
centro da atividade de pesquisa dois problemas nucleares e pouco resolvidos
para a História: a memória e a relação entre indivíduo e meio social.” Narrar
sobre si, portanto, narrar sobre a história de si é permitir-se entrar no mundo
onde articular lembranças e vivências passa a ser o ponto central da escrita na
qual impera a experiência.
Quando narramos estamos publicizando uma história e em se tratando
de construção escrita o processo pode ser doloroso, pois, como afirma o
sociólogo Michel Pollak (1992, p. 213), “[...] uma pessoa a quem nunca ninguém
perguntou quem ela é, de repente ser solicitada a relatar como foi a sua vida,
tem muita dificuldade para entender esse súbito interesse. Já é difícil fazê-la
falar, quanto mais falar de si”.
Mas porque dizer de nos parece ser algo tão difícil de fazer? Acreditamos
que ao tentarmos construir essa fala, muitas coisas ocorridas são revistas e
buscamos acessar o significado delas. Além do mais, garimpar a nossa memória
é fazer o que passou ou está acontecendo reviver. No entanto, por mais simples
que pareça, essa atividade pode se apresentar marcada por nostalgia para uns e
realizadora para outros: enquanto nostalgia, relembrar é viver; enquanto
realização, relembrar é se conhecer. Porém, sabemos que por meio da História,
como conhecimento, não podemos reviver o ocorrido, mas apenas reconstruir
dimensões do acontecido por meio dos vestígios do passado a que temos
acesso, pois se a memória é a vida e sempre carregada por grupos vivos, como
já foi dito, a História, por sua vez, é problematizante e conceitual. Conforme
ressaltao historiador francês Pierre Nora (1993, p. 9), “A história é a
reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais”,
figurando como “uma representação do passado” por meio de uma operação
intelectual e laicizante, que demanda análise, interpretação e discurso crítico, e
“só conhece o relativo”.
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Candido (2004, p. 55) ratifica o supradito acerca da Literatura ao apontar


que:

[...] a criação literária corresponde a certas necessidades de


representação do mundo, às vezes como preâmbulo a uma
práxis socialmente condicionada. Mas isto só se torna possível
graças a uma redução ao gratuito, ao teoricamente
incondicionado, que dá ingresso ao mundo da ilusão e se
transforma dialeticamente em algo emprenhado, na medida em
que suscita uma visão do mundo.

De modo sucinto, o historiador Valdeci Rezende Borges (2010) expõe


que a História tem se apresentado como uma disciplina e como um processo
social, enquanto a Literatura vem até nós como documento em forma de arte
que traz em seu bojo uma historicidade própria. Historicidade pela qual
podemos ler o tempo em que se passou a escrita, os personagens, o autor, a
época.
Destarte, de acordo com Valdeci RezendeBorges (2010, p. 98):

No universo amplo dos bens culturais, a expressão literária


pode ser tomada como uma forma de representação social e
histórica, sendo testemunha excepcional de uma época, pois
um produto sociocultural, um fato estético e histórico, que
representa as experiências humanas, os hábitos, as atitudes, os
sentimentos [...] e as questões diversas que movimentam e
circulam em cada sociedade e tempo histórico. A literatura
registra e expressa aspectos múltiplos do complexo,
diversificado e conflituoso campo social no qual se insere e
sobre o qual se refere. Ela é constituída a partir do mundo
social e cultural, e, também, constituinte deste.

A Literatura é, portanto, uma fonte, um campo, um lugar, privilegiado


para o historiador/pesquisador, pois lhe garante acesso diferenciado ao
imaginário, permitindo que ele enxergue traços que outras fontes não lhe
forneceriam. (MARTINS, 2015, p. 8)

Tanto a narração literária quanto a historiográfica pressupõe


um processo e estratégias de organização da realidade, uma
procura de uma coerência imaginada baseada na descoberta de
laços e nexos, de relações e conexões entre os dados fornecidos
pelo passado. Essa coerência – imaginada, fictícia – depende
claro, parcialmente, dos próprios dados, mas também da
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plausibilidade de uma significação possível, imaginada pelo


escritor/historiador de tal maneira que o leitor possa
reconstrui-la (LEMARIE, 2000, p.9-10, apud SANTOS, 2007, p.
121).

Em se tratando de Literatura, merece seu devido destaque o papel


exercido pela representação que cada gênero literário quer nos mostrar. Nesse
sentido, as representações através do discurso literário vão traçando lugares
que colocam o seu leitor a par de uma identidade social. Quando o leitor se
identifica com seu personagem, consequentemente ele está denunciando uma
memória coletiva que é exercida sobre si.
Conforme destaca o sociólogo francês Maurice Halbwachs (1990, p. 98),

Para que a memória dos outros venha assim a reforçar e


completar a nossa, como dizíamos, é preciso que as lembranças
desses grupos não deixem de ter alguma relação com os
acontecimentos que constituem o meu passado. Cada um de
nós pertence ao mesmo tempo a muitos grupos, ou mais ou
menos amplos.

Podemos também afirmar que a Literatura se vale como testemunha de


lembranças e memórias que momentos ou outros tendem a cair no
esquecimento, porém são resgatados pela escrita e se firma através do coletivo.
De acordo com Halbwachs (1990, p. 62), nossas lembranças são a todo instante
recordadas por outros, a história universal não é de um homem só. Toda
memória individual é coletiva. Qualquer recordação de uma série de
lembranças que se refere ao mundo exterior é explicada pelas leis da percepção
coletiva.
Quando discutimos acerca da literatura seja ela brasileira ou estrangeira
devemos nos atentar para o discurso reproduzido dos personagens. Por isso, se
faz necessário essas análises assumidas por pesquisadores do campo da
História para descobrir os impactos que a Literatura x ou y causa na sociedade
ou ao público ao qual ela está sendo dirigida.
Como acontece com a personagem Carolina, o que presenciamos ao
entrar em contato com seu livro autobiográfico está de acordo com a visão de
mundo que a autora nos apresenta. Passamos, portanto, a enxergar na ótica
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dela, principalmente sob sua fotografia do social das décadas de 30 e 40 do


século passado. Assim, a Literatura não deixa de ser uma instituição social viva,
como salienta Luis Felipe Ribeiro (2000, p. 97), que por nós deve ser vista como
“[...] histórico, político e filosófico; semiótico e linguístico; individual e social, a
um só tempo. Sua realidade transcende o texto para assumir o discurso, que
conta, minimamente, com as dimensões do enunciador, do enunciado e do
enunciatário”.
Embora “[...] um livro de ficção não retrate personagens que existiram, o
que se observa muitas vezes são livros que trazem situações que foram muito
comuns à época em que o livro se passa, ou ainda personagens baseados em
uma ou várias pessoas que de fato viveram”. (MARTINS, 2015, p. 4). Tendo em
vista os apontamentos de Giovana Maria CarvalhoMartins (2015), podemos
considerar que Carolina enquanto menina residente em Sacramento presenciou
um desdobramento da então nomeada Revolução de 30, ou Golpe de 1930, e
mais tarde a escritora narra em seu livro as suas impressões acerca da
movimentação que houvera na cidade mineira e em seu entorno.
De acordo com Lucia Lippi de Oliveira (1993, p.1), a Revolução pode ser
definida como um:
Movimento armado iniciado no dia 3 de outubro de 1930, sob a
liderança civil de Getúlio Vargas e sob a chefia militar do
tenente-coronel Pedro Aurélio de Góis Monteiro, com o
objetivo imediato de derrubar o governo de Washington Luís e
impedir a posse de Júlio Prestes, eleito presidente da República
em 1º de março anterior. O movimento tornou-se vitorioso em
24 de outubro e Vargas assumiu o cargo de presidente
provisório a 3 de novembro do mesmo ano. As mudanças
políticas, sociais e econômicas que tiveram lugar na sociedade
brasileira no pós-1930 fizeram com que esse movimento
revolucionário fosse considerado o marco inicial da Segunda
República no Brasil.

Considera ainda que, é possível encontrar na literatura alguns autores


que definiu o movimento como político e social. É possível observar que “[...] o
grupo de políticos que preparou a Revolução, e principalmente sua liderança —
Vargas e Antônio Carlos —, representa nada mais que a própria oligarquia
contra quem lutam.” (OLIVEIRA, 1993, p. 102).
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Para o historiador Noé Freire Sandes, (2009, p. 131), a Revolução


representou, em dado aspecto, a vontade de conduzir o projeto político de uma
nova organização da política brasileira. Esse levante surge estrategicamente
como uma possibilidade de redefinição e continuidade do governo varguista e
das “práticas políticas precedentes”.
Fausto (1972 apud, SANDES, 2003, p. 148) seleciona abordagens
historiográficas das quais ele coloca em ultimato a relação do movimento com
as classes sociais e organiza “um modelo interpretativo em que o Estado se
coloca como mediador dos interesses em conflito.” De acordo com esse mesmo
autor (1972), a denominada classe média e a operária não tiveram força
suficiente a ponto de batizar a Revolução de 1930 como sendo burguesa. Por
outro lado, quando Sandes (2003) aponta a reflexão que Barbosa Lima Sobrinho
faz a cerca do mesmo movimento, nos deparamos com uma visão contrária à
apontada por Boris Fausto, uma vez que “a revolução é analisada como
movimento popular que empolgou a população e alcançou notável grau de
radicalismo em algumas regiões do país.” (SANDES, 2003, p. 150)
Nas palavras de Carolina, “um dia amanheceu confuso, com as ruas
cheias de soldados. Era a revolução. Eu conhecia só a revolução das formigas
quando se locomovem. Mas a revolução dos homens é trágica. E uns matando
os outros” (JESUS, 2014, p. 155). Longe de ser algo consuetudinário para
Carolina, a Revolução se mostrou como algo violento e trágico, pois envolvia
diretamente a vida das pessoas, a rotina da cidade e um alvoroço entre os
moradores.
Entre os cidadãos de Sacramento era possível ouvir comentários a
respeito da Revolução e da pessoa de Getúlio Vargas como destaca a
autora:“Agora o Brasil vai ficar aos cuidados de um Homem! Este vai dar um
impulso ao país. Somos um povo sem líder. Temos que despertar. O país não
pode continuar deitado eternamente em berço esplêndido. O nosso país é
muito atrasado.” (JESUS, 2014, p. 155). Além do mais Carolina ouvia
comentários que o povo tecia ressaltando que o governo de Getúlio Vargas
seria diferente, pois ele era considerado o fundador do Partido Trabalhista (PT),
portanto haveria mais emprego para os brasileiros.
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Entre as mulheres de Sacramento, a autora nos relata que podia-se ouvir


alguns burburinhos a respeito daquele momento histórico que o país estava
presenciando, fazendo exaltações e consagrando que se o “Brasil fosse sempre
assim, isto aqui seria um paraíso.” (JESUS, 2014, p. 156). Embora o início tenha
se apresentado dessa forma. Logo a população de Sacramento observou que a
ordem e a disciplina que se percebia entre os militares já não se mostravam tão
estabelecida assim, além da ideia falsa de mudança que outrora se apresentou
evidente para o povo, agora estava explícito uma estratégia econômica e
política mais a nível interno do governo do que popular.
Para os pobres, aquela Revolução era considerada a época das “vacas
gordas”. (JESUS, 2014, p.157). Ou seja, para os alistados no exército haveria, por
parte do governo, uma bonificação que permitiria o servidor ter algo depois
que tudo se acalmasse, acreditando poder deixar algo para os filhos e
familiares. Percebemos, portanto que uma cidade onde havia muitas pessoas
pobres e desempregadas não enxerga a Revolução de 1930 como um golpe
perpetrado por Getúlio Vargas à Júlio Prestes, mas como uma forma de
melhorar irrisoriamente sua condição financeira através do bônus militar.
Embora o irmão de Carolina, Jerônimo Pereira, ao contrário dos outros
jovens de Sacramento, não quis participar do alistamento para se juntar às
forças que lutavam em prol da Revolução, pois alegava ter medo, no entanto,
ele estava curioso para ver os soldados que se movimentavam pelas ruas. Como
modo de ludibriar as forças armadas e ir assistir os militares, sem correr o risco
de ser recrutado contra a vontade, o irmão de Carolina achou um meio para
também poder sair às ruas sem ser notado enquanto homem. Ele toma
emprestado da irmã um vestido, faz maquiagem, passa batom, coloca alguns
colares e um lenço sobre a cabeça e sai na esperança de ver o que estava
acontecendo lá fora.
Depois de um tempo, o irmão entra em casa correndo e todo esbaforido
tentando se livrar das roupas femininas e procurando os seus trajes. O motivo
era que uns soldados estavam procurando uma “mulata bonita” que havia
passado por eles; a mãe de Carolina sabendo que a mulata na verdade era seu
filho, logo deu um jeito de despistar os soldados dizendo que por ali não havia
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passado ninguém com aquelas características ditadas por eles. Os soldados


foram embora dizendo: “Que mulata bonita! Nunca vi coisa igual! Será que ela
já é casada? Mulheres bonitas arranjam dono logo. Eu queria apenas olhar para
ela, porque nós não podemos molestar as mulheres. A revolução não permite.”
(JESUS, 2014, p. 157).
De acordo com o jornalista, escritor e biógrafo Tom Farias, Carolina,
talvez em função do que viu e presenciou na época da Revolução, se tornaria
uma vigorosa e valente getulista. Conforme Farias (2017), um de seus primeiros
textos conhecidos, estes já escritos quando morava em São Paulo, será sobre
sua admiração no que tange à pessoa de Getúlio Vargas.
Em meio ao cotidiano urbano, Carolina ouvia-se dizer que na Europa
corria boatos que o negro no Brasil, por ter sido escravo, trabalhava de graça
em troca de pinga e comida. (JESUS, 2014, cit., p.161). A visão do mundo
exterior para com a população negra que residia no país distorcia a realidade
local, pois pressupunha a existência uma de mão de obra barata que trocava
sua força de trabalho por um salário baixo e mesquinho.
A lei Áurea ao contrário do que pensava a autora, (JESUS, 2014, p.81) não
agraciou os pretos com a liberdade. A construção de ranchos na beira das
estradas, justamente porque essas pertenciam ao governo e ninguém falavam-
lhes nada, que levou-os a procurar um lugar para morar. O olhar de Bitita
(apelido de infância de Carolina Maria de Jesus) acerca desse fator nos mostra a
sua percepção ingênua provocada pelos defensores da limpeza étnico racial,
instalada no país no período da “libertação dos escravos”.
Conforme destaca a cientista social e historiadora Célia Maria Marinho de
Azevedo (1987, p. 21):

[...] o ex- escravo e seus descendentes saíram espoliados da


escravidão e despreparados para o trabalho livre, incapazes,
enfim, de se adequar aos novos padrões contratuais e
esquemas racionalizadores e modernizantes da grande
produção agrícola e industrial, tornando-se doravante
marginais por força da lógica inevitável do progresso
capitalista.
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Certa feita quando a menina Bitita foi acusada de roubar umas mangas
do quintal de Dona Faustina, sua vizinha, ela não titubeou em responder à
vizinha que “Os brancos também são ladrões porque roubaram os negros da
África”. (JESUS, 2014, p. 58). Entretanto, poucas pessoas tinham essa consciência
histórica e social que Carolina demonstrava ter sobre a escravidão. Nas palavras
de sua bisavó, dona Maria Abadia, os brancos de agora já estão ficando melhor
para os pretos. Agora, por exemplo, eles atiram para amedrontar, antigamente
atiravam para matá-los. (JESUS, 2014, p. 58).
“Apenas sorriam achando graça de ver os negros correndo de um lado
para o outro. Procurando um refúgio, para não serem atingidos por uma bala”.
(JESUS, 2014, p. 58). Portanto, os policiais que deveriam cumprir o papel de
manter a segurança de todos e todas sem discriminação alguma, busca pelo
contrário, perseguir e eliminar o negro da nossa sociedade.
Ao fim de suas observações acerca dos negros de Sacramento, Bitita
conclui que, ao falarem que os negros agora estavam livres, ela logo pensava
em que liberdade era aquela vivida por eles, onde a todo instante eles estavam
correndo das autoridades como se fossem culpados de algo que nem mesmo
ideia faziam, levando em consideração nos assassinatos sem explicação que a
própria polícia perpetrava contra os negros. Carolina arremata:“Então o mundo
já foi pior para os negros? Então o mundo é negro para o negro e branco para
o branco!” (JESUS, 2014, p. 59).
Destarte concluímos que a linha que separa a Literatura e a História tem
se apresentado cada vez mais tênue. Uma se entrelaça na outra e já não sinaliza
repúdio ou desavenças dentro desses dois campos do saber como outrora se
apresentou. As fronteiras da Literatura e da História já se entrecruzam, e
esperemos que nesse entrecruzar muito conhecimento possa ser produzido e
compartilhado. De outra forma caímos na possibilidade de reproduzir áreas sem
diálogo, sem debate ou crítica, o que poderia contribuir para entramos em total
anacronismo na leitura da sociedade e do mundo. Camilotti; Naxara (2009, p.16)
apontam que:

Há questões incontornáveis quando se trata de refletir sobre as


relações entre história e literatura na modernidade, tendo em
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vista a fluidez das fronteiras que, mais do que separá-las, as


aproxima. Ambas abordam temas comuns sob diferentes
perspectivas, utilizam formas aproximadas para se
concretizarem – a escrita em suas variadas dimensões.

Assim, os estudos que procuram na Literatura elementos históricos


tendem a tornarem-se cada vez mais frequentes, pois possibilita refletir através
de escritos e do exposto o universo literário. Podemos ver como Carolina em
seu diário torna aquilo que era a princípio individual em algo universal, através
da vivência de mundo da escritora, os que estão a sua volta também passam
pelo crivo da análise e complementam suas memórias infanto-juvenis.

Referências
AZEVEDO, C. M. M. de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das
elites-século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
BORGES, Valdeci Rezende. História e Literatura: Algumas Considerações.
Revista de Teoria da História. Goiânia: Ano 1, n. 3, pp.94-109, junho/2010.
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Recebido em: 17.07.2019


Aprovado em: 1.08.2019

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