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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

A apologia do objeto:
experimentação e inovação formal na escultura modernista

Ana Sofia da Cunha Rosa

Dissertação
Mestrado em Escultura

Dissertação orientada pelo Prof. Doutor José Manuel da Silva Teixeira

2022
RESUMO

A presente dissertação procura abordar o objeto como elemento e conceito relevante para a
transformação da tradição escultórica, que decorre principalmente na primeira metade do
século XX. Neste período, a Escultura é submetida a uma análise das suas acepções e
concepções e é transmitida uma mudança radical no panorama artístico. Assim, o estudo
proposto pretende relacionar a expressão de objeto com a atitude artística, que questiona e
desenvolve as tipologias e características convencionais, com o intuito de resolver
tridimensionalmente um novo sentido de escultura. Poderemos observar que, neste contexto
vanguardista, o objeto surge enquanto motivo alternativo ao naturalismo da figura, o que
culmina em novos resultados escultóricos e na sua coincidência expressiva com processos
representativos que assumem a abstração. Deste modo, pretende-se entender o objeto como
meio revelador de propostas revolucionárias, que potencializam o desenvolvimento do
paradigma representativo da Escultura, como pretexto para uma experimentação formal e,
consequentemente, uma inovação das suas acepções e concepções.

Palavras-Chave:
Escultura; experimentação; inovação, objeto; modernismo

3
ABSTRACT

The present dissertation seeks to approach the object as a relevant element and concept for
the transformation of the sculptural tradition, which takes place mainly in the first half of the
20th century. In this period, Sculpture is subjected to an analysis of its meanings and
conceptions and a radical change in the artistic panorama is transmitted. Thus, the proposed
study intends to relate the expression of the object with the artistic attitude, which questions
and develops the conventional typologies and characteristics, in order to solve three-
dimensionally a new sense of sculpture. We can observe that, in this avant-garde context, the
appearance of the object appears as an alternative motif to the naturalism of the figure, which
culminates in new sculptural results and in its expressive coincidence with representative
processes that assume abstraction. In this way, it is intended to understand the object as a
means of revolutionary proposals, which potentiate the development of the representative
paradigm of Sculpture, as a pretext for formal experimentation and, consequently, an
innovation of its meanings and concepts.

Keywords:
Experimentation; innovation; modernism; object; Sculpture

4
Aos que foram, aos que estão e aos que vierem

Obrigada

5
Índice

Introdução 6

1. O objeto implícito, despercebido e assumido na estatuária 10

1.1. O objeto como atributo iconográfico (Tradição Clássica) 10

1.2. O objeto despercebido na estatuária oitocentista 14

1.3. O objeto invisível e o vazio na escultura modernista 18

1.4. O plinto enquanto objeto estrutural da escultura 21

1.4.1. Queda e autonomia do pedestal 27

2. Acerca da despersonalização da figura e da autonomia do fragmento 37

2.1. Busto 37

2.2. Torso 51

2.3. A síntese do corpo 61

3. Sobre o procedimento sintético: o papel das vanguardas históricas 70


no âmbito da racionalidade e abstração

3.1. Expressão geométrica e organização da forma e fragmento 70


(Collage, Assemblage e Construção)

3.2. Estrutura e composição: o efeito do desenho no espaço 83


(Linha, forma e abstração)

3.3. O conceito espacial e os materiais industriais 95


(Construtivismo Russo, Bauhaus e De Stijl)

4. O objeto em evidência 106

4.1. Dadaísmo e objeto ready-made (negação e subversão) 106

4.2. Surrealismo e objet trouvé (absurdo e improvável) 116

4.2.1. O Surrealismo tardio em Portugal 126

4.3. Biomorfismo e Informalidade 132

4.3.1. Objetos biomórficos 132

4.3.2. Informe/Disforme 138

Conclusão 145
Bibliografia 151

6
Introdução

A principal questão que nos guia neste espaço de investigação, “o que significa o objeto
na escultura?”, é respondida ao considerarmos o seu reconhecimento enquanto coisa
material. Partindo desta observação, torna-se oportuno desenvolvermos uma análise
sobre a importância e relevância do objeto, na Escultura, não apenas segundo a sua
acepção enquanto utensílio ou ferramenta, mas como meio expressivo que se presta a uma
expressão tridimensional.
Deste ponto de vista, em contraste com a representação figurativa que se demonstra com
maior predominância na prática escultórica, consideramos o carácter formal alternativo
do objeto, que difere da concepção tradicional na Escultura. Assim, para desenvolver uma
abordagem sobre o sentido e efeito de objeto, consideramos situar a sua importância na
transformação dos objetivos artísticos, que se sucede, principalmente, na primeira metade
do século XX, e que assume uma mudança significativa dos convencionalismos
escultóricos.
Com relação a este período, reconhecido enquanto um fenómeno apelidado de
Modernismo, a tradição Clássica é reavaliada e são sugeridas propostas alternativas às
suas acepções e concepções, o que nos parece estabelecer uma favorável relação para com
o sentido de objeto, que se assume como formalidade alternativa ao naturalismo da figura.
Para uma melhor elucidação sobre a tendência artística pela inovação da tradição
escultórica, socorremo-nos da teoria partilhada por Anne Cauquelin, relativamente ao
conceito de Arte Moderna, em contraste com a Arte Contemporânea. Não citando apenas
Cauquelin como fundamento teórico, que nos guia nesta investigação, devemos de
também referir Margit Rowell e a sua interpretação sobre a escultura moderna, num
estudo e abordagem sistemática, que dá lugar a uma análise clara dos indicadores
modernistas e das suas manifestações artísticas.
Para além da sua abordagem, que nos permite definir um percurso, e avança pelas
correntes artísticas, que se desenvolvem neste período, Rowell acrescenta a peculiaridade
de um limite cronológico aplicado ao Modernismo, sendo ele compreendido entre 1900
e 1970.
De forma a atingirmos este extremo, que Rowell define, enquanto ponto de partida para
considerações em torno da atitude modernista, é assumida uma contextualização prévia,

7
onde é possível reconhecer os convencionalismos da tradição clássica. Neste âmbito, o
objeto é inicialmente identificado, segundo a sua aparência e importância nas
características convencionais da estatuária.
Igualmente, assim, a presente investigação propõe relacionar o significado de objeto, no
primeiro capítulo, O objeto implícito, despercebido e assumido na estatuária, com a sua
expressão tridimensional, enquanto coisa material que se presta a uma caracterização e
identificação das personagens representadas e, portanto, relacionado com a sua evidência
enquanto atributo iconográfico.
No panorama português consideramos apontar alguns exemplos das manifestações
modernistas enquanto subcapítulo, definindo um percurso do objeto na estatuária
oitocentista, considerado como elemento “cénico” e simultaneamente como um pretexto
para uma sugestão alternativa ao plinto.
Sobre as propostas que decorrem nesta primeira fase, que tomam as suas raízes no
naturalismo académico, a atitude modernista revela uma atuação sobre os arquétipos
escultóricos e a transformação das convenções escultóricas permitem-nos considerar a
acepção de plinto ou pedestal enquanto concepções de elementos complementares, que
colocam a figura em evidência. Deste modo, como dispositivos que se prestam a uma
elevação da figura, a relação proposta com o objetivo representacional do objeto permite-
nos avançar na particular correspondência entre ambos enquanto expressões
tridimensionais que não são figura e que conferem uma contextualização para a própria
figura.
Partindo de uma análise aos convencionalismos escultóricos, no segundo capítulo, Acerca
da despersonalização da figura e da autonomia do fragmento, debruçamo-nos nas
tipologias convencionais da Escultura. Segundo esta abordagem, no território da
representação figurativa, que se presta ao significado de fragmento, tenciona-se observar
o desenvolvimento de procedimentos representativos, que transformam o reconhecimento
do referente escultórico tradicional.
Com estas características de uma produção artística, que transforma as tipologias
convencionais, o conceito de objeto surge como resultado de uma transformação formal,
que se assume com a sua coincidência “acidental” com processos de abstração. Ao
analisar esta transformação, poderemos considerar que, em larga medida, surge o diálogo
entre o sintético e o natural, onde a simplificação do corpo humano e a abstração do
referente escultórico resultam numa despersonalização da figura e, simultaneamente,
numa aparência objetual.

8
É a partir destas abordagens que pretendemos abrir caminho para as possibilidades
formais e multiplicidade de significados de objeto e indagar pela escultura modernista,
numa análise às experimentações formais que são propostas. Com isto, no terceiro
capítulo, Sobre o procedimento sintético: o papel das vanguardas históricas no âmbito
da racionalidade e abstração, é definido um conjunto de manifestações que recorrem ao
objeto como elemento tridimensional, enfatizando a sua importância e presença nas
metodologias alternativas, que surgem com a liberdade criativa e com os novos
procedimentos representativos.
Neste capítulo, torna-se evidente a correspondência entre a experimentação formal e o
efeito simplificador, que se demonstra familiar ao processo de abstração. Em torno de
conceitos como a geometrização e a organização da forma e fragmento, o espaço é
reconhecido como lugar para construir uma composição, o que revela uma consciência
por parte dos artistas modernistas pelo seu valor escultórico. Deste modo, são observadas
as metodologias alternativas desenvolvidas, como a collage e assemblage, sendo
considerada a construção como método alternativo à tradição escultórica, que reflete
sobre um novo modo em conceber e pensar escultura num “jogo” combinatório de formas,
fragmentos materiais e objetos.
Poderemos observar que, no seguimento destas propostas, também a tendência pelos
materiais industriais, que ocorre no início do século XX, e a sua correspondência para
com o conceito de materialidade como princípio, evidenciam o objeto como alternativa
aos métodos tradicionais, sendo proposto enquanto meio para uma tradução formal
inovadora, na sua função metodológica, representativa e conceptual.
Com abordagens alternativas e a introdução de novos métodos, a partir do
reconhecimento do objeto enquanto forma, fragmento ou elemento tridimensional, que é
integrado na criação e produto escultórico, no quarto capítulo, O objeto em evidência, é
feita uma análise sobre os novos conceitos, que surgem com a revelação do objeto no
contexto escultórico e que evidenciam os objetos comuns e a sua importância para a
transformação que ocorre na escultura.
Neste capítulo, são abordadas as características metafóricas, simbólicas e, acima de tudo,
os fundamentos estéticos e conceptuais, propostos pelos artistas vanguardistas que
provocam uma alteração do sentido de objeto. Consequentemente, é modificada a sua
noção prosaica e é proposta uma amplitude sobre a concepção e resultado escultórico,
onde a experimentação formal se assume com uma dimensão objetual, com relação
conceptual.

9
Neste sentido, embora não possamos responder diretamente à pergunta que nos guia nesta
investigação, ao longo deste estudo, são revelados os indicadores e condições, que
proporcionam uma ampla abordagem em torno da dimensão objetual, que é desenvolvida
na escultura modernista. Assim, são apresentadas as suas qualidades para o
desenvolvimento processual e metodológico, potencializado pela experimentação formal,
o que nos parece responder não só ao seu significado na escultura, como à sua importância
enquanto elemento fundamentalmente caracterizador da inovação escultórica e da atitude
modernista, que permite uma passagem do modo perceptivo para o modo conceptual.

10
1. O objeto implícito, despercebido e assumido na estatuária
1.1. O objeto como atributo iconográfico (Tradição Clássica)

A tendência artística, segundo a tradição Clássica, expressa-se na coexistência


representativa da figura com elementos tridimensionais, cujo papel se assume como
atributo iconográfico.
Para apontar esta relação entre objeto e figura, socorremo-nos da iconografia da
personagem de David, relacionada com a passagem presente no Antigo Testamento, que
conta o feito de David que enfrenta e derrota Golias.
No exemplo realizado pelo escultor florentino Donatello (1386-1466), de 1409, a postura
de David é representada com o corpo em contraposto, acentuado com a assimetria frontal
proposta pela perna fletida e com a mão apoiada na cintura. [Fig. 1]
Para além das vestes que cobrem o corpo, que podem ser consideradas como adereços
complementares à figura, na parte inferior, junto aos pés de David, é identificada a
“cabeça de Golias”, que se assume como elemento que acresce à caracterização da figura
e respetiva narrativa representada.
Esta temática é também expressa, posteriormente, pelo autor, em 1440, numa
representação do corpo em semelhante posição, com a mão esquerda apoiada na cintura.
No entanto, nesta proposta a figura de David encontra-se com o pé esquerdo colocado
sobre a “cabeça” de Golias, o que propõe uma leitura de uma atitude do corpo relaxado e
orgulhoso pela sua vitória.1 [Fig. 2]
Comparativamente ao exemplo anterior, a representação naturalista da figura encontra-se
nua.2 Contudo, é acompanhada com os adereços que permitem ao observador identificar
e desencadear o significado total da obra, como uma funda, que segura com a mão direita,
e a “cabeça” de Golias que se encontra debaixo do pé da figura de David.
Enquanto elemento que formula o significado, o objeto, neste caso, resulta como
referência simbólica – a funda e a cabeça de Golias - que permite reconhecer a narrativa

1
A face de David, com traços juvenis, no entanto, não “fala” de um modo tão “direto” quanto a atitude do
corpo. – SANTINHO, Maria – Escultura. Lisboa: Lugano e Editorial Verbo. 1978. p. 98.
2
As representações figurativas, que se desenvolvem nos finais do século XIV, remontam para uma
tendência artística que se inspira na Antiguidade Clássica, sendo compreendida enquanto Renascimento.
Nesta época, o nu é considerado como meio expressivo que se presta a uma revelação, por parte do escultor,
do seu conhecimento da anatomia humana, sendo o corpo instrumento para uma representação que enfatiza
o pensamento humanista e propõe uma “forma exemplar”. Vid. ANDERSEN, Sophia de Mello Breyner –
O nu na Antiguidade Clássica: Antologia de poemas sobre a Grécia e Roma. 4ª ed. Lisboa: Assírio &
Alvim, 2019.

11
à qual a figura masculina representa. De forma a auxiliar e potencializar a representação
figurativa, deste modo, o objeto estabelece-se numa expressão vocacionada a fornecer os
argumentos necessários para a apreensão da obra.
Reconhecido, portanto, como atributo iconográfico, por caracterizar a figura e identificar
a narrativa que representa, podemos também apontar o objeto numa expressão um pouco
mais recente, traduzida por Andrea del Verrocchio (1435-1488), com a representação da
cabeça de Golias como um elemento identificativo e, portanto, iconográfico, que
potencializa a leitura da narrativa à qual está relacionado.3 [Fig. 3]
Em contraste, podemos, para além de identificar a cabeça de Golias e a repetição
iconográfica da funda, reparar que a personagem David é representada com roupa,
comparativamente ao nu do exemplo anterior.
Esta característica torna-se também evidente na tradução de Gian Lorenzo Bernini (1598-
1680), onde a temática também se expressa numa figuração que é acompanhada pelos
seus adereços iconográficos relativos à narrativa sugerida. [Fig. 4]
Todavia, neste caso, a personificação da figura de David é representada numa posição
diferente, onde podemos salientar o naturalismo renascentista que influencia a uma
tradução da atitude do corpo com alusão a um movimento, estando o tronco torcido.
Para além desta característica expressiva que dinamiza a escultura, em comparação com
os exemplos anteriores, não se encontra representada a cabeça de Golias como troféu.
Desta omissão, dada a alternativa expressiva da figura, podemos qualificar a capacidade
de Bernini em traduzir uma dimensão dramatúrgica como alusão a um momento da
narrativa, sem necessitar propriamente dos seus atributos iconográficos para a sua
demonstração.4
Sobre esta forma de tratar a figura, devemos de referir que o pensamento renascentista
influencia a uma reinterpretação das concepções artísticas, o que provoca a uma
reavaliação da função da estética escultórica. Com principal intenção representativa no
impacto “realista” dos “estados psicológicos”, na descrição emotiva e transmissão de
sensações e movimento, a tensão torna-se como conceito e proposta para a inovação da
figura hirta.

3
Em comparação com a versão de Donatello, a cabeça de Golias está “quase escondida” e na versão de
Verrocchio encontra-se “agressivamente em primeiro plano”. – SANTINHO, Maria – Op. Cit. p. 102.
4
No entanto, para além de não representar a cabeça, atribui à figura outros adereços para justificar a sua
narrativa e que evidenciam o caracter decorativo do “objeto”, como o tecido que cobre os seus órgãos, a
sacola, a corda e a pedra que segura, pronta a ser usada como fisga, mas parece-nos que o estado psicológico
é a tradução especifica que se encontra em evidência e como objetivo representativo.

12
Deste novo aspeto, surge um novo interesse escultórico e a captação de um momento é
possível de identificar com o exemplo de Bernini, que demonstra clara intenção em
apresentar um “impulso” da figura - uma sugestão alusiva ao “momento” em que a
personagem se encontra prestes a lançar a pedra - como também o seu “estado
psicológico” que se revela na expressão facial e pelas musculaturas exacerbadas - como
se David tivesse avistado Golias e estivesse prestes a mover-se. Por outro lado, com esta
proposta é estabelecida, apesar da omissão do atributo iconográfico que identifica o feito
de David, uma intenção expressiva onde a personagem se encontra “preparada” para uma
ação, sendo possível reconhecer a alusão ao ato heroico de David, a partir da
representação do momento em que se encontra pronto para o movimento de lançar a pedra.
Para além desta expressão figurativa que se presta como sensação de movimento e tensão,
de forma a promover a obra com uma descrição psicológica e física das personagens, em
torno do estudo comparativo das obras que se inspiram na figura de David, é demonstrado
que o objeto é elemento fundamental para a caracterização da figura.
Neste sentido, segundo estes exemplos, será possível denominar o objeto como um
atributo que resulta no âmbito de um reconhecimento de elementos que não sejam figuras.
À sua importância nas narrativas representadas, devemos de considerar que se apresenta
como uma dimensão, sobretudo, iconográfica, reconhecida pela sua formalidade
identificável, o que resulta numa estratégia para a identificação da narrativa e,
consequentemente, uma caracterização das personagens representadas.

13
Fig. 1 Fig. 2

Fig. 3 Fig. 4

Figura 1 –Donatello. David. Mármore. Altura:191 cm. Aproximadamente em 1408-9. Museu Nacional de Bargello,
Florença. Fig. retirada de: - David [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021]Disponível em WWW:<URL:
https://www.florence-tickets.com/br/Blog/florença/o-david-de-mármore-de-donatello>

Figura 1 –Donatello. David. Bronze. Altura:158 cm. Aproximadamente em 1440. Museu Nacional de Bargello,
Florença. Fig. retirada de: Khan Academy - David [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL:
https://www.khanacademy.org/humanities/ap-art-history/early-europe-and-colonial-americas/renaissance-art-europe-
ap/v/donatello-david-bronze-c-1440s>

Figura 2 –Andrea del Verrocchio. David with the Head of Goliath.David com cabeça de Golias. Bronze. 50 x 55 x
118 cm. 1465. National Gallery of Art, Washington. Fig. retirada de: NGA – David with the Head of Goliath. [Em
linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL: https://www.nga.gov/features/verrocchio-closer-
look.html>

Figura 3 –Gian Lorenzo Bernini. David. Mármore. Altura: 170 cm. 1623-24. Gallery Borghese, Roma. Fig. retirada
de: Borghese Gallery – David. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021]Disponível em WWW:<URL:
https://borghese.gallery/collection/sculpture/david.html>

14
1.2. O objeto despercebido na estatuária oitocentista

Com o reencontro da Antiguidade Clássica, as referências à mitologia greco-romana


tornam-se também um terreno fértil para a representação dos objetos enquanto símbolos
identificativos da narrativa e, portanto, adereços iconográficos.
Partindo desta hipótese de um objeto reconhecido como dispositivo para a interpretação
da obra, com inspiração na mitologia como temática, esta sugestão permite-nos recordar
a estátua do escultor Jean Alexandre Falguière (1831-1900), Nymphe, de 1884, com
referência à personagem mitológica, Diana, a Caçadora. [Fig. 5]
O artista recorre à iconografia da figura, que é identificada por esses objetos, e propõe um
ponto de vista relativamente à necessidade do objeto para a leitura da obra: não representa
o arco, nem a flecha, mas oferece a representação da ação de lançar a flecha através da
pose e atitude do corpo modelado.
Nesta relação com a omissão dos elementos iconográficos, o reconhecimento dos objetos
resulta da ideia da ação que identifica uma “caçadora”; revelada pela atitude do corpo,
com o braço esquerdo estendido, que seguraria o arco, e pelo direito que se ergue como
se estivesse a apontar a flecha.
Enquanto conhecimento a partir de um vazio, a escultura de Falguière permite-nos pensar
no “objeto oculto” como proposta para novas estratégias à sua identificação. Segundo
esta perspetiva, o escultor traduz a necessidade do objeto numa desnecessária
representação do objeto iconográfico, devido à atitude do corpo e ao gesto de esticar o
arco e apontar a flecha, que se tornam como autossuficientes para a identificação da figura
mitológica de Diana, a Caçadora. Neste sentido, a figura torna-se autónoma de qualquer
complemento para o seu significado, no entanto, dependente de uma iconografia
relacionada com o adereço que a identifica.
Com relação ao vazio como entendimento, ocorre-nos também um exemplo concebido
por Antoine Bourdelle (1861-1929), com Hércules o arqueiro (1906-1909) que
representa a figura numa posição semelhante à de Diana, a Caçadora, sendo a própria
atitude do corpo5 como argumento estratégico para a iconografia da figura. [Fig. 6]

5
Será oportuno também considerar a posição em que se encontra como alusiva à estátua do Discóbolo de
Myron, onde o corpo masculino nu, é representado numa posição que alude ao momento em que o “atleta”
está prestes a lançar o disco que agarra com a sua mão direita. “However, the organization of Hercules,
who is braced against the rocks in a pose of fantastic effort, is essentially a profile, two-dimensional
alternation of large areas of solid and void, possibly inspired by the Greco-Roman copy of the Discobolus
by Myron.” ARNASON, H.H. – History of Modern Art. Nova Iorque: Harry N Abrams, 3º ed., 1986. p. 97.

15
Para além de referirmos a atitude do corpo, será curioso também indicar as propostas e
estudos que o artista francês concebeu onde é possível identificar diferentes soluções para
a posição e modelação do pescoço de Hércules e do gesto iconográfico de lançar a flecha.
Destes estudos, podemos apontar um novo modo de propor a interpretação da figura que
é expresso pela atitude do corpo e que alude para os objetos identificativos da ação e da
personagem.
Comparativamente à Diana de Falguière, no entanto, Hércules é representado segurando
o arco, sem a flecha ou o fio. [Fig. 7] Embora não se trate de uma situação em que a figura
está com as mãos “a segurar o vazio”, transmite-se, na ocultação do fio e da flecha, a
mesma intenção iconográfica.
Partindo desta comparação de um objeto “ocultado”, torna-se reconhecível uma estratégia
por parte dos artistas em formular uma imagem alusiva à personagem representada. É
compreendida a necessidade dos elementos complementares e define-se uma iconografia
da figura através do próprio corpo, apenas sugerindo um género de “omnipresença” dos
próprios objetos. Um aspeto particular em ambas as abordagens, tanto de Falguière como
de Bourdelle, é a sua sugestão narrativa que acaba por ser criada na cabeça do espectador.
Sobre esta forma, poderemos considerar a escolha entre a abordagem “completa” de uma
narrativa que se afirma diante do espectador – representação da figura e respetivo atributo
iconográfico - e o vazio como princípio de linguagem de um jogo vasto de símbolos e
significados.
Embora surja, de facto, um objeto reconhecível nos exemplos do escultor francês,
Hércules assume uma expressão “rude” e “bruta”,6 o que evidencia uma representação,
não psicológica, mas formal. Deste modo, separado, portanto, das categorias
renascentistas, revela uma atitude artística que, nas condições às quais está sujeita, sugere
uma reinterpretação sobre o tratamento estético dos temas e indica estratégias para novos
efeitos e significados.
Uma vez que a atitude e posição das figuras representadas permite uma descrição que se
presta a uma iconografia das personagens mitológicas, para além da tendência artística
que pretende uma sugestão expressiva enquanto abordagem criativa, segundo estes
exemplos, é possível notar também uma forma alternativa de uma tradução de objeto na
sua relação com a figuração. Neste âmbito, a relação entre a omissão e o significado de

6
Segundo a autora, Hércules de Bourdelle sugere uma cabeça interpretada segundo o estilo arcaico, com
um corpo helenista - Idem.

16
objeto, mesmo que despercebido, permite-nos considerar a iconografia figurativa que se
desenvolve em torno de conceitos como vazio e forma.

17
Fig. 5

Fig. 6 Fig. 7

Figura 5 – Alexandre Falguière. Hunting Nymph. Ninfa, a Caçadora. 1884. Bronze.50,4 cm altura.
National Gallery of Art, Washington DC. Fig. retirada de: National Gallery of Art – Hunting Nymph.
[Em linha] [Consult. 16 Out. 2021] Disponível em
WWW:<URL:https://www.nga.gov/collection/art-object-page.130906.html>

Figura 6 – Antoine Bourdelle. Héraklès archer (Hercules the Archer). Hércules o arqueiro. Bronze. 64 x
60 x 29 cm. 1906-1909. Musée Bourdelle, Paris. Fig. retirada de: Musée Bourdelle – Hercules the Archer.
[Em linha] [Consult. 16 Out. 2021] Disponível em
WWW:<URL: https://www.bourdelle.paris.fr/en/oeuvre/hercules-archer>

Figura 7 – Antoine Bourdelle. Héraklès archer (Deuxième étude “Etude sans arc”). Hércules o arqueiro
(Segundo estudo “Estudo sem arco). Bronze com patina verde. 39 x 58 x 22 cm. 1906-1909. Fundido em
1967. Galerie des Modernes, Paris. Fig. retirada de: Galerie des Modernes – Héraklès archer (Deuxième
étude “Etude sans arc”). [Em linha] [Consult. 16 Out. 2021] Disponível em
WWW:<URL:https://www.galeriedesmodernes.art/en/artists/antoine-bourdelle-sculptor/antoine-
bourdelle-sculpteur-480>

18
1.3. O objeto invisível e o vazio na escultura modernista

Nesta confrontação entre o naturalismo Clássico e novas expressões plásticas, ocorre o


fenómeno histórico e cultural complexo do Modernismo onde a estética escultórica se
acentua numa reformulação dos objetivos artísticos, evidenciando novas propostas
formais.
Como reflexo destas manifestações, a reinvenção é proposta como centro da atmosfera
artística e constitui-se um sentido de mudança e rutura com os arquétipos representativos.
Esta característica revela-se com a renovação dos interesses temáticos e das próprias
técnicas artísticas que surgem com a possível experimentação formal e inovação da
doutrina clássica.
Sobre este percurso, revelá-lo-emos mais adiante, contudo, a transformação naturalista,
que não só transforma a figura como a própria ideia de vazio para uma reformulação
formal, pode ser identificada numa abordagem proposta por Alberto Giacometti (1901-
1966).
Como havemos abordado até ao momento, a afirmação do objeto ou a sua omissão
demonstram a especificidade de um elemento enquanto veículo legível na sua
formalidade e essencialmente passivo, mas fundamental para a identificação das
temáticas e narrativas que as figuras representam. O artista suíço, no entanto, inverte o
significado de objeto enquanto complemento à figuração e intitula a sua proposta
enquanto L’objet invisible (O objeto invisível), em 1934. [Fig. 8]
A reformulação apresentada por Giacometti demonstra-se segundo um monolitismo
associado à figura. Contudo, parece-nos apresentar uma formalidade que toma a sua
influência da escultura africana, uma sugestiva síntese formal que se traduz também no
Cubismo. 7
Embora a sua simplicidade das formas faça devida alusão à cultura africana,8 neste
exemplo podemos destacar a capacidade de mudar a função simbólica dos objetos com a
própria figura, abarcando ela mesma uma dimensão metafórica para o significado de

7
Herbert Read considera duas abordagens designadas enquanto ecleticismo, como atitude que combina
estilos diferentes e exoticismo como a combinação de outras culturas, como a escultura africana que também
influenciara Pablo Picasso e George Braque. Vid. READ, Herbert – Modern Sculpture: a concise history.
Londres: Thames and Hudson, 1996. pp. 43-58.
8
“The formal context of Giacometti’s figure discoveries before 1930 is more easily justified by tribal art
because different models for different compositions can be accurately named.” - NORMAND-ROMAIN,
Antoinette [et al.] –Sculpture: The adventure of modern sculpture in the 19 and 20 century. Koln: Taschen,
1986. P. 167.

19
objeto. Isto é, segundo esta reformulação surrealista, que se apropria dos conceitos e os
transforma, a figura apresenta-se como autossuficiente, não para uma iconografia, mas
para um simbolismo; quer ele seja o significado do vazio que conserva entre as suas mãos
ou uma questão filosófica sobre a condição humana.
No âmbito desta trajetória, a relação da escultura modernista com o vazio, pode ser
também identificada no trabalho de David Smith (1906-1965) que, embora não apresente
uma formalidade simbólica do significado do “nada”, concretiza formalidades
alternativas com o vazio enquanto valor escultórico.
A título de exemplo, com Portrait of a Young Girl de 1954, o artista propõe uma
modelação da figura, de um “corpo” submetido a uma síntese formal que estabelece
simultaneamente a sua formalidade e estrutura. [Fig. 9]
Enquanto efeito abstrato da figura, parece-nos que o vazio se torna competente como
efeito compositivo da escultura, uma vez que é considerado como uma “forma espacial”
que completa as formas materiais que se apresentam como “corpo”.
Podermos reconhecer semelhanças com um corpo humano, como o “membro inferior”
que estabelece contacto com o solo ou como a “perna” que se encontra suspensa. A partir
destas alusões à forma figurativa, apesar do caracter abstracionista que é proposto, a
abordagem de Smith assemelha-se à de Giacometti, refletindo também um monolitismo
associado à figura. Contudo, distancia-se pelo aparente “desenho” da figura abstrata,
sendo que o espaço que não é ocupado pelas linhas, também ele pertence ao aparente
“corpo”.
Neste sentido, o vazio torna-se igualmente um meio para o reconhecimento de “algo” e
as reformulações propostas, relativas a uma representação figurativa, embora distantes
cronologicamente dos exemplos anteriores, propõem considerarmos o vazio como um
campo amplo de possibilidades interpretativas, onde objeto e figura são referentes
possíveis de representação.9

9
O vazio é apresentado também como um valor escultórico recorrente na expressão modernista de
escultores como Henry Moore ou Barbara Hepworth. Para além da relação geográfica que pode ser
apontada entre ambos os autores, partilham uma devoção pela formalidade abstrata. Deste modo, com
relação ao exemplo de David Smith, podemos considerar a proposta de Henry Moore com a maqueta para
o projeto Standing figure (1950), tal como o resultado posterior intitulado de Standing figure I, de 1952,
em que a tradução figurativa se estabelece na sua transformação formal, que ocorre entre o abstracionismo
e o monolitismo da figura. Com relação a estas propostas, que consideramos como “formas desenhadas no
espaço” e que permitem pensar no vazio como característica espacial e simultaneamente formal,
evidenciado pelo sentido abstrato da figura, será oportuno relacionar a abordagem de Hepworth,
concretizada em 1952, onde o vazio se torna evidente como núcleo central da escultura monolítica, que a
autora intitula enquanto Figure (Churinga), relacionando assim a sua proposta com a ideia de um objeto
feito em madeira, com carácter simbólico (churinga), que relaciona com o monolitismo da figura.

20
Fig. 8

Fig. 9

Figura 8– Alberto Giacometti Hands Holding the Void (Invisible Object). Mãos a agarrar o vazio (Objeto
invisível). 152,1 x 32,6 x 25,3 cm. 1934. Passado para bronze em 1954-55. The Museum of Modern Art,
Nova Iorque. Fig. retirada de: The Museum of Modern Art - Hands Holding the Void (Invisible Object).
[Em linha] [Consult. 3 Set. 2021] Disponível em WWW:<URL:
https://www.moma.org/collection/works/81849>

Figura 9– David Smith. Portrait of a young Girl. Retrato de uma rapariga jovem. Bronze. 162,8 x 34,9 x
43,2 cm. 1954. Tate Museum, Londres. Fig. retirada de: Tate - Portrait of a young Girl. [Em linha]
[Consult. 3 Set. 2021] Disponível em WWW:<URL: https://www.tate.org.uk/tate-etc/issue-8-autumn-
2006/my-childhood-companions>

21
1.4. O plinto enquanto objeto estrutural da escultura

O entendimento do objeto como dispositivo elucidativo, que não é figura, leva-nos


também a considerar a sua apresentação, na convenção escultórica, enquanto elemento
com função estrutural e compositiva, relacionado com a acepção de “plinto”.
De forma a relacionarmos a sua importância enquanto elemento integrante, no âmbito do
papel do objeto na escultura, este subcapítulo surge-nos como proposta para aprofundar
a sua relevância na estatuária nacional.
Em relação à figura erguida sobre o pedestal, esta condição, de acordo com a tradição
escultórica, remete-nos para a imagem sugerida de uma figura que emerge de um bloco.
Para além do processo de revelação que extrai o excesso e mostra a figura,10 o bloco e a
pedra são identificados como elementos análogos a uma verticalidade monolítica.
Comparativamente, a relação entre monumento e estatuária encontra-se na sequência
desta característica, que permite ao escultor realizar figuras a favor de uma convenção
vertical da monumentalidade, idêntica à expressão bípede do corpo humano.11
Com relação à figuração, o gosto pela arte naturalista toma contornos semelhantes às
abordagens internacionais12 e o trajeto de uma cultura artística em Portugal, na transição
dos séculos, transporta a transmissão de valores clássicos, que constitui significante
objetivo prático na estatuária portuguesa.
Enquanto herdeiros de uma herança clássica13, contudo, os artistas não se limitam a seguir
as direções sugeridas e a produção artística propõe uma certa flexibilidade nos seus
modelos formais e no tratamento das suas temáticas.
Neste sentido, de forma a abordar o desenvolvimento da estatuária em Portugal, torna-se
necessário referir a obra de António Soares dos Reis (1847-1889), que demonstra clara
influência dos seus estudos em Paris e Roma e que transporta e ajusta o paradigma
clássico e naturalista para a sua produção escultórica.

10
Leon Battista Alberti escreve em 1462 um tratado da escultura, intitulado “De Statua”, referindo que, de
acordo com este processo, podemos chamar a estes artistas de “escultores” pois criam a figura numa
extração e “remoção do supérfluo”. – ALBERTI, Leon B. Da pintura seguido de Da escultura. Lisboa:
Book Builders, 2017. p. 88.
11
Para um melhor aprofundamento da relação entre monumentalidade vertical e expressão figurativa, Vid.
Tese de Doutoramento de José Teixeira “Escultura pública em Portugal: Monumentos, Heróis e Mitos (séc.
XX)”, Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, 2008.
12
Em Paris, após a Revolução Francesa, o Salon abre portas e recebe artistas sem distinção. Desta forma
os artistas de diferentes nacionalidades poderiam visitar e visualizar as reconhecidas e paradigmáticas obras
escultóricas. - ARNASON, H.H. – Op. Cit. p. 110.
13
Vid. BUESCU, Maria Leonor – Aspectos da herança clássica na cultura portuguesa. Lisboa: Inst. Cultura
Portuguesa, 1979.

22
Enquanto exemplo, em 1872, o escultor portuense concebe Desterrado, [Fig. 10] uma
escultura naturalista, em mármore carrara, que representa uma figura masculina nua.14
Conforme referido, os conceitos relativos à situação humana são transportados na
representação figurativa e, para além da nudez como representação do corpo humano que
denuncia a sua condição,15 numa análise mais próxima do bloco que acompanha a figura,
podemos notar uma alternativa ao plinto que sustenta o Desterrado.
Aparentemente enquanto base para a figura, simultaneamente partilha a sua função
enquanto objeto/suporte.16 Como elemento estrutural, presta-se também a uma dimensão
simbólica,17 sendo que sobre esta concepção, que se encontra numa adesão a uma
sensibilidade romântica, a linguagem plástica toma como foco, segundo António Arroyo,
a comoção perante sentimentos humanos.18
Deste modo, a figura e o “plinto”, caracterizado pelos apontamentos texturais alusivos à
paisagem marítima, funcionam com o mesmo fim simbólico, contudo, com diferentes
formalidades.
Sobre esta tendência e a influência de Soares dos Reis, será importante estabelecermos
relação com António Teixeira Lopes (1866-1942), que completa o seu curso na Academia
do Porto em 1884.

14
Sobre a tradição do nu, será importante a leitura de Kenneth Clark, que estipula duas categorias: o nu e
o despido, refletindo sobre duas perspetivas que variam entre o seu caracter simbólico, transcendental e
metafórico. – CLARK, Kenneth – O nu: estudo sobre o ideal em arte. Lisboa: Ulisseia, 1956.
15
“O nú será sempre, de todas as formas d’arte, aquella em que se acumulam mais convencionalismos.”
Sendo consideradas as vestimentas como um “invólucro expressivo do corpo e da ação.” – ARROYO,
António – Soares dos Reis e Teixeira Lopes: Estudo critico da obra dos dous esculptores portuguezes
precedido de pontos de vista estheticos. Porto, 1899, p. 61.
16
Ao recorrermos a esta expressão de “objeto/suporte”, encontramos a sua justificação na aparente
coincidência do bloco como lugar de onde é esculpida a figura e simultaneamente o seu “apoio”, estando o
corpo sentado sobre ele.
17
Nos apontamentos que podemos identificar na parte inferior do “objeto-plinto”, do lado esquerdo da
figura, é possível relacionar o “efeito de espuma” que o autor representa junto aos pés da figura. Esta
característica acrescenta assim uma outra expressão formal que resulta com o mesmo fim simbólico que a
figura. Na leitura de José Teixeira, sobre este “artificio semelhante ao plinto”, para alem da sua
funcionalidade estrutural, o autor refere-se ao bloco “transformado” numa paisagem naturalista.
TEIXEIRA, José - Escultura pública em Portugal: monumentos, heróis e mitos (séc. XX) – Tese de
Doutoramento. Faculdade de Belas Artes de Lisboa, 2009. p. 157. “Tracejado com extraordinário vigor,
sente-se ahi o Desterrado de todas as alegrias da terra, vendo aproximar-se o naufrágio da sua existência e
appellando, numa agonia titânica, para um socorro que tarda em chegar...” – ARROYO, António – Op. Cit.
p. 84.
18
A proposta artística que se interessa por expressão escultoricamente esta ideia de profundeza interior que
é transportada para uma representação figurativa, é considerada por Antonio Arroyo como uma “comoção
esthetica”. No seu estudo sobre a obra do estatuário Soares dos Reis, o autor refere o gosto peculiar do
escultor pela preocupação com a expressão da condição humana, associada a uma elegia própria do artista”
– Vid. ARROYO, António – Soares dos Reis e Teixeira Lopes: Estudo critico da obra dos dous esculptores
portuguezes precedido de pontos de vista estheticos. Porto, 1899.

23
Este salto trata-se apenas de um desvio cronológico que nos permite continuar, de
diferentes maneiras, uma proposta que se debruça sobre o naturalismo na estatuária
oitocentista, podendo se entender as influências artísticas que passam de mestre para
discípulo.
Também com influência das escolas de Paris, Florença e Roma, Teixeira Lopes
desenvolve uma estatuária que aproxima o naturalismo romântico adaptado ao contexto
português. Em Viúva, de 1893, o escultor promove a leitura de uma condição humana
numa representação figurativa feminina, vestida, com o seio de fora, que é acompanhada
pela figura do seu filho. [Fig. 11] Este conjunto desencadeia uma compreensão de uma
maternidade, relacionada a uma sensação de tragédia e agonia, que se assemelha de
alguma forma ao sentimento expresso por Desterrado,19 e à qual António Arroyo apelida
como “uma mesma corrente sentimental” que liga os dois mestres.20
Fora de uma análise profunda aos sentimentos humanos, contudo, se nos debruçarmos
sobre os objetos despercebidos da composição de Viúva, numa primeira instância,
observamos um berço com roupa, de onde se levanta a criança. Se analisarmos com
melhor atenção, podemos notar, para além das vestes, também um banco, onde assenta o
pé descalço da mãe viúva.
Em ambas as representações é possível identificar que, tal como o bloco do Desterrado,
também o banco onde assenta o pé da viúva21 e o berço de onde o bebé se ergue, são
objetos que que exprimem um contexto e vínculo fundamental com a figura.22
Enquanto que no Desterrado a função representativa no plinto é alusiva ao exterior, ao
mar, no caso de Viúva, podemos considerar o objeto como adereço significante para uma
interpretação do conjunto escultórico num cenário intimista23 e pertencente ao interior de

19
José Teixeira, no seu estudo sobre a obra de Teixeira Lopes, compara a estátua Desterrado, de Soares
dos Reis, com a Viúva, a partir da sua semelhança alusiva à dor, referindo respetivamente “Naquele é íntima
e intensa, nesta é mais subtil, embora não menos crucial.” – TEIXEIRA, José – A mulher na escultura de
Teixeira Lopes, Tese de Mestrado, Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, 2001. p. 45.
20
ARROYO, António – Op. Cit. p. 165.
21
Com a posição de um corpo que está sentado, a pose e atitude da figura fazem alusão para um movimento
associado a alguém que está prestes a levantar-se, estando com o pé esquerdo apoiado no banco e com o
direito que “avança em direção ao observador”. - TEIXEIRA, José –Op. Cit. 2001. p. 57.
22
Sobre os adereços da composição da Viúva, numa análise da sua “predominância visual”: “Confirma-se
a frontalidade e a intenção cenográfica da composição para a qual contribuem (...)” – TEIXEIRA, José –
Op. Cit. 2001. p. 57.
23
Enquanto que no Desterrado o plinto é elevado e vertical, na Viúva há vários elementos distribuídos
numa base “rasa”, estabelecendo uma relação mais “próxima ao quotidiano”. Para além desta diferença no
eixo vertical, é estabelecida também alusão ao sexo masculino e feminino, como sugere José Teixeira.
TEIXEIRA, José – Op. Cit. 2001. p. 57.

24
uma casa, sendo esta característica evidente com os objetos identificáveis, como o banco,
o berço e as roupas que se encontram nele.24
Deste ponto de vista, os adereços, que complementam as figuras representadas,
funcionam como “ingredientes” cenográficos para uma maior proximidade ao quotidiano
e à interpretação de um espaço e contexto. Neste sentido, objeto expressa-se como uma
formulação discreta da sua funcionalidade estrutural enquanto plinto e apresenta-se
simultaneamente enquanto adereço identificável.
Um outro exemplo da expressão portuguesa, que desenvolve temas relacionados com uma
aproximação com o quotidiano, pode ser identificado com José Moreira Rato (1860-
1937), que também estudara em Paris25 e reconhecera a intenção romântica em
representar a condição humana, com influência neorrealista.
Em Sem casa Sem pão de 1919, são identificadas três figuras, com devido realismo,
sentadas num banco. [Fig. 12] Embora as figuras se traduzam numa expressão naturalista
e sejam também elas caracterizadas pela roupa, são acompanhadas pela representação de
objetos comuns como um guarda-chuva e um saco, que se encontram no lado direito da
composição.
Estes objetos reconhecíveis funcionam como adereços, que evidencia uma aproximação
ao quotidiano, como estratégia por parte do artista em promover uma caracterização
espacial, uma vez que se encontram colocadas no “chão”, no canto direito da composição.
Para além de podermos evidenciar esta característica, identifica-se uma alternativa ao
convencionalismo escultórico como meio para uma resolução das figuras erguidas, como
o “banco de jardim” onde estão sentadas. Neste sentido, o objeto apresenta-se apto para
auxiliar a uma reformulação da figura erguida sobre um pedestal, o que resulta, neste
caso, num conjunto de figuras que estão sentadas num aparente banco de jardim, à “altura
do observador”.
Apresentada a formalidade reconhecível do objeto como dispositivo alternativo,
simultaneamente contribui como adereço iconográfico – que auxilia a leitura da condição
humana associada à pobreza - e como uma solução para o convencionalismo escultórico,
com característica estrutural e compositiva.
Nesta trajetória, o objeto, para além de reconhecido pela sua iconografia, resulta como
solução e atributo para uma demonstração de um contexto que, no caso da Viúva,

24
Considerado por José Teixeira como “excesso de caracterização”, em comparação com Desterrado, que
se torna reflexo de uma “economia linguística da escultura”. - TEIXEIRA, José –Op. Cit. 2001. p. 50.
25
PEREIRA, José – Dicionário da escultura portuguesa. Lisboa: Editora Caminho. 2005. p. 473.

25
proporciona a alusão à intimidade de uma mãe com o filho no interior de uma casa e,
neste caso, fundamenta uma condição humana e uma maior aproximação com o
observador, sendo o grupo escultórico apresentado à altura do transeunte.
Enquanto alternativa à verticalidade monumental, estes exemplos partilham a sua
característica comum como manifestações de um objeto no contexto escultórico enquanto
elemento cénico, mas sobretudo como pretexto para uma “deslocação” da figura, que nos
possibilitam encontrar alguns pontos de partida para uma investigação mais ampla na sua
concepção modernista. 26
Neste âmbito, o objeto passa “despercebido” na vertente escultórica, no entanto, imprime
no panorama artístico uma condição iconográfica, identificável na sua formalidade. Nesta
relação com a figura, enquanto elemento compositivo da obra, torna-se possível
identificar a sua dimensão estrutural, assumindo-se como pretexto para uma
contextualização da figura e apto para contribuir como alternativa ao convencionalismo.

26
Para além da representação escultórica dos temas, relacionados com a intimidade, nos três casos que
havemos abordado, as esculturas resultam de propostas para uma concretização de uma temática ou
condição humana, sem qualquer pretensão para uma entronização monumental das figuras. José Teixeira
aponta que, no caso de Soares dos Reis e Teixeira Lopes, ambos os trabalhos foram executados como provas
finais da formação académica dos escultores, não tendo sido feitas para satisfazer qualquer tipo de
encomenda. TEIXEIRA, José - Op. Cit. 2001. p. 44.

26
Fig. 10 Fig. 11

Fig. 12

Figura 10 – António Soares dos Reis. Conde Ferreira Gomes. 1877. Mármore. Museu Nacional Soares
dos Reis, Porto. Fotografia de Sofia Rosa, 2022.

Figura 11– António Teixeira Lopes. Viúva.. Marmore de Carrara. 172 x 65 x 83 cm. 1872. Museu
Nacional Soares dos Reis, Porto. Fig. retirada de: Museu Nacional Soares dos Reis, Porto. [Em linha]
[Consult. 5 Jan. 2022] Disponível em WWW:<URL:
http://www.museuartecontemporanea.gov.pt/ArtistPieces/view/102/artist>

Figura 12 – José Moreira Rato. Sem Casa Sem Pão. Mármore. 1919. Museu José Malhoa, Caldas da
Rainha. Fotografia de: Sofia Rosa, 2022.

27
1.4.1. Queda e autonomia do pedestal

Conforme havemos analisado, o objeto presta-se a uma reformulação do


convencionalismo escultórico como dispositivo alternativo que resulta aparentemente
enquanto plinto. Sobre o seu efeito compositivo, enquanto elemento tridimensional que
não é figura, a sua relevância estrutural é identificada como proposta para uma “elevação”
da figura e assume-se, simultaneamente, como objeto identificável e “comum”.
Relativo à sua expressão enquanto “lugar” convencional para a escultura, na tendência
estética pelo romantismo e pela aproximação à condição humana, exemplo de tal
manifestação é possível de identificar na encomenda por parte da cidade de Calais ao
escultor Auguste Rodin (1840-1917) para a execução de um Monumento aos Burgueses
de Calais, inaugurado em 1895. [Fig. 13]
Enquanto reflexo da reformulação modernista, este exemplo representa um conjunto de
seis figuras que evidenciam uma passagem do modelo de uma estatuária pública e
monumental, segundo um ponto de vista que transmite não o virtuosismo e heroísmo das
figuras27 que são colocadas sobre um pedestal monumental, mas que as instala no chão,
ao nível do transeunte.
Para além do tratamento original do tema representado, Rodin resolve o aspeto monolítico
da estatuária convencional, não apresentando qualquer “soclo pomposo”28 e, portanto,
uma nova maneira em conceber um monumento, onde as figuras podem ser contempladas
ao nível do observador, dissolvendo a ideia de monumento vertical. 29
Igualmente este entendimento sobre a ideia de “monumento” demonstra-se como
oposição à convenção da estatuária, numa proposta “polémica”30 enquanto uma
plataforma/base retangular, associada ao chão e, portanto, mais próxima do quotidiano.31

27
O projeto Les Buorgeois de Calais fora projetado “em memória dos seus homens bons que, em 1437,
tinham ido entregar as chaves da cidade e oferecer-se como reféns ao rei de Inglaterra, Henrique VI – que
acabava de desembarcar em França – para poupar os seus concidadãos a violências, vexames e exacções.”
– BRASIL, Jaime - Op. Cit. p. 73.
28
BRASIL, Jaime – Rodin. Porto: Lopes da Silva. 1944. p. 76.
29
““Para que el arte de la escultura consiguiera revolucionar y ofrecer una imagen moderna fue necessária
la negación de la mayoría de los princípios en que se fundaba este arte. Así, la escultura del siglo XX ha
tenido que operar en dos sentidos diferentes, aunque complementários, ofreciendo nuevas maneras de hacer
y provocando nuevas formas de ser contemplada.” - MADERUELO, Javier – Op. Cit. p. 86.
30
Jaime Brasil escreve que as encomendas públicas polémicas de Rodin “chocaram as convenções das
esferas oficiais e perturbaram as ideias do grande público.”, tendo apenas recebido reconhecimento
internacional depois de 1900, quando expõe individualmente os trabalhos que concretizara na intimidade
do seu atelier. – BRASIL, Jaime – Op. Cit. pp. 90-98.
31
“Não se podia revolucionar a escultura da mesma forma que os impressionistas tinham feito na pintura,
ou seja, sem suscitar polémicas.” - NÉRET, Gilles – Auguste Rodin: esculturas e desenhos. Lisboa:
Taschen. 1997. p. 12.

28
Neste sentido, simultaneamente à expressão romântica, os “estados psicológicos” e
“emoções humanas” são propostos com a expressão figurativa, onde também as vestes
permitem um efeito dramático, “escorrendo” dos corpos e “caindo” sobre a base, como
proposta para um cenário expressivo da condição humana das seis figuras.32
O interesse pela narrativa assume-se, deste modo, numa expressão romântica das figuras,
com referência naturalista, contudo, privilegiando um novo modo em apresentar a
“monumentalidade erigida” concretizada em encomendas públicas.33
A partir desta proposta, o efeito da base como qualidade do lugar para unificar o conjunto
escultórico, torna-se uma resolução da estatuária tradicional que confere às figuras uma
maior proximidade ao observador, sendo possível circular em torno do conjunto de
personagens que se encontram distribuídas pela base retangular.
Esta expressão alternativa de um conjunto de figuras que “desce” para um lugar comum
ao observador apresenta-se como uma proposta reveladora de outros meios e formas em
conceber e reconhecer escultura.
Sobre esta influência do gesto “radical” de Rodin, espelho de uma representação análoga
que proporciona acrescentar uma proposta de correspondência modernista à estatuária em
Portugal é a demonstração alternativa de um monumento por parte de Pedro Anjos
Teixeira (1908-1997) que, em 1957, realiza o Monumento ao Trabalhador Rural,
inaugurado na Avenida Central, no largo em frente à Igreja de São João das Lampas. [Fig.
14]
À semelhança com Rodin, representa um conjunto escultórico, constituído por sete
figuras, seis masculinas e uma feminina. Deste grupo, cinco homens carregam e sugerem,
devido à posição dos corpos, o movimento de quem trabalha com uma enxada. Com
qualidades estéticas associadas ao neorrealismo, onde se percebe a preocupação por parte
do autor em conferir e valorizar a condição humana do trabalho e o orgulho de quem o
faz, podemos apontar a frontalidade proposta, estando uma das figuras a fitar o observador
que se encontra de frente para este conjunto.

32
O autor refere que, para Rodin, a “cena” é representada por “seis homens acabrunhados, mal cobertos os
corpos com camisas em farrapos – as alvas dos condenados – levando ao pescoço a corda para os
enforcarem, sem nenhuma arrogância nem nenhuma bravura, mas animados pelo sublime heroísmo: o do
dever a cumprir. Não são semi-deuses olímpicos, em atitudes teatrais, posando para a imortalidade, mas
simples homens que não querem morrer e caminham para a morte.” - BRASIL, Jaime – Op. Cit. p. 75.
33
Jaime Brasil aponta para uma compreensão da monumentalidade proposta por Rodin que é vítima de
censura por “não ter feito os burgueses bastante heroicos e por não ter respeitado a tradicional ordenação
em pirâmide”. “(...) o monumento destoava de tudo quanto até então se considerava como regras de
monumentalidade.” - BRASIL, Jaime – Op. Cit. p. 75.

29
Referimos frontalidade, mas, por detrás do grupo de trabalhadores rurais, reparamos num
conjunto, com as restantes figuras, que se encontram de costas para os “trabalhadores”.
Estas duas figuras, masculina e feminina, oferecem a excecionalidade de transmitir
variadas dinâmicas e a tridimensionalidade digna de um conjunto que se encontra ao nível
do transeunte e que o convida a circular em torno dela.
Deste ponto de vista, a base retangular serve como pretexto para conferir uma nova
orientação espacial que rejeita o pedestal e que favorece a possibilidade ao observador de
se encontrar num espaço aparentemente comum ao das figuras representadas.
Esta consciência e reformulação dos dispositivos convencionais, como o plinto ou
pedestal, evoca-nos a representação do poeta Fernando Pessoa, executada por António
Lagoa Henriques (1923-2009), onde o objeto é motivo para uma contextualização da
figura e corresponde simultaneamente a uma concretização da estatuária ao nível do
observador.
Em 1988, após concurso público para comemoração do centenário do aniversário do
nascimento do poeta Fernando Pessoa, é inaugurada a escultura do mesmo, na esplanada
em frente ao Café A Brasileira, em Lisboa. Nesta escultura podemos verificar uma
representação estereotipada do poeta que mantém as características fisionómicas e
iconográficas da figura de Fernando Pessoa, como o chapéu, os óculos e o bigode, ao que
poderemos considerar, segundo o pressuposto teórico de José Teixeira, também como um
“retrato de corpo inteiro”.
Para além da iconografia do poeta, Lagoa Henriques posiciona o corpo do poeta vestido,
sentado numa cadeira, apropriada do mesmo café, e representa-o com a perna esquerda
dobrada sobre a direita, o braço esquerdo pousado sobre a mesa e o direito dobrado a
dirigir-se para a esquerda, tendo do seu lado esquerdo uma mesa e uma outra cadeira.
[Fig. 15]
A relação intimista desta escultura que dialoga com o quotidiano, segundo Lagoa
Henriques34 reflete sobre uma situação característica da convenção académica de uma
natureza-morta, retratando cenas do quotidiano. Deste modo, ao colocar a figura sentada,
ao nível do transeunte, descendo a escultura do pedestal, como refere,35 a partir da

34
HENRIQUES, Lagoa, CANDEIAS, Vitor – Lagoa Henriques Contado por Ele. [registo vídeo].
Realização de Vítor Candeias. Lisboa: Videoteca Municipal de Lisboa – Pelouro da Cultura, 1994. Cassete
vídeo (VHS) 54. Cor e Som.
35
Idem.

30
apropriação de duas cadeiras e uma mesa é proposto um cenário convidativo que fornece
à obra uma aproximação ao público.36
Deste gesto em desafiar à ação do público e propor a sua participação, o escultor tem uma
ação comum à dos artistas modernistas e vanguardistas internacionais37 e “sem pedestal”,
portanto, as duas cadeiras, na época pertencentes ao icónico Café, são objetos reais cujos
quais o escultor se apropria e considera como parte compositiva e estrutural. 38
Nesta proposta é de realçar a simbiose da vertente figurativa e da aparência convencional
de uma natureza-morta, sendo proposta a formalidade de uma natureza-morta que
transporta o valor de uma situação à mesa como resolução de uma figura erguida sobre
um pedestal.39
Recorrendo a esta observação, no âmbito das propostas modernistas, que reinventam as
convenções artísticas, podemos notar, como sugere Javier Maderuelo, uma “necessidade
em propor ao espectador novas maneiras de ver e sentir a escultura” que se podem
designar como “um deslizamento” ou “desvanecimento da lógica de monumento”.40
Deste modo, podemos considerar as abordagens investigadas como reflexo de propostas
que reinventam e propõem alternativas expressivas sobre a convenção escultórica,
tradicionalmente designada pela “figura em cima do pedestal”.
Nesta trajetória, a “queda do pedestal” afirma-se como uma autonomia da figura e uma
aproximação ao observador - à sua condição humana, como ao espaço comum que habita.

36
O autor confessa que ao colocar uma cadeira vazia, é do desejo do artista que o transeunte faça parte da
obra. – Ibem.
37
Esta relação remete-nos para a instalação e para a performance que decorre no final do século XX, onde
os artistas convidavam o público a assistir e, por vezes, participar nas suas atividades.
38
Lagoa Henriques executa também um outro exemplo de uma renúncia ao pedestal com Monumento a
António Aleixo, inaugurada a favor da ocasião do quadragésimo aniversário da morte do poeta, em 1989,
em Loulé, no Parque Municipal da cidade. Neste exemplo, retrata, como Pessoa, Aleixo vestido, sentado
numa cadeira e acompanhado por uma mesa, contudo, numa atitude diferente da que se encontra em Lisboa.
Para além da expressão figurativa, é possível evidenciar uma tendência pela apropriação dos objetos
comuns, como cadeiras ou mesas, para a concretização estrutural e compositiva, sobretudo, alusiva a uma
maior proximidade com a personagem retratada. Sobre a apropriação como metodologia Vid Capítulo 3 –
Sobre o procedimento sintético: o papel das vanguardas históricas no âmbito da racionalidade e
abstração; Capítulo 4 – O objeto em evidência.
39
Deste ponto de vista, no âmbito de uma estatuária que se dirige para um espaço comum ao do observador,
esta relação lembra-nos a expressão figurativa do escultor americano George Segal (1934-2021), onde a
encenação de elementos humanos é complementada por objetos, apresentados à altura do transeunte,
permitindo uma relação direta com as obras e com os objetos que fazem parte da encenação. Embora esta
comparação nos pareça distante e distinta na sua concepção, parece-nos ser portadora de uma característica
que se torna evidente na estatuaria pública: mais que um objeto iconográfico, que permite estabelecer
relação com as acepções relativas aos adereços cénicos, é um pretexto para uma aproximação com o
observador.
40
MADERUELO, Javier - La idea de espácio en la arquitetura y el arte contemporâneos: 1960-1989. M
adrid: Sector Foresta. 2008. pp. 86-116.

31
Com esta reformulação escultórica, torna-se também evidente uma intenção em
representar os meios tradicionais para a “apresentação da figura”, com devida relevância.
Sobre esta relação, será oportuno referir Constantin Brancusi (1876-1957) e as suas
propostas relacionadas com a ideia de um dispositivo convencional complementar à
figura, que é demonstrado nas abordagens onde trata o referente humano com devida
“altura”, considerando o plinto/pedestal como meio e “estratégia” para uma
potencialidade de significados possíveis de serem aplicados aos elementos que se
encontrem no topo.41
Contudo, no âmbito da encomenda pública, a relação que propomos da transformação da
ideia de pedestal na escultura, por parte de Brancusi, torna-se evidente para o memorial
da guerra em Tirgu Jiu, na Roménia, em 1938.
Relativa à sua abordagem para satisfazer a encomenda proposta da cidade romena,
podemos relacionar a sua importância revolucionária com a proposta de Auguste Rodin,
com quem se cruzara nos anos que esteve em Paris. 42 No entanto, apesar de ambas nos
parecerem exemplos paradigmáticos da escultura pública, para celebração da resistência
da cidade romena aos alemães, ao contrário do exemplo de Rodin para a cidade de Calais,
Brancusi concebeu três “monumentos” que, contrariamente às abordagens que
analisámos, se solucionam como propostas alternativas à figura.
Referimos “monumentos” pois a sua formalidade distancia-se de qualquer proposta até
agora abordada e resulta numa formulação de “objetos do uso comum”, como uma mesa
e bancos em pedra, um pórtico também em pedra e uma “estrutura de decoração sublime”
– a coluna. 43
Desta amplitude representacional, em que o objeto se torna independente para a “lógica
de monumento”, podemos apontar a ideia de um conjunto escultórico como A mesa do
Silêncio, onde é proposta uma mesa com dez bancos à sua volta, o que resulta
simultaneamente como uma alternativa à figuração e uma proposta “convidativa” à
participação do observador.

41
A relação proposta da ideia de plinto/pedestal para Brancusi é abordada no capítulo “Acerca da
despersonalização da figura e da autonomia do fragmento humano” onde tratamos a expressão figurativa e
estética que é desenvolvido pelo artista.
42
ARNASON, H. H. –History of Modern Art. Nova Iorque: Harry N Abrams, 3º ed., 1986. p. 138.
43
O autor considera a mesa como “mobília e objetos utilitários” e o pórtico como “estrutura simples” que
representa o avanço da sua síntese formal do tema Beijo, considerado também por José Teixeira como o
“apogeu da monumentalidade” que se concretiza com um “depuramento formal” semelhante ao das
“primeiras civilizações agrárias”. Vid. TUCKER, William. – “7. Brancusi em Tîrgu Jiu” in A linguagem da
escultura. São Paulo: Cosaf & Naify. 1909. pp. 129-142. Vid. TEIXEIRA, José – Metanarrativa: Feci
quod potui (medalha, moeda & objetos). Lisboa: Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa, 2021.
p. 211.

32
Neste sentido, A mesa do Silêncio, Pórtico do Beijo44 e a Coluna Infinita, são assim
reconhecidos como três elementos monumentais distintos, que funcionam com o mesmo
objetivo: “celebrar a resistência da cidade os alemães em 1917”, estabelecendo assim um
Memorial da Guerra para a cidade de Tirgu Jiu.45
Enquanto objetos apresentados como escultura e reconhecidos como “monumentos”,
segundo Maderuelo, podemos indicar uma alternativa para novos modos de pensar e ver
escultura, onde o objeto se autonomiza e se assume como produto final.
É na relação entre estes objetos e a sua relação com o exterior,46 que podemos considerar
também o ponto de vista teórico, por parte de Javier Maderuelo, que refere que um jardim
público se torna um marco privilegiado para a implantação de esculturas monumentais,
devido à possibilidade que oferece ao observador de se relacionar com a escultura num
espaço público, uma vez inscrito numa paisagem.47
Em função da relação que propomos entre as observações de Maderuelo e a proposta
alternativa que Brancusi formula enquanto monumentos, a Coluna Infinita torna-se um
exemplo “radical” da convenção escultórica relativa ao pedestal e devemos de prestar a
nossa atenção sobre a sua eficiência como monumento.
Semelhante à temática do Beijo que o artista desenvolve com particular interesse pela
simplificação, a Coluna Infinita é também um tema que experimenta, por iniciativa
própria, onde se nota a intenção expressiva de Brancusi pela síntese formal. [Fig. 16, Fig.
17]
Em sequência a estes estudos, a Coluna Infinita, apresentada em Tirgu Jiu, resulta da
combinação e repetição dos módulos geométricos, 48 que se expandem num eixo vertical,
alcançando uma altura de cerca de 30 metros, sendo interpretada por William Tucker
como um elemento “entre a terra e o céu, entre a horizontalidade e a verticalidade”.49

44
O Pórtico do Beijo resulta de uma investigação formal que o artista desenvolvera com a redução e
simplificação da temática O Beijo, solucionando-o com uma forma circular onde é evidente uma divisão
no centro – como se duas faces estivessem de frente uma para a outra e estabelecessem ambas as metades
de uma só forma. Vid. BRANCUSI, Constantin – Le Baiser. Pedra calcária. 36,5 x 24,5 x 23 cm. 1923-25.
Centre Georges-Pompidou, Paris. Esta temática é também investigada por Auguste Rodin, contudo, numa
expressão naturalista com uma figura masculina e uma feminina, com relação às personagens da Divina
Comédia, Paolo e Francesca. Vid. RODIN, Auguste – Le Baiser. Mármore. 181,5 x 112,5 x 117 cm. 1882.
Musée Rodin, Pairs.
45
TUCKER, William – Op. Cit. p. 130.
46
A atual condição física das esculturas e a sua vizinhança imediata testemunham o caráter problemático
dessas peças como arte pública.” TUCKER, William. – Op. Cit. p. 129
47
MADERUELO, Javier – Op. Cit. pp. 65-70.
48
William Tucker considera esta repetição como uma “qualidade do fluxo da coluna”. TUCKER, William
– Op. Cit. p. 141.
49
TUCKER, William – Op. Cit. p. 132.

33
Neste sentido, para além da escala monumental, a ideia de pedestal é considerada como
uma nova estratégia, sem se submeter como extensão à figura representada, mas sim
autonomizando-se como elemento escultórico.
Relativa à sua independência, apresenta-se simultaneamente como estrutura e forma final,
contribuindo assim como reflexo de uma consciência do pedestal enquanto elemento com
devida importância e autonomia.
Deste modo, enquanto formas geométricas que se repetem num alinhamento vertical, o
seu caráter monumental assume simultaneamente a sua forma enquanto pedestal, sendo
um elemento que coincidentemente é uma “base infinita” que ascende em direção aos
céus.
Com esta forma radical que se desempenha enquanto escultura abstrata, a ideia de
“monumento” atinge assim uma estreita relação com a sua concepção objetual, colocando
em questão o seu “caráter como totalidade, como objeto completo e finito” que se ergue
do chão e “penetra” no céu.50 [Fig. 18]
Esta articulação da percepção do objeto com correspondência à monumentalidade e ao
monolitismo da estatuária aponta para a sua compreensão enquanto elemento
independente, renunciando qualquer convenção artística que “limite” o seu potencial
ascendente, tanto no espaço, como no interesse por parte dos artistas pelas revelações
ambíguas que provoca e afirma.
Deste modo, a estatuária que se presta a homenagear, com sentido honorifico, as figuras
ou uma história, revela-se em soluções modernistas, que se distinguem num caráter
experimentalista das convenções e acepções escultóricas.
Com efeito, a obra paradigmática de Constantin Brancusi reflete o rompimento do objeto
como atributo e do seu efeito decorativo e compositivo, que se transforma numa proposta
alternativa à figura, e se estabelece numa resolução do próprio objeto enquanto pedestal
e simultaneamente escultura.

No seguimento desta observação, o reconhecimento dos dispositivos complementares à


figura pode também ser apontado, numa abordagem mais recente, por parte de Piero
Manzoni (1933-1963).

50
A Coluna infinita apresentada e inaugurada em Tîrgu Jiu é resultado de uma experimentação por parte
do artista, tendo desenvolvido também uma outra Coluna Infinita na intimidade do seu atelier, em 1918,
em carvalho. Como resultado eficiente enquanto escultura-monumento, é proposta uma outra Coluna
infinita em 1968, em aço pintado a vermelho, para a Storm King Art Center, Nova Iorque, onde novamente
é demonstrada a sua acentuação sintética que alcança uma dimensão abstrata.

34
Embora seja considerada no âmbito do pós-modernismo, a proposta de Manzoni permite-
nos considerar as alternativas que são desenvolvidas em torno dos convencionalismos da
estatuária, o que demonstra uma tendência artística que oferece um ponto de vista
revolucionário, que renova a acepção e concepção escultórica. Como exemplo, com Base
Mágica – Escultura Viva (1963) é apresentado o elemento escultórico que serve para a
elevação da figura, contudo, sem a figura representada no topo. [Fig. 9]
Apesar da apresentação de um plinto desprovido de uma representação figurativa, o artista
deixa em evidência, na face superior, a marca da sola dos pés, como alusão ao “lugar por
ocupar” pela forma humana.
Deste modo, enquanto proposta conceptual, é apresentado o vazio como uma ausência, o
que resulta como expressão semelhante à lógica pós-dadaísta, onde as demonstrações
“radicais” questionam o convencionalismo artístico e simultaneamente se preocupam em
provocar e demonstrar novas formas em pensar e conceber escultura.
Segundo este ponto de vista, Manzoni apresenta o vazio como “forma” que provoca
questões em torno das acepções convencionais da estatuária e, à semelhança com
Brancusi, estabelece a concretização autónoma de uma expressão tridimensional que não
se presta a uma expressão figurativa, mas proporciona uma proposta “objetual”, que
reflete a atenção modernista pelos meios e métodos tradicionais, que são desenvolvidos
na estatuária.

35
Fig. 13

Fig. 14 Fig. 15

Figura 13– Auguste Rodin.–Les Burgeois des Calais. Os Burgueses de Calais. Bronze. 201,6 x 205,4 x
195,9 cm. 1889-1895. Musée Rodin, Paris. Fig. retirada de: Smithsonian – The Burghers of Calais. [Em
linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL: https://www.si.edu/object/burghers-
calais%3Ahmsg_66.4340>

Figura 14 – Pedro Anjos Teixeira. Monumento ao Trabalhador Rural. Bronze. 1957. (Restaurado em
2020) Avenida Central, São João das Lampas. Fig. retirada de: Camara Municipal de Sintra. [Em linha]
[Consult. 5 Jan. 2022] Disponível em WWW:<URL: https://cm-sintra.pt/atualidade/cultura/museus-
municipais-de-sintra/museu-anjos-teixeira/o-monumento-ao-trabalhador-rural-de-pedro-anjos-teixeira>

Figura 15 – António Lagoa Henriques. Fernando Pessoa. Bronze. 1988. Café a Brasileira, Chiado,
Lisboa. Fotografia de: Sofia Rosa 2022.

36
Fig. 16

Fig. 17

Figura 16 – Constantin Brancusi. Coloana Infinita I. Coluna Infinita I. Altura: cerca de 30 metros. 1938.
Targu Jiu, Roménia. Fig. retirada de: Honorary Consulate of Romania– Endless Column [Em linha]
[Consult. 5 Jan. 2022] Disponível em WWW:<URL:
http://www.roconsulboston.com/Pages/InfoPages/Commentary/Brancusi.html>

Figura 17– Piero Manzoni. Base Magica – Scultura Vivente. Base Mágica – Escultura Viva. Bronze.
Paineis de madeira. 60 x 81 x 80 cm. 1961. Gagosian Gallery, Nova Iorque. Fig. retirada de: MERJIAN,
Ara H. – Piero Manzoni in Reviews. [Em linha] Frieze: [s. l]: Frieze, 1 de Maio, 2009. [Consult. 3 Set.
2021].Disponivel em WWW:<URL: https://www.frieze.com/article/piero-manzoni-0>

37
2. Acerca da despersonalização da figura e da autonomia do
fragmento
2.1. Busto

Em termos de escultura, o objeto presta-se a uma interpretação que evidencia um


elemento que se direciona para uma formalidade incomum à tradição clássica. Como
analisámos no capítulo anterior, a escultura apresenta-se sobretudo como uma tradição
representativa do corpo e o objeto é tido como um elemento secundário. O seu
reconhecimento enquanto referente ou símbolo permitiu-nos abordar algumas leituras no
panorama artístico, propondo-nos a descrição do seu caráter útil para a perceção da
totalidade da obra. Nesta trajetória, podemos considerar o objeto enquanto elemento
fundamental para o significado, num enquadramento decorativo, reconhecido como
motivo complementar.
Contudo, parece-nos que a sua dimensão plástica também pode ser entendida no âmbito
das convenções escultóricas, para além da estatuária. Para um melhor entendimento desta
perspetiva, devemos de considerar que a representação escultórica constitui tipologias
que são condicionadas devido a manifestações iconográficas, em torno da semelhança
com os traços característicos de um individuo, que dividem a totalidade da pessoa em
dois elementos identificáveis e autónomos, como o corpo e o rosto.
Nas condições da hipótese sugerida, estes dois temas devem ser observados segundo uma
perspetiva com valor central na sua representação tridimensional como objeto artístico
autónomo, reconhecido também enquanto fragmento.
Ao sublinharmos o termo fragmento e associarmos o busto e o retrato como possibilidades
para um objeto artístico independente, temos de ter em conta que, na mudança e novidade,
dos finais do século XIX, se nota uma perda da qualidade temática e as características
artísticas dos mestres anteriores são transportadas para um sentido de mudança que se
começa a notar como consequência da supressão académica que procura escapar às
convenções.51

51
“Car si l'academisme etait victorieux en apparence, il fut forcé pour plaire et pour survivre de revêtir la
depouille de ses vaineus. Les themes avortés, les improvisations hâtives furent reprises avec une science
consommée à l'ausage des Salons et des places publiques jusqu'au début du XX siècle.” – BENOIST, Luc
– Histoire de la Sculpture. 2ª ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1972. p. 114.

38
Considerado como um “marco” da cultura artística do final do século XIX, por contribuir
com novas técnicas e ideias para a escultura,52 a produção artística de Auguste Rodin
assume métodos clássicos, elaborando processos de manipulação da matéria para
convertê-la como meio de expressão da formação de novos valores escultóricos.
O artista faz uso da convenção do rosto e joga com a sua independência. Com L’Homme
de nez cassée (1864), o artista retrata um colega, que se apresenta com uma suposta
mutilação, tendo o nariz partido.53 [Fig. 18] Com característica realista, a expressão do
nariz partido é acentuada com a curvatura da cana do nariz, que é evidente quando vista
de perfil.54
Relativamente ao alcance modernista deste exemplo, será importante considerar a
importância representativa do fragmento convencional, numa rejeição à tradição clássica
simétrica, e que apresenta a expressão facial assimétrica, revelando o gesto e a liberdade
criativa do artista que opta por uma escolha do referente e o apresenta com expressão
“realista”, contrariamente à idealização proposta. 55
Com relação a esta representação modernista de um fragmento convencional, partindo da
reflexão proposta por Walter Benjamin, enquanto tendência modernista, a atividade
56
artística dedica-se à produção de “formas originais de arte”. Relativo a esta
característica, podemos também destacar a proposta “realista” como uma manifestação
do caráter modernista que “abandona o terreno da bela aparência”57 e tende a produzir

52
“Vista como um todo, a escultura de Rodin foi o primeiro ataque extremo (...) a uma ideologia
profundamente arraigada na escultura neoclássica, que perdurou em quase toda a escultura oitocentista até
a obra de Rodin.” – KRAUSS, Rosalind – Os caminhos da escultura moderna. Lisboa: Martins Fontes,
1977. p. 12.
53
“Enviou-a ao Salon de 1864, com o nome “Bibi”, e foi-lhe recusada. Era apenas a cabeça, ou antes a
máscara, dum homem já a entrar no declínio, fronte sulcada de rugas fundas, faces cavadas em vales e
colinas, que uma barba emmaranhada e cabelos intosos envolviam. Pormenor curioso: a cana do nariz
aparecia deformada, esborrachada, com uma corcova ao meio.” – BRASIL, Jaime. Op. Cit. p. 19.
54
A par das ambições modernistas, podemos também, neste âmbito da concepção de fragmentos
convencionais, destacar o trabalho do escultor caldense, António Duarte (1912-1998), com o retrato do
Pintor Rafael Pinheiro, executado em 1932, em mármore lioz, que nos lembra a Masque de homme avec du
nez cassée de Rodin, devido à frontalidade do rosto. Também no Retrato de Regina, de 1947, em granito
sueco, o escultor representa a sua mulher. Contudo, apenas é representado o rosto, sendo que é revelado no
centro do bloco de granito as características fisionómicas da figura, oferecendo uma dimensão semelhante
à frontalidade da máscara.
55
“A critica é unanime em proclamar que essa máscara é uma obra de mestre, embora de acentuado gosto
clássico, inspirada mesmo nos antigos. A verdade é tratar-se duma obra realista, dum retrato tirado do
natural.” – BRASIL, Jaime – Ibem.
56
BENJAMIN, Walter – A Modernidade. 2ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2017. pp. 210-212.
57
BENJAMIN, Walter – Op. Cit. p. 224.

39
um efeito que liga a criatividade artística com a transformação e modificação dos
arquétipos escultóricos.58
Demonstrando, portanto, uma concepção não tradicional de um fragmento convencional,
conforme podemos observar na sua obra, a preocupação particular de Rodin com a
superfície é um dos traços característicos da sua visão artística, que se demonstra com
consciência aguda das convenções artísticas, e procura a habilidade empenhada em
apropriar-se das qualidades do material e, simultaneamente, sugerir uma abordagem com
resultados diferentes aos académicos.
Em prol desta atividade modernista que transmite propostas inovadoras, o retrato torna-
se um pretexto apto para desenvolver uma autonomia do rosto, como sucede em Antoine
Bourdelle (1861-1929), que José Teixeira considera como uma “obra paradigmática” que
exemplifica o conceito de “autonomia formal” na escultura.59
Segundo Teixeira, as três figuras que Bourdelle representa com La Guerre/Figures
Hurlantes, (1888-1889) resultam num único objeto artístico, neste caso, concebido
enquanto um conjunto de três representações de rostos na mesma superfície. [Fig. 19] O
rosto multiplicado numa só unidade, num eixo vertical, propõe uma direção ascendente
do objeto escultórico. A sua concepção, uma vez composta pela execução de três cabeças,
que se assemelham a uma sequência ascendente, estrutura também um ponto de vista
inovador do rosto, que se assemelha ao princípio modernista, de acordo com uma
perspetiva consciente das convencionalidades, que tem expressões plásticas renovadoras.
Na sua vertente representativa, enquanto três cabeças que “gritam”, encontramos também
a particularidade metafórica da sua formalidade.60 De acordo com esta característica,
podemos considerar que o conjunto apela, num sentido expressivo dos rostos, de boca
aberta,61 a uma alusão a uma sensação de dor e angústia relacionadas com a guerra. Esta
habilidade expressiva, destaca-se também pelo seu objetivo comum dos elementos que a

58
“(...) aquilo a que chamam fealdade na Natureza pode tornar-se em arte duma grande beleza. Na ordem
das coisas reais, chama-se feio ao que é disforme, ao que é malsão, ao que sugere a ideia da doença, da
debilidade e do sofrimento, ao que é contrário à regularidade, sinal e condição de saúde e da força: um
marreco é feio, um coxo é feio, a miséria esfarrapada é feia. Feias ainda são a alma e a conduta do homem
imoral, do homem vicioso e criminoso, do homem anormal que prejudica a sociedade; feia é a alma do
parricida, do traidor, do ambicioso, sem escrúpulos.” – BRASIL, Jaime – Op. Cit. p. 163.
59
TEIXEIRA, José – Escultura pública em Portugal: monumentos, heróis e mitos (séc. XX) Lisboa:
Faculdade de Belas Artes de Lisboa. 2008. Tese de doutoramento. p. 310.
60
“O rosto, símbolo do mistério, é como uma “porta do invisível”, cuja chave se perdeu.” – CHEVALIER,
Jean, GHEERBRANT, Alain – Dicionário dos Simbolos.3ª ed. Lisboa: Teorema. 2019. p. 577.
61
“A boca é o símbolo do poder criador e (...) da insuflação da alma. (...) Órgão da palavra (verbum, logos)
e do sopro (spiritus) (...) A boca derruba tão depressa como edifica os seus castelos de palavras.” -
CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain – Op. Cit. p. 122

40
compõem, conferindo assim a sua “autonomia formal”, como Teixeira sugere, numa
dimensão simbólica potencializada pelo rosto como pretexto.
É neste terreno, em consequência do pressuposto teórico de Walter Benjamin, que
devemos de referir um retrato executado por Bourdelle, intitulado Beethoven, grand
masque tragique. Concebido em 1901, este exemplo aborda o retrato do compositor
alemão, que, no entanto, não se demonstra aplicado segundo a tradição clássica e
mimética, mas oferece um ponto de vista abrangente relativamente à concepção do retrato
enquanto fragmento convencional. [Fig. 20]
Aparentemente nada tem em comum com a imagem original e a sua formalidade, quase
“bruta”, anima a figura de modo que esta se torna numa expressão criativa da
representação do rosto humano, afastando-se da acepção do “belo ideal”.62
Com relação às peculiaridades expressivas que se demonstram com estas abordagens
relativas ao fragmento convencional, relativamente à multiplicação dos rostos que se
formam num só elemento, podemos evidenciar uma tendência modernista, proposta
também por Rodin para a execução de uma encomenda executada para o Museu das Artes
Decorativas, representativa da obra A Divina Comédia de Dante Alighieri, em 1880.
A visão de Rodin sobre os dramas e acontecimentos descritos na obra de Dante, transporta
para a superfície plana e ampla da Porta do Inferno múltiplas figuras que compõem o
conjunto alusivo ao Inferno da Divina Comédia e que dão lugar a um dinamismo das
formas orgânicas do corpo humano que se estendem como altos-relevos que são
modelados e multiplicados.
Referimos multiplicados pois, das quase duas centenas das figuras que compõem esta
obra algumas são reinterpretações de obras e conjuntos escultóricos que o artista já tivera
desenvolvido, ou que estariam em desenvolvimento, e que adapta conscientemente em
função de personificarem as personagens criadas por Dante.

62
De acordo com esta perspetiva, será importante referir o trabalho do escultor Salvador Barata Feyo, que
também executa algumas encomendas públicas para o Estado, e que se apresenta como um caso particular
que transmite características semelhantes às primeiras manifestações modernistas que havemos analisado.
Conforme as abordagens internacionais, Barata Feyo proporciona um academismo com traços subtis de
uma modelação, que se demonstra atenta às versatilidades formais e à superfície. A favor de uma exploração
formal no sentido do fragmento convencional, com o retrato concebido em 1930, de José Tagarro, o escultor
modela o barro aproximando-se da fisionomia do seu colega, amigo e pintor. No entanto, afasta-se de um
tratamento tradicional da superfície e deixa impresso no suporte as “marcas do fazer”. Neste traço
modernista, que deixa o seu rasto no material, encontramos a semelhança à técnica de Rodin, compondo
assim uma forma e método para o panorama nacional que se desenvolve em paralelo aos ideias políticos
impostos. Esta proposta evoca-nos a uma representação análoga de um rosto, no entanto, numa abordagem
internacional, com Alberto Giacometti, que concebe, em 1960, Cabeça Monumental, um rosto onde a
expressividade material se torna evidente na modelação das superfícies e dos traços fisionómicos.

41
A título de exemplo, o conjunto apelidado de As três sombras pode ser identificado como
objeto de uma reutilização das características da expressividade física do seu estudo de
Adão, triplicando a sua apresentação para criar o conjunto de três corpos que se encontram
no topo, conforme é identificado por Rosalind Krauss.63
Partindo deste apontamento, é importante reter a abordagem modernista da “reprodução”,
que resulta num abalo das tradições artísticas e que resulta na intitulada “decadência da
aura”, proposta por Walter Benjamin.64 No entanto, apesar desta teoria se basear numa
acepção de aura que se relaciona com o seu caracter único e singular, achamos que esta
atividade artística, que se dedica à reprodução como um processo, permite reconfigurar e
transformar a figura.
Enquanto reprodução, portanto, entendemos um processo de transformação de algo,
definindo um programa para uma reapresentação e multiplicação das suas formas, que
tomam um sentido prolifero para a formação e produção de novos resultados artísticos.
Sobre este procedimento, que enfatiza um efeito de reinterpretação e reformulação
formal, com relação ambiciosa semelhante a Rodin, devido à sua representação análoga
de um corpo que se transforma numa multiplicidade de resultados, surge-nos o exemplo
de Henri Matisse (1869-1954), que desenvolve uma amplitude dos seus interesses
artísticos e concebe uma série de cinco bustos, apelidados Jeanette I-V, entre 1910 e 1916,
uma demonstração de como pode representar o mesmo sujeito variadas vezes e com
diferentes formalidades. [Fig. 21, Fig. 22, Fig. 23, Fig. 24, Fig. 25]
Partindo desta proposta, em comparação com Rodin, o referente humano é tratado num
balanço entre a simplificação das formas e a modelação de volumes identificáveis da
figura, afetando a sua formalidade numa reapresentação sequencial da sua ideia.

63
“O ato de simplesmente alinhar três exemplares idênticos da forma humana, um seguido ao outro, não
contém nada do significado tradicional da composição.” - KRAUSS, Rosalind – Op. Cit. 1977. p. 25.
Também se torna possível de observar, das 186 figuras, a reprodução da escultura O Pensador, de 1880,
que se situa no eixo central da porta e personifica “o poeta a meditar na sua criação”. Vid. NÉRET, Gilles
– Op. Cit. p. 25. E, embora não queiramos enumerar as multiplicações figurativas, também devemos de
referir o grupo escultórico de um homem e uma mulher apelidado de O Beijo, também é um elemento que
faz parte do projeto que representa. SANTINHO, Maria – Op. Cit. p. 132.
64
Enquanto aura, entendemos o valor da obra de arte autêntica e original, que, no entanto, se submete a
uma produção artística que a reproduz e que anula o seu critério de autenticidade. “A definição de aura
como “o aparecimento único de algo distante, por muito perto que esteja” não é mais do que a formulação
do valor de culto da obra de arte em categorias de percepção espácio-temporais. A distância é o contrário
da proximidade. O que está longe por essência é aquilo que não podemos aproximar-nos. De facto, uma
das características principais do culto é a impossibilidade de aproximação. Por natureza, ele deixa de ser
“distância, por mais perto que esteja”. A proximidade que é possível estabelecer como a sua matéria em
nada prejudica a distância que conserva depois do seu aparecimento.” - Vid. BENJAMIN, Walter – Op. Cit.
pp. 214-217.

42
Nesta série, segundo uma ordem cronológica, identificamos uma crescente vertente numa
“redução formal” 65 dos traços característicos do rosto, que resulta numa simplificação da
fisionomia.66 Numa sequência que parte de uma representação próxima da realidade de
um rosto para uma “expressão representativa”, não é a apresentação do tema que parece
ser a motivação, mas o processo de simplificação e transformação das referências
figurativas.67
A partir desta análise, podemos considerar que a síntese formal de Matisse evidencia uma
possibilidade de um fragmento que se “objetifica”68 e se transforma num rosto que não
se apresenta como rosto convencional. Esta transformação e sequência de uma convenção
e tradução representativa, no trabalho em série, demonstra um processo plástico que
reflete a “passagem da figuração à abstração”69 e que também se torna evidente na
formação do fragmento convencional como independente pelo artista romeno Constantin
Brancusi, que partilha o interesse por uma autonomia das formas e propõe uma nova
concepção em torno do objeto.
Em contraste com Rodin, o escultor romeno proporciona uma visão relativa ao fragmento
humano, que resulta numa formalidade bastante distinta.70 Brancusi destaca-se pela sua
alternativa técnica que resulta num desaparecimento dos detalhes das superfícies e que se
caracteriza pelo processo simplificador, tomando como referente a cabeça humana, numa
exploração que se expressa pela sua síntese formal.71

65
“O interesse pelo conhecimento da morfologia humana e a necessidade de síntese da figuração, levariam
Matisse a proceder a um sistemático processo de redução formal e à desconstrução compositiva onde a
silhueta de contorno assume um protagonismo especial como sucede nas três figuras reclinadas (...)” -
TEIXEIRA, José – Op. Cit. 2021. p. 208.
66
Embora não se trate de uma série, com relação ao fragmento convencional, ao recorrermos a esta série,
achamos que seja oportuno destacarmos, em função de um fragmento convencional que é expresso numa
“formalidade modernista”, também um exemplo, um pouco mais tardio, de Matisse, apelidado de Le Tiaré,
executado em 1930. Nesta obra observamos um busto, apenas aproximado à formalidade comum e
identificável. O cabelo é representado numa síntese volumétrica, sendo tratado como uma demonstração
dos volumes que se expandem em direção ao rosto, oferecendo a saliência no centro como uma
característica identificável do referente humano – o nariz. “Tiari é uma planta tropical, onde a forma é
combinada com a cabeça humana.“ - READ, Herbert – Op. Cit. 1996. p. 40.
67
“O efeito da serie é diminuir a importância do motivo como tal. O assunto não é a cabeça de uma mulher
mas o processo de fazer uma cabeça de uma mulher”- TUCKER, William – Op. Cit. p. 96.
68
“Objetivo – transformação pelas novas técnicas dos canis físicos tradicionais da arte, exacerbação dos
géneros híbridos, promiscuidade das artes, etc.” – FIZ, Simón Marchán – Del arte objetual al arte del
concepto. 11ª ed. Madrid: Sector Foresta, 2012. p. 9.
69
TEIXEIRA, José – “Antropomorfismo e abstração do rosto na escultura do Séc. XX” p. 141. in As artes
visuais e as outras artes: Arte e Abstraçao. Lisboa: 2008, pp. 131-148.
70
Esta referência deve-se à relação entre ambos durante a sua estada em Paris, onde Rodin o convidara para
ser seu assistente, mas o artista romeno recusara a proposta. – READ, Herbert. Op. Cit. 1996. p. 79.
71
O processo de síntese que toma a cabeça como motivo para uma reinterpretação, em Brancusi, assume a
temática do Beijo desde 1908, um tema também característico das abordagens de Auguste Rodin. No
entanto, Brancusi transforma o referente humano num só objeto, uma “tour de force”, como José Teixeira
apelida. “(...) “ao concentrar-se em formas simples, estruturalmente derivadas de sólidos geométricos como

43
Com Recém-nascido, de 1920, podemos facilmente apontar a “redução formal” que
culmina num só objeto, com superfícies lisas que formam uma forma volumétrica
semelhante à cabeça – o ovo. 72 [Fig. 26]
Neste âmbito, a sua preocupação formal com a cabeça como elemento representativo é
demonstrada na sua síntese quase abstrata que a reduz a um objeto, o ovo,73 e transporta
a sua singularidade como um fragmento-objeto.
A sua obra e processo de síntese permite-nos avançar nesta transformação e considerar
também as suas técnicas como procedimentos para tal. O facto de fundir a peça em
bronze, confere, no polimento da superfície, uma característica brilhante, que reflete a
imagem exterior. Esta característica permite ao observador admirar a superfície de um
material, com devida atenção à qualidade da superfície lisa e polida. 74
Deste modo, submetido a uma representação abstrata, simbólica e de formalidade
análoga, o rosto torna-se objeto para a investigação formal e técnica de Brancusi. Nesta
trajetória, relativamente à relação formal que o escultor propõe, a simbologia e metáfora
que a sua transformação objetual demonstra, torna-se evidente com a obra Le
commencement du monde, de 1924, onde, à semelhança com a posição proposta da cabeça
deitada numa superfície, apresenta a sua síntese formal de cabeça-ovo, sob um plinto
construído pelo próprio artista e uma superfície de vidro que se encontra entre o plinto e
o “objeto”. [Fig. 27]

o cilindro e o prisma, em que o escultor soube conciliar a singularidade ascética da forma com o respeito
pela natureza do material (talha directa), Brancusi foi capaz de revolucionar a escultura do Século Vinte,
limpando-a das excrescências barroquistas e conduzindo-a a um depuramento formal, sem precedentes,
cujo paralelo aproxima mais a sua escultura da vitalidade formal da pré-historia (neolítico) ou da sintética
monumentalidade das primeiras civilizações agrárias do que do legado naturalístico da civilização
mediterrânica.” – TEIXEIRA, José – Op. Cit. 2021. 211.
72
A versão de 1920 trata-se de um resultado que assume o bronze como material. No entanto, é uma
elaboração do tema que se desenvolve a partir de uma versão executada em 1914, concebida em mármore,
onde a transformação do referente humano a uma forma ovoide é também ela característica. Com relação
a esta síntese formal, convém referirmos que o artista não se limita a tratar o Recém-nascido como temática
para a transformação figurativa em objeto e esta importância representativa e transformadora é proposta
inicialmente na sua primeira representação em bronze, em 1910, com Musa Adormecida, onde a
reformulação formal concretiza-se num processo redutor dos volumes e dos traços identificáveis, podendo
ainda notar semelhanças com os traços fisionómicos e os apontamentos a negativo, representando o cabelo.
Esta versão trata-se da primeira referencia ao tema “ovo” pelo artista. - TUCKER, William – Op. Cit. p.
114.
73
O ovo é considerado como símbolo “universal”, associado à “génese do mundo”. “O ovo é uma realidade
primordial que contém em germe a multiplicidade dos seres.” - CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT,
Alain – Dicionário dos Símbolos. Lisboa: Teorema. 3ª ed. 2019. p. 497.
74
“No bronze, ela torna-se um recetáculo para a imagem do espetador e do ambiente, estruturada e
modulada na forma do objeto.” - TUCKER, William – Op. Cit. p. 48.

44
Com este exemplo, de uma cabeça que é simplificada a uma forma volumétrica lisa e
“brilhante” 75, distante da expressão da superfície de Rodin, portanto, mas revelador de
uma nova apresentação, com o refinamento do material e a estratégia em colocar o objeto
sobre elementos alternativos a um plinto, Brancusi propõe uma “deslocação” do
fragmento convencional para uma dimensão objetual, considerando novos métodos
expositivos.
Recorrendo à expressão proposta por William Tucker, relativamente à concepção de
objetos-esculturas76, com o exemplo de Brancusi, esta característica estrutural, da
composição da obra com três materiais distintos, é também uma evidência da inteligência
de Brancusi e no seu método em apresentar os seus objetos artísticos, elevados pelos seus
suportes, que funcionam também eles como componente visual.77
Segundo a perspetiva de Tucker, de acordo com as suas características físicas, visuais e
simbólicas, o suporte resulta enquanto pedestal que apresenta o objeto, “numa altura
adequada” e que o coloca numa relação com o mundo.78 Conforme este apontamento,
podemos considerar a base como uma alternativa ao plinto, que nos parece transversal à
ideia de objetos como elementos decorativos na escultura oitocentista e também
considerar o plinto como contextualização para a metáfora proposta por Brancusi, que
eleva o elemento “chave” para o simbolismo relativo ao inicio do mundo.
Nesta combinação de elementos, começamos a notar algumas características modernas
que se demonstram expansivas nas temáticas tradicionais e que se concretizam numa livre
concepção formal das suas convencionalidades, tendo como especial característica os
fragmentos convencionais, que propõem um novo tratamento da figura e das convenções
artísticas.
A preocupação com a superfície, no entanto difere de autor para autor, mas parece-nos
partilhar o interesse em dinamizar o fragmento enquanto “objeto-escultura”. Sob técnicas
tradicionais como a modelação, começam a ser transmitidas as primeiras manifestações

75
William Tucker considera que Brancusi transporta a imagem do ovo, do mundo dos objetos, para uma
“superfície imaculada e de grande brilho” – TUCKER, William – Op. Cit. p. 114.
76
“O espectador é visual e intelectualmente atraído para a área ilusória entre o potencial do bloco, a madeira
ou a pedra intacta, e a realidade do objeto-escultura.” - TUCKER, William – Op. Cit. p. 43.
77
“A cabeça humana, concebida como objeto inteiramente formado e separado do corpo, a base pode
assumir o papel dos ombros e do pescoço no tradicional busto esculpido: Toda a expressão concentra-se na
cabeça, ou objeto, que é o foco de nossa atenção, mas está articulada na nossa direção por uma estrutura
que imita ou realça o objeto, sem competir com ele, ou, melhor dizendo, que lhe reforça a unidade e
totalidade.” - TUCKER, William – Op. Cit. p. 56. Desta concepção, que resulta enquanto uma estratégia
em posicionar o objeto artístico em evidência e que se presta a uma funcionalidade semelhante ao
plinto/pedestal Vid. Capítulo “1.3. O pedestal enquanto objeto estrutural da estatuária”.
78
TUCKER, William – Ibem.

45
modernistas que valorizam o material e, acima de tudo, a superfície. Deste modo, a
superfície altera-se, as formas mudam e as técnicas evoluem.
Com relação a esta observação, de uma escultura que se motiva no fragmento humano
para propor uma nova definição formal, será oportuno também referir o artista natural da
Golegã, Joaquim Martins Correia (1910-1999).
A favor do rosto enquanto elemento humano que é considerado fragmento, Martins
Correia, com Sem Título, realizada em 1960, representa uma cabeça feminina, que se
encontra deitada sobre uma pedra calcária, estando nesta base marcada a vermelho “MC”,
as iniciais do artista79. [Fig. 28] estabelecendo relação com as propostas de Brancusi,
provocada pela posição em que a cabeça está colocada, Martins Correia desenvolve um
método próprio para abordar o plinto enquanto base, acabando por funcionar como
favorecimento para uma “especulação formal sobre as inúmeras maneiras de decompor e
reenquadrar um assunto”.80
Desta abordagem que assume um dispositivo alternativo para uma “elevação” ou
“contextualização” do fragmento escultórico, podemos também apontar Rosto do povo
que, apesar de não datada, estabelece relação com a alternativa aos métodos expositivos,
sendo representada uma cabeça feminina sobre um plinto. Enquanto que a cabeça é
representada em bronze, o plinto é um objeto natural, em madeira, permitindo assim
estabelecermos a analogia entre a verticalidade associada aos troncos das árvores e à
função tradicional do plinto. [Fig. 29]
Embora esta relação resulte de uma leitura subjetiva, esta função formal do plinto lembra-
81
nos as abordagens de Brancusi, que assumem o plinto como parte da escultura. com
características materiais qualitativas que funcionam estrategicamente para a totalidade da
obra, a sua função encontra-se, portanto, também evidenciada nas abordagens do escultor
português. Neste sentido, apesar de maior parte das suas obras se encontrar sem data,
podemos considerar que a sua investigação formal e produção criativa se motiva no
paradigma representativo dos fragmentos convencionais, com devida característica
modernista, e, embora o plinto pareça distinto entre estes três exemplos, tendo sido
abordado enquanto pedra calcária ou um tronco de uma árvore, é possível notar a
abordagem do escultor para conceber um plinto próprio para elevar o fragmento.

79
TEIXEIRA, José – Op. Cit. 2011. p. 18.
80
TEIXEIRA, José – Op. Cit. 2011. p. 19.
81
Vid. “Maiastra” - Latão sobre base de pedra. 73 x 20 x 20 cm. 1912. Guggenheim Museum, Veneza; “Le
commence du monde” - Latão, vidro e madeira. 19 x 28,5 x 17,5 cm. 1924. Centre Georges Poumpidou,
Paris; “Bird in space”- Latão sobre bloco. 151 cm de altura. 1932-40. Guggenheim Museum, Veneza.

46
Em contraste com a abstração de Brancusi, no entanto, com estas propostas, podemos
entender que Martins Correia concebe uma representação figurativa, identificável devido
aos seus traços faciais, pois apenas a cabeça se demonstra como uma representação
naturalista do rosto. No entanto, não se trata de identificarmos a figura, mas transportá-la
para um universo objetual que pretendemos conduzir esta análise.
Sobre esta variação das características do plinto, em Martins Correia, parece-nos que a
reprodutibilidade e o trabalho em série potencializa esta possibilidade criativa, que, por
um lado, propõe um reconhecimento do plinto como dispositivo capaz de múltiplas
acepções e concepções e que, simultaneamente, conduz para uma representação
sintetizada e com valores modernistas.
O caráter arqueológico destes objetos artísticos também deve ser mencionado. Uma vez
que o fragmento se demonstra autónomo do corpo, parece-nos que estabelece uma relação
fulcral com o plinto, possibilitando inúmeras alternativas para as ambições artísticas. Esta
relação propõe observarmos o fragmento como um elemento com inúmeras resoluções
formais que se desenvolve na possibilidade de reinvenção dos próprios
convencionalismos escultóricos.
Neste sentido, enquanto característica de uma formalização do rosto com tendência de
um processo de simplificação, podemos também evidenciar o autorretrato de Dorita de
Castel-Branco, que demonstra a redução das características singulares da identidade da
autora, com resultado escultórico como um “rosto base”, onde podem ser acrescentados
os pormenores, texturas e apontamentos sobre a identidade. [Fig. 30]
Embora pareça distante das concepções de Martins Correia, estabelece relação com o
processo simplificador que a figura humana sugere, resultando numa reformulação
sintética dos traços identificáveis e com uma proposta formal associada à geometrização.
Enquanto reformulação da figura humana, a sua formalidade torna-se um pretexto para
uma transformação representativa e, a partir da abstração de Matisse ou nas traduções
formais de cabeças-ovos de Brancusi, podemos considerar que os fragmentos de uma
morfologia começam a propor um ponto de vista que se demonstra fértil para a
despersonalização da figura e de considerações em torno da sua independência enquanto
objeto, potencializados pela reprodutibilidade, que oferece a versatilidade de um mesmo
motivo, com variadas formalidades e resultados estéticos.
No âmbito do progresso sintético das formas humanas que se concretizam enquanto
objetos, para finalizarmos este capítulo, podemos referir o exemplo de Madame X (1915-
16). Este exemplo, concebido por Brancusi, representa, com efeito, um objeto que se

47
afasta de qualquer antecedente artístico e que demonstra ser um exemplo claro das nossas
considerações. Uma vez executada como encomenda para a concepção de um retrato,
representa, no entanto, um objeto fálico.82 Com esta “provocação”, poderemos, portanto,
considerar a “objetificação” de um referente humano que nos parece evidenciar a tradução
de formas orgânicas para um mundo dos objetos, permitindo assim ao fragmento ser
considerado não só pela sua aparente formalidade relacionada com o rosto, como também
prestar-se a um resultado escultórico que é ele mesmo objeto. Deste modo, o resultado
escultórico provoca a uma reinterpretação das formas, o que resulta, com efeito, numa
“objetificação” do corpo e numa transformação das formas identificáveis em objetos
aparentemente sintéticos.

82
Esta tradução da forma humana evoca a uma representação de um busto, por parte de António Duarte,
intitulada de Homo Falus, de 1989, onde a resolução da cabeça se torna numa reformulação volumétrica
dos traços fisionómicos, com uma certa ironia, acentuando o nariz como um objeto fálico, colocado no
centro do rosto. Também poderemos considerar o comentário irónico e provocador de Clara Menéres, com
a apresentação de um falo em resina, com conotação museológica, colocando o objeto num relicário,
transportando o seu sentido simbólico e metafórico.

48
Fig. 18 Fig. 19 Fig. 20

Fig. 21 Fig. 22 Fig. 23 Fig. 24 Fig. 25

Figura 18 – Auguste Rodin. L’Homme au nez cassée. O Homem com o nariz partido. Bronze. 39 x 21,2 x 23,2 cm,
1906. Musée d’Orsay, Paris. Fig. retirada de: Musée d’Orsay. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021]
Disponível em WWW:<URL: https://www.musee-orsay.fr/fr/oeuvres/lhomme-au-nez-casse-15627

Figura 19 – Antoine Bourdelle. La Guerre/Figures hurlantes. A Guerra/Figuras gritantes. Bronze. 93 x 75 x 65 cm.


1898-1899. Musée Bourdelle, Paris. Fig. retirada de: Musée Bourdelle. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível
em WWW:<URL: https://www.bourdelle.paris.fr/fr/oeuvre/la-guerre- ou-figures-hurlantes>

Figura 20 – Antoine Bourdelle. Beethoven, grand masque tragique. Gesso. 77 x 47 x 47 cm. 1901. Musée Bourdelle,
Paris. Fig. retirada de: Musée Bourdelle. [Em linha] [Consult. 5 Jan. 2022] Disponível em WWW:<
https://www.bourdelle.paris.fr/fr/oeuvre/beethoven-grand-masque-tragique>

Figura 21– Henri Matisse. Jeanette I. Bronze. 33 x 22,8 x 25,5 cm. 1910. Museum of Modern Art, Nova Iorque.. Fig.
retirada de: MoMa. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL:
https://www.moma.org/collection/works/80785>

Figura 22 – Henri Matisse. Jeanette II. Bronze. 26,5 x 22,5 x 24 cm. 1910.
National Galleries of Scotland. Fig. retirada de: National Galleries of Scotland [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021]
Disponível em WWW:<URL: https://www.nationalgalleries.org/art-and-artists/326/jeannette-ii>

Figura 23 – Henri Matisse. Jeanette III. Bronze. 56,69 x 30,48 x 30,48 cm. 1910-11.
Los Angeles County- Museum of Art, Los Angeles. Paris. Fig. retirada de: LACMA.
[Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL: https://collections.lacma.org/node/236315>

Figura 24– Henri Matisse. Jeanette IV. Bronze. 61,3 x 27,4 x 28,7 cm..1911. Museum of Modern Art, Nova Iorque..
Fig. retirada de: MoMa. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL:
https://www.moma.org/collection/works/80798>

Figura 25 – Henri Matisse. Jeanette V. Bronze. 58,1 x 21,3 x 27,1 cm. 1910-11.
Museum of Modern Art, Nova Iorque. Fig. retirada de: MoMa. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021]Disponível em
WWW:<URL: https://www.moma.org/collection/works/80801>

49
Fig. 26

Fig. 27

Figura 26 –Constantin Brancusi. The newborn. O recém-nascido. Bronze. 14,6 x 21 x 14,6 cm. 1920.
Museum of Modern Art, Nova Iorque. Fig. retirada de: MoMa – The newborn (Version I) [Em linha]
[Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL: https://www.moma.org/collection/works/81655

Figura 27 –Constantin Brancusi. Le commencement du monde. O começo do mundo. Bronze polido,


vidro e madeira. 19 x 28,5 x 17,5 cm. 1924. Centre Georges Pompidou. Fig. retirada de: Centre Georges
Pompidou – Le commencement du monde. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em
WWW:<URL: https://www.centrepompidou.fr/fr/ressources/oeuvre/c6r4n9G>

50
Fig. 28 Fig. 29

Fig. 30

Figura 28 – Joaquim Martins Correia. Sem título. Bronze sobre pedra calcaria. 1960. Fig. retirada de:
Mar.e.Cor: Escultura.Desenho.Pintura. Lisboa: Mosteiro dos Jerónimos. 2011.

Figura 29 – Joaquim Martins Correia. Rosto do Povo. Bronze sobre tronco de madeira. 64 x 33 x 22 cm.
s/data. Museu Municipal Martins Correia, Golegã. Fotografia de José Teixeira, 2009.

Figura 30 – Dorita de Castel-Branco Auto-retrato. Mármore. 54 x 20 x 20 cm. 1973. Fig. retirada de:
FCG – Dorita de Castel Branco. Lisboa: FCG. 1973. p.10.

51
2.2. O torso

Do ponto de vista de uma autonomia do fragmento escultórico que se submete a uma


transformação formal, que, com efeito, abrange a sua concepção a uma dimensão próxima
ao conceito sugerido por William Tucker, achamos que seja com devida amplitude que
devemos de considerar também o torso como um elemento chave para uma
reinterpretação artística sobre as suas convenções e possibilidades “objetuais”.
Neste âmbito, será oportuno referir a escultura L’homme que marche (1877) de Auguste
Rodin, que representa uma figura masculina erguida, com os pés separados, estando um
à frente do outro, aludindo a uma representação do momento em que o homem, que está
a dar um passo, acaba de pousar o pé no chão. [Fig. 31]
Partindo da sua representação enquanto “homem mutilado”, por não estarem
representados os seus membros superiores e a cabeça, a representação figurativa é
limitada a um corpo composto por membros inferiores e tronco. Embora seja um estudo
para a figura de São João Baptista, apresenta-se a público como um homem sem cabeça
e sem braços, como um “homem portentoso em marcha para realizar o seu fulgurante
destino.”83
Esta acepção de um corpo que não é total, que não contém rosto, nem busto, nem retrato,
para além de sugerir a introdução de um novo conceito escultórico com a sua
representação autónoma, esta contribuição de Rodin para o sentido de “objeto”
potencializa a ideia de fragmento e a sua concepção enquanto esculturas unitária e
independente.
Enquanto exemplo de uma figura “incompleta”, esta característica evidencia uma
particularidade do fragmento como uma abordagem que surge de uma intenção em
concretizar elementos referentes ao corpo humano, com devidas características formais e
expressivas, mas sobretudo autónomas.
Neste sentido, torna-se evidente uma despersonalização da figura, não sendo
propriamente definida a sua identidade, mas sugerida uma alternativa formal para a
representação figurativa. Demonstrando-se, portanto, enquanto obra paradigmática, o
“homem que caminha” traduz uma ambição do pensamento artístico que se motiva numa
subjetividade própria sobre temas académicos que são propostos numa nova formalidade.

83
BRASIL, Jaime – Op. Cit. p. 36.

52
Em torno das suas características revolucionárias, relativamente à sua expressão artística,
segundo José Teixeira, são identificadas duas abordagens técnicas nas obras de Rodin: a
passagem do barro para gesso, onde o artista deixa evidenciadas as marcas da moldagem
e o trabalho em pedra, onde o artista deixa “as marcas do fazer”.84 Isto é, em ambos os
materiais, Rodin deixa as marcas dos processos artísticos, do cinzel, do escopo ou da mão
que modela o barro, como uma linguagem própria que fica registada na superfície do
material - conforme Tucker refere, uma “nova linguagem”, que confere uma expressão
própria no material, em virtude de um “caráter do fazer”85.
Neste sentido, podemos identificar as marcas da passagem do barro para o gesso que
ficam registadas na superfície, demonstrando assim um aspeto incomum, relacionado
com a acepção do non finito escultórico.86
Partindo da premissa de um objeto que é modelado de acordo com a tradição clássica,
mas oferece uma formalidade modernista, será oportuno considerar também o trabalho
desenvolvido por Henri Matisse (1869-1954), relativamente às novas tipologias e
formalidades de um fragmento humano que surge com as abordagens modernistas.
Para além da sua produção no âmbito da pintura, o artista demonstra-se atento às
possibilidades formais e tridimensionais na modelação da argila e interessa-se pela
capacidade em criar formas no espaço.
Em 1900-3 concebe a sua primeira figura humana87, apelidada de Le Serf. [Fig. 32] Este
primeiro exemplo, apesar de aparentemente distante da aceção de fragmento
convencional, revela o início de uma vasta produção escultórica. No seguimento de uma
análise ao trabalho de Rodin, devido à sua relação com a posição do L’Homme que
marche, parece-nos que, em comparação, a atitude do próprio corpo motiva o título da
escultura de Rodin e que, no caso de Matisse, o título é introduzido devido ao simbolismo
do corpo humano que é “incapaz”, em consequência da falta dos seus membros
superiores, associados ao verbo “fazer”. Neste sentido, uma vez que o corpo representado

84
TEIXEIRA, José. – Op. Cit. 2021. p. 202.
85
TUCKER, William – Op. Cit. p. 30.
86
José Teixeira refere a influência do escultor florentino, Michelangelo, com a série incompleta de
“escravos”, que constitui uma “influência recorrente da linguagem poética da escultura modernista”,
relacionando assim este resultado estético como uma “reminiscência romântica da estética da ruina” e
também como contribuição para o progresso da linguagem plástica que é proposto pelo modernismo. -
TEIXEIRA, José. – Op. Cit. 2021. p. 201-202.
87
READ, Herbert – Op. Cit. 1996. p. 37.

53
se encontra com os braços amputados, estes membros estão nulos e limitam ou
impossibilitam a liberdade do “escravo”.88
Embora sejam observações subjetivas, este vínculo estabelecido entre estas duas obras
permite-nos avançar para considerações relativas à contribuição de ambos os escultores,
sendo também este exemplo de Matisse reconhecido por William Tucker como “a
primeira escultura moderna”.89
Para além da relação possível da atitude e posição do corpo que é representado, Matisse
desenvolve, em 1901, Madeleine I, uma representação de um corpo feminino, com os
braços amputados. A leve torção do tronco e a ondulação proposta pela posição do corpo,
com a perna direita fletida e com o joelho apontado para a esquerda, torna-se um exemplo
revelador das suas intenções em transmitir a ideia de um corpo humano, segundo um
alongamento das formas e numa ondulação aparente das suas fisionomias.90 [Fig. 33]
Para além desta representação do corpo que assume a ondulação das formas como nova
expressão, relativamente a uma outra contribuição na escultura modernista, devemos de
referir o trabalho em série, que desenvolve entre 1907 e 1929, possibilitando uma
ampliação interpretativa de um motivo que pode ter variados significados.
Intitulado enquanto Figura reclinada I, II e III, de um ponto de vista cronológico,
notamos que representa primeiramente a figura feminina reclinada, com o cabelo e braço
acima da cabeça, sendo o segundo exemplo uma manifestação mais vincada do processo
de síntese e do alisamento das superfícies e volumes. No último exemplo,
comparativamente, ultrapassa as referências identificáveis do género da figura
representada, sendo que os seios desaparecem e, sem qualquer referência ou apontamento
que defina a sua sexualidade, sugere a leitura de um corpo andrógeno. [Fig. 34, Fig. 35,
Fig. 36]
Esta transformação e sequência de uma convenção e tradução representativa, no trabalho
em série, demonstra a possibilidade de análise dos objetos artísticos criados, que se traduz

88
O braço toma o seu simbolismo como “elemento de força, poder, do socorro concebido, da proteção”. É
reconhecido como “instrumento da justiça; o braço secular inflige aos condenados o seu castigo.“ No
Dicionário dos Símbolos pode-se ler o seguinte: “O braço é um dos meios da eficácia real enquanto impulso,
equilíbrio, distribuição ou mão de justiça-“ – CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain – Op. Cit. p.
127.
89
TUCKER, William – Op. Cit. p. 13.
90
Para melhor entendimento desta perspetiva, podemos observar também esta característica expressiva em
La serpentine, de 1909, que figura o corpo de uma mulher nu, apoiada com o cotovelo sobre um bloco,
numa síntese formal que estreita a figura e alonga os membros. O nome é curioso e sugere uma expressão
italiana para descrever a posição da figura – serpentinata - e talvez esta seja a relação que Matisse tenciona
transportar para as suas representações figurativas, no entanto, estaremos a apoiarmo-nos num ponto de
vista subjetivo.

54
em uma nova concepção. A este favor, com a série Costas I-IV, o pintor-escultor cria um
conjunto de relevos, em grande dimensão, de quatro representações de uma figura
humana de costas, “brincando” deliberadamente com os volumes do corpo modelado no
suporte bidimensional. [Fig. 37, Fig. 38, Fig. 39, Fig. 40]
Ao observarmos esta série, numa sequência cronológica, nota-se uma tendência
expressiva de Matisse, que resulta numa síntese das formas e na modelação dos volumes
identificáveis da figura.91 Este resultado estético de uma figuração que se torna objeto,
apresenta-se como uma das características modernas, como já referimos, e propõe
analisarmos outras abordagens, que tomam o torso como um referente humano que
potencializa uma transformação formal e a uma amplitude das expressões modernistas.
Neste sentido, será oportuno referir Jean Arp (1886-1966) que, em 1930, cria Torso, um
exemplo que se cruza com o termo “objeto-escultura” que havemos analisado. Contudo,
não será a partir desta característica que pretendemos analisar a sua síntese formal, mas
sim, a partir da sugestão formal que a abstração oferece. [Fig. 41]
Embora possamos identificar algumas semelhanças com um torso, devido à verticalidade
e às sugestões volumétricas que indicam os membros inferiores, no âmbito da
transformação da linguagem plástica, será oportuno referir a expressão que o teórico,
Herbert Read, utiliza para esta transformação, intitulando-a de vitalidade orgânica.92
Embora Arp concretize as suas figuras a partir da abstração, tomando um percurso
contrário às propostas até agora analisadas que tomam o referente humano e o
transformam numa abstração das formas, a proposta de Arp distingue-se tambem pela sua
resolução formal que se apresenta mais próxima do sentido “orgânico” das formas.
Com relação a esta proposta, podemos também considerar a abordagem de Alexander
Archipenko (1887-1964) para um Torso no espaço, em 1935-36, sendo a sua resolução
formal proposta numa simplificação volumétrica do torso enquanto objeto artístico. [Fig.
42] Comparativamente, no entanto, apresenta-se num eixo horizontal e não vertical, como
Arp propõe, mas oferece uma resolução do torso feminino com uma síntese volumétrica,
semelhante à aparente “organicidade” de Arp.

91
Esta tendência é considerada por Herbert Read como uma expressão que chega ao “climax” nesta última
serie. Segundo o autor, - as suas alterações formais partem de um exemplo “quase naturalístico” para uma
simplificação das formas, que avançam para um último exemplo, que transmitem a “completa evolução
estilística” do artista - READ, Herbert – Op. Cit. 1996. p. 39.
92
Enquanto “vitalismo”, entende-se o desenvolvimento estilístico das formas orgânicas e humanas em
expressões com referências à figuração, no entanto, distantes de qualquer verossimilhança. - READ,
Herbert – Op. Cit. 1996. p. 77.

55
Em oposição a estas concretizações da forma humana, será oportuno referir uma proposta
que assume a geometrização, concebida por Eduardo Chillida (1924-2002), para um
Torso, fundido em bronze, em 1956, que, para além de se apresentar com uma
formalidade distinta, transforma a expressão do referente humano num objeto sintético.
[Fig. 43]
Esta reformulação das formas humanas é também característica nas propostas de Dorita
de Castel-Branco, onde a figura feminina é apresentada, como Chillida, num elemento
vertical que se presta a uma formalidade geométrica, no entanto, com apontamentos
sugestivos relacionados ao seu género, como as mamas que podemos notar na superfície
frontal, representativa do tronco.93 [Fig. 44]
Com direção a uma geometrização das formas, para terminar, será oportuno referir o
trabalho de João Cutileiro e a sua reprodução do tema “torso feminino”, que o motiva a
abordagens formais alternativas. Na sua produção artística distingue-se pelo seu trabalho
com a pedra que, comparativamente, não se trata de um método de modelação, mas
demonstra a versatilidade formal e a sua capacidade material.
A prática do talhe direto representa uma técnica envolta sobre a materialidade da pedra,
conferindo no material, com recurso a ferramentas manuais, uma certa formalidade
expressiva.
Enquanto exemplo da sua técnica, podemos notar a sua qualidade em sugerir e representar
o todo, a partir do fragmento, recorrendo ao mármore como matéria prima, com devida
relação formal, sugerindo um torso feminino deitado.94
Deste modo, o fragmento convencional apresenta-se como um conceito que permite
avançar nas propostas modernistas e reconhecer as técnicas e estratégias que os artistas
desenvolvem de forma a transformar o convencionalismo do fragmento num pretexto

93
“Num trajeto que parte da figuração para a essencialidade da forma, o seu projeto artístico baseia-se num
processo de simplificação gradual da figura, esquematizada e descaracterizada até atingir uma síntese
plástica não-figurativa, inserindo-se numa tendência cada vez mais forte para a forma pura, percetível e
abstrata.” – PEREIRA, José – Op. Cit. 2005. p. 126.
94
Maesagem II, de 1974, apresenta-se como um torso feminino, que nos relembra o Torso de Adele (1884)
de Auguste Rodin, onde o fragmento é tratado numa posição horizontal. Também a favor desta relação
horizontal, podemos também destacar a série de Torsos ou de Figuras deitadas, que não assumem a
totalidade do corpo, mas sugerem um torso feminino, sem qualquer representação do rosto. Grande figura
reclinada (Maesagem Rosa), 1974. Mármore. 100 x 60 x 60 cm. Col. Fundação Calouste Gulbenkian,
Lisboa. Torso deitado, 1975. Mármore, 60 x 160 x 60 cm. Col. Arquitecta Maria João Gaudêncio Simões
George. Beja. Grande figura deitada, mármore, comprimento 120 cm, 1975. Col. Galeria S. Punschke.
R.F.A. Vid. WOHL, Hellmut, TOJAL, Nazaré – João Cutileiro. Lisboa: FCG Centro de Arte Moderna,
1990.

56
para uma exploração formal, que assume a sua independência enquanto objeto, e
potencializa a uma inovação das convenções artísticas.
Neste sentido, devemos mencionar, por fim, o Torso de homem branco ao sabor da pedra,
executado também em mármore, em 1974. [Fig. 45] Este exemplo surge devido à sua
característica modernista que provoca a acepção e concepção do “belo ideal”, propondo
uma formalidade e um trabalho na superfície que sugere qualidades não só plásticas,
como materiais.
Como podemos observar, o torso masculino apresenta-se segundo uma robustez vertical,
aparentemente sem qualquer relação representativa, mas alusiva à verticalidade humana.
Contudo, cingirmo-nos a analogias limitará a nossa leitura. Em contrapartida, esta relação
permite propor a concepção escultórica, que toma o fragmento humano como referente e
que oferece uma resolução do corpo transformada em objeto, com propostas técnicas,
formalidades expressivas ou processos sintéticos ou estilizados.

57
Fig. 31

Fig. 32 Fig. 33

Figura 31 – Auguste Rodin. L’homme qui marches.Homem que marcha. Gesso.. 219 x 160 x 73,5 cm.1907. Musée
Rodin, Paris. Fig. retirada de: LAMBELET, Sylvie – La Fondation Gianadda organise le face-à-face Rodin-
Giacometti. [Em linha] Radio Television Suisse [s. l]: RTS Culture, 17 de Julho, 2019. [Consult. 7 Jan. 2022]
Disponível em WWW:<URL: https://www.rts.ch/info/culture/arts-visuels/10551076-la-fondation-gianadda-organise-
le-faceaface-rodingiacometti.html>

Figura 32– Henri Matisse. Le Serf. O Escravo. Bronze. 91,77 x 37,8 x 33,02 cm. 1900-1903. Museum of Modern
Art, São Francisco Fig. retirada de: MoMa. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL:
https://www.sfmoma.org/artwork/50.6095/>

Figura 33– Henri Matisse. Madeleine I. Bronze. 54,61 x 19,38 x 17,15 cm.1901. Passado para bronze em 1925.
Museum of Modern Art, São Francisco Fig. retirada de: MoMa. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em
WWW:<URL: https://www.sfmoma.org/artwork/50.6094/>

58
Fig. 34 Fig. 35

Fig. 36

Fig. 37 Fig. 38 Fig. 39 Fig. 40

Figura 34–Henri Matisse. Reclining figure I (Aurore). Bronze. 34,4 x 49,9 x 27,9 cm. 1907. Passado para bronze em 1930. Baltimore
Museum of Art, Baltimore. Fig. retirada de: BMA. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL:
https://collection.artbma.org/objects/37624/reclining-nude-i-aurore>

Figura 35 –Henri Matisse. Reclining figure II. Bronze. 28,3 x 49,5 x 14,9 cm. 1927. Tate Museum, Londres. Fig. retirada de: Tate.
[Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL: https://www.tate.org.uk/art/artworks/matisse-reclining-nude-ii-
n06146

Figura 36 –Henri Matisse. Reclining figure III. Bronze. 18,7 x 47 x 14,8 cm. 1929. Passado para bronze em 1929.
Baltimore Museum of Art, Baltimore. Fig. retirada de: BMA. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL:
https://collection.artbma.org/objects/37629/reclining-nude-iii

Figura 37 – Henri Matisse. Back I . Bronze. 189,9 x 116,8 x 18,4 cm. 1909-10. Passado para bronze em 1955-6. Tate Museum,
Londres. Fig. retirada de: Tate Museum.[Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL:
https://www.tate.org.uk/art/artworks/matisse-back-i-t00081>

Figura 38 – Henri Matisse. Back II. Bronze. 189,2 x 120,6 x 19,0 cm. 1913-14. Passado para bronze em 1955-6. Tate Museum,
Nova Iorque. Fig. retirada de: Tate Museum. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL:
https://www.tate.org.uk/art/artworks/matisse-back-ii-t00114>

Figura 39 – Henri Matisse. Back III . Henri Matisse. Bronze. 189,2 x 112,4 x 15,2 cm. 1913-16. Museum of Modern Art, Nova
Iorque. Paris. Fig. retirada de: MoMa. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL:
https://www.moma.org/collection/works/80772>

Figura 40 – Henri Matisse. Back IV . Henri Matisse. Bronze. 189,2 x 113,0 x 15,9 cm. 1930. Passado para bronze em 1955-6.. Tate
Museum, Nova Iorque. Paris. Fig. retirada de: Tate Museum. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021]
Disponível em WWW:<URL: https://www.tate.org.uk/art/artworks/matisse-back-iv-t00082>

59
Fig. 41

Fig. 42

Figura 41 –Jean Arp. Torso. Bronze. Altura: 27 cm. 1930. Arp Museum Bahnhof Rolandseck, Remagen.
Fig. retirada de: Arp Museum Bahnhof Rolandseck [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em
WWW:<URL: https://arpmuseum.org/en/museum/museum/collections/the-arp-collection/hans-arp-torso-
leaf-torso.html>

Figura 42 –Alexander Archipenlo. Torso in Space. Terracota. 16,19 x 51,44 x 8,57 cm. 1935-36. San
Francisco Museum of Modern Art, São Francisco. Fig. retirada de: SFMoMa – Torso in Space [Em linha]
[Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL: https://www.sfmoma.org/artwork/61.4517/>

60
Fig. 43 Fig. 44

Fig. 45

Figura 43 –Eduardo Chillida. Torso. Bronze. 64,5 x 30,5 x 20 cm. Museo Bellas-Artes de Bilbao, Bilbao.
Fig. retirada de: Museo Bilbao – Torso. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL:
https://www.museobilbao.com/catalogo-online/torso-82243>

Figura 44 –Dorita de Castel-Branco. Figura feminina. Bronze. Altura: 23 cm. 1989. Leiloeira de Arte
Moderna e Contemporanea – VART. Fig. retirada de: VART – Figura feminina [Em linha] [Consult. 9
Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL: http://vart.pt/obra/2932/figura-feminina/

Figura 45 – João Cutileiro. Torso de homem branco ao sabor da pedra. Mármore. 71,5 x 43 x 25 cm.
Vol. Maria José Salavisa, Lisboa. Fig retirada de: Joao Cutileiro. Fundação Calouste Gulbenkian, Centro
de Arte Moderna. Lisboa: FCG. 1990. s/p.

61
2.3. A síntese do corpo

Como reflexo das tendências artísticas que visam propor um tratamento estético
alternativo, no seguimento das abordagens analisadas, o desenvolvimento destes
princípios representativos conduz a nossa interpretação sobre a despersonalização da
figura a uma proximidade entre a sua representação e seu caracter objetual, proposto pela
redução e simplificação formal.
Exemplo de tal manifestação, podemos encontrar na proposta de Alexander Archipenko
(1887-1964) com Femme drapée, de 1911. [Fig. 46] Como alternativa formal de uma
“mulher drapeada”, o artista propõe uma figura feminina, submetida a uma simplificação
formal dos seus traços identificáveis, com características sintéticas na representação das
vestes – um drapeamento geometrizado que cobre e simultaneamente se soluciona como
corpo da figura.
A partir desta proposta, nota-se um sentido de emulação que surge, familiar ao Cubismo,
e que toma a linguagem visual em torno dos objetos com uma expressão plástica
semelhante na sua concepção geométrica.
Nesta trajetória, a par das intenções cubistas, em função de um novo sistema
representativo que incentiva um comportamento artístico e um pensamento estético
revolucionários, será oportuno também referir a proposta por parte de Umberto Boccioni
(1882-1916), que se motiva na liberdade criativa e desenvolve, no âmbito dos ideais
Futuristas, uma reformulação da figura humana com Forme uniche della continuitá nello
spazio, (1913) um género de emulação da posição de L’homme qui marche de Rodin.95
[Fig. 47]
Esta proposta de uma “forma única que se expande no espaço”, segundo o escultor
italiano, estabelece um reconhecimento das formas geometrizadas e superfícies planas

95
“Trinta e seis anos depois também o italiano Umberto Boccioni, imbuído do espírito irreverente do
manifesto futurista, glosa a obra de Rodin. Apesar de “Forme uniche della continuità nelle spazio” (1913)
apresentar uma morfologia flamejante, que visa exprimir movimento e fluidez, enfatizada pela superfície
espelhada que, simbioticamente, relaciona a escultura com o espaço envolvente, é bem evidente que, do
ponto de vista estrutural, a obra constitui uma emulação da nomeada estatua decepada de Rodin.” Partindo
desta relação, José Teixeira refere também uma alternativa para a emulação do Homem que marcha, com a
solução formal de Alberto Giacometti em Femme qui marche, de 1936, e, posteriormente, Homme qui
marche I, de 1960. Numa tradução nacional do tema Homem que marcha, é possível de identificar também
uma proposta formal por parte de Ãngelo de Sousa com L’homme qui marche, et la femme aussi, de 2005,
que se apresenta como uma síntese total do corpo humano em chapas de aço – TEXEIRA, José – Op. Cit.
2021. pp. 216-217.

62
que refletem o dinamismo da aparente figura, correspondendo aos princípios
revolucionários propostos pelo Futurismo.96
Partindo destas iniciativas expressivas que assumem a simplificação formal e o
dinamismo das formas abstratas, com relação próxima com o Cubismo, Archipenko, em
1914, desenvolve, num jogo compositivo geometrizado, alusivo a uma partida de boxe,
um exemplo de uma atividade, apelidando a sua escultura como Boxing Match. [Fig. 48]
A evocação desta obra permite-nos considerar um ponto de partida para a tendência
sintética da expressão cubista sendo que, segundo este exemplo, é revelada a distância à
intenção representativa, numa ampliação dos planos geométricos e do alongamento das
superfícies, onde a alusão naturalista das formas se resolve numa concepção abstrata.
Neste sentido, são sugeridos elementos formais, essencialmente planos e geométricos, o
que revela uma reformulação estética proposta pela simplificação e metamorfose das
formas orgânicas em configurações geometrizadas, que conferem o dinamismo sugerido
pela atividade representada.
Associado a uma mudança das coordenadas artísticas e novos resultados estéticos, em
semelhante domínio, o artista francês, Raymond Duchamp Villon (1876-1918), cruza-se
com esta noção de uma exploração formal que toma direções abstratas e concebe Cheval,
em 1914. [Fig. 49]
Esta concepção da ideia de um cavalo, semelhante no sentido de uma redução da ideia
naturalista do referente original, propõe o desenvolvimento de um jogo compositivo de
formas geométricas como resultado de um domínio sintético das formas.
Podemos, a partir deste exemplo, distinguir a versatilidade das variações formais que
podem surgir da ideia de um cavalo97, no entanto estaremos apenas a especular sobre uma
possível leitura da combinação das massas e formas alusivas a um movimento e
dinamismo associado ao animal.

96
No Manifesto Futurista de Fillipo Tommaso-Marinetti, de 1909, pode-se ler “Nós queremos exaltar o
movimento agressivo, a insónia febril, o passo de corrida, o salto mortal, o bofetão e o soco./Nós afirmamos
que a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma beleza nova: a beleza da velocidade.” – MARINETTI,
Fillippo 1909, Paris. (apud NEVES, João – O movimento futurista em Portugal, [s.l] J. A dos Neves, 1966.
pp. 57-60.)
97
Com relação análoga pela sua temática, podemos referir as propostas do artista italiano Marino Marini,
que desenvolve nos anos 40/50 uma série tendo como motivo o cavalo e o cavaleiro. Das suas abordagens,
podemos destacar a síntese formal do animal, sendo identificado pelos seus contornos volumétricos
reconhecíveis e pelos apontamentos que o autor propõe no focinho do animal – um processo de
simplificação também ele aplicado à figura. A relação entre a figura (o cavaleiro) e o animal parecem
traduzir-se numa oposição direcional, sendo que o cavalo, maior parte das vezes, assume uma posição
horizontal e o cavaleiro, colocado sobre cavalo, oferece uma verticalidade ao conjunto.

63
Mas é neste sentido que devemos de manter em aberto as interpretações que surgem como
resultado do sentido abstrato e de uma ampliação de diferentes concepções de um
significado, quer seja formal ou conceitual, que não pretendemos limitar a leitura do
observador.
No âmbito da versatilidade interpretativa que a abstração propõe, também nos parece
oportuno enunciarmos o exemplo do artista lituano, Jacques Lipchitz (1891-1973), que,
em 1915, cria Man with a guitar. [Fig. 50]
Com alusão a uma figura humana, devido ao seu monolitismo e verticalidade, parece-nos,
no entanto, que as formas identificáveis de uma guitarra concorrem com a representação
do corpo, num jogo de planos e superfícies lisas que se elevam e se esticam, como umas
cordas da guitarra, sendo possível também identificar o buraco que existe no centro da
figura como alusão ao buraco-abertura presente numa guitarra.98
Esta atividade de correspondência entre formas e significado provam o seu caráter
abstrato e a sua dimensão interpretativa e assim é igualmente a constante atividade da
linguagem plástica de Lipchitz, tomando partido das consequências interpretativas da
relação entre a geometrização e formalização abstrata com “significado aparente”.
Observa-se, a partir desta reflexão, uma tendência ao pensamento abstrato que transmite
uma deslocação da figura para uma abordagem objetual, segundo uma ordem
representativa que reduz as formas a uma simplificação das diversas correspondências ou
semelhanças com a realidade.
Estas observações podem ser associadas às abordagens analisadas sobre a
despersonalização da figura, o que demonstra a vantagem dos processos de emulação e
transfiguração que surgem com a proposta modernista em simplificar, acentuar e realizar
imagens que oferecem um sentido estético e geométrico.
Com reformulação análoga da figura humana, que toma a pedra como material para esta
transfiguração, o exemplo do cubista Henri Laurens (1885-1954) propõe uma temática
também ela semelhante, com a proposta Mulher com Guitarra, de 1919. [Fig. 51]
A multiplicidade de perspetivas, que são combinadas numa só formalidade, propõe, como
Lipchitz, um simbiótico corpo de mulher-guitarra. Contudo, distingue-se não só pelo
sujeito feminino como também pela representação de formas curvas, que nos parecem
sugerir a leitura de uns braços que “abraçam” o seu próprio corpo “mulher-guitarra”.

98
Apesar de se tratar de uma leitura subjetiva sobre as formas que são possíveis de identificar, este “jogo”
de elementos abstratos podem também exercer outras relações interpretativas.

64
Neste sentido, enquanto propostas para um sistema representativo que transforma a figura
em objeto, são promovidos diferentes significados formais para uma representação
figurativa e, no seguimento destas abordagens inovadoras, podemos considerar a sua
correspondência no panorama nacional, onde os artistas portugueses demonstram uma
preferência por novos métodos representativos e por resultados escultóricos inovadores.
Partindo destas considerações relativamente a uma elaboração formal que se presta a uma
linguagem visual geometrizada, será oportuno referir o trabalho do escultor Salvador
Barata Feyo (1899-1990), que também executa algumas encomendas públicas para o
Estado, e que se apresenta como um caso particular que transmite características
semelhantes às primeiras manifestações modernistas que havemos analisado.
Para além das limitações impostas pelas encomendas oficiais e pelo regime vigente,
podemos considerar algumas manifestações que desenvolve e que revelam o interesse
vanguardista pela geometrização e síntese formal.
Com papel importante na participação da direção de instituições museológicas, tendo sido
diretor do Museu Nacional Soares dos Reis, e com influência no ensino artístico, tendo
sido professor na Escola Superior de Belas Artes do Porto, Barata Feyo proporciona um
academismo com traços subtis de uma modelação, que se demonstra atenta às
versatilidades formais e à superfície. A sua atitude revela-se particularmente empenhada
em veicular o seu sentido de mudança e questionar a representação académica e
demonstra-se preocupado com os valores plásticos na modelação.
A título de exemplo, devemos de considerar a proposta para o monumento ao poeta
Almeida Garrett, que resulta numa demonstração formal que encaminha a escultura
tradicional para uma concepção inovadora.
Dos estudos realizados para a concretização do monumento, é identificada uma
alternativa formal de uma figuração masculina, que se encontra sentada numa aparente
cadeira.99 Embora seja um estudo para a escultura pública que honra o escritor, de acordo
com a tradição oitocentista, para além de podermos apontar a cadeira como um objeto-
suporte, torna-se evidente uma proposta sintética na representação figurativa, que omite
os traços identificáveis da fisionomia do poeta e propõe um rosto liso. [Fig. 52]
Para além de indicarmos esta proposta, um outro exemplo executado como alternativa
formal para a representação do escritor Almeida Garrett, de 1954, demonstra a tendência

99
“O trono e o pedestal têm a função universal de suporte da glória ou de manifestação da grandeza humana
e divina.” - CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain – Op. Cit. p. 662.

65
de Barata Feyo em concretizar uma aparência sintética, traduzindo-se também nos
adereços que complementam a figura.
A modelação das vestes, que cobrem parte do corpo e as costas da figura, refletem uma
simplificação das dobras, resultando como um jogo ortogonal de volumes e planos
geométricos, sem perderem o seu sentido representativo enquanto adereços decorativos
que se assemelham a um tecido. [Fig. 53]
Deste modo, para demonstrar uma síntese formal que resulta como proposta aditiva à
figuração, as vestes funcionam como atributos que cruzam uma tendência modernista
regida por uma representação geométrica e que começa a procurar um tratamento formal
alternativo. 100
Desta segunda proposta, devemos de salientar a estratégia do escultor em representar um
corpo segundo um ponto de vista modernista, que se afasta do tratamento naturalista da
forma e evidencia a particularidade do processo sintético na figuração, resultando em
manifestações escultóricas que sugerem e aludem, mas não procuram representar a
realidade do sujeito.
Estes estudos acabam por culminar na apresentação do Monumento a Almeida Garrett,
em 1954, onde a cabeça da figura é tratada, mas subscrevendo à simplificação
fisionómica.101 [Fig 54]
Não querendo esgotar a alternativa formal que se começa a fomentar com Barata Feyo102
e que nos parece aproximar das coordenadas internacionais que havemos analisado, estes
exemplos conduzem-nos para a exploração formal de Vasco P. Conceição (1914-1992),

100
Esta característica formal é também evidente num exemplo anterior, de 1945, para a estátua
comemorativa de Antero Quental, localizada no Jardim da Estrela, em Lisboa. Barata Feyo começa os seus
estudos de figuras com os corpos nus, passando depois a tratar as vestes como método de acrescentar à
figura uma formulação representativa e criativa na simplificação dos seus pormenores.
101
Com relação aos estudos abordados, podemos notar que a posição do corpo é uma característica que
mantém, tal como a tendência expressiva pela síntese das formas e volumes das vestes que promovem
dinamismo e movimento à figura, que é coberta por um jogo formal, essencialmente geométrico, com
diferentes direções. “É um poeta!/O movimento gentil daquele braço e aquela mão tão fina, tão espiritual e
tão delicada, traduzindo à maravilha os anseios da sua alma cheia de sonho e de amor.../É um poeta! não
pode ser outra coisa./Pela maneira como está vestido este homem, com o mais apurado bom gosto e a
elegância mais requintada, com a sua capa flutuando ao vento suave da emoção, podemos afirmar que
estamos em presença dum poeta vivendo em plena época romântica.(...)” – TAVARES, Augusto “A estátua
de Garrett” in Jornal de Notícias, Suplemento literário, Novembro de 1954. (apud RESENDE, Júlio [et al.]
- Mestre Barata Feyo: exposição retrospectiva. Porto: ESBAP, 1981. p. 48.)
102
Um exemplo da relação simbiótica entre figuração e geometrização dos adereços torna-se possível de
identificar na evidente síntese formal que explora com a representação da figura de Infante D. Henrique,
para a estátua a ser inaugurada na Praça de Portugal, no Brasil. A figura é coberta pelos atributos
iconográficos e por elementos geométricos, visualmente abstratos, que cobrem e conferem à figura um
efeito de drapeamento geométrico das vestes. Sobre a “iconografia henriquiana” Vid. TEIXEIRA, José –
“A imagem do Infante”. In Arte teoria – Lisboa, 2000 nº 11 (2008) pp. 179-196.

66
que nos permite considerar a proposta sintética que surge como tratamento estético da
figura.
Natural do Bombarral, forma-se em Escultura, em Lisboa, a 1946.103 Na sua formação
cruza-se com Leopoldo de Almeida, Ernesto Canto da Maia e, em 1959, cria Desespero,
uma escultura em cedro, que se apresenta como uma “transição para um novo programa
artístico e uma nova síntese plástica”.104
Como exemplo da sua proposta formal, podemos apontar a escultura Sem título, que se
encontra em frente à cantina da Cidade Universitária de Lisboa. Inaugurada em 1961,
representa uma figuração abstrata segundo uma perspetiva formal geometrizada. [Fig. 55]
Enquanto processo estilizado, a figura humana adquire uma dimensão abstrata, afastada
de qualquer sentido naturalista, sendo formulada enquanto “objeto”. 105
Este sentido inovador da escultura modernista assume uma sugestão formal com
preocupações essencialmente estéticas, cada vez mais geometrizadas, resultando numa
estilização das formas, o que culmina numa abstração da escultura naturalista.
Sobre este interesse por uma experimentação da forma, parece-nos transversal nas
propostas artísticas que começam a surgir no panorama português e, principalmente, no
contexto internacional. Neste sentido, reconhece-se a virtude revolucionária da ambição
modernista em responder de forma alternativa aos sistemas representativos, valorizando
a síntese plástica, que resulta, consequentemente, numa “objetificação” das formas
orgânicas.

103
PEREIRA, José – Op. Cit. p. 149.
104
PEREIRA, José – Op. Cit. p. 150.
105
“(...) a sua arte soube caminhar para uma expressão sintética, pondo de parte o acidental e o acessório
ou supérfluo para uma visão da essencialidade da forma. Soube servir-se do objeto real apenas como motivo
de inspiração.” – SYNEK, Manuel [et al.]– Estatuária e Escultura em Lisboa. Lisboa: Câmara Municipal
de Lisboa. 2005. p. 184.

67
Fig. 46 Fig. 47

Fig. 48 Fig. 49

Figura 46 – Alexander Archipenko. Femme Drapée. Mulher drapeada. Bronze. 60 x 32 x 34 cm. 1911.
Centre Geroges Pompidou, Paris. Fig. retirada de: Centre Georges Pompidou– Femme drapée [Em linha]
[Consult. 16 Out. 2021] Disponível em
WWW:<URL:https://www.centrepompidou.fr/es/ressources/oeuvre/czAAdeq>

Figura 47 – Umberto Boccioni. Forme uniche della continuità nello spazio. Formas únicas de
continuidade no espaço. Bronze. 117,5 x 87,6 x 36,8 cm. 1913. Fundido em 1972. Tate Museum, Nova
Iorque. Fig. retirada de: Tate Museum – Unique Forms of Continuity in Space. [Em linha] [Consult. 16
Out. 2021] Disponível em WWW:<URL: https://www.tate.org.uk/art/artworks/boccioni-unique-forms-of-
continuity-in-space-t01589>

Figura 48 – Alexander Archipenko. Boxing match. Partida de boxe. Bronze. 61,01 x 46 x 41 cm. 1914.
Museum Moderner Kunst Stiftung Ludwig Wien, Wien. Fig. retirada de: Mumok– Boxing match [Em
linha] [Consult. 16 Out. 2021] Disponível em WWW:<URL:https://www.mumok.at/en/la-boxe>

Figura 49 – Raymond Duchamp-Villon. Horse. Bronze. 99 x 61 x 91,4 cm. 1914. Art Institute of
Chicago, Chicago. Fig. retirada de: Art Institute of Chicago – Horse [Em linha] [Consult. 16 Out. 2021]
Disponível em WWW:<URL: https://www.artic.edu/artworks/5580/horse>

68
Fig. 50

Fig. 51

Figura 50– Jacques Lipchitz. Man with a Guitar. Pedra. 97,2 x 26,7 x 19,5 cm. 1915. Museum of
Modern Art, Nova Iorque. Fig. retirada de: MoMa – Man with a Guitar. [Em linha] [Consult. 16 Out.
2021] Disponível em WWW:<URL: https://www.moma.org/collection/works/81524>

Figura 51 – Henri Laurens. La femme à la guitare. Pedra. Altura: 59 cm. 1919. Fig. retirada de: eião
Christie’s 2009 – La femme à la guitare [Em linha] [Consult. 16 Out. 2021] Disponível em
WWW:<URL: https://www.christies.com/en/lot/lot-5176250>

69
Fig. 52 Fig. 53 Fig. 54

Fig. 55

Figura 52 – Salvador Barata Feyo. Escritor Almeida Garrett. Gesso. 1954. Museu Barata Feyo, Caldas
da Rainha. Fotografia de: Sofia Rosa, 2020.

Figura 53 – Salvador Barata Feyo. Almeida Garrett. Bronze. 56 x 22 x 19 cm. s/data. Museu Barata
Feyo, Caldas da Rainha. Fotografia de: Sofia Rosa, 2020.

Figura 54 – Salvador Barata Feyo. Monumento a Almeida Garrett. Bronze.1954. Praça Humberto
Delgado, Porto. Fig. retirada de: Património Cultural, DGPC– Monumento a Almeida Garrett. [Em linha]
[Consult. 5 Jan. 2022] Disponível em WWW:<URL:
http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=27819>

Figura 55 – Vasco Conceição. Sem título. Mármore. 1961. Av. Professor Gama Pinto. Fig. retirada de:
REMESAR, Antoni [et al.] - Estatuária e Escultura em Lisboa. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa.
2005. p. 185.

70
3. Sobre o procedimento sintético: o papel das vanguardas
históricas no âmbito da racionalidade e abstração
3.1. Expressão geométrica e organização da forma e fragmento
(Collage, Assemblage e Construção)

O Modernismo promoveu movimentos artísticos que desenvolveram um paradigma


estético adequado aos novos métodos representativos. Neste âmbito, será conveniente
referir o Cubismo como uma expressão artística que estipula um tratamento formal
alternativo e uma reavaliação do paradigma representativo.
Com o seu contributo, a transição da escultura tradicional para a escultura moderna
adquire uma visão da realidade que evoca um vocabulário e uma síntese plástica crucial
para a radicalização do progresso artístico.
Relativamente a esta abordagem, é legitimo considerar, como Margit Rowell, que o
movimento cubista é “uma das primeiras expressões da sensibilidade moderna”106, sendo
que propõe um despreendimento com a tradição clássica.
Apoiando-se numa síntese com carater geométrico, a proposta representativa do Cubismo
recusa o sistema convencional e levanta uma questão fundamental sobre a problemática
das formas e do espaço.
Embora proposto inicialmente numa abordagem pictórica, o Cubismo, como momento
decisivo que rompe com a tradição, reflete o progresso do conceito de representação e,
no âmbito da escultura, surge, pela primeira vez, em 1909, pelas mãos de Pablo Picasso
(1881-1973).
Nesse ano, cria Tête de femme (Fernande)107, um exemplo da exploração sintética
proposta pela ambição pictórica do Cubismo, onde a modelação e representação da cabeça
assumem um critério cubista de planos e volumes que conferem uma aparência dinâmica
da formalidade imóvel do rosto.108 [Fig. 56]
Deste modo, é conferida, na representação cubista de um retrato, uma simplicidade formal
na complexidade ortogonal, com a sobreposição de diferentes perspetivas, provando que
esta tradução da forma também pode ser aplicada em escultura.

106
ROWELL, Margit – “Cubisme, Futurisme” in Qu’est-ce que la sculpture moderne?. Paris: Centre
Georges Pompidou, 1986. p. 26.
107
Considerada por William Tucker como a “primeira tentativa de aplicar o cubismo à escultura” -
TUCKER, William – Op. Cit. p. 94.
108
“A cabeça de Fernande não é um retrato, mas sim uma presença de uma nova visão da realidade de uma
nova concepção de representação de sujeitos humanos” – ROWELL, Margit – “Avant-propos” in Qu’est-
ce que la sculpture moderne? p. 16.

71
Partindo deste objetivo representativo, devemos de considerar uma outra proposta
sintética, concebida no mesmo ano, onde a representação já não toma o referente humano
como sujeito e propõe uma realização de um objeto-escultura considerando, portanto, o
objeto como referência.
Também com expressão cubista, desenvolve Pomme, sendo a peça de fruta sujeita a uma
geometrização da sua forma orgânica e natural, que coincide numa linguagem abstrata.
[Fig. 57]
Em ambos os exemplos concebidos por Picasso, podemos notar que se concretizam
segundo métodos tradicionais, como a modelação, no entanto, apresentam um resultado
estético que se exprime como “cubista”, propondo a articulação dos métodos
representativos com formalidades bastante distintas das convencionais.
Como referimos, o Cubismo desenvolve-se primeiramente como uma abordagem no
âmbito da prática pictórica e, para além do novo sistema representativo proposto, de
acordo com a técnica de papier collé, são elaboradas composições onde os fragmentos
são organizados sobre a superfície de uma tela ou suporte.
Sobre este termo, poderemos considerar estabelecer-se como uma metodologia que
propõe ao artista organizar fragmentos de papel, jornal ou qualquer outro elemento
bidimensional, num sistema combinatório, por efeito da sobreposição ou justaposição dos
diferentes meios.109 Deste ponto de vista, a possibilidade de colocar numa só superfície
vários pedaços e fragmentos apela a uma expressão plástica que coloca diversas questões
sobre o papel da linguagem visual.
Originalmente concebida como sistema representativo na pintura, pela etimologia do
termo, papier collé sugere uma técnica exclusiva para um material bidimensional, como
o papel. Este método “radical”, contudo, desenvolve-se enquanto um termo mais
inclusivo, denominado collage, permitindo aceitar outros objetos para integrar o resultado
artístico.110
Sobre estas metodologias, a importância para o artista modernista revela-se na
abrangência de novos meios compositivos, pela espontaneidade e experimentação de
novas maneiras de organização e combinação de diferentes fragmentos e materiais.

109
A título de exemplo, Copo e Garrafa de Suez (1912), de Pablo Picasso, um dos seus primeiros papier
collée, é composto por papéis colados, guache e carvão.
110
As collages de Braque e Picasso são consideradas como os “primeiros passos para uma arte objetual
independente”, segundo considera o teórico Simón Marchán Fiz, por declararem uma realidade objetiva
que reúne fragmentos de um mundo objetual. – FIZ, Simón Marchán – Op. Cit. p. 241.

72
De acordo com a liberdade criativa que é proposta com a introdução de novos meios,
desta transição do sistema clássico para uma alternativa representativa que toma como
expressão uma reorganização formal, os objetos também servem como ponto de partida
enquanto referente e registam um papel central e inovador,111 sendo o género natureza-
morta uma das temáticas adaptadas para representações alternativas sobre a sua
convenção.
Enquanto género pictórico, a natureza-morta define-se como representação de objetos
inanimados (como copos, garrafas, peças de fruta, comida, loiça) colocados sobre uma
mesa. Neste sentido, como sujeitos representativos que não são figura, o género pictórico
torna-se sugestivo para uma reorganização dos elementos e é reconhecido como estímulo
para as novas abordagens representativas e expressivas do Cubismo.112
A título de exemplo, Picasso desenvolve a temática pictórica, na sua primeira colagem,
em 1912, intitulada Nature morte à la chaise canée. [Fig. 58] Com esta resolução de
diferentes fragmentos organizados e colocados sobre um suporte, como pedaços de jornal,
papel, é sugerida uma concepção de natureza-morta que, com efeito, se torna também ela
um resultado escultórico, devido à sobreposição dos elementos utilizados.113
Promovendo a obra com valor tridimensional é proposto um “jogo semântico”, segundo
Rosalind Krauss, relativo à complexidade visual em que o fragmento é submetido.114 Este
jogo é proposto numa reformulação do género pictórico, mas fundamenta-se, sobretudo,
como inovador pela sua proposta técnica que incentiva a uma experimentação da forma
fragmentada e uma expressão escultórica com elementos bidimensionais, combinados
num espaço ambíguo. 115

111
“In considering modern art from naturalism to conceptualism, we speak first of the object as that part of
the external world which served as the departure point, the subject matter, for the work of art.” - JONHSON,
Ellen H. - Modern art and the object. Londres: Thames and Hudson, 1976. p.10.
112
“(...) o lugar comum dos assuntos da natureza-morta cubista – copos, pratos, guitarras, violinos,
cachimbos, etc., – tornou-se para os contemporâneos tanto uma marca registada da pintura cubista, quanto
a própria nova estrutura pictórica. (...) entretanto, a intenção não era agredir, mas neutralizar a importância
do assunto, transformá-lo em objeto, dando sua existência como ponto pacifico.” - TUCKER, William –
Op. Cit. p. 65.
113
Para um melhor entendimento do género natureza-morta, em termos de escultura Vid ROWELL, Margit
– Objects of desires. Nova Iorque: H.N.Abrams & The Museum of Modern Art. 2017.
114
“No seu sistema de colagens, o fragmento está em constante jogo semântico” - KRAUSS, Rosalind -
The Picasso Papers. Londres: Thames and Hudson, 1998. p. 40.
115
“A natureza-morta é uma coisa “feita”, artificial; os cubistas prescindiram primeiro da necessidade de
trabalhar fundamentados na realidade, e daí foi apenas um passo para apresentarem a natureza-morta
construída como um objeto de arte em si, sem a necessidade de submetê-lo às convenções da representação
pictórica.” – TUCKER, William – Op. Cit. p. 66.

73
Analisando com mais atenção este exemplo, para além do “jogo semântico” dos
fragmentos de jornal, podemos notar que o artista recorre a uma corda, que coloca à volta
da tela oval, limitando a composição e definindo-a como “moldura”. 116
De acordo com esta aplicação, o artista socorre-se de materiais e objetos que encontra no
seu ambiente doméstico e utiliza fragmentos da sua realidade na escultura. Nesta
combinação de diferentes objetos e meios que concretizam a totalidade da obra, segundo
Diane Waldman, são identificados três níveis representativos: um ilusionismo pintado (a
superfície da tela onde artista pintou uma composição abstrata); os recortes que
representam mais do que são (os fragmentos “J”, “O” e “U”, são letras comuns nas
colagens cubistas, que se assumem como referentes à palavra journal) e o objeto
incomum que é utilizado de forma decorativa e circunscreve a obra (a corda). 117
Deste ponto de vista, poder-se-á dizer que a atividade artística de Picasso demonstra uma
consciência pelos novos meios e particular interesse em os integrar como elementos
escultóricos para propostas alternativas ao sistema representativo.
Com recurso a materiais comuns, o artista encontra nestes elementos uma solução prática
para a autorrealização artística, executando obras pela sua própria iniciativa, com os
meios possíveis que encontra no seu ambiente doméstico. 118
Com este reconhecimento surge uma perspetiva mais ampla da singularidade do artista e
torna-se evidente que a autorreferencialidade adquire uma predominante importância na
produção artística, como também um valor de elevado destaque para o progresso
escultórico, uma vez que o artista não trabalha para um cliente, mas para si mesmo, o que
o liberta das limitações criativas e favorece uma amplitude na escolha dos temas e
resultados artísticos.
Com efeito, a espontaneidade criativa e a utilização de diferentes meios, pode também
ser identificada na série Copo de Absinto, de 1914, onde, coincidentemente, Picasso
concebe uma proposta inovadora a partir de métodos clássicos como a modelação e
moldagem.

116
“Nesse objeto, pintura, colagem e escultura alcançam um equilíbrio momentâneo e miraculoso. (...) uma
imagem composta de diversas coisas separadas mas identificáveis” – TUCKER, William – Op. Cit. p.70.
117
WALDMAN, Diane – Collage, assemblage and the found object. Nova Iorque: Harry N Abrams inc
Publishers, 1992. p. 25.
118
“Não pode esquecer-se que uma “arte” tão extremamente subjetiva e esotericamente sectária é de difícil
venda e, tal como para os géneros de que não há qualquer necessidade natural, há que agitar o publico
mediante a propaganda, a maior parte das vezes sob a ameaça velada ou aberta de classificar o que pensa
outra coisa de homem vulgar e reacionário” - SEDLMAYR, Hans - A revolução da arte moderna. Lisboa:
Livros do Brasil, 1959. p.32.

74
Esta série de seis múltiplos fundidos em bronze, [Fig. 59, Fig. 60, Fig. 61, Fig. 62, Fig.
63, Fig. 64], a nível formal, é composta por uma base, uma colher real e um torrão de
açúcar no topo.119 Contudo, a sua dimensão compositiva sugere a combinação de
elementos independentes num só objeto artístico.
Sobre esta simbiose, que resulta da combinação de diferentes objetos, é demonstrada uma
atenção às condições materiais e às possibilidades plásticas e, não se limitando à sua
identificação, o artista desenvolve a apropriação de objetos específicos para enriquecer
o método de construção.
Relativamente a este método, Werner Spies identifica três níveis de sentido criados por
Picasso: a representação do copo, a realidade da colher e a imitação ou semelhança com
o torrão de açúcar.120
Com esta proposta, o reconhecimento do resultado escultórico indica uma combinação de
diferentes meios e métodos representativos, como a modelação, moldagem e
apropriação.
Enquanto metodologia inclusiva, será importante referir o termo assemblage121 para
denominar a técnica que combina diferentes materiais por efeito de justaposição. Sobre
este procedimento escultórico que é constituído pela combinação de diferentes meios e
objetos, é ampliada a produção artística a inúmeras possibilidades formais e alternativas
compositivas.
No seguimento destas propostas, com devida atenção às propriedades físicas e qualidades
plásticas dos diferentes materiais possíveis de serem integrados na atividade escultórica,
Picasso concebe, em 1912, a partir de papel, cartão, cordas e arame, Guitar.122 [Fig. 65]
Com este exemplo, identifica-se novamente o recurso a diferentes materiais para compor
a totalidade da obra, sendo possível reconhecer o cartão, que constitui o corpo da guitarra,

119
Deste conjunto de múltiplos copos de absinto, será oportuno referir que a formalidade dos seis
exemplares não se altera radicalmente, mas sim as escolhas cromáticas que o artista propõe, sendo possível
de considerar o enfase pictórico que é transportado da sua atividade artística, que se inicia com a pintura, e
é aplicado na sua prática escultórica.
120
SPIES, Werner - Picasso: the sculptures. Ostfildern-Ruit: Hatje Cantz Publishers, 2000. p. 88.
121
Jean Dubuffet, numa carta que escrevera a William Seitz, em 1953, refere que Collage já não é um termo
considerado como “genérico” e que não se torna abrangente o suficiente para designar a arte moderna,
sugerindo o termo assemblage como novo conceito que permite definir o desenvolvimento da técnica de
collage e a sua amplitude de outras formas e materiais por efeito de justaposição e combinação. SEITZ,
William - The Art of Assemblage. 2ª ed. Nova Iorque: Museum of Modern Art, 1968. p. 150.
122
Como referido, o género natureza-morta torna-se um tema apelativo aos artistas cubistas e os objetos
passam a ser referentes artísticos para a produção de alternativas representativas e formais. O tema guitarra,
para além de ser apresentado, no âmbito desta investigação, como resultado escultórico, também pode ser
observado na produção de papier collée e de desenhos que o artista concebeu no mesmo ano da concepção
de Guitarra em cartão. Vid. SPIES, Werner – Picasso: the sculptures. Ostfildern-Ruit: Hatje Cantz
Publishers, 2000.

75
e o arame que apela às cordas do instrumento. Enquanto estrutura, o cartão é meio para
uma estratégia sintética do corpo da guitarra, representada pela combinação de elementos
bidimensionais, o que demonstra novas formas de concretizar e representar um objeto
como uma guitarra, partindo de formas ambíguas que concretizam a alusão à sua imagem
real.123
Deste modo, de forma a fornecer um conjunto de elementos alusivos à realidade do
objeto, o artista recorre ao cartão ou ao papel, com intenção compositiva e essencialmente
estrutural, para conceber a tridimensionalidade do instrumento.
Desta exploração das capacidades tridimensionais dos diferentes materiais, Guitarra
apresenta-se como um exemplo do respeito pela qualidade plástica dos objetos e da
inteligência de Picasso em estabelecer, com uma representação sintética, a apresentação
sugestiva à realidade do instrumento musical.
Enquanto representação de um objeto que é resulta de um sentido construtivo, com formas
fragmentadas, também devemos de referir uma outra proposta, concebida posteriormente
pelo artista, que se assume como desenvolvimento da “maqueta” em cartão. 124
Deste segundo exemplo, executado com chapas de metal, e ao qual o artista apelida
novamente enquanto Guitar, (1914) torna-se evidente a estratégia artística que, na
representação sobre os mesmos motivos, propõe uma reformulação técnica das suas
temáticas. [Fig. 66]
Picasso oferece uma alternativa formal do instrumento musical e apresenta-a com novos
meios compositivos. Neste âmbito, poderemos considerar a proposta por parte do artista
como uma assemblage de diferentes materiais que evidenciam uma construção estrutural
e formal do instrumento musical e que proporciona a linguagem plástica proposta pelo
Cubismo - uma síntese formal do referente escultórico.
A produção artística de Picasso exprime a “sensibilidade moderna” que pretende inovar
os valores e estereótipos tradicionais e, nesse mesmo ano, desenvolve também Nature-
morte, composta por pedaços de madeira e cartão pintados,125 integrando um ornamento,
alusivo a uma toalha de mesa. [Fig. 67]

123
William Tucker considera o instrumento musical como “objeto-autossuficiente”, submetido a um
fundamento de transformação da autonomia do objeto enquanto escultura. – TUCKER, William – Op. Cit.
p. 59.
124
WALDMAN, Diane – Op. Cit. p. 25.
125
Enquanto elemento material que adquire diferentes formalidades, o cartão demonstra-se um elemento
versátil, como recurso escultórico ou pictórico, mas, sobretudo, com flexibilidade formal - à qual Picasso
já estaria atento, como vimos no primeiro exemplo da Guitarra.

76
Como o nome indica, esta obra propõe a aparência de uma natureza-morta; a franja de
estofamento apela ao efeito decorativo das bordas das toalhas de mesa, e encontramos
também, sobre esta “mesa/prateleira”, um copo, uma faca e uma torrada com marmelada,
representadas em cartão.
Nesta sugestão e demonstração do ambiente de uma natureza-morta tradicional, Picasso
faz uso do método construtivo e da sua capacidade e inteligência pictórica para promover
uma nova percepção de natureza-morta de forma inovadora. 126
Com esta proposta, o artista aproxima a realidade de uma fatia de pão com marmelada,
do copo e da toalha de mesa à solução cubista que concebera, com escolhas pictóricas127
alusivas à realidade dos diferentes objetos.128
À semelhança com o exemplo do Copo de Absinto, onde o artista recorre a uma colher
real para integrar a obra, também nesta Natureza-morta surge a utilização de objetos
“estranhos”, como a franja de estofamento. Em ambos podemos notar a intenção artística
de Picasso em propor a aparência formal dos objetos domésticos, sem lhes retirar o seu
significado original.
Enquanto assemblage como metodologia para estabelecer o jogo combinatório do
conjunto escultórico, as técnicas e procedimentos formais proporcionados pelo Cubismo
para conceber escultura permitem uma noção alternativa e dinâmica do real, à qual o
objeto se vê submetido. Neste sentido, surgem novas formas e são explorados diferentes
meios de composição. Segundo este método, o resultado escultórico é concebido num
sentido construtivo, uma vez que o ato de criação das formas é traduzido num efeito
técnico de construção.
Neste âmbito, relativa à concepção que Picasso estabelece com Nature-Morte e Guitar,
poderemos considerar que resultam de acordo com este princípio, devido à construção

126
“Ao mesmo tempo, levanta-se a questão da própria semelhança: porque, se o pão e as fatias de salsicha
parecem reais, o copo tem algo da forma de um diagrama, a sua transparência e volume são sugeridos pelo
arco de madeira do seu bordo, em ângulos rectos para a sua elevação; enquanto que o tampo da mesa se
inclina para baixo, como se estivesse a ser observado de cima, acompanhando o copo que supostamente se
encontra em cima dela.” – COTTINGTON, David – Cubismo. Lisboa: Presença. 2000. p. 10.
127
À semelhança das abordagens de Picasso, no âmbito da linguagem plástica cubista, podemos também
referir a série criada por Alexander Archipenko apelidada de Médrano, desenvolvida entre 1913-14.
Inspirada nas malabaristas femininas do circo Médrano, sobre esta série o autor utiliza o termo sculpto-
peinture para as designar, uma vez que combina a prática escultórica com a pintura. Para além de podermos
associar a sua escolha pictórica à arte e espetáculo circense, nos exemplos propostos, o artista recorre a
vidro, madeira, metal, arame ou latão, o que reflete não só uma alternativa expressiva com a característica
pictórica, como também um favorecimento pela técnica de assemblage. - WALDMAN, Diane – Op. Cit. p.
53.
128
“Através da sua semelhança com esses objetos, eles criam imediatamente um espaço fictício – o de uma
mesa de café – e levantam uma questão sobre ele pela sua fisicalidade pura e pela ausência da moldura e
do pedestal, dispositivos normais de mediação.” – COTTINGTON, David – Op. Cit. p. 10.

77
estrutural da guitarra como à construção compositiva da “mesa de refeições”, que a
técnica de assemblage propõe.

Partindo desta trajetória, como reflexo da iniciativa apelativa que o Cubismo propõe, ao
reinventar o sistema representativo e demonstrar uma experimentação da forma que é
desenvolvida com recurso a diversos fragmentos, será oportuno tomarmos atenção a um
movimento, também ele vanguardista, que propõe uma linguagem visual e expressão
plástica semelhante à concepção geométrica e sintética do Cubismo.
Referimo-nos ao movimento Futurista, um movimento que surge oficialmente com o
artista Fillippo Tommaso-Marinetti (1876-1944), em 1909, com o primeiro manifesto
futurista, publicado em Paris e assinado pelo artista.
No Manifesto Futurista de Marinetti, é afirmada uma audácia e rebelião como elementos
essenciais e uma beleza da velocidade, com variadas referências a materiais industriais,
como o automóvel, o ferro, tubos ou explosões.129
Neste sentido, “o mito da máquina”130, proposto pelo Futurismo, acentua uma iniciativa
expressiva que se volta para um dinamismo das formas, essencialmente geometrizadas,
com sentido abstrato e alusivas a uma sensação de “velocidade”.131
Esta tendência expressiva pode ser identificada também com Umberto Boccioni (1882-
1916), que se demonstra atento às sugestões propostas por Marinetti, e, em 1912, elabora
o Manifesto técnico della scultura futurista (Manifesto técnico da escultura futurista),
onde declara a sua ambição em conceber obras com materiais incomuns à tradição
escultórica, como o vidro, madeira, cartão, ferro, cimento, cabelo, couro, tecidos,
espelhos e até luz elétrica.132

129
NEVES, João - O movimento futurista em Portugal, [s.l] J. A dos Neves, 1966. pp. 57-60.
130
SPROCCATI, Sandro – Guia de História da Arte. 3ª ed. Lisboa: Editorial Presença. 1997. p. 170.
131
No oitavo ponto do seu Manifesto, pode-se ler o seguinte: “Nós estamos no promontório extremo dos
séculos!...Por que haveríamos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível?
O Tempo e o Espaço morreram ontem. Já estamos vivendo no absoluto, pois já criamos a eterna velocidade
omnipotente.” – MARINETTI, Filippo Tommaso “Manifesto Futurista”, Jornal Le Figaro, Paris, 20 de
Fevereiro, 1909 (apud NEVES, João - O movimento futurista em Portugal, [s.l] J. A dos Neves, 1966. p.
58)
132
No Manifesto pode-se ler o seguinte: “we have to start from the central nucleus of the object that we
want to create, in order to discover the new laws, that is, the new forms, that link it invisibly but
mathematically to the APARENT PLASTIC INFINITE and to the INTERNAL PLASTIC INFINITE. The
new plastic art will, the, be translation into plaster, bronze, glass, wood, and any other material, of those
atmospheric planes that link and intersect things.” – BOCCIONI, Umberto “Manifesto técnico della
scultura futurista” 11 de Abril, 1912 (apud READ, Herbert - Modern sculpture: a concise history. Londres:
Thames and Hudson, 1996. p. 126).

78
No ano anterior à publicação, Boccioni desenvolvera uma escultura onde combinou um
conjunto de materiais, num sentido construtivo, à qual apelidou de Fusão de Cabeça com
Janela. 133 Apesar de destruída, este exemplo permite-nos pensar na lista de materiais que
são sugeridos no seu Manifesto, como o de Marinetti, e considerar a combinação entre
objetos e materiais utilizados - cabeça de manequim, crina de cavalo, tecido e vidro -
como uma inovação para os materiais comuns à tradição escultórica, como a pedra, a
madeira ou o bronze.
Deste modo, o artista italiano também propõe um ponto de vista sobre o objeto abrangente
e com caracter combinatório no contexto artístico, como um método de assemblage,
construindo, portanto, esculturas com a integração de outros materiais.
Para além desta abordagem compositiva e estrutural, podemos destacar uma obra
paradigmática para a teoria futurista de Boccioni, que concebe em 1913, numa modelação
clássica, contudo, apresentando uma formalidade vanguardista.
Com Sviluppo di uma bottiglia nello spazio [Fig. 68] o artista inspira-se no motivo da
garrafa e reinventa-o rejeitando a sua convenção formal. A perceção e apreensão do
objeto, ou do conjunto representado, resulta de uma apresentação estilizada das
superfícies planas que o artista combina e modela para a sugestão formal do objeto.
Neste sentido, é proposto um “desdobramento” da forma fragmentada da “garrafa”, o que,
de forma alusiva, sugere uma “expansão do objeto no espaço” e enfatiza a “sensação de
velocidade” e dinamismo das formas – fundamentos plásticos que o artista pretendia
traduzir na prática artística.134
Com esta trajetória, podemos concluir que a expressão geometrizada e sintética permite
uma expansão dos conceitos formais e espaciais, com valores relacionados a um
dinamismo corpóreo dos objetos comuns, e, sobretudo, associada a uma rutura com o
sistema representativo tradicional e à liberdade criativa e espontaneidade que os novos
métodos permitem.
Destas propostas alternativas, o efeito expressivo que é demonstrado reflete uma
consciência do fragmento e da forma como conceitos possíveis de manipular,

133
No entanto, estima-se que tenha sido construída depois das primeiras construções de Picasso, de 1912 -
WALDMAN, Diane – Ibem.
134
Sobre as propostas futuristas, Herbert Read escreve ““Sculpture must give life to objects by a system of
interpenetration. Objects do not exist in isolation – they cut through and divide the surrounding space in
‘an arabesque of directional curves’.” Sobre o processo de síntese do artista, acrescenta “(..) the general
aim of the Futurists was to achieve an interpenetration of the work of art and the environment, of form and
atmosphere.” – READ, Herbert – Op. Cit. 1996. pp. 128-129.

79
promovendo, consequentemente, uma revelação do papel desempenhado pelo objeto
como meio combinatório e simultaneamente como referente escultórico.

80
Fig. 56 Fig. 57

Fig. 58

Figura 56 – Pablo Picasso Tete de Femme (Fernande). Cabeça de mulher (Fernande). Bronze. 41,3 x 24,8 26,7 cm.
1909. Fundido em bronze em 1926-27. Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque. Fig. retirada de: Met Museum.
[Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em
WWW:<URL:https://www.metmuseum.org/art/collection/search/500442>

Figura 57 – Pablo Picasso Pomme. Maçã. Gesso. 11,5 x 10 x 7,5 cm. 1909. Musée Picasso, Paris.. Fig. retirada de:
PIOT, Christine – Les sculptures à notre-dame-de-vie. [Em linha] Musée Picasso, Paris: Colloque Picasso Sculptures,
25 de Março, 2016 [Consult. 7 Jan. 2022] Disponível em WWW:<URL:
https://www.museepicassoparis.fr/sites/default/files/2021-04/Christine-Piot_Les-sculptures-à-Notre-Dame-de-
Vie.pdf>

Figura 58 – Pablo Picasso Nature morte à la chaise cannée. Natureza-morta com cadeira de cana. 1912. Papier collés
s/tela emoldurada com corda. 29 x 37 cm. Museu Nacional Picasso, Paris. Fig. retirada de: LASNIER, Jean-François
- “Focus œuvre: Nature morte à la chaise cannée par Picasso.” in Centre Georges Pompidou de Paris. 12 de
Novembro de 2018. [Em linha] [Consult. 16 Out. 2021] Disponível em
WWW:<URL:https://www.connaissancedesarts.com/musees/centre-pompidou/focus-oeuvre-nature-morte-la-chaise-
cannee-par-picasso-11108494/>

81
Fig. 59 Fig. 60 Fig. 61

Fig. 62 Fig. 63 Fig. 64

Figura 59 – Pablo Picasso The Absinthe Glass. O copo de absinto. Bronze pintado e colher de absinto. 22,5 x 12,7 x 6,4
cm. 1914. Coleção The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque. Fig. retirada de: Metropolitan Museum of Art – The
Absinthe Glass. [Em linha] [Consult. 16 Out. 2021] Disponível em
WWW:<URL:https://www.metmuseum.org/art/collection/search/500450

Figura 60 – Pablo Picasso Glass of absinthe. Copo de absinto. Bronze pintado e colher de absinto. 21,6 cm x 16,4 x 8,5 cm.
1914. The Museum of Modern Art, Nova Iorque. Fig. retirada de: The Museum of Modern Art – Glass of Absinthe. [Em
linha] [Consult. 16 Out. 2021] Disponível em WWW:<URL:https://www.moma.org/collection/works/81307

Figura 61– Pablo Picasso Le verre d’absinthe. O copo de absinto. Bronze pintado e colher de absinto. 21,5 x 16,5 x 6,5 cm.
1914. Centre Georges Pompidou, Paris. Fig. retirada de: Centre Georges Pompidou – Le Verre d’absinthe. [Em linha]
[Consult. 16 Out. 2021] Disponível em WWW:<URL:https://www.centrepompidou.fr/fr/ressources/oeuvre/cGb7B9l>

Figura 62 – Pablo Picasso Le verre d’absinthe. Copo de absinto. Bronze pintado e colher de absinto. 22, 5 x 12,1 x
8,6 cm. 1914. Fig. retirada de: SPIES, Werner - Picasso: the sculptures. Ostfildern-Ruit: Hatje Cantz Publishers,
2000. p. 86.

Figura 63 – Pablo Picasso Le verre d’absinthe. Copo de absinto. Bronze pintado e colher de absinto. Dimensões
desconhecidas. 1914. Fig. retirada de: SPIES, Werner - Picasso: the sculptures. Ostfildern-Ruit: Hatje Cantz
Publishers, 2000. p. 86.

Figura 64 – Pablo Picasso Le verre d’absinthe. Copo de absinto. Bronze pintado e colher de absinto. Dimensões
desconhecidas. 1914. Fig. retirada de: SPIES, Werner - Picasso: the sculptures. Ostfildern-Ruit: Hatje Cantz
Publishers, 2000. p. 86.

82
Fig. 65 Fig. 66

Fig. 67 Fig. 68

Figura 65 – Pablo Picasso Guitar. Guitarra. Pablo Picasso, 1912-13. Cartão, papel, corda, arame, 76,2 x 52, 1
x 19,7 cm. The Museum of Modern Art, Nova Iorque. Fig. retirada de: MoMa. [Em linha] [Consult. 16 Out.
2021] Disponível em WWW:<URL:https://www.moma.org/calendar/exhibitions/1088>

Figura 66 – Pablo Picasso Guitar. Guitarra. Pablo Picasso, 1914. Folha de metal e arame, 77,5 x 35 x 19,3 cm.
The Museum of Modern Art, Nova Iorque. Fig. retirada de: MoMa. [Em linha] [Consult. 16 Out. 2021]
Disponível em WWW:<URL:https://www.moma.org/collection/works/80934>

Figura 67 – Pablo Picasso Nature-morte. Natureza-morta. Construção de madeira e cartão pintados com franja
de estofamento. 25,4 x 45,7 x 9,2 cm. 1914. Tate Museum, Nova Iorque. Paris. Fig. retirada de: Tate Museum.
[Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL:https://www.tate.org.uk/art/artworks/picasso-
still-life-t01136>

Figura 68 – Umberto Boccioni. Development of a bottle in space. Desenvolvimento de uma garrafa no espaço.
1913. Bronze. 39,4 x 60,3 x 39,4 cm. Coleção The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque. Fig. retirada de:
Metropolitan Museum of Art – Development of a bottle in space. [Em linha] [Consult. 16 Out. 2021]
Disponível em WWW:<URL:https://www.metmuseum.org/art/collection/search/485529>

83
3.1.1. Estrutura e composição: efeito do desenho no espaço
(Linha, forma e abstração)

Pablo Picasso, com inspiração nos seus desenhos, em 1928, começa a desenvolver
esculturas em arame como meio para abranger as possibilidades de desenvolver formas
no espaço. [Fig. 70] O artista estaria atento à habilidade de Julio González (1876-1942),
seu conterrâneo que começara a desenvolver o seu trabalho com materiais industriais, e
convida-o para o auxiliar na execução de umas esculturas-construções com arame,
idealizadas para o monumento em honra do décimo aniversário da morte de Guillaume
Apollinaire.135
González começa nos anos vinte a aplicar a técnica de soldadura aço e desenvolve com a
“inovação técnica” um estilo “frágil e linear”; um exercício visual que Picasso pretendia
desenvolver. 136
A abordagem resultante da parceria entre ambos, torna-se num projeto que transmite a
capacidade do artista em “desenhar” uma composição, inicialmente bidimensional, que
adquire tridimensionalidade enquanto escultura. [Fig. 69]
A partir desta composição abstrata, construída essencialmente com linhas que jogam no
espaço, enquanto meios para executar objetos-esculturas num sentido tridimensional, as
linhas e planos são uma característica que promove não só novas formalidades como uma
noção espacial, quando se materializam. 137
A tendência estética de formalidade geométrica e abstrata é também transmitida por
Gonzalez no seu trabalho artístico e esta característica é notória nas suas representações
figurativas, como máscaras, cabeças e personagens, que constrói com chapa de aço.
Enquanto reformulação de um fragmento humano, estabelece relação com o segundo
capítulo, onde tratamos a emulação da forma humana, resultante numa abstração do
próprio referente.

135
González foi para Paris no mesmo ano que Picasso. Pablo Gargallo, também amigo de Picasso, começara
a desenvolver a sua produção artística com chapa de aço, em 1911, numa série onde trata o motivo máscara.
No entanto, a relação de Picasso era mais direta com González e a colaboração em 1928 avançou com
prosperidade. – READ, Herbert - Op. Cit. 1996. p. 66.
136
O artista trabalhou na fábrica da Renault durante a Primeira Grande Guerra, entrando em contacto direto
com a soldadura. – KRAUS, Rosalind – Op. Cit. 1977. p. 159.
137
“a linha é o resultado de uma experiência visual (ou mesmo táctil) desenvolvida dentro da realidade,
perante a realidade.” - SOUSA, Rocha de, BAPTISTA, Helder. Para uma didática introdutória às Artes
Plásticas. Lisboa: FCG e ESBAL. 1978. p. 18.

84
Para um melhor exemplo desta concepção, devemos de partir de uma perspetiva mais
próxima da tradição representativa, para um sentido abstrato que caracteriza a sua
tradução formal.
Com referência ao corpo humano, apresenta Don Quichotte (1930). A referência ao
cajado surge como linha e eixo vertical predominante da estátua, que une a parte superior
da figura, do lado direito.138 [Fig. 70]
A aparência de uma figura humana é ainda evidente, devido à posição das formas que
aludem para um corpo erguido que segura o cajado.139 Contudo, será importante
considerar a abordagem por parte do artista em sintetizar o corpo humano e propor um
desenho de linhas que se torna “autossuficiente” para a apreensão do significado da
obra.140
Com a técnica de soldadura são combinadas diferentes formas e simultaneamente são
abertos espaços entre os objetos e este método de execução de formas físicas e abstratas,
provocam a leituras que são potencializadas pelo vazio; interpretações dos “significados
abertos” que deixa ao observador para decifrar.141
A produção figurativa de Gonzalez é também proporcionada pela reprodução temática e,
no âmbito de promover uma série onde o motivo se demonstra concretizado com inúmeras
possibilidades, apelida às suas construções de Personagens, apresentando variados tipos
de personagens que podem ser construídas com o vazio.
A título de exemplo, poderemos considerar a Personnage debout, de 1932-35, onde se
torna clara a aplicação da sua técnica para solucionar, deste modo, “desenhos no

138
O autor desenvolve também vários estudos sobre a personagem Don Quichotte, contudo, em diferentes
materiais, tendo sido também explorado com a modelação em argila e posteriormente passado para bronze.
Em relação às suas variações formais, podemos considerar que a exploração formal de Gonzàlez atribui ao
vazio um caracter compositivo, uma vez que a formalidade proposta e a sua estrutura são definidas como
“linhas no espaço”.
139
Esta escultura evoca-nos a escultura de Pablo Gargallo, Le Prophète (1933-36) em que a figura
representada, numa aparente assemblage de formas abstratas, se encontra numa posição análoga e com
“espaços vazios” entre os seus contornos, aludindo para a concepção abstrata de Gonzàlez.
140
Sobre a abstração e o vazio, numa tradução análoga da figura humana, com Portrait of a Young Girl,
(1954), de David Smith, podemos apontar a modelação da figura, com sentido abstrato, com um “corpo”
submetido a uma síntese formal que estabelece simultaneamente a sua formalidade e estrutura, o que resulta
enquanto aparente “desenho” da figura abstrata, sendo que o espaço que não é ocupado pelas linhas,
também ele pertence ao aparente “corpo”.
141
“In this sense, the signs appear to us (apart from their more or less figurative connotations) as a
materialized abstract qualities in which we find meanings that go beyond what is seen and perceived.”
(Neste sentido, os sinais aparecem-nos (à parte das suas conotações mais ou menos figurativas) como
qualidades abstratas materializadas que encontram significado que vai para além do que é visto ou
entendido) – CERNI, Vicente A. – Julio, Joan, Roberta González: itinerario de una dinastía. Barcelona:
Ediciones Polígrafa, S.A. 1973. p. 262.

85
espaço”142, sem qualquer sentido representativo, mas proporcionando a verticalidade
como alusão ao corpo humano. 143[Fig. 71]

Não muito distante de uma síntese formal abstracionista e “vizinho” do conceito de


“desenho no espaço”, no seguimento destas propostas, devemos de considerar como
exemplo a obra paradigmática de Alexander Calder (1898-1976) que marca a sua
produção escultórica, segundo uma perspetiva, que reflete sobre novos meios e métodos
escultóricos que transmitem a simplicidade formal como estrutura autossuficiente para a
escultura.
Formado em engenharia mecânica na Stevens Institude of Technology, em 1919,144
Calder distingue-se por aplicar o seu conhecimento técnico na prática artística. Desde
finais dos anos 20, início dos anos 30, divide a sua atividade artística entre os Estados
Unidos da América e Paris, tendo entrado em contacto com as propostas vanguardistas
que se manifestavam em ambos os continentes.
A sua produção artística desenvolve-se inicialmente com fios de arame, tendo concebido
Horse, em 1928, onde representa um cavalo que apenas pode ser apreendido segundo um
ponto de vista, num desenho de linhas bidimensional no espaço tridimensional. Enquanto
desenho no espaço, no entanto afasta-se da abstração dos desenhos no espaço de Picasso
e Gonzalez e sugere, com a linha, os contornos identificáveis do corpo de um cavalo.
O Cavalo é apresentado horizontalmente, sendo o ponto de vista lateral da escultura o
ponto de vista que sugere a aparência dos contornos do animal. Não se trata de um
exercício perspético ou de profundidade, mas de demonstração de um “desenho”
bidimensional que apenas pode ser apreendido numa perspetiva.
A simplicidade do conteúdo, associada ao grupo Abstraction Creation, com artistas como
Juan Miró ou Piet Mondrian, torna-se apelativa para o artista norte-americano e adere em
1932 ao grupo.145 Nesse mesmo ano começa a desenvolver uma expressão singular de
alternativas formais na escultura. O seu conhecimento em engenharia auxilia à sua

142
“(...) trata-se quase sempre de uma montagem tridimensional de elementos lineares.” TUCKER, William
– Op. Cit. p.76.
143
Da série de “personagens”, podemos apontar semelhanças com Petite maternité, (1933) concebida em
cobre, onde se nota a tendência do autor em sugerir formas abstratas com alusão à verticalidade do corpo
humano. Em contraste, com Personnage allongé (1937), a composição assume-se também abstrata,
contudo, apresenta uma estrutura um pouco mais robusta, associada à ideia de uma personagem reclinada,
portanto aludindo à horizontalidade.
144
RUSSEL, John [et al.] - Alexander Calder. Londres: Royal Academy of Arts, 1992. p. 8.
145
CAUSEY, Andrew - Sculpture since 1945. Oxford/Nova Iorque: Oxford University Press, 1998. p. 45.

86
concepção e o artista joga com o equilíbrio e o caráter efémero da qualidade formal dos
seus “desenhos”.
Segundo a produção artística dos seus colegas, a abstração predomina maior parte dos
sistemas representativos utilizados e, de acordo com o caráter formal de teor
abstracionista, Calder desenvolve a sua técnica com fios de arame concebendo esculturas
segundo a expressão móbil, esculturas que não são estáveis devido a movimentos gerados
por correntes de ar ou por processos mecânicos.146
Objects with red discs (objeto com discos vermelhos), de 1932, um dos seus primeiros
mobiles, trata-se de um exemplo concebido com fios de arame que suspendem chapas de
metal, cortadas em formas circulares. [Fig. 72]
Neste exemplo, o artista constrói uma estrutura, onde podemos observar, estarem
suspensos cinco discos vermelhos de metal, um disco de menor dimensão no topo e duas
bolas, uma preta, na parte inferior, e outra branca, próxima aos discos vermelhos.
Devido à alusão cromática, possivelmente também influenciada pelos seus colegas e
pintores do grupo Abstration Creation,147 o vermelho sugere que os discos vermelhos são
as bagas de Calder, sendo que, de acordo com esta lógica, a estrutura proporciona a
relação alusiva a um arbusto com ramos, onde podemos encontrar nas suas extremidades
as “bagas vermelhas do artista”.
Esta estrutura fina e delicada é sensível ao espaço do observador e à sua aproximação
com o objeto escultórico, sendo que as correntes de ar promovem e fornecem aos mobiles
um movimento próprio. Semelhante analogia é proporcionada à sensação do movimento
natural e orgânico dos ramos de uma árvore, ou da folhagem de um arbusto, de acordo
com o vento. Deste modo, é apresentado um desenho abstrato de um arbusto, onde
equilibra uma escolha pictórica, que remete para a sua reflexão quanto às bagas, e aplica
o seu conhecimento técnico para propor um movimento orgânico num objeto sintético.
Embora tenhamos referido o termo móbil, esta atribuição, no entanto, não se aplicada à
sua estrutura, mas à sua sensibilidade ao movimento externo.148 De facto, este exemplo

146
LUCIE-SMITH, Edward – Dicionário de termos de Artes. 2ª ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
1995. p. 128. O nome fora atribuído por Marcel Duchamp, após a exposição dos objetos-esculturas de
Calder na Galerie Vignon, em 1932. - ARNASON, H. H. – Op. Cit. p. 350.
147
“A minha entrada no domínio da arte abstracta surgiu como resultado de uma visita feita em 1930 ao
estúdio de Piet Mondrian, em Paris” – CALDER, Alexander in “What Abstract Art Means to Me”, 1951
(apud SANTINHO, Maria da Graça – Escultura. Lisboa: Editorial Verbo, 1978. p. 173.)
148
“a escultura leva ao reconhecimento de uma situação espacial que não é o resultado da relação de posição
de volumes rígidos, mas sim das ações visíveis e invisíveis dos fatos e das formações de movimento. Sob
certas circunstâncias ela consiste, portanto, em relações de campos de forças.” - NAGY, László Moholy -
Do material à arquitetura. Amadora: Editorial Gustavo Gil. 2001. p. 202.

87
trata-se da “primeira experiência” de Calder para a sua evolução enquanto mobiles que
desenvolve nos anos 30.149
Tratando-se, portanto de um stabile,150 a sua estrutura vertical convenientemente
equilibrada recorda-nos a sua correspondência com o sentido material-espacial de Tatlin,
provocado pelo “antilusionismo”, que Rosalind Krauss refere, o que contribui como um
género de “apresentação” do próprio objeto sendo a estrutura simultaneamente o material
da escultura e a sua expressão plástica concreta e objetiva.151
Esta relação permite-nos recordar o exemplo de Constantin Brancusi (1876-1957), com
Coluna Infinita (1938), onde a autonomia do objeto evidencia a sua independência com
os convencionalismos escultóricos, designados enquanto base, plinto ou pedestal.
Neste sentido, no âmbito do dispositivo escultórico que Calder concebe, a relação espacial
que reformula, uma vez colocado no solo, relaciona-se com a proposta revolucionária de
Brancusi e propõe um progresso da lógica alternativa aos métodos expositivos,
reivindicando a autonomia dos objetos artísticos.
Para melhor elucidação sobre a produção artística de Calder, será oportuno também referir
um outro exemplo, apelidado de Mobile (1932) que, como alternativa para a sua
apresentação e função, encontra-se suspenso no teto. [Fig. 73]
Contrariamente ao exemplo anterior, este mobile não resulta da verticalidade da
“estrutura-arbusto”, mas alude a um dispositivo semelhante aos “brinquedos” decorativos
que são pendurados na parte superior dos berços para diversão do recém-nascido, também
eles apelidados como mobiles.
Este significado, contudo, é uma leitura subjetiva, não querendo limitar o significado do
objeto escultórico. Em contrapartida, segundo este ponto de vista, devemos de reter a
ideia de um objeto-escultura capaz de assumir uma pluralidade de significados possíveis,
a partir da sua formalidade abstrata.
Para além da sua concretização enquanto estrutura-escultura, a sua espacialidade própria
também deve ser apontada. Dado não necessitar, como os contra-relevos de Tatlin, de
qualquer plinto ou pedestal, e apresentar-se num lugar incomum, a escultura torna-se o

149
GIMENEZ, Carmen – Picasso and the age of iron. Nova Iorque: Guggenheim Museum. 1993. p. 45.
150
László Moholy-Nagy considera diferentes estados do desenvolvimento da escultura: a escultura cinética,
que por si só tem o seu movimento; esculturas estáticas, que são colocadas sobre uma base; a escultura
suspensa, associada à suspensão como fator e, por fim, a escultura móvel como estágio final que integra
todos os anteriores. – NAGY, László Moholy - Op. Cit. pp. 152-161.
151
“Assim, o que produzo não é precisamente o que tenho no espirito, mas uma espécie de esboço, uma
aproximação feita pelo homem.” CALDER, Alexander in “What Abstract Art Means to Me”, 1951. (apud
SANTINHO, Maria da Graça – Escultura. Lisboa: Editorial Verbo, 1978. p. 175.)

88
seu próprio fundamento contextual, não necessitando de qualquer estratégia para uma
observação mais imediata do observador, para além da sua presença.
No meio das tendências e transformações estéticas, encontrar propostas de objetos no
contexto artístico parece-nos ampliar a investigação a propostas formais características
que permitem abranger o termo, tal como a abstração.
Estas considerações levam-nos a estabelecer relação com a proposta Obstrução, de Man
Ray (1890-1976). Constituída por 63 cabides de madeira, este número de ready-mades,152
quando agrupados, apresentam-se como uma assemblage suspensa, por um fio que está
preso ao teto, assemelhando-se, de certa forma, à tipologia que Alexander Calder
desenvolve, devido ao seu caráter frágil às correntes de ar ou a movimentos externos.
Agrupados por uma sequência progressiva, estes objetos podem, pelas sombras
provocadas, evocar uma outra abstração nas formalidades projetadas, o que se torna uma
característica para leituras especulativas sobre os “desenhos no espaço”. [Fig. 74]
No âmbito destas propostas, parece-nos que esta visão de formas abstratas no espaço que
podem formular um significado se torna particular, com o conterrâneo de Calder e
familiar na sua tendência abstracionista, David Smith (1906-1965), que também fornece
reflexões escultóricas sobre condições formais e sobre a expressão e potencialidade
abstracionista.
Em 1925 começou a trabalhar como soldador numa fábrica de automóveis em South
Bend, Indiana, e no ano seguinte mudou-se para Nova Iorque, onde estudou pintura e
desenho na Arts Students League, entre 1927 e 1932.153
Smith descobre os trabalhos de Picasso e González em 1931, no Cahiers d’art,154 e as
suas primeiras experiências com a soldadura começam no ano seguinte, inspirado pelas
potencialidades formais que a técnica e o material provocam.155
À semelhança com as propostas anteriores, como os mobiles de Calder ou os desenhos no
espaço de González e Picasso, o modo de concepção de Smith reflete sobre o trabalho da
estrutura como evidência escultórica, tendo o próprio material como fenómeno visual.
Apreciador do princípio construtivista e do gosto sintético e expressividade concreta, cria
composições escultóricas com formas no espaço com linhas e planos geométricos e

152
Convém de referir que o conceito ready-made indica objetos do quotidiano que não sofrem qualquer
alteração, apenas uma recontextualização. Abordaremos este conceito artístico no Capítulo 4.1. Dadaísmo
e objeto ready-made (negação e subversão).
153
HESS, Barbara – Expressionismo Abstracto. Lisboa: Público e Taschen. 2005. p. 58.
154
NORMAND-ROMAIN, Antoinette [et al.] – Op. Cit. p. 208.
155
GIMENEZ, Carmen – Picasso and the age of iron. Nova Iorque: Guggenheim Museum. 1993. p. 49.

89
abstratos, como num dos seus primeiros trabalhos Construção #35, de 1939, onde as
formas ascendem-se da base e ocupam o eixo horizontal, sugerindo uma representação
figurativa de um movimento. [Fig. 75]
Na sua atividade artística, demonstra-se interessado na representação dinâmica e abstrata
com recurso a materiais industriais e as suas construções desenvolvem-se em torno de
uma aparência que transporta a apreensão do observador para um universo de formas
geométricas onde a sugestão formal é assistida pelo título das obras.
Em 1945, concebe Home of the welder, em aço soldado, um exemplo que apresenta ao
observador uma composição com diversos objetos com significado simbólico e alusivo
ao interior de uma casa de um soldador. [Fig. 76] Neste exemplo podemos observar o
jogo formal que propõe para promover o interior de uma divisão, a partir do recurso de
engrenagens e outros objetos que, fora do seu contexto habitual, tomam a abstração como
formalidade e se transformam em elementos alusivos a novos sentidos.
Podemos encontrar semelhanças com uma moldura que coloca numa das superfícies
planas, perpendicular à base, que se pressupõe ser uma das paredes da divisão, evocando
assim a sua relação alusiva a uma pintura que se encontra na parede. Ou também com as
divisões que coloca, perpendiculares à base, que também aludem para a planta de uma
habitação, sugerindo que estas divisões sejam os limites das secções da casa. Deste modo,
a alusão dos diferentes componentes estabelece relação não só como objetos
correspondentes ao sujeito (o soldador/artista), como ao interior de uma casa, um espaço
dito íntimo e pessoal.
Sobre esta “organização” dos elementos, enquanto estratégia metodológica, podemos
considerar a assemblage das formas abstratas que são modeladas e colocadas sobre a
superfície para construir um significado aparente. Nesta perspetiva, será oportuno referir
a sua relação com a Casa do soldador de Smith, onde a construção compositiva da
escultura assume uma flexibilidade formal, composta por diferentes formalidades,
sugeridas pelos objetos abstratos que a compõem.
Socorrendo-nos deste ponto de vista, convém referir que, em 1959, Smith conhece
Anthony Caro, assistente e discípulo de Henry Moore156, escultor britânico, um encontro

156
“As a student I received an entirely academic training working in clay from the life model every day and
coping casts of antique figures. In the work I did outsider of class I imitated in turn Gothic, Renaissance
and Greek sculpture. In this way I digested art history in the process of making. It was when i realised that
the natural fulfilment of this training was to make a sort of dead Academic sculpture that I decided to cal
on Henry Moore to ask if I could become his assistant.” (Como estudante, recebi uma formação académica,
trabalhando com barro e com modelo vivo todos os dias e copiando moldes de figuras antigas. No trabalho
que fiz fora das aulas, imitei o estilo Gótico, Renascentistas e escultura grega. Desta forma conseguia digerir

90
que marca a influência de Smith no trabalho de Caro, de acordo com a sua estratégia de
um formalismo abstrato.157
O artista partilha o fascínio pelas abordagens modernistas e desenvolve, na sua prática
artística, construções abstratas com principal preocupação espacial. Neste sentido,
convém referirmos a série de Esculturas de Mesa, que desenvolve no final da década de
60. [Fig. 77] Nesta série, desenvolve objetos-esculturas com o objetivo de serem
colocadas sobre uma mesa, como desenhos no espaço, que não se encontram situados no
chão, mas sim sobre mesas.
Rejeitando o lugar convencional da escultura, ao colocá-las sobre mesas, propõe um novo
lugar e um espaço próprio para a sua apresentação. Num sentido construtivo, com
referência à assemblage, devido ao jogo combinatório de formas abstratas, o seu trabalho
com materiais industriais, como o aço, favorece uma apreensão bidimensional das formas
num espaço tridimensional, estando as costas das esculturas viradas para a parede.
Deste modo, os seus “desenhos-esculturas” resultam da expansão da escultura para um
espaço que recusa o plinto e determinam-se como estratégias para uma dimensão abstrata,
proposta pela combinação e assemblage de chapas de aço.
Com relação a esta alternativa enquanto plinto, apresenta Déjeuner sur l’herbe II, em
1989, onde, para além de enfatizar a sua ambição em rejeitar a convenção escultórica,
propõe uma construção de planos abstratos, tirando partido da capacidade do aço em
adquirir e congregar formas no espaço. [Fig. 79]
A escultura encontra-se sobre duas mesas perpendiculares, encostadas a um canto da
galeria ou divisão expositiva, desta forma, a escultura de mesa, transmite a ideia de que
a noção de mesa não tem de ser meramente retangular e central, como pode ser uma
superfície expositiva à altura de uma mesa de refeições e que se segmenta em dois
elementos expositivos.
Como referência à conhecida pintura impressionista de Manet, com o mesmo título, de
1863, esta escultura de mesa resulta, segundo o título da obra, como uma alusão a uma
versão tridimensional da pintura original, sugerindo ao observador a interpretação dos
elementos presentes na pintura, que se tornam “objetos” abstratos na sua resolução
escultural.

a história de arte no processo de fazer. Foi nesta altura que me apercebi que para me sentir realizado com
esta formação teria de rejeitar a escultura académica e pedi a Henry Moore para ser seu assistente” – CARO,
Anthony – My own work. Conferência dada na Young Women’s Hebrew Association, Londres, Março,
1985. (apud CARO, Anthony - Anthony Caro. Barcelona: Fundació Caixa Catalunya. 2002. p. 27.)
157
KRAUSS, Rosalind - Op. Cit. 1977. p. 220.

91
A complexidade de formas e volumes está presente na capacidade do escultor em jogar
com as superfícies planas no espaço. De acordo com esta referência, as figuras geradas,
num estilo abstrato, e a escala em que a obra é apresentada, resultam de um tratamento
plástico utilizado para experimentar o desenho de formas e propor uma reflexão espacial.
Para além das construções e dos novos métodos evidenciados, o título começa a tornar-
se um elemento transversal para esta investigação, oferecendo a propostas abstracionistas
a qualidade conotativa e comunicativa da sua particularidade intencional.

92
Fig. 69 Fig. 70

Fig. 71 Fig. 72

Figura 69 –Pablo Picasso. Figure. Figura. Arame e chapa de ferro. 37,5 x 10 x 19,6 cm. 1928. The Museum of
Modern Art, Nova Iorque. Fig. retirada de: The Museum of Modern Art – Figure. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021].
Disponível em WWW:<URL https://www.moma.org/audio/playlist/18/394>

Figura 70 –Pablo Picasso e Julio Gonzalez. Projet for a Monument to Guillaume Apollinaire. Projeto para
Monumeto em nome de Guillaume Apollinaire. Ferro pintado. 198,1 x 74,8 x 159, 8 cm. 1928. The Museum of
Modern Art, Nova Iorque. Fig. retirada de: The Museum of Modern Art – Projet for a Monument to Guillaume
Apollinaire. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021]. Disponível em
WWW:<URL:https://www.moma.org/collection/works/80899>

Figura 71 – Julio González. Don Quichotte. Dom Quixote. Chapa de ferro cortada e soldada. 43, 5 x 13, 7 cm. 1930.
Centre Georges Pompidou, Paris. Fig. retirada de: Centre Georges Pompidou.[Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021]
Disponível em WWW:<URL:https://www.centrepompidou.fr/fr/ressources/oeuvre/cR5dL86>

Figura 72– Julio González. Personnage debout. Figura em pé. Ferro. 158 x 74 x 29 cm. 1932-35. Fondation
Marguerite et Aimé Maeght, Saint-Paul-de-Vence. Fig. retirada de: Fondation Maeght. – Personnage debout. [Em
linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL: https://www.fondation-maeght.com/personnage-debout-
julio-gonzalez/>

93
Fig. 73 Fig. 74

Fig. 75

Figura 73 – Alexander Calder. Objets with red discs. Objetos com discos vermelhos. Chapa de metal,
madeira, arame, cabo, tinta. 222, 25 x 132,715 x 62,23 cm. 1931. Calder Foundation, Nova Iorque. Fig.
retirada de: Calder Foundation – Objects with red discs. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em
WWW:<URL: https://calder.org/works/standing-mobile/object-with-red-discs-1931/>

Figura 74– Alexander Calder. Mobile. Metal, madeira, arame e fio. 150 x 200 x 200 cm. 1932. Tate
Museum, Nova Iorque. Fig. retirada de: Tate Museum - Mobile [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021]
Disponível em WWW:<URL: https://www.tate.org.uk/art/artworks/calder-mobile-l01686>

Figura 75 – Man Ray.. Obstruction. Obstrução. 63 cabides de madeira. Altura: 91,4 cm. Diâmetro: 167,6
cm. 1920. The Metropolitan Museum, Nova Iorque. Fig. retirada de: The Met Museum– Obstruction. [Em
linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL:
https://www.metmuseum.org/art/collection/search/680681>

94
Fig. 76 Fig. 77

Fig. 78 Fig. 79

Figura 76 – David Smith. Construction #35. Construção #35. Aço. 16,3 x 28, 6 x 8,4 cm. 1939. Fig.
retirada de: MCCLINTIC, Miranda - David Smith. Washington, D.C., 1979. p. 11.

Figura 77 – David Smith. Home of the welder. Casa do soldador. Aço. 53,3 x 43,8 x 35,6 cm. 1945. Tate
Museum, Nova Iorque. Fig. retirada de: Tate Museum – Head. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021]
Disponível em WWW:<URL: https://www.tate.org.uk/art/artworks/smith-home-of-the-welder-l01025>

Figura 78– Anthony Caro. Table Piece CCLXVI,.Escultura de mesa CCLXVI. Ferro. 79,5 x 205,5 x 125
cm. 1975. Coleção The Tate Museum, Londres. Fig. retirada de: Tate Museum - Table Piece CCLXVI.
[Em linha] [Consult. 16 Out. 2021].
Disponível em WWW:<URL:https://www.tate.org.uk/art/artworks/caro-table-piece-cclxvi-t07587>

Figura 79– Anthony Caro. Déjeuner sur l’herbe II. 1989. 97 x 187 x 252 cm. Coleção The Tate Museum,
Londres. Fig. retirada de: Tate Museum – Déjeuner sur l’herbe. [Em linha] [Consult. 16 Out. 2021].
Disponível em WWW:<URL:https://www.tate.org.uk/art/artworks/caro-dejeuner-sur-lherbe-ii-t07588>

95
3.2. O conceito espacial e os materiais industriais
(Construtivismo Russo, Bauhaus e De Stjil)

No âmbito das tendências artísticas que procuram incentivar novas acepções e


concepções escultóricas, na cidade de Moscovo, os artistas manifestam o seu interesse e
posição revolucionária, conduzindo o pensamento artístico a um progresso radical. Desde
1910 que o Manifesto Futurista de Marinetti circulava por Moscovo158, tornando-se
apelativo para os artistas russos desenvolverem meios e métodos próprios em conceber
escultura.
Sobre este movimento revolucionário russo, que subscreve à influência das vanguardas
europeias, pensamos que seja oportuno referir o artista russo Vladimir Tatlin (1885-1953)
e a sua importância para o discurso artístico que se desenvolve em Moscovo.
Tatlin procura aprofundar a representação e a linguagem visual no contexto artístico e, na
sua atividade pictórica, partilha o seu interesse pelas intenções vanguardistas159 e centra
a sua experimentação segundo um método construtivo.
Este método assume-se ter sido influenciado após a sua viagem a Paris, em 1913, onde
viu as construções de Picasso, que o influenciaram a desenvolver este processo
artístico.160 Aproveitando o princípio experimental que oferece, no âmbito da escultura,
Tatlin propõe objetos construídos, que são conhecidos como contra-relevos, aos quais se
dedica a partir de 1914, no seu regresso a Moscovo, numa produção em série como
referência ao termo contra-ataque, uma frase presente na consciência e nos jornais da
época.161
Ao apelidar a sua produção artística segundo esta designação, responde de forma radical
às aceções académicas num comentário à situação política e social, e demonstra,
simultaneamente, uma preocupação material, que domina o seu repertório artístico.
A título de exemplo, com Corner counter-relief [Fig. 80], de 1915, é proposta uma
construção concebida para um canto de uma divisão, em que o artista estende o espaço

158
KRAUSS, Rosalind – Op. Cit. 1977. p. 65.
159
“Desde 1911 aderiu ao movimento vanguardista das pinturas russas, que abriram a vista para uma arte
inteiramente nova em exposições de grupo e numa participação da criação de espetáculos de teatro e dança.”
[Tradução Livre] - NORMAND-ROMAIN, Antoinette [et al.]– Op. Cit. p. 144.
160
KRAUSS, Rosalind – Op. Cit. 1977. p. 66.
161
NORMAND-ROMAIN, Antoinette – Op. Cit. p. 114.

96
da escultura e tira proveito dele em função das potencialidades dos materiais que a
compõem.162
Rosalind Krauss refere-se à atitude de Tatlin como uma “qualidade radical” que propõe
um antiilusionismo da situação. Neste sentido, a autora faz uma comparação com o
conceito espacial de Boccioni e a Garrafa no espaço, referindo a “ilusão do movimento”
da Garrafa do artista italiano, comparativamente à realidade especifica material e espacial
dos contra-relevos. Segundo este ponto de vista, o domínio espacial da proposta de Tatlin
reflete ao mesmo tempo a sua materialidade, com função apenas física, “sem qualquer
significado transcendental”. 163
Para além desta espacialidade própria que rejeita o lugar convencional e expositivo da
obra escultórica,164 de acordo com o conceito materialidade, parece-nos que é formulada
uma teoria em torno de “uma cultura dos materiais”, defendendo que as partes
pertencentes à obra correspondem a uma realidade estrutural e própria do material.165
Partindo deste ponto de vista, as qualidades inerentes dos materiais são enfatizadas e
constratadas por Tatlin, que faz uso dos objetos usados como elementos legíveis e
objetivos que constroem a escultura e ocupam o espaço; utiliza fragmentos de vidro e
metal sem qualquer sentido representativo e recorre ao material no espaço real.
Neste sentido, a introdução de um conceito e concepção “material-espacial” provoca não
só a questões em torno dos próprios materiais, como do espaço como valor escultórico.
Tatlin pertence a um grupo particular na história da escultura que se desenvolve no início
da Primeira Guerra Mundial e partilha o gosto pela provocação à tradição artística. No
meio da agitação e tensão cultural, o conceito Construtivista de espaço e materialidade
toma diferentes significados e, dada a revolução ideológica, tirando partido da liberdade
experimental, a metodologia construtiva dá início a um movimento artístico apelidado de
Construtivismo Russo.
Neste âmbito, achamos que será com devida importância destacar os irmãos Pevsner,
Naum Gabo (1890-1977) e Antoine Pevsner (1884-1962), que também partilham a
ambição vanguardista de Tatlin. No entanto, para além da inspiração construtivista que

162
A favor da abordagem de Tatlin com os contra-relevos, “are indicative of a coherent revolution from
represented space towards real space, from represented forms towards created forms.” (são indicativo de
uma revolução coerente do espaço representado para o espaço real, de formas representadas para formas
criadas.) – GULLAR, Ferreira “Theory of Non-object”, 1959 p.120, in The object. Londres: Whitechapel;
Cambridge, Mass: The Mil Press, 2014. p. 122.
163
KRAUSS, Rosalind – Op. Cit. 1977. p. 67.
164
“(...) desejo do artista de levar o objeto além do contexto em que ele poderia ser recebido e apreciado
como arte.” - TUCKER, William – Op. Cit. p. 121.
165
KRAUSS, Rosalind – Op. Cit. 1977. p. 70.

97
Tatlin influenciara, não defendem a sua teoria relativamente à materialidade e realidade
e publicam, em 1920, o Manifesto Realista.166
A noção de realidade do material e espacialidade proposta por Gabo transmite-se no seu
processo “estereométrico”, um método que rege a sua manifestação artística, com
considerações em torno de um progresso tecnológico para a concepção de volumes.
Relativamente a este processo, será oportuno referir as primeiras experiências de Gabo,
que refletem este modo de entender a volumetria e que se assume como verdadeiramente
revolucionário, do ponto de vista académico.167
Como procedimento que propõe a concepção tridimensional com materiais planos,
revela-se uma proposta análoga às metodologias propostas pelo Cubismo, sendo possível
concretizar “objetos construídos” como técnica que segue uma ordem semelhante à
assemblage.
Em 1915, concebe a escultura Cabeça Construída,168 onde o espaço da escultura é
organizado segundo os limites dos volumes que o engendram. Na geometrização dos
planos, cria a alusão formal a uma cabeça tridimensional, projetando assim um exemplo
da sua inteligência e singularidade em construir um objeto com o jogo de superfícies
planas que reformulam o sentido espacial e material, segundo a experiência de uma
apreensão volumétrica de planos abstratos que estruturam a obra.169
Neste sentido, é fornecido um novo vocabulário para a concepção escultórica e um novo
modelo de objeto que, segundo a perspetiva de Gabo, se rege por um quadro de
referências diferente de Tatlin. Enquanto que para Tatlin o processo construtivo funciona
enquanto objeto-material que ocupa um espaço próprio e independente, para a construção
de Gabo o conceito espacial e material é resultado de um núcleo estrutural volumétrico.170

166
O Manifesto Realista propõe uma “revelação de uma realidade transcendente” em oposição à
“manifestação de uma realidade factual” proposta por Vladimir Tatlin. - KRAUSS, Rosalind – Ibem. 1977.
Margit Rowell, sobre Gabo e Pevsner, escreve que “foram ainda mais longe: a verdade da substância da
escultura seria o espaço dela mesma”. – ROWELL, Margit – “Construtivisme” in Qu’est-ce que la sculpture
moderne?. Paris: Centre Georges Pompidou, 1986. p. 65.
167
Segundo Krauss, o “artificio estereométrico” revela-se com “o entrelaçamento tridimensional das formas
pelo interior, ou núcleo estrutural, do volume normalmente fechado” para uma “penetração conceitual da
forma”. Isto é, o objeto escultórico é concebido numa metodologia regida pela síntese formal, resultando
numa proposta do “núcleo estrutural” que é construído pela organização e combinação de superfícies
planas. - KRAUSS, Rosalind – Op. Cit. 1977. p. 72.
168
Com referência ao busto, este exemplo estabelece relação com o segundo capítulo, manifestando-se
também segundo um princípio, que se dirige para um sentido abstrato, e propõe uma concepção construída
do referente escultórico, neste caso a figura humana que é composta pela combinação de superfícies planas.
169
“A cabeça simboliza geralmente o ardor do princípio activo. Inclui a autoridade de governar, de ordenar
e de esclarecer.” - CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain – Op. Cit. p. 136.
170
“Gabo’s work after he left Russia are not experiments or workshop models in the original meaning of
Construtivism, but complete objects.” – CAUSEY, Andrew – Op. Cit. p. 42.

98
Com o reconhecimento dos elementos compositivos como linguagem plástica
essencialmente estrutural,171 os construtivistas procuram estabelecer um método em
conceber escultura que favorece o panorama artístico com sínteses formais com
materialidades especificas.
Embora a expansão do pensamento construtivista variasse nos seus objetivos, após a
exposição do grupo Construtivista, em 1922, o Construtivismo Russo tornou-se
reconhecido internacionalmente. Simultaneamente, com a pressão política vivida em
Moscovo, muitos artistas emigraram, como Naum Gabo que se refugiou na Alemanha e
o seu irmão que fugiu para França,172 e a expansão Construtivista assume-se também
como linguagem visual apelativa para além das fronteiras geográficas.
Enquanto propostas Construtivas, Antoine Pevsner desenvolve uma “plasticidade”
adequada aos fundamentos práticos de Naum Gabo e propõe também uma concepção que
se motiva nos materiais industriais para concretizar objetos escultóricos.
Comparativamente à proposta figurativa de Gabo, cria, em 1923-24, uma representação
de um rosto, concebido num jogo de planos translúcidos.173
Este exemplo de uma construção do referente humano concebida com superfícies planas,
que se encaixam e conjugam, demonstra novamente a referência à tradição do retrato,
numa abordagem que o reduz a uma simplicidade formal com devida complexidade
geométrica. Contudo, não pretendemos esgotar a hipótese de um corpo que se torna
objeto, mas sim enfatizar o papel dos materiais industriais, que são introduzidos na
produção escultórica pelos Construtivistas.
Deste ponto de vista, será possível também, a partir do reconhecimento de elementos
translúcidos e transparentes, que são integrados com função estrutural, referir a
Construção no espaço: Diagonal de Naum Gabo, executada entre 1921-5, que nos propõe
uma perspetiva sobre o caráter abstracionista das manifestações construtivistas. [Fig. 81]
Acima de tudo, esta obra permite-nos entrar no complexo espacial que é desenvolvido no
Construtivismo Russo e encontrar uma resolução onde o material é ele mesmo estrutura
e simultaneamente forma, uma vez que os elementos geométricos, como os círculos de

171
“Materials in sculpture play one of the fundamental roles. The genesis of a sculpture is determined by
its material. Materials establish the emotional foundations of a sculpture, give it basic accent and determine
the limits of its aesthetical action.” – GABO, Naum “Sculpture: Carving and Construction in Space” in
Circle, 1937. (apud READ, Herbert [et al.]– Gabo: Constructions, Sculpture, Paintings, Drawings,
Engravings. Massachussets:: Harvard University Press. 1957. p. 167.)
172
KRAUSS, Rosalind - Op. Cit. 1977. p. 70.
173
Quanto aos processos estereométricos empregues por ambos os irmãos “Os volumes sem sombra,
impalpáveis, elevam-se a um nível alto de desmaterialização do volume estrutural” - ROWELL, Margit –
“Construtivisme” in Qu’est-ce que la sculpture moderne?. Paris: Centre Georges Pompidou, 1986. p. 66.

99
vidro e a “moldura” de metal, são o seu contorno e ao mesmo tempo a definição do espaço
da escultura.
Deste modo, como exemplo do conceito de espaço aplicado, segundo as motivações
construtivistas, podemos considerar a proposta artística que introduz materiais industriais
para estruturar a escultura, como o vidro, o acrílico ou a celuloide que funcionam como
elementos que permitem considerações em torno do fator lumínico enquanto valor
escultórico, considerado como uma potencialidade para o conceito espacial e material da
própria escultura.

No âmbito destas propostas inovadoras que se desenvolvem em torno de valores


escultóricos como o espaço, a forma, estrutura e materiais compositivos, será oportuno
referir a manifestação artística que surge, paralelamente, às abordagens construtivistas.
Em 1919, após a Primeira Guerra, na Alemanha, fruto da revolução, a renovação social e
política leva os artistas a questionarem as pedagogias artísticas e Walter Gropius (1883-
1969) funda a escola Bauhaus como estratégia para promover uma transformação no
movimento cultural.
Com um quadro institucional de artistas que refletem metodologias transdisciplinares,174
as intenções com o funcionamento institucional desta escola propõem incentivar a
atividade, produção e articulação artística com relação profunda entre o artesanato e a
prática artística.175
Neste sentido, a Bauhaus distingue-se pela sua abordagem pedagógica que propõe,
sobretudo, uma experimentação técnica e formal, onde a transversalidade de práticas e
métodos artísticos fundamentam um novo panorama no ensino artístico.176
Para além do rompimento entre as diferentes práticas, a Bauhaus sugere uma diluição das
acepções e concepções artísticas e, dedicada à produção de produtos comerciais e objetos,
relaciona-se também com o conceito de design, o que corresponde a uma atividade que
recorre a processos e materiais industriais com relação ativa com o consumidor, com a
produção de imobiliário e objetos utilitários. 177

174
RODRIGUES, António J. - A Bauhaus e o ensino artístico, Lisboa: Editorial Presença, 1989. p. 17.
175
No Manifesto de Walter Gropius, o artista sugere um princípio com referências para a prática artesanal,
referindo que todos os artistas estabelecem relação com a técnica. - RODRIGUES, António J. – Op. Cit.
pp. 29-34.
176
Herbert Read, sobre a escultura na Bauhaus, refere “(...) teoricamente e praticamente a escultura não
existe como separada de “arte” na Bauhaus.” – READ, Herbert – Op. Cit. 1996. p. 103.
177
“ O objetivo pretendia ser o mesmo: realizar com qualidade objetos de uso quotidiano.” - RODRIGUES,
António J. – Op. Cit. p. 25.

100
Estabelecendo, assim, uma relação comercial, a Bauhaus propõe resultados associados a
uma formalidade apelativa dos objetos ao consumidor, com caracter útil. Apesar deste
vínculo com o objeto, de teor decorativo, doméstico e prático, a Bauhaus distingue-se das
instituições artísticas pelas suas intenções programáticas e na escolha dos professores,
sendo que será importante referir a participação do artista húngaro, László Moholy-Nagy
(1895-1946), docente da instituição.
Em 1923 começa a lecionar neste novo estabelecimento de ensino, juntamente com Josef
Albers,178 e, no ano anterior também o pintor abstracionista Wassily Kandinsky fora
convidado como professor.179 Deste leque de professores, podemos considerar que se
cruzam numa sensibilidade pelas formas abstratas e pelas qualidades materiais,
estabelecendo um sistema educacional composto por artistas vanguardistas, que procuram
estabelecer relação entre formas, cor e materiais, com uma série de exercícios que
transformam a reforma educacional.180
Nagy partilha, com as ambições construtivistas, a sua intenção em encontrar formas
especificas para enfatizar o espaço como um conceito da própria escultura. A sua
produção artística, no âmbito da escultura, destaca-se pela produção de uma energia vital
semelhante à proposta por Gabo, e as suas composições geometrizadas centram a
transparência como valor e a luz como matéria dessa mesma energia.
Deste modo, é considerada a luz como qualidade compositiva e, como exemplo, com
Modelador de espaço-luz, de 1922, podemos considerar a virtude das superfícies
transparentes, espelhadas e finas que utiliza e que provocam contrastes de luz e sombras.
[Fig. 82] As formas que estes dois fatores criam são sugeridas com o movimento exterior
à obra, sendo desta forma ela mesma um elemento modelador de espaço e luz, que reflete
e direciona.181
À semelhança com as propostas abordadas anteriormente, Nagy recorre a materiais
translúcidos para evidenciar uma qualidade e valor escultórico, a partir da estruturação da
própria escultura com painéis de acrílico. Contudo, distingue-se pelo seu “modelador”

178
Esta menção deve-se a Wurfel Komposition, concebido pelo artista em 1919, um exemplo de uma
escultura abstrata composta por cubos e que formulam uma construção de formas geométricas que são
combinadas simbioticamente.
179
DROSTE, Magdalena – Bauhaus: 1919-1933. Koln: Taschen. 2004. p. 24.
180
O pintor abstracionista compõe um livro-manual com o programa para o curso da Bauhaus em 1929,
onde estão descritos vários exercícios que sugerem o estabelecimento de novas bases artísticas, no domínio
do “espiritual”, referindo que o “material” é “a raiz universal da unidade”. Vid. KANDINSKY, Wassily –
Curso da Bauhaus. Lisboa: Edições 70. 1987.
181
“a luz é, nesse contexto – como projeção espacial -, um meio excelente para a produção de volumes
virtuais” (...) “fator elementar de configuração.”- NAGY, László Moholy – Op. Cit. p. 166.

101
apresentar um “corpo” aparentemente estrutural, mas, acima de tudo, demonstrar a
integração de um sistema mecânico, instalado na base, que oferece ao objeto escultórico
um movimento que faz o “modelador” girar sobre a plataforma circular e propor um efeito
de movimento espacial, como também lumínico, pelo jogo de sombras e luzes que
provoca e reflete. 182
Com esta alternativa, valoriza-se a construção de uma máquina, sendo considerado como
um “artista-engenheiro” pelo mecanismo que é integrado e que permite um jogo dinâmico
de luzes e sombra com o movimento circular da estrutura escultórica. 183
Neste sentido, a obra de Nagy provoca a considerações sobre o conceito espacial como
teoria de um fator lumínico, 184 relacionado com a transparência dos materiais, o que nos
leva a considerar como uma expansão da escultura para a arquitetura do lugar que integra.
Deste modo, enquanto escultura que se assume autonomamente como estrutura,
constituída por elementos transparentes e indústrias, é demonstrada uma valorização por
artifícios “imateriais” que se tornam elementos compositivos; um pensamento que Nagy
evidencia com a modelação de luz e espaço e que Gabo e Pevsner também haveriam
manifestado.
Também com relação a este sistema educativo, será oportuno também referir a proposta
de Max Bill (1908-1994), que ingressara para a escola da Bauhaus em 1927.185
Desenvolvendo posteriormente uma visão intelectualizada das formas, Bill torna-se
impulsionador da “arte concreta”186 que, contrariamente à abstração, não se afasta da
realidade visual, mas provoca a uma aproximação dos seus valores físicos e lógicos.
Contrariamente à proposta de Nagy, o artista encontra na matemática o referencial teórico
mais adequado à concepção artística e, como natureza autoexplicativa, através de

182
“It was, therefore, no longer significant where a sculpture was in terms of place, but rather what it was
in itself, and how it worked in terms of its own structure.” (Não era, portanto, mais significante onde a
escultura estaria em termos de lugar, mas o quê que era em si mesma e como trabalhava em termos de
estrutura.) – CAUSEY, Andrew – Op. Cit. p. 39.
183
“Le Modulateur espace-limière, enrichi par le principe dynamique, reprend, à um niveau plus élevé,
l’architecture de verre; la transparecne est transformée em spectacle lumineux, l’architecture est changée
em structure, et les trois dimensions, suggérées seulement sur la toile, deviennent réeles et même mobiles.”
- PASSUTH, Krisztina – Moholy-Nagy. Paris: Flammarion, 1984. p. 57.
184
O interesse de László Moholy-Nagy pela luz, pode ser associado à sua prática fotográfica, onde também
o fator luminico é revelador de novas formas. Sobre a “sensibilidade à luz” e aos procedimentos
fotográficos, escreve “Comme ces effets lumineux se présentent toujours en mouvement, c’est
naturellement grâce au film que se proceed arrivera à se perfectionner.” – NAGY, László Moholy “La
lumière – nouveau moyen d’expression de l’art plastique” in Broom, Nova Iorque, Março de 1923. (apud
PASSUTH, Krisztina – Moholy-Nagy. Paris: Flammarion, 1984. p. 293.)
185
CASSEY, Andrew – Op. Cit. p 46.
186
Inicialmente este novo conceito é introduzido por Theo van Doesburg, que, em 1930, propunha a
expressão “arte concreta” como mais adequada para descrever a arte abstrata, incluindo também a expressão
“não-objetiva”, que é aplicada às pinturas de Piet Mondrian. – ARNASON, H. H. – Op. Cit. p. 185.

102
modelos matemáticos e do uso de formas geométricas, valoriza o seu pensamento
racionalista numa procura pelo prestígio de um sentido estético.
A título de exemplo desta proposta que acentua uma geometrização justificada pela
racionalidade, podemos anunciar a clareza, simplicidade e lógica da sua escultura de
superfície única a partir da faixa de Moebius,187 de 1953, (Endless Ribbon).
Este exemplo permite-nos considerar as propostas escultóricas que se desenvolvem como
resultado de um conteúdo escultórico que é ele mesmo forma e estrutura, o que evidencia
o fundamento lógico e a intelectualização das formas que são desenvolvidas na Bauhaus,
estabelecendo uma dimensão racional, visualmente abstrata, na articulação entre o
conceito espacial com o reconhecimento das polaridades físicas dos materiais.

Ainda sobre a transversalidade das práticas, que empregam e emprestam valores e


conceitos e os transportam para uma concepção escultórica, que a produção da Bauhaus
enfatiza, o cruzamento deste tipo de discurso artístico acontece também, para além-
fronteiras, com o movimento De Stijl, fundado por Theo van Doesburg e Piet Mondrian
em 1917, na Holanda. 188
No entanto, este movimento interessa-se mais pela prática pictórica e apenas podemos
destacar a obra de Georges Vantongerloo como exemplos escultóricos que pertencem ao
movimento. Neste sentido, referimos Composition émanante de l’ovoide, que se
apresenta como uma construção de formas cúbicas, onde aplica escolhas pictóricas,
características da palete de cores utilizada por Mondrian. [Fig. 83]
Como manifestação de uma linguagem plástica visualmente abstrata, as escolhas
cromáticas tornam-se apelativas para uma solução da aparência dos materiais industriais
utilizados, evidenciando uma consciência pelo caráter estético.
A geometrização proposta, de um “racionalismo subtil”189, complementada com a cor
como atributo pictórico, leva-nos a considerar a relação entre as propostas do movimento
De Stjil com a produção de mobiliário que decorre nos ateliers da Bauhaus.
Sobre estes exemplos, a relação entre a escola da Bauhaus e o design190 demonstram uma
aparência formal tradicional do objeto, numa transição para a simplicidade da forma,

187
Unindo as extremidades de uma superfície plana é adquirida uma formalidade característica de uma só
superfície que se torna tridimensional e a sua forma realça a ideia de um ciclo infinito. Este conceito fora
desenvolvido pelo matemático alemão, August Ferdinand Möbius, no final do século XIX.
188
READ, Herbert. – Op. Cit. 1996. p. 104.
189
RODRIGUES, António J. – Op. Cit. p. 71.
190
RODRIGUES, António J. – Op. Cit. p. 71.

103
marcada pela sua característica utilitária e de estética industrial, com peculiar estratégia
cromática.
Neste sentido, será relevante relacionar a proposta de Vantongerloo com Marcel
Breuer191, que apresenta Cadeira de Ripas,192 em 1922, e Gerrit Rietveld, que desenvolve
Cadeira Vermelha e Azul entre 1918-23.193 [Fig. 84]
Apesar deste pensamento nos desviar do âmbito da investigação, a favor da proposta do
movimento De Stijl e das expressões construtivistas, são consideradas tendências
estéticas que refletem uma elaboração racionalista e de uma formalidade geométrica,
revelando novos métodos construtivos, com aplicação cromática, que evidenciam uma
concepção escultórica direcionada para a construção como meio de pensar, conceber e
constituir um resultado artístico inovador.
Com esta tendência artística, podemos considerar que a arte e técnica são conceitos que
revolucionam a estética construtivista e, para além da proposta utilitária de um design de
equipamentos e objetos, é articulada a polaridade formal dos materiais industriais com as
intenções radicais, o que provoca a uma linguagem visual que evidencia um progresso no
pensamento escultórico.

191
“(...) o próprio Marcel Breuer, o estudante mais talentoso do atelier de mobiliário, estava profundamente
impressionado: os moveis que criou de 1921 a 1925 reflectiam o pensamento De Stijl.” - DROSTE,
Magdalena – Op. Cit. p. 56.
192
Para além da cadeira de ripas podemos lembrar a famosa Cadeira Wassily, associada ao pintor
abstracionista Wassily Kandisnky.
193
“as cadeiras de Rietveld, ao lado dos readymades de Duchamp e dos planadores e objectos utilitários de
Tatlin, demonstram como o objeto se transformara ele mesmo em assunto: ou seja, em última instancia, é
a qualidade dos olhos, mãos e mente do artista que distinguirá o seu objeto das outras coisas e da realidade
em geral.” - TUCKER, Willian – Op. Cit. p. 126.

104
Fig. 80 Fig. 81

Fig. 82

Figura 80– Vladimir Tatlin. Corner Counter-Relief. Contra-relevo de canto. Chapas de ferro, alumínio, madeira,
cabos. Dimensoes desconhecidas. 1914. The Virtual Russian Museum, Moscovo. Fig. retirada de: The Virtual
Russian Museum – Corner Counter-Relief [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em
WWW:<URL:https://rusmuseumvrm.ru/data/collections/sculpture/20/tatlin_ve_uglovoy_kontrrelef_1914/index.php?
lang=en>

Figura 81 – Naum Gabo. Construction in Space: Diagonal. Construção no espaço: diagonal. Vidro, metal e
celuloide. 61 x 16,3 x 16 cm. 1921-5. Tate Museum, Nova Iorque. Fig. retirada de: Tate Museum–
Construction in Space: Diagonal [Em linha] [Consult. 16 Out. 2021]. Disponível em WWW:<URL:
https://www.tate.org.uk/art/artworks/gabo-construction-in-space-diagonal-t06973>

Figura 82 – Lazlo Moholy Nagy. Light Space Modulator.. Modulador de Luz-espaço. Plástico, arame, vidro, ferro,
alumínio. Estrutura mecanizada. 120 x 120 cm. Media Kunst Netz. Fig. retirada de: Media Kunst Netz – Ligh-Space-
Modulator. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL:
http://www.medienkunstnetz.de/works/licht-raum-modulator/>

105
Fig. 83

Fig. 84

Figura 83 – Geroges Vantongerloo. Composition émanante de l’ovoide. Composição de um ovoide.


Mogno pintado. 16,5 x 6,5 x 6,5 cm. Hauser & Wirth, Zurique. Fig. retirada de: Hauser & Wirth –
Composition émanante de l’ovoide (Composition from the Ovoid) [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021]
Disponível em WWW:<URL:https://www.hauserwirth.com/artists/23358-georges-
vantongerloo/#images>

Figura 84 – Gerrit Rietveld. Red Blue Chair. Cadeira vermelha e azul. Madeira pintada. 86,7 x 66 x 83,8
cm. 1918-1923. The Museum of Modern Art, Nova Iorque. Fig. retirada de: MoMa– Red Blue Chair. [Em
linha] [Consult. 16 Out. 2021]. Disponível em
WWW:<URL:https://www.moma.org/collection/works/4044>

106
4. O objeto em evidência
4.1. Dadaísmo e objeto ready-made (negação e subversão)

No seguimento das propostas que assumem a abstração e a simplificação como métodos


para a concretização de novas formas, o discurso artístico desempenha uma transição da
convenção escultórica para ideias radicais e conceitos inovadores.
O entendimento desta mudança, para além de ser evidente, segundo os métodos que
havemos abordado, torna o próprio material como uma questão de princípio. Como
consequência desta tendência modernista, verifica-se, de facto, o objeto como um
acontecimento cuja condição experimental não só se torna aparente como proposta
formal, mas também é expresso como inovação artística, no peculiar confronto com o
entendimento crítico relativamente à acepção tradicional de obra de arte e da sua
concepção.
Em relação a esta transformação, o objeto adquire qualidades que estão relacionadas com
o pensamento estético. Este pensamento proporciona ao artista a oportunidade de
desenvolver uma experimentação formal e introduzir, consequentemente, novas formas
de pensar e conceber escultura.
Como reflexo destas manifestações, associadas ao movimento Dadaísta e às suas
propostas “sem sentido”, são demonstradas estratégias alternativas para questionar as
condições que declaram os objetos artísticos enquanto obra de arte. Neste campo,
reformula-se um discurso que se demonstra como um radicalismo à acepção de arte,
considerado como anti-arte,
Procedendo à introdução de propostas que reflitam sobre este sentido, será oportuno
debruçarmo-nos sobre as alternativas quanto ao conceito de arte que Marcel Duchamp
(1887-1968) desenvolve, a par das intenções Dadaístas.
Enquanto espelho das possibilidades experimentais, em 1913, coloca uma roda de
bicicleta invertida sobre um banco de madeira, no seu ateliê em Paris, apelidando esta
obra como Roda de Bicicleta. [Fig. 85]
Esta nova condição que Duchamp propõe de obra de arte composta por dois objetos
autónomos e distintos, resulta de um processo de escolha do próprio artista que se

107
estabelece como recolha de objetos pré-fabricados ou pré-existentes, que não sofrem
qualquer tipo de manipulação, sem ser a sua combinação enquanto uma assemblage.194
Sobre este resultado escultórico que se desvia das abordagens anteriores, é proposto um
novo conceito artístico, ao qual Duchamp apelida de ready-mades.195 Esta designação e
concepção funciona como comentário irónico sobre a relação entre objeto comum e obra
de arte, o que resulta também como uma reinvenção do próprio objeto no contexto
artístico.
Enquanto estratégia e forma de desafiar o conceito de arte e da própria práxis da
escultura196, este gesto irreverente para com a acepção de obra de arte transmite-se numa
apresentação dos próprios objetos, assumindo assim uma “concepção” que se distancia
da modelação ou construção de um objeto artístico.
A obra escultórica, ou objeto artístico, neste caso, consiste numa ideia, um conceito
estético e apenas envolvida na ênfase colocada sobre o aspeto literal do ato criativo de
colocar uma roda sobre um banco, sendo que, segundo este gesto, questiona-se também
o resultado final de um processo escultórico. 197
Desafiando não só a acepção de arte, ao considerar a obra de arte como objetos pré-
fabricados e/ou preexistentes, esta atitude realça o ato conceptual e questiona a própria
autoria artística. 198 É nesta deslocação de significado do objeto comum que se apreende
o seu significado enquanto obra de arte e, partindo desta reflexão, ao transportar o objeto
da vida mundana para o contexto museológico, Duchamp também insere o objeto no
mundo da estética.199

194
“(...) a elevação de objetos-de-todos-os-dias à condição de obra de arte (...)” – SANTINHO, Maria – Op.
Cit. p. 151.
195
“Ready-made – that is to say, an ordinary object invested with significance by being removed from its
normal environment or position, simply for example, by being turned upside down.” (Ready-made – é dizer,
um objeto ordinário investido com significância ao ser removido do seu ambiente normal ou posição,
simplesmente por exemplo, ao virá-lo ao contrário.) - READ, Herbert – Op. Cit. 1996. p. 147.
196
Os ready-mades funcionam num “sentido estrategicamente provocatório.” OLAIO, António – Ser um
individuo chez Marcel Duchamp. Porto: Dafne Editora. 2005. p. 27.
197
“(...) é suficientemente estimulante considerarmos a estética como um enorme campo de possibilidades
que a própria realidade produz, onde os objetos artísticos são sobretudo consequências e não causas. (...)
Desta forma a arte será sobretudo qualquer coisa a desvendar, mais do que algo a criar.” - OLAIO, António
– Op. Cit. p. 122.
198
Duchamp é considerado como “pioneiro” da arte objetual e conceptual, devido às suas abordagens
consideradas como produções de “metamorfoses artísticas do objeto acostumado, fundamentando uma
expressão artística que se identifica com a apropriação muito direta e completa do real.” – MARCHAN,
Simon – Op. Cit. p. 245.
199
“O esteta é – compreendido mais profundamente – o homem que concebe a arte como o “puramente
estético”, a arte que superando todos os restantes valores se convertem em valor supremo e que se basta a
si mesma.” – SEDLMAYR, Hans - Op. Cit. p. 57.

108
Enquanto artista da vanguarda conceptual,200 o entendimento desta expressão artística
apresenta-se também, em 1914, com Porte Bouteille (Porta garrafas), que, tal como o
nome indica, é um objeto decorativo e utilitário onde se armazena garrafas.201 [Fig. 86]
Em comparação, esta resolução de “obra de arte” não se trata de uma assemblage, mas de
um objeto comum e independente, demonstrando a articulação da expressão ready-made
enquanto considerações sobre os objetos pré-fabricados, que desenvolvem uma
característica estética adaptável ao contexto artístico e museológico.202
Em relação à introdução de novos conceitos, é neste campo que podemos encarar o
caminho modernista que toma o reconhecimento do objeto como ferramenta essencial
para estratégias artísticas, que desafiam tanto a produção e concepção, como o seu
significado e resultado.
A banalidade dos objetos utilizados,203 transmitida como expressão de ready-mades,
como referimos, coloca em questão o contexto do objeto e este gesto de apropriação e
irreverência transmite-se também, alguns anos mais tarde, com a apresentação de
Fountaine, em 1917, transportando um urinol de uma casa de banho pública para o
contexto museológico. 204 [Fig. 87]
Como gesto radical que desloca o objeto do dia-a-dia para uma galeria ou museu, o objeto
é considerado irónico e reflexo de uma atitude anti-arte.205 Para além desta
“recontextualização” e apresentação de uma nova noção dos objetos, ao apresentar este
ready-made, temos de ter em atenção não apenas a objetividade, como também a intenção

200
“Para a arte conceptual, a obra afirma-se como tal, mostrando-se opaca e autorreferencial.” –
CAUQUELIN, Anne, - Arte contemporânea. Lisboa: Publicações Europa-América, 2010. p. 91.
201
O Porta garrafas original foi comprado ainda em Paris, no Bazar do Hotel de Ville. Duchamp em 1914
já se encontrava em Nova Iorque e lembrara-se deste objeto que ficara no seu atelier, do outro lado do
Oceano Atlântico. Numa carta explica à sua irmã Suzanne o significado de ready-made e solicita à mesma
que o enviasse para os Estados Unidos da América. No entanto, a sua irmã não respondeu à sua carta nem
ao seu pedido, pois já tivera esvaziado o estúdio. – MILEAF, Janine – Please touch: dada & surrealist
objects after the ready-made. Hannover, N.H.: Dartmouth College Press, 2010. p. 25.
202
“Il se montrent; il s’énoncent en tant qu’art!” – DUVE, Thierry de - Ressonance du readymade. Nimes:
Jacqueline Chambon, 1989. p.11.
203
“A banalidade com que Duchamp joga não é facilmente resgatável para valores éticos elevados, é uma
banalidade absolutamente banal. O seu humanismo encontra sentido na crueza da síntese do que é ser
Humano.” - OLAIO, António – Op. Cit. p. 71.
204
“Qualquer exposição de um urinol fora do contexto das montras de artigos sanitários, seria facilmente
encaravel como anedota de mau gosto. E é este sentido de banalidade rude que a atitude de Duchamp,
ironicamente, faz coexistir com a ideia de obra de arte, defendendo a arte das suas próprias concepções.” –
Idem.
205
“Fonte precisava da arrogância do contexto do mundo da arte para poder ser lida como arte, mas a sua
legibilidade como obra fez desmascarar a arrogância com que se desenvolvera.” – BRADLEY, Fiona. –
Surrealismo. Lisboa: Editorial Presença. 2000. p. 14.

109
por parte do artista em inverter o seu sentido utilitário, numa deslocação de contexto,
como também da sua posição usual. 206
Sobre este aspeto notável do objeto, que estabelece novas questões e relações “lógicas”,
a propósito da atitude anti-arte de Duchamp, que integra o objeto comum e o apresenta
como resultado, e do seu papel inovador para a relação entre arte e autoria, projetam-se
novos sentidos metodológicos e convicções artísticas que visam abolir os “limites”
artísticos.
Com relação ao desenvolvimento de afirmações niilistas, Duchamo revê-se nas ideias
dadaístas, que pretendiam também provocar a indignação de forma radical, e, em 1915,
associa-se ao movimento Dada, juntamente com Francis Picabia e o artista americano
Man Ray, criando assim o grupo Dada em Nova Iorque.207
De acordo com Hans Richter, o Dadaísmo “não é um movimento artístico”, mas sim “uma
tempestade que partiu o mundo da arte como a guerra fez às nações”.208 Esta “tempestade”
começou a surgir na Europa, principalmente em Zurique, tendo-se oficializado, no
Cabaret Voltaire, fundado pelo poeta Hugo Ball, Tristan Tzara, Hans Arp, entre outros
artistas, com a primeira publicação com referência à palavra Dada, em 1916.
A aleatoriedade deste encontro com a palavra209 e a sua escolha para definir um novo
objetivo artístico evidenciam as origens morais e filosóficas da revolta dadaísta na prática
artística.
No âmbito de uma nova proposta, relativamente ao conceito de arte, as definições que são
sugeridas no Manifesto Dadaísta, de 1918, publicado em Munique, por Tzara, colocam
três novas abordagens artísticas: ordem = desordem, o mesmo = o outro, afirmação =
negação.210 Tzara considera estas negações como fundamento “lógico” para um
pensamento radical, o que também se evidencia na publicação do Manifesto Dadaísta, no
mesmo ano, pelo artista alemão Richard Huelsenbeck, em Berlim, que refere que o

206
Sobre esta proposta de um urinol invertido, a interpretação de António Olaio demonstra um ponto de
vista curioso relativamente a um novo significado que surge, associado à sua possível funcionalidade
enquanto fonte, ao que poderemos considerar fundamentar-se enquanto uma “inversão de sentido e
utilidade”. Também será importante referir a especulação de Janine Mileaf que refere a canalização
inexistente, propondo um objeto sem utilidade que não “retém a urina”. Vid. OLAIO, António – Ser um
individuo chez Marcel Duchamp. Porto: Dafne Editora. 2005. p. 70. Vid. MILEAF, Janine – Please touch:
dada & surrealist objects after the ready-made. Hannover, N.H.: Dartmouth College Press, 2010. p. 53
207
RICHTER, Hans – Dada: art and anti-art, Londres: Thames & Hudson. 2016. p. 96.
208
RICHTER, Hans – Op. Cit. p. 9.
209
Dada significa “cavalinho de madeira”, um termo encontrado enquanto folheavam o dicionário de
alemão-francês - OESTERREICHER-MOLLWO, Marianne - Surrealism and Dadaism, London: Phaidon,
1979. p. 8.
210
TZARA, Tristan “Manifesto Dadaísta”, 1916 (apud RICHTER, Hans - Dada: art and anti-art, Londres:
Thames & Hudson. 2016. p.34.)

110
dadaísmo toma uma atitude estética para com a arte, acrescentando que se realiza na
rutura com os slogans éticos, de cultura e interioridade.211
Sobre esta liberdade e a experiência em torno do acaso e do acidental constrói-se uma
cultura como sinal da irracionalidade.212 Partindo desta visão, Dada é considerado como
uma antítese que desafia a arte e sociedade com representações sem sentido213, que
contrariam as definições e os significados artísticos.
O pensamento radical do Dada alemão partilha a tendência e o gosto antagonista e as
combinações de sentido sem sentido são uma das variantes que também é praticada pelo
artista Raoul Hausmann (1886-1971), profundamente relacionado ao movimento dadaísta
em Berlim, com a produção de colagens e a introdução do conceito de fotomontagens. 214
Em termos de escultura, concebe Cabeça de Madeira, em 1918. [Fig. 88]. Este exemplo
representa uma cabeça aparentemente humana.215 Referimos “aparentemente” pois
Hausmann também é adepto das combinações entre diferentes materiais e objetos e
acrescenta à cabeça de manequim uma régua, o interior de um relógio, um pedaço de
cartão com o número 22 escrito colado na testa, um rolo de fita no topo da cabeça, uma
pequena e baixa caixa retangular no lugar do ouvido, entre outros objetos e fragmentos,
como podemos observar, estabelecendo a ponte entre o orgânico e o industrial, um
“hibridismo das formas”.216
Como reflexo das ambições dadaístas e da arbitrariedade proposta por Duchamp, o artista
apropria-se de diferentes materiais e objetos e adapta-os numa combinação que propõe
uma imagem construída pelo “acaso”, o “sem sentido”. 217

211
HUELSENBECK, Richard “Manifesto Dadaista”, 1918. (apud Dada: art and anti-art, Londres: Thames
& Hudson. 2016. p. 106.)
212
Hugo Ball em 1916 inicia a produção e apresentação de Abstract poems no Cabaret Voltaire, como uma
iniciativa para a experimentação fonética enquanto expressão poética. Considerado por Richter como o
“clímax da carreira dadaísta de Ball”.– RICHTER, Hans – Op. Cit. P. 43
213
LUCIE-SMITH, Edward – Op. Cit. p. 70.
214
Vid. HAUSMANN, Raoul – Definition der foto-montageı in Cologne journal a bis z: organ der gruppe
progressive Kunstler (vol. 2, n. 16, Maio, 1931)
215
Esta tradução de uma “cabeça dadaísta” lembra-nos a abordagem da artista Sophie Taeuber que concebe
Dada-kopf, em 1920, uma cabeça dadaísta em madeira pintada, que se relaciona com o processo de
simplificação que havemos abordado no segundo capítulo.
216
De acordo com esta abordagem, poderemos considerar como resultado de uma apropriação de objetos
encontrados, uma vez que o artista recorre à integração destes elementos diversificados e pré-concebidos
como alternativas compositivas para a realização de uma cabeça mecânica. “Quanto mais a ciência
descobre, maior é o sentimento de pequenez do homem face ao que o rodeia e mais clara é a tendência que
lhe transforma o corpo, hibridizando-o como suporte biónico entre o orgânico e o industrial.” – TEIXEIRA,
José – Op. Cit. 2009. p. 328.
217
Não querendo esgotar a relação entre a autonomia do fragmento e a sua resolução formal que adapta
diferentes objetos, contudo, parece-nos que em Anjo da Anarquia, um busto concebido por Eileen Agar
(1899-1991), também a proposta dadaísta sobre o “acaso” e “sem sentido” se transporta como resultado das
combinações de diferentes materiais, que, neste caso, se “apoderam” do rosto e o cobrem. Vid AGAR,

111
No âmbito da apropriação como metodologia, será oportuno também referir o trabalho
desenvolvido pelo artista plástico alemão, Kurt Schwitters (1887-1948), que, segundo
218
Hans Richter, tem como objetivo “confundir” as fronteiras entre as artes, uma
observação referente à sua produção artística que mistura a prática pictórica, escultórica
e arquitetural. 219
Contudo, apesar de referirmos Schwitters, devemos de ter em atenção que fora rejeitado
por Huelsenbeck, líder do grupo alemão Dada.220 Para além desta adversidade, é na
proposta da apresentação de Merzbau221, por Schwitters, que poderemos considerar a
proximidade às provocações dadaístas e a contradição existente na compreensão
modernista de obra de arte e objeto.
Enquanto Merzbau, entende-se uma construção, que poderemos considerar como uma
instalação, dentro da sua habitação, que apresentou, inicialmente, em 1919, em
Hannover,222 com objetos encontrados e fragmentos.223
A esta agregação de diferentes objetos e materiais estabelece-se no espaço uma
construção arquitectural,224 onde a sua estrutura é composta por superfícies planas, que

Eileen – Angel of Anarchy. Gesso, tecido, conchas, bijuteria, pedras de diamante, penas e outros materiais.
57 x 46 x 31,7. 1936-40. Col. Tate Museum, Nova Iorque. Embora abordemos o surrealismo ainda neste
capítulo, parece-nos que a proposta de Salvador Dali com Retrospetiva de um busto de uma mulher, onde
o busto feminino, em cerâmica, é acompanhado por uma baguete de pão, espigas de milho, tecido, canetas
e uma pequena escultura no topo da cabeça, se torna como uma proposta que aborda o fragmento humano
com as características vanguardistas que integram objetos “estranhos”. Vid. DALI, Salvador –
Retrospective Bust of a Woman. Porcelana pintada, pão, milho, penas, tinta sobre papel, bijuteria, goblé,
areia e duas canetas. 73,9 x 69,2 x 32 cm. 1933. Col. Museum of Modern Art, Nova Iorque.
218
RICHTER, Hans – Op. Cit. p. 152.
219
Designada enquanto Merz, extraída da palavra Commerzbank, o artista recorre a esta “nova” palavra
para adaptar à suas publicações, pinturas, colagens, esculturas, demonstrando a liberdade criativa dos
artistas vanguardistas que aplicam conceitos estranhos à tradição escultórica e provocam a uma evolução
de uma nova linguagem artística - RICHTER, Hans – Op. Cit. pp. 137-154.
220
“He refused to admit every Tom, Dick or Harry to the club. In short, he did not like Schwitters” –
HAUSMANN, Raoul – This first rebuff… in Courrier Dada pp. 107-8. (apud RICHTER, Hans - Dada: art
and anti-art, Londres: Thames & Hudson. p.138.)
221
Merz é uma expressão utilizada por Schwitters para identificar a sua produção artística, sendo um nome
retirado do título de uma collage, que continha o fragmento do anúncio de Kommerz und Privabank, e -
bau, de sua tradução do alemão, construção. “O nome surgiu pela impossibilidade de lhes chamar Dada
(devido à recusa de Huelsenbeck) e resulta de um acaso, segundo o próprio artista: o recorte de um cartaz
de publicidade ao Kommerz-und Privatbank incluído numa das colagens (Mertzmalerei, de 1919) que se
encontrava na sua primeira exposição no Der Sturm.”- SARDO, Delfim – O exercício experimental da
Liberdade: dispositivos de arte no século XX. Lisboa: Orfeu Negro. 2017. pp. 147-148.
222
Schwitters apresentou várias Merz ao longo da sua vida. A primeira Merzbau foi apresentada na sua casa
em Hannover, chamada de Column ou Kathedrale des erotishen Elends (Catedral da Miséria Erótica).
Seguida de uma outra apresentação, após a primeira ter sido destruída em 1943, em Lysaker, Noruega, que
acabara também por ser destruída em 1951. – SEITZ, William – The Art of Assemblage. 2ª ed. Nova Iorque:
Museum of Modern Art. 1968. p. 50.
223
Em relação à casa de Schwitters, “estava tão cheia de objetos que não havia qualquer espaço para
pessoas.” – SEDLMAYR, Hans – Op. Cit. p. 83.
224
SEITZ, William – Ibem.

112
formam um jogo abstrato de formas, na geometria dos fragmentos por si compostos que
preenchem as paredes e tetos das divisões da casa. 225
Nesta expansão do termo assemblage, a amplitude do conceito de objeto-escultura revela-
se sob uma escala que ocupa o interior do seu espaço habitacional, propondo uma
concepção que acentua a construção como uma metodologia capaz de compreender
objetos encontrados ou ready-mades e que se estabelece segundo o fundamento
“irracional” de uma construção dentro de uma casa.226
No reconhecimento desta proposta, o uso do objeto propõe reflexões relativamente ao seu
sentido e à sua qualidade enquanto ferramenta para uma expansão e construção imagética.
Embora estabeleça um vínculo com o terceiro capítulo, onde abordámos a expressão
abstrata e o sentido construtivo de um objeto que se expande no espaço, no âmbito da
“irracionalidade” dadaísta, devemos de referir um outro exemplo de um objeto criado por
Man Ray intitulado Cadeau, de 1921. [Fig. 89]
De forma a manifestar uma visão particular da realidade funcional de um ferro de
engomar como presente, Man Ray provoca o observador ao colocar 14 pregos alinhados
sobre a superfície plana do ferro e, portanto, modificando o contexto do mesmo, num ato
de apropriação do conceito de presente.227
Com esta abordagem, reinventa e cria uma nova “ficção” para a perceção usual do objeto,
num tom irónico, afastando o observador da sua interpretação literal. Deste modo, o
significado presente vai de encontro com um sentido ameaçador - o atirar contra da
etimologia da palavra objeto - sendo o seu sentido invertido para uma conotação
negativa.228
Segundo esta perspetiva, o objeto torna-se portador de sentido, apresentando
paradoxalmente uma ameaça e uma oferenda. É a partir desta flexibilidade de
interpretações e alusões que o artista, dois anos após conceber Presente, constrói também

225
“O problema é que o projecto Merz possui uma ambição muito mais ampla: em rigor, não se trata de
construir uma Gesamtkunstwerk no sentido wagneriano, mas em realizar um projecto simbiótico entre a
arte e vida, entre arte e não-arte (tanto em sentido material quanto vivencial) em direcção ao que chama
“uma total visão Merz do mundo”.” – SARDO, Delfim – Op. Cit. p.148.
226
Esta construção estende-se por todas as divisões da habitação de Schwitters, sendo que, numa divisão,
do segundo andar, existem diferentes “buracos”, identificados pelos nomes dos seus colegas e amigos,
como Naum Gabo, Theo van Doesburg, Jacques Lissitzky ou Hans Richter. Estes buracos poderiam ter
objetos pessoais dos mesmos ou até “pedaços de cabelo, atacadores de sapatos, pedaços de gravata
(Doesburg) ou canetas”.- RICHTER, Hans - Op. Cit. p. 152.
227
“(…) as viewer of this gift, one is brought in touch with his or her body as a respondent to a threatening
subject.” - MILEAF, Janine – Op. Cit. p. 58.
228
Sobre esta característica, Hans Richter considera Man Ray enquanto um “inventor pessimista”, que
provoca o observador a pensamentos negativos. – RICHTER, Hans – Op. Cit. p. 96.

113
Objeto para ser destruído229, apropriando-se de um metrónomo, onde coloca uma
fotografia de um olho na extremidade do braço.230 [Fig. 90]
Considerações em torno da sua relação com um “tempo humano” revelam o caminho
metafórico, que não encerra um significado, mas expande a uma variedade de
interpretações.231 Este pensamento tratar-se-á, contudo, de uma especulação, mas propõe
relacionar com a produção de objetos, por parte do artista, à qual intitula de Cem objetos
da minha afeição, em 1961, onde expressa que os objetos para o autor não necessitam de
uma justificação clara ou motivo óbvio para existirem, mas um mistério que, confessa,
não querer assassinar.232

229
Este objeto artístico foi variadas vezes intitulado sob diferentes formas. Embora intitulado pelo próprio
artista, em 1932, é intitulado enquanto Object of Destruction; em 1933, Eil-métronome; Lost Object em
1945, Indestructible Object, em 1958; Last Object (1966) e Perpetual Motif, em 1972. MILEAF, Janine –
Op. Cit. p. 253.
230
“He has the attitude of life of one who waits rather than one who expects.” - RICHTER, Hans – Op. Cit.
p. 97.
231
Curioso será referir que o olho que encontramos na fotografia se trata do olho da sua assistente e amante,
Lee Miller, revelando uma relação com a figura a feminina que se assume como identidade do objeto. Esta
característica é traduzida por Janine Mileaf como “The eye is eroticized and disembodied, but as the same
time it assumes an active position through its movement with the metronome and its relentless
watchfulness.”. Vid. MILEAF, Janine - Lee Miller’s eye in Please touch: dada & surrealist objects after
the ready-made. Hannover, N.H.: Dartmouth College Press, 2010. pp. 67- 83.
232
O artista expressa que entre os domínios do jogo e da arte, o mistério é uma justificação suficiente para
a validade da obra, não sendo necessária uma justificação, ou solução para o mistério. Referindo-se ao
mesmo na terceira pessoa, escreve “(...) In assembling “Objects of My Affection,” the author indulged in
an activity parallel to his painting and photography, an activity which he hopes will elude criticism and
evaluation. These objects are a mystery to himself as much as they might to be others and he hopes they
will always remain so. That is their justification, if any is needed. ‘We all love a mystery, but must it
necessarily be murder?’”– RAY, Man - Prefácio de “Cem objetos da minha afeição” (apud SEITZ, William
– The Art of Assemblage. 2ª ed. Nova Iorque: Museum of Modern Art. 1968. pp. 48-49.)

114
Fig. 85 Fig. 86

Fig. 87

Figura 85– Marcel Duchamp. Bicycle Wheel. Roda de bicicleta. Terceira versão, depois da original se ter
perdido em 1913. Assemblage: roda de bicicleta de metal montada sobre um banco de madeira. 129,5 x
63,5 x 41,9 cm. 1951. The Museum of Modern Art, Nova Iorque. Fig. retirada de: MoMa - Bicycle
Wheel. [Em linha] [Consult. 16 Out. 2021]. Disponível em WWW:<URL:
https://www.moma.org/learn/moma_learning/marcel-duchamp-bicycle-wheel-new-york-1951-third-
version-after-lost-original-of-1913/>

Figura 86 - Marcel Duchamp. Porte Bouteille. Porta garrafas. Ferro galvanizado. 64 x 42 cm. 1914.
Centre Georges Pompidou, Paris. Fig. retirada de: Centre Georges Pompidou – Porte Bouteilles. [Em
linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL:
https://www.centrepompidou.fr/fr/ressources/oeuvre/z78XLNk>

Figura 87 – Marcel Duchamp. Fontaine. Faiança branca com camada de cerâmica e tinta. 38 x 48 x 63,5
cm. 1917. Centre Georges Pompidou, Paris. Fig. retirada de: Centre Georges Pompidou – Fontaine. [Em
linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL:
https://www.centrepompidou.fr/en/ressources/oeuvre/VgrNkuT>

115
Fig. 88

Fig. 89 Fig. 90

Figura 88 – Raoul Hausmann. Mechanischer Kopf (Tête mécanique).Cabeça mecânica. Cabeça de


manequim, telecópio, regua, cachimbo, chapa com número 2, objetos diversos. 32,5 x 21 x 20 cm. 1919.
Centre Georges Pompidou, Paris. Fig. retirada de: Centre Georges Pompidou – Mechanischer Kopf (Tête
mécanique). [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL:
https://www.centrepompidou.fr/fr/ressources/oeuvre/cGzAKG>

Figura 89 – Man Ray. Cadeau. Presente. Ferro de engomar com treze pregos com as cabeças soldadas na
base de ferro. 17,8 x 9,4 x 12,6 cm. Réplica da original de 1921. Tate Museum, Nova Iorque. Fig.
retirada de: Tate Museum – Cadeau. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL:
https://www.tate.org.uk/art/artworks/man-ray-cadeau-t07883>

Figura 90– Man Ray. Indestructible Object (or Object to be Destroyed). Objeto indestrutível (ou Objeto
para ser destruído). Réplica da original de 1923. Metrónomo com fotografia de olho no pêndulo. 22,5 x
11 x 11,6 cm. 1964. Coleção The Museum of Modern Art, Nova Iorque. Fig. retirada de: The Museum of
Modern Art – Indestructible Object (or Object to be Destroyed). [Em linha] [Consult. 3 Set. 2021].
Disponível em WWW:<URL:https://www.moma.org/collection/works/81209>

116
4.2. Surrealismo e objet trouvé (absurdo e improvável)

Partindo deste pensamento que encaminha a percepção do próprio objeto para um novo
universo de referências e interpretações, podemos considerar que esta consciência do
objeto como um recurso metafórico para afirmações ou demonstrações poéticas é também
associada a uma tendência vanguardista que começa a surgir nos anos 20, principalmente
em Paris, que assume a liberdade para novas estruturas de sentido e pensamentos e que
reflete as qualidades dadaístas como estímulos práticos e teóricos.
Embora mais tardio, o Surrealismo surge oficialmente, após a Primeira Guerra, em Paris,
em 1924, com o “Manifesto Surrealista” de André Breton e Philippe Soupault233. O
movimento surrealista sugere realidades alternativas de objetos, que refletem ligações
metafóricas como resultado dos pensamentos mais íntimos dos desejos do artista. Deste
modo, apropriando-se de convenções de pensamento, o Surrealismo procura uma
comunicação com o irracional e o ilógico, desorientando e reorientando deliberadamente
o consciente através do inconsciente.234
Um dos pontos de partida e interesse para os artistas surrealistas indagarem pelo
inconsciente deve-se à forte influência do campo da psicologia e psicanálise no contexto
artístico.235 As teorias freudianas, humanistas ou existencialistas apelam a objetos de
pensamento de uma realidade oculta, sendo a questão do tempo, que Man Ray expressa
com o seu Objeto para ser destruído, uma questão que também pertence ao vocabulário
surrealista e se torna um conceito explorado na sua atividade escultórica.
Neste sentido, podemos considerar a relação de Alberto Giacometti (1901-1966),
sobrinho do pintor dadaísta Augusto Giacometti, que reconhece as intenções dadaístas e
se destaca pela sua abordagem associada ao efeito psicológico e existencialista da
corrente surrealista.
Com referência ao tempo, o artista desenvolve, em 1932, Palácio às 4 da manhã, uma
escultura com uma estrutura aberta que se assemelha a uma maqueta. [Fig. 91] As figuras
abstratas que posiciona no meio do jogo estrutural de linhas, essencialmente geométrico
e espacial, permite-nos pensar no complexo compositivo de formas e objetos que se
encontram dentro de um palácio.

233
BRADLEY, Fiona - Op. Cit., p. 6.
234
Idem.
235
Os surrealistas destacam imaginários dos sonhos como um interesse para a visão do inconsciente. Em
1921, André Breton encontrou-se com Freud, psicanalista, e partilhou os seus interesses no domínio do
termo sonhos com intenções artísticas. – OESTERREICHER-MOLLWO, Marianne - Op. Cit. p. 16.

117
Apesar da estrutura aberta e aparentemente abstrata, o significado da obra é auxiliado
pelo título, que fornece o reconhecimento de um conceito ou ideia, sendo os objetos
cobertos com uma dimensão demonstrativa e o título resultado de uma função
comunicativa.
Esta escultura distancia-se da concepção e metáfora temporal de Man Ray e proporciona
uma composição enigmática, que não se torna antagonista de uma ideia preconcebida de
objeto, mas oferece, na abstração das formas, uma versatilidade interpretativa.
No seguimento desta proposta expressiva, com especial relação com o primitivismo como
interesse escultórico que propõe formas abstratas, desenvolve também, em 1933, Mesa
surrealista, um exemplo surrealista de uma mesa em bronze com quatro pé desiguais,
onde assenta o fragmento de uma mão, três objetos e o busto de uma figura feminina.
[Fig. 92]
Concebida em bronze, fora, portanto, modelada e moldada para a sua fundição. Deste
método, podemos evidenciar a alternativa expressiva de Giacometti que trabalha de
acordo com métodos clássicos, contudo, numa proposta estética modernista.
Desta concepção, são identificados dois fragmentos convencionais e um conjunto de
objetos sobre a “mesa”. Enquanto fragmentos figurativos entende-se que a totalidade do
corpo não é representada e que estes fragmentos convencionais são também eles
considerados como elementos de uma assemblage de objetos.
Partindo desta proposta, parece-nos que o termo assemblage e o método construtivo
avançam em simultâneo na apreciação escultórica deste objeto, que propõe uma
representação do género pictórico, com devida atenção à sua disposição convencional e
aos possíveis elementos que a integram.
Com relação análoga à convenção de natureza-morta, definida pela representação de
objetos inanimados, a apresentação deste conjunto escultórico, com objetos relacionados
236
a uma personagem, permite-nos considerar a sua proposta como uma resolução
vanguardista da acepção e concepção do género.
A partir desta análise, poderemos também considerar a proposta de Max Ernst (1891-
1976), considerado por Herbert Read como um dos principais escultores surrealistas, um
título ao qual também inclui Giacometti.237

236
Este exemplo remete-nos para o primeiro capítulo, onde propomos um ponto de vista relativamente ao
objeto enquanto atributo iconográfico e que acompanha a figura, de forma a auxiliar uma metáfora ou
narrativa.
237
READ, Herbert – Op. Cit. 1996. pp. 160-161.

118
Enquanto “construção” de formas abstratas ou geometrizadas no espaço, também neste
período, o artista concebe uma realização escultórica, aparentemente, alusiva ao género
natureza-morta.
Com Table Mise, ou conhecida como Table is set, este objeto escultórico transporta o
convencionalismo do género pictórico para uma representação de uma superfície plana
com uma seleção de objetos visualmente abstratos, que são colocados sobre a “mesa”.
[Fig. 93]
Estabelecendo, deste modo, relação análoga à temática da mesa surrealista, podemos
também considerar uma outra proposta por parte do artista alemão, com Le roi jouant
avec la reine, de 1944, que apresenta uma representação da parte superior de um corpo,
aparentemente humano, num tratamento simplificado da forma que a transforma numa
estreita resolução da figura. [Fig. 94]
Para além do elemento “humano”, esta obra surge-nos devido à sua relação com a mesa
e os objetos abstratos que estão representados sobre a superfície plana, que nos parecem
ser submetidos a uma representação semelhante com a proposta formal de Giacometti.
Neste sentido, podemos considerar que o Surrealismo desenvolve um conceito próprio de
objetos, sem um significado linear e apenas familiar pelo seu sentido alusivo e
metamorfósico das formas e ideias.238 Com esta construção de significados e sentidos,
formam-se, como apelida Breton, os objetos surrealistas239 que, de facto, se tornam
resultado de apropriações de objetos e materiais que funcionam como veículos de
pensamento. 240
De acordo com esta perspetiva, será relevante aproximarmo-nos do conceito estipulado
por Breton para entrarmos no complexo de significados e sentido que estas apropriações
podem suscitar. Conforme esta perspetiva, podemos considerar a obra de Meret

238
“La perturbation et la deformation sont ici recherchées pour eles-mêmes, étant admis toutefois qu’on ne
peut attendre d’elles que la rectification continue et vivante de la loi” (A perturbação e a distorção são aqui
procuradas por si mesmas, admitindo-se, porém, que não se pode esperar que continuem e uma retificação
vívida da lei.) - BRETON, André – “Crise de l’objet” (apud ROWELL, Margit. [et al.] - Qu’est-ce que la
sculpture moderne? Paris: Centre Georges Pompidou, 1986. p. 368.)
239
Breton publica no Cahiers d’art, em 1936, “Crise de l’objet”, referindo-se à reunião de objetos da
exposição surrealista de 1936: “os objetos assim reunidos têm a característica comum de que eles derivam”
e “conseguem diferir dos objetos ao nosso redor”, devido a uma “simples mutação de papéis”. – BRETON,
André “Crise de l’objet” (apud ROWELL, Margit. [et al.] - Qu’est-ce que la sculpture moderne? Paris:
Centre Georges Pompidou, 1986. p. 366.)
240
“(...) a finalidade é quebrar as barreiras, tanto físicas como psíquicas, entre o consciente e o inconsciente,
entre o mundo interior e o mundo exterior, e assim criar uma super-realidade onde o real e o irreal, a
meditação e a açção se encontram e misturam e dominam a totalidade da vida.” – READ, Herbert – Op.
Cit. 1996. p 174.

119
Oppenheim (1913-1985) que, em 1932, viaja para Paris, e rapidamente conhece o círculo
de artistas surrealistas, no qual pertencia André Bréton, Man Ray e Marcel Duchamp. 241
O potencial filosófico, metafórico e interpretativo do movimento surrealista torna-se um
ponto decisivo e apelativo para a sua produção artística e, em 1936, cria Object, uma
escultura de pequena dimensão com características formais semelhantes a um conjunto
de chá. [Fig. 95]
Composta por uma chávena, um pires e uma colher, distancia-se do Copo de Absinto de
Picasso (1914), no entanto, podemos observar que a apropriação é uma característica que
se manifesta em ambas as abordagens artísticas, propondo um ponto de vista sobre a
realização de objetos artísticos que se formam com a integração de objetos reais.
Partindo desta semelhança, será importante considerar que o conjunto é composto por
objetos distintos e autónomos que, ao mesmo tempo, funcionam como veículos de uma
mesma ideia.242
Para além desta construção de significados que os objetos concretizam, uma vez
revestidos com pelo de gazela, a interpretação de um simples conjunto de chá é
contraditória e a artista joga deliberadamente com a ambiguidade sensorial do pelo num
sentido de “desconfiança quando o observador se imagina a usá-la, levando a chávena aos
lábios”.243
Neste sentido, podemos considerar a abordagem do Presente de Man Ray como um objeto
“familiar” pelo seu significado paradoxal, sendo considerado como um objeto absurdo
devido à sua inutilidade e características físicas, comparativamente à sua realidade. 244
Embora se sinta uma certa “desconfiança” para com o objeto, ao mesmo tempo o artista
parece ser atraído pelas suas qualidades formais e metafóricas e a apropriação de sentidos

241
HELFENSTEIN, Josef - Meret Oppenheim: Beyond the teacup. Nova Iorque: Independent Curators
Incorporated, 1996. p. 24.
242
“El objeto sta desvinculado de su contexto designativo, esta enajenado, privado de su sentido, sacado de
su marco habitual, alienado de su utilidade.” (O objeto está separado do contexto designativo, é aleinado,
privado do seu significado, fora do seu contexto habitual, alienado da sua utilidade) - MARCHAN, Simón
– Op. Cit. p. 249.
243
BRADLEY, Fiona - Op. Cit. p. 44. Sobre este sentido de objeto, será oportuno referir a observação de
Marcel Jean: “The meaning of the word object in its modern signification distinguishes itself. Objet:
objectare in latin: “that which is thrown in front.” All that offers itself in view, affects the senses, Larousse
tells us. It is really rather, in contemporary language, that it affects more particularly the sense of touch.
Touch is the current means of exploration, of discovering objects: here is a spoon, a watch, a button, a shell,
some seeds; here is a box that, if you touch it, is an orchestra; that insect, if you don’t draw near, is perhaps
a leaf. Here is a beautiful, wild sculpture, colored in irisdescent red, it seems, but the hand discovering its
unexpected material in hesitantly touching a feather; it is besides, furthermore, a mask.” – JEAN, Marcel
“Arrivée de la belle époque” in Cahiers d’art 2:1-2, 1936, p. 60. (apud MILEAF, Janine – Please touch:
dada & surrealist objects after the ready-made. Hannover, N.H.: Dartmouth College Press, 2010. p. 138)
244
“Com a passagem do surrealismo produz-se uma crise fundamental do objeto” [Tradução Livre] -
CORTI, José - Dictionnaire abregé du surrealism, [s/ed.] 1969. p. 18.

120
e significados torna-se uma metodologia que os artistas surrealistas praticam de bom
grado.
No mesmo ano da concepção de Pequeno Almoço com Pelo,245 Salvador Dalí (1904-
1989), com vasta produção pictórica, motiva-se no fenómeno dos objetos surrealistas,
aos quais Picasso246 e Duchamp também pertencem, e concebe a obra Telefone de
Lagosta. 247[Fig. 96]
Enquanto assemblage e apropriação de objetos e significados, o corpo do auscultador
toma a formalidade de um crustáceo, em plástico, que mantém o seu cromatismo, tal como
o telefone fixo. Esta alternativa à representação do auscultador sugere a leitura de um
objeto utilitário fora do comum, concretizando, portanto, a surrealidade proposta pelos
objetos surrealistas, numa justaposição de significados. 248
A partir desta combinação de sentidos, Bréton, sobre a exposição internacional que reuniu
grande parte dos objetos surrealistas, refere, em 1936, qualquer coisa que possa estar
errada com eles é ilusória. Este pensamento refere-se a uma liberdade criativa de
combinação e apropriação que se demonstra como fascinante e ambígua relação
relativamente ao sentido de proibição e repetição avassaladora dos temas e do sentido
dos objetos.249
Deste modo, podemos dizer que os objetos surrealistas enfatizam o potencial narrativo
dos elementos formais da obra, que são desviados para transmitir as ambições dos artistas
ou concretizar uma imagem “surreal” dos objetos reais.

245
Título atribuído à obra de Meret Oppenheim, após a sua apresentação a público na exposição dedicada
a objetos surrealistas, que decorreu no mesmo ano da sua concepção, em Paris, organizada por Andre
Bréton. - HELFENSTEIN, Josef - Op. Cit. p. 26.
246
Uma outra abordagem de Picasso, possível de aplicar a este método de estabelecer novas formas com
novos meios, pode ser identificada com Tête de Taureau, de 1943, onde recorre a objetos relacionados com
os primeiros ready-mades de Duchamp, como um selim de uma bicicleta e um guiador. Neste âmbito,
poderemos também indicar a proposta de Le guenon et son petit, (1951) onde se torna possível identificar
que imagem de um babuíno resulta de uma apropriação.de um carro de brincar para figurar o rosto do
animal.
247
Também em 1936, László Moholy-Nagy produz um filme intitulado Life of the Lobsters, onde o
crustáceo é o sujeito principal, submetido a uma dimensão simbólica, metafórica e irónica. O autor “brinca”
com o seu significado enquanto alimento (aparecendo um intertítulo com a palavra “MENU” no meio de
uma sequência).
248
Relativamente ao termo objetos surrealistas, Dalí partilha a sua definição enquanto “objeto irracional,
o objeto com função simbólica” que toma a sua função de “materializar, num modo fetichista, com um
máximo de realidade tangível, ideias e fantasias havendo um caracter delirante.” – DALÍ, Salvador “The
Secret Life of Salvador Dalí”, 1942, p. 312. (apud SEITZ, William – The Art of Assemblage. 2ª ed. Nova
Iorque: Museum of Modern Art. 1968. p. 59.)
249
BRETON, André, “Crise de l’objet”, Cahiers d’art, 1936, pp. 21-26 (apud ROWELL, Margit [et al] -
Qu’est que c’est la sculpture moderne? Paris: Centre Georges Pompidou, 1986. p.367.)

121
Dentro da produção artística de Joan Miró (1893-1983), poderemos apontar esta
estratégia experimental que se apropria de conceitos e objetos para fornecer outra
dimensão percetiva sobre as suas formalidades e simbologias.250
Com efeito, em L’objet du couchant (1935-36) é combinado um tronco de madeira com
uma mola de ferro, uma corrente, corda e uma manilha. [Fig. 97] Uma característica que
nos parece evidente é a escolha pictórica que se transporta da sua produção artística,
iniciada na pintura, e se aplica na escultura. 251
Para além da dimensão cromática, que cobre o tronco a vermelho, podemos reparar que
numa das faces o artista opta por não a pintar e desenhar um aparente “olho negro”, que
nos pode remeter para outras evocações e simbolismos associados ao título – o
crespúsculo/pôr-do-sol. 252
Dentro deste contexto, também apresentado na exposição surrealista, devemos de
considerar o objeto surrealista concebido por Joan Miró, em 1936, um ano prolifero para
a produção de objetos surrealistas.
Object resulta da combinação de diferentes objetos encontrados que funcionam como
elementos compositivos e estruturais. [Fig. 98] Dentre os objetos utilizados, podemos
destacar um papagaio falso que se encontra no topo, um mapa na base, um pêndulo, e
várias peças esculpidas em madeira que auxiliam a leitura do eixo vertical da escultura.
Esta obra transmite a sensação de “sentido de proibição” que Breton refere, traduzindo-
se, no que poderemos chamar de “liberdade compositiva”, uma vez que a combinação
criativa dos objetos sugere que não há limites para as possibilidades de significados
gerados.
Sobre a abrangência possível na interpretação dos objetos surrealistas, a transformação
formal também pode ser identificada, num exemplo apelidado de Objet Mobile

250
Segundo Herbert Read, o Surrealismo ou “super-realismo”, como chama, “provoca as reações mais
amargas, não só nos círculos académicos (que geralmente se contentam em ignorá-lo como absurdo), mas
mesmo entre aqueles pintores e críticos normalmente aceites como modernistas.” – READ, Herbert. - O
significado da arte. 2º ed. Lisboa: Ulisseia 1969. p. 170.
251
Será relevante considerar as collages que produz no final dos anos 20, consideradas por Herbert Read
como “construções”, onde recorre a diferentes objetos para combinar numa superfície plana. Um resultado
artístico mais próximo da sua aceção enquanto “relevos aliados à pintura”. – READ, Herbert – Op. Cit.
1996. p. 162. Com Portrait d’une danseuse (1928), notamos a contribuição experimental que o Modernismo
oferece, tendo o artista combinado um alfinete e uma pena sobre papel.
252
Associada a este pormenor alusivo à escuridão, considerando a tradução do título como um objeto do
pôr do sol, será curioso referir o seu simbolismo: “símbolo estreitamente ligado à ideia do Ocidente, a
direção onde o Sol se põe, se apaga e morre. Exprime um fim de um ciclo e, consequentemente, a preparação
duma renovação. (...) O crepúsculo reveste.se, também para si mesmo, e simboliza, da beleza nostálgica
dum declínio e do passado. É a imagem e a hora da melancolia e da nostalgia.” CHEVALIER, Jean,
GHEERBRANT, Alain – Op. Cit. p.239.

122
recommandé aux familles, (1936) construído por Max Ernst com formas simples em
madeira, que nos sugerem uma leitura semelhante ao monolitismo da figura humana,
auxiliado pelo objet trouvé que é colocado no topo da escultura, como elemento que se
encontra na parte superior da aparente “cabeça” que se assemelha ao cabelo. [Fig. 99]
Com esta leitura, poderemos considerar uma abstração das formas identificáveis,
transmitindo assim a qualidade da flexibilidade interpretativa que é proposta com as
alusões que podem surgir. Contudo, convém referir a construção do objeto-escultura que
é proposto pela utilização de ripas finas, que formam um objeto geométrico e
simultaneamente o “corpo” que se ergue, afetando a leitura do objeto abstrato para uma
alusão com o corpo e a características humanas.
Tirando proveito desta referência à figura, será relevante considerar a abordagem de Dalí,
executada anteriormente a 1936, com Objet scatologique à fonctionnement symbolique
(Le Soulier de Gala), que, como o título indica, funciona como um objeto escatológico
para o funcionamento simbólico253, integrando um sapato de salto alto vermelho, que
pertencera à sua mulher, Gala Dalí.254 [Fig. 100]
Segundo o título, podemos considerar que, embora concebido anteriormente a 1936,
funciona conforme as diretrizes propostas por Bréton para o significado de objetos
surrealistas e que se concretiza como uma assemblage sem qualquer intenção
representativa, integrando o sapato de Gala, fotografias, velas e uma estrutura de madeira
que nos permite comparar e relacionar com a proposta de Miró, devido à sua alternativa
de um elemento vertical, no mesmo material.
Nesta trajetória, será importante reter a ideia surrealista sobre as metodologias
vanguardistas que propõem uma resolução das intenções artísticas com recurso a
diferentes significados e objetos para a composição da totalidade da obra. Com sentido
“absurdo” e “improvável”, constituem, no entanto, significante característica para uma
reformulação dos significados distintos dos materiais utilizados e uma metamorfose dos
seus conceitos, por meio de operações aleatórias, que se desenvolvem como metodologia
do “acaso”.

253
“Os objetos surrealistas carregam uma alegoria que justifica a sua definição como “objeto à
funcionalidade simbólica”. – ROWELL, Margit “Objets ludiques et oniriques” in Qu’est-ce que la
sculpture moderne?. Paris: Centre Georges Pompidou, 1986. p. 165.
254
““Quem está familiarizado com os escritos dos psicanalistas lembrar-se-á que o sapato é um dos
símbolos sexuais mais frequentes que se diz ocorrerem em sonhos; e a maioria dos motivos de Dali
reconhecem-se facilmente como símbolos desta espécie.” – READ, Herbert. – Op. Cit. 1996. p. 173.

123
Fig. 91 Fig. 92

Fig. 93 Fig. 94

Figura 91 – Alberto Giacometti. Palais à à quatre heures du matin. Palácio às quatro horas da manhã.
Madeira, vidro, arame e fio. 63, 5 x 71,8 x 40 cm. 1932. The Museum of Modern Art, Nova Iorque. Fig.
retirada de: The Museum of Modern Art – Object. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em
WWW:<URL:https://www.moma.org/collection/works/80928>

Figura 92– Alberto Giacometti. Table. Mesa surrealista. Bronze. 143 x 103 x 43 cm. 1933. Centre
Georges Pompidou, Paris. Fig. retirada de: Centre Georges Pompidou – Table. [Em linha] [Consult. 3 Set.
2021]. Disponivel em WWW:<URL:https://www.centrepompidou.fr/es/ressources/oeuvre/czAykjn>

Figura 93 – Max Ernst. Table mise. A mesa está posta. Bronze com patine castanha. 29,8 x 54,6 cm.
1954. Art Basel, Basel. Fig. retirada de: Art Basel – Table Mise. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021]
Disponível em WWW:<URL:https://www.artbasel.com/catalog/artwork/40431/Max-Ernst-Table-Mise>

Figura 94 - Max Ernst. Le roi jouant avec la reine. O rei jogando com a rainha. Bronze. 97,8 x 83,8 x
52,1 cm. 1944. Fundido em 1954. The Museum of Modern Art, Nova Iorque. Fig. retirada de: The
Museum of Modern Art – The King playing with the Queen (Le roi jouant avec la reine). [Em linha]
[Consult. 3 Set. 2021]. Disponível em WWW:<URL:https://www.moma.org/collection/works/81359>

124
Fig. 95

Fig. 96

Figura 95 – Meret Oppenheim. Object. Objeto. Pêlo de gazela, chávena, pires, colher. Chávena: 10,9 cm
diâmetro. Pires: 23,7 cm diâmetro. Colher: 20,2 comprimento. Altura total: 7,3 cm. 1936. The Museum
of Modern Art, Nova Iorque. Fig. retirada de: The Museum of Modern Art – Object. [Em linha] [Consult.
9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL: https://www.moma.org/collection/works/80997>

Figura 96– Salvador Dali. Téléphone - Homard. Telefone de lagosta. Ferro, plástico, borracha, resina e
papel. 17,8 x 33 x 17,8 cm. 1936. The Tate Museum, Londres. Fig. retirada de: The Tate Museum –
Lobster Telephone. [Em linha] [Consult. 3 Set. 2021].Disponivel em
WWW:<URL:https://www.tate.org.uk/art/artworks/dali-lobster-telephone-t03257>

125
Fig. 97 Fig. 98

Fig. 99 Fig. 100

Figura 97 – Joan Miró. L’objet du couchant. O objeto do pôr do sol. Tronco de alfarrobeira pintado, mola de
caixa, queimador de gás, corrente, manilha e barbante. 68 x 44 x 26 cm. 1935-36. Centre Georges Pompidou,
Paris. Fig. retirada de: Centre Georges Pompidou – L’objet du couchant.[Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021]
Disponível em WWW:<URL:https://www.centrepompidou.fr/en/ressources/oeuvre/4yjWy0i>

Figura 98 – Joan Miró. Object. Objeto Pássaro embalsamado, veludo, seda, moldura de madeira, peixe de
celuloide, mapa. 81 x 30,1 x 26 cm. 1936.The Museum of Modern Art, Nova Iorque. Fig. retirada de: The Tate
Museum – Object. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021] Disponível em WWW:<URL:
https://www.moma.org/collection/works/81915>

Figura 99 - Salvador Dali. Objet scatologique à fonctionnement symbolique (Le Soulier de Gala). Objeto
escatológico para o funcionamento simbólico (O sapato de Gala). Sapato, madeira arame, velas e objetos
diversos. 49 x 28 x 9 cm. 1931. Centre Georges Pompidou, Paris. Fig. retirada de: Centre Georges Pompidou –
Objet scatologique à fonctionnement symbolique (Le Soulier de Gala) [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021]
Disponível em WWW:<URL:https://www.centrepompidou.fr/en/ressources/oeuvre/cxb4b5>

Figura 100 - Max Ersnt. Objet Mobile recommandé aux familes. Objeto Mobile recomendado às famílias.
Madeira e cânhamo. 98,5 x 57,5 x 46 cm. 1936. La Galleria Nazionale, Roma. Fig. retirada de: Google Arts
and Culture -Objet Mobile recommandé aux familles. [Em linha] [Consult. 3 Set. 2021]. Disponível em
WWW:<URL:https://artsandculture.google.com/asset/objet-mobile-recommandé-aux-familles-max-
ernst/qgF3KaE5UPtI3w>

126
4.2.1. O Surrealismo tardio em Portugal

No âmbito da combinação “surrealista” de objetos, torna-se clara a sua tendência criativa


na apropriação de ideias e objetos para uma experimentação formal e sobretudo
conceptual.
Embora estes exemplos internacionais nos transmitam a versatilidade e compreensão dos
artistas vanguardistas com a experimentação formal e a liberdade de significados, será
importante referir também a atividade surrealista que acontece em Portugal, embora as
suas manifestações sejam tardias.
Apesar de a representação figurativa vigorar na tradição escultórica nacional, em 1940,
ocorre a primeira exposição surrealista em Portugal.255 Esta exposição, para além da sua
amplitude pictórica, permite-nos pensar que durante este período no panorama artístico
nacional os artistas começam a subscrever às influências internacionais que eram trazidas
pelos colegas que vinham de Paris e que conviviam com outros artistas europeus.
O movimento surrealista em Portugal, com maior impacto na literatura e na prática
pictórica, com colagens e cadáveres esquisitos, apresenta-se também influente na
fotografia, podendo considerar o trabalho de Fernando Lemos (1926-2019), no âmbito
desta investigação, devido à seu caráter “objetual”, como imagens que tomam o seu
sujeito principal o objeto.
Com teatro de atelier, 1950, [Fig. 101] concebe uma série de fotografias de uma
encenação criada pelo próprio autor, com um boneco de madeira articulado, como sujeito
principal, que é colocado em cena com outros objetos. A fotografia, no entanto, não é
uma extensão semântica da prática escultórica, mas sim uma ramificação artística que se
cruza com as intenções do próprio artista e não devemos de tomar mais do nosso espaço
numa investigação sobre a modelação lumínica desta categoria artística, mas absorver a
abordagem de um objeto que se torna sujeito e é colocado deliberadamente em posições
alusivas, com outros objetos significativos.
Com relação à tendência surrealista, podemos também considerar a proposta de
Marcelino Vespeira (1925-2002), uma figura influente nos movimentos modernistas
nacionais.256

255
“António. Pedro, António Dacosta e Pamela Boden (escultora inglesa) expõem em Novembro nos salões
Repe, acontecimento que pode ser considerado como a primeira exposição surrealizante” – MARINHO,
Maria de Fátima – O surrealismo em Portugal. Lisboa: Imp. Nacional da Casa da Moeda, 1987. p. 18.
256
Marcelino Vespeira, desde os anos 40, participa ativamente em encontros artísticos nacionais de forma
a transformar a sociedade artística, tendo feito parte do movimento Surrealista português, fundado em 1947,
juntamente com António Pedro, António Dacosta, Mário Cesariny, Pedro Oom, Alexandre O’Neill, José-

127
Vespeira explora a sua produção artística na pintura, mas também realiza algumas obras
escultóricas. Em 1952, apresenta na Casa Jalco, em Lisboa, a sua primeira exposição, em
conjunto com Fernando Azevedo e Fernando Lemos. Nesta exposição toma-se clara a
vasta produção de Vespeira, tendo apresentado um número considerável de obras, entre
elas pinturas a óleo, guache, desenhos, gravuras, colagens e dois manequins. Destes dois
manequins, um deles não sobreviveu ao tempo, sendo que nos debruçaremos sobre O
menino Imperativo (1952).
Esta escultura-se trata-se de um manequim masculino, erguido e colocado sobre uma
escadaria preta de três degraus, coberta com veludo vermelho. [Fig. 102] Composta por
um manequim masculino, um búzio, velas e cera, aproxima-se da concepção surrealista
que combina materiais e oferece uma liberdade poética e metafórica. A presença das velas
brancas sobre os ombros da figura, a cera preta e branca que escorre no seu tronco, o
búzio no lugar da cabeça ou as botas de biqueira redonda pretas, que tem nos pés, sugerem
interpretações de uma expressão plástica onde a representação figurativa não é celebrada,
mas dispositivo simbólico da metáfora artística com a adição de objetos encontrados.
Sabe-se que o título fora dado posteriormente257, mas podemos notar que se estabelece
uma relação poética com a obra, ao intitular a figura masculina, erguida sobre uma
escadaria, como imperativo. Ao ser colocada num nível acima do chão, com um “plinto
alternativo”, a figura é elevada e a sua apresentação estabelece relação com a escultura
oitocentista, da figura sobre um pedestal, elevada e com conotação imperial e oficial.
Para além do carácter metafórico e analogias possíveis, de acordo com o ponto de vista
relativo aos objetos encontrados e às suas possibilidades formais e alusivas, a expressão
plástica surrealista é também evidente, no mesmo período, pelo artista Artur Cruzeiro
Seixas (1920-2020), que, embora tenha dedicado maior parte da sua prática artística à
pintura, desenho e literatura, também se dedicou à criação de objetos que se aproximam
das orientações internacionais.
Ao longo dos anos 50 e 60, concebe objetos surrealistas, direcionando o seu olhar para a
expressão dos fragmentos e dos objetos encontrados. A vertente surrealista influencia-o
a desenvolver um olhar onírico e, em 1951, concebe O opressor, uma escultura de
pequenas dimensões composta por “objetos encontrados” sobre um paralelepípedo

Augusto França, entre outros. – SANTOS, David – Vespeira. Lisboa: Instituto Português dos Museus, 2000.
p. 22.
257
SANTOS, David – Op. Cit. 2000. p. 34.

128
branco, que funciona como plinto, com uma chapa onde se encontra gravado L’opresseur,
colocada numa das faces laterais. [Fig. 103]
Sobre este “plinto” está colocada uma bola de canhão, com uma torneira e uma pena
escura coladas à bola. A estranha combinação destes objetos, que Seixas seleciona,
invocam a leitura de uma morfologia sintética de um opressor que se encontra sobre um
plinto, enfatizando a assim a sua superioridade.
Esta expressão plástica vai de encontro com a metáfora imperativa de Vespeira, que
associa também a elevação do objeto surrealista para demonstrar um conceito ou ideia.
No âmbito da sua produção de objetos, podemos também reconhecer semelhanças com a
produção surrealista de Meret Oppenheim, sendo possível estabelecer relação com os
objetos alusivos que ambos concebem, embora distantes geograficamente e
cronologicamente.
Mão (1960) concebida por Seixas, e Luvas de pelo com dedos de madeira, concebidas em
1936, pela artista. [Fig. 104] Para além desta aparente semelhança, a Mão, é composta
por uma luva de cabedal e pontas de aparo que simulam as unhas, que contrariamente às
Luvas, se demonstra como objeto único e não se socorre do seu par para a construção de
um novo significado de mão. [Fig. 105]
Partindo da proposta da artista suíça, podemos notar uma representação de dedos em
madeira, com as unhas pintadas a vermelho, e também a realização textural, do objeto-
luva, uma provocação sensorial que é evidente também em Pequeno almoço com pêlo.
Contudo, em contraste, Seixas recorre a um objeto reconhecido pela sua formalidade
semelhante à de uma mão – a luva - e socorre-se dele como ready-made, integrando
também as pontas de aparo, enquanto objetos encontrados, como elemento alusivo às
unhas dos dedos.
Esta comparação permite-nos considerar a crescente ambição artística em integrar o
objeto no contexto artístico e, como último exemplo sobre a expressão surrealista em
Portugal, à semelhança com estas propostas relacionadas com a mão, será importante
referir a proposta de António Lagoa Henriques (1923-2009) que também desenvolve uma
apresentação de uma mão, aproximada à tendência surrealista, de apropriação, simbiose
e metamorfose das ideias e objetos.
Para infelicidade do artista, um incêndio deflagra o seu espaço de trabalho e maior parte
das suas obras é dada como destruída. Para além deste desastre, alguns objetos são
recuperados e dentre os poucos que sobreviveram, podemos destacar um exemplo

129
executado, na década de 70, sem título, composto por uma cadeira de madeira e uma luva
de borracha, contendo no seu interior uma garrafa de vidro. [Fig. 106]
A formalidade da cadeira é sugerida pela sua estrutura, não tendo assento, sendo que no
centro da cadeira é onde encontramos a luva e a garrafa. A par desta essência
estruturalista, os objetos são colocados como elementos aditivos, constituindo assim o
“núcleo” da cadeira, uma vez que se encontram no seu centro.
Embora surja uma divergência nos termos comparativos propostos, devemos de reter a
relação ambígua de significados que o próprio objeto-luva favorece e destacar a
versatilidade inesgotável de combinações e apropriações de fragmentos e objetos que
estabelecem um vínculo criativo com a colagem como método livre e espontâneo, que se
desenvolve na escultura como uma assemblage de objetos encontrados ou ready-mades.
Partindo desta apresentação combinatória é proposta uma correspondência às sugestões
plásticas que o Dadaísmo e o Surrealismo provocam. Deste modo, podemos considerar
que o sentido absurdo e improvável é também traduzido na “surrealidade” portuguesa,
sendo possíveis leituras metafóricas, “irreais” e alusivas a outros significados.258

258
O tema mão também nos parece evidente na abordagem de José Aurélio para uma escultura pública
dedicada ao largo em frente ao Castelo de Óbidos, inaugurado em 1966. Este exemplo surge-nos devido à
sua concepção em betão, um material incomum, que posteriormente é pintado de branco. Para além desta
resolução material, a Mão de José Aurélio torna-se um “monumento não-convencional” pelo seu caracter
onírico, estabelecendo relação entre o fragmento humano – uma mão que se encontra aberta, virada para o
céu – e a proposta alusiva à imagem de uma pomba, simbolizando a liberdade.

130
Fig. 101 Fig. 102

Figura 101 – Fernando Lemos,. Teatro de Atelier. Série de provas de fotografia em gelatina e sal de
prata, impressões da época. 10,7 x 8,3 cm. 1950. Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado,
Lisboa. Fig. retirada de: Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado - Teatro de atelier. [Em
linha] [Consult. 16 Out. 2021]. Disponível em
WWW:<URL:http://www.museuartecontemporanea.gov.pt/pt/pecas/ver/317/artist>

Figura 102 – André Vespeira. O menino Imperativo. Manequim, buzio e cera. 130 cm. 1952. Fundação
Calouste Gulbnekian/CAMJAP, Lisboa. Fig. retirada de: SANTOS, David - Vespeira. Lisboa: Museu do
Chiado, 2000. p.111.

131
Fig. 103 Fig. 104

Fig. 105

Fig. 106

Figura 103 – Artur Cruzeiro Seixas, O opressor. Torneira, madeira, bola de canhão, pena, colagem, tinta acrílica, vitrine de
vidro. 30,9 x 26,9 x 26,9 cm. 1951. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. Fig. retirada de: Fundação Calouste Gulbenkian
– L’oppresseur. [Em linha] [Consult. 16 Out. 2021]. Disponível em
WWW:<URL:https://gulbenkian.pt/cam/works_cam/loppresseur/>

Figura 104 – Artur Cruzeiro Seixas. Mão. Cabedal, vidro e pontas de aparo. 114 x 16 x 113 cm (c/ caixa). 1960. FCG -
Centro de Arte Moderna, Lisboa. Fig. retirada de: Centro de Arte Moderna - Mão. [Em linha] [Consult. 3 Set. 2021
Disponível em WWW:<URL:https://gulbenkian.pt/cam/works_cam/mao-154760/>

Figura 105 - Meret Oppenheim.Fur Gloves with Wodden Fingers. Luvas de pelo com dedos de madeira. Luvas de pelo,
dedos de maderia e verniz vermelho. 5 x 21 x 10 cm. 1936. Fig. retirada de; KATZ, Brigit. Looking beyond surrealista
artista Meret Oppenheim’s Famous Furry Teacup. In “Smart News”. Smithsonian Magazine [s.l]: Smithsonian Magazine.
21 de Outubro, 2021. [Em linha] [Consult. 2 Jan. 2022]. Disponível em
WWW:<URL:https://www.smithsonianmag.com/smart-news/looking-beyond-surrealist-meret-oppenheims-famous-furry-
tea-cup-180978919/>

Figura 106 - Lagoa Henriques. Sem título. Vidro, borracha, madeira. 30 x 27 x 54. Anos 70..Fig. Retirada de: Lagoa
Henriques: escultura e desenho, Montijo: Galeria Municipal do Montijo. 2004. s/p.

132
4.3. Biomorfismo e Informalidade

4.3.1. Objetos biomórficos

No culminar da introdução de novos métodos e conceitos para a práxis escultórica, as


propostas possíveis de identificar enquanto “objetos” tornam-se, segundo a teoria
heideggeriana, “coisas”. Sobre esta definição, poderemos considerar como consequência
das abordagens vanguardistas, como o Dadaísmo e o Surrealismo, que rompem com a
tradição escultórica e propõem uma expressão artística essencialmente simbólica e
enigmática, transformando o universo dos objetos num jogo de associações, alusões e
significados.
Com relação a esta ambiguidade de sentidos e formas, que é proposta com a tendência
surrealista, poderemos apontar as propostas do artista suíço, Alberto Giacometti (1901-
1966) que assume inicialmente uma expressão associada ao primitivismo e se desenvolve
sobretudo, numa formalidade abstrata.
Relativamente ao mundo “fantástico” que é proposto pelo Surrealismo, nas abordagens
de Giacometti, como vimos com o exemplo do Palácio às 4 horas da manhã ou Mesa
Surrealista, as “ficções” propostas desenrolam-se no campo da imaginação, fantasia e
formas oníricas.
Desta essência expressiva, podemos considerar que o artista suíço tira partido da
multiplicidade de leituras possíveis a partir das formas ambíguas e, em 1931, concebe
Disagreeable Object, uma escultura de pequena escala, em madeira. [Fig. 107]
Esta figura alongada que, numa área da sua cauda tem três bicos, e na ponta,
presumidamente, a sua cabeça, tem duas cavidades paralelas, sugere a leitura de um
objeto que não habita o mundo real. Sem definição concreta ou analogia com o mundo
real, o objeto de Giacometti culmina, deste modo, num exercício em torno da formalidade
de um objeto irreconhecível. 259
A representação de um objeto que não se realiza no mundo real, segundo este ponto de
vista, adquire dimensões que evidenciam caminhos possíveis no contexto da fantasia, um
traço característico das intenções surrealistas. De acordo com este reconhecimento de um
objeto incomum, Giacometti desenvolve a imagem de uma forma estranha que não se

259
Margit Rowell, sobre a atividade surrealista, refere a “materialização de uma pulsão irracional fugaz
interdita na prática escultórica com acepção tradicional“, que considera enquanto “experiência irracional”
– ROWELL, Margit “Objets ludiques et oniriques” in ” in Qu’est-ce que la sculpture moderne?. Paris:
Centre Georges Pompidou, 1986. p. 164.

133
reconhece na realidade humana, fazendo associação ao sentido enigmático do impulso
surrealista. 260
A estas expressões que empregam o primitivismo como objeto estético e permitem
alusões formais, será oportuno referir a particular resolução de formas orgânicas de Jean
Arp (1886-1966), que nos transportam para um universo ambíguo, como Cabeça com três
objetos irritantes, de 1930. [Fig. 108]
Nesta combinação de formas abstratas, identificam-se três objetos “irritantes” sobre uma
superfície achatada, que funciona como base com resolução volumétrica, sem definição
aparente ou comparação possível com o mundo real.
A interpretação figurativa ou a sugestão formal indicativa de um corpo humano é reduzida
a um extremo abstracionista, não podendo identificar qualquer referência a uma cabeça,
mas a três objetos que se encontram sobre uma superfície. Partindo desta leitura, com
relação ao significado sugerido pelo título, este exemplo leva-nos a considerações sobre
a ambiguidade de sentidos e formas devido ao caracter biomórfico dos volumes e formas
representadas.
Também em To be lost in the woods, de 1932, esta formalidade mantém-se como
característica da sua abordagem escultórica e sugere um gosto particular pelas formas,
que é demonstrado, posteriormente, com Human concretion, em 1935, uma tradução da
concretização humana numa só forma, aparentemente orgânica, devido à suas curvas e
contra curvas, no entanto, distante de qualquer semelhança com o corpo humano.261
Possivelmente esta designação proposta por Arp - “concretion” - terá sido motivada pela
proposta do artista Theo van Doesburg, que, em 1930, propunha a expressão “arte
concreta” como mais adequada para descrever a arte abstrata. Contudo, não nos devemos
limitar a definir quem terá sido o pioneiro deste conceito, mas compreender a ambição
artística que procura novas formas de se expressar a partir da linguagem plástica.
Aliás, ainda em torno das aceções artísticas relativas a esta formalidade, será oportuno
referir a expressão que o teórico, Herbert Read, utiliza para esta transformação,

260
Embora tenhamos referido que não se apresente como um objeto real, contudo, alude a um objeto fálico,
devido à sua formalidade alongada, representativa do órgão masculino. Será oportuno, partindo desta
leitura, referir que a sexualidade e o erotismo são dois temas representativos das abordagens surrealistas e
dos desejos mais íntimos dos artistas.
261
Sobre o termo “concretion”, o autor reconhece-o enquanto alternativa à palavra abstrato,
fundamentando-o enquanto um processo transformativo das formas. “Thus a human concretion was not
only an abstraction based on human forms but also a distillation in sculpture of life itself” – ARNASON,
H.H – Op. Cit. 274.

134
intitulando-a de vitalidade orgânica.262 Partindo desta característica, poderemos referir
Henry Moore (1898-1986), que desenvolve a sua produção artística de acordo com a ideia
“vitalista”, partilhada por Read, concretizando figuras que se afastam de qualquer relação
com a doutrina clássica e promovendo a qualidade abstrata em sugerir formas.
À semelhança com Arp, concretiza esculturas com um sentido estilístico que reconfigura
e transforma a forma humana. Enquanto figuras reclinadas, a sua série Reclining figure,
de 1938, transmite esta consciência das transformações formais, com a particularidade de
sugerir figuras nas formas abstratas.
Embora as formas abstratas sejam sugestivas para uma alusão à sua dimensão biomórfica,
as leituras possíveis da expressividade e plasticidade abstracionista permitem-nos
considerar não só a sua semelhança com as formas orgânicas, como também a
ambiguidade das suas formas biomórficas como uma característica que se começa a
tornar evidente nas propostas vanguardistas.
Apesar da abstração com formas orgânicas, o caracter biomórfico que se desenvolve
como manifestação de imagens e conceitos com condições formais “irreais”, evoca as
propostas desenvolvidas pelo artista polaco, Hans Bellmer (1902-1975).
Inspirado por “bonecas” enquanto temática para a sua investigação e experimentação
formal, realiza uma série de fotografias com bonecas “mutiladas”, sem membros, com a
representação exagerada dos seus volumes e acentuando, sobretudo, os seus órgãos.
Por outro lado, estas propostas são também interesse escultórico para o artista e Bellmer
consagra-se como produtor de objetos surrealistas, em 1936, com uma série de bonecas,
intitulada La Poupée (A Boneca). [Fig. 109]
Com a sua produção obsessiva, Bellmer participa na transformação das formas
convencionais e altera-as, aumenta os volumes, inflama o corpo, e brinca com a sua
qualidade formal provocativa, resultando numa apresentação “disforme” do objeto
representado.
Devido às suas características físicas exageradas estabelece uma fisicalidade
desapropriada para o conceito genérico de boneca, sendo considerada uma figura do
universo surrealista pelo distanciamento formal e subversão do tema.263

262
Enquanto “vitalismo”, entende-se o desenvolvimento estilístico das formas orgânicas e humanas em
expressões artísticas com referência à figuração, no entanto, distantes de qualquer verossimilhança. -
READ, Herbert – Op. Cit. 1996. p. 77.
263
O brinquedo-boneca que Bellmer concebe transporta, como Krauss define, uma irracionalidade
formativa, sendo que nos oferece uma forma de boneca que não é a comum. - KRAUSS, Rosalind - Op.
Cit. 1977. p. 151.

135
Com esta concepção ambígua que é estabelecida com formas biomórficas, o resultado
escultórico apresenta-se de acordo com uma irracionalidade formativa, como Krauss
refere, assumindo assim um discurso estético que se formula numa subversão de sentido
dos objetos e dos temas representados, associado às ideias Dadaístas e Surrealistas.
A par desta tendência plástica, o artista catalão Joan Miró (1893-1983), também com
relação próxima e participação no movimento Surrealista e Dadaísta, apresenta Pássaro
Solar (1944-46), que, embora a obra não estabeleça relação direta com o significado,
aproxima-se de uma tendência estilística onde a ambiguidade potencializa a uma
multiplicidade de leituras. [Fig. 110]
Neste âmbito, a expressão formal, que sucede os movimentos e vanguardas históricas,
reflete uma reconfiguração e transformação da sua aparência. Segundo um sentido
irónico, fantástico ou onírico, a respeito destas abordagens, é demonstrada uma tendência
plástica pela morfologia biomórfica e evidencia-se a ambiguidade do significado entre
formas orgânicas e a abstração.

136
Fig. 107

Fig. 108

Figura 107– Alberto Giacometti, Disagreeable Object. Objeto desagradável. Madeira. 15,6 x 49, 1 x 11
cm. 1931. The Museum of Modern Art, Nova Iorque. Fig. retirada de: The Museum of Modern Art –
Disagreeable Object. [Em linha] [Consult. 3 Set. 2021]. Disponivel em
WWW:<URL:https://www.moma.org/collection/works/82349>

Figura 108– Jean Arp. Head with Annoying Objects (a Mustache, a Mandolin and a Fly). Cabeça com
três objetos irritantes (um bigode, um bandolim e uma mosca). Bronze. 21,5 x 36,5 x 30 cm. 1930.
Fundido a bronze em 1971. Mitchell-Innes & Nash, Nova Iorque. . Fig. retirada de: Mitchell-Innes &
Nash – Head with Annoying Objects (a Mustache, a Mandolin and a Fly. [Em linha] [Consult. 9 Dez.
2021].Disponivel em WWW:<URL:https://www.miandn.com/exhibitions/arp-brancusi?view=slider#3>

137
Fig. 109

Fig. 110

Figura 109– Hans Bellmer. La poupée. A Boneca. Alumínio pintado com base em latão. 63,5 x 30,7 x
30,5 cm. 1936. The Tate Museum, Londres. Fig. retirada de: The Tate Museum –The Doll. [Em linha]
[Consult. 9 Dez. 2021]. Disponível em WWW:<URL:https://www.tate.org.uk/art/artworks/bellmer-the-
doll-t01157>

Figura 110– Joan Miró. Oiseau Solaire (Solar Bird). Passáro Solar. Mármore Carrara. 163 x 146 x 240
cm. 1968. Fundació Joan Miró, Barcelona. Fig. retirada de: Bk Kent Week - Oiseau Solaire (Solar Bird).
[Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021]. Disponível em WWW:<URL:
https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fbkkentweek.com%2Fimage-
collection%2Fmiro-
spa&psig=AOvVaw2QzVxoLxlYTHjYi7Tt9KkQ&ust=1644678022057000&source=images&cd=vfe&v
ed=0CAgQjRxqFwoTCOjIzJ719_UCFQAAAAAdAAAAABAO>

138
4.3.2. Informe/Disforme

Como intenção expressiva que se formula com o progresso artístico, podemos considerar
a proposta de Jean Dubuffet (1901-1985), que aplica o conceito de Arte Bruta para
designar “os impulsos artísticos” que “parecem aparecer num estado “bruto”.264
A intenção por parte do artista em sugerir um termo que qualifique a indeterminação das
formas, leva-nos a considerar também o termo informe/disforme como resultado da
expressão artística.
Sobre estas considerações, torna-se necessário estabelecer relação com a sua atividade
pictórica, pertencendo ao movimento que se alastra na pintura como expressionismo
abstrato,265 ao qual Jackson Pollock também pertencera e expressara com as suas pinturas
gotejadas.266
Com relação aos métodos desenvolvidos que se difundem em epifanias criativas, com as
alternativas expressivas que o movimento oferece, Dubuffet demonstra também particular
interesse em aplicá-lo na prática escultórica e desenvolve esculturas de pequena escala
em 1954.267
Estas esculturas alusivas à figura humana, intituladas Pequenas estátuas da vida precária,
resultam como um potencial escultórico que se expressa com materiais estranhos para a
figuração, como esponja ou pedaços de madeira.
Em Le Danseur, concebido com esponja, reboco e pedaços de tijolo, a figura adquire uma
dimensão abstrata, que deriva da confrontação entre um sentido expressivo das formas e
dos volumes que os materiais propõem.

264
LUCIE-SMITH, Edward – Op. Cit. p. 29.
265
A expressão expressionismo abstrato não pode ser resumida em um único programa estético, mas
poderemos definir os diferentes resultados que surgem principalmente nos Estados Unidos da América
como influenciadores de formas de expressão dos impulsos inconscientes propostos pelo Surrealismo,
combinados com os ideais formais por parte dos Cubistas. No âmbito pictórico podemos também referir o
trabalho de Wassily Kandinsky, Willem de Kooning, Barnett Newman, Mark Rothko ou Joan Mitchell. –
LUCIE-SMITH, Edward – Op. Cit. pp. 86-87.
266
Reconhecidas enquanto dripping ou action painting, as técnicas desenvolvidas por Pollock evidenciam
uma recusa da estrutura tradicional, o que indica uma forma privilegiada em conceber “inconscientemente”
um princípio artístico, com a tinta que cai sobre a tela ou suporte, sem orientação definida. Sobre o
expressionismo abstrato americano, Bernardo Pinto de Almeida escreve “A sua ambição foi negar
justamente todo e qualquer princípio de organização das formas no espaço do quadro.” – ALMEIDA,
Bernardo Pinto [et al] – “O sinal da cruz” in Antoni Tàpies: Colecções Europeias. Porto: Fundação
Serralves, 1991. p. 36. “(...) It was the surrealist’s concept of automatism that radically altered the course
of american art. Automatisme, linked with freudian notions of the subconscious, liberated the abstract
expressionists from the external world of reality and freed them to explore the irrational and the elements
of chance and accident. (…) automatism made it possible for them to transcend representational subject
matter, consolidate process and end product, and fuse inner vision and external phenomenon.” -
WALDMAN, Diane – Op. Cit. p. 202.
267
NORMAND-ROMAIN, Antoinette [et al] – Op. Cit. p. 225.

139
Com sentido expressivo e simultaneamente abstrato, esta transformação formal é também
proposta para uma resolução de uma cabeça, que apelida de Tête barbue (Cabeça
barbuda) em 1959, executada numa assemblage de pedaços de madeira. [Fig. 111]
Resultando, deste modo, como expressões abstratas de uma figuração, oferecem uma
concepção da sua ideia numa resolução informe da sua realidade. Neste sentido, a
experimentação formal intrínseca à pluralidade de alternativas que são possíveis devido
à abstração e aos novos métodos empregues, torna-se conveniente para os artistas
proporem um novo universo de formalidades, fundado no jogo de associações, alusões e
ambiguidade. 268
Sobre esta nova orientação expressiva, devemos de considerar também a intenção plástica
e as propostas que se desenvolvem no contexto europeu, que proporcionam um ponto de
vista abrangente sobre os meios e métodos expressivos que se desenvolvem de forma
análoga ao expressionismo abstrato americano.
Com referência a um sentido plástico essencialmente expressivo, funda-se o movimento
Dau al Set, em Barcelona, no ano de 1948, com o artista catalão Antoni Tàpies (1923-
2012).269
Em 1950, após a sua primeira exposição individual, Tàpies obtém uma bolsa e vai para
Paris, onde vê as obras de Dubuffet.270 Estes trabalhos expressivos motivam o artista a
desenvolver, no âmbito pictórico, um interesse pelos materiais e pelas suas qualidades
plásticas e, em 1953, após uma visita a Nova Iorque, descobre o expressionismo abstrato
americano e começa a fazer trabalhos com gesso, areia, pó e outros materiais,
contribuindo como relevos expressivos nas suas pinturas.271

268
Com relação análoga à proposta de Dubuffett, Buste d’homme barbu (1933) de Pablo Picasso, demonstra
a versatilidade formal que os diferentes materiais concretizam, sendo composto segundo o método de
assemblage com cartão e vários materiais que são unificados com gesso. Apesar de ser identificadas
semelhanças com o rosto humano, como os olhos, nariz ou a cabeça, no mesmo ano à sua concepção, Picaso
desenvolve também Personnage, uma tradução abstrata de uma figura. A sua alusão a um corpo feminino
pode ser identificada devido às bolas de cartão que coloca na parte da frente do “corpo” que é composto
por cartão amachucado e coberto com gesso. No seguimento destas propostas, L’Orateur, de 1937, reflete
o caracter experimentalista do artista na concretização de uma figura humana com materiais incomuns como
o cartão e rede de arame, combinados num eixo vertical, alusivo ao corpo humano.
269
Juntamente com Modesto Cuixart, Joan Joseep Tharrats e Juan Eduardo Cirlot. Este grupo empresta o
seu nome a uma frase de Andre Bréton onde refere “seve on the die”, o que indica o fascínio pela
arbitrariedade e improbabilidade que é transportado para uma resolução expressiva por parte dos artistas
catalãos. – WALDMAN, Diane – Op. Cit. p. 241.
270
Idem.
271
LAMBERT, Maria de Fátima [et al] - Antoni Tàpies: Colecções Europeias. Porto: Fundação Serralves,
1991. p. 170. Como reflexo destas propostas, “o fazer pictórico” de Tapiès pode ser considerado como um
método expressivo onde “depósitos naturais ou efeitos acidentais” são propostas texturais que não
respondem a uma “lógica do mundo”. READ, Herbert “Antoni Tàpies, su arte” in Los papeles de Son
Armadans. V. 57. Palma de Mallorca, Dezembro de 1960. pp. 369-371. (apud FERNANDES, Maria João
[et al] – Antoni Tàpies: Colecções Europeias. Porto: Fundação Serralves, 1991. p. 98.)

140
A título de exemplo podemos considerar Palha prensada (1969) como um objeto artístico
onde, numa superfície plana, o artista coloca a palha com efeito expressivo, textural e
qualidade plástica.272 [Fig. 112]
Deste ponto de vista, o universo de formalidades que é proposto com a integração de
materiais incomuns estabelece um abrangente mundo de possibilidades plásticas, às quais
Tàpies apelida de “metapoesia” ou “metapintura”, devido à “realidade que não aparece
diretamente no quadro”, o que evidencia uma intenção pelo conhecimento empírico da
“poesia visual” que é baseada no informalismo. 273
Neste âmbito, será relevante referir a importância plástica que a atividade pictórica
desenvolve, associado a um materialismo como descrição expressiva, também com as
abordagens de Alberto Burri (1915-1995), onde o artista italiano propõe uma plasticidade
particular sobre um suporte bidimensional.
A título de exemplo, podemos referir o trabalho Combustione plástica, de 1968, onde o
artista evidencia uma composição com celotex, uma fibra utilizada para construção. Neste
exemplo, o material não é apenas colocado sobre o suporte, como também é submetido a
um processo de combustão, alterando assim o material e demonstrando um resultado
aparentemente expressivo devido ao efeito da fibra queimada.
Desta forma, atribuindo ao suporte bidimensional um relevo expressivo, é demonstrado
também o caráter versátil do objeto que é utilizado de forma a fornecer uma dimensão
tridimensional, relacionada com a sua capacidade volumétrica e expressão plástica.
No seguimento destas propostas, como reflexo de uma tendência artística em contribuir
com novos pontos de vista sobre uma “formalidade” expressiva e a sua qualidade
interpretativa, convém destacar o caso do artista conterrâneo de Burri, Lucio Fontana
(1899-1968), que, no final dos anos 30, concebe objetos de pequena escala em cerâmica,
que correspondem a “objetos sem forma definida”.

272
Como dirá Michael Tapié “A mensagem de Antoni Tàpies é essencialmente plástica, muito difícil, por
isso, de traduzir para palavras.” - TAPIÉ, Michael “Una profundidad cualitativa” Los papeles de Son
Armadans. V. 57. Palma de Mallorca, Dezembro de 1960. pp. 343-344. (apud FERNANDES, Maria João
[et al] – Antoni Tàpies: Colecções Europeias. Porto: Fundação Serralves, 1991. p. 106.) Partilhando a
mesma opinião sobre a qualidade expressiva de Tàpies, Jacques Duupin refere “As telas de Tápies falams
mais ao texto do que ao olhar, e menos à mão do que a todo o corpo.” – DUPIN, Jacques “Antoni Tàpies”
in Tàpies, Catálogo da Exposiçao, Galleria dell’Ariete, Milão, Maio de 1958. (apud FERNANDES, Maria
João [et al] – Antoni Tàpies: Colecções Europeias. Porto: Fundação Serralves, 1991. p. 71.)
273
“(...) podemos ver como a poesia tende fortemente para o objecto. (...) As minhas obras mostram, com
frequência, ambientes plásticos e poéticos, é o que de certo modo se costuma chamar de poesia visual. (...)
Para mim, a pintura de qualidade é sempre ambígua, assim como a palavra.” – TÀPIES, Antoni
“Conversaciones con Antoni Tàpies” entrevista com Barbara Catoir Ed. Polígrafa S.A. Barcelona, 1989.
(apud FERNANDES, Maria João [et al] – Antoni Tàpies: Colecções Europeias. Porto: Fundação Serralves,
1991. pp. 52-53.)

141
Estas esculturas de pequena escala, apelidadas de Banana e Pera e Natureza-morta [Fig.
113, Fig. 114] são desenvolvidas entre 1935 e 1940, em Absilosa, em simultâneo a outras
esculturas de pequena escala.274 Estes objetos funcionam como representativos de uma
linguagem alternativa que inova o conceito de forma, que Fontana elabora numa
linguagem plástica muito própria.
A metamorfose destas esculturas, que são modeladas em grés e terracota, evidenciam um
processo textural com formalidade expressiva. A escolha cromática, no entanto, varia
entre as duas obras que selecionámos. Em Banana com Pera, o artista recorre à cor para
estabelecer um significado para as duas peças de fruta que é reconhecível pelo seu
cromatismo iconográfico. Natureza-morta, no entanto, escapa a qualquer reconhecimento
direto do objeto representado e apresenta-se como uma coisa monocromática. Deste
modo, o artista recorre à alusão ao conceito de natureza-morta e dos alimentos que
representa e apresenta-os sob formas disformes que, a partir do título, favorece uma leitura
alternativa à sugestiva informalidade.
Relativamente a naturezas-mortas, os vários exemplos de vasos com flores ou conjuntos
de frutos que concebe e representa em material refratário são exemplos de uma tendência
estética de Fontana, relacionada com a Art Informel, expressão criada por Michel Tapié
para descrever uma “arte sem forma”.275
Informe, como o nome indica, apela a uma estética que não tem forma definida e, segundo
a proposta de Fontana, os objetos são reconhecidos numa dimensão onírica e disforme,
que se balança entre o reconhecimento iconográfico e uma proposta iconoclasta, na
metamorfose das formas.
Sugerindo a apreensão representativa, nos títulos das obras, o escultor explora a liberdade
das formas num jogo regido pela linguagem “informal” e conceptual. Sobre este tipo de
expressão em Fontana, Nature, de 1959-60, torna-se um exemplo que evidencia a atitude
artística que se expressa numa formalidade abstrata e que explora a modelação dos
materiais para uma consequente transformação dos conceitos representados. [Fig. 115]
Nesta série de cinco elementos representativos de natureza, o artista provoca a sua aceção
e propõe a concepção de uma esfera em terracota, onde, posteriormente, faz uma incisão
e propõe uma abertura para a “densidade do material”, o que poderemos considerar como
uma entrada para o seu núcleo.

274
CRISPOLTI, Enrico - Lucio Fontana: catalogo ragionato di scultue, dipinti, ambientazioni, Milão:
Fondazione Lucio Fontana, 2006. p. 51.
275
LUCIE-SMITH, Edward - Op. Cit, p. 30.

142
Sobre este gesto conceptualista de Fontana, o artista constitui surpreendente
envolvimento na prática escultórica como pictórica, motivando o gesto como veículo e
rasto e realça a importância do seu conceito enquanto espacial. Neste âmbito, será
oportuno referir que Fontana é fundador do Movimento Espacialista, iniciado em 1947,
onde provoca um discurso radical.
As elaborações plásticas de Fontana, em relação ao objeto, podem ser traduzidas na sua
vertente “escultórico-pictórica” que resulta num gesto performativo do artista na
superfície. No sentido nostálgico do termo rasto, Fontana deixa na tela a sua participação
física com rasgos na superfície ou perfurações.276 Ao reivindicar o gesto e a atitude como
evidência no objeto artístico e resultado de uma proposta conceptual, Fontana deixa a
marca no material como método artístico e autossuficiente para expressar uma intenção
artística.
Considerado um dos renovadores da linguagem visual, realça a importância do conceito
de rasto e desenvolve um radicalismo na transversalidade das práticas com uma série que
apelida de “conceito espacial”, desenvolvida entre 1961 e 1963, onde se debruça sobre as
questões formais de pintura e escultura, trazendo para a superfície da resposta a
performance. Nesta amplitude de uma expressão que não tem propriamente forma, o
artista procura conferir à pintura características físicas, estabelecendo assim a superação
da sua lógica bidimensional e provocando um expressionismo abstrato com lógica
escultural.
Com estas traduções expressivas nos materiais e superfícies, será importante estabelecer
relação com as propostas que havemos investigado e considerar o objeto como um
resultado escultórico que não se limita a uma formalidade e que se expressa com devidas
qualidades materiais e físicas, mesmo que sugerindo uma abstração das formas e
conceitos. Deste modo, poderemos considerar que o objeto evolui na expressão
modernista como um pretexto para a experimentação formal que empresta conceitos de
outras áreas e que simultaneamente estabelece outros e se desenvolve com devida
característica especulativa na escultura modernista.

276
Fontana utiliza duas técnicas distintas: o “buchi” como perfurações que abrem buracos na superfície e
“tagli” que utiliza para caracteriza o gesto de abrir fissuras e rasgar a tela.

143
Fig. 111

Fig. 112

Figura 111–Jean Dubuffet. Tête barbue. Cabeça barbuda. Casquilho. 28,26 x 21,59 x 10,16 cm. 1959.
Washington University in St. Louis, Washington. Fig. retirada de: Mildread Lane Kemper Art Museum –
Tête barbue (Bearded head). [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021]. Disponivel em
WWW:<URL:https://www.kemperartmuseum.wustl.edu/node/11282>

Figura 112 – Antoni Tàpies. Palla premsada. Palha prensada. Técnica mista sobre tela. 190 x 125 cm.
1969. Fig. retirada de: FERNANDES, Maria João [et al] – Antoni Tàpies: Colecções Europeias . Porto:
Fundação Serralves, 1991. p. 136.

144
Fig. 113 Fig. 114

Fig. 115

Figura 113 – Lucio Fontana. Banana e pera. Cerâmica colorida. 16,6 x 26 cm. 1938. Fig. retirada de:
CRISPOLTI, Enrico – Lucio Fontana: catalogo ragionato di sculture, dipinti, amvientazioni. Milão:
Fondazione Lucio Fontana, 2006. p. CX.

Figura 114 – Lucio Fontana. Nature-morte. Natureza-morta. Material refratário a 980ºC (grés). 1971.
Albissola Marina, Fabbrica Casa. Museo Giuseppe Mazzotii. Fig. retirada de: CRISPOLTI, Enrico –
Lucio Fontana: catalogo ragionato di sculture, dipinti, amvientazioni. Milão: Fondazione Lucio
Fontana, 2006. p. 162.

Figura 115– Lucio Fontana. Concetto spaziale ‘Natura’. Conceito espacial ‘Natureza’. Cinco esferas em
bronze. 90 x 1114 x 900 cm. 1959-60. Kröller-Müller Museum, Houtkampweg. Fig. retirada de: Kröller-Müller
Museum – Concetto spaziale ‘Natura’. [Em linha] [Consult. 9 Dez. 2021].Disponivel em
WWW:<URL:https://krollermuller.nl/en/lucio-fontana-spatial-concept-nature>

145
Conclusão

Ao longo do espaço e tempo percorridos, nesta investigação, foi possível notar que o
objeto constitui particular papel no desenvolvimento da escultura moderna.
A pluralidade de objetos, que apresentámos, são baseados em critérios que vão desde o
mais objetivo ao mais subjetivo e a reflexão em torno do objeto parece-nos desenvolver-
se progressivamente neste fenómeno de rutura com a tradição clássica.
Uma vez reconhecido como elemento alternativo à figura, o objeto apresenta condições
especificas determinantes para uma expressão formal que, implicitamente, se inscreve
como estratégia para uma iconografia das personagens tratadas. Isto é, ao sugerirmos, no
primeiro capítulo, um objeto despercebido, esta noção permitiu-nos avançar sobre a
tradição da estatuária, fundamentalmente naturalista, que assume o objeto como adereço.
Também inscrito no panorama português na estatuária oitocentista, ainda com certa
“timidez” e relacionado com a sua formalidade reconhecível, que resulta aparentemente
enquanto identificação de um “elemento cénico”, reconhecemos o objeto enquanto
elemento invisível devido à predominância da expressão figurativa.
Enquanto forma com cariz “decorativo”, a nosso ver, demonstra-se simultaneamente
familiar a conceitos como plinto ou pedestal, uma vez reconhecidos enquanto elementos
complementares à figura. Com isto, propusemos a compreensão de objeto enquanto
adereço combinatório que funciona como estratégia compositiva para a obra e para o seu
significado, assumindo uma expressão tridimensional que não figura.
De maneira geral, parece-nos eficiente para uma nova definição de escultura, sendo
inicialmente tratado como adereço e, posteriormente, indicar uma função que oferece um
significado alternativo ao plinto e a uma rejeição da ideia de pedestal. Deste ponto de
vista, foi considerada a sua contribuição para o objetivo escultórico, assumindo um papel
fundamental na transformação da ideia de figura sob um pedestal, o que culmina na sua
radicalização – uma forma alternativa à figura, independente da representação verosímil
do corpo, que assume uma aparência abstrata.
Neste sentido, as abordagens artísticas, que contribuíram para a rutura com a escultura
tradicional e que se desenvolvem de acordo com um sentido de mudança, parecem-nos
revelar a importância da sua relação com o objeto, que acompanhou estas transformações
de forma “natural”, quase discreta.

146
Com o desenvolvimento das propostas modernistas, que resultam da reavaliação das
convenções escultóricas, no âmbito das tipologias convencionais, foi sugerida uma
transformação da sua concepção figurativa, com devido efeito inovador, numa simbiótica
relação com o objeto.
A insistência no resultado estético e pela redução dos traços identificáveis é indicadora
de novas linguagens que surgem com a compreensão de sistemas representativos
alternativos. Desta forma, no segundo capítulo, o objeto assumiu um papel fundamental
no resultado de uma formalidade sintética, que coincide com a abstração do referente
humano, e reflete sobre o efeito simplificador e transfiguração, resultando na sua
manifestação tridimensional enquanto objeto.
A mudança de significados é claramente verificável não só na “objetificação” que ocorre
com a transfiguração e despersonalização da figura, como também com o trabalho em
série, enquanto tendência artística que enfatiza um método processual de emulação
formal, que transforma o referente escultórico, num resultado sintético. Deste modo,
propusemos uma transformação das tipologias convencionais, que culminam em
propostas de cariz objetual, como abordagem que oferece novos modos de pensar e
conceber escultura, assumindo a síntese formal como procedimento representativo.
Com relação a propostas que renovaram a percepção de Escultura, com o terceiro
capítulo, foi analisado o efeito expressivo que é assumido com a renovação da doutrina
clássica e torna-se evidente os novos procedimentos representativos, como
metodológicos, que são potencializados pela noção de objeto e pela sua versatilidade
formal.
Com o Cubismo foi demonstrada a transformação e passagem do modo perceptivo para
o modo conceptual, conforme refere Margit Rowell, e o objeto parece acompanhar este
processo enquanto meio expressivo e, simultaneamente, como referente escultórico que
permitiu uma mudança radical no panorama artístico.
De importante relevância para as metodologias desenvolvidas, o objeto é assumido como
parte integrante das obras, sendo considerado enquanto fragmento material e forma
alternativa, num jogo combinatório proposto pela assemblage e collage.
Neste sentido, considerámos a construção como ato que qualifica um novo processo em
adquirir formas, numa produção sem constrangimentos, onde a composição e combinação
de diferentes elementos permitiu um resultado artístico alternativo.
No seguimento destas propostas, o recurso a diferentes materiais e objetos compositivos,
para além de introduzidos pelo Cubismo, foi também uma intenção por parte do

147
Futurismo, com devido significado revolucionário, que propôs uma infinidade de objetos
possíveis de serem integrados na Escultura.
Com isto, o objeto parece-nos acompanhar a transformação modernista que permitiu
oferecer uma multiplicidade de resultados estéticos diferentes à tradição escultórica. Foi
a partir destas propostas que foi proporcionada ao próprio objeto uma correspondência
conceptual entre a representação e a síntese formal e devemos de considerar a
simplicidade como uma das características relacionadas com o reconhecimento de formas
abstratas, embora complexas pela técnica em que são concebidas. Neste sentido, tratámos
a noção e entendimento do espaço, segundo a atitude modernista, que propõe uma
concepção de formas abstratas, com recurso ao aço, assumindo, simultaneamente, a sua
apresentação enquanto estrutura e forma, o que revela um resultado escultórico
alternativo, semelhante ao efeito de um desenho no espaço. Assim, pudemos notar que
fora desenvolvida uma linguagem visual alternativa que, coincidentemente, se apresentou
enquanto objeto e forma abstrata.
A introdução de metodologias alternativas e a transformação da ideia de Escultura,
permitiu-nos sugerir um ponto de vista alternativo, com condições específicas em torno
da espacialidade e da materialidade. Estes conceitos foram também provocados pela
definição de Escultura, que surge com o Construtivismo Russo, um movimento familiar
do Cubismo e Futurismo, que potencializou o significado de objeto como meio para uma
expressão escultórica revolucionária.
Esta atitude modernista é evidenciada com o recurso a materiais industriais, referidos
como meios expressivos da sociedade moderna pelos Futuristas, e que se tornam
transversais para um acentuado sentido estético que é proporcionado pelo
Construtivismo.
Sobre esta atividade artística, que integra diferentes materiais, o aspeto de obra de arte é
proposto pelo reconhecimento do objeto com qualidades físicas e materiais especificas,
que correspondem, segundo o Construtivismo Russo, a conceitos relativos a uma
imaterialidade, potencializada pelos materiais translúcidos ou transparentes, com relação
a fatores lumínicos, que se assumem, consequentemente, como valores associados ao
conceito espacial.
Para além do fundamento conceptual que acentua a luz como valor escultórico,
evidenciado pela materialidade e espacialidade, o Construtivismo influenciou propostas
também de caracter utilitário, sendo abordada a construção enquanto método em
conceber escultura que pode ser apontado com a Bauhaus, na Alemanha, e a produção de

148
bens comerciais e o seu cruzamento com a ambição pictórica por parte do movimento De
Stijl, nos Países Baixos.
Estas propostas permitiram-nos abordar o desenvolvimento do sentido construtivo que se
assume, no âmbito da Bauhaus, com caracter utilitário, contudo, com uma apreciação
estética que propõe um aspeto “simples”, com devida atenção à sua particularidade
cromática proposta pela atividade pictórica, por parte do movimento De Stijl.
Partindo dos fundamentos estéticos que são desenvolvidos, no quarto capítulo, a
controvérsia vanguardista foi demonstrada com a apresentação de um objeto comum
enquanto resultado escultórico, questionando a práxis escultórica, a autoria e o conceito
de obra de arte. Relacionada com o termo ready-made, pudemos reconhecer esta
abordagem irreverente como proposta que nega qualquer acepção ou concepção
escultórica tradicional e que permitiu, não só o desenvolvimento da escultura modernista,
como também, a revelação do objeto como elemento tridimensional, com devida
importância no resultado artístico.
A arbitrariedade proposta com a metodologia do termo ready-made, enquanto objeto
pré-fabricado que é deslocado da sua realidade e apresentado no contexto museológico,
como fundamento estético alternativo, permitiu-nos pensar nas abordagens, que decorrem
com o Dadaísmo, como manifestações anti-arte, que não procuravam atingir a obra de
arte, mas demonstrar e apresentar objetos-conceitos. Neste sentido, pudemos observar a
apropriação de objetos comuns, apresentada segundo manifestações que praticam o
ready-made, em assemblages “sem sentido”, com relação às ambições Dadaístas.
Esta tendência experimental, que assume um “jogo combinatório” de formas e
significados, demonstra-se como abordagens metodológicas, no domínio da ironia e
ambiguidade. Com base nestas manifestações radicais e improváveis, posteriormente,
com o Surrealismo, é estabelecido o termo objet trouvé enquanto objeto encontrado que
é submetido a uma subversão de conceitos, de forma a enfatizar as intenções e poéticas
artísticas.
Numa análise a estas abordagens, pudemos reconhecer que, com o movimento
Surrealista, a dimensão objetual presta-se a um significado metafórico, proposto pela
ambiguidade de sentidos e significados simbólicos, concretizados a partir da assemblage
de diferentes objetos encontrados. Deste modo, poderemos concluir que, segundo as
propostas abordadas, a forma e símbolo conferiram uma imagem surreal e,
simultaneamente, uma mensagem metafórica ou simbólica.

149
À semelhança com esta tendência expressiva e poética, pudemos apontar alguns exemplos
do Surrealismo tardio, que se sucede em Portugal, após a abolição das fronteiras artísticas,
e demonstram uma adesão às intenções artísticas e abordagens internacionais.
Partindo deste ponto de vista, a apresentação de conceitos, que assumem a
experimentação formal e a combinação de diferentes ideias e significados, acabou por
culminar, a nosso ver, numa liberdade criativa e vasta possibilidade ao artista modernista
em concretizar formas expressivas que não necessitariam de qualquer relação com a
realidade e, portanto, desenvolveram-se num sentido transformador dos conceitos
formais.
Neste sentido, após uma análise sobre a abstração e simplicidade e a correlação de ambas
com o objeto, o contexto formal fora apontado também com características alusivas a uma
morfologia biomórfica, assumindo-se uma formalidade onde a aparência orgânica
permitiu uma tradução das formas, também elas abstratas.
Assim, foi explorada também a experimentação formal, que é proposta próxima ao limite
sugerido por Margit Rowell, nas últimas décadas do século XX, onde conceitos como
informe/disforme se estabeleceram como noções formais, onde a forma se apresenta com
caracter expressivo, fundamentalmente estético e conceptual.
Com qualidades plásticas e resultados alternativos, as formas, que se geram após as
possibilidades demonstradas nos capítulos anteriores, funcionam como alternativas
expressivas que atingem uma ambiguidade interpretativa com dimensão metafórica,
simbólica, mas sobretudo abstrata.
Deste modo, torna-se evidente as manifestações modernistas que atuaram sobre as
convenções escultóricas e sobre a ideia de Escultura, que permitiram não só o
desenvolvimento de uma expressão tridimensional alternativa à figuração, como também
manipular as formas, com sentido objetual, propondo a introdução de uma dimensão
objetual no panorama artístico, com recurso a objetos comuns, materiais industriais ou
favorecendo novos métodos representativos, que culminam na coincidência entre
abstração e objeto.
Neste sentido, observámos a importância do objeto enquanto meio e conceito que se
autonomiza, de acordo com os novos valores, que são aprofundados, na escultura
modernista, como a materialidade, a expressividade, abstração, simplicidade e a
ambiguidade. Assim, como reflexo da abrangente produção criativa e irreverência
vanguardista, que conferiu à ideia de Escultura uma dimensão objetual e um campo amplo
de possibilidades interpretativas, pudemos concluir que a experimentação formal

150
transforma, por fim, o resultado escultórico numa tradução visual da teoria heideggeriana
de coisas, o que nos permitiu revelar o objeto enquanto um conceito relevante para uma
renovação da tradição escultórica, que dinamiza a produção artística e provoca um efeito
sobretudo objetual.

151
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