A Dinamica Urbana Do Recife

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 12

MANGUETOWN, A CIDADE: A DINÂMICA URBANA DO RECIFE E A CENA

MANGUEBEAT
Larissa Zuque Mosage1

RESUMO: Conhecido em escala nacional, o Manguebeat surgiu como uma cena local no
Recife-PE, na década de 1990. Misturando ritmos musicais – maracatu, ciranda, coco, rock, hip
hop, funk, música eletrônica etc. —, as bandas não são identificadas por uma sonoridade
padronizada, mas por uma estética que dialoga diretamente com o resgate de manifestações
culturais pernambucanas. Além disso, problematizações sobre a cidade do Recife e sua relação
com os manguezais são bastante evocadas pelos seus maiores expoentes: Chico Science e Nação
Zumbi (CSNZ) e Mundo Livre SA (MLSA). O presente artigo pretende apreender um olhar
crítico sobre a produção do espaço urbano do Recife, evidenciando as contradições implicadas
nas produções do Manguebeat na criação de um circuito local que ressignifica problemáticas e
representações enraizadas sobre a cidade.

PALAVRAS-CHAVE: MANGUEBEAT; RECIFE; PRODUÇÃO DO ESPAÇO

Ao fazermos uma breve pesquisa sobre o Manguebeat no Google Scholar, é


possível identificarmos o quanto ele vem sendo estudado em diversas áreas das ciências
humanas. Segundo Cristiano Nunes Alves, trata-se, inclusive, “do momento do circuito
sonoro do Recife melhor documentado, dentro e fora da academia” (ALVES, 2015, p.
97). Em que pese uma vasta produção de pesquisas nas ciências humanas, no entanto,
encontramos poucas análises especificamente na Geografia. Os trabalhos encontrados
estão, sobretudo, sob a perspectiva do estudo da retórica da paisagem presente nas
manifestações do Manguebeat (BARBOSA e MACIEL, 2012; GOMES, 2012;
MONTE, 2016) ou da Geografia Humanística voltada para cartografia da ação (ALVES,
2015).

1
Graduanda do curso de Licenciatura em Geografia no Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de São Paulo – IFSP. Bolsista de iniciação científica pelo PIBIFSP sob orientação do prof. dr.
Paulo Roberto de Albuquerque Bomfim. Email: [email protected]

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
A discussão da Lili Kong (2009), sobre o uso da música popular nas análises
geográficas, possibilita um desvelamento sobre o potencial de propulsão da consciência
popular contida na música, que pode se expressar como uma proveitosa fonte primária
para se compreender o caráter e a identidade dos lugares.

Como uma forma de comunicação cultural, a música é, portanto, um meio


pelo qual identidades são (des) construídas, e uma análise do papel da música
na (des) construção de identidades é muito útil para sublinhar a ideia de que
muitas das categorias que consideramos “naturais” e imutáveis são de fato
produtos de processos que estão incrustados nas ações e escolhas humanas.
(KONG, 2009, p. 154).

Relacionamos a proposta de agenda de pesquisa do uso da música nas análises


geográficas com a discussão sobre o fenômeno artístico presente em Antonio Candido
(2006). O autor propõe uma interpretação dialética para construir caminhos de
investigação para responder sobre qual seria a influência exercida pelo meio social em
determinada expressão artística e qual seria a influência da obra sobre esse meio. Longe
de simplificar o fenômeno artístico, esse enfoque desvela os aspectos sociais e sua
recorrência nas obras. Nossa análise sobre o Manguebeat se vale desse escopo teórico
como base para a construção da seguinte questão: qual a relação do Manguebeat com a
dinâmica urbana recifense e qual a relação da dinâmica urbana recifense com o
Manguebeat? Assim, acreditamos que há uma confluência entre a iniciativa da cena
Manguebeat e as condições socioculturais inseparáveis.

Alves (2015) se utiliza do recurso analítico de cena musical para elucidar a


dinâmica socioterritorial embutida na produção cultural do Manguebeat: “O estudo da
cena musical diz respeito ao contexto de vida das pessoas em suas relações com a
música e o modo como a circulação musical ocorre no tecido urbano, articulando
cidades e cenas produzindo complexas texturas de cultura urbana. ” (ALVES, 2015, p.
98). Cena, aqui, parece mobilizar aquilo que Walter Benjamin (2015) pontua ao discutir
as problemáticas do que, mesmo na era da reprodutibilidade técnica, dificilmente pode
ser reproduzido; sua existência única no espaço e tempo, que determinada obra é
produzida, o que carrega sua autenticidade.

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
Mesmo na reprodução mais perfeita falta uma coisa: o aqui e agora da obra
de arte – a sua existência única no lugar em que se encontra. É, todavia, nessa
existência única, e apenas aí, que se cumpre a história à qual, no decurso da
sua existência, ela esteve submetida. Nisso, contam tanto as modificações que
sofreu ao longo do tempo na sua estrutura física, como as diferentes relações
de propriedade de que tenha sido objecto Os vestígios da primeira só podem
ser detectados através de análises de tipo químico ou físico, que não são
realizáveis na reprodução; os da segunda são objecto de uma tradição que
deve ser prosseguida a partir do local onde se encontra o original.
(BENJAMIN, 2015, p. 167).

Portanto, compartilhamos do uso desse conceito de cena musical para analisar a


dinâmica da cidade por meio da cena Manguebeat. “A partir da noção de cena musical
propõe-se destacar variáveis tais qual a divisão técnica e territorial do trabalho
dinamizada em torno da música, mas também a boêmia e a vida de bairro, enquanto
elementos transformadores dos lugares. ” (ALVES, 2015, p. 99). Acreditamos que a
cena criada na cidade do Recife pelo Manguebeat durante a década de 1990 é o que
garante sua autenticidade, mantendo-se alheia à reprodutibilidade.

Ao levantar relatos pessoais e reconstruir o início da cena Manguebeat, Lorena


Calábria (2019), destaca: "Estamos no Adílla’s Palace, um puteiro do Recife. E aqui
começa o Manguebeat” (CALÁBRIA, 2019). A referência é àquilo que foi conhecido
como a primeira festa que agitaria a cena, ironicamente chamada de “Sexta Sem Sexo”.
O prédio disponível, o Adílla’s Palace, era um puteiro luxuoso em decadência. A
intenção era reunir jovens saturados da monótona noite recifense para ouvir e conversar
sobre música. Os membros da cena destacam a inspiração na cena Zulu Nation - projeto
de Afrika Bambaataa do início dos anos 1970 que levava música, grafite e dança a
jovens nova-iorquinos com o intuito de afastá-los do crime. “O espírito coletivo, o
desejo de mudar a cidade, a pluralidade musical e até o uso de samples foram semeados
naquelas primeiras festas e, anos depois, reverberaram no Da Lama ao Caos. ”
(CALÁBRIA, 2019, p. 19).

Para Renato, as festas marcaram o início de uma cooperação que amadureceu


no Manguebeat. E também sintetizaram uma espécie de ‘espírito da época’,
uma atmosfera presente em todo período do movimento”. De início, a ideia
de organizar um movimento nem sequer foi ventilada. A cena que iria se

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
desenvolver a partir daí foi chamada de Cooperativa Cultural ou, ainda, cena
Mangue. (CALÁBRIA, 2019, p. 18).

O Manguebeat estaria relacionado, portanto, ao desenvolvimento do hip-hop no


Brasil e aos estímulos sociais para sua criação. Podemos destacar que, as duas últimas
décadas do século XX, contexto de avanço do hip-hop nas periferias brasileiras,
trouxeram consigo duas marcas importantíssimas para nossa escala do Estado-nação: o
momento de transição democrática ocorrido na década 1980 e o predomínio da
mentalidade neoliberal dos anos 1990. O primeiro traz uma simbologia significativa na
concepção democrática num país que não possui tal tradição. O segundo traz a
reorientação aplicada em escala nacional consonante às transformações políticas e
econômicas ocorridas em escala global. Os impactos são significativamente sentidos em
diferentes escalas e, principalmente, na escala urbana: lócus de ações vinculadas à
obtenção de lucro e aos imperativos do crescimento econômico, regulado pelo mercado
imobiliário e mercado financeiro, que se sobrepõem a uma construção democrática de
cidade e aos anseios coletivos presentes na cena Manguebeat.

Na realidade, o Estado, em várias escalas – nacional, local e global –


contribuiu constantemente por meio de desregulamentações empresariais,
despesas militares, políticas de habitação, política fiscal corporativa,
desenvolvimento urbano, repressão social, políticas de “desenvolvimento”
global e ampliação de seu próprio empreendedorismo para avançar o projeto
neoliberal. Muitas das instituições e regulações dessa época se mantêm
poderosamente firmes com muitas poucas alternativas coerentes à vista.
(SMITH, 2017, p. 93).

Para Bitoun (2018), Recife passou pelas transformações da ordem urbana


engendradas pelo capital internacional com apoio do Estado e do capital nacional
cunhando os adjetivos de regional, periférica, incompleta e desigual, havendo uma
inseparabilidade da trajetória recente com as condições historicamente herdadas. Isso
porque as diferentes escalas manifestam a busca por equilíbrio espacial e estão
submetidas às lógicas de produção do espaço capitalista e reorganizando as cidades
sobre a lógica do lucro (SMITH, 2017).

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
No entanto, dialeticamente, emergem variadas reações que caminham no sentido
contrário à lógica do capital, ao recrudescimento da ostensiva neoliberal e ao caos
sistêmico gerado no espaço urbano. Elas podem ser materializadas tanto em
movimentos de resistência – luta por direitos – como também manifestações culturais
com fortes denúncias sociais advindas da periferia das grandes metrópoles brasileiras. O
Manguebeat está inserido nesse contexto específico de ampliação das políticas
neoliberais no país.

O Movimento Mangue, no início da década de 90, contexto marcado pela


ofensiva econômica neoliberal que deixou de lado as demandas sociais e
abriu assim espaço para um ‘caldo’ sociopolítico propício ao surgimento de
movimentos de rebeldia e contestação. Fruto desse processo, o Movimento
Mangue articulou as manifestações culturais da periferia de Recife à margem
das administrações públicas, fincando sua diferença com os seus
predecessores, na forma de se relacionar com a cultura popular, conectando-a
com expressões globais e, ao mesmo tempo, expondo a situação de exclusão
social, violência e fome dos bairros de periferia de Recife. (GAMEIRO,
2008, p. 3).

Para Barbosa e Maciel (2012), o Manguebeat não só elaborou uma crítica à


cidade do Recife como pretendeu ser mais abrangente e integrador do que as próprias
gestões da prefeitura. Sabemos que a integração é contrária à fragmentação imposta a
uma suposta normalidade na gestão da cidade, que propõe ações com interesses
individuais sobre o uso coletivo do espaço urbano sem denunciar diretamente essa
lógica. Com isso, não é surpreendente que movimentos sociais ou culturais que se
articulam ou pensem a cidade sejam mais integradores que a própria gestão do Estado.
Nesse sentido, no Recife, a ZEIS (1980) evidencia o caminho para a crescente
mercantilização do espaço urbano, possibilitando uma retórica legal que, sutilmente,
levará à construção de grandes vetores ao longo das últimas décadas na cidade e a uma
suposta naturalidade nesses projetos.

Em Recife o planejamento urbano é considerado por muitos de vanguarda no


âmbito social, devido à criação na década de 1980 das ZEIS – Zonas
Especiais de Interesse Social. Contudo, o que se observa hoje é que o uso
deste zoneamento serviu como estratégia de reserva de terras, em uma cidade
onde a raridade de terras é histórica. Uma das estratégias utilizadas para que
os habitantes saiam dessas áreas sem serem expulsos oficialmente é

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
regularizando as posses, o que possibilita a venda desses terrenos em curto
prazo. Mesmo havendo a intenção dos moradores de permanecerem no local,
o assédio com altas propostas de compra é recorrente, desmobilizando as
resistências, o que possibilita a expansão do mercado imobiliário de alto
padrão para áreas historicamente desvalorizadas. Este processo tem ampliado
a segregação espacial no Recife, expulsando, indiretamente, os mais pobres
para áreas periféricas cada vez mais distantes e sem infraestrutura.
(ALBUQUERQUE e GOMES, 2017, p. 41).

As construções de infraestrutura e do setor imobiliário apontam para uma


revalorização/valorização do centro/sul da cidade do Recife. Principalmente, na Bacia
do Pina – formada pelos rios Tejipió, Pina e Jordão e pelo braço morto do Rio
Capibaribe. Áreas imersas em grande estado de vulnerabilidade social e ambiental.

As alterações da natureza do manguezal acontecem ao longo da colonização,


do império e prosseguem nos dias atuais, quando a expansão urbana,
principalmente no último século, tornou possível ainda a existência de alguns
bolsões de mangue contíguos na cidade. O último remanescente de baixios
com influência das marés e vegetação adaptada se localiza,
contraditoriamente, na região de maior aglomeração urbana, concentração
populacional e especulação imobiliária do Estado: a zona sul da cidade do
Recife e do litoral do município de Jaboatão dos Guararapes (SILVA, 2009, p.
11).

Inclusive, algumas verticalizações da cidade sobre aterramento e supressão dos


manguezais, contradizem leis do código florestal e do código das águas (SILVA, 2009).
Ao reivindicar os manguezais em sua construção estética, o Manguebeat promoveu uma
reflexão sobre a relação da cidade com seus estuários, reutilizou a metáfora dos homens
caranguejos de Josué de Castro (1908–1973) e propôs uma síntese interpretativa de
elementos historicamente construídos. Para Antonio Candido (2006), a obra de arte
indica uma concepção dialética entre iniciativas individuais e condições sociais
indissociavelmente ligadas: “Isto nos leva a retomar o problema, indagando qual é a
função do artista, qual a sua posição social e quais os limites da sua autonomia
criadora” (CANDIDO, 2006, p. 34).

O som do Mangue carecia mesmo de uma explicação. Mas o mangue em si


estava por demais entranhado no cotidiano dos moradores de Recife. Hoje,
ameaçados de extinção, os manguezais se formaram às margens dos seis rios
que entrecortam a cidade. Fonte de subsistência para a população carente,
pegar caranguejo servia também como diversão para outros. “Chico pegava,

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
eu pegava. Mais por brincadeira de moleque mesmo. Aprendi com os
meninos do bairro, filhos dos pescadores”, recorda Lúcio. A própria edícula,
no fundo do quintal dos pais do guitarrista, dava para o mangue. “Era uma
casinha em que meu pai guardava móvel velho e aos poucos fomos
transformando em estúdio. Mesmo depois, mais ‘famosinhos’ continuamos
ensaiando lá, sempre perto do mangue”. (CALÁBRIA, 2019, p. 43).

Segundo Silva (2009), o manguezal é um ecossistema com vegetação


predominantemente mangue encontrado às margens de baías, enseadas, barras,
desembocaduras de rios e lagunas. Ou seja, onde haja encontro de águas de rios com o
mar, sendo sujeito ao regime das marés quando é dominado por espécies típicas e se
relacionam com outros componentes vegetais e animais, são considerados berçários
naturais, abrigando espécies típicas e sendo reduto seguro de outros animais. Os
manguezais estão presentes em toda a costa litorânea e, especificamente no
Pernambuco, um documento da extinta FIDEM (Fundação para o Desenvolvimento da
Região Metropolitana do Recife) relatou a presença de nove estuários sob domínio
manguezal2. Encostado no Mar, o Recife está situado sobre uma planície aluvional,
sendo constituído por alagados e manguezais envolvidos por cinco rios: Beberibe,
Capibaribe, Tejipió e braços do Jaboatão e do Pirapama. Esta condição acaba por
conferir à urbanização da cidade certas características peculiares.

As ligações [do espaço do Recife] com Olinda [capital da província de


Pernambuco durante a maior parte do período colonial], e aquelas que
o Capibaribe e o Beberibe [importantes rios] permitiam com as terras dos
engenhos e lavouras, asseguravam à população do Recife o acesso aos
produtos de que necessitava e que a natureza do seu solo e o caráter de sua
ocupação, não lhe permitiam produzir. Desta forma, aliás, fortalecia-se a sua
função mercantil, lançavam-se as bases da sua hegemonia comercial sobre o
setor agrícola e abria-se um campo cada vez maior à aplicação do capital
mercantil no próprio espaço urbano, favorecendo sua acumulação e
reprodução. (BERNARDES, 1996, p. 15 apud CASTILHO, 2011).

2
"Estuários do Rios Goiana/Megáo, do Rio Itapessoca, do Rio Jaguaribe, do Canal de Sana Cruz, do Rio
Timbó, o Rio Paratibe, do Rio Beberibe, do Rio Capibaribe, dos Rios Jaboatão/Pirapama, do Rios
Sirinháem e Maracaíbe, do Rio Fomoso, do Rio Carro Quebrado e do Rio Una" (SILVA, ano, p. 123)

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
A construção urbana e historicamente modernizadora propiciou ao Recife,
durante o período colonial, status entre as cidades mais desenvolvidas da América
Latina, sendo considerado uma “Veneza” ou uma “Amsterdã”, em referência à ocupação
holandesa e aos projetos urbanísticos que enxergaram na região uma projeção

da cidade dos Países Baixos (CASTRO, 1955). Um sentimento de admiração e


exaltação por essa história da cidade pode ser encontrado na obra de Gilberto Freyre
(1967) O Recife sim, Recife não onde é destacada, com regionalismo exacerbado, a
orgulhosa e moderna Recife.

O Recife é uma cidade sereia: tem encantos anfíbios a quem muita gente de
fora vem sucumbindo. Encantos de suas águas de mar a que se juntam as
águas dos rios. Encantos das suas frutas: dos seus cajus, das suas mangas, dos
seus sapotis, dos seus abacates. Encanto das suas areias de praia e das
sombras das suas arvores. O maior de seus conquistadores, o Conde Maurício
de Nassau, terminou conquistado por êsses encantos. Tanto que há quem
pense ter sido sonho do ilustre alemão fundar no Brasil um principado, do
qual o Recife teria sido a capital. Nassau, nesse caso, aqui teria permanecido.
Com que resultado? Germanizando esta parte do Brasil? É pouco provável. É
possível que êle, Nassau, viesse a se abrasileirar de tal modo em recifense,
que até côr morena viesse a adquirir ao sol das praias do seu principado
tropical. O Recife recorda-se de Nassau como de um quase recifense. Como
um homem de fora que se tornou no Brasil quase de casa. Como conquistador
que se transformou em conquistado. E o Brasil que conquistou Nassau foi
principalmente o Recife. (FREYRE, 1967, p. 16).

Em perspectiva histórica, Pernambuco teve picos de desenvolvimento cíclicos


desde o século XVI, perdurando boa parte do contexto colonial, quando, como já foi
destacado, o Brasil chegou a ter o Recife como a maior cidade das Américas.
Posteriormente, ela passa por várias fases de decadência, voltando a se impor na região
durante os anos 30 do século XX. Isto por conta do surgimento de uma personalidade
extremamente cultuada por influência da propaganda da Era Vargas: Agamenon Sérgio,
responsável por um projeto de modernização da cidade (LEITE, 2010). No entanto, o
moderno pode ser considerado um invólucro belo com um interior frágil. A produção do
espaço desigual existente em nossa história colonial impacta diretamente na vivência de
quem está à margem do acúmulo de capitais e a velocidade da expansão urbana faz com
que Recife passe de “Veneza” e se fixe definitivamente a ser conhecida como

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
“Mucambópolis”: “Não há como negar que o mocambo marcou de forma irremediável a
paisagem e a história da cidade do Recife. ” (LEITE, 2010, p. 1). Em suma, o cenário de
uma cidade orgulhosamente inspirada nas comparações com Amsterdã esconde o seu
estado de vulnerabilidade e acentuada disputa pelo território após a decadência do
Nordeste açucareiro, e o que é considerado ‘feio’ precisa desaparecer.

Uma Recife que ironicamente, em grande parte, reproduz um espaço de


visibilidade que o Estado Novo desejou moldar aos seus interesses o olhar da
sociedade sobre a cidade, escondendo o feio, o desorganizado e o sujo que
proliferavam imbricados a sua ficção de metrópole moderna. Existiu uma
Recife inventada pela propaganda do Estado. Uma Recife moderna, de largas
avenidas, pomposos prédios e iluminação futurista. Recife de gente sadia,
bonita, educada e bem vestida. A cidade representação do ideal da
interventoria que para existir precisava eliminar a outra Recife dos
mocambos, sobrados infectos e becos estreitos e sujos; dos vendedores de
bugigangas e comidas, dos engraxates e dos homens pretos ou quase pretos
de pés descalços, dos catimbozeiros e maracatuzeiros, significados todos
como o mal e o atraso. Elementos incongruentes com a nova sociedade
proposta pelos ideólogos e propagandistas do regime Varguista. (LEITE.
2010, p. 8).

Na contramão do que a propaganda visava enaltecer, Josué de Castro presenciou


e denunciou a frágil realidade de homens e mulheres recifenses habitantes dos
mocambos, em sua maioria retirantes que vivem no “ciclo do caranguejo”3. “Homens
caranguejos”, populações anfíbias mergulhadas na lama, sujeitos a uma grande
vulnerabilidade social, dependendo estreitamente da fertilidade do mangue para sua
subsistência. A análise clássica Rostowiana acredita que o desenvolvimento econômico
advém de etapas, fatores específicos da realidade que parecem ser constantes ao longo
da história (ROSTOW, 1974). Antagonizando o modelo Rostowiano, a análise
econômica de Celso Furtado (2005) traz à tona a gênese do subdesenvolvimento

3
O ‘ciclo do marisco’ é uma realidade social nos dias atuais. Até hoje, quem disponha de pachorra para
rondar as margens do Capibaribe, nos arredores do Recife, verá nas marés baixas, quando ficam
descobertas as coroas de areia e lodo, um verdadeiro exército de gente pobre desenterrando mariscos para
sua alimentação. É um verdadeiro formigueiro humano arrancado da lama a sua subsistência. (CASTRO,
1984, p. 150).

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
brasileiro, herdado do passado colonial e estruturado sobre ele. Para o autor, os países
subdesenvolvidos tiveram um processo de industrialização indireto acabando, por
engendrar os seus “papéis” dentro do capitalismo, ou seja, ao contrário de Rostow, o
subdesenvolvimento não é um “estágio” rumo ao desenvolvimento, mas sim, um projeto
dentro da economia-mundo. Com isso, a obra de Josué de Castro traz à tona a realidade
frágil do Brasil com heranças coloniais entranhadas não só em nossas relações sociais e
econômicas, mas também nas de modificação sistemáticas do meio, mostrando a
devastação geográfica do Nordeste antes como polo mais produtivo e rico do Brasil e,
posteriormente, como um solo desgastado e pobre como consequência dos anos de
exploração (CAMPOS, 2011).

Nesse sentido, o Manguebeat se posicionou nesse movimento dialético


realizando uma interpretação geográfica, histórica, cultural, social e ambiental da
cidade. Dialogando com representações que pairam no imaginário recifense como
“Veneza Americana” e “Mucambopólis”, com referências culturais locais (maracatu,
coco, ciranda) e globais (rock, hip-hop e música eletrônica). Atentos à relação de
supressão e aterramento dos manguezais e às desigualdades socioterritoriais, que
durante a década de 1990 não deixam de ser cada vez mais destoantes, e criam
dinâmicas alinhadas às políticas neoliberais, o Manguebeat demonstrou um
conhecimento crítico sobre a dinâmica histórica da cidade do Recife.

REFERÊNCIAS
ALVES, Cristiano Nunes. Recife, dinâmica urbana e cena manguebeat. RA'E GA: o Espaço
Geográfico em Análise, v. 35, p. 95-125, 2015.

ALBUQUERQUE, Mariana Zerbone Alves; GOMES, Edvânia. Torres Aguiar. O Jogo do Poder
na Produção do Espaço no Recife. Revista Rural & Urbano, v. 2, p. 39-56, 2017.

BARBOSA, David Tavares; MACIEL, Caio Augusto Amorim. Pontes Imaginárias sob o céu da
Manguetown: o Mangue Beat e os novos olhares sobre o Recife. Para onde!? (UFRGS), v. 6, p. 69-80,
2012.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre:
L&PM, 2015

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
BITOUN, Jan. Recife: Metrópole Regional, Periférica, Incompleta e Desigual. In: RIBEIRO,
Luiz Cesar de Queiroz. Metrópoles brasileiras: síntese da transformação na ordem urbana 1980 a
2010 — 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2018

CALÁBRIA, Lorena. Chico Science e Nação Zumbi: Da Lama ao Caos. Rio de Janeiro:
Cobogó, 2019.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

CASTILHO, Cláudio Jorge Moura. Processo de produção desigual do espaço urbano: Recife
impasse permanente da coexistência de interesses da cidade à acumulação de capital e da cidade à
realização plena da vida humana! Acta Geográfica (UFRR), v. 5, p. 95-113, 2011.

CASTRO, Josué de. A cidade do Recife: ensaio de geografia urbana. Rio de Janeiro: Casa do
Estudante do Brasil, 1954.

CASTRO, Josué de. Homens e caranguejos. 4o ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

CASTRO, Josué de. Geografia da fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. Rio de Janeiro:
Edições Antares, 1984.

GOMES, Demetrius Silva. Música, Geografia e Ensino: O diálogo local/global nos movimentos
Mangue Beat e Hip Hop. Para Onde!? (UFRGS). v. 6, p. 217-225, 2012.

FRED 04 & RENATO L. “Caranguejos com Cérebro”. Manifesto Mangue, 1992.

KONG, Lily. Música Popular nas análises geográficas. In: CORRÊA, Roberto Lobato;
ROSENDAHL, Zeny (Orgs.). Cinema, Música e Espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009.

LEITE, Ricardo. Recife dos morros e córregos: a fragorosa derrota do exterminador de


mocambos e sua liga social em Casa Amarela. In: X ENCONTRO NACIONAL DE HISTÓRIA
ORAL: HISTÓRIA E POLÍTICA, 10., 2010, Recife. Artigo... Pernambuco: Universidade Federal de
Pernambuco, 2010.

MACIEL, Caio. Espaços públicos e geo-simbolismos na “cidade estuário”: rios pontes e


paisagens do Recife. Revista de Geografia da UFPE, Recife, v. 22, no1, JAN/JUL, 2005, p. 1018.

MONTE, Camilla Aryana da Silva. A Geografia e Música no Recife: representações


socioespaciais da cidade a partir das letras das canções do movimento manguebeat. XVIII Encontro
Nacional de Geografia.

ROSTOW, Walt Whitman. Etapas do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Zahar


Editores, 1974.

SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ªed. São Paulo:
Edusp, 2006.

SILVA, Jorge Araujo da. Fatores externos e internos que alteram a vida do homem e o
ecossistema manguezal do Rio Jordão. 2009. Tese (Doutorado em Geografia Física), Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
SMITH, Neil. Desenvolvimento Desigual. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.

SMITH, Neil. As Cidades após o Neoliberalismo? Revista Continentes, [S.l.], n. 10, p. 88-107,
jul. 2017

TELES, José. Do frevo ao Manguebeat. São Paulo: Editora 34, 2000.

TESSER, Paula. Mangue Beat: húmus cultural e social. Logos, UERJ, Ano 14, n. 26, 2007.
Disponível em: http://www.logos.uerj.br/PDFS/26/05_PAULA_TESSER.pdf Acesso em: 26 de maio de
2019.

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758

Você também pode gostar