Obra Fuvest Livro Analise Quincas Borba
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OS LIVROS DA FUVEST
QUINCAS BORBA
MACHADO DE ASSIS
QUINCAS BORBA
Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler as Memórias
Póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago da existência que ali
aparece, mendigo, herdeiro inopinado [=inesperado], e inventor de uma
filosofia. Aqui o tens agora em Barbacena. Logo que chegou, enamorou-se de
uma viúva, senhora de condição mediana e parcos meios de vida: mas, tão
acanhada, que os suspiros do namorado ficavam sem eco. Chamava-se Maria
da Piedade. Um irmão dela, que é o presente Rubião, fez todo o possível para
casá-los. Piedade resistiu, um pleuris [=inflamação na pleura] a levou.
Foi esse trechozinho de romance que ligou os dous homens. Saberia
Rubião que o nosso Quincas Borba trazia aquele grãozinho de sandice
[=loucura], que um médico supôs achar-lhe? Seguramente, não; tinha-o
por homem esquisito. É, todavia, certo que o grãozinho não se despegou do
cérebro de Quincas Borba, – nem antes, nem depois da moléstia que
lentamente o comeu. Quincas Borba tivera ali alguns parentes, mortos já
agora em 1867; o último foi o tio que o deixou por herdeiro de seus bens.
Rubião ficou sendo o único amigo do filósofo. Regia então uma escola de
meninos, que fechou para tratar do enfermo. Antes de professor, metera
ombros a algumas empresas, que foram a pique. (Quincas Borba, cap. IV).
Aspectos da enunciação
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MACHADO DE ASSIS
deixa transparecer seu lirismo irônico ao longo da intriga que ele vai
arquitetando. O fragmento que apresentamos deixa claro que Machado,
pessoa física e social, se identifica como autor e narrador de um romance,
cujas personagens são – como se espera – inventadas. Ocorre aqui, portanto,
um autodesmascaramento muito raro em literatura: Machado sai do
anonimato da realidade e entra no palco de sua própria ficção, e explica a
seus leitores como é que está organizando seu romance, enfim, como executa
diante do olhar dos leitores seu ofício de escritor. Nas Memórias Póstumas
de Brás Cubas, ao contrário, Machado se escondera como tal, pusera em seu
lugar Brás Cubas, para exercer a narração da história, em primeira pessoa.
A visão de mundo
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a fragilidade humana diante da doença, diante da morte, diante do corpo
social emperrado. Conquanto fosse simpático a este ideário, Machado jamais
embarcou na canoa furada das “teses” realístico-naturalísticas. Porque estas
teses, no fundo, representavam novos otimismos burgueses, e, no plano da
ficção, deformavam ou afunilavam grosseiramente os caracteres. A segunda
visão, mais aguda, é aquela que liga Machado a Schopenhauer. Para esse
filósofo alemão, a vida do homem está por princípio condenada à dor e à
infelicidade. E a única solução está na quietude, numa paz inspirada no
nirvana budista, obtida pela superação de todos os desejos.
Recentemente, tem sido muito discutida entre nós a hipótese de que esse
negativismo machadiano nasceria da incapacidade de envolvimento radical
com o meio social brasileiro. Uma incapacidade que não seria apenas de
Machado, mas de outros escritores brasileiros da época. Essa tese pressupõe
que só o envolvimento social leva o autor a ter os meios para construir
histórias típicas, ou seja, histórias que criem e resolvam seus próprios
problemas, como acontece, por exemplo, nas Memórias de um Sargento de
Milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Machado de Assis, ao contrário, se
caracterizaria por interferir subjetivamente nas histórias que conta, e, nesse
sentido, seu realismo seria menos concreto, mais pessoal. Sua incapacidade
de “esquecer-se de si”, ou de mergulhar totalmente no meio brasileiro,
apontaria para um drama de vários intelectuais daqui, uma espécie de
contradição insuperável, e que só ele, apesar de tudo, teria resolvido bem. A
razão é a seguinte: se por um lado os intelectuais brasileiros invejavam a
cultura europeia, e a imitavam em seus escritos, por outro lado eles mesmos
tinham consciência de viver num país periférico, envolvido ainda por
estruturas coloniais, e de meios muito precários, enfim, um país para o qual
eles só queriam olhar com o canto dos olhos. Esta consciência pânica e
envergonhada de si mesma buscaria então a tranquilidade num fazer artístico
em que o preconceito pessimista se combinasse com uma ambição
liberalizante e europeísta. Simplificando, vestiríamos a casaca europeia, e
intimamente nos envergonharíamos de estar ainda com a cueca da senzala.
Esta perspectiva pode explicar alguma coisa da relação entre o romance e a
sociedade. Contudo, ela é limitada, não consegue explicar por que Machado
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foi um grande artista. Considere-se ainda mais um aspecto: um romancista
não precisa reproduzir a vida que ele ou seus conterrâneos vivam, como
também não é obrigado a afundar-se apenas em narrativas. Há vários gêneros
de romance. Aqui, como noutros lugares, o importante para o artista é a
liberdade de escolha e a qualidade daquilo que ele faz. Machado trabalhava
com sugestões que vinham de toda grande literatura mundial. Nele
encontramos tanto a influência de Luciano de Samósata, escritor da
Antiguidade, como a de Shakespeare, Voltaire, Swift, Sterne e vários outros.
Isso, ironicamente, não impediu que ele reproduzisse como ninguém algumas
das características essenciais da sociedade carioca.
BIOGRAFIA MÍNIMA
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grandes romances realistas, a começar por Memórias Póstumas de Brás
Cubas (1881). Começa então sua glória. À altura em que publicou Quincas
Borba (1891), Machado, com seus 51 anos, era o maior escritor brasileiro.
Foi também o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras. Em
1898, será secretário do ministro da Viação, e, quatro anos depois, diretor-
geral de Contabilidade do Ministério, cargo onde ficará até sua morte,
ocorrida em 1908. A morte de Carolina, quatro anos antes, já fizera dele um
homem acabado, uma sombra a viver de suas próprias saudades.
A biografia de Machado de Assis compreende, como se pode deduzir,
três dimensões: a felicidade conjugal, a burocracia e a evolução do escritor.
Ao contrário do que se poderia esperar, estas dimensões se harmonizaram.
A lenta maturação do escritor compatibilizou-se muito bem com a calma
do ritmo profissional e conjugal, que a fama não conseguiu perturbar. Essa
calma, que era um verdadeiro imperativo da alma machadiana, tinha seu
ritmo próprio de expressão artística. E talvez seja esta uma das razões por
que Machado não tivesse, na poesia e no teatro, a mesma glória que teve nos
romances e contos da fase realista, como a teve, também, na crônica e na
crítica literária. A grande vocação de Machado não estava nos ritmos
acelerados. Não estava, portanto, no temperamental ou no passional (como
foi o caso do português Camilo Castelo Branco). Seu forte estava na
imaginação paciente e analítica, que alguns de seus momentos da fase
romântica já deixavam perceber, ainda que timidamente.
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A NARRATIVA
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sem dúvida, sua graça, porque a loucura, somada à filosofice, tem certo
pico, e até certa verdade inesperada, como se verá depois. Mas, dadas as
limitações humanas de Quincas Borba, a psicologia machadiana não pôde
nele encontrar muita matéria para divagações. É Rubião quem vai dar a
Machado o caminho para uma expressiva descrição do espírito humano,
sobretudo o espírito da sociedade carioca do século passado. Não que
Rubião seja um primor de recursos humanos. Ao contrário, ele não passa de
um inocente. Mas um inocente que tem sonhos acima daquilo que pode
render. Um inocente através do qual a sociedade exercitará suas garras.
Machado vai mostrar, através de Rubião, como o grande sonho do homem
é o poder, é a riqueza, a notabilidade. Com a diferença de que Rubião não
estava preparado para isso.
Quincas Borba, doente, se prepara para a morte. Rubião se prepara para
o jogo incerto da fatalidade. No princípio, Rubião tem apenas uma tímida
esperança de que Quincas Borba o favoreça, aquinhoando-o com pelo
menos alguma coisa de seu testamento. Depois, ao saber-se herdeiro
universal dos bens do filósofo, o sonho de Rubião ganha asas e não há nada
mais que possa contê-lo.
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MACHADO DE ASSIS
Autonomia do realismo machadiano:
ambiguidade e acaso
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mão delicada... O major interrompera-os; mas por que
não insistiu ele mais tarde? Nem ela o maltratou, nem o
marido percebera coisa nenhuma... Aqui voltava a ideia
do possível rival; é certo que se retirara com sono, mas
os modos dela... Rubião ia à porta do salão, para ver
Sofia, depois chegava-se a um canto ou à mesa do
voltarete, inquieto, aborrecido. (Cap. LXX.)
SÍNTESE DA NARRATIVA
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Rubião pensa em seus novos bens, em tudo que o acaso lhe deu e ainda
lhe poderia dar. E sobretudo pensa em Sofia, casada com Cristiano Palha.
Obviamente, Machado de Assis está aí a merecer a fama que lhe deram de
analista sensível da alma humana, a mostrar que em cada um de nós existe
um jogo incômodo entre a moral e o sentimento. A condição de narrador
onisciente, que ele assume, permite-lhe mostrar por dentro a personagem.
E o que Machado nos mostra é que o pensamento íntimo é descontínuo,
entrecortado, rebelde, autocensor. E nos mostra isso num fluxo complexo de
imagens, de idas e voltas, de júbilo repentinamente cortado por apreensões.
As premissas de Barbacena
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[personagem de Voltaire, símbolo do otimismo] não fora tão tolo como o
fizera Voltaire. Rubião decide dar o cachorro a Angélica, uma comadre.
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Sofia, e o riso irônico dos astros
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Para Sofia, essa chegada inesperada do major, pai de D. Tonica, foi
providencial. No capítulo XLV, Machado compara a glória de Sofia com a
frustração de D. Tonica:
Sofia revela a Palha que fora cortejada por Rubião. Palha não pode
romper a amizade com Rubião, porque deve a este. Sua atitude tem também
um pouco de encenação. No dia seguinte, Sofia se ri da queda de um carteiro,
em plena rua:
Perdoem-lhe esse riso. Bem sei que o desassossego, a
noite malpassada, o terror da opinião, tudo contrasta
com esse riso inoportuno. Mas, leitora amada, talvez a
senhora nunca visse cair um carteiro. (Cap. LIII.)
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advertindo-o. De certa forma está testando os próprios ciúmes do marido.
Por outro lado, veremos que Sofia sente necessidade de ser cortejada, ainda
que seu coração esteja convictamente fechado às investidas de Rubião.
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— Obrigada! Foi fazer uma visita; parece que ouço
passos, há de ser ele.
Não era ele, era Carlos Maria. Rubião ficou
espantado de o ver ali, mas achou logo que a presença
da fazendeira e da filha explicaria tudo; podia ser até que
fossem aparentados.
— Ia saindo, quando o senhor entrou, disse-lhe
Rubião depois de o ver sentado ao pé de D. Maria
Augusta.
— Ah! respondeu o outro, olhando para o retrato de
Sofia.
Sofia foi até a porta despedir-se do Rubião; disse-lhe
que o marido ficaria com pena de não estar em casa; mas
que a visita era imperiosa. Negócios... Iria pedir-lhe
desculpa.
— Que desculpa? acudiu Rubião.
Parece que quis dizer ainda alguma cousa; mas o
aperto de mão de Sofia e a reverência que esta lhe fez
deram-lhe o sinal de despedida. Rubião inclinou- se,
atravessou o jardim, ouvindo a voz de Carlos Maria, na
sala:
— Vou denunciar seu marido, minha senhora; é
homem de muito mau gosto.
Rubião parou.
— Por quê? disse Sofia.
— Tem este seu retrato na sala, continuou Carlos
Maria, a senhora é muito mais bela, infinitamente mais
bela que a pintura. Comparem, minhas senhoras. (Cap.
LXV.)
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a princípio, de que Sofia realmente gostasse dele. Por seu turno, Carlos
Maria, jovem, elegante e hábil, quer já despertar alguma atenção especial de
Sofia. A entrada de um homem e a saída de outro já' anuncia um certo
simbolismo da substituição. Mas também já aparecem personagens que, de
uma forma ou de outra, não se reduzem ao grau de avidez e oportunismo que
tem o casal Cristiano Palha e Sofia. Carlos Maria e Maria Benedita não são
marcados pela sanha de ascensão social. Ao contrário, neles Machado vai
mostrar, como logo veremos, uma certa coesão de princípios.
O jornal de Camacho dá com ênfase a notícia sobre o menino que
Rubião salvara. Rubião, ao lê-la, a princípio se incomoda, mas fica feliz
com os elogios. Maria Benedita resolve ficar em casa de Palha e Sofia, para
aprender piano e francês (esse era um requisito para considerar-se educada
qualquer moça). Sofia a ensina, mas tem algum receio de ser socialmente
ofuscada por ela.
Oito meses se passam, e Rubião ficara sócio de Palha, num negócio de
importações. Os olhos do cão tinham parecido desaconselhar o
empreendimento. Mas Rubião pensou que poderia haver lucro, com a
vantagem ainda da amizade de Palha e da mulher deste, sobretudo.
Finalmente, numa festa em casa de Camacho, Sofia é cortejada por Carlos
Maria. Passeiam. Sofia já não tem então a rejeição que tivera com Rubião,
sob o luar. É que Carlos Maria, sim, conseguia tocá-la de fato. No dia
seguinte, ainda na cama, Sofia repensa na declaração de amor que ouvira da
boca do moço. Este, ao contrário, pensa na noite anterior, e se arrepende do
que fizera. Mais ainda: arrepende-se de ter mentido, quando dissera a Sofia
que a procurara no dia anterior, pela praia. Carlos Maria deseja sondar
dentro de si por que não mais está interessado em Sofia. E a explicação que
lhe vem é refinada, sobretudo terrível para a sensibilidade feminina: no
fundo, a Sofia faltava um pouco de polimento, educação. Sua elegância e
gestos eram, na verdade, postiços. Para quem queira entender, Machado está
aqui sendo fulminante com as mulheres que vestem a carapuça do
carreirismo masculino, mulheres cuja feminilidade estudada esconde o
baixo jogo dos interesses. Carlos Maria podia ter lá suas perversões, como
a de vibrar com o ciúme que sua beleza despertava noutros homens, ou
comportar-se como um estrategista da vaidade, um narcisista. Mas não era
um homem vulgar, e era muito fino para perceber a vulgaridade nas
mulheres. Carlos Maria não tem nada do romantismo quixotesco e
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inoportuno de Rubião. Gosta sinceramente de religião, ao contrário dos
burocratas de igreja, numerosos na época. Maria Benedita vai por caminho
semelhante. Romântica, mas simples e direta, não gosta que os homens a
apertem na valsa ou na polca, nem se fascina com o luxo. Sofia lhe diz que
deseja casá-la com um conhecido, sem revelar quem, talvez por um ciúme
inexplicável. Este homem era Rubião. Mas a moça pensava, na verdade, em
Carlos Maria. Enfim, Carlos Maria e Maria Benedita são duas personagens
secundárias que lançam uma leve sombra irônica sobre a avidez e arrivismo
do casal Palha e Sofia. Não são santos. Mas também não são demônios.
Rubião é também pressionado pelo major Siqueira: devia casar-se.
Note-se como o casamento é aqui objeto de um jogo elíptico de interesses.
Rubião, que remói interiormente esse problema, passa os dias lendo
folhetins, e mistura as histórias com seus próprios pensamentos. Mau sinal.
Todas as noivas que imaginava tinham o rosto de Sofia. Já se precipitam
nele os primeiros sintomas de confusão mental. Procura espairecer com
alguns passeios. Enquanto isso, o casal Palha procura ganhar evidência, com
reuniões em casa. Sofia se entrega aos afazeres de uma comissão de
benemerência, para os flagelados de Alagoas. Aproveita-se dos contatos
com mulheres mais ricas para entrar num ponto mais elevado socialmente.
Palha progride nos negócios.
Rubião, que se indispusera com Sofia, por causa de uma carta (de
simples formalidades, aliás) que esta enviara a Carlos Maria, fica alguns
meses sem visitar o casal. Palha, que é o depositário do dinheiro de Rubião,
preocupa-se com a maneira com que este vai dissipando a fortuna entre
amigos. Num de seus sonhos, “Rubião sentiu que era o imperador Luís
Napoleão; o cachorro ia no carro aos pés de Sofia” (cap. CIX). Rubião
quer manter seu propósito de não ver Sofia. Mas acaba comprando, para
ela, como presente de aniversário, um magnífico brilhante, e mesmo
comparece ao jantar, onde Sofia vai desfazer o mal-entendido da carta e
informar a Rubião que Maria Benedita iria casar-se com Carlos Maria. Isto
só fora possível por interferência de uma prima deste, Dona Fernanda,
casada com Teófilo, um homem que aspirava ao ministério. Dona Fernanda
é uma figura especial na galeria feminina de Machado de Assis. Não aparece
muito, mas o pouco em que aparece nos mostra que se trata de pessoa
generosa e desprendida. Machado aqui se interessa mais por aspectos
positivos da natureza humana, que se podem encontrar inesperadamente. E,
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de alguma forma, a presença de uma mulher como Dona Fernanda, acaba
abrandando um pouco o negativismo machadiano.
Palha comunica a Rubião seu intento de liquidar a sociedade, pois está
interessado noutro negócio, em que não deseja a participação do amigo. Aí
mais se acentua a ingratidão de Palha, e a progressiva ruína financeira de
Rubião (que ainda tem, contudo, muito dinheiro para gastar). Sofia vai
acompanhando o marido em suas novas relações. A transformação do casal
em “novos ricos” não escapa às críticas do major Siqueira, que se sente
desprezado, e alimenta ainda o sonho de casar a filha.
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Não se esqueciam de saborear sua comida, e tomar seu dinheiro
emprestado.
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MACHADO DE ASSIS
A ironia do fim
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corpo não durou muito; o corpo caiu outra vez; o rosto
conservou porventura uma expressão gloriosa.
— Guardem a minha coroa, murmurou. Ao vencedor...
A cara ficou séria, porque a morte é séria; dous
minutos de agonia, um trejeito horrível, e estava assinada
a abdicação. (Cap. CC)
O cão amanheceu morto na rua três dias depois. Eis como conclui
Machado:
MACHADO DE ASSIS
reversão e uma certa imponderabilidade, que não pertence apenas à lógica
perversora do capitalismo. Há também a lógica irônica do acaso, combinado
a uma estranha ciranda do destino, por meio da qual sempre vamos acabar
caindo em frente daquilo de que fugimos. Independentemente do século ou
do país em que vivamos. O grande universalismo de Machado está em que
ele soube fundir essa lógica circular e arquetípica com a espiral da lógica
capitalista da vida carioca do século passado.
A COMPOSIÇÃO
Linguagem
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QUINCAS BORBA
cabo de muitos séculos (...) Castas estrelas! é assim que
lhes chama Otelo, o terrível e Tristram Shandy, o jovial.
Esses extremos do coração e do espírito estão de acordo
num ponto: as estrelas são castas.
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MACHADO DE ASSIS
viu o que era, depois tornou a deitar-se, mas acordado, de
barriga para o ar, com os olhos fitos no céu. O céu
fitava-o também, impassível como ele, mas sem as rugas do
mendigo, nem os sapatos rotos, nem os andrajos, um céu
claro, estrelado, sossegado, olímpico, tal qual presidiu às
bodas de Jacó e ao suicídio de Lucrécia. Olhavam-se numa
espécie de jogo do siso, com certo ar de majestades rivais
e tranquilas, sem arrogância, nem baixeza, como se o
mendigo dissesse ao céu:
— Afinal, não me hás de cair em cima.
E o céu:
— Nem tu me hás de escalar.
QUINCAS BORBA
sentido, podemos ver em Quincas Borba uma das mais bem-sucedidas
tentativas de realismo psicológico. A alma, sem dúvida, tem voos muito
ousados, sonha demais. Mas não sonha tanto que não volte sempre à questão
dos valores, em que ela está como que perdida. Dos voos livres e absolutos,
quem se encarrega é o próprio narrador, e sempre os faz envolvido por um
universalismo amargo, como já vimos:
TEXTO 1
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MACHADO DE ASSIS
3. Transcreva do texto uma frase que explique “linhas tortas”, e
outra que explique “escreve direito”.
TEXTO 2
Não se pense que tudo isso foi tão fácil como aí fica escrito. Na prática,
vieram os óbices, amofinações, saudades, rebeliões de Maria Benedita.
Dezoito dias depois da volta da mãe à fazenda, quis ir visitá-la, e a prima
acompanhou-a; estiveram lá uma semana. A mãe, dous meses depois, veio
passar uns dias aqui. Sofia acostumava habilmente a prima às distrações da
cidade; teatros, visitas, passeios, reuniões em casa, vestidos novos, chapéus
lindos, joias. Maria Benedita era mulher, posto que mulher esquisita; gostou
de tais cousas, mas tinha para si que, logo que quisesse, podia arrebentar
todos esses liames, e andar para a roça. A roça vinha ter com ela, às vezes,
em sonho ou simples devaneio. Depois dos primeiros saraus, quando voltava
para casa, não eram as sensações da noite que lhe enchiam a alma, eram as
saudades de Iguaçu. Cresciam-lhe mais a certas horas do dia, quando a
quietação da casa e da rua era completa. Então batia as asas para a varanda
da velha casa, onde bebia café, ao pé da mãe; pensava na escravaria, nos
móveis antigos, nas bonitas chinelas que lhe mandara o padrinho, um
fazendeiro rico de S. João d’E-Rei, – e que lá ficaram em casa. Sofia não
consentiu que ela as trouxesse. (Cap. LXVIII.)
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QUINCAS BORBA
TEXTO 3
TEXTO 4
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MACHADO DE ASSIS
em criança, e que aqui lhes dou em duas linhas. Era uma vez uma
choupana que ardia na estrada; a dona, – um triste molambo de
mulher, – chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão.
Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a
mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.
— É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste
mundo.
— Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?
O padre que me contou isto certamente emendou o texto original;
não é preciso estar embriagado para acender um charuto nas misérias
alheias. Bom Padre Chagas! Chamava-se Chagas. Padre mais que bom,
que assim me incutiste por muitos anos essa ideia consoladora, de que
ninguém, em seu juízo, faz render o mal dos outros; não contando o
respeito que aquele bêbado tinha ao princípio da propriedade, a ponto
de não acender o charuto sem pedir licença à dona das ruínas. Tudo
ideias consoladoras. Bom Padre Chagas! (Cap. CXVII)
11. “... ninguém, em seu juizo, faz render o mal dos outros”. Faça
um paralelo entre esta frase e o conteúdo da história contada pelo
narrador.
12. Por que a maior parte desse capítulo pode ser considerada
digressiva?
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RESPOSTAS
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MACHADO DE ASSIS
9. Maria Benedita casou-se com Carlos Maria, porque tivera contato com
a prima deste, D. Fernanda, durante o trabalho da comissão de ajuda às
vítimas da epidemia em Alagoas. D. Fernanda praticamente determinou
o casamento de ambos. Logo, a catástrofe em Alagoas foi útil para que
o casamento ocorresse.
10. O fator de surpresa está em que, quando tudo levava a crer que a dona
da casa seria consolada, aparece alguém que tira de seu infortúnio uma
pequena vantagem, e ainda com um pouco de humor.
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