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OS LIVROS DA FUVEST

QUINCAS BORBA
MACHADO DE ASSIS

Análise da obra, seleção de textos


FRANCISCO ACHCAR
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QUINCAS BORBA
Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler as Memórias
Póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago da existência que ali
aparece, mendigo, herdeiro inopinado [=inesperado], e inventor de uma
filosofia. Aqui o tens agora em Barbacena. Logo que chegou, enamorou-se de
uma viúva, senhora de condição mediana e parcos meios de vida: mas, tão
acanhada, que os suspiros do namorado ficavam sem eco. Chamava-se Maria
da Piedade. Um irmão dela, que é o presente Rubião, fez todo o possível para
casá-los. Piedade resistiu, um pleuris [=inflamação na pleura] a levou.
Foi esse trechozinho de romance que ligou os dous homens. Saberia
Rubião que o nosso Quincas Borba trazia aquele grãozinho de sandice
[=loucura], que um médico supôs achar-lhe? Seguramente, não; tinha-o
por homem esquisito. É, todavia, certo que o grãozinho não se despegou do
cérebro de Quincas Borba, – nem antes, nem depois da moléstia que
lentamente o comeu. Quincas Borba tivera ali alguns parentes, mortos já
agora em 1867; o último foi o tio que o deixou por herdeiro de seus bens.
Rubião ficou sendo o único amigo do filósofo. Regia então uma escola de
meninos, que fechou para tratar do enfermo. Antes de professor, metera
ombros a algumas empresas, que foram a pique. (Quincas Borba, cap. IV).

Esse texto resume a base da intriga inicial do romance Quincas Borba


(1891). O próprio autor entra aí em cena, e nos diz que esse novo romance
é, de certa forma, uma continuação de suas Memórias Póstumas de Brás
Cubas (1881). Quincas Borba, que também aparecera nas Memórias, é o
filósofo, ex-mendigo, que passa a merecer os cuidados de enfermeiro de
seu amigo Rubião. Capítulos depois, Quincas Borba, num acesso de
obsessão, vai sair de Barbacena e viajar para o Rio de Janeiro. Mais tarde,
Rubião lê no jornal a notícia sobre a morte de Quincas Borba.

Aspectos da enunciação

Como o próprio autor-narrador faz menção a si mesmo (“se acaso me


fizeste o favor de ler...”), não teremos dúvida em reconhecer o foco narrativo
de primeira pessoa. É verdade que, na maior parte do livro, o narrador-autor
fala não de si, mas dos outros, e o foco de interesse parece passar da primeira
para a terceira pessoa. Mas o eu do narrador-autor, ainda que
pronominalmente recessivo (ou seja, ainda que o pronome eu não apareça),

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MACHADO DE ASSIS

deixa transparecer seu lirismo irônico ao longo da intriga que ele vai
arquitetando. O fragmento que apresentamos deixa claro que Machado,
pessoa física e social, se identifica como autor e narrador de um romance,
cujas personagens são – como se espera – inventadas. Ocorre aqui, portanto,
um autodesmascaramento muito raro em literatura: Machado sai do
anonimato da realidade e entra no palco de sua própria ficção, e explica a
seus leitores como é que está organizando seu romance, enfim, como executa
diante do olhar dos leitores seu ofício de escritor. Nas Memórias Póstumas
de Brás Cubas, ao contrário, Machado se escondera como tal, pusera em seu
lugar Brás Cubas, para exercer a narração da história, em primeira pessoa.

A visão de mundo

Outro aspecto que podemos notar sem dificuldade é o negativismo com


que Machado envolve estas primeiras personagens. Quincas é louco. Maria
da Piedade morreu sem se casar de novo. Rubião é fracassado. Pessoas assim
fazem parte da visão pessimista de Machado de Assis. Este pessimismo,
contudo, é sempre temperado por grandes ilusões. Vejamos algumas:
Quincas, que era filósofo e fora mendigo, acaba recebendo uma providencial
herança, deixada pelo tio, algo que poderia ter mudado sua vida, se não
adoecesse. Por outro lado, o simples fato de ser filósofo, e um filósofo que
engendra um sistema de explicação dos erros e acertos do mundo, mostra
que, ou bem ou mal, ele sonha com uma explicação do mundo. Rubião, que
sonha casar sua irmã com Quincas, também sonhava com empreendimentos
que estavam acima de sua ambição. Todos estes são grandes e pequenos
sonhos. Podemos, pois, dizer que o pessimismo machadiano transige com
uma certa perspectiva de gozo irônico das ilusões. É esta busca das ilusões
que dá mobilidade e encanto ao mundo das personagens.
O que parece líquido e certo é que Machado trabalha seu romance com
duas dimensões complementares, como a cara e a coroa de uma moeda. Do
lado das personagens, pulsam as ilusões, o desejo, a agitação de conquista.
Do lado do narrador, vai-se armando para aquelas a desilusão, a derrota, a
tragédia. A maioria dos críticos concorda que esse pessimismo, que vem do
narrador, representa a crença que Machado punha em certas ideologias
antirromânticas, ideologias da negatividade. A primeira delas seria o
realismo, que teve uma visão antissonhadora da natureza, visão que reforçava

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QUINCAS BORBA
a fragilidade humana diante da doença, diante da morte, diante do corpo
social emperrado. Conquanto fosse simpático a este ideário, Machado jamais
embarcou na canoa furada das “teses” realístico-naturalísticas. Porque estas
teses, no fundo, representavam novos otimismos burgueses, e, no plano da
ficção, deformavam ou afunilavam grosseiramente os caracteres. A segunda
visão, mais aguda, é aquela que liga Machado a Schopenhauer. Para esse
filósofo alemão, a vida do homem está por princípio condenada à dor e à
infelicidade. E a única solução está na quietude, numa paz inspirada no
nirvana budista, obtida pela superação de todos os desejos.

Uma tese de nossos dias

Recentemente, tem sido muito discutida entre nós a hipótese de que esse
negativismo machadiano nasceria da incapacidade de envolvimento radical
com o meio social brasileiro. Uma incapacidade que não seria apenas de
Machado, mas de outros escritores brasileiros da época. Essa tese pressupõe
que só o envolvimento social leva o autor a ter os meios para construir
histórias típicas, ou seja, histórias que criem e resolvam seus próprios
problemas, como acontece, por exemplo, nas Memórias de um Sargento de
Milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Machado de Assis, ao contrário, se
caracterizaria por interferir subjetivamente nas histórias que conta, e, nesse
sentido, seu realismo seria menos concreto, mais pessoal. Sua incapacidade
de “esquecer-se de si”, ou de mergulhar totalmente no meio brasileiro,
apontaria para um drama de vários intelectuais daqui, uma espécie de
contradição insuperável, e que só ele, apesar de tudo, teria resolvido bem. A
razão é a seguinte: se por um lado os intelectuais brasileiros invejavam a
cultura europeia, e a imitavam em seus escritos, por outro lado eles mesmos
tinham consciência de viver num país periférico, envolvido ainda por
estruturas coloniais, e de meios muito precários, enfim, um país para o qual
eles só queriam olhar com o canto dos olhos. Esta consciência pânica e
envergonhada de si mesma buscaria então a tranquilidade num fazer artístico
em que o preconceito pessimista se combinasse com uma ambição
liberalizante e europeísta. Simplificando, vestiríamos a casaca europeia, e
intimamente nos envergonharíamos de estar ainda com a cueca da senzala.
Esta perspectiva pode explicar alguma coisa da relação entre o romance e a
sociedade. Contudo, ela é limitada, não consegue explicar por que Machado

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MACHADO DE ASSIS
foi um grande artista. Considere-se ainda mais um aspecto: um romancista
não precisa reproduzir a vida que ele ou seus conterrâneos vivam, como
também não é obrigado a afundar-se apenas em narrativas. Há vários gêneros
de romance. Aqui, como noutros lugares, o importante para o artista é a
liberdade de escolha e a qualidade daquilo que ele faz. Machado trabalhava
com sugestões que vinham de toda grande literatura mundial. Nele
encontramos tanto a influência de Luciano de Samósata, escritor da
Antiguidade, como a de Shakespeare, Voltaire, Swift, Sterne e vários outros.
Isso, ironicamente, não impediu que ele reproduzisse como ninguém algumas
das características essenciais da sociedade carioca.

BIOGRAFIA MÍNIMA

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no morro do Livramento, no


Rio de Janeiro, em 1839. Era filho de um pintor de paredes e uma lavadeira.
Sofreu de epilepsia e gagueira, o que lhe acentuava mais ainda o
comportamento reservado. Autodidaticamente, aprendeu as línguas que lhe
abriram as portas da grande literatura. Ainda adolescente, trabalhou na
Imprensa Nacional, onde conheceu Manuel Antônio de Almeida. Foi
tipógrafo, redator e diretor de revistas e jornais. Aos dezesseis anos publica
seu primeiro poema (“Ela”, na Marmota Fluminense), e daí para frente não
mais cessará sua colaboração com a imprensa. Foi no Diário do Rio de
Janeiro, onde entrou em 1860, que Machado de fato encarou a necessidade
de sair do amadorismo das revistas literárias e escrever para o grande
público. Casou-se com Carolina de Novais em 1869, dois anos depois de ter
sido nomeado ajudante de publicação do Diário Oficial. Na época, sua
literatura não passava de mediana. Com 32 anos, publica Ressurreição
(1871), com que começa sua primeira fase de romancista, não só
influenciada pelo Romantismo, como caracterizada também por uma certa
projeção pessoal do autor na obra (em Iaiá Garcia, não só Estela abandona
um meio humilde para subir na vida, como o próprio Luís é um retrato bem
aproximado ao de Machado de Assis). Daí para a frente, Machado irá
ganhando importância nacional. Começa também sua ascensão na vida
burocrática, que exerceria por 35 anos.
A crise de saúde por que Machado de Assis passou aos 39 anos
preparou-lhe, ao que parece, a grande transformação que o levaria a seus

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QUINCAS BORBA
grandes romances realistas, a começar por Memórias Póstumas de Brás
Cubas (1881). Começa então sua glória. À altura em que publicou Quincas
Borba (1891), Machado, com seus 51 anos, era o maior escritor brasileiro.
Foi também o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras. Em
1898, será secretário do ministro da Viação, e, quatro anos depois, diretor-
geral de Contabilidade do Ministério, cargo onde ficará até sua morte,
ocorrida em 1908. A morte de Carolina, quatro anos antes, já fizera dele um
homem acabado, uma sombra a viver de suas próprias saudades.
A biografia de Machado de Assis compreende, como se pode deduzir,
três dimensões: a felicidade conjugal, a burocracia e a evolução do escritor.
Ao contrário do que se poderia esperar, estas dimensões se harmonizaram.
A lenta maturação do escritor compatibilizou-se muito bem com a calma
do ritmo profissional e conjugal, que a fama não conseguiu perturbar. Essa
calma, que era um verdadeiro imperativo da alma machadiana, tinha seu
ritmo próprio de expressão artística. E talvez seja esta uma das razões por
que Machado não tivesse, na poesia e no teatro, a mesma glória que teve nos
romances e contos da fase realista, como a teve, também, na crônica e na
crítica literária. A grande vocação de Machado não estava nos ritmos
acelerados. Não estava, portanto, no temperamental ou no passional (como
foi o caso do português Camilo Castelo Branco). Seu forte estava na
imaginação paciente e analítica, que alguns de seus momentos da fase
romântica já deixavam perceber, ainda que timidamente.

ASPECTOS PRINCIPAIS DE QUINCAS BORBA

A divisão básica: narrativa vs composição

Para compreendermos um romance complexo como Quincas Borba, é


necessária uma divisão que corresponda às partes mais importantes do livro.
A primeira diz respeito à narrativa: de que tipo de história se trata e o que nos
conta? Quais os valores espirituais e morais que entram em cena, qual a visão
de mundo do autor? A segunda diz respeito à composição: como Machado
combina as partes de seu romance? Quais as constantes fundamentais do
estilo? Procuraremos agora retomá-las numa articulação mais sistemática.

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MACHADO DE ASSIS
A NARRATIVA

Os postulados da primeira parte

Já sabemos que a personagem Quincas Borba vinha do primeiro


romance realista de Machado de Assis (Memórias Póstumas de Brás Cubas).
Lá, Quincas Borba nos aparece como mendigo e filósofo, e sobretudo amigo
do narrador, a quem explica sua filosofia Humanitismo ou Humanitas, uma
espécie de força que governa o mundo e controla a parte mais decisiva de
nosso destino.
Dizem alguns críticos, e com razão, que o Humanitismo é uma espécie
de alegoria, um arremedo que Machado teria feito da filosofia positivista de
Augusto Comte. No fundo, o Humanitismo de Quincas Borba tem alguns
ingredientes muito antigos, ao lado de outros, inspirados, inclusive, no
Evolucionismo. Quincas Borba, de fato, tem algo de positivista: confia no
racionalismo e no progresso do conhecimento, bem como na vitória da
ciência. Mas o próprio fato de que tenha sido um mendigo com fortes
evidências de fraqueza mental coloca sua filosofia sob o crivo irônico de
Machado. O próprio Machado começa por se referir a ele como “náufrago
da existência”. Depois nos mostra seus delírios maníacos, sobretudo aqueles
que antecederam a sua morte. Machado, portanto, submete o Humanitismo
a um banho de humor e de ironia. Não porque acredite em outros sonhos. Ao
contrário, ele não parece acreditar em sistema algum. Sua visão das coisas
continua a ser cética e pessimista, de um pessimismo derivado de
Schopenhauer. Isto, somado à forma como Machado desenha o trabalho
perverso do dinheiro e do poder, constituirá o impacto mais evidente do livro.

Os dois protagonistas de partida

Por ser uma personagem inteiramente monopolizada por suas próprias


crenças extravagantes, Quincas Borba vem a ser pouco mais que uma
caricatura. Poderíamos dizer que ele é uma personagem plana, pois não
evolui dramaticamente, não nos surpreende. É o que a tradição crítica tem
chamado, em tom jocoso, philosophus gloriosus (filósofo fanfarrão). Essa
figura é comum na chamada sátira menipeia (as Memórias Póstumas de
Brás Cubas pertencem a esse gênero). Não obstante, Quincas Borba tem,

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QUINCAS BORBA
sem dúvida, sua graça, porque a loucura, somada à filosofice, tem certo
pico, e até certa verdade inesperada, como se verá depois. Mas, dadas as
limitações humanas de Quincas Borba, a psicologia machadiana não pôde
nele encontrar muita matéria para divagações. É Rubião quem vai dar a
Machado o caminho para uma expressiva descrição do espírito humano,
sobretudo o espírito da sociedade carioca do século passado. Não que
Rubião seja um primor de recursos humanos. Ao contrário, ele não passa de
um inocente. Mas um inocente que tem sonhos acima daquilo que pode
render. Um inocente através do qual a sociedade exercitará suas garras.
Machado vai mostrar, através de Rubião, como o grande sonho do homem
é o poder, é a riqueza, a notabilidade. Com a diferença de que Rubião não
estava preparado para isso.
Quincas Borba, doente, se prepara para a morte. Rubião se prepara para
o jogo incerto da fatalidade. No princípio, Rubião tem apenas uma tímida
esperança de que Quincas Borba o favoreça, aquinhoando-o com pelo
menos alguma coisa de seu testamento. Depois, ao saber-se herdeiro
universal dos bens do filósofo, o sonho de Rubião ganha asas e não há nada
mais que possa contê-lo.

Narrativa irônica e pessimismo realista

Chama-se narrativa irônica aquela em que a personagem principal


esteja em situação inferior à do narrador e à do leitor – ou seja, o narrador
e o leitor têm da personagem uma compreensão que esta não pode ter. Esse
é o caso de Rubião. Para piorar, sabemos que Rubião também padece
daquele “grãozinho de sandice”, daquela espécie de esquizofrenia que o
meio social pode levar à completa loucura. A perspectiva pessimista de
Machado não se vai alterar muito, desde as Memórias Póstumas de Brás
Cubas. Entretanto, em Quincas Borba emerge um elemento novo. É que o
pessimismo agora não nasce necessariamente da ameaça universal da morte.
Vem da certeza de que a estrutura social faz do homem um lobo do próprio
homem. Como consequência formal e estética, Quincas Borba já não será
um romance tão digressivo [divagativo] quanto haviam sido as Memórias
Póstumas de Brás Cubas. Há em Quincas Borba mais lógica da
historicidade, mais concentração narrativa, mais concatenação entre a vida
e as razões da vida.

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MACHADO DE ASSIS
Autonomia do realismo machadiano:
ambiguidade e acaso

Só podemos, contudo, entender que Machado faz uma crítica à


sociedade, se tomarmos a palavra crítica no seu sentido mais alto: Machado
mostra a crise da sociedade e deixa a sociedade mesma tomar seus partidos.
Machado não faz, no romance, nenhuma negação direta e pessoal do
capitalismo. Ele mostra sinuosamente a crise, sem recomendar soluções ou
panfletos. Isto, aliás, seria contradição, para quem se mostrara sempre
irônico e pessimista em tudo. Há, sem dúvida, uma imagem de injustiça, na
tragédia de Rubião. Mas, por outro lado, Machado também se embevece
com o gozo, como compensação dos vitoriosos, e os mostra como tais, sem
cair no polemismo, no moralismo ou na hipocrisia piedosa. Mostra, enfim,
a burguesia em seu fascínio sincero. Ainda que sempre discreto, Machado
sabe honrar a perspectiva do prazer, que o dinheiro inelutavelmente traz.
Isto faz dele um dos maiores realistas de todos os tempos, um homem que
sabia olhar para as coisas sem se deixar envolver pelos ideários que
“moralizam” as coisas (Humanismo, Cristianismo, Socialismo etc.). É
verdade que o gozo, para Machado, também era uma ilusão. Mas, enquanto
durasse, não deixaria de ser uma felicidade real, subtraída que fosse ao
tempo fatal da morte, ou simplesmente subtraída aos outros.
Ora, já vimos que Machado é pessimista porque as coisas terminam
mal para as personagens mais importantes. Ou porque as desilusões são
muito drásticas. Ou porque Machado lembra sempre a morte, que os vivos
tentam esquecer. Mas existe algo que não é pessimismo. É o modo dinâmico
e cambiante do olhar. Há nesse olhar um movimento que sempre prestigia
a dúvida, a falibilidade, o pode-ser-mas-não-é, enfim, a ambiguidade. Em
Machado, as aparências do mundo não param de mudar suas formas. Não
há nelas nenhuma essência final e definitiva, tudo está submetido ao
equívoco e à dúvida:

Não sabia que pensasse. O fato de sair, de a deixar no


baile, em vez de esperar para acompanhá-la à carruagem,
como de outras vezes ... Podia ser engano dele... E
pensava, recordava a noite de Santa Teresa, quando ele
ousou declarar à moça o que sentia, pegando-lhe na bela

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QUINCAS BORBA
mão delicada... O major interrompera-os; mas por que
não insistiu ele mais tarde? Nem ela o maltratou, nem o
marido percebera coisa nenhuma... Aqui voltava a ideia
do possível rival; é certo que se retirara com sono, mas
os modos dela... Rubião ia à porta do salão, para ver
Sofia, depois chegava-se a um canto ou à mesa do
voltarete, inquieto, aborrecido. (Cap. LXX.)

Ora, esta falibidade constante, que sempre deposita um pouco de


incerteza em todas as coisas e pessoas, é simplesmente um sinal de respeito
à verdade. Porque as coisas e as pessoas não têm exatamente a forma ou a
versão que nós captamos nelas. Já sabemos o quanto de discussão tem
gerado a figura de Capitu e a possibilidade do adultério, em D. Casmurro.
Pois em todo trabalho de Machado há sempre um pouco de Capitu. No
fundo isto confere com a crença de que o mundo está a toda hora mudando,
e não podemos confiar nas profecias. Isto é o mesmo que dizer que tudo
está submetido às leis misteriosas do acaso. Nós já sabemos que Rubião
ama Sofia. Mas foi um acaso que os aproximou pela primeira vez. A
intromissão do acaso suaviza o rigorismo das causas e dos efeitos.
Relativizar causas e efeitos é uma das grandes técnicas machadianas.

SÍNTESE DA NARRATIVA

O gozo de Rubião em Botafogo

Já vimos que o romance começa com uma antecipação: surpreendemos


Rubião já rico, vivendo em Botafogo. Está então pensativo e se envergonha
da felicidade que sente por terem morrido sua irmã e o filósofo Quincas
Borba:

Ele, coração, vai dizendo que, uma vez que a mana


Piedade tinha de morrer, foi bom que não casasse; podia
vir um filho ou uma filha... – Bonita canoa! – Antes assim!
– Como obedece bem aos remos do homem! – O certo é
que eles estão no céu. (Cap. 11.)

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MACHADO DE ASSIS

Rubião pensa em seus novos bens, em tudo que o acaso lhe deu e ainda
lhe poderia dar. E sobretudo pensa em Sofia, casada com Cristiano Palha.
Obviamente, Machado de Assis está aí a merecer a fama que lhe deram de
analista sensível da alma humana, a mostrar que em cada um de nós existe
um jogo incômodo entre a moral e o sentimento. A condição de narrador
onisciente, que ele assume, permite-lhe mostrar por dentro a personagem.
E o que Machado nos mostra é que o pensamento íntimo é descontínuo,
entrecortado, rebelde, autocensor. E nos mostra isso num fluxo complexo de
imagens, de idas e voltas, de júbilo repentinamente cortado por apreensões.

As premissas de Barbacena

Mas, depois desse quadro, muito requintado, de confort moderne,


Machado faz um retorno ao passado recente, ou seja, para antes da ascensão
social e econômica de Rubião, e, portanto, para antes da morte de Quincas
Borba. Já sabemos que Quincas Borba estava doente, em Barbacena, e que
Rubião viera tratá-lo.
Quincas Borba dera seu próprio nome ao cão que possuía. De acordo
com o Humanitismo, no cão também havia o princípio vital, de tal maneira
que, se o filósofo viesse a morrer, sobreviveria através do cão. Quincas
Borba explica a Rubião esse Humanitismo através de uma parábola: se duas
tribos famintas têm de viajar para chegar a um campo de batatas, e só
dispõem de poucas batatas para se alimentarem para a viagem, que devem
fazer? Simplesmente lutar uma contra a outra, até que vença a mais forte:
“Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas” (Cap. VI).
Mas, como sabemos, Quincas, subitamente, e contra todos os
prognósticos, resolve viajar para o Rio de Janeiro. Depois de registrar seu
testamento, deixa seu cão para que Rubião o cuidasse. Apreensivo, este
sente a consciência culposa, por ter deixado o amigo partir. Que diriam os
outros? Mas breve Rubião recebe carta do foragido filósofo, que confessa
saber então quem era: Santo Agostinho (com a diferença de que, para o
santo, o mal era um desvio da vontade, e, para Quincas, o mal simplesmente
não existia). Rubião não sabe se mostra a carta ao médico de Quincas. Leu,
enfim, também nos jornais sobre a morte de Quincas Borba. As últimas
palavras do filósofo foram que a dor era uma ilusão, e que Pangloss

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QUINCAS BORBA
[personagem de Voltaire, símbolo do otimismo] não fora tão tolo como o
fizera Voltaire. Rubião decide dar o cachorro a Angélica, uma comadre.

Mais, muito mais do que pensava...

Aberto o testamento, Rubião fica sabendo que é herdeiro universal dos


bens do filósofo, sob a condição de que guardasse consigo o cão. Decide
mudar-se para o Rio de Janeiro. Mas recupera antes o animal, enfrentando,
entretanto, alguma relutância da nova dona.
Rubião já estava no trem que o levaria ao Rio de Janeiro. Na estação de
Vassouras, entra o casal Cristiano Palha e Sofia. Sentam-se em frente a
Rubião. Palha e Rubião começam a conversar sobre escravatura, política e
Guerra do Paraguai. No fundo, Rubião está é absorto em Sofia. E cai na
ingenuidade de revelar que é herdeiro universal dos bens de um amigo, de
quem dá informações sumárias. Palha oferece a Rubião sua casa em Santa
Teresa, no Rio. Rubião vai para a Hospedaria União. Prometem visitar-se.
No dia seguinte, Palha intima Rubião a jantar em sua casa. Desmede-
se em gentilezas. Rubião aceita, e impressiona-se ainda mais com Sofia, vai
ficando seduzido. Só no capítulo XXVIII é que o narrador vai retomar a
cena inicial do capítulo III, recolocando o leitor no presente da narrativa.
Já em sua casa de Botafogo, Rubião se julga de alguma forma
correspondido por Sofia.
E o cão?

Ali a vida não é completamente má. Há um moleque


que o lava todos os dias em água fria, usança do diabo,
a que ele não se acostuma. Jean, o cozinheiro, gosta do
cão, o criado espanhol não gosta (...) Machucado,
separado do amigo, Quincas Borba vai então deitar-se a
um canto, e fica ali muito tempo, calado, agita-se um
pouco, até que acha a posição definitiva, e cerra os olhos.
Não dorme, recolhe as ideias, combina, relembra; a
figura vaga do finado amigo passa-lhe acaso ao longe,
muito ao longe, aos pedaços, depois mistura-se à do
amigo atual, e parecem ambas uma só pessoa; depois
outras ideias... (Cap. XXVIII.)
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MACHADO DE ASSIS
Sofia, e o riso irônico dos astros

Observe-se a perda brusca de importância que teve o cão. Como este,


de alguma forma, representa a alegoria filosófica de Quincas Borba, deduz-
se daí que Rubião já se esquecera da lição sobre o vencedor e as batatas.
Enriquecido subitamente, a última coisa que lhe passaria pela cabeça seria
a ideia de competição ou sobrevivência.
Rubião aumenta seu elenco de pseudoamigos e falsos admiradores.
Carlos Maria e Freitas são dois deles. O primeiro olha para tudo com ar
esnobe, de frieza. Por isso Rubião o respeita mais, embora goste mais de
Freitas, expansivo e piadista. Chega a Rubião uma cesta de morangos com
um bilhete de Sofia, que reclama da ausência dele. Rubião decide visitar o
casal.
Palha gosta de ver sua mulher bem decotada em público, e o narrador
pondera:
Não a façamos mais santa do que é, nem menos. Para
as despesas da vaidade, bastavam-lhe os olhos, que eram
ridentes (...). Para que escancarar as janelas?
Escancarou-as, finalmente, mas a porta, se assim
podemos chamar o coração, essa estava trancada e
retrancada. (Cap. XXXV.)

Os olhares entre Rubião e Sofia não passam despercebidos a Dona


Tonica, filha de um major, e ansiosa por casar-se (se possível, com Rubião).
E, sob o luar, Rubião declara-se a Sofia. Ela não sabe o que fazer:

— Vamos para dentro, murmurou Sofia.


Quis tirar o braço; mas o dele reteve-lho com força.
Não; ir para quê? Estavam ali bem, muito bem... Que
melhor? Ou seria que ele a estivesse aborrecendo? Sofia
acudiu que não, ao contrário; mas precisava ir fazer sala
às vistas... Há quanto tempo estavam ali! (...)
— Olá! Estão apreciando a lua? (...)
Era Siqueira, o terrível major.
(Caps. XLI-XLII)
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QUINCAS BORBA
Para Sofia, essa chegada inesperada do major, pai de D. Tonica, foi
providencial. No capítulo XLV, Machado compara a glória de Sofia com a
frustração de D. Tonica:

E enquanto uma chora, outra ri; é a lei do mundo, meu


rico senhor, é a perfeição universal. Tudo chorando seria
monótono, tudo rindo cansativo; mas uma boa
distribuição de lágrimas e polcas, soluços e sarabandas,
acaba por trazer à alma do mundo a variedade
necessária e faz-se o equilíbrio do mundo.

Quincas dentro de outro Quincas

Rubião tem a consciência dividida entre a lealdade do amigo e o desejo


dos sentidos. De volta a casa, acaricia o cachorro: “A possibilidade de estar
ali o testador dava-lhe arrepios.” Entre os vários planos contraditórios em
que está dividido, esse é dos mais marcantes. De fato, Rubião já leva uma
vida exterior completamente distinta da que levara em Barbacena. Vida que
o absorve positivamente, otimisticamente, e na qual se concentram todos
os seus desejos. Mas o contato com o cão lhe traz a lembrança do passado
e faz que ele pense na possibilidade de se estar desmedindo em sua nova
existência.
O discreto enigma da mulher machadiana

Sofia revela a Palha que fora cortejada por Rubião. Palha não pode
romper a amizade com Rubião, porque deve a este. Sua atitude tem também
um pouco de encenação. No dia seguinte, Sofia se ri da queda de um carteiro,
em plena rua:
Perdoem-lhe esse riso. Bem sei que o desassossego, a
noite malpassada, o terror da opinião, tudo contrasta
com esse riso inoportuno. Mas, leitora amada, talvez a
senhora nunca visse cair um carteiro. (Cap. LIII.)

Observe-se a estratégia de Sofia: ela sente até repulsa pelo amigo do


marido. Mas o tolera, porque sabe da importância dele. Ao revelar a Palha
a cena que tivera com Rubião, ela não apenas está se defendendo ou

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MACHADO DE ASSIS
advertindo-o. De certa forma está testando os próprios ciúmes do marido.
Por outro lado, veremos que Sofia sente necessidade de ser cortejada, ainda
que seu coração esteja convictamente fechado às investidas de Rubião.

Rubião, entre altos e baixos

Um dos novos amigos de Rubião é Camacho, politiqueiro fracassado,


mas sempre muito atento às reviravoltas da vida partidária. Possui um jornal,
O Atalaia. Por interesse, aproximara-se de Rubião. Rubião tinha sonhos que
Camacho de alguma forma podia alimentar, um deles era ser deputado. Ao
dirigir-se um dia ao escritório de Camacho, Rubião salvou um menino do
perigo de ser esmagado por uma carroça. Recebe, depois, os elogios de
Camacho, que lhe sugere completar as cotas do capital de sua empresa
jornalística. Rubião aceita. Depois, encontra com Sofia e duas parentas dela,
a tia, Maria Augusta, e a prima, Maria Benedita. Dona Maria Augusta possui
uma fazendola, e, ao contrário do que simula, faz qualquer coisa para evitar
o casamento de Maria Benedita, sua filha (a moça detesta seu próprio nome).
Um dos momentos mais importantes para a compreensão da intriga está na
visita que Rubião faz a Sofia e Palha (este não estava em casa).
Reproduzamos o capítulo LXV:

Curta foi a visita de Rubião. Às nove horas levantou-


se ele discretamente, esperando qualquer palavra de
Sofia, um pedido para que ficasse ainda algum tempo,
que esperasse o marido que já vinha, um espanto que
fosse: Já! mas nem isso. Sofia estendeu-lhe a mão, em que
ele mal pôde tocar. Contudo, a moça, durante a visita,
mostrou-se tão natural, tão sem azedume... Não teve
seguramente os olhos longos e loquazes, como dantes:
parecia até que não houvera nada, nem bem nem mal,
nem morangos, nem lua. Rubião tremia, não achava
palavras; ela achava todas as que queria, e, se era
preciso olhar para ele, fazia-o direitamente,
tranquilamente.
— Lembranças ao nosso Palha, murmurou ele de
chapéu e bengala na mão.
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QUINCAS BORBA
— Obrigada! Foi fazer uma visita; parece que ouço
passos, há de ser ele.
Não era ele, era Carlos Maria. Rubião ficou
espantado de o ver ali, mas achou logo que a presença
da fazendeira e da filha explicaria tudo; podia ser até que
fossem aparentados.
— Ia saindo, quando o senhor entrou, disse-lhe
Rubião depois de o ver sentado ao pé de D. Maria
Augusta.
— Ah! respondeu o outro, olhando para o retrato de
Sofia.
Sofia foi até a porta despedir-se do Rubião; disse-lhe
que o marido ficaria com pena de não estar em casa; mas
que a visita era imperiosa. Negócios... Iria pedir-lhe
desculpa.
— Que desculpa? acudiu Rubião.
Parece que quis dizer ainda alguma cousa; mas o
aperto de mão de Sofia e a reverência que esta lhe fez
deram-lhe o sinal de despedida. Rubião inclinou- se,
atravessou o jardim, ouvindo a voz de Carlos Maria, na
sala:
— Vou denunciar seu marido, minha senhora; é
homem de muito mau gosto.
Rubião parou.
— Por quê? disse Sofia.
— Tem este seu retrato na sala, continuou Carlos
Maria, a senhora é muito mais bela, infinitamente mais
bela que a pintura. Comparem, minhas senhoras. (Cap.
LXV.)

A ciranda ilusória dos pares

Como se pode perceber, neste ponto se cruzam algumas tendências


decisivas da intriga: Sofia não se mostra interessada na presença de Rubião;
este já começa a perder as esperanças, pelo menos aquelas que ele alimentava

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MACHADO DE ASSIS
a princípio, de que Sofia realmente gostasse dele. Por seu turno, Carlos
Maria, jovem, elegante e hábil, quer já despertar alguma atenção especial de
Sofia. A entrada de um homem e a saída de outro já' anuncia um certo
simbolismo da substituição. Mas também já aparecem personagens que, de
uma forma ou de outra, não se reduzem ao grau de avidez e oportunismo que
tem o casal Cristiano Palha e Sofia. Carlos Maria e Maria Benedita não são
marcados pela sanha de ascensão social. Ao contrário, neles Machado vai
mostrar, como logo veremos, uma certa coesão de princípios.
O jornal de Camacho dá com ênfase a notícia sobre o menino que
Rubião salvara. Rubião, ao lê-la, a princípio se incomoda, mas fica feliz
com os elogios. Maria Benedita resolve ficar em casa de Palha e Sofia, para
aprender piano e francês (esse era um requisito para considerar-se educada
qualquer moça). Sofia a ensina, mas tem algum receio de ser socialmente
ofuscada por ela.
Oito meses se passam, e Rubião ficara sócio de Palha, num negócio de
importações. Os olhos do cão tinham parecido desaconselhar o
empreendimento. Mas Rubião pensou que poderia haver lucro, com a
vantagem ainda da amizade de Palha e da mulher deste, sobretudo.
Finalmente, numa festa em casa de Camacho, Sofia é cortejada por Carlos
Maria. Passeiam. Sofia já não tem então a rejeição que tivera com Rubião,
sob o luar. É que Carlos Maria, sim, conseguia tocá-la de fato. No dia
seguinte, ainda na cama, Sofia repensa na declaração de amor que ouvira da
boca do moço. Este, ao contrário, pensa na noite anterior, e se arrepende do
que fizera. Mais ainda: arrepende-se de ter mentido, quando dissera a Sofia
que a procurara no dia anterior, pela praia. Carlos Maria deseja sondar
dentro de si por que não mais está interessado em Sofia. E a explicação que
lhe vem é refinada, sobretudo terrível para a sensibilidade feminina: no
fundo, a Sofia faltava um pouco de polimento, educação. Sua elegância e
gestos eram, na verdade, postiços. Para quem queira entender, Machado está
aqui sendo fulminante com as mulheres que vestem a carapuça do
carreirismo masculino, mulheres cuja feminilidade estudada esconde o
baixo jogo dos interesses. Carlos Maria podia ter lá suas perversões, como
a de vibrar com o ciúme que sua beleza despertava noutros homens, ou
comportar-se como um estrategista da vaidade, um narcisista. Mas não era
um homem vulgar, e era muito fino para perceber a vulgaridade nas
mulheres. Carlos Maria não tem nada do romantismo quixotesco e

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QUINCAS BORBA
inoportuno de Rubião. Gosta sinceramente de religião, ao contrário dos
burocratas de igreja, numerosos na época. Maria Benedita vai por caminho
semelhante. Romântica, mas simples e direta, não gosta que os homens a
apertem na valsa ou na polca, nem se fascina com o luxo. Sofia lhe diz que
deseja casá-la com um conhecido, sem revelar quem, talvez por um ciúme
inexplicável. Este homem era Rubião. Mas a moça pensava, na verdade, em
Carlos Maria. Enfim, Carlos Maria e Maria Benedita são duas personagens
secundárias que lançam uma leve sombra irônica sobre a avidez e arrivismo
do casal Palha e Sofia. Não são santos. Mas também não são demônios.
Rubião é também pressionado pelo major Siqueira: devia casar-se.
Note-se como o casamento é aqui objeto de um jogo elíptico de interesses.
Rubião, que remói interiormente esse problema, passa os dias lendo
folhetins, e mistura as histórias com seus próprios pensamentos. Mau sinal.
Todas as noivas que imaginava tinham o rosto de Sofia. Já se precipitam
nele os primeiros sintomas de confusão mental. Procura espairecer com
alguns passeios. Enquanto isso, o casal Palha procura ganhar evidência, com
reuniões em casa. Sofia se entrega aos afazeres de uma comissão de
benemerência, para os flagelados de Alagoas. Aproveita-se dos contatos
com mulheres mais ricas para entrar num ponto mais elevado socialmente.
Palha progride nos negócios.
Rubião, que se indispusera com Sofia, por causa de uma carta (de
simples formalidades, aliás) que esta enviara a Carlos Maria, fica alguns
meses sem visitar o casal. Palha, que é o depositário do dinheiro de Rubião,
preocupa-se com a maneira com que este vai dissipando a fortuna entre
amigos. Num de seus sonhos, “Rubião sentiu que era o imperador Luís
Napoleão; o cachorro ia no carro aos pés de Sofia” (cap. CIX). Rubião
quer manter seu propósito de não ver Sofia. Mas acaba comprando, para
ela, como presente de aniversário, um magnífico brilhante, e mesmo
comparece ao jantar, onde Sofia vai desfazer o mal-entendido da carta e
informar a Rubião que Maria Benedita iria casar-se com Carlos Maria. Isto
só fora possível por interferência de uma prima deste, Dona Fernanda,
casada com Teófilo, um homem que aspirava ao ministério. Dona Fernanda
é uma figura especial na galeria feminina de Machado de Assis. Não aparece
muito, mas o pouco em que aparece nos mostra que se trata de pessoa
generosa e desprendida. Machado aqui se interessa mais por aspectos
positivos da natureza humana, que se podem encontrar inesperadamente. E,

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MACHADO DE ASSIS
de alguma forma, a presença de uma mulher como Dona Fernanda, acaba
abrandando um pouco o negativismo machadiano.
Palha comunica a Rubião seu intento de liquidar a sociedade, pois está
interessado noutro negócio, em que não deseja a participação do amigo. Aí
mais se acentua a ingratidão de Palha, e a progressiva ruína financeira de
Rubião (que ainda tem, contudo, muito dinheiro para gastar). Sofia vai
acompanhando o marido em suas novas relações. A transformação do casal
em “novos ricos” não escapa às críticas do major Siqueira, que se sente
desprezado, e alimenta ainda o sonho de casar a filha.

O motor das finanças e do poder

O que se pode depreender de todo este conjunto, é que Machado arquiteta


seu romance de maneira a criar um vasto painel de aparências, que ele vai
desmontando uma por uma. Machado vai mostrar como as relações sociais (de
amizade, de matrimônio etc.) procuram disfarçar-se sob a máscara da simpatia
e da afinidade. Caída esta máscara, o que observamos é o surdo trabalho do
interesse e das finanças. Há, por assim dizer, uma superestrutura social, feita
de elegância, charme, atenções, a fingir sua própria espontaneidade. Mas a
lei do capital, que define a posição do mais forte, é que vai decidir o destino
das personagens. Obviamente não se trata apenas disso. Há também um certo
estigma da natureza, uma certa atuação do acaso. Quis o acaso que Rubião
fosse tolo, e que além disso padecesse de problemas mentais. Isso, contudo,
torna sua derrota mais fragorosa e mostra mais criticamente o perfil da
sociedade, que lhe acelerou, certamente, o ritmo da loucura.
Mas como viveria Rubião? Suas amizades haviam crescido, e seu nome
era proferido com admiração na rua.

Estranhavam alguns que ele não tratasse nunca de


filosofia, mas a lenda explicava esse silêncio pelo próprio
método filosófico do mestre, que consistia em ensinar
somente aos homens de boa vontade. Onde estavam esses
discípulos? Iam à casa dele, todos os dias, alguns duas
vezes, de manhã e de tarde; e assim ficavam definidos os
comensais. Não seriam discípulos, mas eram de boa
vontade. (Cap. CXXXIII)
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QUINCAS BORBA
Não se esqueciam de saborear sua comida, e tomar seu dinheiro
emprestado.

Pretensão de modernidade, Capitalismo, clínica, esquizofrenia

Rubião cortou a barba e o bigode no mesmo figurino do busto de


Napoleão III, que havia comprado. A autoidentificação com essa
personagem histórica já começa a perturbá-lo: é a manifestação da doença.
Sem ser convidado, entra na carruagem de Sofia. Sofia tenta livrar-se dele,
chega a lhe implorar. Mas Rubião é subitamente tomado pela alucinação de
Napoleão III, e diz a Sofia palavras de encantamento e amor, a cujas alturas
ela certamente não estava. Promete fazê-la duquesa, depois de chamá-la de
Eugênia (Eugênia de Montijo, esposa de Napoleão III, uma bela nobre
espanhola). “Apenas separados, deu-se em ambos um contraste” (cap.
CLIV). Ao contrário de Rubião, que voltara à realidade, Sofia segue saudosa
dos galanteios que acabara de receber. Entretanto, as crises daquele se
tornam menos espaçadas e se dão mesmo em frente dos amigos, que ele já
vê como seus comandados, altas patentes.
Dona Fernanda sinceramente se compadece da situação de Rubião.
Insiste em que ele deveria receber tratamento clínico. Palha acaba alugando
uma casinha para Rubião, que, em seu delírio, nem dá pela mudança: leva
o cão e alguns trastes. Os comensais sentem sua falta. Finalmente, Dona
Fernanda consegue que o visite o médico, Dr. Falcão. Feita a consulta, o
médico conclui que os males de Rubião se devem a Sofia e mais: que Sofia
e Rubião tinham sido amantes. Dona Fernanda não quer acreditar, com o que
o médico passa também a desconfiar dela, de seu papel de mediadora no
caso. Visivelmente, Machado está aqui fazendo uma sátira da clínica,
sobretudo da clínica psiquiátrica e suas deduções mecanicistas. Aliás, no
fundo da especulação criadora de Machado sempre houve uma grande
preocupação com a temática da loucura, e sobretudo com a dos alienistas [=
psiquiatras]. Relativamente a Rubião, há espaço para se refletir inclusive
numa relação entre capitalismo e esquizofrenia. Se o capitalismo não gera
necessariamente a esquizofrenia, pelo menos a provoca. De resto, há uma
inclinação, que vemos melhor em Memórias Póstumas, para considerar
universais as raízes da loucura. Com a diferença de que a loucura se
manifestaria de acordo com as circunstâncias e as motivações.

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MACHADO DE ASSIS
A ironia do fim

De qualquer forma, Rubião tinha virado um estorvo: para Sofia, para


Palha, para Camacho, como também para o casal Maria Benedita e Carlos
Maria (que haviam voltado) e até para o major Siqueira e sua filha, Dona
Tonica (esta finalmente arranjara um noivo, mas ele faleceria algum tempo
depois).
Ironia: na rua da Ajuda, várias crianças vão atrás de Rubião, gritando:
Ó gira! ó gira! Um deles é Deolindo, aquele que Rubião salvara um dia.
Tudo isto vai culminar com sua internação numa casa de saúde. Para lá
enviam-lhe o cão. E Palha e Sofia? Preocupam-se com as comissões de
benemerência, com a imagem pessoal, com a reforma do palacete de
Botafogo.
O diretor da casa de saúde escreve a Dona Fernanda que Rubião havia
fugido, coisa que ele lamentava, porque Rubião ficaria bem em alguns
meses. Rubião, logo que chega a Barbacena, para onde havia viajado com
o cachorro, começa a repetir o refrão do início, mas agora sem entendê-lo:
“Ao vencedor, as batatas!” Faminto, Rubião tem banquetes imaginários.
Chove, e faz frio. Ele e o cão começam a subir e a descer ladeiras, Cansado,
Rubião adormece à porta da igreja, que, por sinal, não lhe foi aberta em
nenhum momento. “Ao vencedor, as batatas!, exclamou Rubião quando deu
com os olhos na rua, sem noite, sem água, beijada do sol” (cap. CXCVIII).
Aos que vieram ver sua loucura, na casa da comadre (que o agasalhou e lhe
deu de comer), Rubião diz que não sabia se ia mandar fuzilar o rei da
Prússia, que havia capturado, e de quem exigia indenização, delírio com a
Guerra Franco-Prussiana (1870-1871). A narrativa do romance Quincas
Borba abrange o período de 1867 a 1871.

Poucos dias depois morreu ... Não morreu súdito, nem


vencido. Antes de principiar a agonia, que foi curta, pôs
a coroa na cabeça, – uma coroa que não era, ao menos,
um chapéu velho ou uma bacia, onde os espectadores
palpassem a ilusão. Não, senhor, ele pegou em nada,
levantou nada e cingiu nada; só ele via a insígnia
imperial, pesada de ouro, rútila de brilhantes e outras
pedras preciosas. O esforço que fizera para erguer meio
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QUINCAS BORBA
corpo não durou muito; o corpo caiu outra vez; o rosto
conservou porventura uma expressão gloriosa.
— Guardem a minha coroa, murmurou. Ao vencedor...
A cara ficou séria, porque a morte é séria; dous
minutos de agonia, um trejeito horrível, e estava assinada
a abdicação. (Cap. CC)

O cão amanheceu morto na rua três dias depois. Eis como conclui
Machado:

Eia! chora os dous recentes mortos, se tens lágrimas.


Se só tens riso, ri-te! É a mesma cousa. O Cruzeiro, que
a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está
assaz alto pra não discernir os risos e as lágrimas dos
homens. (Cap. CCI)

Ainda que muito atento à racionalidade e sofisticação com que o


capitalismo mascara seu movimento e suas intenções, Machado não trabalha
exclusivamente com esse esquema, ou seja, não se inspira apenas na visão do
homem (e portanto da sociedade) como lobo do próprio homem. Há também
em Machado um universalismo irônico, uma visão trágica da vida, que faz
com que uma ponta do destino sempre se reduza à ponta contrária, ou pior
ainda. Assim é que Rubião, enriquecido, cai numa situação pior do que
aquela que ele queria evitar. Quincas Borba, o filósofo alucinado, o “náufrago
da existência”, enfim, o derrotado, acaba de certa forma vencendo, pois sua
filosofia acabou mostrando-se irônica e verdadeira. Por seu lado, a simpatia
do casal Cristiano Palha e Sofia acaba expondo sua verdadeira face, que é a
face do setor decisivo da sociedade: o oportunismo. O clínico, Dr. Falcão,
confunde causas com consequências. Carlos Maria, que era tão cioso de si,
acaba casando-se por intermediação alheia, com Maria Benedita que o
adorava. A despretensiosa Maria Benedita se casa, pois, com o homem que
sigilosamente Sofia havia cobiçado. Mesmo Sofia e Palha acabam perdendo,
apesar das aparências em contrário. Perdem, pelo menos, a tênue humanidade
que haviam mostrado na primeira parte do romance. São objeto de uma total
evaporação da alma, de uma reificação [coisificação] de seu ser, determinada
pelas relações em que foram absorvidos. Em tudo, enfim, há uma certa
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MACHADO DE ASSIS
reversão e uma certa imponderabilidade, que não pertence apenas à lógica
perversora do capitalismo. Há também a lógica irônica do acaso, combinado
a uma estranha ciranda do destino, por meio da qual sempre vamos acabar
caindo em frente daquilo de que fugimos. Independentemente do século ou
do país em que vivamos. O grande universalismo de Machado está em que
ele soube fundir essa lógica circular e arquetípica com a espiral da lógica
capitalista da vida carioca do século passado.

A COMPOSIÇÃO

A composição diz respeito às técnicas e estratégias que o autor executa


para realizar seu romance. São muitos os elementos de um romance. Nós
escolheremos os dois que têm mais importância em Quincas Borba, aqueles
que por sua abrangência podem, por si mesmos, explicar a outros, menores.

Linguagem

A frase de Machado de Assis funde oralidade elegante com


simplicidade sofisticada. Para conseguir isso, ele teve de conter a emoção,
reduzi-la à calma com que observava a vida: “Não, senhor; ele pegou em
nada, levantou nada e cingiu nada”. A frase é oral, simples, mas note o
requinte do pronome indefinido nada, usado afirmativamente. A oralidade
de Machado não é, obviamente, a do português falado nas ruas do Rio de
Janeiro. Está mais próxima do tom coloquial da fala culta. Esse é o tom que
Machado elevou ao sublime.
Machado tem sempre em mira a melhor maneira de dizer as coisas. E,
como a memória é uma das grandes dimensões de seu trabalho, não é
estranho que ele se lembre de grandes textos sobre os vários temas, textos
já presentes na grande literatura de todos os tempos, com as quais dialoga
explícita ou elipticamente. A isto a crítica moderna tem chamado
intertextualidade. Veja-se um exemplo, tirado da hora em que Rubião, sob
o luar, declara seu amor à atarantada Sofia:

Vá que a lua os visse! A lua não sabe escarnecer; os


poetas, que a acham saudosa, terão percebido que ela
amou outrora algum astro vagabundo, que a deixou ao

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QUINCAS BORBA
cabo de muitos séculos (...) Castas estrelas! é assim que
lhes chama Otelo, o terrível e Tristram Shandy, o jovial.
Esses extremos do coração e do espírito estão de acordo
num ponto: as estrelas são castas.

Aí a alusão a Shakespeare e a Laurence Sterne é direta. O mais


frequente, porém, é a alusão silenciosa. E de fato, nessa passagem
machadiana se esconde um velho mito grego, sobre os amores entre a Lua
e seu namorado Endímion. Uma personagem alegórica como Quincas Borba
funde em si mais de uma influência. Podemos ver nele algo do filósofo
cínico Menipo, engendrado por Luciano de Samósata, como podemos ver
também algo da loucura de D. Quixote. Também comparece a paródia, que
é uma espécie de ridicularização discreta de um tipo de discurso consagrado.
A filosofia de Quincas Borba, por exemplo, tem sido vista como uma
paródia do Positivismo de Augusto Comte. A simples frase “Ao vencedor,
as batatas!” pode ser vista como uma paródia dos evolucionismos sociais,
derivados de Darwin. E assim por diante: quase toda referência de Machado
tem algo de alusivo a outra coisa, perdida na imensidão da cultura de todos
os tempos. E ele não faz isso para “enfeitar” o livro, mas para dar a seu
discurso um fundo de objetividade e maior amplitude de sentido. Já a
atenção constante que Machado dirige a seu próprio trabalho de escritor,
explicando-o ao leitor, costuma ser designado como metalinguagem. De
qualquer forma, todas estas características deságuam numa tendência geral
da narrativa, que é a digressão, e que, como se disse, Machado havia
praticado mais radicalmente nas Memórias Póstumas de Brás Cubas. A
digressão, seja com intertextualidade, paródia, metalinguagem,
interpolações, ironia etc., tem um fundamento bem claro. Qual é ele? É a
ideia de que por trás de toda história há muitas histórias semelhantes ou
afins, inclusive a própria história da feitura do livro. E, de fato, a história
da humanidade é constituída por pequenas e grandes histórias que se
interpenetram umas nas outras. Fiel a esse princípio, Machado deixa sempre
entrever que ao lado de um destino se desenvolvem e se poderiam
desenvolver outros. É o que acontece com o mendigo do capítulo XLVI:

O rumor das vozes e dos veículos acordou um mendigo


que dormia nos degraus da igreja. O pobre-diabo sentou-se,

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MACHADO DE ASSIS
viu o que era, depois tornou a deitar-se, mas acordado, de
barriga para o ar, com os olhos fitos no céu. O céu
fitava-o também, impassível como ele, mas sem as rugas do
mendigo, nem os sapatos rotos, nem os andrajos, um céu
claro, estrelado, sossegado, olímpico, tal qual presidiu às
bodas de Jacó e ao suicídio de Lucrécia. Olhavam-se numa
espécie de jogo do siso, com certo ar de majestades rivais
e tranquilas, sem arrogância, nem baixeza, como se o
mendigo dissesse ao céu:
— Afinal, não me hás de cair em cima.
E o céu:
— Nem tu me hás de escalar.

Teoria dos valores

A tradição crítica tem usado para com Machado de Assis alguns


conceitos que ficam deformantes, se não forem compreendidos em sua
relatividade. Com efeito, sempre se diz que Machado prefere a
subjetividade, e se compraz em analisar a alma humana. Antes, porém, é
preciso advertir que o romance Quincas Borba se preocupa basicamente
com o mundo objetivo, com mundo das relações sociais. Como já havíamos
antecipado, no mundo capitalista estas relações tendem a transformar-se em
valores de todo tipo. Que quer dizer isto? Quer dizer que as pessoas se
diferenciam por serem ricas ou pobres, boas ou más, simpáticas ou
antipáticas etc., mas no fundo desta diferenciação, há quase sempre o
denominador comum do poder e do dinheiro. Quando o narrador de Quincas
Borba retrata a vida interior da personagem, ele não está à cata de uma
liberdade absoluta do imaginário, como acontece, por exemplo, nos
romances românticos ou mesmo em alguns modernos, como Clarice
Lispector. Machado, ao contrário, está interessado em desenhar como a
psicologia das personagens gravita em torno da gangorra dos valores
sociais. Rubião é o melhor exemplo, mas há outros. Sofia, que não gosta de
Rubião, também não vê com completa serenidade um casamento deste com
Maria Benedita. Por quê? Porque Rubião, entre outras coisas, não representa
apenas um valor social para Cristiano, como representa para ela mesma um
fetiche, uma presumida posse, um direito que ela havia conquistado. Neste
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QUINCAS BORBA
sentido, podemos ver em Quincas Borba uma das mais bem-sucedidas
tentativas de realismo psicológico. A alma, sem dúvida, tem voos muito
ousados, sonha demais. Mas não sonha tanto que não volte sempre à questão
dos valores, em que ela está como que perdida. Dos voos livres e absolutos,
quem se encarrega é o próprio narrador, e sempre os faz envolvido por um
universalismo amargo, como já vimos:

Eia! chora os dous recentes mortos, se tens lágrimas. Se


só tens riso, ri-te. É a mesma coisa. O Cruzeiro que a
linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está
assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos
homens.

TEXTO 1

Rubião fitava a enseada, – eram oito horas da manhã. Quem o visse,


com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande
casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta;
mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa. Cotejava o passado
com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista.
Olha para si, para as chinelas (umas chinelas de Túnis, que lhe deu recente
amigo, Cristiano Palha), para a casa, para o jardim, para a enseada, para os
morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma
sensação de propriedade.
— Vejam como Deus escreve direito por linhas tortas, pensa ele. Se
mana Piedade tem casado com Quincas Borba, apenas me daria uma
esperança colateral. Não casou; ambos morreram, e aqui está tudo comigo;
de modo que o que parecia uma desgraça... (Cap. I.)

1. Explique o meio utilizado pelo narrador para mostrar que só ele


sabe de fato o que está pensando a personagem.

2. Indique o que, no capítulo acima, vem a ser o contraste entre


aparência e realidade.

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MACHADO DE ASSIS
3. Transcreva do texto uma frase que explique “linhas tortas”, e
outra que explique “escreve direito”.

TEXTO 2

[O antecedente a que se refere o capítulo seguinte é a decisão de


que Maria Benedita ficaria com Sofia no Rio de Janeiro.]

Não se pense que tudo isso foi tão fácil como aí fica escrito. Na prática,
vieram os óbices, amofinações, saudades, rebeliões de Maria Benedita.
Dezoito dias depois da volta da mãe à fazenda, quis ir visitá-la, e a prima
acompanhou-a; estiveram lá uma semana. A mãe, dous meses depois, veio
passar uns dias aqui. Sofia acostumava habilmente a prima às distrações da
cidade; teatros, visitas, passeios, reuniões em casa, vestidos novos, chapéus
lindos, joias. Maria Benedita era mulher, posto que mulher esquisita; gostou
de tais cousas, mas tinha para si que, logo que quisesse, podia arrebentar
todos esses liames, e andar para a roça. A roça vinha ter com ela, às vezes,
em sonho ou simples devaneio. Depois dos primeiros saraus, quando voltava
para casa, não eram as sensações da noite que lhe enchiam a alma, eram as
saudades de Iguaçu. Cresciam-lhe mais a certas horas do dia, quando a
quietação da casa e da rua era completa. Então batia as asas para a varanda
da velha casa, onde bebia café, ao pé da mãe; pensava na escravaria, nos
móveis antigos, nas bonitas chinelas que lhe mandara o padrinho, um
fazendeiro rico de S. João d’E-Rei, – e que lá ficaram em casa. Sofia não
consentiu que ela as trouxesse. (Cap. LXVIII.)

4. “Maria Benedita era mulher, posto que mulher esquisita”.


Justifique, por meio de sua compreensão do texto, a aplicação
do adjetivo à personagem.

5. “Sofia não consentiu que ela as trouxesse”. Qual seria a


motivação principal da atitude de Sofia.

6. Rubião também vinha de fora do Rio de Janeiro. Faça um


paralelo entre a atitude de Maria Benedita e a dele.

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QUINCAS BORBA
TEXTO 3

[No capítulo seguinte se fará menção à carta que Sofia


endereçara a Carlos Maria e que acidentalmente chegou às
mãos de Rubião. Este, depois de vacilar, decide não abrir a
carta.]

Nenhum dos habituados da casa compareceu ao almoço. Rubião


esperou ainda uns dez minutos, chegou a mandar um criado ao
portão, a ver se vinha alguém. Ninguém; teve de almoçar sozinho.
Em geral, não podia suportar as refeições solitárias; estava tão
afeito à linguagem dos amigos, às observações, às graças, não menos
que aos respeitos e considerações, que comer só era o mesmo que
não comer nada. Agora, porém, era como um Saul que precisasse de
algum Davi, para expelir o espírito maligno que se metera nele. Já
queria mal ao portador da carta, porque a deixara cair; ignorar era
um benefício. E depois, a consciência vacilava, – ia da entrega da
carta à recusa e à guarda indefinida. Rubião tinha medo de saber; ora
queria, ora não queria ler nada no rosto de Sofia. O desejo de saber
tudo era, em resumo, a esperança de descobrir que não havia nada.
(Cap. C)

7. Quais são os dois fatos que parecem, quase simultaneamente,


ocupar o espírito da personagem?

8. Aponte no texto duas frases que indiquem ambivalência.

TEXTO 4

A história do casamento de Maria Benedita é curta; e, posto Sofia


a ache vulgar, vale a pena dizê-la. Fique desde já admitido que, se não
fosse a epidemia das Alagoas, talvez não chegasse a haver
casamento; donde se conclui que as catástrofes são úteis, e até
necessárias. Sobejam exemplos; mas basta um contozinho que ouvi

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MACHADO DE ASSIS
em criança, e que aqui lhes dou em duas linhas. Era uma vez uma
choupana que ardia na estrada; a dona, – um triste molambo de
mulher, – chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão.
Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a
mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.
— É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste
mundo.
— Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?
O padre que me contou isto certamente emendou o texto original;
não é preciso estar embriagado para acender um charuto nas misérias
alheias. Bom Padre Chagas! Chamava-se Chagas. Padre mais que bom,
que assim me incutiste por muitos anos essa ideia consoladora, de que
ninguém, em seu juízo, faz render o mal dos outros; não contando o
respeito que aquele bêbado tinha ao princípio da propriedade, a ponto
de não acender o charuto sem pedir licença à dona das ruínas. Tudo
ideias consoladoras. Bom Padre Chagas! (Cap. CXVII)

9. Relativamente a Maria Benedita, que significa dizer que as


catástrofes sejam úteis?

10. Qual é o fator de surpresa, na história lembrada pelo narrador?

11. “... ninguém, em seu juizo, faz render o mal dos outros”. Faça
um paralelo entre esta frase e o conteúdo da história contada pelo
narrador.

12. Por que a maior parte desse capítulo pode ser considerada
digressiva?

13. Que assunto ficou suspenso, interrompido pela digressão do


narrador?

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QUINCAS BORBA
RESPOSTAS

1. O meio utilizado pelo narrador, para chamar a atenção sobre seu


privilégio de onisciência, consiste em lembrar que os eventuais
observadores de Rubião julgariam que ele estava apenas admirando a
enseada.

2. A aparência é a de um homem que se detém na contemplação da


paisagem presente; a realidade é de alguém que “cotejava o passado
com o presente”, avaliava os caminhos imprevistos que o levaram à
riqueza e rejubilava-se com sua situação atual, sentindo-se proprietário
de tudo o que se descortinava a sua frente.

3. “Linhas tortas”: “Não casou; ambos morreram”; “escreve direito”:


“aqui está tudo comigo”.

4. Maria Benedita não apresentava as reações que se esperavam numa


moça que vinha do campo e começava a participar das festas noturnas
da cidade. Estas não a comoviam tanto quanto as lembranças da roça.

5. O que motiva Sofia é provavelmente o temor da impressão negativa


que causariam as chinelas da roça em ambiente urbano. Ainda mais que
estariam sendo usadas por sua prima.

6. Ao contrário de Maria Benedita, Rubião só se lembrava de Barbacena


muito raramente. Sentia-se aclimatado no Rio de Janeiro e seu desejo
se voltava todo para a vida da Capital.

7. São eles o incômodo pelo não comparecimento dos amigos e a aflição


de não saber o que continha a carta.

8. “Ia da entrega da carta à recusa, e à guarda indefinida”; “ora queria,


ora não queria ler”.

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MACHADO DE ASSIS
9. Maria Benedita casou-se com Carlos Maria, porque tivera contato com
a prima deste, D. Fernanda, durante o trabalho da comissão de ajuda às
vítimas da epidemia em Alagoas. D. Fernanda praticamente determinou
o casamento de ambos. Logo, a catástrofe em Alagoas foi útil para que
o casamento ocorresse.

10. O fator de surpresa está em que, quando tudo levava a crer que a dona
da casa seria consolada, aparece alguém que tira de seu infortúnio uma
pequena vantagem, e ainda com um pouco de humor.

11. Ninguém, em sã consciência, pode tirar vantagem de uma desgraça


alheia. No caso, a modificação que o padre teria feito à história era a de
dizer que o homem fez o que fez porque estava bêbedo.

12. O capítulo é quase inteiramente digressivo porque nele predominam


considerações feitas à margem da história que está sendo narrada.

13. Ficou em suspenso o relato do casamento de Maria Benedita, relato


anunciado pelo narrador mas logo interrompido pela digressão acerca
da conclusão de que “as catástrofes são úteis, e até necessárias”.

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