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2006
Este trabalho problematiza o patriarcado enquanto discurso normativo de papis familiares. Nosso interesse por este tema construiu-se no trabalho cotidiano com famlias em situao de vulnerabilidade social, em especial com mulheres e crianas marcadas por diversas formas de violao de seus direitos. Nossa insero em espaos institucionais coletivos enquanto militantes feministas, terapeutas e pesquisadoras conduziu-nos busca do desvelamento dos discursos produtores de desigualdades e de discriminaes inscritas nos contextos familiares e sociais. Nessa trajetria, identificamos que valores patriarcais atravessaram os tempos e deixam suas marcas ainda na atualidade, a despeito das conquistas sociais e dos dispositivos legais que postulam a igualdade de direitos entre homens e mulheres. Tais discriminaes so uma forma de violncia de gnero
e de violao dos direitos humanos das mulheres. Entretanto, apesar da prescrio normativa patriarcal, encontramos famlias que inventam outros papis familiares e relaes na cotidianidade de suas experincias, o que explode a hegemonia do discurso patriarcal normativo ainda existente no imaginrio social. Procuramos, ao longo do presente trabalho, destacar a criativa e subversiva capacidade de resistncia humana s normatizaes reguladoras, em especial a resistncia das mulheres opresso patriarcal que lhes tem sido imposta h sculos.
A inveno da famlia A famlia no algo biolgico, algo natural ou dado, mas produto de formas histricas de organizao entre os humanos. Premidos pelas necessidades materiais de sobre49
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vivncia e de reproduo da espcie, os humanos inventaram diferentes formas de relao com a natureza e entre si. As diferentes formas de organizao familiar foram, portanto, inventadas ao longo da histria. Uma destas formas de organizao, centrada na figura masculina, foi a famlia patriarcal. Houve, e ainda h, outras configuraes familiares, entre elas as famlias chefiadas por mulheres, as famlias matrifocais, matrilineares e matrilocais, centradas na figura e na descendncia feminina (Narvaz & Koller, in press). As organizaes humanas nem sempre foram patriarcais. Estudos antropolgicos (Engels, 1884/1964; Muraro, 1997) indicam que, no incio da histria da humanidade, as primeiras sociedades humanas eram coletivistas, tribais, nmades e matrilineares. Tais sociedades (ditas primitivas) organizavam-se predominantemente em torno da figura da me, a partir da descendncia feminina, uma vez que desconheciam a participao masculina na reproduo. Os papis sexuais e sociais de homens e de mulheres no eram definidos de forma rgida e as relaes sexuais no eram monogmicas, tendo sido encontradas tribos nas quais as relaes entre homens e mulheres eram bastante igualitrias. Todos os membros envolviam-se com a coleta de frutas e de razes, alimentos dos quais sobreviviam, bem como a todos cabia o cuidado das crianas do grupo. Muito tempo depois, com a descoberta da agricultura, da caa e do fogo, as comunidades passaram a se fixar em um territrio. Aos homens (predominantemente) cabia a caa, e s mulheres (tambm de forma geral, embora no exclusiva), cabia o cultivo da terra e o cuidado das crianas. Uma vez conhecida a participao do homem na reproduo e, mais tarde, estabelecida a propriedade privada, as relaes passaram a ser predominantemente monogmicas, a fim de garantir herana aos filhos legtimos. O corpo e a sexualidade das mulheres passou a ser controlado, instituindo-se ento a famlia monogmica, a diviso sexual e social do trabalho entre homens e mulheres. Instaura-se, assim, o patriarcado, uma nova ordem social centrada na descendncia patrilinear e no controle dos homens sobre as mulheres.
Famlias e patriarcado A associao entre famlias e patriarcado remete origem do termo famlia, oriundo do vocbulo latino famulus, que significa escravo domstico. Esse novo organismo social a famlia consolidou-se enquanto instituio na Roma Antiga. A famlia romana era centrada no homem, sendo as mulheres, no geral, meras coadjuvantes. O patriarca tinha sob seu poder a mulher, os filhos, os escravos e os vassalos, alm do direito de vida e de morte sobre todos eles. A autoridade do pater familiae sobre os filhos prevalecia at mesmo sobre a autoridade do Estado e duraria at a morte do patriarca, que poderia, inclusive, transformar seu filho em escravo e vend-lo (Engels, 1884/1964; Xavier, 1998).
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Cabe destacar que o patriarcado no designa o poder do pai, mas o poder dos homens, ou do masculino, enquanto categoria social. O patriarcado uma forma de organizao social na qual as relaes so regidas por dois princpios bsicos: 1) as mulheres esto hierarquicamente subordinadas aos homens e, 2) os jovens esto hierarquicamente subordinados aos homens mais velhos. A supremacia masculina ditada pelos valores do patriarcado atribuiu um maior valor s atividades masculinas em detrimento das atividades femininas; legitimou o controle da sexualidade, dos corpos e da autonomia femininas; e, estabeleceu papis sexuais e sociais nos quais o masculino tem vantagens e prerrogativas (Millet, 1970; Scott, 1995). O patriarcado, enquanto teoria universal e totalizante, tema controverso no campo dos estudos feministas. Lobo (1992) e Rowbotham (1984) criticam o uso do termo patriarcado em funo do carter a-histrico, fixo e determinante impregnado em seu conceito. Castro e Lavinas (1992) ressaltam que o conceito de patriarcado, tomado de Weber, tem delimitaes histricas claras, tendo sido utilizado para descrever um tipo de dominao assegurada pela tradio, na qual o senhor a lei e cujo domnio refere-se a formas sociais simples e a comunidades domsticas. Seria, portanto, inadequado falar, na modernidade, em sociedade patriarcal. Alm disso, na medida em que a famlia e as relaes entre os sexos mudaram, a idia de patriarcado cristaliza a dominao masculina, pois impossibilita pensar a mudana. J para Pateman (1993, p.167), o poder natural dos homens como indivduos (sobre as mulheres) abarca todos os aspectos da vida civil. A sociedade civil como um todo patriarcal. As mulheres esto submetidas aos homens tanto na esfera privada quanto na pblica. Nesse sentido, h, segundo ela, um patriarcado moderno, contratual, que estrutura a sociedade civil capitalista. O patriarcado moderno vigente alterou sua configurao, mas manteve as premissas do pensamento patriarcal tradicional. O pensamento patriarcal tradicional envolve as proposies que tomam o poder do pai na famlia como origem e modelo de todas as relaes de poder e autoridade, o que parece ter vigido nas pocas da Idade Mdia e da modernidade at o sculo XVII. O discurso ideolgico e poltico que anuncia o declnio do patriarcado, ao final do sculo XVII, baseia-se na idia de que no h mais os direitos de um pai sobre as mulheres na sociedade civil. No entanto, uma vez mantido o direito natural conjugal dos homens sobre as mulheres, como se cada homem tivesse o direito natural de poder sobre a esposa, h um patriarcado moderno. Machado (2000, p.3) admite a existncia de um patriarcado contemporneo que foi alterando suas configuraes ao longo da histria na forma de um patriarcado moderno. Contudo, para esta autora, a diversidade da histria ocidental das posies das mulheres, em contextos
de transformao e de contradies, dificilmente possa ser remetida a uma idia unitria ou totalizante de patriarcado, a no ser como uma aluso constante (mas jamais igual) modalidade de dominao masculina.
Patriarcado, capitalismo e violncia contra as mulheres Ainda que no se possa reduzir ao patriarcado a explicao de todas as formas de desigualdades e de opresso do gnero feminino, devendo ser considerada a articulao do gnero classe social e s diferentes etnias (Scott, 1995), a gnese da violncia contra as mulheres tem sido atribuda predominantemente ao patriarcado em algumas correntes feministas. Embora o patriarcado seja anterior ao advento do capitalismo, estes dois sistemas aparecem articulados na modernidade, duas formas de produzir e de reproduzir a vida a partir de relaes de dominao e de expropriao, em especial dos corpos e da autonomia das mulheres (Fonseca, 2000; Saffioti, 1979, 2001; Toledo, 2003). O triunfo do capitalismo, imperial, neoliberal, militarista e depredador revela uma das formas mais elaboradas do patriarcado, que tm mostrado, nos diversos atentados terroristas, nas ltimas guerras e na crescente feminizao da pobreza, sua pior face. Segundo Pr (2001, p.177), dentre o mais de um bilho de pessoas da populao mundial que se encontra em extrema condio de pobreza, 70% so mulheres. As diversas formas de discriminao e de violncia contra as mulheres so manifestao de relaes de poder historicamente desiguais. Denominadas violncia de gnero, so tambm violao dos direitos das mulheres. Reconhecidos como parte integral dos direitos humanos pela Conferncia Mundial dos Direitos Humanos, da Organizao das Naes Unidas (ONU), os direitos humanos das mulheres e das meninas foram, em 1993, pela primeira vez, expressamente concebidos como parte integrante e indivisvel dos direitos humanos universais. A violncia de gnero que tem no componente cultural seu grande sustentculo, fator de produo e de reproduo de violaes contra as mulheres versa no texto da Declarao como incompatvel com a dignidade e o valor da pessoa humana (Pandjiarjian, 2003; Saffioti, 2001). As famlias brasileiras e o patriarcado No Brasil, a histria da instituio familiar teve como ponto de partida o modelo patriarcal, importado pela colonizao e adaptado s condies sociais do Brasil de ento, latifundirio e escravagista (Saffioti, 1979; Xavier, 1998). Apesar da desintegrao do patriarcado rural, que ocorreu de forma diferenciada em diversas regies do Brasil, a mentalidade patriarcal permaneceu na vida e na poltica brasileira atravs do coronelismo, do clientelismo e do protecionismo (Chau, 1989). Mesmo no meio urbano, a gnese das atitudes autoritrias sobre a condio
feminina deve ser entendida em relao aos esquemas de dominao social que caracterizam o patriarcado tradicional brasileiro (Dvila Neto, 1994). A posio da mulher, na famlia e na sociedade em geral, desde a colonizao at hoje, demonstra que a famlia patriarcal foi uma das matrizes de nossa organizao social. As mulheres brasileiras, nas primeiras dcadas do sculo XX, no haviam conquistado os direitos civis garantidos ao homem. Precisavam exigir seus direitos de cidad e aumentar sua participao na vida pblica. Em 1916, foi criado o Cdigo Civil Brasileiro, patriarcal e paternalista, no qual constava que a mulher casada s poderia trabalhar com a autorizao do seu marido. Em 1934, em meio ao governo provisrio de Getlio Vargas, uma nova constituio assegurou o voto da mulher. O trabalho feminino foi regulamentado pela Consolidao das Leis Trabalhistas somente em 1941. Durante a ditadura Vargas, os movimentos feministas foram reprimidos, sendo retomados novamente no incio da Segunda Guerra Mundial. Nesta poca, nos pases desenvolvidos, os homens foram para o front de batalha e as mulheres tiveram que trabalhar para sustentar suas famlias. O Estado de Bem-Estar Social, caracterstico do ps-Segunda Guerra, em 1945, girava em torno do pleno emprego masculino e propunha o cuidado feminino do lar. A mulher, beneficiria do suporte social assegurado pelo trabalho masculino, no dispunha das mesmas garantias, a no ser enquanto esposa ou filha, o que evidenciava sua condio de dependente do marido/pai. Percebida apenas como uma coadjuvante no sustento da famlia, no sua mantenedora, o salrio feminino poderia ser inferior aos salrios gerais. Somente em 1962 que o Cdigo Civil Brasileiro sofreu alteraes, permitindo que mulheres casadas pudessem trabalhar sem a autorizao de seus maridos. A Constituio Federal de 1988 e o Novo Cdigo Civil Brasileiro, de 2002, que substituiu o Cdigo Civil, ainda de 1916, consolidaram alguns direitos femininos j existentes na sociedade. No Novo Cdigo, a famlia no seria mais regida pelo ptrio poder, ou seja, pelo poder do pai, como na poca feudal, mas pelo pater familiae, que pressupe a igualdade de poder entre os membros do casal. Alguns termos que constavam no Cdigo anterior foram alterados a fim de diminuir a linguagem androcntrica nele contido, entre eles os termos todo homem, que foi substitudo por toda pessoa. Na Constituio Federal Brasileira, de 1988, marco jurdico-poltico da transio democrtica e da institucionalizao dos direitos humanos no pas, o princpio constitucional da igualdade entre homens e mulheres est contemplado no art. 5, que trata dos direitos e garantias fundamentais. O art. 226, 5 da Constituio estabelece que os direitos e deveres referentes sociedade conjugal so exercidos igualmente pelo homem e pela mulher (Dias, 2004; Pandjiarjian, 2003; Rocha, 2003).
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Alm da referida ordenao jurdica constitucional, o Brasil signatrio junto ONU de vrias convenes que preconizam a eliminao de todas as formas de violncia e de discriminao contra as mulheres (Negro, 2004). Entretanto, a cidadania e a eqidade, para as mulheres, ainda fico. A cidadania formal, estabelecida pela Lei, no garante a cidadania substantiva, ou seja, a capacidade efetiva do exerccio dos direitos formais (Pr, 2001). Apesar das conquistas, nas ltimas dcadas, de vrios direitos civis e polticos, as mulheres ainda desconhecem seus direitos (Strey, 2000); seguem acumulando papis, no contando com uma eqitativa distribuio de tarefas na esfera domstica, sendo sobrecarregadas com a dupla jornada de trabalho, com o cuidado da casa e dos filhos (ver Narvaz, 2005). Esteretipos sexistas, preconceitos e discriminaes contra as mulheres ferem o princpio constitucional da isonomia assegurada pela lei e so, portanto, uma forma de violao dos direitos humanos das mulheres. Tais violaes ocorrem tanto nas relaes familiares e privadas, quanto na esfera pblica, nas relaes de trabalho e, inclusive, na prpria legislao, em especial no que tange aos crimes sexuais e aos ditos crimes cometidos em defesa da honra masculina (ver Pandjiarjian, 2003).
Prescries normativas Estudos com famlias brasileiras (Bernardes, 1995; Hileshiem, 2004; Narvaz, 2005; Szymanski, 1997) apontam esteretipos acerca da diviso do trabalho dentro do ambiente domstico de acordo com o sexo da pessoa e demonstram a tradicional distino entre os papis do pai e o da me na chamada famlia nuclear, formada pelos pais e seus filhos dependentes. O papel da me ainda remete ao cuidado dos filhos, enquanto o papel do pai, alm de prover o sustento, envolve questes de disciplina e de autoridade. A responsabilidade pelas tarefas domsticas e pelo cuidado dos filhos predominantemente feminina, trabalho (re)produtivo ocultado, negligenciado e desvalorizado pelo contexto social. Embora a participao dos homens nas famlias pobres seja precria, persiste o modelo do homem como provedor financeiro e de autoridade. O papel das mulheres no sustento econmico invisibilizado e desqualificado, legitimando a crena de que o homem o legtimo provedor da famlia, o que confere uma posio de trabalhadora complementar mulher, embora os fatos da realidade revelem que as mulheres trabalhadoras muitas vezes so as reais provedoras do sustento familiar (Fonseca, 2000, p.46). Se o papel prescrito aos homens na famlia patriarcal burguesa relaciona-se ao sustento econmico, o papel prescrito s mulheres o de que sejam cuidadoras do marido, do lar e dos filhos. Essa prescrio parece ter atravessado os sculos, materializando-se na crena de que a me deveria dedicar-se integralmente aos filhos, crena encontrada em estudo recente com famlias da periferia
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de Porto Alegre (Cecconello, 2003). A prescrio de que as mes biolgicas criem e cuidem dos(as) filhos(as) apregoada pelo discurso masculino desde Rousseau, para quem a maternidade a mais bela funo cvica das mulheres. A conseqente culpabilizao da me ao afastar-se da prescrio patriarcal contou, desde o Brasil Repblica, com a regulao da medicina higienista, cujo discurso atribua ao trabalho feminino fora do lar a causa da degradao da famlia (Rago, 2001). Apesar das evidncias empricas de nveis de bem-estar elevados entre mulheres que possuem um trabalho remunerado (Possati & Dias, 2002), mitos e crenas que envolveram as conseqncias das atividades remuneradas das mulheres para sua sade e bem-estar psicolgico, legitimaram a teoria de que estas deveriam permanecer em seus papis tradicionais de me e de esposa. Na atualidade, a mdia tambm refora estas informaes, gerando culpa para as mulheres que no se limitam esfera domstica e aos papis patriarcais normativos de esposa e me dedicadas. A prescrio patriarcal regulada por mitos e por discursos (ver Narvaz, 2005) que postulam a maternidade como experincia fundamental ao sentimento de completude das mulheres. A impossibilidade de cumprir adequadamente com o papel materno normativo vivenciada como incapacidade e com culpa pelas mulheres, o que denuncia as armadilhas do refluxo psicologizante (Keil, 2001), armadilha segundo a qual as mulheres atribuem a si a culpa pela sua condio. Fatores que dificultam o exerccio da maternidade, tais como a pobreza e a falta de suporte conjugal, comunitrio ou social, em especial s mulheres chefes de famlia, no remetem estrutura social desigual e sexista imposta pela ordem capitalista patriarcal. A impossibilidade de cumprir com a maternidade normativa atribuda a uma falha individual, descolada do contexto histrico e social que a produziu. Ao depositarem individualmente na figura da mulher-me-trabalhadora a responsabilidade por sua condio de pobreza, de abandono e/ou negligncia no cuidado dos filhos e filhas, discursos cientficos e sociais isentam os homens, o Estado e a comunidade de sua responsabilidade social (Narvaz, 2005; Silva, 1993; Strey, 2000). Uma vez que a excluso da pobreza fragiliza os laos sociais e dificulta o acesso a recursos de apoio social, os benefcios, mesmo que mnimos, da sociedade salarial, (Castel, 1998; Nardi, 2003) e a efetividade de polticas pblicas para as mulheres so condio fundamental superao da sua condio histrica de vulnerabilidade produzida por discriminaes. Sabemos que no reside exclusivamente nos fatores econmicos a possibilidade de emancipao feminina, uma vez que os mesmos so necessrios, mas no suficientes para a efetivao das rupturas culturais implcitas luta das mulheres (Fonseca, 2000, p.52). No entanto, sem a proteo do Estado de bem-estar social que, no Brasil, sequer de fato existe (Keil, 2001),
as mulheres permanecem despossudas de direitos e merc das desigualdades econmicas e sociais, o que tem sido visto no crescente fenmeno da feminizao da pobreza (Pr, 2001). Nesse sentido, a proposio de polticas pblicas transversais, afirmativas e sensveis s desigualdades de gnero pode contribuir garantia de direitos e ao empoderamento (Leon, 2000) das mulheres. Para tanto, h que se dar visibilidade aos mecanismos produtores de desigualdades e de opresso, entre eles o patriarcado, articulado ao capitalismo, nas sociedades contemporneas.
Subverses criativas Apesar das prescries normativas, as famlias desvelam em seu bojo marcas de subverso e de resistncia s normatizaes impostas, emergindo da papis familiares cotidianamente vividos de forma plural, heterognea, criativa e subversiva. Estudo recentemente realizado sobre as posies ocupadas por uma mulher diante das violaes sofridas por ela e por suas filhas (ver Narvaz, 2005) revelou que, tanto em relao diviso das tarefas domsticas, quanto ao sustento econmico e ao cuidado dos filhos, a ordem patriarcal, apesar de prescritiva e normativa na estruturao dos papis e das relaes familiares foi, em muitas situaes, subvertida. Os homens, percebidos pela participante do estudo, como provedores econmicos, efetivamente no o so, ao menos de forma exclusiva. As mulheres tambm contribuem com seu trabalho ao sustento econmico da famlia, ainda que desvalorizem sua capacidade de trabalho. Os homens, mesmo no sendo os principais cuidadores dos filhos, podem ser fonte de apoio, de cuidado e proteo, mesmo de filhos que no so seus (biolgicos). As mulheres, s quais so atribudos os papis de cuidado do marido, do lar e da prole, tambm cometem transgresses, abandonam a famlia, traem os maridos e fogem com amantes, subvertendo, assim, as prescries de obedincia e de submisso das mulheres figura masculina reguladas pela ordem patriarcal.
culina, caractersticos das organizaes patriarcais, so naturalizados e legitimam diversas formas de abusos masculinos, inclusive os sexuais (Narvaz & Koller, 2004). Uma vez que submisso e resistncia sempre fizeram parte da histria das mulheres (Strey, 2000), apesar da normatizao patriarcal, na cotidianidade vivida, papis familiares normatizados so tambm subvertidos. Homens e mulheres, apesar das normatizaes impostas, so capazes de resistncia e de subverso, mostrandose plurais e heterogneos. Tal pluralidade explode o discurso patriarcal monoltico normativo, abrindo possibilidades para a subversiva e criativa (re)inveno de papis e de relaes. A mesma sociedade patriarcal e capitalista que normatiza s mulheres o cuidado de seus filhos/as, e aos homens o sustento econmico da famlia, no lhes d condies para o desempenho destes papis. Residam talvez a possibilidades, mesmo que perversas, de subverso normatizao. Sujeitos e discursos devem ser compreendidos a partir de sua heterogeneidade constitutiva, dispersos em mltiplas, criativas, contraditrias e subversivas possibilidades inscritas em determinado tempo e espao histricosocial (Pcheux, 1969/1983; Scott, 1995). preciso revisar a idia hegemnica de famlia e de papis familiares, dado que o estigma atribudo aos sujeitos que vivem configuraes e papis alternativos aos normativos opressivo, fonte de sofrimento psquico (Canevacci, 1987; Figueira, 1986) e terreno frtil para desigualdades e violaes (ver Narvaz & Koller, in press). Ao deslocar o olhar das concepes homogneas de papis familiares para as possibilidades de resistncia dos sujeitos s normatizaes impostas, no deve, entretanto, ser desconsiderada a vigncia do patriarcado enquanto discurso normativo ainda na atualidade. A despeito das conquistas sociais e legais das mulheres, papis e relaes assentados em discriminaes e desigualdades de gnero permanecem neste novo sculo e invadem as cincias, as artes, a poltica; invadem, enfim, a cotidianidade de nossas vidas.
Consideraes Finais
Diante do exposto, entendemos que a normatizao das relaes familiares regulada pelo patriarcado atravessou a histria e permanece ainda na atualidade. No entanto, coexistem valores contemporneos e tradicionais na definio destes papis (Vaitsman, 1997), bem como h diferentes configuraes na constituio das famlias brasileiras alternativas ao modelo burgus, nuclear e patriarcal, tais como as famlias chefiadas por mulheres, as famlias extensas, as famlias de criao (Correa, 1982; Fonseca, 1989, 1997) e os casais e famlias homossexuais (Goodrich, Rampage, Ellman & Halstead, 1990). Esteretipos sexistas que fundamentam desigualdades de gnero tm sido encontrados em diversas configuraes familiares. Sobretudo em famlias marcadas por relaes de violncia, a hierarquia e a obedincia do grupo familiar figura mas-
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Martha Giudice Narvaz Psicloga, Terapeuta Familiar e Militante Feminista, Doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. [email protected] Slvia Helena Koller Psicloga, Professora do Programa de Ps-Graduao em Psicologia do Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenadora do Centro de Estudos Psicolgicos sobre Meninos e Meninas de Rua-CEPRUA/UFRGS. Endereo: Rua Ramiro Barcelos, 2600, 104, 90035 003, Porto Alegre, RS, Brasil. [email protected]
Agradecimentos
s alunas do Curso de Graduao de Psicologia da UFGRS que integraram nossa equipe de pesquisa, Jlia Bongiovani e Lvia Zanchet; Ao Prof. Dr. Henrique Caetano Nardi, do Programa de Ps-Graduao em Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia da UFGRS, por suas contribuies discusso da questo da excluso social; Ao Cnpq pelo apoio durante a realizao do estudo a partir do qual foi escrito este texto.
Este artigo foi realizado com base na Dissertao de Mestrado da primeira autora sob a orientao da segunda autora.
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