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ZOOPOÉTICA POR PETER

PÁL PELBART
O Deus e o Rato

Poucos autores mostraram com tamanha força o quanto a vizinhança com os bichos
revela de nossa própria “animalidade abafada”. Em Clarice, é através do que temos em
comum com eles (a morte? o medo? a dor?) que sentimos em nós a pulsação vital. “Às
vezes me arrepio toda ao entrar em contato físico com bichos ou com a simples visão
deles. Pareço ter certo medo e horror daquele ser vivo que não é humano e que tem os
nossos mesmos instintos, embora mais livres e mais indomáveis.”[1]
“ Pareço ter certo medo e horror daquele ser vivo que
não é humano e que tem os nossos mesmos instintos,
embora mais livres e mais indomáveis.”[1]”
E nos confundimos, já não sabemos quem é quem: “Sim, às vezes sinto o mudo grito
ancestral dentro de mim quando estou com eles: parece que não sei mais quem é o
animal, se eu ou o bicho.[2] E o que dizer quando se trata de um bicho morto? Há mais
vida num cachorro morto que em toda a literatura, diz ela. Na Praia de Copacabana,
admirada com um inédito sentimento de carinho pelo mundo, ao imaginar com ternura
que este mundo poderia ser cria sua, ela conta. “E foi quando quase pisei num enorme
rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos
de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais
profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro
quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam
mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda
enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de
ratos.

Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca
infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira
minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois
fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu
contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar
desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que
precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue
de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e
para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não
era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato[3].

O Deus e o Rato fazem parte de um mesmo mundo, mas também a Morte e a Vida. Não
porque sejam iguais, mas porque são indissociáveis, porque é preciso passar por um
para sentir o outro, ou porque é no encontro entre eles que se descobre outra coisa, não
propriamente uma comunhão, porém a intensidade da passagem, entre reinos, gêneros,
estados, seres. Deleuze chamou a isso de devir: “A escrita é inseparável do devir: ao
escrever, nos tornamos-mulher, nos tornamos-animal ou vegetal, nos tornamos-
molécula, até um devir-imperceptível.” Não se trata de virar um animal ou imitá-lo, mas
colocar-se numa zona de indiscernibilidade onde a fronteira se embaralha – nem
humana, nem animal, nem vegetal, nem mineral, nem desumana: inumana. Para atingí-
lo, é preciso estar do lado do informe, como dizia Gombrowicz, do inacabamento. As
formas dadas, excessivamente definidas, esculpidas, apolíneas, não dão a ver
precisamente o “monstro” que elas encobrem. O monstro só aparece, como o mostrou
Aristóteles, quando na gestação a matéria não é suficientemente exposta à ação da
forma - é a matéria não moldada que transborda, que excede. Por isso, diz José Gil, um
monstro desvela o excesso de matéria, ele “é sempre um excesso de presença”,
“obscenidade orgânica”. Pois é o interior visceral à flor da pele. “O que fascina é que
esse interior ´se corporize’ e que não seja realmente um corpo – pois não tem alma. Ao
mostrar o avesso da pele, é sua alma abortada que o monstro exibe: o seu corpo é o
reverso de um corpo com alma, é um corpo que atacou a alma absorvendo-a numa parte
corporal. Ao revelar o que deve permanecer oculto, o corpo monstruoso subverte a
ordem mais sagrada das relações entre a alma e o corpo [...] Que monstruosidade
carrega o monstro teratológico com ele? A de uma alma feita carne, vísceras e órgãos”.
[4] Não há mais separação entre alma e corpo, e assim, tampouco entre homem e bicho,
vivo e morto, dentro efora.

A Matéria e o Chamado

Talvez é o que nos faz estremecer diante das esculturas que Renata Huber produziu ao
longo dos últimos anos: bichos rastejantes, híbridos, ventosos, polifemos, casulos –
seres incomuns, ora ainda embrionários, ora já natimortos, ora em estado de
decomposição, ora “sobras” de estados primevos, ora ainda em estado de
experimentação científica – cobaias acéfalas ou ocas, morcegos recompostos, seres
viscosos – não há um deles que não cause arrepio, nojo ou horror. Se fossem apenas
formas, mesmo disformes, talvez nos deixassem indiferentes. Mas curiosamente, como
em Clarice, há fascínio e mesmo ternura, pois sua matéria é a lama vital. “O que faço
com as mãos é servir de testemunho, escutar toda sorte de seres interrompidos cuja
única sorte foi perder a cabeça”, diz com humor a escultora[5]. E assim, em meio à
deformidade inumana, há sempre um detalhe proto-humano que nos laça a alma – por
exemplo, uma patinha ternamente esticada. Como diz Deleuze: “A literatura começa
com a morte do porco-espinho, segundo Lawrence, ou a morte da toupeira, segundo
Kafka: "nossas pobres patinhas vermelhas estendidas num gesto de terna piedade".”[6]
Não é aí, diante de detalhe tão minúsculo, que toda nossa alma se contorce? Como se
aqui coubesse a reflexão puríssima de Clarice:
“ “Nâo ter nascido bicho parece ser uma de minhas
secretas nostalgias. Eles às vezes clamam do longe de
muitas gerações e eu não posso responder senão
ficando desassossegada. É o chamado.[7]””
Se a escultora precisa da matéria para responder ao chamado, não é porque não saiba
escrever, mas porque a matéria a chama: “O que talvez somente fosse a nostalgia da
matéria e o simples derrapar no que de longe se representa torna-se um amálgama de
forças desconhecidas, um rápido aflorar de formas que pululam”. Sim, formas
inacabadas, incompletas, disformes, por vezes fazendo escorrer do seu oco uma lava
que parece vir de outras eras geológicas, e que deixa à vista precisamente a matéria viva
rebelde, indomável, extrapolando o enquadre estreito do vivente bem-sucedido: “a
matéria fala em nós, sempre novamente; de modo obscuro, esticando aqui e lá, entra em
comunhão com as esferas diabólicas, levando-nos a questionar a englobante prisão onde
passamos nossos dias tentando tudo apreender.”[8] Uma prisão de onde uma zoopoética
nos permite escapar – fugir de si por dentro, vazando, escoando, deixar-se escapar antes
de engessar-se – será isto possível? Uma das versões de um conto imaginado por
Clarice refere-se à fórmula sugerida pela vizinha para matar baratas – farinha e açucar
para atraí-las, e gesso para esturricá-las por dentro. Preparado o veneno, a narradora
desperta em meio à escuridão da madrugada e distigue a seus pés “sombras e brancuras:
dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro
para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se
completaria jamais. Na boca de umas um pouco de comida branca. Sou a primeira
testemunha do alvorecer em Pompéia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia no
escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e
elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as
alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam,
em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras – subitamente
assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno
que se petrificava ! – essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da
boca: eu te...”[9] O biscuit utilizado pela escultora não é um gesso mortífero – parece
mais tenro, poroso, quase diáfano.

A Biopolítica e o Quase-ser

Uma das séries chama-se justamente Quase. São quase-seres, ou seres quase-possíveis,
ou seres impossíveis, ou seres-que-não-existem-direito, ou apenas imagináveis, ou então
inimagináveis. E no entanto estão aí, não apenas na exposição, numa galeria, no circuito
da arte, na longa história dos monstros, nos bestiários literários, mas igualmente nos
laboratórios científicos atuais, na experimentação biotecnológica de hoje, na produção
do vivo que o pensamento contemporâneo não pode ignorar, sob pena de se ver
arrastado numa aventura pós-humana sem volta. A cobaia oca e acéfala esticada pelas
quatro pontas é uma imagem apenas, entre várias outras, de uma aposta onde as
potências demiúrgicas do capitalismo e da tecnociência, aliados, experimentam, não
mais com perplexidade filosófica, como exclamaria Espinosa, “não sabemos ainda o
que pode um corpo”, mas com onipotência divina “não sabemos ainda o que se pode
fazer com um corpo”, ou mais ainda, quais novos corpos se pode fabricar através da
manipulação genética, que novas combinações, que misturas, que hibridismos se tem a
capacidade de programar, como em Blade Runner. A experimentação em curso borrou a
fronteira sempre tão categórica que a metafísica estabeleceu entre o homem e o animal,
exercitando uma biopolítica pela qual se redesenham as relações entre o poder e a vida.

Como diz Agamben, desde a Antiguidade assistimos a uma exlusão do não-homem no


homem, paralelamente a uma antropomorfização do animal[10]. O homem encontra em
si, e isola dentro de si, um animal que ele qualifica de não-homem, numa decisão que é
ao mesmo tempo metafísica e técnica, e que implica sempre e necessariamente uma
zona de fronteira, de indistinção. Com a biopolítica, que produz vida nua, a “máquina
antropológica” que separava o animal no homem, no entanto, tornou-se inoperante. Não
se trata, agora, de buscar uma nova articulação entre eles, porém antes de mostrar o
vazio central, o hiato que separa, no homem, o homem do animal, e arriscar-se nesse
vazio, numa suspensão tanto do homem como do animal, reivindicando-se um novo
estatuto para essa vida, ainda que nua. É diferente disso, sem dúvida, a posição de
Deleuze, que sempre fez o elogio do devir-animal, que considera o animal o único ser
que sabe morrer (para escândalo dos heideggerianos), que insiste que o próprio
pensamento tem com a animalidade uma relação necessária – e na contramão de
qualquer antropocentrismo ou controle, trata sempre de liberar a vida por toda parte
onde ela esteja aprisionada, ainda que num reles animal, esvaziado de seus órgãos –
corpo-sem-órgãos, uma vida.

Não cabe aqui escolher entre a franja messiânica que um pensador insiste em deixar
entreaberta ou a ontoetologia em que o outro se instala de imediato. Em ambos os casos,
é do vivo que se trata, sobretudo num contexto biopolítico em que se está imerso até o
pescoço no pensamento-para-o-mercado (farinha, açucar e gesso), e Pompéia parece ser
o único horizonte. É onde temos vergonha de ser um homem e quereríamos escapar,
como que “por de-dentro”, virando-nos do avesso. Referindo-se às descrições de Primo
Levi sobre o campo de concentração, e à vergonha de ser um homem que ele evocou,
Deleuze escreve: “Não somos responsáveis pelas vítimas, mas diante das vítimas. E não
há outro meio senão fazer como o animal (grunhir, fugir, escavar o chão com os pés,
nitrir, entrar em convulsão) para escapar ao ignóbil: o pensamento mesmo está por
vezes mais próximo do animal que morre, que de um homem vivo, mesmo
democrata”[11].

Talvez essa questão só possa alcançar sua “altura” a partir do mais “elementar”, isto é,
das vísceras, no espasmo. Em outros termos, os destinos da matéria viva e suas
bifurcações por vir pedem uma sensibilidade outra, que atravesse as eras e os reinos, os
gêneros e as espécies, numa aposta cosmopolítica onde cabe ao além-do-homem
reafirmar o símio e ao filósofo, o porco. Ali, o morimbundo e o recém nascido se
respondem mutuamente, assim como Deus e o rato.

Peter Pál Pelbart

[1] Clarice Lispector, “Bichos – I”, in A descoberta do mundo, Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1984, p. 517.

[2] Idem, p. 520.

[3] C. Lispector, “Perdoando Deus”, in A descoberta do mundo, op. cit., p. 484.

[4] José Gil, Monstros, Lisboa, Quetzal, 1994, pp 81-85

[5] Renata Huber, “Texto para Alfarrábio”, março de 2015.


[6] Gilles Deleuze, “A literatura e a vida”, in Crítica e clínica, Rio de Janeiro, ed. 34,
1997,

[7] C. Lispectos, “Bichos, Conclusão”, in A descoberta do mundo, p. 524.

[8] Idem, ibidem.

[9] C. Lispector, « Cinco relatos e um tema », in A descoberta do mundo, p. 326.

[10] Giorgio Agamben, L´Ouvert, de l´homme et de l´animal, Paris, Payot & Rivages,
2002.

[11] G. Deleuze, Conversações, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992.

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