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A RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS E O CONHECIMENTO DE ALGORITMOS:

OBSERVAÇÕES A PARTIR DO DESEMPENHO DOS ALUNOS.


Inhelora Kretzschmar Joenk6

Resumo - Este artigo apresenta um estudo relacionado à atividade pedagógica de resolução


de problemas matemáticos, colocando em evidência a necessidade de tomar como ponto de
partida situações-problema reais ou hipotéticas no lugar de algoritmos sem significado.
Tece, também, algumas considerações a respeito do conhecimento de algoritmos na
resolução de problemas.
Palavras-chave: resolução de problemas, algoritmos.

Abstract - This article presents a study related with the pedagogical activity of resolution of
mathematical problems, placing in evidence the necessity to take as start point situation-
problem real or hypothetical in the place of algorithms without meaning. It also shows
some considerations about the algorithms knowledge in the resolution of problems.
Key-words: resolution of problems, algorithms.

Considerações iniciais

As reflexões apresentadas neste artigo fazem parte da monografia elaborada na


especialização em Metodologia do Ensino da Matemática, concluída no ano 2000, na
Universidade para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí. O recorte que segue trata da
relação entre o domínio de algoritmos e a resolução de problemas matemáticos nas séries
iniciais da Educação Básica.

A história mostra que a Matemática foi construída como resposta a problemas


provenientes de diferentes origens e de diversos contextos, motivados, inicialmente, por
problemas de ordem prática, por problemas vinculados a outras áreas do conhecimento,
como por problemas relacionados à investigação interna à própria Matemática.

A resolução de problemas, ao longo da história da humanidade, tem estado no centro de toda produção
científica da matemática. No pensar de Charnay (1994, p.52), “a matemática se faz por meio da resolução de
problemas, pois são os problemas que deram origem, continuidade e sentido a todos os conhecimentos

6
Professora de Matemática da Educação Básica e professora da Universidade para o Desenvolvimento do
Alto Vale do Itajaí -UNIDAVI, mestranda em Educação e Cultura – UDESC.
matemáticos produzidos.” Daí a origem das propostas insistentes de resolução de problemas no ensino da
Matemática. Ponte (1992, p.95) assinala que

a aprendizagem da matemática não se limita apenas à apreensão de


conceitos e técnicas para posteriormente usar em estudos de novos
conceitos ou técnicas (mais avançadas) ou em simples aplicação da
vida prática. A força motora do desenvolvimento da ciência
Matemática são os problemas e não é por isso de estranhar que a
atividade de Resolução de Problemas constitua uma importante
orientação curricular para o ensino desta disciplina.

Como orientador curricular, a Resolução de Problemas tem uma longa história.


Discutida no princípio do século por teóricos da educação como John Dewey, mereceu
destaque na década de 1940 por parte de educadores como William Brownel, mas foi a
partir de 1945, com a publicação dos escritos do grande matemático George Polya que
essa atividade começou a ser olhada como fundamental no ensino da Matemática.
Atualmente, a Resolução de Problemas se apresenta também como uma proposta
pedagógica. Mas o que é uma situação-problema?

Segundo Pérez Echeverría e Pozo (1998, p.16-17):

Uma situação somente pode ser concebida como um problema na

medida em que existe um conhecimento dela como tal e na medida em

que não dispomos de procedimentos automáticos que nos permitam

solucioná-la de forma mais ou menos imediata, sem exigir, de alguma

forma, um processo de reflexão ou uma tomada de decisões sobre a

seqüência de passos a serem seguidos.

Problemas e exercícios...
Em Matemática, por problema, caracteriza-se aquela situação que exige uma
maneira matemática de pensar, uma situação em que são aplicados conhecimentos
matemáticos para chegar à solução. Uma situação-problema não pode ser resolvida de
imediato, com o conhecimento prévio que o aluno possui. Uma situação só é realmente
um problema se o aluno for levado a interpretar o enunciado, se a situação que se
apresenta é nova e exige do solucionador o desenvolvimento estratégico de técnicas já
conhecidas. Essas características diferenciam um verdadeiro problema de situações
similares, que podem ser denominadas exercícios.

A realização de exercícios se baseia no uso de habilidades ou técnicas


sobreaprendidas, transformadas em rotinas automatizadas como conseqüência de uma
prática contínua. Os exercícios constituem-se de tarefas já conhecidas; tais exercícios
não apresentam nada de novo, podendo ser resolvidos pelos meios habituais. De forma
geral, é difícil determinar se uma tarefa escolar é um exercício ou um problema. Isso
depende tanto da experiência e dos conhecimentos daqueles que executam a tarefa como
dos objetivos que estabelecem enquanto a realizam.

Resolver um problema matemático é uma situação que exige do aluno a


elaboração de uma seqüência de ações para obter um resultado, desenvolvendo sua
capacidade de interpretação, de análise, de síntese, de formulação de hipóteses, da
criação e do uso de estratégias orientadas para um objetivo, no entanto existe uma
importante e sutil relação entre exercícios e problemas. Um problema repetidamente
resolvido acaba por tornar-se um exercício, pois a solução direta e eficaz dará à tarefa
simplesmente o objetivo de exercitar habilidades já construídas. Por outro lado, a
solução de um problema novo requer a utilização estratégica de técnicas ou habilidades
previamente exercitadas. Se o aluno desconhecer a técnica instrumental básica, não será
capaz de utilizá-la para resolver um problema novo.

Os algoritmos...

O algoritmo é uma técnica com um certo número de passos que leva a um


resultado desejado. Os algoritmos especificam de forma muito precisa a seqüência de
ações e de decisões que devem ser respeitadas para resolver um determinado problema.
Se for realizado na sua totalidade e na ordem proposta, é certo que se chegará à solução.
Os algoritmos escolares mais conhecidos são os de cálculo.

O algoritmo da adição, usado em nossa área de influência cultural, é útil para


resolver situações quando o solucionador não é muito hábil com outros procedimentos e
dispõe de lápis e papel. Sua utilização reforça o conhecimento do sistema de numeração,
é uma base para alcançar outros conhecimentos matemáticos e tem uma utilidade
imediata na resolução de situações-problema. A importância desse procedimento dá-se
pela segurança com que permite resolver situações relacionadas com adição, tanto
dentro como fora da escola. Seu domínio faz parte das expectativas dos alunos, já que é
um conhecimento com um certo prestígio histórico e social, todavia, atualmente, sua
importância deve ser relativisada, já que é possível adicionar de muitas maneiras: com
calculadora, no computador, manipulando um ábaco, fazendo cálculo mental,
raciocinando por decomposição das escritas numéricas, utilizando estratégias pessoais
de cálculo.

Na subtração, o grande desafio para os alunos é a compreensão do significado dos


reagrupamentos em ordem inferior, popularmente conhecidos como “emprestar um”,
além de não compreender as diversas idéias envolvidas na subtração e o
desconhecimento das regras do sistema de numeração decimal. Para Kamii e Declarck
(1992, p.137-140), o objetivo do ensino tanto da subtração como da adição deveria ser
ensinar as crianças a pensar e não simplesmente ensinar-lhes técnicas específicas para
darem respostas escritas. As crianças que compreendem as idéias envolvidas na adição e
resolvem adição mentalmente também têm a capacidade de expressar seu conhecimento
no papel. Essas crianças, compreendendo os significados da subtração, também são
capazes de resolver essa operação aritmética, tanto mentalmente como por escrito.

Segundo Coll e Teberosky (2000, p.38-42), a multiplicação tem relação direta com
a adição, e a divisão está relacionada com a subtração. A adição sucessiva, em que todas
as parcelas são iguais, é um dos significados da multiplicação, servindo para resolver
situações em que algo se repete um determinado número de vezes, entretanto a
multiplicação também é usada quando queremos determinar o número de combinações
entre os elementos de duas coleções.

A divisão está relacionada a diferentes situações de subtração, ou seja, quando é


preciso verificar quantas vezes uma mesma quantidade cabe em outra. Também
utilizamos a divisão quando surgem situações de distribuir ou repartir em partes iguais.
Na opinião de Carraher, Carraher e Schlliemann (1995, p. 150), na escola, as crianças
aprendem regras para a execução de cada uma das operações, sendo que cada uma tem
um conjunto de regras com peculiaridades próprias. Assim, no algoritmo da adição, os
números são alinhados a partir da direita, porém, ao lhes ser apresentado o algoritmo da
multiplicação por dois números, não se alinham os produtos parciais a serem somados a
partir da direita, e as crianças aprendem a deixar o espaço de uma “casa” do lado direito.

Os algoritmos de cada operação são ensinados de maneira independente, cada um


tendo suas peculiaridades. Por exemplo: para multiplicar, inicia-se da direita para a
esquerda; para dividir, começa-se da esquerda para a direita. Nos algoritmos escolares,
os dígitos são esvaziados de seu significado relativo no momento da operação: as
dezenas e centenas são “lidas” como se fossem unidades ao ser feito o cálculo. Esse fato
é observado tanto na multiplicação e divisão como na adição e na subtração.

Resolução de problemas: observações a partir do desempenho dos alunos.

Com a finalidade de analisar a postura e a performance dos alunos frente à


resolução de problemas, assim como analisar a interferência do domínio dos algoritmos
nessa atividade pedagógiga, foram propostas algumas situações que serão analisadas em
seguida. A pesquisa foi realizada na Escola de Ensino Fundamental da Universidade
para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí – UNIDAVI, da cidade de Rio do Sul
(SC), no mês de setembro do ano de 1999. A vivência em sala de aula teve o objetivo de
analisar os procedimentos utilizados por alunos da 3a série e da 4a série do Ensino
Fundamental na resolução de problemas.
A turma da 3a série compunha-se de 33 alunos na faixa etária de 8 a 9 anos de
idade, sendo 18 alunos do sexo masculino e 15 do sexo feminino. Os alunos dessa turma
ainda não haviam automatizado o algoritmo da multiplicação com multiplicador
formado por mais de um algarismo, nem o algoritmo da divisão quando o divisor era
formado por dois algarismos.

Na 4a série, a população de amostragem constitui-se de um grupo de 12 alunos (4


meninos e 8 meninas), na faixa etária de 10 anos, que apresentavam como característica
comum o alto grau de domínio dos algoritmo da adição, subtração, multiplicação e
divisão.

A todos os alunos envolvidos na pesquisa foram propostas as seguintes situações-


problema:

1) Um homem que pesa 100 quilos e seus dois filhos, cada um pesando 50 quilos,
querem atravessar um rio, mas eles possuem apenas uma canoa que pode
transportar 100 quilos com segurança. Como farão para atravessar o rio sem
correr riscos?
2) Um feirante tem 11 embalagens de ovos, com lugar para 12 ovos em cada uma.
Ele tem 154 ovos para arrumar. Vai dar para ele arrumar os ovos nessas
embalagens? O que vai acontecer?
O primeiro problema foi considerado complexo por um grupo de alunos que,
mesmo após reler diversas vezes o texto, não conseguiu chegar à solução. Apesar disso,
a grande maioria dos alunos da 3a série (22 alunos) solucionou o problema. Enquanto
alguns alunos descreviam seus procedimentos, outros esquematizavam a forma de
resolução por meio de desenhos, e um terceiro grupo combinava desenhos e descrição.

Alguns procedimentos empregados na solução do problema:

- Primeiro vão os dois filhos. Um fica, e outro volta. O pai vai e aquele filho que
tinha ficado esperando volta e busca o irmão (aluno A, 9 anos).

-Vão dois de 50 quilos. Volta um de 50 quilos. O pai vai e um de 50 quilos volta.


Vão os dois de 50 quilos (Aluno B, 8 anos).
Outros tipos de comportamento foram observados durante a resolução do
problema:

a) Alunos que não chegaram a iniciar o processo de resolução. Provavelmente não


conseguiram controlar as informações e, não tendo pista por onde começar, a
tarefa pareceu-lhes muito difícil de realizar.
b) Alunos que introduzem elementos novos à situação na tentativa de resolvê-la.
Não controlando as informações fornecidas, as crianças “acrescentam” elementos
que a auxiliam na resolução do problema. Alguns exemplos:

-Primeiro, eles amarram uma corda na canoa, e o pai vai. Depois, os filhos puxam
a canoa e vão.

-O pai pega um cipó muito firme e amarra na canoa.

-O pai vai na canoa, e os filhos vão fora da canoa batendo os dois pés (nadando).

a) Alunos que iniciam, mas não concluem o processo, provavelmente


desestimulados pela contínua necessidade de proceder à verificação (controle) das
hipóteses que vão sendo produzidas.

Proposto ao grupo de doze alunos da 4a série que participou do estudo, o problema


foi considerado muito complexo. Habituados a resolver problemas envolvendo
algoritmos, os alunos se desencorajaram diante da necessidade de criar estratégias
próprias, e apenas 50% do grupo chegou à solução do problema.

O segundo problema permitiu analisar o desempenho dos alunos na resolução de


problemas envolvendo multiplicação ou divisão. Nos dados obtidos, foram identificadas
tanto dificuldades ligadas à passagem do texto do problema para a linguagem
matemática como a não-interpretação dos resultados obtidos por meio dos algoritmos. A
maioria dos alunos de 3a e 4a série, no entanto, solucionou o problema.
O aluno C (9 anos) fez uma divisão (154 : 11 = 14) e explicou:

- O 14 é o total de ovos que ele (o feirante) precisa colocar em cada caixa. Então,
ele precisa de mais caixas para colocar todos os ovos, porque ele precisa tirar 2
ovos de cada caixa, pois em uma caixa só cabem 12 ovos. Aí ele precisa de mais
uma embalagem.
- Só mais uma? – inquire a pesquisadora.

- Sim.

- Tem certeza?

- Deixa eu ver...Ele tira 2 ovos de cada caixa, e são 11 caixas (faz um cálculo na
folha: 11 x 2 = 22). Ah, sobraram 22 ovos. E tirando os 12 ovos de uma caixa...
sobraram 10. Ele pode colocar noutra caixa, né?

O aluno D (9 anos) solucionou o problema por meio de uma adição e de uma


subtração:

12 + 12 + 12 + 12 +12 + 12 + 12 + 12 + 12 + 12 + 12 = 132

154 – 132 = 22

Na sua fala, percebe-se que, além de interpretar o texto, soube fazer a passagem
para a linguagem matemática: - Nas 11 caixas, só cabem 132 ovos. Aí eu peguei os 154
ovos e tirei os 132 das 11 caixas. E 22 ovos ficaram sem caixa.

O aluno E (10 anos) fez uma divisão (154 : 11 = 14). E registrou sua conclusão:
“Sim, vai dar e sobrar 2 lugares”.

Questionado pela pesquisadora, releu o texto do problema, analisou a divisão


enquanto murmurava: “154 ovos que eu tenho que arrumar, 11 embalagens, 14 ovos que
vão em cada embalagem...”. E fala:

- Não vai conseguir arrumar os ovos nas 11 embalagens.

- Como você concluiu isso?


- Porque em cada embalagem só cabem 12 ovos e, aqui, deu 14. Então em cada
embalagem sobram 2 ovos.
- E o que vai acontecer?
- Em cada caixa, sobram 2 ovos.

- E nas 11, quantos ovos sobram?

- 22 ovos.

- Conte como você concluiu isso.

- Eu contei de 2 em 2, nos dedos, até 11 vezes o 2.

- E o que acontecerá com esses ovos?

- Ele precisa colocar em outras caixas - fala, enquanto registra uma subtração.

- Por que você fez 22 – 12 = 10?

- Porque sobraram 22 ovos e, em cada caixa, só cabem 12.

- E com mais uma caixa, ainda sobram ovos?

- Sim, 10 .

- Então, quantas caixas são necessárias para colocar os 22 ovos que sobraram?

- Mais duas, mas numa vão sobrar 2 lugares.

O aluno F (10 anos) fez duas adições:

1a) 12 + 12 + 12 + 12 + 12 + 12 + 12 + 12 + 12 + 12 + 12 = 132

2a) 132 + 22 = 154

Percebe-se que, entre as duas adições registradas, fez um cálculo mental: 154 –
132 = 22. Como conclusão registrou: “Vai colocar 132 ovos. E vão sobrar 22 ovos. Não
vai dar de colocar todos nas 11 embalagens.”
O aluno G (10 anos) fez os seguintes cálculos:

E concluiu: “Irão faltar duas embalagens para completar os 154 ovos”.

O aluno H (10 anos) efetuou uma divisão: 154 : 11 = 14 e interpretou o resultado


obtido: “Não, vai faltar lugar para alguns ovos. Em cada embalagem, só tem lugar para
12 ovos e, para ele arrumar em 11 embalagens, vai ter que ser 14 ovos em cada
embalagem, e só tem 12 lugares para os ovos”.

Sendo um problema de aplicação, que poderia ser resolvido por uma divisão ou
por uma multiplicação, fazendo-se necessária a interpretação do resultado em ambos os
casos, foi muito gratificante observar que os alunos, na faixa etária de 8 a 9 anos, que
ainda não possuíam completo domínio dos algoritmos de multiplicação (com
multiplicador formado por mais de um algarismo) e da divisão (com divisor formado por
dois ou mais algarismos), criaram estratégias próprias, e a maioria ( 25 alunos)
solucionou o problema.

O grupo de alunos da 4a série, na faixa etária de 10 anos, apresentava excelente


domínio no cálculo das quatro operações básicas por meio dos algoritmos
convencionais, e só dois alunos não solucionaram o problema. Mesmo assim, alguns
aspectos observados durante o processo de solução do problema merecem ser
mencionados.

- Um número expressivo de alunos que utilizou o algoritmo da divisão não


conseguiu interpretar o resultado encontrado.
- Utilizando a divisão como forma de solução, mas não conseguindo interpretar o
quociente obtido, os alunos passaram a solucionar o problema criando estratégias
próprias.
- Todos os alunos envolvidos na pesquisa dominavam o algoritmo da
multiplicação. Mesmo assim, utilizaram a adição de parcelas iguais, cálculo
mental ou contagem nos dedos.

Considerações finais

Partindo do pressuposto vygotskiano de que a aprendizagem ocorre na interação


do sujeito com o objeto do conhecimento e com outros sujeitos mais experientes, a
escola deve ter em mente que o ponto de partida para a aprendizagem da Matemática são
os conhecimentos que o aluno necessita para resolver problemas cotidianos.

Nesse contexto, a Resolução de Problemas apresenta-se como uma proposta


pedagógica no processo ensino-aprendizagem da Matemática, pois, além de permitir a
problematização de situações cotidianas, favorece a transferência e a aplicação de
conhecimentos apreendidos a/em situações novas. Com isso, oportuniza ao aluno a
apropriação de conceitos matemáticos por meio de situações que instiguem sua
curiosidade, ao mesmo tempo em que desenvolvem maneiras matemáticas de pensar.

O conjunto de dados apresentados no presente texto colocam em evidência a


necessidade de tomar como ponto de partida situações-problema reais, hipotéticas ou
divertidas, no lugar de apresentar tão-somente diversas adições, subtrações,
multiplicações e divisões soltas, carentes de significado para o aluno.

Frente a situações-problema significativas, os alunos poderão colocar em ação


diferentes estratégias de resolução, discutir com colegas e com professores a validade
dessas estratégias, refletir com eles para determinar quais são as mais úteis e as mais
adequadas para cada situação. Também é imprescindível que ocorra a socialização das
estratégias utilizadas pelos demais membros do grupo, bem como a interpretação dessas
representações, inclusive a representação convencional.

O domínio dos algoritmos não exerceu muita influência na forma como os alunos
solucionaram os problemas. Apesar disso, é um tema que merece a atenção do professor
nos conteúdos trabalhados em sala de aula, visto que os mesmos podem agilizar a
solução de problemas que envolvem cálculos.

Visando ao desenvolvimento das habilidades em resolver problemas, as situações


propostas ao aluno devem ser desafiadoras, com dados reais, ter um nível de dificuldade
adequado, possibilitar a geração de hipóteses e diversas estratégias de solução, pois,
como assinala Délia Lerner de Zunino,

se na escola nós assumirmos, tanto ao ensinar como ao avaliar, que

fazer matemática é muito mais do que fazer contas, não só poderíamos

conseguir que as crianças adquirissem conhecimentos mais sólidos

como também ofereceríamos a oportunidade de que elas se

apaixonassem por essa invenção humana que é a matemática

(ZUNINO, 1995, p. 27).

Referências bibliográficas

CARRAHER, Terezinha. CARRAHER, Davis. SCHLIEMANN, Ana Lúcia. Na vida


dez, na escola zero. São Paulo: Cortez, 1995.

CHARNAY, Roland. Aprender (por meio de) la revolucion de problemas. In: PARRA,
C.; ZAIZ, I. (comps). Didática de Matemática: aportes y reflexiones. Buenos Aires:
Paidós Educador, 1994.

COOL, César. TEBEROSKY, Ana. Aprendendo Matemática. Conteúdos essenciais


para o ensino fundamental de 1ª a 4ª série. São Paulo: Ática, 2000.

KAMII, Constance. DECLARCK, Georgia. Reinventando a aritmética: implicações


da teoria de Piaget. Campinas: Papirus,1992.
PÉREZ ECHEVERRÍA, Maria Del Puy. POZO, Juan Ignacio. Aprender a resolver
problemas e resolver problemas pra aprender. In: POZO, Juan Ignácio (org.) A solução
de problemas: aprender a resolver, resolver para aprender. Porto Alegre: Atmed, 1998.

PONTE, João Pedro da. Problemas de matemática e situações da vida real. Revista de
Educação, Lisboa, vol. II, n. 2, p.95 – 97, out. 1992.

ZUNINO, Délia Lerner de. A matemática na escola: aqui e agora. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

A INFLUÊNCIA DA LINGUAGEM VISO-ESPACIAL NO DESENVOLVIMENTO


COGNITIVO DA CRIANÇA SURDA
Paulo Cesar Machado4

Resumo - O contexto sociocultural assume um papel fundamental


no desenvolvimento cognitivo da criança. Esse desenvolvimento é
entendido como dependente e direcionado pela cultura à qual a
criança está exposta, pelas relações interpessoais por ela vividas,
concretizadas sobretudo através da linguagem. Nesse artigo,
buscamos discutir a influência da linguagem viso-espacial no
desenvolvimento cognitivo da criança surda, fundamentando-nos na
perspectiva sociointeracionista de Vygotsky e no trabalho de alguns
autores contemporâneos. Procuramos, ainda, refletir sobre as
inadequações lingüísticas da comunidade ouvinte no que diz
respeito ao desenvolvimento da criança surda.

Palavras-chave: linguagem viso-espacial, língua de sinais, criança


surda, desenvolvimento cognitivo, contexto sociocultural.

4
Licenciado em Biologia pela UFSC, mestrando em Psicopedagogia / UNISUL. [email protected]
Abstract - The social and cultural context has an important role
concerning the cognitive development of the child. This
development depends on the cultural characteristics of the place
where the child lives and the relationships experienced through the
language. In this paper, we attempt to discuss the influence of the
space-visual language on the deaf child cognitive development,
based on Vygotsky’s and some other contemporary authors’
perspective. We discuss, also, the linguistic inadequacies of the
community for the development of the deaf child.

Key-words: space-visual language, signs of language, deaf child,


cognitive development, social and cultural context.

Introdução

A linguagem se constrói, basicamente, mediante a utilização de um conjunto de signos1 cujos


significados são coletivamente conhecidos, identificáveis, traduzíveis, porque já foram trabalhados em vários
contextos, ocorrendo a sua sedimentação histórica e cultural. A cultura (aqui, incluindo-se as linguagens)
constitui-se através de processos pelos quais um grupo social se identifica como grupo, construindo
comportamentos, valores, costumes, tradições comuns e partilhadas porque aceitas e assimiladas no decorrer dos
tempos.
A comunicação lingüística faz o homem diferenciar-se das outras espécies de animais. A linguagem é uma
atividade mental que abrange os dois níveis de experiência: simbolização e conceitualização. Ela surge quando há
associação entre significante, sons e imagens, e o contexto que traz o significado, idéias ou mensagens que se queira
comunicar. A partir disso, o ser humano utiliza a língua para se expressar. Pela linguagem, ocorre a informação e a
transmissão da cultura, assim como os planejamentos sociais futuros são elaborados, por ser ela que transforma o
ser biológico no ser humano e histórico (VYGOTSKY; 1991a, 1991b).
O homem imprime sua marca na natureza, aprende e produz tecnologia, idéias e valores. É através da
língua materna que há a troca de informações entre os grupos, assim como é através dela que as experiências
passam a ser codificadas, transformando-se em fontes de conhecimento compartilhado. Através da “língua,
transmitem-se a outras gerações cultura e história” (BERGMAN, 1992, p.11). O homem desenvolve sua vida não
isoladamente, mas dentro de uma comunidade, que deve ser mantida e preservada para o bem do próprio indivíduo.

1
Para Oliveira (1993, p.36), os signos são “sistemas de representação da realidade – e a linguagem é o
sistema simbólico básico de todos os grupos humanos. São, portanto, socialmente dados”.
A comunidade surda2 caracteriza-se como usuária das Línguas de Sinais3, constituindo-se numa minoria
lingüística que se diferencia da comunidade ouvinte por sua privação de audição, sendo a linguagem viso-
espacial seu canal de percepção e transmissão lingüística. Para os ouvintes, usuários das línguas oral-
auditivas, o canal de transmissão e percepção da linguagem é o oral-auditivo.
Frente a essa característica lingüística, centrada primeiramente no aspecto externo da língua, ou seja,
em seu veículo, o qual nas línguas orais é a palavra, ou item lexical, e nas línguas de sinais é denominado
simplesmente de sinal (FELIPE, 1999), conferiram-se à cultura surda4 diferenças que foram alvo de
incompreensão ao longo da trajetória de vida do surdo, mas que, a partir de 1960, vêm se modificando até se
imporem como língua oficial desse grupo e serem legitimadas pela ciência como uma língua natural.5
Behares (1993, p. 41) aponta que

os estudos anteriores a 1960 pecavam pela limitação de conceber a


surdez exclusivamente como um tipo de “patologia audiológica”, sem
considerar que essa patologia audiológica determina um
funcionamento sociocultural alternativo. Hoje, sabemos que esse
funcionamento engloba os aspectos identificatórios, comunicativo-
interativos, lingüísticos e cognitivos.

Essa limitação também se observa no que concerne à concepção de aquisição de


linguagem pela criança surda. É comum privilegiarem-se ainda atendimentos e
intervenções do ponto de vista clínico-audiológico, em especial no contexto da saúde e da
educação, comprometendo a avaliação psicossocial da criança surda, por caracterizá-la
como “deficiente” diante da cultura majoritária ouvinte, e não como membro potencial,
“eficiente”, de uma cultura minoritária surda.

A partir dessas considerações, neste artigo, tentamos discutir a influência da


linguagem viso-espacial no desenvolvimento cognitivo da criança surda, tendo por base a

2
Concepção socioantropológica da surdez, caracterizando o surdo e a comunidade surda como uma
minoria, com identidade específica, que manifesta aspectos culturais específicos desenvolvidos a partir de
uma língua natural – língua de sinais (SKLIAR, 1998).
3
Língua de Sinais ou linguagem sinalizada é um termo genérico que se refere a formas diferentes de
expressões sinalizadas, utilizadas pelas comunidades surdas, cuja modalidade lingüística é viso- espacial.
4
Para Skliar (1998), não é possível compreender ou aceitar o conceito de cultura surda senão através de
uma leitura multicultural, ou seja, a partir de um olhar de cada cultura em sua própria lógica, em sua
própria historicidade, em seus próprios processos e produções.
5
Entendemos “língua natural” como aquela produzida por um grupo específico de usuários, sendo
transmitida através das gerações e modificando-se com o tempo, conforme se modifica seu grupo de
origem (SKLIAR, 1998).
perspectiva sociointeracionista de Vygotsky e os trabalho de autores contemporâneos,
como Fernandes (1990), Goldfeld (1997), Behares (1997), Marchesi (1995) e Oliveira
(1993) e refletindo sobre as inadequações lingüísticas da comunidade ouvinte relativamente
ao desenvolvimento da criança surda.

A perspectiva social da linguagem

Através da interação com as pessoas, a criança se expressa e participa da produção


cultural de sua espécie e, ao mesmo tempo, internaliza os significados e as formas de ação
sobre o mundo elaboradas socialmente. Ao agir sobre o ambiente, a criança inicia seu
processo de internalização das formas culturais da organização social. Nesse processo, os
sistemas simbólicos - e particularmente a linguagem - exercem um papel fundamental na
comunicação e no estabelecimento de significados compartilhados socialmente, os quais
permitem interpretações dos objetos, eventos e situações. Sobre a linguagem como sistema
simbólico, Oliveira (1993, p.36) registra:

Os sistemas de representação da realidade – e a linguagem é o


sistema simbólico básico de todos os grupos humanos – são,
portanto, socialmente dados. É o grupo cultural onde o indivíduo
se desenvolve que lhe fornece formas de perceber e organizar o
real, as quais vão constituir os instrumentos psicológicos que
fazem a mediação entre o indivíduo e o mundo.

Para Vigotsky (1991b), a mediação semiótica tem início nos processos interpessoais
presentes na organização social, sendo a linguagem a ferramenta mediadora que integra a
estrutura dos processos cognitivos. Assume a função de mediação (semiótica) das
atividades psíquicas do homem e constitui-se num sistema simbólico construído no
transcorrer dos processos sócio-históricos das interações humanas, através das quais se
viabiliza o intercâmbio das experiências cotidianas. Nessa perspectiva, a criança
desenvolve, a partir das interações dialógicas, os mecanismos comunicativos necessários a
essas mesmas interações, construindo progressivamente a linguagem como instrumentos
que possibilitam a formação dos processos mentais.
Dentro desse quadro, o contexto sociocultural assume um papel fundamental no desenvolvimento das
funções superiores. Esse desenvolvimento é entendido como dependente da e direcionado pela cultura à qual
a criança está exposta, pelas relações interpessoais por ela vividas, concretizadas sobretudo através da
linguagem.
Segundo Vygotsky (1991c, p.14), a lei fundamental desse desenvolvimento passa sempre por duas
etapas:
Todas as funções psicointelectuais superiores aparecem duas vezes
no decurso do desenvolvimento da criança: a primeira vez nas
atividades coletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funções
interpsíquicas; a segunda, nas atividades individuais, como
propriedades internas do pensamento da criança, ou seja, como
funções intrapsíquicas.

Esses pressupostos são fundamentais para garantir uma visão mais ampla e
científica a respeito da criança surda, uma vez que provocam uma reflexão mais profunda
sobre as dificuldades causadas pelas diferenças lingüísticas à maioria das crianças surdas
filhas de pais ouvintes.

Para Nogueira (1998, p.9),

cerca de 95% das crianças deficientes auditivas nascem em família


de ouvintes sem ter a linguagem comum ao meio cultural no qual
vivem e com dificuldade de estabelecerem contatos interpessoais e
de relação social, crescem com concepção de um mundo
diferenciado da maioria ouvinte.

Na realidade, poucas crianças surdas têm oportunidade de convívio com a cultura


surda desde a mais tenra idade. Segundo Fernandes (2000), a dificuldade de acesso à
Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS, de forma natural e constante, por aquelas que só
convivem com pessoas ouvintes, leva-as a identificarem o mundo de forma concreta, por
não lhes ser possível o diálogo. A aprendizagem tardia de uma língua, como é o caso de
muitos surdos que aprendem a LIBRAS na adolescência ou na fase adulta, não lhes
possibilita a reversão total desse quadro.

Considerando que a cultura, a linguagem e o diálogo são fatores essenciais para o


desenvolvimento infantil e sendo justamente a área comprometida pela criança surda filha
de pais ouvintes, infere-se que as conseqüências da privação auditiva devem ultrapassar a
dificuldade comunicativa e atingir todas as áreas do desenvolvimento infantil.
Vale ressaltar que as pesquisas de Fernandes (1990), Bellugi (1993), Sacks (1998) e
Skliar (1997) registram que, para as crianças surdas, filhas de pais surdos membros de uma
comunidade lingüística surda, o processo da aquisição da língua viso-espacial ocorre de
forma natural, por haver um contato prévio e efetivo com os membros reais da comunidade
surda, oferecendo-se-lhes um ambiente apropriado para o estabelecimento das interações
comunicativas e o conseqüente desenvolvimento lingüístico e cognitivo.

Linguagem e pensamento

Abordando o desenvolvimento cognitivo entre crianças ouvintes e crianças surdas,


em especial a relação entre linguagem e pensamento, Marchesi (1993) retoma algumas
hipóteses de pesquisas que enfocam o estudo do comprometimento da falta da linguagem
no desenvolvimento da criança surda, especialmente as contribuições de Myklebush (1960)
e de Hans Furth (1966).

Os estudos de Myklebush sugerem que a cognição de surdos e ouvintes apresentam


diferenças importantes em função de o ouvinte estar exposto à experiência lingüística de
caráter visual e auditivo, e o surdo não. Os resultados de sua pesquisa levaram-no a
concluir que as habilidades cognitivas do surdo são mais concretas e menos abstratas que as
dos ouvintes.

Vygotsky (1995), na década de 1930, já destacava que o insuficiente intercâmbio da


pessoa surda com o meio sociocultural condiciona o baixo desenvolvimento de suas
funções psíquicas superiores. Segundo esse autor, as dificuldades enfrentadas pela criança
deficiente na atividade social vêm a ser uma das causas do insuficiente desenvolvimento
das atividades mentais superiores.

Os estudos de Luria (1978), na mesma época, enfatizam que a diferença existente


entre surdos e ouvintes decorre da influência da palavra no desenvolvimento do
pensamento. Para esse autor, a linguagem promove três mudanças essenciais à atividade
consciente do homem: amplia sua percepção sobre o mundo, assegura o processo de
abstração e generalização e serve como um meio de intercâmbio social, funcionando como
veículo de transmissão de informação.

No caso da criança surda, ainda segundo Luria, a ausência da fala ou a fala pouco
desenvolvida interfere no desenvolvimento das funções mentais superiores, pois a pessoa
surda que utiliza apenas os sinais adquiridos unicamente pela experiência visual é incapaz
de formar conceitos abstratos, de sistematizar os fenômenos do mundo.

Nessa discussão, percebe-se que a linguagem é compreendida como língua oral,


como palavra verbal, sendo essa a propiciadora do conhecimento e do desenvolvimento,
estando, portanto, intrinsecamente relacionada com o pensamento. De acordo com essa
abordagem, a ausência da língua oral implica, para as pessoas surdas, o
subdesenvolvimento do pensamento, gerando um baixo nível de compreensão dos
conhecimentos historicamente elaborados pela humanidade.

Com isso, argumentava-se que o atraso no desenvolvimento do pensamento abstrato


do surdo era decorrente de sua inadequação lingüística, isto é, sem domínio da língua oral,
faltava-lhe uma fonte essencial de estruturação simbólica. Essa é uma questão polêmica,
uma vez que os meios e os veículos mediadores utilizados pelos surdos muitas vezes não
são compatíveis com os meios e os veículos mediadores usados majoritariamente em seu
contexto sociocultural, no entanto haveria mesmo uma dependência entre o
desenvolvimento da língua oral e o desenvolvimento do pensamento? Prevaleceria uma
relação causal, ou seja, sem linguagem verbal não há desenvolvimento do pensamento?
Além dessas questões, uma outra pode ser colocada: nenhum outro signo assumiria a
função de instrumento para influir psicologicamente no desenvolvimento?

Essa relação entre a língua oral e o desenvolvimento do pensamento passou a ser


questionada a partir das pesquisas desenvolvidas por Furth (1966), com base na Teoria
Cognitivista de Piaget. Tendo em vista os aspectos referentes à pobreza de comunicação
vivenciada pela pessoa surda, Hans Furth, em seus estudos, rejeitou a tese proposta por
Myklebust (1960) e desenvolveu um trabalho que teve por base a teoria de
desenvolvimento humano de Piaget, através de adaptação das provas piagetianas à
linguagem não-verbal.
As pesquisas de Furth (1966) apresentaram indicações de que, nos casos de surdez,
as habilidades cognitivas e os estágios de desenvolvimento de ouvintes e surdos passavam
pelos mesmos processos e etapas, sendo que a criança surda atingia o estágio operatório
concreto, e o adolescente chegava a dominar algumas esferas do pensamento operatório
formal. Com base nesses resultado, foi possível evidenciar que o pensamento pode avançar
sem o concurso da linguagem oral. Apesar de todos os esforços, esses estudos não
chegaram a ser conclusivos quanto ao papel da linguagem no desenvolvimento cognitivo do
surdo, contudo contribuíram significativamente para a desmistificação do caráter biológico
da surdez, vista como uma patologia audiológica.

Nos últimos anos, tem se ampliado o interesse em pesquisar a aquisição da


linguagem e sua relação com o desenvolvimento cognitivo da criança surda. Tais estudos
ratificacam as idéias de Furth e a importância das interações sociais em sua cultura surda na
criança, a fim de que seu processo de aquisição da língua de sinais ocorra de forma natural,
oferecendo-lhe um ambiente apropriado para o estabelecimento de interação comunicativa
e o conseqüente desenvolvimento lingüístico e cognitivo.

Dentre essas pesquisas, vale ressaltar a de Fernandes (1990 e 2000), que estuda as
conseqüências da falta de uma língua na fase do domínio de um sistema lingüístico
(aproximadamente dois anos de idade), o qual passará a ser o mais importante instrumento
de seu pensamento. A privação de uma língua nessa fase, segundo a autora, não impedirá
que tal etapa venha a ocorrer, mas a qualidade do desenvolvimento que o cérebro está
preparado para realizar não será a mesma.

Abordando o desenvolvimento cognitivo da criança surda, Fernandes (2000, p.51)


prioriza o suporte lingüístico na língua de sinais, pois “saber propiciar a aquisição da
Língua de Sinais à criança surda, antes de tudo como respaldo e principal instrumento para
o desenvolvimento dos processos cognitivos, é o primeiro grande e indispensável passo
para a verdadeira educação deste indivíduo”. Ao considerar os efeitos dos atrasos da
linguagem, seus estudos trazem, principalmente, as implicações da função de organização
da linguagem sobre o desenvolvimento cognitivo da criança surda que, como já foi
apresentado anteriormente, muitas vezes é exposta tardiamente à sua língua materna; tal
fato acarreta, portanto, muito mais que uma simples, dificuldade de comunicação.
Ainda nessa direção, Goldfeld (1997) analisou o desenvolvimento cognitivo e a
aquisição da linguagem de uma criança surda em interações na família, na escola e na
clínica fonológica, em comparação com seu irmão gêmeo ouvinte. Sua pesquisa mostrou a
influência determinante das relações interpessoais, bem como as línguas a que a criança
está exposta no seu desenvolvimento cognitivo, ou seja, o valor das informações
lingüísticas em sua constituição. Para a autora, não somente a qualidade das interações é
importante, mas, também, a quantidade de participações da criança surda nos momentos
interativos, o que significa que as dificuldades cognitivas observadas na criança surda
também decorrem da pouca estimulação lingüística recebida (no caso em estudo, isso não
aconteceu com o gêmeo ouvinte).

Apesar da inadequação do meio lingüístico a que as crianças surdas são expostas, é


importante que os pais e educadores sejam estimulados a dialogarem com elas, além, é
claro, de proporcionarem meios de interação através da comunidade surda, que tem a
LIBRAS como mecanismo eficaz de comunicação. Através da fala do adulto, tais crianças
aprendem o significado da realidade do mundo oralizado (verbal) que compõe a sociedade
em que vivem.

As pessoas surdas não se isolam completamente do seu meio; elas desenvolvem formas diversas de
comunicação. Encontram, nas línguas de sinais, seu meio de intercâmbio social. Será que as línguas de sinais
possibilitam aos surdos as mesmas condições de desenvolvimento que as línguas orais proporcionam aos
ouvintes?

A legitimidade das línguas de sinais

Em função de, muitas vezes, os meios e os veículos mediadores utilizados pelos surdos não serem
compatíveis com os meios mediadores usados majoritariamente em seu contexto sociocultural, muitas
opiniões são levantadas quanto à legitimidade das línguas de sinais, bem como quanto a sua função para o
desenvolvimento da criança surda.
Segundo Behares (1987), tradicionalmente, a confusão entre linguagem, língua e o conceito de fala
leva a uma falsa concepção de que a aprendizagem de uma língua e o desenvolvimento da capacidade de
linguagem somente são possíveis se forem ativados os mecanismos fonológicos do sujeito. Assim, se
adotarmos a concepção tradicional, jamais será possível considerar a língua de sinais como um fato real, em
função de essa língua não usar o sistema fonológico como meio de expressão do pensamento, ou seja, jamais
seria possível ao surdo desenvolver-se em sua plenitude.
Se, entretanto, considerarmos, como Behares (1987), a linguagem como a capacidade humana de
produzir seqüências que transmitam significados, a língua como um conjunto de convenções que permitem a
organização de um sistema interpessoal de signos, e a fala como uma das possíveis manifestações materiais da
linguagem, então podemos considerar que a língua de sinais é uma modalidade de linguagem.
A língua de sinais, como sistema lingüístico, possui um conjunto de elementos lingüísticos diferentes
de todos os fenômenos da expressividade corporal e da gestualização. Para Behares (1987), da mesma forma
que diferenciamos as línguas orais dos recursos expressivos de voz, devemos diferenciar as manifestações
expressivas da língua de sinais. A esse respeito, o autor afirma que o sinal é uma unidade convencional
integrada a um sistema lingüístico articulado, e o gesto não.
Autores como Fernandes (1994), Felipe (1999) Behares (1993) e Quadros (1997) defendem que, nas
línguas de sinais, estão presentes as propriedades que são comuns às línguas orais, tais como: produtividade,
arbitrariedade, dupla articulação, possibilidades de expressar relações gramaticais etc. Assim, é um equívoco
considerar que as relações gramaticais da línguas de sinais são derivadas das línguas orais, que aquelas não
teriam estrutura própria, sendo, portanto, subordinadas e inferiores às línguas orais.
A estrutura da língua de sinais, diferentemente da língua oral, é analisada tradicionalmente a partir de
quatro parâmetros. São eles: a configuração das mãos, isto é, a forma da mão caracterizando o movimento; a
alocação, ou seja, o espaço visual de sinalização no qual o sinal se desenvolve; a orientação, isto é, a posição
da palma da mão em relação aos eixos vertical e horizontal do espaço de sinalização e, por último, o
movimento da mão ou das mãos na articulação do sinal (BEHARES, 1987).
Assim, mediante um sistema de comunicação que não depende de representação acústica, mas da
configuração das mãos, do movimento, do ponto de articulação e da orientação da mão, as pessoas surdas
criaram sua própria linguagem. Como a palavra, o sinal possui as duas propriedades do significado, ou seja, é
portador do significado, que mantém uma relação direta com o objeto, e do sentido, que se relaciona com o
contexto.
Buscando conhecer e avaliar o processo de desenvolvimento da Língua de Sinais, investigações
comparativas vêm sendo realizadas com crianças surdas advindas de lares surdos e ouvintes. Através da
observação da modalidade lingüística predominante na família, buscam evidenciar sua influência no
desenvolvimento da criança surda. Estudos como os desenvolvidos por Behares (1993) apontam que o
desenvolvimento lingüístico das crianças surdas de lares surdos é equivalente ao desenvolvimento lingüístico
de crianças ouvintes de lares ouvintes. Por outro lado, as crianças surdas de lares ouvintes, que estão
compreendidas entre 88% e 96% da população de surdos, têm seu processo de desenvolvimento afetado em
função do conflito de modalidades lingüísticas distintas. Os resultados desses estudos levaram Behares a
afirmar que “as crianças surdas [filhas] de pais surdos acabam sendo sujeitos melhor preparados para a tarefa
escolar curricular, para o desenvolvimento da leitura e da escrita e também, mesmo que pareça paradoxal,
para a aquisição da língua oral” (BEHARES,1993, p. 50).
Esses resultados contribuíram para reforçar a importância do coletivo, das primeiras
experiências comunicativas no desenvolvimento lingüístico da criança surda. Apresentam,
também, dados para a discussão acerca da função de regulação da língua de sinais como
organizadora e orientadora do pensamento da criança. Se essa função não fosse
contemplada, as crianças surdas advindas de meios sociolingüísticos distintos não
apresentariam diferenciações em seu desenvolvimento lingüístico e cognitivo, o que, no
entanto, não acontece: os resultados são outros.

Sendo assim, os sinais da língua viso-espacial não representam apenas associações ou semelhanças
visuais com o referente, mas são signos decorrentes da interação das pessoas surdas com o seu meio
sociocultural, caracterizam-se como uma língua viva que pode ser alterada em função de aspectos
sociolingüísticos.
Atualmente, as línguas de sinais vêm sendo reconhecidas como um sistema lingüístico organizado6,
que possui especificidade quanto a funções sintáticas, semânticas, morfológicas e fonológicas, fato que
possibilitou um avanço relativamente à clássica visão patológica a respeito dessa linguagem.

Considerações finais

A reflexão apresentada nas páginas anteriores privilegiou a concepção de desenvolvimento


psicológico do sujeito humano como resultado da ação desse sujeito sobre o meio sociocultural a que
pertence, bem como de suas interações e vivências nesse mesmo meio – uma interação complexa, mediada
fundamentalmente pela linguagem.
O indivíduo surdo, mesmo como usuário da modalidade de linguagem viso-espacial, e desde que
exposto a um ambiente que lhe ofereça a possibilidade de estabelecer uma interação natural com a
comunidade surda, pode desenvolver as funções organizadora e planejadora da linguagem, ou seja, o
instrumento do pensamento mais importante que o homem possui lhe é acessível, como a qualquer ser
humano exposto às condições apropriadas de desenvolvimento sociocognitivo.
Superando a limitação de conceber a surdez exclusivamente como um tipo de patologia audiológica,
percebemos que os “problemas” comunicativos e cognitivos da criança surda não têm origem na criança e,
sim, no meio social em que ela está inserida, o qual freqüentemente é inadequado, ou seja, não utiliza sua
língua e não privilegia sua cultura no seu processo de desenvolvimento. Nesse sentido, é preciso ter claro o
que advém da privação auditiva e o que advém das condições socioculturais às quais a criança está submetida.

6
Quanto ao reconhecimento da Língua de Sinais como uma língua natural dos surdos, na medida em que
possibilita seu desenvolvimento emocional, social e cognitivo, vários países – França, Suíça, Argentina,
Uruguai, Brasil, entre outros – têm realizados estudos no sentido de sua oficialização. Tramita, inclusive,
A Língua de Sinais é aquela que pode ser dominada pelo surdo, servindo como instrumento para suas
necessidades cognitivas de comunicação; desconsiderá-la é continuar negando que o surdo tem localização
social, que nasce com uma história, não somente a sua, pessoal, mas aquela que lhe confere a condição
humana de ter cultura e pertencer a um grupo social determinado.
O desrespeito pela língua de sinais, fruto do desconhecimento, gerou muitos preconceitos. Pensava-
se que esse tipo de comunicação não poderia configurar-se como Língua e que, se os surdos continuassem se
comunicando “dessa forma” (por “mímica”), não aprenderiam a língua oficial de seu país. Pesquisas recentes
mostram o contrário: as línguas de sinais não são um sistema de comunicação superficial, restrito e
lingüisticamente inferior ao sistema de comunicação oral. Ao mesmo tempo, tais estudos demonstram que,
por serem de modalidade viso-espacial, elas podem fornecer novas perspectivas teóricas sobre as línguas
humanas, sobre os determinantes da linguagem e sobre o processo de aquisição e desenvolvimento de uma
língua que apresenta peculiaridades em relação às línguas orais.

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