Resenha Critica Sociedade Contra o Estado

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Universidade Federal do Paraná

Disciplina: História e Direitos Humanos


Docente: Vinícius Nicastro Honesko
Discente: Rafael Lopes Campos

REFERÊNCIA
CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado. Editora: francisco alves, Rio de
janeiro, 1978, p. 132-151

A obra intitulada “A Sociedade contra o Estado”, escrita pelo antropólogo Pierre


Clastres, explora as sociedades indígenas da américa do sul e tem como sua principal
tese, entender as relações de poder das tribos sul-americanas, constantemente vistas como
sociedades atrasadas pela interpretação ocidental de estado, poder e civilização.
Pierre Clastres, nascido na capital francesa em 17 de maio de 1934, começou seus
trabalhos de antropologia no Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), tendo
viajado cinco vezes para a américa do sul entre os anos de 1963 e 1974, onde realizou
trabalhos de campo e esteve entre os povos Yanomami, Guarani e Chulupíes. Durante sua
vida acadêmica, Clastres fez parte da União Comunista dos Estudantes, no qual
abandonou em 1956 por conta de sua frustração com o crescimento do Stalinismo na
União Soviética. Embora Clastres, durante certo ponto de sua vida, rechaçasse o
marxismo, sua experiência no partido iria influenciar diretamente sua maior obra, “A
sociedade contra o Estado”.
Sua convivência com os indígenas sul americanos permitiu que Clastres
desenvolvesse uma crítica a antropologia ocidental que categoriza sociedades indígenas
como atrasadas pelo fato de se organizarem através de tribos, tidas como inferiores
comparadas a sociedades que se organizam através do Estado. Esse pensamento
evolucionista, estimulou Clastres a não só entender o funcionamento da sociedade
indigena, mas também procurar o que está por trás da lógica social e o que oferece bases
para o surgimento do Estado nas sociedades tidas como “evoluidas”.
Clastres, já nas primeiras linhas de seu último capítulo, da ênfase sobre como as
sociedades primitivas são acusadas de faltarem-lhe o Estado, tidas como incompletas por
essa falta, que se baseia quase que totalmente em valores da sociedade ocidental que tem
a certeza de que a sociedade existe para o estado(CLASTRES, 1974, p. 132).
Essa concepção de falta só pode ser apresentada como uma face do etnocentrismo, pois
essa certeza de que a história segue um sentido linear no universo, nos dá a segurança de
afirmar que todos os povos estariam destinados a sair da selvageria e percorrer o caminho
em direção à civilização. Sobre o assunto, Clastres cita:

Mas o registro de uma evolução evidente de forma alguma fundamenta uma doutrina que,
relacionando arbitrariamente o estado de civilização com a civilização do Estado, designa este
último como termo necessário atribuído a toda sociedade. Pode,se então indagar o que manteve
os últimos povos ainda selvagens. (CLASTRES, 1974, p.133)

O mercado é outro fator de falta. As sociedades primitivas se baseiam na


economia de subsistência, fator que entrega uma imagem de miséria das sociedades
primitivas, pois se essas populações não produzem excedentes, de certo é por serem
incapazes de produzi-lo, estariam tão ocupadas em produzir o mínimo para sobreviver
que não teriam como produzir abundância, e seria portanto, a sua escravidão por conta da
subsistência que condenaria as sociedades primitivas a estagnação histórica. Clastres
entretanto, nega essa leitura da realidade primitiva. Segundo Clastres, essas sociedades
exploram a natureza de acordo com sua necessidades, por exemplo, suas ferramentas para
trabalharem com a natureza correspondem a sua capacidade de cumprir um determinado
objetivo da sociedade, é possível abrir um parâmetro para fins de comparação com itens
como Hashis e Berimbaus, embora de fato, sejam instrumentos muito mais simples, no
nível de técnica envolvido para sua criação, do que garfos e guitarras, esses objetos
cumprem seu papel social de forma satisfatória nas culturas em que estão presentes, seja
para comer alimentos ou produzir sons.
Mesmo que em um argumento fosse utilizado como critério para medir a
“evolução” de uma sociedade, o nível tecnológico dessa população, ainda assim esse
argumento não se sustentaria, pois como Clastres apresenta em seu texto, a agricultura e a
domesticação de plantas ocorreram praticamente no mesmo período no Velho Mundo e
nas Américas, inclusive, os indígenas estavam envolto de muita técnica e conhecimento
sobre plantas que os europeus demoraram muito para ter acesso. Além disso, a
comparação evolucionista de instrumentos de trabalho é muito abstrata, não é possível
mensurar a “intensidade” tecnológica de um equipamento, a comparação entre um fuzil e
um arco é inútil se para um povo um fuzil de nada serve. Exemplo disso é o Havai. Após
os primeiros contatos dos ingleses com os nativos, um mercado importador foi aberto na
ilha, os nativos se interessavam pelos produtos ingleses como ferramentas de trabalho e
outros itens de origem europeia. Entretanto, o missionário Asa Thurston ao chegar na ilha
para construir uma igreja, relata que embora fosse importado diversas ferramentas de
trabalho, não era possível encontrar nenhuma para realizar seus trabalhos na ilha. Os itens
de trabalho comprados pelos nativos não tinham serventia para eles, a não ser como uma
forma de status usada pelo rei local para demonstrar seu poder(SAHLINS, 1994, p.36-
55).
Clastres prossegue sua tese com uma análise histórica sobre a chegada dos
europeus no continente americano. A verdade é que o argumento de que o
desenvolvimento tecnológico teria se estagnado na sociedade primitiva, por conta dos
nativos precisarem estar a todo momento lutando pela sobrevivência, se quer tem base
histórica. Os portugueses quando chegaram ao Brasil, ficaram pasmos ao perceberem que
a realidade era que os índios quase não trabalhavam, grande parte de seu dia se resumia a
fumar, dançar e outros lazeres realizados socialmente. A incompreensão dos europeus
sobre a dinâmica do trabalho indigena, fez com que não demorasse muito para que eles
pusessem os índios a trabalhar. É aí que dois axiomas parecem guiar a marcha da
civilização ocidental: o primeiro estabelece que a verdadeira sociedade se desenvolve sob
a sombra do Estado; o segundo enuncia: é necessário trabalhar(CLASTRES,1974, p.135).
Clastres apresenta uma contradição sobre a relação de trabalho do índio, embora
trabalhasse muito pouco, cerca de 4 horas no dia dedicadas à agricultura(atividades como
caça, pesca e guerra não era vistas como trabalho, mas sim como lazer), este não morria
de fome, pelo ao contrário, todos os relatos europeus sobre seu contato com os indígenas
enfatizam sobre sua saúde muito aparente.
Clastres chega em uma conclusão, as sociedades primitivas, não só poderiam
produzir em abundância por sua condição material, como também pela quantidade de
tempo livre que elas dispunham. Se assim quisessem poderiam produzir o quanto bem
desejassem, mas então, porquê não produziam? A aparente sedutora ideia de progresso
civilizacional não seria o suficiente para incentivar as sociedades produtivas a
produzirem em abundância? Clastres apresenta uma resposta para essa questão: para que
razão seria produzido mais do que o necessário, para onde essa produção seria escoada,
não há qualquer razão para produzir o além do necessário em uma sociedade em que 4
horas de trabalho tudo já é produzido. Isso evidencia uma outra face das relações
humanas, sempre é pela força que as pessoas trabalham além de suas necessidades, é
dessa forma que o Estado age, utilizando-se o monopólio da força para coagir o indivíduo
a produzir o excedente do que lhe é necessário. Essa conclusão justifica o objetivo de
produção das sociedades sem estado, os portugueses pensaram terem mudado
completamente a estrutura social indígena ao entregarem machados de metal em
detrimento dos machado de pedra, pois agora os índios poderiam produzir dez vezes mais
em muito menos tempo, e dar um verdadeiro salto da pré-história para uma nova era
moderna e tecnológica. Entretanto, a lógica da sociedade indigena não funciona de tal
forma, a inserção do machado de metal, na verdade significou para eles que poderiam
produzir a mesma coisa, dez vezes mais rápido e ter muito mais tempo ocioso
desfrutando de suas atividades de lazer. Infelizmente eles não teriam esse privilégio, pois
a chegada do europeu iria irromper em uma violência e domínio sobre toda a América.
Clastres irá se preocupar com uma outra questão em sua obra, se entendemos que
a sociedade primitiva não era mais atrasada que as outras civilizações do mundo, o que na
estrutura social primitiva impediu o surgimento do Estado sobre essas populações?
É importante primeiro entender que uma sociedade sem Estado, embora não
exista reis, não é necessariamente uma sociedade sem chefes ou líderes. Clastres
apresenta que na realidade o chefe da tribo não possui qualquer poder de coerção e os
integrantes da tribo não são obrigados a servir-lhe obediência. O poder chefe se configura
somente em seu carisma e na sua capacidade de convencer as pessoas, sua obrigação com
a comunidade se baseia em apaziguar conflitos internos e liderar suas guerras. A posição
do chefe, emana da aceitação e reconhecimento da sociedade primitiva sobre sua
competência e capacidade de liderar, sendo ela não relacionada a fatores de
hereditariedade ou religião, pois sua posição pode ser facilmente deslegitimada caso a
comunidade assim o queira, afinal, ele não tem poder algum, mas no máximo prestígio,
de alguma forma, o chefe está submetido a comunidade, não o oposto.
Quando a europa chega às américas, praticamente que ao mesmo tempo o povo
tupi-guarani chega ao seu auge, seu modelo primitivo entretanto, se afastava um pouco
do que era habitual, sua alta taxa de densidade demográfica ultrapassa a dos povos
vizinhos, os tupinambás por exemplo, apesar de não se configurarem como cidades,
possuíam milhares de habitantes. Contraditoriamente, talvez os tupi-guarani estivessem
formando o que entenderíamos hoje como Estado, tanto que os franceses e portugueses
chegaram a atribuir aos grandes chefes das federações indígenas títulos de autoridade
provincial. Entretanto, esse processo de transformação total da sociedade primitiva tupi-
guarani seria brutalmente interrompida com a chegada dos europeus.
Esse processo de construção do poder na sociedade tupi, pode inspirar a
imaginação e nos fazer pensar se seria de fato essa a construção de uma formação estatal
no litoral brasileiro. Clastres acredita que não, havia uma espécie de sublevação da
própria sociedade contra ela mesma.no presente momento, diversos indígenas partiam em
peregrinação na busca da pátria dos Deuses, uma terra sem mal, um paraíso terrestre.
Com isso o poder religioso vencia o dos chefes, talvez, essa pudesse ser uma
explicação da origem do Estado nas sociedades, através do discurso religioso, que
também é presente em outros tantos povos do mundo.
Diante da compreensão da obra, cabe aqui fazer algumas considerações. O tema
analisado por Pierre Clastres foi de fato muito envolvente e importante para a concepção
historiográfica e antropológica contemporânea. Vale ressaltar a propriedade com que o
autor comenta sobre os assuntos apresentados, já que conviveu com os indígenas e
pesquisou de perto essas questões, nos providenciando uma obra de alto criticismo,
quebrando diversos parâmetros etnocêntricos utilizados para julgar a realidade indigena.
Pode-se dizer também, sobre a concepção de Estado, e como este não se verifica
como um critério válido para definir o nível de desenvolvimento das civilizações, por
conta dos argumentos apresentados durante a obra.
Por fim, sobre questões da estrutura do texto, a capacidade de escrita de Clastres é
admirável e seus pensamentos se apresentam de forma muito clara ao decorrer da leitura.

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