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Hur, D. U. Psicologia Comunitária e Política: entre a autonomia e o Estado


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Psicologia comunitária e política: entre a autonomia e o Estado

Community Psychology and Politics: between autonomy and the State

Ensaio Teórico

Domenico Uhng Hur 1

Resumo
Buscamos problematizar a atuação política do psicólogo comunitário, considerando que no quadro das políticas públicas ele
ocupa papel de intermediário entre Estado e população. Para nossa reflexão foram utilizados conceitos de pensadores
considerados pós-estruturalistas como o de Estado como Aparelho de Captura de Deleuze e Guattari, governamentalidade
de Foucault e noo-política de Lazzarato. Consideramos que a intervenção psicossocial do psicólogo comunitário deve estar
entrelaçada com o fomento da autonomia, em contraposição com a heteronomia instituída pela razão de Estado.
Distinguimos assim a figura do psicólogo comunitário, que está implicado com os processos de autoanálise e autogestão, do
psicólogo na comunidade, que está implicado com seu fazer técnico, deixando em segundo plano sua atuação política e
podendo operar como atualização da razão de Estado, o que denominamos de neocolonização.
Palavras-chave: Psicologia Comunitária, Estado, política, intervenção psicossocial, políticas públicas.

Abstract
We intend to discuss the political activity of the community psychologist, considering that in the framework of public
policies he has the role of mediator between the State and the population. For our reflection, concepts from thinkers who
are considered post-structuralists, such as Deleuze and Guattari’s State as a Capture Device, Foucalt’sgovernmentality, and
Lazzarato’snoo-politics have been used. We consider that the psychosocial of the community psychologist must b e
intertwined with the encouragement of autonomy, as opposed to the heteronomy instituted by reason of State. We then
distinguish the figure of the community psychologist, which implies processes of self-analysis and self-management, from
the community psychologist, which implies its technical capacity, leaving behind his political stand, and who may operate
by reason of State, which we call neo-colonization.
Key-words: Community Psychology, State, politics, psychosocial intervention, public policies.

1
Professor Adjunto II do Curso de Psicologia da UFG, psicólogo, mestre e doutor em Psicologia Social do Instituto de
Psicologia da USP, com estágio doutoral na Universitat Autònoma de Barcelona/Catalunya, e membro do CRISE – Núcleo de
Estudos e Pesquisas Crítica, Insurgência, Subjetividade e Emancipação. E-mail: [email protected] Faculdade de
educação: Rua 235, s/n, Setor Universitário, Goiânia/Goiás, CEP:74.605-050, Tel.:(62) 3209-6212.

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PSICOLOGIA COMUNITÁRIA E POLÍTICA: e no segundo, uma ação sem reflexão: o


ENTRE A AUTONOMIA E O ESTADO acadêmico sendo criticado por não “botar as
mãos na massa”, e o técnico social por realizar
Ao longo dos cinquenta anos de trabalhos práticas irrefletidas, algumas vezes somente
de pesquisa e intervenção da Psicologia ocupacionais e com a denominação genérica
Comunitária2 no Brasil (Gonçalves & Portugal, de “oficina”.
2012), pode-se afirmar que este é um campo É patente que não concordamos com essa
instituído e reconhecido de atuação e polarização, mas nota-se em alguns casos sua
investigação psicossocial. Considera-se que um existência no debate dentro da Psicologia
dos principais desafios atuais não é mais a luta Comunitária. Muitas vezes a “Psicologia
pela abertura de espaços de atuação, mas sim Comunitária Acadêmica” é a colonizadora da
refletir criticamente como é que se dá essa “Psicologia Comunitária Pragmática”, ditando o
atuação. Com seu desenvolvimento, depara-se que se deve pensar e fazer, ocupando um lugar
com algumas questões, como a relação entre de dominância frente à outra, em que os
teoria e intervenção e principalmente a relação pensadores são reverenciados em suas
entre teoria, intervenção e prática política. conferências, nas luzes da ribalta, e o técnico
No que se refere à relação entre teoria e social se acotovela na platéia para escutar o
intervenção, muitas vezes constata-se uma “saber divino”. Por mais que a Instituição-
polarização em que, inadvertidamente, pode Psicologia Comunitária tenha discursos
haver uma divisão entre uma “Psicologia democráticos e igualitários, ainda existe uma
Comunitária Acadêmica” e uma “Psicologia grande assimetria de poderes em seus fazeres.
Comunitária Pragmática3”. A primeira está A partir de nossa experiência como psicólogo
relacionada à Instituição Universitária, que em comunitário (entre 2002 e 2006) e como
seu labor se ocupa das investigações e integrante da equipe de docência e supervisão
reflexões sobre os distintos temas que do curso “Psicologia da Libertação e
envolvem a Psicologia Comunitária, sendo Comunitária: intervenções psicossociais4”
aquela que “pensa” e que tem visibilidade nas (entre 2005 e 2008), defendemos que haja
Associações Científicas. A segunda está uma interação entre esses dois campos e sua
relacionada às instituições de trabalho, sejam perpétua retroalimentação, em que um
organizações governamentais, não contribua para a consolidação do
governamentais, religiosas etc., que atuam conhecimento e da prática do outro e não
diretamente com a população; grosso modo, é apenas diga ao outro o que deve pensar ou
aquela que “faz” e tem visibilidade para a fazer5.
população. A primeira pode ser injustamente Se a relação entre teoria e intervenção já é
estereotipada por um academicismo abstrato, problemática, a questão fica ainda mais difícil
por não intervir diretamente (um “psicólogo quando se insere outro elemento tão avesso ao
comunitário de gabinete”) e a segunda por psicólogo tradicional: a política. Na sua
uma prática espontânea, sem fundamentação
teórica e que não produz conhecimento, ou 4
Curso oferecido para profissionais da área social pelo
seja, no primeiro caso, uma reflexão sem ação, Centro Cida Romano do Instituto Sedes Sapientiae (SP).
5
Talvez nossa posição possa parecer um contrassenso,
visto que em nosso agenciamento artigo-leitor, o autor
2
“Ramo da Psicologia cujo objeto é o estudo dos fatores deste texto pertence ao grupo da “Psicologia Comunitária
psicossociais que permitem desenvolver, fomentar e Acadêmica”, que visa transmitir um conhecimento aos
manter o controle e o poder que os indivíduos podem alunos e técnicos sociais da “Psicologia Comunitária
exercer sobre seu ambiente individual e social para Pragmática”. Contudo, o que se pretende fazer
solucionar problemas que os afligem e conseguir justamente é problematizar o campo de atuação e
mudanças nesses ambientes e na estrutura social” reflexão, mais do que criar normas a serem seguidas e
(Montero, 2004, p.70, tradução nossa). reproduzidas. E evidentemente esperamos que as
3
Figura-se essa divisão para dar visibilidade a uma tensão proposições e reflexões postas nesse artigo também
existente entre o saber e o fazer, em que a detenção do sejam alvo de críticas e suspeições e que possam gerar
saber está relacionada ao exercício do poder. outros textos, reflexões e práticas.
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formação, é um tema pouco discutido, muitas há um questionamento acerca da relação com


vezes tido como transcendente ao papel do a Instituição-Estado. Dessa forma, para efetuar
psicólogo. Mas aqui se afirma que o fazer do tal discussão, articulamos a Psicologia
psicólogo comunitário é um fazer político; sua Comunitária às reflexões de pensadores que
ação e intervenção são indissociáveis da problematizam tal instituição, tais como
política. A intervenção e a reflexão do expoentes do pós-estruturalismo francês,
psicólogo comunitário estão diretamente como M. Foucault, G. Deleuze e F. Guattari.
relacionadas às formas de viver num coletivo, Por mais que essa expansão seja um fato
de suas relações sociais e da gestão da própria positivo, por institucionalizar e multiplicar as
comunidade, envolvendo eminentemente áreas de intervenção psicossocial e fornecer
relações políticas e de poder. Ao tocar no tema um trabalho remunerado ao psicólogo,
da política chega-se ao principal problema que considera-se que, quando o técnico social
será desenvolvido neste texto, do psicólogo perde de vista a dimensão institucional e
comunitário enquanto intermediário do Estado política das diferentes instâncias em que está
e da população. Com o desenvolvimento e o inserido, um montante de suas práticas pode
reconhecimento social da Psicologia reproduzir a codificação da razão de Estado.
Comunitária, o psicólogo comunitário não é Ressalta-se esse aspecto, pois se entende o
mais aquele personagem autônomo que chega Estado como um Aparelho de Captura (Deleuze
por si mesmo à comunidade e trabalha com &Guattari, 1997) que pode ser definido como
ela, querendo transformar as relações uma aparelhagem de normatização, de
opressivas instituídas e potencializar as sobrecodificação dos fluxos sociais e de
práticas coletivas dos agrupamentos (Andery, transmissão de determinadas formas de ser e
1981). Atualmente, com o incremento dos pensar. Muitas vezes o técnico social
projetos de intervenção das mais variadas empregado por determinada política pública se
políticas públicas do Estado, abriu-se uma torna a correia de transmissão dessa lógica,
grande área de atuação remunerada ao tornando-se parte do aparato de captura.
psicólogo comunitário, em que chega à Compreende-se aqui que o Estado é uma
comunidade como agente social, como instituição com uma lógica heterogênea às
prolongamento, do Estado. relações sociais e que procede por uma
Entretanto, ao se realizar a busca de artigos modulação das condutas e subjetividades via
com o marcador “Psicologia Comunitária” na governamentalidade (Foucault, 1979), tema
base de dados Scielo (em 03 de maio de 2013) que desenvolveremos no segundo tópico.
não se encontram reflexões e críticas mais Dessa forma, a problemática que surge é o
aprofundadas sobre sua relação com o Estado. complexo, senão paradoxal, lugar que a
Depara-se com artigos que, por exemplo, citam Psicologia Comunitária ocupa nesse
a relação da Psicologia Comunitária com as agenciamento com o Estado, em que, por um
políticas públicas de assistência social lado, tem o objetivo de fomentar processos de
(Ximenes, Paula, & Barros, 2009), de saúde reflexão sobre as práticas e relações instituídas
pública (Amaral, Gonçalves & Serpa, 2012), as no coletivo, o que denominamos, a partir de
políticas sociais chilenas (Inzunza&Constanzo, agora, fomentar processos de autoanálise e
2009), o terceiro setor (Paiva & Yamamoto, autogestão6, mas, por outro, está atrelada à
2010) etc., mas não uma problematização de lógica do Estado, sendo parte de seu Aparelho
sua relação com as políticas públicas como de Captura. Então colocamos a seguinte
práticas de Estado; constata-se uma questão: a Psicologia Comunitária em
lacuna teórica. Mesmo obras como 6
Pensamos que esses objetivos também podem ser da
“Hacer para transformar: el método
Psicologia Comunitária a partir da sistematização que
enlaPsicologíaComunitaria”, de Montero Gregório Baremblitt (2002) faz das distintas correntes da
(2005), que discute prioritariamente a Análise Institucional. Consideramos que são objetivos
metodologia de intervenção da disciplina, não sintéticos para a atuação do psicólogo comunitário e
comprometidos com o projeto da autonomia.
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agenciamento com as políticas públicas do com a política e o projeto de autonomia. A


Estado contribui para a autonomia e “Psicologia Social mainstream” (hegemônica),
emancipação dos coletivos ou serve aos de caráter experimental, até aproximadamente
processos de normalização e captura? a década de 1960 realizava pesquisas
Considera-se que devido ao emaranhado predominantemente com uma metodologia
institucional em que o psicólogo comunitário positivista, arrogando-se o direito de dizer-se
se insere, muitas vezes sem saber, mesmo uma “ciência neutra”, buscando o estatuto
dotado de boas intenções e aspirações metodológico das Ciências Naturais (Íñiguez,
transformadoras, acaba por reproduzir a razão 1995). Ao sustentar o discurso de ciência
de Estado, em algo que denominamos aqui neutra, colocava-se em lugar à parte das
“neocolonização” da população. Tal fenômeno discussões sociais ou políticas. A crença e
está fundado na transmissão dos valores e discurso, que não consideravam a política,
numa sobrecodificação dos fluxos sociais na tinham primazia na Psicologia não só pela
lógica do capitalismo e nas normas adaptativas aspiração positivista da Psicologia Social e
do Estado. Experimentalmas também pela postura
Portanto, nosso objetivo neste ensaio é despolitizada da Psicologia de uma forma geral,
discutir a complexa trama institucional pela que se interessava primeiramente pelo
qual o psicólogo comunitário está inserido comportamento do sujeito e deixava em
atualmente nas políticas públicas entre o segundo plano as questões sociais e políticas.
Estado e a população, e as concepções de Dessa forma, no fim dessa década houve a
autonomia e micropolítica que podem ser chamada “crise da Psicologia Social”, em que
norteadoras para suas práticas interventivas. tais pesquisas com enfoque positivista foram
Buscamos refletir sobre o horizonte das criticadas em relação à sua eficácia e função
práticas políticas da Psicologia Comunitária que social. Como emblema de “renovação” na
têm como objetivo a transformação social Psicologia Social europeia, um marco histórico
dentro do enquadramento das políticas é o texto “A Psicologia Social como História”
públicas do Estado neoliberal, de tal forma que (Gergen, 1998), que questiona a abordagem
se “distancie” da faceta adaptativa de Estado e despolitizada da “Psicologia Social
se aproxime de uma política da autonomia que mainstream” e impulsiona reflexões, críticas e
fomente os processos de autoanálise e práticas inseridas no contexto social-histórico.
autogestão. Nesse período, muitos psicólogos sociais
Para efetuar tal discussão, refletiremos começaram a problematizar a faceta política de
sobre a relação entre Psicologia Comunitária, seu campo de conhecimento.
política e autonomia no primeiro tópico; os Na América Latina, tem-se um movimento
mecanismos de controle do Estado no que caminha por outras linhas, derivadas de
segundo; a micropolítica e o lugar movediço discussões sociais e políticas que assumem um
que o psicólogo ocupa como instância caráter crítico frente à dominação social das
intermediária entre o Estado e a população, elites e do imperialismo norte-americano. Tais
que gera duas figuras profissionais, que críticas se difundem em distintos campos e
distinguimos como o psicólogo na comunidade culminaram na composição da Teologia da
e o psicólogo comunitário, no terceiro tópico; e Libertação, da Filosofia da Libertação, da
finalmente, no último, as considerações finais. Pedagogia da Libertação, da Sociologia da
Libertação (ou sociologia crítica ou militante) e
posteriormente da Psicologia da Libertação.
1 - A PSICOLOGIA COMUNITÁRIA, A POLÍTICA Pensadores e militantes expoentes desses
E O PROJETO DA AUTONOMIA movimentos são, respectivamente, o ex-frade
brasileiro Leonardo Boff (1975), o filósofo
Neste tópico, pretendemos desenvolver a argentino Enrique Dussel (1994), o educador
relação entre a Psicologia Social e Comunitária brasileiro Paulo Freire (1970), o cientista

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político colombiano Orlando Fals Borda (1959) sociais como políticas implica criar um
e o jesuíta e psicólogo espanhol radicado e determinado regime de visibilidade, um ângulo
assassinado em El Salvador Ignácio Martín- de visualização sobre como atuam as relações
Baró (1998). O termo libertação está de poder nas relações sociais e de como
relacionado à emancipação frente à dominação produzem e reproduzem realidades.
social exercida pelas classes dominantes sobre De acordo com tal definição, pode-se
a maioria da população que, em grande parte, entender que o labor do psicólogo comunitário
está em condições de miserabilidade material. num coletivo, ao discutir e trabalhar processos
“A libertação é o fim de toda e qualquer de autoanálise e autogestão, com uma análise
proposta que parta da crítica da realidade dirigida pelo coletivo sobre suas próprias
posta, [...] é a busca por superação das práticas e valores e sobre suas relações de
condições impostas por uma ordem social poder, necessariamente move com os
injusta, conflitiva e de opressão” (Guzzo& processos políticos dos agrupamentos, pois tal
Lacerda Jr., 2011, p. 30). Tais correntes têm prática pode questionar seus processos de
forte inspiração no Marxismo, intensa autoinstituição e colocar em relevo a sua
implicação política, compromisso com a organização e divisão de poderes. Por mais que
autonomia social e são referenciais fundantes o psicólogo na comunidade possa não ter
da Psicologia Comunitária latino-americana. consciência da faceta política de sua prática,
Além de serem novos campos de seu trabalho irá influir nas relações e
conhecimento, também foram importantes configurações de poder, podendo reproduzir a
armas de luta política. heteronomia social existente ou fomentar
Conforme os cientistas políticos Bobbio, processos que se aproximem do projeto de
Mateucci e Pasquino (1991), entende-se que o autonomia; enfim, a Psicologia Comunitária é
termo política deriva etimologicamente da indissociável da política.
palavra polis (politikos) e que significa tudo o É por isso que se pensa que é de suma
que se refere à cidade e, consequentemente, o importância o psicólogo comunitário
que é urbano, civil, público e até mesmo compreender quais são os efeitos políticos de
sociável e social, o termo Política se expandiu suas práticas, para que, com isso, possa
graças à influência da grande obra de sempre redefinir e repensar sua atuação. E
Aristóteles, intitulada Política, que deve ser politicamente defende-se que o labor do
considerada como o primeiro tratado sobre a psicólogo comunitário esteja comprometido
natureza, funções e divisões do Estado e sobre com a comunidade em que intervém, com o
as várias formas de Governo [...] (p. 954). fomento da autonomia, para que possa gerar
Desse modo, compreende-se a política processos de transformação social em que o
como a prática social da polis, como as formas coletivo possa se criticar,autoinstituir-se e
de gestão da vida de um coletivo, em que há o recriar-se. Os teóricos e militantes da
exercício de relações de poder que entram em libertação, como Martín-Baró (1998),
conflito e negociação para decidir os rumos de buscavam exatamente isso, refletir de modo
determinado agrupamento. As práticas crítico sobre a estrutura e os processos sociais
políticas não estão restritas às instituições com e intervir para que se pudesse constituir outro
objetivos políticos, mas estão difusas em toda tipo de gestão da sociedade, com fim a uma
existência dos sujeitos e coletivos. Ao autonomia social.
radicalizar essa ideia, todas as práticas sociais A discussão da autonomia ocupa lugar
são práticas políticas, pois todas são central nesse debate da constituição de outra
portadoras de poder, não apenas as práticas sociedade possível frente à dominação social e
instituintes, portadoras de novidade e heteronomia instituída. Por autonomia
criadoras de realidade, mas também as entende-se, conforme o filósofo
práticas instituídas, reprodutoras de CorneliusCastoriadis (2006), a possibilidade de
determinada ordem social. Abordar as práticas a sociedade poder questionar suas instituições,

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leis, normas, regras, estratificação social, sobre suas próprias vidas frente à dominação
representações herdadas e significações da heteronomia instituída e do imaginário
imaginárias sociais, tanto no âmbito social capitalista. A autonomia, então, pode ser
quanto no individual. O projeto da autonomia pensada como um projeto de “libertação dos
refere-se ao rompimento da clausura das povos”.
instituições e a possibilidade de criar mudanças Considera-se, assim, que ao psicólogo
no instituído; refere-se então à irrupção de um comunitário é desejável que tenha essa
potencial instituinte e é eminentemente concepção de política em sua atuação, uma
criador. Por autonomia entende-se a concepção que fomente as práticas de
possibilidade de um coletivo poder criticar-se e autonomia e autogoverno de um coletivo. Por
pensar-se, criando seu próprio conjunto de leis isso é que se defende que o técnico social com
(nomos), gerindo sua própria vida, num seus conhecimentos psicossociais deve
processo de autoinstituição e autogoverno, ou fomentar processos de autoanálise e
seja, em que o coletivo possa (re)criar-se e autogestão nas comunidades onde intervém.
governar-se. Fomentar processos de autoanálise não quer
Dessa forma, entende-se que o projeto da dizer que o técnico social chegará com um
autonomia está intimamente ligado à política, conhecimento superior que a população irá
à ideia da gestão da vida de um coletivo. Mas reproduzir, mas sim que desenvolverá
trata-se de uma política em que haja uma dispositivos e ferramentas com os coletivos,
soberania popular, em que o próprio coletivo que lhes possibilitarão autoanalisar mais
possa se gerir e construir os caminhos que irá criticamente em suas práticas, posições e
trilhar. Castoriadis (1992) afirma: a criação valores instituídos. A proposta é de que o
pelos gregos da filosofia e da política é a psicólogo comunitário contribua com o
primeira emergência histórica do projeto de coletivo com a constituição de dispositivos que
autonomia coletiva e individual. Se quisermos operacionalizem o seu “pensar”, e não que
ser livres devemos fazer nosso nomos. Se diga o que se deve pensar.
quisermos ser livres, ninguém deve poder Fomentar processos de autogestão significa
dizer-nos o que devemos pensar (p. 138). levar ao extremo o projeto de uma autonomia
Esse posicionamento de Castoriadis instituinte contra a heteronomia instituída e
fundamenta-se em suas críticas à heteronomia colocar em suspeição a divisão de poderes
instituída, na naturalização da hierarquia instituída na sociedade e num coletivo
social, em que há a alienação frente às regras (Castoriadis, 1992). Por que há uma divisão
sociais instituídas. Há uma “legitimação” da entre aqueles que mandam e outros que são
assimetria de poderes na sociedade, mandados? Por que em muitos casos há
heteronomia que está presente tanto nas divisão de poderes num coletivo em relação a
formações sociais como na estrutura psíquica diferenças de renda, de gênero, de idade, de
dos seus indivíduos. Tal heteronomia está tão escolarização, de raça e de orientação sexual?
marcada que se legitimam os fatos de que Esses dois processos de autoanálise e
poucos deliberem sobre a vida de grandes autogestão levam a um questionamento da
coletivos e da reprodução de leis das quais se vida dos coletivos (Baremblitt, 2002) que é um
desconhecem as significações e os sentidos de passo importante e fundamental para que se
existir. comece a criticar a heteronomia instituída e
Então, a partir do filósofo grego, conjectura- persiga-se a construção da autonomia, de um
se que o projeto de autonomia pode ser autogoverno e autodeterminação dos povos e
encarado como a reapropriação do poder e da dos coletivos.
potência dos coletivos de autogerir, Dessa forma, reafirma-se que a prática
autogovernar, ou seja, autoinstituir-se. A política do psicólogo comunitário deve estar
autonomia se calca no projeto político que visa comprometida com o fomento e exercício da
a potencializar a ação e a reflexão dos coletivos autonomia, visto que ele pode, com seus

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dispositivos de intervenção, potencializar as Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP,


ações e reflexões dos coletivos. Ele deve que têm seus financiamentos de alguma forma
potencializar e fomentar os processos de ligados à esfera pública. Nessa modalidade de
autoanálise e autogestão e não pensar e relação, o Psicólogo Comunitário é um
ordenar o que os coletivos devem fazer. profissional que está regido pelas regras da
Ressalta-se isso porque é muito fácil, e instituição que o contrata, seja aos objetivos de
sedutor, ao técnico social assumir o lugar do determinada Secretaria do Estado seja da ONG
saber frente ao coletivo, colocando-se em lugar que o emprega. Portanto, ele é regido por um
assimétrico de poder e muitas vezes contrato empregatício pelo qual recebe uma
reproduzindo a mesma heteronomia social remuneração para executar o seu trabalho. Tal
existente. Por isso sustenta-se que ele deve contexto gera efeitos práticos diretos, pois no
desenvolver dispositivos que efetuem atrelamento entre Psicólogo Comunitário
processos que potencializam os coletivos como empregado de determinada instituição
(Montero, 2004, 2005) e não mantenham a ele está a serviço desse estabelecimento.
mesma dominação social, para que os coletivos Assim, o profissional tem que executar um
por si mesmos se potencializem e se trabalho que esteja em conformidade aos
autodeterminem. Enfatiza-se tal aspecto, pois interesses políticos da organização que o
é necessário evitar que se forme uma emprega, tornando-se um prolongamento da
dependência dos membros da comunidade em sua lógica institucional (Guirado, 1987).
relação ao técnico social, pois o psicólogo Em nossa experiência profissional
comunitário assume um lugar de saber que constatamos que o psicólogo fica atrelado às
gera efeitos de poder. Tais ressalvas estão demandas das instituições que o empregam,
relacionadas ao perigo da não percepção desse que estão pressionadas por resultados que
lugar e no recrudescimento dos lugares de indiquem a eficácia de determinada
poder (Hur, 2010) em que, muitas vezes, o intervenção social para a comunidade. A
psicólogo comunitário pode criar laços de demanda por resultados das intervenções tem
dependência da comunidade a ele, o que seria em vista justificar o investimento do dinheiro
a reprodução da heteronomia, do discurso público do Estado ou de doações de empresas
heterônomo da sociedade capitalista, no ou de particulares. Esses indicadores de
discurso heterônomo do psicólogo. Portanto, eficácia social também têm certa
entende-se que toda prática interventiva do complexidade, pois algumas medidas como,
psicólogo comunitário está entremeada de por exemplo, o aumento da sociabilidade em
práticas políticas, e seu objetivo deve estar determinada região, são muito difíceis de
ligado ao projeto da autonomia para fomentar serem quantificadas, o que não as torna menos
transformações sociais no cotidiano e na vida importantes. Então, as organizações
do coletivo. necessitam criar um regime de visibilidade dos
“bons” resultados da intervenção, para que
consigam captar mais recursos financeiros que
2 - O ESTADO E A GOVERNAMENTALIDADE mantenham a sua existência, o salário de seus
funcionários e a realização dos seus projetos.
Neste tópico, será discutida a possibilidade Nesses casos, entretanto, muitas vezes nota-se
da efetivação de transformações sociais uma despolitização da prática de intervenção
quando o Psicólogo Comunitário é um agente comunitária, em que a instituição não se
direto do Estado. Na introdução, afirmamos interessa primariamente em fomentar a
que as políticas públicas do Estado abriram um autonomia nos coletivos em que intervém e
grande campo de atuação do psicólogo na sim dar visibilidade ao grande público de seus
comunidade, seja sendo agente direto do resultados, fazendo vídeos e publicações da
Estado seja de alguma Organização Não intervenção para tentar aparecer na mídia.
Governamental – ONG, ou Organização da

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Além da lógica de mercado para o que domina a sociedade. Para que tal lógica
financiamento dos projetos, quando as ONGs fosse revertida, deveria ser dominado e
se preocupam em poder “vender” um projeto, controlado, para que assim a Revolução
soma-se também a problemática da pudesse ter êxito.
transmissão da razão de Estado que está O filósofo Michel Foucault aborda a
embutida em uma série de projetos sociais. Tal discussão sobre o Estado em outros termos. Ao
lógica governamental (Foucault, 1979) dá invés de discutir sua suposta totalidade, como
maior caráter de reprodução da heteronomia nos Estados imperiais, centrada na figura do
instituída do que fomento da autonomia aos soberano, Foucault (2008) opera uma inversão,
coletivos sociais; compreende-se que o afirmando que “(...) o que há de importante
psicólogo na comunidade pode ser o para a nossa modernidade, isto é, para nossa
transmissor dessa razão de Estado, muito mais atualidade, não é portanto a estatização da
heterônoma que autônoma. sociedade, mas o que eu chamaria de
Considera-se que a tensão entre Estado e ‘governamentalização’ do Estado” (pp. 144-
sociedade é um dos temas mais discutidos na 145). Para o filósofo, essa governamentalização
história das Ciências Políticas. No pensamento do Estado foi o que permitiu sua reprodução
clássico, o Estado era apreendido como a até os dias de hoje. Refere-se a uma
instituição, com suas leis e aparelhos, gestora “capilarização” da razão de Estado nos espaços
do contrato social firmado por um coletivo. mais regionalizados, mais localizados, através
Pode-se citar a oposição histórica entre T. dos mecanismos disciplinares (Foucault, 1984)
Hobbes (1974) e J. J. Rousseau (1980). O e dos mecanismos de segurança (Foucault,
primeiro desenvolveu o ponto de vista da 2008) aos quais Deleuze (1992) prefere chamar
negatividade, em que o Estado defende os de mecanismos de controle. O surgimento dos
coletivos da guerra de todos contra todos à mecanismos disciplinares se deu com a
custa da submissão às suas leis coercitivas, constituição de dispositivos de normalização
enquanto o segundo desenvolveu o ponto de que saíram do âmbito direto da jurisdição do
vista da positividade, mais otimista, em que o Estado, provindo de outras instituições, como a
contrato social potencializa as ações dos Psiquiatria, a Psicologia etc. e que agiam
sujeitos, num modelo de soberania popular diretamente no corpo da população.
conjugado à manutenção das liberdades Constituiu-se de uma série de mecanismos
individuais. Considera-se que ambas as visões disciplinares que tratavam da gestão da vida do
têm sua parcela de razão, em que esse coletivo, estabelecendo os saberes de um
aparelho providencia uma potencialização da poder sobre vida, das políticas da vida, ou
ação do coletivo, ao mesmo tempo em que o melhor, de uma biopolítica. Já os mecanismos
sujeito tem que abrir mão de parte de suas de segurança são mecanismos mais
vontades individuais ao subjugar-se às leis do “sofisticados” de controle, que não tratam
coletivo. apenas de vigiar os corpos, de agir sobre eles,
Contudo, o pensamento político foi mas sim de agir diretamente sobre o
marcado por uma visão mais crítica ao Estado, comportamento, ou, conforme o pensador
como o pensamento marxista-leninista, que o italiano MaurizzioLazzarato (2006), agir
compreende como um aparelho de dominação diretamente sobre o cérebro e a memória.
a serviço das classes dominantes e que Com a sofisticação das técnicas de
mantém a estratificação e a hierarquia de governamentalização, atualmente já não são
poderes na sociedade. Tal visão referenciou o mais as técnicas biopolíticas que têm primazia
principal projeto dos grupos revolucionários de e sim as técnicas noo-políticas, de um poder
esquerda, que foi tomar o poder do Estado sobre o pensamento, o poder sobre a
para transformá-lo e posteriormente destruí-lo memória; não mais as políticas da vida e sim as
(Lenin, 1983). Nesse modelo, a importância políticas do pensamento (Lazzarato, 2006). Se,
que o Estado assume é clara, sendo o aparelho por um lado, colocava-se que os mecanismos

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disciplinares da biopolítica fundamentavam-se esquecer que tal governamentalidade funciona


na vigilância de corpos encerrados numa pela lógica do capitalismo, em que a imagem
instituição total, a noo-política opera seu de pensamento propagada por esses
controle no espaço aberto por modulação dos mecanismos de controle é modulada pelo
comportamentos, moldando os pensamentos e funcionamento capitalista (Deleuze &Guattari,
os desejos dos coletivos. 1976).
La noo-política (el conjunto de las técnicas Desenvolve-se essa discussão conceitual
de control) se ejerce sobre el cerebro, para fundamentar a compreensão da relação
implicando en principio la atención, para do Estado com o social. Considera-se que há
controlar la memoria y su potencia virtual. La uma mentalidade de governabilidade que
modulación de la memoria sería entonces la segue a lógica do capital, difunde-se nos mais
función más importante de la noo-política. Si variados espaços e modula os fluxos sociais.
las disciplinas moldeaban los cuerpos Desse modo, entende-se que tais mecanismos
constituyendo hábitos principalmente en la de governamentalização estão muito distantes
memoria corporal, las sociedades de control de gerar a autonomia que se defendeu no
modulan los cerebros y constituyen hábitos primeiro tópico, pois reproduzem e
principalmente en la memoria espiritual transmitem a lógica do capitalismo, que é uma
(Lazzarato, 2006, p. 100). lógica competitiva, excludente e de extração da
Dessa forma, afirma-se com Foucault e mais valia.
Lazzarato que se desenvolveram mecanismos Considera-se que a lógica da
sofisticados de gestão governamental que não governamentalidade se intensifica mais ainda
mais partem de um Estado totalizado, mas sim quando o técnico social se atrela diretamente a
de uma governamentalidade difusa no espaço algum mecanismo de Estado. Gera-se assim
social, que não provém apenas do Governo, essa contradição entre uma prática que
mas também de instituições de saber que deveria fomentar autonomia, mas que muitas
carregam a mesma razão. Por mais que a ideia vezes reproduz essa lógica heterônoma,
de governamentalidade (Foucault, 1979) tenha constituindo-se mais como mecanismo social
uma origem distinta da ideia do Estado como de controle da população, como mecanismo
Aparelho de Captura (Deleuze &Guattari, difusor e propagador da noo-política da
1997), aqui se opera uma aproximação entre governamentalidade, ao invés de dispositivo
os dois conceitos. Defende-se que a lógica de fomentador de processos de autoanálise e
governamentalidade efetua uma autogestão. Desse modo, deparamo-nos com
sobrecodificação dos fluxos sociais tal como esta problemática: o psicólogo comunitário
um Aparelho de Captura, mas sendo uma agente das políticas públicas do Estado
captura difusa, regionalizada, localizada, que consegue fomentar o projeto de autonomia
não provém de apenas um lugar. social nos coletivos em que intervém?
Com essas concepções de funcionamento
da governamentalização, entendemos que a
razão de Estado se encontra regionalizada em 3 - NEOCOLONIZAÇÃO E MICROPOLÍTICA: O
suas diversas instituições, em que o controle PSICÓLOGO NA COMUNIDADE E O
não é apenas biopolítico, mas principalmente PSICÓLOGO COMUNITÁRIO
noo-político. Sobre essa questão da modulação
do pensamento, das políticas do pensamento, Ao longo do texto considera-se que os
adiciona-se a concepção de Deleuze e objetivos da intervenção do psicólogo
Guattari(1997) de que o Estado, em nosso caso comunitário são os de fomentar processos de
difuso, cria e propaga uma imagem de autoanálise e autogestão na comunidade com
pensamento, uma forma de pensar, ou seja, a o compromisso do projeto de autonomia
governamentalidade do Estado social. No entanto, um grande campo de
eminentemente é noo-política. Não se deve empregabilidade para psicólogos comunitários

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surgiu com variados projetos relacionados às objetivos pela própria natureza conservadora-
políticas públicas. As políticas públicas podem burocrática do Estado e dos seus mecanismos
ser entendidas como a “soma das atividades de gestão, tal como mostram os resultados das
dos governos que agem diretamente ou publicações sobre a intervenção (Wanderley &
através de delegação e que influenciam a vida Oliveira, 2004; Hur, 2010). Se efetivamente a
dos cidadãos” (Souza, 2006, p. 24). Portanto, autonomia e a cidadania defendidas fossem
tais políticas, por serem práticas de governo, efetivadas, haveria uma intensa movimentação
carregam em si a razão governamental de social na região que poderia alterar o
Estado e consequentemente contribuem para agenciamento de relações de forças instituídas,
a manutenção da heteronomia social, tendo o que geraria demandas sociais que o Estado
em vista a sua natureza eminentemente não poderia contemplar e que possivelmente
conservadora. Desse modo, compreende-se causariam fissuras em seu funcionamento. No
que a política pública em si, como prática de entanto, antes que se chegasse a tal ponto,
Estado, já traz uma lógica vertical que incita haveria uma série de bloqueios institucionais,
mais a conservação do que a transformação. ou boicotes, aos objetivos, para que não se
Entretanto, é polêmica tal afirmação, pois há efetivasse tal transformação social que se
uma série de programas sociais, como, por aproximaria do projeto da autonomia social. E
exemplo, o Programa Fortalecendo a Família7- os bloqueios sempre seriam discursivamente
PFF, que tinham como objetivo justamente justificados com as “velhas desculpas” de falta
levar autonomia e cidadania para as de articulação entre as distintas secretarias do
comunidades em que se trabalhou, ou seja, Estado, ou falta de verbas, ou à “despolitização
promover transformação social (Wanderley & e não participação da população” etc. É o que o
Oliveira, 2004). Então, necessariamente um filósofo Gilles Deleuze (1994) sustenta: não
projeto social de Estado reafirma a lógica da existe um Estado de esquerda, há apenas um
governamentalidade? Estado permeável a algumas demandas da
Compreendemos que qualquer esquerda; ou o que o cientista político John
transformação social que alguma política Holloway8 (2003) pronuncia: “O Estado é
pública defenda ou está apenas no âmbito exatamente o que a palavra sugere: um bastião
discursivo do projeto em questão ou ocasiona contra a mudança, contra o fluxo do fazer, a
uma mudança que não põe em risco a atual encarnação da identidade” (p. 115), ou seja,
conformação das relações de forças na um espaço heterônomo que bloqueia as
sociedade, porque o Estado, como qualquer aspirações autônomas. E prosseguimos com a
outra instituição burocratizada, como defende crítica: se um programa social do Estado gera
o psicólogo institucional Jose Bleger (1980), transformação social em caminho à
primeiramente tem como tarefa manter a sua autonomia, isso não se deve à política pública
sobrevivência, antes de efetuar as tarefas que em si, mas sim às características antiestatais
estão teoricamente previstas a efetivar. O PFF que seus técnicos e os coletivos sociais
podia ter como objetivo levar autonomia e assumem, ou justamente quando agentes do
cidadania às regiões periféricas do município Estado deixam de ter prática de Estado ao
de São Paulo, mas não logrou êxito nos seus assumirem o projeto da autonomia.
Por mais polêmico que pareça o nosso
7
Programa social ligado às políticas públicas de
discurso, não se afirma que toda política
assistência social da Secretaria da Assistência Social da pública de Estado é inócua, mas sim que suas
Prefeitura do Município de São Paulo – SAS-PMSP, práticas desprovidas da crítica não levarão à
Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social do transformação social no caminho da
Estado de São Paulo – SEADS-SP e Universidades
conveniadas do Estado realizado nos anos de 2002 e 2003
8
na Grande São Paulo, em que foram atendidas, por 70 Holloway (2003) intensifica sua crítica ao afirmar que as
psicólogos e assistentes sociais, 14.000 famílias, em revoluções socialistas fracassaram devido à reprodução
grupos. O autor deste texto trabalhou como psicólogo de da forma e da lógica do Estado em que sempre estava em
grupos em região periférica do município. questão sua tomada de poder e controle do seu aparato.
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autonomia. Concorda-se com que os exemplo, que tipos de atividade realizar e que
resultados de muitos projetos de redistribuição referenciais teóricos e técnicos seguir, como se
de renda, de distribuição de cestas básicas, de fossem essas as questões mais importantes da
prevenção de DST-AIDS, de controle da intervenção psicossocial. Compreendemos que
natalidade, de discussão de relações familiares, um fator que afasta o projeto do seu objetivo
de reinserção no mercado de trabalho, de de transformação social é o deslocamento da
atividades esportivas e ocupacionais, ou até problemática política para a problemática
atividades psicoterapêuticas etc. tenham técnica9, havendo a inversão entre meios e
alguma eficácia, auxiliem muita gente e fins. Nesses casos em que o meio se torna o
possam trazer sentimentos de satisfação à fim, esquece-se de que a teoria e a técnica são
comunidade. Contudo, dificilmente operam na os meios, a “caixa de ferramentas” (Foucault,
problemática da confrontação com as relações 1979) para a efetivação de determinado
instituídas de poder na sociedade, objetivo social e político que seria a
principalmente nos espaços macropolíticos. transformação social, ou seja, focaliza-se mais
Tais projetos sociais podem ter bons a técnica psicossocial-pedagógica que vai ser
resultados, mas sempre são resultados que aplicada do que a eficácia política da ação em
raramente interferem nos agenciamentos de si.
poder instituídos e muitas vezes reforçam a Então, referenciados nas reflexões de
heteronomia social. Voltamos a afirmar: Bleger (1980) sobre o psicólogo da e na
quando a intervenção do psicólogo instituição, denominamos psicólogo na
comunitário empregado por política pública comunidade aquele que tem uma preocupação
leva o coletivo a uma reflexão e a uma ação mais técnica em sua atuação, que não tem
problematizadora das relações de poder compreensão da trama institucional e política
instituídas é justamente quando “deixa de ser em que está inserido. Já o outro, aquele que
Estado”, quando opera segundo uma lógica está compromissado com o projeto de
antigovernamentalidade e defende uma noo- autonomia, com o fomento de processos de
política da autonomia, o pensar sem imagens autoanálise e autogestão e percebe as amarras
(Deleuze, 2006), e não a noo-política de institucionais, que são a base e o bloqueio de
Estado. sua prática, denominamos psicólogo
Dessa forma, há uma tendência da atuação comunitário. Infere-se que, devido à formação
do psicólogo empregado por uma política despolitizada na maior parte dos cursos de
pública, ou por uma ONG, na comunidade, graduação em Psicologia, temos um número
para uma prática que não chega a muito mais elevado de psicólogos na
problematizar efetivamente os problemas comunidade do que de psicólogos
políticos existentes no coletivo (Hur, 2010) e, comunitários, algo desejado para as políticas e
pior, muitas vezes apenas se atém a questões práticas de Estado.
técnicas da profissão do psicólogo que se Consideramos então que o psicólogo na
restringe às práticas clínicas, lúdicas e comunidade, devido ao seu alheamento às
ocupacionais, as quais, em muitos casos, questões políticas, está a serviço da razão de
recebem o nome de oficinas (Wanderley & Estado, transmitindo tal lógica e valores para a
Oliveira, 2004). Nessas oficinas ocorre muitas população. O psicólogo na comunidade
vezes um trabalho para não transformar funciona como propagador dos valores
(Fernandes, 2005) e o investimento de uma capitalistas-estatais e é o agente privilegiado
força que não implica deslocamento e
9
mudança. Não nos impressiona então quando, Os múltiplos dispositivos teóricos e técnicos da
Psicologia auxiliam esse deslocamento da problemática
mesmo no encerramento de um programa
política para a problemática técnica, dentro do projeto
social do qual participamos, a preocupação social. Já vimos muitas vezes o foco das discussões deixar
dominante permanece sendo questões de ser a problemática política de intervenção para se
técnicas ao invés de questões políticas, por tornar uma discussão teórico-técnica entre as distintas
“seitas teóricas” existentes.
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da noo-política que, com seus conhecimentos alguém que trabalha para a autonomia da
teórico-técnicos, transmite a imagem de população: ele forma e transgride cada um
pensamento de Estado, podendo desses segmentos. Dessa forma, o psicólogo
sobrecodificar os fluxos sociais dos coletivos comunitário tenta trabalhar de outra forma,
nessa lógica, agindo, assim, num processo de numa atuação que vai além de suas atribuições
captura, que chamamos aqui de técnicas para tentar efetivar os objetivos
neocolonização. Enquanto a colonização se teóricos transformadores do projeto social,
operava de um povo a outro, com distintas transgredindo, assim, o enquadramento
culturas e espaços geográficos, com os fins de instituído e tentando ocasionar dobras na
conquista político-territorial, consideramos instituição. Ele passa a organizar encontros e
que a neocolonização acontece no seio de um reuniões fora do seu horário de trabalho10 com
próprio povo, mas que, devido às suas lideranças comunitárias, com equipamentos do
distinções sociais internas, os grupos Estado, investe mais em sua formação teórico-
dominantes transmitem seu pensamento técnico-política para conseguir traçar mais
hegemônico a partir dos sofisticados linhas e redes que possam abrir caminhos para
mecanismos noo-políticos, muito mais a realização do projeto de autonomia social,
sutilizados: a conquista já foi realizada, o que trilhando não só os espaços e práticas
importa agora é fazer as minorias sociais institucionais mas também os espaços e
pensarem tal como a lógica da práticas intersticiais. No entanto, chega-se a
governamentalização, aceitando assim, de um momento em que o psicólogo comunitário
forma não consciente, sua submissão. O se sente muito desgastado pela carga de
momento da colonização foi o da conquista e trabalho extra e não remunerada que tem e,
subjugação; o momento da neocolonização é o principalmente, quando percebe seu paradoxo:
de valorar o mundo igual ao dos grupos a própria instituição para a qual trabalha, o
hegemônicos, legitimando o lugar de Estado, coloca entraves aos objetivos do
dominação social por meio da “moralização” projeto estipulado.
dos hábitos e costumes. Para lidar com tal contradição, pensamos a
O psicólogo na comunidade é o agente noo- micropolítica como possibilidade de atuação
político que funciona como correia de do psicólogo comunitário frente à captura do
transmissão e propagação da lógica de Aparelho de Estado, como horizonte de
pensamento do Estado e que mantém a fomento aos processos de autoanálise e
heteronomia social instituída. O mais autogestão. Por micropolítica entendem-se as
contraditório é que, muitas vezes, o psicólogo relações políticas que se operam nas práticas
na comunidade pode estar com as melhores cotidianas, do dia a dia, não apenas em
intenções, mas, por desconhecimento da instituições com fins políticos, mas também na
trama política, por não ter instrumentos microesfera da vida, como, por exemplo, as
analíticos para a compreensão dos contextos relações políticas e de poder que se
sociais e políticos, pode acabar por reproduzir desenrolam no bairro, na associação
a dominação. comunitária, na escola, no posto de saúde, na
Já o psicólogo comunitário empregado pela família, com os amigos, no casal, com os filhos,
política pública ocupa um lugar duplo: por um ou seja, o que se refere a uma microfísica do
lado ele é representante do Estado, mas por poder (Foucault, 1979). A micropolítica não é
outro está compromissado com o projeto de
10
autonomia social dos coletivos. Ele ocupa um O Prof. Dr. Salvador Sandoval (comunicação pessoal, 16
espaço entre-dois, sendo intermediário dessas de outubro de 2007) costuma falar bem-humoradamente
em suas discussões sobre políticas públicas que o
duas formações sociais heterogêneas, ele
psicólogo comunitário é o “profissional-ameba”, tendo
mesmo sendo uma formação híbrida entre os que se plasmar e se transformar constantemente para
dois espaços. Termina por ter uma atribuição conseguir transitar entre essas duas formações sociais
dupla, como agente do Estado, mas como heterogêneas e para tentar efetivar os objetivos do
projeto social.
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algo descontínuo à macropolítica, apenas se um movimento de transmutação em que o


situa num ponto mais localizado, regionalizado, coletivo pode realizar um movimento de
como a relação que Guattari (1987) faz entre o suspeição sobre a realidade social,
molecular e o molar, ou seja, as agitações e desconstruindo a lógica da
transformações micropolíticas também podem governamentalidade e as estruturas
levar a transformações mais amplas no psicossociais heterônomas num exercício de
conjunto social. Ela não apenas está envolta autoanálise e autogestão. Em decorrência
por questões relacionadas ao poder, mas desses preceitos, pensamos que, no fazer
também pela “questão de uma analítica das micropolítico, as atividades propostas aos
formações do desejo no campo social” coletivos têm que ser pensadas conjugando-se
(Guattari, 1986, p. 127). No seu projeto ético- o projeto da autonomia com os objetivos e
político Guattari (1988) levanta como objetivo restrições da política pública, em que sejam
da micropolítica: planejados os fazeres da intervenção
A tarefa de uma tal pragmática consistirá conjuntamente com a população, levando em
então em operar conexões entre os sistemas consideração a estrutura institucional em que
transformacionais capazes de anular os efeitos se está inserido, seus limites e potenciais de
das gerações significantes e discernir as transformação.
orientações micropolíticas concernentes ao
conjunto dos sistemas semióticos caminhando
no sentido de ‘revoluções moleculares’. [...] Em 4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
cada situação o objetivo esquizo-analítico11
consistirá em livrar a natureza das Neste ensaio, buscamos discutir o complexo
cristalizações do poder que se operam em lugar que o psicólogo comunitário ocupa
redor de um componente transformacional quando empregado em projeto social
dominante (p. 173). relacionado a alguma política pública.
Desse modo, o psicólogo comunitário opera Compreendem-se as políticas públicas como
seu trabalho focando as problemáticas do práticas de Estado que transmitem sua razão
poder nessas distintas instâncias, buscando governamental. Assim, problematizamos a
promover processos de reflexão que tenham atuação do psicólogo comunitário nesse
em vista des-institucionalizar as relações de campo, em que pode agir como transmissor
poder estratificadas socialmente, fomentando dessa lógica contrária ao fomento de uma
os processos desejantes de autoanálise e autonomia que, contudo, ele defende.
autogestão voltados para uma nova Dessa forma, distinguimos a atuação do
configuração de relações de poder, psicólogo na comunidade do psicólogo
proporcionando assim, nos dizeres de Guattari comunitário. O primeiro, alheio aos
(1987), revoluções moleculares. Portanto, agenciamentos políticos do projeto em
entende-se que a micropolítica causa fissuras questão, passa a reproduzir e transmitir a noo-
no instituído, podendo ocasionar situações de política de Estado aos coletivos em que
crise, mas não em seu sentido negativo, pois a intervém, correndo o risco de operar uma
crise deve ser pensada como um momento “neocolonização” a partir da lógica da
potencial de transformação (Kaës, 1979). Pois é governamentalidade do Estado. O segundo,
o instante em que se (des)valora, consciente das contingências políticas e
desterritorializa-se, o que se vive, podendo institucionais, opera na articulação entre
acarretar novas associações, acontecimentos e política pública regida por uma lógica
11
heterônoma e o projeto de autonomia,
O discurso de F. Guattari versa sobre o objetivo
lançando-se assim ao campo da
micropolítico do campo de saberes que criou com o
filósofo Gilles Deleuze, a Esquizoanálise. Em nosso texto experimentação e criação de uma prática
“roubamos” tal objetivo para a Psicologia Comunitária, coletiva sem fins determinados.
pois consideramos que ele está comprometido com o
mesmo projeto da autonomia.
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Consideramos a autonomia um projeto a potencial insurgente da transformação e


ser perseguido pelo psicólogo comunitário e autonomia social.
um princípio que implica o fomento dos
processos de autoanálise e autogestão dos
coletivos sociais, incitando assim processos de REFERÊNCIAS
potencialização da vida desse coletivo e não
uma neocolonização. Ao lado do projeto da Amaral, M. S., Gonçalves, C. H., & Serpa, M. G.
autonomia, adicionamos também a (2012). Psicologia Comunitária e a Saúde
micropolítica como uma estratégia de atuação Pública: relato de experiência da prática Psi
privilegiada e transformadora. em uma Unidade de Saúde da Família.
Levantar crítica radical às políticas públicas Psicologia: Ciência e Profissão, 32(2), 484-
não quer dizer que consideramos que elas são 495. Recuperado em 3 maio, 2013, de
ineficazes e que não alteram a conjuntura http://www.scielo.br/scielo.php?
social; o que se pretende colocar é que há uma script=sci_arttext&pid=S1414-
tendência a que os projetos ligados a essas 98932012000200015&lng=pt&tlng=pt.
políticas reproduzem a razão de Estado, muitas 10.1590/S1414-98932012000200015
vezes corroborando a heteronomia social
instituída e difundindo o processo a que Andery, A. A. (1981). Psicologia na comunidade
chamamos de neocolonização. E há o risco de o no Brasil. In Anais do I Encontro de
psicólogo reproduzir essa lógica, na medida em Psicologia na Comunidade. São Paulo:
que está empregado e atrelado às políticas de Associação Brasileira de Psicologia Social.
Estado.
Por isso, perseguir o objetivo da autonomia Baremblitt, G. (2002). Compêndio de Análise
na sociedade atual não é algo simples, pois o Institucional e outras práticas: teoria e
psicólogo comunitário também é um prática. Belo Horizonte: Instituto Félix
profissional que necessita de seu emprego para Guattari.
sobreviver. Então, por mais que se defenda a
implicação do psicólogo comunitário com a Bleger, J. (1980). Temas de Psicologia:
busca da autonomia, sabe-se que ele vive num entrevistas e grupos. São Paulo: Martins
contexto capitalista, num regime de poder Fontes.
vertical, em que está submetido à direção de
sua instituição e depende de seu salário, Bobbio, N., Mateucci, N., & Pasquino, G.
sofrendo, assim, limites e bloqueios para a (Orgs.). (1991). Dicionário de Política.
consecução do projeto da autonomia social. Brasília: UnB.
Então caberá a ele criar seu trabalho, sua
intervenção, a partir desse lugar paradoxal. Boff, L. (1975). O que é fazer teologia partindo de
Cabe-lhe decidir o quanto seguirá as regras uma America Latina em cativeiro? Revista
institucionais-estatais e o quanto fomentará o Eclesiástica Brasileira, 35(40), 853-879.
projeto da autonomia no coletivo em que
intervém. Desse modo, seu labor será o de Castoriadis, C. (1992). O mundo fragmentado:
experimentação e elaboração, pois se deparará As Encruzilhadas do Labirinto/3. Rio de
com elementos emergentes, sempre novos, Janeiro: Paz e Terra.
fluidos, com demandas inesperadas da
comunidade, ao lado dos mecanismos de Castoriadis, C. (2006). Una sociedad a la deriva
controle mais refinados do Estado. Caberá ao – Entrevistas y debates (1974-1997). Buenos
psicólogo comunitário transitar nesse paradoxo Aires: Katz Editores.
em que, ao mesmo tempo que faz parte do
Aparelho de Captura do Estado, porta o Deleuze, G. (1992). Conversações. São Paulo: 34.

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Recebido: 29/06/2012
Revisado: 10/05/2013
Aprovado: 12/06/2013

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Pesquisas e Práticas Psicossociais – PPP - 8(1), São João del-Rei, janeiro/junho/2013

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