Quando o Cinema Se Faz Vizinho

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 24

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Quando o cinema se faz vizinho


When cinema is a neighbor
Érico Araújo Lima I

IDoutorando, PPGCOM-UFF. Contato: [email protected]

Resumo: Este artigo se pergunta sobre algumas formas de vizinhança possíveis nas quais pode
se engajar o cinema na sua relação com os espaços e com os sujeitos filmados. Propomos duas
camadas coengendradas para tentar acessar esse problema. De um lado, levantamos uma
visada geográfica, que enfatiza os modos pelos quais a escritura fílmica constitui, por
mise-en-scène e montagem, a contiguidade das vidas, das casas, das ruas, dos espaços em cena.
De outro, estamos interessados em um gesto, que arriscamos chamar de avizinhamento, quando
essa vizinhança geográfica e esses sujeitos filmados interagem com a máquina cinema segundo
um modo de hospitalidade. Nosso objetivo é vincular essas questões a uma indagação mais
ampla, a respeito da possibilidade de os recursos expressivos da arte participarem da
instauração de uma vida em comum. Trata-se aqui de investigar os modos de ser da imagem no
filme A vizinhança do tigre (2014), de Affonso Uchoa, nessa dupla condição da vizinhança que
tentamos traçar.

Palavra chave: Vizinhança., Comum. , Ficção. , Espaço.

Abstract: This paper aims to ask how the cinema can produce forms of neighborhood. This
concerns both the geographical aspect – the ways of filming the spaces and people who live in
these places – and the procedures of approaching – the gesture of hospitality between cinema
and lived experience. This discussion is attached to another question, about how the expressive
forms of art can participate in the creation of life in common. We investigate here, more
specifically, the imagens of the film A vizinhança do tigre (The Hidden Tiger, 2014), directed by
Affonso Uchoa.

Keywords: Neighborhood., Common., Fiction. , Space.

A vida não é uma sucessão de lanternas de carruagens dispostas


em simetria; a vida é um halo luminoso, um invólucro
semitransparente nos envolvendo dos primórdios da consciência
até o fim.

Virginia Woolf. Ficção moderna.

Relações de vizinhança

Em uma publicação intitulada Vocabulário político para processos estéticos

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 1/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

(2014), um conjunto de artistas e críticos de arte se reuniu para propor algumas breves
caracterizações de palavras importantes para seus trabalhos, além de alguns relatos em
torno de experiências estéticas. Valeria destacar aqui um dos momentos dessa publicação
com espécies de verbetes situados no entremear da estética com a política. A palavra
“Vizinhança” é assim descrita por Enrico Rocha:

A partir do seu lugar, possivelmente, você perceberá o lugar do


outro. Sua reação pode ser de quem reconhece uma ameaça, o
mundo pode estar cheio delas; ou um vizinho, o mundo pode ser
uma imensa vizinhança. Diante de uma ameaça, não há muito o que
fazer, ou você foge dela ou você a enfrenta, geralmente com
violência. Em uma relação de vizinhança, você negocia o que é
comum, as aproximações e também as distâncias necessárias. Aqui,
a vizinhança poder ser considerada o lugar que você mora, a
cadeira do ônibus que você compartilha, a rua que você ocupa em
dias de manifestação etc. Bom pensar que uma boa política de
vizinhança deve partir de relações recíprocas. Bom acreditar que
entre a guerra e a diplomacia colonizadora há outras relações de
vizinhança possíveis. Em qualquer escala (ROCHA, 2014).

Desde já, esse mote que Enrico Rocha nos traz é bastante instigante para pensarmos os
modos de compor uma vida em comunidade. E se essas variações de formas de vizinhança
são constitutivas do comum, é porque, nessa infinidade de relações, tornar-se vizinho diz
respeito a um desafio central para a experiência coletiva, para nossa experiência de todos os
dias. Uma vizinhança pode se constituir segundo diferentes maneiras. De imediato,
pensamos em um sentido bem cotidiano que essa palavra pode adquirir em nosso
vocabulário. Percorremos uma vizinhança, ao perambular pelas redondezas de parcelas
contíguas de uma cidade, ao desenvolver relações entre aqueles que moram por perto, ao
experimentar as possibilidades de circulação e de trocas que podem ser ou não viabilizadas
pela arquitetura das casas de uma mesma imediação. Estamos aqui, primeiramente, diante
de um enfoque geográfico, que concerne aos modos de fabricar territórios, de torná-los
moventes, relacionais e porosos. Essa vizinhança convoca, então, para uma cartografia.

Mas há ainda outra camada dessa mesma noção que vale ser destacada. É que existe

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 2/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

um gesto solicitado pelo movimento de constituir vizinhança. Esse gesto pressupõe um


avizinhamento, um esgueirar-se para estar próximo, um princípio articulador dos
heterogêneos, para tornar possível a relação entre mundos antes não colocados em
coexistência. Avizinhar-se, então, é uma dessas faces que pode estar contida quando
invocamos a investigação de formas da vizinhança. Trata-se, poderíamos dizer, de um
possível gesto constituinte da vida coletiva, e que queríamos, mais especificamente,
explorar como um operador da escritura fílmica, dos seus procedimentos de mise-en-scène
e de montagem.

Para indicar, mais claramente, o universo sensível que nos mobiliza a propor essa
discussão sobre relações, forças e formas de vizinhança, devemos dizer de nosso especial
interesse em articular essas proposições aos modos de ser e de fazer engendrados pela
escritura fílmica de A vizinhança do tigre (2014), de Affonso Uchoa. Essa investigação se
articula aqui a partir de uma dupla vontade: de um lado, o cuidado e o interesse em colocar
em relevo a singularidade da obra; de outro, o desejo de não considerar o trabalho do filme
como uma operação que lhe é absolutamente exclusiva, mas perceber nele também
ressonâncias, ainda que sempre permeadas por alguns intervalos e afastamentos.

Pois, evidentemente, a composição da vizinhança não é exclusiva desse filme, como já


observaram André Brasil e Cláudia Mesquita (2012) a respeito de Avenida Brasília
Formosa (Gabriel Mascaro, 2010) e O céu sobre os ombros (Sérgio Borges, 2011), ao
falaram de um trabalho de imanência, que se dá pela contiguidade entre as formas sensíveis
do mundo e as formas do filme. Ou ainda quando observam um avizinhamento entre as
vidas dos personagens na própria tessitura fílmica de modo mais amplo: “a evidência de
que essas vidas fazem vizinhança e foram marcadas por um processo comum
compartilhado as conecta sem produzir ou reiterar rígidos enquadres” (BRASIL e
MESQUITA, 2012, p.8). Também estamos aqui próximos à noção de rede, para considerar
as tramas de uma cidade relacional, no que também Cezar Migliorin (2011) já desenvolveu

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 3/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

algumas discussões, especialmente ao tratar de uma montagem polinizadora, igualmente a


partir do filme de Mascaro.

O movimento aqui tenta, então, partir do filme para investigar em que medida se pode
falar dessa vizinhança que se inscreve na imagem segundo um duplo movimento : uma
vizinhança da escritura e uma escritura da vizinhança. A vizinhança é, nesse sentido, um
objeto do filme – trata-se de observar, acompanhar e, ainda, inventar um território – e
também um gesto contido nesse trabalho – avizinhar-se para filmar. A geografia é assim
perscrutada no mesmo movimento em que é inventada pelo gesto da relação. Na vizinhança
entre quem filma e quem é filmado, e na “cumplicidade escritural entre cidade e filme”,
como já disse Comolli (2008, p.183) em seu conhecido texto A cidade filmada , vale se
perguntar sobre os modos possíveis de avizinhar-se do mundo e dos corpos dos outros e
sobre como uma vizinhança geográfica pode precipitar-se na cena fílmica, a partir de uma
tessitura relacional dos espaços e dos seres, por meio das mise-en-scènes e montagens
singulares tramadas a cada encontro.

Esse jogo é central para a experiência composta pelo filme de Affonso Uchoa. Junim,
Neguim, Menor, Eldo e Adilson são os personagens filmados em meio a suas circulações
pelo Bairro Nacional, em Contagem, Minas Gerais. Existe aí a composição de uma espécie
de constelação de fragmentos das vidas desses jovens. Os corpos se inscrevem na cena
fílmica a partir de uma decupagem rigorosa e de um procedimento de reencenações daquilo
que emerge da vida ordinária. Nesse movimento, a ficção é solicitada a penetrar
constantemente a tessitura do filme, convocada para a elaboração de uma dramaturgia que
tem por matéria a experiência vivida.

Nesse trânsito entre o vivido e o imaginado, o realizador opera um movimento de


implicação junto ao espaço e aos sujeitos filmados. E aqui parece ser bastante decisivo para
a materialidade da obra um aspecto processual, ao qual acessamos seja por alguns

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 4/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

indicadores dos créditos finais seja pelas entrevistas e debates dos quais Uchoa já
participou. A vizinhança do tigre foi filmado no período entre fevereiro de 2009 e
dezembro de 2013 e partia do desejo do realizador em construir um filme a partir do bairro
em que vivia. Se isso nos interessa aqui, não se trata de fazer desse dado uma afirmação
identitária para a experiência estética que surge, mas de pensar em termos de uma camada
de relação com um território sensível, um processo de aproximação permeado pela duração.
Nosso desafio será também indagar em que medida se precipita na cena essa relação de
avizinhamento. Dizendo de outro modo, cabe se perguntar como o filme dá forma a essa
trama processual vivida, a essa relação decantada longamente, a essa vizinhança que
implica corpos para um contato.

É como se estivéssemos aqui também diante de um problema percorrendo as tramas


das nossas indagações: como o cinema pode devolver a uma comunidade de espectadores
as marcas de um encontro decantado e prolongado, as relações de vizinhança traçadas entre
quem filma e quem é filmado, a experiência de duração e o movimento de implicação dos
corpos envolvidos nessa tessitura com uma parcela de cidade? Parece-nos que o caso desse
filme é emblemático de uma situação partilhada por outros trabalhos nos quais algo do
processo de realização parece ser constitutivo das formas de vida que emergem na imagem.
E talvez só possamos encontrar essas aparições sensíveis que nos interpelam, se tivermos
como horizonte uma indissociável conjugação entre as demandas solicitadas ao espectador,
a escritura sensível da obra e a trama criada quando o cinema adentra as vidas dos filmados.
Como nos diz Marie-José Mondzain (2011): “É porque a imagem não é nem uma coisa
nem uma pessoa que ela opera entre sujeitos enquanto operadora de uma relação, sem
usufruir, ela própria, de nenhum estatuto ontológico nem teológico, e, sobretudo, sem se
reduzir à sua materialidade” (MONDZAIN, 2011, pp. 108, 109). A imagem se dirige a algo
que a excede, que guarda com ela uma exterioridade. Ela não diz respeito a objetos, a
coisas, mas talvez muito mais a não objetos , não coisas , “que incarnam o nada de uma
indeterminação promissora” (MONDZAIN, 2011, p.111).

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 5/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

A partilha de uma luz produzida pelos corpos dos povos, a decantação da fala dos sujeitos filmados, os
modos de instaurar coexistências na montagem ou de cindir as presenças por intervalos, as diferentes
modalidades de engajamento afetivo do espectador, eis alguns procedimentos que perpassam a
abordagem dessas formas de vizinhança. Como já destacou Didi-Huberman (2012), trata-se de pensar
um gesto que contrarie a exposição dos povos ao seu desparecimento, aos holofotes, às grandes luzes
do poder, e de pesquisar um modo de aparição dos sem-parte pela sua própria potência de emergência,
para que eles tomem figura, ocupem o quadro e instaurem uma inaudita visibilidade na cena[1]. Essa
constituição de vizinhanças tem uma relação estreita com uma pergunta a respeito dos procedimentos
pelos quais o cinema pode produzir modos de viver em comum (embora saibamos também que não
podemos tomar, imediatamente, por equivalentes as noções de vizinhança, comunidade e comum).
César Guimarães (2005) nos fala de comunidades de cinema justo como um modo de pensar esses
processos de aparição dos sem parcela na distribuição dos quinhões de uma cena política estabelecida.

Denominamos comunidades de cinema os diferentes processos de


constituição da visibilidade cinematográfica de todos aqueles que
se encontram sob a condição dos sem parcela na distribuição
vigente das parcelas e das ocupações configuradas por uma cena
política determinada. Com suas imagens e discursos, isto é, por
meio do agenciamento dos componentes de uma mise en scène
singular, os sujeitos filmados viriam assim a inaugurar o dissenso
em uma cena estabelecida (GUIMARÃES, 2015, p.49).

Nossa busca consiste, assim, em acompanhar as formas expressivas de A vizinhança do


tigre e pensar os modos pelos quais a escritura do filme dá corpo a relações de vizinhança,
naquela dupla condição de gesto e de geografia. Essas inquietações têm por horizonte a
processualidade da obra, mas sem tomá-la como um dado a ser verificado na materialidade,
e sim como uma camada de composição de modos de vida pela imagem. Pois em grande
medida, a pergunta em torno da vizinhança surge aqui inseparável de uma preocupação
mais ampla, a respeito de como pode o cinema engajar os sujeitos – aqueles presentes na
cena, mas também os próprios espectadores, ao verem juntos o que surge na tela – em uma
trama coletiva de vidas e olhares. Ou valeria ainda dizer que essa inquietação mais geral
busca discutir como podemos pensar a experiência estética na ligação com um fora

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 6/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

. Trata-se de enfrentar a matéria plástica e sonora do cinema tomado pela inquietação em


saber como pode emergir daí uma comunidade sensível permeada por mundos
heterogêneos e em íntima contaminação com a vida de todos os dias.

Da geografia

A escritura da vizinhança no filme de Affonso Uchoa compõe uma parcela de cidade


que vai adquirindo aparição em um processo de variação constante. Não estamos no regime
de uma representação de zonas já estabelecidas e esquadrinhadas previamente, mas justo
em um registro que performa o próprio espaço, ao desenhar a imagem como matéria
moduladora de escalas, fabricadora de certo regime de luz, de tonalidades e de linhas, em
múltiplas alterações nas relações entre corpo e paisagem, entre figura e fundo. Se a
cartografia de espaços se efetua com a emergência de uma contiguidade entre filme e
mundo, isso se dá de uma maneira que complica qualquer conexão sistêmica entre os
lugares percorridos. Isso quer dizer que a máquina-cinema vem introduzir aqui outra
velocidade, numa decupagem que desvincula a topografia da cidade a certo modo funcional
de circulação. Boa parte dos percursos feitos pelos personagens é marcada por uma pura
ocupação dos lugares, esvaziada de finalidades ou de marcações mais fortes quanto a uma
identidade social dos próprios sujeitos, em uma distribuição geral das parcelas.

Ao mesmo tempo, somos, por vezes, lembrados de um extracampo dos destinos de


alguns deles, como nas situações que rondam a sorte de Junim, em liberdade condicional –
dívida com a Lei do Estado – e em tensão com alguns traficantes da região – dívida com
outros regimes de legislar o território. Todos esses conflitos apenas são mencionados,
referidos indiretamente por algumas cenas. Se não há tentativa de apaziguar a violência que
circunda essas vidas, há uma aposta formal e ética em adentrar os quintais, as ruas e os
quartos escuros de cada um, para acompanhar como se produzem as subjetividades nesses
lugares, sem que seja afirmada a falta, mas justo com o interesse em perceber as

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 7/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

intensidades de momentos quaisquer. Algumas ocasiões de jogo, de brincadeira ou de duelo


musical vão permeando os percursos e tornando a investigação da geografia inseparável
dos modos de vida que habitam esses lugares. Aqui as práticas espaciais são constituídas
pelas brincadeiras de Neguim e Menor em meio a ruínas de um lugar mais afastado das
casas, quando um persegue o outro segurando uma arma sem balas e disparando tiros de
mentira para o alto. Ou quando os dois, mais uma vez em brincadeira, pintam os rostos um
do outro, trocam insultos por conta do resultado tosco dos desenhos, e depois se põem a
dançar no quintal de casa. É também um modo de ocupar e de habitar que vai se formando
a partir da perambulação de Junim e Neguim pelos matos, em busca de tangerinas, numa
sequência repleta de variações, que vão da ação propriamente dita de subir nas árvores para
coletar as frutas até o momento de sentar, comer o que foi recolhido e fazer um embate
musical a partir da canção tocada no celular de um deles.

Nesse jogo complexo entre cinema, território e experiências vividas, vamos nos
aproximando do bairro Nacional segundo chaves muito singulares de constituir imagem a
partir da periferia. Aspecto fundamental que parece estar em jogo na política de A
vizinhança do tigre : trata-se de inventar outros modos de filmar os espaços e as vidas
constantemente enquadrados segundo um jogo geral das identidades, seja quando essas
identidades reforçam as gestões que o capitalismo pretende articular, seja mesmo quando
elas fazem parte das estratégias daqueles que buscam afirmar possibilidades de resistência.

Nossa intenção aqui não é o caminho de opor os recursos expressivos desse filme aos
registros midiáticos consensuais, à televisão, aos modos de representação clássicos, enfim.
Não que esses tensionamentos sejam já superados, mas parece-nos que a escritura do filme
impõe uma complexidade maior a um problema que concerne às disputas pela possibilidade
de aparição sensível de subjetividades, em cidades atravessadas pela instauração de
partilhas que criam uma infinidade de sujeitos sem-parcela, para usar um termo de Rancière
(1996). A vizinhança do tigre coloca-se diante de um enfrentamento caro a inúmeros

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 8/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

debates da política das imagens e mobiliza operações que nos lançam para um modo muito
particular de sentir os espaços, as casas e as ruas dos pobres, dos que são constantemente
colocados nas franjas das cidades. Em alguma medida, ao enfatizar que o embate é muito
mais complexo, estamos novamente muito próximos a Rancière (2012), quando emite uma
poderosa provocação, logo no início de um texto dedicado a filmes de Pedro Costa: “Uma
situação social não basta para fazer uma arte política, nem a evidente simpatia pelos
explorados e esquecidos” (2012, p.147). É, portanto, dentro de um debate em torno da
política da arte que tentamos situar esses gestos fílmicos aqui analisados. Guardemos isso,
então, para pensar como há no filme de Uchoa a instauração de uma vizinhança capaz de
complicar os modos de fazer e de sentir em uma cena política configurada.

Se apostamos em pensar o território que emerge dessa operação fílmica, estamos aqui
muito distantes de uma perspectiva estática e circunscrita a delimitações rígidas. O
território escrito pela cena e pela montagem de A vizinhança do tigre é marcado pelo
movimento do próprio gesto da cartografia, ele se modula segundo a dinâmica mesma de
sua aparição sensível na imagem. A questão não é constituir um mapa com limites claros a
partir da região pesquisada, não é esquadrinhar fronteiras ou estabelecer demarcações em
um terreno. Se falamos de uma cartografia como procedimento da escritura da vizinhança
nesse filme, é porque ele se investe da possibilidade de traçar um plano comum,
atravessado por coexistências e coabitações – entre os seres filmados, entre corpos e
paisagens, entre filme e filmado. A geografia sensível desse espaço é, assim, menos uma
extensão submetida a uma métrica do que um plano de composição marcado pelas
intensidades dos modos de habitar.

Parece-nos que o trabalho do filme de Uchoa tem ressonâncias com certo modo de ser
do sensível caracterizado por Rancière, em vários de seus textos, segundo a noção de um
regime estético das artes. Nosso interesse aqui não é fazer uma imediata correspondência
entre essa proposição teórica e as operações do filme que tomamos em nossa discussão. O

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 9/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

horizonte de constelações de obras, artistas e cenas levantados pelas análises de Rancière


nos mobiliza a tecer aproximações com a moldura geral desse regime das artes, mas para
propor também, como faz o próprio autor, algumas variações junto à singularidade de
A vizinhança do tigre . E um primeiro cotejamento que nos aparece como fundamental diz
respeito à reflexão que Rancière faz a partir da poesia de Walt Whitman e das propostas
conceituais de R.W. Emerson. Nessa conjuntura em que se pauta o ideal de uma poesia
nova, que pudesse convocar o homem simples e as formas de vida do mundo, está em jogo
uma tentativa emblemática de constituir certa paisagem sensível. Em uma relação imanente
com as materialidades de um povo e da natureza, essa poesia toma lugar no mundo e se
constitui em versos como expressão do modo como as próprias coisas se nomeiam
(RANCIÈRE, 2011, p.85). Aqui estamos diante da situação de paradoxo salientada por
Rancière a respeito desse regime estético, no qual a arte se autonomiza como modo de
experiência, mas preserva a potência de uma ligação dissensual com a vida ordinária. Nesse
limiar de tensão, a poesia do mundo em Whitman guarda uma vinculação muito forte com a
matéria geográfica a ser transformada em poema.

A poesia do tempo presente rompe com certa ideia do tempo,


aquele que era normatizada pelos grandes acontecimentos e os
ritmos herdados do passado. Ela encontra sua matéria não mais na
sucessão histórica, mas na simultaneidade geográfica, na
multiplicidade de atividades que se distribuem sobre os diversos
lugares de um território. Ela encontra sua forma não mais nas
regularidades métricas herdadas da tradição, mas na pulsação
comum que une essas atividades (RANCIÈRE, 2011, p.81).

Nesse sentido, a autonomia da obra de arte no regime estético implica uma


emancipação em relação a regras de um modo de fazer, em relação a hierarquias de gêneros
e temas e de leis prescritivas quanto aos produtos da arte (RANCIÈRE, 2005). Trata-se da
introdução de uma realidade contraditória, de um sensorium inédito, mas que traça uma
conexão com formas de vida, se retomarmos o enfoque na poesia whitmaniana. “A poesia
não existe em poemas se ela não existe já em espera nas formas de vida” (2011, p.84). O
pensamento de Rancière complica, sobretudo, duas maneiras de pensar os objetos artísticos

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 10/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

tipicamente englobados segundo a chave de uma modernidade estética: de um lado, não se


trata de uma autonomia da forma ou de uma busca do específico de uma determinada
expressão artística; de outro, não cabe também colocar a questão nos termos de um ideal
fusional imediato entre arte e vida.

Com todos os meandros que essas formulações nos impõem, vale tomar aqui esse nó
conceitual para aquilo que nos interessa: diríamos, já de volta ao filme de Uchoa, que
estamos diante de uma vizinhança eminentemente cinematográfica, que existe enquanto
cinema, forma heterogênea disparada pela montagem e pelo trabalho da cena, fulguração
conectiva singular, tramada na articulação de imagens e sons, de corpos e quadros, mas ao
mesmo tempo estamos diante também de uma experiência sensível que existe
absolutamente por conta do engendramento com as formas do mundo, com os modos de
viver nessa parcela de cidade e de performar modos de existência nesse território. Cena
sobre cena , como já disse Migliorin (2011), ao tratar de dois outros filmes brasileiros
sintomáticos de certo modo de ser sensível da cidade no cinema: Avenida Brasília Formosa
(Gabriel Mascaro, 2010) e O céu sobre os ombros (Sérgio Borges, 2011).

Diante dessa cena, o cinema: cena sobre cena. Onde existe o


recorte, a definição dos movimentos e partilhas, o cinema sobrepõe
outra mise-en-scène , recorta o espaço já cortado, transforma os
sons, retira a cor, monta um contracampo e um fora de campo,
aproxima vidas e produz afecções nessas reurbanizações em que o
espaço e o tempo podem perder as estribeiras. Um conjunto de
relações que, longe de constituir uma informação sobre a cidade,
acaba por estabelecer com ela um papel fundante. As cidades
existem nas relações entre os sujeitos e os espaços, entre o que
vemos e o que é visto pelos personagens, essencialmente relacional,
sem consenso ou harmonias sólidas (MIGLIORIN, 2011, p.2).

Vizinhança sobre vizinhança, vejamos um pouco mais de perto como isso se constitui
nas formas do filme. O trabalho da montagem é pautado pela constante articulação entre os
blocos conduzidos por cada um dos personagens. A cena fílmica é constantemente mediada
e introduzida pela presença dos sujeitos filmados. É, sobretudo, Junim que circula mais por

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 11/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

muitos espaços do bairro, visita os outros companheiros, trabalha, estabelece conversações.


Mas essa regularidade maior de aparições do personagem não constitui uma centralidade,
na medida em que ele se insere também como força de uma rede mais ampla, para tramar
conexões. Há uma espécie de oscilação na montagem entre dar conta de uma curva
dramatúrgica guiada, em alguma medida, pelas atividades desse personagem, e bifurcar
repentinamente para traçar o desenho do espaço vivido pelos sujeitos que ele vai
encontrando. É Junim que faz ver algo como o cintilar de uma sucessão temporal, já que é a
ele que se associam, de modo mais explícito, alguns desdobramentos narrativos. Mas aos
poucos, mesmo essa espécie de mediação de Junim é dispensada, para dar lugar a uma
aparição autônoma de uma brincadeira entre Menor e Neguim, de uma visita de Eldo a
Menor, de um show de rock do qual Eldo participa, ou do casamento de Adilson. Em cada
um desses blocos, as vidas se põem em jogo para apresentar também pedaços da vizinhança
que não chegam a compor uma totalidade, mas fazem do fragmento o seu princípio de
elaboração. A temporalidade também passa a se instaurar menos pela sucessão de eventos
encadeados do que pela duração adensada nos próprios planos, enfatizando a experiência de
um mural que se compõe a partir dessa aproximação entre blocos com tempos e gestos
heterogêneos.

Um plano no início do filme é um dos poucos momentos que nos oferecem uma visão
mais ampla do bairro. Esse instante vem logo após a primeira cena, quando Junim, deitado
no sofá de casa, lê uma carta para Cezinha, personagem que está preso e não chega a
aparecer durante o filme. Um corte nos joga para uma imagem mais escura, que vai
definindo suas formas aos poucos. Somos introduzidos a um progressivo amanhecer. A luz
vai se fazendo presente, revelando partes do céu, para depois um novo corte convocar uma
paisagem em que podem ser vistas, ao fundo, as casas da vizinhança. O plano é frontal e
um tanto distanciado, revelando não apenas as casas, mas também o entorno formado por
vegetação. É um dos raros instantes em que a escritura nos revela uma situação mais geral
desse lugar e nos localiza efetivamente em um espaço marcado pela contiguidade das casas,

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 12/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

todas muito próximas, algumas pintadas, outras com tijolos à mostra. É como se o filme
também marcasse aí o próprio movimento de avizinhamento: ele chega a esse mundo por
um movimento de observação distanciado, em que não vemos mesmo nenhum sujeito. Só
progressivamente passa-se a fazer parte da fabricação coletiva de uma cena, dos meandros
desse universo que será habitado e inventado. Arriscaríamos mesmo a dizer que se trata aí
também de um procedimento dramatúrgico bastante marcado, que anuncia uma espécie de
cenário de um percurso – ou nesse caso, de vários percursos, de vários exercícios para
elaborar mundos imaginados.

Nesses trajetos, não se alinhava, então, nenhum conjunto orgânico, ainda que tenhamos
ideia de uma moldura que situa esse mundo de experiências. O território como
representação total vai assim se desfazendo no gesto de cadenciar os micro-acontecimentos
cotidianos, espalhados como que numa “chuva de átomos”, para retomar uma expressão de
Virginia Woolf que se torna central para algumas reflexões de Rancière (2014) em torno da
ficção moderna. A escritura trabalha, então, na tensão entre uma dispersão de pequenos
instantes de experimentação do espaço e as fagulhas de uma intriga rondando o destino de
Junim. Como efeito de composição da vizinhança, cada fragmento torna-se intensidade em
uma montagem por constelações. Nesse gesto conectivo, imbricam-se dentro e fora, casa e
rua, e mais amplamente, singularidade e comunidade. Paradigmático disso é o momento em
que saltamos do quarto escuro em que Junim fuma um cigarro para uma sucessão de
retratos nos quais despontam alguns jovens que só aparecem nesse momento. A sequência
se introduz com força de interrupção, abrindo um intervalo para a exposição de outros seres
que também povoam aquelas redondezas. Eles emergem compondo uma pose, com a
paragem de um movimento e a frontalidade do olhar dirigido para a câmera. Como na
sequência de exposição das casas no início, o espectador se vê diante de um momento em
que o curso da escritura sofre um desvio – sintomático que aqui ouvimos a mesma trilha
sonora da cena do início –, e essa pequena torção nos joga novamente para um ponto de
ultrapassagem, no qual se implica um coletivo. Não se trata de uma convocação em nome

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 13/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

de exemplaridade, mas de um esforço em trazer a pluralidade de seres que também tomam


parte nessas práticas espaciais focadas pelo filme.

Pois isso é um dos aspectos centrais nos modos de figurar os espaços, em A vizinhança
do tigre. O traçado que podemos fazer entre o singular e o plural não é da ordem de uma
generalização ou da eleição dos sujeitos exemplares de uma comunidade já pressuposta, já
formada de antemão, e registrada por um olhar exterior. Ao investigar a vida qualquer – e
aqui nos aproximamos de termos de Agambem (2013) –, a câmera não está tomando o
comum como uma realidade já dada, mas como um laço a se compor, justo na feitura da
vizinhança, no trabalho da montagem, na escuta das vozes, na expressão dos corpos, na
travessia pelos rostos, na emergência dos retratos e das casas habitadas por uma
multiplicidade de seres. A escritura da vizinhança solicita, de um lado, a aproximação do
mistério contido nos gestos de cada um, a partir da aposta nas potências de qualquer um
fazer cena , e de outro, se empenha em colocar heterogeneidades em relação, alteridades
que se tocam tanto pelo percurso de seus corpos pelas ruas, quanto pela deliberada
intervenção da montagem. O trabalho da imagem tem, assim, um papel fundamental na
cesura de uma vida em comum, de um viver em vizinhança.

Do avizinhamento

Caberia ainda perguntar: o que seria uma forma de vizinhança como procedimento de
relação? Insistíamos, no início, a respeito de uma visada para o gesto do avizinhamento, ou
de uma vizinhança da escritura, quando filme e filmado se constituem de tal modo em um
coengendramento, que seria possível dizer de uma intimidade do contato. Não pretendemos
aqui sobrevalorizar, ou tornar demasiado exemplar, a escritura de A vizinhança do tigre. De
fato, estamos diante de um problema que pode ser tomado nas investigações variadas a
respeito dos desafios do documentário, e poderíamos lembrar inúmeros avizinhamentos
entre quem filma e quem é filmado ao longo da história do cinema ou nas modulações

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 14/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

contemporâneas da forma do documentário, em filmes de Eduardo Coutinho, de Pedro


Costa e mesmo, em alguma medida, nos já referidos O céu sobre os ombros , de Sérgio
Borges, e Avenida Brasília Formosa , de Gabriel Mascaro. Como nos indica César
Guimarães (2008), o documentário pode instaurar uma estética da hospitalidade – e essa
ideia aqui parece ser muito cara ao processo do filme de Uchoa, especialmente se
cotejarmos as duas vizinhanças que nos interessam, a que se estabelece entre casas, ruas,
quintais, e aquela surgida entre as formas do filme e as formas do mundo.

O documentário nada tem de bélico nem de propaganda. Ele enseja


uma estética da hospitalidade (ao acolher a mise en scène do outro),
desenvolve a paciência de sua escuta e a atenção do olho inumano
da câmara para guardar, neste encontro entre o humano e a
máquina, os gestos e a voz do outro, sua resistência em ser
enquadrado, narrado, encenado (GUIMARÃES, 2008, p.260).

Mas a questão é que nem sempre o documentário consegue avizinhar-se tão


intimamente do outro. E por vezes, a distância pode mesmo ser uma escolha formal dos
realizadores, para atingir outros desafios engajados na singularidade de cada projeto. Nosso
esforço aqui, então, é indagar a respeito de como a mise-en-scène do outro fabrica, em A
vizinhança do tigre, uma experiência de proximidade que ressoa, sem dúvida, os desafios
da escritura documentária em geral, mas que também é bastante tributária de um
investimento singular do filme em uma dramaturgia dos corpos e em uma política da ficção
– esta também aqui se avizinhando intimamente das formas do real. Aqui o gesto da
ficcionalização adentra a escritura a partir das marcas de uma decupagem bastante rigorosa,
visível na materialidade fílmica, e do próprio processo do filme, pautado pela reencenação
a partir do universo vivido. Também as falas criam a marca de um esforço para elaborar
uma mise-en-scène compartilhada, já que as indicações básicas de roteiro eram logo
mudadas para abrir o filme à escuta de ritmos, de vozes e de modos de enunciação que se
integrassem mais aos corpos dos jovens filmados – e aqui não se trata tanto de conferir um
registro naturalista à interpretação, mas de uma dinâmica em que o ator cria o diálogo a
partir de uma experiência vivida, sem deixar também de entrar em um processo de

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 15/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

defasagem e diferença de si mesmo, nesse ato de invenção da própria vida diante da


máquina.

Há uma sequência que nos parece bastante emblemática para as estratégias de


encenação do filme. É o momento do duelo aos modos de um western, travado entre Junim
e Neguim. Esse confronto se torna bastante singular por dois aspectos que merecem
destaque: a aproximação sensual da câmera junto aos corpos dos seres filmados e o real de
violência que inevitavelmente se estende em volta desse duelo de brincadeira. No esquema
inicial de um plano e contraplano, os dois se apresentam no palco da disputa, corpos
filmados com a depurada preocupação em tornar visível também a relação com a paisagem
ao fundo. Figura e fundo traçam aqui constantes reenvios, na medida mesma em que o
próprio bairro adquire caráter de moldura para esses dois corpos em disputa, uma paisagem
como linha de fuga para o primeiro plano do conflito. Enquanto a câmera percorre os
corpos de modo bastante tátil, eles colocam em contenda a quantidade de marcas que
possuem na densidade da pele, como se fosse possível indicar, pelos rastros de uma bala ou
do corte de uma faca, a intensidade do que já experimentaram na vida. Vemos os detalhes
desses traços marcados nos corpos, dedos que apontam e toda uma memória que é fabulada
nesse jogo em que a pele vira um campo de disputa. A partir desse primeiro lance entre os
duelistas, quando os corpos ainda estão distanciados, os desafios vão se acumulando:
passamos de um jogo musical em que a palavra entra na cena do conflito até o efetivo
agarrar-se dos corpos e atirar-se ao chão, com improvisadas espadas de duelistas.

Ao longo da sequência, a marca da cena dissensual e, sobretudo, de um extracampo de


litígios vem também se precipitar para a imagem, como se um virtual território sensível de
conflitos existisse em contiguidade a esse outro que se abre no campo visual. Estamos
também diante de toda uma outra estratégia de convocar a presença do outro, de solicitar
parcelas de memória, sejam elas falsas ou verdadeiras, e sobretudo de disparar um
dispositivo de cena para que os gestos e as falas possam compor o trabalho da imaginação,

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 16/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

sempre rasgada pelo real. Ou poderíamos ainda dizer assim: ao imaginar um mundo de
duelo, proposto como brincadeira de desafio, e colocar a cena na chave de um desenho
dramatúrgico bastante rigoroso e tecido no espaço aberto entre câmera e corpo, A
vizinhança do tigre opera outra modalidade de contágio com o real, fendido pelo intervalo
de uma rotura estética. Eis aqui talvez algo daquele dissenso de que falava Rancière a
respeito do regime estético, o que instala o filme na paradoxal condição de se autonomizar
como arte, ao mesmo tempo em que mantém uma zona de indistinção com as formas de
vida da experiência ordinária.

O avizinhamento que está em jogo aqui tem, portanto, uma chave muito singular. Ele
não pode tanto ser atestado por uma imediata presença do realizador na cena ou pela
tentativa de verificar se há entre ele e os filmados uma maior ou menor relação de
intimidade. Mais do que um fenômeno de intersubjetividade, da criação de acordos
consensuais para a existência do filme ou de uma deferência populista diante da pobreza do
mundo do outro, avizinhar-se significa aqui uma aposta na potência de qualquer um
disparar seu modo de aparição e criar o espaço para uma cena de emancipação política
fundada pelo princípio de uma igualdade. “Nenhuma situação, nenhum sujeito é
‘preferível’. Tudo pode ser interessante, tudo pode suceder a não importa quem”, diz
Rancière (2011), a partir da literatura de Stendhal. Aqui a máquina mesma parece estar em
contato íntimo com os corpos, instaurando com eles uma comunidade sensível. A operação
poética coleta os detalhes do vivido e os transforma em uma realidade comum, partilhável.
Há um sofrimento social que circunda essas encenações e que vem aí contagiar o
dispositivo dramatúrgico do cinema. Estamos diante de uma forma de vizinhança
complexa, já que o desafio consiste na criação de uma cena política na qual as capacidades
de cada um, humanos e não humanos, pessoas e máquinas, filme e filmado, possam circular
em partilha e se afetar mutuamente.

E aqui talvez possamos voltar ao texto de Rancière (2012) a respeito da política de

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 17/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Pedro Costa, para trazer uma passagem na qual ele salienta justo alguns elementos
constituintes da arte política do cineasta:

A atenção a todas as formas de beleza que podem apresentar as


casas dos pobres ou a escuta de palavras às vezes banais e
repetitivas, no quarto de Vanda ou no apartamento novo onde a
encontramos desintoxicada, mais gorda e mãe de família, não
decorrem portanto do formalismo estético nem da deferência
populista. Inscrevem-se em uma política da arte. Essa política já
não é a que fazia espetáculo do estado do mundo para mostrar as
estruturas da dominação e mobilizar energia contra essa
dominação. Seus modelos são dados pela carta de amor de
Ventura/Desnos ou pela música dos pais de Leão: é uma arte em
que a forma se liga à construção de uma relação social e aciona
uma capacidade que pertence a todos. Não se trata do velho sonho
vanguardista de dissolver as formas da arte nas relações do mundo
novo. Trata-se de marcar a proximidade da arte com todas as
formas em que se afirma uma capacidade de compartilhar ou uma
capacidade partilhável (RANCIÈRE, 2012, pp. 157, 158).

Se não basta uma simpatia pelos explorados e esquecidos do presente para fazer uma
arte política, é porque não cabe tomar uma postura exterior ao mundo dos filmados e
delegar a eles uma fala, uma imagem, uma visibilidade que lhes chega de fora. Na
investigação de uma política da imagem, a forma emerge como qualidade sensível da
própria aparição daqueles que não tinham parte em uma divisão social configurada. Se o
cinema pode instaurar uma cena de igualdade, é quando ele se coloca à altura do mundo
sensível daqueles que formam uma multidão dos sem-parte. Pois não se trata de mostrar o
universo de Junim, Neguim, Menor, Eldo e Adilson como um lugar que precisaria de
socorro ou de reconhecimento em um campo já dado das representações sociais. Trata-se
muito mais de criar as condições de possibilidade para que essas vidas rasguem uma
superfície com seus afetos e desejos comuns, fraturados pela experiência do presente, pela
brincadeira que é jogo de espadas e disputa entre marcas de balas. Quando é a capacidade
de qualquer um que toma figura na cena, estamos diante de um desconcertante encontro
com a diferença de mundos ao nosso redor, com a heterogeneidade dos seres e dos modos
de viver. Se algo de um comum pode se formar dessas figuras inauditas em aparição, não se
trata de uma junção harmônica entre contrários nem de um apaziguador conforto para as

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 18/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

consciências, mas justo de uma fissura irreconciliável, de um sensível cindido em muitos


fragmentos. “O cinema tem de aceitar ser apenas a superfície na qual a experiência
daqueles que foram relegados à margem dos circuitos econômicos e das trajetórias sociais
procura cifrar-se em novas figuras” (RANCIÈRE, 2012, p.163).

Ao analisar o gesto de À margem da imagem (2003), de Evaldo Mocarzel, César


Guimarães (2008) problematiza uma operação de base desse documentário, que expõe o
processo de negociação e de pagamento dos depoimentos de moradores de rua,
protagonistas do filme, filmados no momento de cessão dos seus direitos de imagem.
Trata-se de um procedimento questionado por Guimarães, pelo fato de que uma tal relação
não pode ser comprada e deveria ser pautada por um regime de relação que extrapola o
objeto de um contrato (2008, p.271). Tal gesto se complica ainda mais na sequência em que
Mocarzel devolve o filme aos personagens filmados, quando os moradores de rua
reencontram-se com suas imagens em uma sala de cinema. É nesse instante que emergem
ainda mais algumas situações desiguais entre filme e filmado e também toda a precariedade
da aproximação tentada pelo documentário. Um dos personagens observa que se na
situação do filme, ele é reconhecido, fora dali, nem mesmo o realizador o reconheceria. “A
despeito das boas intenções do filme, os moradores de rua ainda permanecem fora da
imagem”, defende Guimarães (2008, p.272), que salienta a permanência de uma situação de
invisibilidade para esses personagens, não plenamente acolhidos pela mise-en-scène do
filme, “imobilizados na soleira, como se seu desejo não pudesse ser livremente posto em
jogo” (idem).

Ainda que nosso foco não seja o documentário de Mocarzel, interessa-nos essa crise
emblemática na qual o filme é colocado pela análise de Guimarães, sobretudo como
indicação da complexidade implicada em dois movimentos fundamentais para o cinema
documentário: o ato de captar a imagem do outro e o gesto de devolver essas mesmas
imagens aos que dela são parte constituinte. “Quais alianças podemos fazer com aqueles

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 19/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

que poderiam vir a ser nossos vizinhos e não apenas aqueles sobre quem recaem nossos
medos, nosso terror, nossa repulsa?”, indaga ainda Guimarães (2008, p.272). E poderíamos
aqui acrescentar: como tornar-se vizinho, sem fazer disso uma colonização da vida do
outro, sem que o desejo de identificação impeça o permanente jogo das diferenças?

E aqui é preciso salientar: avizinhar-se e tomar a igualdade como princípio da relação


não significa identificar-se e abafar a diferença, mas fraturar a desigualdade. É um mundo
desigual entre câmera e mundo, entre quem filma e quem é filmado que deve ser colocado
em crise. É quando a imagem e o sujeito a quem ela se destina, e a partir de quem ela surge,
continuam em mundos incomensuráveis, sem medida comum possível, que um problema
estético e político se faz urgente. A vizinhança do tigre não confunde a sensualidade da
câmera diante dos corpos filmados nem a atenção ao ritmo das falas de Junim e Neguim
como resolução de uma infinidade de litígios em torno do gesto de arrancar uma imagem
dessas existências. Não se trata de atingir uma pura transparência entre a máquina e a
complexa trama social na qual ela se insere. Mas a instauração de uma circulação
igualitária e democrática entre os corpos implicados na cena fílmica talvez seja caso de um
devir, naqueles termos que Deleuze (2011) vincula devir e zona de vizinhança, ao falar da
literatura e da vida.

Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimésis),


mas é encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de
indiferenciação, de maneira que já não nos podemos distinguir de
uma mulher, de um animal ou de uma molécula: e que não são nem
imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não-preexistentes, tanto
menos determinados numa forma quanto mais singularizados numa
população. Pode-se instaurar uma zona de vizinhança com qualquer
coisa, com a condição de que se criem os meios literários para isso
(DELEUZE, 2011, p.11).

Quando a ficção (se) avizinha

Em um livro recente sobre o que tem chamado de uma política da ficção, Rancière

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 20/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

(2014) fala de uma democracia literária fundada pela escritura do romance moderno,
sobretudo a partir de Flaubert, mas também se ramificando de forma mais radical nos que o
sucedem, como Joseph Conrad e Virginia Woolf. Sem nos alongarmos muito a esse
respeito, vale dizer que essa democracia da escritura diz respeito a um modo pelo qual uma
comunidade se desenha tomando a desidentificação como princípio. Em Flaubert, dirá
Rancière, há uma forte atenção ao detalhe, e todos os personagens circulam segundo uma
relação de coexistência sensível. Tem destaque aqui a capacidade de qualquer um fazer não
importa o quê , base para uma comunidade literária cujo cerne é a emancipação de uma
identidade (RANCIÈRE, 2014, pp. 32, 33). Em Virginia Woolf, a questão é como permitir
o contágio da escritura pelo halo luminoso que constitui a vida, por oposição à sucessão de
lanternas de carruagem dispostas em simetria. Disso e da própria literatura da autora,
Rancière vai retirar uma tensão constituinte, que oscila entre uma intriga a rondar o
romance e uma operação constante de divisão e multiplicação rumo às vidas anônimas, que
recebem por um tempo um nome e a possibilidade de uma história (RANCIÈRE, 2014, pp.
62, 63).

Essa discussão de Rancière nos interessa muito de perto, porque permite ver, pelos
próprios procedimentos da escritura, a conexão a um fora dela e a possibilidade de
emergência de uma comunidade, disparada pelo trabalho da ficção. Em outro ponto, sem se
referir especificamente a Flaubert, Conrad ou Woolf, mas à ficção de um modo mais
amplo, ele dirá a respeito de uma política do trabalho ficcional:

Eu localizaria, então, a política da ficção não do lado do que ela


representa, mas do lado do que ela opera: as situações que ela
constrói, as populações que ela convoca, as relações de inclusão e
exclusão que ela institui, as fronteiras que ela traça ou apaga entre a
percepção e a ação, entre os estados de coisas e os movimentos do
pensamento; as relações que ela estabelece ou suspende entre as
situações e suas significações, entre as coexistências ou sucessões
temporais e as cadeias da causalidade (RANCIÈRE, 2014, pp. 12,
13).

E aqui, poderíamos estabelecer uma conversação muito interessada com essa noção de

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 21/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

política da ficção, para falar do duplo trabalho da mise-en-scène e da montagem no cinema.


Parece-nos que, se a montagem possibilita uma coexistência sensível de heterogêneos, e a
cena opera mundos imaginados, na trama com a matéria do vivido, essa interligada maneira
de inventar blocos de espaço-tempo se investe de toda a potência de um trabalho ficcional
que fabrica territórios sensíveis, que escreve vizinhanças. A ficção irrompe da escritura, ao
forjar uma cena na qual a experiência estética emancipa os sujeitos das demarcações
policiais dos lugares, de uma suposição consensual daquilo que cabe ser dito, ouvido e
sentido. Ela se situa como prática democrática, porque abre um espaço dissensual no qual
as funções são postas em falso e a desidentificação torna-se o cerne dos procedimentos da
escritura. Essa ênfase naquilo que irrompe e é forjado a partir de uma política da ficção é o
que nos interessa muito concretamente ao apostar na ficção como constituinte de uma
vizinhança. A ficção se insere como trabalho que faz vizinhança, no mesmo movimento em
que ela se avizinha das formas do real. Do procedimento de aproximação do território, que
toma por base uma vizinhança na cena urbana, tentamos passar para um gesto avizinhante,
que aposta na coexistência sensível, e sempre dissensual também, daqueles que são
filmados e daqueles que filmam. Um jeito de filmar que possa formular uma política da
ficção se traça aqui, finalmente, em estratégia coengendrada a uma política da vizinhança.

Como pode, assim, a ficção ser solicitada pela escritura documentária para convocar
populações e mesmo contribuir para a invenção de um povo? Se tentamos aqui ampliar esse
halo luminoso que vem da escritura de A vizinhança do tigre rumo a uma consideração que
busca quase expandir a própria ideia de ficção, é porque estamos ainda também
atravessados pela força das imagens do filme e pelo seu dispositivo de indiscernibilidades,
do qual participa decisivamente esse trabalho da ficção. Ela não entra aqui para se opor ao
real, mas para tornar a escritura ainda mais aberta às capacidades inéditas das vidas
anônimas. Se a ficção (se) avizinha, ela o faz nessa dupla condição: como dobra sobre o
próprio filme, pela introdução de um certo modo de fazer que contamina outro – o
documentário atravessado pela dramaturgia depurada dos encontros – e como um gesto de

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 22/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

hospitalidade com as formas do mundo, solicitadas pela matéria fílmica para coabitarem o
espaço da cena.

É assim que se traça uma estratégia, tão provisória quanto precária, para fazer do
cinema uma arte vizinha daqueles que são jogados para as partes da sombra. Entre a guerra
e a diplomacia colonizadora, há uma infinidade de relações de vizinhança possíveis: eis a
provocação que seria interessante guardar para pensar o desafio de filmar uma vizinhança e
de filmar em vizinhança. Nem a ênfase na pura catástrofe que a tudo destrói nem o gesto
paternal e idealista que se reveste de boas intenções para colonizar a alteridade. Cabe
sempre, a cada caso, forjar estratégias políticas e estéticas para avizinhar-se e para
constituir a vizinhança.

Notas

[1] “Não basta que os povos sejam expostos em geral: é preciso ainda questionar em cada caso se a forma de tal
exposição – quadro, montagem, ritmo, narração, etc. – os fecha (quer dizer, os aliena e, no fim das contas, os expõe a
desaparecer) ou, antes, se os abre (os libera, ao expô-los a comparecer, gratificando-os assim de uma potência própria
de aparição)” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p.144).

Referências

AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

BRASIL, André; MESQUITA, Cláudia. O meio bebeu o fim, como o mata-borrão bebe a tinta: Notas sobre O céu
sobre os ombros e Avenida Brasília Formosa . In: BRANDÃO, Alessandra; JULIANO, Dilma; LIRA, Ramayana.
(Org.). Políticas dos cinemas latino-americanos contemporâneos. 1ed.Palhoça: Unisul, 2012.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Peuples exposés, peuples figurants. L’oeil de l’histoire, 4. Paris: Les Éditions de Minuit,
2012.

GUIMARÃES, César. O que é uma comunidade de cinema? Revista Eco-Pós: Dossiê Arte, Tecnologia e Mediação,
v.18, n.1, 2015.

_____________________. Vidas ordinárias, afetos comuns: o espaço urbano e seus personagens no documentário
. In: MARGATO, Isabel; GOMES, Renato Cordeiro (orgs.). Espécies de espaço. Territorialidades, literatura, mídia. Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 2008.

MIGLIORIN, Cezar. Escritas da cidade em Avenida Brasília Formosa e O céu sobre os ombros . Revista Eco-Pós

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 23/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3


Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

(Online), v. 14, p. 162-176, 2011.

MONDZAIN, Marie-José. Nada tudo qualquer coisa ou a arte das imagens como poder de transformação . IN:
SILVA, R. e NAZARÉ,L.(org) A República por vir. Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

ROCHA, Enrico. Vizinhança . In: Vocabulário político para processos estéticos. Rio de Janeiro, 2014. Disponível em:
http://vocabpol.cristinaribas.org/. Último acesso : 15 de fevereiro de 2016.

RANCIÈRE, Jacques. Aisthesis: Scènes du régime esthétique de l’art. Paris: Editions Galilée, 2011.

_______________________. As distâncias do cinema. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

_______________________. Le fil perdu: essais sur la fiction moderne. Paris: La Fabrique éditions, 2014.

Arquivo PDF gerado pela COMPÓS

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016

www.compos.org.br / page 24/24 / Nº Documento: D3F688AE-B639-499E-A860-B49719EE3EF3

Você também pode gostar