Quando o Cinema Se Faz Vizinho
Quando o Cinema Se Faz Vizinho
Quando o Cinema Se Faz Vizinho
Resumo: Este artigo se pergunta sobre algumas formas de vizinhança possíveis nas quais pode
se engajar o cinema na sua relação com os espaços e com os sujeitos filmados. Propomos duas
camadas coengendradas para tentar acessar esse problema. De um lado, levantamos uma
visada geográfica, que enfatiza os modos pelos quais a escritura fílmica constitui, por
mise-en-scène e montagem, a contiguidade das vidas, das casas, das ruas, dos espaços em cena.
De outro, estamos interessados em um gesto, que arriscamos chamar de avizinhamento, quando
essa vizinhança geográfica e esses sujeitos filmados interagem com a máquina cinema segundo
um modo de hospitalidade. Nosso objetivo é vincular essas questões a uma indagação mais
ampla, a respeito da possibilidade de os recursos expressivos da arte participarem da
instauração de uma vida em comum. Trata-se aqui de investigar os modos de ser da imagem no
filme A vizinhança do tigre (2014), de Affonso Uchoa, nessa dupla condição da vizinhança que
tentamos traçar.
Abstract: This paper aims to ask how the cinema can produce forms of neighborhood. This
concerns both the geographical aspect – the ways of filming the spaces and people who live in
these places – and the procedures of approaching – the gesture of hospitality between cinema
and lived experience. This discussion is attached to another question, about how the expressive
forms of art can participate in the creation of life in common. We investigate here, more
specifically, the imagens of the film A vizinhança do tigre (The Hidden Tiger, 2014), directed by
Affonso Uchoa.
Relações de vizinhança
Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho
de 2016
(2014), um conjunto de artistas e críticos de arte se reuniu para propor algumas breves
caracterizações de palavras importantes para seus trabalhos, além de alguns relatos em
torno de experiências estéticas. Valeria destacar aqui um dos momentos dessa publicação
com espécies de verbetes situados no entremear da estética com a política. A palavra
“Vizinhança” é assim descrita por Enrico Rocha:
Desde já, esse mote que Enrico Rocha nos traz é bastante instigante para pensarmos os
modos de compor uma vida em comunidade. E se essas variações de formas de vizinhança
são constitutivas do comum, é porque, nessa infinidade de relações, tornar-se vizinho diz
respeito a um desafio central para a experiência coletiva, para nossa experiência de todos os
dias. Uma vizinhança pode se constituir segundo diferentes maneiras. De imediato,
pensamos em um sentido bem cotidiano que essa palavra pode adquirir em nosso
vocabulário. Percorremos uma vizinhança, ao perambular pelas redondezas de parcelas
contíguas de uma cidade, ao desenvolver relações entre aqueles que moram por perto, ao
experimentar as possibilidades de circulação e de trocas que podem ser ou não viabilizadas
pela arquitetura das casas de uma mesma imediação. Estamos aqui, primeiramente, diante
de um enfoque geográfico, que concerne aos modos de fabricar territórios, de torná-los
moventes, relacionais e porosos. Essa vizinhança convoca, então, para uma cartografia.
Mas há ainda outra camada dessa mesma noção que vale ser destacada. É que existe
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Para indicar, mais claramente, o universo sensível que nos mobiliza a propor essa
discussão sobre relações, forças e formas de vizinhança, devemos dizer de nosso especial
interesse em articular essas proposições aos modos de ser e de fazer engendrados pela
escritura fílmica de A vizinhança do tigre (2014), de Affonso Uchoa. Essa investigação se
articula aqui a partir de uma dupla vontade: de um lado, o cuidado e o interesse em colocar
em relevo a singularidade da obra; de outro, o desejo de não considerar o trabalho do filme
como uma operação que lhe é absolutamente exclusiva, mas perceber nele também
ressonâncias, ainda que sempre permeadas por alguns intervalos e afastamentos.
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O movimento aqui tenta, então, partir do filme para investigar em que medida se pode
falar dessa vizinhança que se inscreve na imagem segundo um duplo movimento : uma
vizinhança da escritura e uma escritura da vizinhança. A vizinhança é, nesse sentido, um
objeto do filme – trata-se de observar, acompanhar e, ainda, inventar um território – e
também um gesto contido nesse trabalho – avizinhar-se para filmar. A geografia é assim
perscrutada no mesmo movimento em que é inventada pelo gesto da relação. Na vizinhança
entre quem filma e quem é filmado, e na “cumplicidade escritural entre cidade e filme”,
como já disse Comolli (2008, p.183) em seu conhecido texto A cidade filmada , vale se
perguntar sobre os modos possíveis de avizinhar-se do mundo e dos corpos dos outros e
sobre como uma vizinhança geográfica pode precipitar-se na cena fílmica, a partir de uma
tessitura relacional dos espaços e dos seres, por meio das mise-en-scènes e montagens
singulares tramadas a cada encontro.
Esse jogo é central para a experiência composta pelo filme de Affonso Uchoa. Junim,
Neguim, Menor, Eldo e Adilson são os personagens filmados em meio a suas circulações
pelo Bairro Nacional, em Contagem, Minas Gerais. Existe aí a composição de uma espécie
de constelação de fragmentos das vidas desses jovens. Os corpos se inscrevem na cena
fílmica a partir de uma decupagem rigorosa e de um procedimento de reencenações daquilo
que emerge da vida ordinária. Nesse movimento, a ficção é solicitada a penetrar
constantemente a tessitura do filme, convocada para a elaboração de uma dramaturgia que
tem por matéria a experiência vivida.
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indicadores dos créditos finais seja pelas entrevistas e debates dos quais Uchoa já
participou. A vizinhança do tigre foi filmado no período entre fevereiro de 2009 e
dezembro de 2013 e partia do desejo do realizador em construir um filme a partir do bairro
em que vivia. Se isso nos interessa aqui, não se trata de fazer desse dado uma afirmação
identitária para a experiência estética que surge, mas de pensar em termos de uma camada
de relação com um território sensível, um processo de aproximação permeado pela duração.
Nosso desafio será também indagar em que medida se precipita na cena essa relação de
avizinhamento. Dizendo de outro modo, cabe se perguntar como o filme dá forma a essa
trama processual vivida, a essa relação decantada longamente, a essa vizinhança que
implica corpos para um contato.
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A partilha de uma luz produzida pelos corpos dos povos, a decantação da fala dos sujeitos filmados, os
modos de instaurar coexistências na montagem ou de cindir as presenças por intervalos, as diferentes
modalidades de engajamento afetivo do espectador, eis alguns procedimentos que perpassam a
abordagem dessas formas de vizinhança. Como já destacou Didi-Huberman (2012), trata-se de pensar
um gesto que contrarie a exposição dos povos ao seu desparecimento, aos holofotes, às grandes luzes
do poder, e de pesquisar um modo de aparição dos sem-parte pela sua própria potência de emergência,
para que eles tomem figura, ocupem o quadro e instaurem uma inaudita visibilidade na cena[1]. Essa
constituição de vizinhanças tem uma relação estreita com uma pergunta a respeito dos procedimentos
pelos quais o cinema pode produzir modos de viver em comum (embora saibamos também que não
podemos tomar, imediatamente, por equivalentes as noções de vizinhança, comunidade e comum).
César Guimarães (2005) nos fala de comunidades de cinema justo como um modo de pensar esses
processos de aparição dos sem parcela na distribuição dos quinhões de uma cena política estabelecida.
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Da geografia
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Nesse jogo complexo entre cinema, território e experiências vividas, vamos nos
aproximando do bairro Nacional segundo chaves muito singulares de constituir imagem a
partir da periferia. Aspecto fundamental que parece estar em jogo na política de A
vizinhança do tigre : trata-se de inventar outros modos de filmar os espaços e as vidas
constantemente enquadrados segundo um jogo geral das identidades, seja quando essas
identidades reforçam as gestões que o capitalismo pretende articular, seja mesmo quando
elas fazem parte das estratégias daqueles que buscam afirmar possibilidades de resistência.
Nossa intenção aqui não é o caminho de opor os recursos expressivos desse filme aos
registros midiáticos consensuais, à televisão, aos modos de representação clássicos, enfim.
Não que esses tensionamentos sejam já superados, mas parece-nos que a escritura do filme
impõe uma complexidade maior a um problema que concerne às disputas pela possibilidade
de aparição sensível de subjetividades, em cidades atravessadas pela instauração de
partilhas que criam uma infinidade de sujeitos sem-parcela, para usar um termo de Rancière
(1996). A vizinhança do tigre coloca-se diante de um enfrentamento caro a inúmeros
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debates da política das imagens e mobiliza operações que nos lançam para um modo muito
particular de sentir os espaços, as casas e as ruas dos pobres, dos que são constantemente
colocados nas franjas das cidades. Em alguma medida, ao enfatizar que o embate é muito
mais complexo, estamos novamente muito próximos a Rancière (2012), quando emite uma
poderosa provocação, logo no início de um texto dedicado a filmes de Pedro Costa: “Uma
situação social não basta para fazer uma arte política, nem a evidente simpatia pelos
explorados e esquecidos” (2012, p.147). É, portanto, dentro de um debate em torno da
política da arte que tentamos situar esses gestos fílmicos aqui analisados. Guardemos isso,
então, para pensar como há no filme de Uchoa a instauração de uma vizinhança capaz de
complicar os modos de fazer e de sentir em uma cena política configurada.
Se apostamos em pensar o território que emerge dessa operação fílmica, estamos aqui
muito distantes de uma perspectiva estática e circunscrita a delimitações rígidas. O
território escrito pela cena e pela montagem de A vizinhança do tigre é marcado pelo
movimento do próprio gesto da cartografia, ele se modula segundo a dinâmica mesma de
sua aparição sensível na imagem. A questão não é constituir um mapa com limites claros a
partir da região pesquisada, não é esquadrinhar fronteiras ou estabelecer demarcações em
um terreno. Se falamos de uma cartografia como procedimento da escritura da vizinhança
nesse filme, é porque ele se investe da possibilidade de traçar um plano comum,
atravessado por coexistências e coabitações – entre os seres filmados, entre corpos e
paisagens, entre filme e filmado. A geografia sensível desse espaço é, assim, menos uma
extensão submetida a uma métrica do que um plano de composição marcado pelas
intensidades dos modos de habitar.
Parece-nos que o trabalho do filme de Uchoa tem ressonâncias com certo modo de ser
do sensível caracterizado por Rancière, em vários de seus textos, segundo a noção de um
regime estético das artes. Nosso interesse aqui não é fazer uma imediata correspondência
entre essa proposição teórica e as operações do filme que tomamos em nossa discussão. O
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Com todos os meandros que essas formulações nos impõem, vale tomar aqui esse nó
conceitual para aquilo que nos interessa: diríamos, já de volta ao filme de Uchoa, que
estamos diante de uma vizinhança eminentemente cinematográfica, que existe enquanto
cinema, forma heterogênea disparada pela montagem e pelo trabalho da cena, fulguração
conectiva singular, tramada na articulação de imagens e sons, de corpos e quadros, mas ao
mesmo tempo estamos diante também de uma experiência sensível que existe
absolutamente por conta do engendramento com as formas do mundo, com os modos de
viver nessa parcela de cidade e de performar modos de existência nesse território. Cena
sobre cena , como já disse Migliorin (2011), ao tratar de dois outros filmes brasileiros
sintomáticos de certo modo de ser sensível da cidade no cinema: Avenida Brasília Formosa
(Gabriel Mascaro, 2010) e O céu sobre os ombros (Sérgio Borges, 2011).
Vizinhança sobre vizinhança, vejamos um pouco mais de perto como isso se constitui
nas formas do filme. O trabalho da montagem é pautado pela constante articulação entre os
blocos conduzidos por cada um dos personagens. A cena fílmica é constantemente mediada
e introduzida pela presença dos sujeitos filmados. É, sobretudo, Junim que circula mais por
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Um plano no início do filme é um dos poucos momentos que nos oferecem uma visão
mais ampla do bairro. Esse instante vem logo após a primeira cena, quando Junim, deitado
no sofá de casa, lê uma carta para Cezinha, personagem que está preso e não chega a
aparecer durante o filme. Um corte nos joga para uma imagem mais escura, que vai
definindo suas formas aos poucos. Somos introduzidos a um progressivo amanhecer. A luz
vai se fazendo presente, revelando partes do céu, para depois um novo corte convocar uma
paisagem em que podem ser vistas, ao fundo, as casas da vizinhança. O plano é frontal e
um tanto distanciado, revelando não apenas as casas, mas também o entorno formado por
vegetação. É um dos raros instantes em que a escritura nos revela uma situação mais geral
desse lugar e nos localiza efetivamente em um espaço marcado pela contiguidade das casas,
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todas muito próximas, algumas pintadas, outras com tijolos à mostra. É como se o filme
também marcasse aí o próprio movimento de avizinhamento: ele chega a esse mundo por
um movimento de observação distanciado, em que não vemos mesmo nenhum sujeito. Só
progressivamente passa-se a fazer parte da fabricação coletiva de uma cena, dos meandros
desse universo que será habitado e inventado. Arriscaríamos mesmo a dizer que se trata aí
também de um procedimento dramatúrgico bastante marcado, que anuncia uma espécie de
cenário de um percurso – ou nesse caso, de vários percursos, de vários exercícios para
elaborar mundos imaginados.
Nesses trajetos, não se alinhava, então, nenhum conjunto orgânico, ainda que tenhamos
ideia de uma moldura que situa esse mundo de experiências. O território como
representação total vai assim se desfazendo no gesto de cadenciar os micro-acontecimentos
cotidianos, espalhados como que numa “chuva de átomos”, para retomar uma expressão de
Virginia Woolf que se torna central para algumas reflexões de Rancière (2014) em torno da
ficção moderna. A escritura trabalha, então, na tensão entre uma dispersão de pequenos
instantes de experimentação do espaço e as fagulhas de uma intriga rondando o destino de
Junim. Como efeito de composição da vizinhança, cada fragmento torna-se intensidade em
uma montagem por constelações. Nesse gesto conectivo, imbricam-se dentro e fora, casa e
rua, e mais amplamente, singularidade e comunidade. Paradigmático disso é o momento em
que saltamos do quarto escuro em que Junim fuma um cigarro para uma sucessão de
retratos nos quais despontam alguns jovens que só aparecem nesse momento. A sequência
se introduz com força de interrupção, abrindo um intervalo para a exposição de outros seres
que também povoam aquelas redondezas. Eles emergem compondo uma pose, com a
paragem de um movimento e a frontalidade do olhar dirigido para a câmera. Como na
sequência de exposição das casas no início, o espectador se vê diante de um momento em
que o curso da escritura sofre um desvio – sintomático que aqui ouvimos a mesma trilha
sonora da cena do início –, e essa pequena torção nos joga novamente para um ponto de
ultrapassagem, no qual se implica um coletivo. Não se trata de uma convocação em nome
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Pois isso é um dos aspectos centrais nos modos de figurar os espaços, em A vizinhança
do tigre. O traçado que podemos fazer entre o singular e o plural não é da ordem de uma
generalização ou da eleição dos sujeitos exemplares de uma comunidade já pressuposta, já
formada de antemão, e registrada por um olhar exterior. Ao investigar a vida qualquer – e
aqui nos aproximamos de termos de Agambem (2013) –, a câmera não está tomando o
comum como uma realidade já dada, mas como um laço a se compor, justo na feitura da
vizinhança, no trabalho da montagem, na escuta das vozes, na expressão dos corpos, na
travessia pelos rostos, na emergência dos retratos e das casas habitadas por uma
multiplicidade de seres. A escritura da vizinhança solicita, de um lado, a aproximação do
mistério contido nos gestos de cada um, a partir da aposta nas potências de qualquer um
fazer cena , e de outro, se empenha em colocar heterogeneidades em relação, alteridades
que se tocam tanto pelo percurso de seus corpos pelas ruas, quanto pela deliberada
intervenção da montagem. O trabalho da imagem tem, assim, um papel fundamental na
cesura de uma vida em comum, de um viver em vizinhança.
Do avizinhamento
Caberia ainda perguntar: o que seria uma forma de vizinhança como procedimento de
relação? Insistíamos, no início, a respeito de uma visada para o gesto do avizinhamento, ou
de uma vizinhança da escritura, quando filme e filmado se constituem de tal modo em um
coengendramento, que seria possível dizer de uma intimidade do contato. Não pretendemos
aqui sobrevalorizar, ou tornar demasiado exemplar, a escritura de A vizinhança do tigre. De
fato, estamos diante de um problema que pode ser tomado nas investigações variadas a
respeito dos desafios do documentário, e poderíamos lembrar inúmeros avizinhamentos
entre quem filma e quem é filmado ao longo da história do cinema ou nas modulações
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sempre rasgada pelo real. Ou poderíamos ainda dizer assim: ao imaginar um mundo de
duelo, proposto como brincadeira de desafio, e colocar a cena na chave de um desenho
dramatúrgico bastante rigoroso e tecido no espaço aberto entre câmera e corpo, A
vizinhança do tigre opera outra modalidade de contágio com o real, fendido pelo intervalo
de uma rotura estética. Eis aqui talvez algo daquele dissenso de que falava Rancière a
respeito do regime estético, o que instala o filme na paradoxal condição de se autonomizar
como arte, ao mesmo tempo em que mantém uma zona de indistinção com as formas de
vida da experiência ordinária.
O avizinhamento que está em jogo aqui tem, portanto, uma chave muito singular. Ele
não pode tanto ser atestado por uma imediata presença do realizador na cena ou pela
tentativa de verificar se há entre ele e os filmados uma maior ou menor relação de
intimidade. Mais do que um fenômeno de intersubjetividade, da criação de acordos
consensuais para a existência do filme ou de uma deferência populista diante da pobreza do
mundo do outro, avizinhar-se significa aqui uma aposta na potência de qualquer um
disparar seu modo de aparição e criar o espaço para uma cena de emancipação política
fundada pelo princípio de uma igualdade. “Nenhuma situação, nenhum sujeito é
‘preferível’. Tudo pode ser interessante, tudo pode suceder a não importa quem”, diz
Rancière (2011), a partir da literatura de Stendhal. Aqui a máquina mesma parece estar em
contato íntimo com os corpos, instaurando com eles uma comunidade sensível. A operação
poética coleta os detalhes do vivido e os transforma em uma realidade comum, partilhável.
Há um sofrimento social que circunda essas encenações e que vem aí contagiar o
dispositivo dramatúrgico do cinema. Estamos diante de uma forma de vizinhança
complexa, já que o desafio consiste na criação de uma cena política na qual as capacidades
de cada um, humanos e não humanos, pessoas e máquinas, filme e filmado, possam circular
em partilha e se afetar mutuamente.
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Pedro Costa, para trazer uma passagem na qual ele salienta justo alguns elementos
constituintes da arte política do cineasta:
Se não basta uma simpatia pelos explorados e esquecidos do presente para fazer uma
arte política, é porque não cabe tomar uma postura exterior ao mundo dos filmados e
delegar a eles uma fala, uma imagem, uma visibilidade que lhes chega de fora. Na
investigação de uma política da imagem, a forma emerge como qualidade sensível da
própria aparição daqueles que não tinham parte em uma divisão social configurada. Se o
cinema pode instaurar uma cena de igualdade, é quando ele se coloca à altura do mundo
sensível daqueles que formam uma multidão dos sem-parte. Pois não se trata de mostrar o
universo de Junim, Neguim, Menor, Eldo e Adilson como um lugar que precisaria de
socorro ou de reconhecimento em um campo já dado das representações sociais. Trata-se
muito mais de criar as condições de possibilidade para que essas vidas rasguem uma
superfície com seus afetos e desejos comuns, fraturados pela experiência do presente, pela
brincadeira que é jogo de espadas e disputa entre marcas de balas. Quando é a capacidade
de qualquer um que toma figura na cena, estamos diante de um desconcertante encontro
com a diferença de mundos ao nosso redor, com a heterogeneidade dos seres e dos modos
de viver. Se algo de um comum pode se formar dessas figuras inauditas em aparição, não se
trata de uma junção harmônica entre contrários nem de um apaziguador conforto para as
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Ainda que nosso foco não seja o documentário de Mocarzel, interessa-nos essa crise
emblemática na qual o filme é colocado pela análise de Guimarães, sobretudo como
indicação da complexidade implicada em dois movimentos fundamentais para o cinema
documentário: o ato de captar a imagem do outro e o gesto de devolver essas mesmas
imagens aos que dela são parte constituinte. “Quais alianças podemos fazer com aqueles
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que poderiam vir a ser nossos vizinhos e não apenas aqueles sobre quem recaem nossos
medos, nosso terror, nossa repulsa?”, indaga ainda Guimarães (2008, p.272). E poderíamos
aqui acrescentar: como tornar-se vizinho, sem fazer disso uma colonização da vida do
outro, sem que o desejo de identificação impeça o permanente jogo das diferenças?
Em um livro recente sobre o que tem chamado de uma política da ficção, Rancière
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(2014) fala de uma democracia literária fundada pela escritura do romance moderno,
sobretudo a partir de Flaubert, mas também se ramificando de forma mais radical nos que o
sucedem, como Joseph Conrad e Virginia Woolf. Sem nos alongarmos muito a esse
respeito, vale dizer que essa democracia da escritura diz respeito a um modo pelo qual uma
comunidade se desenha tomando a desidentificação como princípio. Em Flaubert, dirá
Rancière, há uma forte atenção ao detalhe, e todos os personagens circulam segundo uma
relação de coexistência sensível. Tem destaque aqui a capacidade de qualquer um fazer não
importa o quê , base para uma comunidade literária cujo cerne é a emancipação de uma
identidade (RANCIÈRE, 2014, pp. 32, 33). Em Virginia Woolf, a questão é como permitir
o contágio da escritura pelo halo luminoso que constitui a vida, por oposição à sucessão de
lanternas de carruagem dispostas em simetria. Disso e da própria literatura da autora,
Rancière vai retirar uma tensão constituinte, que oscila entre uma intriga a rondar o
romance e uma operação constante de divisão e multiplicação rumo às vidas anônimas, que
recebem por um tempo um nome e a possibilidade de uma história (RANCIÈRE, 2014, pp.
62, 63).
Essa discussão de Rancière nos interessa muito de perto, porque permite ver, pelos
próprios procedimentos da escritura, a conexão a um fora dela e a possibilidade de
emergência de uma comunidade, disparada pelo trabalho da ficção. Em outro ponto, sem se
referir especificamente a Flaubert, Conrad ou Woolf, mas à ficção de um modo mais
amplo, ele dirá a respeito de uma política do trabalho ficcional:
E aqui, poderíamos estabelecer uma conversação muito interessada com essa noção de
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Como pode, assim, a ficção ser solicitada pela escritura documentária para convocar
populações e mesmo contribuir para a invenção de um povo? Se tentamos aqui ampliar esse
halo luminoso que vem da escritura de A vizinhança do tigre rumo a uma consideração que
busca quase expandir a própria ideia de ficção, é porque estamos ainda também
atravessados pela força das imagens do filme e pelo seu dispositivo de indiscernibilidades,
do qual participa decisivamente esse trabalho da ficção. Ela não entra aqui para se opor ao
real, mas para tornar a escritura ainda mais aberta às capacidades inéditas das vidas
anônimas. Se a ficção (se) avizinha, ela o faz nessa dupla condição: como dobra sobre o
próprio filme, pela introdução de um certo modo de fazer que contamina outro – o
documentário atravessado pela dramaturgia depurada dos encontros – e como um gesto de
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hospitalidade com as formas do mundo, solicitadas pela matéria fílmica para coabitarem o
espaço da cena.
É assim que se traça uma estratégia, tão provisória quanto precária, para fazer do
cinema uma arte vizinha daqueles que são jogados para as partes da sombra. Entre a guerra
e a diplomacia colonizadora, há uma infinidade de relações de vizinhança possíveis: eis a
provocação que seria interessante guardar para pensar o desafio de filmar uma vizinhança e
de filmar em vizinhança. Nem a ênfase na pura catástrofe que a tudo destrói nem o gesto
paternal e idealista que se reveste de boas intenções para colonizar a alteridade. Cabe
sempre, a cada caso, forjar estratégias políticas e estéticas para avizinhar-se e para
constituir a vizinhança.
Notas
[1] “Não basta que os povos sejam expostos em geral: é preciso ainda questionar em cada caso se a forma de tal
exposição – quadro, montagem, ritmo, narração, etc. – os fecha (quer dizer, os aliena e, no fim das contas, os expõe a
desaparecer) ou, antes, se os abre (os libera, ao expô-los a comparecer, gratificando-os assim de uma potência própria
de aparição)” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p.144).
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