Amaranta. Sobreviver Com As Imagens.

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Sobreviver com as imagens:

o documentário, a vida e os
modos de vida em risco

Amaranta Cesar
Professora adjunta da UFRB, onde coordena o Grupo de Estudos e Práticas em
Documentário e o Festival de Documentários de Cachoeira – CachoeiraDoc

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 10, N. 2, P. 12-23, JUL/DEZ 2013


Resumo: Através da análise de Corumbiara (Vincent Carelli, 2009) e de Pi’õnhitsi,
Mulheres Xavante sem nome (Divino Tserewahú e Tiago Campos Tôrres, 2009), o
presente artigo pretende refletir sobre o que acontece com o documentário quando
ele nasce de um confronto com a vida ou um modo de vida em risco. À pergunta
formulada por Marie-José Mondzain – “pode a imagem matar?” – sobrepõe-se outra:
“o que e em que medida pode a imagem salvar”?
Palavras-chave: Documentário. Vídeo nas Aldeias. Cultura.

Abstract: By analyzing the documentaries Corumbiara (Vincent Carelli, 2009) and


Pi’õnhitsi, Mulheres Xavante sem nome (Divino Tserewahú e Tiago Campos Tôrres,
2009), this study intends to examine what happens to documentary film when it is
confronted with a threatened life or culture. If Marie-José Mondzain asks “can the
image kill?”, this paper aims to pose the opposite question: “what – and in which
extent – can the image save”?
Keywords: Documentary film. Vídeo nas Aldeias. Culture.

Resumé: À travers l’analyse de Corumbiara (Vincent Carelli, 2009) and Pi’õnhitsi,


Mulheres Xavante sem nome (Divino Tserewahú e Tiago Campos Tôrres, 2009), cet
article met en place une réflexion sur la façon dont le documentaire se confronte à la
vie ou à un mode de vie menacés. À la question formulée par Marie-José Mondzain
– “l’image peut-elle tuer?” – on juxtapose une autre: “qu’est-ce que, et dans quelle
mesure, l’image peut-elle sauver”?
Mots-clefs: Cinéma documentaire. Vídeo nas Aldeias. Culture.

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L’image, pas plus que l’histoire, ne ressuscite rien de
tout. Mais elle “rédime”: elle sauve un savoir, elle récite
malgré tout.
Georges Didi-Huberman

Porque é um registro que nunca morre. Memória viva,


que dura para sempre. Você vai falando como se estivesse
vivo. É isso que eles acham importante: não deixar a
coisa acontecer na aldeia sem registro. Sempre precisam
da presença da câmera. E isso é muito bom para mim:
sem mim não há comunidade. Eu sou um dos principais
da comunidade.
Divino Tserewahú

Como há muito já se constatou, uma das dimensões


fundamentais da imagem cinematográfica é o seu aspecto
referencial, que permite sua atuação contra o desaparecimento,
no tempo, dos gestos e movimentos do mundo. Em alguma
medida, pode-se afirmar que a dimensão referencial das imagens
está no cerne das ações proliferadas das câmeras no mundo
atual. No entanto, não é possível perder de vista que, hoje, mais
do que registrar, as câmeras passaram também a constituir os
acontecimentos. Uma imagem, enquanto ação, parece atuar no
mundo contemporâneo não apenas para salvaguardar os seus
movimentos, fazendo-os resistir ao tempo, mas para garantir-lhes
mesmo a existência ou a sobrevivência. Neste artigo, através da
análise de dois filmes produzidos no contexto do Projeto Vídeo
nas Aldeias, pretende-se abordar a maneira como as imagens
articulam, em si mesmas, resistências e atuam no mundo como
um impulso de sobrevivência. Trata-se, pois, de refletir sobre o
que acontece ao documentário quando ele nasce de um confronto
com a vida ou um modo de vida em risco. À pergunta formulada
por Marie-José Mondzain (2002) – “pode a imagem matar?”
– sobrepõe-se outra: “o que e em que medida pode a imagem
salvar?”.
Abordarei as considerações sobre a provocadora pergunta
de Mondzain posteriormente. Comecemos, assim, tentando
responder à questão inversa, analisando algumas imagens

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produzidas para agirem como instrumento de salvamento,
imagens feitas para funcionar como garantia de vida, a partir
da crença na atuação jurídica de seu caráter referencial. São
imagens de Corumbiara (2009), filme de Vincent Carelli, em que
se expõe o confronto do documentário, e do documentarista, com
o sobrevivente. Em 1986, mesmo ano em que fez seu primeiro
vídeo para o projeto Vídeo nas Aldeias, Vincent Carelli recebeu
o convite de Marcelo Santos, indigenista da Funai, para filmar
os vestígios de um massacre de índios na gleba Corumbiara,
no sul de Rondônia. Para Vincent, era a chance de dar ao vídeo
uma “função de militância”, como ele afirma. E, para Marcelo,
era “a última chance de registrar as evidências do massacre que
iriam desaparecer a qualquer momento”, também segundo suas
palavras. Desse primeiro impulso, evidentemente alicerçado no
reconhecimento do valor jurídico do caráter referencial da imagem
audiovisual, até a finalização de um documentário, passaram-se
20 anos. O que se conta em Corumbiara é justamente a trajetória
que vai do registro ao filme, passando pela crise da fé na imagem e
pela consciência do fracasso judicial. No âmago do filme estão dois
momentos em que Vincent experimenta e ao mesmo tempo registra
o primeiro contato com índios isolados sobreviventes do massacre.
O primeiro deles é o contato com dois reminiscentes Canoé:
uma aproximação de dupla via, efetivada pelo toque mútuo nos
corpos, que a câmera registra com discrição. O contato parece ser
conduzido por ambos os lados, a equipe da Funai e os dois índios
que visivelmente compartilham o desejo de diálogo. A mulher
Canoé fala muito e com eloquência, o que leva Vincent a interpretar
como uma denúncia aquilo que, tempos depois, se descobriu ser
apenas a narração da chegada da equipe e do contato. “Assim como
ela tinha observado nossos passos, eles estavam acompanhando o
movimento das fazendas, pegando plásticos, sacos de estopa para
fazerem seus colares e suas bermudas”, conta Vincent, explicando
como, refugiados entre fazendas, espreitando os vizinhos que os
ameaçavam, os Canoé adaptaram-se às condições dos conflitos
territoriais, recolhendo elementos das fazendas. As imagens do
contato com os índios isolados são divulgadas internacionalmente
pela Reuters e ganham ampla repercussão na região quando são
exibidas em matéria no Fantástico. Diante das imagens que provam
a existência dos índios, a Justiça Federal decreta a demarcação da
área, mas o advogado dos fazendeiros, Dr. Flauzino, contesta. Em
conversa com Vincent, ignorando o fato de ser ele o autor daquelas

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imagens, o advogado questiona a sua veracidade: “como que você
vai acreditar que um índio daquele nunca teve contato, um índio de
roupa, vestido de colar de plástico (...), quem vai acreditar numa
história dessas?!” Posteriormente, os fazendeiros, deputados e seus
advogados montam o que Vincent chama de “verdadeira operação”
para deslegitimar a descoberta da equipe comandada por Marcelo
Santos. Eles vestem os índios e produzem novas imagens que
ilustram matéria difamatória publicada no jornal do O Estado de
São Paulo. O jogo de crença, descrença e farsa que se instala em
torno dessas imagens dos Canoé sobreviventes, além da epifania
a respeito da historicidade do índio e da exposição do imaginário
perverso em torno de sua autenticidade, dizem do caráter precário
das imagens em si mesmas. Quando se espera dela a evidência, a
prova, a imagem aparece em sua ambiguidade, necessariamente
instalada em um campo de forças heterogêneas que ela não é capaz
de apaziguar. Há aqui um domínio de disputas pela imagem – e pelo
imaginário – que é extensivo ao conflito territorial. Em um primeiro
momento, esse confronto, ocupado no seu centro pela necessidade
de construção e reconstrução de olhares, parece ter motivado
Vincent a abandonar o projeto de documentário e se dedicar, com
ainda mais afinco, a evidenciar “a verdade” para punir os culpados
pelos massacres. E ele persiste em seus registros, lançando mão de
procedimentos diversos, até se deparar com outro sobrevivente, o
chamado “índio do buraco”. É esse encontro e a tentativa frustrada
de registrá-lo que determina, definitivamente, a virada reflexiva
que, 20 anos depois, tornou possível Corumbiara, o documentário,
afastando o filme do propósito inicial do seu diretor.
Analisando a cena da tentativa de contato com o índio
do buraco, tensionada, de um lado, pela câmera e, de outro, pela
flecha, Clarisse Alvarenga observa:

Diferentemente de todos os demais contatos com índios


isolados que são filmados em Corumbiara (2009), o encontro
com o índio do buraco se destaca pela radicalidade dos gestos
de parte a parte: alguém que decide filmar a todo custo versus
alguém que não cede ao contato. (ALVARENGA, 2013: 120)

A experiência de filmar o índio do buraco coloca o realizador


em risco e instala a crise. Diante do incômodo sentido pela sua
insistência e agressividade em garantir uma imagem do “índio

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do buraco”, Vincent diz ter pensado: “que filhos de uma puta
a gente é”, tentando elaborar a complexidade das contradições
das posições em jogo. Enquanto o índio do buraco se esmera em
apagar seus rastros, inventando artifícios que camuflam seu corpo
no espaço, a equipe da Funai e Vincent perseguem “evidências”
e “vestígios”, perturbando-o na sua tarefa de existir. Para o índio,
sobreviver significa permanecer invisível; para Vincent, para a
Justiça, para a Funai, ao contrário, sua existência depende da
visibilidade. “O índio só passará a existir se conseguirmos uma
imagem dele: índio que ninguém viu é boato”, afirma Vincent. O
“índio do buraco” está lá, existe, mas continua sendo um mistério.
O filme é obrigado a lidar com a invisibilidade e a opacidade do
índio, entendidas como gesto de resistência (resistência também
ao filme), e com o fracasso do registro como produtor de evidências
e reparador social. Da tensão que preenche o espaço entre a
câmera e a flecha emerge, então, a atitude reflexiva que termina
sendo a forma encontrada para que o filme exista. Para Clarisse
Alvarenga, Vincent Carelli cria, com sua narração, “um fato para a
câmera ao dizer que o índio reagiu mais fortemente a ele pelo fato
dele estar com a câmera” (ALVARENGA, 2013: 125), e parece,
assim, querer “garantir à câmera o lugar que lhe foi tirado”. É
provável que ela tenha razão. Efetivamente, a narração auto-
reflexiva assume no filme a função de tentar encontrar um lugar
para a câmera, um sentido para a experiência de filmar os índios
sobreviventes e para as imagens produzidas. O que nos interessa
observar, no entanto, não é a justeza desses sentidos e do lugar
que Vincent encontrou para si mesmo, mas o modo como esse
gesto explicita a ambivalência fundadora de qualquer imagem, da
qual depende o entendimento de sua atuação política. A narração
dá às imagens o acompanhamento de um primeiro texto, para
que elas possam ser compreendidas, menos pelos significados
produzidos em relação a um referente do que pelo ato mesmo que
as tornou possíveis. Trata-se, pois, de um gesto de montagem, na
acepção de Georges Didi-Huberman (2003). Em um determinado
momento do filme, Vincent reconhece que a questão deixa de ser
“provar ou não provar” e passa a ser, em suas palavras, “contar a
história”. A possibilidade de transformar essa experiência de mais
de uma década em história parece estar vinculada à possibilidade
de, pela montagem, retirar a imagem de um impasse entre o
simulacro e a prova: ou ela não mostra nada ou ela mostra tudo.
Como afirma Georges Didi-Huberman, “as imagens não oferecem

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nunca tudo à vista; melhor, elas sabem mostrar a ausência a
partir do nem-tudo à vista que elas nos propõem constantemente”
(2003: 156). Assim, o lugar da imagem na (H)história – e sua
capacidade de salvamento – parece se articular com o fora de
campo das vozes, textos e falas do qual depende sua visibilidade.
É o que, de algum modo, defende também Marie-José Mondzain
(2012), para quem a imagem, enquanto tal, não mostra nada; sua
natureza é constituída pela espera do olhar. A imagem, ela afirma,
só atinge sua visibilidade na relação que se instaura entre quem a
produz e quem a vê; seus sentidos são tecidos, portanto, no lugar
invisível da alteridade dos olhares. Por isso, para Mondzain, se há
no regime das visualidades algo que mata ou violenta, isto seria o
apagamento da ausência, da distância, do lugar da alteridade do
olhar e do sujeito de fala, que é invisível mas inerente à imagem.
Segundo ela, a história de Narciso “nos fala de um reflexo que
mata”. A história de Medusa e Teseu nos dizem a mesma coisa:
“a imagem nos olha e pode nos engolir”. A violência está, assim,
nos dispositivos de crença e fabricação que são fundados na
identificação. O que salva é sempre a produção de uma diferença,
de um afastamento libertador: “viver, curar é afastar-se de toda
fusão” (MONDZAIN, 2012: 29).
Para Mondzain, perguntar se uma imagem pode matar
diz respeito a uma interrogação sobre “o elo entre o que vemos e o
que fazemos” e, de certa maneira, “sobre o carácter performativo
da imagem, com a diferença de peso que não perguntamos o que
a imagem faz mas o que ela faz fazer” (MONDZAIN, 2012: 20).
Quando nos perguntamos, em relação aos filmes do Vídeo nas
Aldeias, em que medida uma imagem pode salvar, salvar pelo
menos um saber, indagamos também a força performativa da
imagem e sua capacidade de fazer acontecer – nesse caso, fazer
ressurgir uma festa, um ritual. No cerne do dispositivo audiovisual
construído pelo projeto coordenado por Vincent Carelli está
não apenas a produção de imagens de registro mas também o
visionamento dessas imagens, que provocam outras imagens e,
simultaneamente, as ações a serem por elas registradas – como
podemos observar na sequência inicial de Corumbiara, em que
o cineasta conta a primeira experiência do projeto com os índios
Nambiquara que deu origem ao filme Festa da moça (1987): “Esse
jogo de espelho ia gerando um entusiasmo e, com a possibilidade
de se ver na telinha, os Nambiquara começam a delirar e a

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gente com eles. Eles, então, (...) furam o nariz de trinta jovens
numa cerimônia que não se realizava há vinte anos”. A força
do dispositivo criado – filmar, mostrar, filmar novamente – e do
que Vincent chama de “jogo de espelho” está, pois, na origem do
projeto.
Como poderia uma imagem salvar, sendo ela baseada no
que Vincent chama de “jogo de espelho”? Estaria aqui em causa
um princípio de identificação, que é, para Mondzain, justamente
onde pode residir a violência do regime das visualidades? A
análise de uma das raras produções do Vídeo nas Aldeias que
fracassa na sua proposição de retomar e registrar o ritual pode nos
ajudar a enfrentar essas questões. Trata-se de Pi’õnhitsi, Mulheres
Xavante sem nome (2009), filme realizado em colaboração entre
o cineasta Xavante Divino Tserewahú, que tem no seu currículo
alguns filmes premiados sobre rituais tradicionais Xavante, e
Tiago Campos Tôrres, que dirige filmes e ministra oficinas no
Projeto Vídeo nas Aldeias. Pi’õnhitsi, Mulheres Xavante sem nome
narra o caminho tortuoso trilhado por Divino, durante oito anos,
para fazer o filme sobre o ritual de nomeação das mulheres
Xavante, praticado unicamente em Sangradouro, uma das
centenas de aldeias Xavante do Brasil. Desde que resolveu fazer
um filme sobre o tema, em 2001, todas as tentativas de realização
da festa foram interrompidas graças a uma sucessão de acidentes,
envolvendo doenças e óbitos, conforme nos conta Divino no filme.
Mas o percurso da narrativa revela também outro impedimento:
são as relações sexuais que acontecem fora do casamento durante
os quatro meses de ritual que suscitam a resistência dos jovens e
parecem atravancar a realização da festa. Diante da dificuldade,
o filme passa a incorporar este debate, que tem como pano de
fundo a história de evangelização da aldeia situada numa missão
salesiana. A montagem nos conduz alternando os debates em
que se negocia a realização do ritual às entrevistas com jovens e
velhos da comunidade e às conversas entre Divino e Tiago na ilha
de edição. Ao passo que vamos compreendendo as dificuldades
dos jovens em realizar a festa nem sempre condizente com
a perspectiva tradicional dos mais velhos, vamos também
acompanhando o processo de elaboração da relação do próprio
Divino com o ritual. Na frente do computador, na sequência que
figura como o ato reflexivo de montar o filme, Divino revela
para Tiago que ele mesmo foi concebido numa relação entre seu

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tio e sua mãe durante o ritual que lhe deu um nome Xavante.
A maneira como Divino vai tecendo uma compreensão da sua
própria história, revelando as complexidades dos sentimentos que
nutre em relação a ela, é exemplar dos dilemas enfrentados pelos
Xavante de Sangradouro, situados entre a defesa da tradição e a
evangelização que, contraditoriamente, os salvou do extermínio.
São esses dados que tornam também complexa a produção de
filmes nesse contexto, como se pode perceber pelas declarações
de Vincent Carelli, que assina o roteiro do filme, em parceria com
Divino e Tiago:

O nosso desafio era conseguir mostrar as transformações e


contradições geradas na comunidade a partir do contato.
Uma coisa é o segredo do ritual, outra é o segredo do mundo
cotidiano, da realidade contemporânea. Porque existe um
conflito entre aquilo que se vive e o que se deseja mostrar nos
filmes. Embora isso ocorra também em outras comunidades,
nos Xavantes isso é latente. A câmera é vista como um
instrumento de registro da “cultura”, capaz de trazer de volta
o mundo idealizado da tradição. Desde o início, o interesse
dos Xavante voltou-se para a documentação de suas festas de
iniciação, rituais estruturantes de sua sociedade. (CARELLI,
2010: 65)

Nesse sentido, é interessante notar em uma sequência


fundamental do filme a maneira como os registros feitos em
1967, pelo missionário Adalbert Heide, são exibidos na praça e
os efeitos que eles têm sobre os índios. Sentados no centro da
aldeia, em cadeiras reunidas sobre o chão de terra e em frente
à tela improvisada, homens mais velhos assistem às imagens
realizadas há 40 anos pelo missionário alemão, que guarda vasto
acervo de imagens dos Xavante de Sangradouro e que divide
com Divino o protagonismo do filme mais recente realizado na
região, o premiado documentário dirigido por Tiago Campos,
O mestre e o Divino (2013). As imagens, filmadas em película,
mostram em planos abertos longas sequências do ritual. Os velhos
se reconhecem, reconhecem os parentes, avaliam os gestos,
examinam a tradição e ensaiam com os olhos a sua retomada.
A exibição das imagens de arquivo constituem o processo do
filme e são exibidas para provocar um tipo de engajamento muito
particular, capaz de gerar matéria para o filme que se realiza:
a imagem de arquivo deve engendrar uma ação, e é para isso

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que ela é mostrada no centro da aldeia. Se a imagem parece ser
convocada pelo seu caráter referencial – filma-se para guardar
e lembrar –, não se pode deixar de considerar o seu caráter
performativo; trata-se de uma imagem que atua como força ativa
no mundo – filma-se para fazer, faz-se para filmar. Conforme o
esperado, as imagens do missionário agem no desejo de atuação
dos mais velhos. A imagem do passado deve, assim, articular-se
com o presente na materialidade dos corpos: ela não simplesmente
aciona uma memória, ela precisa operar uma passagem corporal
entre os tempos. Acontece que essa passagem não se realiza
aqui, ao contrário do que acontece em muitos filmes produzidos
pelo Vídeo nas Aldeais, a exemplo de Festa da moça (Vincent
Carelli, 1987) e Hiper mulheres (Takumã Kuikuro, Carlos Fausto
e Leonardo Sette, 2011). Mulheres Xavante sem nome parece
explicitar que entre a imagem e a retomada do gesto registrado
nela há um espaço de negociação, de mediação, que é um espaço
de fala. É nesse sentido que é possível falar aqui de salvamento
e não de violência, porque, como afirma Marie-José Mondzain
(MONDZAIN, 2002: 56), “o visível não mata no campo de uma
fala sempre ativa. (...) O que é violento é a manipulação dos corpos
reduzidos ao silêncio do pensamento fora de toda alteridade”.
A possibilidade de atuação política da imagem sustenta-se pela
palavra dada pelo prazer de ver que é ofertado nela – na imagem.
Mas o que exatamente está em jogo em Pi’õnhitsi,
Mulheres Xavante sem nome se o ritual não ressurge, não volta
do passado? O que acontece quando, diferentemente do que se
vê em um filme como Hiper Mulheres, a tradição não é, digamos
assim, salva? A retomada e a reencenação da tradição, pelo e com
o documentário, parecem estar vinculadas a uma atitude reflexiva
diante da cultura que corresponde ao que Manuela Carneiro da
Cunha chama de “cultura com aspas”. Segundo ela, “vários povos
estão mais do que nunca celebrando sua ‘cultura’ e utilizando-a
com sucesso para obter reparação por danos políticos” (CUNHA,
2009: 313). Um filme como Mulheres Xavante sem nome
explicita outra dimensão dessa dinâmica, menos explorada e
talvez até menos desejada pelos próprios cineastas. Não se trata
de salvar um saber tradicional e celebrar a “cultura”, mas de
ativar a percepção histórica, fazer vibrar uma história. Interessa
mostrar que a diferença, que demarca o território, é negociada
permanentemente e é atravessada por forças antagônicas e

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heterogêneas. O que se pode notar em Mulheres Xavante sem nome
é o documentário atuando como força catalizadora da História,
e não somente da memória. E isto se dá não apenas quando a
demanda referencial não pode ser satisfeita, porque o ritual já não
acontece mais, mas também quando a dimensão performativa da
imagem falha, ou seja, quando o documentário enquanto ação
na comunidade não é capaz de provocar a retomada do ritual.
Mas não é só isso: por um lado, o filme torna muito claro que o
documentário na aldeia engaja e é resultado do destino político
que se dá, na comunidade, à paixão ofertada pelas imagens; por
outro lado, a presença do documentário, enquanto prática, na
aldeia, instala a imagem num lugar essencialmente político. Se a
imagem salva é porque, no fora de campo da fala, ela passa a ser
um dos elementos articuladores da comunidade em si mesma.

REFERÊNCIAS

ALVARENGA, Clarisse. A câmera e a flecha em Corumbiara.


Devires, Belo Horizonte, v. 9, n. 1, p. 118-127, Jan/Jun 2012.
CARVALHO, Ana; CARVALHO, Ernesto de; e CARELLI, Vincent
(Org). Vídeo nas aldeias: 25 anos. Olinda: Editora Vídeo nas
Aldeias, 2010.
CESAR, Amaranta. Tradição (re)encenada: o documentário e o
chamado da diferença. Devires, Belo Horizonte, v. 9, n. 1, p.
86-97, Jan/Jun 2012.
CUNHA, Manuela Carneiro. Cultura com aspas. São Paulo: Cosac
Naify, 2009.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout. Paris: Les
Editions de Minuit, 2003.
MONDZAIN, Marie-José. L’image, peut-elle tuer?. Paris: Bayard
Éditions, 2002.

Data do recebimento:
26 de março de 2014

Data da aceitação:
24 de junho de 2014

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