Instituicoes Financeiras Oficiais e Responsabilidade

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Instituições financeiras oficiais e

responsabilidade pela prática de ato


de improbidade administrativa

Flávio Pereira da Costa Matias

Procurador da República em Jequié-BA. Pós-graduado em


Direito do Estado pela Fundação da Faculdade de Direito
da Universidade Federal da Bahia (2011). Pós-graduando
em Sistemas de Justiça Criminal pela Escola Superior do
Ministério Público da União (ESMPU). Portador do Diplôme
d’Etudes Universitaires Françaises pela Université Jean Moulin –
Lyon III.

Resumo: O artigo inicia tratando do conceito de sujeito ativo


e passivo do ato de improbidade administrativa. Posteriormente,
conceituam-se as modalidades de transferências voluntária e legal e
a relação de ambas com a aplicação vinculada de recursos, na qual
políticas públicas são eleitas como prioritárias antes de o repasse dos
recursos correspondentes serem encaminhados ao gestor legal. Em
seguida, abordam-se os Decretos n. 6.170/2007 e n. 7.507/2011 e
o papel que eles atribuem às instituições financeiras oficiais. Ao
final, discute-se a possibilidade de as instituições financeiras ofi-
ciais, notadamente o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal,
pessoas jurídicas que integram a Administração Pública indireta,
responderem por ato de improbidade administrativa.

Palavras-chave: Improbidade administrativa. Decretos n.


6.170/2007 e n. 7.507/2011. Instituições financeiras oficiais. Res-
ponsabilidade por ato de improbidade.

Résumé: L’article commence pour traiter le concept de sujet actif


et passif de l’acte qui porte atteinte à la probité publique. Après,
les modalités de transferts volontaires et légales des ressources
sont conceptualisés, et bien les liaisons de l’un et l’autre avec la
destination des ressources spécialisés, dans laquelle des politiques
publiques sont élues comme prioritaires. Ensuite, l’article analise les
Décrets 6.170/2007 e 7.507/2011 et le rôle qu’ils apportent sur les

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institutions financières publiques. Finalement, il est mis en cause la
possibilité des institutions financières publiques, surtout la Banque
du Brésil et la Caisse Economique Fédérale, personnes morales qui
font parties de la sphère publique, être responsables pour la pratique
des actes d’atteinte à probité.

Mots clés: Atteinte à probité. Décrets 6.170/2007 e 7.507/2011.


Institutions financières publiques. Responsabilité pour porter
atteinte à probité.

Sumário: 1 Introdução. 2 Sujeitos dos atos de improbidade admi-


nistrativa. 3 Transferências voluntárias e legais e destinação vin-
culada dos recursos. 4 Os Decretos n. 6.170/2007 e n. 7.507/2011
como instrumentos de prevenção ao desvio de recursos públicos.
5 As instituições financeiras oficiais como sujeitos ativos de impro-
bidade. 6 Conclusão.

1 Introdução
Nos últimos anos, vêm-se discutindo no Brasil, com frequên-
cia cada vez maior, os malefícios do fenômeno da corrupção. Para
além da corrupção “de varejo” que historicamente acomete o ser-
viço público, em especial prefeituras, onde, aliados a um cliente-
lismo característico, o controle e a fiscalização são bastante precários,
investigações e julgamentos de envergadura nacional – a exemplo da
Ação Penal n. 470 do Supremo Tribunal Federal (caso Mensalão) e
da Operação Lava Jato (capitaneada pela força-tarefa do Ministério
Público Federal em Curitiba) – têm-se destacado na imprensa e atra-
ído a atenção de toda a sociedade, colocando na ordem do dia causas,
efeitos e meios de prevenção e repressão à corrupção.
Novas leis surgiram recentemente, sempre batalhando contra o
tempo para alcançar a evolução social, no intuito de dar uma resposta
aos reclames por menos corrupção em nosso País e atender aos diver-
sos compromissos internacionais assumidos regional e globalmente.
Dois exemplos refletem o progresso legislativo do combate
à corrupção (e também à criminalidade organizada): a Lei n.
12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção, a qual, entre

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outras medidas, instituiu a responsabilidade objetiva da pessoa jurí-
dica que for beneficiada por atos de corrupção; e a Lei n. 12.850/2013,
a nova Lei do Crime Organizado, que previu diversos meios de
obtenção de prova passíveis de utilização no combate à corrupção,
valendo registrar, por todos, a festejada colaboração premiada, cuja
regulamentação anterior era excessivamente tímida e esparsa.
Entretanto, os recentes textos legais que subsidiam o combate
à corrupção, longe de suplantar a normatização precedente, acres-
centaram ou reformularam institutos jurídicos para tão árdua bata-
lha, somando esforços e, ao mesmo tempo, influenciando a leitura
de ferramentas preexistentes.
É nessa perspectiva que a Lei de Improbidade Administrativa,
a Lei n. 8.429/1992, a despeito de já vir sendo aplicada com fami-
liaridade pelos profissionais do Direito – não sem ocasionais percal-
ços, pontue-se –, pode ser objeto de novas leituras e interpretações
que confiram maior eficácia ao seu duplo intento: reprimir e, con-
sequentemente, prevenir a corrupção.
Uma dessas possíveis releituras da Lei de Improbidade
Administrativa é o que se propõe mostrar neste breve artigo.

2 Sujeitos dos atos de improbidade administrativa


A promulgação da Lei n. 8.492/1992 constituiu um marco no
combate à corrupção.
Elaborada com a finalidade de regulamentar o § 4º do
art. 37 da Constituição Federal de 1988, a Lei de Improbidade
Administrativa avançou tanto na seara daqueles atingidos por suas
sanções como nos atos reputados ímprobos, cujo rol, dos arts. 9º a
11, possui caráter meramente exemplificativo.
Antes de sua entrada em vigor, a prática de atos ímprobos
podia ser sancionada extrapenalmente com amparo nas Leis n.
3.164/1957 e n. 3.502/1958, respectivamente conhecidas como Lei
Pitombo-Godói Ilha e Lei Bilac Pinto. Ambas, porém, pecavam,
entre outros motivos, por somente se aplicarem a servidores públi-

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cos, isentando de responsabilidade os particulares (pessoas naturais e
jurídicas) que eventualmente tivessem tomado partido na prática de
atos ímprobos1. Além disso, durante as décadas em que vigoraram,
tiveram pouquíssima aplicação prática (Fazzio Júnior, 2007, p. 52).
Por isso, elastecendo o âmbito de responsabilização subjetiva
devido ao cometimento de atos ímprobos2, a Lei de Improbidade
Administrativa (LIA) estabeleceu, no art. 3º, a possibilidade de o
terceiro, isto é, o extraneus, sofrer as sanções nela impostas, e não
apenas o servidor público, cujo (amplo) delineamento constou no
art. 2º da LIA3.

1 Lei n. 3.164/1957 - “Art. 1º São sujeitos a sequestro e à sua perda em favor da


Fazenda Pública os bens adquiridos pelo servidor público, por influência ou abuso
de cargo ou função pública, ou de emprêgo em entidade autárquica, sem prejuízo
da responsabilidade criminal em que tenha aquêle incorrido.”
Lei n. 3.502/1958 - “Art. 1º O servidor público, ou o dirigente, ou o empregado de
autarquia que, por influência ou abuso de cargo ou função, se beneficiar de enrique-
cimento ilícito ficará sujeito ao seqüestro e perda dos respectivos bens ou valores.

§ 1ºA expressão servidor público compreende todas as pessoas que exercem na


União, nos Estados, nos Territórios, no Distrito Federal e nos municípios, quais-
quer cargos funções ou empregos, civis ou militares, quer sejam eletivos quer de
nomeação ou contrato, nos órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário.
§ 2ºEquipara-se ao dirigente ou empregado de autarquia, para os fins da presente
lei, o dirigente ou empregado de sociedade de economia mista, de fundação ins-
tituída pelo Poder Público, de emprêsa incorporada ao patrimônio público, ou de
entidade que receba e aplique contribuições parafiscais.”

2 É importante salientar que as leis Pitombo-Godói Ilha e Bilac Pinto destinavam-se


a responsabilizar extrapenalmente, com várias limitações, os atos hoje denominados
de “ímprobos” e tratados na Lei n. 8.429/1992, que, a propósito, ab-rogou expres-
samente aqueles dois diplomas legislativos.

3 Há várias polêmicas sobre a possibilidade de terceiro submeter-se às sanções de


improbidade, como a possibilidade de ele, terceiro, ser demandado isoladamente ou
ter de forçosamente ser demandado em litisconsórcio passivo com agente público; o
gestor de entidade do terceiro setor subvencionada com recursos públicos poder ou
não responder por atos em tese ímprobos praticados em detrimento da própria enti-
dade etc. Tais questões extrapolam o presente estudo e demonstram como, passadas
mais de duas décadas, a aplicação da LIA ainda possui pontos controversos.

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O sujeito passivo, isto é, o titular do bem jurídico violado pelo
agente ou terceiro ímprobos, também está delimitado na Lei n.
8.429/1992, mais especificamente no art. 1º e parágrafo único4-5. Em
síntese, os atos de improbidade voltam-se contra o Poder Público
em sentido amplo (entes federativos, sua administração indireta e
respectivos órgãos), além de entidades subvencionadas ou custeadas,
posto que parcialmente, com recursos públicos.
Na verdade, a identificação do sujeito passivo deve preceder
à própria análise da condição do agente, pois somente serão con-
siderados atos de improbidade, para os fins da Lei n. 8.429/1992,
aqueles praticados em detrimento dos sujeitos elencados no art. 1º
e parágrafo único dessa lei (Garcia; Pacheco, 2013, p. 285).
Dito isso, infere-se que a Lei de Improbidade Administrativa
buscou e, apesar dos obstáculos, logrou se impor no Direito brasi-
leiro como uma norma de natureza cível dotada de instrumentos
idôneos para sancionar um amplo leque de perpetradores de con-
dutas ímprobas, sejam agentes públicos, sejam terceiros (extraneus).
Os entes públicos, em regra, na qualidade de titulares do bem
jurídico violado por intermédio do ato de improbidade, são os
sujeitos passivos, as vítimas diretas das condutas perpetradas pela
pessoa natural (agente público ou extraneus) ou pessoa jurídica
(geralmente sociedade empresária).
A aplicação das sanções da LIA, por outro lado, volta-se tanto
a pessoas naturais – agentes públicos ou não – como a pessoas jurí-
dicas, a exemplo da clássica hipótese de sociedade empresária em
favor da qual é efetuado pagamento sem a correspondente execu-
ção da obra (pagamento por obra não executada), em desacordo

4 Também aqui – sujeição passiva dos atos de improbidade – pululam discordâncias


na literatura e jurisprudência, sobre as quais igualmente não nos deteremos.

5 Rigorosamente, a proteção do patrimônio público e a observância dos princípios da


Administração Pública pelos agentes públicos, isto é, o direito a ter uma Adminis-
tração Pública proba e honesta, é um direito difuso, consoante bem apontado por
Pedro Roberto Decoiman (2007, p. 27).

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com as normas de direito financeiro (especificamente os arts. 62 e
63 da Lei n. 4.320/1964). É pacífica a jurisprudência no particular,
inclusive no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, tribunal res-
ponsável pela uniformização da interpretação do direito federal, o
qual já teve a oportunidade de decidir que “[...] as pessoas jurídicas
que participem ou se beneficiem dos atos de improbidade sujeitam-
-se à Lei 8.429/1992”6.
Não resta dúvida, assim, de que a pessoa jurídica, enquanto
terceiro (visto que uma pessoa jurídica jamais ostentará a condi-
ção de agente público, somente atribuível a pessoa humana), pode
responder pela prática de ato de improbidade para o qual tenha
concorrido, sofrendo as sanções do art. 12 da Lei n. 8.429/1992
compatíveis com sua estrutura7.
Esse pressuposto, de responsabilização das pessoas jurídicas
por ato de improbidade administrativa, é que ampara o entendi-
mento defendido mais adiante.

3 Transferências voluntárias e legais


e destinação vinculada dos recursos
A Lei Complementar n. 101/2000, intitulada Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF), conceitua transferência voluntária,
no art. 25, caput, como “[...] a entrega de recursos correntes ou de
capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio
ou assistência financeira, que não decorra de determinação consti-
tucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde”.
As transferências legais, por sua vez, podem ser conceituadas
– acolhendo lição do Tribunal de Contas da União – como aque-
las que “são regulamentadas em leis específicas que disciplinam os

6 STJ REsp n. 1122177/MT, rel. min. Herman Benjamin, 2ª T., j. em 3.8.2010, DJe
27 abr. 2011.

7 Obviamente, uma pessoa jurídica condenada por ato de improbidade não terá os
direitos políticos suspensos nem decretada a perda do cargo ou função pública.

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critérios de habilitação, forma de transferência, formas de aplica-
ção dos recursos e prestação de contas” (Tribunal de Contas da
União, 2005, p. 47). A LRF fala sobre as transferências legais no
art. 8º, parágrafo único.
Além do marcante fato de fundamentarem o repasse de recur-
sos públicos de um ente para outro, seja com base num convênio
ou similar, seja por força de lei, as transferências voluntárias e legais
são dotadas de outra característica inerente a ambas: a imposição
de que os recursos repassados sejam aplicados exclusivamente na
destinação predeterminada, isto é, a finalidade estabelecida no ins-
trumento da transferência voluntária ou na lei.
Com efeito, nesse sentido dispõem acerca da aplicação dos
recursos oriundos de transferências voluntárias e de transferências
legais, respectivamente, os arts. 25, § 2º, e 8º, parágrafo único, da
Lei de Responsabilidade Fiscal, a seguir transcritos:

Lei Complementar n. 101/2000


Art. 25. Para efeito desta Lei Complementar, entende-se por trans-
ferência voluntária a entrega de recursos correntes ou de capital a
outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assis-
tência financeira, que não decorra de determinação constitucional,
legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde.
§ 2º É vedada a utilização de recursos transferidos em finalidade
diversa da pactuada.
Art. 8º, parágrafo único. Os recursos legalmente vinculados a fina-
lidade específica serão utilizados exclusivamente para atender ao
objeto de sua vinculação, ainda que em exercício diverso daquele
em que ocorrer o ingresso.

Fica claro que a aplicação das verbas oriundas de transferências


voluntárias e legais tem natureza vinculada, sendo imperativa a
observância da destinação previamente estipulada, seja no ato que
gerou a transferência, seja na lei. A razão para tal exigência reside
no princípio democrático.

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A transferência voluntária pressupõe que o ente repassador
(na esfera federal, a União ou entidade a si vinculada), cuja dire-
ção decorre de governo democrática e legitimamente eleito, esteja
implantando política pública que será contemplada com os recursos
a serem transferidos. Um exemplo corriqueiro é a celebração de
convênio firmado entre o Fundo Nacional de Desenvolvimento
da Educação (FNDE) e município para aquisição de veículo no
âmbito do programa Caminho da Escola.
Na transferência legal, semelhantemente, a lei adotada pelo
Congresso Nacional e promulgada pela Presidência da República,
órgãos políticos eleitos democraticamente, estabelece que um dado
programa ou uma determinada despesa é necessária para a implan-
tação de política pública reputada prioritária – entre tantas outras
de que o Brasil é carente – pelo legislador.
Nas duas (transferência voluntária e transferência legal) sobres-
sai o desejo de órgãos federais democraticamente eleitos de priorizar
uma política pública escolhida como mais relevante em detrimento
de outra, ainda que também importante. A decisão política de como
gastar a despesa é feita antecipadamente, no lugar de ser deixada a
cargo do Poder Público local, tornando a execução do recurso um
ato vinculado, sem espaço para discricionariedade ou casuísmos.
Em relação especificamente às transferências voluntárias
(convênios e similares), a Instrução Normativa da Secretaria do
Tesouro Nacional n. 1/1997 (IN STN n. 1/1997) estabelece que
os recursos repassados do órgão concedente (aquele que transfere
os recursos, como regra a União ou autarquia federal) para o con-
venente (estados ou municípios8) devem ser mantidos em conta
bancária específica (art. 20), o que deve constar expressamente do
termo do convênio (art. 7º, XIX). A ratio dessa norma é fazer com
que o dinheiro repassado ao convenente, cuja aplicação – não custa
repetir – deve obedecer rigorosamente ao que consta do instru-
mento, não se misture com outros recursos do convenente – no
caso de município, com os recursos do Fundo de Participação dos

8 Por opção do autor, será enfatizado o município enquanto recebedor de recursos.

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Municípios (FPM), folha de pagamento etc. –, além de permi-
tir uma fiscalização mais eficiente, ao obrigar a identificação dos
beneficiários de movimentações financeiras da conta específica9.
A prática, todavia, mostra que parte considerável dos gesto-
res municipais faz tábula rasa desses dispositivos e aplica recursos
oriundos de transferências voluntárias e legais – com destinação
vinculada ao objeto previsto no instrumento contratual ou na lei –
de maneira irregular, com desvio de finalidade.
Os exemplos são incontáveis e pululam nas unidades do
Ministério Público Brasil afora. Seguem dois casos corriqueiros de
desvio desses recursos.
O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação
Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) é
um fundo destinado à educação básica do País e constituído com
recursos de todos os entes da federação (União, estados, Distrito
Federal e municípios). O Fundeb sucedeu ao Fundef, foi criado
pela Emenda Constitucional n. 53/2006, está previsto no art. 60
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) e é
regulamentado em nível legal pela Lei n. 11.494/200710-11.
A prática mostra que, não raro, o dinheiro do Fundeb é uti-
lizado com despesas que não têm nenhuma relação com educação,
geralmente após ser transferido para outra conta bancária do pró-

9 A movimentação bancária de uma conta como a do FPM, por exemplo, torna bastante
dificultosa, quando não impossível, a missão de identificar todos os beneficiários de
recursos daquela conta, ainda que dentro de lapso temporal reduzido.

10 Também convém registrar a Lei n. 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educa-


ção), cujo art. 70 traz as hipóteses de despesas que se consideram de manutenção e
desenvolvimento do ensino, nas quais parcela do recurso do Fundeb (até 40%) pode
ser empregada.

11 Apesar de, em rigor, o Fundeb ter origem constitucional, sua regulamentação em


nível infraconstitucional aproxima sua aplicação ao regime das transferências legais,
de que é exemplo, no setor da educação, o Programa Nacional de Apoio ao Trans-
porte Escolar (Pnate).

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prio município (conta do FPM, folha de pagamento, ICMS-25%
etc.). No mês de dezembro de 2012, último do mandato dos pre-
feitos que foram eleitos em 2008, porém não foram reeleitos em
2012, aconteceu um mesmo fenômeno em inúmeros municípios
baianos (e certamente de outros estados): os recursos do Fundeb
foram recebidos normalmente, inclusive acrescidos da parcela cor-
respondente ao 13º salário, mas foram desviados para outras contas
da prefeitura, e os professores não receberam suas remunerações. A
mistura do dinheiro do Fundeb na conta geral da prefeitura (nor-
malmente a do FPM, com maior volume de recursos) dificulta a
identificação de onde aquele dinheiro foi aplicado12.
A mesma situação ocorre com transferências voluntárias:
dinheiro de convênios é transferido para contas diversas da prefei-
tura, não mais se conseguindo, em regra, identificar onde foi utili-
zado nem com quais tipos de despesas. Outras vezes, com o intuito
deliberado de se apropriar de recursos públicos, o gestor, antes de
sacar em espécie a quantia (o que por si só não se admite, senão
excepcionalmente, de acordo com o art. 74, § 2º, do Decreto-
-Lei n. 200/1967), transfere-a da conta específica do convênio para
outra conta do município, certamente na crença de que assim ficará
mais difícil aos órgãos de controle constatar o fato13.
Foi o que ocorreu no município de Gongogi, elencado pela
Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) no IFDM14

12 No caso, incidirá o art. 10 da Lei de Improbidade Administrativa.

13 Essa observação, aliás, foi consignada pelo Tribunal de Contas da União no rela-
tório do Acórdão n. 7909/2014 – 1ª Câmara, nos seguintes termos: “A partir da
transferência dos recursos da conta do convênio para contas da prefeitura, torna-se
impossível acompanhar a movimentação financeira do convênio. Portanto, se é
certo que os recursos repassados entraram nos cofres da prefeitura, sendo transferi-
dos para outras contas movimento, a partir da qual eram feitos quase todos os paga-
mentos da entidade, não há qualquer indício seguro sobre qual o destino que lhes
foi dado. Não há, então, como presumir que tenham sido utilizados em benefício
do município, nem como afastar acima de qualquer dúvida a possibilidade de desvio
ou locupletamento do gestor municipal.”

14 “O IFDM – Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal – é um estudo do Sis-


tema Firjan que acompanha anualmente o desenvolvimento socioeconômico de

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como o município mais precário da Bahia15. Em março de 2012, o
prefeito (reeleito e atualmente no exercício do segundo mandato)
e a então tesoureira desviaram pouco mais de R$ 100.000,00 da
conta específica de um convênio celebrado com o FNDE, objeti-
vando a construção de uma creche, para a conta do FPM do muni-
cípio, e em seguida efetuaram três saques contrarrecibo, exata-
mente na mesma quantia. Eis uma inusual situação em que se pôde
atestar com clareza a apropriação de recursos públicos.
Esses dois exemplos de fatos recentemente ocorridos não
retratam um cenário isolado. Ao contrário, o descumprimento
generalizado da IN STN n. 1/1997 e do DL n. 200/1967 foi sis-
temático ao longo da história da gestão pública brasileira. Por essa
razão, no Acórdão n. 2.066/2006-Plenário, o Tribunal de Contas
da União determinou ao Ministério do Planejamento, Orçamento
e Gestão

[…] que, para possibilitar a transparência que deve ser dada às ações
públicas, como forma de viabilizar o controle social e a bem do prin-
cípio da publicidade insculpido no art. 37 da Constituição Federal
de 1988 c/c o art. 5º, inciso XXXIII, da mesma Carta Magna,
no prazo de 180 (cento e oitenta dias), apresente a este Tribunal
estudo técnico para implementação de sistema de informática em
plataforma web que permita o acompanhamento on-line de todos os
convênios e outros instrumentos jurídicos utilizados para transferir
recursos federais a outros órgãos/entidades, entes federados e enti-
dades do setor privado, que possa ser acessado por qualquer cidadão
via rede mundial de computadores, contendo informações relativas
aos instrumentos celebrados [...].

todos os mais de 5 mil municípios brasileiros em três áreas de atuação: Emprego &
renda, Educação e Saúde. Criado em 2008, ele é feito, exclusivamente, com base em
estatísticas públicas oficiais, disponibilizadas pelos ministérios do Trabalho, Edu-
cação e Saúde.” Disponível em: <http://www.firjan.com.br/ifdm/>. Acesso em:
19 fev. 2016.

15 Para maiores detalhes, v. <http://www.prba.mpf.mp.br/mpf-noticias/diccor/


mpf-ba-prefeito-e-ex-tesoureira-de-gongogi-ba-tem-mais-de-meio-milhao-de-
-reais-em-bens-bloqueados-e-sao-acionados-por-improbidade>.

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O Acórdão n. 2.066/2006 do TCU está na origem da cria-
ção do Sistema de Convênio do Governo Federal (Siconv) e,
para o que nos interessa, do Decreto n. 6.170/200716, objeto do
próximo item.

4 Os Decretos n. 6.170/2007 e n. 7.507/2011


como instrumentos de prevenção ao
desvio de recursos públicos
Foi explicado que a Lei de Responsabilidade Fiscal determina
que os recursos oriundos de transferências voluntárias e legais
sejam aplicados na destinação vinculada previamente eleita (arts.
25, § 1º, e 8º, parágrafo único), e que, mesmo antes da entrada em
vigor dessa lei complementar, a IN STN n. 1/1997 já preconizava
que os recursos de transferências voluntárias deviam ser mantidos
em conta bancária específica17 (art. 20).
Isso não impediu, como visto, que o TCU apontasse a fragili-
dade do sistema de controle da aplicação do dinheiro repassado pela
União e seus entes descentralizados no Acórdão n. 2.066/2006, em
que constou a determinação para se realizarem estudos técnicos a
fim de aprimorar a transparência e o controle social no gasto de
tais recursos.

16 Assim disse o TCU no Relatório do Acórdão n. 2465/2012, p. 5: “[...] A origem do


Siconv está no Decreto 6.170/2007, ao prever, no art. 13, que a celebração, a libe-
ração de recursos, o acompanhamento da execução e a prestação de contas de con-
vênios seriam registradas no sistema. A própria edição do Decreto 6.170/2007, em
substituição à Instrução Normativa da STN 01/1997, foi fomentada pelo TCU ao
determinar, no Acórdão 2.066/2006-Plenário, que o MP realizasse estudos técni-
cos para a implementação de sistema de informática em plataforma web que permi-
tisse o acompanhamento on-line de todos os convênios, no qual constasse o objeto,
plano de trabalho, custos, cronogramas etc”. Disponível em: <www.tcu.gov.br/
consultas/juris/docs/judoc/acord/20120917/ac_2465_36_12_p.doc>. Acesso em:
fev. 2016.

17 A IN STN n. 1/2004 foi mais além e alterou o art. 20 da IN STN n. 1/1997 com o
fito de reforçar a identificação do destinatário do dinheiro público.

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Assim, em 25 de julho de 2007, veio a lume o Decreto n.
6.170, cujo art. 10 dispõe:
Art. 10. As transferências financeiras para órgãos públicos e entida-
des públicas e privadas, decorrentes da celebração de convênios e
contratos de repasse, serão feitas exclusivamente por intermédio de
instituição financeira oficial, federal ou estadual, que poderá atuar
como mandatária da União para execução e fiscalização. (Redação
dada pelo Decreto nº 8.244, de 2014)18

§ 1º Os pagamentos à conta de recursos recebidos da União, pre-


visto no caput, estão sujeitos à identificação do beneficiário final e à
obrigatoriedade de depósito em sua conta bancária.
§ 2º Excepcionalmente, mediante mecanismo que permita a iden-
tificação, pelo banco, do beneficiário do pagamento, poderão ser
realizados pagamentos a beneficiários finais pessoas físicas que não
possuam conta bancária, observados os limites fixados na forma do
art. 18.
§ 3º Toda movimentação de recursos de que trata este artigo, por
parte dos convenentes, executores e instituições financeiras autori-
zadas, será realizada observando-se os seguintes preceitos:
I - movimentação mediante conta bancária específica para cada ins-
trumento de transferência (convênio ou contrato de repasse);
[...].

O propósito do art. 10 do Decreto n. 6.170/2007 foi límpido:


fazer com que os recursos repassados ao convenente e depositados na
conta bancária específica fossem entregues ao fornecedor contratado
do serviço ou da obra, evitando repasses para outras contas do muni-
cípio e a aplicação irregular ou mesmo a apropriação de tais valores.

18 A mudança de texto devido a decretos mais recentes manteve o procedimento ado-


tado. A redação original do caput do art. 10 do Decreto n. 6.170/2007 delimitava
sua aplicação ao Banco do Brasil e à Caixa Econômica Federal, instituições finan-
ceiras oficiais federais nas quais as contas específicas aludidas no art. 20 da IN STN
n. 1/1997 eram e permanecem sendo abertas.

Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 15 – n. 47, p. 253-276 – jan./jun. 2016 265


Anos depois, foi a vez das transferências legais. Em 27 de
junho de 2011, editou-se o Decreto n. 7.50719, cujo art. 2º versa:
Art. 2º Os recursos de que trata este Decreto serão depositados e
mantidos em conta específica aberta para este fim em instituições
financeiras oficiais federais.
§ 1º A movimentação dos recursos será realizada exclusivamente por
meio eletrônico, mediante crédito em conta corrente de titularidade
dos fornecedores e prestadores de serviços devidamente identificados.
§ 2º Excepcionalmente, mediante justificativa circunstanciada,
poderão ser realizados saques para pagamento em dinheiro a pes-
soas físicas que não possuam conta bancária ou saques para atender
a despesas de pequeno vulto, adotando-se, em ambas hipóteses,
mecanismos que permitam a identificação do beneficiário final,
devendo as informações sobre tais pagamentos constar em item
específico da prestação de contas.

Também aqui se buscou fazer com que o dinheiro repassado


legalmente só saísse da conta específica para o fornecedor do ser-
viço ou obra, em vez de se perder nos tortuosos caminhos das
inúmeras contas dos municípios.
No entanto, o que se vê é que as instituições financeiras ofi-
ciais, em cujas contas tais recursos são custodiados por determina-
ção normativa expressa, permitem, e até mesmo contribuem para
isso, que a movimentação irregular desse dinheiro público ocorra,
e, o que é mais grave, elas (instituições financeiras oficiais) ainda
saem impunes. Chega-se agora ao ponto nodal deste artigo.

5 As instituições financeiras oficiais


como sujeitos ativos de improbidade
Ensina José Afonso da Silva (1999, p. 756) que as instituições
financeiras oficiais são aquelas criadas pelo Poder Público, com

19 O art. 1º do Decreto n. 7.507/2011 afirma que ele se aplica aos recursos repassados
com base nas seguintes leis: Lei n. 8.080/1990 e Lei n. 8.142/1990 (Leis Orgânicas
do SUS); Lei n. 10.880/2004 (Lei do Pnate); Lei n. 11.494/2007 (Lei do Fundeb);
Lei n. 11.692/2008 (Lei do Projovem); e Lei n. 11.947/2009 (Lei do PDDE).

266 Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 15 – n. 47, p. 253-276 – jan./jun. 2016


natureza de empresa pública ou de sociedade de economia mista,
integrando a administração pública indireta. Para os fins do pre-
sente estudo, essa definição é satisfatória20.
Afirmar que as instituições financeiras oficiais compõem
a administração pública indireta implica admitir que elas estão
alcançadas pela incidência do art. 1º da Lei n. 8.429/1992, isto é,
elas podem ser sujeito passivo do ato de improbidade21. Assim, por
exemplo, quando empregado público comete peculato, praticando,
além do crime do art. 312 do Código Penal, ato de improbidade
que importa em enriquecimento ilícito (LIA, art. 9º), causa dano
ao erário (LIA, art. 10) e viola os princípios da Administração
Pública (LIA, art. 11). Sobre isso não há controvérsia.
A questão que ora se propõe discutir é: sabido que as pessoas
jurídicas podem ser sujeito ativo do ato de improbidade (conclu-
são do item 2 supra), esse entendimento se aplica às instituições
financeiras oficiais, que são entes da administração pública indi-
reta (sociedade de economia mista, no caso do Banco do Brasil, e
empresa pública, no da Caixa Econômica Federal)?
Nossa convicção é de que sim, embora reconheçamos que a
questão é polêmica22. E o caso em que admitimos essa possibilidade

20 Para outra visão, vide o parecer ofertado por Luís Roberto Barroso no procedi-
mento de controle administrativo n. 200810000002117, que tramitou no Conse-
lho Nacional de Justiça. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/arquivo_
artigo/art20080603-5.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2016.

21 Por todos, veja-se: “PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO – AGRAVO


DE INSTRUMENTO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – IMPROBIDADE ADMI-
NISTRATIVA – RECEBIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL – FUNCEF –
FUNDAÇÃO PRIVADA INSTITUÍDA E PATROCINADA PELA CAIXA
ECONÔMICA FEDERAL (EMPRESA PÚBLICA) – DIRIGENTES SUJEI-
TOS ÀS DISPOSIÇÕES DA LEI Nº 8.429/92. 1. A prática de atos lesivos ao
patrimônio da FUNCEF sujeita-se às disposições da Lei 8.429/92, por tratar-se de
entidade instituída e patrocinada com recursos da Caixa Econômica Federal. Pre-
cedente do STJ. 2. Recurso especial não provido.” (STJ REsp n. 1.137.810/DF, rel.
min. Eliana Calmon, 2ª T., j. em 3.12.2009, DJe de 15 dez. 2009).

22 Há precedente contrário do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, assim ementado:


“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA. DECISÃO QUE RECEBEU A INICIAL. DISPENSA

Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 15 – n. 47, p. 253-276 – jan./jun. 2016 267


se refere justamente ao desvio e aplicação irregular de recursos
públicos federais repassados por força de transferência voluntária
ou legal a municípios, nos quais os sujeitos passivos serão o próprio
município e o órgão repassador dos recursos.
Conforme esclarecido, os Decretos n. 6.170/2007 e n.
7.507/2011 estabelecem que os recursos federais repassados ao
município por intermédio de transferência voluntária ou legal, res-
pectivamente, devem ser custodiados em conta específica (isto é,
criada para esse fim exclusivo) de instituição financeira oficial, de
onde somente podem sair mediante transferência eletrônica para
conta do fornecedor ou prestador de serviço.
Um município jamais será contratado para ser fornecedor de si
mesmo. Tampouco será contratado como prestador de serviço dele
próprio. Não há exceção. Ou um município executa diretamente
uma obra, por meios próprios (Lei n. 8.666/1993, art. 6º, VII),
ou contrata alguém para fazê-lo (Lei n. 8.666/1993, art. 6º, VIII).
Fere qualquer lógica aceitar que um ente contrate a si próprio. Essa
possibilidade não existe no Direito, pois um contrato pressupõe a
presença de, ao menos, duas pessoas.
Conquanto a assertiva citada seja induvidosa e peque por obvie-
dade, as instituições financeiras a ignoram solenemente.Vejamos.
É de clareza solar que as normas transcritas (Lei de
Responsabilidade Fiscal, Decretos n. 6.170/2007 e 7.507/2011 e
IN STN n. 1/1997), formadoras de um microssistema de tutela da
correta aplicação de recursos com destinação vinculada, impõem

INDEVIDA DE LICITAÇÃO. CONTRATAÇÃO DA CAIXA ECONÔMICA


FEDERAL PARA REALIZAÇÃO DE SERVIÇOS FINANCEIROS. IMPOS-
SIBILIDADE DE PRÁTICA DE ATO ÍMPROBO POR EMPRESA PÚBLICA
PROTEGIDA PELA LEI 8.429/92. PROVIMENTO DO RECURSO. 1. A
Caixa Econômica Federal está colocada na previsão da Lei 8.429/92, não como
sujeito ativo dos atos de improbidade e sim como sujeito passivo, isto, é, como
aquela que é titular do bem jurídico violado pela conduta ilícita. Logo, merece
reforma a decisão agravada ao admitir que a CEF possa praticar ato de improbi-
dade. 2. Agravo de instrumento provido.” (TRF1 AG 00441354420144010000,
des. federal Hilton Queiroz, 4ª T., e-DJF1 8 maio 2015, p.1814).

268 Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 15 – n. 47, p. 253-276 – jan./jun. 2016


um verdadeiro dever de agir às instituições financeiras oficiais nas
quais são abertas contas para viabilizar o repasse das transferências
voluntárias ou legais: somente poderão sair recursos dali direta-
mente para a conta de fornecedor, isto é, pessoa jurídica de direito
privado ou pessoa natural, salvo situações excepcionalíssimas23.
Embora inexista a obrigação de a instituição financeira substi-
tuir a tesouraria ou controladoria do município e checar a regula-
ridade de processos de pagamento (processo licitatório, contratação
regular, notas de empenho, liquidação da despesa etc.), há situações
em que a violação à norma de regência é cristalina, quando, por
exemplo, os recursos com destinação vinculada são transferidos
para outras contas do município, ou quando – situação ainda mais
grave – é efetuado o saque em espécie pelos agentes públicos, ou
terceiros, da quantia que deveria ser transferida diretamente para a
conta do fornecedor.
Não há espaço para que o município que recebeu recursos
federais mediante transferência voluntária ou legal os repasse para
outra conta. A burla às normas reproduzidas é patente, não havendo
outra explicação para o gestor que assim age do que a vontade deli-
berada de dilapidar o erário.
Da mesma forma, ao contribuir omissiva24 ou comissiva-
mente25 para que esse tipo de operação ocorra – transferência de

23 Vide o § 2º do art. 2º do Decreto n. 7.507/2011, já transcrito.

24 Ao não vedar tal tipo de operação, possibilitando que ela seja feita eletronica-
mente pelo gestor municipal, por exemplo. Qualquer cliente dos serviços bancá-
rios conhece por experiência própria as limitações que existem para realização de
operações bancárias, as quais muitas vezes podem ser alteradas com um simples
comando do gerente da conta, o que refuta a alegação de impossibilidade técnica
ou operacional de se impedir a transferência de contas específicas de transferência
voluntária ou legal para outra conta do município.

25 Como no caso elencado acima, passado no município de Gongogi, em que recursos


públicos federais repassados pelo FNDE para a construção de uma creche foram
transferidos pelo prefeito e tesoureira para a conta do FPM e, em seguida, sacados,
tudo realizado na boca do caixa e com participação direta de empregado público do
Banco do Brasil.

Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 15 – n. 47, p. 253-276 – jan./jun. 2016 269


recursos da conta específica para outra conta bancária do município
ou saque em espécie de valores altos –, a instituição financeira está
deliberadamente concorrendo e contribuindo para a prática do ato de
improbidade, incidindo, nesses termos, no art. 3º da Lei n. 8.429/1992.
Com efeito, se algum preposto do banco tiver concorrido para
o desvio ou a apropriação dos recursos públicos, será nítida a res-
ponsabilidade da instituição financeira, devido ao ato ilícito por ela
praticado por intermédio de seu preposto.
De acordo com o art. 927 do Código Civil, “aquele que, por
ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado
a repará-lo”. O art. 932, III, do mesmo código, reza que “são
também responsáveis pela reparação civil […] o empregador ou
comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício
do trabalho que lhes competir, ou em razão dele”. O Código Civil,
no particular, pode ser aplicado criativamente para fazer cumprir as
regras de controle26.
Seja por conduta omissiva, seja por conduta comissiva de seu
preposto, a instituição financeira pode ser responsabilizada.
Convém assinalar que as instituições financeiras oficiais como
o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, embora inte-
grem a administração indireta federal, possuem natureza jurídica
de direito privado e exploram atividade econômica, concorrendo
com bancos privados no mercado, não se lhes aplicando o regime
jurídico de direito público, senão em algumas situações pontuais
(necessidade de recrutamento por concurso público, submissão à
fiscalização do TCU – Acórdão n. 3.363/201527 etc.).

26 Nesse sentido, mas em relação à lavagem de dinheiro, v. LIMA, 2013, p. 118.

27 Assim se posiciona o Supremo Tribunal Federal, in verbis: “MANDADO DE


SEGURANÇA - ATO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO - ATRI-
BUIÇÃO DO ÓRGÃO - CONSULTOR JURÍDICO - SUSTENTAÇÃO DA
TRIBUNA. Versando o mandado de segurança ausência de atribuição do Tribunal
de Contas da União, cabível é a sustentação da tribuna pelo consultor jurídico do
Órgão. MANDADO DE SEGURANÇA - ATO DO TRIBUNAL DE CONTAS
DA UNIÃO - CHAMAMENTO AO PROCESSO DAS MESAS DA CÂMARA

270 Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 15 – n. 47, p. 253-276 – jan./jun. 2016


Não há razão jurídica, portanto, para afastar a responsabili-
zação por ato de improbidade das instituições financeiras oficiais
quando elas tiverem participado diretamente do cometimento de
ato ímprobo. Ao permitir ou realizar a saída de recursos oriundos
de transferência voluntária ou legal da conta específica para outra
conta do município, no mínimo o banco terá praticado as condutas
descritas nos incisos IX e XI do art. 10 da Lei n. 8.429/1992, isto é,
“IX - ordenar ou permitir a realização de despesas não autorizadas
em lei ou regulamento” ou “XI - liberar verba pública sem a estrita
observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma
para a sua aplicação irregular”.
No momento em que descumpre flagrantemente todo o arca-
bouço jurídico de tutela da correta aplicação dos recursos públicos
transferidos da União e suas autarquias com destinação vinculada,
a instituição financeira (Banco do Brasil ou Caixa Econômica
Federal) pratica ato ilícito e age, ao menos, com culpa, devendo ser
responsabilizada pelo dano causado ao erário, mormente por ter
prestado indispensável auxílio para a consumação do ato ímprobo,
pois sem o concurso do banco em cuja conta específica o recurso
repassado está custodiado, o desvio e a apropriação do dinheiro
público, num primeiro momento transferido para outra conta do
município, não poderiam se concretizar.
Por outro lado, ao contrário da situação fática subjacente
ao julgado mencionado na nota de rodapé n. 21, aqui a instituição

DOS DEPUTADOS E DO SENADO - INADEQUAÇÃO. A previsão do artigo


49 da Constituição Federal - de cumprir ao Congresso Nacional fiscalizar e contro-
lar, diretamente ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, inclu-
ídos os da administração indireta - não atrai a participação do Poder Legislativo na
relação processual de mandado de segurança impetrado contra decisão do Tribunal
de Contas da União. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA - TRIBUNAL DE
CONTAS DA UNIÃO - FISCALIZAÇÃO. Ao Tribunal de Contas da União
incumbe atuar relativamente à gestão de sociedades de economia mista. Nova inte-
ligência conferida ao inciso II do artigo 71 da Constituição Federal, ficando supe-
rada a jurisprudência que veio a ser firmada com o julgamento dos Mandados de
Segurança nºs 23.627-2/DF e 23.875-5/DF.” (MS 25.181, rel. min. Marco Aurélio,
Tribunal Pleno, j. em 10.11.2005, DJ 16 jun. 2006, PP-00006 EMENT VOL-
02237-01 PP-00131).

Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 15 – n. 47, p. 253-276 – jan./jun. 2016 271


financeira oficial não é o sujeito passivo do ato de improbidade. O
patrimônio lesado (recurso repassado por transferência voluntária
ou legal) não lhe pertence; ela somente mantém a sua custódia em
conta específica, o que, se houvesse autorização normativa, poderia
ser tranquilamente realizado por banco privado.
Nos casos explanados, a instituição financeira oficial, trans-
gredindo deliberadamente normas jurídicas, concorre para a prá-
tica do ato ímprobo que lesa entes diversos. Essa ressalva é essencial
para evitar o equívoco de se reproduzir ementas sem atentar para
o caso concreto (circunstâncias de fato do precedente) nem fazer a
reflexão devida.
Em acréscimo, registre-se que, em diversas ações civis públi-
cas, o Ministério Público Federal vem logrando obter decisões
com tutela antecipada nas quais o Banco do Brasil e a Caixa
Econômica Federal são obrigados a se adequarem aos termos dos
Decretos n. 6.170/2007 e n. 7.507/2011 (tem-se notícia de já terem
sido ajuizadas ações no Maranhão28, no Amazonas e no Tocantins,
e nas Subseções da Jequié-BA, Ilhéus-BA e Itabuna-BA, e exis-
tem investigações em curso em unidades do Ministério Público
Federal, como na Procuradoria da República em Vitória da
Conquista-BA).
Pela precisão lapidar, transcreve-se decisão proferida pelo juízo
da 2ª Vara Federal da Seção Judiciária do Tocantins, nos autos
da Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal e
tombada sob o n. 11461-14.2014.4.01.4300:

28 No Maranhão, nos autos da Ação Civil Pública n. 47876-21.2012.4.01.3700, foi


celebrado compromisso de ajustamento de conduta no qual o Banco do Brasil assu-
miu a obrigação de se adequar, no Estado do Maranhão, aos ditames dos Decretos
n. 6.170/2007 e n. 7.507/2011, salvo no que concerne ao Fundeb, prosseguindo a
ação no particular. As discussões levantadas pioneiramente no Maranhão deram
origem a um Grupo de Trabalho, coordenado pela 5ª Câmara de Coordenação e
Revisão, do qual participam, além do MPF, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica
Federal, a Controladoria-Geral da União, o Fundo Nacional de Desenvolvimento
da Educação (FNDE) e o Fundo Nacional de Saúde (FNS).

272 Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 15 – n. 47, p. 253-276 – jan./jun. 2016


Assim, é compromisso visceral de toda instituição envolvida com
o trato do dinheiro público adotar as medidas que estejam ao seu
alcance para evitar ou, pelo menos, dificultar a malversação dos
recursos públicos. As instituições financeiras onde aportam recur-
sos federais assumem protagonismo no cumprimento desse com-
promisso, pois é indisfarçável o fato de que o dinheiro sai de seus
cofres. Nesse sentido, os requeridos devem obedecer aos comandos
dos Decretos 6170/07 e 7507/11, especialmente porque tais diplo-
mas normativos disciplinam a destinação de verbas públicas deposi-
tadas no Banco do Brasil e na Caixa a fim de financiarem convê-
nios e outras iniciativas da União [grifos no original].

A tese, finalmente, foi acatada pela Justiça Federal na sen-


tença prolatada em 17 de outubro de 2016, no processo tom-
bado sob o número 0000740-35.2015.4.01.3308 (caso do muni-
cípio de Gongogi, relatado linhas atrás), a primeira de que se
tem conhecimento nestes moldes (responsabilização de institui-
ção financeira oficial federal por descumprimento ao Decreto n.
6.170/2007 ou 7.507/2011), fruto de ação civil pública ajuizada
na Subseção Judiciária de Jequié-BA, pelo autor deste artigo, em
junho de 2015 29.
Na sentença pioneira, acolheu-se integralmente o entendi-
mento do Ministério Público Federal – inclusive quanto à aplicação
das sanções cabíveis em face das instituições financeiras oficiais, isto
é, a multa civil e o ressarcimento ao erário, além dos danos morais,
que no caso concreto não foram reconhecidos30 – e condenou-se o
Banco do Brasil pelo fato de ele ter concorrido diretamente para a

29 No link <http://www.mpf.mp.br/ba/sala-de-imprensa/noticias-ba/banco-do-bra-
sil-e-condenado-por-improbidade-em-acao-movida-pelo-mpf-ba> consta a peti-
ção inicial da ação civil pública por ato de improbidade administrativa e a íntegra
da sentença.

30 Vale a pena transcrever o seguinte trecho da sentença: “O banco não é evocado


aqui a assumir a fiscalização dos recursos ou a prestar contas deles. O que ordenou o
Chefe do Executivo, e é requerido pelo parquet nesta ação, é que o banco abstenha-
-se (ou responda por não ter abstido) de permitir transferências de recursos públicos
estritamente vinculados, para o ermo das contas genéricas, ou dos saques em espé-

Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 15 – n. 47, p. 253-276 – jan./jun. 2016 273


prática de ato de improbidade administrativa. Sem dúvida, trata-se
de decisão cujo ineditismo servirá de estímulo a que outros juízos,
uma vez demandados em ações de improbidade propostas contra
instituições financeiras que descumprem os Decretos n. 6.170/2007
e 7.507/2011, acolham a tese aqui delineada, convergindo para for-
talecer o combate ao desvio de recursos públicos.
Conclui-se, retomando o início deste artigo, que, na hipótese
de o ato de improbidade ter acontecido por meio da transferência
de recursos repassados mediante transferência voluntária ou legal da
conta específica respectiva para outra conta do município ou por saque
em espécie de tais valores, a posição do Banco do Brasil e da Caixa
Econômica Federal é de sujeito ativo do ato de improbidade, pois o
seu concurso – mediante a violação de normas legais e regulamen-
tares – foi indispensável para a efetivação dos atos ímprobos, motivo
pelo qual deve a instituição financeira oficial figurar no polo passivo
da demanda e da relação processual, sendo-lhe aplicadas as sanções do

cie, inviabilizando qualquer tipo de rastreio e, por conseguinte, a fiscalização dos


entes responsáveis.
Ou seja, a instituição financeira não é obrigada a fiscalizar, mas o é a colaborar, e
para isso não é preciso qualquer convênio ou contrato específico, pois trata-se de
obrigação decorrente de lei. Não se exige, portanto, que o banco procure saber
quem são os fornecedores ou prestadores de serviço, que apure os valores, se a con-
tratação foi regular ou não, nada disso. O que se exige, apenas, é que ele, dentro
da atividade de caráter público na qual foi investido, não celebre transações que
sirvam, exclusivamente, para falsear os reais destinatários dos recursos públicos ou,
ainda, para o desvio de finalidade dos mesmos.
Assim, entendo que a possibilidade de manejar recursos públicos sem qualquer dado
que identifique o destinatário e o motivo da movimentação representa omissão
grave da instituição bancária, enquadrando, tal conduta, no tipo do art. 10, inciso I,
da LIA, que lhe obriga a responder de maneira solidária pelo ressarcimento do dano
ao erário.

No que tange às demais sanções previstas para o ato ímprobo em questão, a multa civil
é a única que se faz compatível com a natureza da instituição financeira, tanto por se
tratar de pessoa jurídica quanto por se tratar de entidade da administração indireta.

Além de compatível, a sanção mostra-se concretamente necessária, visto seu aspecto san-
cionatório, levando-a a repensar o procedimento a ser adotado nas operações futuras.”

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art. 12 da LIA compatíveis com sua natureza (ressarcimento ao erário,
multa civil e condenação em danos morais coletivos).

6 Conclusão
O intuito do presente texto foi despertar a atenção para uma
nova leitura da Lei de Improbidade Administrativa em face das
instituições financeiras oficiais, cuja recalcitrância em observar as
normas indicadas ao longo do artigo tem contribuído para a apli-
cação irregular de recursos públicos, quando não para o desvio em
favor de terceiros ou para sua apropriação.
A atuação preventiva, com ajuizamento de ações civis públi-
cas para obrigar o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal a
seguirem à risca os decretos repetidamente referidos, é crucial, mas
o é igualmente a atuação repressiva, pois não há dúvida de que, se a
tese ora exposta for amplamente aceita pelo Judiciário, as condena-
ções certamente trarão um forte estímulo às instituições financeiras
oficiais para que elas deixem de andar na contramão do combate à
corrupção e sigam as normas do microssistema de tutela da correta
aplicação dos recursos com destinação vinculada.

Referências

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Dialética, 2007.

Fazzio Júnior, Waldo. Atos de improbidade administrativa: doutrina,


legislação e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2007.

Garcia, Emerson; Pacheco, Rogério Alves. Improbidade adminis-


trativa. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

Lima, Carlos Fernando dos Santos. O sistema nacional antilava-


gem de dinheiro: as obrigações de compliance. In: Carli, Carla

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Veríssimo de et al. (Org.). Lavagem de dinheiro: prevenção e controle
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Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional. 10. ed. São
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Serzedello Corrêa, 2005. Disponível em: <http://www.contas-
publicas.gov.br/Download/Cartilha_Transf_Const_Leg.pdf>.
Acesso em: 18 fev. 2016.

276 Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 15 – n. 47, p. 253-276 – jan./jun. 2016

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