Capítulo 1 Da Pedagogia Histórico
Capítulo 1 Da Pedagogia Histórico
Capítulo 1 Da Pedagogia Histórico
Sobre a Natureza e
Especificidade da Educação*
em escalas cada vez mais amplas e complexas, de bens materiais; tal processo
nós podemos traduzir na rubrica “trabalho material”. Entretanto, para pro
duzir materialmente, o homem necessita antecipar em ideias os objetivos da
ação, o que significa que ele representa mentalmente os objetivos reais. Essa
representação inclui o aspecto de conhecimento das propriedades do mundo
real (ciência), de valorização (ética) e de simbolização (arte). Tais aspectos, na
medida em que são objetos de preocupação explícita e direta, abrem a perspec
tiva de uma outra categoria de produção que pode ser traduzida pela rubrica
“trabalho não material”. Trata-se aqui da produção de ideias, conceitos, valores,
símbolos, hábitos, atitudes, habilidades. Numa palavra, trata-se da produção
do saber, seja do saber sobre a natureza, seja do saber sobre a cultura, isto é, o
conjunto da produção humana. Obviamente, a educação situa-se nessa cate
goria do trabalho não material. Importa, porém, distinguir, na produção não
material, duas modalidades1. A primeira refere-se àquelas atividades em que
o produto se separa do produtor, como no caso dos livros e objetos artísticos.
Há, pois, nesse caso, um intervalo entre a produção e o consumo, possibilitado
pela autonomia entre o produto e o ato de produção. A segunda diz respeito
às atividades em que o produto não se separa do ato de produção. Nesse caso,
não ocorre o intervalo antes observado; o ato de produção e o ato de consu
mo imbricam-se. É nessa segunda modalidade do trabalho não material que
se situa a educação. Podemos, pois, afirmar que a natureza da educação se
esclarece a partir daí. Exemplificando: se a educação não se reduz ao ensino,
é certo, entretanto, que ensino é educação e, como tal, participa da natureza
própria do fenômeno educativo. Assim, a atividade de ensino, a aula, por
exemplo, é alguma coisa que supõe, ao mesmo tempo, a presença do professor
e a presença do aluno. Ou seja, o ato de dar aula é inseparável da produção
desse ato e de seu consumo. A aula é, pois, produzida e consumida ao mesmo
tempo (produzida pelo professor e consumida pelos alunos).
Compreendida a natureza da educação, nós podemos avançar em dire
ção à compreensão de sua especificidade. Com efeito, se a educação, perten
cendo ao âmbito do trabalho não material, tem a ver com ideias, conceitos,
valores, símbolos, hábitos, atitudes, habilidades, tais elementos, entretanto, não
lhe interessam em si mesmos, como algo exterior ao homem.
Nessa forma, isto é, considerados em si mesmos, como algo exterior
ao homem, esses elementos constituem o objeto de preocupação das chama
das ciências humanas, ou seja, daquilo que Dilthey denomina “ciências do
1. Essa consideração sobre a produção não material e sua distinção em duas modalidades
apoia-se em Marx, 1978, pp. 70-80.
DERMEVAL SAVIANI 13
A essa altura vocês podem estar afirmando: mas isso é o óbvio. Exata
mente, é o óbvio. E como é frequente acontecer com tudo o que é óbvio, ele
acaba sendo esquecido ou ocultando, na sua aparente simplicidade, problemas
que escapam à nossa atenção. Esse esquecimento e essa ocultação acabam por
neutralizar os efeitos da escola no processo de democratização.
Vejamos o problema já a partir da própria noção de currículo. De uns
tempos para cá, disseminou-se a ideia de que currículo é o conjunto das ativi
dades desenvolvidas pela escola. Portanto, currículo diferencia-se de programa
ou de elenco de disciplinas; segundo essa acepção, currículo é tudo o que a
escola faz; assim, não faria sentido falar em atividades extracurriculares. Re
centemente, fui levado a corrigir essa definição acrescentando-lhe o adjetivo
“nucleares”. Com essa retificação, a definição, provisoriamente, passaria a ser
a seguinte: currículo é o conjunto das atividades nucleares desenvolvidas pela
escola. E por que isto? Porque se tudo o que acontece na escola é currículo, se
se apaga a diferença entre curricular e extracurricular, então tudo acaba ad
quirindo o mesmo peso; e abre-se caminho para toda sorte de tergiversações,
inversões e confusões que terminam por descaracterizar o trabalho escolar.
Com isso, facilmente, o secundário pode tomar o lugar daquilo que é prin
cipal, deslocando-se, em consequência, para o âmbito do acessório aquelas
atividades que constituem a razão de ser da escola. Não é demais lembrar que
esse fenômeno pode ser facilmente observado no dia a dia das escolas. Dou
apenas um exemplo: o ano letivo começa na segunda quinzena de fevereiro
e já em março temos a Semana da Revolução2; em seguida, a Semana Santa;
depois, a Semana do Índio, Semana das Mães, as Festas Juninas, a Semana do
Soldado, Semana do Folclore, Semana da Pátria, Jogos da Primavera, Semana
da Criança, Semana da Asa etc., e nesse momento já estamos em novembro.
O ano letivo encerra-se e estamos diante da seguinte constatação: fez-se de
tudo na escola; encontrou-se tempo para toda espécie de comemoração, mas
muito pouco tempo foi destinado ao processo de transmissão-assimilação
de conhecimentos sistematizados. Isto quer dizer que se perdeu de vista a
atividade nuclear da escola, isto é, a transmissão dos instrumentos de acesso
ao saber elaborado.
É preciso, pois, ficar claro que as atividades distintivas das semanas an
teriormente enumeradas são secundárias e não essenciais à escola. Enquanto
tais, são extracurriculares e só têm sentido se puderem enriquecer as atividades
2 A referência é à Revolução de 1964, pois esse texto foi escrito em 1983, quando ainda estava
em vigor o regime militar. Hoje (2003), não há mais essa comemoração, mas as outras ainda
persistem (nota da 8a edição).
16 PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA