Capítulo 1 Da Pedagogia Histórico

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Sobre a Natureza e
Especificidade da Educação*

abe-se que a educação é um fenômeno próprio dos seres humanos. Assim


sendo, a compreensão da natureza da educação passa pela compreensão
da natureza humana. Ora, o que diferencia os homens dos demais fenômenos,
o que o diferencia dos demais seres vivos, o que o diferencia dos outros ani­
mais? A resposta a essas questões também já é conhecida. Com efeito, sabe-se
que, diferentemente dos outros animais, que se adaptam à realidade natural
tendo a sua existência garantida naturalmente, o homem necessita produzir
continuamente sua própria existência. Para tanto, em lugar de se adaptar à
natureza, ele tem que adaptar a natureza a si, isto é, transformá-la. E isto é
feito pelo trabalho. Portanto, o que diferencia o homem dos outros animais é
o trabalho. E o trabalho instaura-se a partir do momento em que seu agente
antecipa mentalmente a finalidade da ação. Consequentemente, o trabalho
não é qualquer tipo de atividade, mas uma ação adequada a finalidades. É,
pois, uma ação intencional.
Para sobreviver, o homem necessita extrair da natureza, ativa e inten­
cionalmente, os meios de sua subsistência. Ao fazer isso, ele inicia o processo
de transformação da natureza, criando um mundo humano (o mundo da
cultura).
Dizer, pois, que a educação é um fenômeno próprio dos seres humanos
significa afirmar que ela é, ao mesmo tempo, uma exigência do e para o pro­
cesso de trabalho, bem como é, ela própria, um processo de trabalho.
Assim, o processo de produção da existência humana implica, primei­
ramente, a garantia da sua subsistência material com a consequente produção,
* Comunicação apresentada na mesa-redonda sobre a “Natureza e Especificidade da Educa­
ção”, realizada pelo Inep, em Brasília, no dia 5 de julho de 1984. Publicado anteriormente
no Em Aberto, Inep, n. 22,1984.
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em escalas cada vez mais amplas e complexas, de bens materiais; tal processo
nós podemos traduzir na rubrica “trabalho material”. Entretanto, para pro­
duzir materialmente, o homem necessita antecipar em ideias os objetivos da
ação, o que significa que ele representa mentalmente os objetivos reais. Essa
representação inclui o aspecto de conhecimento das propriedades do mundo
real (ciência), de valorização (ética) e de simbolização (arte). Tais aspectos, na
medida em que são objetos de preocupação explícita e direta, abrem a perspec­
tiva de uma outra categoria de produção que pode ser traduzida pela rubrica
“trabalho não material”. Trata-se aqui da produção de ideias, conceitos, valores,
símbolos, hábitos, atitudes, habilidades. Numa palavra, trata-se da produção
do saber, seja do saber sobre a natureza, seja do saber sobre a cultura, isto é, o
conjunto da produção humana. Obviamente, a educação situa-se nessa cate­
goria do trabalho não material. Importa, porém, distinguir, na produção não
material, duas modalidades1. A primeira refere-se àquelas atividades em que
o produto se separa do produtor, como no caso dos livros e objetos artísticos.
Há, pois, nesse caso, um intervalo entre a produção e o consumo, possibilitado
pela autonomia entre o produto e o ato de produção. A segunda diz respeito
às atividades em que o produto não se separa do ato de produção. Nesse caso,
não ocorre o intervalo antes observado; o ato de produção e o ato de consu­
mo imbricam-se. É nessa segunda modalidade do trabalho não material que
se situa a educação. Podemos, pois, afirmar que a natureza da educação se
esclarece a partir daí. Exemplificando: se a educação não se reduz ao ensino,
é certo, entretanto, que ensino é educação e, como tal, participa da natureza
própria do fenômeno educativo. Assim, a atividade de ensino, a aula, por
exemplo, é alguma coisa que supõe, ao mesmo tempo, a presença do professor
e a presença do aluno. Ou seja, o ato de dar aula é inseparável da produção
desse ato e de seu consumo. A aula é, pois, produzida e consumida ao mesmo
tempo (produzida pelo professor e consumida pelos alunos).
Compreendida a natureza da educação, nós podemos avançar em dire­
ção à compreensão de sua especificidade. Com efeito, se a educação, perten­
cendo ao âmbito do trabalho não material, tem a ver com ideias, conceitos,
valores, símbolos, hábitos, atitudes, habilidades, tais elementos, entretanto, não
lhe interessam em si mesmos, como algo exterior ao homem.
Nessa forma, isto é, considerados em si mesmos, como algo exterior
ao homem, esses elementos constituem o objeto de preocupação das chama­
das ciências humanas, ou seja, daquilo que Dilthey denomina “ciências do
1. Essa consideração sobre a produção não material e sua distinção em duas modalidades
apoia-se em Marx, 1978, pp. 70-80.
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espírito” por oposição às “ciências da natureza”. Diferentemente, do ponto


de vista da educação, ou seja, da perspectiva da pedagogia entendida como
ciência da educação, esses elementos interessam enquanto é necessário que
os homens os assimilem, tendo em vista a constituição de algo como uma
segunda natureza. Portanto, o que não é garantido pela natureza tem que ser
produzido historicamente pelos homens, e aí se incluem os próprios homens.
Podemos, pois, dizer que a natureza humana não é dada ao homem, mas é
por ele produzida sobre a base da natureza biofísica. Consequentemente, o
trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada
indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente
pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um
lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados
pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de
outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas
para atingir esse objetivo.
Quanto ao primeiro aspecto (a identificação dos elementos culturais que
precisam ser assimilados), trata-se de distinguir entre o essencial e o aciden­
tal, o principal e o secundário, o fundamental e o acessório. Aqui me parece
de grande importância, em pedagogia, a noção de “clássico”. O clássico não
se confunde com o tradicional e também não se opõe, necessariamente, ao
moderno e muito menos ao atual. O clássico é aquilo que se firmou como
fundamental, como essencial. Pode, pois, constituir-se num critério útil para
a seleção dos conteúdos do trabalho pedagógico.
Quanto ao segundo aspecto (a descoberta das formas adequadas de
desenvolvimento do trabalho pedagógico), trata-se da organização dos meios
(conteúdos, espaço, tempo e procedimentos) através dos quais, progressi­
vamente, cada indivíduo singular realize, na forma de segunda natureza, a
humanidade produzida historicamente.
Considerando, como já foi dito, que, se a educação não se reduz ao
ensino - este, sendo um aspecto da educação, participa da natureza própria
do fenômeno educativo -, creio ser possível ilustrar as considerações gerais
acima apresentadas com o caso da educação escolar. Este exemplo parece-me
legítimo porque a própria institucionalização do pedagógico através da escola
é um indício da especificidade da educação, uma vez que, se a educação não
fosse dotada de identidade própria, seria impossível a sua institucionalização.
Nesse sentido, a escola configura uma situação privilegiada, a partir da qual
se pode detectar a dimensão pedagógica que subsiste no interior da prática
social global.
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Peço, pois, licença para reapresentar aqui as considerações que fiz em


Olinda, por ocasião do III Encontro Nacional do Programa Alfa (Enpa). Ali,
ao tratar do papel da escola básica, parti do seguinte princípio: a escola é uma
instituição cujo papel consiste na socialização do saber sistematizado.
Vejam bem: eu disse saber sistematizado; não se trata, pois, de qualquer
tipo de saber. Portanto, a escola diz respeito ao conhecimento elaborado e não
ao conhecimento espontâneo; ao saber sistematizado e não ao saber fragmen­
tado; à cultura erudita e não à cultura popular.
Em suma, a escola tem a ver com o problema da ciência. Com efeito,
ciência é exatamente o saber metódico, sistematizado. A esse respeito, é ilus­
trativo o modo como os gregos consideravam essa questão. Em grego, temos

do senso comum, o conhecimento espontâneo ligado diretamente à experiên­


cia cotidiana, um claro-escuro, misto de verdade e de erro. Sofia é a sabedoria
fundada numa longa experiência da vida. É nesse sentido que se diz que os
velhos são sábios e que os jovens devem ouvir seus conselhos. Finalmente,
episteme significa ciência, isto é, o conhecimento metódico e sistematizado.
Consequentemente, se do ponto de vista da sofia um velho é sempre mais sá­
bio do que um jovem, do ponto de vista da episteme um jovem pode ser mais
sábio do que um velho.
Ora, a opinião, o conhecimento que produz palpites, não justifica a
existência da escola. Do mesmo modo, a sabedoria baseada na experiência
de vida dispensa e até mesmo desdenha a experiência escolar, o que, inclusi­
ve, chegou a cristalizar-se em ditos populares como: “mais vale a prática do
que a gramática” e “as crianças aprendem apesar da escola”. É a exigência de
apropriação do conhecimento sistematizado por parte das novas gerações que
torna necessária a existência da escola.
A escola existe, pois, para propiciar a aquisição dos instrumentos que
possibilitam o acesso ao saber elaborado (ciência), bem como o próprio acesso
aos rudimentos desse saber. As atividades da escola básica devem organizar-
se a partir dessa questão. Se chamarmos isso de currículo, poderemos então
afirmar que é a partir do saber sistematizado que se estrutura o currículo da
escola elementar. Ora, o saber sistematizado, a cultura erudita, é uma cultura
letrada. Daí que a primeira exigência para o acesso a esse tipo de saber seja
aprender a ler e escrever. Além disso, é preciso conhecer também a linguagem
dos números, a linguagem da natureza e a linguagem da sociedade. Está aí o
conteúdo fundamental da escola elementar: ler, escrever, contar, os rudimentos
das ciências naturais e das ciências sociais (história e geografia).
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A essa altura vocês podem estar afirmando: mas isso é o óbvio. Exata­
mente, é o óbvio. E como é frequente acontecer com tudo o que é óbvio, ele
acaba sendo esquecido ou ocultando, na sua aparente simplicidade, problemas
que escapam à nossa atenção. Esse esquecimento e essa ocultação acabam por
neutralizar os efeitos da escola no processo de democratização.
Vejamos o problema já a partir da própria noção de currículo. De uns
tempos para cá, disseminou-se a ideia de que currículo é o conjunto das ativi­
dades desenvolvidas pela escola. Portanto, currículo diferencia-se de programa
ou de elenco de disciplinas; segundo essa acepção, currículo é tudo o que a
escola faz; assim, não faria sentido falar em atividades extracurriculares. Re­
centemente, fui levado a corrigir essa definição acrescentando-lhe o adjetivo
“nucleares”. Com essa retificação, a definição, provisoriamente, passaria a ser
a seguinte: currículo é o conjunto das atividades nucleares desenvolvidas pela
escola. E por que isto? Porque se tudo o que acontece na escola é currículo, se
se apaga a diferença entre curricular e extracurricular, então tudo acaba ad­
quirindo o mesmo peso; e abre-se caminho para toda sorte de tergiversações,
inversões e confusões que terminam por descaracterizar o trabalho escolar.
Com isso, facilmente, o secundário pode tomar o lugar daquilo que é prin­
cipal, deslocando-se, em consequência, para o âmbito do acessório aquelas
atividades que constituem a razão de ser da escola. Não é demais lembrar que
esse fenômeno pode ser facilmente observado no dia a dia das escolas. Dou
apenas um exemplo: o ano letivo começa na segunda quinzena de fevereiro
e já em março temos a Semana da Revolução2; em seguida, a Semana Santa;
depois, a Semana do Índio, Semana das Mães, as Festas Juninas, a Semana do
Soldado, Semana do Folclore, Semana da Pátria, Jogos da Primavera, Semana
da Criança, Semana da Asa etc., e nesse momento já estamos em novembro.
O ano letivo encerra-se e estamos diante da seguinte constatação: fez-se de
tudo na escola; encontrou-se tempo para toda espécie de comemoração, mas
muito pouco tempo foi destinado ao processo de transmissão-assimilação
de conhecimentos sistematizados. Isto quer dizer que se perdeu de vista a
atividade nuclear da escola, isto é, a transmissão dos instrumentos de acesso
ao saber elaborado.
É preciso, pois, ficar claro que as atividades distintivas das semanas an­
teriormente enumeradas são secundárias e não essenciais à escola. Enquanto
tais, são extracurriculares e só têm sentido se puderem enriquecer as atividades
2 A referência é à Revolução de 1964, pois esse texto foi escrito em 1983, quando ainda estava
em vigor o regime militar. Hoje (2003), não há mais essa comemoração, mas as outras ainda
persistem (nota da 8a edição).
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curriculares próprias da escola, não devendo em hipótese alguma prejudicá-las


ou substituí-las. Das considerações feitas, resulta importante manter a dife­
renciação entre atividades curriculares e extracurriculares, já que esta é uma
maneira de não perdermos de vista a distinção entre o que é principal e o que
é secundário.
Essa questão tem desdobramentos ainda de outras ordens. Assim, por
exemplo, em nome desse conceito ampliado de currículo, a escola tornou-
se um mercado de trabalho disputadíssimo pelos mais diferentes tipos de
profissionais (nutricionistas, dentistas, fonoaudiólogos, psicólogos, artistas,
assistentes sociais etc.), e uma nova inversão opera-se. De agência destinada a
atender o interesse da população pelo acesso ao saber sistematizado, a escola
passa a ser uma agência a serviço de interesses corporativistas ou clientelistas.
E neutraliza-se, mais uma vez, agora por outro caminho, o seu papel no pro­
cesso de democratização.
A esta altura é necessário comentar ainda uma possível objeção: até que
ponto essa concepção que estou expondo não configura uma proposta pedagó­
gica tradicional? Quer-se com isso voltar à velha escola, já tão exaustivamente
criticada? E onde fica a criatividade, a iniciativa dos alunos, o ensino ativo? Tal
objeção é inevitável àqueles educadores que foram de algum modo influen­
ciados pelo movimento da Escola Nova. E nós sabemos que esse movimento,
no nível do ideário, teve grande penetração em nosso país.
Para encaminhar a resposta à objeção acima formulada, parece-me útil
recordar aqui uma passagem de Gramsci, escrita na mesma época em que
no Brasil se lançava o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932).
Escreveu ele:
Deve-se distinguir entre escola criadora e escola ativa, mesmo na
forma dada pelo método Dalton. Toda escola unitária é escola ativa, se
bem que seja necessário limitar as ideologias libertárias neste campo
[...]. Ainda se está na fase romântica da escola ativa, na qual os elementos
da luta contra a escola mecânica e jesuítica se dilataram morbidamente
por causa do contraste e da polêmica: é necessário entrar na fase “clássi­
ca”, racional, encontrando nos fins a atingir a fonte natural para elaborar
os métodos e as formas [Gramsci, 1968, p. 124].
Às vezes me dá a impressão de que, passados mais de cinquenta anos,
continuamos ainda na fase romântica. Não entramos na fase clássica. E o
que é a fase clássica? É a fase em que ocorreu uma depuração, superando-se
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os elementos próprios da conjuntura polêmica e recuperando-se aquilo que


tem caráter permanente, isto é, que resistiu aos embates do tempo. Clássico,
em verdade, é o que resistiu ao tempo. É nesse sentido que se fala na cultura
greco-romana como clássica, que Kant e Hegel são clássicos da filosofia, Victor
Hugo é um clássico da literatura universal, Guimarães Rosa um clássico da
literatura brasileira etc.
Ora, clássico na escola é a transmissão-assimilação do saber sistematiza­
do. Este é o fim a atingir. É aí que cabe encontrar a fonte natural para elaborar
os métodos e as formas de organização do conjunto das atividades da escola,
isto é, do currículo. E aqui nós podemos recuperar o conceito abrangente de
currículo: organização do conjunto das atividades nucleares distribuídas no
espaço e tempo escolares. Um currículo é, pois, uma escola funcionando, quer
dizer, uma escola desempenhando a função que lhe é própria.
Vê-se, assim, que para existir a escola não basta a existência do saber
sistematizado. É necessário viabilizar as condições de sua transmissão e as­
similação. Isso implica dosá-lo e sequenciá-lo de modo que a criança passe
gradativamente do seu não domínio ao seu domínio. Ora, o saber dosado e
sequenciado para efeitos de sua transmissão-assimilação no espaço escolar,
ao longo de um tempo determinado, é o que nós convencionamos chamar
de “saber escolar”.
Tendo claro que é o fim a atingir que determina os métodos e processos
de ensino-aprendizagem, compreende-se o equívoco da Escola Nova em rela­
ção ao problema da atividade e da criatividade. Com efeito, a crítica ao ensino
tradicional era justa, na medida em que esse ensino perdeu de vista os fins,
tornando mecânicos e vazios de sentido os conteúdos que transmitia. A partir
daí, a Escola Nova tendeu a classificar toda transmissão de conteúdo como
mecânica e todo mecanismo como anticriativo, assim como todo automatismo
como negação da liberdade.
Entretanto, é preciso entender que o automatismo é condição da liber­
dade e que não é possível ser criativo sem dominar determinados mecanismos.
Isto ocorre com o aprendizado nos mais diferentes níveis e com o exercício de
atividades também as mais diversas. Assim, por exemplo, para se aprender a
dirigir automóvel é preciso repetir constantemente os mesmos atos até se fa­
miliarizar com eles. Depois já não será necessária a repetição constante. Mesmo
se esporadicamente, praticam-se esses atos com desenvoltura, com facilidade.
Entretanto, no processo de aprendizagem, tais atos, aparentemente simples,
exigiam razoável concentração e esforço até que fossem fixados e passassem a
ser exercidos, por assim dizer, automaticamente. Por exemplo, para se mudar
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a marcha com o carro em movimento, é necessário acionar a alavanca com


a mão direita sem se descuidar do volante, que será controlado com a mão
esquerda, ao mesmo tempo que se pressiona a embreagem com o pé esquerdo
e, concomitantemente, retira-se o pé direito do acelerador. A concentração da
atenção exigida para realizar a sincronia desses movimentos absorve todas as
energias. Por isso o aprendiz não é livre ao dirigir. No limite, eu diria mesmo
que ele é escravo dos atos que tem que praticar. Ele não os domina, mas, ao
contrário, é dominado por eles. A liberdade só será atingida quando os atos
forem dominados. E isto ocorre no momento em que os mecanismos forem
fixados. Portanto, por paradoxal que pareça, é exatamente quando se atinge o
nível em que os atos são praticados automaticamente que se ganha condições
de se exercer, com liberdade, a atividade que compreende os referidos atos.
Então, a atenção liberta-se, não sendo mais necessário tematizar cada ato. Nesse
momento, é possível não apenas dirigir livremente, mas também ser criativo
no exercício dessa atividade. E só se chega a esse ponto quando o processo de
aprendizagem, enquanto tal, completou-se. Por isso, é possível afirmar que o
aprendiz, no exercício daquela atividade que é o objeto de aprendizagem, nunca
é livre. Quando ele for capaz de exercê-la livremente, nesse exato momento ele
deixou de ser aprendiz. As considerações supra podem ser aplicadas em outros
domínios, como, por exemplo, aprender a tocar um instrumento musical etc.
Ora, esse fenômeno está presente também no processo de aprendizagem
através do qual se dá a assimilação do saber sistematizado, como o ilustra,
de modo eloquente, o exemplo da alfabetização. Também aqui é necessário
dominar os mecanismos próprios da linguagem escrita. Também aqui é pre­
ciso fixar certos automatismos, incorporá-los, isto é, torná-los parte de nosso
corpo, de nosso organismo, integrá-los em nosso próprio ser. Dominadas as
formas básicas, a leitura e a escrita podem fluir com segurança e desenvoltura.
À medida que se vai libertando dos aspectos mecânicos, o alfabetizando pode,
progressivamente, ir concentrando cada vez mais sua atenção no conteúdo,
isto é, no significado daquilo que é lido ou escrito. Note-se que se libertar,
aqui, não tem o sentido de se livrar, quer dizer, abandonar, deixar de lado
os ditos aspectos mecânicos. A libertação só se dá porque tais aspectos fo­
ram apropriados, dominados e internalizados, passando, em consequência, a
operar no interior de nossa própria estrutura orgânica. Poder-se-ia dizer que
o que ocorre, nesse caso, é uma superação no sentido dialético da palavra.
Os aspectos mecânicos foram negados por incorporação e não por exclusão.
Foram superados porque negados enquanto elementos externos e afirmados
como elementos internos.
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O processo descrito indica que só se aprende, de fato, quando se adquire


um habitus, isto é, uma disposição permanente, ou, dito de outra forma, quan­
do o objeto de aprendizagem se converte numa espécie de segunda natureza.
E isso exige tempo e esforços por vezes ingentes. A expressão segunda natureza
parece-me sugestiva justamente porque nós, que sabemos ler e escrever, ten­
demos a considerar esses atos como naturais. Nós os praticamos com tama­
nha naturalidade que sequer conseguimos nos imaginar desprovidos dessas
características. Temos mesmo dificuldade em nos recordar do período em que
éramos analfabetos. As coisas acontecem como se se tratasse de uma habilidade
natural e espontânea. E no entanto trata-se de uma habilidade adquirida e,
frise-se, não de modo espontâneo. A essa habilidade só se pode chegar por um
processo deliberado e sistemático. Por aí se pode perceber por que o melhor
escritor não será, apenas por esse fato, o melhor alfabetizador. Um grande
escritor atingiu tal domínio da língua que terá dificuldade em compreender
os percalços de um alfabetizando diante de obstáculos que, para ele, inexis-
tem ou, quando muito, não passam de brincadeira de criança. Para que ele se
converta num bom alfabetizador, será necessário aliar ao domínio da língua
o domínio do processo pedagógico indispensável para se passar da condição
de analfabeto à condição de alfabetizado. Com efeito, sendo um processo de­
liberado e sistemático, ele deverá ser organizado. O currículo deverá traduzir
essa organização dispondo o tempo, os agentes e os instrumentos necessários
para que os esforços do alfabetizando sejam coroados de êxito.
Adquirir um habitus significa criar uma situação irreversível. Para isso,
porém, é preciso ter insistência e persistência; faz-se mister repetir muitas vezes
determinados atos até que eles se fixem. Não é, pois, por acaso que a duração
da escola primária é fixada em todos os países em pelo menos quatro anos. Isso
indica que esse tempo é o mínimo indispensável. Pode-se chegar a conseguir
decifrar a escrita, a reconhecer os códigos em um ano, assim como com algu­
mas lições práticas será possível dirigir um automóvel. Mas do mesmo modo
que a interrupção, o abandono do volante antes que se complete a aprendi­
zagem determinará uma reversão, também isso ocorre com o aprendizado da
leitura. Inversamente, completado o processo, adquirido o habitus, atingida a
segunda natureza, a interrupção da atividade, ainda que por longo tempo, não
acarreta a reversão. Consequentemente, se é possível supor, na escola básica,
que a identificação e o reconhecimento dos mecanismos elementares possam
ocorrer no primeiro ano, a fixação desses mecanismos supõe uma continuidade
que se estende por pelo menos mais três anos. É importante assinalar que essa
continuidade se dará através do conjunto do currículo da escola elementar.
20 PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

A criança passará a estudar ciências naturais, história, geografia, aritmética


através da linguagem escrita, isto é, lendo e escrevendo de modo sistemático.
Dá-se, assim, o seu ingresso no universo letrado. Em suma, pela mediação da
escola, acontece a passagem do saber espontâneo ao saber sistematizado, da
cultura popular à cultura erudita. Cumpre assinalar, também aqui, que se trata
de um movimento dialético, isto é, a ação escolar permite que se acrescentem
novas determinações que enriquecem as anteriores e estas, portanto, de forma
alguma são excluídas. Assim, o acesso à cultura erudita possibilita a apropriação
de novas formas por meio das quais se podem expressar os próprios conteúdos
do saber popular. Cabe, pois, não perder de vista o caráter derivado da cultura
erudita em relação à cultura popular, cuja primazia não é destronada. Sendo
uma determinação que se acrescenta, a restrição do acesso à cultura erudita
conferirá àqueles que dela se apropriam uma situação de privilégio, uma vez
que o aspecto popular não lhes é estranho. A recíproca, porém, não é verda­
deira: os membros da população marginalizados da cultura letrada tenderão
a encará-la como uma potência estranha que os desarma e domina.
O que já foi dito aqui a respeito da escola, em que sobressai o aspecto re­
lativo ao conhecimento elaborado (ciência), parece-me ser válido também para
outras modalidades da prática pedagógica, voltadas precipuamente para outros
aspectos, tais como o desenvolvimento da valorização e simbolização.
Em conclusão: a compreensão da natureza da educação enquanto um
trabalho não material, cujo produto não se separa do ato de produção, permite-
nos situar a especificidade de educação como referida aos conhecimentos,
ideias, conceitos, valores, atitudes, hábitos, símbolos sob o aspecto de elementos
necessários à formação da humanidade em cada indivíduo singular, na for­
ma de uma segunda natureza, que se produz, deliberada e intencionalmente,
através de relações pedagógicas historicamente determinadas que se travam
entre os homens.
A partir daí se abre também a perspectiva da especificidade dos estu­
dos pedagógicos (ciência da educação) que, diferentemente das ciências da
natureza (preocupadas com a identificação dos fenômenos naturais) e das
ciências humanas (preocupadas com a identificação dos fenômenos culturais),
preocupa-se com a identificação dos elementos naturais e culturais necessários
à constituição da humanidade em cada ser humano e à descoberta das formas
adequadas para se atingir esse objetivo.

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