A Relação Mente-Corpo em John Searle

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-


GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA ÁREA DE FILOSOFIA DA
MENTE, EPISTEMOLOGIA E LÓGICA

PAULO UZAI JUNIOR

A RELAÇÃO MENTE-CORPO EM JOHN SEARLE

MARÍLIA
2016
PAULO UZAI JUNIOR

A RELAÇÃO MENTE-CORPO EM JOHN SEARLE

Dissertação apresentada, para obtenção do título


de Mestre em Filosofia, ao Programa Pós-
Graduação em Filosofia da Faculdade de
Filosofia e Ciências da Universidade Estadual
Paulista – UNESP − Campus de Marília.
Área de Concentração em Filosofia da Mente,
Epistemologia e Lógica.

Orientador: Prof. Dr. Jonas Gonçalves Coelho

MARÍLIA
2016
Uzai Junior, Paulo.
Uz1r A relação mente-corpo em John Searle / Paulo Uzai
Junior. – Marília, 2016.
154 f. ; 30 cm.

Orientador: Jonas Gonçalves Coelho.

Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade


Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências, 2016.
Bibliografia: f. 151-154

1. Filosofia da mente. 2. Materialismo. 3. Naturalismo.


4. Filosofia moderna. 5. Reducionismo (Psicologia). I.
Título.

CDD 190
PAULO UZAI JUNIOR

A RELAÇÃO MENTE-CORPO EM JOHN SEARLE

Dissertação apresentada junto ao Programa de


Pós-Graduação em Filosofia, da Faculdade de
Filosofia e Ciências da Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de
Marília, como requisito para a obtenção do
título de mestre em Filosofia, sob a orientação
do Prof. Dr. Jonas Gonçalves Coelho.

Data de Defesa: 29/06/2016

BANCA EXAMINADORA:

Titular 1 (orientador): Prof. Dr. Jonas Gonçalves Coelho (UNESP/Bauru - SP)

_________________________________________________________________________

Titular 2: Prof. Dr. Marcos Antônio Alves (UNESP/Marília - SP).

_________________________________________________________________________

Titular 3: Prof. Dr. Leonardo Ferreira Almada (UFU/Uberlândia - MG).

________________________________________________________________________

Suplente interno: Profa. Dra. Mariana Claudia Broens (UNESP/Marília - SP).

________________________________________________________________________

Suplente externo: Prof. Dr. Osvaldo Frota Pessoa Junior (USP/São Paulo - SP).

________________________________________________________________________
AGRADECIMENTOS
Relutei muito comigo mesmo para escrever isso. Não que me falte
agradecimentos, muito pelo contrário. O que me deixou aborrecido foram as tentativas
frustradas de escrever esta parte da dissertação. E foram frustradas por um motivo muito
simples: detesto escritas protocolares, onde se reflete o burocratismo frio ou a
insinceridade de palavras mecânicas. Muitos dos agradecimentos, elogios e
cumprimentos apenas mostram esse tipo de verbalismo oco, onde o falso de cada um se
manifesta de maneira terrível. Tudo isso senti enquanto tentava escrever esses
agradecimentos. Talvez não consiga fugir à regra, mas tentarei, com toda a sinceridade
que ainda me resta.

Em primeiro lugar, devo todo o meu processo de educação escolar formal a


meus pais, Isabel e Paulo. Desde a infância eles me incentivaram a sempre continuar
estudando, pois, segundo eles, apenas isso poderia me dar algum futuro decente. Não sei
se meu futuro (que agora é presente) é decente ou indecente, mas sem essa incessante
cobrança em relação aos estudos, eu nunca teria ido tão longe. Talvez teria parado no
ensino médio, onde me era custoso até mesmo levantar e ir à escola.

Meus dois irmãos caçulas, Lucas e Luis, formaram o público piloto da minha
dissertação. Expus a eles alguns temas que figuram por essas páginas, em momentos
que julguei adequados, ao meio de nossas conversas. As reações de compreensão ou
incompreensão deles fizeram com que eu mudasse algumas partes da dissertação,
tentando deixá-las mais claras e distintas. Aliás, essas exposições fizeram com que eu
sentisse a universalidade do tema ao qual eu estava me dedicando. Malgrado tudo, todos
têm alguma opinião sobre a mente humana, ou ao menos sobre os próprios estados
mentais.

Para encerrar os agradecimentos familiares, devo muito aos meus dois tios,
Neuci e Samuel, por terem me acolhido nos dias que permanecia em Marília. Pessoas
adoráveis e admiráveis, a maneira deles. Nunca vou esquecer das piadas que meu tio
fazia quando eu chegava em sua casa. Ainda me divirto quando relembro desse
momento. Enfim, muito obrigado aos dois. Vocês foram muito importantes.

Meus dois amigos, Chrystian e Davi, também foram importantes nesse processo.
Nossas discussões filosóficas, e pseudofilosóficas, trouxeram-me algumas reflexões
importantes. Também agradeço a minha professora de Francês, Joana. pessoa
inteligente e dedicada, que fez com que eu saísse de nenhum para algum conhecimento
da língua francesa. Muito obrigado a todas essas pessoas.

Em relação ao corpo discente, meus colegas, agradeço a companhia por esses


anos. Muito provavelmente a companhia se estenderá, sabe-se lá até quando, em novos
congressos, colóquios, encontros etc. Fran, Josy, Amanda, Mariana Vitti, Renan, Paulo,
Edilene, Sílvio, Bruno e Renatinha. Os finais de tarde no café e as noites na casa da
Amanda (ou num lugar próximo dali, que todos sabem onde é) serão inesquecíveis.
Construímos e fortalecemos uma boa relação. Além disso, conversar sobre o próprio
projeto de mestrado com um outro mestrando foi algo realmente importante para mim.
A pesquisa em filosofia é por vezes muito individual, fechando-se longo tempo em
leituras solitárias. Conversar com outras pessoas sobre isso, sobre o que estamos lendo,
sobre o que estamos pesquisando, é algo, a meu ver, essencial. Novas ideias surgem
desse intercâmbio. Agradeço a todos os meus colegas mestrando pelos bons momentos
que passamos juntos. Ao Paulo Martins, um agradecimento especial, pelas animadas
discussões sobre literatura, poesia e cinema que tivemos, e que sempre temos quando
nos encontramos.

Em muitos momentos o corpo docente do programa de pós-graduação me fez


rever muitos pontos da minha dissertação, apenas ao assistir uma aula, ou até mesmo
com uma frase que fora dita durante a aula. A todos os professores que tive durante o
curso, Mariana Broens, Hércules Feitosa, Ricardo Tassinari, Alfredo Pereira e Kleber
Cecon, muito obrigado. Algumas aulas me mostraram que realmente vale a penas fazer
pesquisa em filosofia.

Eu devo agradecer enormemente aos membros da minha banca de qualificação e


defesa, Marcos Antônio e Leonardo Almada. As sugestões que esses dois sujeitos
fizeram foram de extrema importância para o aprofundamento de algumas questões da
dissertação. Fizeram uma leitura séria e isenta, mostrando os pontos fortes e fracos da
dissertação e onde ela deveria ser melhorada. Contudo, algumas questões colocadas por
eles ficaram sem resposta. Tudo por conta de sua complexidade, que abrem para
pesquisas independentes. Mas talvez − mesmo na hipótese de eu me dedicar a essas
pesquisas− eu não encontraria as respostas apropriadas. Algumas dessas questões eu
deveria passar minha vida toda pensando, sem a garantia de encontrar uma resposta
satisfatória. Julgo que esse seja o drama, e também encanto, maior da filosofia.

Ao meu orientador, Jonas Gonçalves Coelho, faço um agradecimento especial.


Estamos há quatro anos trabalhando juntos, desde a iniciação científica. Seu esquema de
trabalho possibilitou que eu desenvolvesse um tipo de responsabilidade e respeito com
os prazos que nunca pensei que teria. Ele nunca me cobrou absolutamente nada,
nenhum texto, relatório ou documentação. Contudo, nunca deixei de cumprir com essas
responsabilidades. E julgo que isso se deu porque eu segui seu exemplo. Acredito que a
ampliação das responsabilidades é algo essencial para a formação do acadêmico, e meu
contato com o Jonas possibilitou que eu visse como lidar com algumas situações.
Ademais, tenho uma dívida intelectual com esse sujeito. Tenho a convicção de que
dívida intelectual você carrega por toda a sua vida. Então eu serei, por toda vida, grato a
ele. Muito obrigado, Jonas!

Por fim, agradeço à CAPES por me fornecer uma bolsa de estudos sem a qual
não seria possível minha permanência no curso de mestrado. Não ignore as dificuldades
materiais, pois elas tornam a realidade muito mais dura. Muito obrigado, CAPES, por
amenizar a dureza da vida.
RESUMO

Há mais de três décadas, o filósofo estadunidense John Rogers Searle voltou-se para as
questões de filosofia da mente, donde apresenta sua solução para os variados problemas
acerca da natureza do mental. Sua primeiro incursão se deu com o livro Intentionality,
onde seu principal objetivo não era, num primeiro momento, solucionar problemas
referentes a essa questão, mas sim oferecer uma fundamentação conceitual mais sólido
para sua teoria dos atos de fala. Contudo, a partir deste livro Searle se volta
decisivamente para questões propriamente de filosofia da mente. Um de seus principais
focos é a relação entre mente-corpo, onde ele acredita que a solução teórico-cenceitual
para tal questão não é tão difícil quanto pensamos. Porém ele não deixa de abordar uma
série de outros temas afins que julga de extrema importância na consolidação de seu
escopo teórico, tal como o problema da causação mental e a subjetividade humana.
Dessa forma, a presente dissertação tem por objetivo principal apresentar, discutir e
avaliar criticamente a solução que Searle propõe a esses quatro problemas centrais da
filosofia da mente: relação mente-corpo, causação mental, subjetividade e
intencionalidade. Os três primeiros capítulos têm por objetivo mostrar como Searle
enxerga essas questões, ou seja, o que ele julga estar errado na filosofia da mente e qual
seria a solução mais adequada. No capítulo quatro iremos apresentar as principais
críticas à solução de John Searle, focando-nos numa abordagem temática. Dessa forma,
apresentaremos críticas a esses quatro temas que Searle julga serem essenciais em
filosofia da mente e sobre o qual construiu seu naturalismo biológico. Por fim, faremos
uma avaliação crítica do que foi apresentado. Com isso iremos analisar qual o peso das
críticas feitas à filosofia searlena, o que acreditamos estar correto nela e o que
discordamos.

Palavras-Chaves: Problema Mente-Cérebro. Intencionalidade. Causação Mental. John


Searle. Naturalismo Biológico. Mentalismo. Materialismo Contemporâneo.
Reducionismo. Filosofia Contemporânea.
ABSTRACT

There is more than thirty years, the American philosopher John Rogers Searle turned
around to the questions of philosophy of mind, whence presents his solution to varied
problems about the nature of mental. His first incursion occurred with the book
Intentionality, where your main objective was not to solve, at first, problems relating to
this issue, but rather to offer a theoretical grounding more solid to his theory of speech
acts. However, from this book Searle turns to questions specifically of philosophy of
mind. One of his main focus is the relationship between mind-body, where he believes
that the solution theoretical-conceptual for that question is not so difficult as we
thought. Nevertheless he is not leave of to broach a number of other related topics that
he considers of utmost importance in the consolidation of his theoretical scope, such as
the causation mental problem and the human subjectivity. Thereby, the present
dissertation have for main objective to show, to discuss and critically evaluate the
solution that Searle proposes these four central problems of the philosophy of mind:
mind-body relationship, mental causation, subjectivity and intentionality. The first three
chapters aims to show as Searle see these questions, in other words, what he believes to
be wrong in philosophy of mind and what would be the most appropriate solution. In
chapter four, we will go to show the main critics to John Searle's solution, focusing in a
thematic approach. Thus we will present critics of these four subjects that Searle
believes to be essentials in philosophy of mind, about which built your biological
naturalism. Lastly, we will make a critically evaluate of what was presented. Therewith
we will go to analyze the what weight of criticisms to Searle's philosophy, what qe
believe to be right and what we disagree.

Key-words: Mind-Body Problem. Intentionality. Mental Causation. John Searle.


Biological Naturalism. Materialism. Contemporany Materialism. Reductionism.
Contemporany Philosophy.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

1. Figura 1: Causação mental (SEARLE, 2004, p. 148).

2. Figura 2: Esquema da relação entre intenção prévia, intenção em ação e movimento


corporal (SEARLE, 2002a, p. 131).

3. Figura 3: Causação mental (SEARLE, 2002a, p. 374).

4. Figura 4: Sobredetermanação Causal (KIM, 1995).


5. Figura 5: Causação Descendente (KIM, 1995).
LISTA DE TABELAS

1. Tabela 1: Modo de funcionamento de um ato intencional (SEARLE, 2002a, p. 134).


2. Tabela 2: Diferença entre a intencionalidade na percepção e na ação (SEARLE,
2002a, p. 127).
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO..........................................................................................................19

CAPÍTULO 1: HÁ ALGO DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE?.................27

1.1. Apresentação...............................................................................................................29

1.2. O legado cartesiano....................................................................................................30


1.2.1. Nova forma de Dualismo..................................................................................33

1.3. A virada materialista..................................................................................................35


1.3.1. Behaviorismo.....................................................................................................37
1.3.2. Teoria da Identidade.........................................................................................40
1.3.2.1. Identidade Tipo-Tipo...............................................................................40
1.3.2.2. Identidade Ocorrência-Ocorrência.........................................................42

1.3.3. Funcionalismo...................................................................................................42
1.3.4. Funcionalismo Computacional.........................................................................45
1.3.5. Eliminativismo...................................................................................................48

1.4. Tentando minar os fundamentos...............................................................................50

1.5. Por que a tradição materialista permanece tão forte?.............................................52

CAPÍTULO 2: TENTANDO SOLUCIONAR O PROBLEMA MENTE-CORPO:


NATURALISMO BIOLÓGICO...............................................................................................55

2.1. Apresentação................................................................................................................57

2.2. Consciência e ciência contemporânea........................................................................58

2.3. Consciência: definição e aspectos fundamentais.......................................................60

2.3.1. Unidade...............................................................................................................62

2.3.2. Intencionalidade.................................................................................................63

2.3.3. Subjetividade......................................................................................................64

2.4. A relação Mente-Cérebro............................................................................................66


2.5. Causação Mental.........................................................................................................70

2.6. Programa de Pesquisa................................................................................................75

CAPÍTULO 3: INTENCIONALIDADE.................................................................................79

3.1. Apresentação...............................................................................................................81

3.2. O que é intencionalidade e como ela funciona?........................................................82

3.3. Intencionalidade como representação mental..........................................................85

3.4. Especulação sobre as formas básicas de intencionalidade......................................86

3.5. Intencionalidade da percepção..................................................................................87

3.6. Intencionalidade da ação............................................................................................93

3.7. Causação intencional.................................................................................................100

3.8. Rede intencional e o Background..............................................................................105

3.9. Significado e intencionalidade..................................................................................112

3.10. Intencionalidade e filosofia da mente.....................................................................115

CAPÍTULO 4: JOHN SEARLE E SEUS CRÍTICOS..........................................................119

4.1. Apresentação..............................................................................................................121

4.2. Dualismo de propriedades revisitado.......................................................................122

4.3. Psicologia popular contestada..................................................................................127

4.4. Homúnculos intencionais..........................................................................................132

4.5. O mental é um epifenômeno.....................................................................................138

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................145

6. REFERÊNCIAS...................................................................................................................151
19

1. INTRODUÇÃO

O livro The Concept of Mind de Gilbert Ryle marca uma mudança importante no
panorama filosófico do século XX. A partir deste livro muitos outros estudos foram
desenvolvidos na tentativa de resolver o mistério: qual a natureza da mente? Com efeito,
a mudança decisiva no seio da filosofia analítica gerada pelo livro de Ryle é por conta
da fundação, por assim dizer, de uma nova disciplina, qual seja, a filosofia da mente.
Em outras palavras, o interesse da filosofia analítica pelas questões ligadas à mente teve
em The Concept of Mind uma intensificação decisiva. Porém, mais de meio século
depois do importante trabalho de Ryle ainda não encontramos resposta satisfatória para
essa questão, apesar das várias tentativas de solução. Claro que os esforços não foram
vãos. Importantes trabalhos foram realizados, mostrando não somente a dificuldade do
problema, mas também a necessidade de um intercâmbio multi e inter disciplinar.

Contudo, seria errado dizer que nossa história começa com Ryle. O problema da
ontologia do mental remonta à, pelo menos, René Descartes1 e suas Meditações
Metafísicas. Grosso modo, Descartes estabeleceu uma distinção substancial entre a
matéria pensante (mente, ou alma) e a matéria extensa (corpo), dizendo que a mente
poderia ser apreendida mais clara e distintamente (sem nenhum risco de se enganar) do
que o corpo. Claro que essa distinção radical trouxe uma série de problemas2 que nos
assombram até hoje, tais como a relação entre mente-corpo, a identidade pessoal, o
problema da existência de outras mentes e o ceticismo para com o mundo exterior.

Nos séculos que se seguiram à Descartes, as tentativas de solução para os

________________
1. Vitor Caston (1998; 2007) discorda dessa atribuição histórica, dizendo que já pelo menos no período
socrático havia uma preocupação com a mente e sua relação com o mundo (também conhecido como
intencionalidade). Além disso, podemos corroborar essa tese, citando obras como o Fedro de Platão, ou
ainda Ética a Nicômaco ou De Anima de Aristóteles, nas quais se observa um verdadeiro esforço para se
compreender como a mente funciona e como poderíamos integrar mente e corpo. Porém, não podemos
negar que a contemporânea filosofia da mente caminha sobre a trilha aberta pelo cartesianismo, sendo
justamente nesse sentido que nossa história começa com René Descartes. Ainda estamos tentando
responder questões suscitadas pela filosofia cartesiana.
2. John Searle em Mind: a brief introduction (2004, p. 6-28) atribui à filosofia cartesiana a introdução de
oito problemas: problema mente-corpo, o problema das outras mentes, o ceticismo sobre o mundo
exterior, a análise da percepção, o livre-arbítrio, o problema do Self e da identidade pessoal, a questão da
mente em outros animais e o problema do sono. Há mais quatro problemas que não derivam
necessariamente da filosofia cartesiana, mas que Searle diz se integraram no programa da filosofia da
mente: a intencionalidade, causação mental e epifenomenalismo, o inconsciente e o problema das
explicações psicológicas e sociais. Esses seriam, segundo Searle, os doze problemas gerais que são
abordados pela filosofia da mente.
20

problemas que se levantaram foram essencialmente teórico-conceituais. Contudo, no


século XX, com as novas descobertas das ciências naturais, as possibilidades de solução
desses problemas, principalmente do problema mente-corpo, ganharam novos
contornos. Por essa razão, o livro The Concept of Mind de Ryle é tão importante. Ele
marca uma nova fase no estudo da natureza do mental e, por assim dizer, inaugura uma
nova disciplina, a filosofia da mente.

Assim, a partir de Ryle, muitas tentativas de solução do problema mente-corpo


se apresentaram, e com isso muitas abordagens filosóficas ganharam vida apenas para
resolver este problema. Porém, apesar de serem abordagens filosóficas (i.e. teórico-
conceituais), elas agora mantêm um intenso diálogo com as ciências que têm por objeto,
seja direta ou indiretamente, a mente humana. As neurociências, a psicologia e até
mesmo a física são fornecedoras de importante material de investigação filosófica, sem
os quais a filosofia da mente contemporânea não caminharia. Assim, muitas das
pretensas soluções para os problemas levantados pela filosofia da mente trazem, em seu
escopo teórico, vários resultados de pesquisas feitas por essas ciências.

Com efeito, o objetivo desta dissertação é compreender criticamente uma dessas


tentativas de solução do problema mente-corpo, qual seja, a solução proposta pelo
filósofo estadunidense John Rogers Searle. Daremos especial atenção naquilo que
Searle acredita ser a resolução do problema mente-corpo, bem como as críticas feitas a
essa pretensa solução. Assim, para deixar claro ao leitor quais são os objetivos gerais e
particulares deste trabalho, apresentaremos brevemente alguns aspectos da filosofia da
mente de Searle, bem como encaixá-lo-emos dentro da atual discussão, ou seja, com
quem e contra quem o filósofo está discutindo.

Por mais de uma década, Searle pareceu não se preocupar com questões
propriamente de filosofia da mente. Seus trabalhos giravam em torno da filosofia da
linguagem3, dos quais o principal é Speech Acts (1969; Atos de Fala, 1981). Porém,
com a publicação de Intentionality: an essay in the philosophy of mind (1983;
Intencionalidade, 1995/2002) Searle entra, efetivamente, no debate contemporâneo
sobre a natureza da mente humana. Mas, como diz o próprio Searle, com Intentionality
o filósofo apenas desejava uma fundamentação mais rigorosa de sua teoria dos atos de
fala. Por essa razão recorreu ao termo filosófico intencionalidade, dando a ele sua
________________
3. Contudo, podemos dizer que Searle já estava fazendo filosofia da mente, pois como o próprio filosofo
diz em A Redescoberta da Mente (2006, p. 01-02), a filosofia da linguagem é um ramo da filosofia da
mente, pois nenhuma teoria linguística estará completa sem explicar qual a relação entre mente e
linguagem.
21

própria versão e tentando relacionar mente e linguagem. Tentando investigar com mais
profundidade alguns aspectos da linguagem, Searle acaba percebendo que para
caminhar com mais fecundidade deveria investigar alguns aspectos do que vem a ser a
mente humana. Isso fez com que o filósofo fosse, gradativamente, passando de uma
filosofia puramente linguística para a filosofia da mente. Dessa forma, a partir de
Intencionalidade, Searle publica não apenas uma série de outros trabalhos que buscam
investigar a natureza dos estados mentais, mas também expressa (inúmeras vezes, aliás)
sua insatisfação para com a contemporânea filosofia da mente.

É interessante notar que, em Searle, observamos claramente o aspecto negativo


(ou histórico-crítico) e propositivo de sua filosofia da mente. Pela via histórico-crítica,
ele se afasta das principais abordagens que tentam solucionar o problema mente-corpo,
quais sejam, abordagens dualistas e materialistas (em suas mais diversas versões).
Critica duramente essas duas posições, concentrando, contudo, a artilharia pesada
naquilo que ele chama de tradição materialista em filosofia da mente, pois, segundo
Searle (2006), ela é a visão dominante dentro das atuais investigações sobre a mente
humana. Não obstante, o materialismo pode gerar muitas confusões, pois ela não é uma
abordagem homogênea4. Por tradição materialista em filosofia da mente, Searle designa
aquelas visões que depreciam ou hostilizam a mente de uma forma ou outra, dizendo
que ela ou não tem importância, ou sequer existe. Então, todas as abordagens que
entram nesse crivo searleano são denominadas por ele como materialistas.

Afastando-se dessas abordagens, Searle segue por uma via propositiva, ou seja,
constrói sua filosofia da mente. Para ele, qualquer abordagem que queria estudar o
fenômeno da mente humana deve, em primeiro lugar, considerar que ela é um fato da
realidade, ou seja, que a mente de fato existe. Com efeito, a proposta de Searle é abordar
o mental qua mental, ou seja, investigar os processos e estados mentais dentro de seus
próprios termos. Searle não despreza a apreensão intuitiva simples, por assim dizer, de
senso comum, que fazemos de nossos estados mentais. Ele diz que essa é uma realidade
óbvia e deve ser assim entendida. Contudo, esse tipo de discurso pode soar demasiado
dualista, pois se apega a algo etéreo e aparentemente não-físico como a mente, o que
seria contraditório com as pretensões do filósofo de se afastar do dualismo. Então
devemos nos perguntar: o que efetivamente Searle está chamando de mente?

________________
4. Só para exemplificar a heterogeneidade do termo materialismo, em especial na filosofia da mente,
muitas vezes vemos que ele é utilizado para denominar abordagens totalmente diferentes. O naturalismo
biológico de Searle, a teoria dos sistemas intencionais de Daniel Dennett e o eliminativismo de Paul
Churchland são posições radicalmente distintas, mas que podem receber todas o rótulo de “materialismo”.
22

O filósofo se diz fisicalista, pois não nega que nossa realidade é composta
apenas de matéria física e campos de força. Mas ele também salienta que nossa visão de
matéria mudou muito. Hoje, por matéria, não entendemos apenas as res extensa
cartesiana, mas sim algo muito mais sutil, como substâncias subatômicas que são
meramente pontos-energia (SEARLE, 2006). Ele não acredita que a mente seja algo
não-físico, bem como também não vê possibilidade de reduzi-la a nada além dela
mesma. Ou seja, a mente é ontologicamente real e deve ser assim investigada, com toda
sua carga de subjetividade e intencionalidade. Com isso, Searle se posiciona num
materialismo soft5, tentando reintroduzir a mente (assim por ele entendida) dentro do
estudo científico contemporâneo.

A partir dessa compreensão da mente como algo físico-biológico, mas


ontologicamente irredutível, Searle procura solucionar o problema da relação entre
mente e corpo. Percebemos, no conjunto da filosofia da mente searlena, que esse é o
problema principal que ele busca sanar, sendo que, a partir dele, uma série de outros
problemas seriam resolvidos, tais como o problema da causação mental, subjetividade e
intencionalidade. Ademais, Searle (2004) acredita que a conjunção desses quatro
problemas supracitados formam a estrutura central da filosofia da mente. Para o
filósofo, essas seriam as quatro questões fundamentais sobre a mente humana,

Apesar de haver quatro problemas fundamentais, como dissemos acima, Searle


(2004, 2006) acredita que o problema mente-corpo é o mais fundamental. Dessa forma,
os outros três problemas seriam apenas uma espécie de variação do problema principal.
Ou seja, não seria possível solucionar o problema da causação mental, subjetividade e
intencionalidade sem antes resolver a questão da relação mente-corpo. Claro, o filósofo
não nega que seja possível estudar tais temas em separado. Contudo, ao buscar uma
solução para cada um desses problemas em particular, nós teríamos, explícita ou
implicitamente, uma solução (ou algum esboço de solução) para o problema mente-
corpo.

É dessa maneira que Searle compreende a problemática da filosofia da mente e


tenta, a partir dela, construir sua solução. A mente humana é um fato biológico, ela faz
parte do sistema cerebral humano, sendo causada por e realizada nesse sistema.
Contudo, a mente é ontologicamente irredutível. Não podemos reduzir a
_________
5. Craig (1998, p. 173-174) diz que o materialismo soft é "aquele que aceita a realidade e irredutibilidade
da mente, mas afirma que ela depende da matéria de forma íntima − mais íntima que a mera dependência
causal, − sendo que o materialismo não é ameaçado pela irredutibilidade da mente" (tradução nossa).
Contudo, sendo mais precisos com a terminologia contemporânea, poderíamos colocar Searle dentro do
fisicalismo não-reducionista.
23

intencionalidade ou a subjetividade do mental à neurobiologia. Mas isso não faz com


que a mente seja algo fora do mundo descrito pelas ciências. Ela faz parte desse mesmo
mundo físico como qualquer outro fenômeno biológico. Então não haveria problema ao
atribuirmos eficácia causal ao mental.

Dessa forma, esboçado brevemente quais são as pretensões filosóficas de Searle


dentro da filosofia da mente, apresentaremos agora os objetivos gerais e específicos
desta dissertação, bem como sua estrutura.

Nosso principal objetivo é apresentar a solução que John Searle acredita oferecer
ao problema mente-corpo, para ele entendida como relação entre mente-cérebro. Ou
seja, queremos responder, à luz da filosofia searleana, como o cérebro poderia ser capaz
de produzir estados mentais conscientes? Como estados mentais podem ser causados
por e realizados no sistema cerebral? Como é possível a mente ser causalmente eficiente
no mundo físico em geral? O capítulo 2 abordará todas essas questões da assim
chamada filosofia propositiva de Searle. Ou seja, é neste capítulo que iremos tratar
efetivamente da solução para o problema mente-corpo oferecida pelo filósofo.

Searle (2004, 2006) julga que a solução ao problema mente-corpo o possibilita


solucionar outras questões importantíssimas, tais como a intencionalidade, a causação
mental e a subjetividade, que entram em íntima relação com o problema da relação
mente-corpo. Com efeito, o capítulo 2 terá também esse objetivo, ou seja, mostrar
como o filósofo resolve esses outros problemas e como ele entende a relação dessas
questões com o problema mente-corpo.

Contudo, antes de chegarmos à solução, iremos abordar porque Searle acredita


haver algo de errado com a filosofia da mente, em especial àquela exercida na segunda
metade do século XX e começo do XXI. No capítulo 1 iremos resumir as principais
abordagens em filosofia da mente e mostrar o que Searle vê de errado com cada uma
delas. Não temos a intenção, com esse capítulo, de esgotar nem aprofundar a discussão
de tais abordagens. Apenas apresentaremos brevemente, tanto sua fundamentação
teórica quanto algumas críticas a essas abordagens, principalmente as críticas do próprio
Searle. Entendemos que esse afastamento que o filósofo faz das grandes abordagens em
filosofia da mente é um movimento importante, marcando decisivamente seu
pensamento. Então julgamos que, privilegiando as críticas searleanas à essas
abordagens, daremos um passo decisivo para entendermos realmente sua solução para o
24

problema mente-corpo.

O capítulo 3 será reservado inteiramente à intencionalidade. Visto a importância


que essa noção tem na filosofia da mente de Searle, dedicamos tal capítulo não apenas
para mostrar qual a relação que a intencionalidade estabelece com os outros grandes
problema (relação mente-corpo, subjetividade e causação mental), mas sim para
explicarmos, em detalhes, como Searle entende tal conceito. Queremos responder a
questão de como estados intencionais (tais como crenças, desejos, intenção, ação
intencional etc.), essencialmente subjetivos, tem poder causal sobre a realidade. Dessa
forma, iremos abordar a noção searleana de intencionalidade, a fim de esclarecer essa
questão e ver sua plausibilidade. Outra questão que julgamos importante é saber como a
noção de background se integra na abordagem de Searle. Algo não-intencional, como o
background, poderia ser a base para a intencionalidade e, ao mesmo tempo, essa teoria
permanecer internalista? Uma espécie de apêndice do capítulo 3 será a relação da mente
com o significado. Acreditamos que esse tema poderia ser abordado isoladamente, mas
julgamos adequado figurá-lo junto ao capítulo sobre intencionalidade, por sua estreita
relação com a mesma (e também com a subjetividade). A pergunta essencial dessa seção
sobre o significado será estariam os significados na mente?

Porém, no capítulo 4, pretendemos abordar o outro lado da moeda. Traremos as


críticas a essa pretensa solução do problema mente-corpo oferecida por John Searle. As
perguntas centrais serão: a realização de estados mentais no cérebro não traria
contradições à proposta de irredutibilidade ontológica de Searle? Seria possível assumir
essa via intermediária, ou seja, conciliar estados mentais (dados por nossas intuições de
senso comum) com a descrição de mundo dado pela ciência, onde parece não restar
espaço para qualquer tipo de representação mental? Seriam os estados mentais
supervenientes a estrutura neuronal, como parece defender Searle?

Outra questão é que, por mais que Searle se esforce em se afastar do ranço
cartesiano, para alguns autores (cf. PRATA, 2011; 2012; KIM, 1993) o naturalismo
biológico incorreria num tipo de dualismo de propriedades, visto que propriedades
físico-cerebrais causariam algo não físico (mente). Ou seja, para tais autores ainda
estaríamos numa distinção mente-corpo ou, no mínimo, entre subjetividade-
objetividade, recaindo naquilo que o próprio Searle (1995, 2004, 2006) chamou de
linguagem cartesiana inadequada. Seguindo essa linha de crítica, veremos as
25

dificuldades que alguns autores (cf. LEPORE; VAN GULICK, 1991) apontam na
impossibilidade de se fazer uma redução ontológica da intencionalidade. Também
poderia haver uma ambivalência em Searle ao defender a subjetividade e o realismo
ingênuo (tese internalista) e, ao mesmo tempo, parecer compactuar com um fisicalismo
redutivo (ontologicamente), onde os estados mentais nada mais são do que o
comportamento neuronal em cérebros humanos (tese externalista)? Poderia também a
subjetividade (tal como Searle a entende) sobreviver em nossa cosmovisão científica (cf.
DENNETT, 1993)?

Ao final de cada seção do capítulo 4, quando for o caso, mostraremos como


Searle se posiciona frente a essas críticas. O filósofo consegue demonstrar a
implausibilidade das críticas, ou elas, em certo sentido, desmoronam o escopo teórico
searleano?

Para finalizar, não temos a pretensão, com esta dissertação, de esgotar a


discussão. Por mais que julguemos abordar os aspectos centrais da filosofia da mente de
Searle, bem como suas críticas, muita coisa ainda foi deixada de lado. Mas este recorte
era necessário, para um trabalho dessa natureza. Ademais, entendemos que a atividade
de interpretação de textos filosóficos deve permanecer sempre em aberto. Por mais
consagradas que possam ser as interpretações, nunca devemos nos fechar para novas
discussões. Caso esse fechamento aconteça, a própria reflexão filosófica (que também
existe, mesmo em interpretações de textos) se encerra, caindo, por assim dizer, num
dogmatismo obscurantista, onde a palavra final fora dada para todo sempre.
Acreditamos que, além de cumprir os objetivos desta dissertação, permanecemos
abertos para novas discussões.
Capítulo 1

HÁ ALGO DE ERRADO COM A


FILOSOFIA DA MENTE?
29

[...] A característica mais admirável é o quanto da corrente


principal da filosofia da mente dos últimos cinquenta anos
parece obviamente falsa. Acredito que não haja nenhuma outra
área da filosofia analítica contemporânea onde tantas coisas
implausíveis sejam afirmadas. Na filosofia da linguagem, por
exemplo, não é de modo algum comum negar a existência de
frases e atos de fala; mas, na filosofia da mente, fatos óbvios
sobre o mental, tais como o fato de que todos nós realmente
temos estados mentais subjetivos conscientes, e que esses não
são suprimíveis em favor de qualquer outra coisa, são
rotineiramente negados por muitos, talvez pela maioria dos
pensadores avançados do assunto. (SEARLE, A Redescoberta
da Mente, 2006, p. 10).

1.1. Apresentação

A estratégia filosófica de John Searle se passa em duas vias, uma negativa


(histórico-crítica) e outra propositiva. Pela via propositiva, Searle (2006) tenta resolver
o problema mente-corpo, dizendo que ele (ao menos teórico-conceitualmente) tem uma
solução muito simples, qual seja, "os fenômenos mentais são causados por processos
neurofisiológicos no cérebro, e são, eles próprios, características do cérebro." (p. 7).
Contudo, antes de abordarmos em detalhes o que o filósofo quer realmente dizer com
essa pretensa solução (cf. capítulo 2), iremos primeiro caminhar pela via histórico-
crítica.

Com isso, o presente capítulo apresentará tanto as principais abordagens em


filosofia da mente como as considerações feitas a elas por Searle, em sua tentativa de
"criticar e superar as tradições dominantes no estudo da mente, tanto a 'materialista'
quanto a 'dualista'." (SEARLE, 2006, p. 1). Contudo, não temos por objetivo apresentar
todas as variantes do materialismo e dualismo, bem como outras abordagens que tentam
sair dessa bipartição. Apresentaremos apenas as abordagens que Searle julga serem as
principais em filosofia da mente.

Julgamos necessário apresentar também o dualismo (ao menos em suas versões


mais famosas, quais sejam, substancial e de propriedades), pois por mais que ela seja
impopular dentro da contemporânea filosofia da mente, tal abordagem é àquela na qual
a folk psychology geralmente recorre para explicar seus processos e estados mentais.
Um outro motivo seria sua importância histórica. O grande dualista dos últimos séculos
é também um dos pais fundadores da filosofia moderna: René Descartes. Por mais que
30

fixemos o nascimento da filosofia da mente na metade do século passado, ninguém


pode negar que o problema mente-corpo começa efetivamente (ao menos na era
moderna da civilização ocidental) com Descartes.

Com efeito, iremos começar exatamente com esse filósofo, abordando, assim, o
dualismo. Depois passaremos às críticas ao materialismo (ou tradição materialista em
filosofia da mente), sobre o qual Searle se volta com mais força, por ser esta (em suas
mais variadas abordagens) a visão efetivamente dominante na atual filosofia da mente.

1.2. O legado cartesiano6

Podemos dizer que é na segunda meditação, em Meditações Metafísicas, que


Descartes (1973) faz a distinção metodológica entre o pensamento (res cogitans) e o
corpo (res externsa). Com essas meditações, o filósofo está na busca da base para um
edifício filosófico claro e distinto, ou seja, quer encontrar uma verdade fundamental a
partir da qual todas as outras verdades se apoiariam. Ele analisa os sentidos e tenta
observar se, através da percepção, é possível adquirir um conhecimento certo e
indubitável. Contudo, Descartes alerta que os sentidos por vezes nos enganam. Podemos
achar que vemos ou ouvimos algo, mas quando os analisados mais de perto percebemos
que, na realidade, não eram aquilo que pensávamos ser (vide ilusões e alucinações).
Além disso, muitas vezes temos sonhos que acreditamos verdadeiramente sentir as
coisas, tendo experiências tão vívidas que nos surpreendemos quando descobrimos que
eram apenas sonhos. Ou seja, a questão posta por Descartes é como podemos confiar em
nossos sentidos, se eles com tanta frequência podem nos enganar? Então, para o
filósofo, não seria lícito confiar naquele que já nos enganou uma vez. Dessa forma, os
sentidos não podem ser o fundamento de todas as certezas.

Com isso, Descartes chega à conclusão de que podemos estar enganados com
relação a tudo do mundo exterior. Nossos sentidos podem nos enganar, ou podemos
estar sonhando, ou até mesmo podemos estar sendo enganados por um Gênio Maligno
que esteja imputando em nós esses pensamentos e sensações, ludibriando-nos quanto ao
nosso corpo e o mundo exterior de forma geral. Contudo, por mais que nossos sentidos

____________
6. Pedimos desculpas aos leitores pela concisão dessa seção. Sabemos que a filosofia de René Descartes é
muito profunda e influente, merecendo, dessa forma, uma análise mais acurada. Contudo, por não ser
nosso objetivo analisar com minúcias tal filosofia, mas sim apresentá-la brevemente, bem como as
críticas feita à ela por John Searle, pedimos a compreensão e paciência dos leitores.
31

possam nos enganar, por mais que estejamos sonhando ou que um Gênio Maligno esteja
produzindo todas essas imagens em nossas mentes apenas para nos equivocar, não
podemos estar enganados quando pensamos ser alguma coisa. Temos essa consciência
de eu, então, ao menos no momento em que pensamos, nós efetivamente existimos e
somos alguma coisa, portanto, penso, logo existo (DESCARTES, 1973).

Contudo, a natureza desse pensamento deve ser diferente do corpo, pois se esse
pensamento fosse da mesma substância das coisas físicas, então ele deveria sofrer as
implicações do mundo físico em geral e, com isso, deveria também ser posto em dúvida
junto com todos os outros elementos do mundo (corpo, cinco sentidos, mundo exterior
etc). Ora, se os cinco sentidos podem ser falhos e apenas a introspecção, ou o olhar do
espírito, é que realmente garante a minha existência (portanto, tem uma primazia na
escala dos valores), percebemos que existe algo no qual podemos chegar sem a ajuda
desses sentidos (aliás, os sentidos são inúteis no que se refere à observação do espírito),
portanto, o pensamento deve ser de outra natureza (DESCARTES, 1973). E foi a partir
dessas reflexões que observamos o início da distinção substancial entre mente e corpo
na filosofia moderna.

Além disso, Maslin (2009) diz que, de algum modo, essa substância mental, não
física, estaria conectada ao corpo físico, dando a ele poderes causais. Para Descartes
(1973) a coisa pensante está incorporada (ou impregnada) ao corpo e é, em princípio,
indivisível. Isso seria a prova da imortalidade da alma, pois enquanto o corpo humano
se degenera, a alma seria indivisível e eterna, pois não sofreria as degradações e
percalços das determinações físicas.
Apesar deste grande esforço reflexivo, que tenta, de certa forma, salvar a
imortalidade da alma humana, há vários problemas com o dualismo substancial. Um dos
problemas mais sérios se expressa numa contradição com a própria cosmovisão da
época. Como diz Teixeira (2008), Descartes tomava o mecanicismo como fundamento
para sua filosofia, ou seja, um princípio de causa e efeito que governa todo o universo.
Mas é exatamente aqui que começam os nossos problemas. Se a alma é de outra
natureza que não física, portando, não sofrendo as determinações físicas habituais de
todos os objetos da realidade, então como pode haver um intercâmbio entre aquilo que o
corpo sente e o que a alma experimenta? Se, por exemplo, meu dedo é esmagado por
um martelo, como minha alma pode sentir alguma coisa se foi meu corpo que sofreu o
dano? Essa dificuldade é a essência mesma do problema mente-corpo. "A
32

impossibilidade de imaginar algum tipo de interação causal entre mente e corpo


comprometia o caráter universal do princípio de causalidade, foi isso que fez com que a
relação mente-corpo se tornasse um problema." (TEIXEIRA, 2008, p. 30, grifo do
autor). Nem mesmo a tentativa de Descartes de integrar o corpo e as experiências
sentidas pelo espírito, através dos espíritos animais, poderia resolver o problema. Se
concordarmos que o fechamento causal restringe a causalidade apenas ao mundo físico,
devemos nos perguntar como a mente pode ser causa de qualquer coisa se ela está fora
desse baixo mundo. Os espíritos animais, que segundo Descartes fariam o papel de
integração, na glândula pineal, entre as experiências do espírito e o corpo, seriam físicos
ou não físicos? Ademais, o que realmente seriam os espíritos animais? Enfim, essa
dificuldade de integração entre mente e corpo, que os críticos de Descartes enxergam
em sua filosofia, é o que impulsionou a maior parte das reflexões em filosofia da mente.

Searle (2004) diz que a crítica mais severa ao dualismo de substância é


exatamente este problema da relação causal entre mente e corpo. Além disso, daquilo
que nós sabemos sobre como o mundo físico funciona, fica realmente difícil sustentar o
dualismo substancial, por mais que tenham havido sérias tentativas7. Imaginar a mente
separada, à parte do mundo físico como um todo, torna o dualismo insustentável
cientificamente, pois, de qualquer forma, a ciência quer, e só pode conhecer, o mundo
físico em torno.

Contudo, o próprio Searle (2004) acredita haver três maneiras da hipótese


dualista de substância ser levada a cabo. A primeira é acreditando em alguma divindade.
Nossas almas, dessa forma, seriam criadas por um Deus que tudo pode e elas, como tais,
não fariam parte do mundo físico (ou estariam além e acima deste mundo). Estaríamos
apenas aguardando o momento em que nosso corpo desvanecesse para assim viver
como plenos espíritos. A segunda hipótese é da mecânica quântica. Na visão
mecanicista tradicional, o problema mente-corpo tradicional só se coloca numa física
newtoniana obsoleta. Já numa interpretação com mediação quântica, a consciência é
necessária para completar o colapso da função de onda e assim criar partículas e eventos
quânticos (SEARLE, 2004). Então a consciência seria uma parte da natureza primordial,
que seria necessária para explicar os processos cerebrais e tudo o mais. Portanto estaria,
por assim dizer, além da natureza como a vemos no dia-a-dia. Já a terceira hipótese é a
do idealismo. Não o monismo idealista (onde há apenas mentes), mas sim numa espécie
de solipsismo, onde o que existe é, na verdade, criação da minha mente. Não obstante,
____________
7. Cf. Searle (2004, p. 29-33), onde o filósofo diz que Karl Popper e J. C. Eccles tentaram tornar o
dualismo, à moda cartesiana, cientificamente defensável.
33

Searle (2004) não discute em profundidade essas três possibilidades, mas diz que não
concorda com nenhuma delas. Acredita que o dualismo de substância não consegue
resolver o problema da causação mental e, ademais, ele é a fonte dos erros e confusões
do materialismo contemporâneo (cf. seção 3 e subsequentes deste capítulo).

As dificuldades que aqui apontamos, referentes ao dualismo substancial e ao


aparente fracasso das abordagens fisicalistas reducionistas em estabelecer uma
descrição adequada de como nossos estados mentais subjetivos são apenas estados
físicos (cf. seção 1.3 e subsequentes), causaram um mal estar, especialmente a partir da
segunda metade do século XX, que serviu como fonte anímica para uma nova forma de
dualismo (TEIXEIRA , 2004).

1.2.1. Dualismo de propriedades

Conforme os novos conhecimentos de como o cérebro funciona, e um


afastamento cada vez maior entre as ciências e as questões ditas espirituais (no sentido
religioso do termo), o dualismo de substância foi se tornando cada vez mais impopular
dentro dos círculos especializados. Contudo, como vimos na seção anterior, a distinção
substancial feita por Descartes trouxe um problema muito grande a resolver, qual seja,
como se relacionam, efetivamente, mente e corpo? Se realmente parece haver uma
diferença em como eu sinto o mundo (subjetividade) e como o mundo se apresenta de
forma geral (objetividade), haveria alguma forma de conciliar essas duas visões sem,
com isso, abolir a subjetividade? Dessa forma, uma nova abordagem surgiu, o dualismo
de propriedades, inspirada, em certo sentido, pelo dualismo de substância.

Assim como outras abordagens em filosofia da mente, o dualismo de


propriedades não é homogêneo. Há variações dentro desta abordagem. Contudo, de
modo geral, podemos dizer que um dualista de propriedades aceita a cosmovisão
naturalista contemporânea, ou seja, acredita que no mundo não haja nada além de
matéria e suas propriedades. Porém, a questão é que, para tal versão do dualismo, há
dois tipos de propriedades no mundo irredutíveis uma a outra, a saber, propriedades
mentais e propriedades físicas. Com efeito, a mente dos seres humanos (e as de outros
animais) seria uma propriedade emergente do cérebro (MASLIN, 2009). Ou seja
34

enquanto o dualismo substancial diz que há dois tipos de substâncias no mundo, o


dualismo de propriedades acredita que haja apenas uma substância, qual seja, a física.
Porém a estrutura cerebral tem uma propriedades, um atributo especial que a diferencia
de outras organizações físicas, a saber, a propriedade mental. A evolução animal
proporcionou a organização necessária ao sistema biológico, de tal forma que foi
possível o surgimento de tal propriedade. Assim, argumenta o dualista de propriedades,
o cérebro está organizado de tal forma a proporcionar a existência dos estados e
processos mentais subjetivos. Mas essa complexa propriedade não poderia ser descrita
ou reduzida em termos fisicalistas, pois estes trazem uma imagem sempre incompleta da
realidade e totalidade da consciência. Dessa forma, as propriedades mentais seriam
sempre irredutíveis, estando acima e/ou além da descrição puramente fisicalista.

Mas há uma diferença muito sutil quando falamos em emergência no dualismo


de propriedade e a escola propriamente dita emergentista. O emergentismo toma como
pressuposto que toda realidade é composta tal como a física a descreve. Em alguns
sistemas, a organização bioquímica permitiu a emergência de algo que comumente
chamamos de mente. A confusão entre dualismo de propriedades e emergência se dá
justamente aqui. Ao que parece, ambos estão falando da mesma coisa. Contudo, o que o
dualismo de propriedade postula é que a propriedade mental está, de algum modo,
acima e além do mundo físico. Essas propriedades emergentes, de alguma forma,
ganham um estatuto diferenciado. Contudo, a escola emergentista não está disposta a
aceitar isso. A emergência de estados mentais não faz com que eles estejam acima ou
além dos estados neurocerebrais.

Feita essas distinções, e não obstante o esforço dos dualistas de propriedade,


Searle (2004) diz que tal abordagem herda o mesmo problema do dualismo substancial,
ou seja, como essa propriedade mental, que é diferente da propriedade puramente física,
pode ter alguma influência causal efetiva no mundo físico em geral? Além disso, se
acreditamos que há um fechamento causal no mundo, então nada, exceto as
propriedades físicas, pode influenciá-lo causalmente. Se o mental não faz parte do
mundo físico, então ele não é capaz de ter interferência causal, tornando-se assim um
epifenômeno (o que, diga-se de passagem, nem todos os dualistas de propriedades
estariam dispostos a admitir).
35

Maslin (2009) diz que o dualismo de propriedades tem três questões muito
difíceis para resolver, quais sejam, 1) qual a natureza das propriedades mentais?, 2)
como o cérebro físico suscita aspectos mentais? e 3) como essa teoria pode evitar uma
ida direta ao epifenomenalismo? A não ser que se abrace efetivamente o
epifenomenalismo (o que não é feito por todos os dualistas de propriedades), esse tipo
de questão se torna realmente embaraçosa para tal abordagem.

Apesar da impopularidade acadêmica, Searle (2004) acredita que o dualismo não


será deixado totalmente de lado. Hoje, no século XXI, essa abordagem parece estar
fazendo um esforço para retornar, em parte por conta do interesse recente pela
consciência. Contudo, diferentemente de alguns filósofos da mente (como Paul
Churchland e Daniel Dennett), Searle não desmerece totalmente o dualismo. Ele diz que
o insight dos dualistas é primitivo e poderoso (SEARLE, 2004), qual seja, nós todos
temos experiências conscientes reais e sabemos que elas não são o mesmo tipo de coisa
que os objetos físicos. Podemos refinar esse insight dizendo que tudo no mundo é feito
de partículas subatômicas e campos de força, e que coisas como gostos e cores
poderiam sim ser meras ilusões, ou características superficiais, como solidez e liquidez.
Se pudéssemos ver no nível subatômico, não veríamos a mesa como um objeto sólido,
mas sim apenas como uma nuvem de partículas. Contudo, diria o dualista, a consciência
não é composta apenas de partículas. O que quer que ela seja, a mente está acima e além
do mundo físico em torno. Basicamente esse é o insight que inspira os dualistas de
propriedade hoje em dia. Apesar de Searle não concordar com essa forma de dualismo
(visto os problemas acima apresentados) ele acredita que ao menos o insight que
inspirou essa abordagem é respeitável (e, em certo sentido, Searle leva tal insight para
dentro de sua teoria).

1. 3. A virada materialista

A publicação de Concept of Mind de Gilbert Ryle não marcou apenas o início da


assim chamada filosofia da mente, mas também uma nova forma de abordar tal questão.
Podemos dizer que a história recente do materialismo, como Searle (2006) assim
denomina, começa com este livro, tornando-se a visão dominante em filosofia da mente
em todo século XX, sendo ainda muito influente neste início de século XXI. Searle
(2004) comenta, de maneira jocosa, que em algum sentido o materialismo é a religião de
36

nosso tempo, ao menos entre os experts profissionais nas áreas de psicologia, filosofia,
ciência cognitiva e muitas outras áreas relacionadas ao estudo da mente. Como qualquer
religião, os materialistas aceitam, sem questionar, o quadro geral onde outras questões
podem ser colocadas, analisadas e respondidas.

A história do materialismo é fascinante, porque apesar dos


materialistas estarem convencidos, com fé quase religiosa, de que sua
visão deve estar certa, eles não mostram ser capazes de formular uma
versão dele [materialismo] de modo a ficarem completamente
satisfeitos e que possa ser geralmente aceita por outros filósofos,
mesmo por outros materialistas. (SEARLE, 2004, p. 34, tradução
nossa).

Essa dificuldade em se encontrar uma formulação aceitável para todos os


materialistas acontece, segundo Searle (2004), por conta da negação das características
óbvias e universais da experiência humana, quais sejam, vida consciente e
intencionalidade. Os materialistas acabam negando, de uma forma ou outra, essas
características fundamentais. Dessa forma, há um claro problema em se formular uma
teoria, por conta da falta dessas características.

Mas devemos delimitar exatamente o que Searle quer dizer com materialismo.
Por tradição materialista, Searle (2006) está fazendo referência àquelas abordagens que
aceitam um grupo de concepções e pressuposições metodológicas, tais como8:

1) A mente e a consciência, com todas as suas características especiais, têm uma


importância muito reduzida.
2) A ciência é objetiva, porque a própria realidade é objetiva.
3) E porque a realidade é objetiva, o melhor método para estudar a mente e
consciência é adotar o ponto de vista objetivo (de terceira pessoa).
4) A partir do ponto de vista de terceira pessoa, a única forma para conhecermos
outras mentes é através de seu comportamento.
5) O comportamento inteligente, e as relações causais entre comportamentos, são a
essência do mental.
6) Os eventos do universo, em princípio, são cognoscíveis e inteligíveis pelos seres
humanos em geral.
7) As únicas coisas que existem são essencialmente físicas, na forma em que o físico
é tradicionalmente concebido, isto é, oposto ao mental, ou etéreo, ou ainda, do
inteligível.

________
8. Cf. Searle (2006, p. 19-22).
37

As abordagens que tomam como pressuposto essas asserções são chamadas por
Searle (2006) de tradição materialista em filosofia da mente. Em resumo, as abordagens
materialistas a que o filósofo se refere são aquelas que querem depreciar, hostilizar ou
eliminar o caráter essencial da mente (intencionalidade e subjetividade). Com efeito,
apresentaremos agora as principais abordagens da dita tradição materialista. Contudo,
nessa exposição, em geral privilegiaremos as críticas que Searle faz a essas abordagens.

1.3.1. Behaviorismo

Essa foi uma das primeiras abordagens em filosofia da mente, sendo muito
influente nos anos de 1950 e 1960. As duas principais correntes dessa abordagem são o
behaviorismo metodológico e behaviorismo filosófico9. Mas essas duas formas de
behaviorismo compartilham de três tendências intelectuais, quais sejam, (1) uma
rejeição a qualquer forma de dualismo, (2) a ideia do positivismo lógico de que o
significado de uma sentença é, em última análise, uma questão de circunstâncias
observáveis e (3) a motivação de que há uma confusão linguística ou conceitual da
maior parte dos pressupostos filosóficos, dessa forma, deve-se fazer uma análise
cuidadosa da linguagem na qual o problema foi expresso (CHURCHLAND, 2004, p.
49). Com efeito, o problema mente e corpo, para ambas as correntes behavioristas, seria
um pseudoproblema. Falar sobre nossos estados interiores seria falar sobre nada além de
padrões comportamentais.

Mas aqui constitui o ponto fundamental da diferença entre as duas versões do


behaviorismo. O behaviorismo metodológico foi assim chamado, pois propunha um
método de investigação em psicologia que privilegiava o comportamento, não se
importando em dizer se existe ou não mente. Para eles, o dualismo cartesiano é apenas
cientificamente irrelevante (SEARLE, 2004, 2006). Dessa forma, o behaviorismo seria
um método de investigação e não uma específica doutrina ontológica.

Já o behaviorismo lógico diz que não poderia existir qualquer coisa chamada
mente, a não ser na medida que existiriam sob a forma de comportamento. Com isso, os
eventos mentais não seriam simplesmente efetivos padrões de comportamento, mas sim
___________
9. Não obstante, há uma outra vertente, hoje ainda com certa influência dentro da psicologia, que é o
behaviorismo radical de B. F. Skinner. A diferença fundamental, que constitui sua "radicalidade" (ZILIO,
2009), está no modo como trata o comportamento humano. Até mesmo os eventos privados, pelos quais
chamamos mentais, seriam apenas formas de comportamento encoberto. Contudo, não iremos abordar
essa forma de behaviorismo, mas julgamos que essa corrente compartilha ao menos de uma crítica em
comum com as outras, qual seja, seu antimentalismo, a negação completa de que possam haver estados
mentais tais como apreendidos por nossa introspecção comum.
38

disposições para o comportamento publicamente observável (SEARLE, 2006). Assim, a


análise do comportamento, nesta abordagem, segue a regra lógica "se p então q", ou
seja, para analisar os assim ditos "estados interiores", utilizar-se-á a regra de Ramsey10:
se tais e tais condições são obtidas, tais e tais comportamentos se seguirão (SEARLE,
2004).

Searle (2006) diz que há dois tipos de objeções ao behaviorismo, as de senso-


comum e as mais técnicas. Para o filósofo, a crítica de senso comum, apesar de ser
assim chamada, é muito poderosa. Tal crítica consiste em denunciar a óbvia negação
dos fenômenos mentais. "Não fica nada para a experiência subjetiva do pensar ou do
sentir na explicação behaviorista: existem apenas padrões de comportamento
objetivamente observáveis." (SEARLE, 2006, p. 53).

Cada uma das versões do behaviorismo têm suas objeções técnicas. Iremos
mostrar apenas uma objeção à cada corrente, apresentadas por Searle (2004, 2006), e
um argumento geral que se aplica as duas versões do behaviorismo. A respeito do
behaviorismo metodológico, Noam Chomsky (apud SEARLE, 2004) argumentou que é
um erro dizer que o estudo psicológico seria a mesma coisa que o estudo do
comportamento humano, pois seria o mesmo que dizermos que a ciência física é o
estudo da leitura métrica. Claro que o comportamento é uma evidência do psicológico,
assim como a leitura métrica é uma evidência da física, mas é um equívoco confundir a
evidência de um assunto com o assunto mesmo. O assunto de que trata a psicologia é a
mente, e o comportamento é apenas a evidência e uma das características do mental.

Já as dificuldades com o behaviorismo lógico são ainda mais patentes


(SEARLE, 2004). Tal abordagem não oferece nenhuma evidência de como vamos
traduzir as afirmações mentais em afirmações comportamentais. A crítica maior é como
fazer isso sem cair em circularidade. Como a teoria se apresenta, parece que, ao
tentarmos fazer uma análise comportamental de uma crença qualquer, temos que
recorrer a um desejo, e vice-versa (SEARLE, 2006). Ou seja, ao analisarmos a crença
de um indivíduo, por exemplo, a crença de que vai chover, tal estado intencional se
manifesta em comportamentos observáveis, como ele fechar as janelas, tirar as roupas
do varal etc. Contudo, esses comportamentos só fazem sentido se considerarmos o
desejo desse indivíduo de que a água da chuva não entre em sua casa e nem molhe suas

__________
10. Inspirado pelo matemático e filósofo britânico Frank Ramsey (1903-1930), a sentença de Ramsey diz
que na conjunção prévia das sentenças, nós simplesmente suprimimos a expressão "crença de" e
colocamos em seu lugar "x". Então nós introduzimos na sentença um quantificador existencial, que diz
"há um x, tal que...". (SEARLE, 2004).
39

roupas. Assim, a crença é explicada pelo desejo e o desejo pela crença. Ao que parece,
entramos num círculo vicioso ao adotarmos o behaviorismo lógico como abordagem
para explicar os estados e processos mentais.

O argumento geral para as duas abordagens é, na realidade, dois experimentos


de pensamentos que tem a mesma função argumentativa: o super espartano e o super
ator. Imaginemos um sujeito, um hiper soldado; um super espartano; que consegue
suportar a dor de tal maneira a não expressá-la em seu comportamento verbal ou não
verbal. Mesmo sentindo dor, ele foi treinado a não demonstrá-la. Também suponhamos
que exista um excelente ator; um super ator; que consegue interpretar qualquer cena,
emoção, sentimento, enfim, que consegue enganar o público de tal maneira que parece,
realmente, que ele está sentindo aquilo que interpreta. Se o insight behaviorista estiver
certo, tanto o super espartano quanto o super ator terão seus estados mentais dirigidos
por seus comportamentos publicamente observáveis. Ou seja, iremos concluir, ao
vermos o super espartano sendo torturado − sentindo uma terrível dor, mas não
expressando-a comportamentalmente − que ele não está sentindo absolutamente nada.
Do mesmo modo, ao vermos um ator que interpreta uma emoção de alegria, por
exemplo, mas que na realidade está muito triste, devemos concluir que o estado mental
do super ator é de alegria, pois seu comportamento expressa tal estado.

O argumento do super espartano e super ator apela, justamente, para a falha na


observação puramente de terceira pessoa. Não que o comportamento não seja um
grande indicador dos estados mentais dos sujeitos, mas esse argumento sinaliza para a
dificuldade de se tomar apenas o comportamento como critério aferidor. Se somente ele
fosse o essencial, deveríamos chegar a conclusão absurda que os estados mentais tanto
do super espartano quanto do super ator são aqueles apresentados
comportamentalmente, mesmo que seus reais sentimentos sejam outros.

As objeções ao behaviorismo (mostradas aqui apenas brevemente) minou sua


influência acadêmica. Já nos anos de 1960 ela não era mais a abordagem preferida para
o estudo da natureza da consciência. Contudo, ao mesmo tempo que o behaviorismo
entrava em decadência de popularidade, uma nova abordagem surgia com muita força.
40

1.3.2. Teoria da Identidade

Contemporânea ao behaviorismo, a teoria da identidade surgiu com muita


influência dentro da tradição materialista em filosofia da mente. Tentou superar as
dificuldades behavioristas e transformar seu insight numa abordagem coerente, que
finalmente solucionasse o problema mente-corpo. Com efeito, os teóricos da identidade
não dizem, como os behavioristas lógicos, que Descartes estava errado em matéria de
lógica, mas sim que ele estava errado em matéria de fato. Nós não temos uma alma
dentro de um corpo, mas apenas um cérebro, e aquilo que achamos ser as disposições da
alma (alegria, sensação de dor, tristeza etc.) são apenas disposições cerebrais (e de todo
sistema nervoso). A teoria da identidade diz que a diferença entre ela e o behaviorismo
está no enfoque. Enquanto os behavioristas lógicos fazem uma análise lógica dos
conteúdos mentais (que eles acreditam ser apenas comportamentais), a teoria da
identidade apresenta um modo de existência desse mental, qual seja, existência idêntica
ao cerebral (SEARLE, 2004). É apenas uma questão de tempo, diz o teórico da
identidade, para descobrirmos empiricamente a identidade entre mente e cérebro. Assim
como a ciência descobriu que os raios são nada além de descargas elétricas, a água é
nada além de moléculas de H2O, logo se descobrirá que a mente é nada além de cérebro.

Não obstante, a teoria da identidade aparece em duas versões principais, quais


sejam, identidade de tipo (type-type identity) e identidade de ocorrência (token-token
identity). A segunda versão é um desenvolvimento da primeira, numa tentativa de
superar suas dificuldades. Mostraremos cada uma das versões, bem como as críticas
apontadas por Searle.

1.3.2.1. Identidade tipo-tipo

Essa foi a primeira versão da teoria da identidade. Ela diz, grosso modo, que
todo tipo de estado mental é idêntico com um tipo de estado físico. Com "tipo" de
estado físico e mental, essa abordagem está querendo dizer que um único e mesmo
estado mental tem um único e mesmo estado neurocerebral. Assim, por exemplo,
podemos dizer que nossa sensação subjetiva de dor é nada além (idêntica a) que
excitações das fibras axoniais C. A esperança de encontrar os correlatos cerebrais para
os estados e processos mentais é reforçado pelos avanços científicos. Ora, a história da
41

ciência dos últimos séculos nos provou a identidade de muitos fenômenos da natureza
(como no exemplo que usamos, água é nada além que moléculas de H2O). Então é de se
supor que, com os avanços da neurociência, encontraremos esses correlatos e finalmente
desvendaremos o mistério da consciência. Essa esperança se mostra, em certo sentido,
na afirmação de Place, quando ele diz que:

[...] as objeções lógicas que podem ser levantadas da afirmação 'a


consciência é um processo do cérebro' não são maiores do que as
objeções lógicas que podem ser levantadas da afirmação 'o relâmpago
é um movimento de cargas elétricas'. (PLACE, 1954, p. 225, tradução
nossa).

Mas há duas objeções que julgamos centrais contra a teoria de identidade tipo-
tipo. A primeira é que não parece fazer sentido dizer que um estado mental qualquer
seja idêntico a um e mesmo tipo de estado cerebral, pois se assim fosse, duas pessoas
diferentes, que tivessem a mesma crença (suponhamos, o São Paulo F.C. é o melhor
time de futebol do planeta Terra), deveriam ter a mesma localização neurofisiológica a
qual essa crença é idêntica. Parece muito supor que, dada as constituições particulares
de cada pessoa, as assim ditas manifestações mentais tenham correlatos
neurofisiológicos idênticos em todos os indivíduos humanos (SEARLE, 2004).

A outra crítica deriva da lei de Leibniz11. De acordo com tal lei, os estados e
processos mentais não podem ser idênticos aos neurofisiológicos, pois há propriedades
mentais que não são idênticas às cerebrais. Por exemplo, quando dou uma martelada em
meu dedo, eu não sinto a dor em minhas fibras axoniais C, mas sim em meu dedo
ferido. Então onde exatamente estaria a dor?12 (SEARLE, 2006).

Com efeito, como a ideia de que os estados mentais poderiam ser idênticos a um
e mesmo tipo de estado cerebral parecia forte demais, visto as dificuldades apresentadas
nesta seção, os teóricos da identidade acreditaram que poderiam preservar o insight
fisicalista numa asserção mais fraca. Assim, deu-se origem a uma nova forma de teoria
da identidade.

______________
11. Principio da identidade dos indiscerníveis (Lei de Leibniz): x e y são idênticos se, e somente se, x
e y compartilharem de todas as suas propriedades (MASLIN, 2009).
12. Não iremos aprofundar esse debate, pois nos desviaríamos muito da proposta deste capítulo. Contudo,
deixamos aqui registrado que sabemos que a discussão sobre a natureza da dor é muito ampla e, ainda, em
aberto.
42

1.3.2.2 Identidade ocorrência-ocorrência

A ideia básica da teoria da identidade ocorrência-ocorrência ainda continua


sendo que a mente é nada além de um estado neurocerebral. No entanto, a identidade
entre físico e mental se apresenta de uma maneira muito mais sofisticada. Os estados
mentais podem representar conjuntos de ocorrências cerebrais diferentes. Por exemplo,
a dor não tem de ser especificamente a excitação das fibras C, mas podem acontecer em
diversas ocorrências cerebrais. Essa manobra foi um salto importante para o fisicalismo,
pois ela apela para a plasticidade cerebral.

Até mesmo Searle (2004), que é tão avesso ao materialismo em filosofia da


mente, comenta que a identidade de ocorrência é muito mais plausível que a de tipo.
Para o filósofo, se duas pessoas tem a mesma crença, é muito provável (levando o
materialismo a sério) que elas tenham ocorrências diferentes em seus respectivos
cérebros, pois são pessoas diferentes, com a particularidade de suas experiências e
organismos que, dessa forma, veem o mundo através de seus pontos de vista.

Contudo, essa vantagem da teoria da identidade de ocorrência se transforma


numa objeção. Ora, se duas pessoas tem a mesma crença (por exemplo, que Brasília é a
capital do Brasil), o que acontece com essa crença para que ela tenha ocorrências
diferentes nos cérebros de cada indivíduo? Faria sentido, numa teoria reducionista, dizer
que duas ocorrências cerebrais diferentes são a mesma coisa, a mesma crença? Pois, se
não há nada além de cérebros e sistema nervoso, o que faz as duas crenças serem em
comum, se suas existências materiais (e não há outro tipo de existência para o
materialista) são completamente diferentes?

A questão que colocamos se torna realmente uma pergunta embaraçosa para a


identidade de ocorrência, pois eles não podem apelar para a identidade mental das
crenças, pois é justamente isso que eles queriam reduzir ao cérebro. Essa foi uma das
dificuldades que a próxima abordagem que iremos apresentar tentou superar.

1.3.3. Funcionalismo

Teixeira (2008) diz que o funcionalismo toma três pressupostos como básicos,
quais sejam, (1) a realidade dos estados mentais, (2) a ideia de que os estados mentais
43

são irredutíveis a estados físicos e (3) os estados mentais são caracterizados pelo papel
funcional que ocupam entre input e output de um organismo ou sistema. Porém, aqui
devemos ser claros acerca do que essa abordagem quer dizer com estados mentais, pois
o funcionalismo não acredita na existência de estados mentais tais como Searle acredita.
Lewis (1972) diz que o que define um estado mental, no funcionalismo, são suas
relações causais entre inputs que o organismo recebe, seus estados "mentais", ou seja,
organização interna desses inputs, e seu comportamento de output correspondente. Em
resumo, o que define um estado mental são seus papéis causais numa economia
complexa de estados internos mediados por entradas perceptivas e saídas
comportamentais, ou seja, o funcionalista concebe a mente como uma função.

Esse tipo de manobra é possível, pois, segundo Searle (2004), os funcionalistas


usam um artifício técnico herdado dos teóricos da identidade de ocorrência e
behaviorismo, qual seja, a sentença de Ramsey (cf. seção 1.3.1, sobre o behaviorismo,
para mais detalhes). Com isso, poderemos definir a mente por suas relações causais,
sem a utilização da linguagem intencional ingênua, tal como crenças e desejos. Por
exemplo, a frase que utiliza a velha linguagem mentalista, tal como, Paulo tem a crença
de que vai chover porque percebeu a formação das nuvens, e como deseja manter suas
roupas secas, tratou de vestiu sua capa de chuva, pode ser substituída por:

( x)(Paulo tem x & x é causado pela percepção de p. Paulo tem y. Portanto, x & y
causam a ação z). (SEARLE, 2006, p. 64).

Dessa forma, a vantagem do funcionalismo é que ele diz que não há nada de
especialmente mental quando estamos falando sobre as mentes. É tudo uma questão de
relações lógicas. Outra vantagem óbvia que se apresenta é que, abordando a mente desta
forma, ela poderia ocorrer em qualquer outro sistema minimamente complexo, não
apenas o cerebral. Então todo sistema poderia ter estados mentais, desde que tivesse as
relações causais corretas entre seus inputs, seu funcionamento interno e seus outputs.

Falar de estados mentais é simplesmente falar de um conjunto neutro


de relações causais; e o aparente "chauvinismo" das teorias de
identidade tipo-tipo ― isto é, o chauvinismo de supor que somente
sistemas com cérebros como os nossos possam ter estados mentais ―
é então evitado por essa concepção muito mais "liberal". (SEARLE,
2006, p. 64).

Contudo, parece que os funcionalistas não estão fazendo a pergunta fundamental


sobre a mente, qual seja, quid est? Vimos apenas ser explicitado as relações causais da
44

mente, mas não vimos um esforço realmente sério em dizer qual é sua natureza mesma.
Boa parte dos funcionalistas não dizem nada sobre a natureza do mental, pois acreditam
que as investigações empíricas das neurociências e psicologia um dia poderão responder
tal questão. Por ora, os funcionalistas tratam a mente como uma "caixa-preta", ou seja,
não querem saber o que há dentro dela, mas apenas como se estabelece suas relações
causais com o mundo (SEARLE, 2006). Ademais, um funcionalista poderia dizer que a
questão o que é a mente? não faria muito sentido para essa abordagem. A mente,
segundo a abordagem funcionalista, seria um conjunto de relações, não uma coisa a ser
procurada dentro da cabeça.

Searle (2006) diz que as objeções contra o funcionalismo se dividem em


objeções de senso-comum e técnicas. Selecionamos duas, uma de senso-comum e outra
técnica. A objeção de senso comum, que nos parece óbvia, é que o funcionalismo
parece deixar de lado a característica subjetiva e qualitativa dos estados mentais. Ao
tratar a mente como meras relações causais, ela deixa de lado a subjetividade, ou seja,
não abre a caixa-preta, apenas observando como é sua relação com o mundo. Esse
argumento de senso comum pode ser corroborado com outro um pouco mais técnico,
qual seja, o argumento do espectro invertido de Ned Block13.

Um argumento técnico, que vai na mesma linha do espectro invertido, é o da


população chinesa, também de autoria de Block. Grosso modo, o argumento se
apresenta da seguinte forma: vamos supor que a teoria funcionalista esteja correta e que
a mente realmente seja nada além da função causal que desempenha num sistema
minimamente complexo. Dessa forma, poderíamos fazer uma mente com bilhões de
pessoas (simulando bilhões de neurônios) que agissem de maneira sincronizada,
desempenhando determinadas funções, tais como os neurônios desempenham. Então
vamos imaginar a população chinesa empenhada nesse grande experimento. Eles devem
apertar determinados botões, em momentos precisos, e com a conjunção dessas ações
deveremos fatalmente criar uma mente, pois tais ações simulam, de maneira precisa, as
funções que os neurônios desempenham no cérebro humano. Contudo, mesmo que esse
experimento desse certo e pudéssemos simular uma mente dessa forma, os agentes
individuais que participaram do experimento nada sentiriam. Vamos supor que a
população chinesa, no experimento, fizesse emergir o estado mental sensação de dor.
______
13. O argumento diz basicamente que dois indivíduos, A e B, que a um observador externo parecem
discriminar as cores corretamente (ou seja, num teste, ambos pegam corretamente o lápis vermelho,
apontam para o cartão verde etc.), podem ter suas experiências de cores totalmente invertidas. Dessa
forma, ao ver vermelho, A poderia ter a mesma sensação que B tem ao ver verde, e vice-versa. (SEARLE,
2004).
45

Mesmo que esse estado mental tenha sido gerado, nenhum chinês em particular sentiria
dor, mesmo que, em conjunto, eles tivessem imitado a organização funcional apropriada
à sensação mental de dor (SEARLE, 2004, 2006).

Apesar das críticas, Searle (2006) diz que o funcionalismo é ainda a abordagem
mais forte dentro da filosofia da mente. Isso se deu, em partes, por conta dos grandes
avanços da Inteligência Artificial (IA). O curioso é que ambas as abordagens,
funcionalismo e inteligência artificial, entraram numa espécie de simbiose. Essa
constante troca entre funcionalismo e IA trouxe benefícios para ambas (TEIXEIRA,
2008). Uma acabou complementando a outra. E, como diz o funcionalismo, se não é
necessário um cérebro para gerar uma mente, seria possível criar mentes a partir de
outros substratos físicos. É exatamente isso que tenta a Inteligência Artificial.

1.3.4. Funcionalismo Computacional14

Se o funcionalismo está correto em definir a mente em termos de seus papéis


causais numa economia complexa de estados internos mediados por entradas
perceptivas e saídas comportamentais, então, em princípio, não haveria restrições em se
desenvolver essas relações causais artificialmente, gerando, com isso, uma mente. Dessa
forma, o insight do funcionalismo computacional é que a mente é uma espécie de
programa, que está sendo rodada num hardware biológico (cérebro). Assim,
pensamento consciente seria, basicamente, a execução de uma computação e, portanto,
basta que nós executemos as computações adequadas para assim termos aquilo que a
folk psychology chama de mente subjetiva (PENROSE, 1998). Searle (2006) acha
curiosa essa posição filosófica, pois parece que, como Descartes, os adeptos da
Inteligência Artificial Forte acreditam que pode existir uma mente sem corpo, sem
cérebro. Contudo, a diferença essencial entre os dualistas e os computacionalistas é que
estes acreditam que se tal mente existisse sem o corpo ela nada poderia fazer.

Na realidade a analogia entre mentes e máquinas é bem mais específica aqui. Os


adeptos desta abordagem dizem que a mente é uma máquina de Turing implementada
através do cérebro15. Aliás, o cérebro seria uma máquina de Turing Universal
(SEARLE, 2004). Contudo, essa analogia só faz sentido se considerarmos que o
________________
14. Também conhecido por computacionalismo, funcionalismo das máquinas de Turing (Cf. DENNETT,
2006, p. 17-27) ou, como Searle a denominou (Cf. SEARLE, 1980, p. 417-424), Inteligência Artificial
Forte.
15. Para um resumo sobre a máquina de Turing, e algumas outras noções técnicas usadas pela IA forte, cf.
Teixeira (2004) e Searle (2004, p. 46-52) .
46

pensamento humano pode ser representado por algoritmos (tal como na sentença de
Ramsey). Assim, o desafio na construção de uma máquina de Turing Universal, capaz
de rodar algoritmos tal como nossa máquina biológica o faz, é apenas de ordem prática,
não teórica (TEIXEIRA, 2004).

Porém, antes de prosseguirmos, devemos fazer uma distinção importante, que


nos será útil na continuidade desta seção, que é aquela entre os dois tipos principais de
Inteligência Artificial: IA Forte e IA Fraca. A IA fraca se refere a simulação da mente
humana por meios, em geral, computacionais (SEARLE, 2004, 2006). Ela se baseia
naquilo que conhecemos do sistema cerebral humano e faz simulações através desse
conhecimento. Os adeptos da concepção da IA fraca defendem que a simulação
computacional da mente apenas processa dados, não tendo, por isso, sentimentos e
estados intencionais tais como os seres humanos. Contudo, a IA forte dá um passo além,
dizendo que não apenas a simulação da inteligência humana é possível, tal como a
criação de robôs inteligentes, mas que, na realidade, as maquinas de Turing já são
conscientes. Ora, se definirmos a consciência como imputs, organização interna e
outputs, então qualquer sistema minimamente complexo teria que ser considerado
consciente (SEARLE, 2006).

Searle não parece encontrar grandes problemas com a IA fraca. Em certo


sentido, ele até a aceita (SEARLE, 1998). Contudo, há muitas objeções ao projeto da IA
forte. A primeira e mais óbvia é a de senso comum. Repetindo a crítica ao
funcionalismo, esta diz que o computacionalismo desconsidera os aspectos subjetivos e
qualitativos da mente humana, tratando-os como meras funções algorítmicas. Já Searle
(1980, 2004, 2006) desenvolveu um argumento especialmente contra o projeto da IA
forte, que é o famoso argumento do quarto chinês16. Grosso modo, o argumento pede
para supormos uma pessoa trancada num quarto e que não saiba falar absolutamente
nada em chinês. Na sala também há um computador com um programa que é capaz de
responder questões em chinês. Essa pessoa recebe constantemente perguntas em chinês
por uma pequena entrada da sala. O objetivo é que, utilizando o programa, tal pessoa
consiga obter a melhor resposta possível em chinês para as perguntas. Com a resposta
em mãos, a pessoa a envia para fora da sala. Com isso, os observadores externos
poderiam dizer se quem está dentro da sala é realmente um falante fluente de chinês ou
não. Não obstante, mesmo que nossa pessoa hipotética não tenha a mínima ideia das

_____________
16. Para ter acesso ao argumento na integra, Cf. Searle (1980).
47

respostas que ofereceu, ela passaria facilmente no teste de Turing para falantes de
chinês.

A base desse argumento de Searle é apelar para a questão semântica dos nossos
estados mentais. A pessoa no quarto chinês efetivamente não sabe chinês, por mais que
pudesse se passar por um falante nativo, assim como uma máquina não é efetivamente
consciente, por mais que possa se passar por uma. As máquinas têm apenas uma
estrutura sintático-formal. Já nós, seres humanos, temos semântica, que é obviamente
uma característica de nossa subjetividade (SEARLE, 2006). É justamente esta a questão
chave para o filósofo, sendo este o motivo porque Searle não acredita que a IA forte
consiga realizar seu projeto.

Há outros tipos de objeções mais técnicas que a IA forte deve enfrentar antes de
dar cabo ao seu projeto17. Resolvidos tais problemas, acreditam os adeptos da IA Forte,
seria possível criar uma inteligência artificial, tal como, ou melhor, que a inteligência
humana. Contudo, Searle (1998, 2006/1992) argumenta que há um problema
fundamental que os computacionalistas sozinhos não podem resolver, qual seja, como a
máquina biológica, a qual chamamos cérebro, funciona realmente? Searle (1998) não vê
impedimentos lógicos em se produzir uma inteligência artificial forte, mas discorda que
os computadores ou robôs atuais tenham pensamentos ou vida subjetiva. Para dar cabo
do projeto computacionalista, Searle acredita que devemos entender como realmente o
cérebro humano funciona para assim podermos fazer uma réplica artificial de tal
mecanismo. Sem esse completo entendimento, seria o mesmo que, conhecendo
precariamente o coração, quiséssemos fazer uma réplica de tal órgão e acreditássemos
piamente que ela funcionaria tal como o coração biológico. Os cientistas podem
produzir corações artificiais pelo fato de conhecerem completamente o funcionamento
do coração biológico. Do mesmo modo, seremos capazes de produzir cérebros artificiais
no momento em que entendermos como o cérebro biológico funciona, em seus mais
requintados detalhes. Com isso o desafio da Inteligência Artificial é não apenas o de
produzir computadores ou robôs mais sofisticados, mais sim voltar os olhos para a
neurociência e psicobiologia.

____________
17. Talvez o problema técnico mais difícil que a AI Forte enfrenta seja o colocado por Kurt Gödel em
seus Teoremas da Incompletude. Pela sofisticada linguagem matemática requerida, e por não dispormos
desse conhecimento no momento, não reproduziremos aqui os argumentos de Gödel. Uma análise clara, e
para não especialistas, foi feita em Nagel, E. & Newman, J.R. A Prova de Gödel. São Paulo: Perspectiva,
2007.
48

Não obstante, as críticas que apresentamos se direcionam para um dos ramos do


computacionalismo (que era muito forte entre os anos de 1970-1980). Atualmente há
novos desenvolvimentos, principalmente de redes neurais artificiais, que escapariam
desse tipo de crítica. A abordagem das redes neurais (ou conexionistas) não apela para a
máquina de Turing. Aliás, os adeptos dessa abordagem acham tal modelo inadequado
(ALVES, 1999). As redes neurais artificiais não devem trabalhar como uma máquina de
Turing, que siga regras fixas e manipule símbolos, mas sim devem ser capazes de
aprender e se adaptar a novas situações que o ambiente lhes proporciona. Dessa forma,
como diz Alves (1999), esse comportamento não será puramente algorítmico.

Apesar da sutileza desse desenvovimento do assim chamado


computacionalismo, não iremos tratá-lo aqui com mais detalhes por conta de não ser
este o nosso enfoque. Contudo, reafirmamos que esse tipo de abordagem não sofreria
com os ataques que, por exemplo, o argumento do quarto chinês desfere contra o
computacionalismo clássico.

1.3.5. Eliminativismo

A última grande abordagem da tradição materialista, a qual nos voltamos agora,


é o eliminativismo. Tal abordagem ganhou muita força nos anos de 1980 com Paul
Churchland e Stephen Stich, mas sua história nos remete, pelo menos, aos trabalhos de
Richard Rorty e Paul Feyerabend, já nos anos de 1960. O eliminativismo argumenta que
a linguagem de senso comum (folk psychology), que descreve os estados mentais como
crenças e desejos, está equivocada e deve ser completamente abandonada. Essa
perspectiva postula que não é possível fazer uma total redução interteórica dos estados
mentais (tal como dados pelo senso comum) para estados cerebrais, pois “a estrutura
psicológica de nosso senso comum é uma concepção falsa e radicalmente enganosa das
causas do comportamento humano e da natureza da atividade cognitiva”.
(CHURCHLAND, 2004, p. 79, grifos do autor). Dessa forma, se a linguagem é
inadequada, não se deve fazer uma redução interteórica que a abarque, mas sim uma
total eliminação. No entanto, os eliminativistas não negam que seja possível fazer
algumas reduções brandas, mantendo assim uma perspectiva reducionista. Mas, caso
não seja possível abarcar e reduzir a linguagem inadequada de senso comum para uma
49

linguagem científica, será necessário fazer uma eliminação (TEIXEIRA, 2008). Ou seja,
de qualquer modo, seja reduzindo, seja eliminando, o elimitativista quer extinguir nosso
vocabulário mentalista de senso comum.

Esta concepção se justifica observando a história da ciência dos últimos séculos,


que eliminou teorias explicativas que estavam totalmente equivocadas. Por exemplo,
depois que a ciência biológica evoluiu ao ponto de explicar como era possível a vida em
nosso planeta, o conceito de espírito vital foi totalmente abandonado. Nenhum tipo de
teoria que se queria levar a sério toma como pressuposto o conceito de espírito vital. Do
mesmo modo, os eliminativistas acreditam que, quando a neurociência amadurecer o
bastante de modo a poder explicar como o cérebro funciona e como é possível a vida
inteligente, não teremos mais que recorrer a pressupostos da psicologia popular, tais
como mente, crenças e desejos, para explicar nosso comportamento. Esses pressupostos
serão totalmente abandonados, tal como o espírito vital o foi.

As críticas que podem surgir contra o materialismo eliminativista nos parecem


óbvias. Uma crítica de senso comum seria dizer que é realmente muito radical
desconsiderar completamente a linguagem comum que utilizamos para descrever nossos
estados mentais. Ademais, se tal linguagem estivesse tão equivocada, seria muito
estranho que ela tenha conduzido a raça humana muito bem durante milênios. Ou seja,
não haveria uma parcela de verdade nessa linguagem popular, consagrada em milênios
de experiência humana?

Já Searle (2004, 2006/1992) apresenta duas críticas contra o eliminativismo. A


primeira é que, para vermos o erro dessa abordagem, bastaria supor o mesmo projeto
teórico acerca de nossa física popular. Com efeito, por nossa física de senso comum
estar muito distante daquilo que a física teórica estuda, ela deveria ser completamente
eliminada. Nossa noção popular de mesas e cadeiras, por exemplo, por não abarcar
todos os aspectos do conceito de matéria que a física moderna postula, deve estar
equivocada e, portanto, não deveria mais ser utilizada. Searle (2006) diz que seria no
mínimo estranho pensar em algo desse tipo, então por que devemos fazer o mesmo com
a folk psychology?

Outro argumento contra o eliminativismo é sobre a asserção de que a psicologia


popular seria uma espécie de teoria que rivalizaria com a neurociência (como o
vitalismo rivalizou com outras teorias biológicas). Mas Searle (2004, 2006/1992) acha
50

isso no mínimo injusto. A psicologia popular pode até ser entendida como uma teoria,
mas não é, nem de longe, um campo de pesquisa. Por isso, ela não é um campo rival da
pesquisa científica. Diferentemente do vitalismo, que queria se mostrar como verdade
científica, a folk psychology não tem essa pretensão. Ademais, muito provavelmente
alguns princípios dessa psicologia popular não são tão ruins assim, e não seria estranho
que se mostrassem verdadeiros.

O eliminativista, dentro da história da Filosofia da Mente contemporânea, é a


teoria mais radical já postulada. É justamente com ela que encerramos nossa
apresentação das principais correntes. Por mais que tenhamos apresentado de maneira
breve tais abordagens em filosofia da mente, acreditamos ter oferecido ao leitor os
motivos centrais que levaram Searle a se afastar tanto do dualismo como do que ele
chama de tradição materialista. No capítulo 2, onde iremos apresentar sua solução ao
problema mente e corpo, tal afastamento dessas correntes se tornará ainda mais claro,
visto sua posição filosófica sobre o tema. A seguir apresentaremos algumas objeções
gerais que John Searle faz ao que chama de tradição materialista em filosofia da mente.

1.4. Tentando destruir os fundamentos

De forma a já preparar o terreno para a parte propositiva da filosofia de Searle,


qual seja, sua solução para o problema mente-corpo, iremos apresentar algumas
respostas gerais do filósofo sobre as pressuposições centrais do materialismo, expostas
nas últimas seções deste capítulo.

Em primeiro lugar, o filósofo diz que o motivo central da tradição materialismo


não conseguir resolver o problema mente e corpo é sua persistência no vocabulário
cartesiano tradicional. Para Searle (2004, 2006/1992), esse tipo de linguagem é
inadequada para descrever os processos e estados mentais tais como eles efetivamente
ocorrem no cérebro. O dualismo estabeleceu uma bipartição entre corpo e espírito,
contudo, ao reduzir tudo à matéria, a tradição materialista não consegue escapar desse
esquema. Ao invés de contar duas substâncias, o monismo materialista conta apenas
uma. Assim, a dificuldade persiste, justamente porque começamos a contar substâncias
(SEARLE, 2006/1993). Com isso, um dos maiores problemas do materialismo é que
ele, ao invés de rejeitar in limine a linguagem cartesiana, aceitou-a e tentou retrabalhá-
51

la. Ou seja, a tradição materialista aceitou a distinção feita por René Descartes, ficando
com um dos elementos da bipartição mutuamente exclusiva, a saber, o corpo.

Uma outra questão que torna o materialismo implausível é sua persistência em


negligenciar, rebaixar ou negar a consciência (SEARLE, 2006/1992). Para Searle a
consciência é realmente importante e seria impossível estudar os fenômenos e processos
mentais sem, de uma forma ou outra, estudar a consciência. Com efeito, a insistência do
materialismo em depreciar a consciência humana se expressa em sua tendência
objetivante da realidade. Searle (1998) acredita que nem toda realidade é objetiva, sendo
parte dela subjetiva, de primeira pessoa (e isso, para o filósofo, pode ser apreendido
intuitivamente).

Essa asserção de Searle, nem toda a realidade é objetiva, deve ser explicada de
forma mais clara para evitar possíveis confusões. Quando dizemos que a ciência é
objetiva, o que de fato estamos tentando dizer? Em geral queremos dizer que não
desejamos que preconceitos e valores subjetivos interfiram em nossas investigações.
Mas, para Searle (2006), há uma confusão exatamente neste ponto. Quando fazemos
esse tipo de inferência, estabelecendo a distinção entre objetivo e subjetivo, estamos
buscando um tipo de epistemologia objetiva (o que, para o próprio Searle, é uma meta
desejável e muito razoável para a investigação filosófica e científica). Contudo, a
asserção epistemológica se estende para a ontológica. Porque queremos uma epistéme
objetiva, também acreditamos que a ontologia dos objetos da realidade também são, em
seu todo, objetivas. É exatamente aí que o filósofo discorda, pois ele acredita que nem
toda a realidade é objetiva, pois temos sim mentes, que têm existências ontologicamente
de primeira pessoa, ou seja, subjetivas. "Em termos ontológicos [...] a asserção de que
toda a realidade é objetiva é, neurobiologicamente falando, simplesmente falsa"
(SEARLE, 2006, p. 32).

Parece intolerável para as tradicionais abordagens materialistas em filofia da


mente admitir algo como subjetivo. Com isso, em geral, tais abordagens negam que
possam existir eventos mentais "privados", ou seja, que cada ser humano possa
conhecer seus próprios estados e processos mentais de uma maneira totalmente diversa
que um observador externo conheceria. Com isso, Searle (2006/1992) diz que chegamos
numa situação (que é amparada pela linguagem cartesiana) que devemos escolher entre
introspecção ou comportamento. Contudo, essa escolha é absolutamente falsa, pois,
52

tanto um como o outro, existem na realidade. Aliás, um não existe sem um outro. Seria
estranho pensar num mundo onde só existisse comportamento (negando nossa vida
mental particular) ou, por outro lado, um mundo onde só existisse introspecção (numa
espécie de solipsismo). Searle acredita que o estudo da mente deve levar em conta esses
dois aspectos, pois ambos têm seu modo de existência, ou seja, ambos existem na
realidade.

Com isso, julgamos ter colocado os pilares iniciais para começarmos a


apresentar a solução do problema mente-corpo dada por Searle. Mas antes de irmos para
o capítulo 2, e dada a exposição que fizemos neste capítulo, voltaremo-nos para uma
questão muito importante, qual seja, o motivo pelo qual a tradição materialista em
filosofia da mente é ainda muito forte. Visto que, segundo Searle (2004, 2006), tal
tradição não conseguiu resolver o problema mente e corpo e, ao que parece, tenta
romper com a linguagem mentalista ingênua, uma pergunta deve nos intrigar: por que a
tradição materialista em filosofia da mente persiste?

1.5. Por que a tradição materialista permanece tão forte?

Posto esse quadro geral das principais abordagens em filosofia da mente, bem
como porquê John Searle se afasta dessa tradição, podemos nos perguntar por que o
materialismo ainda parece a melhor alternativa para os profissionais de psicologia,
filosofia da mente e ciência cognitiva? Visto o número de profissionais que adotaram tal
abordagem, não haveria alguma veracidade nas afirmações materialista, de modo que
ela lhes pareça tão sedutora?

Searle (2006/1992) diz que não tem uma resposta definitiva para essa questão,
mas nos oferece algumas hipóteses. O primeiro motivo do materialismo ainda
permanecer tão forte é o receio de retornarmos a alguma forma de dualismo. Dessa
forma, ao darmos estatuto ontológico a mentes e consciência, estaríamos afirmando a
existência de algo imaterial, fazendo ressurgir a difícil e aborrecida distinção entre
mente e corpo.

O segundo motivo é extensão do primeiro, ou seja, a tradição materialista ainda


constitui uma abordagem tão forte por conta do vocabulário. Descartes não só nos legou
___________
18. Searle (2006) diz que esse é um dos motivos pelo qual muitos de seus críticos não compreendem a sua
filosofia, pois quando o filósofo diz defender a ontologia do mental, tais críticos o entendem a partir desse
vocabulário cartesiano. Searle acredita que tal linguagem é obsoleta e nos traz mais confusões do que
esclarecimentos.
53

uma série de problemas difíceis, mas também uma linguagem que nos custa muito
abandonar (SEARLE, 2004, 2006/1992). Por essa razão, parece que toda vez que
falamos sobre mentes, consciência e subjetividade, os ouvintes interpretam tais objetos
como algo etéreo, distinto do mundo material em torno. Assim, os materialistas, em
geral, só conseguem trabalhar em forma de distinções (há muito delineada por
Descartes), tais como matéria e consciência, corpo e mente etc18. Ademais, como
dissemos nas últimas seções, Searle (2004, 2006/1992) acredita que o problema mente e
corpo permanece insolúvel porque aceitarmos esse vocabulário, onde nem mesmo os
materialistas escaparam.

Um terceiro motivo para o materialismo permanecer tão influente é a tendência


objetivadora em ciências de uma forma geral. Assim, para respondermos a pergunta
como sabemos que o organismo tem estados e processos mentais? analisamos o seu
comportamento externo. Ou seja, a atribuição ou não de mente só é possível após
observarmos o comportamento do organismo. Mas Searle (2006/1992), como iremos
mostrar no capítulo 2, argumenta que, em relação a nossa mente, temos um acesso
direto e de primeira pessoa. Essa característica intuitiva, de senso-comum, vem sendo
negligenciada pelos profissionais que seguem uma abordagem fisicalista reducionista.
Como diz Searle (2006), parece que esses profissionais não estão enxergando que a
ontologia do mental é uma ontologia de primeira pessoa.

O quarto motivo seria uma tentativa dos teóricos de buscarem uma grande e
profunda teoria, ou seja, "não parece o bastante afirmar verdades simples e óbvias ―
queremos algo mais profundo." (SEARLE, 2006, p. 30). Dessa forma, não faz mal se
algumas das afirmações feitas pelas correntes principais nos pareçam absurdas, porque
vemos que, ao longo da história das ciências (ao menos nas hard sciences), concepções
verdadeiras pareceram extravagantes para seus contemporâneos. Como a física mostrou
que há algo de muito mais profundo no mundo, as concepções dominantes em filosofia
da mente, segundo Searle (2006/1992), acreditam que conseguirão mostrar aquilo que
realmente acontece em nossos cérebros, sendo que noções ultrapassadas como mentes e
consciência se mostrarão, no devido tempo, meras ilusões.

Claro que essas hipóteses não esgotam a questão da influência do materialismo


(tal como Searle o descreve) na intelectualidade ocidental. Para fazer um exame
histórico minimamente satisfatório, o próprio Searle deveria levar em consideração
54

muitas possíveis influências do materialismo contemporâneo. Para nós isso


transcenderia, e muito, os objetivos deste trabalho. Julgamos que essa seção seria
importante para mostrar o porquê, segundo Searle, o materialismo é ainda uma corrente
dominante, o que em grande parte entra em consonância com a crítica searleana da
filosofia da mente contemporânea.

Com efeito, após apresentar a filosofia negativa (ou histórico-crítica) de John


Searle, ou seja, contra quem ele argumenta, agora iremos tratar da parte propositiva de
sua filosofia. Como o filósofo julga resolver o problema mente e corpo?
Capítulo 2

TENTANDO SOLUCIONAR O
PROBLEMA MENTE-CORPO:
NATURALISMO BIOLÓGICO
57

Todos os estados conscientes são causados por processos


neuronais de nível-básico no cérebro. Temos sensações e
pensamentos conscientes; eles são causados por processos
neurobiológicos no cérebro; e eles existem como uma
característica do sistema cerebral. (John Searle, Mind: a brief
introduction, 2004, p. 79, tradução nossa).

Permitam-me agora dizer algo acerca da consciência humana.


Em particular, será que essa é uma questão em que devemos
pensar em termos de explicação científica? O meu ponto de
vista é de que devemos sim. Em particular, levo muito a sério a
flecha que une o mundo físico ao mundo mental. Em outras
palavras, temos o desafio de entender o mundo mental nos
termos do mundo físico. (Roger Penrose, O Grande, O
Pequeno e a Mente Humana, p. 109).

Existe algum critério objetivo de avaliação do sofrimento?


Quem pode afirmar que meu vizinho sofre mais que eu, ou
Jesus sofreu mais que todos nós? Não há medida objetiva para o
sofrimento, pois ele não tem como ser medido por uma
excitação exterior ou indisposição local do organismo, mas pelo
modo como é percebido e refletido na consciência. Ora, desse
ponto de vista, qualquer hierarquização se torna impossível.
(Emil Cioran, Nos Cumes do Desespero, p. 23).

2.1. Apresentação

O presente capítulo mostrará a solução que Searle acredita ter dado ao problema
mente-corpo. Como vimos no capítulo 1, o filósofo se afasta tanto da tradição dualista
como daquilo que chama de materialismo em filosofia da mente, dizendo que ambas
cometem o mesmo erro, qual seja, aceitam um tipo de vocabulário que separa o mundo
em duas substâncias mutuamente exclusivas. O esforço de Searle, com a solução que
pretende dar ao problema mente-corpo, é situar a mente em nossa visão de mundo
científica, mostrando que ela é um fenômeno biológico natural como qualquer outro.

Com isso, temos dois objetivos principais neste capítulo, quais sejam, (1)
responder, à luz da filosofia searleana, como os estados mentais podem ser um
fenômeno biologicamente natural, ou seja, como cérebros são capazes de produzir
mentes, e (2) mostrar de que forma essa mente, biologicamente natural, pode ter
eficácia causal no mundo em geral. Se aceitarmos as premissas dadas por Searle ao
58

responder (1), acreditamos que (2) se seguirá automaticamente.

Dessa maneira, iremos apresentar o que Searle entende por mente, como ela
funciona, como se estabelece a relação mente e corpo e como a mente pode ser
causalmente eficiente no mundo físico. Essas questões servirão como base para
caminhar ao longo dessa capítulo. Contudo, a primeira grande questão que se apresenta
ao tentarmos situar a mente dentro do mundo natural é como ela se enquadra com a
visão científica contemporânea? Essa é uma questão muito pertinente e julgamos
interessante iniciarmos por ela.

2.2. Consciência e ciência contemporânea

A ciência sempre encontra algum problema com as definições dos objetos que
ela estuda. Como diz Kuhn (1997), a maior parte das investigações científicas começa
impregnada por pré-concepções, pré-teorias, que, por vezes, não ajudam os estudantes a
delimitar com clareza o objeto investigado. Com isso, o ideal de colocar totalmente
entre parênteses os conhecimentos do investigador para analisar o objeto com total
isenção mostra-se impossível. Assim sendo, faz-se necessário um recorte na linguagem,
para que todos os investigadores possam ter certeza que estão falando do mesmo objeto.
Mas esse recorte não pretende abarcar a essência (condições suficientes e necessárias)
do fenômeno, mas sim os aspectos centrais e que, de preferência, seja possível a
reprodução experimental em laboratório.

Com efeito, em relação à consciência, Searle (2006/1992) tem ciência da


complexidade de se encontrar uma definição adequada, que abarque com clareza e
precisão todas as características do fenômeno. O filósofo também não acredita que seja
possível oferecer uma definição essencialista para a consciência. Contudo, apesar dessa
quase impossibilidade, Searle diz que, em certo sentido, é possível dar uma definição
não circular deste termo, além de podê-la enquadrar na cosmovisão científica
contemporânea. Em linhas gerais, diz o filósofo, o mistério da consciência reside
justamente nesse enquadramento (SEARLE, 2004, 2006/1992).

Porém, o problema central em se definir, cientificamente, a consciência está


nessa dicotomia que parece existir entre nossa experiência mental (visão de primeira
pessoa) e a pretensão epistemológica objetivista das ciências (visão de terceira pessoa).
59

Searle (1998) diz que muitos filósofos e cientistas acreditam que, para termos uma
definição coerente da consciência, a visão subjetiva deve ser reduzida à objetiva. Mas
para nosso filósofo, quando se trata da consciência, esse não deve ser necessariamente o
caso.

Searle (2000, 2006/1992) argumenta que a ciência moderna começou a se


delinear no século XVII e vem se desenvolvendo e progredindo até os dias de hoje. No
século XIX havia um grande otimismo quanto a racionalidade científica, acreditando-se
que, muito em breve, seria possível descrever e predizer a realidade com precisão.
Como diz Searle (2000, p. 11) "em suma, houve um longo período na história em que se
tomou por pressuposto que o universo era completamente inteligível e que éramos
capazes de um entendimento sistemático de sua natureza". Contudo, esse otimismo ruiu
no século XX, por conta de muitas teorias que colocavam em cheque tal racionalidade19.
Ao menos entre alguns especialistas, não parecia possível predizer e descrever a
natureza com tanta precisão, pelo menos enquanto estivermos dentro do paradigma
iluminista. No entanto, os métodos de explicação da realidade oferecidos pela ciência na
modernidade (métodos que foram delineados, em grande parte, na cosmovisão
iluminista) continuam amplamente aceitos pela quase totalidade dos seres humanos do
planeta. Entre eles está Searle, que manifestamente se intitula um filho da tradição
iluminista. Com efeito, ele acredita que a mente pode e deve ser explicada dentro do
nosso paradigma científico atual, mesmo havendo uma aparente dificuldade. Searle
(2000) mostra-se um otimista em relação à ciência, acreditando que ela é nossa
ferramenta epistemológica mais adequada. Com isso, ele se coloca contra as novas
correntes irracionalistas, como o pós-modernismo.

Dessa forma, se vamos tomar como base nossa atual cosmovisão científica,
então qualquer teoria da consciência que se preze deve levar em consideração as teorias
científicas mais fundamentais. Na opinião de Searle (2006/1992) as duas teorias
científicas básicas de nosso tempo são a teoria atômica da matéria (grosso modo, a
matéria é composta de partículas, átomos, e campos de força) e a teoria da evolução das
espécies por seleção natural (todas as espécies animais, incluindo os seres humanos,

________________
19. Searle (2000) cita apenas algumas teorias que abalaram as estruturas da ciência e da cosmovisão
moderna. Teorias como da relatividade, mecânica quântica, teorema da incompletude de Kurt Gödel e a
teoria psicanalítica freudiana. Também alguns fatos históricos contribuíram para essa queda no otimismo,
como, por exemplo, as duas grandes guerras mundiais. Deste modo, principalmente a partir da segunda
metade do século XX, novas formas de relativismo surgiram para desafiar a cosmovisão reinante, como
por exemplo o pós-modernismo. Para uma interessante leitura sobre o movimento pós-modernista, cf.
[VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São
Paulo: Martins Fontes, 2002].
60

passaram por um lento e gradual processo evolutivo por seleção natural). Se, em toda
realidade que conhecemos, há esses dois aspectos fundamentais, então a consciência
não pode ser um caso especial. Devemos explicar a consciência à luz desses dois
aspectos balizares da realidade. Com isso, Searle tentar enquadrar a consciência dentro
de nossa visão científica de mundo da seguinte forma:

[...] consciência, em resumo, é uma característica biológica de


cérebros de seres humanos e determinados animais. É causada por
processos neurobiológicos, e é tanto uma parte da ordem biológica
natural quanto quaisquer outras características biológicas, como
fotossíntese, a digestão ou a mitose. (SEARLE, 2006/1992, p. 133,
grifos do autor).

Essa citação é muito importante para começarmos a entender a filosofia da


mente searleana, ou seja, o assim chamado naturalismo biológico. Para o filósofo, a
consciência é um fenômeno biológico natural da espécie, tal como a digestão e a
secreção da bílis o são. Como fenômeno biológico, a consciência participa da realidade
tal como qualquer outro fenômeno físico. A consciência é um produto da evolução da
espécie, bem como ela pode ser explicada utilizando-se os termos da teoria atômica da
matéria.

Porém, mesmo afirmando que a consciência é um fenômeno biológico natural,


muitas perguntas ainda não foram respondidas. Em primeiro lugar, não demos ainda a
definição de consciência à luz da filosofia searleana. Ademais, qual a diferença do
naturalismo searleano para os outros naturalismos (que reduzem ontologicamente a
consciência a processos cerebrais)? Como ocorre o fenômeno da consciência nos
cérebros humanos? Como é possível esse mental ser causalmente eficiente no mundo
físico em geral? Pretendemos responder todas essas questões ao longo deste capítulo.
Contudo, como próximo passo de nossa apresentação, julgamos necessário mostrar
aquilo que o filósofo define por consciência e, em seguida, apresentar suas
características fundamentais.

2.3. Consciência: definição e aspectos fundamentais

Searle (2004) diz que o conceito de consciência é simples, que o temos até
mesmo de forma intuitiva. O filósofo parece não entender a dificuldade encontrada,
principalmente na literatura contemporânea, para se conceituar o termo (SEARLE,
61

1998). Podemos, segundo o filósofo, dar uma definição de senso comum à consciência,
sem com isso perder os aspecto fundamental de sua definição. Então, para Searle (1998,
p. 33), consciência "[...] se refere àqueles estados de sensibilidade e ciência que
começam normalmente quando acordamos de um sono sem sonho e continua até que
durmamos novamente, caímos em coma, morremos ou ficamos 'inconscientes'".

Contudo, isso não nos oferece as condições suficientes e necessárias da


consciência, e o próprio Searle (2006/1992) o admite. Tal definição apenas enfatiza
aquilo que o filósofo está querendo dizer quando usa este termo. E o que ele está
querendo dizer pode ser expresso através de uma analogia: a consciência seria uma
espécie de interruptor liga/desliga, ou seja, um sistema está consciente ou não.

Com efeito, isso nos remete a uma série de outras questões, sendo que uma delas
é nos perguntarmos se é condição necessária, para todo estado consciente, ser também
autoconsciente?20 Searle (2006/1992) parece não ter uma resposta definitiva para tal
questão, mas ele diz que, em algum sentido, a consciência é autoconsciente, porque há
sempre a possibilidade de descolar o eixo de atenção de um estado consciente para a
autoconsciência. Neste sentido, segundo o filósofo, a autoconsciência está sempre
presente.

Dessa forma, a partir da definição de consciência e com essas considerações,


Searle nos oferece algumas características dessa consciência21 biologicamente natural.
Por questão de enfoque, iremos abordar apenas as características que o filósofo julga
como estritamente fundamentais, quais sejam, unidade, subjetividade e
intencionalidade. Também enfocaremos tais características, pois acreditamos que elas,
ou ao menos a intencionalidade e subjetividade, são centrais na filosofia da mente de
Searle. Ademais, julgamos que a noção que Searle oferece de unidade consciência pode
nos dar uma pista do que o filósofo entende por eu (Self).

________________
20. Outra questão muito difícil acerca da consciência é se o eu (self) se resume aos estados conscientes,
ou a consciência como um todo? Searle não parece se dedicar, exclusivamente, a resolver este problema,
mas fica implícito em sua filosofia que não resolveríamos o problema do eu (self) sem levar em
consideração nossas experiências conscientes e também nossos estados inconscientes. Como não
abordaremos a questão do inconsciente em Searle, bem como não vemos em seus escritos um esforço
específico na resolução do problema do self,, não trataremos dessa questão aqui.
21. Em um escrito (cf. SEALRE, 2006/1992, p. 183-203), o filósofo esboça doze características
fundamentais. Já em outro (cf. SEARLE, 2004, p. 93-101), Searle elimina uma das características, ficando
apenas com onze.
62

2.3.1. Unidade

Searle (2004) diz que, em geral, e em situações não patológicas, a consciência


nos aparece como unidade. Parece-nos razoável pensar dessa forma e, imaginando que a
consciência deu aos animais que a possuem uma vantagem adaptativa, é quase natural
inferir que nossas experiências conscientes nos venham sob a forma de uma unidade.
Por exemplo, eu não tenho, isoladamente, a experiência visual da tela do computador, a
sensação que o toque nas teclas do teclado produzem em meus dedos e o desagradável
calor corporal que estou sentindo neste momento (dentre centenas de outras
experiências que estou tendo agora), mas sim tenho todas essas experiências de maneira
unitária, a compor um todo consciente. “É característico de estados conscientes não-
patológicos que se apresentem a nós como parte de uma sequência unificada.”
(SEARLE, 2006/1992, p. 188).

Com efeito, Searle (2006/1992) classifica a unidade consciente em dois sentidos


complementares:

Horizontal: organização da experiência em curtos períodos de tempos. Esse tipo de


memória no tempo nos é essencial para a unidade da consciência.

Vertical: estar ciente simultaneamente de diversas características dos estados


conscientes.

Não obstante, apenar de nos parecer razoável a asserção do filósofo de que a


consciência se apresenta como unidade, bem como sua distinção entre unidade
horizontal e vertical, ainda sabe-se muito pouco (em termos neurocientíficos) como o
cérebro leva a cabo essa unidade. Este é o assim chamado problema difícil em filosofia
da mente, ou seja, como demonstrar empiricamente (principalmente através da
neurociência) como são possíveis os estados conscientes, a unidade da consciência e a
subjetividade humana?

Outra questão que julgamos relevante, e que Searle não pareceu desenvolver
plenamente sem seus escritos, como deixamos implícito na seção anterior (cf. nota 20),
é a questão do eu (self). Tal questão pode ser resumida em duas perguntas centrais, uma
de cunho ontológico e outra epistemológica: (1) o que é o eu (self)? (2) Como eu posso
conhecer o meu eu e o eu das outras pessoas? Acreditamos que Searle poderia responder
parte dessa questão apelando para a unidade da consciência. Eu reconheço o meu eu
63

(self) através da minha memória e das minhas experiências presentes, que se


manifestam na unidade consciente. Uma outra parte da resposta seria apelar para a
condição necessária para a consciência, ou seja, o sistema cerebral. Eu tenho um eu,
porque tenho um sistema cerebral capacitado para que haja vida consciente.
Abordaremos essa questão do sistema cerebral com mais detalhes na seção 2.4.

Apesar desse esforço, nosso último parágrafo é apenas especulativo. Como


dissemos, o problema do eu (self), em Searle, não parece ser realmente um problema, ou
seja, ele não parece ter se debruçado e feito um efetivo esforço para resolvê-lo. Talvez
porque imagina que tal problemática está implicitamente solucionada com seu
naturalismo biológico. Contudo, julgamos que essa questão mereceria uma atenção mais
detalhada do filósofo. Não iremos aprofundar essa discussão aqui, porque acreditamos
que, como tal, ela mereceria um estudo específico. Deixamos apenas, portanto, a
semente para futuras investigações.

2.3.2. Intencionalidade

Iremos abordar em detalhes a questão da intencionalidade no próximo capítulo.


Contudo, o que já podemos adiantar deste conceito é que o problema central da
intencionalidade é como a mente pode se voltar para algo que não é ela mesma. Por
exemplo, quando penso no último Imperador de Roma ou no romance que estou lendo,
tais coisas existem (ou existiram) no mundo e meus estados mentais conscientes
voltam-se para eles de maneira natural. Aliás, Searle (2000) é enfático ao dizer que a
nossa sobrevivência no mundo depende dessa articulação entre consciência e
intencionalidade; este apontar a flecha para algo (como diriam os escolásticos).

Com isso, a intencionalidade é a consciência voltada para algo, ou seja,


consciência intencional de. Contudo, como dissemos, a intencionalidade é uma das
características dos estados mentais conscientes. Desta forma, nem todo estado
consciente é intencional, na visão de Searle (2000, 2002a/1983, 2006/1992).

Uma última coisa que diremos aqui acerca da intencionalidade é que, em Searle
(2006/1992), toda experiência consciente intencional tem uma forma aspectual, ou seja,
vemo-nas sob determinados aspectos e não sob outros. Se vejo um objeto, ele me
64

apresenta um série de características visuais, causando-me uma experiência visual


intencional, que por si tem suas próprias condições de satisfação. O mesmo vale para
outros aspectos da via perceptiva.

2.3.3. Subjetividade

Esta é a característica especial da consciência, que não é vista em outros tipos de


fenômenos. A experiência consciente, seja de morcegos, cachorros ou seres humanos, é
sempre experiência de alguém (algum agente consciente). Esse de é o que confere a
experiência consciente seu grau de individualidade, i.e. subjetividade. Com efeito, pela
subjetividade ser uma característica especial da consciência, o estudo dos processos e
estados mentais conscientes torna-se tão teimosamente desafiador aos métodos
convencionais da pesquisa biológica e psicológica (SEARLE, 2006/1992). Com efeito,
torna-se muito difícil, se não impossível, para muitos cientistas contemporâneos
aceitarem a ideia de que o mundo real, o mundo descrito pela física, química e biologia,
contém um elemento subjetivo ineliminável.

Mas, no sentido em que Searle está usando o termo “subjetivo”, refere-se a uma
categoria ontológica, não a um modo epistêmico. Em sentido epistêmico, podemos dizer
que algo é objeto de conhecimento de maneira objetiva e subjetiva (SEARLE, 1998).
Por exemplo, se dissermos que Ayrton Senna foi um piloto de Fórmula 1 melhor do que
Nelson Piquet, isso é um juízo totalmente subjetivo, que envolve as crenças e valores do
observador. Contudo, podemos fazer juízos objetivos, que independem das crenças e
valores do observador referido, como dizer que Ayrton Senna morreu num acidente no
Grande Prêmio de San Marino, Ímola. Isso faz referência ao modo epistemológico
objetivo, pois não recorre as crenças e valores pessoais. Gostando-se ou não do fato,
Ayrton Senna morreu num acidente em Ímola.

Searle (2004, 2006/1992) diz que geralmente os filósofos fazem confusão em


relação ao sentido ontológico e epistemológico. Eles buscam, como é comum nas
ciências, uma visão epistemologicamente objetiva, ou seja, de terceira pessoa. Com isso
acreditam que a subjetividade, tal como Searle a apresenta, estaria comprometida nessa
visão epistêmica objetiva. Alguns, como Dennett (cf. SEARLE, 1998, p. 117-149),
65

acreditam que Searle, ao dizer que a subjetividade é a característica fundamental da


consciência, estaria sendo anti-científico. Mas para Searle esses filósofos entendem a
subjetividade apenas numa perspectiva epistemológica e, neste sentido, dizer que a
subjetividade é importante seria o mesmo que dizer que preferimos juízos subjetivos, o
que seria frontalmente contra as pretensões científicas. Mas, como dissemos, o sentido
que Searle busca é o ontologicamente subjetivo, e não epistemológico.

Com efeito, podemos também fazer a mesma distinção entre subjetivo e objetivo
na ontologia. Árvores, montanhas e pedras têm uma existência ontologicamente
objetiva, ou seja, independem dos observadores para existir. Contudo, dores,
experiência de vermelho e a fruição estética ao ouvir uma cantata de Bach, são
ontologicamente subjetivas, ou seja, dependem da subjetividade humana (e de outros
animais) para existirem. É este exatamente o sentido que Searle (2006/1992) quer
expressar ao dizer que a consciência é ontologicamente subjetiva. Se, por exemplo, eu
tenho uma terrível dor em minha mão, ela, por um lado, pode ser facilmente descrita
pela fisiologia corporal, ou seja, ela é algo objetivo, pois toma como verdade a
existência de um fato real, passível de observação em terceira pessoa. Contudo, por
outro lado, a dor é sempre dor de alguém (neste caso, minha). Ou seja, sou eu que estou
sentindo a dor em minha mão. Neste sentido, ela também tem um modo de existência
subjetivo. É exatamente nesse sentido ontológico que Searle diz que a consciência tem
um modo subjetivo de existir. As experiências subjetivas existem porque necessitam de
um sistema complexo único para as sentir. Tais experiências são sempre experiências de
alguém, e nunca uma experiência abstrata de vermelho, ou uma dor meramente
conceitual.

Com isso, damos um passo importante na apresentação da filosofia da mente de


Searle. Neste ponto, vemos que a consciência é irredutivelmente de primeira pessoa. Ou
seja, não podemos reduzir os estados mentais conscientes a sua mera manifestação
cerebral, ou a função que o cérebro representa (podendo ser codificado numa relação
formal, sendo possível executá-la numa máquina), ou simplesmente eliminar a
linguagem mentalística subjetiva. Na filosofia de Searle, um dos aspectos da
consciência é seu caráter subjetivo, sendo este o motivo central para ele considerá-la
irredutível.
66

Não obstante, devemos ser claros no que Searle está querendo dizer quando
afirma que a consciência é irredutivelmente de primeira pessoa. Com essa asserção, o
filósofo não quer dizer que, com isso, temos uma espécie de acesso privilegiado. Essa
metáfora começou a ser utilizada em substituição ao da introspecção, trocando-se um
modelo visual por um espacial. Mas Searle (2006/1992) diz que ela é mais confusa do
que a metáfora de senso comum (introspeccionista), porque o acesso privilegiado
pressupõe que haja um lugar exclusivo (como um quarto dentro de nossas mentes), que
só nós temos acesso. Mas isso também é um erro, porque toma como pressuposto que
há uma certa distinção entre o sujeito e o lugar pelo qual ele tem acesso privilegiado.
Como na introspecção, o espaço privilegiado falha, pois a própria coisa a ser observada
(ou acessada) já é a própria observação (ou acesso). "O problema é que, por causa da
ontologia da subjetividade, nossos modelos de 'estudo', modelos que confiam na
distinção entre observação e coisa observada, não funcionam para a subjetividade em
si." (SEARLE, 2006/1992, p. 146).

Eis a dificuldade em que nos encontramos. Por um lado, sentimos nossas


experiências subjetivas, mas, por outro lado, nosso modelo observacional não consegue
captá-las satisfatoriamente, pois, observando a consciência, não há uma distinção clara
entre observador e objeto observado. Em outras palavras, não é possível observar a
subjetividade sem estar “dentro” da própria subjetividade. Eis a maior dificuldade para a
sua observação.

Com efeito, isso não nos leva a uma impossibilidade definitiva de observar a
subjetividade humana de maneira científica (tal como entendemos ciência
contemporaneamente). Em muitos de seus escritos (SEARLE, 1998, 2000, 2004,
2006/1992) o filósofo mostra-se otimista quanto a investigação neurocientífica. Para
ele, se levarmos a subjetividade a sério, bem como encontrando as correspondências
cerebrais para sua manifestação, estaremos num bom caminho para dissolver o
problema mente-corpo por uma via empírica22.

2.4. A relação Mente-Cérebro

Vimos que Searle considera a consciência irredutível à neurobiologia, pois há


nela um aspecto que a diferencia dos fenômenos objetivos, qual seja, a subjetividade.
________________
22. O leitor não deve entender nisso uma visão reducionista da parte de Searle. Na próxima seção ficará
claro como Searle pode continuar defendendo a subjetividade da consciência e, ao mesmo tempo, dizer
que ela é realizada e causada no sistema cerebral.
67

Contudo, essa mente consciente e subjetiva é também natural, física, tal como qualquer
outro objeto ou estado de coisa no mundo. Então, a pergunta que devemos fazer é como
especificamente Searle concilia esses dois aspectos em sua filosofia? Compreender
como o filósofo integra mente e corpo no mesmo mundo que pode ser descrito pelas
ciências naturais é fundamental para entendermos aquilo que Searle chama de
naturalismo biológico.

Antes de mais nada, não seria totalmente errado dizer que Searle é um
reducionista. Mas há um sentido especifico em que o termo redução se acomoda em sua
solução do problema mente-corpo23. Parece-nos óbvio, pelo que foi exposto, que Searle
não se enquadra entre os reducionistas ontológicos. Porém sua filosofia se encaixa à
redução causal, e o próprio Searle (2006/1992) admite tal classificação. O rótulo de
reducionista causal fica claro quando o filósofo estabelece a relação entre mente e
cérebro.

Nesta abordagem que Searle (2002a/1982, 2004, 2006/1992) nos apresenta,


mente e cérebro não são duas coisas distintas, separadas e irreconciliáveis. Tanto a
mente como o cérebro então no sistema cerebral. Eles fazem parte do mesmo sistema,
sendo unicamente níveis de realidade diferentes. Nas palavras do próprio Searle
(2002a/1982, p. 367): “O quadro que venho sugerindo [...] é aquele segundo o qual os
estados mentais são ao mesmo tempo causados pelas operações do cérebro e realizados
na estrutura cerebral (e no resto do sistema nervoso central)”. Com efeito, mesmo
existindo tal como apreendida por nossas intuições comuns, a mente é tão natural
quanto qualquer outro estado de coisa no mundo. A mente é algo natural ao corpo
humano, assim como a secreção da bílis ou a digestão o são. Para Searle (2006/1992),
não há nada de metafisicamente misterioso com a mente, assim como não há nada de
misterioso com a digestão. Searle (2006/1992) diz que se é para dar um nome para essa
abordagem, poderíamos chamá-la de naturalismo biológico.

Com isso, se os estados mentais, conscientes e inconscientes, são parte


integrante do sistema cerebral, sendo causada por e realizada nesse sistema, então eles
sofrem também toda sorte de influências e degenerescências comuns a qualquer sistema
físico. Se ingerirmos algum tipo de droga ou se sofrermos de qualquer doença

________________
23. Searle (2006/1992, p. 164-166) classifica cinco tipos de reduçóes: ontológica, ontológica de
propriedade, teórica, lógica (ou definicional) e causal. Para os fins que nos destinamos nesta dissertação,
não iremos discutir em detalhes os cinco tipos de redução. Dessa forma, nos concentrando unicamente na
redução causal, pois é nela que Searle se coloca.
68

neurológica, nossos estados mentais serão profundamente influenciados. Da mesma


forma, quando morrermos, nossos estados mentais conscientes deixarão de existir, pois
o sistema cerebral não funcionará mais (SEARLE, 2004, 2006). Isso coloca o
naturalismo biológico de Searle completamente dentro da tradição fisicalista. Porém,
por mais que uma leitura apressada possa sugerir que a abordagem de Searle é
estritamente reducionista ontológica, essa impressão se desfaz quando compreendemos
a posição que a mente ocupa dentro do sistema cerebral. Se observamos o sistema de tal
ou qual maneira, num certo nível, veremos que tal sistema é visto como mental. Se
observarmos de outra maneira, num outro nível, veremos apenas a neurobiologia.

Contudo, o leitor pode estar se perguntando em quê exatamente consistem estes


níveis de observação que aludi desde o começo deste capítulo. Ora, se a mente e o
cérebro estão no mesmo sistema, não seria melhor, aplicando a Navalha de Ockham,
reduzirmos tudo ao cérebro para deixar a explicação muito mais simples e elegante?
Mas a resposta, seguindo a filosofia searleana, nos parece óbvia. Como já dissemos, não
podemos reduzir tudo ao cérebro, pois assumimos que a subjetividade da consciência é
algo real, que deve antes ser explicada do que reduzida.

Já em relação aos níveis de realidade que podem ser observados no sistema


cerebral, isso faz estrita referência a macro e micro estrutura cerebral. São os dois
planos do mesmo sistema, ou seja, todo estado mental (tal como dores, medos, intenção
de agir etc) tem, em sua base, um substrato neuronal sem o qual o estado mental não
viria à existência. Ou seja, quando observamos um estado mental há, ao mesmo tempo,
um estado neuronal que o baliza. São dois aspectos do mesmo sistema, ou dois níveis de
observação diferentes. Dessa forma, se desejarmos, podemos isolar a observação do
sistema, concentrando-se apenas no aspecto micro (neurobiológico) ou macro (estado
mental).

Para uma melhor compreensão deste ponto, podemos fazer uma analogia com a
liquidez e solidez dos corpos. Os corpos se apresentam em estado líquido ou sólido, por
dependência da sua estrutura molecular. É porque as moléculas estão dispostas de tais e
tais maneiras que o corpo se apresenta como líquido ou sólido. Desta forma, vemos uma
mesa sólida (nível macro), porque suas moléculas estão dispostas de dada maneira e não
de outra (nível micro). Se mudarmos as características micro do sistema em questão,
69

também alteraremos as características macro. O mesmo ocorre com o sistema cerebral


humano. Ele está disposto de tal maneira (micro estrutura) que possibilita a emergência
de estados conscientes (nível macro).

Contudo, é fácil percebermos que há um problema com essa analogia entre


sistema cerebral e liquidez ou solidez dos corpos. Ora, podemos reduzir, tanto
ontologicamente, como causalmente, a solidez da mesa à suas partículas constituintes.

No entanto, como vimos há pouco, a consciência, segundo Searle (2000, 2004,


2006/1992), não pode ser reduzida ontologicamente por conta de sua característica de
primeira pessoa. Não podemos reduzir a experiência subjetiva a eventos neurocerebrais,
porque como tais eles não são suficientes para explicar a subjetividade humana, sendo
unicamente necessários.

Com efeito, é justamente neste sentido que a consciência é causada por


(disparos neuronais) e realizada em (sistemas cerebrais humanos). O sistema cerebral,
em seu nível micro, não é suficiente para explicar a consciência, mas é condição
necessária para sua existência. Sem um cérebro, não haveria consciência, assim como
sem um corpo não haveria cérebro.

Claro que a asserção de que a consciência sendo causada por e realizada no


sistema cerebral pode parecer contraditória, porque sugere que Searle está dizendo que a
consciência é, ao mesmo tempo, uma característica do cérebro e é causada por ele. Mas
isso, segundo Searle (1997), é porque ainda temos um modelo grosseiro de causação. Se
seguirmos tal modelo, devemos dizer que uma coisa física causa uma coisa não física
(A causando B, sendo A e B coisas totalmente distintas). Como vimos no exemplo da
liquidez e solidez dos corpos, esse tipo de causação rudimentar não parece funcionar
bem. No nosso atual modelo da estrutura física do universo, devemos dizer que há
características superficiais, como a liquidez e solidez, e como tais elas são causados por
características micros e realizado dentro do sistema físico. Não há nenhum problema em
admitirmos isso para com a água ou a mesa, diz Searle (1997), então por que não
devemos dizer o mesmo para a consciência.

Com isso, responde a pergunta como é possível a existência da consciência?


deve implicar em explicar como se dá, como existe, de fato, a consciência. Ou seja,
quais são os processos pelos quais são possíveis os estados mentais (SEARLE, 1997)?
70

A resposta que o filósofo nos oferece é que os estados mentais, por serem causados por,
são explicados pelo funcionamento da neurobiologia; pelos processos neurocerebrais.

Porém, esses processos neurocerebrais explicam apenas como é possível a


existência da consciência. Se Searle se contentasse apenas com isso, ele seria um
reducionista ontológico. Como não é o caso, então uma parte desse processo é explicado
apenas pela característica macro da estrutura cerebral, ou seja, a consciência. Explicar
empirico-experimentalmente como o processo causal ocorre, ou seja, da neurobiologia à
consciência é um desafio para as ciências naturais, principalmente neurociência.
Contudo, abordaremos mais sobre essa questão, numa espécie de programa de pesquisa
inspirado na filosofia searleana na última seção deste capítulo (seção 2.6).

Todas essas questões que viemos levantando nos três últimos parágrafos nos
leva a uma questão um pouco mais sutil da filosofia de John Searle. Se a consciência é
causada pelo cérebro e, ao mesmo tempo, Searle diz que tudo faz parte do mesmo
sistema, mesmo assim não estaríamos dentro do mesmo problema? Ou seja, não
teríamos ainda uma bipartição à cartesiana entre corpo e mente, pois o cérebro estaria
causando a consciência? Então seria Searle um dualista, ao menos um dualista de
propriedade?24. Estas questões podem ser, em partes, dissolvidas quando analisamos o
que o filósofo entende por causação mental.

2.5. Causação Mental

Juntamente com a pergunta sobre a natureza dos estados mentais, há uma outra
questão igualmente difícil, qual seja, como tais estados mentais podem ter alguma
influência causal no mundo? A pergunta pode se tornar praticamente insolúvel
dependendo da abordagem que adotarmos. Por exemplo, é difícil para um dualista de
substância explicar a relação causal existente entre mente e corpo, devido à separação
ontológica que ele faz de ambos os domínios da realidade. Um materialista reducionista,
por outro lado, veria esse problema como facilmente solúvel, pois se a mente é nada
além de processos cerebrais, a causação mental, no fim das contas, é causação cerebral.
Contudo, o reducionista ainda tem que conviver com o fantasma do epifenomenalismo,
ou seja, mesmo o mental sendo apenas uma espécie de ilusão que na verdade não causa
absolutamente nada, então por que, efetivamente, temos essa sensação de ter estados

________________
24. Essa é uma das críticas desferidas à filosofia de Searle. Trataremos em detalhes dessas críticas no
capítulo 4.
71

mentais subjetivos que de fato parecem ter um efeito causal no mundo? De qualquer
forma, independentemente da abordagem que seguirmos, a questão da causação mental
ainda é um dos grandes tópicos que, juntamente com o problema mente-corpo, não
encontrou uma solução comumente aceita. Aliás, constitui o famoso problema difícil
que é muito discutido nas neurociências. A pergunta fundamental, que algumas
abordagens em neurociência fazem, é como explicar a possibilidade do cérebro ser
causa da mente? Em outras palavras, como se estabelece, efetivamente, essa passagem
causal do mental para o físico e do físico para o mental? Há, ao que parece, um lapso
explicativo quando tentamos equacionar essa questão, mesmo percebendo
empiricamente (através de testes neurocerebrais) que tal e tal evento cerebral causa tal e
tal evento mental25.

Contudo, como é fácil observar, as questões colocadas no último parágrafo não


fazem muito sentido dentro da abordagem de Searle. Quando falamos que o evento
cerebral (C) causa o estado mental (M), e vice-versa, ao que parece estamos repetindo a
velha distinção cartesiana, tratando mente e corpo (ou cérebro) como coisas
mutuamente exclusivas. Porém, como vimos anteriormente, na abordagem de Searle a
mente e o corpo não são duas coisas separadas, mas fazem parte de um único e mesmo
sistema, qual seja, o sistema cerebral. Com efeito, mesmo fazendo parte do mesmo
sistema (e aceitando as premissas da filosofia de Searle), ainda devemos explicar como
ocorre a passagem de um nível para outro, ou seja, como se estabelece de fato a
causação mental na abordagem de Searle. Seria ele um adepto do epifenomenalismo?

Para abordar essa questão, em primeiro lugar, devemos destacar que Searle
(2004) se afasta da ideia humeana de causação, dizendo que ela é inadequada para
exprimir o fenômeno na escala mental. Para Hume26, quando olhamos para o mundo
real nós não vemos uma conexão necessária entre causa e efeito (SEARLE, 2004). Por
exemplo, quando eu aperto o botão "ligar" do meu computador e ele liga, eu penso que
há uma conexão causal necessária entre acionar o botão A e a ocorrência do evento B
(computador ligar). Contudo, o que na verdade eu posso ver é apenas que A causou B,
não havendo nada, segundo Hume, que se assemelhe com uma conexão necessária entre
tais eventos. Ou seja, aceitando a asserção de Hume, chegamos a conclusão de que não
há uma conexão necessária entre causa e efeito. Contudo, fatalmente nos

________________
25. Esse é o famoso explanatory gap, como diz Teixeira (2008).
26. Não pretendemos aqui expor, em detalhes, a questão da causação em David Hume. Apenas
apresentaremos a filosofia de Hume tal como Searle (2004) a expõe. Julgamos conveniente proceder desta
forma, pois o objetivo aqui é mostrar contra o quê Searle se opõe em relação a filosofia de Hume.
72

perguntaríamos por que, então, temos essa ilusão de causa e efeito, ou seja, que todo
evento tem, necessariamente, uma causa e também, necessariamente, é causa de outro
evento? Hume, diz Searle (2004), argumentaria que é através de uma repetição
constante, vendo que determinado objeto A causa (ou aquilo que chamo de causa) um
fato B, é que eu chamaria essa não contrariada relação de causa e efeito. Quando
acontecer A (apertar o botão de ligar), eu espero que aconteça B (o computador de fato
ligue). Essa experiência constante nos daria a convicção de que a conexão necessária
entre causa e efeito realmente existe, mas no fim isso é apenas uma ilusão de nossa
inteligência. A única realidade para Hume é a regularidade que percebemos entre causa
e efeito, regularidade esta que observamos através da empiria, dado-nos por um
processo indutivo. Após vermos várias vezes a mesma regularidade, concluímos,
indutivamente, que A e B tem uma relação causal necessária.

Searle (2002a/1982, 2004) definitivamente não concorda com Hume quando este
diz que não podemos ver a conexão necessária nas relações causais. Nosso filósofo
argumenta que podemos perceber a conexão necessária em praticamentre toda nossa
vida. Por exemplo, quando temos experiências perceptivas ou experiências de ações
voluntárias, temos uma condição causal de auto-referencialidade como nossas condições
de satisfação do fenômeno intencional. Ou seja, nós efetivamente experienciamos a
conexão causal entre a experiência (seja perceptiva, seja de ação) de um lado, e o objeto
ou estados de coisas no mundo, por outro lado27. Quando nós efetivamente
(voluntariamente, intencionalmente) levantamos nossos braços, nós temos a experiência
da eficácia causal, i.e. a consciência da intenção em ação do movimento corporal28.

Com efeito, Searle (2004) diz que em todos os casos de percepções e ações
parece muito comum, de fato muito natural, que percebamos uma conexão causal entre
objetos (e também estados de coisas no mundo) e nossa experiência consciente. Não
parece lícito, segundo Searle, Hume dizer que não vemos conexão causal entre os
objetos da natureza, mas apenas regularidades, quando nós, a todo o tempo e
efetivamente, vemos sim essa conexão acontecendo.

Após esse distanciamento da filosofia da causação de Hume, Searle


(2002a/1983, 2004) acredita poder abordar a questão da eficácia causal da mente.
________________
27. No capítulo 3 abordaremos em detalhes a questão da intencionalidade, bem como o papel que a
experiência de causalidade desempenha.
28. Obviamente, sabemos que essa breve argumentação de Searle não esgota a questão, permanecendo
ainda muitos problemas em aberto. Contudo, como dissemos, o objetivo é mostrar o distanciamento de
Searle em relação a filosofia da causação de Hume. Esse distanciamento será decisivo na questão da
causação mental em Searle.
73

Supondo que o que Searle disse a respeito da causalidade esteja correto, ou seja, que
experimentamos a relação causal em nossas vidas, e estendendo isso para o problema
mente e corpo, temos que enfrentar a seguinte situação: como algo aparentemente não
físico, como a mente, pode causar o movimento corporal? Ora, em nossas experiências
ordinárias parece natural, até mesmo trivial, supor que nossa mente causa alterações em
nosso corpo. Se desejo levantar o braço, simplesmente o levanto e parto do pressuposto
de que minha intenção em ação (ato mental intencional) foi a responsável por causar
essa incrível façanha.

Não obstante, como acreditamos que ficou claro em nossa exposição anterior,
Searle (2004) não concorda que haja essa distinção radical entre mental e físico. Então a
pergunta como algo não físico, como a mente, tem uma eficácia causal no mundo físico
em geral? é desprovida de sentido no naturalismo biológico. O mental faz parte do
mundo físico e compartilha do sistema cerebral tal como neurônios e sinapses. Como
dissemos, o mental, na visão searleana, está unicamente num nível de descrição
diferente. Esta é a diferença fundamental em relação aos outros componentes do sistema
cerebral. Então não há nenhum problema, segundo Searle (2002a/1982, 2004,
2006/1992), que o mental tenha influência causal no mundo físico, pois ele, como tal,
também é físico.

Aceitando essa asserção, contudo, inevitavelmente um problema nos surge, qual


seja, o da sobredeterminação causal. Ora, se tanto no nível micro (sinapses e neurônios)
quanto no macro (mental) há uma influência causal real, então é possível os dois níveis
de descrição causarem o mesmo evento? Suponhamos que o evento mental M (estou
triste) foi causado pelo evento mental M' (lembranças). Seguindo as asserções de Searle,
M' deve ter um substrato neurobiológico para existir, ou seja, um F (rede neural) que
causou M'. Mas então, se F é a causa de M', M' é a causa de M, e se tanto F como M'
ocorrem ao mesmo tempo, podemos dizer que F também é a causa de M. Logo, tanto F
quanto M' são a causa de M, tento assim uma sobredeterminação causal (dois eventos,
simultaneamente, causam um outro evento único).

Apesar da seriedade do problema da sobredeterminação causal, que expressam


sérias restrições àqueles que acreditam na realidade ontológica do mental, percebemos
que, na visão de Searle, esse problema também não se coloca. Se dissermos que mental
e físico causam, ao mesmo tempo, outro evento mental, estaremos realizando,
74

novamente, a distinção entre mental e físico, colocando-os como coisas totalmente


distintas. Mas na visão searleana o mental é simplesmente uma característica (um nível
do sistema) da estrutura física do cérebro, e falando da causalidade, não haveria dois
fenômenos independentes, a consciência e os neurônios inconsciêntes. Há apenas
sistema cerebral, onde há um nível de descrição em que estão ocorrendo disparos
neuronais e outro nível de descrição onde o sistema é consciente (SEARLE, 2004). Não
há uma sobredeterminação causal, pois estamos falando, por assim dizer, de um mesmo
evento (descrito em níveis diferentes) causando outro evento.

Para facilitar a compreensão, apresentaremos um diagrama que ilustra essa


relação de causa e efeito no nível mental e no nível neurobiológico. Devemos entender
cada coluna do diagrama como um único evento, onde na parte superior vemos um nível
de descrição (mental) e na inferior outro nível de descrição (neurocerebral). Então
vemos que um evento A (que tem dois níveis de descrição diferentes) está causando B
(que também tem dois níveis de descrição diferentes):

causa
Intenção em Ação Movimento corporal

Causa & Causa &


Realiza Realiza

Disparos neuronais Mudanças Fisiológicas


causa

Evento A Evento B
Causa

Figura 1: Causação Mental (Searle, 2004, p. 148).

Com isso vemos que a causação mental, na abordagem de Searle, não é algo
como um evento físico (disparos neuronais) causando algo misterioso (mente), mas sim
um sistema integrado, que tem níveis de descrição diferentes e que devem ser vistos
como eventos inseparáveis que causam outros eventos. Todo evento mental, seja
consciente ou inconsciente, tem um substrato neuronal. O mental e o cerebral são coisas
diferentes unicamente porque possuem características diferentes. Mas essas
características, quando há eventos mentais, não ocorrem isoladamente. Há, sim, a
75

causação do nível micro para o macro, mas essa causalidade não é idêntica à humeana,
onde há um intervalo temporal entre causa e efeito. A causa e o efeito aqui acontecem
de maneiras simultâneas, tal como em qualquer outro sistema físico que tenha níveis de
descrição diferentes. Quando descrevemos a solidez da mesa em termos do
comportamento molecular, não há um intervalo de tempo onde, primeiro ocorre a
mudança molecular e depois a alteração na constituição macro da mesa. As duas coisas
acontecem ao mesmo tempo. Do mesmo modo ocorre no mental e no neurobiológico.
As duas coisas acontecem ao mesmo tempo, e quando estamos dizendo que um evento
mental A causou o evento mental B, estamos dizendo também que o substrato
neurobiológico A causou a alteração no substrato neurobiológico (ou qualquer outra
alteração microfísica) B. É neste sentido que a causação mental é possível, seguindo a
abordagem de Searle.

2.6. Programa de Pesquisa

Vimos, ao longo deste capítulo, a filosofia prositiva de John Searle, ou seja, o


que ele propõe como solução para muitos dos grandes problemas em filosofia da mente.
Como expusemos, para o filósofo os estados mentais são caracterizados pela
consciência, intencionalidade, subjetividade e eficácia causal do mental. Searle (1997,
2004. 2006/1992) diz que qualquer filosofia da mente deve levar em consideração essas
quatro características fundamentais da mente humana, sendo que a tentativa de negar
alguma delas é considerado por ele como um grave erro filosófico. Com exceção da
intencionalidade, que trataremos no próximo capítulo, vimos os argumentos
apresentados em favor dessas características fundamentais.

Observamos também que a asserção básica da filosofia searlena é integrar a


mente humana dentro de nossa cosmovisão científica contemporânea, sem, com isso,
negar essas quatro características básicas do mental. "Resumindo: na minha concepção,
a mente e o corpo interagem, mas não são duas coisas diferentes, visto que os
fenômenos mentais são justamente características do cérebro." (SEARLE, 1997, p. 33).
Com isso, vemos que o filósofo se enquadra dentro do realismo ingênuo, ou seja, ele
aceita tanto a asserção do fisicalismo ingênuo (tudo que existe no mundo são partículas
físicas e campos de força, com suas propriedades e relações) como do mentalismo
ingênuo (existem, de fato, estados mentais, alguns deles conscientes e intencionais,
76

todos contendo subjetividade, e muitos são causalmente eficientes). Essas duas teses
para Searle devem ser tomadas como verdadeiras. A negação da veracidade de uma
dessas proposições apenas atualiza a bipartição mutuamente exclusiva já tão conhecida
em filosofia da mente. O que Searle tenta é romper com essa bipartição e ficar numa
posição, por assim dizer, intermediária. O realismo ingênuo é justamente essa sua
tentativa de se posicionar entre o fisicalismo e o mentalismo.

Exposta a filosofia da mente de John Searle, e aceitando a sua solução para o


problema mente-corpo, ou seja, aceitando a solução filosófica do problema, então
devemos nos perguntar qual seria o programa de pesquisa para estudarmos os estados e
processos mentais? Se o programa materialista e cognitivista29 estão equivocados, então
qual seria a proposta alternativa oferecida por Searle? Em primeiro lugar, temos que
observar que o programa de pesquisa que Searle sugere deve, absolutamente, aceitar a
solução que ele oferece ao problema mente-corpo. Os estados e processos mentais são
causados por e realizados em cérebros humanos e de outros animais (principalmente
mamíferos). Ou seja, o estudo científico do mental deve aceitar, em princípio, a
realidade do mental, tratando-o como um coisa física como qualquer outra, mas sem
reduzi-lo ontologicamente a nada além dele mesmo.

Em segundo lugar, Searle (2006/1992) diz que as pesquisas em neurociência


devem abandonar o modelo intencionalista em relação a processos puramente
neuronais. No nível micro, ou seja, na neurobiologia, não há nenhuma intencionalidade.
Não há nenhum querer, desejar ou intencionar. Há apenas o trabalho mecânico de
processos biológicos inconscientes, que Searle chama de hardware. Nesse nível,
devemos apenas descrever as coisas como elas realmente são, através de seus processos
mecânicos, como, aliás, é a descrição usual de todas as ciências da natureza. Passaremos
a entender muito melhor como funciona o cérebro se abandonarmos a metáfora
intencionalista, que, ademais, é apenas uma antropomorfização (SEARLE, 2006/1992).
A intencionalidade, para o filósofo, só existe no nível macro, ou seja, no nível mental.
Não há intencionalidade das moléculas ou dos neurônios.

Um terceiro passo para um programa de pesquisa inspirado na filosofia searleana


é vermos quais são as várias funções que o cérebro desempenha. O erro dos

__________
29. Não abordaremos aqui, de maneira aprofundada, as críticas que Searle faz à ciência cognitiva, tanto
em relação a sua filosofia quanto aos seus métodos de pesquisa. Faremos apenas breves menções aos
métodos de pesquisa feitos, geralmente, nas ciências cognitivas e, em contrapartida, aquilo que Searle
julga ser o método de pesquisa mais adequado. Para conferir em detalhes as críticas searleanas ao
cognitivismo, cf. Searle (1997, p. 53-70; 2006, p. 281-324).
77

cognitivistas, segundo o filósofo, foi tratar da questão da função cerebral fazendo


analogia com os computadores digitais e acreditando que a analogia expressava
realmente a realidade. Ou seja, muitos cognitivistas abandonaram a biologia e se
apegaram à computação. Mas, para Searle (1997, 2004, 2006/1992), não entenderemos
de fato a função que o cérebro desempenha se não o estudarmos. Abandonar a biologia
e apegar-se apenas no formalismo computacional não resolverá o problema. Apenas
uma real compreensão de como o cérebro funciona poderá, efetivamente, resolver o
problema empírico da relação mente-corpo (SEARLE, 2006/1992). Para isso devemos
estudar o cérebro, enquanto fenômeno biológico.

Searle (2004; 2002a/1992) não discorda que, para fins de estudo, poderíamos
observar o cérebro apenas como um computador (wetware), vendo somente como ele
trabalha no nível funcional. Aliás, o filósofo também não discorda que podemos ver o
cérebro apenas em seu nível hardware. Contudo, a questão fundamental é saber como
esses diferentes níveis trabalham em conjunto. O erro, segundo Searle (2002a/1992),
seria aceitar essa redução metodológica como a única realidade do mental, sendo todo o
resto um mito, fantasia ou engano da inteligência.

Uma quarta e última etapa do programa de pesquisa seria estudar o nível mental.
Essa etapa apenas confirmaria nossas hipóteses de nível mais baixo, ou seja, veríamos
quais regiões cerebrais (hardware), desempenhando tais e tais funções, gerariam tais e
tais experiências mentais conscientes e assim por diante (SEARLE, 2004). Nessa última
etapa, Searle acredita que devemos conciliar todos os níveis do sistema cerebral, vendo
como eles funcionam em seu conjunto e como é possível esse sistema causar algo que
chamamos de estado mental consciente.

Este, em resumo, seria o programa de pesquisa baseado na filosofia searleana.


Podemos sumarizar tal programa nas palavras do próprio autor, quando ele diz o que o
cérebro realmente é:

O abandono da crença em uma classe numerosa de fenômenos mentais


em princípio inacessíveis à consciência resultaria, portanto, no
tratamento do cérebro como um órgão como qualquer outro. Como
qualquer outro órgão, o cérebro tem um nível funcional ― na verdade,
muitos níveis funcionais ― de descrição e, como qualquer outro
órgão, pode ser descrito como se estivesse fazendo "processamento de
informação" e executando qualquer número de programas de
computador. Contudo, a característica verdadeiramente especial do
cérebro, a característica que o torna o órgão mental, é sua capacidade
78

de causar e sustentar pensamentos, experiências, ações, memórias etc.,


conscientes. (SEARLE, 2006, p. 341-342, grifos do autor).

Em suma, para Searle o cérebro é um órgão com outro qualquer, e como tal
deve ser estudado objetivamente, sem nenhum tipo de intencionalidade (característica
de primeira pessoa). A analogia com a intencionalidade funciona apenas para facilitar
nossa compreensão do fenômeno, mas apenas quando já temos o conhecimento objetivo
de como ele funciona. Usar a metáfora intencionalista quando não temos conhecimento
efetivo de uma grande parte do funcionamento cerebral seria apenas uma infrutífera
caminhada (SEARLE, 2006/1992). Neste caso, o nível intencional deve ser usado
apenas quando lhe é devido, ou seja, no nível mental.

Contudo, apesar das sugestões de método de pesquisa, Searle (2006/1992)


enfatiza que muito ainda deve ser conhecido sobre o funcionamento cerebral. Por sua
riqueza e complexidade, ainda o conhecemos muito pouco. Por exemplo, em nada
adiantaria fazermos uma correlação entre estado mental e fenômeno cerebral (disparos
neuronais) se antes não sanarmos o problema da causalidade, expresso no explatanory
gap. Ou seja, como efetivamente ocorre a causação entre disparos neuronais e fenômeno
mental subjetivo? Uma neurociência madura deve explicar como ocorre essa correlação
de micro para macro (SEARLE, 1998).

Então o único problema mente-corpo que ainda existe, seguindo a filosofia


searleana, seria de ordem empírico-científica. Ainda não temos conhecimento suficiente
de como o cérebro funciona para explicar como os fenômenos mentais são possíveis.
Filosoficamente, Searle (1997) acredita ter resolvido boa parte do problema, integrando
o mental e o físico no mesmo reino; no mesmo mundo descrito pela ciência
contemporânea.

Não obstante, mesmo se aceitarmos a filosofia de Searle na íntegra, muitas


questões poderão surgir em futuros descobrimentos das ciências, principalmente no
campo das neurociências. Com o intercâmbio cada vez maior entre filosofia e ciência,
seria inaceitável para qualquer investigação filosófica séria negar as novas descobertas.
Tais descobertas nos farão reavaliar o que sabemos presentemente e, quem sabe,
estruturar novos caminhos. De qualquer forma, certamente novas questões baterão à
porta, independentemente de nossas preferências filosóficas.
Capítulo 3

INTENCIONALIDADE
81

Todo fenômeno mental é caracterizado pelo que os escolásticos


da Idade Média chamavam de inexistência intencional (ou
mental) de um objeto, e que nós devemos chamar, embora não
totalmente sem ambiguidade, referência a um conteúdo, direção
para um objeto (que não é para ser entendido aqui como
significando uma coisa), ou objetividade imanente. (Franz
Brentano, Psychology From an Empirical Standpoint, 1973, p.
68, tradução nossa).

O livro de John Searle, Intencionalidade (1983), parece-me ser


uma das principais contribuições contemporâneas para a
filosofia da mente. (David M. Armstrong, In: John Searle and
his Critics, 1991, p. 149, tradução nossa).

3.1. Apresentação

Um dos problemas da filosofia da mente, como vimos de uma forma geral até
aqui, é explicar como matéria e campos de força em interação, tais como neurônios e
sinapses (que, tomados de maneira isolada, são manifestamente desprovidos de
consciência) podem ser a sede consciente de nossa vida mental. Já o problema da
intencionalidade, como diz Searle (2004), é explicar como essa mesma matéria pode se
referir a algo no mundo que não a elas mesmas. Colocado o problema desta forma, fica
clara a relação que a intencionalidade tem com a filosofia da mente. O problema da
intencionalidade é responder por que a consciência se volta para os eventos e estados de
coisas no mundo.

Não obstante, a questão da intencionalidade teve para Searle um papel muito


decisivo. Foi com o livro Intentionality: an essay in the philosophy of mind (1983) que
o filósofo iniciou suas reflexões sobre filosofia da mente. Mas o desejo de Searle, ao
tocar neste assunto, era mais o de usar suas investigações sobre intencionalidade como
um fundamento mais aprimorado para seus trabalhos em filosofia da linguagem, em
especial com relação aos atos de fala. Além disso, Searle (2002a/1983, 2004) diz que
como a filosofia da linguagem é um ramo da filosofia da mente, ou seja, muitos
problemas linguísticos são casos especiais dentro da filosofia da mente, inevitavelmente
ele iria acabar tocando em questões sobre a natureza da mente humana.
82

Com efeito, igualmente como fez com os atos de fala, Searle (2002a/1983) diz
que seguiu suas próprias investigações ao estudar a intencionalidade. O filosofo está
ciente de que a intencionalidade tem uma longa história e tradição dentro da filosofia, o
que não acontece com os atos de fala. Mesmo assim, ele diz ignorar a tradição e não se
preocupou em estar indo a favor ou contra qualquer escola filosófica.

Dessa forma, o objetivo central desse capítulo é mostrar como a intencionalidade


funciona. Mais do que isso, por Searle (2002/1983, 2006) acreditar que o
funcionamento de boa parte dos estados mentais conscientes é intencional, então
mostrando como a intencionalidade funciona mostraremos, não apenas a relação entre
filosofia da mente e intencionalidade, mas sim como boa parte da mente humana
funciona.

3.2. O que é a intencionalidade e como ela funciona?

Logo ao definir a intencionalidade como "aquela propriedade de muitos estados


e eventos mentais pelas quais estes são dirigidos para, ou acerca de objetos e estados de
coisas no mundo.” (SEARLE, 2002a/1983, p. 01), percebemos que, em certo sentido,
Searle não cumpriu sua promessa de seguir seu próprio caminho e ignorar a tradição
filosófica. Com tal definição percebemos a aproximação de Searle com a tradição no
sentido de intencionalidade nos remeter a direcionalidade (a consciência está voltada
para os objetos e estados de coisa do mundo30.

No entanto, o filósofo diz que sua visão se diferencia dessa tradição no sentido
de que nem todos os estados mentais são intencionais. Para um estado ser intencional
ele deve ser acerca de alguma coisa. Quando se tem uma crença ou um desejo,
esperamos que a crença ou o desejo tenham um objeto específico. Já a exaustão,
algumas formas de depressão ou ansiedade, por exemplo, podem ocorrer sem que haja
um objeto específico que produza tais estados mentais, sendo esses, portanto, estados
não-intencionais. Ou seja, nesses exemplos de estados mentais não-intencionais, por
mais que tenhamos o estado psicológico (tristeza, ansiedade etc.), não parece haver um
conteúdo reconhecível para o qual o estado mental aponta. O indivíduo pode estar
simplesmente triste ou ansioso, sem saber porque exatamente está tendo esse estado
psicológico.
________________
30. Como está na epígrafe deste capítulo, tal definição se aproxima muito da oferecida por Brentano, que
por sua vez foi buscá-la na filosofia escolástica.
83

Outro exemplo que afasta a identidade entre intencionalidade e consciência é o


fato de que nem todo estado intencional está consciente para o sujeito. Há crenças que
nunca serão (ou nunca foram) pensadas, mas que os indivíduos as têm (este ponto ficará
mais claro nas seções subsequentes quando abordarmos a questão do background). Já na
tradição filosófica, por intencionalidade e consciência serem a mesma coisa, a
consciência é sempre consciência de (vide Brentano31). Mas, segundo Searle, essa visão
obscurece uma distinção crucial.

[...] quando tenho uma experiência de ansiedade, há, de fato, algo de


que minha experiência é experiência de, a saber, a ansiedade, mas esse
sentido de “de” é bem diferente do “de” da intencionalidade que
ocorre, por exemplo, na declaração de que tenho um medo de cobras;
pois, no caso da ansiedade, a experiência da ansiedade e a ansiedade
são idênticas, mas o medo de cobras não é idêntico a cobras.
(SEARLE, 2002a, p 03).

Em resumo, a intencionalidade é justamente essa capacidade que a mente tem de


se voltar para algo que não seja ela mesma, de se referir a objetos e estados de coisas no
mundo. O interessante nesse processo, diz Searle (2002a/1983), é que o
funcionamento da intencionalidade é bem parecido com os atos de fala. Por essa razão,
ele faz uma comparação entre os dois termos, mostrando sua estreita relação32. Então,
quais seriam os mecanismos da intencionalidade que fazem ela ser o que é, ou seja,
quais mecanismos são esses que possibilitam nossos estados mentais se voltarem
intencionalmente para os objetos e estados de coisas do mundo?

Em primeiro lugar, devemos dizer que todo e qualquer estado intencional tem
um conteúdo proposicional, que se expressa num modo psicológico. Searle (2004)
aborda essa questão dizendo que o conteúdo proposicional é, no fim das contas, o
conteúdo da intencionalidade. Por conteúdo estamos apenas querendo dizer o a respeito
do que a intencionalidade fala, ou seja, é a direção do ato intencional. Já o modo
psicológico, que é como o conteúdo proposicional se expressa, apresenta-se na forma de
crenças, desejos, intenções, temores etc. Por exemplo, podemos crer que vai chover,
desejar que chova, temer que vai chover etc. O conteúdo proposicional, neste caso
"chuva", pode se expressar em diferentes modos psicológicos.

________________
31. Não abordaremos a intencionalidade na filosofia de Franz Brentano. Cf. [BRENTANO, F.
Psychology from an Empirical Standpoint. Editora: Routledge, London, 1973]
32. Searle (2002) mostra longamente que o modo de funcionamento da intencionalidade (que
abordaremos a seguir) é bem parecido com o dos atos de fala. Contudo, não trataremos dessa questão da
relação entre atos de fala e intencionalidade por não ser do interesse da presente dissertação. Cf.
(SEARLE, 2002, p. 6-18 e p. 251-274).
84

Além disso, Searle (2002a/1983, 2004) utiliza mais três termos técnicos,
pegando-os também de empréstimo de sua teoria dos atos de fala, que são muito úteis
para explicar o funcionamento da intencionalidade, quais sejam, condições de
satisfação, direção de ajuste e auto-referencialidade causal. Com condições de
satisfação, Searle (2004) quer apenas dizer que todo estado intencional tem algo que o
faz existir. Por exemplo, se eu acredito que o sol está brilhando, minha crença só será
verdadeira se realmente o sol estiver brilhando. Portanto a condição de satisfação do
estado intencional (que se expressa na crença "o sol está brilhando") é que o sol esteja
realmente brilhando. Se tal acontecimento não estiver ocorrendo, eu tenho uma crença
falsa e o estado intencional não se completa (ou se esvazia).

Já a direção de ajuste vai no mesmo caminho das condições de satisfação. Eu


devo olhar para a relação entre meus estados intencionais e o mundo, observando qual o
ajuste a ser feito. Quando temos uma crença qualquer, observamos o mundo para ver se
a crença é verdadeira ou não. Acreditamos que o mundo é de tal ou qual forma.
Contudo, se temos um desejo, queremos que o mundo seja de tal ou qual forma, e meu
desejo só será satisfeito se o mundo estiver do jeito que eu quero. Então vemos que na
crença a direção de ajuste toma a forma de mente-mundo (acredito que o mundo é x →
olho para o mundo e vejo se ele é realmente x). Já os desejos tem uma direção de ajuste
mundo-mente (o mundo é x → desejo que seja x, y ou z).

Em relação à auto-referencialidade causal, Searle (2004) diz que é uma


característica lógica peculiar de fenômenos intencionais mais básicos, tais como
percepção, ação e memória. Dessa forma, dizemos que, para que um estado intencional
qualquer ocorra, é necessário uma auto-referencialidade causal, ou seja, é necessário
que o objeto da ocorrência esteja presente. "O que isso quer dizer é que o conteúdo do
estado se refere ao estado, fazendo um requerimento causal" (SEARLE, 2004, p. 119,
grifos nosso). Por exemplo, a condição de satisfação da memória requer que a memória
seja causada pelo evento rememorado, que a memória seja auto-referente.

Com isso, podemos resumir a intencionalidade em Searle dizendo que todo ato
intencional tem um conteúdo proposicional, que se expressa num modo psicológico,
sendo que este, por sua vez, tem suas condições de satisfação e uma direção de ajuste.
Alguns estados intencionais, tais como memória e percepção, têm uma característica
85

especial que é a auto-referencialidade causal. Na tabela abaixo podemos observar essa


relação com nosso exemplo simples, qual seja, "vai chover".

Ato Conteúdo Modo Condições de Direção Auto-


Intencional Proposicional Psicológico Satisfação de Ajuste Referencialidade
Causal?
Acredito que Chuva Crença Realmente deve Mente- NÃO
vai chover chover mundo
Desejo que Chuva Desejo Realmente deve Mundo- NÃO
chova chover mente
Lembro-me Chuva Memória Que realmente Mente- SIM
que choveu tenha chovido Mundo
ontem
Tabela 1: Modo de funcionamento de um ato intencional (SEARLE, 2002a, p. 134)

Há outras questões que influenciam no funcionamento da intencionalidade, tais


como a Rede Intencional e o Background. Contudo, iremos tratar dessa noções
detalhadamente em seções subsequentes.

3.3. Intencionalidade como representação mental

Boa parte dos filósofos que abordam a questão da intencionalidade colocam-na


como um tipo de representação mental do mundo. O nascimento da intencionalidade, na
filosofia escolástica, foi exatamente nessa direção. Tomás de Aquino usava o termo
Esse Intentionale como uma maneira pela qual o objeto poderia conceitualmente ser
representado na mente humana (CRANE, 2003). Searle (2002a/1983, 2004) também
não foge dessa tradição representacionalista. Porém, o filósofo diz que o modo como os
estados intencionais representam os objetos e estados de coisas do mundo são idênticos
aos atos de fala.

Com isso, vemos haver uma sutileza quando Searle usa o termo representação,
fazendo com que ele, em certo sentido, diferencie-se da tradição filosófica. Quando
Searle, por exemplo, diz que uma crença é uma representação, não está querendo dizer
que a crença é uma espécie de imagem do mundo, ou que ela re-apresenta algo que já
foi apresentado, nem que uma crença tenha significado. Searle (2002a/1983) usa o
termo representação no sentido de que seja inteiramente esgotado por sua analogia com
86

os atos de fala. “O sentido de 'representar' em que uma crença representa suas condições
de satisfação é o mesmo sentido em que um enunciado representa suas condições de
satisfação.” (SEARLE, 2002a/1983, p. 16). Ou seja, dizer que uma crença constitui
uma representação é apenas dizer que ela tem um conteúdo proposicional e um modo
psicológico, e que esse conteúdo proposicional determina certas condições de satisfação
e que o conteúdo psicológico determina a direção de ajuste. Não há, na teoria searleana
da intencionalidade, nenhum sentido ontológico na palavra representação. “Trata-se
apenas de uma constelação de noções lógicas tomadas de empréstimo da teoria dos atos
de fala.” (idem, p. 16-17).

Com efeito, uma pergunta pode nos surgir, qual seja, como os objetos e estados
de coisas no mundo ganham significados? Será a partir de nossas representações, ou
seja, estados intencionais? Em parte, a segunda pergunta tem uma resposta afirmativa
no sentido de que nós, seres humanos, e outros animais, temos uma intencionalidade
intrínseca, biologicamente determinada, e nós nos relacionamos com o mundo através
dessa intencionalidade, ou seja, através dessas representações. Contudo, a primeira
pergunta que fizemos no início do parágrafo nos parece um pouco mais complicada.
Dessa forma, tal questão será analisada na última seção deste capítulo (seção 3.9).

3.4. Especulação sobre as formas básicas de intencionalidade

Tomando como pressuposto que a intencionalidade, por ser parte integrante da


consciência, é biologicamente natural, fatalmente cairíamos na questão: quais são suas
formas mais básicas? Aliás, poderia haver uma gradação das formas de
intencionalidade, de básicas a complexas? Searle (2002a/1983) acredita que sim e que a
tradição filosófica responde a essa pergunta dizendo que as formas mais básicas de
intencionalidade seriam crenças e desejos. Ou seja, todas as outras formas de
intencionalidade poderiam ser reduzidas a crenças e desejos. Por exemplo, poderíamos
reduzir o temor a crenças e desejos, no sentido de que se temo que p, então devo
acreditar que p é possível de acontecer e desejar que p não ocorra.

Temor(p) → Cren(p) & Des(¬ p)


87

O esquema acima poderia ser aplicado a todos os outros estados intencionais.


Em certo sentido, Searle (2002a/1983) não vê esse reducionismo como totalmente
errado, só acredita que a tradição filosófica não tocou efetivamente fundo no problema.
Pois, para o filósofo, crenças e desejos não são as formas mais básicas ―
biologicamente mais básicas ― de intencionalidade, mas sim são produtos intencionais
já bem elaborados, que derivam de formas ainda mais fundamentais. As formas
biologicamente fundamentais de intencionalidade, nesta visão, seriam as percepções e
as ações.

Esse tipo de empreendimento filosófico feito por Searle é a chave para entender
seu conceito de intencionalidade. Levando a intencionalidade para ramos
biologicamente mais básicos (percepção e ação) e, ao mesmo tempo, intencionalizando
essas mesmas formas, Searle reforça o alicerce do seu assim chamado Naturalismo
Biológico, ao qual nossa consciência, com seus diversos estados intencionais, é produto
de milhares de anos de seleção natural, fazendo dos estados mentais (apreendidos em
seu sentido puramente intuitivo) algo tão biológico como a mitose e a digestão. Dessa
forma, nas duas próximas seções abordaremos essas duas formas mais básicas de
intencionalidade, começando com a percepção.

3.5. Intencionalidade da percepção

Tradicionalmente, a filosofia da percepção tenta correlacionar nossas


experiências perceptivas internas com o mundo exterior. No entanto, parece haver um
problema na formulação desta questão, como o próprio Searle (2002a/1983) salienta.
Ora, se meu corpo e órgãos internos (incluindo os receptores perceptivos) fazem parte
do mundo externo, material, onde estaria esse mundo interior que os outros
desconhecem? Em que parte do espaço estaria esse “interno”? À parte isso, a metáfora
espacial interno-externo persiste e é quase impossível não lançar mão dela para
descrever as próprias experiências perceptivas. Nós sentimos certas experiências e se
não a expressarmos através de nosso comportamento visível para terceiros, eles nunca
saberão o que percebi ou nunca terão ideia de meus sentimentos. Mas, como bem aponta
Searle, devemos ter cuidado ao colocar dessa maneira a descrição das experiências, pois
poderíamos recair numa substância interior, independente (ou à parte) da exterioridade
88

do mundo, o que fatalmente nos colocaria num tipo de dualismo substancial, num tipo
de explicação obscurum per obscurius.

Para iniciarmos a abordagem da intencionalidade da percepção, perguntemos o


seguinte: quando vemos um objeto, por exemplo, uma mesa, o que nós efetivamente
vemos? Poderíamos apelar para a física ótica ou a neurofisiologia cerebral, e tais
ciências, certamente, podem explicar o funcionamento da visão e tem muito a dizer a
esse respeito. Mas, para além de uma descrição puramente mecânica do funcionamento
da visão, o que eu realmente vejo quando olho para uma mesa? Certamente vejo o
formato característico da mesa, sua cor etc. No entanto, há outro aspecto muito mais
importante na percepção da mesa, qual seja, temos uma experiência visual. Contudo,
não estamos querendo dizer que quando percebemos visualmente a mesa estamos vendo
a experiência visual. Além disso, também não podemos dizer que a experiência visual
se reduz as características da mesa (forma, cor etc.). Tal experiência não é acessível a
visão tal como as características da mesa o são. Então o que estamos querendo dizer
quando falamos que ao vermos algum objeto temos uma experiência visual?

É justamente aqui que Searle (2002a/1983) faz a conexão entre percepção e


intencionalidade, dizendo que a experiência visual (ou experiência perceptiva em geral)
é intencional no mesmo sentido que uma crença, um desejo e um temor o são. A
experiência visual é uma experiência de ou é direcionada a alguma coisa. Também
vemos que a experiência visual tem suas condições de satisfação, tais como qualquer
outro estado intencional.

A hipótese de que as experiências visuais são intrinsecamente


intencionais é, em resumo, a de que elas têm condições de satisfação
exatamente no mesmo sentido que outros estados intencionais têm
condições de satisfação que são determinadas pelo conteúdo dos
estados. (SEARLE, 2002a, p. 57).

O mais importante nessa hipótese é que a experiência visual não pode ser vista,
ou seja, percebida. Só podemos ter experiências visuais, experenciá-las tal como
qualquer outro estado intencional. Esse tipo de afirmação coloca Searle um pouco fora
da tradição da filosofia da percepção, pois alguns filósofos relutam em dizer que
existem, de fato, coisas como experiências visuais. Uma fonte de relutância é que,
admitindo a existência de tais experiências, estaríamos admitindo também os dados dos
sentidos ou qualquer outra coisa que faça a mediação entre nós e o mundo. Ou seja,
89

haveria três tipos de substância, a matéria exterior, a matéria pensante (res cogitans) e
uma espécie de mediador (algo como os espíritos animais de Descartes, que podem
transitar entre as duas substâncias). O receio desses filósofos, que não aceitam a
experiência perceptiva como algo real, válido, é justamente recairmos numa teoria
dualista da mente. No entanto, Searle (2002a/1983) nega esse tipo de afirmação acerca
da experiência perceptiva, dizendo que ela não é uma mediadora, mas sim apenas o
conteúdo intencional das coisas percebidas.

Mas poderia haver alguma diferença entre a intencionalidade de, por exemplo,
crenças e desejos, e a intencionalidade da percepção? Searle (2002a/1983) acredita que
sim e essa diferença reside nas representações de tais estados intencionais. Estados
intencionais tais como crenças e desejos podem ser assim chamados de representações
(tal como Searle emprega esse termo, exposto na seção 3.3 deste capítulo). Porém, as
experiências perceptivas requerem algo a mais que as representações. A experiência tem
uma espécie de direcionalidade, imediatismo e involuntariedade. Searle diz que isso
nos leva, imediatamente, à teoria representativa da percepção, porém ele propõe chamar
as experiência perceptivas de “apresentações”. “Direi que a experiência visual não se
limita a representar o estado de coisas percebido, mas, quando satisfeita, faculta-nos um
acesso direto a este e, nesse sentido, é uma apresentação de tal estado de coisas.”
(SEARLE, 2002a/1983, p. 65). Ou seja, nas crenças e desejos temos uma representação
do objeto e em nossas percepções em geral temos, além da representação, uma
apresentação do objeto percebido.

Outra diferença crucial reside no fato de as experiências perceptivas sempre


serem conscientes ao sujeito. Não pode haver uma experiência perceptiva inconsciente
(ou que esteja inconsciente). Já, por exemplo, estados intencionais como crenças podem
permanecer inconscientes ao sujeito até que eles sejam eliciados e se tornem, assim,
conscientes. No entanto, para não restar dúvidas quanto ao uso que Searle emprega
quando diz "inconsciente", grosso modo, dizemos apenas que é algo que não está
consciente ao sujeito. Não há relação entre o inconsciente visto por Searle e o estudado
pela psicanálise33.

Uma outra característica da intencionalidade em geral, já abordada quando


explicamos como a intencionalidade funciona, e que também aparece na
intencionalidade da percepção, é a auto-referencialidade causal. Searle (2002a/1983)
________________
33. Para detalhes sobre o inconsciente em Searle, cf. [SEARLE, 2006/1992, p. 217-248] e [SEARLE,
2004, p. 165-178].
90

argumenta que os objetos percebidos são auto-referentes no sentido de que as


experiências fenomenologicamente idênticas podem ter conteúdos diferentes. No
entanto, a auto-referencialidade causal coloca alguns problemas difíceis. Por exemplo,
qual o sentido da palavra causa em “auto-referencialidade causal”? Pior ainda, essa
abordagem não nos lançaria num tipo de ceticismo, onde não haveria um ponto neutro a
perceber o mundo, mas sim o mundo seria percebido individualmente, através da auto-
referencialidade da experiência de cada um? Dessa forma, como teríamos certeza de que
nossas experiências visuais foram satisfeitas verdadeiramente, ou seja, como saber se há
um mundo para o qual a percepção intencional aponta?
Em relação a causalidade, abordaremos tal questão, em detalhes, na seção 3.7
deste capítulo. Já com relação ao problema da particularidade do objeto, podemos dizer
que é um problema escorregadio que nos lança numa espécie de ceticismo ou, pior, num
solipsismo, onde o próprio mundo exterior é posto em dúvida e o que existe, de fato, é
apenas o eu que sente, que tem tais e tais experiências. Ou seja, devemos nos perguntar:
o que há com nossas experiências que exigem ser satisfeitas pela presença de um objeto
específico? De que modo a particularidade se introduz no conteúdo intencional?

Searle (2002a/1983) diz que a solução atualmente em voga para o problema da


particularidade parte de uma perspectiva de terceira pessoa, ou seja, para a pergunta
como é possível fazer referência a um objeto em particular, qualitativamente singular?,
a resposta dada é porque conseguimos, através das características físicas observáveis,
distinguir os objetos. No entanto, Searle diz abordar o problema em outra direção, pois
esta é uma questão intrinsecamente de primeira pessoa e a solução em voga (de terceira
pessoa) não o satisfaz.

Qualquer teoria da intencionalidade tem de dar conta do fato de que


normalmente nossos conteúdos intencionais estão direcionados para
objetos particulares. O que se pede é uma caracterização do conteúdo
intencional que mostre de que modo este pode ser satisfeito por um, e
um único, objeto previamente idêntico. (SEARLE, 2002a, p. 91).

E para responder satisfatoriamente a questão da particularidade, respeitando o


aspecto de primeira pessoa, Searle diz que devemos reunir os seguintes conceitos:

Em primeiro lugar, a Rede e o Background afetam as condições de


satisfação dos estados Intencionais; em segundo lugar, a causação
intencional é sempre interna às condições de satisfação dos estados
intencionais; e, por último, os agentes estão em relações indexicais
com seus próprios estados Intencionais, suas redes e seus panos de
91

fundo. (SEARLE, 2002a, p. 92).

A Rede e o background são dois conceitos muito importantes que iremos


abordar em detalhes posteriormente. Contudo, em relação a particularidade, podemos
dizer que a Rede e o background afetam as condições de satisfação dos estados
intencionais, pois os conteúdos intencionais, por si, não determinam suas condições de
satisfação, ou seja, eles não são causa sui, mas sim estão relacionados holisticamente
aoutros conteúdos intencionais (Rede) e capacidades não-representacionais
(background). Como também já dissemos, iremos abordar a questão da causação (mais
especificamente a causação intencional) na seção 3.7, porém, grosso modo, podemos
dizer que a relação causal ocorre como parte do conteúdo intencional, ou seja, o que faz
com que vejamos um objeto em particular é que o estado intencional é causado por esse
objeto, e devo ter alguma experiência anterior com esse objeto, sendo que a experiência
presente faça uma relação com a anterior na determinação das condições causais de
satisfação. Já a indexicalidade faz referência a individualidade das experiências
perceptivas. A experiência de eu ver um objeto não é uma experiência de alguém, mas a
minha experiência.

Portanto, para que eu veja um objeto em particular, segundo Searle


(2002a/1983), devo ter uma relação com esse objeto (ter tido, por exemplo, experiências
x, y, z, que me deixem lembranças a,b,c). E quando vejo esse objeto novamente, ele me
causa certas experiências, que estão relacionados à minha Rede intencional (a,b,c, que
causam, x,y,z), sendo que essa experiência é minha experiência, e não uma experiência
genérica de um ser genérico.

No entanto, uma objeção que já levantamos a esse tipo de resolução do problema


pode surgir, qual seja, nessa concepção não cairíamos num solipsismo, nunca tendo
certeza de que estamos realmente vendo o objeto? Ou, pior ainda, como ter certeza de
que aquilo que eu estou vendo é idêntico ao que um terceiro vê? Searle (2002a/1983)
diz que esse tipo de questão toma como pressuposto que por termos experiências
singulares nós não teríamos certeza de que o mundo exterior realmente existe, pois se
no fim das contas eu só tenho minhas experiências singulares, eu devo viver no meu
próprio mundo. Contudo, Searle continua a afirmar que cada um tem uma experiência
perceptiva singular, pois temos um cérebro e um corpo particular, portando, não
deveríamos esperar termos as mesmas experiências. O fato de termos experiências
singulares não tem nada de metafísico ou misterioso, mas parte do fato óbvio de que
92

estamos olhando o objeto de perspectivas diferentes. Mas, para se ter essas experiências
singulares, devemos presumir que estamos diante de um e o mesmo objeto. Por
exemplo, se duas pessoas estão vendo um quadro de Van Gogh e cada uma diz vê-lo
sob certo aspecto (cada um tomando como base sua Rede e background), isso não refuta
o fato de que essas duas pessoas estão diante de um e mesmo quadro: o quadro de Van
Gogh.

Mas, mesmo com esse argumento, ainda podemos nos perguntar como essa
abordagem de Searle é capaz de responder a pergunta cética, qual seja, não haveria
nenhum ponto neutro sobre o qual veríamos o mundo real, ou só veríamos o mundo a
partir de nossas representações? Searle expõe a objeção cética nos seguintes termos:

Aparentemente a versão causal do realismo ingênuo que você está


expondo leva ao ceticismo acerca da possibilidade de jamais se
conhecer o mundo real com base nas suas percepções, pois não existe
nenhum ponto de vista neutro do qual examinar as relações entre as
suas experiências e seus supostos objetos intencionais (ou condição de
satisfação) para verificar se estes realmente causam as primeiras. Na
sua exposição, só se pode ver o carro se este causar sua experiência
visual, mas como pode sequer saber ou descobrir se o carro causa a
sua experiência visual? Se você tenta descobrir, apenas poderá ter
outras experiências, visuais ou outras, e exatamente o mesmo
problema surgirá no caso destas. Aparentemente, o máximo que se
poderia jamais obter seria alguma coerência interna ao sistema de suas
experiências, mas não existe nenhum meio de sair desse sistema para
descobrir se há, de fato, objetos do outro lado dele. O mesmo tipo de
incognoscibilidade do mundo real que você acusou a teoria
representativa de implicar também é implicada por sua teoria, pois a
menos que você possa saber que os objetos causam a sua experiência
não haverá como saber que você percebe objetos; e, na sua
interpretação, é impossível saber que os objetos causam as
experiências porque não é possível observar os dois termos
independentemente para saber se há uma relação causal entre eles.
Cada vez que você acredita estar observando um objeto, deve
pressupor a própria relação causal que está tentando verificar.
(SEARLE, 2002a, p. 101-102).

O filósofo nos diz que essa argumentação tropeça no meio. Quando se diz que,
por exemplo, infiro da presença (e natureza da experiência) a existência de um carro,
isso é um erro, pois para Searle não se infere nada e, neste exemplo, nós simplesmente
vemos o carro. Ou seja, do fato da experiência visual ser causada pela percepção do
carro, não decorre que a experiência visual seja o ponto de comprovação do meu
conhecimento de que vejo o carro, nem que haja uma relação causal entre a experiência
93

visual e objeto material (exposta no esquema: exp. visual → obj. material). Dessa
forma, a experiência visual unicamente é parte do conteúdo causado pelo carro.

Searle (2002a/1983) argumenta que se tomarmos a experiência enquanto único


método de validação da existência do objeto, o ceticismo realmente se torna a única
alternativa. E é neste ponto que o filósofo diz que a metáfora interior e exterior pode ser
perigosa. Se a levarmos a sério, diremos que uma experiência “interior”, acerca da qual
podemos ter uma espécie de certeza cartesiana, deve prover a base ou fundamento de
uma experiência “exterior”. A proposta de Searle é de que não estamos vendo duas
coisas quando temos percepção visual, mas percebemos uma única e, ao percebê-la,
temos experiências visuais.

Vemos, portanto, nesta rápida exposição, que a abordagem de Searle, ao tentar


trazer aquilo que seria biologicamente mais básico para a intencionalidade, vai numa
direção oposta a que a tradição filosófica geralmente adota. Ao dizer que temos uma
experiência perceptiva e que não há nada de metafísico nem misterioso nisso, Searle
caminha em direção a construção de seu Naturalismo Biológico, colocando um pilar de
extrema importância.

Com efeito, iremos investigar agora outra noção biologicamente fundamental da


intencionalidade, qual seja, a intencionalidade da ação.

3.6. Intencionalidade da ação

A filosofia da ação é um tema muito abordado dentro da filosofia, e um dos


motivos para que isso aconteça é que tal tema tangencia outras questões filosóficas
muito importantes, como por exemplo o problema do livre-arbítrio. Com efeito, talvez a
primeira pergunta que devemos fazer ao tratar da filosofia da ação é: o que viria a ser
uma ação? São meros movimentos corporais? Um ataque epiléptico seria uma ação no
mesmo sentido que dirigir carros ou correr pelo parque? Costa (2005) nos diz que
parece estranho dizermos que essas duas classes de movimentos corporais desfrutam da
mesma qualidade. E qual seria essa qualidade? Ataques epilépticos são apenas um mero
movimento corporal, destituído de qualquer tipo de volição, já dirigir automóveis e
correr pelo parque são ações genuínas, pois partem de volições, crenças, desejos, enfim,

.
94

intencionalidade. Ou seja, a diferença entre as qualidades dos movimentos corporais


está no fato de que uns são intencionais e outros não.

Dessa forma, não fica nem um pouco difícil ver qual seria a relação entre
intencionalidade e ação, e como a filosofia da ação poderia desembocar no problema do
livre-arbítrio. Ora, se as ações são intencionais, elas são livres ou determinadas? Se são
determinadas, seriam realmente ações e faria sentido dizer que elas têm uma carga de
intencionalidade? Como a discussão entre determinismo e livre-arbítrio transcende os
limites deste trabalho, não vamos abordar essa questão em profundidade34. Contudo,
sendo coerente com a filosofia searleana, tomamos como princípio que, de alguma
forma, o ser humano desfruta de algum tipo de liberdade e que ela se expressa nos atos
intencionais. Com isso, uma ação, para ser genuína, deve conter um elemento
intencional.

Searle (2002a/1983) argumenta que somos inclinados a dizer, quando falamos


sobre ações, que assim como crenças são satisfeitas se, e somente se, o estado de coisas
representado pelo conteúdo da crença de fato se verificar na realidade, dizemos que uma
intenção é satisfeita se, e somente se, a ação representada pelo conteúdo da intenção de
fato vier a se verificar. Por exemplo, se tenho a intenção de levantar do meu sfá, ir até a
geladeira e pegar uma cerveja, a ação só será satisfeita se, e somente se, eu de fato agir
para pegara cerveja. O filósofo argumenta ainda que uma ação intencional "equivale
simplesmente às condições de satisfação de uma intenção." (SEARLE, 2002a/1983, p.
113). No entanto, uma série de perguntas nos vem quando fazemos essa asserção, quais
sejam, o que vem a ser uma intenção? O que é uma ação? E qual o caráter da relação
entre elas, que se descreve dizendo que uma é condição de satisfação da outra?

Além disso, em relação a última pergunta, ou seja, qual a relação entre intenção
e ação?, vemos que ela pode gerar muitas dificuldades. A primeira delas é que uma
intenção (enquanto estado intencional) tem sempre como condição de satisfação um ato
ou uma ação, enquanto outros estados intencionais, como crenças e desejos, não
necessitam dessa relação especial. Outra questão que nos parece pertinente é que não
pode haver ação sem intenção, enquanto que nas crenças e desejos pode ocorrer esse
movimento negativo, ou seja, haver objetos não desejados e coisas das quais não se crê
(SEARLE, 2002/1983). Então, por que ocorre essa disparidade entre ações e os outros

________________
34. Cf. Searle (2004, p. 151-164; 1997, p. 105-121) para observar o que o filósofo entende por livre-
arbítrio e qual sua relação com o problema mente-corpo.
95

estados intencionais? Ao longo desta seção iremos responder tais questionamentos,


entendendo que se respondidos iremos dar o panorama geral do que Searle entende
como a intencionalidade da ação.

Uma primeira coisa a se notar é que há uma similaridade entre as ações


intencionais e as percepções. Do mesmo modo como temos, nas percepções, o objeto
percebido e a experiência perceptiva, nas ações temos a ação em si e a experiência de
agir. Ou seja, a experiência de agir é o conteúdo intencional da ação intencional. Outra
similaridade entre percepções e ações está no modo como o objeto nos é representado.
Não há apenas a pura representação, como nas crenças e desejos, mas sim uma
apresentação do objeto, tanto do objeto percebido como da ação executada. Se eu tenho
experiência visual sem objeto (alucinação, por exemplo), meu conteúdo intencional não
foi satisfeito, pois não houve apresentação do objeto como condição de satisfação
necessária. Do mesmo modo, quando ajo, a apresentação da ação para mim é condição
de satisfação necessária, pois se eu tiver apenas a experiência de agir sem o objeto da
ação (ou seja, a ação em si), então não houve satisfação das condições básicas.

É razoável pensar que percepções e ações desfrutam de propriedades comuns em


relação a sua intencionalidade pelo simples fato de elas serem noções biologicamente
mais básicas de intencionalidade. No entanto, Searle (2002a/1983) nos apresenta
algumas diferenças entre a intencionalidade da percepção e a intencionalidade da
crença, que podem ser comparadas no quadro abaixo.

Direção de Ajuste Direção da Causação Condição de


Satisfação
Intencionalidade Mente-Mundo Objeto para Apresentação do
da Percepção experiência Objeto
perceptiva
Intencionalidade Mundo-Mente Experiência de Agir A experiência de
da Ação para evento da ação Agir é causa da ação
Tabela 2: Diferença entre a intencionalidade na percepção e na ação (SEARLE, 2002a, p. 127)

Mas retornando especificamente às ações, Searle (2002a/1983) diz existirem


dois tipos de ações intencionais, aquelas que a intenção é prévia à ação e as ações que
ocorrem sem uma intenção prévia. No entanto, todas as ações intencionais têm
intenções nas ações, sejam elas prévias ou não. Ou seja, mesmo em casos acidentais,
onde não haja intenção prévia, há intenção em ação. Por exemplo, se eu esbarro
96

acidentalmente no vaso que está na minha sala e o quebro, eu não tinha a intenção
prévia de fazer isso, mas sim tinha uma intenção em ação de fazer uma outra coisa
diversa (sair da sala, ir à outra parte da sala etc).

Não obstante, muitas ações que não são prévias, também podem não ser
acidentais e nem, por assim dizer, plenamente conscientes. São ações automáticas e, por
mais estranho que possa parecer, também intencionais35. Por exemplo, trocar de marcha
enquanto está se dirigindo um automóvel não costuma ter uma intenção prévia, pois
nesse caso não costumamos pensar em algo do tipo "agora irei apertar o pedal da
embreagem, trocar da segunda para a terceira marcha e ir soltando o pedal da
embreagem lentamente enquanto vou apertando o acelerador"36.

Aqui podemos retornar àquela distinção que fizemos logo no começo desta
seção, qual seja, entre os meros movimentos corporais e as ações genuínas (ações que
desfrutavam de intencionalidade). Em que sentido um ataque epiléptico é não
intencional e uma ação automática, como trocar de marcha num automóvel, o é? A
diferença é que, para Searle (2002a/1983), para automatizarmos uma ação, tivemos que
passar por um treino, ou por constantes repetições, e essas ações repetidas eram antes
ações intencionais com intencionalidade prévia. A constante repetição criou um hábito e
este hábito é o que faz a ação ser automática, parecendo ser "não pensada" ou não-
intencional.

Feita essa separação conceitual entre ações prévias e intenção em ação, julgamos
estar aptos para dizer o que vem a ser, segundo Searle, uma ação, e como relacionar
intenção prévia e intenção em ação. Basicamente a diferença entre a ação prévia e a
intenção em ação é que na primeira a ação completa é a condição de satisfação do ato
intencional, já na segunda apenas o movimento corporal é requerido como condição de
satisfação (SEARLE, 2002a/1983). No entanto, as ações completas, para serem
satisfeitas, devem ocorrer um ou mais movimentos corporais. Portanto, pela
transitividade, temos que a intenção prévia causa intenção na ação, causando, por sua
________________
35. A distinção entre intenção na ação e ação automática pode gerar certa confusão e isso nos parece
natural. Dizer que uma ação é meramente automática pode soar como totalmente determinado ou não-
intencional. No entanto, não é esse o sentido que estamos empregando ao termo automático. Há em
muitas intenções em ação (sendo elas não prévias) uma relação estreita com ações automáticas. Mas o
próprio Searle (2002) diz que tem dificuldade em estabelecer a diferença clara entre as duas, intenções em
ação (sem ação prévia) e ações automáticas. Então quando dizemos que uma ação é não prévia, não
estamos querendo dizer que ela seja mero movimento corporal, mas que, em certo sentido, é um
comportamento automático do organismo (muito provavelmente não meramente automático, mas, como
dissemos, é difícil distinguir claramente entre intenção em ação sem intenção prévia e ação automática).
36. Obviamente que estamos dando exemplos de pessoas experientes e que tenham tais ações já
automatizadas.
97

vez, movimento corporal. Ou seja, intenção prévia causa movimento corporal. Mas
como Searle (2002a/1983) diz que a ação pode ser definida como a conjunção da
intenção na ação e movimento corporal, logo intenção prévia causa a ação. Essa
descrição pode ser melhor visualizada no esquema abaixo.

Intenção prévia → intenção na ação → movimento corporal

Ação

Figura 2. Esquema da relação entre intenção prévia, intenção em ação e movimento corporal (SEARLE,
2002a, p. 131).

Com efeito, podemos protestar e dizer que esse esquema só funciona para ações
simples. Há muitas ações no dia-a-dia que são muito complexas e variadas. Ou seja,
como a teoria apresentada por Searle explica as ações complexas, como, por exemplo, o
assassinato da velha agiota cometido por Raskólnikov37.

Intenções complexas são aquelas em que as condições de satisfação


incluem não apenas o movimento corporal A, mas também alguns
componentes adicionais da ação, B, C, D... que pretendemos realizar
por meio da (ou através da, ou na) realização de A, B, C... e tanto a
representação de A, B, C... quanto as relações entre eles estão
incluídas no conteúdo da intenção complexa. (SEARLE, 2002a, p.
137).

Essa pergunta parece ser quase natural, pois observamos ― e Searle


(2002a/1983) diz que isso é um fato notável da evolução humana e animal ― que temos
a capacidade de executar movimentos corporais em que as condições de satisfação de
nossas intenções ultrapassam os meros movimentos corporais. Ou seja, nossas ações são
mais que meros movimentos corporais e elas querem fazer muito mais do que os meros
movimentos. No exemplo que demos de Raskólnikov, o ato de ele matar a velha agiota
foi o último numa sucessão de movimentos corporais, mas suas intenções iam muito
além do mero assassinato (ou na conjunção dos movimentos que culminaram no
assassinato), ou seja, englobava uma Rede de intencionalidade que se cruzava
complexamente, envolvendo muitos fatores como o fato de Raskólnikov acreditar que

________________
37. Exemplo retirado do romance "Crime e Castigo" de Fiódor Dostoievski. Raskólnikov, um sujeito de
muito talento, mas pobre e sem muitos meios de ação, planeja matar uma velha agiota. Ele argumenta
para si mesmo que, usando o dinheiro de uma mulher desprezível, que não faria bem algum para a
sociedade, ele poderia construir grandes obras; mostrar sua genialidade ao mundo. Antes de matar, de
fato, a velha, Raskólnikov procura uma arma (no caso, um pequeno machado), caminha por toda a cidade
até a casa da velha, conversa com ela, espera até o momento propício e, enfim, executa o ato planejado
com muita antecedência.
98

era um sujeito de muitos talentos, o desejo que ele sentia de melhorar sua condição
social, a crença de que aqueles que nasceram para ser Napoleão tem um direito moral de
sobrepujar outros seres humanos (até mesmo matá-los) etc. Todos esses estados
intencionais (somados a muitos outros) culminaram em sua ação que tinha por objetivo
a crença de que, pegando o dinheiro da agiota, Raskólnikov iria melhorar sua condição
social e mostrar seus talentos a todos. Em outras palavras, nosso exemplo mostra que,
para além de uma série de movimentos corporais, há nas ações complexas uma gama de
outros estados intencionais, que se relacionam entre si e acabam desembocando outros
estados intencionais.

Por esse motivo Searle (2002a/1983) diz que deve haver um limite entre uma
ação complexa. Pois, se não fosse assim, para qualquer ação teríamos que retornar ao
início dos tempos para determiná-la, quiçá teríamos que retroceder ad infinitum para
mostrar suas determinações. Esse limite é chamado de efeito sanfona, que seria
simplesmente a capacidade de ampliar as autenticas descrições das ações (a, b, c, d...),
podendo-se fazer uma listagem. Tem esse nome porque a lista de ações não pode se
ampliar indefinidamente, tal e qual uma sanfona. Ou seja, deve-se ter um limite coerente
que abarque as intenções complexas e suas relações causais. Por exemplo as ações que
determinaram que Raskólnikov assassinasse a velha agiota devem se limitar a apenas
algumas, de modo que possamos determinar um começo e um fim da ação complexa.

Dessa forma, com a noção de efeito sanfona, as ações que estariam fora da
sanfona (muito acima, muito abaixo ou ao lado) não fariam parte das ações do
organismo. Essa é uma delimitação importante, pois, apesar das ações complexas dos
vários indivíduos humanos estarem interconectadas, devemos fazer uma limitação
razoável para cada ação específica. Se não for assim, ficaríamos numa espécie de
continuum, onde as ações não têm um começo determinado nem um fim.

Nesse ínterim, visto que explicamos o que vem a ser uma ação complexa
usando, para isso, a analogia com uma sanfona, devemos explicar o que então vem a ser
uma ação básica para Searle. Seria uma mera intenção em ação, uma ação automática?
Searle (2002a/1983, p. 139) diz que ações básicas seriam aquelas que estão no topo (ou
início) da sanfona e podem ser definida da seguinte forma: "A é um tipo de ação básica
para um agente S se, e somente se, S for capaz de realizar atos do tipo A e S puder
pretender a execução de um ato do tipo A sem pretender a execução de nenhuma outra
99

ação por meio da qual pretenda fazer A". Em outras palavras, a ação básica seria aquela
que desencadeia a ação complexa. Ela pode ser também uma ação automática (como
trocar de marcha), mas ela é definida por Searle como o início da sanfona, ou o topo
(pois o topo pode ser o início de uma nova ação complexa). Dessa forma percebemos
que há uma íntima relação entre ações básicas, automáticas e intenção em ação.

Para finalizarmos nossa discussão sobre a intencionalidade da ação, devemos


responder a pergunta o que seria uma ação não-intencional? Uma ação, para ser
intencional, tem que ter dois componentes, quais sejam, componente intencional (que
pode ser expresso nas atitudes proposicionais) e um evento que é o objeto intencional.
Já numa ação não intencional há também esses dois componentes, só que o evento, que
é objeto intencional, nesse caso é não intencional. O exemplo que ilustra melhor essa
questão são ações acidentais. Obviamente que há uma ação ali, uma intenção em ação
(prévia ou não), só que no acidente a ação é não intencional (não tinha a intenção de).

No entanto, como fica claro perceber, mesmo nesse caso havia a intenção em
ação. Ou seja, para que aja uma ação não intencional deve-se ter alguma intenção em
ação. Assim, chegamos a conclusão de que, para Searle (2002a/1983) toda ação, seja
intencional ou não, tem intenção em ação. No entanto, e quanto a casos patológicos
como epilepsia? Seriam não intencionais, então? A resposta, seguindo a filosofia
searlena, é não, justamente porque o filósofo não consideraria a epilepsia como uma
ação (definida por ele como a conjunção entre intenção em ação e movimento corporal).
Para ser uma ação, faltaria a epilepsia um componente básico, qual seja, a intenção em
ação. Então não haveria como classificá-la como ação intencional ou não intencional,
porque simplesmente a classificaríamos como não ações.

Com isso, acreditamos que apresentamos, de maneira geral, a relação que Searle
acredita existir entre percepções e ações, e porque o filósofo as considera como estados
intencionais biologicamente mais básicos. Contudo, mesmo explorando a
intencionalidade na ação e na percepção, ela só faria sentido se realmente tivesse algum
efeito causal sobre o mundo. Por serem estados intencionais, i.e. mentais, devemos nos
perguntar em que sentido tais estados são causalmente eficientes no mundo em geral. E
como acredito que tenha ficado claro no capítulo anterior, Searle (2002a/1983)
argumenta que sim, que nossos estados mentais, perpassando pela intencionalidade da
percepção e ação, são causalmente eficientes. Até mesmo na discussão que viemos
100

fazendo até aqui sobre as noções básicas de intencionalidade, elas só fazem sentido se
tiverem uma direção de causação, ou seja, se os objetos do mundo causarem uma
percepção ou minhas ações causarem uma mudança no mundo. Então julgamos
necessário, nesse momento, abordar o que Searle entende por causação ou, mais
especificamente, aquilo que ele chama de causação intencional.

3.7. Causação Intencional

Em geral, a noção de causa e efeito é considerada um fenômeno natural, ou seja,


algo que existe entre eventos no mundo independentemente das pretensões humanas. Já
a intencionalidade não desfruta da mesma propriedade, não sendo considerada por
muitos, portanto, um fenômeno natural (SEARLE, 2002a/1983). Mas esta noção de
intencionalidade, como fica fácil perceber, não é compartilhada por Searle, pois nosso
filósofo faz um grande esforço para naturalizá-la. Searle diz, contudo, que mesmo
apresentando as formas biologicamente mais básicas de intencionalidade, o fecho para
podermos, de fato, naturalizar a intencionalidade será a noção de causação. Com isso,
há um movimento duplo em Searle, qual seja, transformar a noção causação em
causação intencional (em outras palavras, intencionalizar a causalidade) e, com essa
manobra, naturalizar a intencionalidade por via da relação de causa e efeito (que é,
como vimos, comumente aceita como um fenômeno natural).

Para fazer essa manobra, Searle (2002a/1983) começa atacando a visão


tradicional da causação38. Retomando rapidamente o que apresentamos sobre a visão
tradicional no capítulo 2, algo fundamental segundo a perspectiva tradicional é que nós
não conseguimos ver a relação causal ou qualquer conexão causal, de fato, no mundo. O
que observamos é a repetição de pares ordenados semelhantes (a,b) e esta repetição
constante automatiza-nos a dizer que os dois membros dos pares ordenados estão
causalmente relacionados (a → b).

Embora a teoria da causação tenha variações de um filósofo para outro, Searle


(2002a/1983) diz que há propriedades formais básicas que são amplamente aceitas pela
grande maioria da comunidade acadêmica. Propriedades essas que, de uma forma ou
outra, remontam à filosofia de David Hume (SEARLE, 2004). A primeira propriedade

________________
38. Basicamente Searle ataca a visão humeana de causalidade e seus continuadores. É a isso que ele
chama de visão tradicional da causalidade, a qual nos reportamos no capítulo 2, seção 2.5.
101

comum aceita pela tradição é que o nexo causal em si não é observável. É possível
observar apenas regularidades causais, tipos de sequências regulares em que eventos de
um certo tipo são seguidos de eventos de outro tipo. Posso ver eventos que estão
causalmente relacionados (a → b), mas não percebo relação alguma além da
regularidade.

A segunda propriedade é que sempre que há um par de eventos relacionados


como causa e efeito (par ordenado {a, b}), esse par deve exemplificar alguma
regularidade universal. Para cada caso individual em que um evento causa outro, deve
haver alguma descrição do primeiro evento e alguma descrição do segundo, tal que deve
haver uma lei causal que correlacione os eventos que se enquadram na primeira
descrição com os que se enquadram na segunda. Searle (2002a/1983) ainda argumenta
que essa segunda característica é o cerne da moderna teoria da causação.

A terceira e última característica comum, aceita pela tradição, segundo Searle


(2002a/1983), é que as regularidades causais são distintas das lógicas. Há muitas
regularidades que nem sequer são possíveis candidatas a regularidades causais, porque
os fenômenos em questão encontram-se logicamente relacionados. Assim, por exemplo,
ser um triângulo está sempre associado a possuir três lados, mas o fato de alguma coisa
ser um triângulo nunca poderia ser a causa de essa coisa ter três lados, dado que essa
correlação ocorre por necessidade lógica.

Searle (2002a/1983) tem muitas objeções a essas três asserções básicas da


tradição filosófica. Uma primeira questão é que o tipo de noção de causação apresentada
pela tradição afronta as nossas intuições de senso comum, onde efetivamente
percebemos relações causais. Outra questão é que, ao agirmos sobre o mundo, temos a
impressão de estar agindo e afetando-o de maneira causal. Searle também diz que a
tradição filosófica negligencia uma questão crucial na discussão, qual seja, estaria a
causalidade de fato no mundo exterior ou só na minha cabeça? Para Hume, por
exemplo, a causalidade estaria no mundo exterior. Este filósofo ainda nos diz, e com
muita prudência, comenta Searle (2002a/1983), que não é possível aceitar a relação
causal tal como apreendida pela teoria tradicional e continuar sendo um realista acerca
da causação.

Muitos filósofos pensaram que poderíamos alcançar a noção de


causação observando as ações humanas, mas mesmo com estas ainda
há um problema sério acerca de como podemos generalizar em
102

seguida essa noção de modo a abranger coisas que não ações humanas
e como poderíamos conceber a causação como uma relação real no
mundo, independentemente de nossas ações. (SEARLE, 2002a, p.
160).

Além das objeções apresentadas, a teoria tradicional não distingue entre os


causadores em que, por exemplo, um evento causa outro evento ou mudança, e outros
tipos de relações causais, que podem existir entre os estados de coisas permanentes e as
características dos objetos. Searle (2002a/1983) diz que a noção de um aspecto
causalmente relevante e sua relação com a explicação causal são cruciais para fazermos
uma teoria intencional da causação.

Dadas essas dificuldades, chegamos a conclusão, guiados pela visão searleana,


de que a teoria tradicional da causalidade não consegue abarcar o aspecto crucial da
causa e efeito em seres humanos, qual seja, a noção de intencionalidade. Por exemplo,
se perguntamos ao indivíduo por que você bebeu água? e ele nos responde porque
estava com sede, haveria algo de intrinsecamente errado em sua resposta? Por que
deveria haver algo de errado com o desejo (conteúdo intencional) ter causado a ação de
beber água? Searle acredita que não há nada de errado com isso e ainda afirma que seria
difícil, ao se falar de causalidade humana, descartar a noção de intencionalidade, pois
em toda causa e efeito (humanos) há uma carga de intencionalidade sob uma forma ou
outra.

Dessa maneira, o filósofo nos apresenta três pontos sob os quais a sua teoria
intencionalista da causalidade se diferencia da teoria tradicional. Em primeiro lugar, é
que se conhece a pergunta causal e os contrafactuais correspondentes sem nenhuma
observação adicional além da experiência do evento. Isso nos leva ao segundo ponto,
que diferencia a teoria de Searle, pois esta não se compromete com nenhuma lei causal
pertinente. O filósofo nega que haja uma correlação causal universal entre eventos
causais. Por exemplo, o meu conhecimento do que me levou a erguer o braço pode ser
restringido a tinha o desejo de erguê-lo. Não há necessidade de saber das leis que levam
uma pessoa a erguer o braço. Apenas um conhecimento que essas leis existem será
suficiente. O fato de nós experenciarmos o ato (que é dividido em causa e efeito, mas
vemos como um único ato) já mostra que não precisamos saber das leis internas que
regulam a ocorrência daquela ação. Se desejo erguer meu braço, espero que o desejo,
por si, faça com que eu o erga, mesmo eu não sabendo nada sobre fisiologia do
movimento. Por fim, descritos de maneira intencional, a relação de causa e efeito tem
103

uma conexão lógica no sentido de estarem logicamente relacionados por conteúdo


intencional e condições de satisfação.

Apesar desses três pontos de distanciamento, acreditamos que um dos aspectos


mais importantes da visão intencionalista de Searle acerca da causação reside na questão
da experiência. Esse já foi um ponto muito explorado tanto na intencionalidade da
percepção como na ação. Novamente Searle (2002a/1983) reporta-se a isso, dizendo que
a experiência de causação está presente o tempo todo como parte do conteúdo das
experiências perceptivas e das experiências de ações. Ou seja, além da experiência
perceptiva e de ação, temos, ao mesmo tempo, uma experiência de causação.

No entanto, devemos especificar em que sentido a causação se torna parte da


experiência. Por exemplo, quando se ergue o braço ou se vê uma mesa, não ergo
causação nem vejo causação. Nem a mesa nem o braço fazem parte do conteúdo da
experiência, mas sim são objetos de tais experiências. Mas a causação, essa sim, é
conteúdo da experiência daquele objeto. E é justamente isso que a experiência de
causação é, ela faz parte do conteúdo intencional das experiências perceptivas e das
experiências de ações. A presença da mesa me causa a percepção visual e, com isso,
tenho a experiência visual. Erguer o braço causa a ação e, com isso, eu tenho a
experiência de agir. Para Searle (2002a/1983) o erro dos humeanos é que eles buscam a
causação enquanto objeto da experiência. Mas para Searle ela não é objeto, mas sim
parte da experiência.

Poderíamos estabelecer uma diferença entre a teoria Tradicional e a


que estou a defender dizendo que, segundo a teoria tradicional, nunca
se tem uma experiência de causação e, segundo a minha teoria, não
apenas se verificam com frequência experiências de causação, como,
inclusive, toda experiência de percepção ou ação é precisamente uma
experiência de causação. Ora, esse enunciado seria enganador se
sugerisse que a causação é o objeto Intencional dessas experiências;
antes, a ideia subjacente a essa maneira de apresentar a questão é que
sempre que percebemos o mundo ou agimos sobre ele temos estados
Intencionais auto-referentes do tipo que descrevi, e a relação de
causação é parte do conteúdo, não do objeto, dessas experiências. Se a
relação de causação é uma relação de determinar a ocorrência de
alguma coisa, trata-se de uma relação que todos experimentamos
sempre que percebemos ou agimos, ou seja, mais ou menos o tempo
todo. (SEARLE, 2002a, p. 171).

Dessa forma, vemos porque a noção de causação seria o fecho para a


intencionalidade na percepção e na ação. Em primeiro lugar, tanto na percepção como
104

na ação experimenta-se a relação causal. Não podemos, como na teoria tradicional,


dizer que ela é inferida da regularidade. Em segundo lugar, não é o caso de que cada
enunciado causal isolado acarreta a existência de uma lei causal universal
correspondente. Por exemplo, o enunciado minha sede causou o meu beber água não
implica uma lei universal que relacione eventos dos tipos pertinentes em alguma
descrição. Além disso, sabe-se amiúde que um enunciado causal isolado é verdadeiro
sem que se saiba da existência de lei correspondente alguma. E, mais ainda, conhece-se
com frequência a verdade de um contracfatual correspondente sem que esse
conhecimento se baseie em nenhuma lei.

Além disso, em terceiro lugar, há uma relação lógica de certo tipo (muito mais
tênue que a relação de vinculação entre enunciados) entre causa e efeito nos casos de
causação intencional, porque, por exemplo, no caso da intenção prévia e da intenção em
ação, a causa contêm uma representação ou apresentação do efeito em suas condições
de satisfação. Em todo caso de causação intencional, onde o conteúdo intencional é
satisfeito, há uma relação interna entre causa e efeito sob aspectos causalmente
relevantes. E, repetindo, Searle (2002a/1983) não está afirmando simplesmente que a
descrição da causa está internamente relacionada à descrição do efeito, mas sim que as
próprias causas e efeitos estão internamente relacionados dessa maneira, uma vez que
um é representação ou apresentação do outro.

Desses três argumentos, concluímos que a relação entre percepção e ação, na


teoria da intencionalidade, não seria possível sem a noção de causalidade, mais
especificamente, sem a noção de causalidade intencional. Mas, mesmo assim, parece
que criamos um hiato entre a abordagem da causação que presa pela intencionalidade
(Searle) e a outra que toma como princípio a regularidade (Hume). Poderia haver
alguma relação entre a experiência primitiva de causação, na ação e na percepção, e a
existência de regularidades no mundo?

Nem as declarações que afirmam a existência da experiência de


causação nem a existência de casos particulares de causação implicam
que haja leis causais gerais. Não obstante, as leis causais efetivamente
existem e uma condição da possibilidade de se aplicar a noção de
causação em casos específicos é uma suposição geral de regularidade
no mundo. A menos que eu suponha algum nível de regularidade no
mundo – não necessariamente universal – não posso sequer começar a
fazer distinção entre o parecer que a minha experiência está em
relações causais como parte de suas condições de satisfação e o ela
105

estar efetivamente em tais relações. Só posso aplicar a noção de


alguma coisa determinando a ocorrência de outra, enquanto oposta à
aparência de que determina, sobre uma suposição de regularidades
causais, pois é apenas em virtude do fracasso ou do sucesso das
regularidades que posso avaliar o caso individual”. (SEARLE, 2002a,
p. 186).

Como vimos, Searle não nega que haja regularidades, mas a questão é que não
há dois tipos de causação, a de regularidade e a intencional, mas sim apenas um tipo,
qual seja, a causação eficiente. A causação é uma questão de coisas determinando
outras. Contudo, em uma subclasse especial da causação eficiente, as relações causais
envolvem estados intencionais. Tais casos de causação intencional são especiais em
diversos aspectos: podemos estar diretamente conscientes do nexo causal em alguns
casos, há uma relação lógica de causa e efeito, e tais casos são a forma primitiva da
causação no que diz respeito às nossas experiências. E o conceito de causação eficiente
só tem aplicabilidade em um universo no qual se supõe um alto grau de regularidade.

Em outras palavras, Searle acredita haver uma noção de causação que abarca
tanto a intencionalidade como as regularidades. Contudo, para Searle (2002a/1983,
2004), não seria possível nenhum tipo de causalidade humana (i.e. causalidade
intencional) se a causalidade não existisse independentemente dos seres humanos, ou
seja, sem que ela existisse como uma fenômeno natural. Isso requer um alto grau de
regularidade. A causalidade só ganha esse aspecto especial em seres conscientes, ou
seja, intencionais.

3.8. Rede intencional e Background

Como vimos até aqui, todo estado intencional com uma direção de ajuste tem
condições de satisfação. No entanto, podemos observar que nenhum estado intencional
é causa sui, ou seja, por mais que possamos estudá-lo isoladamente (para fins didáticos)
todo estado intencional está envolvido numa rede holística complexa de outros estados
intencionais e não pode se desvincular de tal rede. Então todos os estados intencionais,
tais como crenças, percepções, desejos, temores e intenções estão dentro de uma Rede
intencional.

________________
39. Neste caso, significa apenas coisas sobre as quais nunca, ou quase nunca, pensamos. Por exemplo, a
solidez dos corpos. Nós simplesmente contamos com isso e normalmente não pensamos conscientemente,
ao pegarmos um objeto, sobre sua solidez.
106

E parece trivial, até muito intuitivo, pensarmos na Rede intencional, pois ao


analisarmos qualquer um de nossos estados intencionais, percebemos facilmente que ele
está ligado com uma série de outros estados intencionais. Por exemplo, quando temos
uma crença política, isso pressupõe uma série de outras crenças (a respeito de como o
mundo funciona) e desejos (de como o mundo deveria ser), e também podemos
adicionar outros estados, tais como esperança, temores e intenções.

Contudo, como podemos perceber, torna-se muito difícil traçar todos os fios da
Rede que a ligam a uma crença específica. Teríamos um trabalho quase infinito
descrevendo todas as crenças, desejos e intenções que determinam uma crença qualquer.
Pior ainda, boa parte da Rede está submersa no inconsciente39. Com isso, o trabalho se
torna demasiado complicado, sendo possível observar apenas uma cadeia causal muito
limitada que descreveria, em nosso exemplo, uma crença política específica.

Mas, mesmo não conseguindo descrever todos os fios condutores de qualquer


estado intencional em específico, se formos descendo até as bases mais fundamentais da
Rede, certamente nos encontraremos com o background, que é, como diz Searle
(2002a/1983), esse fundo das capacidade básica, que por ser o fundamento de todo
estado intencional, não é, ele mesmo, intencional ou representacional. Ou seja, o
background é a precondição para o funcionamento de estados intencionais, ou nas
palavras do próprio filósofo:

O Background é um conjunto de capacidades mentais não-


representacionais que permite a ocorrência de toda representação. Os
estados intencionais apenas têm as condições de satisfação que têm e,
portanto, apenas são os estados que são sobre um Background de
capacidades que, em si mesmas, não são estados intencionais.
(SEARLE, 2002a/1983, p. 198).

Nesse sentido, o background seria o conhecimento básico sem o qual nós não
poderíamos agir ou ter sensações no mundo, pois, para se ter qualquer estado
intencional, é preciso saber como as coisas são e é preciso saber como fazer as coisas.
Por exemplo, a capacidade a abrir portas (ação intencional) requer um conjunto de
conhecimentos prévios (tanto saber fazer, como saber o que é) sem os quais minha ação
seria completamente fracassada. Devo saber o que vem a ser uma porta, para que ela
serve, como manuseá-la etc. Claro, podemos dizer que o conhecimento sobre portas
envolve apresentações e representações do objeto, sendo este mais um conhecimento
intencional. No entanto, a capacidade de reconhecer uma porta e abri-la não é, em si
107

mesma, outra representação. É nesse sentido que o background é uma capacidade não-
representacional. Eu posso, após ter o conhecimento sobre a porta, representá-la, agir
intencionalmente sobre ela e percebê-la intencionalmente, mas devo, antes de poder agir
sobre ela, ter um conhecimento não-representacional, não-intencional, enfim, ter um
background.

Podemos pensar, com esse exemplo acima, que portas é um produto cultural e,
portanto, segundo o que viemos discutindo anteriormente, como cultura é feita por seres
humanos, conscientes e com estados intencionais, muito provavelmente boa parte
desses produtos culturais (tais como portas, cervejas e carros) fazem parte da
intencionalidade humana. Então como pode fazer sentido essa definição de background
que Searle nos oferece? Como o background pode ser um estado não-representacional
se ele se confunde com a cultura? Ora, não seria a cultura também um produto
intencional? Antes de discutir esse importante ponto, o filósofo faz uma distinção
interessante entre dois tipos de background, quais sejam, básico e local. Para Searle
(2002a/1987) o background básico são as capacidades biológicas fundamentais comuns
a todos os seres humanos, tais como andar, agarrar, perceber etc., e atitudes pré-
intencionais que reconhece a solidez dos corpos e a existência de um mundo
independentemente do indivíduo. Portanto, o background básico são as capacidades
dadas geneticamente a toda a raça humana. Já o background local são práticas culturais
de uma dada cultura em especial, por exemplo, a habilidade de reconhecer carros e
bolas de futebol, abrir portas, beber cerveja etc.

O background básico não nos parece difícil de reconhecer intuitivamente, visto


que, por sermos uma dentre tantas espécies animais, devemos ter características comuns
e isso, sem dúvida, deve constituir as condições necessárias (background) para termos
qualquer tipo de estado intencional. No entanto, o background local pode ser um pouco
difícil de aceitar, pois isso acarreta uma consequência que pode parecer, a primeira
vista, ir contra o que Searle vem argumentando, ou seja, o fato de que certos objetos ou
eventos, para alguns indivíduos, constituir um background e para outros não. Por
exemplo, uma cultura que não tenha experiência com carros, consequentemente não terá
no arcabouço de seu background local o reconhecimento de carros. Já para a maior
parte da raça humana, hoje os carros são um dado (segundo essa perspectiva de
108

background) comum, não-representacional.

Tendo em vista esta dificuldade patente, em especial ao background local, como


provar que a teoria assim esboçada é verdadeira? Searle (2002a/1983) diz que um
argumento formal não seria de grande utilidade e, muito provavelmente, não
convenceria. Dessa forma, ele nos apresenta um caminho, trilhado por ele mesmo, e que
o levou a essa noção de background.

Primeiramente, podemos dizer que a noção de background nos dá uma


compreensão do significado literal. Searle (2002a/1983) diz que a compreensão do
significado literal de sentenças mais simples, como a caneta está sobre a mesa, bem
como de sentenças mais complexas, como formulações das ciências físicas, requerem
uma capacidade de background. O nosso exemplo de sentença simples, a caneta está
sobre a mesa depende de um conjunto de pressuposições pré-intencionais para que se
determine o conjunto de verdade. Se alterarmos o background, mas mantivermos o
mesmo significado literal (a caneta está sobre a mesa) o conjunto de verdade será
outro, pois as capacidades pré-intencionais serão outras. Há uma diferença muito grande
entre alguém que sabe o que é uma caneta e alguém que não sabe.

Dessa forma, a compreensão é mais do que a apreensão do significado. Sabemos


o que significa, por exemplo, o verbo abrir e podemos tirar um significado, a partir do
verbo, nas frases “João abriu a porta” e “o cirurgião abriu o corpo”. No entanto, quando
pensamos em João abrindo a porta, geralmente não o imaginamos com um bisturi
fazendo incisões na porta. Mas o verbo abrir é o mesmo nas duas sentenças. Assim, a
argumentação de Searle (2002a/1983) é que deve haver algo mais básico, pré-
intencional, que garanta a interpretação do fato literal, do significado.

Contudo, ainda podemos retornar a nossa questão anterior e nos perguntar sobre
a validade do estatuto não-representacional do background. Se tal noção é uma pré-
condição de representação, linguística ou de outras formas, por que não pode o
background também ser composto de estados intencionais, como as crenças
inconscientes? Não poderia o background ser idêntico a um conjunto de crenças
inconscientes? Searle (2002a/1983) responde a essa questão dizendo que, caso tomemos
o background como um conjunto de crenças inconscientes, ele deve estar sustentado em
algo mais básico (um pré-background) e que, por sua vez, requererá algo mais básico, e
assim por diante. Ou seja, caso quiséssemos continuar com essa ideia, recairíamos numa
109

redução ao infinito e, para nós, seres humanos, esse tipo de procedimento é impossível,
pois como seres finitos e limitados, uma redução ao infinito é incognoscível.

Em segundo lugar, sem o background não poderíamos ter a noção de metáfora.


Searle (2002a/1983) diz que é tentador pensarmos que deva existir alguma coisa como
regra ou princípio que permita aos usuários de um idioma emitir e entender metáforas, e
que tais regras ou princípios sejam parecidos com um algoritmo. No entanto, ao
analisarmos as metáforas, percebemos que elas em nada se parecem com algoritmos.
Não há nenhum algoritmo quando uma emissão é entendida metaforicamente, mesmo
quando já se descobriu que se deve interpretar assim. Então o filósofo chega a
conclusão de que:

Parece simplesmente ser um fato de nossas capacidades mentais


podermos interpretar certos tipos de metáforas sem a aplicação de
nenhum ‘regra’ ou ‘princípio’ subjacentes além da pura capacidade de
fazer determinadas associações. Não conheço nenhum modo melhor
de descrever essas capacidades do que dizer que se trata de
capacidades mentais não-representacionais. (SEARLE, 2002a, p. 207).

Em terceiro e último lugar, terminando a nossa caminhada a favor do


background, Searle nos diz que tal noção nos permite compreender as habilidades
físicas de uma maneira muito mais clara. O filósofo analisa, num primeiro momento, a
tradicional teoria cognitivista que diz que, quando aprendemos uma nova habilidade, ela
se internaliza em nós, tornando-se inconsciente. Ou seja, quando aprendemos a nadar,
depois de um tempo, não precisamos mais pensar conscientemente para executar o
movimento, ele surge “naturalmente”. No entanto, Searle (2002a/1983) propõe uma
visão alternativa desse fenômeno, dizendo que quando aprendemos uma nova
habilidade não internalizamos as regras, mas sim elas se tornam irrelevantes. “[...] as
experiências repetidas criam aptidões físicas, presumivelmente realizada como trilhas
neurais, que tornam as regras simplesmente irrelevantes.” (SEARLE, 2002a/1983, p.
209). Ou seja, a prática repetida permite que o corpo assuma o comando e as regras de
execução recuem para o background. É nesse sentido que o background contém
também habilidades físicas.

Contudo, o filósofo ressalta que com esse caminho que fizemos, composto por
esses três aspectos (compreensão do significado literal, compreensão das metáforas e
habilidade físicas), ainda não demonstramos, formalmente, a hipótese do background.
110

Mas Searle (2002a/1983) diz que podemos fazer uma síntese do que foi exposto até
aqui, dizendo que temos efetivamente estados intencionais, conscientes e inconscientes,
e tais estados formam uma Rede complexa. Já a Rede baseia-se num background de
capacidades (habilidades, aptidões, suposições e pré-suposições não-intencionais, e
atitudes não-representacionais). Não é correto dizer que o background está na periferia
da intencionalidade, mas sim que ele permeia toda a Rede de estados intencionais, e que
sem esse pressuposto básico (ou seja, sem background) não há intencionalidade.

Com isso pode-se fazer um argumento formal a favor da hipótese do


background, embora Searle (2002a/1983) ache as considerações acima apresentadas
mais convincentes. Para o argumento formal, o filósofo nos apresenta uma redução ao
absurdo:

Suponhamos que o contrário da hipótese do Background fosse


verdade, isto é, suponhamos que toda a vida mental Intencionalista e
todas as capacidades cognitivas pudessem ser reduzidas inteiramente a
representações: crenças, desejos, regras internalizadas, conhecimento
de que determinada coisa é verdade etc. Cada uma dessas
representações seria exprimível como um conteúdo semântico
explícito (embora, é claro, muitos deles sejam inconscientes e,
portanto, inacessível à introspecção do agente) e os processos mentais
consistiriam em passar de um desses conteúdos semânticos para outro.
Contudo, há certas dificuldades nesse quadro. Os conteúdos
semânticos que a concepção nos fornece não podem ser aplicados por
si mesmos. Ainda que dados os conteúdos semânticos, temos de saber
o que fazer com eles, como aplicá-los, e esse conhecimento não pode
consistir em outros conteúdos semânticos sem um regresso infinito.
(SEARLE, 2002a, p. 211).

Com isso, Searle acredita ter demonstrado a hipótese do background. Contudo,


muitos podem dizer que aquilo que o filósofo chama background é, na verdade, a
relação que os indivíduos estabelecem com o mundo, ou que são relações sociais, ou
ainda que são meras relações biológicas, ou até mesmo relações com objetos. Searle
(2002a/1983) não nega essas afirmações, pois, de qualquer modo, somos seres
biológicos e sociais. Sem uma constituição biológica e um conjunto de relações sociais
não poderíamos vir a ter o background que temos. No entanto, isso não invalida o fato
de o background consistir também de fenômenos mentais.

Todos aqueles que querem reduzir o background ao social ou biológico querem


apenas desqualificar ou desconsiderar os fenômenos mentais na produção desse próprio
background. Por mais estranho que nos possa parecer num primeiro momento, visto que
viemos argumentando que a noção searleana de background é não representacional, não
111

intencional (o que poderia sugerir também não-mental), o background é também, em


certo sentido, mental. Ora, todos os fatores sociais, biológicos e físicos só são relevantes
na produção de um background específico por conta da relação que estabelece com
cérebros e corpos humanos, ou seja, com a mente humana. Sem a mente não poderia
haver background e é nesse sentido que o background é mental.

O Background, portanto, não é um conjunto de coisas nem um


conjunto de relações misteriosas entre nós e as coisas, mas
simplesmente um conjunto de habilidades, suposições e
pressuposições pré-intencionais, postura, práticas e hábitos. Tudo isso,
até onde se sabe, é realizado nos cérebros e corpos humanos.
(SEARLE, 2002a, p. 214).

Como acredito que ficou claro, a noção de background nos cria muitas
dificuldades, até mesmo para expressá-la linguisticamente sem, com isso, recair numa
noção intencionalista. Searle (2002a/1983) diz que essa dificuldade aparece apenas
porque não encontramos palavras na linguagem natural que nos forneça uma
terminologia neutra para descrever o background, sem que com isso recaíamos num tipo
de representacionismo. As expressões favoritas de Searle são capacidades e práticas,
mas, mesmo assim, o filósofo diz que essas palavras não são de todo adequadas. "O
fato de não termos nenhum vocabulário natural para discutir os fenômenos em questão e
o fato de tendermos a cair em um vocabulário intencionalista deveria chamar nossa
atenção. Por que isso ocorre?" (SEARLE, 2002a/1983, p. 217).

Isso ocorre porque, segundo Searle, a língua natural não é capaz de falar de si
mesma e, igualmente, a mente não está bem aparelhada para refletir sobre si mesma.
"Como pré-condição da Intencionalidade, o background é tão invisível para a
Intencionalidade quanto o olho que vê é invisível para si mesmo." (SEARLE,
2002a/1983, p. 218). Ou seja, o único vocabulário que dispomos é o intencional de
primeira ordem, então é muito difícil, quiçá impossível, sair dele para falarmos de algo
pré-intencional. O preço que pagaremos por ir deliberadamente contra a linguagem
natural é a metáfora e o neologismo sem rodeios, não podendo sair desse tipo de
linguagem que, no fim das contas, pode dificultar muito nosso trabalho, visto que é
preferível sempre uma linguagem clara e distinta, que descreva os fenômenos da
maneira mais isenta possível, do que as misteriosas variações da linguagem metafórica.
112

3.9. Significado e intencionalidade40

Muito embora a abordagem de Searle seja mentalista, ela também tem a


pretensão de ser naturalista. Dentro de uma abordagem naturalista, a intencionalidade
não seria apenas uma característica humana, mas sim uma função biológica como outra
qualquer que, como tal, existiria para além dos domínios da raça humana. Dessa forma,
quando observamos o comportamento de outros animais, vemos neles percepções e
ações intencionais, crenças, desejos etc. Então, se tal característica existe nos animais
em geral, qual a diferença essencial entre a intencionalidade humana e a de outros
animais? A diferença essencial, segundo Searle (2002a/1983), está na linguagem41. Nós,
seres humanos, podemos nos referir a objetos e estados de coisas no mundo através de
sons (ou grafismos), que em si mesmos não são os objetos, mas apenas o representam.
E essa característica, apesar de aparecer de uma maneira mais fraca em alguns animais,
marca a intencionalidade humana decisivamente. Portanto, por sua importância para a
espécie, julgamos necessário nos debruçarmos sobre essa característica, em especial o
que Searle entende por significado e sua relação com a intencionalidade humana. Ou
seja, a pergunta fundamental dessa seção, que tentaremos responder à luz da filosofia
searleana, é: como os objetos adquirem significado? Ou melhor dizendo, como
passamos da física para a semântica?

Para começarmos a responder a essa questão, e se estamos seguindo por uma via
naturalística, de início devemos dizer que a linguagem e o significado, na ordem
evolutiva, surgiram posteriormente à intencionalidade. Com essa conclusão em mãos,
Searle (2002a/1983) diz que o significado seria uma forma de intencionalidade mais
primitiva, mas ele, por si, não deve ser intrinsecamente linguístico.

A intencionalidade difere de outros tipos de fenômenos biológicos por


ter uma estrutura lógica e, assim como há prioridades evolucionárias,
há também prioridades lógicas. Uma consequência natural da
abordagem biológica advogada neste livro é considerar o significado,
________________
40. Apesar do tema ser essencialmente de filosofia da linguagem, o que por si só transcenderia os
objetivos deste trabalho, temos por meta, nesta seção, apresentar a íntima relação entre significado e
intencionalidade, visto sua função demarcatória, ou seja, é a intencionalidade intrínseca à linguagem que
diferencia os atos intencionais humanos dos de outros animais. Com isso, não tocaremos profundamente
nos tópicos da linguística, mas apenas naqueles que são essenciais para nossos objetivos.
41. Essa questão é mais complexa do que parece. O que estamos realmente querendo dizer com
linguagem? Certamente, criar significado através de grafismos ou sons. Contudo, esse tipo de definição é
sorrateira. Claramente, outros animais, através de sons, produzem significado, ou seja, comunicam algo
para outros membros do grupo (por exemplo, alguns pássaros, através de um som, anunciam a presença
de um predador). Então, nesse sentido, não apenas os seres humanos possuem linguagem, mas também
outros animais. Talvez a diferença essencial seja a riqueza e a complexidade de significados que somos
capazes de produzir através da linguagem. Riqueza essa que conseguimos até mesmo transpor em
símbolos.
113

no sentido em que falantes significam alguma coisa por suas emissões,


como o desenvolvimento especial de formas mais primitivas de
intencionalidade. Assim concebido, o significado do falante deve ser
inteiramente definível em termos de formas mais primitivas de
intencionalidade. (SEARLE, 2002a, p. 224).

Nesse sentido, a filosofia da linguagem é um ramo da filosofia da mente, pois


filia-se à concepção segundo a qual certas noções semânticas fundamentais, como o
significado, são analisáveis em termos de noções psicológicas ainda mais fundamentais,
como a crença, o desejo e a intenção. Então percebemos, seguindo essa abordagem
filosófica, que a noção de significado relaciona-se com a intencionalidade, pois a
primeira é explicável em termos da segunda.

Então a pergunta que fizemos no começo desta seção, qual seja, como passamos
da física (sons que produzimos) para a semântica?, é respondida através da teoria da
intencionalidade. Os objetos ganham significado porque os seres humanos tem a
intenção de que a produção de sinais e sons seja a realização de um ato de fala42. Não
obstante, entendemos que essa não seja efetivamente uma resposta, mas apenas a
reordenação do problema do significado em termos intencionais (no caso, atos de fala).
A explicação desse processo, contudo, conferiria uma resposta mais adequada.

Dessa forma, iremos apresentar a explicação desse processo. Searle


(2002a/1983) diz que há um nível duplo de intencionalidade na realização de atos
ilocucionários, quais sejam, um nível do estado Intencional expresso na realização do
ato e o grau da intenção de realizar o ato. Quando, por exemplo, faço a afirmação de que
está frio, ao mesmo tempo em que expresso a crença de que está frio, realizo o ato
intencional de afirmar que está frio. Além disso, as condições de satisfação do estado
mental expresso na realização do ato de fala são idênticas às condições de satisfação do
próprio ato de fala. Para Searle, essa coincidência entre as condições de satisfação do
ato de fala e do estado mental é a chave para entendermos o significado. Com essa
coincidência entre as condições de satisfação, vemos que, na realização de um ato de
fala, a mente impõe intencionalidade a essa expressão física.

O fato de as condições de satisfação do ato intencional expresso e a


dos atos de fala serem idênticas sugere que a chave do problema do
significado é perceber que, na realização do ato de fala, a mente impõe
intencionalidade à expressão física do estado mental expresso as
mesmas condições de satisfação do próprio estado mental. A mente
________________
42. Como dissemos anteriormente, não iremos tratar especificamente de filosofia da linguagem. Com
isso, não abordaremos a noção searleana dos atos de fala. Contudo, entendemos que os atos de fala estão
contidos na noção de intencionalidade e que, no fim das contas, os atos de fala (como é próprio da
linguagem) representam estados intencionais.
114

impõe intencionalidade à produção de sons, sinais gráficos etc., pela


imposição das condições de satisfação do estado mental à produção
dos fenômenos físicos. (SEARLE, 2002a, p. 229).

Ou seja, o que Searle está dizendo é que o ato de emissão é realizado com a
intenção de que a própria emissão tenha condições de satisfação. Ou seja, o próprio
significado seria um ato intencional no sentido de que suas condições de satisfação
seriam as mesma do ato de fala que as produziu. “Na verdade, o que torna uma ação
significativa, no sentido linguístico de uma ação significativa, é ter essas condições de
satisfação intencionalmente impostas.” (SEARLE, 2002a, p. 233, grifos nosso).

Na verdade, para continuarmos a exposição, devemos apresentar mais uma


distinção feita por Searle (2002a/1987) entre as intenções de significação. Podemos
dizer que há dois níveis de análise nos significados, ou seja, os significados enquanto
intenção de representar e enquanto intenção de comunicar. Claro, quando comunicamos
algum significado linguístico estamos também representando. Contudo, nem toda
intenção de representar transforma-se em intenção de comunicação. Searle diz que uma
falha de sua abordagem anterior foi supor que o significado pode ser descrito,
inteiramente, em termos de intenções de comunicação. O filósofo diz, contudo, que isso
não é possível, pois há antes da comunicação uma intenção de representar. Portanto,
nesta abordagem, a representação é anterior a comunicação.

Com mais essa distinção, Searle (2002a/1983) diz que o elemento chave para a
compreensão das intenções de significação é que a maioria dos atos de fala são
intenções de representar. E por intenção de representação o filósofo está querendo dizer
é sobre uma intenção de que os eventos físicos que constituem parte das condições de
satisfação (no sentido de coisa requerida) da intenção tenham condições de satisfação
(no sentido de requisito). Por exemplo, num contexto de sala de aula, quando o aluno
levanto o braço, tal ato tem um significado, qual seja, ele está pedindo permissão para
falar. Levantar o braço, enquanto significado, tem suas condições de satisfação (que a
comunidade entenda o significado desse erguer de braço e permita que o sujeito fale).
Contudo, o próprio "erguer-se" do braço tem suas condições de satisfação em si, como a
necessidade do ato intencional de querer levantar o braço realmente se cumprir.

No exemplo que demos, temos alguém querendo significar algo através de um


movimento corporal. Então, como se estabelece a passagem da intenção de representar
115

(levantar o braço) para a intenção de comunicar ("por favor, deixe-me falar")? Searle
diz que se sua abordagem estiver no caminho certo, essa passagem é muito simples: “A
intenção de comunicação consiste simplesmente na intenção de que o ouvinte reconheça
que o ato foi realizado com a intenção de representação.” (SEARLE, 2002a/1983, p.
234). Ou seja, a intenção de comunicação, representada no significado de levantar o
braço, é a intenção de que essa intenção de representação seja reconhecida pela
comunidade. Ou seja, a comunicação se estabelece no reconhecimento mútuo de certos
significados.

Com isso, acreditamos ter apresentado a relação que Searle estabelece entre
intencionalidade e significado. Tal relação se dá porque quando significamos algo (seja
querendo comunicar, seja apenas querendo representar) temos a intenção de significar, e
as condições de satisfação do significado (expresso nos atos de fala) são as mesmas da
intenção do ato. Em última instância, um significado é um ato de fala, porque
representam objetos e estados de coisas no mundo. Os atos de fala são intencionais
porque quando o realizamos queremos, intencionalmente, realizá-los. Então, pela
transitividade, quando significamos algo, há uma carga intencional forte no significado,
porque queremos agir, intencionalmente, nessa direção.

3.10. Intencionalidade e filosofia da mente

Neste ponto, finalizamos a apresentação da filosofia da mente de John Searle.


Mais especificamente, ao longo deste capítulo, apresentamos em linhas gerais como
Searle equaciona o problema da intencionalidade, definindo-a e mostrando como ela
funciona. Em certo sentido, percebemos que a posição de Searle é adequada à tradição
filosófica acerca da intencionalidade. Como diz Jacob (2004), a famosa tese de
Brentado, qual seja, a intencionalidade é a marca do mental, é compartilhada por
Searle. Talvez a diferença fundamental entre os dois filósofos seja que Brentano não
estaria confortável em estender a intencionalidade até o reino dos outros animais. Com a
pretensão de ser naturalista, Searle, ao contrário, diz que a intencionalidade é uma
propriedade da consciência e que, visto outros animais também terem consciência (ao
menos os mamíferos), não seria um problema estender tal noção para outras espécies.
Contudo, a questão, tanto para Brentano como para Searle e toda essa tradição, é que a
116

intencionalidade é uma propriedade da consciência, propriedade essa que a permite se


voltar para, ser acerca de ou direcionar-se a objetos e estados de coisas no mundo.

A relação com o problema mente-corpo aqui se torna clara. Mostrando como a


intencionalidade funciona, estamos mostrando como boa parte da consciência funciona.
Também vemos que o modo como equacionamos o problema mente-corpo tem uma
grande influência no modo como compreendemos a tese de Brentano. Se formos um
fisicalista reducionista, rejeitaremos, de imediato, qualquer pretensão mentalista da
intencionalidade. Como teremos a oportunidade de mostrar no capítulo 4, outras formas
de entender o funcionamento da intencionalidade, como a de David Armstrong e Daniel
Dennett, apenas refletem um certo modo de entender a consciência.

Acreditamos que seja inconcebível qualquer teoria da mente que se preze ignorar
por completo a questão da intencionalidade. Direta ou indiretamente, os filósofos da
mente tocam nessa questão, mesmo que seja para dizer que ela não faz sentido e que, no
fim, não existe intencionalidade. Mas para negar a intencionalidade, o suposto filósofo
deverá entrar no denso debate e derrubar uma série de argumentos a favor dela. Em
primeiro lugar, derrubar o argumento mais básico (e talvez um dos mais poderosos) que
vem da experiência comum de todos os seres humanos, qual seja, por que temos essa
impressão de que nossos estados conscientes voltam-se para coisas que não são eles
mesmos. Quando penso em árvores, império ou na mulher que estou apaixonado, meus
estados mentais (ou cerebrais, como queiram) se voltam para objetos e estados de coisas
no mundo. As sinapses e neurônios, ao produzirem a consciência (para seguirmos a
linha naturalista de Searle) não se voltam para sinapses e neurônios, mas sim para coisas
que não são eles mesmos. Essa é uma característica fantástica da consciência, sendo
uma característica, aparentemente, somente da consciência.

Dessa forma, não julgamos que o conceito de intencionalidade tenha um papel


menor dentro da filosofia da mente. Muito pelo contrário. Como viemos argumentando
desde o início deste trabalho, a intencionalidade é um dos quatro grandes problemas que
Searle procura resolver ao postular sua solução para o problema mente-corpo. Esses
quatro problemas estão integrados e mostram, para Searle (2000, 2002a, 2004, 2006), o
que vem a ser a consciência, como ela funciona, como ela é parte integrante do mundo e
como ela pode ter eficiência causal. Esses quatro pilares é a sustentação do assim
117

chamado naturalismo biológico de John Searle. A intencionalidade, dentro do


naturalismo biológico, apenas mostra como a consciência funciona.

Porém, como é comum em filosofia, apesar desse complexo arcabouço teórico


que viemos expondo até aqui, o naturalismo biológico não é imune à críticas. O próprio
leitor pode ter se sentido desconfortável num momento ou outro da exposição, tendo,
assim, formulado suas próprias críticas contra esse modo de compreender a mente
humana. Dessa forma, o próximo capítulo tem por objetivo apresentar justamente esse
desconforto de alguns filósofos da mente, ou seja, apresentar algumas das principais
críticas a tudo o que mostramos até aqui.
Capítulo 4

JOHN SEARLE E SEUS CRÍTICOS


121

John Searle e eu temos uma profunda divergência sobre como estudar a


mente. Para Searle, é tudo realmente muito simples. Existem essas intuições
fundamentais, testadas pelo tempo, que temos sobre a consciência e qualquer
teoria que as desafiem é simplesmente absurda. Eu, por outro lado, penso que
o problema persistente da consciência vai permanecer um mistério até que
encontraremos algumas dessas óbvias intuições mortas e mostremos que, a
despeito das primeiras impressões, ela é falsa! Um de nós está redondamente
enganado e os riscos são altos. Searle vê minha posição como ‘uma forma de
patologia intelectual’; ninguém deveria surpreender-se ao saber que o
sentimento é mútuo. Searle tem a tradição ao seu lado. Como ele diz, minha
visão é notavelmente contra-intuitiva no início. Mas, a visão dele também
tem alguns problemas que emergem somente após uma análise um tanto
quanto minuciosa. Agora, como procedemos? Cada um de nós procura
construir argumentos para demonstrar nosso ponto de vista e comprovar que
o outro lado está errado. (Daniel Dennett, In: SEARLE, J. O Mistério da
Consciência, 1998, pp. 133-134).

4.1. Apresentação

Ao longo deste trabalho viemos apresentando como Searle entende o problema


mente-corpo e como busca uma solução para tal problema, recolocando no mesmo
mundo tanto o corpo quanto a mente. Aceitando a visão da psicologia popular de que o
mental é ontologicamente irredutível, mas ao mesmo tempo não rejeitando a visão de
mundo científica, Searle tenta mostrar que essa visão intuitiva que temos de nossos
próprios estados e processos mentais é um fenômeno biológico natural: um fenômeno
que emerge por conta da estrutura cerebral de nossa espécie.

Esse tipo de visão, que tenta colocar no mesmo mundo a mente (entendida de
maneira intuitiva) e o corpo, faz com que Searle trilhe por uma estrada intermediária.
Mas esse é justamente um dos problemas centrais do naturalismo biológico do filósofo.
Seria possível permanecermos mentalistas (no sentido de aceitarmos as asserções da
Psicologia Popular) mesmo com os avanços das ciências cognitivas e neurociências?
Não seria prudente redefinirmos o mental em termos que se adéquam melhor com o
naturalismo contemporâneo? Ademais, se Searle se diz naturalista, em que sentido pode
122

defender o mentalismo ingênuo?

Essas serão as questões chaves que irão nortear este capítulo. Apresentaremos
algumas críticas ao pensamento de Searle, mas nos concentraremos numa perspectiva
temática, ou seja, abordaremos temas centrais da teoria searleana da mente e seguiremos
com as principais críticas feitas por alguns autores. Com efeito, os quatro temas centras
que servem de base para o naturalismo biológico serão privilegiados neste capítulo:
relação mente-corpo, irredutibilidade ontológica do mental (e intencional), a
investigação científica da subjetividade e o problema da causação mental. Acreditamos
que com isso visitaremos não apenas os principais opositores à Searle, mas também
teremos a oportunidade de fazer uma interessante discussão acerca de temas tão
importantes para a filosofia da mente. Ao final de cada seção, apresentaremos a tréplica
de Searle, quando for o caso de existir algum escrito do próprio filósofo em resposta às
críticas.

Com este capítulo não temos o intuito de fazer uma apresentação exaustiva dos
críticos de Searle. Traremos as críticas principais ao pensamento do filósofo, julgando
abranger um domínio suficiente para entendermos os problemas que existem no
naturalismo biológico searleano.

4.2. Dualismo de Propriedades revisitado

Como dissemos no capítulo 1, a contemporânea filosofia da mente segue por um


caminho delineado por René Descartes. O dualismo substancial cartesiano, e seus
subsequentes problemas, foi o motor pelo qual impulsionou muitas das investigações
sobre a natureza da mente humana. Com a virada materialista no século XX, busca-se
romper com a tradição cartesiana, tentando solucionar o problema mente-corpo por
outras vias. Mais do que isso, com as novas descobertas das ciências naturais, tornou-se
cada vez mais difícil continuar dualista (FERREIRA, A.; GONZALES, M. E. Q.;
COELHO, J. G., 2004). Contudo, mesmo com o grande avanço do materialismo (ou
fisicalismo, reducionista ou não), o dualismo persistiu, não apenas dentro da psicologia
popular, mas também continuou sendo defendida por autores respeitáveis42.

________________
42. Hoje um dos autores mais importantes em filosofia da mente que defende o dualismo é David
Chalmers. Contudo, segundo Searle (2004), John Eccles e Karl Popper, na primeira metade do século
XX, também defendiam uma espécie de dualismo à Descartes.
123

Por conta de uma série de problemas, sendo que a principal é a dificuldade de se


estabelecer uma relação satisfatória entre mente e corpo, o dualismo foi se tornando
uma abordagem cada vez mais impopular dentro da filosofia da mente. Searle (2004,
2006), com seu naturalismo biológico, tenta superar a linguagem cartesiana postulando
que tanto a mente como o corpo são elementos da natureza, i.e. são substâncias físicas.
Contudo, o mental, na visão de Searle, não pode ser ontologicamente redutível ao
cerebral, porque ele tem uma ontologia própria, qual seja, um ontologia de primeira
pessoa.

Em muitos de seus escritos, Searle (1998, 2000, 2002/1983, 2004, 2006)


reafirma que sua abordagem não é nem dualista nem materialista (no sentido que ele usa
o termo materialista dentro do contexto da filosofia da mente), sendo unicamente
naturalista. Por isso, ele acha errado dar um sentido dualista ou materialista reducionista
para o seu naturalismo biológico. Contudo, por considerar a consciência um fenômeno
ontologicamente irredutível, sua abordagem foi, inevitavelmente, acusada de dualista
(ao menos, dualista de propriedades).

Com isso, em 2002, Searle escreve um artigo, intitulado Why I am Not a


Property Dualist (Porque eu não sou um dualista de propriedades), no qual tem por
objetivo por um ponto final na questão, tentando deixar clara sua posição e afastar
qualquer ranço dualista que poderia existir em sua abordagem. O argumento geral do
artigo retoma os conceitos fundamentais do naturalismo biológico e os compara com o
dualismo de propriedades. Searle (2002b) conclui que seria absurdo dizer que sua
abordagem é dualista de propriedades, pois, para isso, ela deveria acreditar que o mental
está acima e além do mundo físico. No entanto, o filósofo argumenta que a consciência
é tão física quanto a fotossíntese, a digestão ou a mitose, não podendo estar assim
acima, ou além, deste mundo. Dessa forma, Searle acredita que seria inadequado
classificá-lo como dualista de qualquer espécie, pois ele não tenta dividir o mundo em
duas substâncias (ou propriedades). Ele acredita que há apenas um, e somente um,
mundo ao qual devemos observar. Se fosse para dividir o mundo em propriedades, seria
mais sensato, diz Searle (2002b), dividi-lo em múltiplas propriedades (econômicas,
pontuações em jogos de futebol etc), do que em apenas duas.

Com este artigo, Searle esperaria por um ponto final nessa questão do dualismo
de propriedades, mostrando que sua abordagem não tem nenhuma relação com o
124

mesmo. Ademais, tal artigo permaneceu sem resposta por quase de dois anos. Porém,
em 2004, Edward Feser apresentou um trabalho na American Philosophical Association
Meeting, onde tinha por objetivo justamente contestar o artigo supracitado de Searle.
Para Feser (2004), Searle é um dualista de propriedades, por mais que faça um grande
esforço para negar esse fato.

Feser (2004) diz que Searle está absolutamente correto quando diz que a
diferença entre sua abordagem e o dualismo de propriedades consiste em que, para a
primeira, a consciência é tão física como qualquer outro evento da natureza e, para a
segunda, ela é um evento que está acima e além do mundo físico, mesmo que
dependendo do físico para existir. Porém, malgrado essa diferença lateral, Feser diz que
ambas as abordagens comungam de preceitos fundamentais, mesmo que Searle tente
disfarçá-los num outro tipo de linguagem.

O primeiro e mais claro pressuposto que garante a aproximação entre essas duas
abordagens é a questão da irredutibilidade ontológica do mental. Tanto os dualistas,
quanto Searle (outro dualista, para Feser), acreditam que o mental é irredutível ao físico
(ou cerebral). Até mesmo o modo como Searle coloca a questão do mental, dizendo que
ela é causada pelo sistema cerebral, aproxima-se do modo como um dualista de
propriedades enxerga esse processo. Então Feser (2004) não acredita que haja diferença
substancial em como Searle e os dualistas de propriedades concebem os estados e
processos mentais.

Se os processos físicos que provocam a consciência são fenômenos


objetivos, de terceira pessoa, e a consciência e outros fenômenos
mentais são subjetivos ou de primeira pessoa, [...] [então] é razoável
descrever este último como sendo de um tipo fundamentalmente
diferente do que o anterior. Ou seja, é razoável dizer que existe no
universo um dualismo de propriedades. (FESER, 2004, tradução
nossa).

Dizer que vivemos num único mundo, como diz Searle, não ajuda em nada,
porque o dualista de propriedades também diz isso. Os dualistas apenas reivindicam que
há dois tipos fundamentalmente diferentes de propriedades no mundo. Também não
adianta insistir, como o faz Searle (2002b), que na realidade também existe taxas de
juros, pontos em jogos de futebol etc., ou seja, muitas propriedade no mundo, porque,
segundo Feser (2004), no fim das contas Searle irá reduzir tudo as duas categorias
ontológicas fundamentais, ou seja, subjetivo e objetivo. E este é o segundo preceito
125

fundamental que é comumente asseverado pelo naturalismo biológico e pelo dualismo


de propriedades: há duas propriedades (ou características) de coisas no mundo. O
dualismo de propriedades diz que há o físico e o não físico, Searle afirma que há o
subjetivo e o objetivo.

Essa visão de mundo, onde há duas características ontológicas fundamentais, faz


com que o naturalismo biológico seja idêntico ao dualismo. Há ainda duas propriedades
metafisicamente fundamentais no mundo (Feser, 2004). O que corrobora ainda mais a
visão de Feser, é que Searle (2004) diz que, por algum motivo evolucionário qualquer,
apenas seres dotados de uma certa estrutura cerebral (ou algo que o valha) são capazes
de ter estados mentais subjetivos. Ou seja, a objetividade é uma característica de quase
toda a matéria, sendo a subjetividade apenas um pequeno efeito de dada organização
material. Os dualistas de propriedade dizem a mesma coisa, ou seja, que só foi possível
a emergência desse mental irredutível devido a organização cerebral.

Dessa forma, por esses dois motivos, quais sejam, a irredutibilidade ontológica
do mental e a divisão do mundo em duas entidades metafisicamente fundamentais
(subjetivo e objetivo) é que fazem Searle e seu naturalismo biológico se aproximarem
do dualismo de propriedades. Feser (2004) ainda diz que a "solução" que Searle oferece
ao problema mente-corpo é, na verdade, uma redefinição do problema de tal modo que
o coração filosófico dele (a dificuldade de encaixar o que é irredutivelmente subjetivo
no mundo físico objetivo) é arbitrariamente re-classificada como um problema a ser
resolvido pela biologia. Feser diz "arbitrariamente", porque não há nenhuma razão para
acreditar que os métodos da biologia são mais propensos a lidar com a divisão
objetivo/subjetivo do que os métodos da filosofia. Com efeito, dada a natureza
inerentemente conceitual do problema, as ciências naturais são certamente menos
capazes de fazer isso. Em qualquer caso, o problema continua, e continua a ser tão
difícil como sempre foi, não sendo um mero jogo de palavras, como segundo Feser
(2004) o faz Searle, suficiente para solucionar esse intrincado problema.
Não obstante, poderíamos contrapor essa crítica de Feser, dizendo que a
proposta de Searle está sendo encarada com a antiga linguagem cartesiana. Se
continuamos com essa linguagem, a consequência lógica é classificá-lo num tipo de
dualismo (SEARLE, 2006). Porém, Prata (2009) discordaria de nossa visão. Para ele
esse problema que surge na filosofia da mente de John Searle não é apenas um questão
126

de se estar ou não apegado à linguagem cartesiana, mas sim é que no naturalismo


biológico há um problema estrutural, que o transforma numa espécie de híbrido de
materialismo e dualismo. Mais do que isso, Prata diz que a simultânea defesa da
redutibilidade causal e irredutibilidade ontológica da consciência leva o naturalismo
biológico de Searle direto para o dualismo conceitual43. Ademais, Prata afirma que a
tentativa de negar o dualismo conceitual leva a abordagem de Searle para uma via
incoenrente, onde ele parece reduzir o mental ao sistema cerebral, ao mesmo tempo que
defende sua irredutibilidade ontológica.
Como vimos, principalmente no capítulo 2, Searle faz uma distinção dos vários
tipos de redução. Dessa forma, a consciência pode sim ser reduzida ao cérebro, desde
que seja uma redução causal. Ora, se para o naturalismo biológico a consciência é
causada e realizada no cérebro, uma redução causal é consequência óbvia da própria
definição. Porém, ao mesmo tempo, a consciência não pode ser ontologicamente
redutível ao cérebro, por conta da sua ontologia própria (i.e. subjetiva).
São justamente essas duas teses que Prata (2009) acredita serem difíceis de
conciliar. Em relação a redução causal, Searle (2004) a caracteriza dizendo que um
fenômeno A é causalmente redutível a B se, e somente se, (1) as características de A são
causalmente explicáveis pelas de B e (2) as capacidades causais de A são as mesmas
que as de B. E este é realmente o ponto que torna difícil uma conciliação entre a
redutibilidade causal e irredutibilidade ontológica, pois se uma redução causal foi assim
definida por Searle, porque então a consciência continuaria sendo ontologicamente
irredutível (PRATA, 2009)? Ora, Searle diz que o motivo pelo qual não se pode reduzir
ontologicamente a consciência ao sistema cerebral é por conta de sua subjetividade,
coisa que a objetividade mecânica do cérebro não possui. Mas se assim o for, como a
consciência, intrinsecamente subjetiva, pode ser causalmente redutível? Como as
capacidades explicativas e causais da subjetividade podem ser explicadas pelas
capacidades objetivo-mêcanicas do cérebro?
Justamente por essa dificuldade, na visão de Prata (2009), de conciliar a
irredutibilidade ontologica e a redutibilidade causal é que a abordagem naturalista
biológica de Searle cai numa incoerência. Uma resposta que Searle (2004, 2006)
poderia oferecer a Prata, e ele próprio diz isso (cf. PRATA, 2009, p. 116), é que, para
ressaltarmos a capacidade causal do cérebro/mente, basta verificarmos se a ocorrência
de certos processos cerebrais causam a ocorrência de tais e tais processos
________________
43. O dualismo conceitual é caracterizado por Searle (2006) como aquilo que é defendido tanto pelas
abordagens dualistas, como pelas ditas materialistas. Consiste em tomar as categorias dualistas
demasiadamente a sério, onde o físico é entendido sempre como "não mental" e o não físico como
"mental".
127

mentais. Contudo, os processos mentais não poderão ser expressos nos mesmos termos
dos processos cerebrais, como já viemos salientando ao longo deste trabalho. Com isso,
Prata (2009) vai na mesma direção de Feser (2004), dizendo que o naturalismo
biológico de Searle é uma espécie de dualismo, que separa o mundo em dois tipos de
propriedades, a saber, subjetivas e objetivas. Mesmo Searle salientando que sua
abordagem considera o mental tão físico quanto qualquer outro evento biológico, ainda
assim teríamos uma espécie de dualismo, um dualismo dentro do físico44, onde
haveriam propriedades subjetivas e objetivas.
A dificuldade que observamos, nas críticas desses dois autores, é em se sair da
linguagem cartesiana. Até mesmo Searle, ao que nos parece, acaba caindo no mesmo
tipo de linguagem que tanto criticou. O fato é que, apesar de poucos filósofos da mente
concordarem com o dualismo cartesiano, parece difícil abordar o problema sem cair
numa espécie de distinção entre mente e cérebro, subjetivo e objetivo, matéria e
consciência. Tudo isso por conta da característica singular que a mente humana parece
ter em relação aos outros eventos naturais. Muito provavelmente, a solução desse
problema encontra-se na superação da linguagem que o criou.

4.3. Psicologia Popular contestada


A psicologia popular é a tese segundo a qual o comportamento humano é
explicado através de suas crenças, desejos e intenções (SEARLE, 2006). Por exemplo,
para explicar porquê um sujeito foi beber água, a psicologia popular recorreria a essa
espécie de intencionalismo ingênuo, ou seja, o sujeito bebeu água porque sentiu vontade
(sede) de bebê-la. Searle (1998, 2006) não acredita que haja problemas com as teses da
Psicologa Popular, muito menos que o conhecimento científico irá substituí-la (ou
eliminá-la) por completo. Para o filósofo, em geral a psicologia popular parte de
pressupostos verdadeiros e, ademais, ela tem toda a tradição evolutiva ao seu lado.
Desde muito antes do aparecimento da psicologia científica no século XIX, os seres
humanos explicavam seu comportamento a partir desse tipo de mentalismo ingênuo. Se
as teses da psicologia popular estivessem completamente erradas, provavelmente os
seres humanos não teriam sobrevivido por todos esses anos. Portanto, diz Searle (2006),
alguma verdade há nos preceitos da Psicologia Popular, de modo que ela não deve ser

________________
44. Em nota, Prata (2009) diz que esse termo foi cunhado por Andreas Kemmerling, professor da
Universidade de Heidelberg.
128

totalmente descartada.
Pelo que expomos ao longo deste trabalho, podemos perceber que o naturalismo
biológico é coerente com a psicologia popular. Ao postular que estados e processos
mentais, ontologicamente irredutíveis, são causalemnte eficientes, a abordagem de
Searle se aproxima consideravelmente da folk psychology. Contudo, a diferença é que o
filósofo acredita que as ciências naturais, em especial as neurociências, algum dia irão
oferecer uma explicação de como é possível o sistemas cerebral causar a causciência.
É importante notarmos que, diferentemente de outros filósofos45, Searle (2006)
não considera que a psicologia popular seja uma teoria. Ela seria mais um conjunto de
experiências ingênuas que todos nós temos acerca dos estados mentais. Searle
argumenta que seria injusto compará-la com outras teorias (como as teorias psicológicas
científicas), pois a psicologia popular não tem as mesmas pretensões explicativas que as
teorias científicas. Seria mais adequado que as ciências confirmassem ou impugnassem
os pressupostos da psicologia popular do que, in limine, negarmos qualquer validade
dessa experiência ingênua46. Para Searle, muitos dos pressupostos da psicologia popular
vem se mostrando verdadeiros, e é natural que se proceda dessa forma, visto que suas
pretensões explicativas se limitam a um campo muito pequeno de fenômenos mentais.
Porém, o mentalismo ingênuo, defendido tanto pela psicologia popular quanto
pelo naturalismo biológico, parece travar uma relação problemática com a ciência
contemporânea, em especial as neurociências e as teorias psicológicas47. Com isso seria
adequado tomar como pressuposto que crenças, desejos e intenções, vistos em seu
sentido comum, são as causas do comportamento humano? Em outras palavras, é lícito
Searle (2006) não ver nenhum porblema com a psicologia popular?
Para Daniel Dennett (1993; SEARLE, 1998, p. 133-137), o problema com o
naturalismo biológico é justamente esse insistente apego às tradições, i.e. à psicologia
popular. Dennett diz que Searle se remete, muitas vezes, ao bom senso do conhecimento
comum, ao menos naquilo que se refere ao comecimento de nossos próprios

________________
45. Por exemplo, Daniel Dennett e Paul Churchland.
46. Contudo, o próprio Searle (2006) diz que alguns pressupostos da psicologia popular já foram
invalidados pela investigação científica. Por exemplo, a localização da dor. Dentro da psicologia de senso
comum afirma-se que as dores estão localizadas no membro afetado. Assim se eu torço o meu joelho, eu
acredito que a dor está localizada em meu joelho. Contudo, para o filósofo, isso foi refutado pelas
descobertas da neurociência. As dores não estão no membro afetado, e sim no sistema cerebral. Porém,
devemos salientar que esse problema da localização das dor ainda está em aberto, não sendo totalmente
certo dizermos que ela esteja nem no membro afetado, nem no cérebro. Então, onde está a dor?
47. Apenas a título de exemplo, podemos citar a psicanálise de Sigmund Freud e o behaviorismo radical
de B. F. Skinner. Ambas são teorias contra intuitivas que desafiam o mentalismo ingênuo. Explicar o
comportamento humano através de crenças e desejos não parece suficiente para Freud e Skinner.
129

estados mentais. Com isso os escritos de Searle, em especial A Redescoberta da Mente,


tem um cunho extremamente popular.
Dennett diz que a visão contra intuitiva dominante em filosofia da mente, a qual
Searle faz tanta referência em seus livros, não é tão ruim assim. Aliás, a subjetividade
intrínseca, i.e. a irredutibilidade ontológico do mental ,não parece ser algo que
sobreviva a um exame detalhado. Ora, se a subjetividade for do jeito que Searle diz que
é, não haverá possibilidade de fazermos uma análise científica adequada, permanecendo
assim sempre uma região de 'mistério' onde nenhum foco científico pode penetrar na
obscuridade subjetiva de cada um (DENNETT, 1993). Como para Dennett a ciência
contemporânea é nossa principal ferramente epistemológica, a consciência deve poder
ser estudada por este enfoque. Se para tanto, num tour de force epistemológico, a
tradição deva sucumbir, não devemos nos abalar com isso, pois nem sempre o
conhecimento progride com asserções meramente intuitivas.
Mas o que exatamente incomoda Dennett (1993) na irredutibilidade ontológica
do naturalismo biológico? Sua principal discordância é naquilo que ele chama de
extravagância metafísica na filosofia da mente de John Searle. O modo como Searle usa
o termo subjetividade ontológica parece ambíguo e impreciso. Apesar de Searle em
muitos lugares (1998, 2004, 2006) ter feito uma distinção entre ontologia e
epistemologia, sua atribuição da subjetividade como ontologia da consciência não
parece clara para Dennett. O que Searle realmente quer dizer com isso?
Searle (1998) diz que além da distinção entre ontologia e epistemologia, cada
qual se expressa num modo subjetivo e objetivo. No exemplo que já utilisamos, se eu
digo que Ayrton Senna morreu no Grande Prêmio de Ímola, estou fazendo uma asserção
que além de epistemológica é objetiva. Gostando ou não do fato, Ayrton Senna morreu
nesse grande prêmio. Contudo, se eu digo que Ayrton foi, e será sempre, o melhor
piloto de fórmula 1, eu estou fazendo uma asserção epistemologicamente subjetiva.
Essa é a minha opinião, que depende dos meus gostos e preferências.
Do mesmo modo que há, na opinião de Searle (1998), uma expressão subjetiva e
objetiva na epistemologia, também há na ontologia. Por exemplo, montanhas, árvores e
mesas (e até os seres humanos, vistos em terceira pessoa), têm uma ontologia objetiva.
Ou seja, montanhas e seres humanos existem de maneira independente de outros seres,
não sendo preciso nenhuma outra entidade para que eles possam vir a existência.
Contudo dores, sabores e fruições precisam de um ser humano, de uma consciência, de
um eu, para existirem. As dores e sabores não existem por si mesmos, mas sim apenas
130

subjetivamente em relação aos sujeitos que as sentem. Isto, para Searle (1998, 2004), é a
marca decisiva da consciência, ou seja, sua subjetividade. Por essa razão a consciência
tem uma ontológica, um modo de existência, subjetivo.
Contudo, como salienta Dennett (1993), a verificação científica se dá em terceira
pessoa48. Com a consciência assim concebida não haveria maneira de se investigar essa
"ontologia subjetiva", pois ela estaria acessível apenas para o sujeito que a sente. A
úncia maneira de se investigar tal "mistério" seria através de relatos verbais ou indícios
não-verbais que atestariam a ocorrência de tal e tal fenômeno. Mas apenas a mediação
da linguagem não nos daria a sensação mesma. Por não sentir o que o outro está sentido,
eu teria que, com seu relato ou a observação do seu comportamento não-verbal, fazer
uma analogia com a minha própria subjetividade para entender (de maneira imprecisa, é
bem certo) a subjetividade alheia. Por exemplo, se eu vejo um terceiro dando uma
martelada em seu dedo, eu consigo compreender a sua dor, pois eu, em minha história,
já tive a experiência de dor e ao ver aquele ato, eu imediatamente me reportaria a
memória dessa experiência. Se eu já martelei meu próprio dedo, muito melhor, pois
entenderia com mais precisão a dor daquele indivíduo.
Porém uma descrição da subjetividade nesse nível pode ser incrivelmente
problemática, ainda mais se temos a pretensão de uma investigação científica de tal
fenômeno. Teremos que lidar com mentiras, auto enganos, induções comportamentais
etc., que complicariam a investigação, deixando-a ainda mais imprecisa. Por exemplo,
se alguém consegue resistir à dor, tal ser poderia facilmente enganar os observadores
quando estivesse sentindo alguma dor. Ou seja, para Dennett (1993), tomando a
subjetividade ontológica demasiadamente a sério, como o faz Searle, cairemos nesse
tipo de situação, onde se torna impossível um estudo científico sistemático da
consciência. Dennett acredita que um estudo sério da consciência deve começar por
uma redefinição de seus termos, de modo a sempre podermos abordá-la num nível
epistemológico de terceira pessoa, ou como ele mesmo gosta de chamar, num nível
heterofenomenológico.
Não iremos abordar aqui os problemas que acarretam uma visão puramente de
terceira pessoa da consciência. Apenas salientamos que, para Dennett (1993), o ideal
seria nos afastarmos da tradição (que é expressa pela linguagem da psicologia popular)
se quisermos estudar a consciência a sério. A psicologia popular pode ter bom senso e

________________
48. Além do que, Dennett é adepto do verificacionismo, ou seja, ele acredita que tudo o que existe pode
ser verificado cientificamente (pelas ferramentas epistemológicas das diferentes ciências). Grosso modo,
segundo o verificacionismo, tudo o que está fora do âmbito da verificação científica ou não existe, ou é
mera ilusão ou poderá, algum dia, ser objeto de verificação científica.
131

tem a seu favor a experiência acumulada de séculos de civilização humana. Porém


quando se trata do estudo científico de qualquer coisa, ela geralmente se rende e acaba
aceitando os resultados das investigações científicas (DENNETT, 1993). É interessante
notarmos que, após a década do cérebro (1990-2000), o senso comum vem
incorporando a linguagem da neurociência de maneira muito rápida. Tornou-se comum
ouvir pessoas descrever algumas psicopatologias (como depressão, anciedade ou
psicopatia) como um disturbio neuronal qualquer. Como parece concordar Dennett
(1993), a psicologia popular não se importa em aderir às teorias científicas, mas para
isso elas devem ser imensamente difundidas.
Não obstante, Searle (2006) também concordaria com isso. Como salientamos,
ele diz que a psicologia popular não é uma teoria, mas sim um conjunto de experiências.
Enquanto experiências acumuladas, suas explicações podem ser mais razoáveis ou
menos razoáveis, sendo que a palavra final será sempre das investigações científicas. O
fato é que, para Searle (2006), dificilmente a ciência irá negar todo o senso comum, pois
isso seria impossível. Seria logicamente impossível que um conjunto de experiências
estivesse errado em absolutamente tudo e, mesmo assim, sobrevivesse por tanto tempo.
Searle acredita que a ciência corrigirá muitas acerções do senso comum, eliminará
algumas e confirmarão outras. Essa é a função da ciência.
Apesar dessa visão de Searle ser, ao nosso ver, muito prudente, sua abordagem,
o naturalismo biológico, tem que conviver um grande incômodo, como Dennett (1993)
salientou: como a ciência pode investigar a subjetividade ontológica? Como se dará essa
investigação? Como conservar a subjetividade, tal como entendida pelo mentalismo
ingênuo, se torna-se impossível verificá-la por meios objetivos? Uma redefinição da
consciência e subjetividade seria necessária?
Essas são questões que movem muitos investigadores contemporâneos, seja em
neurociência, seja em filosofia da mente. A resposta que Searle (2006) daria a essas
questões é que, justamente, elas não o competem. Enquanto filósofo, Searle fez seu
trabalho, acreditando achar uma solução para o problema teórico-conceitual da relação
mente-corpo. A questão de como investigar cientificamente a suvbjetividade se
apresenta no campo empírico-experimental. Serão os biólogos, neurocientistas e
psicólogos que deverão se preocupar com isso. Eles que devem encontrar a resposta
experimental, no nível causal, para a relação mente e corpo. Em outras palavras, os
cientístas devem superar o explanatory gap.
132

Contudo, entendemos que o problema persiste justamente na definição do que é


consciência. Mesmo que Searle (2004, 2006) tenha dito que tanto a mente como o corpo
estão no mundo físico, ele os separa entre ontologia objetiva e subjetiva. À revelia de
suas pretenções, parece que retornamos ao problema dualista, onde se torna impossível
verificar, com precisão, os estados mentais de qualquer outra pessoa que não seja nós
mesmos.

4.4. Homúnculos intencionais


A intencionalidade voltou a figurar dentro da filosofia, como um termo técnico,
pelas mãos de Franz Brentano. Um dos objetivos deste filósofo, ao resgatar tal termo,
era responder aos desafios que a filosofia cartesiana colocava a respeito da mente
humana (JACOB, 2004). Qual a natureza da mente? Os fenômenos mentais têm uma
essência comum? Como esses fenômenos se relacionam com a natureza física em geral?
Jacob (2004) diz que com a intencionalidade, Brentano tentou responder essas questões,
argumentando que todos os fenômenos mentais consciêntes são intencionais, ou seja, a
consciência é sempre consciência de alguma coisa.
Apesar de tentar investigar a intencionalidade por si mesmo, Searle
(2002a/1983, p. 1) acaba caindo dentro da tradição brentaniana ao dizer que a
intencionalidade é "aquela propriedade de muitos estados e eventos mentais pelas quais
estes são dirigidos para, ou são acerca de objetos e estados de coisas no mundo". Como
em Brentano, a intencionalidade seria a mesma coisa que direcionalidade, pois ela
sempre (ou quase sempre) estria apontando para objetos e estados de coisas no mundo.
Porém, como dissemos no capítulo anterior, há um sentido preciso que afasta Searle
(2002a/1983) da tradição, qual seja, para ele nem todos os estados mentais conscientes
são intencionais.
Com a pretensão de ser naturalista, Searle (2002a/1983) busca as bases
biologicamente fundamentais da intencionalidade. Para ele, as percepções e as ações são
tão intencionais quanto crenças e desejos, sendo que a única diferença seria a escala de
valores. Biologicamente falando, crenças e desejos seriam menos fundamentais do que
percepções e ações49.
Contudo, os estados intencionais não são causa sui. Há uma rede de outros
estados intencionais que estão interligados, comunicando-se e formando um complexo

________________
49. Não repetiremos aqui os argumentos em favor dessa tese. O leitor pode conferir, no capítulo 3, a
apresentação que fizemos dos argumentos de Searle.
133

intencional consciente. Além disso, a intencionalidade humana repousa sobre um


background, sem o qual ela não viria a existir. Retomando rapidamente o que expomos
no capítulo 3, Searle (2002a/1983) define o background como um conjunto de
conhecimentos e habilidades (know-how) sem os quais não seria possível nenhum
estado intencional. Porém esse conjunto de habilidades e conhecimentos não pode ser,
ele mesmo, intencional. Ele é um conjunto não representacional sobre o qual toda
representação se torna possíveil.
Apesar desse aparente externalismo do conceito de background, Searle
(2002a/1983) argumenta que ele ainda é mental. O background não se reduz às
capacidades biológicas, nem às relações sociais, mas sim continua sendo uma
capacidade da mente humana. Nosso filósofo não nega que haja capacidades biológicas
e relações sociais que influenciem o background, pois, de qualquer modo, somos seres
biológicos e sociais. Sem uma constituição biológica e um conjunto de relações sociais
não poderíamos vir a ter o background que temos. No entanto, isso não invalida o fato
de que tal fenômeno seja intrinsecamente mental. Todos os fatores sociais, biológicos e
físicos só são relevantes na produção de um background específico por conta da relação
que estabelece com cérebros e corpos humanos, ou seja, com a mente humana. Sem a
mente não poderia haver background e é nesse sentido que ele é mental.

O Background, portanto, não é um conjunto de coisas nem um


conjunto de relações misteriosas entre nós e as coisas, mas
simplesmente um conjunto de habilidades, suposições e
pressuposições pré-intencionais, posturas, práticas e hábitos. Tudo
isso, até onde se sabe, é realizado nos cérebros e corpos humanos.
(SEARLE, 2002, p. 214).

Este aspecto mentalista, inevitavelmente leva o background para uma via


irreducionista. Como dissemos ao longo do trabalho, Searle (2004, 2006) considera o
mental um fenômeno irredutível aos processos neurocerebrais, por conta de sua
ontologia de primeira pessoa. Mesmo sendo dependente do sistema cerebral para existir,
o mental não pode ser reduzido (muito menos redefinido ou eliminado), pois parece que
sempre nos sobra o elemento subjetivo quando tentamos reduzi-lo (ou redefini-lo) em
termos objetivos, de terceira pessoa. Dessa forma, porque Searle considera o
background também mental, tal noção se torna, automaticamente, irredutível. Ela só
poderia ser redutível se fosse um fenômeno puramente biológico, ou constituído apenas
de relações sociais. Mas como observamos, Searle (2002a/1983, 2006) considera que o
134

background é também um fenômeno mental, então, por isso, também um fenômeno


irredutível.

Essa carga mentalista que permeia a noção searleana da intencionalidade e,


especialmente, do background não agrada muitos autores que desejariam transformá-los
num fenômeno de terceira pessoa, entre os quais David Armstrong.
É interessante nortarmo que a resposta de Armstrong (1991) à hipótese searleana
do background contêm não apenas o aspecto negativo, mas sim também um aspecto
positivo e construtivo. Ele não se limita apenas em demonstrar os pontos que julga
falhos na teoria de Searle, mas junto à crítica ele apresenta uma proposta para tapar os
buracos que, segundo ele, são deixados pelo background searleano.

Um primeiro ponto que incomoda Armstrong (1991) é a persistente defesa da


irredutibilidade ontológica da intencionalidade. Para ele isso é inaceitável, pois dessa
maneira torna-se muito difícil pensar como estudaremos cientificamente esse fenômeno
em seus próprios termos. Como estudar a ontologia da intencionalidade se ela
permanece um fenômeno puramente subjetivo? Armstrong (1991) não acredita que uma
redução tipo-tipo, como é feita entre calor e movimento molecular, seria adequada para
a complexidade do fenômeno mental intencional, mas ele argumenta que podemos fazer
com ela um tipo de redução ocorrência-ocorrência (token by token), desde que alguns
ajustes conceituais sejam feitos. Para tanto, Armstrong acredita que devemos encarar a
intencionalidade humana como uma espécie de sistema funcional, onde explicaríamos
seu funcionamento através do comportamento sistêmico.

O sistema funcional a qual Armstrong faz referência seria do mesmo tipo


teleológico como ocorre na biologia. "Parece-me muito plausível dizer que ela é uma
verdade conceitual de modo que um sistema intencional é um sistema funcional."
(ARMSTRONG, 1991, p. 151, tradução nossa). Assim um sistema funcional intencional
seria alguma coisa que executaria determinadas funções em circunstâncias favoráveis
para tais. Em circunstâncias desfavoráveis, ou por pura má sorte, o sistema não
executaria essas funções. Isso, para Armstrong (1991), é certamente algo intencional (ou
alguma coisa que se aproxima muito disso). Porque se observarmos a ocorrência das
experiências que os seres humanos julgam mais íntimas, mais subjetivas, ou seja,
observarmos as experiências humanas que ocorrem dentro de um complexo sistema
cerebral, poderemos perceber certa similaridade entre esse tipo de intencionalidade
135

ingênuo e um sistema funcional que Armstrong faz referência. Ora, se tudo na natureza
pode ser explicado através de sistemas funcionais, então as ações humanas não
deveriam fugir à regra. Ademais, aderindo a esse tipo de visão, uma análise causal ou
funcional da intencionalidade torna-se plausível, mais do que isso, um tipo de redução
funcional seria possível50.

Mas quando Armstrong diz que todo fenômeno natural pode ser explicado
através da teoria dos sistemas intencionais, com isso ele não está querendo dizer que há
um tipo de igualdade que nivela todos os sistemas, de modo que sejam todos da mesma
complexidade. Se esse fosse o caso, a dita riqueza e complexidade da consciência
humana não passaria de um mito. O sistema cerebral humano seria tão complexo quanto
o conjunto de moléculas que compõem uma ameba. Não é isso que Armstrong (1991)
defende. Para ele, há níveis de complexidade nos diferentes sistemas intencionais. A
única diferença é que a consciência humana é um complexo sistema que pode, como
qualquer outro sistema, ser explicado funcionalmente.

Não obstante, Armstrong diz que os estados intencionais não são isolados, nem
poderiam ser vistos dessa forma. Com isso, idêntico a Searle (2002/1983, 2004), ele diz
que há uma intrincada rede de estados intencionais, sendo que eles não poderiam ser
causa sui, abortados de suas conexões com outros estados intencionais. Ademais, e
ainda seguindo a mesma trilha de Searle, ele diz que tal rede de estados intencionais não
poderia ser compreendida sem um pano de fundo, ou seja, sem um background que o
balize. Com isso, para tratar da noção de background, Armstrong primeiro se volta
contra a noção searleana, dizendo que, apesar de ser uma noção muito importante,
Searle não a trabalhou de maneira adequada. Searle (2002/1983, 2004) diz que o
background careceria de intencionalidade por ser, ele mesmo, a base de toda
intencionalidade. Contudo Armstrong (1991) não pensa dessa forma. Ele argumenta que
podemos encarar o background como sendo intencional tal como qualquer outro ato
intencional no nível mental humano. A única argumentação que Searle parece oferecer
contra um background intencional seria que, caso isso ocorresse, deveria haver um
outro fenômeno que o sustentasse, e caso esse outro fenômeno também fosse
intencional, deveria haver um fenômeno ainda mais básico, e assim ad infinitum.
Contudo, Armstrong não acredita que postular um background não intencional invalida,
de fato, a redução infinita. Ora, por que não deveríamos supor que há um background,
_______________
50. Não é difícil observarmos que esse tipo funcional de intencionalidade poderia servir para a matéria
não biológica de forma geral. Um robô que se comporta de determinada maneira poderia ser visto como
tendo um comportamento intencional tal como os seres humanos, ou ao menos um comportamento que se
aproximaria muito do intencional humano.
136

também não intencional, ainda mais básico, uma espécie de background do background,
e assim sucessivamente? Por que deveríamos supor que, só por conta de sua não
intencionalidade, o background seja a última base na qual se sustenta os fenômenos
mentais e ele, por sua vez, não tem nenhuma outra sustentação mental?

Retornando a abordagem dos sistemas funcionais, Armstrong (1991) diz que


poderíamos encarar o background como um sistema mais básico, sobre o qual o mental
se sustenta. Mas ambos, tanto o nível mental quanto o nível do background,
intencionais. Claro, por pensar em níveis de sistemas funcionais, em cada nível haveria
um aumento ou diminuição da intencionalidade. Como dissemos anteriormente,
Armstrong acredita que há diferentes níveis de complexidade dos sistemas funcionais,
sendo o nível mental consciente um dos mais complexo, quiçá o de maior
complexidade. Dessa forma, para explorar essa noção de níveis no sistema intencional,
Armstrong utiliza a teoria dos homúnculos de Daniel Dennett (2006), onde em cada
nível de complexidade haveria um sistema funcional (homúnculos) cada vez mais
estúpidos, i.e. cada vez menos intencionais, menos complexo.

Armstrong (1991) diz que esse tipo de visão é muito melhor, do ponto de vista
evolucionário, do que qualquer tipo emergente "saltatório" de intencionalidade, ou seja,
que salta o gap entre a matéria física não-intencional direto para o mental intencional.
Armstrong acredita que os naturalistas (Searle e ele, inclusive) devem evitar esse tipo de
salto, ou tentar reconciliar o aparente salto com algum tipo de explicação causal
explícita. Essa é, justamente, a vantagem na abordagem que Armstrong defende.
Olhando o mundo como uma série de sistema funcionais, cada qual com seu nível de
intencionalidade (ou complexidade), não precisamos dar esse salto entre a matéria
inconsciente e o mental plenamente consciente. A explicação causal entre um sistema
funcional e outro se torna possível, evitando o mistério quase mágico que fica em torno
da intencionalidade humana51.

Em contrapartida, no parecer de Armstrong, John Searle não cumpriu nenhuma


dessas duas exigências, ou seja, evitar o salto entre matéria inconsciente e a consciência
humana e procurar uma explicação causal explícita para esses fenômenos. Dessa forma,
a intencionalidade searleana se torna um fenômeno curioso, pois salta de um

_______________
51. Claro que Armstrong não responde ao desafio empírico lançado pelo explanatory gap. Provavelmente
ele concordaria com Searle, dizendo que a explicação causal efetiva entre disparos neuronais e estados
mentais deve ser feita pelas ciências empíricas que lidam com esse assunto, ou seja, neurociências.
137

background não intencional para o mental intencional.

Não obstante, a contraproposta de Armstrong, que veio carregada de críticas à


noção searleana de background, não deixou de receber uma resposta. Apesar de Searle
(1991) ter achado que os pontos levantados por Armstrong são muito relevantes, e
também demonstrar concordância em muitos aspectos da filosofia da mente de seu
crítico, o ponto central de discordância entre os dois autores gira em torno da
irredutibilidade ontológica do mental.

Searle (1991) argumenta que não seria possível fazer uma redução funcional da
intencionalidade, onde o funcionalismo trabalharia teleologicamente, sem com isso
fazermos uma terrível redefinição e subsequente eliminação do caráter mental subjetivo
tal como entendido pelo senso comum52. "[...] Não podemos eliminar a
intencionalidade em geral e recolocá-la como função teleológica, porque a função
teleológica apenas existe relativa a uma intencionalidade intrínseca." (SEARLE, 1991,
p. 183, tradução nossa).

Já em relação ao background, uma pergunta que pode ser feita é o que pensa o
homúnculo em cada nível explicativo? (SEARLE, 1991). Claro, a metáfora dos
homúnculos não deve ser tomada demasiadamente a sério, mas Searle diz que essa seria
uma pergunta interessante de se fazer. Se há intencionalidade em cada nível explicativo,
de que tipo seria? Uma outra questão que poderia ser posta na formulação de Armstrong
é que se o primeiro homúnculo, o mais básico de todos, o último na escala de estupidez,
é balizado por uma matéria inconsciente, ou seja, no momento mesmo em que a
intencionalidade é descarregada (discharged), então, como se dá o salto entre o não
intencional e o intencional mais estúpido? Não seria também esse um salto explicativo?

Apesar de ser uma crítica muito fecunda (SEARLE, 1991), nosso filósofo ainda
acredita que a intencionalidade e o background só fazem sentido para a mente humana.
Tentarmos transpor esse tipo de fenômeno para sistemas mais rudimentares não parece,
para Searle (1991), uma proposta muito viável. Ao menos não parece viável se
quisermos preservar uma noção mais ingênua do mental. Para Searle (2006) essa noção
mais popular é o que realmente caracteriza o mental intencional. Dessa forma devemos
antes tentar explicar como a existência de tal noção foi possível (ou como veio a ser o
que é), do que eliminá-la ou redefini-la (no caso de Armstrong) em outros termos.

_______________
52. Como já salientamos, Searle acredita que não há nenhum problema com a noção de subjetividade
oferecida pelo senso comum (Folk Psychology). Para mais detalhes, cf. UZAI JUNIOR, P. ; COELHO.
J.G. John Searle e o Realismo Ingênuo. Kínesis (Marília), v. 7, p. 87-102, 2015.
138

4.5. O mental é um epifenômeno

A pergunta central da causação mental, ou seja, poderiam os estados mentais ser


causalmente eficientes no mundo físico em geral?, foi um dos problemas não
solucionados pelo dualismo substancial (SEARLE, 2004). Seguindo as premissas dessa
abordagem, caímos inevitavelmente num grave problema: como uma substância
imaterial pode ser causa no mundo físico? Apesar de Descartes, e outros filósofos não
comprometidos com o dualismo, tentarem resolver esse problema, tal questão
permanece sem solução consensual, mais do que isso, é uma das questões principais da
filosofia da mente.

Procurando dar uma resposta a para esse problema, Searle (2004, 2006) se
afastou da noção humeana de causação. Para ele, David Hume está equivocado ao dizer
que não vemos o nexo causal, mas apenas regularidades causais. Searle argumenta que
parece-nos óbvio que vemos regularidades causais, sendo que elas são necessárias para
nos guiarmos no mundo. Contudo, ele acredita que também vemos o nexo causal e não
há nada de espantoso nisso. Em todos os casos de percepções e ações, parece muito
comum, até de fato normal para Searle (2004), que percebamos uma conexão causal
entre objetos e estados de coisas no mundo e nossa experiência consciente.

Supondo que o que Searle disse a respeito da causalidade esteja correto, que
experimentamos a relação causal em nossas vidas e estendendo isso para o problema
mente e corpo, enfrentaremos agora a seguinte questão: como a mente pode causar o
movimento corporal, ou seja, alterar o mundo físico? Em nossas experiências do dia-a-
dia parece natural, até mesmo trivial, supor que nossa mente cause alterações no corpo.
Se desejo levantar o braço, simplesmente o levanto e parto do pressuposto que minha
intenção em ação (ato mental intencional) foi a responsável por causar esse incrível ato.

Para Searle (2004), só seria estranho a mente não ter poder causal sobre o mundo
físico se ela fosse uma entidade separada e além do físico, o que o filósofo não acredita
que seja. Contudo, isso não nos leva à redutibilidade ontológica do mental ao cerebral,
pois, como já discutimos ao longo deste trabalho, Searle acredita na realidade subjetiva
de nossos estados e processos mentais.

[...] a realidade e irredutibilidade da consciência não implica que ela é


um tipo de entidade separada, ou uma propriedade “além e acima” do
sistema cerebral em que é realizado fisicamente. A consciência no
cérebro não é uma entidade ou propriedade separada; ela é apenas o
139

estado pelo qual o cérebro está. (SEARLE, 2004, p. 146, grifos do


autor, tradução nossa).

Mas podemos nos perguntar como exatamente ocorre esse processo de eficiência
causal da mente sobre o mundo. Como já foi dito, Searle (2004, 2006) faz uma redução
causal entre mente-cérebro, ou seja, mentes são causadas por e realizadas em cérebros
humanos. Mais especificamente, ele diz que o mental e corporal (cerebral) ocorrem de
maneira simultânea, ou seja, as características micro do cérebro (nível neurobiológico)
causam e realizam as características macro (nível mental), e não pode haver macro sem
micro. Por exemplo, o desejo que sinto agora de tomar cerveja (estado mental) está
balizado por uma série de processos neurobiológicos. Mas o nível macro não pode ser
reduzido ao nível micro, pois, como já enfatizamos, os estados e processos mentais
desfrutam de uma ontologia própria.

Searle (2004) constrói um diagrama que ilustra essa relação que ele está nos
mostrando. No nível superior (que é causado pelo inferior) vemos um estado mental
causar um outro estado mental. Contudo, sempre estamos falando do mesmo fenômeno,
em níveis diferentes.

M M'
causa

Causa & Realiza Causa & Realiza

F F'
causa

F = processos neurobiológicos no cérebro; M = processos e estados mentais


Figura 3: causação mental (SEARLE, 2002a, p. 374).

No entanto, devemos salientar que nesse processo causal (F → M) não há duas


coisas totalmente separadas, mas sim ambos fazem parte do mesmo sistema, qual seja, o
sistema cerebral. Dessa forma, o mental é simplesmente uma característica (um nível
sistêmico) da estrutura física do cérebro.

Com efeito, quando falamos de causação mental, na realidade estamos falando


140

de um nível de explicação causal. Não há mente sem uma estrutura cerebral, portanto,
de algum modo, os processos neurobiológicos também estão sendo eficientemente
causais, pois eles são a base sem a qual não pode haver mente. Então, para Searle (1995,
2004, 2006) porque a mente faz parte do mundo físico como qualquer outra entidade
biológica (mesmo que seja um dos níveis do sistema cerebral), não haveria nenhum
mistério metafísico em dizer que meus estados e processos mentais são causalmente
eficientes no mundo em geral.

Apesar desse tour de force de Searle, que diz que o mental ontologicamente
irredutível é causalmente eficiente, para alguns autores isso não parece suficiente para
resolvermos o problema da causação mental. Jaegwon Kim acredita que essa pretensa
solução searleana nos leva a um beco sem saída.

Em primeiro lugar, Kim (1995) diz que o materialismo, basicamente, subdivide-


se em duas grandes abordagens, quais sejam, o reducionismo e a superveniência. O
reducionismo, como já dissemos, argumenta que tudo aquilo que chamamos de mente
ou consciência é, na realidade, nada além do cérebro, ou seja, o mental como tal não
existe, podendo, sem nenhuma perda, ser reduzido aos estados e processos cerebrais. Já
a abordagem superveniente diz que a mente é emergente ao cérebro (ou corpo). Os
estados mentais precisariam de um cérebro (ou um sistema que desempenha a mesma
função) para poder existir. John Searle, mais especificamente, estaria num tipo de
superveniência causal, onde cérebros humanos causam e realizam processos e estados
mentais.

No entanto, o problema para Kim começa quando Searle argumenta a favor da


irredutibilidade ontológica do mental. Não que em si mesmo essa argumentação tenha
problemas, mas é que esse tipo de visão, segundo Kim (1995), traria dificuldades aos
compromissos materialistas (ou fisicalistas) que Searle julga aceitar.

Seguindo mais ou menos a mesma linha argumentativa de Feser54, Kim (1995)


diz que Searle recai num tipo de dualismo de propriedades por aceitar essa
irredutibilidade da mente. Com efeito, ele não escapa da linguagem cartesiana,
aceitando a bipartição corpo-mente. Além disso, não faria sentido a argumentação de
Searle a respeito da contemporânea filosofia da mente estar "infectada" de linguagem
cartesiana, pois já havia uma literatura emergentista (portanto, fora da linguagem

_____________
54. Cf. seção 4.2 deste capítulo.
141

cartesiana) no começo do século XX55. Então, para Kim, é curiosa essa acusação de que
toda a contemporânea discussão do problema mente-corpo está infectada de um ranço
cartesiano, sendo que já há muito tem havido outras alternativas emergentistas.

Dessa forma, Kim acredita que a visão de causação mental de Searle traz
dificuldades inerentes ao seu compromisso filosófico. Se ele acredita que há uma
ontologia do mental − ontologia essa de primeira pessoa − torna-se difícil aceitar isso e
ser, ao mesmo tempo, naturalista.

Com efeito, a solução para a causação mental oferecida por John Searle,
segundo Kim (1995), cai em duas grandes dificuldades: sobredeterminação causal e
causação descendente. Ora, se para se ter qualquer estado mental, na visão de Searle,
necessitamos de um aparato físico, neurobiológico, e se a mente tem um poder causal
real no mundo, então um estado mental, que foi causado por um outro estado mental,
teria duas causas, o estado mental anterior e o substrato físico (M e F causa M'). Por
exemplo, se uma lembrança (estado mental) causa uma tristeza (estado mental) e se para
ter qualquer estado mental precisa-se de um substrato neurobiológico, então a tristeza é
causada e realizada por disparos neuronais (estado físico) e pela lembrança (estado
mental). Ou seja, o estado mental lembrança é sobredeterminado.

Lembrança (mental) Tristeza (mental)


causa

Causa & Realiza

Disparos neuronais (físico)

Figura4: Sobredetermanação Causal (KIM, 1995)

Além disso, a causação descendente seria outro problema muito mais grave para
Kim (1995). Tal tipo de causação é definida como o mental (nível superior) causando
estados físicos (nível inferior). Por exemplo, meu desejo de levantar o braço causa o
movimento do meu corpo (ou os disparos neuronais que causariam o movimento do
meu braço). Dessa forma, teríamos M → F, invertendo a ordem de causação colocada
por Searle.

_____________
55. Cf. C. Lloyd Morgan. Emergent Evolution. London: William & Norgate, 1923. Samuel Alexander.
Space, Time and Deity. London: Macmillan, 1920.
142

Desejo de levantar o braço Experiência de Ação

(Mental) (Mental)

causação descendente

Causa & Realiza Causa & Realiza

Disparos neuronais Movimento Corporal


(Disparos neuronais)

Figura 5: Causação Descendente (Kim, 1995).

A causação descendente, em nosso exemplo do desejo de levantar o braço, seria


um tipo de explicação obscurum per obscurius. Ora, se queremos explicar algo que não
sabemos o que é realmente (movimento corporal), para quê recorreremos a uma noção
mais obscura ainda, que sabemos menos a respeito (processos e estados mentais)? Para
Kim (1995), isso não faz sentido. Estaríamos caindo num obscurantismo caso aceitemos
esse tipo de explicação causal.
Kim acredita que os estados e processos mentais existem. Não podemos negar
que temos sensação de vermelho, dores, medos, ansiedade e paixão. Kim não nega a
existência de tais fenômenos. O que o filósofo contesta é que haja, efetivamente, uma
eficácia causal nesses processos. Kim acredita que o cérebro é o único responsável pela
assim chamada "causação mental", sendo que a mente é apenas um epifenômeno neste
processo56.

O que agravaria a visão de Searle é que além dos fenômenos de nível básico
causarem os fenômenos de nível mais alto, eles estão todos num mesmo sistema. Não
há uma distinção clara, pois os eventos ocorrem ao mesmo tempo ( F causa M, sendo
que se olhamos num nível, suponhamos M, teremos que supor que também esteja
ocorrendo F num nível mais básico). Visto isso, faria sentido falarmos em causa e efeito
no sistema cerebral que Searle nos apresenta? Porque causa sugere um mecanismo
causal e um intervalo de tempo entre causa e efeito, onde podemos frequentemente
intervir no processo causal e prever o efeito do acontecimento. Nada disso faz sentido
na causação micro → macro (cérebro → consciência), onde as duas coisas, mesmo que
pareçam ser distintas, segundo Searle (2004, 2006), ocorrem ao mesmo tempo, violando
ao menos a noção de causação clássica.

_____________
56. Não temos por objetivo abordar, minuciosamente, a filosofia de Jaegwon Kim. Para mais detalhes, o
leitor pode conferir em [KIM, J. Mind in a physical world: an essay on the mind-body problem and
mental causation. Cambridge: MIT, 1998] e [KIM, J. Supervenience and Mind: Selected Philosophical
Essays, Cambridge: Cambridge University Press, 1993].
143

Podemos assim delinear as premissas e a conclusão da argumentação de Kim


contra a noção de causação mental em Searle:

1- Searle não se afasta do ranço cartesiano ao postular a irredutibilidade ontológico do


mental ao físico. Além disso, seu discurso de que a literatura contemporânea está
infectada com cartesianismo é falso, pois já no começo do século XX haviam
alternativas emergentistas que caminhavam fora dessa filosofia. [premissa]

2- Por aceitar que mentes são ontologicamente irredutíveis, isso traria dificuldades na
argumentação de Searle, pois como algo imaterial tem um efeito causal no mundo?
[premissa]

3- A noção de causação de Searle cai num tipo de sobredeterminação causal e numa


causação descendente ao tentar explicar a relação causal entre micro-macro. [premissa]

4- Além disso, a noção de causa aqui estaria equivocada, pois, como Searle diz que os
fenômenos micro e macro fazem parte do mesmo sistema (o sistema cerebral), então
não haveria uma efetiva causação, pois a noção de causa sugere um mecanismo causal e
um intervalo de tempo entre causa e efeito, e não tudo ocorrendo ao mesmo tempo, em
níveis diferentes. [premissa]

5- Portanto, há uma incoerência na noção de causalidade mental no Naturalismo


Biológico de Searle. [conclusão]

A conjunção dessas quadro premissas, para Kim, levam a uma única conclusão:
Searle não resolveu o problema da causação mental, sendo incoerente a sua proposta.
Porém, a resposta que Searle poderia oferecer a Kim é que ele cometeria dois erros em
sua argumentação, erros esses que foram tratados exaustivamente pelo filósofo, quais
sejam, o retorno à linguagem cartesiana e o apego a clássica teoria da causalidade. Ao
que tudo sugere, Kim (1995) estaria colocando a questão da causação à cartesiana, ou
seja, como um evento mental, imanente, não físico etc., poderia ser causa no mundo
físico. Dessa forma, a causação descendente (top-down causation) seria a conclusão
dessa falsa premissa. Contudo, o esforço de Searle é justamente se afastar desse tipo de
linguagem. A mente depende do cérebro e, num sentido específico, ela é redutível a ele.
De modo geral, poderia dizer Searle, quando falamos de causação mental também
144

estamos falando de causação cerebral.

Essa questão nos leva direto para o segundo ponto. Searle rejeita a noção
humeana clássica de causação. Para ele, com os conhecimentos científicos atuais, não
faz sentido trabalharmos com o mesmo tipo de causação. Cérebro ser a causa da mente
quer dizer o mesmo que o comportamento das moléculas de H2O é a causa da liquidez.
O movimento molecular e a liquidez ocorrem ao mesmo tempo, sendo que podemos
examiná-los em seus diferentes níveis de apresentação. Do mesmo modo, Searle (2004)
diria que o cérebro e a mente ocorrem ao mesmo tempo, sendo níveis de descrição
diferentes.

Não obstante essa possível resposta de Searle à crítica de Kim, ainda parece-nos
que uma questão não foi respondida. Se Searle rejeita a teoria clássica da causalidade,
dizendo que muitos fenômenos hoje em dia não a respeitariam (como a contemporânea
explicação da liquidez e estados mentais), em que sentido ainda podemos falar de
causação? Tais fenômenos não seriam outra coisa, ou não poderiam ser explicados de
outra forma, visto que se deseja superar a noção clássica de causalidade?
145

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A consciência, a experiência subjetiva


de um eu interior, pode ser um
fenômeno que estará sempre fora do
alcance da neurociência.
David Chalmers

Veritas filia temporis


Tomás de Aquino

Nos últimos sessenta anos, a filosofia da mente ganhou tanta importância que
tornou-se uma espécie de investigação filosófica essencial, ou seja, um problema que, se
for devidamente resolvido, servir-nos-á como base para muitas outras investigações57
(SEARLE, 2004), como por exemplo a questão da percepção, memória e causação
mental. Prova dessa importância é o número assombroso de excelentes trabalhos, seja
de filósofos, neurocientistas, psicólogos e até mesmo físicos, sobre a natureza dos
estados e processos mentais que surgem a cada dia.

Apesar de intrinsecamente teórica, a procura pela natureza dos estados e


processos mentais ganhou novos contornos no século XX. O interesse pela mente
humana não é apenas filosófico ou teórico-psicológico, mas sim perpassa muitos outros
ramos das ciências da natureza. Dessa forma, no atual estado da filosofia da mente,
qualquer pretensa solução para o problema mente-corpo, a questão do Self (Eu), o
problema de outras mentes etc., deve refletir o estado atual das ciências. Ao que parece,
qualquer investigação que pule fora do âmbito naturalista contemporâneo não é levado
em consideração.

Como tivemos a oportunidade de apresentar, a proposta de John Searle para


resolver o problema mente-corpo (para ele, mente-cérebro) é um reflexo dessa tendência
da atual filosofia analítica da mente de tomar o naturalismo como pressuposto58. Searle
tenta se livrar da bipartição mutuamente excludente arrogando o status de físico ao

______________
57. Isso não é consensual. Muitos físicos são da opinião de que sua disciplina estuda as bases daquilo que
podemos chamar de realidade. Dessa forma, a filosofia da física, ou certos ramos da física teórica, deveria
ser, está sim, uma investigação de filosofia primeira. Contudo, fazendo justiça a afirmação que
parafraseamos de Searle, a filosofia da mente, pela importância que ganhou nos últimos anos, é uma das
investigações fundamentais em filosofia.
58. Como já dissemos, tendência essa que remonta à, pelo menos, Gilbert Ryle. Claro que tal tendência já
existia dentro da filosofia, mas por termos colocado Ryle como uma espécie de pai-fundador da filosofia
da mente contemporânea, assim podemos dizer que ele foi o responsável por essa virada naturalista.
146

mental ontologicamente subjetivo. Utilizando como base as conquistas científicas dos


últimos séculos (a saber, teoria da evolução das espécies e teoria atômica da matéria)
explica como a mente intencional realmente funciona. Não exclui nem mesmo o
conhecimento comum, intuitivo, que temos de nossos próprios estados mentais. Ora, se
estamos todos no mesmo mundo, como Searle (2000) diz, então introspecção e
comportamento, mente e corpo, matéria e consciência devem ser explicados como parte
integrante deste mundo, sem perdas ontológicas de ambos os lados.

Seguindo os passos de Searle chegamos à seguinte conclusão: a mente é física,


tanto quanto qualquer outro evento biológico, mas não podemos reduzi-la
ontologicamente ao cérebro, ao corpo, ou a programas de computador. Ela é
biologicamente natural e devemos explicar como esse processo funciona, ou seja, como
do sistema cerebral, em especial dos mamíferos, é capaz de emergir estados mentais e a
consciência de um eu (Self).

A proposta de Searle, como pudemos ver no capítulo 4, não é imune à crítica.


Sua proposta, num primeiro olhar, parece ser uma mistura ambígua de dualismo de
propriedades e reducionismo hard, recheado com uma defesa (para nós, neste ponto
correta) do senso comum. Com efeito, visto que apresentamos tanto a abordagem de
Searle como algumas críticas que a ela foram feitas, devemos nos perguntar: o
Naturalismo Biológico seria a efetiva solução para o problema mente e corpo? E a
resposta que obtemos é uma aparente contradição: sim e não.

Essa resposta poderia refletir um pouco a filosofia da mente searleana, segundo


Paulo Abrantes (In: FERREIRA, A; GONZALES, M. E. Q; COELHO, J. G, 2004, p.
05-37), que critica as várias nuanças que o texto de John Searle pode ter, dando a
impressão que ele quer navegar colocando um pé em cada canoa, ou seja, aceitando
tanto o reducionismo quanto o dualismo. Contudo, nossa resposta não repousa nesse
tipo de ambiguidade. O que queremos dizer é que Searle segue por um caminho que a
nós nos parece correto, qual seja, o fisicalismo não-reducionista. Dito de outra forma, o
programa filosófico de Searle parte de premissas que parecem entrar em consonância
com os pressupostos do fisicalismo não redutivo: 1) a mente é tão real e física como
qualquer outro objeto da realidade; 2) apesar de física, não podemos reduzi-la
ontologicamente a nada além dela mesma; e 3) a ontologia do mental, ou seja a
subjetividade, é algo que diferencia de maneira decisiva o mental.
147

Contudo, mesmo seguindo por essa tendência fisicalista não-reducionista, não


concordamos com todas as conclusões extraídas do pressuposto naturalista biológico.
Em primeiro lugar, como nos diz Canal (2010, p. 164-171), a proposta searleana deixa
algumas lacunas não respondidas. Por exemplo, como o evento mental e físico podem
ocorrer simultaneamente (no nível causal, no sentido de F → M) e ao mesmo tempo
falarmos de eficácia causal do mental? Isso não faria com que, como no caso da solidez
e liquidez da água, a eficácia causal do mental seja reduzida à cerebral?

Ademais, o que nos parece mais crítico na filosofia de Searle é sua dificuldade
de integração entre o naturalismo e o mentalismo. Sua adesão ao naturalismo entra em
consonância com a concepção científica contemporânea, daí decorrendo o insistente
apelo de Searle de que o mental está no mesmo mundo descrito pelas ciências da física.
Contudo, as ciências da natureza são eminentemente reducionistas, ou seja, buscam
reduzir os eventos da realidade a uma explicação puramente natural. Por exemplo,
grosso modo, o pôr do sol nada mais é do que o movimento natural do Planeta Terra, a
solidez e a liquidez dos corpos nada mais são do que o movimento das moléculas que
compõe tais corpos, raios não são nada além da diferença de potencial elétrico entre as
nuvens e a terra, e assim por diante. Antes do advento da ciência moderna, muitos
fenômenos que hoje dizemos serem naturais eram antes explicados de maneira mito-
poética59. Mas as ciências naturais puderam reduzir esses fenômenos a sua realidade, ou
seja, mostraram que tais fenômenos nada mais eram do que algo natural (um fenômeno
da natureza material)60.

Com efeito, o objetivo, tanto de Searle como de qualquer outro naturalista, é


mostrar que os fenômenos e processos mentais são de ordem natural. Não há nenhum
mistério espiritual por traz de fenômenos naturais, apenas alguma dificuldade (devido a
complexidade do fenômeno) de se obter uma explicação clara e distinta. O problema
entre Searle e outros tipos de filósofos naturalistas (como Armstrong e Dennett, por
exemplo) começa quando nos perguntamos se é ou não lícito fazermos, como nas
ciências naturais, uma redução ontológica do mental, ou, que seja, uma redefinição do
mental intencional clássico. Com isso, como também observa Canal (2010),
________________
59. Em geral as grande religiões tem uma explicação mito-poética de como o mundo foi formado, enfim,
de como ele funcionaria. Dessa forma, muitos aspectos da natureza eram explicados de uma maneira
mágica.
60. Não abordaremos aqui um dos problemas centrais de filosofia das ciências, qual seja, se as teorias
científicas correspondem, pari passu, à realidade, ou se são apenas modelos (no sentido de Gaston
Granger) que fazemos para entender melhor essa realidade, mas que como tais eles não têm,
efetivamente, uma correspondência biunívoca com ela. Apesar de extremamente interessante, tal
discussão transcenderia totalmente as pretensões deste trabalho. Para uma discussão acerca desse tema, cf.
GRANGER, Gilles-Gaston. A ciência e as ciências. São Paulo: Editora UNESP, 1994.
148

podemos perceber um problema sério na abordagem de Searle: se ele se diz um


naturalista, em que sentido ainda poderia defender uma irredutibilidade ontológica do
mental? Seria lícito defender o naturalismo − que em geral busca uma redução ou
redefinição da realidade a fenômenos naturais − e ao mesmo tempo o mentalismo
ingênuo?

O que questionamos é, justamente, se nessa visão de mundo científica ainda há


espaço para uma descrição do mental nos moldes intencionalistas clássicos. Se o
problema mente-corpo vem se arrastando por mais de quatro séculos, sendo que a
maioria dos filósofos da mente concorda que a linguagem cartesiana não é adequada
para uma solução efetiva do problema, perguntamo-nos, indo mais fundo na questão, se
essa visão mecanicista61 do universo seria adequada para conciliar essas duas faixas da
realidade sem, com isso, ter que redefinir, abandonar ou reduzir o mental a alguma outra
coisa?

O problema que vemos, e isso poderia figurar como uma nova crítica à Searle, é
a pretensão de que apenas as ciências podem legislar sobre a realidade. Isso seria um
dos preceitos do verificacionismo (que Daniel Dennett tanto aprecia), que diz que
apenas aquilo que a ciência estuda, ou pode estudar, é real. Com isso, se as ciências não
puderem apreender a subjetividade do mental, tal como Searle a apresenta, significa que
ou ela não existe, ou deve ser redefinida para se enquadrar em algum programa de
pesquisa empírico-experimental.

Acreditamos que essa visão, exposta no último parágrafo, pode sinalizar algo
perigoso. Talvez um abuso de poder despropositado. Segundo entendemos, se há algum
fato da realidade que a ciência não consegue investigar satisfatoriamente, talvez o
problema esteja nos métodos investigativos e não com o fato propriamente dito.
Enquadrar um fato da realidade aos métodos científicos, tendo que modificá-lo
(redefini-lo) para que caiba num programa de pesquisa, é um posicionamento que fere
qualquer busca sincera pelo conhecimento. Isso seria, em certo sentido, o cientificismo.

Dessa forma, a crítica que podemos fazer a Searle é justamente que ele parece
aceitar essa visão de mundo. Ele se diz um filho do iluminismo (SEARLE, 2000), e
como tal é adepto da ciência contemporânea, acreditando que a mente humana deve, e

________________
61. Apesar de existir outros modelos explicativos do universo, a saber, teoria da relatividade e mecânica
quântica, observamos que tais teorias ainda estão mal integradas no conjunto das ciências. Ademais, nem
mesmo os físicos teóricos sabem como integrar essas duas grandes teorias. Desse modo, o que
percebemos é que a maioria das ciências naturais ainda trabalha num modelo mecanicista, que para
nossas condições de existência neste planeta parece ser um modelo adequado.
149

pode, ser estudada por essa ferramenta epistemológica. Esse entusiasmo de Searle com
relação às ciência cria o problema que viemos expondo até aqui, ou seja, como estudar a
subjetividade do mental cientificamente? Há algum modo de se fazer isso? Searle não
parece confortável em questionar os métodos científicos. Dessa forma, não aceitando as
críticas à ciência contemporânea (por exemplo, críticas pós-modernistas), Searle, como
Descartes, parece ter que viver com o problema da integração entre o mentalismo
ingênuo e o cientificismo hard. Malgrado seu enorme esforço, parece que Searle retorna
ao dualismo, numa reatualização do mesmo problema.

Então devemos abandonar o modelo mentalista, negando nossa visão intuitiva de


nossos próprios estados mentais? Dificilmente isso acontecerá. Em geral, ninguém
negaria ter, efetivamente, sensações ditas subjetivas (dores, medos, tristezas etc). Mas o
problema está justamente na descrição e integração dessas ditas sensações de primeira
pessoa com uma epistemologia objetiva. Se quisermos manter esse tipo de visão de
mundo (i.e. científica), talvez seja difícil manter, ao mesmo tempo, uma linguagem
intencionalista tradicional. Por outro lado, para salvar esse linguagem da folk
psychology, nossa única opção seria alguma espécie de dualismo de propriedades, como
parece sugerir Edward Feser?

Julgamos que John Searle não nos oferece uma resposta suficiente para
superarmos o explanatory gap, ou seja, o vácuo causal que parece existir entre estados
cerebrais e estados mentais. Claro, Searle (2004, 2006) desvia-se do problema dizendo
que esse é um trabalho empírico-científico. Contudo podemos questionnar essa atitude,
como o faz Paulo Abrantes (In: FERREIRA, A; GONZALES, M.E.Q; COELHO, J.G.,
2004, p. 05-37), dizendo que o filósofo lega as questões mais difíceis aos cientistas. Ou
ainda, seguir a crítica de Freser (2004), que diz que Searle reclassifica, arbitrariamente,
o problema mente-corpo como um problema da biologia. O fato é que nem mesmo a
filosofia da mente (aqui representada por Searle), nem as neurociências conseguiram
superar o explanatory gap.

Com efeito, nossa resposta sim e não para a filosofia da mente de John Searle
denota também a natureza desta dissertação: comentário crítico de uma filosofia da
mente em particular. Além do mais, a complexidade do problema em questão nos força
a tomar esse tipo de posição. Seria uma pretensão absurda imaginar que nossa avaliação
crítica da filosofia de Searle resolveria muitos dos problemas deixados pelo filósofo.
150

A natureza do trabalho filosófico, segundo entendemos, segue sempre em aberto.


Não há nenhuma tese filosófica que não possa ser contestada, revista, ou tomada como
falsa numa dada época. A história do pensamento ocidental nos mostra que, por mais
forte que seja a influência de algumas ideias, elas não duram nem morrem para sempre.
Dessa forma, se a atual filosofia da mente, como diz Searle (2004), é uma espécie de
filosofia primeira, seu grau de complexidade é extremamente elevado. Não que
encerremos este trabalho completamente neutros, pois já indicamos nossa preferência
pelo fisicalismo não reducionista, mas isso não significa um ponto final. Como
dissemos no início, a investigação sobre a natureza dos estados mentais não é apenas
uma preocupação filosófica ou psicológica, outras áreas de investigação também se
debruçam todos os dias sobre este problema, de modo que uma investigação inter e
multidisciplinar já está ocorrendo há algumas décadas. Com isso, novas descobertas
podem surgir, fazendo com que abordagens bem consolidadas façam revisão de seus
próprios pressupostos. Este nos parece o caminho natural das investigações científico-
filosóficas.

Apesar das imensas dificuldades, e das inúmeras abordagens que surgiram nas
últimas décadas, permanecemos otimistas quanto a solução deste problema. Se temos
dificuldade hoje de vermos qualquer solução minimamente consensual do problema
mente-corpo, isso não deve moldar nossas esperanças futuras. A história do
conhecimento humano é algo surpreendente, de modo que novos e desconhecidos
elementos podem entrar no debate a qualquer momento. Mas, e se seguirmos por
caminhos errados? Isso faz parte do processo. Em termos de conhecimento, não
devemos ter medo de errar, pois isso apenas mostra nosso temor de conhecer qualquer
coisa. Esse desejo de conhecer, e a abertura para as críticas e novas abordagens
possíveis, é o que deve nos guiar nesse tortuoso caminho; nesta ainda permanente selva
oscura.
151

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