A Relação Mente-Corpo em John Searle
A Relação Mente-Corpo em John Searle
A Relação Mente-Corpo em John Searle
MARÍLIA
2016
PAULO UZAI JUNIOR
MARÍLIA
2016
Uzai Junior, Paulo.
Uz1r A relação mente-corpo em John Searle / Paulo Uzai
Junior. – Marília, 2016.
154 f. ; 30 cm.
CDD 190
PAULO UZAI JUNIOR
BANCA EXAMINADORA:
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Suplente externo: Prof. Dr. Osvaldo Frota Pessoa Junior (USP/São Paulo - SP).
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AGRADECIMENTOS
Relutei muito comigo mesmo para escrever isso. Não que me falte
agradecimentos, muito pelo contrário. O que me deixou aborrecido foram as tentativas
frustradas de escrever esta parte da dissertação. E foram frustradas por um motivo muito
simples: detesto escritas protocolares, onde se reflete o burocratismo frio ou a
insinceridade de palavras mecânicas. Muitos dos agradecimentos, elogios e
cumprimentos apenas mostram esse tipo de verbalismo oco, onde o falso de cada um se
manifesta de maneira terrível. Tudo isso senti enquanto tentava escrever esses
agradecimentos. Talvez não consiga fugir à regra, mas tentarei, com toda a sinceridade
que ainda me resta.
Meus dois irmãos caçulas, Lucas e Luis, formaram o público piloto da minha
dissertação. Expus a eles alguns temas que figuram por essas páginas, em momentos
que julguei adequados, ao meio de nossas conversas. As reações de compreensão ou
incompreensão deles fizeram com que eu mudasse algumas partes da dissertação,
tentando deixá-las mais claras e distintas. Aliás, essas exposições fizeram com que eu
sentisse a universalidade do tema ao qual eu estava me dedicando. Malgrado tudo, todos
têm alguma opinião sobre a mente humana, ou ao menos sobre os próprios estados
mentais.
Para encerrar os agradecimentos familiares, devo muito aos meus dois tios,
Neuci e Samuel, por terem me acolhido nos dias que permanecia em Marília. Pessoas
adoráveis e admiráveis, a maneira deles. Nunca vou esquecer das piadas que meu tio
fazia quando eu chegava em sua casa. Ainda me divirto quando relembro desse
momento. Enfim, muito obrigado aos dois. Vocês foram muito importantes.
Meus dois amigos, Chrystian e Davi, também foram importantes nesse processo.
Nossas discussões filosóficas, e pseudofilosóficas, trouxeram-me algumas reflexões
importantes. Também agradeço a minha professora de Francês, Joana. pessoa
inteligente e dedicada, que fez com que eu saísse de nenhum para algum conhecimento
da língua francesa. Muito obrigado a todas essas pessoas.
Por fim, agradeço à CAPES por me fornecer uma bolsa de estudos sem a qual
não seria possível minha permanência no curso de mestrado. Não ignore as dificuldades
materiais, pois elas tornam a realidade muito mais dura. Muito obrigado, CAPES, por
amenizar a dureza da vida.
RESUMO
Há mais de três décadas, o filósofo estadunidense John Rogers Searle voltou-se para as
questões de filosofia da mente, donde apresenta sua solução para os variados problemas
acerca da natureza do mental. Sua primeiro incursão se deu com o livro Intentionality,
onde seu principal objetivo não era, num primeiro momento, solucionar problemas
referentes a essa questão, mas sim oferecer uma fundamentação conceitual mais sólido
para sua teoria dos atos de fala. Contudo, a partir deste livro Searle se volta
decisivamente para questões propriamente de filosofia da mente. Um de seus principais
focos é a relação entre mente-corpo, onde ele acredita que a solução teórico-cenceitual
para tal questão não é tão difícil quanto pensamos. Porém ele não deixa de abordar uma
série de outros temas afins que julga de extrema importância na consolidação de seu
escopo teórico, tal como o problema da causação mental e a subjetividade humana.
Dessa forma, a presente dissertação tem por objetivo principal apresentar, discutir e
avaliar criticamente a solução que Searle propõe a esses quatro problemas centrais da
filosofia da mente: relação mente-corpo, causação mental, subjetividade e
intencionalidade. Os três primeiros capítulos têm por objetivo mostrar como Searle
enxerga essas questões, ou seja, o que ele julga estar errado na filosofia da mente e qual
seria a solução mais adequada. No capítulo quatro iremos apresentar as principais
críticas à solução de John Searle, focando-nos numa abordagem temática. Dessa forma,
apresentaremos críticas a esses quatro temas que Searle julga serem essenciais em
filosofia da mente e sobre o qual construiu seu naturalismo biológico. Por fim, faremos
uma avaliação crítica do que foi apresentado. Com isso iremos analisar qual o peso das
críticas feitas à filosofia searlena, o que acreditamos estar correto nela e o que
discordamos.
There is more than thirty years, the American philosopher John Rogers Searle turned
around to the questions of philosophy of mind, whence presents his solution to varied
problems about the nature of mental. His first incursion occurred with the book
Intentionality, where your main objective was not to solve, at first, problems relating to
this issue, but rather to offer a theoretical grounding more solid to his theory of speech
acts. However, from this book Searle turns to questions specifically of philosophy of
mind. One of his main focus is the relationship between mind-body, where he believes
that the solution theoretical-conceptual for that question is not so difficult as we
thought. Nevertheless he is not leave of to broach a number of other related topics that
he considers of utmost importance in the consolidation of his theoretical scope, such as
the causation mental problem and the human subjectivity. Thereby, the present
dissertation have for main objective to show, to discuss and critically evaluate the
solution that Searle proposes these four central problems of the philosophy of mind:
mind-body relationship, mental causation, subjectivity and intentionality. The first three
chapters aims to show as Searle see these questions, in other words, what he believes to
be wrong in philosophy of mind and what would be the most appropriate solution. In
chapter four, we will go to show the main critics to John Searle's solution, focusing in a
thematic approach. Thus we will present critics of these four subjects that Searle
believes to be essentials in philosophy of mind, about which built your biological
naturalism. Lastly, we will make a critically evaluate of what was presented. Therewith
we will go to analyze the what weight of criticisms to Searle's philosophy, what qe
believe to be right and what we disagree.
1. INTRODUÇÃO..........................................................................................................19
1.1. Apresentação...............................................................................................................29
1.3.3. Funcionalismo...................................................................................................42
1.3.4. Funcionalismo Computacional.........................................................................45
1.3.5. Eliminativismo...................................................................................................48
2.1. Apresentação................................................................................................................57
2.3.1. Unidade...............................................................................................................62
2.3.2. Intencionalidade.................................................................................................63
2.3.3. Subjetividade......................................................................................................64
CAPÍTULO 3: INTENCIONALIDADE.................................................................................79
3.1. Apresentação...............................................................................................................81
4.1. Apresentação..............................................................................................................121
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................145
6. REFERÊNCIAS...................................................................................................................151
19
1. INTRODUÇÃO
O livro The Concept of Mind de Gilbert Ryle marca uma mudança importante no
panorama filosófico do século XX. A partir deste livro muitos outros estudos foram
desenvolvidos na tentativa de resolver o mistério: qual a natureza da mente? Com efeito,
a mudança decisiva no seio da filosofia analítica gerada pelo livro de Ryle é por conta
da fundação, por assim dizer, de uma nova disciplina, qual seja, a filosofia da mente.
Em outras palavras, o interesse da filosofia analítica pelas questões ligadas à mente teve
em The Concept of Mind uma intensificação decisiva. Porém, mais de meio século
depois do importante trabalho de Ryle ainda não encontramos resposta satisfatória para
essa questão, apesar das várias tentativas de solução. Claro que os esforços não foram
vãos. Importantes trabalhos foram realizados, mostrando não somente a dificuldade do
problema, mas também a necessidade de um intercâmbio multi e inter disciplinar.
Contudo, seria errado dizer que nossa história começa com Ryle. O problema da
ontologia do mental remonta à, pelo menos, René Descartes1 e suas Meditações
Metafísicas. Grosso modo, Descartes estabeleceu uma distinção substancial entre a
matéria pensante (mente, ou alma) e a matéria extensa (corpo), dizendo que a mente
poderia ser apreendida mais clara e distintamente (sem nenhum risco de se enganar) do
que o corpo. Claro que essa distinção radical trouxe uma série de problemas2 que nos
assombram até hoje, tais como a relação entre mente-corpo, a identidade pessoal, o
problema da existência de outras mentes e o ceticismo para com o mundo exterior.
________________
1. Vitor Caston (1998; 2007) discorda dessa atribuição histórica, dizendo que já pelo menos no período
socrático havia uma preocupação com a mente e sua relação com o mundo (também conhecido como
intencionalidade). Além disso, podemos corroborar essa tese, citando obras como o Fedro de Platão, ou
ainda Ética a Nicômaco ou De Anima de Aristóteles, nas quais se observa um verdadeiro esforço para se
compreender como a mente funciona e como poderíamos integrar mente e corpo. Porém, não podemos
negar que a contemporânea filosofia da mente caminha sobre a trilha aberta pelo cartesianismo, sendo
justamente nesse sentido que nossa história começa com René Descartes. Ainda estamos tentando
responder questões suscitadas pela filosofia cartesiana.
2. John Searle em Mind: a brief introduction (2004, p. 6-28) atribui à filosofia cartesiana a introdução de
oito problemas: problema mente-corpo, o problema das outras mentes, o ceticismo sobre o mundo
exterior, a análise da percepção, o livre-arbítrio, o problema do Self e da identidade pessoal, a questão da
mente em outros animais e o problema do sono. Há mais quatro problemas que não derivam
necessariamente da filosofia cartesiana, mas que Searle diz se integraram no programa da filosofia da
mente: a intencionalidade, causação mental e epifenomenalismo, o inconsciente e o problema das
explicações psicológicas e sociais. Esses seriam, segundo Searle, os doze problemas gerais que são
abordados pela filosofia da mente.
20
Por mais de uma década, Searle pareceu não se preocupar com questões
propriamente de filosofia da mente. Seus trabalhos giravam em torno da filosofia da
linguagem3, dos quais o principal é Speech Acts (1969; Atos de Fala, 1981). Porém,
com a publicação de Intentionality: an essay in the philosophy of mind (1983;
Intencionalidade, 1995/2002) Searle entra, efetivamente, no debate contemporâneo
sobre a natureza da mente humana. Mas, como diz o próprio Searle, com Intentionality
o filósofo apenas desejava uma fundamentação mais rigorosa de sua teoria dos atos de
fala. Por essa razão recorreu ao termo filosófico intencionalidade, dando a ele sua
________________
3. Contudo, podemos dizer que Searle já estava fazendo filosofia da mente, pois como o próprio filosofo
diz em A Redescoberta da Mente (2006, p. 01-02), a filosofia da linguagem é um ramo da filosofia da
mente, pois nenhuma teoria linguística estará completa sem explicar qual a relação entre mente e
linguagem.
21
própria versão e tentando relacionar mente e linguagem. Tentando investigar com mais
profundidade alguns aspectos da linguagem, Searle acaba percebendo que para
caminhar com mais fecundidade deveria investigar alguns aspectos do que vem a ser a
mente humana. Isso fez com que o filósofo fosse, gradativamente, passando de uma
filosofia puramente linguística para a filosofia da mente. Dessa forma, a partir de
Intencionalidade, Searle publica não apenas uma série de outros trabalhos que buscam
investigar a natureza dos estados mentais, mas também expressa (inúmeras vezes, aliás)
sua insatisfação para com a contemporânea filosofia da mente.
Afastando-se dessas abordagens, Searle segue por uma via propositiva, ou seja,
constrói sua filosofia da mente. Para ele, qualquer abordagem que queria estudar o
fenômeno da mente humana deve, em primeiro lugar, considerar que ela é um fato da
realidade, ou seja, que a mente de fato existe. Com efeito, a proposta de Searle é abordar
o mental qua mental, ou seja, investigar os processos e estados mentais dentro de seus
próprios termos. Searle não despreza a apreensão intuitiva simples, por assim dizer, de
senso comum, que fazemos de nossos estados mentais. Ele diz que essa é uma realidade
óbvia e deve ser assim entendida. Contudo, esse tipo de discurso pode soar demasiado
dualista, pois se apega a algo etéreo e aparentemente não-físico como a mente, o que
seria contraditório com as pretensões do filósofo de se afastar do dualismo. Então
devemos nos perguntar: o que efetivamente Searle está chamando de mente?
________________
4. Só para exemplificar a heterogeneidade do termo materialismo, em especial na filosofia da mente,
muitas vezes vemos que ele é utilizado para denominar abordagens totalmente diferentes. O naturalismo
biológico de Searle, a teoria dos sistemas intencionais de Daniel Dennett e o eliminativismo de Paul
Churchland são posições radicalmente distintas, mas que podem receber todas o rótulo de “materialismo”.
22
O filósofo se diz fisicalista, pois não nega que nossa realidade é composta
apenas de matéria física e campos de força. Mas ele também salienta que nossa visão de
matéria mudou muito. Hoje, por matéria, não entendemos apenas as res extensa
cartesiana, mas sim algo muito mais sutil, como substâncias subatômicas que são
meramente pontos-energia (SEARLE, 2006). Ele não acredita que a mente seja algo
não-físico, bem como também não vê possibilidade de reduzi-la a nada além dela
mesma. Ou seja, a mente é ontologicamente real e deve ser assim investigada, com toda
sua carga de subjetividade e intencionalidade. Com isso, Searle se posiciona num
materialismo soft5, tentando reintroduzir a mente (assim por ele entendida) dentro do
estudo científico contemporâneo.
Nosso principal objetivo é apresentar a solução que John Searle acredita oferecer
ao problema mente-corpo, para ele entendida como relação entre mente-cérebro. Ou
seja, queremos responder, à luz da filosofia searleana, como o cérebro poderia ser capaz
de produzir estados mentais conscientes? Como estados mentais podem ser causados
por e realizados no sistema cerebral? Como é possível a mente ser causalmente eficiente
no mundo físico em geral? O capítulo 2 abordará todas essas questões da assim
chamada filosofia propositiva de Searle. Ou seja, é neste capítulo que iremos tratar
efetivamente da solução para o problema mente-corpo oferecida pelo filósofo.
problema mente-corpo.
Outra questão é que, por mais que Searle se esforce em se afastar do ranço
cartesiano, para alguns autores (cf. PRATA, 2011; 2012; KIM, 1993) o naturalismo
biológico incorreria num tipo de dualismo de propriedades, visto que propriedades
físico-cerebrais causariam algo não físico (mente). Ou seja, para tais autores ainda
estaríamos numa distinção mente-corpo ou, no mínimo, entre subjetividade-
objetividade, recaindo naquilo que o próprio Searle (1995, 2004, 2006) chamou de
linguagem cartesiana inadequada. Seguindo essa linha de crítica, veremos as
25
dificuldades que alguns autores (cf. LEPORE; VAN GULICK, 1991) apontam na
impossibilidade de se fazer uma redução ontológica da intencionalidade. Também
poderia haver uma ambivalência em Searle ao defender a subjetividade e o realismo
ingênuo (tese internalista) e, ao mesmo tempo, parecer compactuar com um fisicalismo
redutivo (ontologicamente), onde os estados mentais nada mais são do que o
comportamento neuronal em cérebros humanos (tese externalista)? Poderia também a
subjetividade (tal como Searle a entende) sobreviver em nossa cosmovisão científica (cf.
DENNETT, 1993)?
1.1. Apresentação
Com efeito, iremos começar exatamente com esse filósofo, abordando, assim, o
dualismo. Depois passaremos às críticas ao materialismo (ou tradição materialista em
filosofia da mente), sobre o qual Searle se volta com mais força, por ser esta (em suas
mais variadas abordagens) a visão efetivamente dominante na atual filosofia da mente.
Com isso, Descartes chega à conclusão de que podemos estar enganados com
relação a tudo do mundo exterior. Nossos sentidos podem nos enganar, ou podemos
estar sonhando, ou até mesmo podemos estar sendo enganados por um Gênio Maligno
que esteja imputando em nós esses pensamentos e sensações, ludibriando-nos quanto ao
nosso corpo e o mundo exterior de forma geral. Contudo, por mais que nossos sentidos
____________
6. Pedimos desculpas aos leitores pela concisão dessa seção. Sabemos que a filosofia de René Descartes é
muito profunda e influente, merecendo, dessa forma, uma análise mais acurada. Contudo, por não ser
nosso objetivo analisar com minúcias tal filosofia, mas sim apresentá-la brevemente, bem como as
críticas feita à ela por John Searle, pedimos a compreensão e paciência dos leitores.
31
possam nos enganar, por mais que estejamos sonhando ou que um Gênio Maligno esteja
produzindo todas essas imagens em nossas mentes apenas para nos equivocar, não
podemos estar enganados quando pensamos ser alguma coisa. Temos essa consciência
de eu, então, ao menos no momento em que pensamos, nós efetivamente existimos e
somos alguma coisa, portanto, penso, logo existo (DESCARTES, 1973).
Contudo, a natureza desse pensamento deve ser diferente do corpo, pois se esse
pensamento fosse da mesma substância das coisas físicas, então ele deveria sofrer as
implicações do mundo físico em geral e, com isso, deveria também ser posto em dúvida
junto com todos os outros elementos do mundo (corpo, cinco sentidos, mundo exterior
etc). Ora, se os cinco sentidos podem ser falhos e apenas a introspecção, ou o olhar do
espírito, é que realmente garante a minha existência (portanto, tem uma primazia na
escala dos valores), percebemos que existe algo no qual podemos chegar sem a ajuda
desses sentidos (aliás, os sentidos são inúteis no que se refere à observação do espírito),
portanto, o pensamento deve ser de outra natureza (DESCARTES, 1973). E foi a partir
dessas reflexões que observamos o início da distinção substancial entre mente e corpo
na filosofia moderna.
Além disso, Maslin (2009) diz que, de algum modo, essa substância mental, não
física, estaria conectada ao corpo físico, dando a ele poderes causais. Para Descartes
(1973) a coisa pensante está incorporada (ou impregnada) ao corpo e é, em princípio,
indivisível. Isso seria a prova da imortalidade da alma, pois enquanto o corpo humano
se degenera, a alma seria indivisível e eterna, pois não sofreria as degradações e
percalços das determinações físicas.
Apesar deste grande esforço reflexivo, que tenta, de certa forma, salvar a
imortalidade da alma humana, há vários problemas com o dualismo substancial. Um dos
problemas mais sérios se expressa numa contradição com a própria cosmovisão da
época. Como diz Teixeira (2008), Descartes tomava o mecanicismo como fundamento
para sua filosofia, ou seja, um princípio de causa e efeito que governa todo o universo.
Mas é exatamente aqui que começam os nossos problemas. Se a alma é de outra
natureza que não física, portando, não sofrendo as determinações físicas habituais de
todos os objetos da realidade, então como pode haver um intercâmbio entre aquilo que o
corpo sente e o que a alma experimenta? Se, por exemplo, meu dedo é esmagado por
um martelo, como minha alma pode sentir alguma coisa se foi meu corpo que sofreu o
dano? Essa dificuldade é a essência mesma do problema mente-corpo. "A
32
Searle (2004) não discute em profundidade essas três possibilidades, mas diz que não
concorda com nenhuma delas. Acredita que o dualismo de substância não consegue
resolver o problema da causação mental e, ademais, ele é a fonte dos erros e confusões
do materialismo contemporâneo (cf. seção 3 e subsequentes deste capítulo).
Maslin (2009) diz que o dualismo de propriedades tem três questões muito
difíceis para resolver, quais sejam, 1) qual a natureza das propriedades mentais?, 2)
como o cérebro físico suscita aspectos mentais? e 3) como essa teoria pode evitar uma
ida direta ao epifenomenalismo? A não ser que se abrace efetivamente o
epifenomenalismo (o que não é feito por todos os dualistas de propriedades), esse tipo
de questão se torna realmente embaraçosa para tal abordagem.
1. 3. A virada materialista
nosso tempo, ao menos entre os experts profissionais nas áreas de psicologia, filosofia,
ciência cognitiva e muitas outras áreas relacionadas ao estudo da mente. Como qualquer
religião, os materialistas aceitam, sem questionar, o quadro geral onde outras questões
podem ser colocadas, analisadas e respondidas.
Mas devemos delimitar exatamente o que Searle quer dizer com materialismo.
Por tradição materialista, Searle (2006) está fazendo referência àquelas abordagens que
aceitam um grupo de concepções e pressuposições metodológicas, tais como8:
________
8. Cf. Searle (2006, p. 19-22).
37
As abordagens que tomam como pressuposto essas asserções são chamadas por
Searle (2006) de tradição materialista em filosofia da mente. Em resumo, as abordagens
materialistas a que o filósofo se refere são aquelas que querem depreciar, hostilizar ou
eliminar o caráter essencial da mente (intencionalidade e subjetividade). Com efeito,
apresentaremos agora as principais abordagens da dita tradição materialista. Contudo,
nessa exposição, em geral privilegiaremos as críticas que Searle faz a essas abordagens.
1.3.1. Behaviorismo
Essa foi uma das primeiras abordagens em filosofia da mente, sendo muito
influente nos anos de 1950 e 1960. As duas principais correntes dessa abordagem são o
behaviorismo metodológico e behaviorismo filosófico9. Mas essas duas formas de
behaviorismo compartilham de três tendências intelectuais, quais sejam, (1) uma
rejeição a qualquer forma de dualismo, (2) a ideia do positivismo lógico de que o
significado de uma sentença é, em última análise, uma questão de circunstâncias
observáveis e (3) a motivação de que há uma confusão linguística ou conceitual da
maior parte dos pressupostos filosóficos, dessa forma, deve-se fazer uma análise
cuidadosa da linguagem na qual o problema foi expresso (CHURCHLAND, 2004, p.
49). Com efeito, o problema mente e corpo, para ambas as correntes behavioristas, seria
um pseudoproblema. Falar sobre nossos estados interiores seria falar sobre nada além de
padrões comportamentais.
Já o behaviorismo lógico diz que não poderia existir qualquer coisa chamada
mente, a não ser na medida que existiriam sob a forma de comportamento. Com isso, os
eventos mentais não seriam simplesmente efetivos padrões de comportamento, mas sim
___________
9. Não obstante, há uma outra vertente, hoje ainda com certa influência dentro da psicologia, que é o
behaviorismo radical de B. F. Skinner. A diferença fundamental, que constitui sua "radicalidade" (ZILIO,
2009), está no modo como trata o comportamento humano. Até mesmo os eventos privados, pelos quais
chamamos mentais, seriam apenas formas de comportamento encoberto. Contudo, não iremos abordar
essa forma de behaviorismo, mas julgamos que essa corrente compartilha ao menos de uma crítica em
comum com as outras, qual seja, seu antimentalismo, a negação completa de que possam haver estados
mentais tais como apreendidos por nossa introspecção comum.
38
Cada uma das versões do behaviorismo têm suas objeções técnicas. Iremos
mostrar apenas uma objeção à cada corrente, apresentadas por Searle (2004, 2006), e
um argumento geral que se aplica as duas versões do behaviorismo. A respeito do
behaviorismo metodológico, Noam Chomsky (apud SEARLE, 2004) argumentou que é
um erro dizer que o estudo psicológico seria a mesma coisa que o estudo do
comportamento humano, pois seria o mesmo que dizermos que a ciência física é o
estudo da leitura métrica. Claro que o comportamento é uma evidência do psicológico,
assim como a leitura métrica é uma evidência da física, mas é um equívoco confundir a
evidência de um assunto com o assunto mesmo. O assunto de que trata a psicologia é a
mente, e o comportamento é apenas a evidência e uma das características do mental.
__________
10. Inspirado pelo matemático e filósofo britânico Frank Ramsey (1903-1930), a sentença de Ramsey diz
que na conjunção prévia das sentenças, nós simplesmente suprimimos a expressão "crença de" e
colocamos em seu lugar "x". Então nós introduzimos na sentença um quantificador existencial, que diz
"há um x, tal que...". (SEARLE, 2004).
39
roupas. Assim, a crença é explicada pelo desejo e o desejo pela crença. Ao que parece,
entramos num círculo vicioso ao adotarmos o behaviorismo lógico como abordagem
para explicar os estados e processos mentais.
Essa foi a primeira versão da teoria da identidade. Ela diz, grosso modo, que
todo tipo de estado mental é idêntico com um tipo de estado físico. Com "tipo" de
estado físico e mental, essa abordagem está querendo dizer que um único e mesmo
estado mental tem um único e mesmo estado neurocerebral. Assim, por exemplo,
podemos dizer que nossa sensação subjetiva de dor é nada além (idêntica a) que
excitações das fibras axoniais C. A esperança de encontrar os correlatos cerebrais para
os estados e processos mentais é reforçado pelos avanços científicos. Ora, a história da
41
ciência dos últimos séculos nos provou a identidade de muitos fenômenos da natureza
(como no exemplo que usamos, água é nada além que moléculas de H2O). Então é de se
supor que, com os avanços da neurociência, encontraremos esses correlatos e finalmente
desvendaremos o mistério da consciência. Essa esperança se mostra, em certo sentido,
na afirmação de Place, quando ele diz que:
Mas há duas objeções que julgamos centrais contra a teoria de identidade tipo-
tipo. A primeira é que não parece fazer sentido dizer que um estado mental qualquer
seja idêntico a um e mesmo tipo de estado cerebral, pois se assim fosse, duas pessoas
diferentes, que tivessem a mesma crença (suponhamos, o São Paulo F.C. é o melhor
time de futebol do planeta Terra), deveriam ter a mesma localização neurofisiológica a
qual essa crença é idêntica. Parece muito supor que, dada as constituições particulares
de cada pessoa, as assim ditas manifestações mentais tenham correlatos
neurofisiológicos idênticos em todos os indivíduos humanos (SEARLE, 2004).
A outra crítica deriva da lei de Leibniz11. De acordo com tal lei, os estados e
processos mentais não podem ser idênticos aos neurofisiológicos, pois há propriedades
mentais que não são idênticas às cerebrais. Por exemplo, quando dou uma martelada em
meu dedo, eu não sinto a dor em minhas fibras axoniais C, mas sim em meu dedo
ferido. Então onde exatamente estaria a dor?12 (SEARLE, 2006).
Com efeito, como a ideia de que os estados mentais poderiam ser idênticos a um
e mesmo tipo de estado cerebral parecia forte demais, visto as dificuldades apresentadas
nesta seção, os teóricos da identidade acreditaram que poderiam preservar o insight
fisicalista numa asserção mais fraca. Assim, deu-se origem a uma nova forma de teoria
da identidade.
______________
11. Principio da identidade dos indiscerníveis (Lei de Leibniz): x e y são idênticos se, e somente se, x
e y compartilharem de todas as suas propriedades (MASLIN, 2009).
12. Não iremos aprofundar esse debate, pois nos desviaríamos muito da proposta deste capítulo. Contudo,
deixamos aqui registrado que sabemos que a discussão sobre a natureza da dor é muito ampla e, ainda, em
aberto.
42
1.3.3. Funcionalismo
Teixeira (2008) diz que o funcionalismo toma três pressupostos como básicos,
quais sejam, (1) a realidade dos estados mentais, (2) a ideia de que os estados mentais
43
são irredutíveis a estados físicos e (3) os estados mentais são caracterizados pelo papel
funcional que ocupam entre input e output de um organismo ou sistema. Porém, aqui
devemos ser claros acerca do que essa abordagem quer dizer com estados mentais, pois
o funcionalismo não acredita na existência de estados mentais tais como Searle acredita.
Lewis (1972) diz que o que define um estado mental, no funcionalismo, são suas
relações causais entre inputs que o organismo recebe, seus estados "mentais", ou seja,
organização interna desses inputs, e seu comportamento de output correspondente. Em
resumo, o que define um estado mental são seus papéis causais numa economia
complexa de estados internos mediados por entradas perceptivas e saídas
comportamentais, ou seja, o funcionalista concebe a mente como uma função.
( x)(Paulo tem x & x é causado pela percepção de p. Paulo tem y. Portanto, x & y
causam a ação z). (SEARLE, 2006, p. 64).
Dessa forma, a vantagem do funcionalismo é que ele diz que não há nada de
especialmente mental quando estamos falando sobre as mentes. É tudo uma questão de
relações lógicas. Outra vantagem óbvia que se apresenta é que, abordando a mente desta
forma, ela poderia ocorrer em qualquer outro sistema minimamente complexo, não
apenas o cerebral. Então todo sistema poderia ter estados mentais, desde que tivesse as
relações causais corretas entre seus inputs, seu funcionamento interno e seus outputs.
mente, mas não vimos um esforço realmente sério em dizer qual é sua natureza mesma.
Boa parte dos funcionalistas não dizem nada sobre a natureza do mental, pois acreditam
que as investigações empíricas das neurociências e psicologia um dia poderão responder
tal questão. Por ora, os funcionalistas tratam a mente como uma "caixa-preta", ou seja,
não querem saber o que há dentro dela, mas apenas como se estabelece suas relações
causais com o mundo (SEARLE, 2006). Ademais, um funcionalista poderia dizer que a
questão o que é a mente? não faria muito sentido para essa abordagem. A mente,
segundo a abordagem funcionalista, seria um conjunto de relações, não uma coisa a ser
procurada dentro da cabeça.
Mesmo que esse estado mental tenha sido gerado, nenhum chinês em particular sentiria
dor, mesmo que, em conjunto, eles tivessem imitado a organização funcional apropriada
à sensação mental de dor (SEARLE, 2004, 2006).
Apesar das críticas, Searle (2006) diz que o funcionalismo é ainda a abordagem
mais forte dentro da filosofia da mente. Isso se deu, em partes, por conta dos grandes
avanços da Inteligência Artificial (IA). O curioso é que ambas as abordagens,
funcionalismo e inteligência artificial, entraram numa espécie de simbiose. Essa
constante troca entre funcionalismo e IA trouxe benefícios para ambas (TEIXEIRA,
2008). Uma acabou complementando a outra. E, como diz o funcionalismo, se não é
necessário um cérebro para gerar uma mente, seria possível criar mentes a partir de
outros substratos físicos. É exatamente isso que tenta a Inteligência Artificial.
pensamento humano pode ser representado por algoritmos (tal como na sentença de
Ramsey). Assim, o desafio na construção de uma máquina de Turing Universal, capaz
de rodar algoritmos tal como nossa máquina biológica o faz, é apenas de ordem prática,
não teórica (TEIXEIRA, 2004).
_____________
16. Para ter acesso ao argumento na integra, Cf. Searle (1980).
47
respostas que ofereceu, ela passaria facilmente no teste de Turing para falantes de
chinês.
A base desse argumento de Searle é apelar para a questão semântica dos nossos
estados mentais. A pessoa no quarto chinês efetivamente não sabe chinês, por mais que
pudesse se passar por um falante nativo, assim como uma máquina não é efetivamente
consciente, por mais que possa se passar por uma. As máquinas têm apenas uma
estrutura sintático-formal. Já nós, seres humanos, temos semântica, que é obviamente
uma característica de nossa subjetividade (SEARLE, 2006). É justamente esta a questão
chave para o filósofo, sendo este o motivo porque Searle não acredita que a IA forte
consiga realizar seu projeto.
Há outros tipos de objeções mais técnicas que a IA forte deve enfrentar antes de
dar cabo ao seu projeto17. Resolvidos tais problemas, acreditam os adeptos da IA Forte,
seria possível criar uma inteligência artificial, tal como, ou melhor, que a inteligência
humana. Contudo, Searle (1998, 2006/1992) argumenta que há um problema
fundamental que os computacionalistas sozinhos não podem resolver, qual seja, como a
máquina biológica, a qual chamamos cérebro, funciona realmente? Searle (1998) não vê
impedimentos lógicos em se produzir uma inteligência artificial forte, mas discorda que
os computadores ou robôs atuais tenham pensamentos ou vida subjetiva. Para dar cabo
do projeto computacionalista, Searle acredita que devemos entender como realmente o
cérebro humano funciona para assim podermos fazer uma réplica artificial de tal
mecanismo. Sem esse completo entendimento, seria o mesmo que, conhecendo
precariamente o coração, quiséssemos fazer uma réplica de tal órgão e acreditássemos
piamente que ela funcionaria tal como o coração biológico. Os cientistas podem
produzir corações artificiais pelo fato de conhecerem completamente o funcionamento
do coração biológico. Do mesmo modo, seremos capazes de produzir cérebros artificiais
no momento em que entendermos como o cérebro biológico funciona, em seus mais
requintados detalhes. Com isso o desafio da Inteligência Artificial é não apenas o de
produzir computadores ou robôs mais sofisticados, mais sim voltar os olhos para a
neurociência e psicobiologia.
____________
17. Talvez o problema técnico mais difícil que a AI Forte enfrenta seja o colocado por Kurt Gödel em
seus Teoremas da Incompletude. Pela sofisticada linguagem matemática requerida, e por não dispormos
desse conhecimento no momento, não reproduziremos aqui os argumentos de Gödel. Uma análise clara, e
para não especialistas, foi feita em Nagel, E. & Newman, J.R. A Prova de Gödel. São Paulo: Perspectiva,
2007.
48
1.3.5. Eliminativismo
linguagem científica, será necessário fazer uma eliminação (TEIXEIRA, 2008). Ou seja,
de qualquer modo, seja reduzindo, seja eliminando, o elimitativista quer extinguir nosso
vocabulário mentalista de senso comum.
isso no mínimo injusto. A psicologia popular pode até ser entendida como uma teoria,
mas não é, nem de longe, um campo de pesquisa. Por isso, ela não é um campo rival da
pesquisa científica. Diferentemente do vitalismo, que queria se mostrar como verdade
científica, a folk psychology não tem essa pretensão. Ademais, muito provavelmente
alguns princípios dessa psicologia popular não são tão ruins assim, e não seria estranho
que se mostrassem verdadeiros.
la. Ou seja, a tradição materialista aceitou a distinção feita por René Descartes, ficando
com um dos elementos da bipartição mutuamente exclusiva, a saber, o corpo.
Essa asserção de Searle, nem toda a realidade é objetiva, deve ser explicada de
forma mais clara para evitar possíveis confusões. Quando dizemos que a ciência é
objetiva, o que de fato estamos tentando dizer? Em geral queremos dizer que não
desejamos que preconceitos e valores subjetivos interfiram em nossas investigações.
Mas, para Searle (2006), há uma confusão exatamente neste ponto. Quando fazemos
esse tipo de inferência, estabelecendo a distinção entre objetivo e subjetivo, estamos
buscando um tipo de epistemologia objetiva (o que, para o próprio Searle, é uma meta
desejável e muito razoável para a investigação filosófica e científica). Contudo, a
asserção epistemológica se estende para a ontológica. Porque queremos uma epistéme
objetiva, também acreditamos que a ontologia dos objetos da realidade também são, em
seu todo, objetivas. É exatamente aí que o filósofo discorda, pois ele acredita que nem
toda a realidade é objetiva, pois temos sim mentes, que têm existências ontologicamente
de primeira pessoa, ou seja, subjetivas. "Em termos ontológicos [...] a asserção de que
toda a realidade é objetiva é, neurobiologicamente falando, simplesmente falsa"
(SEARLE, 2006, p. 32).
tanto um como o outro, existem na realidade. Aliás, um não existe sem um outro. Seria
estranho pensar num mundo onde só existisse comportamento (negando nossa vida
mental particular) ou, por outro lado, um mundo onde só existisse introspecção (numa
espécie de solipsismo). Searle acredita que o estudo da mente deve levar em conta esses
dois aspectos, pois ambos têm seu modo de existência, ou seja, ambos existem na
realidade.
Posto esse quadro geral das principais abordagens em filosofia da mente, bem
como porquê John Searle se afasta dessa tradição, podemos nos perguntar por que o
materialismo ainda parece a melhor alternativa para os profissionais de psicologia,
filosofia da mente e ciência cognitiva? Visto o número de profissionais que adotaram tal
abordagem, não haveria alguma veracidade nas afirmações materialista, de modo que
ela lhes pareça tão sedutora?
Searle (2006/1992) diz que não tem uma resposta definitiva para essa questão,
mas nos oferece algumas hipóteses. O primeiro motivo do materialismo ainda
permanecer tão forte é o receio de retornarmos a alguma forma de dualismo. Dessa
forma, ao darmos estatuto ontológico a mentes e consciência, estaríamos afirmando a
existência de algo imaterial, fazendo ressurgir a difícil e aborrecida distinção entre
mente e corpo.
uma série de problemas difíceis, mas também uma linguagem que nos custa muito
abandonar (SEARLE, 2004, 2006/1992). Por essa razão, parece que toda vez que
falamos sobre mentes, consciência e subjetividade, os ouvintes interpretam tais objetos
como algo etéreo, distinto do mundo material em torno. Assim, os materialistas, em
geral, só conseguem trabalhar em forma de distinções (há muito delineada por
Descartes), tais como matéria e consciência, corpo e mente etc18. Ademais, como
dissemos nas últimas seções, Searle (2004, 2006/1992) acredita que o problema mente e
corpo permanece insolúvel porque aceitarmos esse vocabulário, onde nem mesmo os
materialistas escaparam.
O quarto motivo seria uma tentativa dos teóricos de buscarem uma grande e
profunda teoria, ou seja, "não parece o bastante afirmar verdades simples e óbvias ―
queremos algo mais profundo." (SEARLE, 2006, p. 30). Dessa forma, não faz mal se
algumas das afirmações feitas pelas correntes principais nos pareçam absurdas, porque
vemos que, ao longo da história das ciências (ao menos nas hard sciences), concepções
verdadeiras pareceram extravagantes para seus contemporâneos. Como a física mostrou
que há algo de muito mais profundo no mundo, as concepções dominantes em filosofia
da mente, segundo Searle (2006/1992), acreditam que conseguirão mostrar aquilo que
realmente acontece em nossos cérebros, sendo que noções ultrapassadas como mentes e
consciência se mostrarão, no devido tempo, meras ilusões.
TENTANDO SOLUCIONAR O
PROBLEMA MENTE-CORPO:
NATURALISMO BIOLÓGICO
57
2.1. Apresentação
O presente capítulo mostrará a solução que Searle acredita ter dado ao problema
mente-corpo. Como vimos no capítulo 1, o filósofo se afasta tanto da tradição dualista
como daquilo que chama de materialismo em filosofia da mente, dizendo que ambas
cometem o mesmo erro, qual seja, aceitam um tipo de vocabulário que separa o mundo
em duas substâncias mutuamente exclusivas. O esforço de Searle, com a solução que
pretende dar ao problema mente-corpo, é situar a mente em nossa visão de mundo
científica, mostrando que ela é um fenômeno biológico natural como qualquer outro.
Com isso, temos dois objetivos principais neste capítulo, quais sejam, (1)
responder, à luz da filosofia searleana, como os estados mentais podem ser um
fenômeno biologicamente natural, ou seja, como cérebros são capazes de produzir
mentes, e (2) mostrar de que forma essa mente, biologicamente natural, pode ter
eficácia causal no mundo em geral. Se aceitarmos as premissas dadas por Searle ao
58
Dessa maneira, iremos apresentar o que Searle entende por mente, como ela
funciona, como se estabelece a relação mente e corpo e como a mente pode ser
causalmente eficiente no mundo físico. Essas questões servirão como base para
caminhar ao longo dessa capítulo. Contudo, a primeira grande questão que se apresenta
ao tentarmos situar a mente dentro do mundo natural é como ela se enquadra com a
visão científica contemporânea? Essa é uma questão muito pertinente e julgamos
interessante iniciarmos por ela.
A ciência sempre encontra algum problema com as definições dos objetos que
ela estuda. Como diz Kuhn (1997), a maior parte das investigações científicas começa
impregnada por pré-concepções, pré-teorias, que, por vezes, não ajudam os estudantes a
delimitar com clareza o objeto investigado. Com isso, o ideal de colocar totalmente
entre parênteses os conhecimentos do investigador para analisar o objeto com total
isenção mostra-se impossível. Assim sendo, faz-se necessário um recorte na linguagem,
para que todos os investigadores possam ter certeza que estão falando do mesmo objeto.
Mas esse recorte não pretende abarcar a essência (condições suficientes e necessárias)
do fenômeno, mas sim os aspectos centrais e que, de preferência, seja possível a
reprodução experimental em laboratório.
Searle (1998) diz que muitos filósofos e cientistas acreditam que, para termos uma
definição coerente da consciência, a visão subjetiva deve ser reduzida à objetiva. Mas
para nosso filósofo, quando se trata da consciência, esse não deve ser necessariamente o
caso.
Dessa forma, se vamos tomar como base nossa atual cosmovisão científica,
então qualquer teoria da consciência que se preze deve levar em consideração as teorias
científicas mais fundamentais. Na opinião de Searle (2006/1992) as duas teorias
científicas básicas de nosso tempo são a teoria atômica da matéria (grosso modo, a
matéria é composta de partículas, átomos, e campos de força) e a teoria da evolução das
espécies por seleção natural (todas as espécies animais, incluindo os seres humanos,
________________
19. Searle (2000) cita apenas algumas teorias que abalaram as estruturas da ciência e da cosmovisão
moderna. Teorias como da relatividade, mecânica quântica, teorema da incompletude de Kurt Gödel e a
teoria psicanalítica freudiana. Também alguns fatos históricos contribuíram para essa queda no otimismo,
como, por exemplo, as duas grandes guerras mundiais. Deste modo, principalmente a partir da segunda
metade do século XX, novas formas de relativismo surgiram para desafiar a cosmovisão reinante, como
por exemplo o pós-modernismo. Para uma interessante leitura sobre o movimento pós-modernista, cf.
[VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São
Paulo: Martins Fontes, 2002].
60
passaram por um lento e gradual processo evolutivo por seleção natural). Se, em toda
realidade que conhecemos, há esses dois aspectos fundamentais, então a consciência
não pode ser um caso especial. Devemos explicar a consciência à luz desses dois
aspectos balizares da realidade. Com isso, Searle tentar enquadrar a consciência dentro
de nossa visão científica de mundo da seguinte forma:
Searle (2004) diz que o conceito de consciência é simples, que o temos até
mesmo de forma intuitiva. O filósofo parece não entender a dificuldade encontrada,
principalmente na literatura contemporânea, para se conceituar o termo (SEARLE,
61
1998). Podemos, segundo o filósofo, dar uma definição de senso comum à consciência,
sem com isso perder os aspecto fundamental de sua definição. Então, para Searle (1998,
p. 33), consciência "[...] se refere àqueles estados de sensibilidade e ciência que
começam normalmente quando acordamos de um sono sem sonho e continua até que
durmamos novamente, caímos em coma, morremos ou ficamos 'inconscientes'".
Com efeito, isso nos remete a uma série de outras questões, sendo que uma delas
é nos perguntarmos se é condição necessária, para todo estado consciente, ser também
autoconsciente?20 Searle (2006/1992) parece não ter uma resposta definitiva para tal
questão, mas ele diz que, em algum sentido, a consciência é autoconsciente, porque há
sempre a possibilidade de descolar o eixo de atenção de um estado consciente para a
autoconsciência. Neste sentido, segundo o filósofo, a autoconsciência está sempre
presente.
________________
20. Outra questão muito difícil acerca da consciência é se o eu (self) se resume aos estados conscientes,
ou a consciência como um todo? Searle não parece se dedicar, exclusivamente, a resolver este problema,
mas fica implícito em sua filosofia que não resolveríamos o problema do eu (self) sem levar em
consideração nossas experiências conscientes e também nossos estados inconscientes. Como não
abordaremos a questão do inconsciente em Searle, bem como não vemos em seus escritos um esforço
específico na resolução do problema do self,, não trataremos dessa questão aqui.
21. Em um escrito (cf. SEALRE, 2006/1992, p. 183-203), o filósofo esboça doze características
fundamentais. Já em outro (cf. SEARLE, 2004, p. 93-101), Searle elimina uma das características, ficando
apenas com onze.
62
2.3.1. Unidade
Outra questão que julgamos relevante, e que Searle não pareceu desenvolver
plenamente sem seus escritos, como deixamos implícito na seção anterior (cf. nota 20),
é a questão do eu (self). Tal questão pode ser resumida em duas perguntas centrais, uma
de cunho ontológico e outra epistemológica: (1) o que é o eu (self)? (2) Como eu posso
conhecer o meu eu e o eu das outras pessoas? Acreditamos que Searle poderia responder
parte dessa questão apelando para a unidade da consciência. Eu reconheço o meu eu
63
2.3.2. Intencionalidade
Uma última coisa que diremos aqui acerca da intencionalidade é que, em Searle
(2006/1992), toda experiência consciente intencional tem uma forma aspectual, ou seja,
vemo-nas sob determinados aspectos e não sob outros. Se vejo um objeto, ele me
64
2.3.3. Subjetividade
Mas, no sentido em que Searle está usando o termo “subjetivo”, refere-se a uma
categoria ontológica, não a um modo epistêmico. Em sentido epistêmico, podemos dizer
que algo é objeto de conhecimento de maneira objetiva e subjetiva (SEARLE, 1998).
Por exemplo, se dissermos que Ayrton Senna foi um piloto de Fórmula 1 melhor do que
Nelson Piquet, isso é um juízo totalmente subjetivo, que envolve as crenças e valores do
observador. Contudo, podemos fazer juízos objetivos, que independem das crenças e
valores do observador referido, como dizer que Ayrton Senna morreu num acidente no
Grande Prêmio de San Marino, Ímola. Isso faz referência ao modo epistemológico
objetivo, pois não recorre as crenças e valores pessoais. Gostando-se ou não do fato,
Ayrton Senna morreu num acidente em Ímola.
Com efeito, podemos também fazer a mesma distinção entre subjetivo e objetivo
na ontologia. Árvores, montanhas e pedras têm uma existência ontologicamente
objetiva, ou seja, independem dos observadores para existir. Contudo, dores,
experiência de vermelho e a fruição estética ao ouvir uma cantata de Bach, são
ontologicamente subjetivas, ou seja, dependem da subjetividade humana (e de outros
animais) para existirem. É este exatamente o sentido que Searle (2006/1992) quer
expressar ao dizer que a consciência é ontologicamente subjetiva. Se, por exemplo, eu
tenho uma terrível dor em minha mão, ela, por um lado, pode ser facilmente descrita
pela fisiologia corporal, ou seja, ela é algo objetivo, pois toma como verdade a
existência de um fato real, passível de observação em terceira pessoa. Contudo, por
outro lado, a dor é sempre dor de alguém (neste caso, minha). Ou seja, sou eu que estou
sentindo a dor em minha mão. Neste sentido, ela também tem um modo de existência
subjetivo. É exatamente nesse sentido ontológico que Searle diz que a consciência tem
um modo subjetivo de existir. As experiências subjetivas existem porque necessitam de
um sistema complexo único para as sentir. Tais experiências são sempre experiências de
alguém, e nunca uma experiência abstrata de vermelho, ou uma dor meramente
conceitual.
Não obstante, devemos ser claros no que Searle está querendo dizer quando
afirma que a consciência é irredutivelmente de primeira pessoa. Com essa asserção, o
filósofo não quer dizer que, com isso, temos uma espécie de acesso privilegiado. Essa
metáfora começou a ser utilizada em substituição ao da introspecção, trocando-se um
modelo visual por um espacial. Mas Searle (2006/1992) diz que ela é mais confusa do
que a metáfora de senso comum (introspeccionista), porque o acesso privilegiado
pressupõe que haja um lugar exclusivo (como um quarto dentro de nossas mentes), que
só nós temos acesso. Mas isso também é um erro, porque toma como pressuposto que
há uma certa distinção entre o sujeito e o lugar pelo qual ele tem acesso privilegiado.
Como na introspecção, o espaço privilegiado falha, pois a própria coisa a ser observada
(ou acessada) já é a própria observação (ou acesso). "O problema é que, por causa da
ontologia da subjetividade, nossos modelos de 'estudo', modelos que confiam na
distinção entre observação e coisa observada, não funcionam para a subjetividade em
si." (SEARLE, 2006/1992, p. 146).
Com efeito, isso não nos leva a uma impossibilidade definitiva de observar a
subjetividade humana de maneira científica (tal como entendemos ciência
contemporaneamente). Em muitos de seus escritos (SEARLE, 1998, 2000, 2004,
2006/1992) o filósofo mostra-se otimista quanto a investigação neurocientífica. Para
ele, se levarmos a subjetividade a sério, bem como encontrando as correspondências
cerebrais para sua manifestação, estaremos num bom caminho para dissolver o
problema mente-corpo por uma via empírica22.
Contudo, essa mente consciente e subjetiva é também natural, física, tal como qualquer
outro objeto ou estado de coisa no mundo. Então, a pergunta que devemos fazer é como
especificamente Searle concilia esses dois aspectos em sua filosofia? Compreender
como o filósofo integra mente e corpo no mesmo mundo que pode ser descrito pelas
ciências naturais é fundamental para entendermos aquilo que Searle chama de
naturalismo biológico.
Antes de mais nada, não seria totalmente errado dizer que Searle é um
reducionista. Mas há um sentido especifico em que o termo redução se acomoda em sua
solução do problema mente-corpo23. Parece-nos óbvio, pelo que foi exposto, que Searle
não se enquadra entre os reducionistas ontológicos. Porém sua filosofia se encaixa à
redução causal, e o próprio Searle (2006/1992) admite tal classificação. O rótulo de
reducionista causal fica claro quando o filósofo estabelece a relação entre mente e
cérebro.
________________
23. Searle (2006/1992, p. 164-166) classifica cinco tipos de reduçóes: ontológica, ontológica de
propriedade, teórica, lógica (ou definicional) e causal. Para os fins que nos destinamos nesta dissertação,
não iremos discutir em detalhes os cinco tipos de redução. Dessa forma, nos concentrando unicamente na
redução causal, pois é nela que Searle se coloca.
68
Para uma melhor compreensão deste ponto, podemos fazer uma analogia com a
liquidez e solidez dos corpos. Os corpos se apresentam em estado líquido ou sólido, por
dependência da sua estrutura molecular. É porque as moléculas estão dispostas de tais e
tais maneiras que o corpo se apresenta como líquido ou sólido. Desta forma, vemos uma
mesa sólida (nível macro), porque suas moléculas estão dispostas de dada maneira e não
de outra (nível micro). Se mudarmos as características micro do sistema em questão,
69
A resposta que o filósofo nos oferece é que os estados mentais, por serem causados por,
são explicados pelo funcionamento da neurobiologia; pelos processos neurocerebrais.
Todas essas questões que viemos levantando nos três últimos parágrafos nos
leva a uma questão um pouco mais sutil da filosofia de John Searle. Se a consciência é
causada pelo cérebro e, ao mesmo tempo, Searle diz que tudo faz parte do mesmo
sistema, mesmo assim não estaríamos dentro do mesmo problema? Ou seja, não
teríamos ainda uma bipartição à cartesiana entre corpo e mente, pois o cérebro estaria
causando a consciência? Então seria Searle um dualista, ao menos um dualista de
propriedade?24. Estas questões podem ser, em partes, dissolvidas quando analisamos o
que o filósofo entende por causação mental.
Juntamente com a pergunta sobre a natureza dos estados mentais, há uma outra
questão igualmente difícil, qual seja, como tais estados mentais podem ter alguma
influência causal no mundo? A pergunta pode se tornar praticamente insolúvel
dependendo da abordagem que adotarmos. Por exemplo, é difícil para um dualista de
substância explicar a relação causal existente entre mente e corpo, devido à separação
ontológica que ele faz de ambos os domínios da realidade. Um materialista reducionista,
por outro lado, veria esse problema como facilmente solúvel, pois se a mente é nada
além de processos cerebrais, a causação mental, no fim das contas, é causação cerebral.
Contudo, o reducionista ainda tem que conviver com o fantasma do epifenomenalismo,
ou seja, mesmo o mental sendo apenas uma espécie de ilusão que na verdade não causa
absolutamente nada, então por que, efetivamente, temos essa sensação de ter estados
________________
24. Essa é uma das críticas desferidas à filosofia de Searle. Trataremos em detalhes dessas críticas no
capítulo 4.
71
mentais subjetivos que de fato parecem ter um efeito causal no mundo? De qualquer
forma, independentemente da abordagem que seguirmos, a questão da causação mental
ainda é um dos grandes tópicos que, juntamente com o problema mente-corpo, não
encontrou uma solução comumente aceita. Aliás, constitui o famoso problema difícil
que é muito discutido nas neurociências. A pergunta fundamental, que algumas
abordagens em neurociência fazem, é como explicar a possibilidade do cérebro ser
causa da mente? Em outras palavras, como se estabelece, efetivamente, essa passagem
causal do mental para o físico e do físico para o mental? Há, ao que parece, um lapso
explicativo quando tentamos equacionar essa questão, mesmo percebendo
empiricamente (através de testes neurocerebrais) que tal e tal evento cerebral causa tal e
tal evento mental25.
Para abordar essa questão, em primeiro lugar, devemos destacar que Searle
(2004) se afasta da ideia humeana de causação, dizendo que ela é inadequada para
exprimir o fenômeno na escala mental. Para Hume26, quando olhamos para o mundo
real nós não vemos uma conexão necessária entre causa e efeito (SEARLE, 2004). Por
exemplo, quando eu aperto o botão "ligar" do meu computador e ele liga, eu penso que
há uma conexão causal necessária entre acionar o botão A e a ocorrência do evento B
(computador ligar). Contudo, o que na verdade eu posso ver é apenas que A causou B,
não havendo nada, segundo Hume, que se assemelhe com uma conexão necessária entre
tais eventos. Ou seja, aceitando a asserção de Hume, chegamos a conclusão de que não
há uma conexão necessária entre causa e efeito. Contudo, fatalmente nos
________________
25. Esse é o famoso explanatory gap, como diz Teixeira (2008).
26. Não pretendemos aqui expor, em detalhes, a questão da causação em David Hume. Apenas
apresentaremos a filosofia de Hume tal como Searle (2004) a expõe. Julgamos conveniente proceder desta
forma, pois o objetivo aqui é mostrar contra o quê Searle se opõe em relação a filosofia de Hume.
72
perguntaríamos por que, então, temos essa ilusão de causa e efeito, ou seja, que todo
evento tem, necessariamente, uma causa e também, necessariamente, é causa de outro
evento? Hume, diz Searle (2004), argumentaria que é através de uma repetição
constante, vendo que determinado objeto A causa (ou aquilo que chamo de causa) um
fato B, é que eu chamaria essa não contrariada relação de causa e efeito. Quando
acontecer A (apertar o botão de ligar), eu espero que aconteça B (o computador de fato
ligue). Essa experiência constante nos daria a convicção de que a conexão necessária
entre causa e efeito realmente existe, mas no fim isso é apenas uma ilusão de nossa
inteligência. A única realidade para Hume é a regularidade que percebemos entre causa
e efeito, regularidade esta que observamos através da empiria, dado-nos por um
processo indutivo. Após vermos várias vezes a mesma regularidade, concluímos,
indutivamente, que A e B tem uma relação causal necessária.
Searle (2002a/1982, 2004) definitivamente não concorda com Hume quando este
diz que não podemos ver a conexão necessária nas relações causais. Nosso filósofo
argumenta que podemos perceber a conexão necessária em praticamentre toda nossa
vida. Por exemplo, quando temos experiências perceptivas ou experiências de ações
voluntárias, temos uma condição causal de auto-referencialidade como nossas condições
de satisfação do fenômeno intencional. Ou seja, nós efetivamente experienciamos a
conexão causal entre a experiência (seja perceptiva, seja de ação) de um lado, e o objeto
ou estados de coisas no mundo, por outro lado27. Quando nós efetivamente
(voluntariamente, intencionalmente) levantamos nossos braços, nós temos a experiência
da eficácia causal, i.e. a consciência da intenção em ação do movimento corporal28.
Com efeito, Searle (2004) diz que em todos os casos de percepções e ações
parece muito comum, de fato muito natural, que percebamos uma conexão causal entre
objetos (e também estados de coisas no mundo) e nossa experiência consciente. Não
parece lícito, segundo Searle, Hume dizer que não vemos conexão causal entre os
objetos da natureza, mas apenas regularidades, quando nós, a todo o tempo e
efetivamente, vemos sim essa conexão acontecendo.
Supondo que o que Searle disse a respeito da causalidade esteja correto, ou seja, que
experimentamos a relação causal em nossas vidas, e estendendo isso para o problema
mente e corpo, temos que enfrentar a seguinte situação: como algo aparentemente não
físico, como a mente, pode causar o movimento corporal? Ora, em nossas experiências
ordinárias parece natural, até mesmo trivial, supor que nossa mente causa alterações em
nosso corpo. Se desejo levantar o braço, simplesmente o levanto e parto do pressuposto
de que minha intenção em ação (ato mental intencional) foi a responsável por causar
essa incrível façanha.
Não obstante, como acreditamos que ficou claro em nossa exposição anterior,
Searle (2004) não concorda que haja essa distinção radical entre mental e físico. Então a
pergunta como algo não físico, como a mente, tem uma eficácia causal no mundo físico
em geral? é desprovida de sentido no naturalismo biológico. O mental faz parte do
mundo físico e compartilha do sistema cerebral tal como neurônios e sinapses. Como
dissemos, o mental, na visão searleana, está unicamente num nível de descrição
diferente. Esta é a diferença fundamental em relação aos outros componentes do sistema
cerebral. Então não há nenhum problema, segundo Searle (2002a/1982, 2004,
2006/1992), que o mental tenha influência causal no mundo físico, pois ele, como tal,
também é físico.
causa
Intenção em Ação Movimento corporal
Evento A Evento B
Causa
Com isso vemos que a causação mental, na abordagem de Searle, não é algo
como um evento físico (disparos neuronais) causando algo misterioso (mente), mas sim
um sistema integrado, que tem níveis de descrição diferentes e que devem ser vistos
como eventos inseparáveis que causam outros eventos. Todo evento mental, seja
consciente ou inconsciente, tem um substrato neuronal. O mental e o cerebral são coisas
diferentes unicamente porque possuem características diferentes. Mas essas
características, quando há eventos mentais, não ocorrem isoladamente. Há, sim, a
75
causação do nível micro para o macro, mas essa causalidade não é idêntica à humeana,
onde há um intervalo temporal entre causa e efeito. A causa e o efeito aqui acontecem
de maneiras simultâneas, tal como em qualquer outro sistema físico que tenha níveis de
descrição diferentes. Quando descrevemos a solidez da mesa em termos do
comportamento molecular, não há um intervalo de tempo onde, primeiro ocorre a
mudança molecular e depois a alteração na constituição macro da mesa. As duas coisas
acontecem ao mesmo tempo. Do mesmo modo ocorre no mental e no neurobiológico.
As duas coisas acontecem ao mesmo tempo, e quando estamos dizendo que um evento
mental A causou o evento mental B, estamos dizendo também que o substrato
neurobiológico A causou a alteração no substrato neurobiológico (ou qualquer outra
alteração microfísica) B. É neste sentido que a causação mental é possível, seguindo a
abordagem de Searle.
todos contendo subjetividade, e muitos são causalmente eficientes). Essas duas teses
para Searle devem ser tomadas como verdadeiras. A negação da veracidade de uma
dessas proposições apenas atualiza a bipartição mutuamente exclusiva já tão conhecida
em filosofia da mente. O que Searle tenta é romper com essa bipartição e ficar numa
posição, por assim dizer, intermediária. O realismo ingênuo é justamente essa sua
tentativa de se posicionar entre o fisicalismo e o mentalismo.
__________
29. Não abordaremos aqui, de maneira aprofundada, as críticas que Searle faz à ciência cognitiva, tanto
em relação a sua filosofia quanto aos seus métodos de pesquisa. Faremos apenas breves menções aos
métodos de pesquisa feitos, geralmente, nas ciências cognitivas e, em contrapartida, aquilo que Searle
julga ser o método de pesquisa mais adequado. Para conferir em detalhes as críticas searleanas ao
cognitivismo, cf. Searle (1997, p. 53-70; 2006, p. 281-324).
77
Searle (2004; 2002a/1992) não discorda que, para fins de estudo, poderíamos
observar o cérebro apenas como um computador (wetware), vendo somente como ele
trabalha no nível funcional. Aliás, o filósofo também não discorda que podemos ver o
cérebro apenas em seu nível hardware. Contudo, a questão fundamental é saber como
esses diferentes níveis trabalham em conjunto. O erro, segundo Searle (2002a/1992),
seria aceitar essa redução metodológica como a única realidade do mental, sendo todo o
resto um mito, fantasia ou engano da inteligência.
Uma quarta e última etapa do programa de pesquisa seria estudar o nível mental.
Essa etapa apenas confirmaria nossas hipóteses de nível mais baixo, ou seja, veríamos
quais regiões cerebrais (hardware), desempenhando tais e tais funções, gerariam tais e
tais experiências mentais conscientes e assim por diante (SEARLE, 2004). Nessa última
etapa, Searle acredita que devemos conciliar todos os níveis do sistema cerebral, vendo
como eles funcionam em seu conjunto e como é possível esse sistema causar algo que
chamamos de estado mental consciente.
Em suma, para Searle o cérebro é um órgão com outro qualquer, e como tal
deve ser estudado objetivamente, sem nenhum tipo de intencionalidade (característica
de primeira pessoa). A analogia com a intencionalidade funciona apenas para facilitar
nossa compreensão do fenômeno, mas apenas quando já temos o conhecimento objetivo
de como ele funciona. Usar a metáfora intencionalista quando não temos conhecimento
efetivo de uma grande parte do funcionamento cerebral seria apenas uma infrutífera
caminhada (SEARLE, 2006/1992). Neste caso, o nível intencional deve ser usado
apenas quando lhe é devido, ou seja, no nível mental.
INTENCIONALIDADE
81
3.1. Apresentação
Um dos problemas da filosofia da mente, como vimos de uma forma geral até
aqui, é explicar como matéria e campos de força em interação, tais como neurônios e
sinapses (que, tomados de maneira isolada, são manifestamente desprovidos de
consciência) podem ser a sede consciente de nossa vida mental. Já o problema da
intencionalidade, como diz Searle (2004), é explicar como essa mesma matéria pode se
referir a algo no mundo que não a elas mesmas. Colocado o problema desta forma, fica
clara a relação que a intencionalidade tem com a filosofia da mente. O problema da
intencionalidade é responder por que a consciência se volta para os eventos e estados de
coisas no mundo.
Com efeito, igualmente como fez com os atos de fala, Searle (2002a/1983) diz
que seguiu suas próprias investigações ao estudar a intencionalidade. O filosofo está
ciente de que a intencionalidade tem uma longa história e tradição dentro da filosofia, o
que não acontece com os atos de fala. Mesmo assim, ele diz ignorar a tradição e não se
preocupou em estar indo a favor ou contra qualquer escola filosófica.
No entanto, o filósofo diz que sua visão se diferencia dessa tradição no sentido
de que nem todos os estados mentais são intencionais. Para um estado ser intencional
ele deve ser acerca de alguma coisa. Quando se tem uma crença ou um desejo,
esperamos que a crença ou o desejo tenham um objeto específico. Já a exaustão,
algumas formas de depressão ou ansiedade, por exemplo, podem ocorrer sem que haja
um objeto específico que produza tais estados mentais, sendo esses, portanto, estados
não-intencionais. Ou seja, nesses exemplos de estados mentais não-intencionais, por
mais que tenhamos o estado psicológico (tristeza, ansiedade etc.), não parece haver um
conteúdo reconhecível para o qual o estado mental aponta. O indivíduo pode estar
simplesmente triste ou ansioso, sem saber porque exatamente está tendo esse estado
psicológico.
________________
30. Como está na epígrafe deste capítulo, tal definição se aproxima muito da oferecida por Brentano, que
por sua vez foi buscá-la na filosofia escolástica.
83
Em primeiro lugar, devemos dizer que todo e qualquer estado intencional tem
um conteúdo proposicional, que se expressa num modo psicológico. Searle (2004)
aborda essa questão dizendo que o conteúdo proposicional é, no fim das contas, o
conteúdo da intencionalidade. Por conteúdo estamos apenas querendo dizer o a respeito
do que a intencionalidade fala, ou seja, é a direção do ato intencional. Já o modo
psicológico, que é como o conteúdo proposicional se expressa, apresenta-se na forma de
crenças, desejos, intenções, temores etc. Por exemplo, podemos crer que vai chover,
desejar que chova, temer que vai chover etc. O conteúdo proposicional, neste caso
"chuva", pode se expressar em diferentes modos psicológicos.
________________
31. Não abordaremos a intencionalidade na filosofia de Franz Brentano. Cf. [BRENTANO, F.
Psychology from an Empirical Standpoint. Editora: Routledge, London, 1973]
32. Searle (2002) mostra longamente que o modo de funcionamento da intencionalidade (que
abordaremos a seguir) é bem parecido com o dos atos de fala. Contudo, não trataremos dessa questão da
relação entre atos de fala e intencionalidade por não ser do interesse da presente dissertação. Cf.
(SEARLE, 2002, p. 6-18 e p. 251-274).
84
Além disso, Searle (2002a/1983, 2004) utiliza mais três termos técnicos,
pegando-os também de empréstimo de sua teoria dos atos de fala, que são muito úteis
para explicar o funcionamento da intencionalidade, quais sejam, condições de
satisfação, direção de ajuste e auto-referencialidade causal. Com condições de
satisfação, Searle (2004) quer apenas dizer que todo estado intencional tem algo que o
faz existir. Por exemplo, se eu acredito que o sol está brilhando, minha crença só será
verdadeira se realmente o sol estiver brilhando. Portanto a condição de satisfação do
estado intencional (que se expressa na crença "o sol está brilhando") é que o sol esteja
realmente brilhando. Se tal acontecimento não estiver ocorrendo, eu tenho uma crença
falsa e o estado intencional não se completa (ou se esvazia).
Com isso, podemos resumir a intencionalidade em Searle dizendo que todo ato
intencional tem um conteúdo proposicional, que se expressa num modo psicológico,
sendo que este, por sua vez, tem suas condições de satisfação e uma direção de ajuste.
Alguns estados intencionais, tais como memória e percepção, têm uma característica
85
Com isso, vemos haver uma sutileza quando Searle usa o termo representação,
fazendo com que ele, em certo sentido, diferencie-se da tradição filosófica. Quando
Searle, por exemplo, diz que uma crença é uma representação, não está querendo dizer
que a crença é uma espécie de imagem do mundo, ou que ela re-apresenta algo que já
foi apresentado, nem que uma crença tenha significado. Searle (2002a/1983) usa o
termo representação no sentido de que seja inteiramente esgotado por sua analogia com
86
os atos de fala. “O sentido de 'representar' em que uma crença representa suas condições
de satisfação é o mesmo sentido em que um enunciado representa suas condições de
satisfação.” (SEARLE, 2002a/1983, p. 16). Ou seja, dizer que uma crença constitui
uma representação é apenas dizer que ela tem um conteúdo proposicional e um modo
psicológico, e que esse conteúdo proposicional determina certas condições de satisfação
e que o conteúdo psicológico determina a direção de ajuste. Não há, na teoria searleana
da intencionalidade, nenhum sentido ontológico na palavra representação. “Trata-se
apenas de uma constelação de noções lógicas tomadas de empréstimo da teoria dos atos
de fala.” (idem, p. 16-17).
Com efeito, uma pergunta pode nos surgir, qual seja, como os objetos e estados
de coisas no mundo ganham significados? Será a partir de nossas representações, ou
seja, estados intencionais? Em parte, a segunda pergunta tem uma resposta afirmativa
no sentido de que nós, seres humanos, e outros animais, temos uma intencionalidade
intrínseca, biologicamente determinada, e nós nos relacionamos com o mundo através
dessa intencionalidade, ou seja, através dessas representações. Contudo, a primeira
pergunta que fizemos no início do parágrafo nos parece um pouco mais complicada.
Dessa forma, tal questão será analisada na última seção deste capítulo (seção 3.9).
Esse tipo de empreendimento filosófico feito por Searle é a chave para entender
seu conceito de intencionalidade. Levando a intencionalidade para ramos
biologicamente mais básicos (percepção e ação) e, ao mesmo tempo, intencionalizando
essas mesmas formas, Searle reforça o alicerce do seu assim chamado Naturalismo
Biológico, ao qual nossa consciência, com seus diversos estados intencionais, é produto
de milhares de anos de seleção natural, fazendo dos estados mentais (apreendidos em
seu sentido puramente intuitivo) algo tão biológico como a mitose e a digestão. Dessa
forma, nas duas próximas seções abordaremos essas duas formas mais básicas de
intencionalidade, começando com a percepção.
do mundo, o que fatalmente nos colocaria num tipo de dualismo substancial, num tipo
de explicação obscurum per obscurius.
O mais importante nessa hipótese é que a experiência visual não pode ser vista,
ou seja, percebida. Só podemos ter experiências visuais, experenciá-las tal como
qualquer outro estado intencional. Esse tipo de afirmação coloca Searle um pouco fora
da tradição da filosofia da percepção, pois alguns filósofos relutam em dizer que
existem, de fato, coisas como experiências visuais. Uma fonte de relutância é que,
admitindo a existência de tais experiências, estaríamos admitindo também os dados dos
sentidos ou qualquer outra coisa que faça a mediação entre nós e o mundo. Ou seja,
89
haveria três tipos de substância, a matéria exterior, a matéria pensante (res cogitans) e
uma espécie de mediador (algo como os espíritos animais de Descartes, que podem
transitar entre as duas substâncias). O receio desses filósofos, que não aceitam a
experiência perceptiva como algo real, válido, é justamente recairmos numa teoria
dualista da mente. No entanto, Searle (2002a/1983) nega esse tipo de afirmação acerca
da experiência perceptiva, dizendo que ela não é uma mediadora, mas sim apenas o
conteúdo intencional das coisas percebidas.
Mas poderia haver alguma diferença entre a intencionalidade de, por exemplo,
crenças e desejos, e a intencionalidade da percepção? Searle (2002a/1983) acredita que
sim e essa diferença reside nas representações de tais estados intencionais. Estados
intencionais tais como crenças e desejos podem ser assim chamados de representações
(tal como Searle emprega esse termo, exposto na seção 3.3 deste capítulo). Porém, as
experiências perceptivas requerem algo a mais que as representações. A experiência tem
uma espécie de direcionalidade, imediatismo e involuntariedade. Searle diz que isso
nos leva, imediatamente, à teoria representativa da percepção, porém ele propõe chamar
as experiência perceptivas de “apresentações”. “Direi que a experiência visual não se
limita a representar o estado de coisas percebido, mas, quando satisfeita, faculta-nos um
acesso direto a este e, nesse sentido, é uma apresentação de tal estado de coisas.”
(SEARLE, 2002a/1983, p. 65). Ou seja, nas crenças e desejos temos uma representação
do objeto e em nossas percepções em geral temos, além da representação, uma
apresentação do objeto percebido.
estamos olhando o objeto de perspectivas diferentes. Mas, para se ter essas experiências
singulares, devemos presumir que estamos diante de um e o mesmo objeto. Por
exemplo, se duas pessoas estão vendo um quadro de Van Gogh e cada uma diz vê-lo
sob certo aspecto (cada um tomando como base sua Rede e background), isso não refuta
o fato de que essas duas pessoas estão diante de um e mesmo quadro: o quadro de Van
Gogh.
Mas, mesmo com esse argumento, ainda podemos nos perguntar como essa
abordagem de Searle é capaz de responder a pergunta cética, qual seja, não haveria
nenhum ponto neutro sobre o qual veríamos o mundo real, ou só veríamos o mundo a
partir de nossas representações? Searle expõe a objeção cética nos seguintes termos:
O filósofo nos diz que essa argumentação tropeça no meio. Quando se diz que,
por exemplo, infiro da presença (e natureza da experiência) a existência de um carro,
isso é um erro, pois para Searle não se infere nada e, neste exemplo, nós simplesmente
vemos o carro. Ou seja, do fato da experiência visual ser causada pela percepção do
carro, não decorre que a experiência visual seja o ponto de comprovação do meu
conhecimento de que vejo o carro, nem que haja uma relação causal entre a experiência
93
visual e objeto material (exposta no esquema: exp. visual → obj. material). Dessa
forma, a experiência visual unicamente é parte do conteúdo causado pelo carro.
.
94
Dessa forma, não fica nem um pouco difícil ver qual seria a relação entre
intencionalidade e ação, e como a filosofia da ação poderia desembocar no problema do
livre-arbítrio. Ora, se as ações são intencionais, elas são livres ou determinadas? Se são
determinadas, seriam realmente ações e faria sentido dizer que elas têm uma carga de
intencionalidade? Como a discussão entre determinismo e livre-arbítrio transcende os
limites deste trabalho, não vamos abordar essa questão em profundidade34. Contudo,
sendo coerente com a filosofia searleana, tomamos como princípio que, de alguma
forma, o ser humano desfruta de algum tipo de liberdade e que ela se expressa nos atos
intencionais. Com isso, uma ação, para ser genuína, deve conter um elemento
intencional.
Além disso, em relação a última pergunta, ou seja, qual a relação entre intenção
e ação?, vemos que ela pode gerar muitas dificuldades. A primeira delas é que uma
intenção (enquanto estado intencional) tem sempre como condição de satisfação um ato
ou uma ação, enquanto outros estados intencionais, como crenças e desejos, não
necessitam dessa relação especial. Outra questão que nos parece pertinente é que não
pode haver ação sem intenção, enquanto que nas crenças e desejos pode ocorrer esse
movimento negativo, ou seja, haver objetos não desejados e coisas das quais não se crê
(SEARLE, 2002/1983). Então, por que ocorre essa disparidade entre ações e os outros
________________
34. Cf. Searle (2004, p. 151-164; 1997, p. 105-121) para observar o que o filósofo entende por livre-
arbítrio e qual sua relação com o problema mente-corpo.
95
acidentalmente no vaso que está na minha sala e o quebro, eu não tinha a intenção
prévia de fazer isso, mas sim tinha uma intenção em ação de fazer uma outra coisa
diversa (sair da sala, ir à outra parte da sala etc).
Não obstante, muitas ações que não são prévias, também podem não ser
acidentais e nem, por assim dizer, plenamente conscientes. São ações automáticas e, por
mais estranho que possa parecer, também intencionais35. Por exemplo, trocar de marcha
enquanto está se dirigindo um automóvel não costuma ter uma intenção prévia, pois
nesse caso não costumamos pensar em algo do tipo "agora irei apertar o pedal da
embreagem, trocar da segunda para a terceira marcha e ir soltando o pedal da
embreagem lentamente enquanto vou apertando o acelerador"36.
Aqui podemos retornar àquela distinção que fizemos logo no começo desta
seção, qual seja, entre os meros movimentos corporais e as ações genuínas (ações que
desfrutavam de intencionalidade). Em que sentido um ataque epiléptico é não
intencional e uma ação automática, como trocar de marcha num automóvel, o é? A
diferença é que, para Searle (2002a/1983), para automatizarmos uma ação, tivemos que
passar por um treino, ou por constantes repetições, e essas ações repetidas eram antes
ações intencionais com intencionalidade prévia. A constante repetição criou um hábito e
este hábito é o que faz a ação ser automática, parecendo ser "não pensada" ou não-
intencional.
Feita essa separação conceitual entre ações prévias e intenção em ação, julgamos
estar aptos para dizer o que vem a ser, segundo Searle, uma ação, e como relacionar
intenção prévia e intenção em ação. Basicamente a diferença entre a ação prévia e a
intenção em ação é que na primeira a ação completa é a condição de satisfação do ato
intencional, já na segunda apenas o movimento corporal é requerido como condição de
satisfação (SEARLE, 2002a/1983). No entanto, as ações completas, para serem
satisfeitas, devem ocorrer um ou mais movimentos corporais. Portanto, pela
transitividade, temos que a intenção prévia causa intenção na ação, causando, por sua
________________
35. A distinção entre intenção na ação e ação automática pode gerar certa confusão e isso nos parece
natural. Dizer que uma ação é meramente automática pode soar como totalmente determinado ou não-
intencional. No entanto, não é esse o sentido que estamos empregando ao termo automático. Há em
muitas intenções em ação (sendo elas não prévias) uma relação estreita com ações automáticas. Mas o
próprio Searle (2002) diz que tem dificuldade em estabelecer a diferença clara entre as duas, intenções em
ação (sem ação prévia) e ações automáticas. Então quando dizemos que uma ação é não prévia, não
estamos querendo dizer que ela seja mero movimento corporal, mas que, em certo sentido, é um
comportamento automático do organismo (muito provavelmente não meramente automático, mas, como
dissemos, é difícil distinguir claramente entre intenção em ação sem intenção prévia e ação automática).
36. Obviamente que estamos dando exemplos de pessoas experientes e que tenham tais ações já
automatizadas.
97
vez, movimento corporal. Ou seja, intenção prévia causa movimento corporal. Mas
como Searle (2002a/1983) diz que a ação pode ser definida como a conjunção da
intenção na ação e movimento corporal, logo intenção prévia causa a ação. Essa
descrição pode ser melhor visualizada no esquema abaixo.
Ação
Figura 2. Esquema da relação entre intenção prévia, intenção em ação e movimento corporal (SEARLE,
2002a, p. 131).
Com efeito, podemos protestar e dizer que esse esquema só funciona para ações
simples. Há muitas ações no dia-a-dia que são muito complexas e variadas. Ou seja,
como a teoria apresentada por Searle explica as ações complexas, como, por exemplo, o
assassinato da velha agiota cometido por Raskólnikov37.
________________
37. Exemplo retirado do romance "Crime e Castigo" de Fiódor Dostoievski. Raskólnikov, um sujeito de
muito talento, mas pobre e sem muitos meios de ação, planeja matar uma velha agiota. Ele argumenta
para si mesmo que, usando o dinheiro de uma mulher desprezível, que não faria bem algum para a
sociedade, ele poderia construir grandes obras; mostrar sua genialidade ao mundo. Antes de matar, de
fato, a velha, Raskólnikov procura uma arma (no caso, um pequeno machado), caminha por toda a cidade
até a casa da velha, conversa com ela, espera até o momento propício e, enfim, executa o ato planejado
com muita antecedência.
98
era um sujeito de muitos talentos, o desejo que ele sentia de melhorar sua condição
social, a crença de que aqueles que nasceram para ser Napoleão tem um direito moral de
sobrepujar outros seres humanos (até mesmo matá-los) etc. Todos esses estados
intencionais (somados a muitos outros) culminaram em sua ação que tinha por objetivo
a crença de que, pegando o dinheiro da agiota, Raskólnikov iria melhorar sua condição
social e mostrar seus talentos a todos. Em outras palavras, nosso exemplo mostra que,
para além de uma série de movimentos corporais, há nas ações complexas uma gama de
outros estados intencionais, que se relacionam entre si e acabam desembocando outros
estados intencionais.
Por esse motivo Searle (2002a/1983) diz que deve haver um limite entre uma
ação complexa. Pois, se não fosse assim, para qualquer ação teríamos que retornar ao
início dos tempos para determiná-la, quiçá teríamos que retroceder ad infinitum para
mostrar suas determinações. Esse limite é chamado de efeito sanfona, que seria
simplesmente a capacidade de ampliar as autenticas descrições das ações (a, b, c, d...),
podendo-se fazer uma listagem. Tem esse nome porque a lista de ações não pode se
ampliar indefinidamente, tal e qual uma sanfona. Ou seja, deve-se ter um limite coerente
que abarque as intenções complexas e suas relações causais. Por exemplo as ações que
determinaram que Raskólnikov assassinasse a velha agiota devem se limitar a apenas
algumas, de modo que possamos determinar um começo e um fim da ação complexa.
Dessa forma, com a noção de efeito sanfona, as ações que estariam fora da
sanfona (muito acima, muito abaixo ou ao lado) não fariam parte das ações do
organismo. Essa é uma delimitação importante, pois, apesar das ações complexas dos
vários indivíduos humanos estarem interconectadas, devemos fazer uma limitação
razoável para cada ação específica. Se não for assim, ficaríamos numa espécie de
continuum, onde as ações não têm um começo determinado nem um fim.
Nesse ínterim, visto que explicamos o que vem a ser uma ação complexa
usando, para isso, a analogia com uma sanfona, devemos explicar o que então vem a ser
uma ação básica para Searle. Seria uma mera intenção em ação, uma ação automática?
Searle (2002a/1983, p. 139) diz que ações básicas seriam aquelas que estão no topo (ou
início) da sanfona e podem ser definida da seguinte forma: "A é um tipo de ação básica
para um agente S se, e somente se, S for capaz de realizar atos do tipo A e S puder
pretender a execução de um ato do tipo A sem pretender a execução de nenhuma outra
99
ação por meio da qual pretenda fazer A". Em outras palavras, a ação básica seria aquela
que desencadeia a ação complexa. Ela pode ser também uma ação automática (como
trocar de marcha), mas ela é definida por Searle como o início da sanfona, ou o topo
(pois o topo pode ser o início de uma nova ação complexa). Dessa forma percebemos
que há uma íntima relação entre ações básicas, automáticas e intenção em ação.
No entanto, como fica claro perceber, mesmo nesse caso havia a intenção em
ação. Ou seja, para que aja uma ação não intencional deve-se ter alguma intenção em
ação. Assim, chegamos a conclusão de que, para Searle (2002a/1983) toda ação, seja
intencional ou não, tem intenção em ação. No entanto, e quanto a casos patológicos
como epilepsia? Seriam não intencionais, então? A resposta, seguindo a filosofia
searlena, é não, justamente porque o filósofo não consideraria a epilepsia como uma
ação (definida por ele como a conjunção entre intenção em ação e movimento corporal).
Para ser uma ação, faltaria a epilepsia um componente básico, qual seja, a intenção em
ação. Então não haveria como classificá-la como ação intencional ou não intencional,
porque simplesmente a classificaríamos como não ações.
Com isso, acreditamos que apresentamos, de maneira geral, a relação que Searle
acredita existir entre percepções e ações, e porque o filósofo as considera como estados
intencionais biologicamente mais básicos. Contudo, mesmo explorando a
intencionalidade na ação e na percepção, ela só faria sentido se realmente tivesse algum
efeito causal sobre o mundo. Por serem estados intencionais, i.e. mentais, devemos nos
perguntar em que sentido tais estados são causalmente eficientes no mundo em geral. E
como acredito que tenha ficado claro no capítulo anterior, Searle (2002a/1983)
argumenta que sim, que nossos estados mentais, perpassando pela intencionalidade da
percepção e ação, são causalmente eficientes. Até mesmo na discussão que viemos
100
fazendo até aqui sobre as noções básicas de intencionalidade, elas só fazem sentido se
tiverem uma direção de causação, ou seja, se os objetos do mundo causarem uma
percepção ou minhas ações causarem uma mudança no mundo. Então julgamos
necessário, nesse momento, abordar o que Searle entende por causação ou, mais
especificamente, aquilo que ele chama de causação intencional.
________________
38. Basicamente Searle ataca a visão humeana de causalidade e seus continuadores. É a isso que ele
chama de visão tradicional da causalidade, a qual nos reportamos no capítulo 2, seção 2.5.
101
comum aceita pela tradição é que o nexo causal em si não é observável. É possível
observar apenas regularidades causais, tipos de sequências regulares em que eventos de
um certo tipo são seguidos de eventos de outro tipo. Posso ver eventos que estão
causalmente relacionados (a → b), mas não percebo relação alguma além da
regularidade.
seguida essa noção de modo a abranger coisas que não ações humanas
e como poderíamos conceber a causação como uma relação real no
mundo, independentemente de nossas ações. (SEARLE, 2002a, p.
160).
Dessa maneira, o filósofo nos apresenta três pontos sob os quais a sua teoria
intencionalista da causalidade se diferencia da teoria tradicional. Em primeiro lugar, é
que se conhece a pergunta causal e os contrafactuais correspondentes sem nenhuma
observação adicional além da experiência do evento. Isso nos leva ao segundo ponto,
que diferencia a teoria de Searle, pois esta não se compromete com nenhuma lei causal
pertinente. O filósofo nega que haja uma correlação causal universal entre eventos
causais. Por exemplo, o meu conhecimento do que me levou a erguer o braço pode ser
restringido a tinha o desejo de erguê-lo. Não há necessidade de saber das leis que levam
uma pessoa a erguer o braço. Apenas um conhecimento que essas leis existem será
suficiente. O fato de nós experenciarmos o ato (que é dividido em causa e efeito, mas
vemos como um único ato) já mostra que não precisamos saber das leis internas que
regulam a ocorrência daquela ação. Se desejo erguer meu braço, espero que o desejo,
por si, faça com que eu o erga, mesmo eu não sabendo nada sobre fisiologia do
movimento. Por fim, descritos de maneira intencional, a relação de causa e efeito tem
103
Além disso, em terceiro lugar, há uma relação lógica de certo tipo (muito mais
tênue que a relação de vinculação entre enunciados) entre causa e efeito nos casos de
causação intencional, porque, por exemplo, no caso da intenção prévia e da intenção em
ação, a causa contêm uma representação ou apresentação do efeito em suas condições
de satisfação. Em todo caso de causação intencional, onde o conteúdo intencional é
satisfeito, há uma relação interna entre causa e efeito sob aspectos causalmente
relevantes. E, repetindo, Searle (2002a/1983) não está afirmando simplesmente que a
descrição da causa está internamente relacionada à descrição do efeito, mas sim que as
próprias causas e efeitos estão internamente relacionados dessa maneira, uma vez que
um é representação ou apresentação do outro.
Como vimos, Searle não nega que haja regularidades, mas a questão é que não
há dois tipos de causação, a de regularidade e a intencional, mas sim apenas um tipo,
qual seja, a causação eficiente. A causação é uma questão de coisas determinando
outras. Contudo, em uma subclasse especial da causação eficiente, as relações causais
envolvem estados intencionais. Tais casos de causação intencional são especiais em
diversos aspectos: podemos estar diretamente conscientes do nexo causal em alguns
casos, há uma relação lógica de causa e efeito, e tais casos são a forma primitiva da
causação no que diz respeito às nossas experiências. E o conceito de causação eficiente
só tem aplicabilidade em um universo no qual se supõe um alto grau de regularidade.
Em outras palavras, Searle acredita haver uma noção de causação que abarca
tanto a intencionalidade como as regularidades. Contudo, para Searle (2002a/1983,
2004), não seria possível nenhum tipo de causalidade humana (i.e. causalidade
intencional) se a causalidade não existisse independentemente dos seres humanos, ou
seja, sem que ela existisse como uma fenômeno natural. Isso requer um alto grau de
regularidade. A causalidade só ganha esse aspecto especial em seres conscientes, ou
seja, intencionais.
Como vimos até aqui, todo estado intencional com uma direção de ajuste tem
condições de satisfação. No entanto, podemos observar que nenhum estado intencional
é causa sui, ou seja, por mais que possamos estudá-lo isoladamente (para fins didáticos)
todo estado intencional está envolvido numa rede holística complexa de outros estados
intencionais e não pode se desvincular de tal rede. Então todos os estados intencionais,
tais como crenças, percepções, desejos, temores e intenções estão dentro de uma Rede
intencional.
________________
39. Neste caso, significa apenas coisas sobre as quais nunca, ou quase nunca, pensamos. Por exemplo, a
solidez dos corpos. Nós simplesmente contamos com isso e normalmente não pensamos conscientemente,
ao pegarmos um objeto, sobre sua solidez.
106
Contudo, como podemos perceber, torna-se muito difícil traçar todos os fios da
Rede que a ligam a uma crença específica. Teríamos um trabalho quase infinito
descrevendo todas as crenças, desejos e intenções que determinam uma crença qualquer.
Pior ainda, boa parte da Rede está submersa no inconsciente39. Com isso, o trabalho se
torna demasiado complicado, sendo possível observar apenas uma cadeia causal muito
limitada que descreveria, em nosso exemplo, uma crença política específica.
Nesse sentido, o background seria o conhecimento básico sem o qual nós não
poderíamos agir ou ter sensações no mundo, pois, para se ter qualquer estado
intencional, é preciso saber como as coisas são e é preciso saber como fazer as coisas.
Por exemplo, a capacidade a abrir portas (ação intencional) requer um conjunto de
conhecimentos prévios (tanto saber fazer, como saber o que é) sem os quais minha ação
seria completamente fracassada. Devo saber o que vem a ser uma porta, para que ela
serve, como manuseá-la etc. Claro, podemos dizer que o conhecimento sobre portas
envolve apresentações e representações do objeto, sendo este mais um conhecimento
intencional. No entanto, a capacidade de reconhecer uma porta e abri-la não é, em si
107
mesma, outra representação. É nesse sentido que o background é uma capacidade não-
representacional. Eu posso, após ter o conhecimento sobre a porta, representá-la, agir
intencionalmente sobre ela e percebê-la intencionalmente, mas devo, antes de poder agir
sobre ela, ter um conhecimento não-representacional, não-intencional, enfim, ter um
background.
Podemos pensar, com esse exemplo acima, que portas é um produto cultural e,
portanto, segundo o que viemos discutindo anteriormente, como cultura é feita por seres
humanos, conscientes e com estados intencionais, muito provavelmente boa parte
desses produtos culturais (tais como portas, cervejas e carros) fazem parte da
intencionalidade humana. Então como pode fazer sentido essa definição de background
que Searle nos oferece? Como o background pode ser um estado não-representacional
se ele se confunde com a cultura? Ora, não seria a cultura também um produto
intencional? Antes de discutir esse importante ponto, o filósofo faz uma distinção
interessante entre dois tipos de background, quais sejam, básico e local. Para Searle
(2002a/1987) o background básico são as capacidades biológicas fundamentais comuns
a todos os seres humanos, tais como andar, agarrar, perceber etc., e atitudes pré-
intencionais que reconhece a solidez dos corpos e a existência de um mundo
independentemente do indivíduo. Portanto, o background básico são as capacidades
dadas geneticamente a toda a raça humana. Já o background local são práticas culturais
de uma dada cultura em especial, por exemplo, a habilidade de reconhecer carros e
bolas de futebol, abrir portas, beber cerveja etc.
Contudo, ainda podemos retornar a nossa questão anterior e nos perguntar sobre
a validade do estatuto não-representacional do background. Se tal noção é uma pré-
condição de representação, linguística ou de outras formas, por que não pode o
background também ser composto de estados intencionais, como as crenças
inconscientes? Não poderia o background ser idêntico a um conjunto de crenças
inconscientes? Searle (2002a/1983) responde a essa questão dizendo que, caso tomemos
o background como um conjunto de crenças inconscientes, ele deve estar sustentado em
algo mais básico (um pré-background) e que, por sua vez, requererá algo mais básico, e
assim por diante. Ou seja, caso quiséssemos continuar com essa ideia, recairíamos numa
109
redução ao infinito e, para nós, seres humanos, esse tipo de procedimento é impossível,
pois como seres finitos e limitados, uma redução ao infinito é incognoscível.
Contudo, o filósofo ressalta que com esse caminho que fizemos, composto por
esses três aspectos (compreensão do significado literal, compreensão das metáforas e
habilidade físicas), ainda não demonstramos, formalmente, a hipótese do background.
110
Mas Searle (2002a/1983) diz que podemos fazer uma síntese do que foi exposto até
aqui, dizendo que temos efetivamente estados intencionais, conscientes e inconscientes,
e tais estados formam uma Rede complexa. Já a Rede baseia-se num background de
capacidades (habilidades, aptidões, suposições e pré-suposições não-intencionais, e
atitudes não-representacionais). Não é correto dizer que o background está na periferia
da intencionalidade, mas sim que ele permeia toda a Rede de estados intencionais, e que
sem esse pressuposto básico (ou seja, sem background) não há intencionalidade.
Como acredito que ficou claro, a noção de background nos cria muitas
dificuldades, até mesmo para expressá-la linguisticamente sem, com isso, recair numa
noção intencionalista. Searle (2002a/1983) diz que essa dificuldade aparece apenas
porque não encontramos palavras na linguagem natural que nos forneça uma
terminologia neutra para descrever o background, sem que com isso recaíamos num tipo
de representacionismo. As expressões favoritas de Searle são capacidades e práticas,
mas, mesmo assim, o filósofo diz que essas palavras não são de todo adequadas. "O
fato de não termos nenhum vocabulário natural para discutir os fenômenos em questão e
o fato de tendermos a cair em um vocabulário intencionalista deveria chamar nossa
atenção. Por que isso ocorre?" (SEARLE, 2002a/1983, p. 217).
Isso ocorre porque, segundo Searle, a língua natural não é capaz de falar de si
mesma e, igualmente, a mente não está bem aparelhada para refletir sobre si mesma.
"Como pré-condição da Intencionalidade, o background é tão invisível para a
Intencionalidade quanto o olho que vê é invisível para si mesmo." (SEARLE,
2002a/1983, p. 218). Ou seja, o único vocabulário que dispomos é o intencional de
primeira ordem, então é muito difícil, quiçá impossível, sair dele para falarmos de algo
pré-intencional. O preço que pagaremos por ir deliberadamente contra a linguagem
natural é a metáfora e o neologismo sem rodeios, não podendo sair desse tipo de
linguagem que, no fim das contas, pode dificultar muito nosso trabalho, visto que é
preferível sempre uma linguagem clara e distinta, que descreva os fenômenos da
maneira mais isenta possível, do que as misteriosas variações da linguagem metafórica.
112
Para começarmos a responder a essa questão, e se estamos seguindo por uma via
naturalística, de início devemos dizer que a linguagem e o significado, na ordem
evolutiva, surgiram posteriormente à intencionalidade. Com essa conclusão em mãos,
Searle (2002a/1983) diz que o significado seria uma forma de intencionalidade mais
primitiva, mas ele, por si, não deve ser intrinsecamente linguístico.
Então a pergunta que fizemos no começo desta seção, qual seja, como passamos
da física (sons que produzimos) para a semântica?, é respondida através da teoria da
intencionalidade. Os objetos ganham significado porque os seres humanos tem a
intenção de que a produção de sinais e sons seja a realização de um ato de fala42. Não
obstante, entendemos que essa não seja efetivamente uma resposta, mas apenas a
reordenação do problema do significado em termos intencionais (no caso, atos de fala).
A explicação desse processo, contudo, conferiria uma resposta mais adequada.
Ou seja, o que Searle está dizendo é que o ato de emissão é realizado com a
intenção de que a própria emissão tenha condições de satisfação. Ou seja, o próprio
significado seria um ato intencional no sentido de que suas condições de satisfação
seriam as mesma do ato de fala que as produziu. “Na verdade, o que torna uma ação
significativa, no sentido linguístico de uma ação significativa, é ter essas condições de
satisfação intencionalmente impostas.” (SEARLE, 2002a, p. 233, grifos nosso).
Com mais essa distinção, Searle (2002a/1983) diz que o elemento chave para a
compreensão das intenções de significação é que a maioria dos atos de fala são
intenções de representar. E por intenção de representação o filósofo está querendo dizer
é sobre uma intenção de que os eventos físicos que constituem parte das condições de
satisfação (no sentido de coisa requerida) da intenção tenham condições de satisfação
(no sentido de requisito). Por exemplo, num contexto de sala de aula, quando o aluno
levanto o braço, tal ato tem um significado, qual seja, ele está pedindo permissão para
falar. Levantar o braço, enquanto significado, tem suas condições de satisfação (que a
comunidade entenda o significado desse erguer de braço e permita que o sujeito fale).
Contudo, o próprio "erguer-se" do braço tem suas condições de satisfação em si, como a
necessidade do ato intencional de querer levantar o braço realmente se cumprir.
(levantar o braço) para a intenção de comunicar ("por favor, deixe-me falar")? Searle
diz que se sua abordagem estiver no caminho certo, essa passagem é muito simples: “A
intenção de comunicação consiste simplesmente na intenção de que o ouvinte reconheça
que o ato foi realizado com a intenção de representação.” (SEARLE, 2002a/1983, p.
234). Ou seja, a intenção de comunicação, representada no significado de levantar o
braço, é a intenção de que essa intenção de representação seja reconhecida pela
comunidade. Ou seja, a comunicação se estabelece no reconhecimento mútuo de certos
significados.
Com isso, acreditamos ter apresentado a relação que Searle estabelece entre
intencionalidade e significado. Tal relação se dá porque quando significamos algo (seja
querendo comunicar, seja apenas querendo representar) temos a intenção de significar, e
as condições de satisfação do significado (expresso nos atos de fala) são as mesmas da
intenção do ato. Em última instância, um significado é um ato de fala, porque
representam objetos e estados de coisas no mundo. Os atos de fala são intencionais
porque quando o realizamos queremos, intencionalmente, realizá-los. Então, pela
transitividade, quando significamos algo, há uma carga intencional forte no significado,
porque queremos agir, intencionalmente, nessa direção.
Acreditamos que seja inconcebível qualquer teoria da mente que se preze ignorar
por completo a questão da intencionalidade. Direta ou indiretamente, os filósofos da
mente tocam nessa questão, mesmo que seja para dizer que ela não faz sentido e que, no
fim, não existe intencionalidade. Mas para negar a intencionalidade, o suposto filósofo
deverá entrar no denso debate e derrubar uma série de argumentos a favor dela. Em
primeiro lugar, derrubar o argumento mais básico (e talvez um dos mais poderosos) que
vem da experiência comum de todos os seres humanos, qual seja, por que temos essa
impressão de que nossos estados conscientes voltam-se para coisas que não são eles
mesmos. Quando penso em árvores, império ou na mulher que estou apaixonado, meus
estados mentais (ou cerebrais, como queiram) se voltam para objetos e estados de coisas
no mundo. As sinapses e neurônios, ao produzirem a consciência (para seguirmos a
linha naturalista de Searle) não se voltam para sinapses e neurônios, mas sim para coisas
que não são eles mesmos. Essa é uma característica fantástica da consciência, sendo
uma característica, aparentemente, somente da consciência.
4.1. Apresentação
Esse tipo de visão, que tenta colocar no mesmo mundo a mente (entendida de
maneira intuitiva) e o corpo, faz com que Searle trilhe por uma estrada intermediária.
Mas esse é justamente um dos problemas centrais do naturalismo biológico do filósofo.
Seria possível permanecermos mentalistas (no sentido de aceitarmos as asserções da
Psicologia Popular) mesmo com os avanços das ciências cognitivas e neurociências?
Não seria prudente redefinirmos o mental em termos que se adéquam melhor com o
naturalismo contemporâneo? Ademais, se Searle se diz naturalista, em que sentido pode
122
Essas serão as questões chaves que irão nortear este capítulo. Apresentaremos
algumas críticas ao pensamento de Searle, mas nos concentraremos numa perspectiva
temática, ou seja, abordaremos temas centrais da teoria searleana da mente e seguiremos
com as principais críticas feitas por alguns autores. Com efeito, os quatro temas centras
que servem de base para o naturalismo biológico serão privilegiados neste capítulo:
relação mente-corpo, irredutibilidade ontológica do mental (e intencional), a
investigação científica da subjetividade e o problema da causação mental. Acreditamos
que com isso visitaremos não apenas os principais opositores à Searle, mas também
teremos a oportunidade de fazer uma interessante discussão acerca de temas tão
importantes para a filosofia da mente. Ao final de cada seção, apresentaremos a tréplica
de Searle, quando for o caso de existir algum escrito do próprio filósofo em resposta às
críticas.
Com este capítulo não temos o intuito de fazer uma apresentação exaustiva dos
críticos de Searle. Traremos as críticas principais ao pensamento do filósofo, julgando
abranger um domínio suficiente para entendermos os problemas que existem no
naturalismo biológico searleano.
________________
42. Hoje um dos autores mais importantes em filosofia da mente que defende o dualismo é David
Chalmers. Contudo, segundo Searle (2004), John Eccles e Karl Popper, na primeira metade do século
XX, também defendiam uma espécie de dualismo à Descartes.
123
Com este artigo, Searle esperaria por um ponto final nessa questão do dualismo
de propriedades, mostrando que sua abordagem não tem nenhuma relação com o
124
mesmo. Ademais, tal artigo permaneceu sem resposta por quase de dois anos. Porém,
em 2004, Edward Feser apresentou um trabalho na American Philosophical Association
Meeting, onde tinha por objetivo justamente contestar o artigo supracitado de Searle.
Para Feser (2004), Searle é um dualista de propriedades, por mais que faça um grande
esforço para negar esse fato.
Feser (2004) diz que Searle está absolutamente correto quando diz que a
diferença entre sua abordagem e o dualismo de propriedades consiste em que, para a
primeira, a consciência é tão física como qualquer outro evento da natureza e, para a
segunda, ela é um evento que está acima e além do mundo físico, mesmo que
dependendo do físico para existir. Porém, malgrado essa diferença lateral, Feser diz que
ambas as abordagens comungam de preceitos fundamentais, mesmo que Searle tente
disfarçá-los num outro tipo de linguagem.
O primeiro e mais claro pressuposto que garante a aproximação entre essas duas
abordagens é a questão da irredutibilidade ontológica do mental. Tanto os dualistas,
quanto Searle (outro dualista, para Feser), acreditam que o mental é irredutível ao físico
(ou cerebral). Até mesmo o modo como Searle coloca a questão do mental, dizendo que
ela é causada pelo sistema cerebral, aproxima-se do modo como um dualista de
propriedades enxerga esse processo. Então Feser (2004) não acredita que haja diferença
substancial em como Searle e os dualistas de propriedades concebem os estados e
processos mentais.
Dizer que vivemos num único mundo, como diz Searle, não ajuda em nada,
porque o dualista de propriedades também diz isso. Os dualistas apenas reivindicam que
há dois tipos fundamentalmente diferentes de propriedades no mundo. Também não
adianta insistir, como o faz Searle (2002b), que na realidade também existe taxas de
juros, pontos em jogos de futebol etc., ou seja, muitas propriedade no mundo, porque,
segundo Feser (2004), no fim das contas Searle irá reduzir tudo as duas categorias
ontológicas fundamentais, ou seja, subjetivo e objetivo. E este é o segundo preceito
125
Dessa forma, por esses dois motivos, quais sejam, a irredutibilidade ontológica
do mental e a divisão do mundo em duas entidades metafisicamente fundamentais
(subjetivo e objetivo) é que fazem Searle e seu naturalismo biológico se aproximarem
do dualismo de propriedades. Feser (2004) ainda diz que a "solução" que Searle oferece
ao problema mente-corpo é, na verdade, uma redefinição do problema de tal modo que
o coração filosófico dele (a dificuldade de encaixar o que é irredutivelmente subjetivo
no mundo físico objetivo) é arbitrariamente re-classificada como um problema a ser
resolvido pela biologia. Feser diz "arbitrariamente", porque não há nenhuma razão para
acreditar que os métodos da biologia são mais propensos a lidar com a divisão
objetivo/subjetivo do que os métodos da filosofia. Com efeito, dada a natureza
inerentemente conceitual do problema, as ciências naturais são certamente menos
capazes de fazer isso. Em qualquer caso, o problema continua, e continua a ser tão
difícil como sempre foi, não sendo um mero jogo de palavras, como segundo Feser
(2004) o faz Searle, suficiente para solucionar esse intrincado problema.
Não obstante, poderíamos contrapor essa crítica de Feser, dizendo que a
proposta de Searle está sendo encarada com a antiga linguagem cartesiana. Se
continuamos com essa linguagem, a consequência lógica é classificá-lo num tipo de
dualismo (SEARLE, 2006). Porém, Prata (2009) discordaria de nossa visão. Para ele
esse problema que surge na filosofia da mente de John Searle não é apenas um questão
126
mentais. Contudo, os processos mentais não poderão ser expressos nos mesmos termos
dos processos cerebrais, como já viemos salientando ao longo deste trabalho. Com isso,
Prata (2009) vai na mesma direção de Feser (2004), dizendo que o naturalismo
biológico de Searle é uma espécie de dualismo, que separa o mundo em dois tipos de
propriedades, a saber, subjetivas e objetivas. Mesmo Searle salientando que sua
abordagem considera o mental tão físico quanto qualquer outro evento biológico, ainda
assim teríamos uma espécie de dualismo, um dualismo dentro do físico44, onde
haveriam propriedades subjetivas e objetivas.
A dificuldade que observamos, nas críticas desses dois autores, é em se sair da
linguagem cartesiana. Até mesmo Searle, ao que nos parece, acaba caindo no mesmo
tipo de linguagem que tanto criticou. O fato é que, apesar de poucos filósofos da mente
concordarem com o dualismo cartesiano, parece difícil abordar o problema sem cair
numa espécie de distinção entre mente e cérebro, subjetivo e objetivo, matéria e
consciência. Tudo isso por conta da característica singular que a mente humana parece
ter em relação aos outros eventos naturais. Muito provavelmente, a solução desse
problema encontra-se na superação da linguagem que o criou.
________________
44. Em nota, Prata (2009) diz que esse termo foi cunhado por Andreas Kemmerling, professor da
Universidade de Heidelberg.
128
totalmente descartada.
Pelo que expomos ao longo deste trabalho, podemos perceber que o naturalismo
biológico é coerente com a psicologia popular. Ao postular que estados e processos
mentais, ontologicamente irredutíveis, são causalemnte eficientes, a abordagem de
Searle se aproxima consideravelmente da folk psychology. Contudo, a diferença é que o
filósofo acredita que as ciências naturais, em especial as neurociências, algum dia irão
oferecer uma explicação de como é possível o sistemas cerebral causar a causciência.
É importante notarmos que, diferentemente de outros filósofos45, Searle (2006)
não considera que a psicologia popular seja uma teoria. Ela seria mais um conjunto de
experiências ingênuas que todos nós temos acerca dos estados mentais. Searle
argumenta que seria injusto compará-la com outras teorias (como as teorias psicológicas
científicas), pois a psicologia popular não tem as mesmas pretensões explicativas que as
teorias científicas. Seria mais adequado que as ciências confirmassem ou impugnassem
os pressupostos da psicologia popular do que, in limine, negarmos qualquer validade
dessa experiência ingênua46. Para Searle, muitos dos pressupostos da psicologia popular
vem se mostrando verdadeiros, e é natural que se proceda dessa forma, visto que suas
pretensões explicativas se limitam a um campo muito pequeno de fenômenos mentais.
Porém, o mentalismo ingênuo, defendido tanto pela psicologia popular quanto
pelo naturalismo biológico, parece travar uma relação problemática com a ciência
contemporânea, em especial as neurociências e as teorias psicológicas47. Com isso seria
adequado tomar como pressuposto que crenças, desejos e intenções, vistos em seu
sentido comum, são as causas do comportamento humano? Em outras palavras, é lícito
Searle (2006) não ver nenhum porblema com a psicologia popular?
Para Daniel Dennett (1993; SEARLE, 1998, p. 133-137), o problema com o
naturalismo biológico é justamente esse insistente apego às tradições, i.e. à psicologia
popular. Dennett diz que Searle se remete, muitas vezes, ao bom senso do conhecimento
comum, ao menos naquilo que se refere ao comecimento de nossos próprios
________________
45. Por exemplo, Daniel Dennett e Paul Churchland.
46. Contudo, o próprio Searle (2006) diz que alguns pressupostos da psicologia popular já foram
invalidados pela investigação científica. Por exemplo, a localização da dor. Dentro da psicologia de senso
comum afirma-se que as dores estão localizadas no membro afetado. Assim se eu torço o meu joelho, eu
acredito que a dor está localizada em meu joelho. Contudo, para o filósofo, isso foi refutado pelas
descobertas da neurociência. As dores não estão no membro afetado, e sim no sistema cerebral. Porém,
devemos salientar que esse problema da localização das dor ainda está em aberto, não sendo totalmente
certo dizermos que ela esteja nem no membro afetado, nem no cérebro. Então, onde está a dor?
47. Apenas a título de exemplo, podemos citar a psicanálise de Sigmund Freud e o behaviorismo radical
de B. F. Skinner. Ambas são teorias contra intuitivas que desafiam o mentalismo ingênuo. Explicar o
comportamento humano através de crenças e desejos não parece suficiente para Freud e Skinner.
129
subjetivamente em relação aos sujeitos que as sentem. Isto, para Searle (1998, 2004), é a
marca decisiva da consciência, ou seja, sua subjetividade. Por essa razão a consciência
tem uma ontológica, um modo de existência, subjetivo.
Contudo, como salienta Dennett (1993), a verificação científica se dá em terceira
pessoa48. Com a consciência assim concebida não haveria maneira de se investigar essa
"ontologia subjetiva", pois ela estaria acessível apenas para o sujeito que a sente. A
úncia maneira de se investigar tal "mistério" seria através de relatos verbais ou indícios
não-verbais que atestariam a ocorrência de tal e tal fenômeno. Mas apenas a mediação
da linguagem não nos daria a sensação mesma. Por não sentir o que o outro está sentido,
eu teria que, com seu relato ou a observação do seu comportamento não-verbal, fazer
uma analogia com a minha própria subjetividade para entender (de maneira imprecisa, é
bem certo) a subjetividade alheia. Por exemplo, se eu vejo um terceiro dando uma
martelada em seu dedo, eu consigo compreender a sua dor, pois eu, em minha história,
já tive a experiência de dor e ao ver aquele ato, eu imediatamente me reportaria a
memória dessa experiência. Se eu já martelei meu próprio dedo, muito melhor, pois
entenderia com mais precisão a dor daquele indivíduo.
Porém uma descrição da subjetividade nesse nível pode ser incrivelmente
problemática, ainda mais se temos a pretensão de uma investigação científica de tal
fenômeno. Teremos que lidar com mentiras, auto enganos, induções comportamentais
etc., que complicariam a investigação, deixando-a ainda mais imprecisa. Por exemplo,
se alguém consegue resistir à dor, tal ser poderia facilmente enganar os observadores
quando estivesse sentindo alguma dor. Ou seja, para Dennett (1993), tomando a
subjetividade ontológica demasiadamente a sério, como o faz Searle, cairemos nesse
tipo de situação, onde se torna impossível um estudo científico sistemático da
consciência. Dennett acredita que um estudo sério da consciência deve começar por
uma redefinição de seus termos, de modo a sempre podermos abordá-la num nível
epistemológico de terceira pessoa, ou como ele mesmo gosta de chamar, num nível
heterofenomenológico.
Não iremos abordar aqui os problemas que acarretam uma visão puramente de
terceira pessoa da consciência. Apenas salientamos que, para Dennett (1993), o ideal
seria nos afastarmos da tradição (que é expressa pela linguagem da psicologia popular)
se quisermos estudar a consciência a sério. A psicologia popular pode ter bom senso e
________________
48. Além do que, Dennett é adepto do verificacionismo, ou seja, ele acredita que tudo o que existe pode
ser verificado cientificamente (pelas ferramentas epistemológicas das diferentes ciências). Grosso modo,
segundo o verificacionismo, tudo o que está fora do âmbito da verificação científica ou não existe, ou é
mera ilusão ou poderá, algum dia, ser objeto de verificação científica.
131
________________
49. Não repetiremos aqui os argumentos em favor dessa tese. O leitor pode conferir, no capítulo 3, a
apresentação que fizemos dos argumentos de Searle.
133
ingênuo e um sistema funcional que Armstrong faz referência. Ora, se tudo na natureza
pode ser explicado através de sistemas funcionais, então as ações humanas não
deveriam fugir à regra. Ademais, aderindo a esse tipo de visão, uma análise causal ou
funcional da intencionalidade torna-se plausível, mais do que isso, um tipo de redução
funcional seria possível50.
Mas quando Armstrong diz que todo fenômeno natural pode ser explicado
através da teoria dos sistemas intencionais, com isso ele não está querendo dizer que há
um tipo de igualdade que nivela todos os sistemas, de modo que sejam todos da mesma
complexidade. Se esse fosse o caso, a dita riqueza e complexidade da consciência
humana não passaria de um mito. O sistema cerebral humano seria tão complexo quanto
o conjunto de moléculas que compõem uma ameba. Não é isso que Armstrong (1991)
defende. Para ele, há níveis de complexidade nos diferentes sistemas intencionais. A
única diferença é que a consciência humana é um complexo sistema que pode, como
qualquer outro sistema, ser explicado funcionalmente.
Não obstante, Armstrong diz que os estados intencionais não são isolados, nem
poderiam ser vistos dessa forma. Com isso, idêntico a Searle (2002/1983, 2004), ele diz
que há uma intrincada rede de estados intencionais, sendo que eles não poderiam ser
causa sui, abortados de suas conexões com outros estados intencionais. Ademais, e
ainda seguindo a mesma trilha de Searle, ele diz que tal rede de estados intencionais não
poderia ser compreendida sem um pano de fundo, ou seja, sem um background que o
balize. Com isso, para tratar da noção de background, Armstrong primeiro se volta
contra a noção searleana, dizendo que, apesar de ser uma noção muito importante,
Searle não a trabalhou de maneira adequada. Searle (2002/1983, 2004) diz que o
background careceria de intencionalidade por ser, ele mesmo, a base de toda
intencionalidade. Contudo Armstrong (1991) não pensa dessa forma. Ele argumenta que
podemos encarar o background como sendo intencional tal como qualquer outro ato
intencional no nível mental humano. A única argumentação que Searle parece oferecer
contra um background intencional seria que, caso isso ocorresse, deveria haver um
outro fenômeno que o sustentasse, e caso esse outro fenômeno também fosse
intencional, deveria haver um fenômeno ainda mais básico, e assim ad infinitum.
Contudo, Armstrong não acredita que postular um background não intencional invalida,
de fato, a redução infinita. Ora, por que não deveríamos supor que há um background,
_______________
50. Não é difícil observarmos que esse tipo funcional de intencionalidade poderia servir para a matéria
não biológica de forma geral. Um robô que se comporta de determinada maneira poderia ser visto como
tendo um comportamento intencional tal como os seres humanos, ou ao menos um comportamento que se
aproximaria muito do intencional humano.
136
também não intencional, ainda mais básico, uma espécie de background do background,
e assim sucessivamente? Por que deveríamos supor que, só por conta de sua não
intencionalidade, o background seja a última base na qual se sustenta os fenômenos
mentais e ele, por sua vez, não tem nenhuma outra sustentação mental?
Armstrong (1991) diz que esse tipo de visão é muito melhor, do ponto de vista
evolucionário, do que qualquer tipo emergente "saltatório" de intencionalidade, ou seja,
que salta o gap entre a matéria física não-intencional direto para o mental intencional.
Armstrong acredita que os naturalistas (Searle e ele, inclusive) devem evitar esse tipo de
salto, ou tentar reconciliar o aparente salto com algum tipo de explicação causal
explícita. Essa é, justamente, a vantagem na abordagem que Armstrong defende.
Olhando o mundo como uma série de sistema funcionais, cada qual com seu nível de
intencionalidade (ou complexidade), não precisamos dar esse salto entre a matéria
inconsciente e o mental plenamente consciente. A explicação causal entre um sistema
funcional e outro se torna possível, evitando o mistério quase mágico que fica em torno
da intencionalidade humana51.
_______________
51. Claro que Armstrong não responde ao desafio empírico lançado pelo explanatory gap. Provavelmente
ele concordaria com Searle, dizendo que a explicação causal efetiva entre disparos neuronais e estados
mentais deve ser feita pelas ciências empíricas que lidam com esse assunto, ou seja, neurociências.
137
Searle (1991) argumenta que não seria possível fazer uma redução funcional da
intencionalidade, onde o funcionalismo trabalharia teleologicamente, sem com isso
fazermos uma terrível redefinição e subsequente eliminação do caráter mental subjetivo
tal como entendido pelo senso comum52. "[...] Não podemos eliminar a
intencionalidade em geral e recolocá-la como função teleológica, porque a função
teleológica apenas existe relativa a uma intencionalidade intrínseca." (SEARLE, 1991,
p. 183, tradução nossa).
Já em relação ao background, uma pergunta que pode ser feita é o que pensa o
homúnculo em cada nível explicativo? (SEARLE, 1991). Claro, a metáfora dos
homúnculos não deve ser tomada demasiadamente a sério, mas Searle diz que essa seria
uma pergunta interessante de se fazer. Se há intencionalidade em cada nível explicativo,
de que tipo seria? Uma outra questão que poderia ser posta na formulação de Armstrong
é que se o primeiro homúnculo, o mais básico de todos, o último na escala de estupidez,
é balizado por uma matéria inconsciente, ou seja, no momento mesmo em que a
intencionalidade é descarregada (discharged), então, como se dá o salto entre o não
intencional e o intencional mais estúpido? Não seria também esse um salto explicativo?
Apesar de ser uma crítica muito fecunda (SEARLE, 1991), nosso filósofo ainda
acredita que a intencionalidade e o background só fazem sentido para a mente humana.
Tentarmos transpor esse tipo de fenômeno para sistemas mais rudimentares não parece,
para Searle (1991), uma proposta muito viável. Ao menos não parece viável se
quisermos preservar uma noção mais ingênua do mental. Para Searle (2006) essa noção
mais popular é o que realmente caracteriza o mental intencional. Dessa forma devemos
antes tentar explicar como a existência de tal noção foi possível (ou como veio a ser o
que é), do que eliminá-la ou redefini-la (no caso de Armstrong) em outros termos.
_______________
52. Como já salientamos, Searle acredita que não há nenhum problema com a noção de subjetividade
oferecida pelo senso comum (Folk Psychology). Para mais detalhes, cf. UZAI JUNIOR, P. ; COELHO.
J.G. John Searle e o Realismo Ingênuo. Kínesis (Marília), v. 7, p. 87-102, 2015.
138
Procurando dar uma resposta a para esse problema, Searle (2004, 2006) se
afastou da noção humeana de causação. Para ele, David Hume está equivocado ao dizer
que não vemos o nexo causal, mas apenas regularidades causais. Searle argumenta que
parece-nos óbvio que vemos regularidades causais, sendo que elas são necessárias para
nos guiarmos no mundo. Contudo, ele acredita que também vemos o nexo causal e não
há nada de espantoso nisso. Em todos os casos de percepções e ações, parece muito
comum, até de fato normal para Searle (2004), que percebamos uma conexão causal
entre objetos e estados de coisas no mundo e nossa experiência consciente.
Supondo que o que Searle disse a respeito da causalidade esteja correto, que
experimentamos a relação causal em nossas vidas e estendendo isso para o problema
mente e corpo, enfrentaremos agora a seguinte questão: como a mente pode causar o
movimento corporal, ou seja, alterar o mundo físico? Em nossas experiências do dia-a-
dia parece natural, até mesmo trivial, supor que nossa mente cause alterações no corpo.
Se desejo levantar o braço, simplesmente o levanto e parto do pressuposto que minha
intenção em ação (ato mental intencional) foi a responsável por causar esse incrível ato.
Para Searle (2004), só seria estranho a mente não ter poder causal sobre o mundo
físico se ela fosse uma entidade separada e além do físico, o que o filósofo não acredita
que seja. Contudo, isso não nos leva à redutibilidade ontológica do mental ao cerebral,
pois, como já discutimos ao longo deste trabalho, Searle acredita na realidade subjetiva
de nossos estados e processos mentais.
Mas podemos nos perguntar como exatamente ocorre esse processo de eficiência
causal da mente sobre o mundo. Como já foi dito, Searle (2004, 2006) faz uma redução
causal entre mente-cérebro, ou seja, mentes são causadas por e realizadas em cérebros
humanos. Mais especificamente, ele diz que o mental e corporal (cerebral) ocorrem de
maneira simultânea, ou seja, as características micro do cérebro (nível neurobiológico)
causam e realizam as características macro (nível mental), e não pode haver macro sem
micro. Por exemplo, o desejo que sinto agora de tomar cerveja (estado mental) está
balizado por uma série de processos neurobiológicos. Mas o nível macro não pode ser
reduzido ao nível micro, pois, como já enfatizamos, os estados e processos mentais
desfrutam de uma ontologia própria.
Searle (2004) constrói um diagrama que ilustra essa relação que ele está nos
mostrando. No nível superior (que é causado pelo inferior) vemos um estado mental
causar um outro estado mental. Contudo, sempre estamos falando do mesmo fenômeno,
em níveis diferentes.
M M'
causa
F F'
causa
de um nível de explicação causal. Não há mente sem uma estrutura cerebral, portanto,
de algum modo, os processos neurobiológicos também estão sendo eficientemente
causais, pois eles são a base sem a qual não pode haver mente. Então, para Searle (1995,
2004, 2006) porque a mente faz parte do mundo físico como qualquer outra entidade
biológica (mesmo que seja um dos níveis do sistema cerebral), não haveria nenhum
mistério metafísico em dizer que meus estados e processos mentais são causalmente
eficientes no mundo em geral.
Apesar desse tour de force de Searle, que diz que o mental ontologicamente
irredutível é causalmente eficiente, para alguns autores isso não parece suficiente para
resolvermos o problema da causação mental. Jaegwon Kim acredita que essa pretensa
solução searleana nos leva a um beco sem saída.
_____________
54. Cf. seção 4.2 deste capítulo.
141
cartesiana) no começo do século XX55. Então, para Kim, é curiosa essa acusação de que
toda a contemporânea discussão do problema mente-corpo está infectada de um ranço
cartesiano, sendo que já há muito tem havido outras alternativas emergentistas.
Dessa forma, Kim acredita que a visão de causação mental de Searle traz
dificuldades inerentes ao seu compromisso filosófico. Se ele acredita que há uma
ontologia do mental − ontologia essa de primeira pessoa − torna-se difícil aceitar isso e
ser, ao mesmo tempo, naturalista.
Com efeito, a solução para a causação mental oferecida por John Searle,
segundo Kim (1995), cai em duas grandes dificuldades: sobredeterminação causal e
causação descendente. Ora, se para se ter qualquer estado mental, na visão de Searle,
necessitamos de um aparato físico, neurobiológico, e se a mente tem um poder causal
real no mundo, então um estado mental, que foi causado por um outro estado mental,
teria duas causas, o estado mental anterior e o substrato físico (M e F causa M'). Por
exemplo, se uma lembrança (estado mental) causa uma tristeza (estado mental) e se para
ter qualquer estado mental precisa-se de um substrato neurobiológico, então a tristeza é
causada e realizada por disparos neuronais (estado físico) e pela lembrança (estado
mental). Ou seja, o estado mental lembrança é sobredeterminado.
Além disso, a causação descendente seria outro problema muito mais grave para
Kim (1995). Tal tipo de causação é definida como o mental (nível superior) causando
estados físicos (nível inferior). Por exemplo, meu desejo de levantar o braço causa o
movimento do meu corpo (ou os disparos neuronais que causariam o movimento do
meu braço). Dessa forma, teríamos M → F, invertendo a ordem de causação colocada
por Searle.
_____________
55. Cf. C. Lloyd Morgan. Emergent Evolution. London: William & Norgate, 1923. Samuel Alexander.
Space, Time and Deity. London: Macmillan, 1920.
142
(Mental) (Mental)
causação descendente
O que agravaria a visão de Searle é que além dos fenômenos de nível básico
causarem os fenômenos de nível mais alto, eles estão todos num mesmo sistema. Não
há uma distinção clara, pois os eventos ocorrem ao mesmo tempo ( F causa M, sendo
que se olhamos num nível, suponhamos M, teremos que supor que também esteja
ocorrendo F num nível mais básico). Visto isso, faria sentido falarmos em causa e efeito
no sistema cerebral que Searle nos apresenta? Porque causa sugere um mecanismo
causal e um intervalo de tempo entre causa e efeito, onde podemos frequentemente
intervir no processo causal e prever o efeito do acontecimento. Nada disso faz sentido
na causação micro → macro (cérebro → consciência), onde as duas coisas, mesmo que
pareçam ser distintas, segundo Searle (2004, 2006), ocorrem ao mesmo tempo, violando
ao menos a noção de causação clássica.
_____________
56. Não temos por objetivo abordar, minuciosamente, a filosofia de Jaegwon Kim. Para mais detalhes, o
leitor pode conferir em [KIM, J. Mind in a physical world: an essay on the mind-body problem and
mental causation. Cambridge: MIT, 1998] e [KIM, J. Supervenience and Mind: Selected Philosophical
Essays, Cambridge: Cambridge University Press, 1993].
143
2- Por aceitar que mentes são ontologicamente irredutíveis, isso traria dificuldades na
argumentação de Searle, pois como algo imaterial tem um efeito causal no mundo?
[premissa]
4- Além disso, a noção de causa aqui estaria equivocada, pois, como Searle diz que os
fenômenos micro e macro fazem parte do mesmo sistema (o sistema cerebral), então
não haveria uma efetiva causação, pois a noção de causa sugere um mecanismo causal e
um intervalo de tempo entre causa e efeito, e não tudo ocorrendo ao mesmo tempo, em
níveis diferentes. [premissa]
A conjunção dessas quadro premissas, para Kim, levam a uma única conclusão:
Searle não resolveu o problema da causação mental, sendo incoerente a sua proposta.
Porém, a resposta que Searle poderia oferecer a Kim é que ele cometeria dois erros em
sua argumentação, erros esses que foram tratados exaustivamente pelo filósofo, quais
sejam, o retorno à linguagem cartesiana e o apego a clássica teoria da causalidade. Ao
que tudo sugere, Kim (1995) estaria colocando a questão da causação à cartesiana, ou
seja, como um evento mental, imanente, não físico etc., poderia ser causa no mundo
físico. Dessa forma, a causação descendente (top-down causation) seria a conclusão
dessa falsa premissa. Contudo, o esforço de Searle é justamente se afastar desse tipo de
linguagem. A mente depende do cérebro e, num sentido específico, ela é redutível a ele.
De modo geral, poderia dizer Searle, quando falamos de causação mental também
144
Essa questão nos leva direto para o segundo ponto. Searle rejeita a noção
humeana clássica de causação. Para ele, com os conhecimentos científicos atuais, não
faz sentido trabalharmos com o mesmo tipo de causação. Cérebro ser a causa da mente
quer dizer o mesmo que o comportamento das moléculas de H2O é a causa da liquidez.
O movimento molecular e a liquidez ocorrem ao mesmo tempo, sendo que podemos
examiná-los em seus diferentes níveis de apresentação. Do mesmo modo, Searle (2004)
diria que o cérebro e a mente ocorrem ao mesmo tempo, sendo níveis de descrição
diferentes.
Não obstante essa possível resposta de Searle à crítica de Kim, ainda parece-nos
que uma questão não foi respondida. Se Searle rejeita a teoria clássica da causalidade,
dizendo que muitos fenômenos hoje em dia não a respeitariam (como a contemporânea
explicação da liquidez e estados mentais), em que sentido ainda podemos falar de
causação? Tais fenômenos não seriam outra coisa, ou não poderiam ser explicados de
outra forma, visto que se deseja superar a noção clássica de causalidade?
145
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos últimos sessenta anos, a filosofia da mente ganhou tanta importância que
tornou-se uma espécie de investigação filosófica essencial, ou seja, um problema que, se
for devidamente resolvido, servir-nos-á como base para muitas outras investigações57
(SEARLE, 2004), como por exemplo a questão da percepção, memória e causação
mental. Prova dessa importância é o número assombroso de excelentes trabalhos, seja
de filósofos, neurocientistas, psicólogos e até mesmo físicos, sobre a natureza dos
estados e processos mentais que surgem a cada dia.
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57. Isso não é consensual. Muitos físicos são da opinião de que sua disciplina estuda as bases daquilo que
podemos chamar de realidade. Dessa forma, a filosofia da física, ou certos ramos da física teórica, deveria
ser, está sim, uma investigação de filosofia primeira. Contudo, fazendo justiça a afirmação que
parafraseamos de Searle, a filosofia da mente, pela importância que ganhou nos últimos anos, é uma das
investigações fundamentais em filosofia.
58. Como já dissemos, tendência essa que remonta à, pelo menos, Gilbert Ryle. Claro que tal tendência já
existia dentro da filosofia, mas por termos colocado Ryle como uma espécie de pai-fundador da filosofia
da mente contemporânea, assim podemos dizer que ele foi o responsável por essa virada naturalista.
146
Ademais, o que nos parece mais crítico na filosofia de Searle é sua dificuldade
de integração entre o naturalismo e o mentalismo. Sua adesão ao naturalismo entra em
consonância com a concepção científica contemporânea, daí decorrendo o insistente
apelo de Searle de que o mental está no mesmo mundo descrito pelas ciências da física.
Contudo, as ciências da natureza são eminentemente reducionistas, ou seja, buscam
reduzir os eventos da realidade a uma explicação puramente natural. Por exemplo,
grosso modo, o pôr do sol nada mais é do que o movimento natural do Planeta Terra, a
solidez e a liquidez dos corpos nada mais são do que o movimento das moléculas que
compõe tais corpos, raios não são nada além da diferença de potencial elétrico entre as
nuvens e a terra, e assim por diante. Antes do advento da ciência moderna, muitos
fenômenos que hoje dizemos serem naturais eram antes explicados de maneira mito-
poética59. Mas as ciências naturais puderam reduzir esses fenômenos a sua realidade, ou
seja, mostraram que tais fenômenos nada mais eram do que algo natural (um fenômeno
da natureza material)60.
O problema que vemos, e isso poderia figurar como uma nova crítica à Searle, é
a pretensão de que apenas as ciências podem legislar sobre a realidade. Isso seria um
dos preceitos do verificacionismo (que Daniel Dennett tanto aprecia), que diz que
apenas aquilo que a ciência estuda, ou pode estudar, é real. Com isso, se as ciências não
puderem apreender a subjetividade do mental, tal como Searle a apresenta, significa que
ou ela não existe, ou deve ser redefinida para se enquadrar em algum programa de
pesquisa empírico-experimental.
Acreditamos que essa visão, exposta no último parágrafo, pode sinalizar algo
perigoso. Talvez um abuso de poder despropositado. Segundo entendemos, se há algum
fato da realidade que a ciência não consegue investigar satisfatoriamente, talvez o
problema esteja nos métodos investigativos e não com o fato propriamente dito.
Enquadrar um fato da realidade aos métodos científicos, tendo que modificá-lo
(redefini-lo) para que caiba num programa de pesquisa, é um posicionamento que fere
qualquer busca sincera pelo conhecimento. Isso seria, em certo sentido, o cientificismo.
Dessa forma, a crítica que podemos fazer a Searle é justamente que ele parece
aceitar essa visão de mundo. Ele se diz um filho do iluminismo (SEARLE, 2000), e
como tal é adepto da ciência contemporânea, acreditando que a mente humana deve, e
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61. Apesar de existir outros modelos explicativos do universo, a saber, teoria da relatividade e mecânica
quântica, observamos que tais teorias ainda estão mal integradas no conjunto das ciências. Ademais, nem
mesmo os físicos teóricos sabem como integrar essas duas grandes teorias. Desse modo, o que
percebemos é que a maioria das ciências naturais ainda trabalha num modelo mecanicista, que para
nossas condições de existência neste planeta parece ser um modelo adequado.
149
pode, ser estudada por essa ferramenta epistemológica. Esse entusiasmo de Searle com
relação às ciência cria o problema que viemos expondo até aqui, ou seja, como estudar a
subjetividade do mental cientificamente? Há algum modo de se fazer isso? Searle não
parece confortável em questionar os métodos científicos. Dessa forma, não aceitando as
críticas à ciência contemporânea (por exemplo, críticas pós-modernistas), Searle, como
Descartes, parece ter que viver com o problema da integração entre o mentalismo
ingênuo e o cientificismo hard. Malgrado seu enorme esforço, parece que Searle retorna
ao dualismo, numa reatualização do mesmo problema.
Julgamos que John Searle não nos oferece uma resposta suficiente para
superarmos o explanatory gap, ou seja, o vácuo causal que parece existir entre estados
cerebrais e estados mentais. Claro, Searle (2004, 2006) desvia-se do problema dizendo
que esse é um trabalho empírico-científico. Contudo podemos questionnar essa atitude,
como o faz Paulo Abrantes (In: FERREIRA, A; GONZALES, M.E.Q; COELHO, J.G.,
2004, p. 05-37), dizendo que o filósofo lega as questões mais difíceis aos cientistas. Ou
ainda, seguir a crítica de Freser (2004), que diz que Searle reclassifica, arbitrariamente,
o problema mente-corpo como um problema da biologia. O fato é que nem mesmo a
filosofia da mente (aqui representada por Searle), nem as neurociências conseguiram
superar o explanatory gap.
Com efeito, nossa resposta sim e não para a filosofia da mente de John Searle
denota também a natureza desta dissertação: comentário crítico de uma filosofia da
mente em particular. Além do mais, a complexidade do problema em questão nos força
a tomar esse tipo de posição. Seria uma pretensão absurda imaginar que nossa avaliação
crítica da filosofia de Searle resolveria muitos dos problemas deixados pelo filósofo.
150
Apesar das imensas dificuldades, e das inúmeras abordagens que surgiram nas
últimas décadas, permanecemos otimistas quanto a solução deste problema. Se temos
dificuldade hoje de vermos qualquer solução minimamente consensual do problema
mente-corpo, isso não deve moldar nossas esperanças futuras. A história do
conhecimento humano é algo surpreendente, de modo que novos e desconhecidos
elementos podem entrar no debate a qualquer momento. Mas, e se seguirmos por
caminhos errados? Isso faz parte do processo. Em termos de conhecimento, não
devemos ter medo de errar, pois isso apenas mostra nosso temor de conhecer qualquer
coisa. Esse desejo de conhecer, e a abertura para as críticas e novas abordagens
possíveis, é o que deve nos guiar nesse tortuoso caminho; nesta ainda permanente selva
oscura.
151
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Dissertação (Mestrado em filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
Mente, Epistemologia e Lógica, Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita filho”, Marília. 2010.
FERREIRA, A.; GONZALES, Maria Eunice. Q.; COELHO, Jonas G. (org.). Encontros
com as Ciências Cognitivas. São Paulo: Cultura Acadêmica, v. 4, 2004.
152
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