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Aula

BRASIL IMPERIAL: UMA SOCIEDADE


EM TRANSFORMAÇÃO
8
META
Discutir alguns aspectos da sociedade brasileira, buscando identificar neles
mudanças que refletem o ajustamento do Brasil ao capitalismo e à mentalidade
burguesa.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
analisar o processo de urbanização como desdobramento do trabalho livre, da
política de imigração e do avanço industrial;
situar o papel reservado à mulher e à família na nova sociedade brasileira do final do
século XIX.
averiguar a situação dos ex-escravos após a emancipação.

O Rio de Janeiro no século XIX


(Fonte: www.jeocaz.files.wordpress.com )
História do Brasil Império

INTRODUÇÃO
Caros alunos. Como uma das autoras do livro História das mulheres
no Brasil, Maria Ângela D’Incao abre o capítulo Mulher e família burguesa,
com o trecho que reproduzimos:

Durante o século XIX, a sociedade brasileira sofreu uma série de


transformações: a consolidação do capitalismo; o incremento de uma
vida urbana que oferecia novas alternativas de convivência social; a
ascensão da burguesia e o surgimento de uma nova mentalidade –
burguesa – reorganizadora das vivências familiares e domésticas, do
tempo e das atividades femininas; e, por que não, a sensibilidade e a
forma de pensar o amor. (2006, p. 223).

Considerando a abrangência do tema, tivemos que fazer algumas es-


colhas. Nesse caso, optamos por tratar da urbanização e situar, nos núcleos
urbanos que se projetam mais para o final do século XIX, o papel reservado
à família, à mulher, à criança e ao ex-escravo. Para isso, faremos uso de
textos escritos por especialistas nas questões referidas.
Ao longo do século XIX o Brasil se tornou sede do Império português,
alcançou independência política, organizou-se como Monarquia, depois
como República, envolveu-se em guerras, viveu o sucesso da cafeicultura,
o início da industrialização, aboliu o trabalho escravo, recebeu imigrantes
de diversas nacionalidades e, junto, línguas, hábitos, tradições, diferentes
dos que aqui dominavam.
Para ajustar o país à nova ordem econômica internacional, dominada
pelo capitalismo, além das mudanças na economia, aqui capitaneadas pela
cafeicultura e industrialização, fez-se necessária a imposição do trabalho
livre, assalariado, a disponibilidade de trabalhadores em maior número e
mais qualificados e uma nova distribuição regional da mão-de-obra dis-
ponível para o mercado de trabalho. A sociedade mudava sua forma de
organização: a sociedade rural e senhorial dava lugar à sociedade urbana e
burguesa. Junto com a nova ordem vieram outros tipos de relações sociais
e a exigência de novos papéis a serem desempenhados pelos seus membros,
num movimento que se iniciou nas últimas décadas do século XIX, para
se completar nas primeiras do século seguinte.
O que se observa, então, é que a sociedade brasileira, que no início do
século XIX se organizava sob fortes traços patriarcais e a supremacia dos
senhores de engenho nordestinos, vê transferir-se para o Sudeste e para os
proprietários de fazendas de café a hegemonia sobre o conjunto nacional
e, paulatinamente, o surgimento de novas bases para as relações sociais.
Segundo análise feita por Gilberto Freyre, na obra Vida Social no Brasil no
século XIX, os meados do século

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Brasil imperial: uma sociedade em transformação
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constituem época sociologicamente ideal para a interpretação


do sistema patriarcal no Brasil, por ter sido um período em que
se manifestaram, em seu pleno esplendor, os vários tipos de
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patriarcalismo brasileiro que podem ser assinalados – o agrário,
o pastoril, o urbano – com os sobrados urbanos prolongando o
estilo de vida patriarcal desenvolvido nos engenhos, nas fazendas
e nas estâncias. Um desses aspectos, o começo de transferência de
valores aristocráticos já amadurecidos em casas-grandes já antigas
de engenhos do norte do Brasil – de Pernambuco e da Bahia,
especialmente – para casas-grandes recentes – como casas-grandes
aristocráticas – de São Paulo e de outras partes do Sul do Império”.
(Freyre, 2008, 92-93).

Segundo Freyre, portanto, em meados do século XIX o sistema patri-


arcal brasileiro atinge seu ponto alto, mas é também quando tem início a
transferência do centro hegemônico do Norte para o Sul do país e começa
uma fase de novas e profundas mudanças sociais.
Para falar sobre elas optamos pela abordagem de alguns aspectos
relacionados à urbanização e aos novos papéis femininos. Como foi, em
linhas gerais, o início do processo de urbanização? Que mudanças marcaram
o estilo de vida das populações urbanas? Como o universo feminino foi
afetado pelas mudanças sociais? Vejamos o que dizem os estudiosos que
se ocupam da análise desses temas.
Para falar sobre a urbanização no Brasil oitocentista escolhemos texto
do livro de Emília Viotti da Costa, Da Monarquia à República: momentos decisi-
vos. Embora consideremos importante a leitura de todo o capítulo referente
à Urbanização no Brasil no século XIX, segue adiante apenas a parte dele
que trata dos núcleos urbanos na primeira metade do século XIX, depois,
a que analisa as principais mudanças acontecidas na segunda metade do
século. Recomendamos, no entanto, que busquem conhecê-lo na íntegra.

NÚCLEOS URBANOS NA PRIMEIRA


METADE DO SÉCULO XIX
No início do século XIX a transferência da sede do Governo português
para o Brasil, a abertura dos portos em 1808, rompendo o sistema
de monopólios até então em vigor, e finalmente a Independência,
criariam novas condições para o processo de urbanização.
Com a Independência, as funções burocráticas e políticas ganharam
novo relevo. As capitais das províncias, quase todas, aliás, situadas
no litoral, tornaram-se centros político-administrativos importantes,
o que daria nova vida a esses núcleos urbanos. A intenção de criar
uma elite capaz de governar o país acarretou a fundação de algumas
faculdades (Rio de Janeiro, Recife e São Paulo), criando estímulos

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História do Brasil Império

novos para a vida urbana. Os fazendeiros começaram a construir


casas nas cidades. A Corte tornou-se o grande centro das atrações.
A integração do Brasil nas correntes internacionais de comércio,
eliminada a mediação portuguesa, numa fase em que o mercado
internacional se achava em plena expansão graças ao crescimento da
população, à maior distribuição de riquezas e à melhoria do sistema de
transportes, daria novo incentivo às funções comerciais dos núcleos
urbanos, estimulando o desenvolvimento dos portos.
Não obstante as condições serem mais favoráveis ao processo de
urbanização, a partir da Independência as linhas gerais da produção
brasileira não foram alteradas. A exportação de produtos agrários
continuou a base da economia. Sobreviveram o latifúndio e o trabalho
escravo (abolido apenas em 1888). A alta lucratividade da empresa
agrária, exportadora, o caráter limitado do comércio interno, a
competição estrangeira, inibiram o desenvolvimento das manufaturas.
As elites no poder, beneficiando-se da produção agrícola, procuraram
manter intacta a estrutura tradicional de produção, revelando-se
pouco simpáticas às empresas industriais. Dessa forma, as condições
que haviam inibido o desenvolvimento urbano no período colonial
continuaram a atuar durante a primeira metade do século XIX. Por
isso os viajantes que percorreram o país nessa época continuaram a
observar o profundo contraste que havia entre as cidades portuárias
mais movimentadas, mais modernas, mais europeizadas e os núcleos
urbanos do interior que, na sua quase totalidade, vivam à margem
da civilização, meras extensões das zonas rurais.
Segundo descrições da época, a maioria dos núcleos urbanos
do interior caracterizava-se por um aspecto descuidado, sendo
imprecisos os limites entre a zona rural e a urbana. Boa parte da
população vivia em chácaras cujos limites chegavam à cidade.
A maioria das casas era construída de taipa, segundo a tradição
colonial. Muitas permaneciam fechadas durante a semana, pois os
moradores só vinham à cidade aos domingos e dias de festa, quando
compareciam às cerimônias religiosas e faziam compras nas lojas e
feiras locais. Continuavam, na sua maioria, a viver no campo. Vacas,
cabras e cavalos eram frequentemente vistos pastando nas ruas, por
entre as pedras toscas do calçamento, em virtude do escasso trânsito
urbano. Escravos eram vistos pelas ruas carregando toda sorte de
mercadorias ao som de ritmadas canções. As ruas eram o domínio
de escravos, mulatos e negros livres.
Nas cidades do interior os únicos edifícios dignos de registro eram
as igrejas e conventos, e mais raramente os edifícios da Câmara e da
cadeia. O abastecimento de água era precário, ficando os moradores
na dependência de poços e chafarizes. Dada a falta de esgotos, os
dejetos eram despejados nos ribeirões ou no mar (quando a cidade
era litorânea), escorrendo, frequentemente, pelo meio das ruas. A
iluminação era precária, prevalecendo o óleo de peixe. Nas noites

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Brasil imperial: uma sociedade em transformação
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de luar a cidade ficava às escuras, iluminada apenas pela luz da lua.


Apenas nas cidades mais importantes havia assistência hospitalar
e essa era, em geral, fornecida pelas Santas Casas, instituições
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religiosas filantrópicas, de caráter paternalista, inspiradas na tradição
de caridade cristã, típica do catolicismo. Entre seus patrocinadores
figuravam representantes dos setores mais ilustres da sociedade
local que a amparavam através de doações pessoais ou subvenções
estatais, obtidas graças ao seu prestígio junto ao governo. Por sua
vez, os patronos das Santas Casas usavam-nas para dar assistência
a seus escravos e à sua numerosa clientela. Afora as Santas Casas,
era precária a assistência médico-hospitalar nas cidades do interior,
faltando médicos e enfermarias [...]
Representando a economia de subsistência um setor importante
da produção, as trocas internas continuavam limitadas. Ao longo
das estradas, os pousos e vendas faziam concorrência ao comércio
urbano. Para os artigos mais elaborados, os fazendeiros recorriam
às grandes cidades portuárias, onde os comissários incumbidos da
comercialização dos produtos responsabilizam-se pela compra do
que lhes fossem necessário, remetendo as mercadorias diretamente
para as fazendas. Dessa forma, o artesanato e o comércio dos núcleos
urbanos locais continuavam reduzidos.
A população dos núcleos urbanos do interior vivia isolada, ignorante
do que se passava no mundo. Apenas os fazendeiros mais importantes
freqüentavam periodicamente os grandes centros para tratar de
negócios ou em busca de distração, ansiando por um “banho
de civilização”. Essa prática se tornaria mais freqüente à medida
que os meios de transporte ficaram mais rápidos e a influência da
europeização penetrou mais profundamente na alta classe.
A maioria das populações urbanas do interior, no entanto, continuava
à margem da história, desprovida de informações [...] A ignorância e
o desinteresse resultavam não apenas da falta de comunicações fáceis
e rápidas, ausência de correios e jornais que mantivessem informadas
pelo menos uma parcela da população. Eram fruto da falta de cultura
e de ausência de tradição de participação política, conseqüência das
práticas paternalistas herdadas do período colonial. Por isso, na sua
maioria, os habitantes das cidades do interior não tinham visão política
muito mais ampla dos que viviam nas áreas rurais vizinhas. Como a
população rural, os habitantes dos núcleos urbanos incorporavam-se
à clientela dos grandes fazendeiros locais [...]
Na falta de outras formas de comunicação, os mascates e os tropeiros
constituíam, na época, o principal veículo de comunicação entre
as cidades do interior e o mundo exterior [...] A sociabilidade era
reduzida e em geral restrita ao núcleo familiar. A rua continuava a ser
domínio de escravos, vendedores ambulantes, rameiras e vagabundos.
As mulheres de alta classe não eram vistas nas ruas ou em outros
lugares públicos com exceção da igreja.

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História do Brasil Império

A igreja continuava a ser o único lugar público em que os representantes


de todas as camadas sociais e cores se reuniam, eliminando-se
aparentemente as distorções. De fato, no entanto, havia sempre uma
separação espacial entre uns e outros, respeitando-se a posição social
de cada um. A igreja continuava o centro das atividades públicas. As
procissões representavam grande acontecimento. Dentro da igreja
enterravam-se os mortos. Na igreja se procediam as eleições. O
bimbalhar dos sinos marcava os quartos de hora. Grande era o número
de feriados religiosos, dias santificados e festejos promovidos pela igreja.
O fato de viver na cidade não alterara profundamente a segregação
em que a mulher de classe alta vivera nas zonas rurais. Não foram
raros os viajantes que, passados os meados do século, ainda
estranhavam o costume que os brasileiros tinham de segregarem
esposas e filhas. Imperava na cidade como no campo uma severa
disciplina patriarcal. Nos grandes centros do litoral, principalmente
na Corte ou em São Paulo, onde se fundara a Faculdade de Direito,
a mulher gozaria pouco a pouco de maior liberdade, frequentando
teatros e bailes, sem escapar, todavia, da rigorosa disciplina patriarcal.
Mesmo o hábito de sair às compras, de percorrer as lojas, só se
desenvolveria mais tarde, sendo costume das mulheres de classe alta
mandarem vir das lojas amostras das mercadorias que desejavam
comprar. Exercendo funções exclusivamente domésticas, limitadas no
convívio social, reduzidas à convivência com as escravas, era precária,
em geral, sua educação, como bem observou Gilberto Freyre. Nos
grandes centros havia exceções, principalmente na Corte, onde se
reunia o melhor da sociedade da época [...] Mas o contraste era
grande entre as ilhas de civilização que eram os grandes centros e os
modestos núcleos urbanos do interior das províncias. As mulheres
das camadas inferiores gozavam de uma liberdade de circulação e
independência desconhecida das que integravam a elite, aparecendo
frequentemente como chefe de família, exercendo suas atividades
livremente. (p. 185-189).
Na segunda metade do século XIX, ocorrem alguns fenômenos
importantes que irão introduzir modificações na estrutura econômica
e social do país, contribuindo para o desenvolvimento relativo do
mercado interno e estimulando o processo de urbanização. Primeiro,
a transição do trabalho escravo para o trabalho livre: a cessação
do tráfico em 1850, a abolição em 1888 e a entrada de numerosos
imigrantes no sul do país. Em segundo lugar, a instalação da rede
ferroviária, iniciada em 1852 e que no final do século atingiria a mais
de 9.000 kms construídos e 15.000 em construção. Finalmente as
tentativas, bem sucedidas, de industrialização e o desenvolvimento
do sistema de crédito.
A partir de 1850, com a cessação do tráfico e o aumento crescente
dos preços de escravos, o problema da substituição do escravo pelo
trabalhador livre tornou-se mais agudo [...] As dificuldades de obtenção
de mão-de-obra estimulariam as tentativas de substituição do escravo

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Brasil imperial: uma sociedade em transformação
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pelo imigrante e provocariam o deslocamento de parte dos escravos


das regiões decadentes do nordeste para as prósperas regiões cafeeiras
[...] O crescimento do setor assalariado ampliaria o mercado interno,
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criando uma base para o futuro desenvolvimento industrial
O aperfeiçoamento do sistema de transportes (substituição do
transporte em lombo de burro e carro de boi pelas ferrovias, a
generalização do uso do navio a vapor, na segunda metade do século
XIX) coincide com a demanda crescente de café pelo mercado
internacional, acarretando uma especialização crescente da produção
cafeeira. Rompia-se a auto-suficiência do latifúndio, o que estimularia
o comércio interno, permitindo uma relativa distribuição de riqueza.
Desde os meados do século, imigrantes europeus começaram a entrar
em número crescente no Brasil, principalmente entre 1870 e 1900,
sendo que o período de maior imigração situa-se nos anos que se
seguem à abolição. Só o Estado de São Paulo recebeu em pouco mais
de um decênio, isto é, entre 1890 e 1901, cerca de 700.000 colonos:
italianos, portugueses, espanhóis e austríacos, não contando os de
outras nacionalidades.
A maioria dos imigrantes que entraram nessa área foi encaminhada para
as lavouras de café, exercendo funções anteriormente desempenhadas
pelos escravos. Mais para o sul do país, nos Estados do Paraná, Rio
Grande do Sul e Santa Catarina, desenvolveu-se um sistema diferente
de colonização. Concederam-se aos colonos lotes de terras. Embora
o processo tenha sido diferente num e noutro caso, o contingente
imigrante contribuiu, tanto numa região, quanto em outra, para o
desenvolvimento dos núcleos urbanos e para a ampliação relativa do
mercado interno, estimulando as funções urbanas.
No Estado de São Paulo, os imigrantes, assim que puderam,
abandonaram as lavouras de café onde vivam em precárias condições.
Muitos, desiludidos, voltaram à sua pátria de origem ou imigraram
para outras áreas. Outros localizaram-se em núcleos urbanos, onde se
dedicaram ao comércio ou artesanato, às manufaturas e aos pequenos
serviços. Outros, ainda que originalmente se destinassem à lavoura,
preferiram, logo ao chegar, localizar-se nas cidades. Alguns já vieram
com o objetivo de se fixar nos núcleos urbanos, como os artesãos
e comerciantes ingleses e franceses que se estabeleceram na cidade
do rio de Janeiro durante o século XIX.
No Rio de Janeiro, num total de 275.000 habitantes em 1872,
84.000 eram estrangeiros. Em 1890, a população do Distrito Federal
alcançava 522.000 habitantes, aproximadamente, dos quais 124.000
eram estrangeiros, isto é, cerca de 25% da população. Os estrangeiros
dedicavam-se a atividades variadas, desde o comércio de atacado e
de retalho até o artesanato [...]
A corrente imigratória tende a se encaminhar para o sul do país,
onde se definiu uma política favorável à obtenção de braços para
as lavouras (São Paulo, Minas, Rio de Janeiro), ou interessada no

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História do Brasil Império

desenvolvimento de núcleos coloniais (Paraná, Santa Catarina e Rio


Grande do Sul) [...] Nas demais regiões do país, a imigração nunca
chegou a ser significativa, limitando-se aquelas áreas a receberem um
punhado de imigrantes que não chegaram a representar contingente
importante no processo de urbanização.
Gilberto Freyre afirma, no livro Sobrados e Mucambos, que os
imigrantes não tinham preconceito contra o trabalho manual,
característico da sociedade brasileira tradicional, e passariam a controlar
de maneira crescente o artesanato e o comércio de retalho nos centros
urbanos mais importantes. Enquanto isso, os filhos da terra, mesmo os
de famílias mais pobres, preferiam os empregos públicos [...] Também
é verdade que os imigrantes tiveram papel importante na indústria,
tanto na qualidade de empresários quanto na de operários.
Mesmo os imigrantes que permaneceram como trabalhadores
nas fazendas de café contribuíram indiretamente para estimular o
desenvolvimento dos núcleos urbanos, onde iam vender, às vezes,
o excedente dos produtos que cultivavam, com a permissão dos
fazendeiros, entre os pés de café, e comprara o que necessitavam [...]

Outro texto sobre a urbanização no Brasil do século XIX, escrito por Maria
Ângela D’Incao e publicado no livro História das Mulheres no Brasil, completa o
de Emília Viotti da Costa ao abordar aspectos da urbanização, associando-os
ao perfil burguês que a cidade começa a adotar no século em questão.

Até o início do século XIX não havia no Brasil leis públicas que
regulamentassem a limpeza e o uso das cidades. Os espaços para o
abate de animais domésticos e para a lavagem de roupas, as fontes
centrais, bem como os terrenos para criação de animais e locais para
cortar lenha foram reduzidos ou transferidos do centro das cidades
para a periferia. A arquitetura dos sobrados se desenvolveu fazendo
da rua “uma serva da casa”; portas e janelas abriam-se diretamente
para ela. Autoridades públicas limitaram o “mau uso” da casa e
tenderam a estabelecer uma nova atitude em relação às ruas, agora
consideradas “lugares públicos” e que por isso deveriam manter-se
limpas. Com isso, o lugar público ganha, então, um significado oposto
ao do uso particular.
Claro que para a rua atingir seu novo status muitas restrições são
impostas à população. O espaço urbano, antigamente usado por
todos em encontros coletivos, festas, mercados, convívio social etc.,
começa a ser governado por um novo interesse, qual seja, “o interesse
público”, controlado pelas elites governantes. Esse fato propiciou a
modernização da cidade do Rio de Janeiro.
Outra espécie de política pública que vale a pena mencionar é o
conjunto de medidas higiênicas tomadas pelo Estado durante o
Império. A Faculdade de Medicina tinha sido aberta, e muitas idéias
novas sobre higiene e saúde espalhavam-se pouco a pouco entre as

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Brasil imperial: uma sociedade em transformação
Aula

famílias das classes altas. A cidade estava literalmente podre. Pessoas


morriam de pragas e de doenças desconhecidas. A adoção dos
almotacéis (taxas) de limpeza não teve sucesso completo; entretanto,
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medidas higiênicas contribuíram para a nova fase da vida social
urbana brasileira e o discurso médico colaborou para a construção
de novos conceitos de vida familiar e higiene em geral.
Esse conjunto de medidas indica a presença de novos valores em uma
sociedade ainda baseada na escravidão e na exploração agrária. E,
certamente, não deve ter sido fácil para o governo português implementar
idéias européias nas condições específicas apresentadas pela Colônia.
Mais tarde, já no fim do século XIX e começo do XX, podemos
presenciar o processo de modernização do Rio de Janeiro,
intensificado pela emergência da República, quando idéias de ser
“civilizado” e de europeizar a capital, em oposição à velha cidade da
sociedade patrimonial, estão entre as primeiras intenções do novo
regime político [...] Juntamente com a transformação física da cidade,
surgem novas atitudes em relação às pessoas e situações. A proposta
era ser “civilizado, como o eram os franceses e os europeus em geral.
Desse modo, toda sorte de expressões de relações sociais locais que
não fossem consideradas civilizadas eram combatidas pela imprensa
e proibidas por lei. As reuniões tradicionais, ou festas de grupos ou
comunidades, e até mesmo a serenata ou boêmia sofreram restrições.
Na mesma direção, cultos populares e religiosos foram proibidos. A
pobreza tornou-se um problema para a capital e não era mais tolerada
no centro da cidade; campanhas da imprensa procuraram eliminar
pessoas ou grupos marginais do centro da área urbana,
Esse período marcou a passagem das relações senhoriais às relações
do tipo burguês. A cidade burguesa teria sistematicamente de lutar
contra comportamentos, atitudes e expressões tradicionais que eram
considerados inadequados para a nova situação. O que se presenciava
era a dissolução das formas tradicionais de solidariedade representada
pela vizinhança, família e grupos clânicos, compadrio e tutelagem [...]
Com a aquisição de seu novo status de lugar público, a rua passou a
ser vista em oposição ao espaço privado – a casa. Visto que a cidade
tinha se transformado num lugar de interesse público, em que todas as
antigas formas de uso foram banidas ou ajustadas à nova ordem, muitas
pessoas tiveram de mudar não só o local de residência, mas também as
formas de diversão de raízes populares e grupais. Muitas delas e certos
cultos religiosos retornaram às casas ou a lugares do centro da cidade.
Inevitavelmente, essa nova condição deu um caráter ilegal a muitas das
expressões sociais tradicionais, e também impôs uma espécie de restrição
tanto à espontaneidade tradicional e cultural de certos grupos, quanto à
sua sociabilidade correspondente. (D’ Incao, 2006, p. 223-227).

No volume correspondente ao século XIX da História da Vida Privada,


Luiz Felipe de Alencastro, autor do texto Vida privada e ordem privada

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História do Brasil Império

no império, analisa as mudanças na sociedade brasileira desde que a Corte


portuguesa instalou-se no Rio de Janeiro, ressaltando também a influência
do modelo francês adotado pela sociedade brasileira.

Da senzala às favelas. (Fonte: Bueno, 2002, p.229).

O estabelecimento do Segundo Império na França (1852-70) dá


ao Segundo Reinado um novo tom de modernidade e confirma o
francesismo das elites brasileiras. Francesismo que ia além da cópia
das modas parisienses expostas nas lojas da rua do Ouvidor e referia-
se, também, à vida rural francesa. A um modo de vida caracterizado
por uma cultura camponesa rica [...] Folhetins, operetas e romances
vindos da França difundiam no Império a imagem de um modo de
vida rural, conservador e equilibrado [...]
Desenhava-se a representação de uma sociedade rural francesa que
aparecia como um paradigma de civilidade para a sociedade tropical
e escravagista do Império. Impresso em paris, e publicado pelo editor
francês Garnier, estabelecido no Rio e sócio da editora parisiense,
de mesmo nome, o Jornal das Famílias, cheio de gravuras coloridas
francesas e, frequentemente, de contos de Machado de Assis,
combinava os costumes franceses com a cultura local.
Daí a influência conjunta, por intermédio de autores franceses
e dos círculos francófilos, de três correntes de pensamento e de
prática social que, numa certa medida, se completam no cotidiano
do Segundo Reinado: o positivismo, o Kardecismo e a homeopatia.
O positivismo enfatiza, nos escritos de Auguste Comte, a
preeminência da cultura latina e introduz o Império do Brasil no
concerto das grandes nações contemporâneas: não era pouca coisa
para um país ate´então vilipendiado por causa do tráfico negreiro.
O Kardecismo aparece como uma religião de brancos que integra
o cientificismo e um dos componentes catárticos, liberadores, das
religiões afro-brasileiras, o transe. Enfim, a homeopatia incorpora
[...] práticas da medicina afro-brasileira e da fitoterapia indígena.

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Brasil imperial: uma sociedade em transformação
Aula

Médicos homeopatas interessam-se pelas curas obtidas mediante


sonambulismo e o magnetismo, abrindo a via ao Kardecismo,
enquanto os positivistas fazem propaganda da homeopatia. Mudavam
8
as idéias, mudava também a música imperial.
Flauta, rabeca e violão apareciam como os instrumentos europeus
mais comuns no país até meados do século XIX. Harpa, cítara e
cravo circulavam menos, e o piano só entrara em poucos sobrados
do Rio, de recife e da Bahia, sendo praticamente desconhecido
noutras partes. Famílias importantes de senhores de engenho do
interior baiano não tinham nem visto um piano até os anos 1850
[...] Uma virada na música e nas danças imperiais sucede (a partir
de então) com o aumento das importações de pianos. Como se viu,
o Rio de Janeiro recebe nessa época carradas de bens de consumo
[...] A mercadoria-fetiche dessa fase econômica e cultural será o
piano [...] mais sólidos e menos sujeitos a reparos, os pianos podiam
viajar para os trópicos, servindo de frete para os navios estrangeiros
que respondiam à explosão da demanda de mercadorias inertes no
Império, depois de cessada a importação de mercadorias vivas [...]
Desenvolve-se um importante mercado para esse instrumento.
Possuíam-se pianos de todo jeito. Comprados à vista, em segunda
mão, por meio de crediário, no qual o vendedor aceitava o modelo
antigo de entrada para a compra de um novo, ou alugados [...] De
alto valor agregado e de imediato efeito ostentatório – as suas
características que fazem desde então a felicidade respectiva dos
importadores e dos consumidores brasileiros de renda concentrada
-, o piano apresentava-se como o objeto de desejo dos lares
patriarcais. Comprando um piano as famílias introduziam um móvel
aristocrático no meio de um mobiliário doméstico incaracterístico
e inauguravam – no sobrado urbano ou na sede das fazendas – o
salão: um espaço privado de sociabilidade que tornará visível, para
observadores selecionados, a representação da vida familiar. Saraus,
bailes e serões musicais tomavam um novo ritmo. Vendendo um
piano, os importadores comercializavam – pela primeira vez desde
1808 – um produto caro, prestigioso, de larga demanda, capaz de
drenar para a Europa e os Estados Unidos uma parte da renda
local antes reservada ao comércio com a África, ao trato negreiro”.
(Alencastro, 1997, p. 43-47).

O livro História das mulheres no Brasil, organizado por Mary Del Priore, é
outro que apresentamos com a sugestão de leitura dos textos que têm como
foco a mulher no século XIX (Maternidade negada; Mulher e família burguesa;
Mulheres do sertão nordestino; Mulheres do Sul; Psiquiatria e Feminilidade; Escritoras,
escritas, escrituras; Mulheres na sala de aula e Freiras no Brasil; Trabalho feminino
e sexualidade, são títulos dos capítulos cuja leitura recomendamos). Na ab-
ertura do capítulo Mulher e família burguesa, Maria Ângela D’Incao escreve:

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História do Brasil Império

Presenciamos ainda nesse período (século XIX) o nascimento de


uma nova mulher nas relações da chamada família burguesa, agora
marcada pela valorização da intimidade e da maternidade. Um sólido
ambiente familiar, o lar acolhedor, filhos educados e esposa dedicada
ao marido, às crianças e desobrigada de qualquer trabalho produtivo
representavam o ideal de retidão e probidade, um tesouro social
imprescindível. Verdadeiros emblemas desse mundo relativamente
fechado, a boa reputação financeira e a articulação com a parentela
como forma de proteção ao mundo externo também marcaram o
processo de urbanização do país (p. 222).

Afora o papel reservado à mulher burguesa, que incluía a “segurança”


proporcionada pelo casamento e pelos cuidados com a família, longe do
trabalho produtivo, o que a nova sociedade reservou às mulheres pobres,
imigrantes e ex-escravas? No capítulo Trabalho Feminino e Sexualidade, que
também compõe a História das Mulheres no Brasil, Margareth Rago nos dá
algumas respostas. É da sua autoria o texto que transcrevemos a seguir.

O UNIVERSO DO TRABALHO FEMININO

Italianas, espanholas, portuguesas, alemãs, romenas, polonesas, húnga-


ras, lituanas, sírias, judias, a grande maioria das operárias das primeiras fábri-
cas instaladas no país fazia parte da imigração européia. Fotos conhecidas
revelam uma quantidade enorme de moças jovens e brancas trabalhando
nas fábricas, especialmente em São Paulo, e os documentos indicam sua
nacionalidade estrangeira.

Desde meados do século XIX, o governo brasileiro procurou atrair


milhares de imigrantes europeus para trabalhar tanto na lavoura,
nas fazendas de café, quanto nas fábricas que surgiam nas cidades,
substituindo a mão-de-obra escrava, especialmente depois da
promulgação da Lei do Ventre Livre e
da Abolição dos Escravos. Entre 1880
e 1930, entraram no país cerca de 3,5
milhões de imigrantes. Um terço deles, ou
melhor, 1.160.000 eram italianos; 1 milhão,
portugueses; 560 mil, espanhóis; mais de
112 mil eram alemães; 108 mil, russos e 79
mil, australianos [...] Esses trabalhadores
foram o principal contingente das fábricas
que cresciam no Rio de Janeiro e em São
Paulo.
A industrialização brasileira teve início
no Nordeste do país entre as décadas
O trabalho feminino na Indústria têxtil. de quarenta e sessenta do século XIX –
(Fonte: www.cursosjb.com.br ).

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Brasil imperial: uma sociedade em transformação
Aula

especialmente, com a indústria de tecidos de algodão na Bahia – e


deslocou-se progressivamente para a região Sudeste. Na passagem
desse século, o Rio de Janeiro reunia a maior concentração operária
8
do país, tendo sido superado por São Paulo apenas nos anos de 1920.
Embora se possa dizer que há um bom número de estudos relativos à
história da imigração e da industrialização no Brasil, ainda muito pouco
foi feito no sentido de se focalizar a presença feminina nesse processo.
Sabemos, entretanto, que era significativo o número de mulheres e
crianças imigrantes e que essa força de trabalho, abundante e barata, e a
maioria em nossas fábricas. De acordo com o censo, em 1890, existiam
no Brasil 119.581 mulheres estrangeiras contra 231.731 homens.
De modo geral, um grande número de mulheres trabalhava nas
indústrias de fiação e tecelagem, que possuíam escassa mecanização;
elas estavam ausentes de setores como metalurgia, calçados e
mobiliário, ocupados pelos homens. Em 1894, dos 5.019 operários
empregados nos estabelecimentos industriais localizados na cidade
de São Paulo, 840 eram do sexo feminino e 710 eram menores [...]
Na indústria têxtil, encontravam-se 569 mulheres, o que equivalia a
677,62% da mão-de-obra feminina empregada nesses estabelecimentos
fabris. Nas confecções, havia aproximadamente 137 mulheres. Já em
1901, um dos primeiros levantamentos sobre a situação da indústria
no estado de São Paulo constata que as mulheres representavam cerca
de 49,95% do operariado têxtil, enquanto as crianças respondiam por
22,79%. Em outras palavras, 72,74 dos trabalhadores têxteis eram
mulheres e crianças ]...]
Apesar do elevado número de trabalhadoras nos primeiros
estabelecimentos fabris brasileiros, não se deve supor que elas foram
progressivamente substituindo os homens e conquistando o mercado
de trabalho. Ao contrário, as mulheres vão sendo progressivamente
expulsas das fábricas, na medida em que avançam a industrialização e a
incorporação da força de trabalho masculina. As barreiras enfrentadas
pelas mulheres para participar do mundo dos negócios eram sempre
muito grandes, independentemente da classe social a que pertencessem.
Da variação salarial à intimidação física, da desqualificação intelectual
ao assédio sexual, elas tiveram sempre de lutar contra inúmeros
obstáculos para ingressar em um campo definido – pelos homens –
como “naturalmente masculino”. Esses obstáculos não se limitavam
ao processo de produção; começavam pela própria hostilidade com
que o trabalho feminino fora do lar era tratado no interior da família.
Os pais desejavam que as filhas encontrassem um “bom partido” para
casar e assegurar o futuro, e isso batia de frente com as aspirações de
trabalhar fora e obter êxito em suas profissões [...]
As pesquisas apontam, portanto, para uma direção totalmente contrária
à que imaginamos quando pensamos no impacto da presença feminina
na constituição do parque industrial brasileiro. Somos informados de
que as mulheres foram progressivamente expulsas e substituídas pela

149
História do Brasil Império

mão-de-obra masculina no início do século XX. Assim, enquanto em


1872 as mulheres constituíam 76% da força de trabalho das fábricas,
em 1950, passaram a representar apenas 23%. O desenvolvimento
das indústrias, intensificado pela Primeira Guerra Mundial, que trouxe
um aumento de 83,3% da população operária no espaço de treze
anos, explica-se pela ampla incorporação do trabalho masculino em
detrimento do feminino [...]
As mulheres negras, por sua vez, após a Abolição dos escravos,
continuariam trabalhando nos setores os mais desqualificados
recebendo salários baixíssimos e péssimo tratamento. Sabemos que
sua condição social quase não se alterou, mesmo depois da Abolição e
da formação do mercado de trabalho livre no Brasil. Os documentos
oficiais e as estatísticas fornecidas por médicos e autoridades policiais
revelam um grande número de negras entre empregadas domésticas,
cozinheiras, lavadeiras, doceiras, vendedoras de rua e prostitutas, e suas
fotos não aparecem nos jornais de grande circulação do período [...]
ao contrário do que ocorre com as imigrantes européias. Contrastando
com o texto das notícias que relatavam crimes passionais ou “batidas
policiais” nos bordéis e casas de tolerância, nos jornais, as fotos
ilustrativas revelavam meretrizes brancas, finas e elegantes, lembrando
muitas vezes as atrizes famosas da época.
Normalmente, as mulheres negras são apresentadas, na documentação
disponível, como figuras extremamente rudes, bárbaras e promíscuas,
destituídas, portanto, de qualquer direito de cidadania. Na verdade,
além de suprir o mercado de trabalho livre com mão-de-obra barata, as
elites brasileiras, inspiradas pelas teorias eugenistas que se formularam
na Europa e nos Estados Unidos, preocupavam-se profundamente
com a formação do “novo trabalhador brasileiro”, cidadão da
pátria, disciplinado e produtivo – e, evidentemente, dedicavam
muitas horas discutindo “o embraquecimento e o fortalecimento da
raça”. Muitos esforços foram feitos para que os imigrantes viessem
predominantemente dos países europeus, e “não da Ásia, nem da
África”, conforme afirmavam os defensores dessa tese. (p. 580-583).

Além do trabalho nas fábricas de tecidos e das atividades voltadas para a


vida doméstica, uma opção oferecida às mulheres pelo mercado de trabalho
que começou a organizar-se no final do século XIX foi o magistério. O
texto Mulheres na sala de aula, também do livro História das mulheres no Brasil
e escrito por Guacira Lopes Louro, diz respeito ao assunto.

O MAGISTÉRIO TRANSFORMA-SE
EM TRABALHO DE MULHER
O abandono da educação nas províncias brasileiras, denunciado
desde o início do Império, vincula-se, na opinião de muitos, à falta

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Brasil imperial: uma sociedade em transformação
Aula

de mestres e mestras com boa formação. Reclamavam, então, por


escolas de preparação de professores e professoras. Em meados
do século XIX, algumas medidas foram tomadas em resposta a tais
8
reclamos e, em algumas cidades do país, logo começaram a ser criadas
as primeiras escolas normais para formação de docentes.
Tais instituições foram abertas para ambos os sexos, embora o
regulamento estabelecesse que moças e rapazes devessem estudar em
classes separadas, preferentemente em turnos ou até escolas diferentes.
Vale lembrar que a atividade docente, no Brasil, como em muitas outras
sociedades, havia sido iniciada por homens – aqui, por religiosos,
especialmente jesuítas, no período compreendido entre 1549 e 1759.
Posteriormente, foram homens que se ocuparam do magistério com
mais freqüência, tanto como responsáveis pelas “aulas régias” – oficiais
– quanto como professores que se estabeleciam por conta própria.
Agora, no entanto, as mulheres eram também necessárias e as classes
de meninas deveriam ser regidas por “senhoras honestas”.
Ao serem criadas as escolas normais, a pretensão era formar
professores e professoras que pudessem atender a um esperado
aumento na demanda escolar. Mas tal objetivo não foi alcançado
exatamente como se imaginava; pouco a pouco, os relatórios iam
indicando que, curiosamente, as escolas normais estavam recebendo
e formando mais mulheres que homens. Em 1874, por exemplo,
relata o diretor geral da instrução que a escola Normal da província
do Rio Grande do Sul vinha registrando “um número crescente de
alunas, a par da diminuição de alunos” [...]
O mais grave era que tal tendência não parecia ser uma característica
apenas dessa província. Em algumas regiões de forma mais marcante,
noutras menos, os homens estavam abandonando as salas de aula. Esse
movimento daria origem a uma “feminização do magistério” – também
observado em outros países -, fato provavelmente vinculado ao processo
de urbanização e industrialização que ampliava as oportunidades de
trabalho para os homens. A presença dos imigrantes e o crescimento dos
setores sociais médios provocavam uma outra expectativa com relação
à escolarização. Esses fatores e ainda a ampliação das atividades de
comércio, a maior circulação de jornais e revistas, a instituição de novos
hábitos e comportamentos, especialmente ligados às transformações
urbanas, estavam produzindo novos sujeitos sociais tudo concorria para
a viabilização desse movimento.
O processo não se dava, contudo, sem resistências ou críticas. A
identificação da mulher com a atividade docente, que hoje parece
a muitos tão natural, era alvo de discussões, disputas e polêmicas.
Para alguns parecia uma completa insensatez entregar às mulheres
usualmente despreparadas, portadoras de cérebros “pouco
desenvolvidos” pelo seu “desuso” a educação das crianças. Um dos
defensores dessa idéia, Tito Lívio de Castro, afirmava que havia uma
aproximação notável entre a psicologia feminina e a infantil e, embora

151
História do Brasil Império

essa semelhança pudesse sugerir uma “natural” indicação da mulher


para o ensino das crianças, na verdade representava “um mal, um
perigo, uma irreflexão desastrosa”. Na sua argumentação, mulheres
e clero vivam para o passado e, portanto, não poderiam “preparar
organismos que se devem mover no presente ou no futuro”.
Outras vozes surgiam para argumentar na direção oposta. Afirmavam
que as mulheres tinham, “por natureza”, uma inclinação para o trato
com as crianças, que elas eram as primeiras e “naturais educadoras”,
portanto, nada mais adequado do que lhes confiar a educação escolar dos
pequenos. Se o destino primordial da mulher era maternidade, bastaria
pensar que o magistério representava, de certa forma, “a extensão
da maternidade”, cada aluno ou aluna vistos como um filho ou filha
“espiritual”. O argumento parecia perfeito: a docência não subverteria
a função feminina fundamental, ao contrário, poderia ampliá-la ou
sublimá-la. Para tanto seria importante que o magistério fosse também
representado como uma atividade de amor, de entrega e doação [...]
Esse discurso justificava a saída dos homens das salas de aula –
dedicados agora a outras ocupações, muitas vezes mais rendosas
– e legitimava a entrada das mulheres nas escolas – ansiosas para
ampliar seu universo -, restrito ao lar e à igreja. A partir de então
passam a ser associadas ao magistério características tidas como
“tipicamente femininas”: paciência, minuciosidade, afetividade,
doação. Características que, por sua vez, vão se articular à tradição
religiosa da atividade docente, reforçando ainda a idéia de que a
docência deve ser percebida mais como um “sacerdócio” do que
como uma profissão. Tudo foi muito conveniente para que se
construísse a imagem das professoras como “trabalhadoras dóceis,
dedicadas e pouco reivindicadoras”, o que serviria futuramente
para lhes dificultar a discussão de questões ligadas a salário, carreira,
condições de trabalho etc. [...]
Percebida e constituída como frágil, a mulher precisava ser protegida
e controlada. Toda e qualquer atividade fora do espaço doméstico
poderia representar um risco. Mesmo o trabalho das jovens das camadas
populares nas fábricas, no comércio ou nos escritórios era aceito como
uma espécie de fatalidade. Ainda que indispensável para a sobrevivência,
o trabalho poderia ameaçá-las como mulheres, por isso o trabalho deveria
ser exercido de modo a não as afastar da vida familiar, dos deveres
domésticos, da alegria da maternidade, da pureza do lar [...]
Foi também dentro desse quadro que se construiu, para a mulher,
uma concepção do trabalho fora de casa como ocupação transitória,
a qual deveria ser abandonada sempre que se impusesse a verdadeira
missão feminina de esposa e mãe. O trabalho fora seria aceitável para
as moças solteiras até o momento do casamento, ou para as mulheres
que ficassem sós – as solteironas e viúvas. Não há dúvida que esse
caráter provisório ou transitório do trabalho também acabaria
contribuindo para que os seus salários se mantivessem baixos. Afinal

152
Brasil imperial: uma sociedade em transformação
Aula

o sustento da família cabia ao homem; o trabalho externo para ele


era visto não apenas como sinal de sua capacidade provedora, mas
também como sinal de sua masculinidade [...]
8
Os argumentos religiosos e higienistas responsabilizavam a mulher
pela manutenção de uma família saudável – no sentido mais amplo
do termo. A esses argumentos iriam se juntar, também, os novos
conhecimentos de psicologia, acentuando a privacidade familiar e o
amor como indispensáveis ao desenvolvimento físico e emocional das
crianças. O casamento e a maternidade eram efetivamente constituídos
como a verdadeira carreira feminina. Tudo o que levasse as mulheres a
se afastarem desse caminho seria percebido como um desvio da norma.
Como vimos, as atividades profissionais representavam um risco para as
funções sociais das mulheres. Dessa forma, ao se feminizarem, algumas
ocupações, a enfermagem e o magistério, por exemplo, tomaram
emprestado as características femininas de cuidado, sensibilidade,
amor, vigilância etc. de algum modo se poderia dizer que os “ofícios
novos” abertos às mulheres neste fim de século levarão a dupla marca
do modelo religioso e da metáfora materna: dedicação-disponibilidade,
humildade-submissão, abnegação-sacrifício. (p. 448-454).

CONCLUSÃO
Com maior projeção nas décadas finais do século XIX, a urbanização
permite um olhar sobre as mudanças sociais em curso à época. Até mais
ou menos esse período, os núcleos urbanos mantinham o caráter limitado
que tinha sido sua marca no Brasil colonial.
Foram as modificações na estrutura econômica e social, cujo início
pode ser datado a partir de 1870: abolição da escravatura, desenvolvimento
das redes de transportes, imigração, industrialização, que, ao estimularem
o processo de urbanização, também ajudaram a criar novas formas de so-
ciabilidade e a mudar também o mundo feminino.

RESUMO
Diante da abrangência de possibilidades de análise da sociedade
brasileira no século XIX, optamos por abordar as mudanças sociais com
o foco em duas questões: a da urbanização e a da mulher. No caso da
urbanização, é possível acompanhar as linhas gerais das transformações
por que passaram os núcleos urbanos entre o começo e o final do século
XIX, como a adoção de medidas higiênicas, a normatização dos espaços
públicos, os novos hábitos culturais, etc. Já no que diz respeito à mulher,
embora tenhamos selecionado textos com foco no trabalho, sugerimos a
leitura de outros que vão indicados nas referências.

153
História do Brasil Império

ATIVIDADES

1. Compare a descrição dos núcleos urbanos na primeira e na segunda


metade do século XIX e faça uma relação das mudanças indicadoras do
avanço da urbanização.
2. Faça um resumo do texto o universo do trabalho feminino.
3. Comente o texto que trata do magistério como trabalho da mulher.

REFERÊNCIAS

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FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. – 39 ed. – Rio de Janeiro:
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histórica ao estudo da mulher negra no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1988.
LEITE, Míriam Moreira (org.). A condição feminina no Rio de janeiro,
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XIX. São Paulo: Corrupio; Brasília: CNPq, 1988.
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NOVAIS, Fernando A.; ALENCASTRO, Luiz Felipe de. História da Vida
Privada: Império. v 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
PRIORE, Mary Del (org.). História da Criança no Brasil. São Paulo:
Contexto,1991.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um
monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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