Mídia e Regulação Moral: o Programa The Love School
Mídia e Regulação Moral: o Programa The Love School
Mídia e Regulação Moral: o Programa The Love School
Resumo:
Este artigo analisa o programa televisivo de aconselhamento amoroso da Igreja Universal do Reino de
Deus: The Love School. Busca compreender o uso cultural e político da mídia a partir de como a
mesma cria/representa seu ideal de relacionamento a dois e sugere, assim, formas de agir na conduta
de si e do outro. Para tanto, são descritos e analisados: a estrutura, os quadros, as narrativas do
programa assim como o discurso (conselhos e orientações) dos apresentadores.
Observou-se que o programa (i) reforça estereótipos de gênero; (ii) encena testemunhos como
episódios de pânico moral; (iii) tem um formato de entretenimento/auto-ajuda, sem vínculo direto com
a igreja, mas a coloca como o turning point na vida das pessoas; (iv) direciona os telespectadores para
o templo e para o consumo de itens religiosos; (v) ‘ensina’ por meio da linguagem do melodrama; (vi)
propõe a sujeição e exploração da mulher para o sucesso do relacionamento conjugal e da família. Por
fim (vi) direcionam todo episódio para a regulação moral.
Mídia e regulação moral: o programa The Love School.
Introdução
The Love School é um programa televisivo lançado em novembro de 2011 e exibido aos
sábados na Record TV. Durante uma hora, os apresentadores – Cristiane e Renato Cardoso, com a
participação de Cintia e Carlos Cuccato – dão dicas para um relacionamento feliz a dois.
Cristiane é a filha mais velha do bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de
Deus (IURD) e sócio majoritário da emissora de televisão que exibe o programa. Ela é casada desde
os 17 anos com Renato Cardoso, também bispo da Universal, e provável substituto de Macedo na
liderança do seu império 1.
O programa é anunciado como entretenimento, na categoria ‘variedades’, dentro da grade de
atrações da Record. É apresentado como uma performance de autoajuda, sem referência ao universo
religioso do qual faz parte: não cita Deus, não fala da igreja. No entanto, em todos os episódios, o
telespectador é convidado a frequentar os encontros da Terapia do Amor, que é o tema do culto
realizado nas IURD de todo o Brasil às quintas-feiras. O viés ideológico do programa também aparece
na curiosa escolha por um nome em inglês ‘The Love School’ - sempre seguido de sua tradução ‘Escola
do Amor’-, um tanto distante do público da tevê aberta e da realidade dos fiéis da Igreja Universal,
cuja renda e escolaridade são historicamente menores que a média da população brasileira 2
(MARIANO, 2004: 122).
Como todo objeto cultural, The Love School é produzido dentro de um contexto sócio histórico,
norteado por questões econômicas, políticas e uma moral hegemônica. Na pretensão de ensinar casais
e solteiros a se relacionar, o programa designa papéis a homens e mulheres, aponta comportamentos
corretos e errados a serviço de uma forma de viver que ajuda a construir ou que pretende conservar.
Este artigo analisa episódios da Escola do Amor e suas representações da experiência amorosa
a dois. Busca compreender o conteúdo veiculado considerando que se trata de um produto televisivo
– submetido a uma dinâmica de mercado - e de base religiosa neopentecostal, cuja presença na
1
Em entrevista sobre Edir Macedo, o jornalista Gilberto Nascimento explica como o bispo tem preferido concentrar o poder no eixo
familiar (seu genro, Renato Cardoso) a delegá-lo a terceiros. Trata-se de uma estratégia para evitar o crescimento de pastores que
possam se tornar grandes lideranças e rivalizar com a Universal na disputa por fiéis. (Dip, 2020).
2
Sobre a renda e escolaridade, Ricardo Mariano se refere ao segmento pentecostal evangélico, no qual a Igreja
Universal é classificada segundo alguns autores e pelo Censo produzido pelo IBGE. O Censo usa a determinação
‘Evangélicos de origem pentecostal’ para a IURD.
sociedade brasileira se faz cada dia maior, por meio de uma infinidade de programas sociais e de um
percurso político consistente desde a redemocratização até os dias de hoje.3
Referencial teórico
Stuart Hall (2016) define cultura como um conjunto de práticas que geram entre as pessoas
intercâmbio e produção de sentido (p.20). A cultura possibilita a construção de significados em comum
a partir de uma linguagem. A produção de sentido, que define a cultura, acontece no dia a dia, em
diversos momentos da vida: no compartilhamento de cada interação social e pessoal; é produzido na
escola, na família, nas instituições, na mídia e também nos objetos, nas histórias que construímos em
torno deles (p.22). Assim, a partir da descrição e da análise das relações representadas no programa,
procura-se apontar como The Love School serve de espaço para a produção e circulação de sentido
sobre a vida conjugal e que relações de poder - disputas do corpo social - aparecem em suas histórias,
ajudando a formar novas, ou a reproduzir certas, práticas culturais.
Hier (2011) traz reflexões sobre o ‘pânico moral’4 assim como estudos de caso sobre o conceito
em diferentes contextos e épocas. As reflexões apontam para muitos caminhos possíveis na construção
de pânicos morais na sociedade: utiliza-se uma narrativa específica que exagera e distorce; mobiliza-
se emoções (WALBY & SPENCER, 2011) como, por exemplo, o medo (FUREDI, 2011). Comumente
pânicos morais são instrumentos para regulação coletiva (HUNT, 2011) ou seja, mecanismo de
controle da conduta. Existem muitas nuances na pesquisa exploratória sobre o tema. Como e porquê
pânicos morais são produzidos variam dependendo do objeto e do momento histórico analisado. A
causa geradora do pânico moral é uma construção social, cuja participação dos meios de comunicação
tem grande destaque entre outros atores e reinvindicações sociais. Wright (2015) aponta para a
existência de uma linguagem característica, o melodrama, nas estruturas de formação do pânico moral.
A obra organizada por Hier é bastante elucidativa para pensar processos de moralização a partir da
mídia e, consequentemente, para avaliar as práticas normativas do programa The Love School.
3 A primeira bancada evangélica foi formada no Congresso Constituinte de 1986. Em 2003 a bancada fortalecida formou a primeira
Frente Parlamentar Evangélica (Cunha, 2018) que reúne membros de diversas igrejas. Atualmente a Frente Parlamentar Evangélica é a
terceira maior frente no Congresso com 193 membros - 185 deputados e 8 senadores. A Universal possui ainda um partido político, o
Republicanos – PRB/2006, antigo PMR/2004 fundado por Marcelo Crivella, sobrinho de Edir Macedo. Frente Parlamentar Evangélica
do Congresso Nacional disponível em:https://www.camara.leg.br/internet/deputado/frenteDetalhe.asp?id=54010
4
Stanley Cohen desenvolveu o conceito de ‘pânico moral’ em sua obra Folk Devils and Moral Panics: The Criation of the
Mods and Rockers, em 1972, para se referir a maneira como a mídia britânica cobria os encontros de jovens fãs de rock dos anos
1960. O termo ‘pânico moral’ caracterizava uma cobertura midiática conservadora, que distorcia a realidade (esporádicas bagunças
juvenis eram relatadas como encontros violentos) construindo estereótipos de jovens rockeiros e moods como degenerados. A análise
do contexto aponta para o fato da juventude que se formava à época ter comportamentos diferentes (noturno e eventual uso de
drogas) e assim ‘desviante’, o que criava desconforto e reivindicações (sentimento que Hier define de forma mais ampla como
‘ansiedade’) na sociedade para os mais conservadores inclusive a imprensa.
Conjuntura brasileira
The Love School surge após mais uma década de crescimento evangélico no Brasil5. Dentro da
enorme diversidade que abrange a denominação ‘evangélicos’6, os neopentecostais se consolidam
como força midiática (donos de grandes empreendimentos de comunicação como a Record TV de Edir
Macedo e Rit TV de R.R.Soares, seu cunhado, por exemplo); como força econômica (movidos pela
teologia da prosperidade) além da já mencionada participação política.
Para atingir seu largo público, a IURD mobiliza comunicação para todos os gostos. O bispo
Macedo afirma que o sucesso da Universal e ‘a força para realizar tanto vem de uma só fonte: a
palavra” (MACEDO, 2017). Assim, entender o projeto da Escola do Amor passa por entender a estreita
ligação da IURD com os meios de comunicação de massa e o televangelismo. A primeira parte deste
trabalho, portanto, (i) busca contextualizar a Igreja Universal, sua expansão e seu elo político e
midiático no Brasil. Em seguida, (ii) apresenta-se o formato do programa, seus principais quadros para,
posteriormente (iii) dedicar atenção às narrativas e representações dessa mídia. Por último, (iv) são
apresentadas as considerações finais.
5
Segundo o Censo de 2010, a Igreja Universal do Reino de Deus é a quarta maior igreja evangélica no Brasil com 1.873.243 fiéis. Ela
fica atrás da Assembleia de Deus (12.314.410), da Igreja Batista (3.723.853) e da Congregação Cristã no Brasil (2.289.634). A população
brasileira evangélica conta com 42,3 milhões fiéis e representam 22% da população. Dos anos 2000 até 2010, somou-se mais 16
milhões de brasileiros ao grupo, um crescimento anual de 6,8%. (IBGE, 2013).
6 Os evangélicos são um grupo muito diverso. Existem os protestantes históricos, como as igrejas Luterana, Presbiteriana, Anglicana,
Congregacional, Metodista, Batista, Adventista, e os pentecostais. O pentecostalismo tem origem nos Estados Unidos no início do
século XIX, sua base é o metodismo com cantorias e práticas assimiladas do movimento Holiness. Tradicionalmente é sectário e
ascético, ou seja, prega um comportamento de seita onde o caminho para a salvação é o da abnegação, de privações e da austeridade
(MARIANO, 1999:148). O pentecostalismo evolui para uma adequação à emergente sociedade de consumo, que passa a poder
usufruir de certo bens e o quer fazer sem se confrontar com os desígnios morais da religião que pratica.
seja feliz, o que está diretamente associado a poder viver bem, ter acesso a bens de consumo. Há um
enorme foco na prosperidade econômica. Toda segunda-feira na IURD, por exemplo, acontece o
‘Congresso para o sucesso: palestras motivacionais para o sucesso financeiro’. A riqueza é percebida
como bem divino a ser usufruído neste mundo. Para tanto, o fiel deve ‘dar para receber’ assim como
proferir palavras a Deus com muita fé. Os neopentecostais também seguem a teologia do domínio
caracterizada pelo intenso combate entre o bem e o mal (MARIANO, 1999:44-45).
A vertente neopentecostal tem tido uma conversão impressionante desde os anos de 1980. Hoje
– 43 anos após a sua fundação no galpão de uma funerária desativada no interior do Rio de Janeiro e
das inúmeras polêmicas que acompanharam o seu crescimento7 - a Universal está em 95 países, tem
14 mil pastores, 320 mil bispos, 7157 templos no Brasil e 2.857 no exterior (BALLOUSIER, 2017).
A aquisição de canais de comunicação é parte importante da história do crescimento da Igreja
Universal. Por meio desses canais a igreja pratica o proselitismo e atrai fiéis para os cultos. Nos anos
1980, a evangelização eletrônica, via rádio, tinha muitas vantagens em relação à televisão como menor
preço de locação ou de compra e uma audiência, na época, superior à da teve (MARIANO, 1999:66).
O investimento em rádio segue até os dias de hoje, com cobertura e programação nacional em todo o
Brasil, a rádio Aleluia, e também nas ações de transnacionalização da Universal como apontado por
ORO (2004).
Em 1989, a Universal compra a TV Record que, diferentemente da rádio, nasce com uma
programação comercial e não exclusivamente religiosa. A emissora tem telejornal próprio, produz
conteúdo noticioso e conteúdo local nas emissoras regionais além de programas de entretenimento,
como The Love School. Em 2012 transmitiu com exclusividade os jogos Olímpicos de Londres,
normalmente exibidos pela Globo, após pagar “valor insuperável e muito acima do mercado”
(TAVOLARO, 2007:20). No Brasil, meios de comunicação de massa tem como finalidade o serviço
público. Portanto, entidades privadas e paraestatais precisam de autorização do governo para operar.
Parte da participação política da Igreja Universal é reconhecidamente investida para garantir a
expansão e a preservação da instituição, como as licenças para os meios de comunicação, concessão
de terrenos e isenção de impostos.
Hoje pode-se observar uma forte presença online da Universal. As ações e programas sociais
da igreja são amplamente divulgadas na internet com ajuda das redes sociais. A produção da TV
7 Edir Macedo foi acusado de charlatanismo, peculato e falsidade ideológica. Passou 11 dias preso em 1992. Rivalizava com a Globo,
assumidamente católica e a acusava de perseguição. A mesma fez uma minissérie de 12 capítulos em 1995 (Decadência, de Dias Gomes,
cuja referência aos cultos e a figura do pastor representavam associações claras com as práticas de Edir Macedo). Em 1995 o Fantástico
divulgou um vídeo onde o pastor ensinava a arrancar dinheiro dos fiéis no mesmo ano houve o episódio do chute da santa pelo bispo
Sergio Von Helder que chocou não somente a comunidade católica, mas a população brasileira (NASCIMENTO, 2019).
também está na web. Canais digitais foram abertos para contato com os fiéis, como o pastor online 8 e
a programação do maior templo da Universal, o Templo de Salomão em São Paulo, é enviada pelo
telegram. Os principais bispos da igreja têm blogs9, canais no youtube e no instagram além de
Facebook e Twitter. Há, por exemplo, lives no instagram todas sextas anunciando o programa The
Love School exibido aos sábados. No entanto, há ausência de uma pesquisa quantitativa que reúna os
dados sobre a presença digital da Universal, mesmo que se possa identificar facilmente seu
investimento nessa área desde o e-commerce (Arcacenter) ao streaming de conteúdo cristão
(Univervídeos)10.
Nesse interim religioso mergulhado em ideais mercadológicas, cuja produção de conteúdo
abrange diversas faixa etárias e perfis, voltamos à teologia da prosperidade e ao ideal de sucesso, que
também alcança a vida amorosa. A aprendizagem de um ‘amor inteligente’ e da ‘economia a dois’
aparecem na Terapia do amor11, palestra focada em ensinar casais e solteiros como “se comportar no
relacionamento ou enquanto espera pela pessoa amada”, que já foi ministrada pelo casal Cristiane e
Renato Cardoso, no maior unidade da igreja em São Paulo – o Templo de Salomão, que tem 100 mil
metros quadrados, capacidade para 10 mil pessoas e custou R$460 milhões - sob o slogan de uma
“palestra focada no sucesso da vida amorosa”.
No ar desde novembro de 201112, o programa The Love School sofreu algumas modificações
ao longo do tempo sem perder sua essência. Trabalha um tema a cada episódio, que é ilustrado por
depoimentos e participação de pessoas comuns e, com certa frequência, de celebridades também. Os
depoimentos são feitos em diversos formatos como entrevistas, testemunhos, bate-papos e simulações
(encenações pré-produzidas de histórias pessoais).
Segundo Wright (2015) depoimentos e testemunhos são, na linguagem narrativa, formas de
aproximar o espectador do ato encenado. Tendemos a nos colocar no lugar da pessoa que está contando
a história de cunho pessoal e a experienciar um papel juntamente a ela. Trata-se de uma escolha de
https://www.universal.org/terapiadoamor/o-que-e-a-terapia-do-amor/
12 The Love School é simultaneamente transmitido nas rádios, com cobertura nacional, e pela IURD TV, o canal online da tevê aberta.
Posteriormente o episódio é disponibilizado no canal The Love School no youtube. O programa é exibido aos sábados, na Record TV, e
tem duração de uma hora (https://www.youtube.com/channel/UCMTkf464NixZhWWEVdWP0Rg). A grade de difusão está disponível
aqui: http://f.cl.ly/items/2910402B2I0v2h0B3i1Y/Canais%20de%20transmiss%C3%A3o-Love%20School.pdf.
aproximação. Após as experiências compartilhadas pelos entrevistados os professores, Renato e
Cristiane Cardoso, dão conselhos pontualmente. Perguntas enviadas previamente pelos telespectadores
também são respondidas. O espectador/aluno é convidado a interagir via redes sociais e por telefone.
O programa não é ao vivo e as interações servem como canal constante de troca ao longo da semana.
Todos os dias, exceto aos domingos, pequenos quadros vão ao ar mantendo a Escola do Amor
com uma presença midiática constante.13Os principais quadros da semana são: (1) Minuto do
casamento – um vídeo curto, de um minuto, com uma dica para preservar ou melhorar a vida a dois, e
(2) Laboratório de casais – uma discussão de relacionamento, onde o casal, frente a frente, fala de seus
conflitos, que são comentados posteriormente pelos apresentadores.
Ao longo dos episódios de sábado, pequenos quadros aparecem e são usados pontualmente na
grade de programação semanal assim como divulgados na internet. São eles 1. Hora do cafezinho (um
bate papo ao redor de uma mesa de lanches com outro casal de conselheiros para comentar as perguntas
enviadas pelos telespectadores); 2. Aprendendo com as celebridades (um casal famoso é convidado
para falar sobre seu relacionamento); 3. Contrapondo (quadro em que os apresentadores colocam seu
ponto de vista, contrário ao sentido veiculado originalmente, sobre uma notícia polêmica); 4. Alerta
(os apresentadores chamam a atenção para algo que está acontecendo ou pode acontecer na sociedade);
5. 3X4 (os apresentadores comentam três notícias de alta repercussão na internet); 6 Supervirtuosa
(uma mulher recebe conselhos de profissionais distintos para cuidar de si, do seu tempo e do seu
casamento); 7. Economia a dois (dicas de finanças para o casal) e 8. Trocando ideias (focado no
comportamento dos jovens).
Em 2020, a Escola do Amor lançou a temática ‘Laboratório de celebridades – versão não
autorizada’ e, em formato de reportagem, analisam ‘os porquês das relações das celebridades
fracassarem com tanta intensidade’14. O programa usa fatos que foram noticiados na mídia para
comentar a vida do famoso/a. Gretchen foi a primeira famosa a ter a vida ‘analisada’ no programa15.
The Love School funciona, portanto, como uma plataforma de conteúdos sobre comportamento
amoroso – uma marca guarda-chuva cujo programa principal é veiculado aos sábados – e que mobiliza
bastante material midiático, como a vida de famosos do universo do entretenimento .
13 Esses quadros também são divulgados nas redes (Instagram, Facebook, Twitter, Youtube) além do site do programa dentro da
emissora.
14 Lançamento do quadro Laboratório de Celebridades aqui: https://entretenimento.r7.com/love-school-escola-
amor/quadros/laboratorio-celebridades-versao-nao-autorizada-20022020
15
Há ainda A Escola do Amor Responde que já foi um programa de rádio, depois uma emissão televisionada, com duração de uma
hora, mas hoje foca em responder questões enviadas pelos alunos via redes sociais, e-mail ou site e é disponibilizado no instagram.
2.1 Apresentação das histórias: os testemunhos e a ponte com a Terapia do Amor.
Um recurso comumente utilizado para introduzir o tema dos episódios são as entrevistas nas
quais as pessoas compartilham suas histórias. É o caso por exemplo do episódio “Por que quanto
mais relacionamento mais difícil fica?”16 de outubro de 2019. Três entrevistados (duas mulheres e
um homem), sentados em um jardim, contam suas experiências anteriores em relacionamentos
amorosos malsucedidos. A câmera volta para o estúdio e os professores comentam as histórias
reforçando que “as marcas ainda não curadas do passado dificultam contemplar uma nova relação”. É
muito comum o uso de caixas de textos que acompanham e legendam as narrativas (fig1). Assim como
call to action para os canais de comunicação do programa (fig2) ilustrados abaixo:
Fig 1. Nara, uma das entrevistadas na primeira parte do Fig 2. Apresentadores Cris e Renato Cardoso comentam as entrevistas
programa. Legendas resumem e pontuam a narrativa. “Trauma e, na tela, legenda convida os alunos a interagirem. “Você precisa de
do passado: Grávida. Nara flagrou marido com outra”. conselhos para os problemas que tem enfrentado na vida amorosa?
Ligue agora: (11)3573-3535.”
Fig 3. História de Lucia. Na legenda: “Conheça a Fig 4. A narração em off de Lucia é acompanhada por
história da mulher abusada pelo marido por 18 anos” segmentos de sua fala destacados na tela da televisão.
anos”.
16 Ver episódio “Por que quanto mais relacionamento mais difícil fica”: https://www.youtube.com/watch?v=3MrHf3qiEkE
Lucia pergunta: “o que fazer para se ver livre dos traumas do passado e se entregar?”. Diz já
ter procurado ajuda em programas de neurolinguística – PNL, mas gostaria de saber a opinião dos
apresentadores, Cris e Renato. Eles avaliam o caso de Lucia e afirmam que ela se encontra em uma
situação de ‘mendicância amorosa’ onde qualquer migalha de afeto, devida a falta de uma experiência
de amor verdadeiro, faz com que ela aceite a relação; e aconselham Lucia a ‘se curar interiormente”
(fig 5). Ela precisa se ajudar, cuidar de “um problema interior, espiritual”. Renato diz que é algo mais
profundo do que ela pode tocar no momento. Afirma não ter simplesmente uma direção para dar a ela
porque ela precisa fazer “uma reprogramação da sua alma, do seu ser” (fig 6). E continua:
“O certo a fazer agora, que você não vai conseguir fazer, é você terminar esse relacionamento.
Parar qualquer relacionamento. Não entrar em outro. Cuidar de você. Se curar dos traumas
passados. Estar bem, feliz sozinha. E aí então passar a buscar uma outra pessoa (...) Mas a
condição emocional, espiritual, psicológica que você se encontra agora não permite você fazer
isso. Então o que você tem que fazer agora. Você tem que buscar ajuda urgente”.
A trilha sonora baixa, porém tensa, que toca de fundo e acompanha Renato, muda para uma música
mais tranquila e ele segue:
“Nas palestras da Terapia do Amor, as palestras do ‘amor inteligente’, que nós temos feito às
quintas feiras, nós temos mostrado que isso acontece. Porque o diferencial das palestras como
nós temos falado é que a pessoa não só recebe uma orientação, uma direção prática inteligente;
mas ela também recebe o poder17 para implementar o que ela sabe que tem que fazer, mas as
vezes não consegue. Porque, por exemplo, ela sabe que tem que se valorizar, mas ela não
consegue (...) Então quando você vier às palestras você vai conseguir. ”
Identificado o problema, é hora de apresentar a solução e Renato lança um desafio para Lucia,
o de ir a 7 palestras da Terapia do Amor. Ele garante que ela vai perceber imediatamente uma mudança
no seu interior. E que esse é o primeiro passo para a mudança.
Fig 5. Box informa: “Cris aconselha Fig 6. Box informa: “Renato sugere que Fig 7. Renato lança o desafio para que Lucia vá às
Lucia a se curar interiormente”. Lúcia reprograme toda alma dela” palestras presenciais da Terapia do Amor.
17
Segundo a teologia da prosperidade, aquilo que o fiel verbaliza com fé, o que declara em voz alta pode alterar a
realidade dado que a palavra é o meio pelo qual o crente pode determinar o que quer de Deus. A palavra assim
determina o que vai acontecer podendo ser caminho para a saúde plena, a riqueza e a felicidade. (MARIANO, 1999:
153)
que os recursos das legendas simplificam e resumem o que está sendo comunicado. Didatizam o
sentimento. Apontam para o espectador o ‘ponto alto’ na história (agressão, traição, o trauma) assim
como ‘a cura’ (reprogramar a alma, ir à terapia do amor).
Após ajudar Lucia, os apresentadores seguem para o quadro “Hora do Cafezinho”. Eles leem e
comentam a pergunta da aluna Valdineia, enviada por whatsapp. Nesse quadro, os apresentadores
recebem a companhia de um outro casal - Rodrigo e Deise - que também comentam as angustias de
Valdineia, em um clima casual ao redor de uma mesa de lanches.
Na mensagem enviada, Valdinéia diz ter ‘uma bagagem pesada’ com sua mãe, que a rejeita.
Diz que briga muito com o marido, que se agridem verbalmente e que ele quer divórcio. Por isso
propôs uma terapia de casais, mas ele não aceitou, então buscou ajuda no programa. Cris sugere que
‘as pessoas têm que parar de achar um culpado para as coisas’, porque isso não vai resolver o problema
delas. E afirma: ‘Valdineia, você precisa se ajudar. Você tem sido vítima de todo o mundo...dos seus
pais, do seu marido. Pare de ser vítima e comece a se ajudar” e Renato prossegue: ‘a separação não
vai resolver o problema de vocês (...) As pessoas pensam que tem problemas de relacionamento, mas
elas têm na verdade problemas pessoais que refletem no relacionamento (...) essas situações mal
resolvidas fazem os dois se chocarem’. E como foi com Lucia, a convidam a participar da Terapia do
Amor para tratar de si, das suas deficiências e aprender a ‘domar seu coração’.
Pode-se observar que comumente há uma perspectiva unilateral voltada para a mulher. Embora
os apresentadores reconheçam uma conduta reprovável masculina, não a condenam ou a criticam,
focando as orientações em condutas das entrevistadas para superar os maus tratos e, em geral, manter
o casamento. O casamento é colocado como um ideal a ser preservado (Valdineia) ou buscado (Lucia)
independente do sofrimento e das humilhações contadas pelas telespectadoras/alunas.
A quarta atração desse episódio é uma atividade com dois casais, estruturada, novamente, na
forma de desafio. Os casais são convidados a passar um fim de semana sem celular e a fazer um detox
dessa tecnologia. O objetivo é aproximar os pares promovendo maior interação entre eles com
atividades como aula de dança e tempo livre juntos. Ao final da experiência, ainda no hotel para onde
foram levados, a produção propõe uma caminhada em que cada um deve responder perguntas sobre
seu par. Eles recebem uma blusa do The Love Walk – a Caminhada do Amor promovida anualmente
pelo The Love School com exatamente o mesmo objetivo explorado na atração: propiciar um momento
de aproximação entre os casais. Ao final da experiência, concluem que o celular pode ser uma ótima
ferramenta, mas que deve ser usada com cuidado para não roubar o tempo do casal e aproveitam para
convidar a todos a participar da próxima Caminhada do Amor no dia 29/10/2019.
Por fim, abordam o caso de Anivaldo e Adriana. O casal que passou por muitos conflitos –
porque Anivaldo era possessivo, usuário de drogas e chegou a agredir a companheira fisicamente com
socos em uma de suas inúmeras crises de ciúmes – centra a narração na dor e nas dificuldades de
Adriana. Sua história é apresentada no modelo de ‘simulação’ ou seja, cenas mostrando o que foi
vivido, gravadas por atores que os representam, aparecem ao longo da narração. Adriana namorava
um traficante de drogas quando conheceu Anivaldo e começou a se relacionar com ele, o que fez com
que Anivaldo já começasse com um pé atrás o namoro e justificasse grande parte de suas agressões
nessa desconfiança. Adriana divide os percalços da vida a dois com sua mãe, que a convida para assistir
a palestra da Terapia do Amor. Anivaldo suspeita que ela está indo atrás de outro homem e
eventualmente a acompanha nos encontros. Até o dia em que ele tem uma overdose, resolve mudar de
vida e começa a frequentar a palestra voluntariamente. O casal diz que foi a Terapia do Amor que
mudou suas vidas.
Aos 58 minutos do programa, os apresentadores resgatam a pergunta que dá título ao episódio
e questionam “entendeu porque quanto mais relacionamento você tem mais difícil fica para você? Não
seria para você ter mais experiência no assunto e errar cada vez menos? Mas quanto mais
relacionamento as pessoas têm, mais problemas elas levam para o próximo”.
A conclusão do episódio parte de avaliações apenas casos de amor trágicos (Nara, Lucia,
Valdineia, Adriana) normalmente resolvidos pela Terapia do Amor que aparece como turning points
na vida das pessoas. Os professores não investigam a condição social dos fatos apresentados – não há
análise de contexto, apenas de episódios pontuais - e, na maior parte das vezes, reportado por apenas
um lado da relação. Trata-se de uma síntese sem análise social, focada na perspectiva individual de
quem conta a história, quase sempre depoimento de mulheres. A utopia em questão, direcionada pelos
apresentadores, é um crescimento com ênfase no ‘supere sozinho’ e ‘se fortaleça’, de forma totalmente
autocentrada. Bastante em sintonia com os valores neoliberais direcionados ao indivíduo,
‘empreendedor de si’, que colhe o resultado de suas ações, do seu mérito. Algumas mulheres (como
Valdineia) são acusadas inclusive de se vitimizarem. As circunstâncias e conjunturas nunca são
levadas em consideração e apontam apenas um caminho para o fortalecimento pessoal: frequentar as
palestras e eventos da Terapia do Amor.
Finalizam o episódio indicando o tema do próximo: ‘Bom a nossa aula termina por aqui. É tudo
por hoje. Mas olha só o que estamos preparando para você na próxima semana (...)”. Não se trata de
um formato necessariamente de sala de aula, não há elementos como cadeiras e um quadro negro, a
elaboração audiovisual supera isso, mas vemos a autoridade dos professores e dos alunos sendo
reforçada a todo momento e a clara pretensão pedagógica, a vontade de ensinar o que se pode ou não
fazer a partir, principalmente, dos erros de outras relações e do passado. Enfim, é explícito o interesse
em regular a conduta a partir de uma moral hegemônica.
III. ASPECTOS PEDAGÓGICOS DA ESCOLA DO AMOR
18
Biografia dos apresentadores disponível em: https://recordtv.r7.com/love-school-escola-amor/conheca-os-apresentadores-do-
the-love-school-escola-do-amor-14082020
19 Em 1984, a IURD criou no Rio de Janeiro a FATURD – Faculdade Teológica Universal do Reino de Deus, que não foi reconhecida pelo
MEC e foi extinta por Macedo 7 meses depois de aberta. Nas palavras de Macedo ‘Vamos ficar mantendo por uns dois ou três anos um
monte de vagabundo que podia estar trabalhando? Quer saber de uma coisa? O seminário está acabado. Pode fechar as portas e
dispensar os alunos. Quem quiser aprender a ser pastor vai aprender com o pastor do seu templo. E vai aprender igual”. (Nascimento,
2019:52)
20 Biografia Renato Cardos disponível em: https://unipro.com.br/member/renato-cardoso/
21No site https://nationformarriage.org/about não há informação acessível sobre curso de formação, apenas informações sobre ações
de boicotes à empresas e convites para serem representantes da causa localmente além de incentivo às doações.
22 Ver a história de Alexandra no episódio ‘o que fazer quando uma palavra te destrói’ disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=HBZqrPdpTR8
PLC-122/2006 – cujo objetivo era criminalizar a homofobia no Brasil. Parlamentares como Marcelo
Crivella (sobrinho de Edir Macedo) se posicionaram contra, defendendo sua liberdade de “falar
pejorativamente” contra o “homossexualismo” (p.40). Segundo Crivella (à época senador), a
aprovação da Lei tolheria a liberdade de expressão dos cidadãos que tem direito a se manifestar sobre
o tema publicamente. Crivella, anos depois, já no cargo de prefeito da cidade do Rio de Janeiro em
2019, também protagonizou a censura ao livro de história em quadrinhos “Vingadores: A cruzada das
crianças”, da Marvel, durante a Bienal, que estampava um beijo gay na capa23. Alegou que a obra
trazia “conteúdo sexual para menores” e que a prefeitura do Rio estava “protegendo os menores da
nossa cidade”.
Os arquétipos de relacionamento bem-sucedido são Ricardo e Cristiane. Eles são o modelo de
conduta do próprio discurso e usam sua história pessoal como a principal referência. Assumem a
autoridade de professores baseados na sua vivência de casados. Dirigem-se aos telespectadores como
‘alunos’ e aos programas como ‘aulas’. Afirmam ‘aconselhar’ muitos casais e apresentam as
ferramentas como os livros publicados juntos “Namoro blindado” e “Casamento blindado”, além das
palestras da Terapia do Amor e a Caminhada do Amor - The Love Walk. O método a ser apreendido
é o ‘amor inteligente’ e a ‘fé inteligente’, uma abordagem racional de assuntos de enorme
subjetividade.
Os muitos anos de vida conjugal – somado às suas reflexões sobre a vida a dois, que viraram
livros e palestras nos cultos (veiculadas no canal oficial da Universal, no Youtube e na Record Tv),
além dos programas para mulheres coordenados por Cristiane e a formação de Renato, são basicamente
o que os legitimam a dar conselhos, a desaprovar ou não certos comportamentos.
Dessa forma, suas orientações reforçam formas de viver baseadas em uma moral que zela pelo
casamento heteronormativo; são instrumentalizadas por livros escrito pelo casal (que devem ser
comprados) e pelos convites a ir ao templo - onde os alunos se tornam potenciais fiéis e dizimistas. Há
fins lucrativos que não são explicitados para os alunos já que colocam a aquisição desses bens como
‘ferramentas’ para alcançar o sucesso amoroso. A Caminhada do Amor, por exemplo, também não é
gratuita. Deve-se adquirir um kit com camiseta e questionário a ser preenchido sobre o parceiro. Os
apresentadores tem o papel de ‘empreendedores morais’, (Becker apud Hunt, 2011)24 agentes da moral
cuja atuação tem interesses de fundo (comerciais e financeiros), não necessariamente elucidados aos
alunos.
23https://oglobo.globo.com/cultura/crivella-manda-recolher-hq-dos-vingadores-com-beijo-gay-bienal-se-recusa-23930534
24‘Moral entrepreneur’ ou Empreendedor moral é trazido pelo autor, Alan Hunt, a partir da obra de Howard Becker, Outsiders (1963)
que identifica o empreendedor moral como agentes de moralização ligados a interesses capitalistas não especificados/velados. Os
agentes primários de moralização são normalmente movimentos sociais, ativistas ou agentes de estado.
Segundo Hunt (2011) agentes de moralização promovem ‘respeitabilidade’ a partir da criação
de ‘ressentimentos’: associações negativas difusas elaboradas sobre o outro – que diferem de uma
hostilidade, mas que tem enorme senso de rejeição. As desaprovações são feitas a fim de manter
posições sociais hegemônicas. Pode-se ver operar essa mecânica (respeitabilidade – ressentimento –
desaprovação – reforço da moral hegemônica) nos episódios da Escola do Amor, que problematiza
qualquer forma de relação amorosa diferentes do modelo incorporado pelos apresentadores, os
empreendedores morais.
Nas simulações das histórias, como de Anivaldo e Adriana, é onde fica mais evidente a escolha
do programa pela narrativa melodramática. A história encenada tem fortes cargas emocionais e
comumente cenas de violência. Há uma tensão constante criada pelo suspense de uma tragédia
anunciada, nesse caso protagonizada pelo convívio do namorado, violento e agressivo, contra a
namorada, oprimida e humilhada. O casal é retratado nas suas emotividades mais extremas. Segundo
Wright (2015), ‘os melodramas retratam seus personagens e suas ações em termos emocionais
altamente exagerados, a fim de demarcar claramente as fronteiras entre o bem e o mal, o certo e o
errado, a verdade e a justiça’25(p.3, trad.nossa). O maniqueísmo e a binaridade são elementos
fundamentais do melodrama, forma de contar história muito presente na Escola do Amor e mais
evidente ainda nos quadros de simulação.
Há a criação de uma enorme ansiedade em torno do relacionamento a dois. O campo de
incertezas sobre o outro, comum a qualquer relação, são representados em geral por experiências
trágicas de consequências desastrosas. Os encontros amorosos, quando não orientados por um ‘amor
inteligente’, tem seu potencial de dano evidenciado. Assim constroem um forte discurso sobre o risco
em torno do relacionamento amoroso; elencam potenciais práticas perigosas (relacionamentos
abusivos e violentos), que demandam formas de cuidado, trilhando um caminho para a regulação
moral. Há uma enorme problematização das uniões que não tem como fim o casamento (por exemplo
ter muitos parceiros, tema do episódio citado) e que acontecem entre um homem e uma mulher de
hábitos sociais e idades muito diferentes. Todo o processo de identificar o risco e conter a ameaça é
profundamente moralizado ( HUNT.p.64).
Embora seja o pressuposto sucesso de sua união que permita aos apresentadores assumirem o
25
Do original: “Melodramas depict their characters and their actions in highly exaggerated and emotional terms in order
to clearly demarcate boundaries between good and evil, right and wrong, truth and justice.
lugar de professores, os conselhos e orientações são feitos para casos de insucesso de origem
facilmente identificável. A problemática costuma girar em torno da: (1) Insegurança do homem ou da
mulher; (2) Diferença de idade no casal; (3) Falta de tempo e dedicação ao casamento (principalmente
da mulher); (4) Motivação incorreta para o casamento (quando não é orientado pelo ‘amor
inteligente’); (5) Histórico familiar desestruturado como pais divorciados ou que se agridem; (6)
Comportamentos condenáveis (como ter muitos parceiros ou usar drogas), (7) Traumas de
relacionamentos anteriores e (8) desaprovado pela família (sendo a família capaz de ver o que os
‘apaixonados’ não conseguem ver).
A Escola do Amor, portanto, desenvolve sua didática a partir de relações conflituosas ou
casamentos arruinados. Criam contextos ideais e incitam o medo fora dessas condições. Não há espaço
para condutas criativas, construções a dois. Tampouco análise crítica capaz de criar mecanismos de
superação. O amor quando vivido sem racionalidade, sem o ‘amor inteligente’ é certeza de fracasso.
Assim quase toda união se torna um evidente gatilho (triggers) para políticas morais.
Em todos os episódios da Escola do Amor, principalmente nas ‘encenações’ que apelam para
histórias extremamente dramáticas, a pedagogia funciona na dinâmica de pânico moral: há um
comportamento ideal, tido como correto. Desvios são sinalizados com reprovação evidenciando todas
as consequências de se assumir esse risco (risco de sofrer violência, de acabar nas drogas, nas ruas, no
abandono). A comunicação se volta contra todo tipo de comportamento que foge a norma dos
empreendedores.
Cristiane: Vocês são casados há 47 anos. Com certeza se vocês não tivessem esse casamento
sólido, se o casamento de vocês não fosse estruturado, todas essas coisas que aconteceram e
acontecem até hoje teriam invadido também o casamento, que é o que acontece muitas vezes.
Nós atendemos muitos casais que começam a ter problemas no casamento por causa dos
problemas financeiros, desemprego, o filho, a sogra, né? Os problemas exteriores acabam
entrando dentro de casa e dividindo o casal. Qual é o segredo dessa força? O que parecia para
mim. O que parecia para os filhos, é que quanto mais problema vocês tinham lá fora, mais
unidos vocês estavam.
Ester: Exatamente isso que eu queria fazer, o papel de apoio. Porque ele estava sofrendo. De
várias maneiras. Todo dia no jornal, o rosto dele estava lá estampado. Então eu sofria o que ele
estava sofrendo e ele estava sofrendo. Então eu fazia questão de estar todo o momento ao lado
dele. Mesmo que eu não falasse muito com ele, muitos conselhos, porque as vezes também eu
nem entendia o problema, mas eu procurava ser aquela pessoa em que ele se sentisse amado,
seguro.
Renato: Quer dizer, esse apoio era manifestado através de uma presença sem julgar, sem cobrar,
sem apontar sem ficar falando ‘por que não faz isso? Por que não faz aquilo?’ só a presença ali,
o bispo sempre fala muito da presença da senhora.
Coadjuvante do crescimento pessoal do marido, a mulher existe para dar apoio ‘sem julgar ou
cobrar’. Minutos adiante a conversa segue ressaltando o valor da mulher em ‘aguentar os problemas’
sem ‘ficar de tititi no ouvido do marido’ porque ‘não há homem que aguente’, diz Macedo. Renato
complementa “o que poucos sabem e quase ninguém quer ouvir - o homem e a mulher também-, é que
ninguém quer um concorrente ao lado, a gente quer um parceiro, alguém que apoia, não alguém que
está competindo, apontando os erros toda hora”. E Edir reforça: “Se a Ester fosse uma mulher que
quisesse competir comigo, não tinha condições, eu não ia suportar”, ressaltando a importância do olhar
compreensivo da esposa em momentos de adversidade, mais especificamente, durante os 11 dias em
que ficou preso.
Brevemente, Macedo cita o ‘casamento empresa’, metáfora que usa para identificar que o
casamento precisa ser administrado como uma empresa, dado que é o investimento mais profícuo do
ser humano (visivelmente bastante vantajoso para o homem). Na ótica de Macedo, o ser humano
precisa casar. O amor, no entanto, não deve ser só um sentimento, seguir o coração cegamente, tem
que ser inteligente, avaliar para fazer boas escolhas.
No quadro Supervirtuosa, apresentado no episódio O que fazer quando uma palavra te
destrói27 a exploração da mulher no casamento é evidente, mas apresentado de forma compreensiva,
como um esforço feminino na manutenção do casamento e da família. O quadro é introduzido pela
27 Episódio “o que fazer QUANDO uma PALAVRA te DESTRÓI” disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HBZqrPdpTR8
jornalista com o seguinte texto: “Tempos modernos, o papel da mulher não se resume a cuidar do lar
e da família, ela se divide entre casa, trabalho, filhos e marido. Só que as vezes rola um desequilíbrio
aí e no caso da Nereide quem está em desvantagem é o relacionamento amoroso”. Nereide28 ‘é uma
mulher multitarefas, que cuida de tudo, menos dela própria e do seu casamento’ diz a apresentadora.
Marcos é casado com Nereide há 11 anos. Eles são consultores de benefícios e trabalham
juntos. Segundo ele, ‘durante o dia a gente ainda consegue conversar bastante sobre negócios, mas na
hora que ela chega em casa ela cuida da casa, do filho e só dela. E esquece do marido’. A jornalista
pergunta a Nereide o que ela faz depois do trabalho:
Nereide: Pego o Enzo às 19h, 19h30. Chego em casa e sempre tem alguma coisa pra
limpar. Aí vou fazer a janta. E depois vou arrumar, lavar...
Jornalista: O Marcos, ele não reclama? Reclama da sua falta de tempo, excesso de
compromisso.
Nereide: Poxa, ele fala ‘deixa aí’. Às vezes termino o jantar ele fala ‘para deixa isso
pra amanhã, vem pra cá, fica com a gente’.
A cena corta para a jornalista ouvindo a queixa do pobre marido:
Marcos: o que eu mais sinto falta hoje é uma programação a dois. Espero que ela
consiga se organizar mais para ter um tempinho só pra gente.
Visivelmente sobrecarregada com as divisões de tarefas em casa (pegar o filho na escola,
arrumar, limpar e assim ficar ‘sem tempo’ para o marido), o quadro não propõe maior participação de
Marcos nos afazeres domésticos, ao contrário, traz uma ‘ajuda extra’ de três profissionais para cuidar
do tempo de Nereide (!). As ajudantes são: 1.Bianca Carturani – conselheira da Escola do Amor; 2.
Emerson Calixto – cabelereiro e maquiador, 3. Priscila Franchi – coach pessoal e profissional.
A coach começa com ‘uma técnica empoderadora de gestão de tempo’ que consiste em dividir
o tempo em três: para coisas muito importantes, circunstanciais e urgentes. E explica: ‘As
circunstanciais são as que roubam o nosso tempo’ e faz perguntas sobre a rotina de Nereide.
Resumidamente, o único lazer de Nereide é ver novela, o que a coach classifica como circunstancial e
nada urgente, sugerindo cortar esse ‘tempo perdido’ para aplicar o plano de ação com 5 atividades para
Nereide (mais atividades!). Entre elas está a de organizar o tempo de forma mais eficiente, para sair
do trabalho mais cedo e preparar um jantar romântico para o marido.
Após os esforços bem-sucedidos de Nereide em otimizar seu tempo, a conselheira da escola do
amor, Bianca dará as últimas dicas para ela ser uma Supervirtuosa.
28 A apresentadora começa com “Ela tem 47 anos, é casada, mãe de um filho de 10 anos e a eterna ‘mina’ da Brasília amarela (do
clipe dos mamonas assassinas”. Reforço aqui a observação de como o programa busca interagir com o mundo do entretenimento,
trazendo celebridades ou artistas como atração.
Bianca: Sua atitude é louvável. A grande dificuldade das pessoas é mudar, é querer mudar.
Aceitar o desafio de mudar. Quero aqui acrescentar a cereja do bolo (...) Vi que você é uma
mulher apaixonada pelo que faz, apaixonada pela sua família, pelo seu marido e em
especialmente pelo seu filho. Você trabalha porque você pensa ‘eu preciso garantir o futuro do
meu filho’.
Para o futuro do Enzo ser um futuro garantido, vocês dois são a base. Vocês dois precisam estar
bem. O casamento tem que estar solidificado. A melhor forma de garantir um bom futuro para
o Enzo é investindo no relacionamento.
Um exemplo: quando você tiver que escolher entre uma louça para lavar ou dar atenção para o
seu marido, priorize estar com ele. O mundo não vai acabar se você deixar a louça para outro
dia, mas o fato de você dar atenção ao seu marido sim, fara toda a diferença.
Todos os episódios fazem intensa divulgação da Terapia do Amor e dos canais de comunicação
da igreja. Seguem dessa forma a mesma estratégia usada pela Universal no início de sua expansão com
o rádio: atrair potenciais fiéis (e dizimistas). Assim, o programa procura gerar adesão à igreja e
disseminar seus valores nos moldes de um soft power.
Há sempre divulgação de produtos relacionados ao ecossistema da Universal (livro Casamento
Blindado; Mulher V e a Caminhada do amor) e é perceptível uma guinada à americana pela imensa
quantidade de projetos em inglês (The Love School, The Love Walk, Godlywood). A influência
estadunidense, presente desde a formação das instituições pentecostais no Brasil, de caráter
missionário americano, se reforça pelo histórico de vida dos apresentadores, Cristiane e Renato, que
passaram grande parte de sua vida fora do país.
O programa apresenta um modelo uniforme de felicidade e problematiza tudo que seja diferente
dele. As histórias retratadas ao longo do programa não oferecem resistência aos modos de vida
opressivos. Pelo contrário. Há uma mensagem de conformidade com a exploração da mulher em nome
da família e do casamento (como percebido no quadro Supervirtuoso). A mulher é a maior responsável
pelo sucesso do relacionamento (caso Nereide). Reforçam clichês e estereótipos de gênero de uma
sociedade heteronormativa e machista. Jamais denunciam o machismo que subjulga e não representam
casais homossexuais ou de gêneros trans. O relacionamento homoafetivo é deslegitimado ao longo do
programa como uma forma de amor possível.
Embora mídia e regulação sejam campos distintos, eles andam de mãos dadas e unidas no
projeto da Igreja Universal. O programa prepara o terreno para um conceito fechado de família que
dialoga com a grande mobilização evangélica, representada por membros da Igreja Universal entre
outras denominações, nos avanços e conquistas dos direitos LGBTs. Ainda que o foco da comunicação
do programa seja na atitude da mulher, há uma grande ‘ameaça’ à família tradicional com a união
homoafetiva. Qualquer outra motivação para o casamento que não seja ‘constituir família, ser leal e
fiel’ é errado segundo a visão do programa.
Dentro do circuito da cultura (Hall, 2016) o programa normaliza a condição social vigente
hegemônica, o que quer dizer controlar para que o sujeito, aqui principalmente as mulheres, cumpram
seu papel no corpo social: cuidado familiar, manutenção do equilíbrio afetivo e organizacional em
casa, reforçando sua responsabilidade das tarefas domésticas e de atenção ao marido. Para tanto, fazem
uso de uma linguagem binária e melodramática, e de uma estrutura narrativa onde apontam os perigos,
mediam os riscos em seguida propõem a solução. Representam apenas uma forma de amor possível,
heteronormativa e excludente. O programa é focado no indivíduo; em realizar e superar sozinho, mas
com um empurrãozinho da igreja (Terapia do Amor e consumo de suas ‘ferramentas’).
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