A Terra Como Corpo
A Terra Como Corpo
A Terra Como Corpo
DOSSIÊ
A “ECONOMIA DO CUIDADO” CONTRA AS
CINZAS DO “POVO DA MERCADORIA”
THE EARTH AS A BODY: THE “ECONOMY OF CARE” AGAINST
THE “COMMODITY PEOPLE” ASHES
Resumo
O presente trabalho propõe pensar a agência política da literatura ameríndia diante
de uma guerra entre concepções de mundo, terra, ser e pessoa, uma guerra entre a
“economia do cuidado” – que sabe que existir é sempre co-existir com pessoas de
diferentes espécies e matérias – e o solipsismo do “povo da mercadoria”. Busca-se
debater de que forma a resistência indígena e a luta pela terra são imanentes à poética
dos povos originários. A literatura como forma de tensionar os limites de nossa
ontologia, colocar nosso etnocentrismo e antropocentrismo em questão, abrir nosso
mundo tão fechado em si mesmo para outros mundos.
Palavras-chave: Literatura indígena. Resistência. Terra. Antropoceno.
Abstract Resumen
The present work proposes thinking on the El presente trabajo propone pensar en la
political agency of indigenous literature agencia política de la literatura amerindia
in the face of a war between different frente a una guerra entre concepciones
conceptions of world, land, being, people, de mundo, tierra, ser y persona, una
humanity, a war between an “economy of guerra entre la “economía del cuidado”
care” (which presupposes that to exist is (que sabe que existir es siempre coexistir
to always co-exist with people of different con personas de diferentes especies y
kinds of species and materials) and the materiales) y el solipsismo del “pueblo
solipsism of “commodity people”. The de la mercancía”. Busca debatir cómo
aim is to understand how indigenous la resistencia indígena y la lucha por
resistance and the struggle for land are la tierra son inmanentes en su poética.
immanent to indigenous people’s poetics. La literatura como forma de tensionar
Literature is seen as a way to stretch los límites de nuestra ontología, de
the limits of our ontology, to put our poner en duda nuestro etnocentrismo
ethnocentrism and anthropocentrism into y antropocentrismo, de abrir nuestro
question, to open our world (so closed in mundo tan cerrado en sí mismo a otros
on itself ) to other worlds. mundos.
Keywords: Indigenous Literature. Palabras clave: literatura indígena.
Resistance. Land. Anthropocene. Resistencia. Tierra. Antropoceno.
122 ANA CAROLINA CERNICCHIARO | A terra como corpo... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 23/1 | p. 122-138 | jan-abr. 2021
https://doi.org/10.1590/1517-106X/2021231122138
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Em agosto de 2019, os “corpos em aliança”1 de 2.500 mulheres
indígenas e de mais de 100 mil trabalhadoras rurais tomaram Brasília. Entre
tantas questões pungentes que este encontro entre o urucum da I Marcha das
Mulheres Indígenas e o lilás da 6ª Marcha das Margaridas desperta, gostaria
de destacar a temática do corpo e da terra, da terra como corpo ou do ser
corpo com a terra, evidente já no lema da marcha indígena: “Território:
nosso corpo, nosso espírito”. Vejamos o que diz o manifesto assinado pelas
mulheres de 130 etnias que participavam do evento:
1 “Bodies in alliance” é uma expressão de Judith Butler sobre os corpos que, ao tomarem as ruas, questionam
o próprio caráter público do espaço que ocupam ou disputam (2018, p. 80) e colocam a legitimidade
do Estado em questão (2018, p. 92). “Trata-se, na verdade, do direito de ter direitos, não como uma
lei natural ou estipulação metafísica, mas como a persistência do corpo contra as forças que buscam sua
debilitação ou erradicação” (2018, p. 93).
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pela demanda por “território”, termo que, segundo ela, “inclui não apenas
um lote de terra, mas também marcos geográficos e sagrados, além de uma
relação histórica com esses marcos” (SÁ, 2012, p. 36).
Chamemos de terra ou de território, o que interessa nesta discussão é que
a relação do indígena com a terra não é de propriedade, mas de pertencimento
– não se possui a terra, pertence-se a ela. “A terra é o corpo dos índios, os
índios são parte do corpo da Terra”, explica Viveiros de Castro (2016, p. 17).
Isso significa que a disputa pelo território é uma disputa pelo próprio corpo.
O que se perde quando se perde o direito de habitar um lugar é a própria
existência, já que existir é sempre co-existir com este lugar e com os outros
seres que o habitam, pessoas de diferentes espécies, materialidades e naturezas,
uma multiplicidade de seres com os quais os povos originários coabitam, se
relacionam socialmente e dos quais a existência depende.
A situação dos Guarani é um exemplo disso. Diante de uma Mata
Atlântica ameaçada – restam menos de 7% de sua cobertura original – e,
com ela, o modo de viver Guarani (POPYGUA, 2017, p. 59), a defesa do
território se tornou uma questão de sobrevivência. Em um manifesto escrito em
setembro de 2019, lideranças, rezadores e pesquisadores avá, mbya, ñandeva,
kaiowa, guarani e tupi-guarani de diversas localidades da América Latina,
reunidos no II Seminário Internacional de Etnologia Guarani, denunciam a
“restrição territorial de diversos povos e comunidades, promovida por meio
de sistemáticas remoções e desaparecimentos forçados, expulsões violentas,
massacres, entre outras técnicas criminosas de genocídio”, concluindo que
“somos chamados de invasores, mas fomos nós que tivemos nossas terras,
nossos corpos e nossas vidas invadidas pelos não-indígenas”. Neste documento,
eles explicam ainda que sua presença em áreas consideradas de conservação
ambiental garante a conservação e a promoção da biodiversidade. Isso porque,
a partir da renovação e do fortalecimento de seus saberes ancestrais, realizam
a “recuperação ambiental nas tantas áreas tradicionais que foram degradadas
pela ação perniciosa dos ruralistas”. Mais do que uma preocupação ambiental,
o cuidado com a terra entre os Guarani é um preceito mítico, uma ética ditada
pelos criadores divinos no Ayvu Rapyta, os cantos sagrados que definem o
modo de ser guarani.
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espécie de mandioca, ya para’i, melancia, petỹ, fumo, ka’a, erva-mate, e muitas
outras plantas. Levaram em forma de alimentos e de sementes.
(...) Nhanderu indicava os lugares onde deveriam parar e cultivar as sementes
e os frutos trazidos para se reproduzirem em todos os cantos de Yvyrupa, a
Terra criada por ele (POPYGUA, 2017, p. 43-44).
2 Preocupada em manter a sonoridade da poética Guarani, suas modulações e tessituras sonoras, Baptista
utilizou, além do texto de Cadogan, gravações que fez do professor e líder indígena Teodoro Tupã Alves,
entoando os cantos em mbyá. Essa tradução, publicada no livro Roça Barroca (2011) junto com os
poemas da série “Moradas nômades”, foi tema do artigo “‘Nenhum rosto sem o outro’: a poética ameríndia
e o devir-menor” (CERNICCHIARO, 2018).
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Conforme explica Josely Vianna Baptista, o canto rememora e celebra o
momento em que o Pai Nhamandu divinizou a linguagem, transformando-a
numa manifestação do amor divino. A linguagem precede a existência humana,
pois teria aflorado de Nhamandu, seria parte dele, e a palavra seria “o vínculo
fundamental entre o homem e o universo” (ROA BASTOS apud BAPTISTA,
2011, p. 17). Assim, a perfeição do ser está na perfeição do seu dizer: “Nós
somos a história de nossas palavras. Tu és tuas palavras, eu sou nossas palavras”,
explica Bartolomeu Melià, acrescentando que, “potencialmente, cada Guarani
é um profeta – e um poeta –, segundo o grau que alcance sua experiência
religiosa” (apud EKMAN, 2017, p. 62). Tudo muda, no entanto, quando estas
“palavras-almas” (EKMAN, 2017) são traduzidas para a língua portuguesa.
Como afirma Anita Ekman no posfácio ao livro de Popygua, para um Guarani,
tal tradução é “um desafio que transcende o literário; é em si um ato político”
(2017, p. 62).
Gostaria de me deter nessa ideia de Ekman para pensar o ato político
de (r)existência indígena presente na poética ameríndia – seja nas traduções
de cantos tradicionais ao português feitas por indígenas e não-indígenas, seja
na literatura ou na teoria de escritores e pensadores indígenas contemporâneos
–, não como um ato que transcende o literário, mas como uma agência que
lhe é imanente.
Ao analisar uma série de obras capitais da literatura latino-americana
que tem como tema a cultura indígena, Lúcia Sá conclui que “as apropriações
românticas e modernistas de textos, gêneros literários e visões de mundo
indígenas” costumam não deixar espaço para a possibilidade de sobrevivência
cultural. No entanto, destaca ela, apesar da longa história de expropriações,
abusos e extermínio, que fez com que várias culturas e milhões de indivíduos
perecessem e continuassem perecendo, “também é verdade que aqueles que
sobreviveram comprovam a grande capacidade das culturas indígenas para
recriar e reinventar a si mesmas em meio às piores adversidades” (2012, p.
366). Uma dessas formas de se recriar, conclui ela a partir de sua leitura
de Oré awé roiru’a ma (Todas as vezes que dissemos adeus), de Kaká Werá
Jecupé – primeiro texto publicado individualmente por um indígena no
Brasil –, seria a escrita: “única possibilidade de resistência para os índios
guaranis, cujas aldeias continuam a ser devoradas pela megalópolis” (SÁ,
2012, p. 373).
Importante destacar que a escrita não é a única estratégia de luta dos
povos originários, dia após dia temos visto o corpo indígena resistindo de
inúmeras formas3, mas isso não diminui seu protagonismo. Conforme explica
3 Em marchas, nos Acampamentos Terra Livre, na incrível imagem de Ana Terra Yawalapiti enfrentando
a tropa de choque em frente ao Congresso Nacional, ou na de Tuíra Kayapó, famosa por ter colocado
o facão no rosto do diretor da Eletronorte em 1989, ou ainda, dois anos antes, na de Ailton Krenak
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Davi Kopenawa, os Yanomami não precisam da “pele de imagens” para
impedirem que as palavras antigas fujam de sua mente, porque sua “memória
é longa e forte”; no entanto, para que suas palavras sejam ouvidas longe da
floresta, foi importante que elas fossem desenhadas na língua dos brancos.
Talvez assim eles afinal as entendam, e depois deles seus filhos, e mais tarde
ainda, os filhos de seus filhos. Desse modo, suas ideias a nosso respeito
deixarão de ser tão sombrias e distorcidas e talvez até percam a vontade de nos
destruir. Se isso ocorrer, os nossos não mais morrerão em silêncio, ignorados
por todos, como jabutis escondidos no chão da floresta (KOPENAWA;
ALBERT, 2015, p. 76).
pintando o rosto de jenipapo na Assembleia Constituinte, em Raoni Metuktire, com 90 anos, rebatendo
com elegância as truculentas afirmações do presidente (e, mais recentemente, sobrevivendo ao Covid-19)...
sem falar em outros suportes das artes, como o impactante trabalho performático de Denilson Baniwa
ou de Jaider Esbell; na surpreendente estética de cineastas indígenas como Divino Tserewahú Xavante,
Alberto Álvares Guarani, Isael Maxacali, Takumã Kuikuro, Ariel Ortega, Patrícia Ferreira, Naine Terena,
ou ainda no rap dos Brô MC’s, Oz Guarani, Katú Mirim... conforme afirmou Ailton Krenak no Círculo
de Saberes de Escritores e Realizadores Indígenas – Mekukradjá, que aconteceu em setembro de 2016 em
São Paulo, ao interagir com os diferentes suportes da arte, uma diversidade de povos vem produzindo
faísca, não apenas por suas referências nas matrizes ancestrais da arte indígena, mas também por falar da
presença indígena no meio de uma sociedade que “ainda nos cospe e que a gente tem que ficar em pé e
gritar todo dia que estamos vivos se não a gente vai ser engolido sem ninguém perceber”.
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depois, eles criaram o cará
(...)
eles criaram a onça
então, bem
depois, eles criaram o babaçu
depois, eles criaram a macaúba
depois,
sim, eles criaram tudo
depois, as abelhas
(...)
depois, criaram a traíra
depois, criaram os insetos
depois, criaram as formigas
depois
em seguida, eles mostraram o jaburu
(...)
usando essa sabedoria eles trabalharam sem parar
(GRAHAM, 2018, p. 57-59)
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Parece-me que essa percepção de Nancy já está presente na ontologia
dos povos originários como uma filosofia primeira que permitiria à nossa
filosofia recomeçar-se a partir não tanto de si-mesma, mas da abertura a
outras filosofias, a formas outras, menos dicotômicas, de pensar. Enquanto
o Ocidente supõe uma dualidade ontológica entre natureza e cultura – como
nos lembram Danowski e Viveiros de Castro, a concepção moderna (kantiana)
do Homem como soberano da natureza é fundada neste binarismo (2014, p.
43) –, o pensamento ameríndio pressupõe uma continuidade entre essas duas
esferas – “Tudo em que eu consigo pensar é natureza”, afirma Krenak (2019, p.
16) – justamente porque os seres naturais são dotados de disposições humanas
e características sociais (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 428). Espíritos,
diferentes espécies de animais, acidentes geográficos, até mesmo a própria
terra/Terra são capazes de ponto de vista, de subjetividade, intencionalidade
e consciência, são pessoas, “povos”, “entidades políticas” (DANOWSKI &
VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 93).
Segundo a formulação de Alexandre Nodari, “tanto a terra é um oikos
quanto a Terra é um ego, um sujeito”. Tal equivocidade recíproca entre ego e
oikos encontramos “em todos os habitantes da Terra, vivos e não vivos: não
só uma pedra é, por um lado, um ser próprio, inteiro, como também é, por
outro, a casa de infinitas e infinitesimais partículas, uma verdadeira sociedade,
como diria Gabriel Tarde – e oikos, casa, é uma noção acima de tudo social
e política”. Por isso, a ecologia “não consiste em um saber sobre a Terra, mas
num discurso da Terra, que é um sujeito (ego) cujos hábitos são compostos na
relação recíproca (ecoante) com aqueles que a habitam (que a tem como oikos)”
(NODARI, 2014). Nos termos do povo yanomami: hutukara e urihi a, ou
seja, “o mundo como floresta fecunda, transbordante de vida, a terra como
um ser que ‘tem coração e respira’” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 16).
Na floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto
nós, os xapiri, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento
e o sol! É tudo o que veio à existência na floresta, longe dos brancos; tudo o
que ainda não tem cerca (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 480).
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São pessoas, defende ele, não recursos, como dizem os economistas, não
podem ser apropriados (2019, p. 40). Ao despersonalizarmos esses lugares,
passamos a vê-los como resíduos da atividade industrial e extrativista, como
se pudéssemos imprimir nossa marca sobre tudo o que achamos que não é
humano, “os oceanos e todos os seus trilhões de vidas, as paisagens todas da
Terra, que nós pensamos poder derrubar, cortar, podar, plainar” (KRENAK;
CESARINO, 2016, p. 174).
Daí Kopenawa chamar os brancos de “povo da mercadoria”, por sua
paixão pelas mercadorias a ponto de não enxergarem nada além delas. Um
povo de pensamento “curto e obscuro”, “cheio de esquecimento e vertigem”
(2015, p. 436), de ideias “obstruídas e enfumaçadas”, capaz de ouvir apenas
“o ruído de seus aviões, carros, rádios, televisores e máquinas”.
Temo que sua excitação pela mercadoria não tenha fim e eles acabem enredados
nela até o caos. Já começaram há tempos a matar uns aos outros por dinheiro,
em suas cidades, e a brigar por minérios ou petróleo que arrancam do chão.
Também não parecem preocupados por nos matar a todos com as fumaças de
epidemia que saem de tudo isso. Não pensam que assim estão estragando a
terra e o céu e que nunca vão poder recriar outros (KOPENAWA; ALBERT,
2015, p. 419).
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— “Você é o último. Dei aos primeiros todos os bens que eu tinha. Como
você é o último, deve ser uma pessoa sem medo. Você deverá fazer a guerra
para tirar as riquezas dos outros. Com isso, encontrará dinheiro!”
Quando ele acabou de dizer isto, o primeiro Branco virou as costas, deu um
tiro com a espingarda e seguiu para o sul.
Ele baixou, entrando nas malocas, por onde ele já havia passado enquanto
estava subindo na Canoa de Transformação. Entrou na 21ª maloca, situada
em São Gabriel, e aí mesmo fez a guerra. Numa pedra que existe nesse lugar,
veem-se figurinhas parecidas com soldados, com capacete e espingarda, todos
ajoelhados e dando tiros. Foi assim porque o Bisneto do Mundo deu-lhe o
poder de fazer a guerra! Para ele a guerra é como uma festa. Por isso é que os
Brancos fazem guerras! (PÃRÕKUMU; KẼHÍRI, 1995, p. 38-41)
não ficavam doentes, pois não existia malária, e não precisavam curar ninguém,
pois não havia doença, não havia dor, nem tosse, portanto não havia necessidade
de remédio – não havia doença, pois não havia napë. (...)
Era assim quando não existia napë, antes de os napë se misturarem; nessa
época, os napë existiam? Sabemos que não! Não existiam.
Os rios, apesar de serem grandes, dizem que eram vazios. Dizem que não se
escutava o som do motor subindo o rio fazendo tu, tu, tu, tu, tu, tu!
Ũ, ũ, ũ, ũ, ũ! Não se escutava o som do avião, por isso os velhos não morriam
de doença (PAJÉS PARAHITERI, 2017, p. 18-19).
4 O Instituto Socioambiental culpabiliza o Estado brasileiro por essa tragédia. “O governo foi omisso para
impedir que o coronavírus se espalhasse pelos povos indígenas. (....) o governo permitiu que invasores
permanecessem em Terras Indígenas em plena pandemia, desestruturou mais ainda os órgãos de fiscalização
e não implementou políticas para garantir a permanência de indígenas nas aldeias com segurança alimentar”,
afirma Antonio Oviedo, em Boletim do ISA enviado por e-mail no dia 17 de julho de 2020.
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sarampo e até gripe. Segundo o antropólogo Casé Angatu, “as contaminações,
propositais ou não, serviram e servem para espoliar terras indígenas e para o
contínuo genocídio dos povos originários” (apud NEIVA, 2020). O relatório
da Comissão Nacional da Verdade de 2014 identificou, entre as causas para a
morte de cinco mil índios Cinta Larga no Mato Grosso e Rondônia, a partir
da década de 1950, “aviões que atiravam brinquedos contaminados com
vírus da gripe, sarampo e varíola”, enviados por seringalistas, mineradores,
madeireiros e garimpeiros, com a conivência do governo federal (NEIVA,
2020). Também os Yanomami tiveram boa parte da sua população dizimada
por epidemias, denuncia Kopenawa:
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em subgrupos e o estabelecimento de uma cesura biológica entre uns e
outros”, resume Achille Mbembe. Em termos foucaultianos, explica o
filósofo camaronês, “racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a
permitir o exercício do biopoder, ‘este velho direito soberano de matar’”
(MBEMBE, 2018, p. 18).
No entanto, avalia Mbembe, “a noção de biopoder é insuficiente
para dar conta das formas contemporâneas de submissão da vida ao poder
da morte” (2018, p. 71). Ele propõe a noção de necropolítica para pensar
a perpetuação da lógica colonial na modernidade tardia, uma lógica em
que a violência é a forma original do direito e a exceção proporciona a
estrutura da soberania. Segundo ele, as relações espaciais que se estabeleciam
na “ocupação colonial” equivaliam à produção de uma ampla reserva de
imaginários culturais, que davam sentido à instituição de direitos diferentes,
para diferentes categorias de pessoas. “O espaço era, portanto, a matéria-
prima da soberania e da violência que ela carregava consigo. Soberania
significa ocupação, e ocupação significa relegar o colonizado a uma terceira
zona, entre o estatuto de sujeito e objeto” (MBEMBE, 2018, p. 39). Isso
era possível porque, para o colonizador, as colônias eram habitadas por
“selvagens”, de forma que os controles e as garantias de ordem judicial
pudessem ser suspensos.
Como vimos, tal lógica colonial não foi ultrapassada, pelo contrário,
ela ganha perversidade com a tecnologia das armas modernas, as milícias,
os assentamentos de refugiados e, especificamente no caso brasileiro, com
as Unidades Pacificadoras, as “reintegrações” de posse, a pulverização de
agrotóxicos, o rompimento de barragens, o mercúrio nos rios, as queimadas, a
invasão de garimpeiros ilegais, a pressão das grandes mineradoras, os conflitos
no campo e a impunidade aos assassinos5, a falta de políticas públicas. Quanto
5 De acordo com o relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2017 foram registrados 1.431 conflitos
no campo com 71 mortes. A grande maioria desses assassinatos não foram, e nem serão, investigados:
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mais o Estado flerta com o fascismo, mais os “civilizados” se sentem autorizados
a matar em nome das grandes obras, do desenvolvimento, do “agropop”.
Afinal, como conclui Marco Valentim, “se o antropocentrismo constitui a
ontologia fundamental do Antropoceno, o fascismo é sua política oficial”
(2018, p. 290).
A cada dia vemos que o progresso tecnológico, especialmente aquele
que vem acompanhado do neoliberalismo econômico, anda par e passo com
o que há de mais conservador em termos morais e mais fascista em termos
de direitos humanos – o que não deveria nos surpreender; lembremos com
Benjamin e sua oitava tese “Sobre o conceito de história” que a concepção de
história que se assombra com a ligação entre fascismo e progresso é insustentável
(1994, p. 226).
Essa relação perversa entre neoliberalismo, desenvolvimentismo,
conservadorismo e necropolítica é bastante evidente na política do governo
brasileiro atual, que, como avalia Célia Tupinambá, tem os povos indígenas
como alvo número 1. Cito novamente o manifesto da I Marcha das Mulheres
Indígenas:
tudo o que tem sido defendido e realizado pelo atual governo contraria
frontalmente essa forma de proteção e cuidado com a Mãe Terra, aniquilando
os direitos que, com muita luta, nós conquistamos. A não demarcação de
terras indígenas, o incentivo à liberação da mineração e do arrendamento, a
tentativa de flexibilização do licenciamento ambiental, o financiamento do
armamento no campo, os desmontes das políticas indigenista e ambiental
demonstram isso.
apenas 117 dos 1.468 casos de assassinatos em conflitos de terra entre 1985 e 2018 foram avaliados por
um juiz em alguma instância.
6 Além da invasão ilegal, os Yanomami e outras 160 etnias, sendo 12 delas de povos isolados, sofrem com
a pressão das grandes empresas de mineração. Segundo o Instituto Socioambiental, foram feitos 4.332
pedidos de pesquisa mineral em terras indígenas na Agência Nacional da Mineração.
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Como diz Davi Kopenawa, o “povo da mercadoria” continua “a estragar
a terra em todos os lugares onde vive, mesmo debaixo das cidades onde mora”,
e não percebe que se a maltratar demais “ela vai acabar revertendo ao caos”.
Por séculos, os cientistas pensaram que os processos da terra eram tão grandes
e poderosos que nada que fizéssemos poderia mudá-los. Este era um princípio
básico da ciência geológica: que as cronologias humanas eram insignificantes
comparadas com a vastidão do tempo geológico (...). E no passado elas
eram. Agora, não. Há tantos de nós cortando tantas árvores e queimando
tantos bilhões de toneladas de combustíveis fósseis que nos tornamos agentes
geológicos. Mudamos a química da nossa atmosfera, fazendo com que o nível
do mar subisse, o gelo derretesse e o clima mudasse. (apud CHAKRABARTY,
2013, p. 9)
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tarefa passa por aprender com os 370 milhões de pessoas indígenas espalhadas
por 70 países, que são, assim como vimos no caso dos povos originários que
vivem no Brasil, mestres em fim de mundo. Krenak concorda com eles: “Tem
quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com
os brancos, como que vão fazer para escapar dessa” (KRENAK, 2019, p. 31).
A resposta ele mesmo nos dá quando diz que adiar o fim do mundo
é poder sempre contar mais uma história (2019, p. 27). Se, como vimos
com Marco Valentim, o antropocentrismo é a ontologia fundamental do
Antropoceno e o fascismo sua política oficial, a guerra contra o fascismo e o
fim do mundo se luta com a abertura para outras histórias, histórias outras
que as da dominação e do progresso, do antropocentrismo e do fascismo,
histórias que remetam a outras ontologias, a novas possibilidades de vida, a
uma “economia do cuidado” e não da mercadoria, abertura de um mundo a
outros mundos, mundos onde a terra é o nosso corpo e nós somos o corpo
da terra. Quem sabe, assim, possamos suspender o céu.
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