Editorial
Editorial
Editorial
8675365
Editorial
Cenas Dissidentes
Silvia Fernandes
A maioria dos artigos desse dossiê analisa experiências criadas na cena brasileira
a partir dos anos 2000. São trabalhos que se desenvolvem de modo simultâneo à explosão
dos movimentos de luta por representatividade e direitos de mulheres, negros, indígenas
e comunidade LGBTQIA+, em geral sintonizados com mobilizações pelos direitos das
referidas comunidades, historicamente subalternizadas. A partir desse período, é visível
no teatro, na dança, na performance e em ações performativas de várias naturezas a
emergência de uma cena trans, feminista, afrodescendente, de matrizes indígenas, que
configura teatralidades diferenciais, até então relegadas a uma condição menor. São
expressões cênicas de sujeitos subalternizados, que nunca tiveram voz na sociedade e
muito menos nos palcos, como é o caso dos novos coletivos negros que apresentam
diversos aspectos da experiência histórica e ancestral da população afrodescendente.
Esse é o tema do artigo de Rosyane Trotta, que toma como objeto os teatros
negros encenados no Rio de Janeiro nos últimos cinco anos. No conjunto das criações que
analisa, identifica a emergência do que considera um novo teatro, reconhecível na
valorização de temáticas ligadas a realidades locais e preocupado com a manutenção de
laços intracomunitários, na construção simbólica e objetiva do pertencimento a
determinados territórios. Menciona, por exemplo, os teatros da Baixada Fluminense e da
Zona Oeste do Rio de Janeiro, que se situam em periferias geográficas e culturais e são
marcados por falta de acesso à formação artística, à apresentação e à circulação de
espetáculos. A autora faz referência ao Grupo Código, à Cia Cerne e ao Coletivo Sala
Preta, lembrando que, nesse caso, não se pode afirmar que a noção de periferia esteja
ligada apenas à questão da distância geográfica em relação ao centro da cidade, mas
1
Conceição|Conception,Campinas,SP,v.12,e023024,2023
10.20396/conce.v12i00.8675365
2
Conceição|Conception,Campinas,SP,v.12,e023024,2023
10.20396/conce.v12i00.8675365
Talvez o dissenso analisado por Rancière possa ser aproximado do que Judith Butler
3
Conceição|Conception,Campinas,SP,v.12,e023024,2023
10.20396/conce.v12i00.8675365
1
Segundo Donna Haraway (1988), as políticas da localização (politics of location) resistem à construção de posições
homogêneas e são definidas pela abertura a conhecimentos múltiplos, móveis e relacionais, que implicam a superação de
um sujeito homogêneo. Levam em conta a ativação de formas de atuação política que partem de lugares específicos, do
questionamento permanente do sujeito único e da consideração dos modos complexos como se imbricam os diferentes
4
Conceição|Conception,Campinas,SP,v.12,e023024,2023
10.20396/conce.v12i00.8675365
Ainda que o ativismo seja uma constante, os artigos aqui reunidos projetam
manifestações plurais, com formalização instável, em que é possível discriminar certas
linhas de força que parecem responder aos novos desafios do contexto brasileiro
contemporâneo. É visível que os diversos coletivos que atuam em São Paulo, Rio de
Janeiro, Fortaleza e outras metrópoles brasileiras configuram uma cena trans, feminista
ou afrodescendente capaz de projetar teatralidades diferenciais. Trata-se da expressão
de maiorias desde sempre silenciadas, que agora rompem o discurso dominante,
desconstruindo-o por meio de um forte impulso de resistência às práticas de um “[...]
laboratório de controle e produção da morte como forma de supressão de tudo aquilo que
insiste em viver”, como observa José Fernando Azevedo em artigo publicado há dois anos
(AZEVEDO, 2021), que ressoa no texto incluído neste dossiê, apresentado em forma de
carta a André Lepecki.
sistemas de dominação.
5
Conceição|Conception,Campinas,SP,v.12,e023024,2023
10.20396/conce.v12i00.8675365
6
Conceição|Conception,Campinas,SP,v.12,e023024,2023
10.20396/conce.v12i00.8675365
tecido dramatúrgico, por mostrarem as fissuras que a presença negra provoca em cena.
Sem dúvida, é um trabalho que situa o teatro e as ações performativas no desdobramento
de processos sociais que visam ao fortalecimento das práticas artísticas da população
afrodescendente.
As ações radicais referidas por Diéguez também podem ser observadas nas criações
dos coletivos e artistas brasileiros mencionados, responsáveis pela retomada de uma cena
política feita a partir de novos pressupostos. Além da discussão de temas relativos às
subalternidades, às opressões e às resistências, também ganham forma cênica aspectos
de constituição de coletividades e produção de identificações. É o que observa Júlia
Guimarães no artigo “Performar teoria, estranhar identidades”, em que aborda trabalhos
em que a reflexão conceitual é usada para questionar o caráter construído das
representações culturais e identitárias. Na análise dos espetáculos Stabat Mater, de
Janaína Leite, A Invenção do Nordeste, do Grupo Carmin e Isto é um Negro? do coletivo
EQuemÉGosta?, a autora nota que todos questionam as representações sociais
naturalizadas. Em diálogo com a psicanálise, a história, a política e a filosofia, a
pesquisadora desvela a dimensão processual e performativa das categorias identitárias,
compreendendo-as como “construções sociais produzidas por ideologias e sistemas de
poder específicos, historicamente situados” (GUIMARÃES, 2023, p. 02). Recorrendo a
Catalão, Thürler, Woyda e Moreno, Guimarães nota a incorporação de procedimentos da
esfera crítica à prática cênica, o que acaba aproximando o artista da figura do crítico-
pesquisador-ensaísta. Os projetos analisados valem-se de instrumentos como a
documentação, as entrevistas, as inserções comunitárias e as investigações sobre
memória coletiva para envolver os criadores em um campo de ação específico, teórico e
prático, em que a arte é entendida como forma de conhecimento.
A partir das constatações de Júlia Guimarães, é inevitável concluir que o teatro dos
coletivos contemporâneos brasileiros não se restringe à criação artística, mas se estrutura
7
Conceição|Conception,Campinas,SP,v.12,e023024,2023
10.20396/conce.v12i00.8675365
9
Conceição|Conception,Campinas,SP,v.12,e023024,2023
10.20396/conce.v12i00.8675365
10
Conceição|Conception,Campinas,SP,v.12,e023024,2023
10.20396/conce.v12i00.8675365
2
SOTER, Silvia. Um pé dentro e um pé fora: passos de uma dramaturg. In Sigrid Nora (org.). Temas para a dança
brasileira. São Paulo: Edições SESC, 2010, p. 147.
11
Conceição|Conception,Campinas,SP,v.12,e023024,2023
10.20396/conce.v12i00.8675365
12
Conceição|Conception,Campinas,SP,v.12,e023024,2023
10.20396/conce.v12i00.8675365
de conhecimentos.
13
Conceição|Conception,Campinas,SP,v.12,e023024,2023
10.20396/conce.v12i00.8675365
Referências
ABREU, Kil; NASCIMENTO, Rodrigo Alves do. Cia. de Teatro Heliópolis cria síntese
brilhante de teatro, sociedade, desejo e política. Cena Aberta, 2022. Disponível em:
<https://cenaaberta.com.br/2022/06/04/cia-heliopolis-cria-sintese-brilhante-de-teatro-
sociedade-desejo-e-politica/ >. Acesso em: 13 dez. 2023.
ANDRADE, Welington. Dos filhos desse sítio. Conceição/Conception, [S. l.], v. 12, n.
00, p. e023017, 2023. DOI: 10.20396/conce.v12i00.8674809. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/conce/article/view/8674809. Acesso
em: 22 dez. 2023.
14
Conceição|Conception,Campinas,SP,v.12,e023024,2023
10.20396/conce.v12i00.8675365
BUTLER, Judith; SPIVAK, Gayatri. Who sings the Nation-State? Language, Politics,
Belonging. New York: Seagull. 2007.
CASTRO, Eduardo Viveiros de. O recado da mata. In: KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce.
A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés.
São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. Trad. Rane Souza. São
Paulo: Boitempo, 2021.
DESS, Conrado. Desesculpindo Il Guarany: dilemas do século XIX para uma cena
do século XXI. Conceição/Conception, [S. l.], v. 12, n. 00, p. e023018, 2023. DOI:
10.20396/conce.v12i00.8674357. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/
ojs/index.php/conce/article/view/8674357. Acesso em: 22 dez. 2023.
HARAWAY, Donna. Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the
Privilege of Partial Perspective. Feminist Studies, v. 14, n. 3 (Autumn, 1988), p. 575-
599. Disponível em: <https://philpapers.org/archive/harskt.pdf>. Acesso em: 13 dez.
2023.
15
Conceição|Conception,Campinas,SP,v.12,e023024,2023
10.20396/conce.v12i00.8675365
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista: o Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2003.
OLIVEIRA DO CARMO, Carlos Eduardo; CAMPOS DALTRO DE CASTRO, Fátima. Grupo X
de Improvisação em Dança: pequetitas coisas sobre nós mesmos.
Conceição/Conception, [S. l.], v. 12, n. 00, p. e023019, 2023. DOI:
10.20396/conce.v12i00.8674899. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/
ojs/index.php/conce/article/view/8674899. Acesso em: 22 dez. 2023.
16
Conceição|Conception,Campinas,SP,v.12,e023024,2023