Convergencia - 233
Convergencia - 233
Convergencia - 233
A sociedade informatiza~
Revista da da tornou obsoletos os para metros unidimen-
Conferência sionais da linha e bidimensionais da supertl-
dos Religiosos cie. Ela quer o ESPAÇO e, por isso, o código
do Brasil: CRB agora é outro: antena parabólica, disquete,
fotograma de vldeo, ' frame', inteligência arti-
Diretor-Responsável:
ficial, laboratório holográfico, 'laser', oscilos-
Pe. Edêriio Valie, SVD
cópio, satélite. terminal de acesso remoto,
Redator-Responsável: 'transponder', etc. Utilizando avanços tecno-
Padre Marcos de Lima, SDB lógicos eletroacústicos, sonha-se com o som
(Reg. 12.679/78) da cor e a cor do som sintetizados eletroni-
Equipe de 'Programação: camente com força icOnica e semântica. É
Pe, Atico Fassini, MS no video, se alega, e não na pAGINA que a
Pe, Cleto Caliman, SDB palavra, num 'clone' sincré~ico, se realiza ple-
Ir. Delir Brunelli, CF namente, 111 A Conferência dos Religiosos do
Ir. Maria Carmelita de Freitas, FI Brasil (CRB) dispõe de uma retórica como es-
Direção, Redação, Administração: . tratégia de argumentação que busca conven-
Rua Alcindo Guanabara, 24 - 4~ 1 Cinelân- cer quanto à credibilidade de sua mensagem.
dia /Tel.: (021) 240-7299/20031 RIO DE JA- CONVERGÊNCIA é o meio de que se utili-
. NEIRO - RJ. za. Aqui o meio já é a mensagem. SÓ, a vi-
sualização ilude, cria fantasia conceitual e nos
mantém na casca de nós mesmos. A LEITU-
Assinaturas para 1990
RA, porém, propicia o retorno e novas inter-
Brasil, taxa única:
terrestre ou aérea .. .. ........... NCz$ 429,00 pretações. LER CONVERGENCIA, mensal-
Exterior: marltima.. ............ ..... US$ 38,00 mente, é fértil plataforma de novas possibili-
aérea ........................ US$ 48,00 dades de iluminação dos mistérios que a Vi-
Número avulso ....... .................. NCz$ 42,90 da Religiosa envolve pelo lampejo de uma
observação inédita proveniente da fé (Pe.
Marcos de Lima, SDB).
Os artigos assinados são da responsabilicra-
de pessoal de seus autores e não refletem
necessariamente o pensamento da CRB ca- Registro na Divisão de Censura e Diversões
ma tal. Públicas do DP.F. sob o n? 1.714-P.209/73.
257
A PNEUMATlflCAÇÃO
DA ANTROPOLOGIA DA IGREJA
E DA PRÁXIS
(O EsprRITO SANTO COMO FONTE
DA EVANGELIZAÇÃO TRANSFORMADORA)
258
Boa Nova de Jesus Cristo e de. seu rando-lhe ·a identidade e '. 0 rosto, :
Évangelho. É Ele que move homens suscitando no seu interior novos:
e mulheres a proclamar com suas protagonistas que vão ' instaurando
palavras, sua vida ' e mesmo com novas maneiras de evangelizar.
sua morte e seu sangue, que Jesus
. Finalmente, procuraremos refletir
Cristo é Senhor pa1;a . a glória de
á práxis evangelizadora do ser hu-:
Deus Pai, e que o amor e a justiça
são efetivamente mais fortes que a mano que é discípulo de Jesus, e da
comunidade eclesial como práxis
morte e a injustiça porque Deus
demonstrou que assim é na encar- "espiritual", ou práxis do Espírito;
que age nas pessoas e nas comuni-
nação, vida, morte e ressurreição de
Jesus. dades ensinando-lhes o caminho a
ser trilhado e as palavras a serem
Neste artigo procuraremos, pois, proferidas, inaugurando sempre de
refletir sobre alguns aspectos dessa novo o anúncio da Boa Nova da
configuração pneumatológica ine- salvação para todos. Para essa re-
rente a todo processo evangeliza- flexão final, selecionamos três ca-
dor. Num primeiro momento, ana- tegorias que, a nosso ver, podem
lisaremos a "subversão" pneumato- ser bastante iluminativas sobre essa
lógica que o Espírito realiza na an- práxis pedagógica do Espírito no
tropologia, transformando as cate- processo evangelizador: a oração, o
gorias humanas mais constitutivas testemunho e o discernimento.
em direção a uma configuração Finalmente, após ter 'assim refle-
crística. Procuraremos demonstrar tido, esperamos poder concluir po-
como, assim agindo, o Espírito al- sitivamente sobre a primordial im-
tera fundamentalmente aquilo que portância do Espírito Santo enten-
é mais profundo e essencial tanto . dido, assimilado e proclamado co-
no evangelizador como no evangeli- mo fonte de toda evangelização que
zado, implicados ambos num mes- se quer verdadeiramente transfor-
mo processo, e confere nova face à madora e, portanto, autenticamente '
evangelização. nova, já que é Ele o único que faz
Num segundo momento, procura- novas todas as cqisas (2 Cor 5,17) .
remos perceber como a ação do Es-
pírito se faz sentir, no que diz res- A subversão pneumatológica
peito ' ao processo evangelizador, na da antropologia
comunidade· que é o primeiro e
principal agente deste processo por- A primeira via de abordagem pa- .
que para isso foi e é constantemen- ra uma reflexão sobre a importân."
te convocada e enviada. A partir da Cia do Espírito Santo para a evan- .
constatação de que até agora a ·ver- gelização ' é a antropologia. A evari- '
tente cristocêntrica tem tido maior gelização releva do domínio da an: '
peso na configuração da comunida- · tropologia, é um processo . que suce-
de · eclesial evangelizadora, . procura- de entre 'seres ' humanos soprados e
remos çletectar como a presença ati- ungidos pelo Espírito de Deus cujo '
va do Espírito 'se"vem fazendo sen- substrato · antropológico, a partir
tir. nessa mesma comuitidade, alte- ' deste sopro e desta unção, é modi- :
259
ficado. Neste processo, o evangeli- reproduz o êxodo do Verbo que,
zador, portanto, é alguém que é so- sendo de condição divina, não se
prado e transformado, alterado (1) aferrou à· prerrogativa de ser igual
pelo Espírito Santo. O mesmo pode a Deus, mas se fez homem, serVo;
ser dito daquele que é evangeliza- obediente até a morte de cruz (Fil
do, que recebe o anúncio trazido 2,5-11). lhodo do próprio Espírito
pelo evangelizador. Isso equivale a que é enviado constantemente pelo
dizer que tanto evangelizador como Pai e pelo Filho, "outro" Paráclito
evangelizado são pneumatificados que tem a missão de "recordar" e
- ou seja, trabalhados e "construí- "'rememorar" as palavras ditas pelo
dos" pelo Espírito Santo - e essa primeiro evangelizador, Jesus de
pneumatificação é algo que não Nazaré, e conduzir seus ouvintes ' a
acontece impunemente: afeta e al- -toda a verdade (cf . .lo 16,1~; 14,26;
tera o mais íntimo e próprio de 15,26). Assim, à semelhança e no
suas categorias antropológicas cons- seguimento do êxodo e da "saída"
titutivas, sub-vertendo radicalmente constante e contínua do próprio
o seu ser mais profundo. J;leus de si mesmo, do próprio Fi-
A primeira característica dessa lho e do próprio Espírito da inefa-
pneumatificação é o fato de que o bílidade da comunhão intra-trinitá-
Espírito Santo provoca no evange- ria, em direção ao mundo e à hu-
lizador um êxodo, uma' saída de si manidade, o evangelizador passa a
mesmo (2) em direção ao seu (ou ser e auto-compl'eender-se, perpe-
seus) ouvinte. O primeiro movi- tuamente, como um peregrino, não
mento que o Espírito suscita, por- se encontrando em si mesmo, mas
tanto, no interior daquele ou da- apenas fora de si mesmo, no outro,
quela em quem semeia o desejo e nos outros.
a necessidade de anunciar o Evan- Por outro lado, este êxodo tam-
gelho, é um arrancar-se de si mes- bém acontece naquele(s) que é evan-
mo, de seus interesses mais imedia- gelizado(s). O Espírito que é envia-
tos, suas comodidades, seus apegos do pelo Pai e pelo Filho chega a
para fazer-se tudo para todos (1 Cor seus ouvidos e emerge em seu cora-
9,22), enfrentar situações as milÍs ção juntamente com a Palavra que
adversas, expor-se . a perigos e tri- lhe é anunciada (3) e o faz "sair"
bulações (cf. 2 Cor 1,4ss; 4,7-15; de si mesmo, de suas categorias , e
5,lss; 8,2; Fil 4,14 etc.), à rejeição, preconceitos os mais arraigados, de
ao sofrimento e à morte (cf. 2 Cor seus hábitos e costumes mais em-
i2; OaI2,19ss; 6,17; 1 Cor 2,1-5 pedernidos, de sua comodidade, sua
ti outros). Assim fazendo, o Espíri- instalação, para ouvir outras línguas
to Santo e.stá, inserindo o evangeli- como se fossem a sua (cf. At 2,4-6)
iador ·no próprio movimento kenó- e para perguntar, com a humildade
tlco do Deus Trindade que vem em
lÍireção à humanidade para levar a da criança e a perplexidade do ser-
cabo, vo: . "Que devemos fazer, irmãos?"
. . seu desígnio de. salvação.
. ' (cf. At 2,37). A pergunta da fé que
Na antropologia - ' que neste' ca- a evangelização suscita é, pois, a
so· é· a carne do evangelizador - se pergunta por um fazer, por uma
26Ú
práxis que irá completando na car- que nunca é de todo revelado. Dis-'
ne e no coração do convertido, o por'se a ,' viver no seu espaço é
processo de êxodo iniciado pelo Es- expor-se a ser talvez rejeitado,,, aba-
pírito. Está iniciado, portanto, tam- fado, sufocado, entristecido, ' ultra-
bén( naquele que recebe e acolhe a: jado e ,mesmo extinto (cf. Gal. 5,17;
evimgelização,o caminho da sub- Ef 4;30; 1 Ts ' 5,19; Heb 10,29).
v.ers~o das categorias antropológi- E ter , que permanecer no seues-
cas; ', que altera o seu eu ' mais ,pro- paço, anônima e obscuramente, como
fimdo 'e constitutivo e lhe permite o grão de trigo que morre para dar
àuto-compreender-se a partir do Ou- fruto (cf. To 12,24). E ter que assu-
tro que o re-constitui desde dentro mir SUílS características, sua cultura,
com, 'seu ' sopro re-criador, e dos ou- suas ' càtegorias, para a partir daí
tros que esperam por sua participa- ~nunciar-Ihe a Boa Nova, e não im-
ção ' na práxis de construção do' por-lhe 'categorias estranhas que não
Reino. permitirão acesso à comunicação que
o Espírito instaura no processo ' de
A~siin percebemos que no pro- evan~elização (cf. At 17,16ss) (4) .
ceSSO "da evangelização se dá e se
pode ' captar, palpavelmente, a inha- ; P~r ' outro lado, as conseqüências
bitação 'do Espírito Santo: O Espí- dessa inhabitação se fazem sentir
rito que habita no evangelizador, também positivamente, na produção
consciente de sua presença, emerge concreta , de um espaço alternativo
igualmente a nível consciente no para o ser humano. O Espírito que
evangelizado. Ambos passam então altera as categorias antropológicas
a , compreender-se não mais em re-, em todos os pólos do processo de
lação ,a ,si ,próprios, mas como tem- evangelização é um Espírito que
plos, ca'sas ' de Outro. Seu referen- arranca o ser humano de si mes-
cial -,-, para si e para os que os ma ' paracQloqá-lo em ," outro", es-
cercaJ;ii. e com quem se relacionam p,aço. , Na , mentalidade bíblic,a , o
- ." ~ esse outro maior que os arran- espaço ,é ,um dos modos fundamen-
6~ de si , mesmos e altera seu e~pa
t-io'l interior e exterior. ' ' tais :de auto-compreensão do ser 'hu-
.. ,. - . mimo. A perda da situação, do lu· '
,'>Antropologicamente, isso implica gar; 'da , ' terra" do espaço, enfim, ' a
pára"':'os 'seres' humanos envolvidos a-topia é sempre sentida e experi-
e:;,implicados no processo 'd e evan-, mentada 'como ' desgraça ,e malOição.
gelização; viver ' no ' espaço do ou- A pergunta divina ao ,homem; de·
tro-:e admitir que o outro viva em pois ,da queda original, , " Onde es-
seu ' próprio espaço. Esse fato tem tás?" (Gen '3 ,9), não significa sO'·
várias.:e sérias implicações e con' mente <> lugar entendido comO', espa-
seqüências,' em todos os níveis. Essa ço ' físiCo ' e geográfico, mas toda a'
altllra.gãopermanente do , espaço situação :existencial do homem. A
signi.fica ', por , um lado, caminhar maldição :,lànçadasobre Caim, de,
s~mRre :" rumo ao desconhecido e ser '.: errante 'sobre'" a terra, s€im , e5-'
,,~rÍ;li-sl'l ' para , ser ,invadido pelo des, paço, 'sem lugar, (Gn4;11-12) deixa
conhecido. o outro é um mistério bem : em :evidência ' essa, primordi'ali'
'26'1
dlidi: do espaço. como categoria an- ttuída por dentro e por ·fora pela:
twpQlógica 'para . o homem bíblico: cristologia . e pela antropologia... . '
:'O,rli: o Espfrito, alter~ndo e sub- . ~Alterado o espaço antropológico,:
\!~l)endo ,o espaço humano, no pro- O Espírito altera também a forma'
c'e:sso. de evangelização; impede que. humana. O Novo Testamento está
o' se( humano continue se auto-o cheio de textos onde essa altera~
cpmpj:éimdendo a pártir de si mes- ção da . forma realizada pelo Espí~
mo' e .deferidendo desordenadamen-' rito . no 'se~ humano ' aparece bali-.
te, coin urihase dentes, um espaço zada .comaisHntos nomes: selo (Ef
"própdo", porque o coloca e O . si- 1,13; 4,3Ó);imagem (2 Cor 3,18);
tua enz Cristo. o. destino daquele veste (Col 3,10; Ef 4,24). Trata-se;
que ,.evangeliza e daquele que é portanto, de uma verdadeira · trans-.
evangelizado . não é perder . "seu· ~o~mílção, ·metamorfose . que é · reali-
lugar para; andar errante pela terra, zada no ser humano. A ' evangeli-
sem ter para onde ir. -Mas é, pelo zação, ° anúncio da Boa Nova do
contrário, descobrir ' para si nova Evàngelho é que dá início aesse
situação, outra terra, outra pátria, processo transformador, que vai al-
outra paisagem - crísticas. Pela terando vital e essencialmente a for-
evangelização, o Espírito ·arranca o ma do ser humano e dando-lhe nova
homem de si mesmo para situá-lo configuração; Configuração que nada
em Cristo e para possibilitar-lhe a mais é .d o que configuração a Cristo.
descoberta e a vivência de uma nova . A trans-formação que o processo
comunhão no Corpo de Cristo, 'na evangelizador. realiza' 'na pessoa tan-
comunidade (5) . . to ,do evangeIizadorcomo do evan-,
. A imerlinatificação daqueles que gelizado . é, portanto, na verdade,
estão envolvidos no processo de uma con-formação. Sendo transfor-
evangelização ' abre então ·0 caminho madopela Pafavra anunciada e pelo '
da antropologia ' para a cristologia. Espírito . de ' vidÍl e ' santidade, ' o '
A .verdadeira ·.sub-versão 'priellI!lato, cristão vai sendo cada vez mais con-
lógica da antropologia que a evan- formado a Jesus Cristo. De tal ma-
ge.l.iz.ação·realiz<I é .na .verdade cris- neira que não possa mais compreen-
tol<,sgíc.a, cicÍstíca.' Pois O · Espírito é det~se : senão li partir d~ Jesus Cris-
por definição aquele que "não tem to; 'que não' possa falar, diante do ,
lugar" próprio, já que seu lugar é mundo .. e .dos, tribunais, senão .as
o Cristo; Q Ungido, o.Messias.(Mt 3, palavras · de . Cristo; que traga em
16; Lc 1,35)'; ·é O .ser :humano, seu' seu corpo. as . marcas. de Jesus Cris-
teQlPlo; sua habitação (Ef 2,22; to (Gal 6,17); que seja, enfim, ".u ma
l~ . Cor. 3,16); é a comunidade, .a . carta de Cristo... escrita não . com
Igr~ja, o Corpo de Cristo (1 Cor tinta mas com o Espírito do Deus
12,l.3). Alterando ' 0 , espaço antro' vivo; não .em tábuas de pedra, mas
pôlógico, o .Espírito, 'pelocorpo e em ..tábuas . ~ de carne que são os·
pe.la . boca ., do :evangelizador. abre vossós :corações" (2 Cor 3,3). A
ul1i . noyº ·· e~paço,~ onde' 'a ,'.antropo, evangelização;.portartto, é tanto mais
Jogia .',pode .,ser .·subvertida . erecons- pnéumatológica quanto mais · cl'Ís-
liça; traz ianto mais ' o seIo do Es- ' n:ain · uni cosmos organizado · e har-
pínto quanto mais configura aque- monidso : (Gen 1,ls$), o deserta ·flo-
les e aquelas que estão envolvidos: resdee é ·· transformado em jardim
em seu processo à pessoa de Cl'isto; (ls35,1-6) ,e os ossos secos · são:
dá tanto mais testemunho do Es- metamorfoseados ' diante ' ·dos
píri.t o .que é sua fonte e seu artí- olhos atônitos do profeta; possuído
fice . quanto mais produz . no meio ele pl'óprio pelo mesmo Espírito -
49 mundo ·e da sociedade a comu- num '. forte ' e militante exército (Ez
nidade que é Corpo de Cristo, ver- 37). Pelo contrário, quando o Se-
dadeiro e primordial agente de nhor Deus retii:a seu Espírito, as
evangelização. criaturas morrem e retornam ao pó
de onde vieram (SI 104,29-30). A
A comunidade pneumática ausência do Espírito, ou qualquer
~ evangelizadora tentativa de restringir" abafar ou
contristar o Espírlto resulta .sem-
. Coino ' não existe cristianismo sem pre numa diminuição da vida num e
cgrnunidade, tampouco existe prá- aumento do poder predatório, ,des"
xis evangelizadora fora do contexto trutivo, da morte. ,.' .
da . comunid<lde. A evangelização
- '- embora tenha um <lspecto emi- Se is to é verdade com relação à
11entemente antropológico, . pessoal, criação, ao cosmos, não oé inenos
verd~de com relação à <::omunidade
ulDa vez que é comunicação entre
pessoas . - . se dá na comunidade, que . é convocada e reunida . pelo
através da comunidade e é reali- mesmo Espírito. A ·vinda ' .do Espí-
zada .pela comunidade. A comuni- rito sobre a comunidade,.' fechada
dade é, pois, o primeiro e mais e temerosa, reunida em Pentecostes,
importante agente de evangelização. trouxe uma superabundância de
Esta . comunidade anunciadora do graça e verdade sobre aquela co-.
Evangelho e produtora da vida de- munidade que "produziu" uma su-
cSirrente deste . anúncio . é, funda-
lrientalmente, uma comunidade pneu-
perabundância de energia evigor.
Esta superabundância .possibilitou
mática, ou seja, ·uma comunidade aos .apóstolos, desencorajados e emu-
que encontra no Espírito Santo decidos . pela" morte e pelo medo,
sua fonte. de vida, seu manancial e abrir sua boca . e proclamar nas
sua possibilidade de existir, sua ruas e praças a Boa Nova·' de Jesus
i4entidade. Cristo e .da vida que não termina,
.'.A..pririi.eira característica da his- vencendo .a morte provocada pelos
t6ri,! do ' Espírito ' Santo e sua ação poderosos deste mundo (At 2,2-21).
ém meio ao Povo de Deus, tal como O inesmo "6 verdadeiro 'quando
é'" encoritrada nos textos do Anti- se trata da' história do Espírito
go ' e 'Nôvo Testamento e nas nar- atuimdosobre a comunidadeecle-
rativas da ' Igreja Primitiva, é ' a sial, sobre a Igreja. ' Quando 'a': co'
"'produção" de vida. Quando .o Es- munidade está·' abertap'arà o sopro
pIrita age, a obscuridade e a de- doadór de tida do Espírito e re-
sordem ' do caos primitivo se tor- conhece e experimenta este' meSmo
Espírito · Como "Senhor e fonte de Iização enquanto primordial mis-
vida'~ .. o Reino de Deus começa a são ec1esial é carismática e insti-
aparecer e crescer dentro da his- tucional 11 deverá sê-lo sempre mais
tória. Por outro lado, quando a para ser ' fiel à sua identidade e
comunidade . eclesial se torna fecha- à sua origem.
da e "contrista" . o Espírito que
chama' e reúne, a morte começa a Por ' um lado, a evangelização é
realizar seu trabalho predatório e encarnada, histórica. S6 se dá den-
destrutivo, diminuindo a vida e tro de uma determinada situação
cons.umindo a energia e a força, as histórica, na espessura e, ·por ve-'
habilidades e o potencial da comu- zes, opacidade das possibilidades'
nidade e de seus membros. concretas desta situação. A partir
destas coordenadas muito concretas
Além de convocar e reunir a co- e limitadas, a evangelização deve
munidade, o Espírito também a suscitar o seguimento de Jesus, com
impulsiona ao ' envio. Toda comu- aderência muito real e proximidade
riidade i:clesial é comunidade envia- muito estreita ao Jesus histórico,
da, 'missionária, participando assim suas palavras, seus gestos, seus cri-
do movimento missionário que cons- térios, . suas relações com as estru-
titui ec.aracteriza a vida da Trin- turas e os grupos sociais de seu
dade Econôl.JlÍc!l que vem constan- tempo e seu lugar. A comunidade
temente ao encontro do mundo. convocada e enviada por este pro-
Como . o Pai enviou o Filho, como cesso . evangelizador tem possibili-
o. Pai e . o Filho enviam o Espírito, dade de fincar bem firme as suas
assim a comunidade eclesial é cons-
tantemente enviada ao encontro do bases e os seus alicerces, traçar com
mundo e:dospóvos . para anunciar
cores bem nitidas os seus referen-'
ciais e abrir:se um caminho . limi-
o 'Evangelho' e suscitar a constru-
ção do Reino de Déus. tado e determinado em meio a inú'
meros outros possíveis. A comuni-
Esta dupla diIDensão do envio da dade .assim adquire peso e . consis-
éomunidade -"-. dimensão cristoJ6- tência, se toma instituição, 'se or-
gica (a comunidade eclesial é o ganiza e se complexifica. .
Corpo de Cristo e cada um de seus
membros é chamado ao seguimen- Por outro lado, a evangelizaçã(')'
to de Jesus); e dimensão pneuma- é carismática, pneumática. Acortte'
tol6gica (é ' no Espírito e pelo Es- ce ao sabe i' da inspiração do So-
pírito que o' envio da comunidade pro divino., que sopra onde ' quer
se atu*!iza . e.$e concretiza, pois o e ·não se .sabe de . onde vem nem
Espírito atualiza o Cristo na .vida para on.de vai (cf. Jo 3,8) .. 'Tem.
do comunida:de) - . trazem para o portanto, po.ssibilidades e abertUra
processo evangelizador uma saudá- ilimitadas. Está aberta a . to.das . as.
vel ·te.rtsão·, dialética. Será, porém, Criatividades e sua palavra de . or-
s,mdável, se for assumida como ten- dem é. o inesperado. Se se toma
são. que é; . se .não se ' tentar anuiar dócil ao sopro do . Espírito, a co-
ou diluir Um de 'seus pólo.s em de- munidade evangelizadora e 'eVange,
trimento· 'doolltro: Pois a evange- Iizada '. vai encontrando . cada ' ve.z
264
niaiorflexibilidade para descobrir cesso de evangelização. A partir do
maneiras novas e inéditas de di- Concílio Vaticano 11, seguido ' de
zer a mesma Boa Nova de todos perto pelo notável documento "Evan-
os tempos, para achar gestos di- gelii Nuntiandi" e, muito concreta-
ferentes e palavras virgens que mente, na Igreja da América La-
atualizem sempre de novo, no mun- tina que tem nos documentos de
do, o evento único e salvador da Medellin e Puebla dois marcos fun-
encarnação de Jesus Cristo. damentais de sua caminhada, a co-
munidade evangelizadora, sob o im-
Ao longo da história da missão pulso da criatividade inesgotável e
evangelizadora da Igreja, pode-se transformadora do Espírito Santo,
perceber, no entanto, uma predo- passa a apresentar novos rostos:
minância do pólo cristol6gico da
o do leigo, o do pobre, o do ne-
evangelização sobre o pneumatol6-
gro, o do índio, o da mulher. O
gico. A evangelização - assim
Espírito, então, com seu trabalho
como toda a estrutura eclesial - produtor de vida, altera as catego-
pendeu demais para o pólo insti- rias ec1esiológicas correntes e "nor-
tucional em detrimento do carisma mais" da evangelização para que
e · da pneumatologia. Isso ocasionou esta cumpra seu papel de Boa Nova
muitas vezes enrijecimento e fixis- e de produção de vida de maneira
mo, estagnação e limitação, fechando ainda mais patente e plena do que
os caminhos ao Espírito para reali- até ·agora.
zar seu trabalho produtor de vida.
Sempre colocados e considerados
. Pode-se perceber este fenômeno, como receptores da evangelização e
por exemplo, em relação aos dife- objeto da pedagogia evangelizadora,
rentes agentes de evangelização. estes novos protagonistas agora, sob
Durante muitos anos ou mesmo o sopro criativo e criador do Espí-
muitos séculos, o processo evange- rito, se vêem na linha de frente,
lizador teve na sua linha de frente, evangelizando sempre de novo a
como protagonistas, apenas um de- própria Igreja. Assim é que, ao
terminado tipo de pessoas: marca- longo dos últimos anos, em nosso
damente homens, brancos e cléri- continente, se cunharam expressões
gos (6). Toda a imensa multidão e palavras tão significativas como
dás outras raças - negra, amarela, "As comunidades de base evange-
íi1diá - e a metade da humani- lizam a Igreja", "O clamor dos po-
dade formada pelo . outro sexo - bres é palavra evangelizadora para
o' sexo feminino -.-, embora pre- toda a Igreja" (7). Assim também
sentes, pareciam estar na obscuri-
dilde, irivisíVeis e inaudíveis. · as culturas negra e indígena fazem
{', I ' . emergir novas formas de . expressar
.Jloje pode-se perceber · um mo- a vivência do ' Evangelho, ' na cele-
vimerito subversivo do Espírito não bração e . no . culto, na . reflexão e '
só .. em relação às categorias · antro- na . ação pastoral; E; ' finalmente, a
po)6gic!,s, tal . como vimos acima, mulher, "na sua nova mandra de.
nias também em relação aos com- fazer-se ' presente ' coriJoagente de '
ponentes .eClesiol6gicos deste pro- evangelização, . traz consigo ' a . no-
.~ ",
265
vidade perfumada e rara de sua vida (~), No processo de evangeli-.
sensibilidade; que se espalha por. zação, portanto, o Espírito . exeiú::
toda a .Igreja como o perfume que constante e notavelmente essa prá- :
a mulher do Evangelho de 10 . 12 xis pedagógica, que ensina a ' todos :
derramou sobre a cabeça e .OS pés aqueles e .aquelas .envOlvidos nesse
de Jesus e encheu . toda ' a casa, . processo~ como viver, o que fazer, .
o que falar, como rezar, 'Essa .prá,
Suscitados pelo Espírito de Deus, xis do Espírito é condição de . pos- .
estes novos agentes de evangeliza- sibilidade de toda a práxis evan-
çãc(dão: rtovo .. rosto à comunidade gelizadora que será ' por sua Vez
eclesial : evangelizadora, Assim, o exercida pelas .pessoas, agentes de'· .
Evangelho se torna cada vez mais evangelização e pela própria .comu- :
aquilo que é em sua Ol'igem e em nidade evangelizadora no' exercício ·
sua essência: Boa Nova, Assim tam- de sua missão, Os ' canais pelos :-
bém o seguimento de Jesus não se quais essa práxis pedagógica do Es- ,
dá apenas em termos . de .espessura pírito vai configurando ' edrsnsfol'_..'
e opâcrda:dee rião pede apenas ' imi- mando a 'e vangelização; são. :tão ·iriú,·.
tação literal, mas inventa novas for- meros . quão infinita é a divina cria" .
mas de · reproduzir no ' mundo a fi- tividade do .mesmo. Espírito, Apon- :
gura . corpórea do Deus' encarnado, tamos aqui apenas ' algumas, a .tií, '
morto e ressuscitado. Assim tam- vel de pistas para reflexão,
bém a ' práxis evangelizadora da
comunidade se torna cada vez mais O Espírito ensina a oração, Rezar', .
aquilo . que é chamada a ser: não acolhia' em si a Dim's que se 'COmu- '
s6 e não apenas pr4xis crfstica, mas nica e age; dirigir-se a esse mesmo
práxis .c arismática . e pneumatoló- Deus em termos de. louv.or, .súplica'"
gica, ' práxis do próprio Espírito . ação de graças; contemplar os mis"
Santo que _configurou a forma hu- térios divinos e fazer-se delescon' ;
milna ,do Filho '· de Deus e agora temporâneo, tudo isso . o ser. huma- .
cbnfigur!l !lo impulsiona seus segui- . no não pode inventá-lo e · fazê,lo :
dores nó .meio da Igreja e do mu'n do, por si tp.esmo (cf. Rom. 8,26-27). :e
o Espírito que o .ensina, d,ando-Ihe :
A práxis ' evangelizadora . a . possibilidade inefável de apren".
como pr!Íxisdo Espírito Santo der ' :a.- .balbuciar . as palavras mais .
primordiais.' e amorosas: "Aj)ba, Par:;
O Espírito Santo é, fundamental- (Gal 12,3),
4,6) e "Senhor Jesus" (1 Cor .
eo Espírito também que en-.:
mente, na" iradição cristã, timto
oriental ,como ocidental, ·aquele que sina a comunidade ' a "beber no
ensiriâ; .0 .pedagogo das coisas di~ poço" . inesgotável onde' .encontra . a
m~tiva para"
fonte
vi nas, ·.que sonda as profundezas de ' a luta e a construçãoe do
que a anima
Reino (9)
Peus (i Cor 2,10) e as comunica e a dispor-sé ' a ser trabalháda : pelo
aos seres .. humanos;' o ' exegeta da
Espírito para ser por' ·sua vez' envia-;
palavrá .deDeus que permite que da a trabalhar pela justiça de Deus;·:'
esta 'palavra proclamada' e anuncia-
da nãc) caia no vazio, mas se torne Ora, . a evangelização, antes de ,
carne " e .: sangue . e .' dê " frutos .. de mais ' nada: é . . um processoorante.. :
266
Orante porque inspirado, orante deve se preocupar com as palavras '
porque ensinado" orante , porque que deverá profetir quando arras-
pneumático. ,Não existe verdadeira tado perante os tribunais e com"
práxis evangelizadora que não brote pelidú ' li dar razão de sua fé ' e sua
e rião resulte da escuta humilde do esperança, pois é o Espírito - , Es" '
que diz e ensina o Espírito na pro .. pírito do Pai e Espírito de Jesus -
fundidade do segredo dos corações que falará nele e por sua boca,
e na vida misteriosa e comuniónat
da Igreja. O 'evang.elizador nso po- Da mesma forma, é esse mesmo
derá levar a cabo sua missão de Espírito que lhes dará coragem para
anunciar a Boa Nova do Reino se levaI' seu testemunho , até o fim,
procurar inspiração apenas em si enfrentando a perseguição e a mor-
próprio, ou apenas na análise cien- te, vivendo até as últimas conse-
tífica e sociológica, cultural, eco- qüências a graça ' de serem mál'ti-
' nômica e política da realidade que res = testemunhas (11), E isso por-
o: cerca. Essa análise e essa práxis que , esse mesmo Espírito vai pro-
deverão estar banhadas pela luz ilu- gressivamente, configurando os dis-
minadora ,e pedagógica do, 'Espírito cípulos de Cristo, ao mesmo Cristo,
que pela oração vai apontando os Testemunha fiel por excelência, Cor-
caminhos, ' ensinando ' o louvor e deiro imolado , desde antes da cria-
suscitando" a ação de graças., Assim ção do mundo e f"zendocom ,que,
a ' práxis evangelizadora poderá SUSe na , .Igreja Primitiva; com efeito, o
citar naqueles e naquelas que são carisma por exc.elência do Espírito
evangelizados a abertura pàra que , seja o martírio (12), ; "
,essa , mesma divina pedagogia , os Na Igreja, ao longo dos seus :vin-
at4tja, e os introduza 'no mundo de te séculos de história e ainda hoje,
il)fini,tas possibmdades da comuni- essa realidade permanece, É o ·Es-
cação com Deus e da vida mística pírito ' Santo que continua dando
e contemplativa" que na,d a mais é inspiração e forças aos seguidores,
dp que vida no Espírito (10). de 'Jesus para testemunhá"lo ,eanun-
',' 0 Espírito ensina também o tes- ciá-Io por cima dos telhados; a tem-,
temunho. Já o Novo Testamemo po e a contra,tempo. O anúncio' da '
deixa Claro esse fato ' teológico, co- Boa Nova, a práxis evangelizadora
lbcando rios láDios de Jesus a afir- é, portanto, inseparável do testemu-
mação de que ' o testemunho dado nho; Não se anuncia com a boca
poi' seuS seguidores, ' muitas vezes o 'que não ,se vive com a vida, no,
selado com a morte' e o sangue, 'não cotidiano; no serviço humilde e na
é 'algo que eles poss'a m ' obter e le- prática da ' caridade sob as suas
var ',a 'cabo por suas próprias forças mais diversas formas , (13)., E é o
e ,: confiando ' apenas , em esUa inteli- EspírItci que continua 'ensinando ao
g~ncia ,e inspiração, mas .lhes é e evangelizador ' quais ' os compromis-
ser~ , dado' e 'ensinado pelo' Espírito sos' a , assumir diante 'do mundo '''e
Santo (Mc 3,11; Lc 12;1:1-12; Jo quais as ' palavras 'que' devem ' res-
14;26). DaÍ' resulta ' que o teste- paldar eSses ' compromissos; de ma-
mu'n ha, : 6 confessor; 'o ' mártir, ,não neira ' que: adquiram; credibilidade e'
267
sejam Boa Nova, notícia alvissa- deiros frutos do Espírito, que são
reira em meio a uma sociedade di- frutos de vida: paz, alegria, longa-
vidida pelo conflito e pelo pecado. nimidade, justiça ... (cf. Gal 5,22).
Hoje, embora não estejamos viven-
do . propriamente um tempo de per- Na práxis evangelizadora, o Es-
seguição reLigiosa no sentido literal pírito continua levando a cabo essa
da palavra, temos a graça de pre- pedagogia do discernimento. Ele o
senciar o testemunho da entrega da faz ajudando o evangelizador a per-
vida até à morte por parte de mui- ceber o que, no seu anúncio, per-
tos homens e mulheres que se com- tence realmente à medula do Evan-
prometem com a libertação dos gelho e o que pode estar atraves·
oprimidos e com a causa da jus- sado de ideologia, auto-busca, inte-
tiça feita aos · pobres. Em todos es- resse próprio e alheio, vícios os
tes e estas que serenamente assi- mais diversos e sutilmente dis-
milaram o Evangelho de Jesus até farçados. Ele o faz ainda ilumi-
suas últimas conseqüências a ponto nando o que pertence realmente ·ao
de desprezar a morte (cf. Rom 8,36; corolário da mensagem de Jesus e
2 Cor 4,11; Ap 12,11), o Espírito o que é simplesmente roupagem
falou e fala mais alto, anunciando, cultural. que a envolve com vistas
por seu testemunho emudecido pelo a uma comunicação de acordo com
ódio e pela violência, a alentadora as diferentes épocas e culturas e
notícia do amor que é mais forte que, portanto, está sujeito à cadu-
que a morte e da vida que não tem cidade e à mudança. Fá-lo também
fim (14). ensinando o evangelizador a puri-
Finalmente, o Espírito ensina o ficar sempre mais as motivações de
discernimento. Já desde o Novo sua práxis e de seu anúncio,tor- .
Testamento fica muito claro que o nando-o sempre mais servo da '· Pa- '
discernimento é um carisma do Es- lavra de Deus e não seu falsifica:
pírito (cf. 1 Cor 12,10), que per- dor ou manipulador, conduzindo-o"
mite provar os diferentes espíritos à verdade sempre mais plena. Nessa
para' ver se são de Deus (1 Jo 4,1) pedagogia, a comunidade·.. desempe-
e se ' éonstroem realmente o Reino e nha um importante papel, awi:ilian-
edificam a comunidade. O discer- 40 .no . discernimento pela . verifica;
nimento, . ensinado pelo Espírito ção do que inspira e diz o Espírito
Santo, permite. identificar entre as a cada um em vista da missão evan-
diferentes .situações que ' se apre- gelizadora .que é · comum a . todos. i
sentam .·6 entre as diversas .opções Finalmente, o Espírito ' exerce . sua
possíveis, quais .. as melhores entre pedagogia de" discernimento .naque,
as muitas 'boas e convenientes, quais les que .recebem o anúncio do ·Evan';
as que. provocam mais estreita sin- gelho, introduzindo-os ' mais e mais .
tonia . com a Palavra 'de Deus e seu no mundo 'complexo e mesmo cori" '
contelÍdo, ql!ais .as .que conduzem a flitual ' dos diferentes .espíritos que
um · mais. fiel seguimento de Jesus, . entratiJ.' em.':luts com'. o verdadeiro ·
a . .uma '·, mais profunda . crÍstificação, Espírito, ensinando-os li distinguir
qua,is . :as que ·produzem os verda, o que . vem realmente de Deus ~ dos
outros "ventos de douttma" · (cf. Será ainda trarisforniadorano
Ef 4,(4) . . sentido de ' que cOhÚguraráa comu-
Assim, pela pedagogia da oração, nidade evangelizadora e evangeli,
zada' de uma ' nova maneira, conce.-
do testemunho' e do discernimento, dendo-lhe flexibilidade e abrindo-a
o Espírito Santo vai · tomando a
evangelização uma verdadeira prá- a novas maneiras e formas de en-
xis espiritual, ou seja, uma práxis tender e executar a missão que lhe
não s6 realizada no Espírito, mas foi confiada, ab,rindo-a a toda Jor-
também e mais ' ainda, uma práxis ma de criatividade que permitirá
que o pr6prio Espírito faz e realiza que o Evangelho penetre realmente
no .ser humano e na comunidade. em toda criatura.
Será também transformadora na
Conclusão: por uma Ínedida em que ' receba o ensina-
evangelização transformadora mento do Espírito . a respeito da
Estas são, parece-nos~ as verda- oração, do testemunho e dodiscer-
deirás condições para que a evan- ' nimento como ' componentes essen-
gelização que a Igreja, entende co- ciais de ' todo pro'cesso genuinamen-
mo sua missão primordial, seja real- te evangelizador. Uma evangelização
mente transformadora. Num mo- que não' esteja penetrada em todo
mento da hist6ria da Igreja · como o seu processo" por . esses três ele-
o que se está vivendo. atualmente, mentos profundamente pneumatoJ6-
'em que a palavra de ordem é desco- gicQs, dificilmen,te poderá ' transfor~
brir e levar a :cabo· uma nova evan- mar as pessoas, as estruturas e mes-
gelização, é importante re.-descobrir moa' irtstituicãóeclesial 'de manei-
.as origens e 'as características pneu- ra que estejaIh. mais de acordo com
triatol6gicas que devem cercar e con- o coração do Pai.
figurar essa nova evangelização.
Às portas do ario de 1992, ' quan~
'. . Uma .evangeliz~ção que esteja do se celebrará o 5e;> centenário da
·aberta e. permeável .. ao Espírito que evangelização da ' A,m,érica Latina,
·é sua fonte e sua condição de pos- será importante que .t"das as co-
'sipilídáde, poderá. ser transforma- munidades ecieslais do '· continente
'dora no sentido de que!llterará real- estejam profundamente ; abertas ao
'mente as categorias antiopóI6gicl\s, soriródo Esp(dtoque "as ajudará
·cristlficárido-as · .progressiva ' e cons- a .avaliar e ponderar o que foi feito
tantemente e produzindo homens e nestes 500 anós; a fim ' de poderem
'mulheres novos,aufêritlcos seguido- discernir e . projetar o que deve ser
res :'de Jesus e construtores dó Rei" feito no ' futuro ;,que ' se apresenta à
.nó de Deus. . . . frente, carregado de esperan~~ .
NOTAS
270
Petrópolis, 1982. (10) O grande te610go (12) V. sobre a relação Espfrito Santo
K. RAHNER escreveu, lã no fim da vida, - martfrio, L. BOUYER, Le Consolateur,
essa frase lapidar: "O cristão do futuro, Paris, Cer!, 1980, pp. 119-120. (13) V.
ou serã um mfstlco, ou saja, alguém sobre esta' c(\ncepção, todo o magnfllco
que experimentou alguma coisa, ou não documento do Papa Paulo VI "Evangelii
serã nada". Cf. Carta de Inécio de Loyo- NuntiaT'!di". (14) Sobre os mártires re-
la a um jesuita de hoje, Sal Terrae, San- centes da América Latina, além dos de-
tander, 1985, pg. 17. (11) Usamos aqui poimentos recolhidos por J. MARINS e
a palavra, mártir no : sentido verdadeiro outros; , em ' A práxis do martirio hoje,
e ,p rofundo que tem no original grego : Paulinas, São Paulo, ,1984, cabe ressal-
testemunhas. Ser testemunha de Jesus tar aqui com especial ênfase o recente
era para os cristãos primitivos ter em e bãrbaro assassinato dos seis jesuitas
seu horizonte mais · imediato a posslbili .. ,de 'EI Salvadora suas , duas colaborado-
dade muito concreta do martírio. Este ras leigas . • Esta ' martfrio dã bem a exa-
sentido deveria ser . mais vitalmente re~ ta dimensão· da força do Espírito e das
cuperado hoje em dia. A nosso entender, ' maravilhas que pode fazer quando se
seria muito benéfico para toda a Igreja. apodera totalmente da fraqueza humana.
PÉ DE PÁGINA
Pe. Marcos de Lima, SDB
B~blia - "Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está
longe de mim. Em vão me prestam' culto", Lc 7~ 6.
' Leitor - Não basta a exterioridade. As aparências não enganam a Deus.
Decididamente, não somos comediantes. Nada é mais repugnante
para o religioso do que a máscara. ,:É o coração puro que faz o
sacrifício agradável a Deus.
Bíblia - "Não penseis que vim revogar a LEI e os Profetas. Não vim
revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento", Mt 5, 17.
, Leitor A Lei não é separável do Amor. Existe uma Lei, a Lei de Deus,
para ser cumprida. I'l. uma questão de vida e de morte, de felici-
dade ou de desgraça, de se realizar ou de se falhar para sempre.
Esta Lei é a sabedoria da parte de Deus. Cumpri-Ia é a sabedo- '
ria da parte do homem, pois é o caminho da salvação. A ple-
nitude desta Lei é o Amor.
271
.: ..
Lucia Weiler
272
'textos paulinos , antifeministas re- Ao conceber e dar vida prática
presentam, de certo modo, uma con- a este texto, lembrei-me de você,
fluência dos conceitos discriminató- minha irmã e companheira de ca-
rios que se tinha da mulher na tra- minhada. Você que percebeu o cha-
dição bíblica e das 'conseqüências mado do Deus Vivo e optou pelo
práticas que se tirou para a vivên- seguimento radical de, Jesus Cristo,
cia cristã nas Igrejas: na Vida Religiosa. Você que gasta
sua vida em favor da vida de mui-
"Que as mulheres fiquem caladas tos, ' quase sempre no anonimato,
' nas ' assembléias, como é , costume nos 'mais diferentes serViços comu-
em todas as Igrejas dos cristãos, nitários. Você, Religiosa, que já co-
'-pois não lhes é permitido tomar a meçou a despertar para o valor do
palavra. Devem ficar submissas, seu ser mulher; para o enorme po-
como diz também a Lei" (1 Cor tencial de uma fecundidade rela-
14,34). "A mulher ouça a instru- cional, capaz de gerar e ' partilhar
ção em silêncio, com espírito de vida, que existe no coração de cada
,submissão" (1 Tm 2,11). mulher.
' Daí a pergunta: Como dialogar Faço agora uma proposta de
e fazer falar aquelas quepermane- abrirmos, simultaneamente, oS nos-
':ceiam escondidas e submissas, ca- sos olhos e ~ Bíblia; , Queremos ler
"ladas e reduzidas ao silêncio du- ' a história da nossa ' vida e da Bí-
rante séculos? blia, com nossos próprios olhos.
, Um agravante, que reforçou esta
realidade, é o fator histórico da au- 1, Ler a vida e a Biblia
sência total ou parcial da mulher com nossos olhos de mulher
no labor teológico, oficialmente re-
, conhecido. Esta era, e em alguns Na Bíblia encontramos mulheres
ambientes continua sendo, uma ta- tão ou ,mais oprimidas e discrimi-
, refa eminentemente masculina. Re- nadas do que as que encontramos
flexos desse fenômeno cultural se e convivem, ,conosco, hoje. Muitas
Jazem sentir, ainda hoje. ,Os méto- delas, porém, agem e reagem e, com
dos e instrumentais de leitura da seus próprios olhos, vislumbram as
"Bíblia que possuímos, são marca- maravilhas dos acontecimentos li-
,dos pela ótica masculina. Por mui- bertadores em, sua história e na his-
,to tempo, nós mulheres, como os tória do povo. Reconhecem nisso a
, pobres, não tínhamos acesso à Bí-
', blia.Fomos privadas e nos omi- presença atuante da força da vida
,timos de lê-la com nossos próprios de seu Deus Javé, o Libertador.
Nasce assim 'a memória viva da
olhos. Não ouvimos sua mensagem libertação e da fé no Deus da Vida.
com nossos ouvidos de mulher. Con-
seqüentemente, sobravam-nos pou- Lembro ' aqui duas mulheres que
cas condições para compreendê-la e se situam ' no início e no fim da
'interpretá-Ia com nosso , coração, Bíblia: Agar e Maria Madalena.
nossa experiência e sensibilidade de ' Essas duas mulheres vivem numa
mulher. ' enorme distância cronológica uma
· 273
da outra', 'mas :h á ,muito em, comum , tidos , de branco, sentados no lugar
. entfe ,elas ,e ;a~·. , J!luiheres 'do nosso onde estivera ', o corpo de Jesus"
tempÇ>. (Jo 20,ii-12).
Desolada e sem perspectivas 'No deserto Agar escuta uma' voz
' de futuro, Agar, a, 'empregada des- que a chama pelo nome e ' se soli-
pedida por seus patrões; mãe sol- ' dliriza com seu pranto: "Que tens
teira, ,vai , com' seu filho Ismael para Agar?" (Gn 21,17) ; Depois que
o deserto. 'Carrega consigo apenas seus olhos se abriram ela vê o , poço
um pedaço ' de ,pão e um odre com e encontra aí Deus, com toda , sua
água, ,que logo acabam. Põe-se en- força de' fecundidade e ,vida, sim-
"tão' 'a chorar e gritar quase deses- bolizadas ,na água. Dá-lhe um nome
peradamente, porque mãe que é, novo: "Tu és o Deus que me 'vê,
não quer , ver morrer a vida que pois aqui- cheguei a ver Aquele-que-
, gerou (cf. c;7n 16; 21,9-21) (2). me;vê" (Gn 16,13). '
Com sentimentos' parecidos, num Dianté do sepulcro vazio. Maria
misto de tristeza e expectativa, Ma- Madalena ' faz uma experiência se-
, l~ia Madalena ,vai, de manhã cedo, melhante. Os anjos, solidários com
antes do nascer do, sol, quando ain- sua dor" perguntam: "Mulher, por
, da era escuro, para o sepulcro de que choras?" (Jo 20,13). Com os
,Jesus. Encontra-se vazio (Jo 20,1). olhos abertos olha ao seu redor 'e
Permanece ' aí do lado de fora do vê Jesus, mas sem ' reconhecê-lo.
sepufCro e chora (Jo 20,11). Este repete a pergu'nta: "Mulher,
' por que choras?" e acrescenta:
,Não será difícil encontrar Aga- "por quem procuras?" (Jo 20,15).
res e Marüis, como também Ismaéis, . Quando percebe sua sede de eit,
vivendo situações parecidas, hoje. , confrá-Io, Jesus a 'chama pelo nome:
, No , coração de Agar, de Maria "Maria". Ela, volta-se para ele e '
e de tantas mulheres que conhece- responde "Rabuni" que quer dizer
' mos, palpita Uma ' grande esperan- Mestre. A ' partir deste encontro
, ça que aumenta sua força de resis- pessoal, de profundo reconhec:i-
tência e perseverança: é a fé na , !llento; , Maria Madaléna recebe ,a
vida e no Deus da Vida. Era pre- missão única : e insubstituível de
, çiso que esse Deus - Javé, Jesus .contar 'sua experiência aos , irmãos.
' Cristo::....:. no, qual ' acreditavam, lhes Torna~se ' ap6stola dos apóstolos.
abí:isse :os olhos, ascbainasse pelo ' Trimsnilte:lhés de forma ' revoluéió-
noiné, para que acontecesse o novo. ,nárla o imúncio novo: ' "Eu vfo
' Senhor 'da' Vida, ele :me disse: 'Vou
No ' deserto Deus ," abriu os olhos ' para meu Pai ' e vosso Pai; 'meu
a Agar" ,e , ela viu um poço de, água. . .Deus e. vosso '
Deus"" (Jo 20,17) (3). .
Foi ench,er o od,r e , de água e deu
. de beber ào :JUenil1o" (Gn 21,19). , Maria Madalena e Agar nos con-
"vida:m, agora; . a deixarmos abrir
JUllto ao sepulcro vazio, enquanto nossos olhos para ' ver o mesmo
, chorava, Maria Madalena "choran- Deus, . presente! em -tantos sepulcros
" dq"; inclinQti~se e viu , dois, anjosves- vazios e nos desertos que a , mulher
encontra hoje; ' Isto só ',é' possível na garam até nós , como ' Palavra de
medida'ern que . éstivermos dispos- Deus.
tasa' fazer ; uma leitura fiel e en-
gajada da , Bíblia, a partir do Espí- A fé, ,porém, nos diz que o es-,
rito 'que a anima (To 14,26). Esse crito s6 se, torna Pl!iavra viva de
mesmo Espírito anima' e movimenta Detis, para ' nós, no encontro ,e na
hoje 'nossa vida: sentimos sua ' pre- tensão entre , aquilo que o povo bí-
sença, mas nem, sempre sabemos de blico viveu há muito tempo atrás e
onde vem ' e para onde nos leva. Aí o que nós vivemos hoje.
está o risco , da fé, como condição O segredo está em nos deixarmos
básica, para acolher a Palavra sem- conduzir pelo Espírito que anima e
pre' nova e surpreendente de Deus, movimenta todo esse processo de
na vida. releitura da Bíblia na vida e da vi-
da na Bíblia (cf. Jo 14,26). Então
2. Da memória viva ao texto o potencial criador da Palavra de
escrito: a Deus, latente na Bíblia e na reali-
, contribuição da mulher dade que vivemos, se tornará fonte
ativa e geradora da verdadeira vida
.' A , possibilidade mais comum que (cf. Jo 10,10).
temos de entrai' no mundo da Bí-
blica é o texto escrito. Entretanto, Do ponto de vista hermenêutico,
por trás desse texto está um con- este processo gerador da Sagrada
texto histórico cultural que alcança Escritura, tem muitas conseqüên-
uma distância milenar do nosso Cias. É de íundamental importânCia
contexto. Antes de os textos serem a escolha de uma chave de leitura
escritos, houve um longo caminho. capaz de ligar o passado do aconte-
Fatos da vida cotidiana do povo cimento bíblico narrado e escrito,
s'e 'tornaram acoritecimento e, pela • com o presente da vida que conti-
sua importâncià, foram contados nua. S6 ' poderrios entrar, de fato,
adiante, tornando<se, assim, pala- no mundo, ,da -Bíblia" se estivermos
vra. Aos poucos, reconheceu-se a profundamente mergulhados no nos-
dimensão libertadora e salvífica des- so mundo, solidários com o nosso
tes acontecimentos. E mais, perce- povo, engajados numa comUl;lidade
beu-se a intervencão de Alguém, viva de fé, A escolha de uma chave
mais forte do que ~ . força do povo, de leitura da Bíblia não é, pois,
nesta história de libertação. Nasce ri simples escolha de algum tema. 'f:
' a pru-tir daí a fé no Deus Javé. A fruto de uma opção mais profunda
mulher deu sua grande contribui- e global de vida . Não permite a'
ção neste processo (4). Cresce mais neutralidade e o descompromisso.
e ' mais, a tradição oral que faz a
memória dos acontecimentos liber- Além de , uma chave de leitlJra,
tadores-salvíficos, ' para celebrá-los coerente com nossa opção e práti-
na fé. Finalmente, alguns desses ca ' de vida, ' são necessárias outras
,acontecimentos e tradições narra- perspectivas hermenêuticas para que
das e ,celebradas foram recolhidos a Bíblia ' possa dialogar com a vida
nos ', escritos sagrados. Assim, che- e a vida coiq a Bíblia, ·
,275
3. .P~fspectivas hermenêuticas acontecendo ..na simplicidade do co-
tidiano, . por meio de Javé. Seus
Hennenêutica quer dizer "inter- olhos abertos, seu coração sábio e
"pretação"; Qualquer texto escrito, seus ouvidos atentos para a escuta
até mesmo uma carta, quando lido, dos fatos cotidianos da realidade;
pa·ssa naturalmente por um proces- sua consciência desperta, suas mãos
so de interpretação na cabeça da e pés ágeis na luta e no trabalho
leitora ou do leitor. (6), fazem da mulher a memória
viva de um povo que está em alian-
O processo complexo e vivo com ça com o Deus da Vida.
que se formou o escrito Bíblico exi-
ge, mais do que qualquer outro es- b) Superar o condicionamento
crito, instrumentais e métodos de do patriarcalismo:
interpretação. suspeita Ideológica
. A busca de caminhos para nossa
proposta de uma leitura e interpre- A raiz da Sagrada Escritura e da
tação da Bíblia com nossos próprios tradição da fé é marcada pela ideo·
olhos ·de mulher, é bastante recen- logia patriarcal. Nela a mulher não
te. Por isso não é possível, ainda, é reconhecida como pessoa, por si
apresentar aqui critérios elaborados mesma. Só a dependência de um ho-
para uma leitura· e interpretação mem (pai, marido, cunhado, filho),
dentro desta perspectiva. Apresen- lhe dá esse direito.
tamos apenas alguns indicadores, Ora, sabemos que nenhum escri-
como alertas e pistas, que podem to é neutro. Por trás dele existe
ajudar na leitura que pretendemos. sempre uma ideologia e uma inten-
ção. Por isso é preciso ficar alerta
a) Ir além do texto escrito para ver qual a ideologia que orien-
à memória viva ta o texto. Tratando-se de um con-
texto patriarcal, é necessário levan-
Descobrir, por trás do texto es- tar a ·suspeita ideológica, sempre
crito, o rosto das . mulheres que que a mulher é mencionada, ou en-
guardam e contam a memória da tra em cena, no texto escrito.
vida, da fé e da libertação.
Por exemplo: Por q1:'e, e a partir
Até há pouco duvidava-se que se- de que critérios, O livro do Ecle-
quer um relato bíblico tivesse saí- siástico, no capítulo 26, faz um con-
do das mãos de uma mulher. Hoje traste. de elogios e depreciações en-
é reconhecido que a memória dos tre a mulher virtuosa e a má?
acontecimentos libertadores, ante-
rior aos textos escritos, foi a gran- Por que a "mulher amiga do si-
de contribuição da mulher (5). · lêncio é dom do Senhor" enquanto
que "a mulher que fala alto e fala
~ · a mulher,- a quem não se deu muito é como trombeta de guerra"?
chance de ler e escrever, que faz (Eclo 26,14.27)? O critério refe-
a memória da vida, das pequenas rencial para esta classificação mora-
conquistas de. libertação que vão lista é o marido. A mulher só é re-
276
conhecida 'pessoa nessa dependên~ porém; manter os olhos abertos e a
cia e na sua função de esposa: "Seu consciência desperta, sem esquecer
encanto de boa esposa revela-se na o pressuposto básico de toda leitu-
casa bem ordenada" (Eclo 26,16). ra da Bíblia: a fé e o movimento
do Espírito. ~ surpreendente que,
A mesma ideologia é reforçada apesar do contexto adverso, as di-
no poema sobre a mulher virtuosa, mensões femininas resistiram. Ape-
no livro dos Provérbios. O texto sar da ideologia patriarcal, os tex~
(Pr 31,10-31) apresenta uma super- tos bíblicos, animados pelo Espíri-
mulher, que trabalha para toda Ia- to, não conseguem ofuscar a pre-
mflia durante o dia e mesmo du- sença viva da mulher como gerado-
rante a noite (v. 16). Proporciona
somente prazer, jamais desgosto ao ra da vida do povo. Mulheres que
se destacam, ao longo da história
marido. . . Porém, é seu marido que do povo de Israel, e ajudam na sua
"tem renome no tribunal quando se
senta com os anciãos da cidade" identificação como Povo de Deus,
aparecem com relativa freqüência
(Pr 31,23). Temos ainda hoje um na Bíblia. Entretanto, ocorrem tam-
provérbio semelhante: "Por trás de bém muitas omissões ao lado de
um grande homem há uma grande idealizações.
mulher" .
Esta desconfiança deve orientar c) Explorar os silêncios
também nossa leitura dos textos do ' e as omissões do texto
NT .. Por exemplo: Por que Mateus
é o único evangelista que faz entrar B compreensível que dentro do
em cena a mãe dos filhos de Zebe- contexto patriarcal em que surgiu a'
deu, na perícope que relata o pedi- Bíblia, ao lado da idealização de
do ambicioso de poder dos filhos algumas figuras femininas de des·
(cf. Mt 20,20-28 par.)? Por que ela 'taque, a mulher seja omitida, es-
é apresentada sem nome e numa du- condida e até diminuída. Na leitu-
pla situação de dependência: "mãe ra que hoje fazemos dos textos sa-
dos filhos de Zebedeu"? A dura grados, precisamos tomar consciên-
pergunta e resposta de Jesus é di- cia deste fenômeno cultural. Dar-
rigida diretamente aos filhos. Pare- nos conta das omissões, dos silên-
ce nem considerar o pedido, e a in- cios, ocultamentos e depreciações
tervenção da mãe. Ou será que Ma- da mulher em alguns textos escri-
teus quis mostrar que a prática de tos. Encontramos muitos resquícios
Jesus supera a manipulação vigente disto tanto no AT quanto no NT,
de usar a mulher, no caso a mãe como também hoje. Por exemplo,
(cujo pedido tinha, culturalmente, omitir o nome de mulheres e iden-
muita força), para manter os ho- tificá-Ias somente a partir de sua
mens rio poder e em lugares de des- fllnção ..ou relação de dependência:
taque? viúva de Sarepta, Mãe dos fillws, de
Assim poderíamos ' continuar en- Zebedeu, etc. (7).
contrando outros textos e levantan- Em Nm 12,1-10, Miriam, itmã
do . outras ' suspeitas . .~ importante, de Aarão e Moisés, a quem é atri-
lii'!
bUídQ.rQ. belíssimo canto: de liberta- nhuma' mulher., Paulo não pode ter·'
ção ,e m Ex 15,1-21, é: ,apresentada conhecido , o. relato da Ressurreição '
numa: Proposital diminuição. Aarão na fase narrativa .dos 4 .evangelhos;'·
e Miriam .haviam murmurado con- mas certamente não lhe era desCo-
tra .peus que só . se manifestava , nhecida a ,tradição oral, onde ,as
face-a-face. para Moisés e não a eles. nlulheres ' aparecem como persoi:i<l- .
Confor!l1e o relato, a ira de Javé e genscentrais. Por que .0 texto eg- '
cc;mseqü,ente punição atinge somen- . crito nãó as menciona? ,E mais; poi '
te Miriam e não Aarão. Ela ficou que nenhum exegeta, até , hoje, cha- .
c.obe,ita. ·de lepra, branca como a niou . atenção para este fato, ou le-
neve (8). vantou esta ' pergunt!!? .
No . Novo Testamento os 4 evan- Encontramos aqui uma pista her-
gelhos narram as ' cenas das apari- ' menêutica importante pal;a nossa ·
ções do Ressuscitado. Os l'elatos di- . opção de leitura da Bíblia: explorar
ferem' nos detalhes, mas têm um ei- estes ~Iêncios e omissões do texto
xo comum. As mulheres são as pri- escrito :a partir da h'adição oral, one ,
meiras a se dirigirem ao sepulcro de a mulher 'se movimenta 'com
de ·Jesus. Seus nomes não são idên- mais liberdade. T<llvez seja neces-
ticos, nos diferentes relatos, mas sário esquecer o famoso ditado, do
sempre são mulheres ou uma mu- qual se fez um princípio hermenêu-
lher, que recebem de anjos, ou do tiCo, de ' que só se pode perguntar
próprio Jesus, a Boa Nova da sua ao texto aquilo que ele sabe respon- :
Ressurreicão a ser transmitida aos der. Indo além daquilo que o tex- '
discípulo;. Maria de Magdala, co- to fala é preciso fazer a pergunta
nhecida .por Maria Madalena é a por aquilo que o texto não falli.
única . mencionada nos 4evange-
lhos : (9): . d) Superar -a prática de h!r
Esta uniformidade dos relatos apenas mulheres
evangélico.s, com relação à presen- qUe se destacam na Bibli~
ça central das mulheres nas cenas '
da r~ssurreição, contrasta' com 1 Cor ,Durante . longo tempo, ria tradi- :
15, considerado como a narração ção cristã catolica, o modelo e pro; ,
escrita. mais antiga da Ressurreição. ' t6tipo <)e mulher, na Bíblia, ~ra Ma~,
Aí as mulheres' são totalmente omi- ria, a .. niãe de Jesils, <> Filho .de.:
tidas; ' o texto diz que o Ressuscita- : Deus. Aquela 'que disse "SIM".. aU:e.:
do "apareceu a Cefas - .P edro -.- ,' se tornou mãe, sem 'deixar. dê ser:
d~pi:iis' . aos Doze. Posteriormente . virgem. Nunia interpr~tação' marca- ',
apa,i:eceu ' a mais de quinhentos ir- ' da pelô, ,simbólico,todàsas, rntilhe- ,:
mãos, ; . Depois a Tiagoe . depois . res do A T, que se tornaram visív~ig
li 'todos os apóstolos. E depois de e ativas nahis.tória .da salvação" ,
todos os ap6stolos, apareceu tam- eram' 'consideradas prefiguraçã,o , d,e :
bétna mim, 'que sou o .menor dos . Maria. Ela representava a Hgura~
apóstolos" (1 Cor 15,5-8). Causa de"sÍntese ' de ' ,tudo ·aquilo que ' esias
muita e,~tranher.a que, nesta lista tão mulheres :.viveram e" anunciaram no '
comple.ta, não conste o nome 'de ne'.. AT. A figura .decontraste :eraEva i '
Com il'prátiCa ' recente : de" 'unia em déstaque na Bíbliá>,Ocor'reu ' um
leitura Ínais libertadora da 'Bíblia;, , processo ' de 'ideálizaçãb;' seja pelo "
prooura-se ler Maria como mulher , escrito, seja pela leitura quedelás
de 'Deus e do povo. Aquela que , fazemos. Corremos, assim, Ç> risco
soube dizer também "NÃO" (tO), de torná;lils um modeio de identifi-
:As muThei'esd~ ' ATsão, hoje, li- caçãoniuito , elevado, distante e
di-
daseomo uma , presença e ,um va- fícil de alcançar, para a maioria das
101: , ,em si mesmas , e não automati~
mulheres latino-americanas. '
caniente referidas à Maria, o processo de libertação da ,mu- ,
Estávamos demais acostumadas lher só , pode acontec!lr dentro , do . ,
a lel: :a história da salvação ' a par- processo global e ' não como um
tir dé Sara, a famos,a esposa do gueto. Conseqüentemente" a ' Bíblia
g~ande patriarca e pai da fé, Abrão, deve , ser lida como um todo; 'com
nossa experiência e mística de mu-
Hoje, já , começamos a ler esta lher. Este é um princípio hertÍle-
história a partir de Agal·, a mu-
lher triplamente oprimida e empo-
nêutico importante: o ,detalhe e o
específico só recupera sua força na
bl'ecida pela sua condição de escra- medida em que estiver situado no
va" estrangeira e por ser mulher seu conjunto.'
(11). Ela é a única mulher, no AT,
a ter , a experiência de uma teofa-
níá;', privilégio reservado ,aos hO- e) 'Ler a [.lartir de um eixo
mens, profetas e, grandes ,líderes do condutor: a opção da 'mulher
povo. 'Recebeu a promessa 110S mes- ' pelo projeto de vida
nlos termos de Abraão, e o anúncio
do nascimento de seu filho Ismael As mulheres na Bíblia, vjstas no
se , deu em termos, semelhantes à ;>eu , conjunto, 'mostrain-se a nós co-
Maria (12). mo símbolo de fecundidade' em seu
sentido relacional e 'profundo: ge-
11 fundamental permanecermos radoras da vida e da fé no Deus
num processo de auto-crítica, nesta da Vida. Nós as contem'p làmosco-
busça de caminhos para uma leitu- mo ' elos insubstituíveis ' na " corrente
ra ,da, Bíblia como Palavra de Deus, da vida, que garantem a':continui-
na , ,perspectiva do feminino, dade da histódillibedadoj:a de Ja-
'Na ' tentativa de resgatar as figu- vé ' com seu povo. Compreendem e ,
ras femininas no AT, num primei- fazem compreender que ' a; VIDA é '
ro passo, procurou-se descobrir o um processo ,que vai : ~endo gerado
valor e a força de imposição de mu- lentamente, mas decididamente,
lh~res , que se destacaram, apesar do sempre ligado a uma única fonte
contexto , adverso em que ,,se movi- de ' fecundidade: o D!lus, VivÇ>. :
n}c:lltavam. Era a fase de afirmação , :' Desde o ' Bxodo de ' Israel, ' até ' ó
e buscade"identificação. , Êxódo da Páscoa de Jesus ' Cristo;
'Hoje, reconhecemos que devemos : desde Agar (Gn 16.21) e Miriam
superar a prática ' de ler, quase ex- (Ex ' 15,2s.) ' até 'Maria ' Madalena
clusivamente; estas mulheres fortes 00 20,1-8), a memória ', da liberta- .'
279
ção e da vida nova é acolhida e .A FÉ na VIDA é a raiz, o segre-
anunciada, criativa e corajosamente do, a força de sua resistênoia con'
por muitas mulheres. tra a · opressão, a· fome, a morte e
da sua luta em favor da vida e da
Nos dois, primeiros capítulos do libertação. Acreditando na VIDA,
Êxodo, temos um emocionante e ela faz acreditar também no DEUS
dramático relato de · verdadeiras da VIDA, que deu à pessoa huma-
alianças de solidariedade, das mu- fi ~ "um. coração para pensar e en- ,.
lheres, em defesa da vida ameaça- tregou-Ihe por herança a lei da vi-
da. Evocamos as parteiras e as mães da" (cf. Eclo 17,6.11).
hebréias, a mãe e a irmãzinha de
A partir dessa fé, as mulheres as-
a
Moisés (13). A fé e sensibilidade sumem sempre o projeto de vida, .
pela vida aumenta nelas a força e nunca os mecanismos de morte. Re'
a criatividade, a astúCia e a sabe- sistem ao sistema opressor, seja no
doria, para salvar a vida dos meni- silêncio e anonimato, seja assumin-
nos recém-nascidos, ameaçados de do iniciativas e posicionamentos co-
massacre ·coletivo. Barram assim, de rajosos de oposição e resistência.
forma sábia e astuta, o bem trama- Nunca o fazem sozinhas, mas soli- .
do plano genocida do faraó. dárias com muitos, e confiantes na
força de Deus.
Este mesmo sentir a vida faz com
que as mulheres, solidárias com Esta é uma importante pista de
Maria e com seu filho Jesus, acom- releituraque poderia servir de cha-
panhem passo a passo o drama da ve hermenêutica no processo de
paixão e permaneçam firmes de pé, uma leitura global da Bíblia, na .
junto à cruz. É o protesto mais for- perspectiva. proposta.
te contra a condenação de um ino-
centee o grito mais alto em favor f) A prática histórica de Jesus:
da libertação e da vida, que já hou- referencial e chave
ve ná história. Mas, a libertação de- de leitura da Biblia
finitiva ainda não chegou para to-
dos. Hoje continuam os protestos Jesus é a chave principal para a .
contra a vida ameaçada e matada, leitura e interpretação de toda ·a Sa-
enquanto se ouvem gritos, claman- grada Escritura e da Vida. Ele re- .
do por vida e libertação. Novos voluciona os costumes e a ética vi-
êxodos devem acontecer (14). gente em sua época, superando nor-
mas discriminatórias em relação à
Encontramos aqui um rastro in- mulher,
confundível que perpassa a Bíblia
de ponta a ponta, desde o primei- Jesus foi ·muitas vezes repreendi- ·
ro até o último escrito (15). E nos do ou interrogado · ironicamente, '
perguntamos: Que força é esta que por haver desrespeitado a Lei, na
move assim a mulher a acreditar na sua interpretação rabínica-legalista.
vida, na presença de um Deus Li- Nunca, porém, · foi acusado, ou· pos-
bertador e no seu projeto de vida to à prova, por causa de seu rela·
e libertação? cionamento libertador. com mulhe-
280
res. No 4<;' Evangelho ' o redator, ao como é o caso daquela que sofre
narrar o encontro ' de Jesus com a uma hemorragia e toca a orla do
Samaritana, até , dá a entender isso vestido de Jesus. Ele não oprime,
através de uma nota explicativa: não ,rebaixa, não envergonha, mas
"Nisto os discípulos chegaram e se ergue à múlher encurvada (cf. Lc
admiravam de que estivesse falan- 13,10-15) .
do com uma mulher. Mas ninguém Jesus, no entanto, só colocou o
perguntou: 'o que desejas?' ou 'o
que falas com ela?' " 00 4,27). princípio libertário em relação à
mulher. E'ste fica como semente e
: Conforme todos os escritos neo- pólo de referênCia ou critério de
testamentários, Jesus é extrema- avaliação. Daí para uma efetiva li-
mente coerente e delicádo no rela- bértação da mulher, há um longo
cionamento com as mulheres que o caminho de mediações histórico-
procuram e que encontra. Não diri- culturais.
ge a elas as duras palavras de re-
preensão que lança aos fariseus e Concluímos, a partir destas con·
por : vezes aos discípulos. siderações, que o ' critério e o refe-
rencial principal de nossa proposta
Numa atitude de coerência com de leitura da Bíblia, é o princípio
sel! projeto libertador do Reino de libertário da mulher, inspirado na
Del!s, Jesl!s quebra vários tahus prática histórica de Jesus.
concernentes à mulher. Em Il!gar de
uma ,ética legalista e dura com a g} A redenção do feminino
múlhér, Jesus coloca a ética da res· em Deus e a partir de Deus
ponsabilidade, do amor e do rela-
cionamento fraterno: Ao longo da tradição bíblico·
cristã, ,sobretudo no discurso teoló-
- a adúltera, condenada pela. gico-bíblico, perdeu-se a dimensão
Jeidos escribas e fariseus, é moti- do feminino em Deus. Muito mais
vo de reflexão sobre os próprios se acentuou o masculino. O Deus
atos e apeIo. à conversão (Jo 8,1-11); bíblico era anunciado de geração
: -, a ml!lher que lavou os pés de em geração como o "Deus de
Jesus com suas lágrimas, enxugou, Abraão, de Isaac, de Jacó". Portan-
os com seus cabelos, ungindo,os to o Deus dos' pátriarcas e nunca
com perfume, considerada pecadora o Deus de Agar, que, como já vi-
aos olhos dos fariseus, é a que mui- mos, fez uma experiência única de
to amou, aos olhos de Jesus (Lc Deus, no deserto. '
7,36-50). , Nossa profissão de fé que nos é
Vemos aqui, e em muitos outros legada por uma tradição secular re-
éx~mplos do Novo Testamento, que za: "Creio em Deus Pai, todo po-
a 'prática. histórica de Jesus parte de deroso ... "
uma :interpretl!ção ,totalmente nova Em conseqüência deste acento
da ' Lei mosaica. Não discrimina, do' masculino ,em Deus, a represen-
nem marginaliza, mesmo ,mulheres taçãode Deus e ó ministério de sua
que" pela lei, seriam discriminadas representação entre os homens, era
281
preferentemente, masculino. Quando 4. Um exercício prático
não :se ·negava, pelo' menos coloca- de leitUra da Bíblia:
va-se em dúvida a dignidade da mu- , .canto de Débora
lher como imagem e semelhança de
Deus. Hoje não há mais , dúvidas' Os 'cantos,na Bíblia e hoje, sao '
quanto a isto, enquanto teoria. Ora, a forma mllis' comum e, popular de:
se .mtllher e homem . são criados à reter e avivar na memória os acon- ,
iinageme semelhança de Deus, por tecimentos ou a história de um po-.
analogia; deverá 'ser possível encon- vo (18).
trar dimensões femininas e masculi-
nas em Deus (16)'. Na Bíblia temos vários cânticos
que, embora socializados e perten.-.
Nossa hermenêutica ' bíblica está centes a · todo povo, eram atribuídOs ,
longe de ' uma elaboração deste te- a mulheres: Miriam (Ex 15,2-21); .
ma. Na prática deve ocorrer um .ár- Débora Oz 5); Judite crt 16,1~17); .
duo processo de redenção do femi· AnaHSm 2;1-11); .Maria ,(I,c'
nino 4mDeus e a partir de Deus. 1,46-55). Em tom extremamente cO-:,'
A própria "Bíblia nos oferece mui- rajoso e profético, :todos eles e.Xpre~-;
tas refe.i'ê~éias e . pistas.. para esta sam a memória da vida e dos acon-
tare~a~ (17) . . teCimentos . de libertação, ligaclos
com' a fé no Deus da Vida e ôá:
As mulheres, na' Bíblia, partilham Aliança:: . ,'
conosco sua experiência de fé no
Deus que as vê e ouve, Um Deus Como ,·último passo dessa:' nossa.
justo e forte, mas também terno e reflexão,_proponho iniciar uma 'lei-:
misericÇlrdioso. Mostram-nqs,. assim, tura · prática - do canto de Débora;.
que é possível fazer' Uma síntese en- Escolhi este canto por du<!s razões: ,
tre o Deus de' Exodo, que .'derruba 19 por. ser" prov<!velmente, .0 tex·
ci Faráóe ,seu exéréito, e <1 Deus de to escrito ,mais antigo da Bíblia; .'
miserieprdill e .lemÚra que se soli·
dariza com, o . grito quase ,desespe- '. ?9 .porqoe concentra, na ptática;
rado de Agar', e o choro quase in-, vários elementos considerados áci~:
consplável ,de, Maria Madalena, , ma, "como ' pistas · hermenêuticas; e
está , muito, ,relacionado com a' 'si"
No ' processo de libertação ~ serri tuação que vivemos hoje. . ,,
ignorar '{\ face do Deus Justo que
de'rruba 'o 'lmjíeto de morte ' dospo· 4. 1 .i..... . Abrir ' os
olheis e o
derosos, a mulher 'échamada ,hoje coração para a vida '1
a revelll.l .a face ' de um peusAmor, e a Biblia .
qUe , eleva" os humildes, num ' gesto ". ,
de ternura· e cqriipaixãQ.
, .
282
qüevai desde· li mórte de Josué "As' aldeias estavam ' moitas em
(1200aC:) até 'o · peiríododos reis; Israel, bem mortas 'até que tu te
iniciado ' 'por Saul (1030aC.). En' levantaste, ó- Débol'a, até que . tu
tretanto, queremos Jazer esta lei- te levantaste- como mãe de Isra~l:'
tura· .de tal. maneira que nossa vida (Jz
.
5,7).
..
se espelhe ' na .Bí~lia .e . aBíblia st<
espel1Ie na nossli vida. . . , Quem' é esta mulher que exerceu
tal: liderança junto de ' seu povo;, a
.' Vivemos · um ' momento ' de crise' ponto de ser' chamada "mãe de . 1s-·
muitó águda; como povo brasilei- rael .. . = GERADORA DO POVO?:
ro, ' latinO.:ameticano. "A hora é de -. Dé~ora é. uma dentre os. ' ~éis
muita dor". Assím' cotÍieça i:; "Sal- gran'de~ ' Juízes '. conhecidos .' como
mO, da Paixão -do Povo~',..·da autoria "her6is ·libeiiadores .. ·. deIsrael. Na
de .nosso conhecido Zé Vicente, das época dos Juízes, o povo de Is*ael,
CEBsdo .Ceará.Esse salmo é um conhecido na ' Bíblia como. povo de
retrato ',vivodà i~áHd'ade desoladO- pe)ls,. ,estava organizado em 12 tri-
raque .. vivemos, oU .sofremos, hoje. hos. Não tinham um podercentra-
Cresce . a . ~écepç~o : e o _ descrédito Iizador • J .. . • •
como era o caso dos reis,
no :desempenho daslid~ranças do, inas : ~u'a$ Iideránças eram mais po-
povo . .P.arece: que a esperança que pulares: os' juizes. · Compreeridiarn"
animava nosso . ·povo e o ·fazia vi' se ,coino~á\li<ise profetas a serviço
brar nas ruas· se esgotou. Quem vai do P,o:vo. · .
reavivar a chama de esperança 'q ue ." ,~ . :
ainda resta? ' . '. Os :Uderesdas 12 tribos ' de . Is-
rael. ' eram .convocados e .reunidos ;
·.:: e .urgente .que nossa· conscíência . por ' motivos . especiais; e sempre
dêsperte, acorde, e nos coloque em
movimento. Precisamos nos solida- qüando o ' povo corria perigo" de
fitar; ' orgililizar,· agir e reagir. Uma vida', bu era :ameaçado ' de guerra.
niü:l her ' da ·Bíblia, Débora, ' pode E~ta' . é a situação de conflito, -Xiv i-
ajudar-nos:' com,' sua sábedoria ' pro-: da P01: Débora. Diante da iminên-
fétlco'l'opular:.: .: . . . dá' de um massacrecbletivo ' do
povo de Israel, ela: toma .a ' inicia-
:::A' BibHà:: ~o~~à ',que o . povo de tiva . de convocar' as' tribos 'disper-
beus tam\,ém viveumuitosinómen- sas, parl! .. combater. seu . inimigo
t9s ligupos â.e crise em; Israel. Ge- opressor: -
ralmente ameaçavam: a ,. sua . extinção "" , .. :
como povo. Nem' sempre . as lide- Manda chamar "Barac, da tribo
ranças " ' masCulinas, .. ' ofiCialmente de Neftali, Confid~ncia-Ihe que por
constituídas, .' conseguiairi;· . assumir ordem, de Javé,o. Deus Libertador
sua 'mlssãó :nessas crises. Este 'vazio de . )~rael, deve mobilizar o povo.
de .liderançà;(é; inüitas ' vézes, " sabia~ Barac bem sabe ' o que está acon-
ment6 : ocuplldo .pefa_· lnulher, como t~~endo: _ u_m P?~~r~s?exéFc;~t~. ,d.a
por exeillplo;- Débórà. -'Elliêhtraem t~nfederaçao " ôos' reIS' canane(1s'; )I:
c'en'a ililmmomentci dedesolaç~p; deraoos por:r ábim e Sfsãia, lÍniito
.desâninio ' :e' 'dispersãõ do : pOVcl~' . . ' .. líêill : ármádo,atP-eaçâmassaé!r3r os
filhos de Israel. ~ preciso agir e tariamente, para defender a cal1sa
reagir ·imediatamente. . mais sagrada, . que .é a sua vida,
ela explode num canto de alegria
Batac responde, condicionalmen- e louvor a Javé:
te, numa ·atitude pouco · comum ao
contexto patriarcal: "Se fores co· "Eu, sim, eu mesma cantarei ao
migo, h'ci, se não fores comigo, não Senhor; celebrarei o Senhor Deus
irei!'. . . Débora responde com de- de Israel.. . Meu coração se in~
cisão: . "É claro que irei contigo", clina para os chefes de Israel; pàra
e acrescenta, ironicamente, " . . . po- aqueles que voluntariamente se ofe-
receram entre o povo; bendizei o
rém, não . será tua a honra da in- Senhor! " (Jz 5,3.9).
vestida . que empreendes; pois às
mãos· de uma mulher o Senhor en- Para que seu canto encontre eco
tregará Sísara" (Jz 4,8-9). O pode- e ouvidos abertos, pede atenção aos
roso exército seria humilhado pe- reis e príncipes: "O reis, ouvi! O
rante os povos de mentalidade ma- príncipes, escutai!" (Jz 5,3a).
chista e a Barac não seria dada a Débora não quer cantar sozinha;
glória ·de um grande feito heróico.
por isso convida a todos para com
Enquanto os reis cananeus lutam ela celebrar a presença libertado-
pela. dominação, através do poder ra do Deus Javé, que redobrou a
político, . econômico e· militar, os força dos fracos e oprimidos e en"
camponeses israelitas lutam pela fraqueceu, fazendo cair, os fortes
sobrevivência, pelo pão diário, na e poderosos que. exploravam o
esperança de tomar posse da terra povo. É preciso falar alto, bem
prometida. As tribos de Israel, li- alto, da justiça do Senhor, que fez
deradas pOr Débora, organizam-se reviver as "aldeias mortas de Is-
e procuram a solidariedade de ou- rael:
tros grupos explorados pelo " im- " Vós que cavalgais em brancas
perialismo" cananeu. Esta solida- jumentas que vos assentais em juí-
riedade entre os fracos é a força zo sobre tapetes e vós, que · andais
que lhes dá a vitória, porque Javé pelei caminho, falai disso. À música
é seu grande aliado. dos distribuidores de água, lá entre
Dentro deste contexto é que ir- os canais dos . rebanhos, falai da
rompe um .canto de alegria pela justiça do Senhor e dos atos de
vitória, conhecido como "Cântico justiça em favor das aldeias de 1s"
de .Débora" (Jz 5). rael" (Jz 5,10.11).
Na primeira parte do canto, D~-,
4.2 - Cantar.a libertàção: bor·a reaviva a memória do povo,
inemória da história que descrevendo a batalha, de modo pi-
Deus faz com seu povo toresco e vivo. Javé entra em cena,
ora como participante (Jz 5,4), ora
Débora havia . convocado as tri, como espectador (v.5) . Tudo ·co-
bos·. dispersas de. Israel e, quando meça quando os camponeses ma,
vê qu.e o povo se oferece, volun- nifestallJ sua revolta contra. ·a. ex"
ploração do, tributo. Esta p'aga do Muito bem inforinada sobre ' o
tributóconsistia em entregar todo comportamento ' de cada uma das
excedente da produção dos cam- tribos; Débora fazurria avaliação
pos à população da cidad'e eaos de seu engajamento, Com palavras
t:eis. ,s6 a desobediência civil (cf. de reconheCimento louva aqueles
Jz O ~ l1: onde Gedeão debulha o que atenderllm seu apelo e se com-
trigo " às escondidas, para não ter prometeram' na luta, expondo ' sua
que pagar o tributo) ou a resistên- vida nos lugares estratégicos , (vv,
cia organizada do povo podia im- 13-18). '
pedir esta exploração legalizada.
Não esquece de mencionar ,li tri-
Acordados e liderados por uma bo de Rubem, que fez corpo mole,
mulher" os ' camponeses começaram ficando com um pé atrás, porque
a se , organizar e ,resistir. Por causa estava ocupada com discussões in"
desta situação de conflito, os reis ternas (vv. 15-16). , Ridiculariza sua
c(lnaneus fazem entre si uma alian- atitude: "Por que ficaste junto às
ça e, unidos,' organizam um forte lareiras, ouvindo flautas de pasto-
exército armado para combater os res,? " (v. 16),
campones,es ' resistentes. O confron- ' Mais severa é a crítica a Meroz,
to seria· impossível, devido a des- líder da tribo de NeftalL Sua recusa '
Proporção ,de forças e de armas, se ao engajamento é recriminada como
não houvesse a solidariedade entre sendo uma recusa de servir ' o pró-
os 'fracos explorados. Alguém, mais prio Deus (v: 23).
Uma v~z deveria acordar as tribos
de, Isl'a,el para se aliarem entre si, • Em seguida, Débora lembra que
como ,úl)ico , povo , de Deus, Então o engajamento espontâneo d;t maio-
entram em cena as duas grandes ria do povo recebe o reforço da
lideranças da organização: Débora iritervenção de Javé, Graças a esta
e ' Barae. ' ajuda fiel e solidária, uma chuva
intensa e' 'repentina inunda o pe-
, No meio do , canto .temos o grito queria riacho Quisoh e dispersa os
de Débora, qUe chama com insis- inimigos (w. 19-22). Assim os ele-
tência para um "acordar": mentos da natu'reza, as estrelas e
, ,"Desperta, desperta: Débora des- as águas participam do mesmo mo-
perta, ' desperta, acorda, entoa um vimento" envolvidos no mesmo pro-
cântico; " coragem Barac, levanta-te jeto de vida e libertação do Deus
e leva presos os que te prenderam" Javé (1.9),
(v.12). Débora canta com muito ' entu-
Consciência 'desperta, sentinela siasmo e força esta 'confirmação
da comunidade, Débora, aJuíza ,e que o' Senhor se alia ao' seu povo,
Profetisa, chama , as tribos de Is- toma ' o partido dos pobres ' e ex-
plorados~ porque está sempre a ser-
rael para a ' luta, revelando através
de observaçÕes pitorescas 'que co- viço da vida.
nhece 'a situação de cada clã (cf. , ,Segu'inclo ' seu carito;, pébol'a' lem-
Ji 5,14-18,23). bra ainda a preseriça de limá mu-
285
l/tecque aderiu ao seu"movimento. como: "Bendita ,entre ' as mulheres
Charna~se 'JaeL-a mulher 'de um
" .." ! • - ." • . <. •
que habitam as Ji!lidas" (Jz 5,24),
~strangeiro" oquenita Héber. Jael
faz ,:Uma espécie de "aliança sub- O canto ,' termina com 'uma ex~
terr~nea", "aliand()-se ao movimento clamação geral de ' alegria e espe-
de' Débora, apesar de não fazer rança: "Aqueles qlle ie amam se'
parú: ,do povo de Israel. O que a jam conio o sol, quando se levanta
move ' a fazer , esta aliança é sua com toda sua força" Uz5;31b (2Ó).
grande sensibilidade pela vida, pela
justiça, e uma espécie de "cumpli- 4.3 - , A força tran$formadora
cidade" contra o opressor comum de uma mística
(cL Jz ' 4;7). Débora louva a cora-
gem 'desta 'mulher que, armada ape- O canto de Débora faz emergir
nas 'com uma estaca e o martelo a memória ' viva de uma mulher
dos trabalhadores, ' mas com muita desp~rta, que confia nOJ)eus Javé,
fé, coragem e astúcia -feminina, li- Libertador e, conseqüentemente,
quida o opressor (cf. Jz 5,24-27). acredita na sua própria força e na
Mais duas mulheres são mencio- força do povo. Atua com agilida-
nadas em seguida, mas em contras- de, astúcia e sabedoria. ' Acorda o
te com Jae!: a mãe de Sísara e a povo e suas lideranças adormeci-
"mais sábia de 'suas damas" dopa- das, para sua responsabilidade,
lácio. Seus nomes permanecem no como conseqüência de sua fé no
anonimato. Misturando um tom Deus Libertador. Animados ,e orga-
forte de humor e ironia, Débora nizados lutam unidos e tornam-se
descreve a consciência adormecida fortes na solidariedade. Uma força
e cega destas duas mulheres. "Atrás interior os motivá: Deus está co-
das grades da janela" estão à es- nosco.
pera da volta vitoriosa de seu ídolo
derrotado (J z 5,28-38). Não estão Como Débora, vemos hoje mu-
interessadas com o perigo de vida lheres acordando para sua missão,
que ' Sísara e seu povo correm. In- organizando o povo; gerando co-
teressavam-lhe sim - e muito - munidade; animando e defendendo
os despojos de guerra que imagi- a vida; sustentando a esperança.
navam terem sido conquistados: as Reavivam a memória de que a fé
jóias, colares para se enfeitarem; deve ser encarnada e profética, e
os bens para acumular e aumentar lutam, com coragem e decisão, con-
suas riquezas; duas jovens para tra as forças e os mecanismos do
cada guerreiro, Vêem as mulheres Mal. Mulheres que, como Débora,
como simples objeto, sem se dareni cantam suas vitórias e unem este
conta de que elas 'mesmas o são, ,júbilo ao reconhecimento de que
enquanto presas atrás das grades. foi Alguém mais forte que o opres-
Viviam completamente alienadas sor que as conduziu e sustentou com
do que estava acontecendo. sua força: o Deus Javé Libertador.
Assim, elas caem no ridículo, en- oOxalá o grito profético e con-
quanto Jael é exaltada e louvada vocador de Débora, "Desperta",
286
encontre eco em nossos ouvidos' e.' CONCLUSAO
corações! Assim como esta reflexão, todo o
Reanimados nesta fé no Deus Li- processo de libertação evoca uma
bertador, cmito Débora e seu povo, mistura de sentimentos. Uma cami-
e, sbmantlo ' nossas forças, ria maior nbadade busc'~" com erros e acer-
,scilidatiedade possível" podemos tos, avariços e conflitos. , Ligado à
reá,iivar entre nós a chama da , es- esperança que renasce e, nos anima,
perança adormecida. Chegará o dia 'esiá também , um grande desafio,
de, podermos cantar o "Salmo da pois o caminhónão " está andado,
aperias iniciado. " ' ,
Ressurreição do Povo" ao lado do
"Salmo da Paixão do povo" . Este Nossa busca de lilierta9ão da mu-
,salmo poderá fazer eco COm o canto Iher, a partir da Bíblia, não quer ser
de Débora, mas ainda não foi es- um "gueto". 'Situa·se num contex-
crito. Quem ' são as ' Déboras' que to mais ' amplo de libertação com
,hoje escrevem com sua vida, 'as le' todo o povo pobre e oprimido. Não
pretendemos fazer umcoiltraste ra-
tras deste salmo? dicai entre homem, e , mulher, nos
termos de homem, opressor ' x mu-
4. 4 - Débora tem algo lheroprimida. Deritrodit proposta
a nos dizer, hoje? de uma Nova Evangelização, é ' ur-
gente que, ao traçarmos Ó perfil de
Seguem alguns pontos pára uma uma ,"Nova " Mulhei'~ ,ajudemos a
teleitura do canto ' de Débora, no gerar o "Novo Homem". Juntos fa-
chão da nossa vida, da nossa mís- remos emergir uma Igreja e Socie-
tica e prática cristã. dade novas.
Descobrir marcos decisivos pre- Com Agar e Maria Madalena so-
sentes na situação histórica, vivida mos chamadas, hoje, 'a fazer ' a me-
por Débora e seu povo e por nós mória 'dos acontecimentos gerado-
hoje. res de vida e libertação. Numa
aliança solidária com todos os po-
, Quais os conflitos básicos enfren- bres e oprimidos, somos convoca-
tados por Débora e por nós, hoje? das, a denunciar os mecanismos da
Que personagens entram em ce- injustiça e exploração, geradores de
na nesses conflitos? morte. Somos enviadas a anunciar
a VERDADEIRA e ÚNICA VIDA,
Qual a sua ação e/ou reação? que brota como fonte de água viva,
Qual a motivação, o interesse, ,Jt no deserto, e irrompe como vida
força interior, a mística para agir 'fiova de um túmulo vazio.
e/ou reagir assim? Enfim, com Débora somos cha-
: 'Como Deus se manifesta dentro madas para acordar e despertar pa-
dos coriflitos? ra 'nossa vocação e missão proféti-
ca. Esta é a razão de ser, o senti-
Débora , tem algo á nos dizer, do mais profundo 'e original de
hoje? ' nossa Vida Religiosa.
287
NOTAS
Referências bibliográficas
(1) Cf. REB (46) Fase. 181, Março de pela tradição sacerdotal (P), senao que
1986, que apresenta: uma slntese do En- no texto primitivo ambos teriam sido cas-
contro ' Latino-Americano, de Teologia na tigados (Nm 12,1-10). (9) Também Maria
ótica da tAulher. O programa "Mulher e Madalena, a tradição fez coincidir, por
e Teologia" do ISER, está fazendo um muito tempo, com a pecadora e prosti-
levantamento completo da recente pro- tuta. (10) BINGEMER, M. ; C., "Maria -
dução teol6gica feminina. (2) Para quem a que soube dizer "não" - em: Grande
desejar aprofundar este assunto, remeto Sinal 1986 - pp. 245-256. Cf. tb, Texto-
para Revista "Vida-Pastoral". Jan.-Fev'; Base da CF/90 n9 197, (11) TAMEZ, E.
1990, onde procurei desenvolver a histó- ~ ' A mulher que complicou a história da
'ria de Agar, escolhendo-a como chave salvação" , em: Estudos Blblicos (7),
hermenêutica.para uma leitura global da 1985, pp, 56-72. (12) Remeto, mais uma
Bíblia, sob o ângulo da mulher pobre e vez para meu artigo em "Vida Pastoral",
oprimida. pp. 2-9. (3) Jesus não fala cf. cit., p. 3-5. (13) No artigo citado con-
'máis : na 1~ pessoa do singular "meu siderei as .parteiras de origem eg[pcia,
'Pai", como acontecia em todo o 49 Evan- Entretanto esta é uma teoria pouco pro-
váveL (14) Cf. TERNAY, H. - WEILER,
'gelho.' Chama os discipulos de "irmãos"
L. "Um exercício de releitura global da
e o Pai lhes é anunciado como "vosso
Blblia a partir do eixo do êxodo", em:
Pai e Deus". (4) Cf. ANDERSON, A. F. -
Estudos Slblicos (24), 1989, pp. 60-74.
GORGULHO, G. "A mulher na memória
(15) O 49 Ev. apresenta sempre as mu-
do txodo". Em: Estudos Blblicos, (16)
lheres no grupo dos que crêem em Jesus
1988 pp, 38·51. (5) Cf. Idem. Cf. tb.
e no seu projeto de vida: "seus". Elas
SCHWANTES, M. "A origem social dos nunca aparec,\m no grupo que o rejeita
textos", Estudos Blbllcos (16), 1988, p, "mundo". (16) ,Na encíclica Mulieris Dig-
,34: "Na mem6ria do txodo as mulheres nitatem, prefere-se dizer que em Deus
n§o só desempenham papéis centrais. não hã nem feminino. nem masculino.
Elas mesmas são formuladoras e sujei- (17) Cf. Texto-Base da CF/90, n9 155 a
tas desta memória". (6) KIPPER, J. B., 165. (18) Basta lembrar as evocações po-
.após :um estudo minucioso sobre o tema pulares , que aparecem nos cantos de
.IIA mulher no AT u , constata que os tex- Carnaval, aqui no Brasil. (19) Cf. DRE-
tos não registram nenhum caso de mu- HER, C. "Quatro mulheres em Jz 5", em:
lher preguiçosa, enquanto mostram mui- "Mulher na Blblia e sua luta hoje" -
tos casos de homens. preguiçosos. Em: CEBI - SUL Ano 4, n9 12 / Outubro de
'LEB - XVI Semaná B'blica Nacional so- 1985. (20) Para a elaboração desta re-
bre o teina: "A mulher na Bíblia". (7) leitura do canto de Débora, agradeço a
CAVALCANTI, T. Curso de Verão - Ano colaboração de Tereza Cavalcanti. Um
11 ,. São Paulo; 1989, pp. 49-61 (principal- texto inais completo será publicado pelo
mente ,p., ,50). (8) A nota da BJ alerta SAB (Serviço de Animação 'Blblica) parà
para uma possivel modificação do texto o mês biblico de 1990. O
, " Jesus cuspiu na terra, fez lama com a saliva, aplicou·a sobre os olhos
do cego e 'lhe disse: Vai lavar-te na piscina de Siloé. O cego foi, lavou-se
e voltou vendo», Jo 9, 6-7. JESUS é a água que lava e purifica a nossa
cegueira. Jesus é a LUZ que faz os olhos brilhar. Somos convidados a
nos aproximar desta fonte de água e de luz (Pe. Marcos de Lima, SDB);
288
oETNOCENTRISMO NA .
PRIMEIRA EVANGELIZAÇÃO
DO BRASIL
IMPLICAÇÕES NA EVANGELlZAÇAO
E NA VIDA RELIGIOSA
.289
constante na história da humani- 1. - Raizes histórioas de nosso
dade. ., etnocentrismo COlonial
Na própria Bíblia podemos· cons· O projeto colonial português não
tatar como o .povo israelita, quanto foi, em sua essência; elaborado por
mais se compenetrava de sua eleição· ocasião das descobertas. Ele radica
como· povo de Deus, tanto mais to. no ORBE CRISTÃO medieval, do
mava consciência exclusivista de qual é um prolongamento e uma
raça "eleita". . aplicação específit;a. Daí, para com-
A tendência espontânea. noho- preendermos as conotações etnocên-
mem, ou nos grupos ·· humanos, de . tricas .desse projeto, devemos re-
apropriar-se de Deus, encontra en- montar às suas raízes históricas na
tre os israelitas um embasamento Idade Média.
nesta auto-consciência de . único . O . LUSO-CENTRISMO COLO-
"povo eleito". E essa tendência le~ NIAL ~ UMA REEDIÇÃO DO
vava concomitaritemente a . reduzir EUROCENTRISMO DO "ORBE
YAHWEH ao "Deus ' de ·nossos CRISTÃO" MEDIEVAL: O "novo
pais", no sentido de uma redução povo de Deus", que devia ser a
a um "Deus de um grupo étnico". convergência dos diversos povos
Daí, era um passo apenas para a . num só povo, teve de início o seu
instrumentalização de Deus, a ser- núcleo mais expressivo nos cristãos
viço da causa expansionista do po- oriundos do judaísmo. Obviamente,
vo de Israel: "Deus está do nosso suas expressões étnico-culturais ti-
lado! ,~
nham as características judaicas.
Diante dessa tendência particula- Mas, com a paulatina ruptura do
rista e "etnocentrista" do povo de Cristianismo com o Judaísmo, aque-
Israel, levantou·se a voz dos pro- le buscou um suporte cultural su-
fetas ·proclamando que Deus não cedâneo no Helenismo, embora se
se deixa "apropriar pelos homens". abrindo para as várias outras ex-
Pelo contrário, Deus "se apropria" pressões culturais. Foi-se criando as·
do povo de Israel, como seu povo sim, embora sob o prisma religio·
eleito, para que Israel leve a todos so, uma visão restritiva no que con-
os povos a consciência de que eles cerne à cultura judaica. E o Cris-
também são "propriedadé" de tianismo foi adquirindo uma carac-
Deus e lhe prestem o culto devi- terística fundamental helênica.
do (Cf. A IGREJA E O RACISMO
- Concilium-171, 1982, 1, p. 1-4). Posteriormente, o Cristianismo
entra num processo de ocidentaliza-
: .Essa busca de "apropriar-se" de ção, e Roma vai se tomando o
Deus, instrumentalizando·o a servi- "centro", não apenas de unidade,
ço da · causa particularista de um no que toca à ortodoxia, mas tam-
povo; vai ser reeditado de modo es- bém de "unificação cultural". So·
peCial por Portugal do tempo da bretudo, com o ingresso dos povos
Conquista, que tomará consciência germânicos, dá-se uma centraliza-
de ser o "novo ·povo eleito" para ção progressiva destes povos em
a expansão do Reino de Cristo. torno de Roma e do Papado. E o
'290
se::da Fé 'passa para a antítese étni-
novo .povo que' a ':Igreja ' vai ::plas- '
mando·... no iOcidenté,'. vai ·se ... tornar .
co-cultural. A cultura do "povo
o ORBIS CHRISTIANUS, que aO cristão" s,e rá considerada como
mesn'io .. tempo, é ·tàmbémespaço · e
"hiltura cti~tã", a cultura dos ·pc-
geográfico . e cultural ' do ' POVO v.~~ :infiéis, como "cultura pagã"_
CRISTÃO. . Afirma-se por vezes que "na Ida-
de " Média, as violências exercidas
. O ,P OVO DE DEUS SE TRANS" contra. os ' judeUs e os mouros não
FORMA NO "POVO CRISTÃO';: visavam uma raça mas os infiéis"
O "poÍlUltis chrisfianus", da Idade (Roger-Henri Guerrand in A IGRE- '
Média se coloca em antítese aos jA .E. O RACISMO, p. 46). No en-
"povos infiéis", ou seja, : os povos t~ntb, é difícii eximir historicamen- '
que estão colocados fora do espaço , t~ os cristãos medievais dé uma
desse Orbe. violência também contra as expres-
,O ,Orbe Cristão pretendeu, em sões culturais dos judeus e mouros,
grande parte, substituir o ORBIS pois', a expressão religiosa estava in-
ROMANUS, assumindo a suaRO- dissoluvelmente unida à expressão
IVlANIDADE (Cf. Josef Hoeffner: , cultural.
COLONIZAÇÃO E , EVANGE- . . Os ' mantenedores do Orbe Cris-
LHO, Rio de Janeiro, 1977,p. 15- , tão identificavam "paganismo" com
21). Nesse contexto soa bem ex- "barbárie": Este conceito de "bar-
pressIva ' a oração litúrgica do Sa- . bárie" irá, posteriormente, na épo-
cramentário Gelasiano: ,"ó Deus, ca da Conquista, aplicar-se aos afri-
que criastes o Império Romano pa- canos e aos índios de América, en-
ra o anúncio do Evangelho do Ret volvendo nesse conceito todo um
Eterno ... " Com o mesmo timbre conjunto de expressões culturais,
de voz 'ressoa a oração do Missal que eram englobadas com as pala-
Romano, onde se pedia pelo CRIS-.
TIANlSSIMO IMPERADOR, "pa- vras: "ritos gentílicos" e "costu-
ra que Deus e SeÍlhor nosso lhe mes bárbaros".
submeta todos os povos bárbaros ' O POVO CRISTÃO V AI SE
com vista à nossa ' perpétua paz". . IDENTIFICANDO COM O POVO
Este Orbe Cristão tinha diante de EUROPEU: Essa identificação geo-
si os "povos infiéis", considerados gráfica leva à identificação étnica,
inimigos de Cristo, sobretudo,o ini~ ' no sentidó em que o povo cristão
migo por antonomásia: o Islamis- vai se identificando com o POVO
mo. BRANCO EUROPEU:
. Foi 'com o surgimento do Isla- A Idade Média cristã desenvol-
mismo, rompendo a unidade medi- veu fortemente o EUROCENTRIS-
terrânea e ocupando os espaços dos MO: As expressões culturais do eu-
povos de cultura asiática e africana, ropeu passaram a se identificar pra-
que o Cristianismo se erigiu como ' ticamente com "cultura , cristã. E
um bloco europeu-ocidental, face essa identificação chega ao ' ponto
aos "inimigos de Cristo". A antíte- de' se 'falar em , "língua de cristão",
291
"nome de , cristão'''; e 'até ', mesmo ' identificados com sua, etnia, com
'~rosto de cristão ":; . seu "sangue". E o que é mais grae
ve; a narina do Apóstolo Paulo,
Diante do conflito entte a Cris~ que era provisória (enquanto falta-
tándade brancaeuróp'éia e o Isla- va a maturidade pessoal), agora se
mismo' representado pelos "mouros" perpetua, ficando aqueles que ti-
(morenos)" oriundos , em grande nham a , etnia desses povos, para
parte das regiões do Norte da Afri-' sempre "neófitos", mesmo que na
ca, acentuoU-se ,de tal modo o con~ lei se estabelecesse que só o era até
traste, entre o mundo cristão braD.- a 3~ ou 4~ geração.
coe o mundo dos "mouros", que '
se diz, ,por , vezes, ter vindo daí a Tal discriminação de "heofitia"
antítese ,.entre o anjo louro e o de- envolvia também uma relação de
mônio negl'O. superioridade dos cristãos europeus
(considerados maduros) face aos
, ~ nesse processo da Cristandade
"neófitos", tidos como inferiores.
medieval em luta contra os "in- E no processo da Conquista, essa
fiéis" mO'urós, que o ' " novo povo relação de "neofitia" se manifesta-
de Deus" vai paulatinamente se ' ra de ,"conquistador'" para "con-
vinculando com a etnia européia. E quistado", de 'vencedor para venci-
ao mesmo tempo vai havendo ' uma. do, de dominador para dominado.
certa identificação entre o Orbe E igualmente, como que se vai es-
Cristão e o Reino de Deus. tabelecendo na prática a idéia de
uma "nova raça elei ta", que é o
Mas o que vai influenciar enor- povo dos cristãos velhos, ou seja,
memente na identificação da etnia
europela ' com a Cristandade é a
a: etnia branca da Europa.
aplicação do conceito de "neófitos" , Cristãos novos, portanto, foi a
aos que oriundos dos "povos in- qenominação que se usou para o
fiéis" ingressavam , no "povo fiel ". neófito, Estes cristãos novos foram,
em grande parte, vítimas de uma
DO "NEOFITISMO" PAULINO guerra santa entre a Cristandade e
À DISCRIMINAÇÃO ENTRE os ,"povos infiéis", sobretudo, os
CRISTÃOS VELHOS E NOVOS: povos maometanos. O confronto
A orientação sobre os "neófitos" " dos cristãos europeus com os índios
de que fala o Apóstolo Paulo, era iria incluí-los numa denominação
uma norma pastoral a ser aplicada , similar, 'que se encontra ein Estatu-
a casos ,individuais" onde o neo, tos de Ordens Religiosas: "pagãos
convertido (=neófito), faltando-lhe modernos".
maturidade para ocupar cargos de
re·sponsabilidade na Igreja, não de- Havia toda uma legislação ecle-
via ser' investido' em tais cargos' (Cf.. siástica, discriminarido os cristãos
1 Tim; 3,6). Da aplicação individual novos. Nas diligências que se de-
dessa norma se passou para a apli- viam fazer sobre os candidatos às
cação coletiva a povos inteiros, co- Ordens (e à Vida Religiosa) pres-
mo ' os' judeus, os 'ciganos; ou os mu- creviam-se as seguintes perguntas:
ç,ulmanos. , Os 'neófitos 'vão sendo "-2. Se , [o ordena'ndo] é, ou foi he'
292
l'ege apóstata de nossa Santa Fé, ou parte; uma ,dominação sobre os "in-
filho ou neto de Infiéis, Hereges, fiéis", que coincidentemente tinham
Judeus ou Mouros .. . . 4. Se tem uma conotação étnica, diversa da'
parte de nação Hebréia, .ou de ou- européia. ~ de lembrar o que diz\a-
tra qualquer infecta: ou de Negro mos anteriormente sobre o Império
ou Mulato" (Ordenações Primeiras lusitano, de que ele era uma revi-
do Arcebispado da Bahia,1707/, S. vescência particularista do Orbe
Paulo, 1853, Liv. I, Tit. LIII, n . Cristão Medieval, onde o mundo
224); étnico · europeu-cristão se confron-
Nesta mesma legislação eclesiás- tou .com o outro mundo étnico dos ·
tica há toda uma terminologia dis- mouros, sobretudo na Península·
criminatória referente ·ao negro, Ibérica.
aléni do apelativo de "nação infec- A evangelização foi em grande
ta". São qualificados os negros, de parte instrumentalizada no processo
modo geral, como "brutos e bo- da dominação desses povos "in-
çais" (Liv~ I, n. 50). E esta "rusti- fiéis ". Toda uma motivação teoló-
cidade" . era tal que "entre os mui- gica e bíblica se buscou para jus-
tús escravos, que há neste Arcebis- tificar essa dominação e para sa-
pado (da · Bahia = Brasil), são mui- cralizar a guerra contra esses po-
tos deles tão boçais e rudes, que, vos ' infiéis 'J•
(f
293
dor da :nacionalidade .portuguesa" ainda··.pela · fé, se "crêem: e. adoram
D ... Afonso .Henrique, em :24. de ·. jü'l a: Cristo .. _E . entre cristão. e cris~
lho de 1139" dizendo que" fundavar tão .'. não há diferença ' de .' nobreza
o [Reino] de Portugal,. para q\le:'o' nem diferença de. cor, 'porque . to"
seu' nome .fosse levado . às nações e: dos >sãobrancos. Essa éa . virtude
gelltes ,estranhas'" (Pe. AntônioViei.' da' água .:do batismo. Um:"etíope se'
ra. Obras: Completas, Sermões, Por., lava \ nas .ágüas . do . Zaire, fica 'Hm"'
to, 1909"XV, p. 165-198). E este' po, . mas nãó fica . brarico: ' porém;
I~pério . univers~l "será Jmpério' .de na água do batismo sim, uma cóisil
Cristo : e do ' rei de. Portugal j Un-i eoutr~ .. , "Ob., p. 399).
tamente".: .. ' : Igualmente; reprovando ' o Pe;
A instauração desse Império ' uniJ Vieira. a~. injustiças conlra os ne-
versal .se dará · com. aderrotll dos gros .. escravizado~, se pergunta: "Es-
inimigos da Fé, "quando ·s.e ~cabar. tes homens ·não são ' filhos do' 'mes-:
e extinguir <> império do turco, e a; tnO: 'Adão e ·da tnes~a ·Eya? Estas
potélncia, maometana ", conforme à; almas "não foram resgatadas com ,o
inteipr~taçãódo Pe: Vieira da pro" sangue .. do tnesmo . Cristo?' Estes
fecia, de ' Daniel sobre .a derrota da ' corposouão nasceni e . não : morrem,
4'1-Besta'fera. " " como .os .nossos? Não respiram com
O luso-centrismo decorrente ' des' o.. mesmo,·ar?·,Não os cobre o mes-'
sa . eleição não justificava, porém, mo ' 8éu? Não os aquenta, o mesmo
a escravização :iJegal dos. negros .ou sol? Que estrela élogo aquyla que
dos Índios. O Pe. Vieira ' inteqire~: os . domina, . tão cruel?" E o Pe.,
tando , os motivos por que ' Deus VieiraexpIlqa ,tal ,sorte dos negros
. permitiu que os '~hereges" holan- escravos, com a Providência di-
deses ocupassem o Norte do ' 13i-a- vina, que ·os :· transmigrou para . o
sil,argimlenta que" a razão me pa-, Brasil, em vista de um bem maior:
rece que é . porque .nÓs somos tão sua cristianização (lb.,p. 48s).
. \
pretos .em respeito deles, como os Nesta argumentação, o Pe. Vieira
índios com respeito de nós; e . era procura desfazer a mentalidade 'co-
justo que, póis fizemos ' tais ' .leis . mumentão ' reinante: "Eu (está di'-
[de .escravização ...1;Ios índios];, .p or zendo' cada um: consigo), ·eui···por
ela .. se..:exec)Jtava ·.em nós o ca.stigo. graça de Deus sou branco' 'e' ':não
C~modissera Deus: - . Jáque ·vós preto; sou livre -e não . cativo; .sou
fazei~ ·cativos a estes porque sois sellhor e não escravo, ' antes tenh~
mais, brartcosque eles, euyos , fa- \Uuttos. E aqueles que se viram ca,
rl(i. ca,tivos ,de outros ,que .sejatn tivos ' .na .Babilônia,. eram. pretos ou
tambétn , m.ais .. brancos . que . vós:': brancos?Eram çativos : ou , livres?,
(Pé. ', Antônio Vieira: Sermõ.es .Pre) Era.m escravos ou , senhores? '.Na~
glldoS '90 llrasil . - ed: . Ernaili : q~ na', cqr, neui ,nl/.. HberQade, . Iiemno
dadé, ~isboa,1950i III, p. '. 398- seÍlhôrio, vos . eram inferiores .. : "
399). E aêniscentao P,e:, Yiêira qUe E . arremata0 Pe . . Vieira, ' que os
Cristo "quis nos ensinar que " os portugueses não se gloriem. de ' sua
homens de ' qualquer :. cor' todos " são brancura; ':I1óis,r ' Deus.'. pode reduzi-
iguais; por 'natureza, ' e 'mais :iguais los :à ':escravidão ·,;{Ib.;: ·:p;. A8s). .:.~ ,
Çpmp ,P '~P(Jvp,, (fle#p:' ppr' Dew; ', ':; I, se, ànnam" c,o m o ' tronco se abrigam j'
encara '" os "Povos. "infiéis ":: ,', e' sobre ,a ':çasea ,navegam. ' Estas ,são;,
'..: :,. ' :'.., c, , i :: ' :' r todas l\s'; alfaias daquela ,pobrfssima::
A ' ~i'~ã;;:: dQ:índió pelosconquisc' gente" , (Sermôes Pregados "no Bra- ,
tado.res ,btaneos :foi inicialmente de : si!, p. 3821e: '383).
"seres" inocentes:',,' em '" cuj'o ,'c,o, ração,: " ,'" ...... ,... , , ,
.. Ao . ' (~p·p".Q' eJeito", tão ~rilustre no ,
"em se plantando, todo i dá". c:. : ' ...' f
o d I
Assim . escreve Pero, vàz Caminha nome, P\1N ,,'na , e e ,a ma o ' pe a
ao 'ltef.'1:); ' Millü.td,pór ' ocasiãb 'da piedade';" ~bí'escenta o ' Pe.' Vieira,
"descbIJeha;: :(jQ· Brasil. E' o próprio Deus confiou, atárda de eVangelk.
Rei de' 'Portugal transmite es'ta ima~ zação dessas ' feras 'd as ' brenhas bra-
gero abs :;Reís "Católicos, 'de que os ' si!eiras: , ~'Jl. .se, para guardar ove-
índ,iós'c'sãcj' ~'gehtes': c6inonaprimei- lhas mansas, énecessáiio amor e
rã ,inoçên,cia,' mansas e ',: pacíficas"" muito" umor, . 'que será para ir tirá r '
(Hist6ria" da Cdl6nização 'POrtugue- das , brenhas:'ovelhas feras, ' para as
sa .'nO ,'", '1 : 'TJ,',or;to,
Brasl,; P 1923 , p. amansar e afeiçoar aos nossos' 'pas- '
165.167}.. , ,.",. tos, para as acostumar à voz do
, , ' ' .' . " pastor e à , opediêneia do .cajado"
Está 'visão'" páradisíacà dos índios, ' e sobretudo, para ' deSPrezar os ' pe-
logó' se',ttansfól'rtiou 'numa visão dé rigos de se confiar de suas garras
seres :1:iárbáltos~ 'brúhiis. Desde o' e , dentes,. ,enquanto 'são ainda fe-
inícioda : ~vaiig~lizaçã?, que se tor~ ' ras,e não ovelhas? . " que amor,
nou proverbial nos relatos ' missio- será ' necessário para ser pastor de ,
nári~s: a~: cià.ra~t~~zaJão : dos índios ovelhas"que ,talvez comem aspas.
pela . ausenC;la .. de ' tres letraoS no al- tores, e lhes' bebem o ,sangue?"(Ib."
fabeto . tup~, ,\p6s ?m seculo de. p> 320); , ,'., , , '" , ' "
evangehzaçao " orgamzada, ' o ' Pe.
Viei~a. 'se " faz":J;lorta~voz dessa céli.· , Á difícji :tarefa d~ eval1gelizar, os
bte'" cafactetizaç'ão':", "A ,língua ,,'se-' índios , do Brasil, tarefa confiada ' aoS.
tal de 'todiC 'aquela costa carece de' portugueses, ,equipara o Pe. ' 'Vieira
três :letbis;: :p, ,l..,i R. De F' porque à tarefa confiada a S.Tomé Ap6s-,
não :teh-t ' fé; ' 'de L porque não tem., tolo: Na::, repartição do Mundo pe.,
lei;:: <ler R> porque" rtão tem rei'; , e' los Ap,6stolos" "coube a . Santo,
estiC é 'a "polícia' da ,gente 'com: que' Tomé',-, esta",pa,r te " da América, em
tratamos': '" , :'as' misérías ' da , gente ' que ' estamo~, a que .vulgar e ;indig-,
mais': inculta; ida,cgente' mais ' pobre, namente :·chamaram .. Brasil. Agora,
dá" gente :fIlais vil, da gente menos pc;rgu,?-o :,eu:: : e porque nesta re-,
gente) déquantas nasceram 'no: Mun-: P!lXtIção " c,o ub,e o :BrllsH , a Santo
do ,- ', Uma ,gente','<;om ' quem"' meteu" TOIllé" e pão a outro ap6stolo? ()\!vÍ,
tã0",pouco I cabedal: a natureza;.: cOm a , razão" .;,." ç ,c omo San:t() ,Tom,é,
quelll ' $,e ;: ,empenhou , tão , pouco "'a entre:.:todos oS apóstolos :'foi,o: mais
arte ', e ,',a t'{ottu!J,a, ',que uma c, árvore culpado ·, da" Í(lcredulidad,e, , por isso.
Ilíe :dá , cFvestidd,' e ' o ;sustento 'e IIS' a .: Santo,: ,Tomé ..lhe ,coube;: na re~
armaS ' ·'e ' ',a casa :: e ,"a .embarcação., partiçãó, ' do, ',Mundo., ,a , mii;são .. dti
Com ",'as .,..folhas :se :,cobrem, coni' 'o Brasil. '., , , ~' , Como ,' se, diss,e ra",o:' Se-
fruto se" sustentam; com' os-<ramos. nhor:=. Os.. outros , apõstolos ,que
,,295
foram menos culpados 'na· incredu- lepra. "branca", acrescenta: " ... . a
lidade, vão pregar aos gregos, vão Etiópia eos etíopes seriam 'os .pri-
pregar aos romanos, vão pregar aos meiros entre todos os gemios, que
etíopes, aos . árabes, ' aos , armênios, receberiam a fé do verdadeiro
aos sármatas, aos citas; . mas Tomé Deus . ,. Grande prerrogativa e sin-
que teve a maior culpa vá pregar gular por certo desta nação .. . "
aos 'gentios do Brasil, e pague a (Ih ., p . 114).
dureza de sua incredulidade com
ensinar a gente mais bárbara e mais E diante do fato e aprovação ju-
dura , .. ,; (Ib., p_ 336). rídica da escravidão negra, o Pe.
Vieira não a' vincula à, etnia ne-
Esta visão do índio, que o Pe. gra, como fundamento legal, mas a
Vieira nos transmite, é como o eco explicá . como uma "providência di-
de todàuma mentalidade coletiva vina " em vista de um bem maior
dos missionários envolvidos na sua para os negros: sua cristianização.
evangelização.
Mas esta visão do Pe. Vieira em
relação ao negro, não é comparti-
A visão do negro pelos lhada pelos evangelizadores em ge-
evangelizadores do "povo eleito": raL Por exemplo, Jorge Benci S,J .,
escrevendo, 'por volta de 1700, e
f. impressionante como essa vi-
servindo' como um dos inspiradores
são pejorativa do índio, por parte
das normas do código de evange-
do Pe. Vieira, não corresponda à
lização (Constituições Primeiras do
imagem que ele tem do "etíope" -
nome genérico sob o qual ele abran- Arcebispado da Bahia - 1707) ,
ge os negros. Sua visão do "etíope" escreve sobre os negros, ao orien-
é bastante positiva e tem até uma tar os · patrões cristãos a respeito
ressonância bíblica, como por exem- da economia no governo dos ' es-
plo, quando ele condena a discri- cravos: ,"Nem. se desculpam bem
minação étnica dos negros . Ele cita os senhores, que se escusam desse
o salmo 67,32: "Aethiopia praeve- santo ministério [da doutrinação]
niet manus eius Dei" (A Etiópia le- dando por causa .a rudeza dos es-
vantará anteriormente as mãos para cravos, e dizendo ·que são brutos,
Deus), interpretando o "prae-ve- que são boçais, e que são incapa-
niet" no sentido de uma prioridade zes de perceber o que nos ensina
dos negros sobre os brancos: "No- e manda crer a Fé. Não se · deséul-
tem isto as pretas e os pretos, para pam bem, torno a dizer; porque
que os não desconsole ou desanime esses mesmos brutos e boçais (e ao
á sua cor; e notem também o mes- que parece) incapazes, quer Deus
mo ' as brancas e' os ,brancos; para que se ensine e pregue a sua dou-
sua confusão, se tendo a brancura trina. .. Entre essas gentes [a quem
por fora, forem negros por den" Cristo mandou evangelizar] há gen-
tro . __ . (lb.,p. 118). E após citar te, que mais tem de bruto, · que de
Num, 12,10, onde a irmã de Moi- gente. Há alarves . em Guiné tão
sés desprezara a esposa deste, por rudes e boçais, que só o vosso po-
ser "etíope, ,Deus a puniu com uma der lhes poderá meter o Padre Nos:
296
so na cabeça. Há Minas tão bru- pode ser considerado o primeiro
tos e incapazes, que mil vezes nos' h()mem moderno de nossa História
h<lvemos de benzer deles, primeiro - prescrevia sob punição aos ín- .
que eles · aprendam a benzer-se .. . " dios, no Dire.tório das Aldeias, que
Uorge Benci! Economia Cristã dos eles deviam falar a língua portu-
Senhores no Governo dos Escravos guesa, .mesmo no relacionamento
- 1700 - S. .Paulo, 1971, p. 86). entre eles próprios. E o seu irmão,
Francisco Xavier de Mendonça Fur-
Poucos anos depois, as Constitui- tado, ministro plenipotenciário do
ções do Arcebispado da Bahia orien- Norte do Brasil, assim se expressa-
tavam a evangelização dos negros va: "Os índios só podem conhecer
nesses termos.: "Porém, porque a devidamente o Evangelho de Jesus
experiência nos tem mostrado, que Cristo, mediante o 'veículo necessá-
entre os muitos escravos, que há rio' da língua portuguesa" (cf. Carta
neste Arcebispado, são muitos de- de Francisco Xavier de Mendonça
les . tão boçais [citação de Jorge Furtado ao Bispo do Pará, a '"
Benci] , e rudes, que, pondo seus 9-1-1755, Arquivo Histórico Ultra-
senhores· a diligência possível em marino, Pará, Caixa 14).
os ensinar, cada vez parece, que sa-
bem menos, compadecemo-nos de
sua rusticidade, e miséria, e damos Certa leitura bíblica procurava
licença. . . lhes possam administrar interpretar a eleição de Portuga(,
os sacramentos [com perguntas ru- como um direito à dominação '
dimentares] ... " . (Ib., Liv. I, n. 55). dos "povos infiéis":
O que desde logo se perecebe Esta mística da eleição, de que
nessa visão luso-centrista a respeito o Pe. Vieira se faz porta-voz, pro-
dos africanos e índios da América, curava . reler a Bíblia, sobretudo o
é .que os ' brancos os encaram a par- - profeta Daniel, para nele funda-
tir do seu lugar étnico-cultural. Os mentar o direito de Portugal a sub-
padrões culturais europeus eram jugar os povos pagãos, de maneira
considerados como únicos parâme- especial, os "figadais inimigos" de
tros ' de .avaliação da cultura dos Cristo, como eram considerados os
povos não-europeus. Para os euro- muçulmanos.
peus de ' então havia um único pa-
drãocultural: o padrão europeu. E O Pe. Vieira assim interpreta a
como os índios e os . negros não sa- profecia de Daniel sobre a 4~ Besta-
tisfaziam os requisitos do padrão fera e sua extinção: "De maneira
europeu; não tinham "cultura", que o tempo que Deus tem desti-
eram "bárbaros", eram "boçais" . .. nado para levantar o império uni-
versal do mundo, e o sinal certo .
E rio que .ioca à evangelização, por onde se pode conhecer .este se- ,
esta . devia evidentemente, ser trans- gredo da sua providência, é quando
mitida no revestimento da cultura se .. acabar · e . extinguir o império
européia. ~ impressionante como o do turco,. e .·a potência maometana .
Marquês de Pombal, na segunda me- [conforme .0 profeta .Daniel]. , Po-'.
tade do ,século XVIII '- . ele que . rém, depois da extinção e total ruí-
297
na' d6 <turco', será tal a 'fama, tal xessem ' à mesma fé., ,, ' estes 'feli,
o ' terror, e tais os efeitos ' daquela císsimos reis foram' el-tei Do , João
vitória dos cristãos, que Iião só to- o 'lI , el-rei D, Manuel ' eel-rei 'D.
dos os ' que na Europa, na' Africa, João lII; porque o primeil'O come-
e na Asia :seguem , a lei 'de Mafo- çou, o segundo prossegtiltle 'o ter-
ma, lhas todos os outros sectários ceiro aperfeiçoou o descobiimi:mto
e ínfiéi~ de todas as quatro partes das nossas ', conquistas.;. O"s Ma-
do ' mundo se sujeitaião a Cristo, e gos,levando a luz , da fé do ,priente
receberão ' a fé católica " , e com para o Ocidente" eles ' do' Odden-
reconhecimento [do Rei de Portu~ te para o Oriente; os, Magos ,pre-
gal] de ' imperador universal ' do senteando a Cristo a Asia, Africa ' e
mundó"" (Obras Completas " doPa- Europa; , e eles ,a Ástá, ,África e
dre Antônio Vieira; Sermões, XV, América ... " (Sermões , Pregados no
Porto, 1909, p. 192-196) . Brasil, ' In; p . 355-416) . ' ,
Aquele "Comum parvulum" (pe- E Vieira chega ao ' auge da, sa- ,
quenochifre), de que fala Daniel, cralização das conquistas portugue-
"era Mafoma 'e o império otomano, sas, ao 'aludir às profecias sobre a
e a parte mais poderosa que res- criação de um. novo céu e de uma
tava po , romano, pelo que deste ti- nova terrá:
nha , usurpado, em ' pena ' de suas
, " Uma, das coisas mais notáveis
blasfêmias, ,foi condenado a que que Deus revelou e ', prometeu anti-
morresse queimado, e que ele e gamente, foi , que ainda ,havia de
toda a sua potênciã se extinguisse criar um novo céu e uma ' nova
para , sempre".
tetra", :Eu, seguindo , o que ela
O Pe, Vieira faz uma aplicação simplesmente soa e' significa, digo
direta ao Império português, do que que 'esta' nova ' terrá e 'estes novos
falã Daniel, após a destruição da céus são a terra e os 'téus do, Mun-
4'!- BestaCfera: " Eo reino e o im- do Novo descoberto pelos portugue-
pério e as grandezas dos reinos sob ses . " E porque o fim deste des-
todos ' os ' céus serão entregues ao cobrimento ' ou desta nova criação
povo dos santos do A:ltíssilno. Seu era 'a ' Igreja também nova; que
império é um império eterno, e to- Deus ' pretendia fundat no ' mesmo
dos os impérios o servirão e lhe Mundo Novo. '.. " E conclui {) Pe.
prestarão , obediência" (cf. . , Daniel, Vieira sobre ' a eleição : :e speciálíssi- '
7 ;23-27) , ' ma ' de Portugal, corno instrumento
dessa "criação" de ·um Novo 'Mun-
Também faz o Pe. Vieira apli- do; , ' ap,r esentánd6 'a singularidade
cação ' 'bíblica à ' Conquista portu- de que Deus "na ' primeira criação
guesá; ao explicitar a manifestação por si só . e . sem ajuda QU. concurso
de :' Deus aos povos 'pagãos, me- de causas segundas, nesta .segunda
diante' ósmagos vindos do ,Oriente: criação tomou por instrumento dela,
"Assim como houve ttês ' rêis do os portu,gueses _ . , " ' " '
Orifmt<; ' que levaram as " gentilida-
déS"aCristo, assim havia de haver Toda essa mística da eieiçÍío le-
três " reii; do Ocidente que as trou- : vava di~etamente aum luso-tentris-
mô) que ' seexpl'esSaVá muitas veC . da hiJlÍÍailidaae inteira. E 'quer bem
zes'}Yor: um etno-centnsmo. Também igualmente ao homem vermelhó
se: ·baseava nessa mística: da eleição, comO' aO branco" (cf. Jaime Pinsky: '
a ·sdàalizaçãoda .conquista,"que era História da América através de lex·
em últhna:·;análise, .o direito···.divin6'· tos, S. ' Paulo, 1989, p.41).
d,!" portugal :dominar os povos ·in-
fi'éis.: · :: Esta ' ." apropriação" de Deus 1(:-
vava . logiCamente à negação de uma .
3 . :- ' Algumas conseqüências presença de beus na' ordem de .va-
. , .' do·Juso·centrismo . lores .culturais e religiosos dos ' ne- .
gl'OS e índios. Esses estava.m .pos- .
..
.para. a evangelização '
suídos do demônio. Seus "deuses"
0 , particularismo luso-cultural eram . simplesmente os diabos.
corria revestimento do Evangelho, a
sei' pTfgado aos íildios. e negros, Um Deus que é pai dos brancos
foi "responsável, até certo ponto, e juii . dos negros:
peJa trimsfomiação .da boa nova em
unia , verdadeira niá notícia. Pois, . Igualmente, tal "apropriação" de
o '. luso-centrismo le;Vava ao anún- Deus pelo luso~centriSlllo, levava a
cio de um · 'fevangelho", em que anunciar aos negros e índios, um
índios ' e negros se deviamdespo- "Deus dos brancos", que na reali· .
jaraos seu.s valores étnicos. e cul- dade' era como que um "padrasto"
turais,considerádos, por um lado, dos: negros, e em parte, dos índios
t~mbém.
como "gentílicos", e por outro,
COri10 : um obstáculo à unidade do Esse "Deus dos brancos", em
Império :cristão português, seu contexto de revestimento cul-
tural ' branco, era impingido como
A 'pregação de um Deus como ·um "Deus :superior", e que por isso
"patrimônio nacional": tornava os seus "possuidores" bran-
cos, também superiores. Era trans-
:.Uma . conseqüência de profunda fOl:mado num "Deus ' dominador",
gravidade '. desse . "euro-centrismo" . porque instrumentalizado pelos bran- .
fói uma ilpropriação de · Deus, à cos para seu projeto de dominação '-
maneira .de um certo monopólio 'da Era urriDeus, que se aptesentavá
Cristandade. branca.. Na propalada pelos brancos, como sacralizador
carta, atribuída ao cacique Seathl, dos costumes e da cultura dos bran-
e dirigida ao Presidente norte-ame- ' cos, e que por · isso eram chama_ o
ricatto, em 1855, há uma afirmação · dos de "costumes cristãos" e ."cul·
re~lmente : impressionante: ." De uma
tura. cristã". Era .u m D.eus que re-
coisa sabemos, que o homem bran- pudiava, no dizer dos brancos, .as
co talv6.z ' venha · um · dia ' a·· desco- expressões culturais dos negros · .e ·
brir: O nosso Deus é o mesmo ·Deus dós jndios, 'como' costumes "gen-
dos brancos! - Ou julgas, talvez, tílicos". .
que o 'podes 'possuir da' mesma ma-
neira 'c:omo desejas possuir a nossa · " Essa "apropriação"- de beus, no
tetrai' Mas ·. nãopodes:. Ele é. Deus" âmbito · . étnico-cultUral, levava · os
299
brancos a apresentarem "seu Deus'' ', braço, é progn6stico certíssimo do ,
como um Deus-Lei, Deus-Ordem, muito que haveis de derramar ven-
Deus-Autoridade, Deus-Disciplina. cedores. .. sangue de hereges na
Tal concepção de Deus levava os Europa, sangue de mouros na Afri-
brancos a' "cristianizarem" o sol- ca, sangue de gentios na Ásia e
dado, a marcha militar, a guerra na América,. vencendo e sujeitando
santa, a forca e até mesmo a fo- todas as partes do mundo a um s6
gueira ,inquisitorial. Deus, como os império para todas em um coroa
brancos o apresentavam, não admi- se meterem gloriosamente debaixo
tia que "se dançasse diante dele" dos pés do sucessor de Pedro ... "
(como o faziam os negros). Mas, (Pe. Antônio Vieira: Sermões, XIX,
permitia, sim, que diante dele se S. Paulo, 1957, p. 399s).
marchasse militarmente rumo a uma Portugal é, portanto, ' o instru-
guerra santa. Não tolerava que "se mento sagrado da expansão do Rei-
sorrisse diante dele" (como o fa- no de Deus: "Este é o fim [levar
ziam os negros). Mas aprovava que o Evangelho aos povos] para que
"se acendesse uma fogueira para Deus entre todas as nações esco-
queimar os hereges". Em resumo, lheu a nossa com o ilustre nome
o Deus dos brancos (como estes o de pura na fé e amada pela pie-
concebiam) estava bem distante do dade ... este é o império seu, que
"Deus conosco" dos Evangelhos, ao por nós quis amplificar e em n6s
passo que o "Deus dos negros" estabelecer . .. " (Sermões Pregados
(como eles o concebiam) estava no Brasil, UI, p. 355-416).
muito mais próximo do Emanuel
evangélico. Explicitando a promesa de Cris-
to a D. Afonso Henrique, sobre o
o Reino de Cristo identificado império universal, escreve o Pe.
como o império português: Vieira: "Digo que este império não
será da Alemanha, nem outro al-
Outra conseqüência do luso-cen- gum dos que até agora adquiriu
trismo foi o anúncio do Reino de o valor, ou repartiu a fortuna, mas
Deus, identificado com a Cristan-, um império novo, maior que to-
dade branca, 'q ue por sua vez, se dos os passados, não de uma s6
identificava com a Igreja. Este Rei- nação ou parte do mundo, mas uni-
no de Deus, em sua encarnação mais versal e de todo ele. .. será o im-
expressiva se identificava com o pério de Cristo e do rei de Por-
Império cristão português. tugal juntamente" (Obras Comple-
tas do Padre Antônio Vieira, Ser-
Novamente recorramos ao Pe. mões, XV, Porto, i900, p. 165-198).
Vieira para nos explicitar esta mís-
tica do Império de Cristo, identi- Uma Igre;a separada por um
ficado com' o Império português: "muro da vergonha":
"Grande ânimo, valentes soldados,
grande confiança, valorosos portu- ,E ainda podemos apresentar uma
gueses. .. este pouco sangue que outra conseqüência para a evange-
derramastes em fé de seu poderoso lização, , enquanto ela 'visava "con-
300
vocar os infiéis · para · o .Reino": a mas implicações de caráter mais
constituição de · uma Igreja, onde específico para a Vida Religiosa em
negros e índios serão cristãos de sua organização institucional.
segunda categoria. A discriminação
entre · "cristãos velhos" (= bran- Um exame "de origine" que se
cos) e "cristãos novos (= judeus, torna um "exame de sangue":
negros e índios convertidos) levava
necesanamente ao estabelecimento A primeira conseqüência foi o
de uma barreira (muro da vergo- elitismo étnico dentro da Vida Re-
riha) de separação entre ambos. ligiosa. Para fazer parte dos qua-
dros da vida claustral exigia-se · o
No que tange aos negros, o que pré-requisito de "exame de sangue",
é mais sintomático é que sua man- onde o candidato era inquirido se
cha original de descendentes· de era "cristão velho", imune, por-
Adão, era apagada pela água batis- tanto, do sangue de judeu, mouro,
mal. Mas sua mancha "étnica" de negro, . mulato, ou outros "pagãos
descendentes de Caim (cf. Gen. modernos". Esta última denomina-
9: 18·27), não se apagaria com o ção podia abranger também os ín-
lavacro do novo nascimento. Por dios, que não figuravam entre os
todas as gerações ficaria o ferrete "povos infiéis" discriminados pelo
de descendentes de um "povo in- Orbe Cristão medieval.
fiel", . com todas as conseqüências
discriminat6rias, que isso acarreta- b inquérito sobre os candidatos
va. Por exemplo, eles não podiam à Vida Clerical, sobre sua "limpeza
entrar na Vida Religiosa nem no de sangue", era praticamente o
Estado Clerical. :E é profundamente mesmo para a Vida Religiosa. Lem-
sintomático, que quando a lei pu- bremos que a legislação eclesiástica
nitiva que infamava os "cristãos • que regeu nosso período colonial e
novos" foi abolida em 1773 pelo imperial; afastava do estado cleri-
Marquês de Pombal, tal lei não calos candidatos "de nação He-
teve aplicação séria no domínio da bréia, ou de outra qualquer infecta:
Igreja. Procurou-se fundamentar a QU de Negro ou Múlato" (Ordena-
discriminação dos "cristãos riovos" ções Primeiras do Arcebispado da
não na etnia, mas na sua origem Bahia - 1707 - S. Paulo, ·1853,
de povos "infiéis": Liv. I, ll. 224). Pertencer aos qua-
dros da Vida Religiosa dava, pois,
4. - Algumas implicações um "status de pureza de sangue",
do etnocentrismo de tal forma que nas nobiliarquias,
para a Vida Religiosa a família que podia alegar membros
nos conventos de frades ou de frei-
ras, atestava também o sinal da
Todas as conseqÜências acima "nobreza" sanguínea desta família.
enumeradas" referentes à Evangeli-
zação, têm sua aplicação também Dentro desse · quadro se coloca a
na Vida Religiosa, que é uma vi- afirmação de Maria Luíza Tucci
vência radical do ideal evangélico. Carneiro (Preconceito Racial no
Queremos, porém, acrescentar algu- Brasil Colônia, S. Paulo, 1983, p.
301
205): . "As .' Ordens Religio.sas que Santo. AntQnio(1708) são · rigol;9-
aqui chegaram, no início do . perío- .síssimqs' quanto aos candidatos de
do co.lonial; . transladaram para o origem ju(jaica, não: ad,mitindo aque:
Brasil a maioria dos valores cul- les sobre os · quais pairasse alguma
turais representativos do grupo do- dúvida de ascendência hebraica ,(Ma-
minante, do qual eram membros ria Luzia ·Tucci, op. cit., p. 208).
atuantes. "
Ap6s' a lei pombalina de ' 1173,
Díscríminqções estatutárias das há uma mudança de vocabulário,
ordens religiosas: ou publicamente se omitem os quesê
tionários sobre ' a' "neofitia" (o ser
. Para · os jesuítas do século XVI cristão novo), porém nas Ordens
(cf. Serafim Leite: História da .Re1igiosas e no Estado clerical se
.Companhia 'de 'Jesus no Brasil, VII, continua com a mesma discrimina-
Rio de Janeiro, 1938, p. 232, 235), ção, procurando-se dar o enfoque
os mulatos e índios trariam dificul- da '''infâmia'' ao fato da pertença
dades internas para a ' Sociedade de a uma. "religião diferente".
Jesus. De ' maneira especial, havia
um preconceito contra os mulatos, A vida religiosa como um
.que eram vistos como pessoas mais "gueto dos brancos":
difíceis que os próprios negros, de-
vido. .' ao seu temperamento irre- .Este elitismo étnico envolvia a
quieto. O mesmo Serafim Leite (Ib., conseqüência direta da exclusão da
1, p. 10) apresenta as exigências maioria absoluta da população, que
'estatutárias para pertencer à Com- era ' negra, mulata ou indígeno-ca-
'panhia de Jesus. Além do requi- bocla. A Vida Religiosa fechada no
'sito. comum . "de Direito", que ex- <,gueto dos cristãos velhos", ' irá
'cIuía os esCravos, havia a aplicaçã<? sofrer golpes mortais a · partir da
'da neta de "infâmia" aos de proce- legislação restritiva do Marquês .de
dência judaica, até o 59 grau . Pombal, até ó decreto imperial de
. ..
"
,·302
.
natórias aos candidatos negros e' como que "guetos" da elite social.
mulatos. De forma que, quando, As balisas impostas pelas leis e es-
muitas décadas depois, ' forem ,eli" . truturas canônicas tornavam prati-
minadas as sobreditas cláusulas res- camente' 'impossível a admissão de
tritivas contra os negros .e mula- negros e mulatos em seus quadros.
tos, não haverá uma "tradição vo' No entanto, tais "balisas" restriti-
cacional" no grande mundo ' dos vas não conseguiram restringir o
descendentes ' de africanos'. Além ' espaçO do ." sopro do Espírito Sano
disso, ao se abrirem as portas dos to", que sopra onde bem entende.
conventos aos negros, não se ·abri- Ele rOmpeu as barreiras do gueto
rão tambéln à sua negritude. · Elesétnico:cultural dos brancos, onde
serão aceitos,mas ' dentro . dos qua- .' estes .confinaram a Vida Religiosa,
dros e modelos ' culturais brancos: e foi despertar vocações para uma
"forma de Vida Religiosa" fora
No que tange aos índios, se não dos quadros da legislação canônica.
havia uma legislação discriminató-
ria direta contra eles, a não ser Um desses "sopros" do Espírito
em alguns casos, ' no entanto, . seu Santo foi ' a vocação das "recolhi-
mundo étnico-cultural era quase das", das "beatas" ou dos "bea-
inconciliável ,com o modo de ser tos". Tal vocação foi um sinal pro-
europeu; . em que se expressava a fético, fora d9 institucionalismo ju-
Vida Religiosa. Se os índios foram, rídico e , sem as muletas do "jus" .
em grande ' parte, excluídos da in- Erá uma forma de "vida religiosa"
fâmiade "neofitia", no entanto, com sabor do povo simples, abrin-
poucófol 'l€lvantado o problema de do-se pai'aoutras etnias, e com raí-
sua admissão nos conventos, pois'l':es mis expressões culturais do povo_
a · partir ,de. seu ." modo de ser in- 'Uma forma ' de vida religiosa sem
dia" , eles simplesmente não eram o revestimento das roupas importa-
considerados aptos para a Vida das do mundo étnico-cultural euro-
,Religiosa., peu. A Europa não iam recorrer a
fim de importar soluções para os
CONC!-USAO: nossos problemas específicos, pro-
Uma "Vida Religiosa" blemas que brotavam do povo e
fera 'd os quadros canônicos que tinham ,a ressonância do povo,
Toda' essa forma "popular" de
No mesmo nível de elitismo étni· .Vida: Religiosa estava mais voltada
co-cultural estavam as Ordens Ter- . para uma vivência · da espirituali-
éeiras; 'comO um ' prolongamento das dade pessoal e para as necessida-
. Ordens ' Primeiras a que" estavam des do ' nosso povO sofredor, e não
vinculada,5: ' O ' mesmo' se diga das para um simples ritualismo ' intra-
Confrarias e Irmandades que eram claustra!. O
, 30.3
A DINÂMICA ATUAL ·
DA CULTURA BRASILEIRA E
OS DESAFIOS DA EVANGELIZAÇÃO
A cultura é a dimensão simb6lica da práxis social,
intimamente vinculada à dimensão sistêmica,
onde se constituem as instâncias
técnicas da ação racional com respeito a fins;
304
perspectiva ' do sujeito isolado dian- lar e de agir e que constitui a
te de algo no mundo . para a pers- condição de possibilidade, enquan-
pectiva da relação inter-subjetiva, to conjunto de convicções ,bási-
que os. sujeitos assumem, quando cas, dos atuais processos de en-
eles se 'entendem entre si sobre tendimento entre os sujeitos. Ele
'algo (2). fornece aos participantes de uma
ação interativa uma interpretação
A instância de mediação do en- prévia do mundo dos fatos ob-
tendimento entre sujeitos é a lin- jetivos, do mundo social das normas
guagem constituída sempre por suas vigentes na comunidade e de suas
dimensões fundamentais: por um próprias vivências subjetivas. O
lado, todo falar implica um objeto mundo vivido é, assim, a condição
de entendimento, ou seja, um com- universal de toda a comunicação,
ponente proposicional; por outro que se faz pela mediação da lingua-
lado, põe uma relação inter-subje- gem; é a condição prévia, enquanto
,tiva, uma vez que falar significa espaço ,possibilitador do entendi-
agir soCialmente, isto é, ,os atos de mento mútuo eJ;llre os sujeitos, atra-
fala estabelecem relações determi- vés da linguagem, precisamente por-
nadas' entre aqueles que através da que el~ constitui ' um reservatório
linguagem, se entendem sobre algo cultural, atemático, que possibilita
(3). o ser do homem no mundo. Este
, Tais relacionamentos apontam .celeiro cultural constitui, precisa-
para 'sua ,condição de possibilidade: mente, a esfera das evidências, das
,trata-se de um contexto de sentido 'certezas, do não-problematizado,
partilhado pelos diferentes ,membros que é (, chão do que é imediata-
da comunidade de comunicação, mente familiar, a partir de , onde
'que 'constitui o horizonte ou pano tudo é situado e interpretado na vi-
de fundo nãó tematizado. ,a partir 'da concreta dos homens. O mundo
de onde os sujeitos se movem em 'vivido é um saber horizontal possi·
sua ,ação ' comunicativa. Este hori- bilitador ,dos saberes e das ações
'zonte é, sem dúvida, o a priori das objetais ' na vida do dia-a·dia dos
atuais interações comunicativas, ,mas homens. Ele perpassa, assim, ' todo
ele é um' a ',prior! . histórico, . que se 'o saber de toda a ação do homem
formou através das interações de ge- 'no mundo como um pano de fundo
'implícito; embora presente ' como
rações anteriores e que ' conserva
,em si, através da tradição cultural, 'algo pré-reflexivo, no modo de 'cer-
,os · resultados do trabalho de inter- tezas inacabáveis, que constituem o
,pretação feito por estas gerações. O 'pimo-de-fundo ' dos , fenômenos lin-
mundo vivido é; assim, uma espé- 'guisticámente mediados e, por esta
,cie de reservatório cultural, um sa- 'razão constitui uma solidariedade
,ber implícito, que conduz, através originária entre os sujeitos na me-
dos tempos, o capital simbólico, isto dida em que ele faz a coordenação
,é, o ,produto do trabalho de consti-
de suas diferentes ações (4).
tuição de sentido, que se gesta na Neste sentido, a cultura é; ao
interação de sujeitos capazes de fa- mesmo tempo, uma dimensão trans-
,,305
'ceridei'llale histórica da vida huma- sões ·da praXIS secial humana, e
I'la. ·. Transcendental - na medida que significa dizer . que a cultura
em que ela constitui um reservató- está sempre dialeticainente vincula-
rio de saber, que funciona como pa- da cem e sistema, eu .seja, :Com ·a
ria de fundo de sentido ·possibilita- tetalidade . das ações instrumentais,
dor· das ações comunicativas con- através das quais o.s hemens exer-
cretas, enquanto atos de entendi- cem e centrele sobre os fenôme-
menta · entre os sujeitos; Histórica nos (5).
- precisamente porque este a prio-
ri é gestado historicamente através ·29.) A dinâmica atual
do trabalho interpretativo das· dife- da cultura brasileira
rentes gerações, que vão acumulan-
do modelos de interpretação do Falando de cultura, estamos fa-
real, transmitidos através das tradi- lando da esfera da pro.dução do
ções culturais, nas quais os sujeitos sentido., que é condição de possibi-
se constituem como . sujeitos dos lidade das interações simbolicamen-
·processos de entendimento. No en- te mediadas entre o.shemens. As-
tanto, a seciedade não é só o mun- sim, a cultura .emerge cemo uma
do vivido, cultura, pois, as ações das modalidades fundamentais da
dos sujeitos não são coordenadas só práxis de homem no mundo: trata-
através de mecanismos voltados ao se de mundo de vida secial, onde
entendimento. Antes, a realidade e mecanismo. de ceordenação das
social é um complexo dialético, que ações é . a linguagem no. seio da
é, ao mesmo tempo, mundo vivido, qual se gestam as interpretações do
ou seja, coerdenação das ações o.ri- real e as normas que regem a con-
entadas para e entendimento. inter- vivência dos homens entre si (6).
subjetivo e sistema, isto é, coorde- No entimto, a cultura é a dimensão
nação de ações, através de mecanis- simbólica da práxis secial humana,
mos funcionais, normalmente não. intimamente vinculada à dimensão
percebidos· pela censciência cemum, sistêmica, onde se constituem as
voltados ao precesso de interação instâncias técnicas da ação racional
do homem no. mundo.. Pensar a rea- com réspeito a fins. Como se dá a
lidade social cemo a combinação relação entre as duas dimensões?
destas duas dimensões fundamen- J1 uma questão que aberdaremos
tais constitui, .talvez, e maior desa- mais adiante, quando. tratarmos da
fio de uma teoria ·do social, heje, especificidade das seciedades mo-
.0 que, aliás, · aqui no nosso caso, dernas. O que imperta, no momen-
significa, de antemão, situar a pro- to., é a afirmação central de que e
blemática da cultura como uma das mundo simbólico é uma das dimen-
dimensões fundamentais de toda a sões furidamentais da to.talidade so-
realidade social. A cultura é, para ciaL Assim, para entender a dinâ-
nós, a esfera da . produção do sen- mica cultural da atual seciedade
tido. que pessibilita a ação. cemuni- brasileira é necessário situar a cul-
cativa. A ação. cemunicativa, per tura no contexto da totalidade so-
sua vez, é apenas uma das dimen- cial que nes caracteriza.
306
Nossa atualidade tem um donde. cláro que; a · longo prazo, este pro-
Nossa formação histórica constitui cesso . de subordinação forinal vai
o substrato a partir de onde ·pode- interverter-se . num processo de su-
mos entender o que, hoje, se passa bordinação real, ou sêja, do pro-
no mais profundo de nossa forma- cesso de transformação capitalista
çãosócial. O Brasil emergiu para o da formação social local, que é a
contexto mundial como rêsultado fase que vivemos hoje. O caso es-
da expansão da primeira forma de pecífico do Brasil, nesta problemá-
sociedade moderna: a sociedade tica geral da época, é que foi pre-
mercantil capitalista (7). Não dá ciso criar um processo produtivo
para explicar o Brasil a partir dos articulado com o mercado mundial,
pressupostos das . formações sociais já que a produção interna era inca-
das tribos indígenas que aqui habi- paz · de fornecer os excedentes ao
tavam: o Brasil é fruto de uma in- processo de circulação do capital.
vasão, ·que se situa no processo da Daí, a criação de um modo de pro-
acumulação primitiva do capital, dução esq:avista subordinado for-
que tinha o seu centro motor na malmente ao processo de valoriza-
Europa. O que .se gestou aqui no ção do capital. O Brasil, portanto,
Brasil? Há uma grande discussão é o resultado do capital: só se en-
.e ntre os teóricos a respeito desta tende a partir. do processo de sua
questão. Uma coisa, no ·entanto, é auto-valorização. Este é o pressu-
fundamental: o Brasil só existe en- . posto fundante da nossa formação
quanto inserido no processo de ex- sócio-histórica, pois, este constitui
pansão do capital mercantil, numa o quadro de base que é o pressu-
palavra, nossa formação coincide posto de nossa atualidade.
com o desenvolvimento do merca-
do a nível mundial. Há, portanto, 1l dentro deste contexto básico
uma subordinação ao processo de que podemos situar a problemáti-
valorização do capital: "O objeti- ca da cultura: se nossa formação
vo central do colonialismo, na épo- como totalidade social significou,
ca da hegemonia do capital mer- de entrada, uma subordinação ao
cantil, consistia em extorquir valo- processo de expansão do capital,
res-de-uso produzidos pelas econo- que se fazia a partir da Europa,
mias não-capitalistas dos povos co- isso significa dizer que o Brasil, de
lonizados, com a finalidade de saída, só se entende culturalmente
transformá-los em valores-de-troca como o resultado do processo de
no mercado internacional. A subor- expansão da cultura européia (9).
dinação dessas economias agora Isso significa dizer que o mundo
"periféricas" ao capital mercantil vivido, que marcou o quadro bási-
metropolitano, se dava no terreno co, o reservatório cultural das co-
da circulação: era, para usarmos munidades humanas que aqui se es-
com certa liberdade um célebre tabeleceram, era um quadro da cul-
conceito de MarX uma "subordina- tura portuguesa. A matriz cultural
ção formal" que mantinha essen- de base da nossa cultura é de ori-
cialmente intocado o modo de pro- gem latina no seio da qual, por pro-
dução do povo colonizado" (8). 1l cessos muito complexos, foram in-
307
traduzidos elementos da cultura in- lavra, o que nos caracteriza" como
dígena autóctone e da cultura dos processo cultural, no momento, é,
negros para aqui transportados co- por um lado, uma profunda hetero-
mo suportes básicos do modo de geneidade pela co-existência da cul-
produção , escravista. Numa pala- tura pré-moderna com a 'c ultura
vra, nossa cultura, de antemão, foi moderna e.sua crise, como, 'por ou-
vma cultura para aqui transplanta- tro lado; a tendência acentuada de
,da com o contexto da própria tota- moderni2;ação cultural, que se vi-
lidade sócio-histórica, que, aqui, se sualiza no fenômeno, hoje, genera-
estabeleceu: o Brasil nasceu cultu- lizado, da "indústria cultural". Va-
ralmente como um participante da mos , tentar explicitar este quadro.
expansão cultural européia, que, Em primeiro lugar, pelo fato de que
aqui, se , fundiu com a Cultura de o Brasil nasceu já sob a dominação
outros povos, dentro, porém, de da: primeira forma de sociedade mo-
um processo de sujeição. Daí a pro- derna, a sociedade capitalista, não
funda , verdade da ,afirmação de significa dizer que, internamente,
Leonardo Boff: " A cultura latino- como 'vimos, o modo de produção
americana como uma totalidade de já ' fosse capitalista, 'o que não é 'o
sentido é ' um mito" (lO). Podemos caso, nem que o mundo simbólico
tomar uma posição ética com rela- já fosse ' predominantemente o .da
ção ' a este processo, chamá-lo de 'modernidade. Embora, evidente-
genocídio cultural (11) . No entan- menté, ' já 'haja claramente elemen-
to,. ele é o pressuposto de um pano tos 'da nova cultura aqui presente,
de fundo da atual problemática da porém,- 'dé um modo geral, a: cultu-
cultura brasileira e, sem este ponto
de vista do processo de nossa' lusi-
'ra' portuguesa da época ainda é
uniá cúltuta pré·moderna, isto é,
tanizlição, , perderíamos o rumo na Qão marcada pelo ,novo tipo do sa-
análise ' da problemática atual de ber" ,emergidO do ocidente, o da , cio
nossa cultura. Nossos problemas ,se Vilização técnico·científica. " Muito
situam, hoje, ' e só ' são ' compreensí- 'pelocontfário,aqui, a religião,' ain:·
veis ' a pal'tir da nossa inserção no 'da é o eixo em torno do qual 'se
Ciclo ' civilizatório da - civilização 'órgliniza li vida e,sobretu'd o; é j i
ocidentaL ' , , 'instância articuladora do sentido ,da
, ', Creio q~e o -que marca a cÍinâ- éxisi~ncia.A própria união indisso~
mica atual da cultura brasileira é lúyel _entre o pr9jeto colonial _e a
um processo extremamente diversi- religiiío.- católica manifesta o quanto
licado, onde, co-existein diferentes :ainda éstamos longe de um mundo
.fases ,deste quadro básico de, nossa simbólico secularizado, -radicado na
,cultura, 'que ' ,é a , cultura ocidental, ciência Illodema, que ,é típico , das
_ainda marcado pelos diferentes ele- sociedades " modemas~ Inclusive, 'a
,mentos ,vindos .de ,outras matrizes l'eligião \linda funciona como ' a te-
:culturais, 'como, ,também, ,diferente- gitimaçãoda, sociedade elitista e, de,
'mente vivenciados ' por faixas dife- sigual, ,discriminadora ' e dualista,
renciadas " de cultura, ,se é 'que, as- ,que aqui -se estabeleceu. Ora, é ine·
sim, podemos :falar ,(12).- Numa pa- gáveL
o.,
que' há, segmentos
.
,da ,popu-
308
lação ,do 'Brasil de hoje ainda pro- cultura vai alimentar-se em novas
fundamente marcados por esta con- , fontes. Assim, a religião, enquanto
cepção pré-moderna de mundo, o , fonte articuladora do sentido global
que se torna muito visível no im- da existência, é relegada à esfera
pacto cultural sofrido pelas popu- da vida privada e, em seu lugar,
lações que migram do interior para , emerge a ' racionalidade técnico-cien-
as periferias das grandes cidades e, tífica, que pressupõe uma atitude
entram, assim, em contacto, de uma nova do homem em relação à na-
fO!1Da virulenta e abrupta, com uma tureza. Ela, agora, deixa de ser ves-
nova visão , de mundo, novos pa- tígio de Deus ,para fazer-se o obje-
drões de comportamento, numa pa- to de intervenções manipulatórias
lavra, uma nova cosmovisão, que , do homem, fundamentadas no novo
lhes é fornecida pela civilização ur- IÍpo de saber (14). O que é impor-
bano-industrial (13). tante, agora, acima de tudo é a efi-
cácia do processo de instrumenta-
Daí, a tensão cultural subjacente Iizaçãq de todo o real à vontade
ao comportamento destas popula- manipulatória dos homens. Esta
ções, que é proveniente do choque enorme capacidade de intervir na
dos valores de seu mundo vivido natureza, que cresce a cada dia, dá
com os valores novos provenientes ao homem a sensação de dominar,
do novo espaço cultural. Podemos também, toda a sua vida: ele se
dizer que são populações que vivem concebe como sujeito da história,
"literalmente" em dois mundos, o planeja seu futuro, anseia por uma
que levimta o problema grave da história criada exclusivamente a
identidade, sobretudo, decorrente partir do homem e em função do
do choque entre uma visão de mun- homem (15). Só que, este homem
do, que tem a religião como seu da modernidade se entende a si
centro articulador de sentido 'e uma mesmo, acima de tudo, como indi-
outra, em que o homem assume, a víduo portador de autonomia em
partir ' de si mesmo, a tarefa de ar- seu eu isolado e auto-suficiente. C,a-
ticulação do sentido ' de sua exis- da vez mais, ele é cioso de uma es- '
tência. fera de privacidade, que procura
, Por outro lado, vivemos; no mo- defender contra qualquer poder ex-
mento, um processo acelerado de terior. Na sociedade tradicional, o
moderriização cultural. Este proces- valor fundamental se situava na es~ ,
so ,é um momento na transforma- fera da comunidade, em que o in-
ção de ' uma sociedade tradicional, dfvíduo se considerava ' ummem-
OIide o mundo vivido" isto é, o bro: ' 'agora; toda a ' vida social é
mundo' do sentido e das normas, é pensada ,a partir do indivíduo ' e em '
o eixo de organização da vida, pa- função dele. O indivíduo constitui
ra tima sociedade moderna, que se o valor supremo de toda a vida so-
orgiiliiza ' a partir dos sub-sistemas ' cial e política de tal modo que,
de : ação racional 'com respeito aos ' agora, tudo 'que está além do indi-
fins; : isto ' é, a partir da economia víduo é considerado meio em vista
e ' d~política. -e dentro destaconfi- do · grande fim, o indivíduo e sua
gúràção inteiramente ' nova, que a ' felicidade individual. Isso constitui
309
a emergência de uma cosmovisão Cada vez mais as ações dos homens :
individualista, em que o indivíduo se : desligam .dos processos de enten- ,
se considera <> centro , inviolável ,e ' dimento, a instância dos sentidos e '
inatacável de toda a vida. dos ' valores, e passam a ser ' coorde- ·
, f: a' partir daqui que se vai ela- nadas por valores instrumentais, is-
borar a teoria do direito natural" to é" pelos mecanismos sistêmicos'
que explicita os fundamentos da de coordenação ' de ação' - o di-
constituição da sociedade e do 'Es- nheiro e O ' poder. A economia e a
tado", a: partir do indivíduo como administração literalmente invadem
ser autônomo. Este indivíduo iso- a . totalidade de toda a vidahuma-
lado se entende a si ' mesmo como na, inclusive ' levantam pretensão de
um ser de' necessidades, de tal mo- fornecer o ,sentido da existência hu- '
do que ·a questão fundamental da mana, ' num'a , palavra, a dimensão
sua vida, será, ' agora, a da satisfa: sistêmica da totaÍidade social inva· '
ção de suas 'necessidades . Todos os ' de a dimensão comunicativa e a
seus laços com os outros estão fun- tenta reduzir ,e subordinar a ' seus
damentaimenúi voltados , para esta ' impel'ativos, o que, em nossa so-,
questão básica: , a satisfação das ne- ciedade, vai significar a coisificação ·
cessidades: Por esta razão, a socie- das, relações comullÍcativas dos ho-
dade moderna se estrutura a partir ' mens entre si (17). Ora, este pro-
de> ,trabalho e em função do traba- ' cesso de. tecnologização da vida tem
lh(). 'A vida' 'é agora, acima de tudo , impactos enormes sobre a consciên-
trabalho e trabalho' organizado. 'O cia, individual , e ' coletiva dos ' ho-
a
eiXo ',da vida, humana é produção ' mens. N6s, hoje, estamos vivendo .
uma , nova ', revoluçãotecnol6gica, '
e é a partir daqui que o honiern :
pensa a sua soCialidade. 9 cerne da que , se centra em três eixos básicos:'
nova sociedadeconsisti~á .na , redu~ , a micro·eletrônica, o. complexo qtrl- .',
Ç~Q da siJcialidade human!l ~ esfe- mico e os novos materiais cerâmi- '
ra . da produção e, portanto; àsatis- , cos (l8). Passjlmos por uma trans' .
fação dás necessidades ' da reprodu- o formação ' profunda na era da, tele·
çãomaterial, A produção passa a comunicação e já as linguagens ar-
sef o centro da vida social, a esfe- , tificiais da informática se , tornam
ril em torno da qual se pensa e , se fariüliares e . vão ' adquirindo, iIÍIpor- ,
o"rganiza ; toda a vida humana. O tância cada vez maior . nos proces$OS"
homem é; acima ,de tudo; o , s# que , de comunicação, informação e de-
produz e COnsome. A felicidade hu- . cisão. Por 'outro lado, a nova bio·
n:taij.a vai coitsistir, cada vez mais; ' lpgiá e a engenharia genética apre-
no corisumo .de bens para satisfá" sentam realizações , fantásticas,..para .
ção das , necessidades' (16k No fun- a vida e. para a morte dos homens.
do;. a ·história dos homens vai emer, Fontes novas de energia' abrem:. pa-
gindo, cada vez ' mais ' claramente, ra ,"o homem. jJossibilidade~ . àntes:
como processo de produção. e a pró- , consideradas, sonhos, Esta te!lnifica' ,
pria ,política' passa a ser, ,agora"apeo. ç,~o da existência vai provocando,.
nas,' um momento c.omplementar in- , cada .vez mais; mudimças ' ' profun" ,
separável do. processo de , produção; . das na auto,compreensãodos :. ho- ,
;no
mens, ,de ,sua. vida, ,de sua , sexuali- mo um todo, provocou a elllel'gência ,
Dade, ' dé ' seu agír nOnlundo, do d~ " uma , novadlis~e operária. 'De
significado do ,p;lpelôli mulher, das u Ill , modo geral, se pode falar, hoje,
relacõesdo
4 .
homem com a natureza'
-~.' . , _. . '
. •, no Brasil, de uma lenta mas cons-
Isto é algo que afeta, apenas, os tante, presença e ' consolidação de ,
setores escolarizados e instruídos da ' Uma nova cultura popular, que
população? Este. processo afeta, aponta para uma participação ativa
através , da mediação dos meios de na construção de' uma sociedade di-
comunicação; praticamente ' a totali- ferente, desta forma, extremamente ,
dade da população. E isto ,é um ca- iníqua de sociedade moderna, que
so 'típico ' c;ia: relação entre ' o mundo ' consiruímos. Temos, hoje, enormes
vivido e o sistema na sociedade mo- segmentos de ' população vivendoe
derna. A ' produção cultural, algo da em condições' de ignorância e anal
esfera do' mundo vivido, entra ria fabetismo, de pobreza, falta de saú-
esfera sistêmica e se transfOlma em de, de desemprego e de fome. A ca-
mercadoria (19). Foi o próprio ,de- racterística básica da .fonna da so-
senvolvimento ' tecnológico que tor- ciedade moderna, que se construiu
nou isto ' pos'sível, fazendo das pro- entre nós, é de uma contraposição
duções "culturais instrumentos utili- profunda entre os indicadores eco-
záveis 'para fechar os olhos das pes- nômicos, que nos mostram como
soas , diante da ' irracionalidade de uma sociedade industrial e moder-
seu mundo e , transmitir-lhe os no- na e os illdicadores sociais, que nos
vos "vãlores. Trata-se, acima de tu- apresentam uma face de uma socie-
do, dt:" seduzir as , massas para o dade primitiva cofnparável às socie-
consumo; atrofiando a esfera pró- dades mais ' atrasadas da África e
pria da' racionalidade comunicativa, da Ásia (21) .
fonte ' de ,uma possível crítica na vi- ' Em virtudé disto, há um movi- '
da hUItlana. No nosso caso, a coisa mento de fundo que" aponta para
é' màis ' vi'oleil.'w 'db -que rtassocieda- uina alteração de nossas estruturas
des européias, pois, " a virulência sociais, a fim de tornar efetiva a
da indústrIa ' cultural é maior em incorporação das massas ' num mo-,
paí~es do' capitalisfuo periférico pe- di> diferente de articular o pl'oce'sso,
lo 's impks' fato de a ,população es- de produção e a vida social como '
tar menos preparada, menos prote- um todo. '
gida, em face das incansáveis inves- , Os grupos mais conscientes das
tidaS da' moderna indústria cultural, clas,ses , opdmidas ,se vão, pOllcoe,
por ' ser menos culta, menos crítica.
Como o 'nível educacional das mas- ' pouco, organizando e ' aclimulando "
forças na dii'eção da' criação de ' al- ,
sas nesta :sociedade é muito inferior ternativas à ordem vigente. Eles fa- ,
à média da população ' dos países
zem vir à tona aquilo que podería- '
desenvolvidos, o trabalho, de per- mOS chamar a ' dimensão p6s-mocier-
suasão e sedução das massas é mais 11.a , de nossa cultura: , ,aquela ,que '
fácil" (20;. ' , - "
aponta pa1:a' as patologias próprias,
No,"entanto" o próprio, ' proces~o da , sociedade ' que ' gestamos ' e, as-
de modernização , da sociedade co- sim" abrel1l . o e$paço. para a, a~'tk
3t.l
culação de algoaliernativo. No ca- . Além disto, pode-se realmente fa- .
so ·aqui, questiona-se, de diferentes lar de valores? A racionalidade mo-
maneiras, a iníqua distribuição da derna · não reduziu a ,esfera do éti-
riqueza social, que caracteriza a co ao domínio do arbítrio do indi-
nossa sociedade, a tal ponto de dei- víduo, como algo fruto de puras de-
xar enormes segmentos da popula- cisões irracionais? No fundo, a so-
ção fora dos avanços atingidos por ciedade moderna não é uma socie-
esta sociedade. Por isto, nossa so- d~de irracionai, no que diz respei-
ciedade se revela uma sociedade to aos fins da própria vida huma-
marcada por conflitos profundos, na, pois, sua racionalidade especí-
onde se faz impossível conseguir fica se reduz à esfera do controle
um consenso social capaz de asse- dos fenômenos? Isto significa dizer
gurar uma existência social em paz. que, também, já estamos vivendo,
O espaço da socialidade emerge, as- entre nós, a crise da racionalidade
sim, ocupado pela contraposição de moderna. Isto se manifesta, tam-
interesses antagônicos . Todos os bém, a nível da ' experiência religio-
conflitos conduzem, em última aná- sa (22) : estamos vivendo um mo-
lise, a uma crise básica de sentido: mento caracterizado religiosamente
em nome de que valores se orga- pelo surgimento de novos fenôme-
niza a nossa sociedade? A eficácia nos religiosos, com novos signos,
no controle da natureza? Ora, os movimentos sincréticos, que partem
grupos de consciência ecológica, das necessidades de sentido dos in-
cada vez mais ativos entre nós, divíduosperdidos neste mundo no-
apontam para as conseqüências trá- vo e exprimem uma busca religiosa
gicas, na vida humana, dá visão re- nova. Eles testemunham, em' pri-
ducionista e fragmentária da vida meiro lugar, o desencanto · com o
fornecida pela racionalidade instru- mundo moderno, seu reducionismo,
mentaI,. que está subjacente ao pro- sua ' tentativa de reduzir o homem
jeto moderno de sociedade. Para à sua realidade histórica e social;
estes grupos, a crise da racionali- por outro lado, eles aceitam o lugar
dade moderna se manifesta, acima que lhe é reservado pela cultura
de tudo, ' no fato de que todo este moderna - a esfera da interiorida-
pracesso societário criou um meio- de_ Entendém a si mesmos como
ambiente, onde a vida se tornou fí- ilhas de sentidos num mundo sem
sica e mentalmente doentia. Os ris- significação e sem: Deus. Daí a per-
cos permanentes para a vida huma- da do interesse pelas questões glo-
na não ' são apenas sub-produtos ca- bais que ,marcam ' a vida dos ho-
suais do progresso tecnológico, mas, mens e a tendência ao retorno às
antes, 'constituem características in- certezas ' que, na modernidade, pa-
tegrantes de uma sociedade :obce- recemperdidas.
cada pelo crescimento e pela ex-
pansão e, por isso, voltada para um 39) . Os desafios
aumento ilimitado da produtivida- à nova evangelização"
de. ' Úra, isto 'signifiCa úma crítica
rádica'! aum dos pressupostos fun- . A Igreja', ' cristãmente entendida,
damentaisda sociedade moderna. é o sacramento históric::l da presen-
, .~.
312
ça libertadora de Deus no seio das deixou de · ser, assim, a fonte de in-
comunidades humanas. Sua lógica teligibilidade do homem e do mun- .
de ação só pode ser, portanto, a do (25).
lógica ·de Jesus, isto é, a lógica de
encarnação. O verbo de Deus assu- A razão do homem não é mais
me a condição humana, assim, que uma razão sacral, é uma razão se-
na perspectiva cristã tudo o que é cularizada, pluralista, fragmentária,:
verdadeiro, sábio, inteligente, justo, que encontra sua matriz básica nas '
produtor · de sentido, numa palavra ciências modernas e se articula co-
tiIdo que . é .verdadeiramente huma- mo uma formação social centrali-
no, .encontra seu sentido último e zada no trabalho. Isto criou urria at-
sua .origem radical no Filho de mosfera intelectual inteiramente di-
Deus vivo. Pela encarnação, a na- ferente do mundo tradicional em
tureza, humana é, definitivamente, que a fé cristã se difundiu e se arti-
inserida no mistério de comunhão, culou teoricamente em virtude de
que é a própria essência de Deus, seu anúncio aos homens (26). A si-
e Deus inserido .na aventura da his- tuação histórico-cultural, no passa-
tória hurriana (23). A história hu- sado, era a de uma sociedade cristã
mana é .inserida na história do pró- quase que homogênea. A fé é uma
prio Deus-trino. No entanto, como das grandezas deste mundo, era
diz Concílio de Calcedônia, a hu- uma evidência recebida sem maio-
manidade de Jesus pertence ao pró- res . questionamentos. A existência
prio Deus de maneira inconfundí- de Deus era- algo inquestionável pa-
vel, imutável, indivisível e insepa- ra a grande maiária e Deus, aqui,
rável (24), Assim, como o Filho de quer dizer aquela instância última
Deus 'assumiu a · natureza humana de determinação para toda a ' vida
sem· destruí-la, assim a evangeli- humana. O saber era, relativamen-
zação' deve. .assumir as culturas te, limitado e não muito dificilmen-
sem que ' com isso elas percam a te sintetizável, ora, esta situação
sua identidade. Uma situação . cul- mudou,radicalmente, na moderni-
turalespecíficasignifica "a· condi- dade. Podemos caracterizar esta si-
ção humana'"(a natureza humana) tuação através de dois fenômenos: '
a Ser inserida e transformada pela em primeiro lugar, a imensa frag-
ação evangelizadora dos cristãos. Inentação do saber. Não há limites
Qual ê esta:' condição humana, no estabelecidos: a pesquisa é vista
Brasil. de" hoje? O de uma socieda- como uma tarefa infinita. De tal
de; onde a religião não possui mais maneira se fragmenta, hoje, o . saber
a hegemonia, isto. é, onde ela. não humano, que se tornou praticarrien-.
constitui a -instância a partir. de on- te impossível articular uma visão
de . se organiza a totalidade social, de conj:unto .. unitária e estruturada,
m!,!s é uma :so-ciedade que tem seu que · possa dar ' conta da imensidão,
eixo . na economia e na política, isto dos saberes . diferenciados so~re as
é, se · arti~ula ;a 'partir da autonomia diversas . dimensões da experiência
do 'homt:m e de suas instituições; humana: ,No. passado, isso ' era: pos:
que se configuram sem referênciá sível e .o'. homem tlnhauma . cel;ta
à,. componente r~ligiosa..
,o. sagrado
. unidljcÍ. e.' , sólida· no .seu saber solmi
~
313
o reál. Atuafmente, recebemos 'as ' o modo de ser da reàlidade ecl~
mais ' disparatadas informações, 'a sial não podem ter aquela 'unifor-
partir das mais deferentes fontes de mida'd e ' que, no passado, 'se 'éonsi-
conhecimento. O próp~:iQ pluralis- derou um valorsuprem9. Cada vez
mo infinito dos , saberes, por um ri!ais se toma irreversível o plura-
lado;" mostra ' a grandeza de possi- lismo ' social e se manifes.ta, através
bilidades; por outro lado manifesc , disso, uma ' das caractei'Ísticasbási-
ta ,ao homem cada vez ,mais clara- càs do ser do homem:' 'ele é um
men!e seus limites. Parece, cada ser pluralístico. Nossa reflexão da
vez mais, que a unidade ,<;la expe- fé; nosso modo de ser Igreja só
riência humana é inatingível. Em terão credibilidade, hoje, se forem
segundo lugar, cada " vez , menos o muito mais ' pluralistas do que fo-
hOlnem da modernidade tem , certe- ram no passado e isto será, sem
zas. , A concepção cada ' vez mais dúvida, uma riqueza pata a Igreja
difundiclaé que o saber humano (29). Precisamente, a heterogenei-
não passa de conjecturas:iudo é, dade, que caracteriza a atu,al so-
em princípio, testável, tudo está, ciedade brasileira, abre perspectivas
em princípio, aberto à contestação. enormes para a encarnação ' do
Afirmar o contrário, parece ao ho- Evangelho nestas diferentes ' situa-
mem de hoje um retorno ' 'ao dog- ções,
matismo de que a humanidade já
se teria libertado (27). Há',uma des- A sociedade brasileira atual é
confiança básica de um saber pron- marcada por conflitos profundos,
to e acabado, sobretudo a "infali- pelo fato de 'enormes segmentos te-
bilidade" parece irracional. Como rem ficado marginalizados ' às gran-
fica o ,anúncio da verdade cristã des conquistas desta sociedade em
ncsia atmosfera espiritual? Não, te- processo de modernização e ' que,
ria ' a teologia de se n:pensar em por ' isso, se organizam 'na defesa
radicalidade para dizer uma pala- de seus, direitos fundamentais. ' Além
vra escutável ao homem de' hoje '? disto, há, neste contexto, tantos
Como, ficam as nossas certezas? segmentos , de população ainda fun-
De que ordem elas são? Nossas damentalmente marcados pela men-
posturas e comportamentos não ,talidade pré-moderna, como dife-
aparecem cada vez mais inaceitá- rentes grupos que põem em ques-
veis a , este homem de ' hoje? Não tão alguns dos valores" 'fundamen-
caberia à nossa teologia e às nos- tais da nova cultura radicada na
sas atitudes pastorais uma humil- racionalidade instrument,a!. ' Seguin-
dade e uma capacidade de diálogo do a lógica da ,encarnação, ' deve-
que foram desconhecidas em ou- mos perguntar: quál deve sér o ti-
tras , épocas?, (28). Não é verdade, po de presença çla , fé cristã , neste
que esta situação está produzindo noV:o contexto cult.tiral? Em pri-
uma consciência ' social, ,que cada meiro -[!lgar" a .Igreja ' deve, alegràr-
vez mais' se, distancia da consciên- se cOm ,i! fundamentál mudança de
cia. eéIesial e segue os seus próprios horizonte, que se crio,iria 'moder-
passos? Num mundo ,assim tão ,di- nidade,ou 'seja" 11 , paiisagem 'de um
fet~rteiado, a ' teologia, a pastoral; ho\·izonte cosmocêntrico; para · um
314
horizonte '::anti'i)poéêntriCo e 'histo- ql,lestões~ O Deus que Jesus anun-
riocêntricó :, na compreensão da vi- ciou s6 pode "ser pregado através 'dé
da humana .. Trata-se de uma ' pas- um' compromisso' radical. com a'
sa'gem , da, natureza, ' mas como ' uma sorte do homem. O amor incondi-,
história, O mundo, agora, é visto cionado ao próximo continua o me-
não mais como natureza, mas co- lhor indício da fé da Igreja, no
mo ' uma histól'ia 'a . ser feita pelo mundo , novo ,inaugurado com a res-,
homem a partir do ' homem. Por surreição.
esta razão, no centro' do novo mun-
do do homem, em última análise, A encarnação do Deus 'vivo, no
seio da ' realidade humana, signifi-
está , a busca da: liberdade (30) . Não
é . 'tarefa dos ' cristãOs' contestar a cou: a libertação ,de :tudo o que é
autonomia do homem, tentar res- humano. Assim, a 'inculturação, ou
socializar ' uma sociedade que o ho- seja, uma evangelização que ,pene-
mem construiu ' a partir de si, nem tre nas raízes culturais deste mun-
muito menos pôr em questão a va- do novo, ' deve transformar; a par-
Udade, que é o :cerne da nova cul- til" de dentro, para libertar, 'estas
tura: ' a racionalidade instrumental. novas matrizes culturais. Os grupos
A "mundaneidade" "do mundo lm- que questionam a cultura moderna
manizado deve ser plenamente ' re-, apontam para uma ~questão básica:
conhecida, 'inclusive a própria afir- mesmo válida, a racionalidade ins-
mação do Deus anunciado por Je- truniental, técnico-científica, não
sus ' provocou esta situação, pois, podé ter' a pretensão de esgotar a
sendo só ele, o Santo e o Absoluto, racionalidade huinana, sobretudo,
tudo, dessacralizae tudo entrega ao não pode fazer-se a folite última de
homem, imagem ' e semelhança da inteligibilidade da totalidade ' da
Trindade Santíssima. Diante desta existência humana. A fé cristã en-
sociedade secularizada, emancipada quanto articulação do sentido ' ter-
da, tutela eclesiástica, que quer ca- minal da história humana, a partir
mil).har a 'partir ,de seus ' próprios dO evento pascal, para se inserir na
pés"que não se deixa' manipular pe- atual "'condição 'humana", precisa
la )nstituição eclesiástica, a Igreja dialogar com a cultura radicada 'na
tem"uma tarefa diferente da que ela racionalidade instrumentai, no 'sen-
vinha cumprindo através dos tem- tido de mostrar uma dimensão radi-
pos. , Cada vez mais, hoje, se ofere- cÍllmente nova de realização do
ce à Igreja a ' possibilidade de uma próprio hoinem: a dimensão, em
missão desinteressada, ou seja" de que o homem não simplesmente do-'
agir, nãO' em vista dos' seus própnos miná o mundo, mas, sobretudo,
i'íiteres~es, 'mas em fu~ção do hoc bU,sca unia 'ràzão para viver, uma
rt1em, 'd e sua' vocação, da reâIização diin~n~ãó que ' lhe dá upl sentido
de sua, vÍlia. A Igreja preCisa mais últiiri,o de vida (31). E ela vai fazer
clal:!jfue'nte,: )lesta situação; mostrar isto ' a pa,rtir daquilo que é 0 _ crifé-
por todõ o : sel! ' modo de ' ser, que rio que pode julgar a significação
O nOssO Deus é um Deus ' vollado desta reà1idádé lia vida dos homens:
p'à ra 'o homem:; por issó; profunda; o' prÓprio hOlile.m em s,ua dignida:
mente interessado ' em suas ' grandes de incondiCional de ser' pessoal. :B
315
no centro mesmo de sua fé, que o solutizada, desumaniza o homem,
cristianismo vai buscar a razão de porque o homem não é só Um ma-
ser de seu diálogo com um mundo nipulador de objetos, é, também,
humanizado: Deus se fez homem e, acima de tudo, um mistério . de
assumindo o homem, mostrou o in- abertura, de interação de sentido e
condicionado e o absoluto que é o de .comunhão. Precisamente porque.
homem, o sujeito de sua própria ele é isto, ele permanece o lugar da·
história. O mundo construído a par. possível transcendência, a instância:
tir da autonomia do homem deve da possível revelação de um senti-
ser julgado à luz da incondicionali- do absoluto. O homem é, assim, li-
dade humana revelada no mistério berdade capaz de acolher um· sen-
do Filho de Deus feito carne hu- tido radical para a sua existência.
mana. Essa postura religiosa só po- A questão fundamental não se 'si-
de significar o aparecimento de tua~ então, no nível da contraposi-
uma consciência . crítica, no seio ção à racionalidade tecnológica,
mesmo do processo de incultura- mas da ampliação do conceito de
ção. O cristianismo só se encarná racionalidade, de tal maneirà que o
abrindo perspectivas 'novas e, por homem da sociedade moderna re-
isto, sendo fator de humanização, conheça . tomei racional o espaço
já que a encarnação de Deus sig- aberto às . interrogações últimas da
nifica· a plenificação das possibili- existência e possa abrir a um sen-
dades do homem. A tentação histó- tido radical capaz de dar sentido,
ric:a permanente na América Lati- inclusive, a seu projeto de domínio
na, em virtude mesma da nossa da natureza. Não 'se trata, assim, de
formação histórico-social, é a de negar o mundo moderno, maS de:
identificar o mundo cristão com o
mundo pura e simplesmente, e as- abri-lo . para uma dimensão que ele.
sim negal', de fato, a autonomia do vi,slumbra, mas que é incapaz . de
mundo humanizado; que ' caracteri- articular em virtude do ' pi'óprio
za a . sociedade moderna, e mais prqcesso histórico extremamente
profundamente, ainda, negar a ló- parcial de seu próprio desenvolvi-
gica da · encarnação, pois, sem o ho- mento ' (32). Neste sentido, a evim-
mem yerdadeiramente homem, não gelização .ésumamente positiva pa-
ra0 mtlndo moderno, pois desblQ-
há encarnação possível. Assim, queindo suas ' potencialidades, . o'
condição .primeira para a evangeli-
zação . do mundo moderno é o re- conduz.' li 'um processo de humani-
conhecimento de sua autonomia, de zação ..
sua mundaneldade corno ' exigência No entanto;. a Igreja, como sacra-
da fé cristã . .~ a par.tir deste reco- mento .;Iesta presença libertadora
nhecimento . básico que se podeefe- de Deus, só poderá cumprir .• sua
tivar aquele . diálogo' de que faláva- missão de evangelização, 'neste:·con-
mos na perspectiva de um abrir .1\1- texto, .s~ ela ' a fizer a partil' do~ po-
ternativas novas para a cultura mo- bres que, . sendo as vítimas .. !leste.
derna, que -yão na direção' de mos- processo .de · modernização, pot .,suli
trara·. racionalidade tecnológi~o pr6prili r : 'existência objetiva, ,,apon-.
instrymental,. que ela"ulIla. ve;z ab- tam para Uma configuração ,,*e.r.-
nativa da totalidade social. ~, pre- Ora, os segmentos oprimidos da
cisamente, a partir da racionalidade nossa sociedade, em processo ace-
comunicativa, 'o u ' seja, do mundo lerado de , modernização, vivem a
vivido das maiorias oprimidas, pro- esperança a partir mesmo de sua
fundamente marcadas pelos grandes experiência da crucifixão (34). Es-
valores do Reino, que são os valo- ta esperança que pode redimir a
xes básicos da humanidade e do ho- cultura moderna e dar o verdadei-
mem, isto é, o direito, a honesti- ro sentido do avanço técnico·cien-
dade, 'a verdade, a justiça, a frater- ' tífico da humanidade: estar a ser-
nidade, que a evangelização, hoje, viço da construção da comunhão
pode questionar, em profundidade, entre os homens, ser instrumento
as matrizes culturais do mundo possibilitador de fraternidade, me-
técnico·científico da modernidade. CAnismo efetivador na construção de
Há toda uma atitude de resistência um mundo de irmãos. Para esta fra-
desses grupos à iniquidade do tipo ternidade sem limites é que aponta
de sociedade moderna, que se ges- a esperança dos oprimidos. Não que
tou entre nós, e os valores, que os oprimidos sejam contra o pro-
,emergem nesta luta, constituem a gresso e o desenvolvimento da ca-
base normativa, que deve questio- pacidade humana no controle dos
nar todas as dimensões do que his- fenômenos; mas 6 que sua esperan-
toricamente se constluiu em nosso ça é subversiva na medida em que
país. A crise do mundo moderno levanta, com força, a questão dos
,c onduziu, precisamente, a , uma cri- fins; do sentido radical de todo este
se de espel'ança: os empobrecidos processo civilizatório. Neste senti-
:são, na sociedade de hoje, aqueles do, o 'mundo dos ' sentidos e dos va-
-que são capazes de sonhar com um lores dos empobrecidos é a instân-
mundo novo, isto é, eles conservam cia crítica da racionalidade moder-
vivas as esperanças humanas (33). na, pois, aí, o homem '6 o' absoluto
Por esta razão mesma, são eles os e o incondicionado, que julga a va-
primeiros destinatários da evangeli- lidade de todo este esforço de pro-
zação, pois, ,evangelizar significa, gresso tecnol6gico, que marca a so-
precisamente, anunciar àqueles que , ciedade contemporânea. E a espe-
esperam, que sua esperança se rea- rança dos oprimidos revela à socie-
liza, numa ,palavra, que ' o mundo dade moderna, que ela 6 extrema-
do sonho já começou a existir e es- mente selvagem: todo este enorme
tá transformando profundamente esforço tornou a opressão mais so- ,
toda a realidade humana. ~ por isto fisticada, mais sutil, mas também,
mesmo que o cerne da fé cristã é tremendamente mais eficaz. O que
a ressurreição, a fonte última de caracteriza ' o Brasil de hoje é um
toda a esperança humana, o" desa- processo continuado e aprofunda-
brochar da efetivação da grande es- do ' de opressão das grandes maio-
perança da humanidade - li espe- rias de sua população. São multi-
rança última em Jesus e se tomar, dões que fazem ,a experiência da
assim, capaz de enxergar os sinais cruz, da perda da vida humana. A
da presença desta esperança nos cultura está servindo ·de meio" para
acontecimentos da vida dos homens. se negar ' mais ' ainda o homem déi
317
que se fazia"antes. A esperança dos pode reforçar o processo de mani-,,.
oprimidos aponta para a libertação p,ulação, ..de marginalização dos ele-
da cuitura moderna, a fim de que mentos culturais não·europeus. De .
se possa fazer um espaçÇ) possibili- um modo especial, a cultura dos po-
tador ,c,le ,homens livres e fraternos. bres é feita da associação entre
fragmentos dessas culturas oprimi-,
Falando, neste contexto, de 'opres- ' das e o quadro cultural básico de
são, devemos lembrar, sobretudo, nossa sociedade. A Igreja não pode
do ' transplante cultural que signifi- desconhecer esta realidade: a opção ,
c'a a sujeição ' das culturas não·eu- preferencial pelos pobres significa,
ropéias, que foram introduzidas no aqui, levar a sério estes fragmentos
contexto cultural europeu. A cultu- culturais das ' populações margina-
ra dos conquistadores submeteu a lizadas para mostrar a verdadeira
cultura dos subjugados. Elementos universalidade do Eyangelho: trans-
culturais dessas culturas só conti- cendendo a todas as culturas, é"
nuam a existir na medida em que contudo, capaz de assumir tudo o
são subjugados ao quadro cultural que é expressão autêntica da gran-
básico. ' A Igreja, nesta situação, não deza do homem.
NOTAS
(1) É. nesta perspectiva, que traba- menêutico em sua relação com a filo-
lham ,por exemplo: D. Ribeiro. O pro- sofia analltlca mais recente. (5) Esta pos-
cesso civilizatório, Petrópolis 1983; As tura evita, de entrada, qualquer suspeita
Américas e a ' civilização, Petrópolis, de idealismo no tratamento da problemã-'
1983. R. Maurer, Kultur in : Handbuch phi- tica da cultura. (6) Precisamente enquan-'
losophischer Grundbegriffe, vol, 111, Mün- to ser semiótico, ser do sentido,. o ho-
chen, 1973, pg. 723·832. L. BoH, Evange- mem se distancia de tudo e se afirma em
lizar a partir das culturas oprimidas in: sua transcende ncia na medida em que
Reb. ' 196(Hi89)799-839. A respeito da articúla um sentido do todo. Os ur'liver-'
discussão em torno desta categoria nas sossimbóllcos são os canais desta arti-
ciências sociais na atualidade vj.: M. culação. (7) Vj. a respeito:.c. N. Coutl- ,
Azevedo, Comunidades eclesiais de base nho, Cultura e democracia no Brasil in: ,
e Inculturação da fé_ A realidade das ' A Democracia como valor unive rsal,
Cebs e sua tematização teórica, na pers- São Paulo 1980, pg. 61-92. ' (8) C. N. Cou-:
pectiva de úma evangelização incultura- tinho, op. cit. pg. 65. (9) VJ. L. BoH, Exi~
da, São Paulo, 1986, pg. 314 e ss. (2) gências teológicas e eclesiológicas para
Vamos, portanto, trabalhar a categoria de uma nova evangelização in: ' Reb 185,
"cultura" dentro do horizonte teórico ela- (1987) pg. "120: "A primeira evangeliza-
borado por J., Habermas em sua teoria ção se fez, na confluência de duas for-
da ação comunicativa. VJ.: J. Habermas, ças: a e,çpB:nsão dos interesses ' mercan- "
Theoríe des kommúnikativen Handelns, tilistas ibéricos 'conjugada com o forta-'
dois volumes, Frankfurt am Main, 1981 . lecim'ento da imagem cristã do mun'do'
(3) ,Vj,: X. Herrero, O Homem como ser como ' orbis christlanus, A colonização '
de linguagem - Um capItulo de antro- da América Latina e do Brasil , em parti-
,pologia filosófica in: Cristianismo e his- cular se deu ' em função do ,enriqueci-
tórIa (ed. por C. 'Palacio) 73-95.(4) Esta mento do estamento mercantil e das co-
cá,l egoria de '''mundo vivldo" eme'rgiu no roas de Espanha S ' Portugal; produzia-se
pensamento do' Husserl tardio e é, aquI, o ·que era indispensável,"complementar e·
repensada ,a· partir, do pensamento her- rendoso para· as economias centrais sob
318
a . fo.rma de trabalho compulsório para biente urbano, do mundo do trabalho,
permitir uma .acumu'fação muito maior. do universo r.eUgioso. (14) Vj.: M. · Aze-
P@ra . este objetivo se necesSitava de vedo,. Modernidade. e cristianismo. O dá,
mãd-.de-obra abundante. · Portugal e Es· safio à inculturação; São Paulo, 1981.
.panha não podiàm fornecê-Ia suficiente- (15) A modárnldadé pode ser entendi'd a
mente. , Foi então que se lançou mão do como um grat:tde 'proce~so de 'elapora-
indígena 6, no frac'asso. deste, do negro ção e articulação de uin projeto de li-
trazido de Africa. Ocorreu a conquista bertação a pàrtir do homem, construtor
militar 6 -econômica das terras amerrn- exclusivo de sua históiia através da me-
dias. logo a seguir ocorreu ' a segunda diação da ' raCionalidade técnico-cíenH-
conquista, a cultural e 'espiritual median- fica. Vi.: x. Herrero, Filosofia da religião
te a catequese .... (10) L. Boft, Evangeli- e crise da .fé. Dialética do sagrado cris-
zar a partir · das culturas oprimidas, op. tão in: Sintese nova fase 35(1985)13-39:.
clt. pg. ·804. (11) Vi. a ·respeito: Igreja: (16)· V).: J. Comblln, O Tempo da ação.
Comunhão ' e Missão na evangelização Ensaio sobre o Espfrito e a História, Pe-
dos povos, no mundo do trabalho, da tróp~lis, .H!82 • .pg. 223 e ss. (17) É este
politlca e da cultura. Doc. CNBB n9 40, processo que Habermas denomina "co.:.
pg. 99, n. 234: "Em nossa sensibilidade Ionização do- mundo vivido", que para
cristã contemporânea. assumimos · como ele se constitui a fonte básica das pa.
erro inaceitável a atitude dos coloniza- tologlas, que marcam a· sociedade mo,
dores e dos missionários, que os acom- derna vi.: x. Herrero, Racionalidade co-
panhavam, porque não respeitaram a municativa e modernidade in: Slntese
cultura da população indfgena. A evan- nova fase 37(1986)13-32. (18) Vj. : J. C.
gelização da América se fez sobre oS Miranda, J. Ra Tauile, L. Haguenauer,
destroços dos impérios astecas, maias e Pollticas de gestão do sistema produti-
incas e das culturas amerfndias. Com o vo: uma resposta possível do Estado à
Evangelho Implantou-se, também, o do- crise' 'brasileira in: PT, um projeto para
mínio e a cultura dos países coloniza- o Brasil, economia, São Paulo, 1989, pg.
dores". (12) Vi. a respeito :· M. Azevedo, 127-159, aqui sobretudo 128-133, onde
Dinâmicas atuais da cultura brasileira. os autores apresentam a revolução tec-
Texto de uma palestra proferida . no se- nológica por que está .passando, hoje, a
minário: A dinâmica da cultura bras ilei- economia dos países desenvolvidos. (19)
ra atual, Instituto Nacional de Pastoral, Este processo foi denominado por Hor-
Brasilia 1988 (mimeo). A. Bosi, A dinâ- kheimer e Adorno de "Indústria cultu-
mica de cultura brasileira atual, Idem. ra". Vi .: M. Horkheimer-T. W. Adorno,
R. C. Fernandes, Cultura brasileira, como Dialética do Esclarecimento, · Rio de Ja-
falar de seu futuro? Idem: (13) Dom A. neiro 1985. (20) B. Freilas, Educação
S. Bernardino, Cultura urbana emergen- para todos .e indústria cultural in: Polí-
te e evangelização in : Reb. 196(1989) pg. tica educacional e Indústria cultural,
878: "B) Está se· formando entre nós o São Paulo 1987, pg. 74. (21) V).: H. Ja-
homem urbano. Não se trata do cidadão guaribe e oulros, Brasil, Reforma ou
que de!xou a roça e vive na cIdade com Caos, São Paulo, 1989, pg . 17. (22) L.
o coração-mente no campo. Trata-se do A. G. de Souza, Secularização e Sa-
homem forjado no meio técnico·cienUfi- grado in: Sintese nova fase 37(1986).
cO-industr";I ; bombardeado . pelos gra'1- (23) Igreja: Comunhão e Missão, op.
ct:es meros de comunicação social; ten- cit. pg. 17 e 18, n. 29: "A 'condescen-
tado pelo secularismo; impregnado por dência' de Deus, a sua aproximação d~
ideologias dominantes (liberalismo e .co- humanidade, chega à sua expressão ple-
letlvismo marxista);· "perdld6'" religiosa- na e Insuperável na encarnação do Filho
mente. .. O) Alteram-se profundamente de Deus, em Jesus de Na:i:aré. Ele rea-
os hábitos, costumes, individuais, fami- liza em si mesmo a perfeita comunhão
liares. Há verdadeiro arrombamento da humanidade com Deus. Revela, em
cultural. Os valores culturais, religiosos, sua humanidade, mediante suas ações e
sofrem violento confronto diante dos 'palavras; Deus que··é · Pai, Amor, Comu~
Meios d·e Comunicação sociai;" d(; am- · nh ~o " . (24)· H. . Denziger, Enchiridion..
,319
Symbolorum, n. 148, pg. 70-71. (25) M. que elas contestamo verdadeiro sagra·
Azevedo, Modernidade e Evangelização. do da fé, mas porque elas desumanlzam
Uma reflexão a partir da América latina o homem. (41). Não se trata, pois, de
in: Srhtese nova fase 47(1989)67-78. buscar a Deus no fim de nossas expe-
(26) Vj.: K. Rahner, Glaubensbergrün- riências-limite ou como "tapa-buracos"
dung heute in : 8I1anz des Glaubens. (42) de nossas insuficiências ou ainda
Antworten des Theologen auf Fragen como a solução de nossos problemas
unserer Zeit, (ed. por P. Imhof), Mün- insolúveis. Trata-se de· criar em nós este
chen 1985, pg . 75-93. (27) A expressão "espaço de interrogação", de forma que
mais clara desta mentalidade se encon- possamos esperar Deus como um Ape-
tra hoje em K. Popper e sua escola. (28) Io, como um Evento, como uma Palavra
Para um repensamento da natureza da criadora que desperte em nós novas
reflexão teológica a partIr desta nova possibilidades de existência". (32) É,
situação na teologia evangélica vj.: W. precisamente, esta unllateralldade do
Pannenberg, Wissenschaflstheorie und desenvolvimento da modernidade, que
Theologie, Frankfurt am Maln, 1977. (29) provocou, hoje, sua crise .. Vj . a respeito,
Vj.: K. Rahner, Klrchliche Wandlungen o artigo do autor: · A crise da raciona-
imd Profangesellschaft in: 811anz des lidade moderna: uma criSe de esperan-
Glaubens, op. cit. .pg. 143-155. (30) J . 8. ça In: Sfntese nova fase 45(1989)13-33.
Metz, em sua teOlogia polftica, chama, (33) Vj .: J. Comblin, A nova evangeliza-
contudo, a atenção para os riscos desta ção - Depois de 500 anos in: Reb 185
postura. O que há de pOSitivo é o diá- (1987)171-181. (34) Para Metz, o elemen-
logo sério empreendido com a moderni- to essencial da concepção cristã da
dade. Ela deixou de ser vIsta, apenas, práxis é que ela se entende não somente
como algo negativo. Isto não deve, con- como ação, mas também como sofri·
tudo, desembocar numa legItimação teo· mento e este vai ser o critério a partir
lógica da nova concepção de homem e, de onde o crisllanismo vai descobrir as
pura e simplesmente, na aceitação da patologias decorrentes da sociedade
sociedade moderna. Sobretudo não se técnico-cientlfica. O sofrimento é o gran-
pode aceitar a concepção moderna de de corretivo para a consciência tecno-
religião, que a reduz à esfera da subje· crálica. O cristianismo é a memória do
tividade, portanto, à interioridade e à Senhor crucificado, dar por que sua
privacidade. Vj.: J. B. Metz, Glaube in ação, na sociedade, consiste em presen ..
Geschichte und GeseIlschaft. Studien zu titicar a memória perigosa da história
einer praktischen FundamentaIlheologie, da liberdade e esta memória tem, essen-
Mainz 1977. (31) Vj .: X. Herrero, Filoso· cialmente, um carAter prático, mlstlco,
fia da religião e crIse da fé. Dialética perigoso e libertador Vj.: J. B. Melz,
do Sagrado cristão, op. cit. pg. 37: "É Glaube in Geschichte und Gesellschaft,
por isso, que a tarefa 'da fé no mundo op. clt. pg. 104 e ss. Para Gutierrez, o
atual não é contestar a autonomia do sofrimento constitui a maior questão da
homem na construção da história, nem leologla e da pastoral na América lati-
ressacralizar a sociedade moderna, mas na. Como falar de um Deus que se re-
reconstruir todas aS dimensões da exis- vela como Amor numa realidade mar·
tência humana, de forma que um "espa- cada pela pobreza e pela opressão?
ço de interrogação" para um além per- Portanto, como falar de Deus a partir
maneça aberto. Se devemos lutar con- do sofrimento dos pobres? Vj. G. Gu-
tra todas as idolatrias e as novas sacra- tierrez, Falar de Deus a partir do sofri-
Iizações da sociedade atual como socie- mento do inocente. Uma reflexão sobre
dade técnica, não é simplesmente por- o livro de Jó, Petrópolis 1987. O
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