A Pessoa de Jesus Cristo
A Pessoa de Jesus Cristo
A Pessoa de Jesus Cristo
CREDO DA CALCEDÔNIA
Fiéis aos santos Pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve
confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à divindade, e
perfeito quanto à humanidade;
gerado segundo a divindade pelo Pai antes de todos os séculos, e nestes últimos dias,
segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, nascido da Virgem Maria, mãe de
Deus; um e só mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar, em duas
naturezas, inconfundíveis, imutáveis, indivisíveis, inseparáveis;
não separado nem dividido em duas pessoas, mas um só e o mesmo Filho, o Unigênito,
Verbo de Deus, o Senhor Jesus Cristo,
Perguntas costumam ser uma forma valiosa de entender a verdade. Uma série de
perguntas podem ser feitas para nos ajudar a entender a pessoa de Cristo. Por exemplo,
quando Jesus era um jovem ajudando seu pai, José, na carpintaria, teria sido apropriado para
Jesus perguntar a utilidade de uma determinada ferramenta? Ou, porque ele também era
plenamente Deus, já deveria saber a resposta, assim tornando qualquer pergunta
absolutamente desnecessária?
Poderíamos também perguntar: Cristo, que é o eterno Filho de Deus, precisava orar?
Ou ele apenas orou como um exemplo para os crentes?
Uma pergunta mais complicada – talvez a que mais recebo respostas equivocadas - é:
Cristo tem uma ou duas vontades? Além disso, ele viveu pela fé ou pela vista enquanto andava
sobre a Terra? Ele manteve sua natureza humana depois de ascender aos céus?
Essas e outras perguntas foram respondidas de maneiras diferentes por diversos
cristãos importantes. Nossas respostas a essas perguntas dependem inteiramente da visão que
temos a respeito da pessoa de Cristo.
No entanto, o teólogo puritano Thomas Goodwin argumentou que Cristo foi ordenado
como mediador para "fins superiores" além da salvação do povo de Deus. De acordo com
Goodwin, a principal razão pela qual o Filho de Deus se tornou homem não foi para que os
pecadores pudessem ser salvos por sua obra meritória, embora, é claro, essa também fosse
uma razão. Em vez disso, na visão de Goodwin, os benefícios obtidos por Cristo são muito
inferiores ao presente que sua própria pessoa o é para nós, e ainda mais inferiores quando
comparados com sua própria glória:
Essas são palavras notáveis. Mas Goodwin não estava sozinho em sua visão. Outro
puritano, Stephen Charnock, igualmente afirmou que há "algo em Cristo mais excelente e
formoso do que o cargo de um Salvador; a grandeza de sua pessoa é mais excelente do que a
salvação obtida por sua morte.” Talvez a declaração mais gloriosa sobre a pessoa de Cristo
venha da carta de Paulo aos Colossenses, onde ele fala de Cristo como a 'imagem do Deus
invisível' (Col. 1:15; ver também Hebreus 1: 3). As palavras que seguem dessa proclamação da
pessoa de Cristo indicam que tudo o que Cristo fez e continua a fazer reflete a glória de sua
pessoa.
Não posso deixar de pensar que as ênfases de Goodwin e Charnock estão
profundamente ausentes em muitos tratados modernos sobre cristologia - e talvez até mesmo
em nossas próprias visões a respeito de Cristo - onde a glória de sua pessoa fica em segundo
plano em relação ao que ele fez por nós. A glória de Cristo não é um apêndice ao tópico da
cristologia. Pelo contrário, ela é o ápice de tudo que podemos dizer a respeito de sua pessoa e
obra, pois é a base e a plenitude de nosso deleite eterno no céu.
Ao discutir a encarnação do Filho de Deus, não temos escolha a não ser começar nossa
cristologia "de cima" em vez "de baixo". Começar de 'cima' é um reflexo do padrão do Novo
Testamento que enfoca primeiro a divindade ("acima") de Cristo e depois a sua humanidade
("abaixo"). Basta olhar para o prólogo do Evangelho de João, onde o primeiro versículo fala
inequivocamente sobre a natureza e personalidade divina de Cristo. João então vai para o
versículo 14, onde ele afirma que o Verbo que está 'face a face' com Deus, e era Deus, 'se
tornou carne'. Se Romanos 3:21 representa a bomba nuclear de Paulo contra o farisaísmo,
então, certamente, João não poderia ter dito nada mais contrário às concepções judaicas de
Jesus do que “O Verbo”, que é Yahweh, “tornou-se carne”.
O autor de Hebreus também começa com uma cristologia "de cima". A comparação de
Hebreus 1 e 2, mostra que o capítulo 1 dá um tratamento mais completo à divindade de Cristo,
enquanto o capítulo 2 enfoca principalmente a sua humanidade. O exemplo final, entre muitos
textos que poderiam ter sido escolhidos, é o "hino Cristológico" de Paulo em Filipenses 2.
Percebe-se um movimento “acima-abaixo-acima” onde o eterno Filho divino se torna um servo
ao se humilhar por meio da encarnação e da obediência até a cruz. No entanto, o Deus-
homem é exaltado pelo Pai por causa de sua obediência até a morte na cruz e recebe o nome
divino, 'Senhor'. Falaremos mais sobre Filipenses ainda nessa sessão, mas claramente a
cristologia neste hino começa 'acima' e não 'abaixo'. Esse ponto é absolutamente vital se
quisermos valorizar a pessoa de Cristo.
Por que isso é importante? Existe uma tendência em nossas mentes de pensar em
Cristo como um "super-homem". Ou seja, deixamos de acreditar adequadamente que ele é
"verdadeiro Deus de verdadeiro Deus" (autotheos - Deus de si mesmo), igual em todos os
aspectos ao Pai e ao Espírito Santo. Enxergar a Cristo como uma espécie de "super-homem"
também nos impede de apreciar sua verdadeira humanidade. Claro, como a doutrina da
Trindade, a encarnação é um grande mistério e sua verdade completa está além de nossa
compreensão.
Muitos cristãos lidam com esse mistério pensando em Cristo como um "super-
homem"; isso explica por que certas heresias (por exemplo, o Arianismo e as Testemunhas de
Jeová) floresceram e ainda florescem entre os crentes. As heresias têm seu início quando
tentamos encaixar a Deus em nosso próprio pensamento, em vez de nos contentarmos com os
muitos mistérios da religião cristã que vão além de nossa limitada razão.
Observação: Arianismo se refere à heresia “cristã” do século IV que negava a divindade de Cristo. Ário
de Alexandria (c. 250–336) promulgou a visão de que o Logos era o Filho e Servo de Deus, mas não igual a Deus
Pai. Ário via o Filho como um poder de Deus e, portanto, uma criatura. Daí o famoso ditado ariano de que houve
um tempo antes do Filho de Deus, ou houve um tempo em que o Filho de Deus não existia. No período pós-
Reforma, os socinianos sustentavam basicamente uma visão ariana do Filho; e hoje vários cultos, incluindo as
Testemunhas de Jeová, também defendem uma visão ariana.
O FILHO DIVINO
“Quem fez tudo isso? Quem chama as gerações à existência desde o princípio? Fui eu
mesmo, o Senhor, o primeiro, que continuarei sendo, até mesmo com os últimos." Isaías 41:4
"Assim diz o Senhor, o rei de Israel, o seu redentor, o Senhor dos Exércitos: Eu sou o
primeiro e eu sou o último; além de mim não há Deus.” Isaías 44:6
"Escute-me, ó Jacó, Israel, a quem chamei: Eu sou sempre o mesmo; eu sou o primeiro
e eu sou o último.” Isaías 48:12
“Quando o vi, caí aos seus pés como morto. Então ele colocou sua mão direita sobre
mim e disse: Não tenha medo. Eu sou o primeiro e o último.” Apocalipse 1:17
“Ao anjo da igreja em Esmirna escreva: Estas são as palavras daquele que é o Primeiro
e o Último, que morreu e tornou a viver.” Apocalipse 2:8
“Eu sou o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim.” Apocalipse 22:13
João faz outra referência a Isaías que prova a divindade de Cristo. Em Isaías 6, o
profeta tem uma visão do "Rei, o Senhor dos exércitos" (Isaías 6: 5). Ninguém contesta que
Isaías teve uma visão de Deus. Mas João, citando uma grande seção de Isaías 6, afirma em seu
evangelho que Isaías "disse essas coisas porque viu a glória [de Jesus] e falou dele" (12:41).
Além disso, porque Jesus é o Senhor (Yahweh), ele pode pedir a seu Pai que o glorifique "com
a glória que [ele] tinha com [seu Pai] antes que o mundo existisse" (João 17: 5). Claro, em Isaías
lemos que Deus não dá sua glória a ninguém mais (Isaías 42: 8), o que significa que Cristo está
fazendo um pedido abominável ao qual não tem direito a reclamar, ou de fato tem direito a
glória divina que pertence a ele como o Filho eterno de Deus.
Paulo também faz uso da linguagem de Isaías no hino cristológico em Fp 2: 5-11 para
provar a divindade de Cristo. O versículo 6 ('quem, embora estivesse na forma de Deus') pode
parecer o lugar óbvio onde Paulo estabelece que o servo humilhado também é o Deus eterno,
mas os versículos 9-11 têm um contexto importante em Isaías 45:22 –3.
Em Filipenses 2: 9-11, Paulo afirma que Deus concedeu a Jesus a glória que, de acordo
com Isaías, pertence somente a Deus. Em Isaías 45: 22-3 "todo joelho se dobrará" a Deus.
Paulo está dizendo, portanto, que Jesus tem o mesmo status de Yahweh. Isso faz todo o
sentido à luz da parte anterior do hino cristológico (v. 6 'que, embora estivesse na forma de
Deus, não considerava a igualdade com Deus algo a que devesse se apegar’), e mostra acima
de tudo isso o 'nome' (v. 10) em questão é o Tetragrama (YHWH). Então, Jesus não é apenas
um senhor, mas o Senhor divino. Observe a conexão:
"Voltem-se para mim e sejam salvos, todos vocês, confins da terra; pois eu sou Deus, e
não há nenhum outro. Por mim mesmo eu jurei, a minha boca pronunciou com toda
integridade uma palavra que não será revogada: Diante de mim todo joelho se dobrará; junto
a mim toda língua jurará.
Isaías 45:22,23
“Por isso Deus o exaltou à mais alta posição e lhe deu o nome que está acima de todo
nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, no céu, na terra e debaixo da terra, e
toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai.”
Filipenses 2:9-11
Nessa união entre duas naturezas existe a maior distância envolvida. O Criador é
identificado com uma criatura. Na união das duas naturezas, vê-se eternidade e
temporalidade, bem-aventurança eterna e tristeza temporal, onipotência e fraqueza,
onisciência e ignorância, imutabilidade e mutabilidade, infinitude e limitação. Todos esses
atributos díspares vêm juntos na pessoa de Jesus Cristo. Para não tornar Deus um homem ou o
homem Deus, devemos ter o cuidado de insistir que o Filho eterno de Deus assumiu uma
natureza humana, não uma pessoa humana. Cristo era um homem; ele tinha uma verdadeira
natureza humana, que incluía uma alma racional. Mas ele nunca foi uma pessoa considerada
separada do Filho de Deus. A natureza humana de Cristo subsiste na pessoa do Filho de Deus.
Se a natureza humana de Cristo tivesse uma personalidade distinta, então haveria duas
pessoas unidas. Mas isso é claramente inaceitável.
Observação: Nestorianismo é a visão de que existem duas pessoas separadas em Cristo - uma pessoa
humana e uma pessoa divina. Muitos atribuem essa visão a Nestório de Constantinopla (c. 381–452), mas isso
seria grosseiramente injusto com seu ensino, que era basicamente ortodoxo. O ‘nestorianismo’ está errado
porque o Filho assumiu uma verdadeira natureza humana (corpo e alma), mas não uma pessoa humana distinta,
que já possuía uma identidade. Hipoteticamente, se o Filho tivesse assumido um indivíduo distinto, então apenas
esse indivíduo - e ninguém mais - poderia ter sido salvo pelo Filho.
Isso pode ser difícil de entender. Talvez porque o que estou argumentando é que a
união hipostática de duas naturezas em uma pessoa não requer um único centro psicológico,
como se a "mente" do Filho de Deus assumisse apenas um corpo humano.
Observação: O apolinarismo deriva de seu fundador, Apolinário de Laodicéia (315-392 d.C), que se opôs
ferozmente aos arianos do século IV. Mas, ao fazer isso, ele cometeu um erro fatal, a saber, que na encarnação o
Filho não assumiu uma mente humana. Em vez disso, uma "mente" divina (alma) assumiu um corpo humano.
Este erro é muito comum na igreja de hoje. O Filho se uniu a uma verdadeira natureza humana, que incluía uma
"alma e corpo racional" (Calcedônia). A heresia modalista trata o único ser de Deus como absoluto e as três
pessoas como derivadas, de modo que o Pai, o Filho e o Espírito Santo não refletem quem é Deus em si mesmo. A
confissão da igreja de Deus como três pessoas eternamente distintas em união indivisível é o fundamento bíblico
para uma compreensão adequada do indivíduo e da corporação nas Escrituras.
Seguindo o pensamento básico de Anselmo, o Filho teve que assumir uma natureza
humana para salvar os corpos e as almas de seu povo. Mas Cristo assumiu uma natureza
humana em sua perfeição? Essa tem sido uma questão particularmente complicada para
teólogos de quase todas as tradições. As Escrituras apontam para a ideia de que a natureza
humana de Cristo era sem pecado, mas que sofria com “enfermidades” que eram parte da
maldição da queda do homem no pecado. As palavras de João 1:14 - "o Verbo tornou se fez
carne " - parecem sugerir que Cristo assumiu uma natureza humana revestida de fraquezas
como consequência da Queda. Observe também a linguagem de Paulo em Romanos 8: 3,
"Enviando o seu próprio Filho em semelhança da carne do pecado”. Ao discutir o que se
entende por ‘carne’ ou a 'semelhança da carne pecaminosa’, devemos agir com algum
cuidado.
Cristãos comuns, e até mesmo alguns teólogos, afirmam que a natureza divina de
Cristo tomou o lugar de sua alma. Enquanto eles estão preparados para afirmar que Cristo
tinha um corpo humano, eles pensam que a alma de Cristo era de alguma forma a pessoa do
Filho de Deus. Mas porque Jesus era totalmente humano, ele tinha uma alma que era o
princípio imediato de seus atos morais, assim como nossa alma é. Se ele não tivesse um corpo
e uma alma humanos, então a encarnação não ocorreu inteiramente, e alguns aspectos de
nossa humanidade não poderiam ser redimidos. Como o Pai da Igreja Primitiva, Gregory
Nazianzen declarou: ‘Aquilo que ele não assumiu, ele também não pode curar’.
Stephen Charnock descreveu da seguinte forma: “Que maravilha: duas naturezas, tão
distantes uma da outra, deveriam estar tão intimamente unidas, mais do que qualquer coisa
no mundo; e ainda sem qualquer confusão. Na mesma pessoa deve haver glória e
humilhação; uma alegria infinita na Divindade e uma tristeza inexprimível na humanidade!
Que o Deus magnífico sobre o trono deve ser uma criança em um berço; o trovejante Criador
do universo é um bebê que chora e um homem que sofre. Estas são expressões de grande
poder, bem como de amor condescendente, que surpreendem os homens na terra e até
mesmo os anjos no céu.” A encarnação é de fato a maior obra de Deus.
O próprio Deus poderia ter realizado uma obra mais impressionante do que a
encarnação?
Todos os cristãos são obrigados a afirmar a verdade da encarnação, o fato de que Deus
se fez carne. No entanto, as verdades mais gloriosas são sempre as verdades mais disputadas.
Frequentemente, debates teológicos intensos precedem a redação dos credos. Isso
certamente foi verdade para os credos ecumênicos, como o Credo Niceno (325 DC) e o Credo
da Calcedônia (451 DC). O Credo Calcedoniano faz declarações sobre a pessoa de Jesus Cristo
que todos os cristãos devem afirmar se desejam ser chamados de ortodoxos. No entanto,
nem todos os cristãos interpretaram este Credo da mesma maneira. Alguns argumentam que
sua brevidade permite alguma diversidade de interpretações. Que várias tradições
interpretaram Calcedônia de maneira diferente não há dúvida, e a chave para entender essa
diversidade é vê-la como resultado de um intenso conflito cristológico no século V entre as
escolas de pensamento de Alexandria e Antioquia. Essas escolas estão historicamente ligadas a
seus teólogos representativos, Cirilo de Alexandria e Nestório (Antioquia). O Credo da
Calcedônia parece ser um documento que ambas as tradições poderiam afirmar.
Bavinck acrescenta que, de acordo com esta visão, Cristo, portanto, não viveu pela fé
ou na esperança, ‘porque todos os dons de que a natureza humana de Cristo era capaz de
receber, foram dados a ele, não gradualmente, mas de uma vez, em sua encarnação [...]
aumento em sabedoria (Lucas 2:52) deve ser entendido não objetivamente, mas
subjetivamente. Parecia assim para outros; também, quando ele orou, ele não orou por
necessidade, mas apenas por nossa causa, para nos dar um exemplo. Na verdade, Jesus nunca
foi uma criança, ele sempre foi um homem desde o início.’ De uma perspectiva católica
romana, então, algumas das questões que levantei no início foram respondidas. Segundo os
romanistas, Jesus não precisava perguntar a seu pai a utilidade de alguma ferramenta, pois
ele já saberia a resposta. Tampouco precisava orar porque vivia pela vista, não pela fé.
Teólogos reformados rejeitaram ambas as visões sobre a relação das duas naturezas.
Eles fizeram isso por causa de uma importante máxima lógica e teológica, a saber, que o finito
não pode conter o infinito.
Essa máxima não era válida apenas para as duas naturezas de Cristo em seu estado de
humilhação, mas até mesmo em seu estado de exaltação. Isso significa, portanto, que a
natureza humana de Cristo tinha limitações; significa que Cristo realmente se desenvolveu
desde a infância até a idade adulta. Também significava que houve um movimento real, não
fingido, da humilhação à exaltação em sua ressurreição. É por isso que Cristo pôde dizer em
um ponto de seu ministério: 'Mas a respeito daquele dia e hora ninguém sabe, nem mesmo os
anjos do céu, nem o Filho, mas somente o Pai' (Mt 24:36; cf. Lucas Lucas 2:52). Este texto fala
do tipo de limitação e desenvolvimento que só seria possível se as duas naturezas de Cristo
fossem distintas e reais.
O que foi dito acima mostra que insistir na distinção entre as duas naturezas em uma
pessoa não é suficiente. A questão mais fundamental para nós diz respeito a como as duas
naturezas se relacionam uma com a outra na pessoa de Cristo. É aqui que a teologia reformada
demonstra o seu melhor.
A ‘COMUNICAÇÃO DE PROPRIEDADES’
Obras onde Cristo demonstra autoridade (por exemplo, perdão de pecados, morte
substitutiva) são possíveis por causa de sua natureza divina. No entanto, suas obras de
ministério vinham de sua humanidade.
No entanto, porque ambas as naturezas estão unidas em uma pessoa, suas obras são
as obras do Deus-homem, não simplesmente as obras de um homem. Este aspecto da
cristologia provou ser a principal fonte de desacordo entre teólogos reformados e católicos
romanos. Teólogos católicos romanos, como Robert Bellarmine, afirmaram que Cristo era
mediador de acordo com sua natureza humana apenas, caso contrário, se Cristo é
verdadeiramente Deus, então Deus está mediando consigo mesmo. Teólogos reformados
sustentam que Cristo deve ser entendido como Deus, como homem e como o Deus-homem
(mediador). Como Deus, ele é igual ao Pai e ao Espírito. Como homem, ele é e sempre estará
subordinado ao Pai e ao Espírito. Em seu ofício mediador, o Filho voluntariamente se
subordina ao Pai em favor dos eleitos. As obras que Cristo fez, então, não foram simplesmente
as obras de um ser humano; eles são as obras do mediador, que é totalmente Deus e
totalmente homem. Portanto, o valor da morte de Cristo é infinito por causa do valor da
pessoa. Em outras palavras, alguém que fosse apenas um ser humano não poderia pagar a
dívida que tinha com Deus por um número tão grande de pessoas. No entanto, como Cristo
tinha uma verdadeira natureza humana, ele foi capaz de pagar a dívida em nome da
humanidade pecadora.
O que foi dito acima deixou claro que Cristo é totalmente Deus e totalmente homem;
ele tem duas naturezas, mas ele é uma única pessoa. Frequentemente pergunto a várias
pessoas, desde candidatos ao presbitério até membros da minha congregação, Cristo tem uma
ou duas vontades? Na maioria das vezes, embora nem sempre, a maioria das pessoas
responde que Cristo tem apenas uma única vontade. Mas isso está incorreto. A Igreja
Primitiva lutou com esta questão, com os monotelitas (aqueles que afirmaram que Cristo
tinha apenas uma vontade) sendo condenados em 680-681 quando o Sexto Concílio
Ecumênico (Concílio de Constantinopla III) rejeitou o monotelismo e afirmou o duotelismo (ele
tinha duas vontades). Alguns entendem que a união das duas naturezas em uma pessoa
significa que isso implica uma vontade. O problema com este tipo de pensamento é
essencialmente o mesmo problema que os luteranos encontram quando falam da
comunicação dos atributos divinos à natureza humana de Cristo. A vontade de Deus é um
atributo essencial e, portanto, comunicar esse atributo particular é comunicar todos os
atributos de Deus - uma impossibilidade ontológica.
Portanto, declaramos que nele há duas vontades naturais e duas operações naturais, procedendo
comumente e sem divisão: mas nós expulsamos da Igreja e justamente sujeitamos ao anátema todas as
novidades supérfluas, bem como seus inventores: a saber, Teodoro de Farã, Sérgio e Paulo, Pirro e Pedro (que
eram arcebispos de Constantinopla). além disso, Ciro, que carregava o sacerdócio de Alexandria, e com eles
Honório, que era o governante de Roma, pois os seguia nessas coisas. Além destes, com os melhores motivos,
anatematizamos e deporemos Macário, que foi bispo de Antioquia, e seu discípulo Estevão (ou melhor,
deveríamos dizer mestre), que tentaram defender a impiedade de seus antecessores e, em suma, incitaram todo
mundo, e por suas cartas pestilentas e por suas instituições fraudulentas, fizeram multidões devastadas em todas
as direções. Da mesma forma também aquele velho Policrônio, de inteligência infantil, que prometeu ressuscitar
os mortos e de quem, quando eles não ressuscitaram, riu-se; e todos os que ensinaram, ou ensinam, ou
presumem ensinar uma vontade e uma operação no Cristo encarnado ...
O Sexto Concílio Ecumênico informa o Imperador sobre sua condenação aos monotelitas, incluindo
Honório, Papa de Roma.
Além disso, Cristo não seria propriamente humano se sua vontade fosse divina. Como
um verdadeiro ser humano, ele necessariamente tinha uma verdadeira vontade humana. Mas
porque ele é totalmente Deus, ele também tem uma vontade divina. Assim, Cristo tem duas
vontades. A importância disso não pode ser exagerada. A vontade humana de Cristo foi
necessária para que ele prestasse verdadeira obediência no lugar de seu povo. As pessoas às
vezes esquecem que a doutrina da justificação é tanto cristologia quanto soteriologia; na
verdade, cristologia é soteriologia. Os anabatistas do século dezesseis sustentavam a
opinião de que a pessoa do Logos tomava apenas um corpo humano, mas não tinha uma
natureza humana completa. Não surpreendentemente, eles rejeitaram a doutrina protestante
da justificação pela fé somente. Este tipo de pensamento deve ser ferozmente resistido por
causa de Cristo, cuja obediência à vontade de seu Pai foi a obediência que surge do amor a
Deus com seu coração, alma, mente e força humana. Essa obediência era uma obediência
representativa, de forma que ele obedecia não apenas por si mesmo, mas também por seu
povo, assim como a desobediência de Adão foi representativa para toda a sua posteridade (Rm
5: 12-19).
Nas Escrituras, notamos que o Filho está constantemente afirmando que está fazendo
a vontade de seu pai. Assim, em seu discurso sobre o pão da vida, Cristo afirma: “Porque eu
desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” (João
6:38). Da mesma forma, em João 10:17 -18 Cristo afirma que a razão pela qual seu Pai o ama é
porque ele deu sua vida pelas ovelhas. Em seguida, ele afirma que sua morte sacrificial foi um
encargo que recebeu de seu Pai. Afirmar que Cristo tem apenas uma vontade, e não duas, é
uma heresia contra a Trindade ao postular que há vontades múltiplas em Deus; pois Cristo
distingue sua vontade nesses versículos daquela do Pai. Isso, é inaceitável. Deus é um em
essência e, portanto, um em conhecimento e vontade. Somente o Filho foi nomeado para
encarnar-se, mas esta nomeação foi desejada e efetuada pelas três pessoas porque as obras
externas da Trindade são indivisas; isto é, todas as três pessoas trabalham simultaneamente e
inseparavelmente em cada obra de Deus. Certas obras são mais atribuídas a uma determinada
pessoa (por exemplo, a santificação é atribuída ao Espírito Santo), embora todos os três
estejam necessariamente envolvidos. Fazer a vontade do Pai é fazer a vontade do Deus triúno.
Portanto, a vontade humana de Cristo estava em total conformidade e obediência à vontade
de Deus. O que o Pai exigiu de Cristo foi a obediência completa à sua vontade, mesmo desde o
nascimento de Jesus. No entanto, antes de nos voltarmos para a natureza da obediência de
Cristo, uma pergunta importante e tipicamente desconcertante precisa ser abordada, a saber:
será que Cristo pecou ou poderia ter pecado?
Se afirmarmos que Cristo tinha duas vontades, e não apenas uma, isso deixaria aberta
a possibilidade de que Cristo pudesse ter pecado? Ou Cristo era impecável? O autor de
Hebreus explica que Cristo foi de fato tentado de todas as maneiras, como nós, mas sem
pecado (Hb 4:15). Isso significa, porém, que era possível que Cristo pecasse? Alguns teólogos
argumentaram que as tentações de Cristo só teriam sido reais se existisse a possibilidade de
ele ter caído em pecado. E pode haver alguma lógica nessa ideia. Não há dúvida de que, de
acordo com a natureza divina de Cristo, ele não poderia ser tentado e, portanto, não poderia
pecar (Tiago 1:13). Mas também sabemos que Cristo possuía uma verdadeira natureza
humana que consistia em corpo e alma. Também sabemos que Cristo foi tentado, e essas
tentações eram reais.
De acordo com a natureza humana de Cristo, para usar as palavras de Donald Macleod,
'ele sentiu o apelo das propostas pecaminosas feitas a ele e teve que lutar com todas as suas
forças para repeli-las.’ Não houve, entretanto, nenhum impulso pecaminoso em Cristo
originado de dentro de sua natureza humana. Porque Jesus tinha enfermidades (veja acima),
ele tinha fraquezas humanas naturais, que, por exemplo, o tornaram sujeito à fome. Assim, o
diabo o tentou naquela área na esperança de que Jesus não dependesse de Deus, mas apenas
do pão. Mas, voltando à nossa pergunta inicial, era possível que Cristo cedesse às tentações do
diabo?
A resposta curta é não. As tentações eram certamente reais, e ainda mais porque
muito estava em jogo e Cristo não podia recuar nem uma vez (Hb 10:38); mas por causa da
identidade da sua pessoa, era impossível para Cristo pecar. O teólogo reformado americano,
W.G.T. Shedd coloca bem: “Quando o Logos entra em união com uma natureza humana, de
modo a constituir uma única pessoa com ela, ele se torna responsável por tudo o que esta
pessoa faz por meio da instrumentalidade desta natureza ... Se Jesus Cristo pecasse, o Deus
encarnado pecaria.” Além disso, uma consideração adicional é que, além da questão da
impecabilidade natural, era hipoteticamente impossível que Cristo pecasse, pois não estava no
decreto de Deus. As ações de Cristo estão envolvidas no decreto soberano de Deus da mesma
forma que as nossas, com a importante diferença de que Cristo está no centro do decreto de
Deus, ao passo que somos eleitos para a glória de Cristo.
Portanto, Cristo não cometeu nenhum pecado durante todo o curso de sua vida
terrena, embora tenha enfrentado muitos tipos de tentações (Hb 4:15). Ele perseverou sem
pecado até o fim e por isso sentiu toda a força das tentações de uma forma que nós, que
resistimos apenas por um tempo, não podemos senti-las. As realidades das tentações de Cristo
são intensificadas porque ele nunca cedeu a elas durante toda a sua vida. John Murray aborda
esta questão com sua clareza usual:
“O homem que cede a uma tentação particular não sentiu todo o poder
dela. Ele cedeu enquanto a tentação ainda tinha algo guardado. Só o homem que
não cede à tentação, conhece toda a extensão dela. Sua santidade impecável que
acrescentou intensidade à angústia da tentação. Pois quanto mais santa uma
pessoa é, mais excruciante é o encontro com a atração oposta ... No caso de nosso
Senhor, isso é verdade em grau incomparável porque ele era perfeito.”
Talvez haja alguma verdade na ideia de que em sua natureza humana ele não estava
ciente de que era impossível para ele pecar - o que adiciona uma perspectiva totalmente
nova à beleza de sua santidade. Em vez de pecar, Cristo viveu uma vida de perfeita obediência
que começou não em seu batismo, mas a partir do momento da sua concepção; foi obediência
a um grau que nunca podemos compreender totalmente em nosso estado pecaminoso -
lembre-se que não apenas toda ação, mas também todo pensamento que ele teve foi
direcionado para o seu fim adequado - mas foi uma obediência pela qual devemos ser gratos.
Obs: Docetismo deriva da palavra grega, dokesis, que significa parecer/aparecer. Essa heresia vê a
carne de Cristo como 'espiritual'. Em outras palavras, essa heresia inicial (século 2) sugere que Cristo apenas
parecia ter carne humana e, portanto, seu sofrimento e tentação também foram apenas aparentes e não reais.
Segundo essa visão, Cristo era apenas um espírito que emitia uma aparência carnal na terra.
“Por isso, quando Cristo veio ao mundo, disse: "Sacrifício e oferta não quiseste, mas um
corpo me preparaste; de holocaustos e ofertas pelo pecado não te agradaste". Então eu disse:
Aqui estou, no livro está escrito a meu respeito; vim para fazer a tua vontade, ó Deus.”
Essas palavras nos ensinam que Cristo veio para fazer a vontade de Deus. Mas quando
Cristo pronunciou essas palavras? Esta é uma pergunta difícil e talvez a resposta esteja além da
nossa capacidade de compreensão. No entanto, como havia espaço para desenvolvimento na
natureza humana de Cristo, podemos argumentar com segurança que ele não pronunciou
essas palavras como um bebê recém-nascido, pois teria de aprender a falar como qualquer
outra criança. O que sabemos é que Jesus 'cresceu em sabedoria, estatura e graça para com
Deus e os homens' (Lucas 2:52). Crescer em sabedoria e conhecimento foi algo que ocorreu na
própria experiência de Cristo e não foi, como alguns imaginaram, um crescimento aparente,
ficcional. Em vez disso, de acordo com o terceiro cântico do servo em Isaías:
“O Soberano Senhor deu-me uma língua instruída, para conhecer a palavra que sustém
o exausto. Ele me acorda manhã após manhã, desperta meu ouvido para escutar como alguém
que é ensinado. O Soberano Senhor abriu os meus ouvidos, e eu não tenho sido rebelde; eu não
me afastei. Ofereci minhas costas para aqueles que me batiam, meu rosto para aqueles que
arrancavam minha barba; não escondi a face da zombaria e da cuspida. Porque o Senhor
Soberano me ajuda, não serei constrangido. Por isso eu me opus firmemente como pederneira,
e sei que não serei envergonhado.” - Isaías 50:4-7
Quando Cristo veio ao mundo, ele confiou em seu Pai ainda no peito de sua mãe
(Salmos 22: 9). Sem dúvida, dos lábios de Jesus, Deus ordenou o louvor (Salmos 8: 2). Assim,
para usar a linguagem de Thomas Goodwin, 'quando pela primeira vez ele começou a
apresentar quaisquer atos de razão ... então sua vontade foi guiada para direcionar seu
objetivo e intenções a Deus como seu Pai, a partir dele mesmo como mediador’. Como um
bebê e uma criança, Jesus dirigiu suas ações, pensamentos e desejos a Deus e sua glória.
Goodwin acrescenta: ‘...assim era em Cristo quando criança, e tais princípios sagrados o
guiaram àquilo que era a vontade de Deus quanto a ele, a ser realizada por ele; e que deveria
influenciar e dirigir todas as suas ações e pensamentos. Suas ações seriam o mérito de nossa
salvação e justificação.”
Com base na terceira canção do servo em Isaías e outras passagens das Escrituras
relacionadas, chegamos à conclusão de que Jesus chegou a uma compreensão crescente de
seu chamado messiânico lendo as Escrituras. Ele teve que aprender a Bíblia assim como nós.
Claro, ele é o maior teólogo que já existiu. Sua forma de ler a Bíblia teria nos livrado de todos
os problemas que afligem os cristãos que interpretam erroneamente as passagens e trazem
suas próprias inclinações pecaminosas para o texto. No entanto, não devemos imaginar que
Cristo tinha todas as respostas quando era bebê e apenas esperou para começar seu
ministério aos trinta anos, sem fazer um trabalho árduo, mas delicioso, diariamente, em
obediência à vontade de seu Pai. Como observa Christopher Wright, o Velho Testamento
permitiu que Jesus entendesse a si mesmo. A resposta à sua identidade veio de sua Bíblia, 'as
escrituras hebraicas nas quais ele encontrou uma rica tapeçaria de figuras, pessoas
históricas, imagens proféticas e símbolos de adoração. E nesta tapeçaria, onde outros viram
apenas uma coleção fragmentada de várias figuras e esperanças, Jesus viu seu próprio rosto.
Sua Bíblia hebraica forneceu a forma de sua própria identidade.’ Claro, os requisitos de Deus
para os reis de Israel não eram diferentes para Cristo, que teria cumprido Deuteronômio 17:
18-20 de uma maneira que nenhum outro rei fez.
Nossa salvação não foi uma tarefa fácil e sem importância para Cristo, ele precisou
estudar para saber exatamente o que fazer. Embora ele nunca tenha ignorado o que precisava
saber em qualquer fase de sua vida, mesmo assim ele foi obrigado a aprender. E se Cristo teve
que aprender sobre seu chamado lendo as Escrituras e recebendo o ensino diário de seu Pai,
quanto mais necessário é que nos apliquemos diligentemente na leitura das Escrituras na
dependência de Deus para aprender como podemos andar para agradá-lo?
Em João 17: 5 Jesus ora: “E agora, Pai, glorifica-me junto a ti, com a glória que eu
tinha contigo antes que o mundo existisse.” Como ele sabia da glória que tinha junto ao Pai
antes do mundo existir?
Cristãos são aqueles que vivem pela fé no Filho de Deus que nos amou e morreu por
nós (Gl 2:20). A vida de fé é a maneira como o cristão começa e continua até o dia em que
morre e a fé então se torna visível. Mas e quanto a Cristo? Ele viveu pela fé? A resposta
simples é sim; ele é o autor e aperfeiçoador de nossa fé na medida em que é o mais alto
padrão de fé verdadeira (Hb 12: 2). Cristo foi o maior crente que já viveu. Na verdade, Cristo
tinha fé para justificação; isto é, com base em uma das muitas promessas que recebeu por ser
o fiel mediador, ele tinha fé que Deus o vindicaria. Cristo não olhou para outro para receber
justiça, mas ele olhou para seu Pai para ser justificado.
A terceira canção do servo deixa claro: “Porque o Senhor DEUS me ajuda, assim não
me confundo; por isso pus o meu rosto como um seixo, porque sei que não serei envergonhado.
Perto está o que me justifica; quem contenderá comigo? Compareçamos juntamente; quem é
meu adversário? Chegue-se para mim.” (Is 50: 8; cf. 1 Tim. 3:16; João 16: 8-11).
A fidelidade de Cristo foi exercida não só para ele, mas também para o seu povo. O
livro de Hebreus não nos deixa dúvidas sobre esse componente necessário do que significa ser
verdadeiramente humano. Frequentemente, as declarações sobre a fé de Cristo são
combinadas com as promessas feitas a ele pelo Pai. Da mesma forma, os crentes são
igualmente ordenados a confiar em Deus para receberem todas as bênçãos da salvação
prometidas aos fiéis. Hebreus 2 representa um dos testemunhos mais claros da humanidade
de Cristo encontrados em qualquer lugar da Bíblia. No versículo 13 daquele capítulo, Isaías
8:17 é aplicado a Jesus, que confia em Deus. Como o pioneiro da salvação de seu povo, Jesus
se torna o crente verdadeiro e fiel cujos irmãos também compartilham a mesma confiança e
dependência de Deus. Quaisquer que sejam as bênçãos salvadoras que os crentes recebem
de Jesus, essas bênçãos devem primeiro ser verdadeiras para o próprio Cristo, que é a fonte
da salvação eterna (Hb 5: 9). Quer seja fé (Heb. 2:13), predestinação (1 Pedro 1:20),
justificação (1 Timóteo 3:16), santificação (João 17:19) ou glorificação (João 17: 5), esses dons
são, em última análise, dados a Cristo, que então concede esses mesmos dons à sua noiva. A
ordem ou plano de salvação é, portanto, cristológico, não antropológico: centra-se em Cristo,
não em nossa experiência de salvação. Tudo o que recebemos deve vir de nossa Cabeça (ou
seja, Cristo). A razão pela qual os crentes recebem a fé como dom de Deus é a vida perfeita de
fé de Cristo ao se submeter à vontade de seu Pai e confiar em seu Pai para sustentá-lo e
recompensá-lo de acordo com os termos da aliança da redenção.
A maior graça de Cristo foi sua fé. Sua crença inabalável remediou nosso maior
pecado, a incredulidade. É teologicamente correto dizer que Jesus teve fé para sua
justificação e santificação para que nós pudéssemos ter fé para nossa justificação e
santificação.
Ao ler essas palavras, não se pode deixar de rejeitar a ideia de que as orações de Cristo
eram apenas um show, uma encenação. O pleno gozo do amor divino sem a necessidade da fé
só se tornaram reais para Cristo após a sua ressurreição e ascensão para a destra do Pai. Mas
antes disso, sua angústia não era apenas externa (vinda de forças opostas), mas também
interna, pelo que ele precisava orar a seu Pai com ‘clamor e lágrimas'.
Assim como o dom da fé está enraizado na própria fé de Cristo durante seu ministério
terreno, também podemos sugerir que os crentes orem porque Cristo era o homem de oração.
Ninguém orou como Cristo. Seus afetos, pensamentos, pedidos, fervor e reverência eram
todos partes constituintes de sua vida de oração, e não há dúvida de que quando ele orou
todo o céu permaneceu em silêncio enquanto o Pai se deleitava em ouvir os clamores de seu
amado Filho. No entanto, se concebermos a Cristo da maneira que os teólogos luteranos e
católicos romanos o fizeram, parece-me que não podemos entender passagens como Hebreus
2:13 e 5: 7-8. Muito mais poderia e deveria ser dito sobre a vida de fé e oração de Cristo (um
ato de fé), mas ainda há um aspecto importante da Cristologia Reformada que permanece
para nos dar uma imagem um tanto completa da pessoa de Cristo, a saber, este: com que
poder Cristo realizou milagres, resistiu à tentação, orou ao seu Pai, viveu pela fé e se
ofereceu na cruz? A resposta pode surpreender alguns, mas as Escrituras são claras.
Suponha que argumentemos que a natureza divina de Cristo agiu por meio da
natureza humana, capacitando Cristo a realizar milagres. Que espaço, então, deixamos para o
Espírito Santo na vida de Cristo? Esta é uma questão importante, embora talvez passe
despercebida por muitos cristãos. Em minha opinião, a teologia de Cirilo e a tradição
alexandrina não poderiam dar nenhum papel significativo ao Espírito Santo na vida terrena de
Cristo. Na verdade, não acho que os católicos romanos ou os luteranos possam dar uma
explicação adequada de como o Espírito Santo se relaciona com Cristo em seu duplo estado de
humilhação e exaltação.
Cirilo argumentou que o Logos era o único agente efetivo trabalhando na natureza
humana. Essa relação assimétrica entre as duas naturezas torna supérflua a obra do Espírito
sobre Cristo. Além disso, se os luteranos estão corretos que há uma comunicação unidirecional
de atributos (do divino para o humano), então por que as Escrituras dão um papel tão
significativo ao Espírito Santo em relação ao ministério de Cristo na terra (e no céu)? Como
Bavinck observou, 'embora a cristologia luterana ainda fale de dons, na verdade não sabe o
que fazer com eles e não tem mais lugar nem mesmo para a unção de Cristo com o Espírito
Santo.’ Da mesma forma, o teólogo puritano Isaac Ambrose pergunta, se a versão luterana da
comunicação de atributos é verdadeira, ‘qual a utilidade dos dons do Espírito que Cristo
recebeu sem medida?’
Owen defende uma visão não convencional que tem sido ferozmente resistida por
muitos teólogos, provavelmente porque alguns usaram uma linguagem semelhante a dele,
mas que de alguma forma enfraquece a divindade de Jesus. Para a maioria dos cristãos, Jesus
realizou seus milagres porque sua natureza divina operou em e por meio de sua natureza
humana. No entanto, esse raciocínio é completamente equivocado e falha em explicar a
evidência bíblica explícita a respeito do ministério terreno de Cristo.
Sinclair Ferguson observa corretamente que o profeta Isaías via o Messias 'como o
Homem do Espírito por excelência’ (1s. 11: 1, 42: 1; 61: 1). Na verdade, o termo 'Cristo', que se
tornou um nome próprio para Jesus, significa 'ungido'. Foi por meio dessa unção do Espírito
que Cristo desempenhou seu ofício de mediador. Assim, o Espírito Santo foi eficiência divina
imediata (isto é, direta) que possibilitou a encarnação. O Espírito desceu sobre a virgem Maria
e a capacitou milagrosamente a conceber o menino Jesus (Lc 1:31, 35). A propósito, por causa
da doutrina da comunicação de propriedades, é inteiramente apropriado dizer com Cirilo - e
Nestório, a propósito - que Maria é a mãe de Deus (theotokos). Chamar Maria de 'mãe de
Deus' nunca foi intencionado por ninguém a sugerir que Deus tinha uma origem, nem se trata
de exaltar Maria, mas sim de defender a unidade daquele que foi concebido e nascido de
Maria de acordo com sua natureza humana. Da mesma forma, poderíamos falar de Tiago
como irmão de Deus.
A concepção de Jesus é uma nova criação e este ato tem muitos paralelos com nosso
próprio novo nascimento; pois, se alguém está em Cristo, ele também é uma nova criação (2
Coríntios 5:17). O Espírito atuou na humanidade de Maria para produzir uma verdadeira
natureza humana que o Filho de Deus fez subsistir consigo mesmo, para que o Filho seja
agora e para sempre em sua identidade o Deus-homem. Esta obra do Espírito Santo foi
necessária para que a natureza humana de Jesus pudesse ser derivada de Maria sem qualquer
mancha de pecado, o que teria sido impossível se o Filho tivesse assumido uma natureza
humana que fosse produto de José e Maria. O Espírito não apenas formou a natureza humana
do homem Jesus, mas também permaneceu nele e sobre ele durante sua infância, onde, como
observamos acima, Jesus estaria lendo as escrituras do Antigo Testamento e meditando e
orando a seu Pai no céu (Lucas 2:49).
O próximo evento importante na vida de Jesus foi seu batismo, por João Batista, no rio
Jordão. No início de seu ministério público, Jesus foi batizado (e ordenado) da maneira mais
notável. Além do fato de que um homem pecador batizou o Senhor da Glória, somos
informados de que, quando Cristo saiu da água, o Espírito Santo desceu sobre ele como uma
pomba. Em voz audível, o Pai se dirigiu a Jesus: “Este é o meu filho amado, em quem me
comprazo.” (Marcos 1:10). O Pai não fez essa afirmação por Jesus ter sido obediente naquele
dia em específico, mas porque Jesus foi obediente desde o peito de sua mãe, e por isso seu Pai
se deleitou nele. Neste ponto, Jesus recebeu o Espírito sem medida (João 3:34) e assim foi
constituído como o Messias publicamente. O Espírito certamente estava presente com Jesus
desde o momento da concepção, mas em seu batismo ele recebeu o Espírito em uma medida
ainda maior do que antes.
Tendo sido batizado, Jesus foi conduzido pelo Espírito Santo ao deserto para ser
tentado por quarenta dias e quarenta noites (Marcos 1:12). Em sua guerra santa contra o
diabo, Cristo, confiando no Espírito, citou passagens das Escrituras que sem dúvida ele
aprendeu durante sua vida. O Espírito que o 'impeliu' à tentação, também o apoiou durante
essa tentação. Lucas relata que, após sua tentação, Jesus voltou no poder do Espírito para a
Galiléia (Lucas 4:14). Lucas então relata a rejeição de Jesus em Nazaré. É significativo que o
sermão que levou à tentativa de assassinato de Jesus foi de Isaías 61: 1-2, um texto que Jesus
usou para afirmar que o Espírito do Senhor estava sobre ele (Lucas 4:18). Ou seja, a pregação
de Cristo sempre foi no poder e na demonstração do Espírito. Ele foi o melhor pregador que já
viveu e o Espírito sobre ele convenceu e converteu seus ouvintes a tal ponto que as pessoas o
odiavam ou o seguiam. Não foram apenas as palavras de Jesus que dividiram as pessoas, mas o
poder do Espírito que acompanhou suas palavras fez muitos testemunharem “Ninguém nunca
falou como este homem!" (João 7:46).
Todas as bençãos que possuímos nos foram dadas de segunda mão. Todas elas já
foram possuídas por Cristo, porque ele é o homem do Espírito por excelência. Pela
capacitação do Espírito, Cristo realizou sua obra como Salvador e foi assim justificado,
adotado, santificado e glorificado para que nós, por nossa vez, também recebêssemos essas
bênçãos.
Jesus não apenas pregou - embora tenha sido esse o motivo de sua vinda (Marcos
1:38) - mas também realizou muitos milagres poderosos, que eram evidências visíveis de que
sua autoridade vinha de Deus (ver Mateus 9: 1-8). A realização dos milagres de Cristo também
é atribuída ao Espírito Santo: “Mas, se é pelo Espírito de Deus que expulso os demônios, então
o reino de Deus veio sobre vocês” (Mt 12.28; cf. Atos 10:38) Cristo realizou milagres porque o
Espírito Santo o capacitou. Mas às vezes Cristo não podia realizar obras poderosas (Marcos 6:
5) porque o Espírito não o capacitava. O poder de Deus é maior do que o pecado do homem,
mas, mesmo assim, em Marcos 6: 5, temos um testemunho notável do fato de que em sua
natureza humana Jesus era inteiramente dependente do Espírito Santo para realizar milagres.
Como sua morte, a ressurreição de Cristo também é atribuída ao Espírito (Rom. 8:11)
quando ele é declarado 'pelo Espírito de santidade ... como o Filho de Deus' (Rom. 1: 4). De
acordo com a evidência bíblica, o Espírito Santo era o companheiro inseparável de Cristo
durante seu ministério terreno. Devemos, portanto, ter uma cristologia que dê sentido à
abundância de passagens que falam da obra do Espírito Santo em Jesus.
A importância disso não pode ser exagerada. A obediência de Cristo em nosso lugar
precisava ser obediência real. Ele não “trapaceou” ao confiar em sua própria natureza divina
enquanto agia como o segundo Adão. Em vez disso, ao receber e depender do Espírito Santo,
Cristo era totalmente dependente de seu Pai (João 6:38). A tradução de ouch harpagmon
hegesato (Filipenses 2: 6) como 'ele não considerava sua igualdade com Deus como algo para
explorar ou tirar proveito' se encaixa perfeitamente com este modelo. Tal compreensão da
vida de Cristo serve apenas para aumentar nosso apreço pelo que ele fez como o segundo
Adão. Herman Bavinck resume as preocupações teológicas básicas apresentadas a respeito da
relação íntima entre o Espírito e Cristo: "é inconcebível que o homem, criado a imagem de
Deus, possa, mesmo por um momento, viver sem a habitação do Santo Espírito ... Se os
humanos em geral não podem ter comunhão com Deus exceto pelo Espírito Santo, então isso
se aplica ainda mais poderosamente à natureza humana de Cristo.”
Voltando à relação das duas naturezas de Cristo, podemos dizer que a natureza divina
de Cristo não operou imediatamente sobre sua natureza humana, mas mediatamente por
meio do Espírito Santo. O Espírito Santo foi quem operou imediatamente em Cristo. Cristo foi
obediente a seu Pai em todos os pontos; mas foi o Espírito que o capacitou nessa obediência.
Assim, no ministério terreno de Cristo, ele estava sujeito à vontade do Pai e, portanto, ao
Espírito Santo. Então, em seu estado de exaltação, ele se tornou Senhor do Espírito (2 Co 3:17).
O Espírito inclusive recebe seu nome, agora, como Espírito de Cristo (Rom. 8: 9; 1 Pedro 1:11).
Veremos isso com mais detalhes ao considerarmos a obra de Cristo em seu triplo ofício como
profeta, sacerdote e rei da igreja que ele comprou com seu próprio sangue.
Como profeta, Cristo não apenas prediz e diz a verdade, mas ele é a verdade (João 14:
6). É isso que o distingue como o profeta de Deus por excelência. Nenhum homem jamais falou
como Cristo (João 7:46), pois Cristo falou com autoridade (Lucas 4:32). Como profeta da Igreja
de Deus, Cristo revela ao seu povo, “pela sua Palavra e pelo seu Espírito, a vontade de Deus
para a nossa salvação” (Breve Catecismo de Westminster). A primeira e fundamental coisa que
precisamos entender sobre o ofício de profeta de Cristo é que ele torna a teologia possível; ele
é a fonte de todo o conhecimento. Em Cristo está o repositório de toda a verdade; ele é o
centro de toda revelação divina. Ele torna a teologia possível porque ele não é apenas
humano, mas divino. Porque em Cristo estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do
conhecimento (Colossenses 2: 3), devemos distinguir entre a teologia que Cristo possui e a
teologia que nós possuímos. O conhecimento e a compreensão de Cristo sobre a mente de
Deus excedem em muito o de qualquer outra pessoa que já viveu ou viverá. Não podemos
compreender a mente de Deus e da mesma forma não podemos compreender totalmente a
teologia de Cristo. Em outras palavras, Cristo tem conhecimento a respeito de Deus que está
além do conhecimento de todos os crentes combinados, mesmo os crentes na glória. Por ser o
Deus-homem, Cristo permite que a revelação seja comunicada de Deus à humanidade. Como
profeta, ele medeia a revelação de Deus ao homem em ambos os estados, até a eternidade.
Jesus Cristo tinha fé para justificação, santidade para santificação, um nome para
adoção e um corpo para glorificação, tudo no contexto de seus ofícios como profeta,
sacerdote e rei.
No Antigo Testamento, o Filho divino revela sua vontade por sua natureza divina, pois
ele ainda não estava encarnado. Mas na era do evangelho, depois de assumir a carne humana,
ele nos ensina como profeta enviado por Deus. Podemos ser tentados a pensar que a
capacidade de Cristo de revelar a vontade de Deus vem de seu privilégio único de ser uma
pessoa com duas naturezas, com o Logos eterno capacitando Cristo a revelar a vontade de
Deus à igreja. Isso não é inteiramente correto. Em sua natureza divina, Cristo é onisciente. Mas
se fosse verdade que a natureza divina de Cristo foi o meio imediato pelo qual ele revelou a
verdade à igreja, por que então ele desconhecia certos fatos durante sua vida (como já
observamos antes)? Cristo revelou a vontade de Deus de acordo com sua natureza humana,
não sua natureza divina. Embora os ofícios sejam pessoais, isto é, exercidos por Cristo a
pessoa, não por uma natureza abstraída, não obstante, a natureza humana de Cristo está
envolvida em todos os seus três ofícios de profeta, sacerdote e rei.
Para exercer seu ofício de profeta, Cristo recebeu os dons e graças necessárias para
cumprir seu dever neste ofício. Ele tinha habilidades naturais e inatas, que todos os homens
possuem. Além disso, ele estava livre do pecado. Sua mente estava, por assim dizer, a todo
vapor. Mas, mais do que isso, Cristo tinha, como observamos acima, a dotação peculiar do
Espírito Santo. Além disso, embora não possamos começar a compreender que tipo de mente
é essa, somos gratos por ele ter nos falado a vontade de Deus para nossa salvação. Cristo
certamente aprendeu lendo as Escrituras, mas ele também teve o privilégio de receber por
meio do Espírito Santo comunicação direta de Deus a respeito de seu ofício como mediador.
Antes que Cristo pudesse revelar à igreja novas verdades que ainda não foram dadas
nas Escrituras, Deus teve que revelá-las a ele primeiro. Claro, se Deus não revelou certas
verdades, como o tempo da segunda vinda, então Cristo não conhecia essas verdades, embora
apenas por um breve período (veja Mat. 24:36). Após sua ressurreição, a entrada de Cristo na
glória ocorreu por meio de sua ascensão ao céu, onde ele estava sentado à direita do Pai. Na
sua entronização, Cristo recebeu o Espírito Santo na medida mais plena possível de que a
natureza humana é capaz. Não se pode deixar de pensar nas palavras do Salmo 45: 6-7, que
são uma imagem da entronização de Cristo.
“O teu trono, ó Deus, é para todo o sempre; cetro de justiça é o cetro do teu reino. O
senhor, ó rei, ama a justiça e odeia a iniquidade; por isso, Deus, o seu Deus, o ungiu com o óleo
de alegria, como a nenhum dos seus companheiros.” Salmos 45:6,7
Isso se relaciona claramente com o ofício real de Cristo, mas após uma reflexão mais
aprofundada, percebe-se que a entronização de Cristo como o rei dos reis tem ramificações
importantes para seus ofícios de profeta e sacerdote. Em termos de seu ofício de profeta, visto
que Cristo recebeu o Espírito em medida abundante, ele agora possui em sua natureza
humana um conhecimento abrangente (embora não infinito) dos decretos e propósitos de
Deus. Em outras palavras, Cristo sempre sabe o que precisa saber. Em sua humanidade
glorificada, seu conhecimento é tão abrangente quanto o decreto de Deus. Porque Cristo
retém sua natureza humana no céu, ele pode crescer em conhecimento por toda a eternidade.
O ofício de Cristo como sacerdote tem sido historicamente o mais debatido de todos
os seus três ofícios. A teologia liberal enfatizou seu ofício de profeta às custas de sacerdote e
rei. Mas teólogos reformados históricos sempre reconheceram a indispensabilidade de todos
os três ofícios, com uma ênfase peculiar em seu ofício de sacerdote. Os debates sobre a
natureza da expiação (a morte de Cristo) são debates sobre o ofício de Cristo como sacerdote.
Mas Cristo não é apenas um sacerdote por causa de sua expiação. Como o Breve Catecismo de
Westminster deixa claro, “o sacerdócio de Cristo consiste em se oferecer uma vez em
sacrifício para satisfazer a justiça divina ... e em fazer intercessão contínua por nós”. Cristo
exerce seu ofício de sacerdote em sua oblação (morte sacrificial) e sua intercessão. Sua
intercessão é uma grande parte de seu trabalho como Salvador e, no entanto, em minha
própria experiência, os cristãos parecem mais interessados na morte de Cristo do que em sua
intercessão. Na verdade, os dois estão unidos; sua oblação precede sua intercessão, e sua
intercessão pressupõe sua oblação. A aplicação da salvação depende da intercessão de Cristo.
Em outras palavras, se Cristo não ascende ao céu e intercede pelos santos, nossa salvação é
incompleta e, portanto, não somos salvos de forma alguma. Além disso, a intercessão de
Cristo no céu é uma oblação contínua de si mesmo, na medida em que ele continuamente
apresenta sua eficácia ou integridade em nossa defesa. Cristo intercede continuamente por
nós junto ao Pai (Hb 7:25), que se deleita em ouvir os pedidos de seu Filho em nosso favor.
Cristo não está mudando a vontade do Pai; mas, antes, da maneira que Deus planejou a
salvação, o Pai ordenou que Cristo atue como mediador para que Ele derrame bênçãos sobre a
igreja por meio de seu Filho e por amor de seu Filho.
Ao discutir o ofício de Cristo como sacerdote, somos confrontados mais uma vez com a
importância de compreender sua pessoa corretamente. Para ser sacerdote, Cristo deve ser
homem. Sua humanidade significa que ele não só foi capaz de se oferecer na cruz - um
verdadeiro substituto humano em nosso lugar -, mas também foi capaz de simpatizar com seu
povo em suas fraquezas (Hb 4:15). Por outro lado, sua divindade significava que ele poderia
morrer uma morte meritória na cruz que salvaria não apenas um pecador, em cujo lugar ele
estava, mas muitos pecadores (veja Rom. 5). O valor da pessoa de Cristo deu valor infinito à
sua obra. Em outras palavras, sua morte não foi insuficiente para salvar inúmeras pessoas
porque, como já observamos, quem morreu na cruz foi Deus (Atos 20:28).
Comumente pensamos no ofício de sacerdote de Cristo como consistindo em sua
morte e intercessão. No entanto, há também outro aspecto importante de seu sacerdócio que
não pode passar despercebido, a saber, sua vida de obediência da manjedoura ao túmulo.
Como o segundo Adão, Cristo diferia dos sacerdotes do Antigo Testamento na medida em que
eles apenas ofereciam sacrifícios pelas pessoas, mas eles próprios não obedeciam e não
podiam obedecer à lei pelas pessoas. O sacerdócio do Antigo Testamento tratava apenas da
violação da lei; mas a justiça que Deus requer só pode ser cumprida por um sacerdote
perfeitamente obediente.
Precisamos estar cientes de que Cristo foi nomeado sacerdote. Mas ele não era um
sacerdote no estilo de Arão. Ele pertencia à ordem de Melquisedeque (Heb. 5:6, 160), o rei-
sacerdote mencionado em Gênesis 14: 18-20 e Salmos 110: 4. A ordem de Melquisedeque é
eterna e imutável, em comparação com a ordem Araônica em extinção. Em Hebreus 7:26,
somos informados de que Cristo era um sacerdote 'santo, inocente, imaculado, separado dos
pecadores e exaltado acima dos céus'. Assim, ele se ofereceu, não por si mesmo, mas pelos
pecados de seu povo. Quase tudo o que ele fez foi como uma “pessoa comum”. Como uma
pessoa comum, Cristo é o representante de todas as pessoas que o Pai lhe dá (João 6:39). Em
contraste, em sua intercessão, ele intercede não como uma pessoa comum, mas em nosso
nome. No Antigo Testamento, o sumo sacerdote entrava no santo dos santos não para si
mesmo, mas para o povo, o que explica por que ele tinha os nomes das doze tribos sobre os
ombros (Êxodo 28:21). A morte de Cristo foi, portanto, uma morte substitutiva; ele morreu
com 'as doze tribos' (isto é, seu povo eleito) em seus ombros e especialmente em seu coração
(S. de S. 8: 6). Mais, sua morte foi uma morte vitoriosa. Ao morrer, ele destruiu o diabo, que
tinha o poder da morte, e assim livrou seu povo do medo da morte (Hb 2: 14-15).
A justiça de Cristo, por causa da dignidade de sua Pessoa, agrada a Deus mais do que
nosso pecado o desagrada.
Depois de ascender ao céu, Cristo derramou seu Espírito sobre a igreja (Atos 2:33;
Efésios 4: 8). Cristo e o Espírito compartilham uma unidade de propósito e vontade. Assim, o
Espírito convence os crentes do amor de Cristo por eles. O Espírito ora em nós porque Cristo
ora por nós (Rom. 8: 26-7); o Espírito é um intercessor na terra porque Cristo é um intercessor
no céu. Cristo não vive mais pela fé e esperança; tudo o que resta para ele agora é viver
somente pelo amor (1 Coríntios 13:13), e o amor de Cristo por sua igreja é intensificado no
céu. Como vimos acima, ao entrar no céu, Cristo recebeu o Espírito Santo na medida mais
plena de que um ser humano é capaz. Parte do fruto do Espírito é o amor; na verdade, ele é
listado primeiro em ordem, o que reflete sua prioridade sobre outras graças. Cristo continua a
amar seu povo para que possa permanecer no amor de seu Pai (João 10: 15-18; 15:10). A
qualidade do amor e da compaixão de Cristo no céu é maior do que a de todos os corações dos
homens juntos. Na verdade, como Thomas Goodwin afirmou eloquentemente: “se houvesse
mundos infinitos feitos de criaturas que amam, eles não teriam tanto amor neles como havia
no coração daquele homem Cristo Jesus." O amor de Deus em sua natureza divina excede o
amor que Cristo tem em sua natureza humana, visto que o finito não pode conter o infinito. No
entanto, Goodwin nos garante que há amor e compaixão mais do que suficientes no coração
humano de Cristo para satisfazer sua noiva. Não podemos nem mesmo começar a
compreender o quão compassivo ele é como nosso Sumo Sacerdote; só podemos ter certeza
de que ele é e crer nessa verdade de acordo com nossa medida de fé (Rom. 12: 3).
De acordo com sua natureza humana, Cristo ama seu povo ainda mais agora no Céu
do que quando estava na Terra?
No céu, a execução dos ofícios de Cristo é intensificada. Como profeta, ele é cheio de
sabedoria e conhecimento; como sacerdote, ele derrama graça e misericórdia sobre sua igreja;
e como rei, ele recebe poder e domínio. Isso significa que Cristo é mais compassivo agora no
céu do que na terra. Em outras palavras, se Cristo foi misericordioso com os pecadores durante
seu ministério na terra, ele agora é mais, não menos, misericordioso com os pecadores. Mais
do que isso, a encarnação acrescentou uma nova forma de Deus ser misericordioso. Porque
Deus se tornou carne, uma compaixão experimental é obtida. A natureza divina não é capaz de
tentação. Cristo, agora no céu, pode lembrar-se da sua própria condição no mundo, de
sofrimentos e tentações. Ele se lembra no céu da dificuldade de sua vida na terra; ele se
lembra da força de suas tentações; e por isso ele é capaz de simpatizar com seu povo de uma
forma que teria sido impossível se a encarnação não tivesse acontecido. É realmente notável
sugerir que existe uma nova maneira de Deus ser compassivo e misericordioso, mas é verdade.
Consequentemente, não se pode exagerar a importância de uma compreensão adequada da
pessoa de Cristo para a apreciação de sua obra, tanto na terra como no céu.
Quando falamos de Cristo como rei, não estamos falando dele apenas em sua natureza
divina, mas, de acordo com a ênfase acima, estamos falando do Filho como o Deus-homem.
Claro, com relação à sua natureza divina, o Filho possui domínio e majestade como um
atributo essencial. O Deus triúno é rei. A autoridade de Deus é autoridade absoluta e não pode
ser adicionada ou diminuída de nenhuma forma. Mas não é isso que temos em vista quando
discutimos a realeza de Cristo. Cristo é rei em referência ao seu papel mediador. E por causa
disso, há um sentido em que o reinado de Cristo passa por mudanças, especialmente em
termos de seus dois estados de humilhação e exaltação.
No Salmo 110, no entanto, Cristo está sentado à direita do pai. Essa entronização é a
autoridade mais alta possível que pode ser dada a qualquer homem (Mt 28:18). Representa
poder, honra e favor. Parece haver algumas diferenças entre os dois Salmos que podem refletir
a natureza mutante do reinado de Cristo. No Salmo 2: 2, os 'governantes juntos deliberam
contra o Senhor e contra o seu ungido', ao passo que no Salmo 110: 2 Cristo governa no meio
dos seus inimigos. No Salmo 2: 8, Cristo pede pelas nações como sua herança, e no Salmo 110
Deus usa o governo de Cristo para lutar por seu Filho. Os governantes e as nações foram
convocados a se submeter ao Filho (Salmos 2: 10-12), mas não o fizeram e o resultado colérico
é destacado no Salmo 110: 5-6.
Por causa de sua obediência até a morte na cruz, o Pai exalta seu Filho (Fp 2: 9-11). O
reino do Filho é sua recompensa; é algo dado a ele. Ele o recebeu não por usurpação, mas por
decreto e dom de seu Pai (João 5:22; Atos 2:36; 10:42). Por essa razão, o reino de Cristo é
temporal (ou seja, um reino com limite de tempo), onde o Senhor Jesus dá à sua noiva dons e
derrota seus inimigos pelo poder da sua ressurreição.
Para conceder este reino a Cristo, Deus teve que fazer nove coisas:
1. Preparar um corpo para Cristo (Hb 10: 5) para que ele pudesse ser verdadeiramente
humano e representasse seu povo.
2. Ungir a Cristo com o Espírito Santo acima de qualquer medida (João 3:34) para
fornecer a ele os dons necessários para ser um rei piedoso (Isaías 11: 2).
4. Dar a ele um cetro de justiça, colocar uma espada em sua boca e habilitá-lo (como
um Rei Profeta) a revelar a vontade de Deus à humanidade.
6. Conceder a Cristo a alma das pessoas, não apenas dos judeus, mas também dos
gentios (Salmos 2: 8; João 17: 6).
7. Dar a ele poder para regular a igreja de acordo com a lei divina (Mt 5; Colossenses
2:14).
Quando Cristo finalmente subjugar todos os seus inimigos e aplicar a salvação a todo o
seu povo eleito por meio de seu Espírito (o Espírito de Cristo, Rom. 8: 9), ele entregará o reino
a seu Pai (1Co 15: 24- 5). Há algumas evidências de que seus ofícios mediadores de profeta,
sacerdote e rei chegarão ao fim na consumação. Muitos teólogos sólidos também afirmaram
que este é o caso. No entanto, acredito que alguns aspectos dos ofícios de Cristo
permanecerão na eternidade para que ele ainda seja profeta, sacerdote e rei. Mas como? Um
olhar para a glória de Cristo nos ajudará a entender esse dilema.
O nosso Mediador foi chamado Cristo, porque foi acima de toda a medida ungido
com o Espírito Santo; e assim separado e plenamente revestido com toda a autoridade e
poder para exercer as funções de profeta, sacerdote e rei da sua igreja, tanto no estado da
sua humilhação, como no da sua exaltação.
- Catecismo Maior de
Westminster
O triplo ofício de Cristo (profeta, sacerdote e rei) está sob o escrutínio dos escritores
do evangelho durante sua paixão. Na verdade, todos os três ofícios são blasfemados. Primeiro,
seu ofício de profeta é ridicularizado: “Então, cuspiram em seu rosto e o bateram. E alguns o
esbofetearam, dizendo: ‘Profetiza-nos, ó Cristo! Quem é o que te atingiu?’"(Mat. 26: 67-8). Ele
pode ou não ter sabido na época, mas ele certamente o sabe agora e no Dia do Juízo ele lhes
dirá, a menos que, é claro, eles se arrependam por suas ações hediondas.
A GLÓRIA DE CRISTO
A glória de Cristo deve ser nosso principal desejo. Santificar, louvar e, assim, glorificar
o nome de Cristo é a maior vocação espiritual do cristão. A coisa mais importante que um
cristão pode fazer é adorar a Deus no Dia do Senhor e glorificar o seu nome. Mas podemos
realmente 'trazer glória' a Cristo? Em certo sentido, não; em outro sentido, sim; e, em um
terceiro sentido, meramente contemplamos sua glória.
Em termos da natureza divina de Cristo, ele tem uma glória que não pode ser
adicionada ou retirada. A glória de Deus é um aspecto essencial de sua natureza. Ele é
infinitamente glorioso e nenhuma criatura pode compreender totalmente essa glória, muito
menos diminuí-la. Podemos chamar isso de glória essencial de Cristo. Existe, no entanto, uma
segunda glória que pertence apenas ao Filho, e não ao Pai ou ao Espírito, a saber, a glória da
encarnação. Esta é a glória de Cristo como o Deus-homem, que podemos chamar de glória
pessoal. Como Deus-homem, Jesus é a 'imagem do Deus invisível' (Colossenses 1:15); 'Ele é o
resplendor da glória de Deus e expressão exata do seu Ser’ (Hb 1: 3). João também fala da
glória pessoal de Cristo, que ele viu, 'glória como do Filho unigênito do Pai' (João 1:14).
A palavra glória é uma palavra usada para descrever a manifestação visível de Deus
(Êxodo 33:22). Assim, no Templo, onde a presença de Deus se manifesta de maneira peculiar,
seu povo clama 'Glória' (Salmo 29: 9). Cristo substitui o Templo construído por mãos humanas
por seu corpo para que ele manifeste a glória de Deus de uma forma que nenhum edifício ou
outra pessoa possam fazê-lo (João 2: 19-21). O corpo (templo) de Cristo foi 'destruído', mas no
terceiro dia ele ressuscitou em poder e glória (Rom. 1: 4; 1 Cor. 15: 35-49).
Antes de Cristo ressuscitar, a glória de sua pessoa estava até certo ponto velada.
Afinal, Isaías 53: 2 afirma que Cristo 'não tinha forma nem majestade para que olhássemos
para ele, e nenhuma beleza para que o desejássemos'. Na verdade, os homens escondiam o
rosto do Filho e o desprezavam (Is 53: 3). Estas palavras têm claramente em vista o estado de
humilhação de Cristo. No entanto, nos relatos da transfiguração de Cristo (Mt 17), temos um
vislumbre da glória pessoal, que geralmente era velada durante seu ministério terreno. Tiago,
Pedro e João olharam especificamente para a glória de Cristo, que os santos ressuscitados
verão no céu. Naquele momento houve uma breve revelação da glória divina e celestial de
Cristo, que todos os santos na terra desejam, pois vivem pela fé e não pela vista. A questão é
que a transfiguração foi um prelúdio da gloriosa transformação corporal que ocorreria na
ressurreição de Cristo, especialmente em sua entronização. Cristo, agora assunto aos céus e
entronizado, será visto por seus santos face a face; estes contemplarão o esplendor da sua
glória divina brilhando através da sua humanidade.
Esta glória, então, pertence à pessoa de Cristo como o Deus-homem. Sua encarnação,
à parte de sua mediação em favor dos pecadores, significava que ele possuía uma glória que
desejamos que fosse exclusivamente dele. Este parece ser um momento apropriado para falar
sobre um assunto muito disputado na igreja hoje, ou seja, as imagens de Cristo. Assumindo
que a aparência de Cristo mudou quando ele entrou em seu estado de exaltação, o que eu
acho indiscutível (Lucas 24:31), as imagens de Cristo são um reflexo dele em seu estado de
humilhação ou de exaltação? Certamente desejamos contemplar o Jesus ressuscitado. Mas
devemos fazer a pergunta: Podemos algum dia capturar a glória do Deus-homem exaltado em
uma imagem? Afinal, sua glória deve necessariamente transcender uma imagem, porque sua
glória é imaterial.
Quando Ezequiel teve uma visão do trono celestial e viu a semelhança de um homem
sobre ele, ele só pôde descrever o que viu como algo extremamente distante de sua
realidade:
“Por cima do firmamento que estava sobre a cabeça dos seres viventes, havia algo
semelhante a um trono, como uma safira; e, sobre essa espécie de trono, estava sentada
uma figura semelhante a um ser humano. Vi que essa figura era como metal brilhante, como
um fogo ao redor dela, desde a sua cintura e daí para cima; e desde a sua cintura e daí para
baixo, vi que essa figura era como fogo e havia um resplendor ao redor dela. Como o aspecto
do arco que aparece nas nuvens em dia de chuva, assim era o resplendor ao redor. Esta era a
aparência da glória do Senhor. Ao ver isto, caí com o rosto em terra e ouvi a voz de quem
falava.” -Ezequiel 1:26-28
Sua mediação é apenas por um tempo. Isso explica como, no final, Cristo pode
entregar o reino ao Pai (1Co 15:24). A oração sacerdotal de Cristo em João 17 - uma imagem
de sua intercessão agora no céu - mostra Cristo pedindo glória para que possa glorificar a seu
Pai (17: 1-2). O versículo 2 fala da 'autoridade de Cristo sobre toda a carne', que ele recebeu de
seu Pai. A autoridade que Cristo recebeu, por sua morte e ressurreição (ver Mt 28:18), permite
que ele conceda vida eterna a seu povo. No versículo 4, Cristo afirma ter glorificado seu Pai ao
fazer a obra que o Pai lhe deu para fazer. Cristo também tem em vista aqui sua morte
iminente. A glória que Cristo pede na presença de Deus sem dúvida inclui sua humanidade
glorificada, mas também inclui a recompensa que é devida a ele por sua obediência até a
morte na cruz, ou seja, a salvação da igreja (João 17: 6)
Como a glória pessoal de Cristo transcende a glória de sua mediação, quando ele
entregar o reino a seu Pai, ele reterá essa glória pessoal. Assim, embora seus ofícios de
profeta, sacerdote e rei terminem na consumação porque a salvação de sua noiva e a
destruição de seus inimigos estarão completas, sua glória como Mediador permanece. De fato,
sua glória pessoal como Deus-homem significa que ele governará seu reino na era por vir (Hb
2: 5), retendo assim seu reinado. Como argumentado acima, Cristo revelará a mente de Deus
aos santos glorificados no céu, retendo assim seu ofício profético. Por último, Apocalipse 22: 2
indica que a 'árvore da vida no céu, que é para a cura das nações', é uma figura da obra
redentora realizada de Cristo e, assim, o ofício sacerdotal de Cristo será lembrado, embora sua
oblação e a intercessão não sejam mais necessárias. Portanto, podemos dizer que a atividade
salvadora de Cristo em seus três ofícios termina na consumação. Contudo, isso não significa
que ele não é mais profeta, sacerdote e rei, porque sua pessoa como Deus-homem permanece
para todo o sempre. Isso quer dizer que o princípio expresso no ofício continua a exercer uma
influência permanente no céu. É a pessoa de Cristo que os cristãos verão na glória, e essa
esperança gloriosa nos leva à nossa consideração final: a visão beatífica.
A VISÃO BEATÍFICA
Contemplar Deus em Cristo é contemplar sua glória; e a visão desta glória é algo que
os santos na terra devem esperar pacientemente enquanto viverem pela fé no Filho de Deus
que os amou e se entregou por eles. Somente em Cristo temos a mais plena e melhor visão da
glória de Deus. Existem duas maneiras de contemplar a glória de Deus na face de Jesus
Cristo: pela fé e pela vista. Neste mundo, os cristãos desejam ver Cristo face a face. É por isso
que ansiamos pelo céu. Mas neste mundo as ovelhas de Cristo vivem pela fé, ao passo que no
mundo vindouro elas viverão pela vista e assim apreenderão a Cristo visivelmente.
Braceletes com as letras WWJD – what would Jesus do? (O que Jesus faria?) São
comuns nos círculos cristãos dos Estados Unidos. Isso reflete o ensino do teólogo católico
medieval, Thomas à Kempis (c. 1380-1471), cujo livro, A Imitação de Cristo, continua popular
até hoje. Ninguém pode criticar a tentativa de se conformar à imagem de Jesus (Rm 8:29).
Owen fez uma observação notável em relação a essa maneira de pensar. Ele escreveu:
“Nenhum homem se tornará semelhante a ele por mera imitação de suas ações, sem
aquela visão da sua glória... Somente essa tem poder suficiente para nos transformar em sua
imagem. Por isso, devemos fixar nossos pensamentos em Jesus, tanto em sua pessoa quanto
em sua obra.”
Seria melhor perguntarmos: 'O que Jesus fez?! para motivar a nossa obediência a ele;
mas faremos ainda melhor se meditarmos sobre sua pessoa também.
Como vivemos pela fé neste mundo, devemos nos perguntar se contemplamos a glória
da pessoa e obra de Cristo. Na verdade, nosso crescimento na graça pode ser discernido
respondendo a essa pergunta. Um verdadeiro cristão é aquele em cujo coração Deus brilhou 'a
luz do conhecimento da glória de Deus na face de Jesus Cristo' (2 Coríntios 4: 6). Somente em
Cristo resplandece a glória do Deus invisível. Nossa fé é dirigida ao Cristo crucificado,
ressuscitado e assunto ao céu. A fé em Cristo é a fonte de nossa obediência evangélica, pois os
justos não apenas são justificados pela fé, mas vivem pela fé (Rom. 1:17). Na verdade, o
melhor privilégio nesta vida é contemplar a glória de Cristo pela fé. Em outras palavras,
somente aqueles que contemplam a Cristo pela fé neste mundo terão o privilégio de
contemplá-lo pela vista no céu.
De acordo com o argumento básico deste livro, a maneira pela qual devemos
contemplar a glória de Deus na pessoa de Jesus Cristo nesta vida é meditando primeiro em sua
pessoa e depois meditando em sua obra. O simples fato de que o eterno Filho de Deus, que é
infinito, eterno, imutável, onipotente e onisciente (para citar alguns atributos), assumiu uma
carne finita deve nos surpreender. Sem dúvida, surpreendeu os céus e deixou em silêncio até
mesmo os anjos. Por causa da união das duas naturezas, temos acesso a Deus que de outra
forma seria impossível. Temos acesso ao conhecimento de Deus por meio do Filho de Deus.
Nosso irmão é o próprio YAHWEH. Mas não devemos apenas contemplar sua pessoa, devemos
também meditar sobre o fato de que essa pessoa é nosso profeta, sacerdote e rei. Assim,
Paulo mantém esses dois elementos (a pessoa e a obra de Cristo) em estreita conexão quando
fala de seu desejo de conhecer a Cristo Jesus e o poder de sua ressurreição para que possa
atingir a ressurreição dos mortos e, assim, contemplar Cristo (Fil. 3:10). Antes disso, porém,
Paulo fala em Filipenses 2: 5-11 sobre a pessoa e obra de Cristo na qual o Filho de Deus se
humilhou e morreu uma morte ignominiosa, apenas para ser ressuscitado para a glória. Em
outras palavras, o entendimento de Paulo da pessoa e obra de Cristo e sua conexão (mostrado
em Fp 2) o levou à atitude de desejar conhecer a Cristo que vemos em Filipenses 3. Estas são
as verdades sobre Cristo que os cristãos devem meditar ao se prepararem para desfrutar a
Deus eternamente por meio de Jesus Cristo.
Nosso desfrute celestial da pessoa de Cristo será pela vista. Essa visão é uma visão
transformadora; ela nos transforma à imagem de Cristo. Esse parece ser o significado das
palavras de João em 1 João 3: 2: “Amados, agora somos filhos de Deus, mas ainda não se
manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos
semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é.”
Esta pode parecer uma afirmação radical, mas devemos nos lembrar de que
contemplar a glória de Deus nesta vida pela fé é o meio pelo qual somos transformados à
imagem de Deus. Como Paulo escreve em 2 Coríntios 3:18: “E todos nós, com o rosto
descoberto, contemplando a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na
sua própria imagem, como pelo Senhor, que é o Espírito.”
Assim, assim como um pai é 'transformado' pela visão de seu filho desaparecido, ou
um aluno é transformado quando eles olham pela primeira vez para sua carta de aceitação
para a faculdade, os crentes serão de uma maneira muito mais transcendente total e
perfeitamente transformados pela visão da pessoa de Jesus Cristo em sua glória real. A razão
pela qual os teólogos chamam a visão de Cristo de 'beatífica' é porque ela dá perfeito
descanso e bem-aventurança àqueles que a desfrutam. Assim, no céu, haverá, de acordo com
Owen, “operações contínuas de Deus em Cristo nas almas daqueles que são glorificados.”
Se somos sustentados diariamente pela graça de Deus nesta vida, então certamente
na vida por vir experimentaremos isso em um grau ainda maior. Por esse motivo, podemos ter
certeza de que, assim como a revelação agora vem por meio de Cristo à igreja, também na
glória acontecerá o mesmo. Há continuidade no trato de Deus com seu povo entre este mundo
e o mundo vindouro, embora passemos de nosso próprio estado de humilhação para a
exaltação.
O céu tem muitas glórias, mas qual será a maior glória que os crentes verão?
Veremos algo mais glorioso do que a visão de Jesus Cristo em carne?
Como Filho encarnado, Cristo desempenhará para sempre a função de mediador entre
a humanidade e Deus. Esse é um privilégio que pertence a ele por causa de sua glória pessoal.
Sua glória mediadora significa, é claro, que ele não estará sozinho no céu. Na verdade, porque
Deus odeia o divórcio (Mal. 2:16), e porque somos casados com Cristo (Ef. 5: 25-7; Ap. 21: 2),
nosso desfrute eterno de Deus na pessoa de Jesus Cristo é garantido. A eternidade do céu para
os crentes está fundamentada em nossa união com o Deus-homem que, em sua humanidade
ascendida e glorificada, vive para sempre. Porque somos casados com Cristo, temos o direito
de contemplá-lo para sempre. Nas palavras de Jó 19: 25-6: “Porque eu sei que o meu
Redentor vive e por fim se levantará sobre a terra. Depois, revestido este meu corpo da
minha pele, em minha carne verei a Deus.”
PENSAMENTOS FINAIS
Este livro pretende ser uma cartilha inicia sobre cristologia e, por isso,
necessariamente aborda a pessoa e a obra de Cristo. A ênfase em sua pessoa tem sido
deliberada, nem que seja para nos ajudar a apreciar melhor seu trabalho por nós.
Os pecadores que desejam ser salvos pelo Salvador devem confessar que sua
humanidade é tão importante quanto sua divindade. Esta confissão nos leva à conclusão de
que a pessoa de Cristo é absolutamente vital para nossa salvação, e que somos ordenados pela
palavra de Deus a conhecê-lo.
Como Warfield observa, devemos conhecê-lo não como “um Deus humanizado ou um
homem deificado, mas um verdadeiro Deus-homem - aquele que é tudo o que Deus é e, ao
mesmo tempo, tudo o que o homem é: em cujo braço todo-poderoso podemos descansar, e a
cuja simpatia humana podemos apelar. Não podemos nos dar ao luxo de perder o Deus no
homem ou o homem no Deus; nossos corações clamam pelo homem-Deus completo que as
Escrituras nos oferecem.” E este olhar é nosso para contemplarmos um dia por vista; mas até
então devemos contemplar a glória de Cristo pela fé.