RPD Junho 2022 Perspectiva 47 53

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PERSPECTIVA

Revista Portuguesa de Diabetes. 2022; 17 (2): 47-53 PERSPECTIVE

Diabetes Gestacional: Evolução dos


Critérios de Diagnóstico e Terapêutica
Gestational Diabetes: Evolution of Diagnostic and Therapeutic Criteria
B. Araújo1, S. Paiva1, I. Paiva1
1 – Serviço de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal.

Resumo

A diabetes gestacional (DG) é uma das complicações médicas mais frequentes da gravidez, tendo a sua prevalência vindo a aumentar nos últimos
anos. Desde a primeira descrição histórica que se debate qual a metodologia mais indicada para o seu diagnóstico. Os efeitos da exposição fetal
à hiperglicemia materna foram descritos após a descoberta da insulina. Nas décadas seguintes, tornou-se evidente a associação entre “hipergli-
cemia materna ligeira” e um risco acrescido de complicações obstétricas e neonatais. A evolução progressiva na metodologia de abordagem e
tratamento da DG possibilitou a melhoria dos desfechos obstétricos e neonatais associados. Contudo, após anos de investigação científica, ainda
não existe uma abordagem única consensual de como diagnosticar e tratar a DG. Com este artigo pretendemos reunir evidência sobre a evolução
histórica da DG, desde a era pré-insulina até aos dias de hoje, abordando os diferentes critérios de diagnóstico utilizados, as controvérsias na
gestão terapêutica e a evidência mais atual.

Palavras-chave: diabetes gestacional; história; critérios de diagnóstico; terapêutica

Abstract

Gestational diabetes mellitus (GDM) is one of the most common medical complications of pregnancy, with rising prevalence over the last years.
The debate on the best way to screen for GDM has been going on for decades, since its first historical description. The effects of fetal exposure to
maternal hyperglycemia were described soon after insulin discovery. In the following decades, studies have linked prediabetes to increased risks
of obstetrical and neonatal complications. GDM diagnosis and treatment has improved over time, leading to a progressive reduction of adverse
perinatal outcomes. However, after years of research, there is still no consensus on the best way to screen and treat GDM. In this article, we reviewed
the available evidence regarding the history of GDM, its different diagnostic and therapeutic approaches, and the most recent findings.

Keywords: gestational diabetes; history; diagnostic criteria; therapy

> INTRODUÇÃO estratégias terapêuticas eficazes. O desenvolvimento de


normas orientadoras universais para grávidas com DG
A diabetes gestacional (DG) é definida por uma anoma- tem sido um desafio desde sempre. Vários critérios de
lia da tolerância aos hidratos de carbono diagnosticada diagnóstico foram sugeridos ao longo das últimas déca-
ou detetada pela primeira vez durante a gravidez, resul- das, mas nunca existiu consenso, levando alguns países
tando em graus variáveis de hiperglicémia materna. Foi a adotar as suas próprias orientações. Este artigo pre-
ainda na primeira metade do século XX que se percebeu tende fazer uma contextualização histórica da DG, abor-
a associação desta entidade a um mau desfecho obsté- dando a evolução dos critérios de diagnóstico e tera-
trico e neonatal, que poderia ser prevenido através de pêuticas, bem como as controvérsias vigentes.

> DIABETES E GRAVIDEZ: DEFINIÇÕES ATUAIS


CORRESPONDÊNCIA/CORRESPONDENCE
Bárbara Filipa Araújo Em 2013 a Organização Mundial de Saúde (OMS) atuali-
Rua António Gonçalves nº 51, 3B zou a sua classificação de Diabetes na Gravidez, que
3040-375 Coimbra permanece inalterada na última versão de 2019. (1) Esta
Portugal
Móvel/Mobile: 913 955 023 classificação passou a considerar a “Hiperglicemia dete-
E-mail: [email protected] tada pela primeira vez na gravidez” em dois subtipos:
“Diabetes na Gravidez”, quando se considera os mesmos

Recebido/Received: 05/06/2022; Aceite/Accepted: 08/06/2022.


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Revista Portuguesa de Diabetes. 2022; 17 (2): 47-53 Diabetes Gestacional: Evolução dos Critérios de Diagnóstico e Terapêutica

valores de corte de glicemia que se utilizam para a po- alterações eram uma consequência da transferência de
pulação geral não-grávida; “Diabetes Gestacional”, ca- glicose materna para o feto, e que provavelmente resul-
racterizada por apresentar valores de glicemia intermé- taria em hipoglicemia neonatal. (5)
dios entre os que se consideram normais na gravidez e Foi nesta altura que se descreveu pela primeira vez a rea-
os valores diagnósticos de diabetes na população geral. lização de uma prova de tolerância à glicose oral (PTGO),
reportada por Lambie em 1926. (6) Este médico escocês
> EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA DIABETES NA GRAVI- fez uma descrição do que seria a diabetes gestacional:
DEZ: A ERA PRÉ-INSULINA “este tipo de diabetes aparece pela primeira vez na gra-
videz, e habitualmente manifesta-se no 5º ou 6º mês de
O primeiro autor a descrever um caso de diabetes na gestação (...) pode ser diagnosticada através de uma pro-
gravidez foi Bennewitz, em 1824. Este médico alemão va de sobrecarga oral com 50g de glicose, que serve para
relatou o caso clínico de uma mulher que durante três calcular o balanço cetogénico/anticetogénico”.
gravidezes sucessivas apresentou um quadro de poli- A partir de 1930 foram publicados resultados da utiliza-
dipsia e glicosúria, tendo um dos recém-nascidos 5,5 kg ção de insulina na gravidez, concluindo-se que o maior
de peso. (2) impacto era na sobrevivência materna, mas a taxa de
Mais tarde, em 1882, Duncan, um médico londrino, re- mortalidade fetal e neonatal pouco tinha melhorado. (7)
portou os resultados de uma série de 16 mulheres com Miller, em 1945, reportou pela primeira vez as complica-
diabetes na gravidez e descreveu uma taxa de mortali- ções obstétricas decorrentes de um estado “pré-diabé-
dade materna e perinatal que excedia os 50%. (3) Con- tico” na gravidez, com especial foco no risco de macros-
cluiu no seu relatório que “a diabetes pode desenvolver- somia fetal. (8) Em 1949, Priscila White, uma médica
-se na gravidez, pode ocorrer apenas na gravidez e estar americana, propôs a primeira classificação da diabetes
ausente fora da mesma”. Estabelecia também a noção na gravidez, que veio a ser conhecida como “Classifica-
de que a diabetes podia “terminar com a gravidez”, mas ção de White”. (9) Esta classificação passou a diferenciar
recorrer uns anos mais tarde. claramente os termos “diabetes gestacional” e “diabetes
Em 1909 houve outra série de 66 casos reportada por prévia”, mantendo-se uma referência para várias socie-
Williams, um médico obstetra, dos quais 55 mulheres dades científicas até ao final do século XX (Quadro I).
tinham diabetes prévia e 9 tinham “desenvolvido diabe- Na década de 1950 o termo “diabetes gestacional” pas-
tes na gravidez”. (4) O diagnóstico tinha sido feito com sou a ser amplamente reconhecido, e vários autores co-
base na presença de glicosúria. Um terço das mulheres meçaram a descrever as complicações obstétricas resul-
morreram no parto e outro terço dentro de 2 anos após tantes da mesma, assim como os fatores de risco
o parto, sendo que a mortalidade perinatal chegava aos associados. (10, 11)
50%. O foco do seu manuscrito foi perceber se existiria
um valor de glicosúria a partir do qual se deveria fazer o > EVOLUÇÃO DOS CRITÉRIOS DE DIAGNÓSTICO DE
diagnóstico de diabetes na gravidez, pois possivelmen- DIABETES GESTACIONAL
te valores ligeiros de glicosúria podiam ser fisiológicos.
Até 1921, ano da descoberta da insulina, as mulheres A partir de 1960, a maioria dos autores ainda definia a
diabéticas eram consideradas inférteis. Foram raros os diabetes na gravidez com base na história clínica e na
casos de gravidezes reportadas em mulheres com dia- presença de glicosúria, apesar deste valor ser incerto.
betes até esta data, e a maioria com desfecho fatal. A Vários autores propuseram outras formas de diagnósti-
insulina começou a ser utilizada na gravidez em 1923, co, nomeadamente PTGO com diferentes sobrecargas
tendo a taxa de gravidezes aumentado consideravel- de glicose e diferentes valores de corte, mas havia ainda
mente, sobretudo nas mulheres com diagnóstico recen- grande discórdia na sua utilização. (12, 13)
te e curta duração da doença. Em 1964, O’Sullivan, um médico irlandês, realizou uma
PTGO com 100g de glicose, numa amostra de 752 grávi-
> EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA DIABETES NA GRAVI- das, na segunda metade da gravidez. Com a ajuda da
DEZ: APÓS A DESCOBERTA DA INSULINA estatística Claire Mahan, avaliaram a distribuição nor-
mal dos valores da prova nesta população. Definiram
Na década seguinte à descoberta da insulina, vários au- quais os valores que correspondiam a +2 desvios pa-
tores começaram a autopsiar os fetos de mães com dia- drão acima da média, e a partir daí propuseram limites
betes, e reportaram a presença de anomalias pancreáti- de diagnóstico. Se pelo menos 2 valores estivessem aci-
cas, como a hipertrofia dos ilhéus. Sugeriram que estas ma destes limites, classificava-se como DG. Estes foram

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Quadro I - Classificação de White, modificada (1986).

Tipo Idade início (anos) Duração (anos) Critério (complicações)

Diabetes que se diagnostica durante a gravidez

A1 Qualquer Qualquer Diabetes gestacional, tratada com medidas dietéticas

A2 Qualquer Qualquer Diabetes gestacional, tratada com insulina

Diabetes que se diagnostica antes da gravidez

B > 20 < 10 anos Nenhuma

C 10 a 19 10 a 19 Nenhuma

D < 10 > 20 Retinopatia benigna

F Qualquer Qualquer Nefropatia

R Qualquer Qualquer Retinopatia proliferativa

H Qualquer Qualquer Doença coronária

os primeiros critérios de DG definidos a partir da análise Decorreram desde então mais quatro Workshops Inter-
estatística de uma amostra populacional, e mudaram nacionais. (17-20) No Segundo Workshop Internacional
para sempre o paradigma do diagnóstico. Não obstan- defendeu-se a utilização de uma abordagem two-step
te, foram formulados originalmente com o objetivo de (duas fases), com realização de uma prova de rastreio a
predizer o risco de diabetes futura, e não o risco de todas as grávidas, que consistia numa sobrecarga de
complicações obstétricas ou fetais. (14) 50g de glicose – considerada positiva se a glicemia plas-
A partir da década de 70 começaram a surgir mais estu- mática fosse ≥140 mg/dL. Apenas as mulheres com pro-
dos sobre os resultados materno-fetais e a importância va de rastreio positiva teriam indicação para realizar a
do controlo glicémico na gravidez, alterando-se o foco prova de diagnostico com 100g de glicose segundo os
da investigação: a importância de diagnosticar DG pas- critérios de O’Sullivan e Mahan. Neste Workshop tam-
sou a não ser apenas para predizer o risco posterior de bém se abordou a importância do exercício físico e re-
diabetes, mas também para prevenir complicações ma- comendou-se a realização de uma PTGO de reclassifica-
ternas e fetais. ção após o parto, agora com 75g de glicose.
Em 1979, o National Diabetes Data Group (NDDG) con- Em 1982, Carpenter e Coustan utilizaram pela primeira
verteu os valores dos critérios de O’Sullivan e Mahan, vez o método enzimático para medição da glicose plas-
para doseamento em plasma em vez de sangue total mática, e consequentemente adaptaram os critérios
(dadas as mudanças nas técnicas laboratoriais), passan- previamente definidos por O’Sullivan, considerando va-
do a considerar-se “valores limite” 14% acima dos valo- lores limite de diagnóstico ligeiramente inferiores. (21)
res obtidos em sangue total. (15) Nesta altura gerou-se Entre o final do século XX e o início do século XXI, duas
muita controvérsia, com utilização de critérios diferen- das principais entidades científicas internacionais diver-
tes para o diagnóstico de DG por cada país e entidade giram nas recomendações para o diagnóstico de DG. A
científica. Foi por este motivo que se organizou o Pri- OMS (1999) defendeu que todas as mulheres grávidas
meiro Workshop Internacional de Diabetes Gestacional deveriam realizar uma PTGO com 75g de glicose, seme-
em Outubro de 1979, (16) em que foram estabelecidas li- lhante à utilizada na população geral, com valores deter-
nhas de orientação: definiu-se a DG como uma intole- minados em jejum e às 2 horas – método one-step. (22)
rância aos hidratos de carbono reconhecida pela pri- Por outro lado, a American Diabetes Association (ADA)
meira vez na gravidez; defendeu-se a utilização defendeu a utilização da abordagem two-step, com uma
generalizada dos critérios de O’Sullivan, adaptados para prova de rastreio (PTGO 50g) e prova diagnóstica segun-
a glicemia plasmática; a necessidade de vigilância ma- do os critérios de Carpenter e Coustan (23) (Quadro II).
terna e fetal, e do aconselhamento nutricional; e foram Em 2008 foi publicado o estudo HAPO, “Hyperglicemia
definidos os critérios para intensificação terapêutica and Adverse Pregnancy Outcomes”. O objetivo deste es-
com insulina. tudo foi avaliar a associação entre diferentes graus de

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hiperglicemia materna e os resultados materno-fetais. cemia materna associados a um odds ratio (OR) de 1,75 de
Foi um estudo prospetivo, cego e randomizado, que in- macrossomia e hiperinsulinismo fetal – 92/180/153. Com
cluiu cerca de 25.000 mulheres, que representavam um base nestes pontos de coorte, projetava-se uma preva-
grupo heterogéneo e multicultural, provenientes de 9 lência de DG de 16,1% (Quadro III).
países e 15 centros. A todas foi realizada uma PTGO com Nos anos subsequentes à publicação da IADPSG, as di-
75g de glicose entre as 24 e as 32 semanas de gravidez. ferentes sociedades científicas nacionais e internacio-
Os outcomes primários definidos foram: macrossomia nais ofereceram alguma resistência à implementação
fetal, parto por cesariana, hipoglicemia neonatal e pep- dos seus critérios. Vários autores criticaram estas reco-
tídeo-C do cordão >p90 (como marcador de hiperinsu- mendações, fundamentando-se em argumentos so-
linismo fetal). Os autores deste estudo demonstraram cioeconómicos, dado ser previsível um aumento da pre-
uma relação linear contínua entre os valores de glicemia valência de DG, o que levaria à necessidade de mais
materna e todos os outcomes primários, independente- recursos humanos para o seu seguimento. Outros auto-
mente de outros fatores. (24) Colocava-se assim a ques- res refutaram estas recomendações, defendendo que o
tão: como se poderiam traduzir os resultados deste es- ponto de corte escolhido seria arbitrário (não havia sus-
tudo para a prática clínica? tentação lógica para a escolha de um OR ao invés de
Em 2010, a International Association of Diabetes and outro). Portugal foi um dos países que adotou as reco-
Pregnancy Study Groups (IADPSG), publicou as suas reco- mendações da IADPSG, publicando-as no Relatório de
mendações para o diagnóstico de DG, com base no estu- Consenso de Diabetes e Gravidez em 2011, apoiado por
do HAPO. (25) Definiram arbitrariamente os valores de gli- várias sociedades científicas nacionais (Sociedade Por-

Quadro II - Principais critérios de diagnóstico utilizados na Diabetes Gestacional.

Valor de glicose plasmáticaa (mg/dL)


Teste de diagnóstico Critério de diagnóstico
Jejum 1h 2h 3h

O’Sullivan e Mahan (1964) PTGO 100g 90 165 145 125 2 ou mais valores alterados

NDDG (1979) PTGO 100g 105 190 165 145 2 ou mais valores alterados
Carpenter e Coustan
PTGO 100g 95 180 155 140 2 ou mais valores alterados
(1982)
OMS (1999) PTGO 75g 126 - 140 - 1 ou mais valores alterados

ADA (2004) PTGO 100g 95 180 155 - 2 ou mais valores alterados

IADPSG (2010) PTGO 75g 92 180 153 - 1 ou mais valores alterados


a
Exceto nos Critérios de O’Sullivan e Mahan, em que se utilizava sangue total.
Legenda: PTGO, Prova tolerância à glicose oral; NDDG, National Diabetes Data Group; OMS, Organização Mundial de Saúde; ADA, American Diabetes Association; IADPSG,
International Association of Diabetes and Pregnancy Study Groups.

Quadro III - Glicose plasmática para valores de OR definidos pelo es- tuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo;
tudo HAPO (associados aos outcomes de macrossomia e hiperinsuli- Sociedade Portuguesa de Diabetologia; Sociedade Por-
nismo fetal).
tuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal; So-
Tempo de colheita Odds Ratio (OR) ciedade Portuguesa de Pediatria).
1,5 1,75 2,0 O estudo HAPO, que serviu de base às recomendações
da IADPSG, foi o estudo mais importante na área da DG,
Glicose plasmática (mg/dL)
levando à definição dos critérios que são utilizados até
0h 90 92 95 aos dias de hoje. (26, 27)
1h 167 180 191
> EVOLUÇÃO DA TERAPÊUTICA NA DIABETES GES-
2h 142 153 162
TACIONAL
Prevalência estimada de diabetes gesta-
cional (%)
25 16,1 8,8
Desde muito cedo se estabeleceu que a terapêutica mé-
dica nutricional era o pilar do tratamento da DG. No Pri-

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meiro Workshop Internacional de Diabetes Gestacional quanto aos efeitos a longo prazo de utilização de metfor-
foi recomendada a implementação de um plano nutri- mina na gravidez. Um deles correspondeu ao follow-up
cional associado a um plano de exercício físico regular. de dois ensaios clínicos randomizados, e seguiu 172
A restrição de hidratos de carbono (HC) na DG começou crianças até aos 9 anos de idade. Os autores não encon-
já a ser utilizada antes da insulina, quando se verificou traram qualquer diferença na antropometria destas
que uma restrição severa de HC (8-10% do aporte caló- crianças, e ainda avaliaram o perfil lipídico, que foi mais
rico total) prolongava a vida das mulheres com diabetes favorável (valores menores de LDL e superiores de HDL)
tipo 1 e reduzia a mortalidade neonatal. Hoje em dia, as no grupo da metformina. (36) O segundo foi um estudo
recomendações internacionais defendem que os HC de coorte de quase 4000 crianças com exposição intrau-
devem representar 35-50% do aporte calórico total, terina à metformina, que nasceram entre 2004 e 2016.
preferindo-se os de baixo índice glicémico. Existe ainda Foram avaliados vários outcomes primários, entre os
pouca evidência acerca do aporte calórico total e do quais a obesidade infantil, diabetes mellitus e hiperten-
ganho ponderal adequados na DG. O Institute of Medi- são arterial, e não se encontrou associação entre exposi-
cine (IOM) não recomenda perda ponderal durante a ção a metformina e nenhum destes outcomes. (37)
gravidez, mas alguns estudos posteriores demonstra- Os últimos dados publicados têm vindo a reforçar a se-
ram que esta pode ser segura em mulheres obesas, des- gurança da metformina na DG, mas ainda assim serão
de que garantido um adequado crescimento fetal. (28, 29) necessários mais estudos a longo prazo, que nos esclare-
A insulina foi a primeira terapêutica farmacológica utili- çam os efeitos da exposição intrauterina a este fármaco.
zada na DG, e tem sido tradicionalmente reconhecida
como a primeira linha (após falência das medidas de es- > E DEPOIS DO ESTUDO HAPO: QUAL A EVIDÊNCIA
tilo de vida). Vários estudos vieram demonstrar a segu- MAIS RECENTE?
rança de utilização de análogos da insulina durante a
gravidez. (30, 31) Decorridos 14 anos após a realização do estudo HAPO,
A partir do século XX começaram a ser publicados estu- permanecem ainda dúvidas em relação aos métodos de
dos de meta-análise que mostraram a não inferioridade e diagnóstico recomendados atualmente. Há ainda al-
a segurança de antidiabéticos orais como a glibenclami- guns autores e sociedades científicas que defendem a
da e a metformina, em comparação com a insulina. (32, 33) utilização do método two-step, com uma prova de ras-
Apesar de se ter provado que ambos os fármacos atraves- treio seguida de PTGO diagnóstica. Uma meta-análise
sam a placenta (glibenclamida com passagem mínima), publicada no final de 2021 reuniu estudos que compara-
não houve uma associação a malformações congénitas. vam os resultados perinatais de acordo com os métodos
Por este motivo se generalizou o uso dos antidiabéticos de diagnóstico one vs. two-step. Incluiu um total de
orais na DG, sobretudo a metformina (especialmente em 108.609 grávidas, e concluíram que existe uma menor
países com limitação do acesso à insulina). prevalência de macrossomia fetal quando utilizadas as
recomendações da IADPSG. (38) Estes dados poderiam
Controvérsias Acerca da Utilização de Metformina traduzir uma maior sensibilidade dos testes recomenda-
na Gravidez dos atualmente, possibilitando um tratamento eficaz e
prevenindo as complicações perinatais.
A passagem transplacentar da metformina levou ao es- Em 2019 foram publicados dois estudos de follow-up do
tudo sobre os possíveis efeitos da exposição intrauterina estudo HAPO, (39, 40) que vieram realçar o efeito a longo
a este fármaco. Em 2018 foram publicadas duas meta- prazo da DG na saúde materna e infantil. Estes estudos
-análises sobre os efeitos a longo prazo na descendên- avaliaram cerca de 4000 crianças entre os 10-14 anos,
cia de mulheres tratadas com metformina durante a descendentes de mulheres da coorte do estudo HAPO,
gravidez, levantando algumas questões quanto à sua que teriam critérios de diagnóstico de DG segundo a IA-
segurança. (34, 35) Cada um destes estudos incluiu cerca DPSG, mas que não receberam tratamento. Os autores
de 800 crianças, seguidos até aos 9-13 anos de idade. verificaram que, comparativamente ao grupo controlo,
Concluíram que as crianças com exposição pré-natal à estas apresentavam maior prevalência de intolerância à
metformina tinham um peso superior, comparativa- glucose oral, HbA1c superior e menor sensibilidade à in-
mente ao grupo controlo (sem diferenças para o índice sulina. Estes dois artigos vieram reforçar a relação entre
de massa corporal). a hiperglicemia materna e os efeitos a longo prazo na
Muito recentemente foram publicados dois estudos fin- função da célula-beta e na sensibilidade à insulina da
landeses que nos voltam a trazer alguma segurança descendência. (41)

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Em Janeiro de 2022, um grupo canadiano publicou um 5. Mestman JH. Historical notes on diabetes and pregnancy. En-
estudo de “mundo-real” de quase 100.000 grávidas, que docrinologist. 2002; 12: 224-242.
pretendeu avaliar a prevalência atual de macrossomia 6. Lambie CG. Diabetes and pregnancy. J Obstet Gynecol Br Emp.
fetal de acordo com os critérios de PTGO utilizados no 1926; 33: 563-606.
estudo HAPO. Confirmaram mais uma vez os resultados 7. Skipper E. Diabetes mellitus in pregnancy: A clinical and
deste estudo, na medida em que encontraram uma rela- analytical study. QJM. 1933; 7: 353-80.
ção contínua de risco entre a hiperglicemia materna e 8. Miller, HC. The Effect of the Prediabetic State on the Survival of
macrossomia fetal, mesmo para valores de corte inferio- the Fetus and the Birth Weight of the Newborn Infant. N Engl J
res aos utilizados atualmente (92/180/153 mg/dL). Veri- Med. 1945; 233: 376-378.
ficaram ainda que a percentagem de macrossomia fetal 9. White P. Pregnancy complicating diabetes. Am J Med. 1949; 5:
foi inferior à descrita pelo estudo HAPO (quando consi- 609-616.
derado o valor de PTGO às 1 e 2h), sugerindo que o tra- 10. Moss JM, Mullholand HB. Diabetes and pregnancy with special
tamento atual da DG é eficaz na redução de macrosso- reference to the prediabetic state. Ann Intern Med. 1951; 34:
mia fetal num contexto de mundo-real. 678-691.
11. Wilkerson HLC, Remein QR. Studies of abnormal carbohydra-
> CONCLUSÃO te metabolism in pregnancy. Diabetes. 1957; 6: 324-329.
12. Unger RH, Madison LL. A new diagnostic procedure for mild
Após décadas de investigação na área da DG, a sua diabetes mellitus: evaluations of an intravenous tolbutamide
abordagem ainda não é consensual, quer em termos de response test. Diabetes. 1958; 7: 455.
critérios de diagnóstico, quer de terapêutica. No entan- 13. Conn JW, Fajans SS. The prediabetic state. Am J Med. 1961;
to, a evidência atual tem apoiado os resultados do estu- 31:839-850.
do HAPO e reforça cada vez mais a necessidade de me- 14. O’Sullivan J, Mahan C. Criteria for the oral glucose tolerance
lhorar a sensibilidade de diagnóstico e a intervenção test in pregnancy. Diabetes. 1964; 13: 278-285.
terapêutica na DG. Nos últimos anos, várias sociedades 15. National Diabetes Data Group: Classification and diagnosis of
científicas vieram a adotar as recomendações da IADP- diabetes mellitus and other categories of glucose intolerance.
SG/OMS, levando ao aumento do diagnóstico da DG a Diabetes. 1979; 28: 1039-1057.
nível mundial, e possibilitando a intervenção terapêuti- 16. Freinkel N, Josinovich J. First Workshop Conference on Gesta-
ca com melhoria dos desfechos perinatais. <
tional Diabetes. Diabetes Care. 1980; 3: 399-501.
17. Proceedings of the Second International Workshop-Confe-
Conflitos de interesses/Conflicts of interests:
rence on Gestational Diabetes Mellitus. Diabetes. 1985; 34(S2):
Os autores declaram a ausência de conflitos de interesses./The
1-130.
authors declare that they have no conflicts of interests.
18. Third International Workshop Conference on Gestational Dia-
betes Mellitus: Summary and recommendations. Diabetes.
Patrocínios/Sponsorships:
1991; 40(S2): 197-201.
Os autores declaram que não tiveram patrocínios para a reali-
19. Metzger BE, Coustan DR. Summary and recommendations of
zação deste trabalho./The authors declare that they had no
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