A Revolucao Russa - Rosa Luxemburg
A Revolucao Russa - Rosa Luxemburg
A Revolucao Russa - Rosa Luxemburg
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Introdução
“Não nos falta nada, minha mulher, meu filho, para
sermos livres como os pássaros; nada, a não ser
tempo!”
(Dehmel, citado por Rosa Luxemburg)
I
Conta Mathilde Jacob, secretária e amiga de Rosa
Luxemburg, que, ao ser presa no início de janeiro de
1919 – momento em que a caçada aos spartakistas se
torna mais e mais violenta –, foi visitada na prisão de
Moabit por um jovem advogado. Pergunta-lhe o que se
passa lá fora. Resposta: “Nada de novo. Rosa
Luxemburg e Karl Liebknecht foram assassinados. Agora
temos novamente sossego1.”
“Sangue clamava por sangue! O banho de sangue pelo
qual Liebknecht e Rosa Luxemburg eram responsáveis
clamava por castigo. Este não tardou, e no caso de Rosa
Luxemburg foi cruel, mas justo. A galiciana foi
espancada até à morte. A temível e todo-poderosa cólera
popular exigia vingança.” Assim se exprimia a imprensa
de direita, no caso o Tägliche Rundschau2.
Logo após o assassinato dos dois chefes spartakistas
correu a versão de que Karl Liebknecht teria sido
baleado numa tentativa de fuga, ao ser transportado
para a prisão de Moabit, e Rosa Luxemburg linchada
pela multidão enfurecida. Estranha versão, aceita sem
crítica, até mesmo pelo comissário do povo Philipp
Scheidemann, antigo companheiro de partido, para
quem Liebknecht e Luxemburg “foram vítimas da sua
própria tática terrorista e sanguinária. (...) A derrota do
levante spartakista significa para o nosso povo e, em
particular, para a classe operária, um ato de salvação
que, perante a história, tínhamos o dever de realizar3.”
A versão não tardou a ser denunciada pela imprensa de
esquerda. Quando a verdade sobre o assassinato se
tornou pública, o governo foi forçado a processar os
criminosos. A corte marcial realizou-se de 8 a 14 de
maio de 1919.Ojulgamento não passou de uma farsa,
como o próprio assassino reconheceu4.
Muito se disse sobre o fim violento de Rosa Luxemburg e
Karl Liebknecht, prenúncio de tempos sombrios. É certo
que o governo socialdemocrata não deu ordem expressa
para assassinar os dois chefes spartakistas. Também é
certo que nada fez para impedi-lo.
Em 1962, o capitão Pabst, 1º oficial do Estado-maior da
divisão da cavalaria da guarda, uma das formações
paramilitares criadas no início de 1919 para combater
os grupos de esquerda, deu a entender, em entrevista a
Der Spiegel, que fora diretamente responsável pelo
assassinato. Mais tarde, no início de 1966, o mesmo
Pabst, então com 85 anos, declarou: “Precisamos
reconhecer nosso passado. Ninguém deve envergonhar-
se daquilo que fez. Dei aos homens a ordem, que foi
cumprida como devia ser. Esses homens foram dignos da
Alemanha5.” Quando indagado por que dera ordem para
matar uma mulher que notoriamente tivera um papel
passivo no levante spartakista, Pabst contou uma
estranha história: um dia, um comandante de regimento,
nobre e católico, chegara à divisão do Estado-maior e
pedira permissão para que Rosa Luxemburg falasse à
tropa. O oficial, ouvindo-a, ficou tão impressionado que a
“considerou uma santa”, “um novo Messias.” Pabst:
“Nesse momento, dei-me conta do enorme perigo que
essa mulher representava. Era pior que os outros, os
que estavam armados. Tomei a decisão, assim que fosse
comandante de regimento, de eliminar essa demagoga”.
Disse ainda temer que, mesmo se Rosa fosse novamente
presa, seria posta em liberdade mais cedo ou mais tarde.
Decidiu-se, por isso, a fazer justiça por conta própria6.
O ódio irracional da direita pelos spartakistas e, em
particular, por Rosa Luxemburg, persistiu na Alemanha
Ocidental, o que em parte se explica por ela ser judia,
estrangeira e marxista. Em 1974, o governo
socialdemocrata da RFA decidiu lançar um selo
comemorativo em sua homenagem. Essa iniciativa
desencadeou intensa campanha de repúdio, fazendo vir
novamente à tona velhos conflitos não resolvidos. Eis um
exemplo: “...fui membro dos corpos francos, ‘Divisão de
Ferro’. (...) Sob o comando do ministro socialdemocrata
Gustav Noske, os corpos francos realizaram seu dever
patriótico de manter o bolchevismo afastado do Reich. E
este é o mérito histórico de Friedrich Ebert e Gustav
Noske: ter aniquilado o sangrento levante da Liga
Spartakus...7” O assassinato continua sendo justificado,
agora, em nome da defesa contra o terrorismo que
tomava conta da Alemanha. Rosa é confundida pela
opinião pública com Ulrich Meinhof.
Já na Alemanha oriental, até recentemente, Rosa
Luxemburg e Karl Liebknecht eram encarados, pela
burocracia dirigente, como os pais fundadores e
primeiros mártires do comunismo alemão. O 15 de
janeiro, data do assassinato, era a ocasião de reafirmá-lo
e de ligar o nome de ambos às conquistas materiais ali
realizadas com grandes dificuldades, como se essas
conquistas encarnassem o “novo mundo” socialista por
eles sonhado. Não deixa de ser curioso que também a
oposição, na Alemanha oriental, se manifestasse contra
o regime em nome das ideias da própria Rosa. Mesmo
agora, após a derrota do comunismo, grupos socialistas
de oposição continuam exigindo a necessidade de se
resgatar suas ideias políticas, como alternativa
democrática e socialista ao comunismo e ao capitalismo.
Que Rosa Luxemburg seja até hoje odiada pela direita,
na Alemanha, é compreensível e revela muito dessa
sociedade. Mas que continue sendo uma figura
controversa nos meios de esquerda, cujas ideias e
exemplo são reivindicados, tanto pelos comunistas
ortodoxos quanto pelos socialistas democráticos, já é
mais difícil de compreender. Tentaremos esclarecer essa
controvérsia, expondo rapidamente a sua trajetória
intelectual e política na socialdemocracia alemã,
detendo-nos, particularmente, no período da revolução
(1918-1919), que acreditamos crucial nessa trajetória.
Além disso, os três textos publicados nesta coletânea são
fundamentais para compreendermos a polêmica. Os dois
primeiros, um por criticar a teoria leninista do partido, o
outro a política autoritária dos bolcheviques logo após a
insurreição de outubro, foram continuamente utilizados
pelos socialistas democráticos contra os comunistas,
muitas vezes com citações fora de contexto. Já o terceiro
deles, “Oque quer a Liga Spartakus?”, é menos dado a
utilizações ambíguas, uma vez que Rosa aí defende
claramente sua posição democrática, socialista e
revolucionária.
II
Rosa Luxemburg nasceu a 5 de março de 1870, em
Zamosc, Polônia, sendo a mais nova dos cinco filhos do
casal8. O pai, Elias, era madeireiro e simpatizava com os
movimentos nacionalistas revolucionários da Polônia. A
mãe, Lina Löwenstein, descendia de uma família de
rabinos. Mais de um terço da população de Zamosc era
judia, como os Luxemburg. Estes tinham grande
admiração pela cultura alemã, a mãe gostava em
particular de Schiller, de tal maneira que em casa falava-
se o alemão. Rosa aprendeu cedo também o polonês e o
russo.
A partir de 1873, em virtude de sérios problemas
financeiros, a família muda-se para Varsóvia onde, em
1880, Rosa passa a frequentar um ginásio para moças.
Em 1887, começa a participar do movimento operário
polonês, ilegal.
Em 1889, para não ser presa, foge para Zurich onde
estuda ciências, matemática, direito e economia política
na universidade. Em 1897, defende sua tese de
doutorado sobre o desenvolvimento industrial na
Polônia. Um ano mais tarde vai para Berlim, para
trabalhar na socialdemocracia alemã.
Pode-se dizer que os 23 anos que vão de 1891 a 1914,
extremamente ricos do ponto de vista teórico, tem como
fio condutor a criação, o apogeu e o desmoronamento da
II Internacional. É contra esse pano de fundo que se
destaca a obra de Rosa Luxemburg do período.
Ao chegar a Berlim, o SPD atravessa um momento difícil
que a imprensa burguesa chama de “crise do
marxismo”, e que se traduz no revisionismo de
Bernstein. Contra essa tendência reformista no interior
da socialdemocracia Rosa Luxemburg escreve Reforma
social ou revolução?9 Com essa polêmica, torna-se
conhecida e respeitada no interior do Partido Social
Democrata Alemão (SPD).
Um ano após sua chegada a Berlim, Rosa toma
consciência da fraqueza teórica do SPD, sobretudo da
superficialidade da implantação do marxismo no partido,
que era sobretudo dominado pelos políticos
pragmáticos. Passa então a ter como objetivo lutar
contra o torpor que domina a socialdemocracia alemã,
mesmo correndo o risco de desagradar a quase todos,
em virtude de suas posições intransigentes e
inconformistas. Entretanto, a rejeição parece não
incomodá-la. Rosa sabe que nunca será totalmente
aceita no SPD, e isso por três razões: por ser mulher,
judia polonesa e marxista de extrema-esquerda. O que
não a impede de lutar contra todas as posições que
considera equivocadas. Sua linha de conduta é
cristalina: permanecer livre acima de tudo, tanto do
ponto de vista pessoal quanto político.
Embora nessa época Rosa já seja uma personalidade
estabelecida no SPD, não se sente à vontade “na
atmosfera pequeno-burguesa da socialdemocracia
alemã10.” Um caráter inquieto, sempre em busca do que
considera as posições teóricas e políticas corretas, não
lhe permite ficar imobilizada usufruindo da notoriedade
adquirida. Em agosto de 1904, o Congresso Socialista
Internacional de Amsterdã, em que o revisionismo é
finalmente derrotado pelo marxismo ortodoxo11, provoca
o início de uma mudança de orientação que a leva a
reexaminar os objetivos e a estratégia de toda a
esquerda marxista. Os dois meses passados na prisão de
Zwickau permitem-lhe refletir sobre a polêmica entre
ortodoxos e revisionistas e chegar à conclusão de que o
papel representado pelo marxismo ortodoxo “não me
encanta nem um pouco12.”
Rosa não tem como objetivo ser guardiã da ortodoxia. A
nova proposta por ela elaborada centra-se na ideia de
que apenas fortalecendo o lado revolucionário dentro da
organização se poderá combater o oportunismo que
toma conta das suas fileiras.
Foi também nessa época, mais precisamente no início de
1904, que Rosa publicou “Questões de organização da
socialdemocracia russa”, o primeiro texto da presente
coletânea. Neste artigo, contra o que considera o
excessivo centralismo de Lenin em relação ao partido,
defende a ideia de que as direções têm um papel
insignificante na elaboração da tática. Esta é muito mais
resultado de grandes atos criadores da luta de classes,
na maior parte das vezes espontânea, que invenção dos
dirigentes. Rosa teme que a concepção centralizadora
de Lenin sufoque e controle a atividade do partido russo,
alertando para o risco de dominação de um movimento
operário ainda jovem por uma burocracia centralizada
nas mãos de intelectuais. Este artigo, um dos muitos que
escreveu contra as tendências blanquistas, conspirativas
no movimento operário russo e polonês, acabou tendo
grande divulgação nos meios de esquerda anti-
stalinistas, justamente por chamar a atenção para o
perigo do sufocamento da atividade das massas por um
partido centralista e burocrático.
A mudança de orientação acima mencionada, que se
esboça no final de 1904, só irá solidificar-se
verdadeiramente a partir da revolução russa de 1905.
Os artigos, a correspondência e os discursos dessa
época são testemunhas de seu entusiasmo em relação
aos acontecimentos na Rússia e na Polônia. O contato
direto com a revolução é o que provoca a grande
mudança desses anos, dando-lhe novo vigor e novas
perspectivas. Em contraste com a dinâmica
revolucionária em São Petersburgo e Moscou, fica ainda
mais evidente para ela o imobilismo do SPD. É nesse
período que elabora sua concepção da greve de massas
revolucionárias e escreve Greve de massas, partido e
sindicatos13, onde faz um balanço da Revolução Russa. A
experiência revolucionária fortaleceu nela a convicção
de que as grandes transformações históricas não são
desencadeadas pelas organizações (ainda que estas
tenham um papel relevante a desempenhar nesse
processo), e de que a consciência de classe é resultado
da luta revolucionária: “um ano de revolução deu ao
proletariado russo essa ‘educação’ que trinta anos de
lutas parlamentares e sindicais não podem dar
artificialmente ao proletariado alemão14.”)
Rosa divulga incansavelmente sua concepção da greve
de massas em inúmeros artigos e discursos, procurando,
ao mesmo tempo, dar novo conteúdo ao papel que
desempenha no SPD: não ser apenas crítica, mas
também direção intelectual e política de uma esquerda
revolucionária. Começa então a tomar corpo a formação
de uma ala esquerda independente, em divergência com
o centro do partido, para quem o marxismo não passava
de ideologia legitimadora.
Em 1910, Rosa Luxemburg rompe com Kautsky. Em
cartas a Jogiches15 confessa o quanto, no início, lhe pesa
e desagrada a amizade dos Kautsky. A aproximação
entre eles ocorre pela necessidade de combater o
revisionismo. Com o tempo, Rosa torna-se grande amiga
do casal, sobretudo de Luise, de quem nunca se afasta,
apesar da ruptura com Karl. Aliás, ela sempre foi dura e
mordaz em relação a ele, não o levando em consideração
do ponto de vista teórico. Mas apenas após a ruptura,
que ocorreu em função de divergências sobre a tática e
a estratégia da socialdemocracia, Rosa dá-se conta de
que Kautsky é muito mais ideólogo que teórico e que seu
marxismo é atravessado por um viés cientificista,
positivista, substituindo a dialética pelo evolucionismo e
interpretando o materialismo histórico sob o ponto de
vista do darwinismo social. A partir de então, Kautsky
torna-se o alvo de seus ataques. Rosa procura, com isso,
manter acesa a discussão sobre a greve de massas que a
direção do partido procurava abafar.
Desde essa época, torna-se evidente a separação entre a
ala esquerda e a maioria do partido. De acordo com
Rosa, o SPD passa por uma crise mais profunda que na
época do revisionismo na medida em que, ao afundar no
marasmo, representa um obstáculo ao élan
revolucionário que acredita estar começando na
Alemanha. Lembremos que, no início de 1910, a luta
pelo sufrágio universal na Prússia16 dá grande impulso
às ações de massa. Kautsky, no entanto, continua
defendendo apenas a luta parlamentar, pondo-se assim
ao lado da direção do partido, cuja tática, no momento,
era centrar forças na preparação das eleições de 1912.
Rosa, consequentemente, passa a acusar a direção do
SPD de usar a autoridade do partido para frear, na
prática, as ações de massa.
Além disso, nesses 4 anos que antecederam a guerra,
ela dedica-se à intensa elaboração teórica com o objetivo
de criar uma estratégia ofensiva contra o imperialismo.
São anos em que se ocupa de economia política, aliás, a
disciplina que ministrava, desde 1907, na escola do
partido. Com o material usado na preparação dos cursos
escreve a Introdução à economia política,17 livro que
permanece fragmentário, sendo publicado apenas em
1925. Em 1913, publica A acumulação do capital18,
considerada sua obra teórica de maior fôlego. Neste
livro, Rosa mostra a impossibilidade de uma acumulação
contínua do capital que garantisse bem-estar e
progresso econômico. O capitalismo, para continuar
acumulando, necessita expandir-se para a periferia, até
que o mundo, totalmente colonizado por ele, será
atingido por crises que o farão perecer. Entretanto, Rosa
não vê o colapso do capitalismo como um processo
automático, que se daria meramente em função de suas
incuráveis contradições internas, mas como um processo
que carece da luta consciente das massas trabalhadoras.
Uma das preocupações principais da autora nesta obra é
fazer com que os militantes compreendam a relação
existente entre a política expansionista e o estágio do
capitalismo imperialista, com sua corrida às armas.
Nessa época, ela encontra-se isolada no interior do SPD
e aproveita todas as oportunidades para fazer agitação
nas bases. Essa foi a saída que lhe restou, uma vez que
as páginas da Neue Zeit e do Vorwärts19 lhe estavam
vedadas, e que apenas alguns jornais de província
publicavam seus artigos. É nessa perspectiva que se
deve entender sua luta contra o militarismo, na qual,
aliás, parece ter sucesso.
Após a decepção com o malogro da campanha pelo voto
universal na Prússia e o consequente refluxo das
massas, ela volta novamente, em fins de 1913, a
discursar perante auditórios cheios e calorosos20. A
enorme popularidade de que é alvo em fins de 1913 e
começos de 1914 resulta da perseguição que sofre em
virtude de um discurso antimilitarista pronunciado em
setembro de 1913 numa localidade perto de Frankfurt.
Nas manifestações organizadas pelo SPD em sua defesa,
Rosa declarava: “Todos os esforços do militarismo
massacrador de povos quebrar-se-ão contra a resistência
da classe operária, assim como o vidro se quebra contra
o granito21. Alguns meses bastaram para Rosa perceber
que se enganara.
A 4 de agosto, a aprovação unânime dos créditos de
guerra por parte da bancada socialdemocrata no
Reichstag representa o golpe de misericórdia nas suas
esperanças. Como sabemos, a socialdemocracia
converte-se à política da União Sagrada em torno da
pátria22, abandonando o princípio marxista da luta de
classes, tanto no plano prático, o que não era novidade,
quanto no teórico. A Internacional-Kautsky passará a
explicar – é instrumento adequado a tempos de paz, não
a tempos de guerra.
O que podemos considerar o segundo grande período de
sua vida e obra é dominado, num primeiro momento,
pela guerra e, posteriormente, pelas revoluções russa e
alemã. Rosa fica profundamente abalada com o
comportamento da socialdemocracia durante a guerra.
No fim de 1914 e início de 1915, passa alternadamente
da esperança ao desespero. Apesar disso, não fica
paralisada. É nessa época que se torna amiga de Karl
Liebknecht, quando se constitui o núcleo
internacionalista, pequeno grupo de socialistas
independentes que se opõem à guerra.
Durante a permanência na prisão23 dedica-se a um
intenso reexame de suas ideias. É dessa época o famoso
panfleto de Junius, escrito na primavera de 1915 e
publicado em janeiro de 1916 com o título A crise da
socialdemocracia. Essa brochura representa um
impiedoso ajuste de contas com a Internacional
socialista, com a socialdemocracia alemã e com o
próprio proletariado por terem todos, cada um à sua
maneira, aderido ao delírio bélico. No seu entender, a
humanidade encontra-se perante a seguinte alternativa:
socialismo ou barbárie. Pensa, entretanto, que nem tudo
estará perdido se as massas proletárias souberem tirar
lições dos seus próprios erros.
As cartas escritas na prisão revelam o questionamento
dilacerante, inacabado e assistemático a que se entrega.
Nesse processo mostra grande força, proveniente não só
do estudo e do trabalho teórico, mas também da sua
visão de mundo, onde dominavam dois aspectos
fundamentais: uma posição ética e uma filosofia da
história24.
Do ponto de vista ético, a sua posição consiste em não se
deixar arrastar pela corrente, em “ser sólida, lúcida e
alegre, sim, alegre apesar de tudo, pois gemer é coisa
dos fracos.25” Para ela, o plano político e o pessoal
nunca se separam. Por isso, com o objetivo de
permanecer um ser humano íntegro, apesar da
degradação à sua volta, adota uma linha de
comportamento em que o fundamental é conservar-se
fiel a si mesma.
Paralelamente, a sua filosofia da história fundamenta o
otimismo com que encara, apesar da guerra, a cena
política alemã. Rosa pensa que a história sabe sempre
encontrar uma saída para a situação mais desesperada;
há nela uma lógica objetiva que a faz caminhar no bom
sentido, mesmo se não corresponde aos desejos dos
homens. E são as massas que farão brotar a semente de
liberdade contida na história. A guerra fez com que a
sua anterior concepção sobre as massas se nuançasse.
Estas não são mais vistas como eternamente
revolucionárias, uma vez que aderiram vivamente ao
delírio guerreiro. Contudo, se a emancipação humana
não é uma utopia abstrata, são as massas que se tornam
revolucionárias, dependendo da conjuntura, as
portadoras da libertação.
No seu terceiro ano de prisão, mais precisamente em
setembro de 1918, Rosa Luxemburg escreve as notas
conhecidas com o título “A Revolução Russa”, segundo
texto desta coletânea. As ideias expostas nessa brochura
foram usadas durante muito tempo pela
socialdemocracia contra o comunismo, e até
recentemente – quando a oposição protestava contra o
governo na Alemanha oriental – fazia-o, usando como
slogan a famosa formulação: “liberdade é sempre a
liberdade daquele que pensa de modo diferente”. Frases
pinçadas aqui e ali acabaram, muitas vezes, por reduzir
Rosa Luxemburg a uma liberal. Que ela nunca foi.
Nestas notas redigidas na prisão, e publicadas
postumamente por Paul Levi em 1922, Rosa critica,
procurando, ao mesmo tempo, compreender, a política
autoritária dos bolcheviques. Lenin e Trotski viram-se
forçados pelas circunstâncias, o avanço da
contrarrevolução, a adotar medidas repressivas que
atingiram a população no seu todo, inclusive o
proletariado. O isolamento a que foram condenados
obrigou-os a uma política antidemocrática, que não teria
sido necessária, caso a revolução na Alemanha tivesse
vindo em seu auxílio. Entretanto, apesar de reconhecer a
difícil situação dos bolcheviques e de admirar a sua
coragem revolucionária, Rosa não admite que façam da
necessidade virtude e elejam a sua via para o socialismo
como modelo para todos os partidos de esquerda.
Ela entende que a realização do socialismo exige vida
pública, espaço público, total liberdade para as massas
trabalhadoras. A vontade enérgica do partido
revolucionário não basta para instaurar o socialismo.
Este é fruto da experiência das massas; as soluções
surgem no momento em que os problemas aparecem,
desde que as massas trabalhadoras, nas suas múltiplas
formas de organização, tenham total liberdade para
apresentá-las, discuti-las, escolher o caminho
apropriado, voltar atrás quando necessário, aprendendo
com os próprios erros. Eis o que Rosa entende por
democracia socialista. O oposto da dominação de um
único partido – Rosa é premonitória – que, para ela,
levará à burocratização, ao estiolamento da vida pública.
Evidentemente, no seu entender, a democracia não
exclui coerção, em nome do “interesse do todo”, para
quem boicotar a revolução.
III
No dia 13 de janeiro de 1919, Clara Zetkin, preocupada,
escrevia à amiga: “minha muito querida e única Rosa, eu
sei, você vai morrer altiva e feliz. Eu sei, você nunca
pediu morte melhor do que cair lutando pela revolução.
Mas, e nós? Podemos ficar sem você? Podemos viver sem
você?26”
Rosa tinha passado na prisão praticamente os quatro
anos da guerra. Ao ser libertada, mergulha no torvelinho
da revolução, num ritmo de trabalho excessivo, reuniões
sem fim, mudanças de domicílio constantes, boatos de
que, assim como a Karl Liebknecht, assassinos a
perseguem. Os temores de Clara Zetkin não são
infundados.
Para podermos compreender esse trágico desfecho e as
suas posições políticas de novembro a janeiro, é
necessário ter em mente o clima político da Alemanha
nesse período. Passemos a uma rápida descrição do que
se passava.
O Alto Comando do Exército, percebendo a
impossibilidade de a Alemanha vencer a guerra, propõe
ao imperador, a 1º de outubro, formar um governo de
união nacional e começar negociações de paz. O novo
chanceler, príncipe Max de Bade, forma um gabinete
semiparlamentar, do qual fazem parte dois membros do
SPD. Entretanto, esta tentativa de canalizar os protestos
populares não tem sucesso, e a 28 de outubro os
marinheiros do porto de Wilhelmshaven revoltam-se e
são brutalmente reprimidos. O movimento alastra-se
pelo norte da Alemanha, formam-se conselhos de
marinheiros, operários e soldados que, num curto
espaço de tempo, se espalham por todo o país. Greves e
manifestações exigem a renúncia do imperador e a
proclamação da República.
A 8 de novembro Rosa Luxemburg sai da prisão. Um dia
depois explode em Berlim uma greve geral. O imperador
renuncia e Ebert, presidente do SPD, assume a chefia do
governo. A República é então proclamada e o poder
passa a ser exercido por uma coalizão dos partidos
operários, SPD e Partido Social Democrata
27
Independente (USPD) , decisão ratificada por uma
assembleia dos Conselhos de Trabalhadores e Soldados
no dia seguinte.
A Liga Spartakus, grupo do qual Rosa Luxemburg e Karl
Liebknecht eram dirigentes, constituía uma tendência
dentro do USPD. Porém, à medida em que as
divergências se tornam insuperáveis, a Liga, fundindo-se
com outros grupos, passa a formar o Partido Comunista
Alemão (KPD (Spartakusbund)). O congresso de
fundação ocorre nos dias 30 e 31 de dezembro. A Liga
Spartakus, grupo muito pequeno, sem a menor chance
de chegar ao poder, tinha como objetivo, através da
propaganda, fazer crescer sua influência junto às
massas. É o que faz Rosa Luxemburg nos seus artigos na
Rote Fahne. Durante os meses de novembro e dezembro
ela enfatiza, nesses artigos, as ações de massa,
criticando asperamente os dirigentes do SPD e do USPD
por adotarem medidas que, no seu entender, favoreciam
a contrarrevolução.
A grande questão política do mês de dezembro, decisiva
para o destino da revolução na Alemanha e para
compreendermos as ideias políticas de Rosa Luxemburg,
era a seguinte: o poder devia ficar nas mãos dos
conselhos ou devia-se eleger uma Assembleia
Constituinte e, neste caso, os conselhos seriam apenas
organismos transitórios de poder?
Na Assembleia Geral dos Conselhos de Berlim,
convocada para 19 de novembro no Circo Busch,
Richard Müller, delegado revolucionário28, defende a
ideia de que os conselhos devem exercer o poder
legislativo e o executivo, no que é apoiado por Karl
Liebknecht e Ledebour (ala esquerda do USPD).
Entretanto, Ebert e Hermann Müller (SPD) são a favor
de uma Assembleia Nacional29. “O voto, numa atmosfera
agitada, não foi claro. A posição dos partidários dos
conselhos não saiu fortalecida de maneira decisiva30.” A
partir desse momento começa a campanha para a
convocação da Assembleia Constituinte.
Entretanto, a derrota decisiva dos partidários dos
conselhos só ocorre mais tarde, no Congresso Nacional
dos Conselhos de Trabalhadores e Soldados, reunido em
Berlim de 16 a 21 de dezembro de 1918. Este rejeitou
por 400 votos a 50 a proposta de que o poder fosse
exercido pelos conselhos e convocou eleições para a
Constituinte, para o dia 19 de janeiro. Este congresso
significou uma clara vitória do SPD e a derrota dos
spartakistas31.
Rosa Luxemburg, numa série de artigos para a Rote
Fahne, critica asperamente a decisão do Congresso a
favor da Assembleia Constituinte como “vitória total do
governo de Ebert, uma vitória da contrarrevolução32.”
Opondo as massas revolucionárias ao Congresso dos
Conselhos de Trabalhadores e Soldados, escreve: “Os
Conselhos de Trabalhadores e Soldados não estão
dissolvidos enquanto força política, não podem ser
dissolvidos. Eles não existem pela graça de qualquer
Congresso, eles nasceram pela ação revolucionária das
massas a 9 de novembro. A massa revolucionária não
cometerá o suicídio que se espera dela33.”
Para ela, a decisão de liquidar os conselhos como
organismos de poder dos trabalhadores e soldados
mostra não apenas “as insuficiências gerais do primeiro
e imaturo estágio da revolução, mas também as
dificuldades especiais desta revolução proletária, sua
maneira própria de exprimir sua situação histórica34.”
Quais são essas dificuldades, no entender de Rosa?
Diferentemente das revoluções burguesas anteriores,
onde a contrarrevolução aparecia às claras, ela surge
aqui sob a capa da socialdemocracia, confundindo as
massas. Aliás, acrescenta, esse tem sido o
comportamento da socialdemocracia desde o 4 de
agosto de 1914. Porém, a revolução tem a sua lei
própria, que é a de se radicalizar. Nesse sentido,
acredita que também na Alemanha, apesar do que
considera a atuação contrarrevolucionária da
socialdemocracia, os conselhos de trabalhadores e
soldados agirão visando à revolução social e fazendo da
atual vitória de Ebert uma “vitória de Pirro”.
Rosa Luxemburg, nestes artigos, tem como fundamento
teórico as linhas gerais que desenvolvera no Programa
da Liga Spartakus, último texto desta coletânea,
redigido dias antes e publicado a 14 de dezembro na
Rote Fahne. Como diz Nettl, um de seus biógrafos, “o
programa de Spartakus era o testamento de Rosa e o
resumo conciso da obra de sua vida inteira35.” Nele
continua proclamando a alternativa socialismo ou
barbárie posta pela guerra perante a sociedade: apenas
a “revolução mundial do proletariado” pode evitar o caos
que ameaça a sociedade do pós-guerra e fundar o
socialismo, “única tábua de salvação da humanidade36.”
Também permanece a ideia, sempre defendida por ela,
de que o socialismo é obra dos próprios trabalhadores e
não de um partido que se ergue por sobre as massas
para comandá-las. Além disso, naquele momento, com a
criação dos Conselhos de Trabalhadores e Soldados por
toda a Alemanha, Rosa passa a ter um modelo concreto,
ainda que incipiente, de como as massas podem exercer
o poder. Isso do ponto de vista político. Contudo, a
verdadeira revolução é econômica e visa a direção da
produção pelos próprios trabalhadores. Isto é, as massas
deixam de ser comandadas e passam a dominar as suas
próprias vidas: “As massas proletárias devem aprender,
de máquinas mortas que o capitalista instala no
processo de produção, a tornar-se dirigentes autônomas
deste processo, livres, que pensam. Devem adquirir o
senso das responsabilidades, próprio de membros
atuantes da coletividade, única proprietária da
totalidade da riqueza social. Precisam mostrar zelo sem
o chicote do patrão, máximo rendimento sem o
contramestre capitalista, disciplina sem sujeição e
ordem sem dominação. O mais elevado idealismo no
interesse da coletividade, a mais estrita autodisciplina e
o verdadeiro senso cívico das massas constituem o
fundamento moral da sociedade socialista, assim como
estupidez, egoísmo e corrupção são os fundamentos
morais da sociedade capitalista37. Como vemos, Rosa
Luxemburg tem em mente um longo desenvolvimento,
toda uma transformação interior do proletariado que se
dá no decorrer do processo revolucionário e sem a qual
não há base para o advento de uma sociedade livre.
Estas ideias serão retomadas mais tarde no discurso
pronunciado no congresso de fundação do KPD
(Spartakusbund), no dia 31/12/1918. Nesse discurso,
Rosa Luxemburg defende vivamente a ideia de que para
se fazer uma revolução socialista não basta substituir o
governo capitalista Ebert-Scheidemann por um governo
proletário e socialista. Pelo contrário. No fim do mês de
dezembro, ela continua afirmando que a revolução tem
pela frente uma longa tarefa. Trata-se de minar
“progressivamente o governo Ebert-Scheidemann
através de uma luta de massa socialista e
revolucionária38.” Neste discurso, é cristalina a sua
posição a respeito da derrubada do governo, objetivo da
insurreição de janeiro, alguns dias mais tarde. No
Programa da Liga Spartakus também não havia lugar
para dúvidas quanto à tática a seguir: “A Liga Spartakus
nunca tomará o poder a não ser pela vontade clara e
inequívoca da grande maioria da massa proletária em
toda a Alemanha. Ela só tomará o poder se essa massa
aprovar conscientemente os projetos, objetivos e
métodos de luta da Liga Spartakus39.”
Da mesma forma, no discurso aos delegados do
congresso de fundação do KPD, ela enfatiza
incansavelmente a necessidade de conquistar
progressivamente o poder pela base; o que, naquele
momento preciso, significava não só transferir o poder
aos conselhos de operários e soldados, como aumentar o
próprio sistema dos conselhos, incorporando os
trabalhadores agrícolas e os pequenos camponeses. O
fim do discurso consiste numa profissão de fé na
capacidade das massas de se auto-emanciparem, na
medida em que exercitam o poder por elas mesmas:
“Exercendo o poder é que a massa aprende a exercer o
poder. (...) Sua educação faz-se quando passam à ação.
No começo era a Ação, tal é aqui a divisa. E a ação é que
os conselhos de operários e soldados sentem-se
chamados a tornar-se o único poder público no Império e
aprendem a sê-lo. (...) Devemos conquistar o poder
político não a partir de cima, mas a partir de baixo. (...)
Tal como a descrevo, a marcha da operação apresenta-se
mais lenta do que se poderia pensar num primeiro
momento40.”
Talvez pudéssemos dizer que nesse período Rosa
Luxemburg está dividida entre o que Gramsci chamou o
otimismo da vontade e o pessimismo da razão.
Expliquemo-nos.
Desde a guerra, como dissemos, ela apontara a
revolução socialista como a única possibilidade de salvar
a humanidade da barbárie. Finalmente, o tão esperado
momento de ruptura surge das entranhas de uma
sociedade em decomposição, o proletariado alemão que
durante quatro anos cumprira docilmente as regras
dessa sociedade parece resolvido a tornar-se sujeito da
própria história. Pelo menos na interpretação de Rosa os
acontecimentos apontam nessa direção. Os conselhos
surgem espontaneamente por toda parte mostrando a
criatividade das massas; o governo socialdemocrata, ao
reprimir duramente manifestações de trabalhadores e
soldados, mostra seu conteúdo contrarrevolucionário; as
massas na rua, enfrentando a repressão governamental,
deixam de ser a dócil bucha para canhão da época da
guerra e vêm confirmar as ideias de Rosa de que elas,
assim como “Thalatta, o mar eterno” contêm em si
“todas as possibilidades latentes: mortal calmaria e
enfurecida tempestade, baixa covardia e selvagem
heroísmo. A massa é sempre aquilo que precisa ser, de
acordo com as circunstâncias, e está sempre pronta a
tornar-se outra do que aquilo que parece”, como escreve
numa carta41. Isto é, as massas guardam em si
potencialidades insuspeitas que se desenvolvem
conforme o clima político em que vivem. E a revolução
oferece a atmosfera mais propícia para que essas
potencialidades se efetivem. Eis o otimismo da vontade!
Contudo, não há via larga rumo ao socialismo; é o que
Rosa também nos diz, quando se refere à revolução
como uma longa e árdua tarefa. Aliás, desde o início do
Congresso do KPD, ela deixa bem clara sua divisão
interna ao dizer que encara a atmosfera inflamada da
reunião com “um olho que ri, outro que chora42.” O
ímpeto revolucionário dos militantes spartakistas alegra-
a e preocupa-a. Para os jovens operários, membros da
Liga, ação e mais ação era o único meio de romper
radicalmente com a velha sociedade.
Consequentemente, opõem-se à participação nas
eleições para a Assembleia Constituinte, marcadas para
19 de janeiro. Como vimos anteriormente, quando se
tratava de tomar posição pelos conselhos contra a
Constituinte, Rosa atacou vivamente a socialdemocracia
majoritária por ter, no seu entender, manobrado a favor
da Constituinte. Porém, uma vez essa posição vitoriosa e
dado o grau de “imaturidade das massas”, ela evita cair
num esquerdismo inconsequente, defendendo a proposta
de participação nas eleições, a qual é derrotada no
Congresso por 72 votos a 23. Comparando a situação
russa e a alemã, declara no seu discurso aos delegados:
“Esquecestes (...) que antes da dissolução da Assembleia
Nacional algo diferente ocorrera, a tomada do poder
pelo proletariado revolucionário? Já tendes hoje
porventura um governo socialista, um governo Lenin-
Trotski? A Rússia já possuía antes uma longa história
revolucionária que a Alemanha não tem43.”
O que a Revolução Alemã mostrara até então tinha sido
a “imaturidade das massas44.” É pois tarefa dos
revolucionários educá-las. A participação nas eleições é
um meio tático a ser utilizado. Neste momento preciso,
sua posição moderada, que decorre da análise da
correlação de forças, o pessimismo da razão, contrasta
vivamente com o tom exaltado dos artigos da Rote
Fahne, em que conclama continuamente o proletariado a
agir. Por que isto ocorre? Lembremos apenas o que já
dissemos a respeito da Liga Spartakus, um grupo
reduzido de militantes aguerridos, sem chance de
chegar ao poder, que via na propaganda o meio por
excelência de influenciar as massas. O jornal é
precisamente o veículo utilizado para isso. Entretanto,
Nettl tem razão quando diz que “essa alegre exaltação,
esse entusiasmo pelo movimento de massa, o apelo
constante à ação e à clarificação – tudo isso contribuiu
para criar a atmosfera propícia ao levante desesperado
de janeiro no qual Liebknecht e Rosa Luxemburg foram
mortos45.”
****
Os acontecimentos precipitavam-se. Multidões
desfilavam continuamente pelas ruas de Berlim.
Manifestações, incidentes, pequenos ou importantes
ocorriam a todo o momento. A 4 de janeiro, finalmente, o
governo decidiu afastar o chefe de polícia, Eichhorn, um
independente do USPD, hostil à socialdemocracia
majoritária, e substituí-lo por um socialdemocrata de
direita, Ernst, em quem o partido confiava. Eichhorn
negou-se a deixar
o posto, alegando ser responsável apenas perante o
Comitê Executivo dos Conselhos de Trabalhadores e
Soldados de Berlim (Vollzugsrat).A direção do KPD
reúne-se no mesmo dia e discute que resposta dar à
exoneração do chefe de polícia. Conclui pela
impossibilidade de chamar à insurreição, limitando-se a
conclamar o proletariado a manifestar-se ’contra a
exoneração. Entretanto, a manifestação do dia 5, muito
superior ao esperado, fez nascer na cabeça de um certo
número de dirigentes46 a ideia da tomada do poder.
Liebknecht, Ledebour e Scholze47 constituem então um
comitê provisório encarregado de dirigir a insurreição.
Não esqueçamos que Liebknecht agia à revelia do KPD,
que via a insurreição como uma aventura condenada ao
fracasso. A 14 de janeiro, quando Rosa leu no Vorwärts a
proclamação assinada por Liebknecht, dizendo que “o
comitê revolucionário assumia provisoriamente as
funções governamentais”, teria dito, aterrada: “Mas
Karl, e o nosso programa? 48
Testemunhos mostram-nos, durante a semana
sangrenta, uma Rosa “esmagada pelo curso dos
acontecimentos”,49 dividida entre as convicções
expostas no programa da Liga Spartakus e no discurso
ao Congresso de fundação do KPD, em que a revolução
aparecia como um longo processo de lutas políticas, mas
sobretudo econômicas, que culminariam na tomada do
poder, e a impossibilidade de recuar, uma vez as massas
na rua. Rosa Luxemburg e o KPD, “com um espírito
cavalheiresco digno de D. Quixote”, correram em
socorro de uma empresa revolucionária que não haviam
começado e cujos objetivos não aprovavam, mas que não
podiam deixar fracassar50.” Rosa, que sempre defendera
a ação autônoma das massas, não podia agora recuar,
embora não acreditasse no sucesso da insurreição.
Parece que ela espera um “toque de varinha mágica”51
que faça com que a ação das massas consiga levar a
revolução a um ponto de não retorno, apesar das
insuficiências e fraquezas do primeiro momento. Como
sabemos, isso não aconteceu.
****
É impossível retraçar aqui o desenrolar da insurreição,
as alianças, avanços e recuos dos dirigentes. O que
podemos dizer rapidamente é que o governo
socialdemocrata, para preservar o que mais prezava – a
ordem –, preferiu esmagar violentamente a revolução.
Com esse objetivo, fez aliança com forças do antigo
regime, como o Exército, além de permitir a criação de
forças paramilitares, como os corpos francos. A
contraofensiva do governo – Noske52 à cabeça liderando
os corpos francos – não se fez esperar. Os spartakistas
são, aos olhos da opinião pública, os responsáveis pela
insurreição e, por isso mesmo, os mais expostos à
vingança. São acusados de quererem derramar sangue,
de desejarem implantar na Alemanha a ditadura do
proletariado e
o terror, acusados inclusive pelos socialdemocratas, os
mesmos que durante os 4 anos anteriores não hesitaram
em aprovar os créditos de guerra. Panfletos pedem o
assassinato de Liebknecht. Em grandes cartazes, lia-se:
“Trabalhadores, cidadãos! A Pátria aproxima-se da
queda. Salvai-a! A ameaça não vem de fora, mas de
dentro, do grupo Spartakus. Matai vossos dirigentes!
Matai Liebknecht! Então tereis paz, trabalho e pão. Os
soldados do front.170 Até o Vorwärts, o órgão central da
socialdemocracia, entrou na campanha anti-spartakista.
No dia 13 de janeiro, por exemplo, publicou um poema
de Artur Zickler, colaborador regular do jornal, em que
os dirigentes spartakistas eram acusados de se esconder
covardemente, ao passo que os operários
autenticamente revolucionários morriam na luta. O
poema era quase um incitamento ao assassinato.53
Todavia, nem Rosa nem Karl pensam em fugir de Berlim.
Limitam-se a mudar de residência todas as noites, na
tentativa de despistar os assassinos. A central do KPD
tinha sido invadida e saqueada pela tropa. Mas como
ambos precisavam continuar o trabalho de redação na
Rote Fahne, ocupam um apartamento no bairro operário
de Neukölln. Percebendo que o lugar não era seguro, no
dia 14 instalam-se no bairro burguês de Wilmersdorf. Foi
aí que cada um escreveu o seu último artigo. O de Rosa
tinha por título “A ordem reina em Berlim”.
A ideia central desse artigo é a de que a revolução não
passa de uma velha toupeira ardilosa prosseguindo
necessária e infatigavelmente o seu caminho,
independentemente das vitórias e derrotas
momentâneas. Aliás, ideia cara a Rosa Luxemburg, as
derrotas são necessárias para a vitória final: “Onde
estaríamos hoje sem todas essas ‘derrotas’ das quais
retiramos nossa experiência histórica, conhecimento,
força e idealismo que nos animam?54”
Vemos aqui uma das ideias constituintes, se não a ideia
central, da sua teoria política: a de que a consciência de
classe é resultado da experiência das massas, da qual as
derrotas também fazem parte. Para ela, é preferível uma
derrota política, como foi
o caso da insurreição de janeiro, a uma derrota moral,
como o 4 de agosto de 1914, quando a socialdemocracia,
ao aprovar os créditos de guerra, abandonou todos os
seus princípios. No seu entender, uma vitória moral
acaba dando frutos no futuro, o mesmo não acontecendo
quando a vitória é resultado da Realpolitik que, no caso,
significava fazer aliança com as forças do antigo regime
para derrotar a revolução, vista pela socialdemocracia
majoritária como ameaça a uma transição lenta, gradual
e segura rumo à democracia. Se Rosa neste artigo
conclui de maneira excessivamente otimista que “a
vitória florescerá do solo desta derrota”, isso ocorre em
virtude do que já dissemos antes: a necessidade da
propaganda, de levantar o ânimo das massas, e não por
qualquer crença ingênua na inexorabilidade da vitória
da revolução proletária.
Como já foi mencionado, desde a crise da
socialdemocracia ela abandonara seu otimismo
revolucionário anterior à guerra, ao simbolizar na
palavra de ordem socialismo ou barbárie a alternativa
enfrentada pela humanidade. A adesão do proletariado à
guerra fortalecera nela a convicção de que a consciência
de classe é produto da luta e não uma essência imutável,
algo assim como uma característica natural do
proletariado, consequência de sua situação na produção.
É na ação que ele se torna revolucionário, e não por
acaso Rosa tem como lema o verso do Fausto, “no
princípio era a ação”. Assim sendo, não há garantia de
vitória, quando muito há possibilidades. Isto é, na sua
concepção, diferentemente da concepção da
socialdemocracia ortodoxa, o proletariado não nada com
a corrente em direção ao paraíso socialista. A revolução
não é fruto do desenvolvimento natural das contradições
da sociedade capitalista, mas resultado da tomada de
consciência por parte das massas espoliadas, sedentas
de vingança.
****
Contrariamente “aos velhos e sóbrios cidadãos da
socialdemocracia defunta, para quem os carnês de
filiação são tudo e os homens e o espírito nada”, acredita
Rosa que “não se faz história sem grandeza de espírito,
sem pathos moral, sem gestos nobres55.” O seu universo
espiritual, tal como exposto no primeiro artigo escrito
para a Rote Fahne logo após sair da prisão, em que
exige do Comitê Executivo dos Conselhos de
Trabalhadores e Soldados (Vollzugsrat) a melhoria das
condições de vida dos prisioneiros comuns e o fim da
pena de morte, é o oposto da estreiteza burocrática,
tanto da socialdemocracia quanto dos partidos
comunistas stalinizados. Rosa exige o fim da pena de
morte e explica por que: “Durante os quatro anos de
massacre dos povos, o sangue correu em torrentes.
Hoje, cada gota deste precioso fluido deveria ser
preservado devotadamente em urnas de cristal. A mais
violenta atividade revolucionária e a mais tolerante
humanidade: este é o único e verdadeiro alento do
socialismo. É preciso revirar um mundo. Mas cada
lágrima que corre, onde poderia ter sido evitada, é uma
acusação. E aquele que, para realizar algo importante,
apressadamente e com brutal inadvertência, esmaga um
pobre verme, comete um crime56.”
Hoje, após as desventuras da dialética em nosso século,
parece-nos utópica, não só a ideia da revolução como
parteira de um mundo justo e livre, como também a de
um socialismo humanista e democrático, em que todas
as potencialidades do homem poderiam efetivar-se.
Entretanto, para essa revolucionária assassinada em
1919, poupada do stalinismo, do nazismo e do
capitalismo tardio, essa ideia estava na ordem do dia e o
futuro em aberto.
São Paulo, junho de 1990
Isabel Maria Loureiro
Prof.ª. do Departamento de Filosofia da UNESP.
1 NOTAS
Zeit, 13/1/1989.
6 Pabst chega a mostrar um certo respeito por Rosa,
lutte! , p. 193.
13 Tradução brasileira publicada pela Kairós, São Paulo,
1979.
14 Rosa Luxemburg. Gesammelte Werke, vol. 2. Berlim,
je serai! p. 152.
26 Margarethe von Trotta, Ensslin, Christiane. Rosa
Luxemburg. Das Buch zum Film. Nördlingen Franz
Greno, 1986, p. 210.
27 Os membros do SPD contrários à guerra realizam uma
p. 468.
33 Id., p. 466.
34 Id., p. 468.
35 J.P. Nettl. La vie et l’oeuvre de Rosa Luxemburg. Paris,
revolucionários, spartakistas.
47 Delegados revolucionários.
48 Badia. Rosa Luxemburg, Journaliste..., p. 383. Nettl,
I.
II
1 NOTAS
II
O primeiro período da Revolução Russa, desde a sua
explosão em março até a mudança de regime em
outubro, corresponde exatamente, em seu curso geral,
ao esquema evolutivo das grandes revoluções inglesa e
francesa. É o devir típico de todo primeiro grande
conflito generalizado das forças revolucionárias,
engendradas no seio da sociedade burguesa, contra as
cadeias da velha sociedade.
III
***
IV
1 NOTAS
1909.
41 A Constituição de 10 de julho de 1918 reconhecia o
Provas:
1) Prússia oriental. As pilhagens dos ‘cossacos’.
2) A generalização, na Alemanha, das pilhagens e dos
roubos (‘fraudes’, pessoal dos correios e estradas de
ferro, polícia, fronteiras completamente suprimidas
entre a sociedade bem ordenada e a penitenciária).
3) A rápida depravação dos dirigentes sindicais. Contra
isso, medidas de terror draconianas são impotentes. Ao
contrário, elas corrompem ainda mais. Único antídoto:
idealismo e atividade social das massas, liberdade
política ilimitada.”
I
A 9 de novembro, na Alemanha, os operários e soldados
destruíram o antigo regime. Nos campos de batalha da
França, dissipara-se a ilusão sangrenta de que o sabre
prussiano dominava o mundo. O bando de criminosos
que havia começado o incêndio mundial e precipitado a
Alemanha num mar de sangue, gastara todo o seu latim.
Enganado durante quatro anos o povo que, a serviço do
Moloch2, esquecera os deveres impostos pela civilização,
o sentimento da honra e a humanidade, que se deixara
usar para qualquer infâmia, esse povo despertou do
sono de quatro anos – à beira do abismo.
II
III
A Liga Spartakus
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