A Revolucao Russa - Rosa Luxemburg

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Introdução
“Não nos falta nada, minha mulher, meu filho, para
sermos livres como os pássaros; nada, a não ser
tempo!”
(Dehmel, citado por Rosa Luxemburg)
I
Conta Mathilde Jacob, secretária e amiga de Rosa
Luxemburg, que, ao ser presa no início de janeiro de
1919 – momento em que a caçada aos spartakistas se
torna mais e mais violenta –, foi visitada na prisão de
Moabit por um jovem advogado. Pergunta-lhe o que se
passa lá fora. Resposta: “Nada de novo. Rosa
Luxemburg e Karl Liebknecht foram assassinados. Agora
temos novamente sossego1.”
“Sangue clamava por sangue! O banho de sangue pelo
qual Liebknecht e Rosa Luxemburg eram responsáveis
clamava por castigo. Este não tardou, e no caso de Rosa
Luxemburg foi cruel, mas justo. A galiciana foi
espancada até à morte. A temível e todo-poderosa cólera
popular exigia vingança.” Assim se exprimia a imprensa
de direita, no caso o Tägliche Rundschau2.
Logo após o assassinato dos dois chefes spartakistas
correu a versão de que Karl Liebknecht teria sido
baleado numa tentativa de fuga, ao ser transportado
para a prisão de Moabit, e Rosa Luxemburg linchada
pela multidão enfurecida. Estranha versão, aceita sem
crítica, até mesmo pelo comissário do povo Philipp
Scheidemann, antigo companheiro de partido, para
quem Liebknecht e Luxemburg “foram vítimas da sua
própria tática terrorista e sanguinária. (...) A derrota do
levante spartakista significa para o nosso povo e, em
particular, para a classe operária, um ato de salvação
que, perante a história, tínhamos o dever de realizar3.”
A versão não tardou a ser denunciada pela imprensa de
esquerda. Quando a verdade sobre o assassinato se
tornou pública, o governo foi forçado a processar os
criminosos. A corte marcial realizou-se de 8 a 14 de
maio de 1919.Ojulgamento não passou de uma farsa,
como o próprio assassino reconheceu4.
Muito se disse sobre o fim violento de Rosa Luxemburg e
Karl Liebknecht, prenúncio de tempos sombrios. É certo
que o governo socialdemocrata não deu ordem expressa
para assassinar os dois chefes spartakistas. Também é
certo que nada fez para impedi-lo.
Em 1962, o capitão Pabst, 1º oficial do Estado-maior da
divisão da cavalaria da guarda, uma das formações
paramilitares criadas no início de 1919 para combater
os grupos de esquerda, deu a entender, em entrevista a
Der Spiegel, que fora diretamente responsável pelo
assassinato. Mais tarde, no início de 1966, o mesmo
Pabst, então com 85 anos, declarou: “Precisamos
reconhecer nosso passado. Ninguém deve envergonhar-
se daquilo que fez. Dei aos homens a ordem, que foi
cumprida como devia ser. Esses homens foram dignos da
Alemanha5.” Quando indagado por que dera ordem para
matar uma mulher que notoriamente tivera um papel
passivo no levante spartakista, Pabst contou uma
estranha história: um dia, um comandante de regimento,
nobre e católico, chegara à divisão do Estado-maior e
pedira permissão para que Rosa Luxemburg falasse à
tropa. O oficial, ouvindo-a, ficou tão impressionado que a
“considerou uma santa”, “um novo Messias.” Pabst:
“Nesse momento, dei-me conta do enorme perigo que
essa mulher representava. Era pior que os outros, os
que estavam armados. Tomei a decisão, assim que fosse
comandante de regimento, de eliminar essa demagoga”.
Disse ainda temer que, mesmo se Rosa fosse novamente
presa, seria posta em liberdade mais cedo ou mais tarde.
Decidiu-se, por isso, a fazer justiça por conta própria6.
O ódio irracional da direita pelos spartakistas e, em
particular, por Rosa Luxemburg, persistiu na Alemanha
Ocidental, o que em parte se explica por ela ser judia,
estrangeira e marxista. Em 1974, o governo
socialdemocrata da RFA decidiu lançar um selo
comemorativo em sua homenagem. Essa iniciativa
desencadeou intensa campanha de repúdio, fazendo vir
novamente à tona velhos conflitos não resolvidos. Eis um
exemplo: “...fui membro dos corpos francos, ‘Divisão de
Ferro’. (...) Sob o comando do ministro socialdemocrata
Gustav Noske, os corpos francos realizaram seu dever
patriótico de manter o bolchevismo afastado do Reich. E
este é o mérito histórico de Friedrich Ebert e Gustav
Noske: ter aniquilado o sangrento levante da Liga
Spartakus...7” O assassinato continua sendo justificado,
agora, em nome da defesa contra o terrorismo que
tomava conta da Alemanha. Rosa é confundida pela
opinião pública com Ulrich Meinhof.
Já na Alemanha oriental, até recentemente, Rosa
Luxemburg e Karl Liebknecht eram encarados, pela
burocracia dirigente, como os pais fundadores e
primeiros mártires do comunismo alemão. O 15 de
janeiro, data do assassinato, era a ocasião de reafirmá-lo
e de ligar o nome de ambos às conquistas materiais ali
realizadas com grandes dificuldades, como se essas
conquistas encarnassem o “novo mundo” socialista por
eles sonhado. Não deixa de ser curioso que também a
oposição, na Alemanha oriental, se manifestasse contra
o regime em nome das ideias da própria Rosa. Mesmo
agora, após a derrota do comunismo, grupos socialistas
de oposição continuam exigindo a necessidade de se
resgatar suas ideias políticas, como alternativa
democrática e socialista ao comunismo e ao capitalismo.
Que Rosa Luxemburg seja até hoje odiada pela direita,
na Alemanha, é compreensível e revela muito dessa
sociedade. Mas que continue sendo uma figura
controversa nos meios de esquerda, cujas ideias e
exemplo são reivindicados, tanto pelos comunistas
ortodoxos quanto pelos socialistas democráticos, já é
mais difícil de compreender. Tentaremos esclarecer essa
controvérsia, expondo rapidamente a sua trajetória
intelectual e política na socialdemocracia alemã,
detendo-nos, particularmente, no período da revolução
(1918-1919), que acreditamos crucial nessa trajetória.
Além disso, os três textos publicados nesta coletânea são
fundamentais para compreendermos a polêmica. Os dois
primeiros, um por criticar a teoria leninista do partido, o
outro a política autoritária dos bolcheviques logo após a
insurreição de outubro, foram continuamente utilizados
pelos socialistas democráticos contra os comunistas,
muitas vezes com citações fora de contexto. Já o terceiro
deles, “Oque quer a Liga Spartakus?”, é menos dado a
utilizações ambíguas, uma vez que Rosa aí defende
claramente sua posição democrática, socialista e
revolucionária.
II
Rosa Luxemburg nasceu a 5 de março de 1870, em
Zamosc, Polônia, sendo a mais nova dos cinco filhos do
casal8. O pai, Elias, era madeireiro e simpatizava com os
movimentos nacionalistas revolucionários da Polônia. A
mãe, Lina Löwenstein, descendia de uma família de
rabinos. Mais de um terço da população de Zamosc era
judia, como os Luxemburg. Estes tinham grande
admiração pela cultura alemã, a mãe gostava em
particular de Schiller, de tal maneira que em casa falava-
se o alemão. Rosa aprendeu cedo também o polonês e o
russo.
A partir de 1873, em virtude de sérios problemas
financeiros, a família muda-se para Varsóvia onde, em
1880, Rosa passa a frequentar um ginásio para moças.
Em 1887, começa a participar do movimento operário
polonês, ilegal.
Em 1889, para não ser presa, foge para Zurich onde
estuda ciências, matemática, direito e economia política
na universidade. Em 1897, defende sua tese de
doutorado sobre o desenvolvimento industrial na
Polônia. Um ano mais tarde vai para Berlim, para
trabalhar na socialdemocracia alemã.
Pode-se dizer que os 23 anos que vão de 1891 a 1914,
extremamente ricos do ponto de vista teórico, tem como
fio condutor a criação, o apogeu e o desmoronamento da
II Internacional. É contra esse pano de fundo que se
destaca a obra de Rosa Luxemburg do período.
Ao chegar a Berlim, o SPD atravessa um momento difícil
que a imprensa burguesa chama de “crise do
marxismo”, e que se traduz no revisionismo de
Bernstein. Contra essa tendência reformista no interior
da socialdemocracia Rosa Luxemburg escreve Reforma
social ou revolução?9 Com essa polêmica, torna-se
conhecida e respeitada no interior do Partido Social
Democrata Alemão (SPD).
Um ano após sua chegada a Berlim, Rosa toma
consciência da fraqueza teórica do SPD, sobretudo da
superficialidade da implantação do marxismo no partido,
que era sobretudo dominado pelos políticos
pragmáticos. Passa então a ter como objetivo lutar
contra o torpor que domina a socialdemocracia alemã,
mesmo correndo o risco de desagradar a quase todos,
em virtude de suas posições intransigentes e
inconformistas. Entretanto, a rejeição parece não
incomodá-la. Rosa sabe que nunca será totalmente
aceita no SPD, e isso por três razões: por ser mulher,
judia polonesa e marxista de extrema-esquerda. O que
não a impede de lutar contra todas as posições que
considera equivocadas. Sua linha de conduta é
cristalina: permanecer livre acima de tudo, tanto do
ponto de vista pessoal quanto político.
Embora nessa época Rosa já seja uma personalidade
estabelecida no SPD, não se sente à vontade “na
atmosfera pequeno-burguesa da socialdemocracia
alemã10.” Um caráter inquieto, sempre em busca do que
considera as posições teóricas e políticas corretas, não
lhe permite ficar imobilizada usufruindo da notoriedade
adquirida. Em agosto de 1904, o Congresso Socialista
Internacional de Amsterdã, em que o revisionismo é
finalmente derrotado pelo marxismo ortodoxo11, provoca
o início de uma mudança de orientação que a leva a
reexaminar os objetivos e a estratégia de toda a
esquerda marxista. Os dois meses passados na prisão de
Zwickau permitem-lhe refletir sobre a polêmica entre
ortodoxos e revisionistas e chegar à conclusão de que o
papel representado pelo marxismo ortodoxo “não me
encanta nem um pouco12.”
Rosa não tem como objetivo ser guardiã da ortodoxia. A
nova proposta por ela elaborada centra-se na ideia de
que apenas fortalecendo o lado revolucionário dentro da
organização se poderá combater o oportunismo que
toma conta das suas fileiras.
Foi também nessa época, mais precisamente no início de
1904, que Rosa publicou “Questões de organização da
socialdemocracia russa”, o primeiro texto da presente
coletânea. Neste artigo, contra o que considera o
excessivo centralismo de Lenin em relação ao partido,
defende a ideia de que as direções têm um papel
insignificante na elaboração da tática. Esta é muito mais
resultado de grandes atos criadores da luta de classes,
na maior parte das vezes espontânea, que invenção dos
dirigentes. Rosa teme que a concepção centralizadora
de Lenin sufoque e controle a atividade do partido russo,
alertando para o risco de dominação de um movimento
operário ainda jovem por uma burocracia centralizada
nas mãos de intelectuais. Este artigo, um dos muitos que
escreveu contra as tendências blanquistas, conspirativas
no movimento operário russo e polonês, acabou tendo
grande divulgação nos meios de esquerda anti-
stalinistas, justamente por chamar a atenção para o
perigo do sufocamento da atividade das massas por um
partido centralista e burocrático.
A mudança de orientação acima mencionada, que se
esboça no final de 1904, só irá solidificar-se
verdadeiramente a partir da revolução russa de 1905.
Os artigos, a correspondência e os discursos dessa
época são testemunhas de seu entusiasmo em relação
aos acontecimentos na Rússia e na Polônia. O contato
direto com a revolução é o que provoca a grande
mudança desses anos, dando-lhe novo vigor e novas
perspectivas. Em contraste com a dinâmica
revolucionária em São Petersburgo e Moscou, fica ainda
mais evidente para ela o imobilismo do SPD. É nesse
período que elabora sua concepção da greve de massas
revolucionárias e escreve Greve de massas, partido e
sindicatos13, onde faz um balanço da Revolução Russa. A
experiência revolucionária fortaleceu nela a convicção
de que as grandes transformações históricas não são
desencadeadas pelas organizações (ainda que estas
tenham um papel relevante a desempenhar nesse
processo), e de que a consciência de classe é resultado
da luta revolucionária: “um ano de revolução deu ao
proletariado russo essa ‘educação’ que trinta anos de
lutas parlamentares e sindicais não podem dar
artificialmente ao proletariado alemão14.”)
Rosa divulga incansavelmente sua concepção da greve
de massas em inúmeros artigos e discursos, procurando,
ao mesmo tempo, dar novo conteúdo ao papel que
desempenha no SPD: não ser apenas crítica, mas
também direção intelectual e política de uma esquerda
revolucionária. Começa então a tomar corpo a formação
de uma ala esquerda independente, em divergência com
o centro do partido, para quem o marxismo não passava
de ideologia legitimadora.
Em 1910, Rosa Luxemburg rompe com Kautsky. Em
cartas a Jogiches15 confessa o quanto, no início, lhe pesa
e desagrada a amizade dos Kautsky. A aproximação
entre eles ocorre pela necessidade de combater o
revisionismo. Com o tempo, Rosa torna-se grande amiga
do casal, sobretudo de Luise, de quem nunca se afasta,
apesar da ruptura com Karl. Aliás, ela sempre foi dura e
mordaz em relação a ele, não o levando em consideração
do ponto de vista teórico. Mas apenas após a ruptura,
que ocorreu em função de divergências sobre a tática e
a estratégia da socialdemocracia, Rosa dá-se conta de
que Kautsky é muito mais ideólogo que teórico e que seu
marxismo é atravessado por um viés cientificista,
positivista, substituindo a dialética pelo evolucionismo e
interpretando o materialismo histórico sob o ponto de
vista do darwinismo social. A partir de então, Kautsky
torna-se o alvo de seus ataques. Rosa procura, com isso,
manter acesa a discussão sobre a greve de massas que a
direção do partido procurava abafar.
Desde essa época, torna-se evidente a separação entre a
ala esquerda e a maioria do partido. De acordo com
Rosa, o SPD passa por uma crise mais profunda que na
época do revisionismo na medida em que, ao afundar no
marasmo, representa um obstáculo ao élan
revolucionário que acredita estar começando na
Alemanha. Lembremos que, no início de 1910, a luta
pelo sufrágio universal na Prússia16 dá grande impulso
às ações de massa. Kautsky, no entanto, continua
defendendo apenas a luta parlamentar, pondo-se assim
ao lado da direção do partido, cuja tática, no momento,
era centrar forças na preparação das eleições de 1912.
Rosa, consequentemente, passa a acusar a direção do
SPD de usar a autoridade do partido para frear, na
prática, as ações de massa.
Além disso, nesses 4 anos que antecederam a guerra,
ela dedica-se à intensa elaboração teórica com o objetivo
de criar uma estratégia ofensiva contra o imperialismo.
São anos em que se ocupa de economia política, aliás, a
disciplina que ministrava, desde 1907, na escola do
partido. Com o material usado na preparação dos cursos
escreve a Introdução à economia política,17 livro que
permanece fragmentário, sendo publicado apenas em
1925. Em 1913, publica A acumulação do capital18,
considerada sua obra teórica de maior fôlego. Neste
livro, Rosa mostra a impossibilidade de uma acumulação
contínua do capital que garantisse bem-estar e
progresso econômico. O capitalismo, para continuar
acumulando, necessita expandir-se para a periferia, até
que o mundo, totalmente colonizado por ele, será
atingido por crises que o farão perecer. Entretanto, Rosa
não vê o colapso do capitalismo como um processo
automático, que se daria meramente em função de suas
incuráveis contradições internas, mas como um processo
que carece da luta consciente das massas trabalhadoras.
Uma das preocupações principais da autora nesta obra é
fazer com que os militantes compreendam a relação
existente entre a política expansionista e o estágio do
capitalismo imperialista, com sua corrida às armas.
Nessa época, ela encontra-se isolada no interior do SPD
e aproveita todas as oportunidades para fazer agitação
nas bases. Essa foi a saída que lhe restou, uma vez que
as páginas da Neue Zeit e do Vorwärts19 lhe estavam
vedadas, e que apenas alguns jornais de província
publicavam seus artigos. É nessa perspectiva que se
deve entender sua luta contra o militarismo, na qual,
aliás, parece ter sucesso.
Após a decepção com o malogro da campanha pelo voto
universal na Prússia e o consequente refluxo das
massas, ela volta novamente, em fins de 1913, a
discursar perante auditórios cheios e calorosos20. A
enorme popularidade de que é alvo em fins de 1913 e
começos de 1914 resulta da perseguição que sofre em
virtude de um discurso antimilitarista pronunciado em
setembro de 1913 numa localidade perto de Frankfurt.
Nas manifestações organizadas pelo SPD em sua defesa,
Rosa declarava: “Todos os esforços do militarismo
massacrador de povos quebrar-se-ão contra a resistência
da classe operária, assim como o vidro se quebra contra
o granito21. Alguns meses bastaram para Rosa perceber
que se enganara.
A 4 de agosto, a aprovação unânime dos créditos de
guerra por parte da bancada socialdemocrata no
Reichstag representa o golpe de misericórdia nas suas
esperanças. Como sabemos, a socialdemocracia
converte-se à política da União Sagrada em torno da
pátria22, abandonando o princípio marxista da luta de
classes, tanto no plano prático, o que não era novidade,
quanto no teórico. A Internacional-Kautsky passará a
explicar – é instrumento adequado a tempos de paz, não
a tempos de guerra.
O que podemos considerar o segundo grande período de
sua vida e obra é dominado, num primeiro momento,
pela guerra e, posteriormente, pelas revoluções russa e
alemã. Rosa fica profundamente abalada com o
comportamento da socialdemocracia durante a guerra.
No fim de 1914 e início de 1915, passa alternadamente
da esperança ao desespero. Apesar disso, não fica
paralisada. É nessa época que se torna amiga de Karl
Liebknecht, quando se constitui o núcleo
internacionalista, pequeno grupo de socialistas
independentes que se opõem à guerra.
Durante a permanência na prisão23 dedica-se a um
intenso reexame de suas ideias. É dessa época o famoso
panfleto de Junius, escrito na primavera de 1915 e
publicado em janeiro de 1916 com o título A crise da
socialdemocracia. Essa brochura representa um
impiedoso ajuste de contas com a Internacional
socialista, com a socialdemocracia alemã e com o
próprio proletariado por terem todos, cada um à sua
maneira, aderido ao delírio bélico. No seu entender, a
humanidade encontra-se perante a seguinte alternativa:
socialismo ou barbárie. Pensa, entretanto, que nem tudo
estará perdido se as massas proletárias souberem tirar
lições dos seus próprios erros.
As cartas escritas na prisão revelam o questionamento
dilacerante, inacabado e assistemático a que se entrega.
Nesse processo mostra grande força, proveniente não só
do estudo e do trabalho teórico, mas também da sua
visão de mundo, onde dominavam dois aspectos
fundamentais: uma posição ética e uma filosofia da
história24.
Do ponto de vista ético, a sua posição consiste em não se
deixar arrastar pela corrente, em “ser sólida, lúcida e
alegre, sim, alegre apesar de tudo, pois gemer é coisa
dos fracos.25” Para ela, o plano político e o pessoal
nunca se separam. Por isso, com o objetivo de
permanecer um ser humano íntegro, apesar da
degradação à sua volta, adota uma linha de
comportamento em que o fundamental é conservar-se
fiel a si mesma.
Paralelamente, a sua filosofia da história fundamenta o
otimismo com que encara, apesar da guerra, a cena
política alemã. Rosa pensa que a história sabe sempre
encontrar uma saída para a situação mais desesperada;
há nela uma lógica objetiva que a faz caminhar no bom
sentido, mesmo se não corresponde aos desejos dos
homens. E são as massas que farão brotar a semente de
liberdade contida na história. A guerra fez com que a
sua anterior concepção sobre as massas se nuançasse.
Estas não são mais vistas como eternamente
revolucionárias, uma vez que aderiram vivamente ao
delírio guerreiro. Contudo, se a emancipação humana
não é uma utopia abstrata, são as massas que se tornam
revolucionárias, dependendo da conjuntura, as
portadoras da libertação.
No seu terceiro ano de prisão, mais precisamente em
setembro de 1918, Rosa Luxemburg escreve as notas
conhecidas com o título “A Revolução Russa”, segundo
texto desta coletânea. As ideias expostas nessa brochura
foram usadas durante muito tempo pela
socialdemocracia contra o comunismo, e até
recentemente – quando a oposição protestava contra o
governo na Alemanha oriental – fazia-o, usando como
slogan a famosa formulação: “liberdade é sempre a
liberdade daquele que pensa de modo diferente”. Frases
pinçadas aqui e ali acabaram, muitas vezes, por reduzir
Rosa Luxemburg a uma liberal. Que ela nunca foi.
Nestas notas redigidas na prisão, e publicadas
postumamente por Paul Levi em 1922, Rosa critica,
procurando, ao mesmo tempo, compreender, a política
autoritária dos bolcheviques. Lenin e Trotski viram-se
forçados pelas circunstâncias, o avanço da
contrarrevolução, a adotar medidas repressivas que
atingiram a população no seu todo, inclusive o
proletariado. O isolamento a que foram condenados
obrigou-os a uma política antidemocrática, que não teria
sido necessária, caso a revolução na Alemanha tivesse
vindo em seu auxílio. Entretanto, apesar de reconhecer a
difícil situação dos bolcheviques e de admirar a sua
coragem revolucionária, Rosa não admite que façam da
necessidade virtude e elejam a sua via para o socialismo
como modelo para todos os partidos de esquerda.
Ela entende que a realização do socialismo exige vida
pública, espaço público, total liberdade para as massas
trabalhadoras. A vontade enérgica do partido
revolucionário não basta para instaurar o socialismo.
Este é fruto da experiência das massas; as soluções
surgem no momento em que os problemas aparecem,
desde que as massas trabalhadoras, nas suas múltiplas
formas de organização, tenham total liberdade para
apresentá-las, discuti-las, escolher o caminho
apropriado, voltar atrás quando necessário, aprendendo
com os próprios erros. Eis o que Rosa entende por
democracia socialista. O oposto da dominação de um
único partido – Rosa é premonitória – que, para ela,
levará à burocratização, ao estiolamento da vida pública.
Evidentemente, no seu entender, a democracia não
exclui coerção, em nome do “interesse do todo”, para
quem boicotar a revolução.
III
No dia 13 de janeiro de 1919, Clara Zetkin, preocupada,
escrevia à amiga: “minha muito querida e única Rosa, eu
sei, você vai morrer altiva e feliz. Eu sei, você nunca
pediu morte melhor do que cair lutando pela revolução.
Mas, e nós? Podemos ficar sem você? Podemos viver sem
você?26”
Rosa tinha passado na prisão praticamente os quatro
anos da guerra. Ao ser libertada, mergulha no torvelinho
da revolução, num ritmo de trabalho excessivo, reuniões
sem fim, mudanças de domicílio constantes, boatos de
que, assim como a Karl Liebknecht, assassinos a
perseguem. Os temores de Clara Zetkin não são
infundados.
Para podermos compreender esse trágico desfecho e as
suas posições políticas de novembro a janeiro, é
necessário ter em mente o clima político da Alemanha
nesse período. Passemos a uma rápida descrição do que
se passava.
O Alto Comando do Exército, percebendo a
impossibilidade de a Alemanha vencer a guerra, propõe
ao imperador, a 1º de outubro, formar um governo de
união nacional e começar negociações de paz. O novo
chanceler, príncipe Max de Bade, forma um gabinete
semiparlamentar, do qual fazem parte dois membros do
SPD. Entretanto, esta tentativa de canalizar os protestos
populares não tem sucesso, e a 28 de outubro os
marinheiros do porto de Wilhelmshaven revoltam-se e
são brutalmente reprimidos. O movimento alastra-se
pelo norte da Alemanha, formam-se conselhos de
marinheiros, operários e soldados que, num curto
espaço de tempo, se espalham por todo o país. Greves e
manifestações exigem a renúncia do imperador e a
proclamação da República.
A 8 de novembro Rosa Luxemburg sai da prisão. Um dia
depois explode em Berlim uma greve geral. O imperador
renuncia e Ebert, presidente do SPD, assume a chefia do
governo. A República é então proclamada e o poder
passa a ser exercido por uma coalizão dos partidos
operários, SPD e Partido Social Democrata
27
Independente (USPD) , decisão ratificada por uma
assembleia dos Conselhos de Trabalhadores e Soldados
no dia seguinte.
A Liga Spartakus, grupo do qual Rosa Luxemburg e Karl
Liebknecht eram dirigentes, constituía uma tendência
dentro do USPD. Porém, à medida em que as
divergências se tornam insuperáveis, a Liga, fundindo-se
com outros grupos, passa a formar o Partido Comunista
Alemão (KPD (Spartakusbund)). O congresso de
fundação ocorre nos dias 30 e 31 de dezembro. A Liga
Spartakus, grupo muito pequeno, sem a menor chance
de chegar ao poder, tinha como objetivo, através da
propaganda, fazer crescer sua influência junto às
massas. É o que faz Rosa Luxemburg nos seus artigos na
Rote Fahne. Durante os meses de novembro e dezembro
ela enfatiza, nesses artigos, as ações de massa,
criticando asperamente os dirigentes do SPD e do USPD
por adotarem medidas que, no seu entender, favoreciam
a contrarrevolução.
A grande questão política do mês de dezembro, decisiva
para o destino da revolução na Alemanha e para
compreendermos as ideias políticas de Rosa Luxemburg,
era a seguinte: o poder devia ficar nas mãos dos
conselhos ou devia-se eleger uma Assembleia
Constituinte e, neste caso, os conselhos seriam apenas
organismos transitórios de poder?
Na Assembleia Geral dos Conselhos de Berlim,
convocada para 19 de novembro no Circo Busch,
Richard Müller, delegado revolucionário28, defende a
ideia de que os conselhos devem exercer o poder
legislativo e o executivo, no que é apoiado por Karl
Liebknecht e Ledebour (ala esquerda do USPD).
Entretanto, Ebert e Hermann Müller (SPD) são a favor
de uma Assembleia Nacional29. “O voto, numa atmosfera
agitada, não foi claro. A posição dos partidários dos
conselhos não saiu fortalecida de maneira decisiva30.” A
partir desse momento começa a campanha para a
convocação da Assembleia Constituinte.
Entretanto, a derrota decisiva dos partidários dos
conselhos só ocorre mais tarde, no Congresso Nacional
dos Conselhos de Trabalhadores e Soldados, reunido em
Berlim de 16 a 21 de dezembro de 1918. Este rejeitou
por 400 votos a 50 a proposta de que o poder fosse
exercido pelos conselhos e convocou eleições para a
Constituinte, para o dia 19 de janeiro. Este congresso
significou uma clara vitória do SPD e a derrota dos
spartakistas31.
Rosa Luxemburg, numa série de artigos para a Rote
Fahne, critica asperamente a decisão do Congresso a
favor da Assembleia Constituinte como “vitória total do
governo de Ebert, uma vitória da contrarrevolução32.”
Opondo as massas revolucionárias ao Congresso dos
Conselhos de Trabalhadores e Soldados, escreve: “Os
Conselhos de Trabalhadores e Soldados não estão
dissolvidos enquanto força política, não podem ser
dissolvidos. Eles não existem pela graça de qualquer
Congresso, eles nasceram pela ação revolucionária das
massas a 9 de novembro. A massa revolucionária não
cometerá o suicídio que se espera dela33.”
Para ela, a decisão de liquidar os conselhos como
organismos de poder dos trabalhadores e soldados
mostra não apenas “as insuficiências gerais do primeiro
e imaturo estágio da revolução, mas também as
dificuldades especiais desta revolução proletária, sua
maneira própria de exprimir sua situação histórica34.”
Quais são essas dificuldades, no entender de Rosa?
Diferentemente das revoluções burguesas anteriores,
onde a contrarrevolução aparecia às claras, ela surge
aqui sob a capa da socialdemocracia, confundindo as
massas. Aliás, acrescenta, esse tem sido o
comportamento da socialdemocracia desde o 4 de
agosto de 1914. Porém, a revolução tem a sua lei
própria, que é a de se radicalizar. Nesse sentido,
acredita que também na Alemanha, apesar do que
considera a atuação contrarrevolucionária da
socialdemocracia, os conselhos de trabalhadores e
soldados agirão visando à revolução social e fazendo da
atual vitória de Ebert uma “vitória de Pirro”.
Rosa Luxemburg, nestes artigos, tem como fundamento
teórico as linhas gerais que desenvolvera no Programa
da Liga Spartakus, último texto desta coletânea,
redigido dias antes e publicado a 14 de dezembro na
Rote Fahne. Como diz Nettl, um de seus biógrafos, “o
programa de Spartakus era o testamento de Rosa e o
resumo conciso da obra de sua vida inteira35.” Nele
continua proclamando a alternativa socialismo ou
barbárie posta pela guerra perante a sociedade: apenas
a “revolução mundial do proletariado” pode evitar o caos
que ameaça a sociedade do pós-guerra e fundar o
socialismo, “única tábua de salvação da humanidade36.”
Também permanece a ideia, sempre defendida por ela,
de que o socialismo é obra dos próprios trabalhadores e
não de um partido que se ergue por sobre as massas
para comandá-las. Além disso, naquele momento, com a
criação dos Conselhos de Trabalhadores e Soldados por
toda a Alemanha, Rosa passa a ter um modelo concreto,
ainda que incipiente, de como as massas podem exercer
o poder. Isso do ponto de vista político. Contudo, a
verdadeira revolução é econômica e visa a direção da
produção pelos próprios trabalhadores. Isto é, as massas
deixam de ser comandadas e passam a dominar as suas
próprias vidas: “As massas proletárias devem aprender,
de máquinas mortas que o capitalista instala no
processo de produção, a tornar-se dirigentes autônomas
deste processo, livres, que pensam. Devem adquirir o
senso das responsabilidades, próprio de membros
atuantes da coletividade, única proprietária da
totalidade da riqueza social. Precisam mostrar zelo sem
o chicote do patrão, máximo rendimento sem o
contramestre capitalista, disciplina sem sujeição e
ordem sem dominação. O mais elevado idealismo no
interesse da coletividade, a mais estrita autodisciplina e
o verdadeiro senso cívico das massas constituem o
fundamento moral da sociedade socialista, assim como
estupidez, egoísmo e corrupção são os fundamentos
morais da sociedade capitalista37. Como vemos, Rosa
Luxemburg tem em mente um longo desenvolvimento,
toda uma transformação interior do proletariado que se
dá no decorrer do processo revolucionário e sem a qual
não há base para o advento de uma sociedade livre.
Estas ideias serão retomadas mais tarde no discurso
pronunciado no congresso de fundação do KPD
(Spartakusbund), no dia 31/12/1918. Nesse discurso,
Rosa Luxemburg defende vivamente a ideia de que para
se fazer uma revolução socialista não basta substituir o
governo capitalista Ebert-Scheidemann por um governo
proletário e socialista. Pelo contrário. No fim do mês de
dezembro, ela continua afirmando que a revolução tem
pela frente uma longa tarefa. Trata-se de minar
“progressivamente o governo Ebert-Scheidemann
através de uma luta de massa socialista e
revolucionária38.” Neste discurso, é cristalina a sua
posição a respeito da derrubada do governo, objetivo da
insurreição de janeiro, alguns dias mais tarde. No
Programa da Liga Spartakus também não havia lugar
para dúvidas quanto à tática a seguir: “A Liga Spartakus
nunca tomará o poder a não ser pela vontade clara e
inequívoca da grande maioria da massa proletária em
toda a Alemanha. Ela só tomará o poder se essa massa
aprovar conscientemente os projetos, objetivos e
métodos de luta da Liga Spartakus39.”
Da mesma forma, no discurso aos delegados do
congresso de fundação do KPD, ela enfatiza
incansavelmente a necessidade de conquistar
progressivamente o poder pela base; o que, naquele
momento preciso, significava não só transferir o poder
aos conselhos de operários e soldados, como aumentar o
próprio sistema dos conselhos, incorporando os
trabalhadores agrícolas e os pequenos camponeses. O
fim do discurso consiste numa profissão de fé na
capacidade das massas de se auto-emanciparem, na
medida em que exercitam o poder por elas mesmas:
“Exercendo o poder é que a massa aprende a exercer o
poder. (...) Sua educação faz-se quando passam à ação.
No começo era a Ação, tal é aqui a divisa. E a ação é que
os conselhos de operários e soldados sentem-se
chamados a tornar-se o único poder público no Império e
aprendem a sê-lo. (...) Devemos conquistar o poder
político não a partir de cima, mas a partir de baixo. (...)
Tal como a descrevo, a marcha da operação apresenta-se
mais lenta do que se poderia pensar num primeiro
momento40.”
Talvez pudéssemos dizer que nesse período Rosa
Luxemburg está dividida entre o que Gramsci chamou o
otimismo da vontade e o pessimismo da razão.
Expliquemo-nos.
Desde a guerra, como dissemos, ela apontara a
revolução socialista como a única possibilidade de salvar
a humanidade da barbárie. Finalmente, o tão esperado
momento de ruptura surge das entranhas de uma
sociedade em decomposição, o proletariado alemão que
durante quatro anos cumprira docilmente as regras
dessa sociedade parece resolvido a tornar-se sujeito da
própria história. Pelo menos na interpretação de Rosa os
acontecimentos apontam nessa direção. Os conselhos
surgem espontaneamente por toda parte mostrando a
criatividade das massas; o governo socialdemocrata, ao
reprimir duramente manifestações de trabalhadores e
soldados, mostra seu conteúdo contrarrevolucionário; as
massas na rua, enfrentando a repressão governamental,
deixam de ser a dócil bucha para canhão da época da
guerra e vêm confirmar as ideias de Rosa de que elas,
assim como “Thalatta, o mar eterno” contêm em si
“todas as possibilidades latentes: mortal calmaria e
enfurecida tempestade, baixa covardia e selvagem
heroísmo. A massa é sempre aquilo que precisa ser, de
acordo com as circunstâncias, e está sempre pronta a
tornar-se outra do que aquilo que parece”, como escreve
numa carta41. Isto é, as massas guardam em si
potencialidades insuspeitas que se desenvolvem
conforme o clima político em que vivem. E a revolução
oferece a atmosfera mais propícia para que essas
potencialidades se efetivem. Eis o otimismo da vontade!
Contudo, não há via larga rumo ao socialismo; é o que
Rosa também nos diz, quando se refere à revolução
como uma longa e árdua tarefa. Aliás, desde o início do
Congresso do KPD, ela deixa bem clara sua divisão
interna ao dizer que encara a atmosfera inflamada da
reunião com “um olho que ri, outro que chora42.” O
ímpeto revolucionário dos militantes spartakistas alegra-
a e preocupa-a. Para os jovens operários, membros da
Liga, ação e mais ação era o único meio de romper
radicalmente com a velha sociedade.
Consequentemente, opõem-se à participação nas
eleições para a Assembleia Constituinte, marcadas para
19 de janeiro. Como vimos anteriormente, quando se
tratava de tomar posição pelos conselhos contra a
Constituinte, Rosa atacou vivamente a socialdemocracia
majoritária por ter, no seu entender, manobrado a favor
da Constituinte. Porém, uma vez essa posição vitoriosa e
dado o grau de “imaturidade das massas”, ela evita cair
num esquerdismo inconsequente, defendendo a proposta
de participação nas eleições, a qual é derrotada no
Congresso por 72 votos a 23. Comparando a situação
russa e a alemã, declara no seu discurso aos delegados:
“Esquecestes (...) que antes da dissolução da Assembleia
Nacional algo diferente ocorrera, a tomada do poder
pelo proletariado revolucionário? Já tendes hoje
porventura um governo socialista, um governo Lenin-
Trotski? A Rússia já possuía antes uma longa história
revolucionária que a Alemanha não tem43.”
O que a Revolução Alemã mostrara até então tinha sido
a “imaturidade das massas44.” É pois tarefa dos
revolucionários educá-las. A participação nas eleições é
um meio tático a ser utilizado. Neste momento preciso,
sua posição moderada, que decorre da análise da
correlação de forças, o pessimismo da razão, contrasta
vivamente com o tom exaltado dos artigos da Rote
Fahne, em que conclama continuamente o proletariado a
agir. Por que isto ocorre? Lembremos apenas o que já
dissemos a respeito da Liga Spartakus, um grupo
reduzido de militantes aguerridos, sem chance de
chegar ao poder, que via na propaganda o meio por
excelência de influenciar as massas. O jornal é
precisamente o veículo utilizado para isso. Entretanto,
Nettl tem razão quando diz que “essa alegre exaltação,
esse entusiasmo pelo movimento de massa, o apelo
constante à ação e à clarificação – tudo isso contribuiu
para criar a atmosfera propícia ao levante desesperado
de janeiro no qual Liebknecht e Rosa Luxemburg foram
mortos45.”
****
Os acontecimentos precipitavam-se. Multidões
desfilavam continuamente pelas ruas de Berlim.
Manifestações, incidentes, pequenos ou importantes
ocorriam a todo o momento. A 4 de janeiro, finalmente, o
governo decidiu afastar o chefe de polícia, Eichhorn, um
independente do USPD, hostil à socialdemocracia
majoritária, e substituí-lo por um socialdemocrata de
direita, Ernst, em quem o partido confiava. Eichhorn
negou-se a deixar
o posto, alegando ser responsável apenas perante o
Comitê Executivo dos Conselhos de Trabalhadores e
Soldados de Berlim (Vollzugsrat).A direção do KPD
reúne-se no mesmo dia e discute que resposta dar à
exoneração do chefe de polícia. Conclui pela
impossibilidade de chamar à insurreição, limitando-se a
conclamar o proletariado a manifestar-se ’contra a
exoneração. Entretanto, a manifestação do dia 5, muito
superior ao esperado, fez nascer na cabeça de um certo
número de dirigentes46 a ideia da tomada do poder.
Liebknecht, Ledebour e Scholze47 constituem então um
comitê provisório encarregado de dirigir a insurreição.
Não esqueçamos que Liebknecht agia à revelia do KPD,
que via a insurreição como uma aventura condenada ao
fracasso. A 14 de janeiro, quando Rosa leu no Vorwärts a
proclamação assinada por Liebknecht, dizendo que “o
comitê revolucionário assumia provisoriamente as
funções governamentais”, teria dito, aterrada: “Mas
Karl, e o nosso programa? 48
Testemunhos mostram-nos, durante a semana
sangrenta, uma Rosa “esmagada pelo curso dos
acontecimentos”,49 dividida entre as convicções
expostas no programa da Liga Spartakus e no discurso
ao Congresso de fundação do KPD, em que a revolução
aparecia como um longo processo de lutas políticas, mas
sobretudo econômicas, que culminariam na tomada do
poder, e a impossibilidade de recuar, uma vez as massas
na rua. Rosa Luxemburg e o KPD, “com um espírito
cavalheiresco digno de D. Quixote”, correram em
socorro de uma empresa revolucionária que não haviam
começado e cujos objetivos não aprovavam, mas que não
podiam deixar fracassar50.” Rosa, que sempre defendera
a ação autônoma das massas, não podia agora recuar,
embora não acreditasse no sucesso da insurreição.
Parece que ela espera um “toque de varinha mágica”51
que faça com que a ação das massas consiga levar a
revolução a um ponto de não retorno, apesar das
insuficiências e fraquezas do primeiro momento. Como
sabemos, isso não aconteceu.
****
É impossível retraçar aqui o desenrolar da insurreição,
as alianças, avanços e recuos dos dirigentes. O que
podemos dizer rapidamente é que o governo
socialdemocrata, para preservar o que mais prezava – a
ordem –, preferiu esmagar violentamente a revolução.
Com esse objetivo, fez aliança com forças do antigo
regime, como o Exército, além de permitir a criação de
forças paramilitares, como os corpos francos. A
contraofensiva do governo – Noske52 à cabeça liderando
os corpos francos – não se fez esperar. Os spartakistas
são, aos olhos da opinião pública, os responsáveis pela
insurreição e, por isso mesmo, os mais expostos à
vingança. São acusados de quererem derramar sangue,
de desejarem implantar na Alemanha a ditadura do
proletariado e
o terror, acusados inclusive pelos socialdemocratas, os
mesmos que durante os 4 anos anteriores não hesitaram
em aprovar os créditos de guerra. Panfletos pedem o
assassinato de Liebknecht. Em grandes cartazes, lia-se:
“Trabalhadores, cidadãos! A Pátria aproxima-se da
queda. Salvai-a! A ameaça não vem de fora, mas de
dentro, do grupo Spartakus. Matai vossos dirigentes!
Matai Liebknecht! Então tereis paz, trabalho e pão. Os
soldados do front.170 Até o Vorwärts, o órgão central da
socialdemocracia, entrou na campanha anti-spartakista.
No dia 13 de janeiro, por exemplo, publicou um poema
de Artur Zickler, colaborador regular do jornal, em que
os dirigentes spartakistas eram acusados de se esconder
covardemente, ao passo que os operários
autenticamente revolucionários morriam na luta. O
poema era quase um incitamento ao assassinato.53
Todavia, nem Rosa nem Karl pensam em fugir de Berlim.
Limitam-se a mudar de residência todas as noites, na
tentativa de despistar os assassinos. A central do KPD
tinha sido invadida e saqueada pela tropa. Mas como
ambos precisavam continuar o trabalho de redação na
Rote Fahne, ocupam um apartamento no bairro operário
de Neukölln. Percebendo que o lugar não era seguro, no
dia 14 instalam-se no bairro burguês de Wilmersdorf. Foi
aí que cada um escreveu o seu último artigo. O de Rosa
tinha por título “A ordem reina em Berlim”.
A ideia central desse artigo é a de que a revolução não
passa de uma velha toupeira ardilosa prosseguindo
necessária e infatigavelmente o seu caminho,
independentemente das vitórias e derrotas
momentâneas. Aliás, ideia cara a Rosa Luxemburg, as
derrotas são necessárias para a vitória final: “Onde
estaríamos hoje sem todas essas ‘derrotas’ das quais
retiramos nossa experiência histórica, conhecimento,
força e idealismo que nos animam?54”
Vemos aqui uma das ideias constituintes, se não a ideia
central, da sua teoria política: a de que a consciência de
classe é resultado da experiência das massas, da qual as
derrotas também fazem parte. Para ela, é preferível uma
derrota política, como foi
o caso da insurreição de janeiro, a uma derrota moral,
como o 4 de agosto de 1914, quando a socialdemocracia,
ao aprovar os créditos de guerra, abandonou todos os
seus princípios. No seu entender, uma vitória moral
acaba dando frutos no futuro, o mesmo não acontecendo
quando a vitória é resultado da Realpolitik que, no caso,
significava fazer aliança com as forças do antigo regime
para derrotar a revolução, vista pela socialdemocracia
majoritária como ameaça a uma transição lenta, gradual
e segura rumo à democracia. Se Rosa neste artigo
conclui de maneira excessivamente otimista que “a
vitória florescerá do solo desta derrota”, isso ocorre em
virtude do que já dissemos antes: a necessidade da
propaganda, de levantar o ânimo das massas, e não por
qualquer crença ingênua na inexorabilidade da vitória
da revolução proletária.
Como já foi mencionado, desde a crise da
socialdemocracia ela abandonara seu otimismo
revolucionário anterior à guerra, ao simbolizar na
palavra de ordem socialismo ou barbárie a alternativa
enfrentada pela humanidade. A adesão do proletariado à
guerra fortalecera nela a convicção de que a consciência
de classe é produto da luta e não uma essência imutável,
algo assim como uma característica natural do
proletariado, consequência de sua situação na produção.
É na ação que ele se torna revolucionário, e não por
acaso Rosa tem como lema o verso do Fausto, “no
princípio era a ação”. Assim sendo, não há garantia de
vitória, quando muito há possibilidades. Isto é, na sua
concepção, diferentemente da concepção da
socialdemocracia ortodoxa, o proletariado não nada com
a corrente em direção ao paraíso socialista. A revolução
não é fruto do desenvolvimento natural das contradições
da sociedade capitalista, mas resultado da tomada de
consciência por parte das massas espoliadas, sedentas
de vingança.
****
Contrariamente “aos velhos e sóbrios cidadãos da
socialdemocracia defunta, para quem os carnês de
filiação são tudo e os homens e o espírito nada”, acredita
Rosa que “não se faz história sem grandeza de espírito,
sem pathos moral, sem gestos nobres55.” O seu universo
espiritual, tal como exposto no primeiro artigo escrito
para a Rote Fahne logo após sair da prisão, em que
exige do Comitê Executivo dos Conselhos de
Trabalhadores e Soldados (Vollzugsrat) a melhoria das
condições de vida dos prisioneiros comuns e o fim da
pena de morte, é o oposto da estreiteza burocrática,
tanto da socialdemocracia quanto dos partidos
comunistas stalinizados. Rosa exige o fim da pena de
morte e explica por que: “Durante os quatro anos de
massacre dos povos, o sangue correu em torrentes.
Hoje, cada gota deste precioso fluido deveria ser
preservado devotadamente em urnas de cristal. A mais
violenta atividade revolucionária e a mais tolerante
humanidade: este é o único e verdadeiro alento do
socialismo. É preciso revirar um mundo. Mas cada
lágrima que corre, onde poderia ter sido evitada, é uma
acusação. E aquele que, para realizar algo importante,
apressadamente e com brutal inadvertência, esmaga um
pobre verme, comete um crime56.”
Hoje, após as desventuras da dialética em nosso século,
parece-nos utópica, não só a ideia da revolução como
parteira de um mundo justo e livre, como também a de
um socialismo humanista e democrático, em que todas
as potencialidades do homem poderiam efetivar-se.
Entretanto, para essa revolucionária assassinada em
1919, poupada do stalinismo, do nazismo e do
capitalismo tardio, essa ideia estava na ordem do dia e o
futuro em aberto.
São Paulo, junho de 1990
Isabel Maria Loureiro
Prof.ª. do Departamento de Filosofia da UNESP.

1 NOTAS

Rosa Luxemburg. Ich umarme Sie in grosse Sehnsucht.


Bonn, J. H. Dietz Nachf., 1984, p. 64.
2 Cf. Der Mord an Karl Liebknecht und Rosa Luxemburg.

Berlim, Verlagsgenossenschaft “Freiheit”, 1920, p. 14


cit. por Nettl, p. 757.
3 Die Zeit, 13/1/1989.
4 Sobre o assassinato, suas repercussões e o processo,

cf. Elisabeth Hannover-Drück e Heinrich Hannover


(orgs.). Der Mord an Rosa Luxemburg und Karl
Liebknecht. Frankfurt/Main, Suhrkamp Verlag, 1967.
5 Entrevista à Süddeutscher Rundfunk de Stuttgart, Die

Zeit, 13/1/1989.
6 Pabst chega a mostrar um certo respeito por Rosa,

quando lembra que ela lia o Fausto, 2ª parte, momentos


antes de ser assassinada; o respeito que o alemão, por
mais ignorante e abrutalhado que seja, foi condicionado
a ter pela cultura.
7 In Frederik Hetmann, Rosa L. Die Geschicht der Rosa

Luxemburg und ihrer Zeit. Frankfurt/Main, Fischer


Taschenbuch Verlag, 1980, p. 10, 11. A derrota de
Spartakus significou, para a direita, de modo geral,
exorcizar o “perigo bolchevique”. O que durante muito
tempo justificou a sangrenta repressão contra o grupo.
Hoje, a maioria dos historiadores é unânime em afirmar
não ter fundamento o medo da bolchevização da
Alemanha. Os grupos da esquerda radical não tinham
base de massa, sua força foi superestimada, a revolução
socialista não passava de utopia em que apenas uma
minoria punha fé.
8 Em 1989, a Zahar, Rio de Janeiro, publicou uma bela

biografia de Rosa Luxemburg, da autoria da Elzbieta


Ettinger.
9 Há uma tradução brasileira publicada pela editora

Laemmert, Rio de Janeiro, 1970, numa coletânea


intitulada Reforma, revisionismo e oportunismo.
10 Georges Haupt, apresentação a Rosa Luxemburg, Vive

la lutte! Correspondance 1891-1914. Paris, Maspero,


1976, p. 22.
11 No campo do marxismo ortodoxo encontravam-se,
nesse momento, tanto Kautsky quanto Rosa Luxemburg.
12 Carta a Henriette Roland-Holst, de 17/12/1904. Vive la

lutte! , p. 193.
13 Tradução brasileira publicada pela Kairós, São Paulo,

1979.
14 Rosa Luxemburg. Gesammelte Werke, vol. 2. Berlim,

Dietz Verlag, 1981, p. 117.


15 Leo Jogiches, revolucionário polonês, o grande amor

da sua vida. Tornaram-se amantes em 1891, ligação que


durou até 1907, quando Rosa começa um romance com
Kostja Zetkin, filho de sua amiga Clara Zetkin. Rosa teve
uma relação tumultuada e muito forte com Jogiches.
Mesmo após a separação continuaram tendo intenso
contacto político. Após a sua morte, Jogiches empenhou-
se em descobrir e denunciar os assassinos. Foi, por sua
vez, brutalmente assassinado em março de 1919.
16 Na Prússia, o sufrágio era censitário e indireto. Os

eleitores eram repartidos em três classes, em


circunscrições de acordo com os impostos diretos que
pagavam. Resultado: um pequeno número de ricos da
primeira classe e um grande número de pobres da
terceira classe elegiam uma quantidade igual de
deputados.
17 Publicado pela Martins Fontes.
18 Publicado pela Zahar e reeditado pela Abril Cultural.
19 Neue Zeit: revista teórica da socialdemocracia alemã;

Vorwärts: órgão oficial do SPD.


20 A crise econômica que atinge a Alemanha em 1913

explica que em fins desse ano e começo de 1914 muitos


operários afetados na sua vida quotidiana e temerosos
do futuro vão ouvir Rosa nos comícios.
21 Vorwärts , de 18/3/1914, cit. por Badia em Rosa

Luxemburg, journaliste, polémiste, révolutionnaire.


Paris, Editions Sociales, 1975, p. 199.
22 Em alemão Burgfrieden, paz civil.
23 Rosa é condenada a um ano de prisão por agitação

anti-militarista, de fevereiro de 1915 a fevereiro de


1916. É novamente presa a 10 de julho de 1916, sendo
libertada a 8 de novembro de 1918.
24 Georges Haupt, introdução a Rosa Luxemburg, j’étais,
je suis, je serai! Correspondance 1914-1919. Paris,
Maspero, 1977, p. 27.
25 Carta a Mathilde Wurm,28/12/1916,in ...j’étais, je suis,

je serai! p. 152.
26 Margarethe von Trotta, Ensslin, Christiane. Rosa
Luxemburg. Das Buch zum Film. Nördlingen Franz
Greno, 1986, p. 210.
27 Os membros do SPD contrários à guerra realizam uma

conferência nacional em janeiro de 1917 e são expulsos


do partido, formando o USPD.
28 Os delegados revolucionários eram um organismo de

poder nascido pouco antes da revolução nas fábricas de


Berlim.
29 Este Hermann Müller era representante do SPD no

Comitê Executivo dos Conselhos de Berlim (Vollzugsrat).


Com a revolução surgiram dois organismos de poder, o
Conselho dos Comissários do Povo (Rat der
Volksbeauftragten), composto pelos majoritários do SPD,
e os independentes do USPD, três membros de cada
partido. Na realidade, os independentes eram relegados
a segundo plano e o mencionado Vollzugsrat, instalado a
11/11 na Câmara Alta, um organismo numeroso demais
para ser eficaz: 28 membros dos quais 14
representantes de soldados. No Vollzugsrat, a ala
esquerda dos independentes era representada por
Richard Müller, Ledebour e Däumig. O SPD era
representado por Hermann Müller, futuro presidente
desse organismo. Badia enfatiza a ineficiência desse
organismo, ignorado, inclusive, pela grande imprensa.
Após 20/12, o Vollzugsrat transformou-se no Zentralrat,
de maioria SPD, que agia em estreita colaboração com o
governo. O Conselho dos Comissários do Povo estava
teoricamente sob o controle do Vollzugsrat. (Badia. Les
Spartakistes. Paris, Julliard, 1966, p. 137-139.)
30 Badia. Op. cit., p. 173.
31 O discurso de Scheidemann, durante o congresso, é

representativo da posição dos majoritários: “Estou


firmemente convencido de que manter os conselhos de
operários e soldados enquanto organismos permanentes
significaria – digo-o após madura reflexão – a ruína
inevitável do nosso comércio e da nossa indústria, o
declínio absolutamente certo do Reich. Os conselhos não
poderiam dar-nos nem o pão nem a paz, mas é fatal que,
se essa política continuar, eles nos trarão a guerra civil”
(Allgemeiner Kongress der Arbeiter -und Soldatenräte
Deutschlands vom 16.bis 21.Dezember 1918. Berlim,
Stenographische Berichte, s.d., p. 272, cit. por Badia,
op. cit., p. 176).
32 Gesammelte Werke, vol. 4. Berlim, Dietz Verlag, 1987,

p. 468.
33 Id., p. 466.
34 Id., p. 468.
35 J.P. Nettl. La vie et l’oeuvre de Rosa Luxemburg. Paris,

Maspero, 1972, p. 729.


36 “O que quer a Liga Spartakus? ”, p. desta coletânea.
37 Id., p.
38 Rosa Luxemburg. Oeuvres II (Écrits politiques 1917-

1918). Paris, Maspero, 1978, p. 125.


39 “O que quer a Liga Spartakus? ”, p. desta coletânea.
40 Rosa Luxemburg. Oeuvres II, p. 127, 128.
41 Carta a Mathilde Wurm, de 16/2/1917. Gesammelte
Briefe, vol. 5. Berlim, Dietz Verlag, 1984, p. 176.
42 Gesammelte Werke, vol. 4, p. 479.
43 Id., p. 480.
44 Id., p. 481.
45 Nettl. Op. cit., p. 711.
46 Independentes de esquerda, delegados

revolucionários, spartakistas.
47 Delegados revolucionários.
48 Badia. Rosa Luxemburg, Journaliste..., p. 383. Nettl,

Op. cit., p. 728.


49 Karl und Rosa, p. 40: depoimento de Käte Duncker,

cit. por Badia. Op. cit., p. 383.


50 Nettl. Op. cit., p. 744, 745.
51 Rosa usa essa expressão numa carta a Sonia

Liebknecht, de meados de novembro de 1917.


Gesammelt Briefe, vol. 5, p. 323.
52 Comissário do povo para a defesa, ala direita do SPD.

Quando lhe foi pedido que assumisse a ofensiva contra


os insurretos, disse: “Alguém precisa ser o cão
sanguinário. Não tenho medo dessa responsabilidade.”
53 Nettl. Op. cit., p. 749.
54 Gesammelte Werke, vol. 4, p. 535.
55 Id., p. 406.
56 Id., ibid.
1. Questões de
Organização da
Socialdemocracia Russa 1

É uma duradoura, velha e respeitável verdade que o


movimento socialdemocrata dos países atrasados deve
aprender com o movimento mais antigo dos países
desenvolvidos. Ousamos acrescentar a esta tese a tese
oposta: os partidos socialdemocratas mais antigos e
avançados podem e devem igualmente aprender com
seus partidos irmãos mais jovens, conhecendo-os melhor.
Para os economistas marxistas – diferentemente dos
economistas clássicos burgueses e, com maior razão,
dos economistas vulgares – todos os estágios
econômicos que precedem a ordem econômica
capitalista não são simplesmente meras formas de
“subdesenvolvimento” em relação ao coroamento da
criação, o capitalismo, mas, ao contrário, diferentes
tipos de economia, com igual status histórico. Assim
também, para os políticos marxistas, os movimentos
socialistas, diferentemente desenvolvidos, são em si
indivíduos históricos determinados. E quanto mais
conhecemos as características da socialdemocracia na
completa diversidade dos seus diferentes meios sociais,
tanto mais nos tornamos conscientes do essencial, do
fundamental, dos princípios do movimento
socialdemocrata, e tanto mais recua a estreiteza de
horizontes condicionada pelo localismo. Não por acaso
vibra tão fortemente no marxismo revolucionário o tom
internacional; não por acaso a maneira oportunista de
pensar acaba sempre no isolamento nacional. O artigo
que segue, escrito a pedido da Iskra, o órgão do partido
socialdemocrata russo, deve também ter algum
interesse para o público alemão2.

I.

Coube à socialdemocracia russa uma tarefa singular e


sem precedentes na história do socialismo: criar, num
Estado absolutista, uma tática socialdemocrática,
baseada na luta de classes proletária. A comparação que
usualmente se faz entre a situação atual na Rússia e a
alemã ao tempo das leis anti-socialistas3 é fraca, pois
encara a situação russa de um ponto de vista policial e
não político. Os obstáculos postos no caminho do
movimento de massas pela ausência de liberdades
democráticas têm importância relativamente
secundária: também na Rússia, o movimento de massas
soube derrubar as barreiras da “constituição”
absolutista e criou para si uma “constituição”, ainda que
atrofiada, das “desordens de rua”. O que o movimento
doravante também saberá fazer, até a vitória completa
sobre o absolutismo. A principal dificuldade da luta
socialdemocrática na Rússia consiste na dissimulação da
dominação de classe burguesa pela dominação da força
absolutista; isto dá necessariamente à própria teoria
socialista da luta de classes um caráter abstrato e
propagandístico e à agitação política imediata um
caráter sobretudo revolucionário-democrático. As leis
anti-socialistas procuravam pôr apenas a classe operária
fora da constituição, e isso numa sociedade burguesa
altamente desenvolvida, com antagonismos de classe
plenamente desnudados, desenvolvidos no
parlamentarismo. Aí justamente residiam a insanidade e
o absurdo do empreendimento bismarckiano. Na Rússia
deve-se realizar o experimento contrário: criar uma
socialdemocracia sem a imediata dominação política da
burguesia.

Isto moldou, de modo particular, não apenas a questão


da transplantação da doutrina socialista para solo russo,
não apenas a questão da agitação, como também a da
organização. No movimento socialdemocrata,
diferentemente dos antigos experimentos utópicos do
socialismo, a organização não é um produto artificial da
propaganda, mas um produto histórico da luta de
classes, no qual a socialdemocracia simplesmente
introduz a consciência política. Em condições normais,
ou seja, onde a dominação política de classe da
burguesia, inteiramente constituída, precede o
movimento socialista, foi a própria burguesia quem
criou, em larga medida, o início da coesão política dos
operários. “Nesta fase”, diz o Manifesto Comunista, “o
agrupamento de operários em grandes massas ainda não
é o resultado da sua própria união, mas o resultado da
união da burguesia4.” Na Rússia, coube à
socialdemocracia, por sua intervenção consciente, a
tarefa de suprir um período do processo histórico e
conduzir o proletariado, diretamente da atomização
política, que constitui o fundamento do regime
absolutista, à mais alta forma de organização – a de uma
classe lutadora e consciente de seus objetivos. A questão
da organização é, por conseguinte, particularmente
difícil para a socialdemocracia russa, não apenas porque
deve fazê-la surgir sem todos os auxílios formais da
democracia burguesa, mas, sobretudo, porque deve criá-
la, por assim dizer, como o amado Deus Pai, “do nada”,
no ar rarefeito, sem a matéria-prima política que, de
outra maneira, é preparada pela sociedade burguesa.
O problema em que a socialdemocracia russa trabalha
há alguns anos consiste justamente na transição do tipo
de organização correspondente à fase preparatória do
movimento, preponderantemente propagandística, onde
cenáculos e organizações locais mantinham-se dispersos
e totalmente independentes, para a organização exigida
por uma ação política unitária da massa em todo o
Estado. Porém, como o traço mais pronunciado das
antigas formas de organização, intoleráveis e
politicamente ultrapassadas, consistia na dispersão e na
completa autonomia, na soberania das organizações
locais, era natural que o lema da nova fase, que o lema
do grande trabalho preparatório de organização, fosse o
centralismo. A ênfase na idéia do centralismo constituiu
o tema dominante da brilhante campanha conduzida
durante três anos pela Iskra como preparação para o
último congresso, de fato o congresso constituinte5. E a
mesma idéia dominava toda a jovem-guarda da
socialdemocracia na Rússia. Contudo, ficou claro logo no
próprio congresso e ainda após o congresso que o
centralismo é uma palavra de ordem que nem de longe
esgota o conteúdo histórico e a peculiaridade do tipo de
organização socialdemocrática. Verificou-se, mais uma
vez, que em nenhum campo a concepção marxista do
socialismo se deixa imobilizar em fórmulas rígidas, nem
mesmo na questão da organização.

O livro em questão do camarada Lenin6, um dos mais


destacados dirigentes e militantes da Iskra, na sua
campanha preparatória antes do congresso russo, é a
exposição sistemática do ponto de vista da tendência
ultracentralista do partido russo. A concepção que aqui
se expressa de maneira penetrante e exaustiva é a de
um implacável centralismo. O princípio vital deste
centralismo consiste, por um lado, em salientar
fortemente a separação entre os grupos organizados de
revolucionários declarados, ativos, e o meio
desorganizado – ainda que revolucionário e ativo – que
os cerca. Por outro lado, consiste na rigorosa disciplina
e na interferência direta, decisiva e determinante das
autoridades centrais em todas as manifestações vitais
das organizações locais do partido. Basta observar que,
segundo esta concepção, o comitê central tem, por
exemplo, o direito de organizar todos os comitês parciais
do partido e, por conseguinte, também o de determinar
a composição pessoal de cada uma das organizações
locais russas, de Genebra a Liége e de Tomski a
Iskutsk7; ele pode dar-lhes estatutos locais inteiramente
prontos, pode dissolvê-las e reconstituí-las totalmente
por decreto e, por fim, desta maneira, influenciar
indiretamente na composição da mais alta instância
partidária, o congresso. Assim, o comitê central aparece
como o verdadeiro núcleo ativo do partido, e todas as
demais organizações apenas como seus instrumentos
executivos.

Lenin vê justamente na união do mais rigoroso


centralismo organizatório com o movimento de massas
socialdemocrata um princípio específico do marxismo
revolucionário e traz uma série de fatos em apoio à sua
concepção. Mas examinemos isto mais de perto.

Não há dúvida de que, em geral, uma forte inclinação


para o centralismo é inerente à socialdemocracia. Tendo
crescido sobre o solo econômico do capitalismo, de
tendência centralizadora, e dependendo, na sua luta, dos
parâmetros políticos do grande Estado burguês
centralizado, a socialdemocracia é, desde as suas
origens, adversária declarada de todo particularismo e
federalismo nacionais. Destinada a representar, nos
limites de um dado Estado, a totalidade dos interesses
do proletariado como classe, em oposição a todos os
interesses parciais e de grupo do proletariado, a
socialdemocracia esforça-se naturalmente, em toda
parte, por unir todos os grupos nacionais, religiosos e
profissionais da classe operária num partido comum,
unitário. Apenas em circunstâncias especiais, anormais,
como por exemplo na Áustria, é forçada a fazer uma
exceção a favor do princípio federativo8.

Neste contexto, não há dúvida de que também a


socialdemocracia russa não deve formar um
conglomerado federativo das inúmeras organizações
particulares nacionais e da província, mas um partido
operário unitário, compacto, para todo o império russo.
Porém, uma questão totalmente diferente é, contudo, a
do maior ou menor grau de centralização e da sua
particular constituição no interior da socialdemocracia
russa, unificada e unitária.

Do ponto de vista das tarefas formais da


socialdemocracia como partido de luta, o centralismo
aparece, desde o início, como uma condição, de cuja
realização dependem, diretamente, a capacidade de luta
e a energia do partido. Entretanto, as condições
históricas específicas da luta proletária são aqui muito
mais importantes que o ponto de vista das exigências
formais de
qualquer organização de luta.

Na história das sociedades de classe, o movimento


socialdemocrata foi o primeiro que sempre contou, em
todos os seus momentos e em todo o seu percurso, com
a organização e a ação autônoma e direta da massa.
Assim sendo, a socialdemocracia cria um tipo de
organização totalmente diferente dos anteriores
movimentos socialistas, como, por exemplo, os de tipo
jacobino-blanquista.
Lenin parece subestimar isso quando, no seu livro (p.
140), exprime a opinião de que o revolucionário
socialdemocrata nada mais é que “um jacobino
indissoluvelmente ligado à organização do proletariado
com consciência de classe”. Para Lenin, toda a diferença
entre a socialdemocracia e o blanquismo consiste na
organização e na consciência de classe do proletariado,
em lugar da conspiração de uma pequena minoria.
Esquece que com isso produz-se uma completa
reavaliação do conceito de organização, um conteúdo
inteiramente novo para o conceito de centralismo, uma
concepção inteiramente nova da relação recíproca entre
a organização e a luta.

O blanquismo não levava em consideração a ação


imediata da massa operária e, portanto, também não
precisava de uma organização de massa. Ao contrário,
como a grande massa popular só devia aparecer no
campo de batalha no momento da revolução, e a ação
temporária consistia na preparação de um golpe de mão
revolucionário, por uma pequena minoria, o sucesso da
tarefa exigia diretamente a clara demarcação entre as
pessoas encarregadas dessa ação determinada e a
massa popular. Mas isso era igualmente possível e
realizável porque não existia nenhuma ligação interna
entre a atividade conspirativa de uma organização
blanquista e a vida quotidiana da massa popular.

Ao mesmo tempo, a tática, bem como as tarefas


detalhadas da ação, já que, sem ligação com o solo da
luta de classes elementar, eram livremente
improvisadas, elaboradas em detalhe, fixadas e
prescritas de antemão, como um plano determinado.
Assim, os membros ativos da organização
transformavam-se naturalmente em simples órgãos
executivos de uma vontade predeterminada fora de seu
próprio campo de ação, em instrumentos de um comitê
central. Com isso estava dado também o segundo
momento do centralismo conspirador: a submissão
absoluta e cega das células do partido às autoridades
centrais e a extensão do decisivo poder destas últimas
até a mais extrema periferia da organização partidária.

Radicalmente diversas são as condições da atividade


socialdemocrática. Esta nasce historicamente da luta de
classes elementar. E move-se na contradição dialética de
que só na própria luta é recrutado o exército do
proletariado e de que também, só na luta, as tarefas da
luta se tornam claras. Organização, esclarecimento e
luta não são aqui momentos separados, mecanicamente
e temporalmente distintos, como num movimento
blanquista, mas são apenas diferentes aspectos do
mesmo processo. Por um lado, exceto quanto aos
princípios gerais da luta, não existe um conjunto
detalhado de táticas, já pronto, preestabelecido, que um
comitê central possa ensinar aos membros da
socialdemocracia, como se estes fossem recrutas. Por
outro lado,
o processo de luta que cria a organização conduz a uma
constante flutuação da esfera de influência da
socialdemocracia.

Disso resulta que a centralização socialdemocrática não


pode fundar-se na obediência cega, na subordinação
mecânica dos militantes a um poder central. E, por outro
lado, nunca se pode erguer uma parede divisória
absoluta entre o núcleo do proletariado com consciência
de classe, solidamente organizado no partido, e as
camadas circundantes, já atingidas pela luta de classes,
que se encontram em processo de esclarecimento de
classe. O estabelecimento da centralização na
socialdemocracia sobre estes dois princípios: a cega
subordinação, até nos menores detalhes, da atividade de
todas as organizações partidárias a um poder central,
que sozinho pensa, cria e decide por todos, assim como
a rigorosa separação entre o núcleo organizado do
partido e o meio revolucionário que o cerca, tal como é
defendido por Lenin, parece-nos uma transposição
mecânica dos princípios organizatórios do movimento
blanquista de círculos de conspiradores para o
movimento socialdemocrata das massas operárias.
Talvez Lenin tenha caracterizado mais penetrantemente
seu ponto de vista do que qualquer dos seus adversários,
ao definir seus “revolucionários socialdemocratas” como
“jacobinos ligados à organização dos operários com
consciência de classe”. Porém, de fato, a
socialdemocracia não está ligada à organização da
classe operária, ela é o próprio movimento da classe
operária. O centralismo socialdemocrático precisa, pois,
ser de natureza essencialmente diferente do centralismo
blanquista. Ele só pode ser a concentração imperiosa da
vontade da vanguarda esclarecida e militante do
operariado (Arbeiterschaft)9 perante seus diferentes
grupos e indivíduos. É, por assim dizer, um
“autocentralismo” da camada dirigente do proletariado,
é o domínio da minoria no interior da sua própria
organização partidária.

Esta análise do conteúdo próprio do centralismo


socialdemocrático mostra claramente que as condições
necessárias para o mesmo não podem ainda hoje existir
plenamente na Rússia. Essas condições são, a saber: a
existência de uma importante camada de proletários já
educados na luta política e a possibilidade de
exprimirem sua capacidade pela influência direta
exercida sobre os congressos públicos do partido, na
imprensa partidária etc.

Na Rússia, a última condição só poderá ser


evidentemente criada com o advento da liberdade
política; quanto à primeira – a formação de uma
vanguarda proletária com consciência de classe e
capacidade de julgamento – está apenas em vias de
aparecer e precisa ser considerada como objetivo
condutor do próximo trabalho, tanto de organização
quanto de agitação.
Tanto mais surpreendente é a certeza oposta de Lenin
de que todas as precondições para a constituição de um
grande partido operário, fortemente centralizado, já
existem na Rússia. Ele mostra novamente uma
concepção demasiado mecânica da organização
socialdemocrática quando proclama, com otimismo, que
agora já “não é o proletariado, mas certos intelectuais
(Akademikern), na socialdemocracia russa, que carecem
de autoeducação, no sentido da organização e da
disciplina” (p. 145), e quando glorifica o valor educativo
da fábrica para o proletariado, a qual o tornaria maduro,
desde o início, para a “disciplina e a organização” (p.
147). A disciplina que Lenin tem em vista não é, de
forma alguma, inculcada no proletariado apenas pela
fábrica, mas também pela caserna e pelo moderno
burocratismo, numa palavra, por todo o mecanismo do
Estado burguês centralizado. E apenas fazer mau uso
dessa palavra de ordem designar-se igualmente por
“disciplina” dois conceitos tão opostos quanto a ausência
de vontade e de pensamento numa massa de carne de
muitas pernas e braços, que executa movimentos
mecânicos de acordo com a batuta, e a coordenação
voluntária de ações políticas conscientes de uma camada
social, dois conceitos tão opostos quanto a obediência de
cadáver (Kadavergehorsam) de uma classe dominada e a
rebelião organizada de uma classe, combatendo pela sua
libertação. Não é partindo da disciplina nele inculcada
pelo Estado capitalista, com a mera transferência da
batuta da mão da burguesia para a de um comitê central
socialdemocrata, mas pela quebra, pelo extirpamento
desse espírito de disciplina servil, que o proletariado
pode ser educado para a nova disciplina, a
autodisciplina voluntária da socialdemocracia.

Além disso, dessa mesma reflexão, resulta que o


centralismo no sentido socialdemocrático não é, de
maneira nenhuma, um conceito absoluto, aplicável em
igual medida a qualquer fase do movimento operário.
Deve, pelo contrário, ser compreendido como uma
tendência, cuja realização progride proporcionalmente
ao esclarecimento (Aufklärung) e à educação política
das massas operárias no decorrer de sua luta.

É certo que a insuficiente presença dos mais


importantes pressupostos para a completa realização do
centralismo no atual movimento russo pode atrapalhar
em alto grau. Porém, a nosso ver, significa inverter as
coisas pensar que o domínio da maioria do operariado
esclarecido, ainda irrealizável no interior da organização
partidária, pode ser substituído “provisoriamente” pela
autocracia “delegada” (“übertragene” Alleinherrschaft)
do poder central do partido, assim como pensar que a
ausência de controle público por parte das massas
operárias sobre a conduta dos órgãos partidários
poderia ser substituída pelo controle inverso, o do
comitê central sobre a atividade do operariado
revolucionário.
A própria história do movimento russo oferece-nos
muitas provas do valor problemático de semelhante
centralismo. Um centro todo-poderoso, com seus direitos
quase ilimitados de ingerência e controle, segundo o
ideal de Lenin, seria evidentemente um absurdo, se
tivesse que limitar sua autoridade apenas a meros
aspectos técnicos da atividade socialdemocrática, ao
controle dos meios externos e recursos da agitação, tais
como difusão das publicações partidárias e adequada
distribuição das forças de agitação e financeiras. O
centralismo de Lenin só teria um objetivo político claro
se usasse o seu poder para a criação de uma tática
unitária de luta, para o desencadeamento de uma
grande ação política na Rússia. O que vemos, porém, nas
transformações do movimento russo até hoje? As mais
importantes e fecundas mudanças táticas dos últimos
dez anos não foram “inventadas” por determinados
dirigentes do movimento e, muito menos, por
organizações dirigentes, mas eram, sempre, o produto
espontâneo do movimento desencadeado. Assim
ocorreu, na Rússia, na primeira etapa do movimento
proletário propriamente dito, iniciada no ano de 1896
com a explosão elementar da gigantesca greve de São
Petersburgo10, que inaugurou ação econômica de
massas do proletariado russo. Do mesmo modo foi
aberta a segunda fase, totalmente espontânea, a das
manifestações políticas de rua, pela agitação dos
estudantes de São Petersburgo em março de 190111. A
significativa mudança de tática que veio a seguir,
abrindo novos horizontes, foi a greve de massas em
Rostow sobre o Don12, que rebentou “por si mesma”,
com suas improvisadas agitações de rua ad hoc,
comícios populares ao ar livre, discursos públicos que,
poucos anos antes, o mais audacioso e temerário
socialdemocrata, vendo nisso uma quimera, não teria
ousado imaginar. Em todos estes casos, no começo era
“a ação13”. A iniciativa e a direção consciente das
organizações socialdemocráticas representaram aí um
papel extremamente insignificante. Contudo, isto não
residia tanto na insuficiente preparação destas
organizações específicas para o seu papel – mesmo que
tal fator possa ter contribuído em considerável medida –
e, ainda menos, na ausência, nesse tempo, na
socialdemocracia russa, de um onipotente poder central,
segundo o plano desenvolvido por Lenin. Ao contrário,
tal poder teria muito provavelmente atuado de modo a
aumentar a indecisão das células do partido e a causar
uma divisão entre a massa revolta e a socialdemocracia
vacilante. O mesmo fenômeno – o insignificante papel da
iniciativa consciente da direção partidária na
configuração da tática –, contudo, observa-se também na
Alemanha, assim como em toda parte. Em suas grandes
linhas, a tática de luta da socialdemocracia não é de
modo algum “inventada”, mas é o resultado de uma
série ininterrupta de grandes atos criadores da luta de
classes experimental, freqüentemente elementar.
Também aqui o inconsciente precede o consciente, a
lógica do processo histórico objetivo precede a lógica
subjetiva dos seus portadores. O papel da direção
socialdemocrática é, portanto, de caráter
essencialmente conservador, como o demonstra a
experiência: cada vez que um novo terreno de luta é
conquistado e levado até às últimas conseqüências, é
logo transformado num baluarte contra posteriores
inovações em maior escala. A atual tática da
socialdemocracia alemã, por exemplo, é universalmente
admirada em virtude da sua notável multiformidade,
flexibilidade e, ao mesmo tempo, firmeza. Porém, isso
apenas significa que o nosso partido, na sua luta
quotidiana, adaptou-se admiravelmente, até nos
menores detalhes, ao atual terreno parlamentar, que
sabe explorar todo o terreno de luta oferecido pelo
parlamentarismo, fazendo-o de acordo com seus
princípios. Mas, ao mesmo tempo, esta forma tática
encobre a tal ponto os horizontes mais além que, em
grande medida, aparece a tendência a eternizar e a
considerar a tática parlamentar como pura e
simplesmente a tática da luta socialdemocrática.
Observa-se esta mentalidade, por exemplo, no esforço
infrutífero de Parvus14 que, há anos, tenta instaurar o
debate na imprensa partidária sobre uma eventual
mudança de tática no caso da revogação do sufrágio
universal, eventualidade que é seriamente considerada
pelos dirigentes do partido. Essa inércia, entretanto,
pode ser explicada, em grande parte, pelo fato de que é
muito difícil expor, no ar rarefeito da especulação
abstrata, os contornos e as formas claras de uma
situação política ainda inexistente e, portanto,
imaginária. É igualmente importante para a
socialdemocracia, não a previsão nem a construção
prévia de uma receita pronta para a tática futura, mas
manter viva, no partido, a avaliação histórica correta das
formas de luta vigentes, manter vivo o sentimento da
relatividade da atual fase da luta e da necessária
intensificação dos momentos revolucionários, a partir do
ponto de vista do objetivo final da luta de classes
proletária.

Porém, atribuir à direção partidária tais poderes


absolutos de caráter negativo, como faz Lenin, é
fortalecer artificialmente, e em perigosíssimo grau, o
conservadorismo inerente à essência de qualquer
direção partidária. Se a tática socialdemocrática for
criada, não por um comitê central, mas pelo conjunto do
partido ou, melhor ainda, pelo conjunto do movimento,
então é evidente que, para as células do partido, a
liberdade de movimento é necessária. Apenas ela
possibilita a utilização de todos os meios oferecidos em
cada situação para fortalecer a luta, tanto quanto o
desenvolvimento da iniciativa revolucionária. Porém, o
ultracentralismo preconizado por Lenin parece-nos, em
toda a sua essência, ser portador, não de um espírito
positivo e criador, mas do espírito estéril do guarda
noturno. Sua preocupação consiste, sobretudo, em
controlar a atividade partidária e não em fecundá-la, em
restringir o movimento e não em desenvolvê-lo, em
importuná-lo e não em unificá-lo.

Tal experimento parece duplamente arriscado para a


socialdemocracia russa no atual momento. Encontra-se
ela às vésperas de grandes lutas revolucionárias pela
derrubada do absolutismo. Ela se encontra diante de um
período, ou melhor, já entrou num período da mais
intensa e criadora atividade no plano da tática e – como
é natural em épocas revolucionárias – suas esferas de
influência se alargarão e deslocarão de maneira febril e
aos saltos. Querer justamente em semelhantes tempos
pôr obstáculos à iniciativa do espírito do partido e
restringir sua intermitente capacidade de expansão com
uma cerca de arame farpado, equivaleria a tornar a
socialdemocracia incapaz, de antemão e em alto grau,
para as grandes tarefas do momento.

Das considerações gerais acima sobre o conteúdo


próprio do centralismo socialdemocrático ainda não se
pode certamente deduzir a formulação concreta dos
parágrafos do estatuto do partido russo. Como se trata,
na Rússia, da primeira tentativa de organizar um grande
partido proletário, essa formulação depende,
naturalmente, em última instância, da situação concreta
em que se realiza a atividade em cada período e não
pode, antecipadamente, pretender à infalibilidade; ela
precisa, antes de mais nada, passar pela prova de fogo
da vida prática. Entretanto, o que se pode deduzir da
concepção geral do tipo de organização social-
democrática são os princípios fundamentais, o espírito
da organização, o qual exige principalmente, sobretudo
no início do movimento de massas, que o socialismo
socialdemocrático tenha um caráter coordenador,
unificador, e não um caráter regulamentador e fechado.
Porém, se este espírito de liberdade política do
movimento, ligado a uma penetrante visão da unidade
do movimento e da fidelidade aos princípios, tiver
tomado lugar nas fileiras do partido, então os defeitos de
qualquer estatuto, mesmo o mais ineptamente
concebido, experimentarão, em breve, eficaz correção
através da própria práxis. Não é a letra do estatuto mas
o sentido e o espírito nela introduzidos pelos militantes
ativos que determinam o valor de uma forma de
organização.

II

Até agora consideramos a questão do centralismo, tanto


do ponto de vista dos princípios gerais da
socialdemocracia quanto, em parte, sob o aspecto das
atuais condições na Rússia. Porém,
o espírito de guarda noturno do ultracentralismo
preconizado por Lenin e seus amigos não é o produto
acidental de equívocos, mas está ligado à campanha
contra o oportunismo, levada até aos menores detalhes
das questões de organização.

“Trata-se de forjar, mediante os parágrafos do estatuto”


pensa Lenin (p. 52), “uma arma mais ou menos afiada
contra o oportunismo. Quanto mais profundas forem as
origens do oportunismo, tanto mais afiada essa arma
precisa ser.”

Lenin vê também no poder absoluto do comitê central e


na estrita cerca estatutária em torno do partido
justamente o dique mais eficaz contra a corrente
oportunista. Ele designa como as marcas específicas
desta corrente a inata predileção do intelectual pela
autonomia, pela desorganização e sua aversão à
disciplina partidária estrita, a todo “burocratismo” na
vida do partido. Na opinião de Lenin, apenas o “literato”
socialista, em virtude da sua inata dispersão e
individualismo, pode opor-se a tão ilimitada autoridade
do comitê central. Em contrapartida, um proletário
autêntico, em razão de seu instinto de classe
revolucionário, deve mesmo sentir uma certa volúpia no
rigor, severidade e energia dos seus superiores no
partido, e submeter-se, feliz e de olhos fechados, a todas
as duras operações da “disciplina partidária”.
“O burocratismo oposto ao democratismo”, diz Lenin, “é
justamente o princípio de organização da
socialdemocracia revolucionária oposto ao princípio de
organização dos oportunistas” (p. 151). Lenin enfatiza
que a mesma oposição entre as concepções centralista e
autonomista na socialdemocracia de todos os países
torna-se perceptível onde tendências revolucionárias e
reformistas ou revisionistas se opõem. Ele exemplifica,
em especial, com os recentes acontecimentos no partido
alemão e com a discussão iniciada com a questão da
autonomia dos distritos eleitorais15. Por esta razão, um
exame dos paralelos estabelecidos por Lenin não seria
sem interesse e utilidade.

Observemos, antes de mais nada, que a glorificação das


capacidades inatas do proletário para a organização
socialdemocrática e a desconfiança em relação aos
elementos “intelectuais” do movimento socialdemocrata
ainda não é, em si, um sinal “marxista-revolucionário”;
ao contrário, pode-se demonstrar facilmente o
parentesco entre isso e o ponto de vista do oportunismo.
O antagonismo entre o elemento puramente proletário e
a intelligentsia socialista não-proletária é, de fato, o
escudo ideológico comum sob o qual se estendem as
mãos o semi-anarquismo dos sindicalistas puros na
França, com sua velha palavra de ordem “Méfiez-vous
des politiciens!”16, a desconfiança do sindicalismo inglês
em relação aos “visionários” socialistas e, por fim, se
nossas informações são corretas, igualmente o puro
"economicismo" do antigo Rabotschaya Mysl (jornal
Pensamento Operário) de São Petersburgo, com sua
transposição da estreiteza mental sindicalista para a
Rússia absolutista17.
Entretanto, pode-se observar na prática da
socialdemocracia da Europa Ocidental, até hoje, uma
inegável relação entre o oportunismo e o elemento
intelectual, tanto quanto, por outro lado, entre o
oportunismo e as tendências descentralizadoras nas
questões de organização. Porém, separar de seu
contexto tais fenômenos, nascidos num solo histórico
concreto, para transformá-los em modelos abstratos de
validade geral e absoluta, é o maior pecado contra o
“espírito santo”, do marxismo, contra o seu método de
pensamento histórico-dialético.

Considerando abstratamente, pode-se constatar que o


“intelectual”, oriundo da burguesia e, portanto, estranho
ao proletariado, pode chegar ao socialismo, não em
termos do seu próprio sentimento de classe, mas apenas
pela superação deste, por meio do desenvolvimento
ideológico. Por isso mesmo, o intelectual está mais
predisposto a desvios oportunistas do que o proletariado
esclarecido, ao qual o imediato instinto de classe dá uma
segura firmeza revolucionária, desde que não tenha
perdido o contacto vivo com a sua base social, com a
massa proletária. Entretanto, a forma concreta sob a
qual aparece esta disposição do intelectual para o
oportunismo, a configuração palpável que ela adquire,
dependem sempre, sobretudo em relação às questões
organizatórias, do meio social concreto a que se refere.

Os fenômenos apontados por Lenin na vida da


socialdemocracia alemã, francesa e italiana cresceram
sobre uma base social claramente determinada, a saber,
sobre o parlamentarismo burguês. Aliás, assim como o
parlamentarismo é o viveiro específico da atual corrente
oportunista no movimento socialista da Europa
Ocidental, dele provêm igualmente as tendências
particulares do oportunismo para a desorganização.

O parlamentarismo não apenas mantém todas as


notórias ilusões do atual oportunismo, tais como as
conhecemos na França, Itália e Alemanha: a
supervalorização do trabalho de reformas, a colaboração
das classes e dos partidos, o desenvolvimento pacífico
etc. Ao separar, também na socialdemocracia, o
intelectual como parlamentar e a grande massa
operária, e ao elevá-lo, em certa medida, acima daquela,
o parlamentarismo forma, ao mesmo tempo, o solo sobre
o qual essas ilusões podem atuar na prática. Enfim, o
mesmo parlamentarismo, com o crescimento do
movimento operário, faz deste um trampolim para o
carreirismo político; eis por que existências burguesas,
ambiciosas e fracassadas, facilmente encontram abrigo
no referido movimento.
Por todas estas razões existe uma clara inclinação do
intelectual oportunista da socialdemocracia da Europa
ocidental para a desorganização e a indisciplina. O
segundo pressuposto específico da atual corrente
oportunista consiste na existência de um movimento
socialdemocrata já altamente desenvolvido e, portanto,
também de uma organização partidária
socialdemocrática de considerável influência. Esta
última aparece como o baluarte do movimento de classe
revolucionário contra as tendências burguesas-
parlamentares que querem esfacelá-lo, dividí-lo, de tal
maneira que o compacto núcleo ativo do proletariado se
dissolva novamente na massa eleitoral amorfa. Assim
nascem as tendências “autonomistas” e
descentralizadoras do oportunismo moderno. Elas não
são provenientes do desregramento inato e da
pusilanimidade do “intelectual” (des “Intellektuellen”),
como Lenin supõe, mas têm objetivos políticos,
historicamente justificados e determinados, aos quais
estão bem adaptadas, cuja origem se encontra nas
necessidades do parlamentar burguês. Elas não se
explicam pela psicologia do intelectual, mas pela política
do oportunista.

Porém, na Rússia absolutista, todas estas circunstâncias


parecem ter outro significado: ali o oportunismo no
movimento operário não é, de forma alguma, produto do
intenso crescimento da socialdemocracia, da
decomposição da sociedade burguesa, como no
Ocidente, mas, ao contrário, é produto do seu atraso
político.

A intelligentsia russa, de onde é recrutado o intelectual


socialista, tem um caráter de classe fortemente
indeterminado, é muito mais desclassificada, no sentido
preciso do termo, que a intelligentsia da Europa
ocidental. Disso e da juventude do movimento proletário
na Rússia segue-se, em geral, que existe um espaço bem
mais amplo para a inconstância teórica e a
vagabundagem oportunista. Esta, ora se perde numa
completa negação do aspecto político do movimento
operário, ora na crença oposta na onipotência do
terrorismo para, enfim, descansar politicamente nos
pântanos do liberalismo ou “filosoficamente” nos do
idealismo kantiano18.

Contudo, não apenas o parlamentarismo burguês, que


seria o sustentáculo positivo da tendência ativa do
intelectual russo socialdemocrata para a
desorganização, mas também o meio psicossocial
correspondente, não existe na Rússia. O moderno
literato da Europa ocidental, que se dedica ao culto do
seu pretenso “eu” e que leva esta “moral do homem
superior” também para o mundo da luta e do
pensamento socialistas, é típico, não da intelectualidade
burguesa em geral, mas de uma fase determinada da
sua existência: ou seja, é o produto de uma burguesia
decadente, corrompida, presa no círculo vicioso da sua
dominação de classe. Por razões compreensíveis, os
caprichos utópicos e oportunistas do intelectual
socialista russo tendem, em contrapartida, a assumir a
forma teórica oposta – a do auto-sacrifício e da auto-
flagelação. Tal como o antigo “ir ao povo”, quer dizer, o
obrigatório mascaramento do intelectual em camponês,
defendido pelos velhos “populistas”19, era justamente
uma criação desesperada desse mesmo intelectual,
assim ocorre agora com o culto grosseiro da “mão
calosa”, estabelecido pelos adeptos do puro
“economicismo”.
Se em vez de tentar resolver o problema das formas de
organização por uma transposição mecânica de modelos
rígidos da Europa ocidental para a Rússia,
examinássemos a situação concretamente dada na
própria Rússia, chegaríamos a um resultado
completamente diferente. Atribuir ao oportunismo, como
fez Lenin, uma tendência a preferir uma determinada
forma de organização – digamos para a descentralização
– é não compreender sua natureza íntima. Oportunista
como é, o oportunismo tem um único princípio também
nas questões de organização: a falta de princípios.
Escolhe seus meios sempre de acordo com as
circunstâncias, desde que correspondam aos seus
objetivos. Entretanto, se, com Lenin, definirmos o
oportunismo como a tentativa de paralisar o movimento
de classe revolucionário e autônomo do proletariado,
’para sujeitá-lo à sede de poder da intelectualidade
burguesa, veremos que tal fim é mais facilmente
alcançável nas fases iniciais do movimento operário, não
pela descentralização, mas, justamente, por um forte
centralismo, que entrega totalmente o movimento
proletário ainda confuso a um punhado de dirigentes
intelectuais. É característico que também na Alemanha,
no início do movimento, quando ainda faltavam um
núcleo proletário sólido e esclarecido e uma tática
socialdemocrática experimentada, ambas as tendências
se encontrassem representadas, a saber, o centralismo
extremado representado pela “Associação Geral dos
Trabalhadores Alemães”, de Lassalle e, contra ele, o
“autonomismo” representado pelos eisenachianos20.
Apesar dos seus princípios confusos, a tática dos
eisenachianos criou uma participação ativa
significativamente maior dos elementos proletários na
vida intelectual do partido, um maior espírito de
iniciativa no próprio operariado (como foi demonstrado,
entre outras coisas, pelo rápido desenvolvimento, nas
províncias, de um número notável de jornais de
trabalhadores por parte dessa fração), e, em geral, uma
forte e saudável expansão do movimento. Já os
lassalianos, com seus “ditadores”, naturalmente sempre
tiveram tristes experiências.

Em geral, pode-se demonstrar com facilidade que, em


certas circunstâncias, quando a parte revolucionária da
massa operária ainda está desorganizada e o próprio
movimento hesita, numa palavra, quando se encontra
em condições semelhantes às da Rússia atual, a
tendência organizatória adequada aos intelectuais
oportunistas é justamente o centralismo rígido,
despótico. Tal como, em contrapartida, numa fase
posterior – na situação parlamentar e face a um partido
operário forte, solidamente constituído –, a
descentralização torna-se a tendência apropriada ao
intelectual oportunista.

Assim, precisamente do ponto de vista dos temores de


Lenin em relação à perigosa influência da intelligentsia
sobre o movimento proletário, a sua própria concepção
organizatória constitui o maior perigo para a
socialdemocracia russa.

De fato, nada entrega mais segura e facilmente um


movimento operário ainda jovem à sede de poder dos
intelectuais, quanto confiná-lo na couraça de um
centralismo burocrático21, que degrada o operariado
combativo a instrumento dócil de um “comitê”. E, em
contrapartida, nada preserva de maneira mais segura o
movimento operário de todos os abusos oportunistas por
parte de uma intelligentsia ambiciosa quanto a atividade
revolucionária autônoma do operariado, quanto o
fortalecimento do seu sentimento de responsabilidade
política.

Na verdade, o que hoje Lenin vê como fantasma, pode


amanhã, muito facilmente, tornar-se realidade concreta.

Não nos esqueçamos de que a revolução, às vésperas da


qual nos encontramos na Rússia, não é uma revolução
proletária mas burguesa, que mudará profundamente
todo o cenário da luta socialdemocrática. Então, também
a intelligentsia russa ficará rapidamente imbuída de um
conteúdo de classe burguês fortemente pronunciado. Se,
hoje, a socialdemocracia constitui o único dirigente da
massa operária russa, amanhã, após a revolução, a
burguesia e, em primeiro lugar, sua intelligentsia vai
querer, naturalmente, formar com essa massa o pedestal
da sua dominação parlamentar. Ora, no atual período,
quanto menos livres forem a atividade autônoma, a livre
iniciativa, o senso político da camada mais inteligente do
operariado, quanto mais ele for bloqueado e disciplinado
por um comitê central socialdemocrático, tanto mais
fácil será o jogo dos demagogos burgueses na Rússia
renovada, tanto mais a colheita dos atuais esforços da
socialdemocracia passará para os celeiros da burguesia.

Porém, acima de tudo, é errada a idéia fundamental da


concepção ultracentralista, que culmina na noção de que
se pode manter o oportunismo afastado do movimento
operário através de um estatuto. Sob a influência direta
dos mais recentes acontecimentos na socialdemocracia
francesa, italiana e alemã, os socialdemocratas russos
obviamente tendem a considerar o oportunismo em
geral como um acréscimo, estranho ao próprio
movimento proletário, de elementos da democracia
burguesa, introduzidos de fora no movimento operário.
Se isso fosse correto, os limites estatutários, em si,
seriam totalmente impotentes contra a intrusão dos
elementos oportunistas. O afluxo em massa de
elementos não proletários para a socialdemocracia é
resultado de causas sociais profundamente enraizadas,
tais como o rápido colapso econômico da pequena
burguesia, o colapso ainda mais rápido do liberalismo
burguês e o deperecimento da democracia burguesa.
Portanto, não passa de ilusão ingênua imaginar que esta
onda tempestuosa poderia ser contida por tal ou qual
formulação dos parágrafos do estatuto do partido.
Parágrafos regem apenas a existência de pequenas
seitas ou sociedades privadas; correntes históricas
sempre souberam passar por cima dos parágrafos mais
sutis. Aliás, é completamente errado pensar ser do
interesse do movimento operário repelir o afluxo em
massa dos elementos dispersos em conseqüência da
progressiva dissolução da sociedade burguesa. A
proposição segundo a qual a socialdemocracia
representa os interesses de classe do proletariado e, por
conseguinte, o conjunto dos interesses progressistas da
sociedade e de todas as vítimas oprimidas pela ordem
social burguesa não é para ser meramente interpretada
no sentido de que no programa da socialdemocracia
todos esses interesses estão idealmente sintetizados.
Esta proposição torna-se verdadeira através do processo
de desenvolvimento histórico, em virtude do qual a
socialdemocracia, também como partido político,
gradualmente se torna o abrigo dos elementos mais
variados e mais insatisfeitos da sociedade,
transformando-se realmente no partido do povo contra
uma ínfima minoria da burguesia dominante. É
necessário apenas que a socialdemocracia saiba
subordinar duradouramente ao objetivo final da classe
operária os atuais sofrimentos dessa variegada multidão
de seguidores, que saiba como integrar o espírito não
proletário de oposição à ação proletária revolucionária,
numa palavra, que saiba como assimilar e digerir os
elementos que vão a ela. Entretanto, isto só é possível
onde, como até agora na Alemanha, um núcleo
socialdemocrático proletário, forte e educado, dá o tom
e é lúcido o suficiente para arrastar consigo seguidores
desclassificados e pequeno-burgueses. Neste caso, uma
aplicação mais rigorosa da idéia do centralismo ao
estatuto, e a estrita paragrafação da disciplina
partidária podem ser muito úteis como dique contra a
corrente oportunista. Nessas circunstâncias, o estatuto
pode, sem dúvida, servir de auxílio na luta contra o
oportunismo, tal como de fato serviu para a
socialdemocracia francesa revolucionária contra a
investida da confusão jaurèsiana22 e, tal como agora,
uma revisão dos estatutos do partido alemão, nesse
sentido, tornou-se uma necessidade. Contudo, também
neste caso, o estatuto do partido não deve ser visto, em
si, como uma arma para defender-se do oportunismo,
mas simplesmente como um meio externo, através do
qual a decisiva influência da presente maioria proletária
revolucionária do partido pode ser exercida. Quando tal
maioria falta, ela não pode ser substituída pelos
parágrafos mais rigorosamente escritos.

Entretanto, o afluxo de elementos burgueses, como


dissemos, está longe de ser a única fonte da corrente
oportunista na socialdemocracia. A outra fonte reside na
essência da própria luta socialdemocrática, nas suas
contradições internas. O avanço histórico-mundial do
proletariado até a vitória consiste num processo cuja
particularidade reside no fato de que aqui, pela primeira
vez na história, as próprias massas populares, contra
todas as classes dominantes, impõem sua vontade.
Porém, esta vontade só pode ser realizada fora e além da
atual sociedade. Mas, por outro lado, as massas só
podem formar essa vontade na luta quotidiana com a
ordem estabelecida, portanto dentro dos seus limites. A
unificação da grande massa do povo com um objetivo
que vai além de toda a ordem estabelecida, da luta
quotidiana com a transformação revolucionária, nisto
consiste a contradição dialética do movimento
socialdemocrático, o qual, conseqüente com o processo
de desenvolvimento total, precisa avançar entre dois
escolhos: entre a perda do seu caráter de massa e o
abandono do objetivo final, entre a recaída no estado de
seita e a queda no movimento de reformas burguês.

Por isso é uma ilusão totalmente a-histórica pensar que


a tática socialdemocrática em sentido revolucionário
pode ser garantida, previamente e de uma vez por todas;
que o movimento operário pode, de uma vez por todas,
ser defendido contra desvios oportunistas. É certo que a
doutrina marxista nos dá uma arma devastadora contra
todos os tipos fundamentais de pensamento oportunista.
Como, porém, o movimento socialdemocrático é um
movimento de massa e os escolhos que o ameaçam não
vêm da cabeça dos homens mas das condições sociais,
os erros oportunistas não podem ser impedidos de
antemão; apenas quando, na prática, adquirirem forma
tangível, podem ser superados através do próprio
movimento – evidentemente com a ajuda das armas
oferecidas pelo marxismo. Encarado deste ponto de
vista, o oportunismo aparece também como um produto
do próprio movimento operário, como um momento
inevitável no seu desenvolvimento histórico.
Precisamente na Rússia, onde a socialdemocracia ainda
é jovem e as condições políticas do movimento operário
são anormais, o oportunismo é provavelmente, em
grande medida, resultado do inevitável tatear e
experimentar da tática, da necessidade de sintonizar a
luta presente, em todas as suas peculiaridades, com os
princípios socialistas.

Nesse caso, a idéia de que se pode impedir, já no


começo de um movimento operário, o aparecimento das
correntes oportunistas através desta ou daquela
formulação de um estatuto partidário, é ainda mais
espantosa. A tentativa de se defender do oportunismo
através de um pedaço de papel pode, de fato, prejudicar
apenas a própria socialdemocracia, bloqueando nela
o pulsar de uma vida sadia e enfraquecendo-lhe a
capacidade de resistência, não só na luta contra as
correntes oportunistas, como também, o que é
igualmente importante, contra a ordem estabelecida. Os
meios viram-se contra os fins.
Nesse esforço ansioso de uma parte dos
socialdemocratas russos para, através da tutela de um
onisciente e onipresente comitê central, proteger dos
erros o movimento operário russo ascendente, promissor
e cheio de vida, parece, aliás, intrometer-se o mesmo
subjetivismo que já pregou mais de uma peça ao
pensamento socialista na Rússia. São deveras cômicas
as cabriolas que o respeitável sujeito humano da
história, no seu próprio processo histórico, gosta, por
vezes, de executar. O eu, esmagado, pulverizado pelo
absolutismo russo, vai à desforra quando, no seu
revolucionário mundo de pensamentos, senta-se no
trono, declarando-se a si mesmo todo-poderoso – sob a
forma de um comitê de conspiradores agindo em nome
de uma inexistente “vontade do povo”23. Porém, o
“objeto” mostra-se mais forte, o chicote logo triunfa,
mostrando-se a si mesmo como a “legítima” expressão
da atual fase do processo histórico. Finalmente, surge
na tela um filho ainda mais legítimo do processo
histórico: o movimento operário russo, que começa da
mais bela maneira, criando, pela primeira vez na história
russa, uma verdadeira vontade do povo. Porém, agora o
“eu” do revolucionário russo põe-se rapidamente de
ponta-cabeça, declarando-se, mais uma vez, o todo-
poderoso dirigente da história – desta vez como Sua
Majestade, o comitê central do movimento operário
socialdemocrata. O audaz acrobata não vê que o único
sujeito a que agora cabe o papel de dirigente é o eu-
massa (das Massen-Ich) da classe operária, que em todo
lugar insiste em poder fazer os seus próprios erros e
aprender por si mesmo a dialética histórica. E, por fim,
precisamos admitir francamente: os erros cometidos por
um movimento operário verdadeiramente revolucionário
são, do ponto de vista histórico, infinitamente mais
fecundos e valiosos que a infalibilidade do melhor
“comitê central”.

1 NOTAS

Artigo publicado em Die Neue Zeit, Stuttgart, ano 22,


1903/1904, vol. 2, p. 484-492; 529-535.
2 O presente trabalho refere-se à situação russa. Porém,

as questões de organização de que trata são importantes


também para a socialdemocracia alemã, não apenas em
virtude do enorme significado internacional alcançado
atualmente pelo nosso partido irmão russo, mas também
porque semelhantes problemas de organização ocupam
vivamente, no momento, nosso próprio partido.
Conseqüentemente, levamos ao conhecimento dos
nossos leitores este artigo da Iskra (Die Neue Zeit). Iskra
(Centelha): primeiro jornal clandestino da Rússia,
fundado por Lenin em 1900. O primeiro número foi
publicado em Leipzig, os seguintes em Munique. A partir
de julho de 1902, em Londres, e desde a primavera de
1903, em Genebra.
3 Leis votadas sob instigação de Bismarck, em 1878,
obrigando o Partido Social Democrata Alemão (SPD) a
uma semiclandestinidade.
4 Marx e Engels. Manifest der Kommunistischen Partei.

Em: Werke, Berlim, r vol. 4, 1964, p. 470. Cf. tradução


brasileira: Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis,
Vozes, 1988, p. 74.
5 De 30 de julho a 23 de agosto de 1903, realizou-se em

Bruxelas o II Congresso do Partido Operário Social


Democrata Russo (POSDR), onde ocorreu a cisão entre
bolcheviques e mencheviques.
6 Lenin. Um passo à frente, dois passos atrás. Genebra,

Gráfica do Partido, 1904.


7 Os socialdemocratas russos no exílio viviam em

diferentes cidades européias onde estavam


politicamente organizados. Donde a referência de Rosa
Luxemburg a Genebra e Liège.
8 O Império Austro-Húngaro era composto de várias

nações. A socialdemocracia austríaca, dirigida por Victor


Adler, estabeleceu uma relação federativa a com os
grupos nacionais dentro do Império.
9 É a primeira vez no texto que Rosa Luxemburg utiliza a

palavra Arbeiterschaft em vez de Arbeiterklasse para se


referir à classe operária. Como explica Gilbert Badia em
Rosa Luxemburg, Journaliste, Polémiste, Révolutionaire
(Paris, Editions Sociales, 1975, p. 545), Rosa, no artigo
de 1902, critica o uso do termo Arbeiterschaft (palavra
neutra que designa o conjunto dos operários enquanto
justaposição de indivíduos no processo de produção),
preferindo o de Arbeiterklasse, de clara conotação
política, pois nele os operários constituem uma classe
oposta a outras classes sociais. Nesse artigo, Rosa
propõe que se abandone a expressão Hebung der
Arbeiterschaft (melhoramento da condição operária) e se
volte a Befreiung der Arbeiterklasse (libertação da classe
operária). Não deixa de ser curioso, portanto, que,
apesar das críticas, a própria Rosa utilize o termo.
10 No verão de 1896, 30.000 trabalhadores da indústria

têxtil de São Petersburgo entraram em greve, exigindo o


pagamento dos dias parados por ocasião da coroação de
Nicolau II, a diminuição das horas de trabalho e
aumento de salário. As reivindicações foram em parte
atendidas e a greve acabou após três semanas.
11 A 4 de março de 1901, realizou-se em São Petersburgo

uma grande manifestação de operários e estudantes


contra a política estudantil do governo czarista. A polícia
e o exército atacaram brutalmente os manifestantes.
12 Em novembro de 1902, começou em Rostow sobre o

Don uma greve dos ferroviários que rapidamente atingiu


todos os trabalhadores da cidade. Esta greve
representou uma contribuição fundamental para o
desenvolvimento do movimento operário na Rússia.
13 Referência ao monólogo do Fausto, de Goethe. Rosa

Luxemburg cita freqüentemente esta passagem.


14 Parvus, pseudônimo de Alexander L. Helphand (1867-

1924): personagem controverso do socialismo


internacional. Revolucionário russo, emigrado na
Alemanha e membro do SPD partir de 1891, onde
combateu o revisionismo. Em o 1905, participou da
revolução na Rússia e fugiu para a Alemanha em 1906.
De r 1910 a 1914, morou nos Bálcãs, entregando-se à
especulação. Ao retornar à Alemanha, aderiu à ala
direita do partido.
15 Os revisionistas argumentavam que “condições

especiais” exigiam estratégias especiais, tais como votar


o orçamento local, coalizões eleitorais locais ou uma
política agrícola diferente. A ala revisionista lutou
durante anos contra o “centralismo de Berlim”.
16 “Desconfiai dos políticos!”. Em francês no original.
17 Rabotschaya Mysl (outubro de 1897-dezembro de
1902): jornal dos “economicistas”, cujas posições Lenin
criticou em uma série de obras, entre elas o Que fazer? ,
como uma variação russa do oportunismo internacional.
18 É provável que Rosa Luxemburg tenha em mente o

“marxismo legal” o (1894-1901), denominação dada à


atividade política e cultural de um pequeno m grupo de
intelectuais russos, cujas publicações não eram
clandestinas: Pëtr Struve, o Mikhail Tugan-Baranóvski,
Sergei Bulgakof, Nicolai Berdiave e Semën Frank. O
“marxismo legal” está para o marxismo russo assim
como o revisionismo de Bernstein para o marxismo
alemão. No plano político, passa do socialismo ao
liberalismo ou do “socialismo científico” ao “socialismo
utópico” ou ético e, no e plano filosófico, abandona a
dialética hegeliana para aderir ao kantismo (cf. n
Vittorio Estrada. O “marxismo legal” na Rússia. Em:
História do Marxismo , vol. 3. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1984).
19 Populistas: nome dado aos grupos revolucionários na

Rússia no período de 1870-1881. O primeiro grupo, Naro


dniki, nome derivado de hozhdenie narod (“ir ao povo”),
recrutava seus primeiros membros entre os estudantes
universitários que, vestidos de camponeses, tentavam,
sem sucesso, conquistar os camponeses para o
socialismo. Impotentes para mobilizar pela palavra o
camponês russo, impacientes para derrubar o czarismo,
passaram a exaltar a ação individual, o papel do gesto
exemplar, o sacrifício dos heróis. Em 1877, quando
muitos Naro dniki foram presos, os populistas
organizaram uma sociedade terrorista, v “Terra e
Liberdade”. Em 1880 esta organização cindiu-se em dois
grupos, um deles a “A Vontade do Povo”, a que Rosa
Luxemburg faz referência no final do texto.
20 Em 1863, dois partidos operários surgem na
Alemanha: a Associação Geral dos Trabalhadores
Alemães, dirigida por Lassalle, e a União das
Associações ide Trabalhadores Alemães, de Bebel e W.
Liebknecht, que, em 1869, depois de aderir à I
Internacional, torna-se, no Congresso realizado em
Eisenach, Partido Social Democrata Alemão (SPD). Os
eisenachianos eram socialistas, internacionalistas,
criticavam os métodos ultracentralistas do Estado
prussiano e defendiam a organização política
descentralizada. Já os lassalianos preconizavam a
intervenção do Estado no campo social, defendiam a
unificação alemã sob a direção da Prússia e uma
organização operária centralizada. Em 1875, no
Congresso de Gotha, estas duas tendências se unem. O
programa, para grande aborrecimento de Marx, era
reformista, centrado nas reivindicações imediatas:
sufrágio universal, voto secreto, liberdades
democráticas, melhoria das condições de vida dos
trabalhadores através do Parlamento. Só em 1891, no
Congresso de Erfurt, o marxismo se torna a doutrina do
partido. Entretanto, persiste a contradição entre o
objetivo final, revolucionário, e as reivindicações
imediatas que, na prática, fazem avançar o movimento
operário. Esta contradição que o acompanha desde as
origens marcaria o SPD no seu desenvolvimento.
21 Na Inglaterra são justamente os fabianos os mais

ardorosos defensores da centralização burocrática e


adversários das formas de organização democráticas.
Sobretudo os Webb (Die Neue Zeit). Fabianos: membros
da sociedade Fabiana, movimento de classe média
intelectual, fundado na Inglaterra em janeiro de 1884.
Entre os antigos membros da sociedade encontravam-se
Bernard Shaw (18561950) e Sidney e Beatrice Webb
(1859-1947, 1858-1943). Os fabianos rejeitavam o
marxismo, acreditando que o socialismo poderia ser
implantado através do sufrágio universal, culminando
um longo período de evolução política. Em 1900, a
sociedade Fabiana ingressou no Comitê de
Representação Trabalhista, posteriormente Partido
Trabalhista.
22 Jean Jaures (1859-1914): líder socialista francês.

Deputado em 18851886, 1893-1898 e 1902-1914.


Grande orador, em 1894 defendeu Dreyfus (18591935),
conquistando grande número de pessoas para o
socialismo. Em 1904 fundou o jornal L’Humanité. Formou
um bloco parlamentar entre socialistas radicais em
apoio ao governo burguês de Millerand. É ao que Rosa
Luxemburg se refere quando menciona a “confusão
jaurèsiana”. Opôs-se violentamente ao militarismo e à
guerra. Foi assassinado a 31 de julho de 1914 por um
nacionalista francês fanático. Seu assassino foi
absolvido.
23 Jogo de palavras com Narodnaya Volya (A vontade do

Povo), organização política secreta dos populistas-


terroristas, surgida em agosto de 1879, ao cindir-se a
organização populista “Terra e Liberdade”. Grupo
responsável pelo assassinato do czar Alexandre II, em
1881.
2. A Revolução Russa
I

A Revolução Russa é o fato mais prodigioso da guerra


mundial. Sua explosão, seu radicalismo sem igual, seu
efeito durável refutam admiravelmente o argumento
utilizado pela socialdemocracia alemã oficial, no seu zelo
para encobrir ideologicamente a campanha de
conquistas do imperialismo alemão: as baionetas alemãs
tinham por missão derrubar o czarismo e libertar os
povos por ele oprimidos. A revolução na Rússia atingiu
considerável alcance, a influência profunda por ela
exercida permitiu-lhe abalar todas as relações de classe,
revelar o conjunto dos problemas econômicos e sociais,
e passar, conseqüentemente, com a fatalidade da sua
lógica interna, do primeiro estágio da república
burguesa a estágios cada vez mais elevados, não tendo
sido a queda do czarismo mais do que um episódio
menor, quase uma bagatela. Tudo isto demonstra
claramente que a libertação da Rússia não foi obra da
guerra nem da derrota militar do czarismo, das
“baionetas alemãs em punhos alemães”, como prometia
o editorial da Neue Zeit dirigida por Kautsky1; ao
contrário, ela tinha raízes profundas no próprio país e
chegara à plena maturidade interna. Não foi a aventura
guerreira do imperialismo alemão, sob o escudo
ideológico da socialdemocracia alemã, que provocou a
revolução na Rússia. Ela, ao contrário, interrompeu-a
durante algum tempo, no início – após seu primeiro
grande fluxo nos anos de 1911-1913 – criando-lhe em
seguida, depois da explosão, as mais difíceis e anormais
condições.
Mas, para todo observador que reflita, este processo é
um desmentido flagrante à teoria doutrinária que
Kautsky* compartilha com o partido dos socialistas
governamentais, segundo a qual a Rússia, país
economicamente atrasado, essencialmente agrário, não
estaria maduro para a revolução social nem para uma
ditadura do proletariado. Esta teoria, que só admite
como possível na Rússia uma revolução burguesa –
concepção de que resulta igualmente a tática segundo a
qual os socialistas deveriam, na Rússia, aliar-se ao
liberalismo burguês – é também a da ala oportunista no
movimento operário russo, os assim chamados
mencheviques, sob a experimentada direção de Axelrod
e Dan2. Nesta interpretação fundamental da Revolução
Russa, de que decorrem naturalmente as tomadas de
posição face às questões de detalhe na tática, tanto os
oportunistas russos quanto os alemães concordam com
os socialistas governamentais alemães3. Segundo estes
três grupos, a Revolução Russa deveria ter parado no
estágio da derrubada do czarismo, nobre tarefa que, na
mitologia da socialdemocracia alemã, estrategistas do
imperialismo alemão tinham se fixado. Se ela foi além,
se ela estabeleceu como tarefa a ditadura do
proletariado, tal aconteceu, segundo esta doutrina, por
simples erro da ala radical do movimento operário russo,
os bolcheviques; e todas as desgraças que sucederam à
revolução no seu ulterior desenvolvimento, todas as
confusões de que foi vítima, nada mais são que o simples
resultado desse erro fatal. Teoricamente, esta doutrina,
apresentada tanto pelo Vorwärts de Stampfer4 quanto
por Kautsky, como um fruto do “pensamento marxista”,
chega a esta descoberta “marxista” original de que a
transformação socialista é um assunto nacional, por
assim dizer doméstico, de cada Estado moderno em
particular. Nas brumas desse esquema abstrato, um
Kautsky sabe, naturalmente, descrever minuciosamente
as imbricações econômicas mundiais do capital, que
fazem com que todos os Estados modernos estejam
organicamente ligados.

A revolução na Rússia – fruto do desenvolvimento


internacional e da questão agrária – não pode ter
solução nos limites da sociedade burguesa.

Praticamente, esta doutrina tende a recusar a


responsabilidade do proletariado internacional – o
proletariado alemão em primeiro lugar – pela sorte da
Revolução Russa e a negar as interferências
internacionais desta revolução. A guerra e a Revolução
Russa demonstraram, não a imaturidade da Rússia, mas
a imaturidade do proletariado alemão para cumprir sua
missão histórica. Ressaltar este fato com toda a nitidez é
a primeira tarefa de uma análise crítica da Revolução
Russa. Os destinos da revolução na Rússia dependiam
integralmente dos acontecimentos internacionais.
Contando com a revolução mundial do proletariado, os
bolcheviques deram precisamente a prova mais
brilhante da sua perspicácia política, da sua fidelidade
aos princípios, da audácia da sua política. Aí torna-se
visível o imenso salto dado pelo desenvolvimento
capitalista nos últimos dez anos. A revolução de 1905-
1907 encontrou apenas um fraco eco na Europa. Por isso
tinha que permanecer um capítulo introdutório. A
continuação e o desfecho estavam ligados ao
desenvolvimento europeu.

É claro que só uma crítica aprofundada e refletida, e não


uma apologia acrítica, permitirá recolher todos esses
tesouros de experiências e ensinamentos. De fato, seria
loucura imaginar a primeira tentativa histórico-mundial
de ditadura da classe operária – nas mais difíceis
condições – realizada em plena conflagração mundial,
em pleno caos provocado pelo genocídio imperialista,
presa na armadilha de ferro da potência militar mais
reacionária da Europa, face à completa omissão do
proletariado internacional – imaginar que numa
tentativa de ditadura operária realizada em condições
tão anormais, tudo o que se fez ou deixou de fazer na
Rússia pudesse atingir o cúmulo da perfeição. Ao
contrário, os conceitos elementares da política socialista
e a compreensão das condições históricas necessárias à
realização dessa política obrigam a reconhecer que, em
condições tão fatais, nem o mais gigantesco idealismo,
nem a mais inabalável energia revolucionária eram
capazes de realizar a democracia e o socialismo, mas
apenas rudimentos caricaturais e impotentes de uma e
de outro.

Encarar isto com clareza, em todas as suas implicações


e conseqüências profundas, é, incontestavelmente, o
dever elementar dos socialistas de todos os países, pois
apenas um conhecimento sério permitirá medir toda a
extensão da responsabilidade própria do proletariado
internacional no que se refere aos destinos da Revolução
Russa. Aliás, é apenas por este meio que aparece a
importância decisiva de uma revolução proletária
concertada e conduzida em escala internacional –
condição fundamental, sem a qual a maior habilidade e
os sacrifícios mais sublimes do proletariado de um único
país enredar-se-iam inevitavelmente num caos de
contradições e de erros.

Não há dúvida de que as cabeças pensantes da


Revolução Russa, Lenin e Trotski, deram muitos passos
decisivos em seu caminho espinhoso, semeado de
armadilhas de todo tipo, dominados por grandes dúvidas
e pelas mais violentas hesitações interiores; nada
poderia estar mais longe deles que ver a Internacional
aceitar o que fizeram ou deixaram de fazer sob dura
coerção, sob pressão, no tumulto e na fermentação dos
acontecimentos, como um modelo sublime de política
socialista, digno da admiração beata e da imitação
fervorosa.

Seria igualmente errado temer que um exame crítico dos


caminhos seguidos até aqui pela Revolução Russa possa
abalar perigosamente o prestígio e o exemplo fascinante
do proletariado russo, único capaz de vencer a inércia
fatal das massas alemãs. Nada mais falso. O despertar
da combatividade revolucionária da classe operária
alemã não poderia provir, como que por encanto, de
alguma operação de sugestão praticada segundo os
métodos de tutela da socialdemocracia alemã – Deus a
tenha – que incitaria as massas a confiar cegamente
numa autoridade imaculada, quer a de suas próprias
“instâncias”, quer a do “exemplo russo”. A capacidade
de realizar ações históricas não pode nascer, no
proletariado alemão, num clima de entusiasmo
revolucionário acrítico; ao contrário, só nascerá do
exame da terrível gravidade, de toda a complexidade das
tarefas a cumprir, da maturidade política e da autonomia
intelectual, da capacidade de julgamento crítico das
massas, abafadas ao longo de décadas pela
socialdemocracia alemã, sob os mais diversos pretextos.
Analisar criticamente a Revolução Russa no seu contexto
histórico é o melhor meio de educar os operários
alemães e de outros países para as tarefas resultantes
da atual situação.

II
O primeiro período da Revolução Russa, desde a sua
explosão em março até a mudança de regime em
outubro, corresponde exatamente, em seu curso geral,
ao esquema evolutivo das grandes revoluções inglesa e
francesa. É o devir típico de todo primeiro grande
conflito generalizado das forças revolucionárias,
engendradas no seio da sociedade burguesa, contra as
cadeias da velha sociedade.

Ele progride naturalmente em linha ascendente:


moderados no início, os objetivos radicalizam-se cada
vez mais e, paralelamente, passa-se da coalizão de
classes e partidos à dominação exclusiva do partido mais
radical.

No primeiro momento, em março de 1917, os


“cadetes”5, isto é, a burguesia liberal, estavam à cabeça
da revolução. A primeira grande maré revolucionária
arrastou tudo e todos consigo: a IV Duma, o produto
mais reacionário do mais reacionário dos sistemas
eleitorais, o das quatro classes, procedente do golpe de
Estado6, transformou-se repentinamente num órgão da
revolução. Todos os partidos burgueses, inclusive a
direita nacionalista, formaram, de repente, uma falange
contra o absolutismo. Este caiu ao primeiro assalto,
quase sem luta, como um órgão carcomido no qual
apenas basta tocar para que caia. Do mesmo modo, a
breve tentativa da burguesia liberal de salvar pelo
menos a dinastia e o trono espatifou-se em poucas
horas. Em dias, horas, o avanço impetuoso do
desenvolvimento saltou distâncias que a França,
outrora, levara decênios a percorrer. Constatou-se que a
Rússia realizava os resultados de um século de
desenvolvimento europeu e, sobretudo, que a revolução
de 1917 era a continuação direta da revolução de 1905-
1907 e não um presente dos “libertadores” alemães. O
movimento de março de 1917 retomou sua marcha
exatamente no ponto em que o precedente tinha
interrompido sua obra, dez anos antes. A república
democrática foi, logo desde a primeira investida, o
produto acabado, internamente maduro, da revolução.

Começou então a segunda e mais difícil tarefa. Desde o


início, a força motriz da revolução tinha sido a massa do
proletariado urbano. Mas suas reivindicações não se
esgotavam com
o advento da democracia política; ao contrário, dirigiam-
se para a questão palpitante da política internacional: a
paz imediata. Ao mesmo tempo, a revolução precipitou-
se sobre a massa do exército, que fez a mesma
reivindicação de uma paz imediata, e sobre a massa dos
camponeses, que pôs em primeiro plano a questão
agrária, pivô da revolução desde 1905. Paz imediata e
terra – esses dois objetivos implicavam na cisão no
interior da falange revolucionária. A reivindicação de
uma paz imediata estava em contradição absoluta com a
tendência imperialista da burguesia liberal, cujo porta-
voz era Miliukov7; a questão agrária era, antes de mais
nada, um espantalho para a outra ala da burguesia, a
nobreza proprietária de terras; mas, em seguida, foi
considerada como um atentado à sacrossanta
propriedade privada em geral, ponto doloroso para o
conjunto das classes burguesas.

Assim, no dia seguinte ao da primeira vitória da


revolução, começou em seu seio uma luta interna em
torno das duas questões principais: a paz e a questão
agrária. A burguesia liberal adotou uma tática
diversionista e evasiva. As massas operárias, o exército,
os camponeses pressionavam cada vez mais
violentamente. Não há dúvida, o próprio destino da
democracia política, da República, estava ligado à
questão da paz e à questão agrária. As classes
burguesas que, submergidas pela primeira tempestade
revolucionária, se tinham deixado arrastar até a forma
do Estado republicano, começaram imediatamente a
procurar pontos de apoio na retaguarda e, em segredo, a
organizar a contrarrevolução. A expedição dos cossacos
de Kaledin contra São Petersburgo8 revelou claramente
esta tendência. Se esta agressão tivesse sido coroada de
êxito, teria sido selada a sorte, não somente das
questões da paz e da terra, mas também da democracia
e da própria República. Ditadura militar acompanhada
de um regime de terror contra o proletariado e, em
seguida, volta à monarquia teriam sido as suas
conseqüências inevitáveis.

Isso permite medir o que tem de utópico e, no fundo, de


reacionário, a tática dos socialistas russos da tendência
Kautsky, os mencheviques.

É francamente espantoso observar como este homem


diligente9, nos quatro anos da guerra mundial, com o
seu incansável trabalho de escriba, tranquila e
metodicamente abriu sucessivos buracos no socialismo,
transformando-o numa peneira, sem nenhum lugar
intacto. A serenidade passiva com que seus seguidores
assistem a esse trabalho aplicado do seu teórico oficial e
engolem, sem piscar, cada uma de suas novas
descobertas, só pode ser comparada à serenidade dos
seguidores de Scheidemann10 e Cia., quando estes
últimos esburacam, passo a passo, a prática do
socialismo. De fato, ambos os trabalhos se completam à
perfeição; e Kautsky, o guardião oficial do templo
marxista, faz, na realidade, desde o início da guerra,
apenas teoricamente
o que os Scheidemann (Scheidemänner) fazem na
prática: 1. A Internacional, instrumento de paz; 2.
Desarmamento e sociedade das nações, nacionalismo;
enfim 3. Democracia, não socialismo.

Obcecados pela ficção do caráter burguês da Revolução


Russa – já que se diz que a Rússia ainda não está
madura para uma revolução social – agarraram-se
desesperadamente à coalizão com os liberais burgueses,
isto é, à união forçada entre os elementos que, cindidos
pela marcha interna natural do desenvolvimento
revolucionário, tinham entrado em violenta oposição
recíproca. Os Axelrod e os Dan queriam a todo custo
colaborar com as classes e os partidos que ameaçavam
mais perigosamente a revolução e sua primeira
conquista, a democracia.

Nesta situação coube pois à tendência bolchevique o


mérito histórico de ter proclamado e prosseguido, desde
o início, com uma coerência férrea, a única tática que
podia salvar a democracia e fazer avançar a revolução.
Todo o poder às mãos das massas operárias e
camponesas, às mãos dos sovietes – esta era, de fato, a
única saída para as dificuldades em que se encontrava a
revolução, o golpe de espada que permitia cortar o nó
górdio, tirar a revolução do impasse e deixar o campo
livre à continuação de um desenvolvimento sem
entraves.

O partido de Lenin foi, assim, o único na Rússia que


compreendeu os verdadeiros interesses da revolução
neste primeiro período, foi o seu elemento motor, e,
nesse sentido, o único partido a praticar uma política
realmente socialista.

Isso explica também que os bolcheviques, minoria


proscrita, caluniada e acuada por todos os lados no
início da revolução tenham, num curto espaço de tempo,
se tornado seus dirigentes e podido reunir, sob a sua
bandeira, todas as massas realmente populares: o
proletariado urbano, o exército, o campesinato, assim
como os elementos revolucionários da democracia, a ala
esquerda dos socialistas-revolucionários (cf. nota 33
deste texto).

Ao fim de poucos meses a situação real da Revolução


Russa resumia-se à seguinte alternativa: vitória da
contrarrevolução ou ditadura do proletariado, Kaledin
ou Lenin. Esta situação objetiva a que chega toda
revolução, uma vez dissipada a primeira embriaguez, foi
resultado, na Rússia, de duas questões concretas e
palpitantes, a da paz e a da terra, para as quais não
existia solução nos quadros da revolução “burguesa”.

Com isto, a Revolução Russa apenas confirmou o


ensinamento fundamental de toda grande revolução,
cuja lei vital é a seguinte: avançar muito rápida e
resolutamente, abater com mão de ferro todos os
obstáculos e pôr seus objetivos sempre mais longe, ou
ser atirada de volta ao seu frágil ponto de partida e
esmagada pela contrarrevolução. Parar, marcar passo,
contentar-se com o primeiro objetivo alcançado, isso não
existe numa revolução. E quem quiser transpor para o
plano da tática revolucionária a sabedoria caseira das
guerrinhas parlamentares mostra apenas que ignora a
psicologia, a própria lei vital da revolução, assim como
toda a experiência histórica que, neste caso, permanece
para ele um livro fechado a sete chaves.

Vejamos o decorrer da Revolução Inglesa desde que


explodiuem1642.Pela lógica das coisas, a fraqueza e as
tergiversações dos presbiterianos primeiro, depois sua
guerra hesitante contra
o exército real, na qual os chefes presbiterianos
evitaram cuidadosamente uma batalha decisiva e uma
vitória sobre Carlos I, obrigaram inelutavelmente os
Independentes a expulsá-los do Parlamento e a tomar o
poder. E, da mesma forma, no seio do exército dos
Independentes, foi em seguida a massa subalterna e
pequeno-burguesa dos soldados, os “niveladores” de
Lilburn11, que constituiu a tropa de choque de todo o
movimento independente, assim como, finalmente, os
elementos proletários da massa dos soldados, aqueles
que iam mais longe nas suas perspectivas de
transformação social, que se exprimiam no movimento
dos “diggers”12, foram os que, por sua vez,
representaram o fermento do partido democrático dos
“niveladores”.

Sem a influência dos elementos proletários


revolucionários sobre o espírito da massa dos soldados,
sem a pressão da massa democrática dos soldados sobre
a camada dirigente burguesa do partido independente,
não se teria chegado à “depuração” do Longo
Parlamento13 pela expulsão dos presbiterianos, nem à
conclusão vitoriosa da guerra contra o exército dos
gentlemen e contra os escoceses, nem ao processo de
Carlos Ie à sua execução, nem à supressão da Câmara
dos Lordes e à proclamação da República.

E a grande Revolução Francesa? Depois de quatro anos


de lutas, a tomada do poder pelos jacobinos mostrou-se
como o único meio de salvar as conquistas da revolução,
de efetivar a República, de destroçar o feudalismo, de
organizar a defesa revolucionária interna e externa, de
sufocar as conspirações da contrarrevolução e de
propagar por toda a Europa a vaga revolucionária vinda
da França.
Kautsky e seus correligionários russos, que queriam que
a Revolução Russa conservasse o “caráter burguês” da
sua primeira fase, são a exata contrapartida dos liberais
alemães e ingleses do século passado que distinguiam
assim os dois célebres períodos da grande Revolução
Francesa: a “boa” revolução da primeira fase, a fase
girondina, e a “má”, a partir da tomada do poder pelos
jacobinos. Esta concepção liberal, superficial da história
não precisava naturalmente compreender que sem a
tomada do poder por esses jacobinos “sem medida”,
mesmo as tímidas semiconquistas da fase girondina
teriam sido logo soterradas sob os escombros da
revolução e que a alternativa real à ditadura jacobina,
tal como era posta pela marcha de bronze do
desenvolvimento histórico no ano de 1793, não era a
democracia “moderada” mas a restauração dos
Bourbons! E nenhuma revolução o “justo meio” pode ser
mantido, sua lei natural exige decisões rápidas: ou a
locomotiva subirá a encosta histórica a todo vapor até o
cume, ou, arrastada pelo próprio peso, voltará à planície
de onde partira, arrastando consigo para o abismo, sem
esperança de salvação, os que, com suas fracas forças,
queriam detê-la a meio do caminho.

Assim se explica que, em toda revolução, o único partido


capaz de conquistar a direção e o poder é aquele que
tem a coragem de lançar palavras de ordem
mobilizadoras e de tirar daí todas as conseqüências.
Assim se explica o papel lamentável dos mencheviques
russos, os Dan, os Tseretelli14 etc., que exerciam no
início enorme influência sobre as massas, mas que, após
um longo período de oscilações, tendo-se recusado com
unhas e dentes a tomar o poder e assumir as
responsabilidades, sem glória foram varridos da cena.
O partido de Lenin foi o único a compreender as
exigências e os deveres que incumbem a um partido
verdadeiramente revolucionário e que assegurou a
continuação da revolução, lançando a palavra de ordem:
todo o poder às mãos do proletariado e do campesinato.

Os bolcheviques resolveram assim a célebre questão da


“maioria do povo”, pesadelo que sempre oprimiu os
socialdemocratas alemães. Pupilos incorrigíveis do
cretinismo parlamentar simplesmente transpõem para a
revolução a sabedoria caseira do jardim de infância
parlamentar: para fazer alguma coisa, é preciso ter
antes a maioria. Portanto, o mesmo para a revolução:
conquistemos primeiro a “maioria”. Mas a dialética real
das revoluções inverte esta sabedoria de toupeira
parlamentar: o caminho não conduz da maioria à tática
revolucionária, ele leva à maioria pela tática
revolucionária. Apenas um partido que saiba dirigir, isto
é, fazer avançar, ganha seus seguidores na tempestade.
A resolução com que Lenin e seus companheiros
lançaram no momento decisivo a única palavra de ordem
mobilizadora – todo o poder ao proletariado e
campesinato – fez, praticamente de um dia para o outro,
de uma minoria perseguida, caluniada, “ilegal”, cujos
dirigentes, como Marat, precisavam esconder-se nas
caves, a dona absoluta da situação.

Os bolcheviques também fixaram imediatamente, como


objetivo da tomada do poder, o mais avançado e
completo programa revolucionário; não se tratava de
garantir a democracia burguesa, mas de consolidar a
ditadura do proletariado, tendo como fim a realização do
socialismo. Adquiriram assim o mérito histórico
imperecível de terem proclamado, pela primeira vez, os
objetivos finais do socialismo como programa imediato
da política prática.

Tudo que, num momento histórico, um partido pode dar


em matéria de coragem, energia, perspicácia
revolucionária e coerência, Lenin, Trotski e seus
companheiros realizaram plenamente. Toda a honra,
toda a capacidade de ação revolucionária, que fizeram
falta à socialdemocracia ocidental, encontravam-se nos
bolcheviques. Com sua insurreição de outubro não
somente salvaram, de fato, a Revolução Russa, mas
também a honra do socialismo internacional.

III

Os bolcheviques são os herdeiros históricos dos


niveladores ingleses e dos jacobinos franceses. Mas a
tarefa concreta que lhes coube na Revolução Russa,
após a tomada do poder, era incomparavelmente mais
difícil que a de seus antecessores15. Certamente, a
palavra de ordem exortando os camponeses à imediata
tomada e partilha das terras era a fórmula mais sumária,
mais simples e mais lapidar para atingir um duplo fim:
aniquilar a grande propriedade fundiária e vincular
imediatamente os camponeses ao governo
revolucionário. Como medida política para fortalecer o
governo socialista e proletário era uma tática excelente.
Infelizmente, ela tinha duas faces, e seu reverso, a
tomada imediata das terras pelos camponeses, não tinha
nada a ver com uma agricultura socialista.

A reestruturação socialista das relações econômicas


pressupõe duas condições no tocante à esfera agrária:
primeiramente, a nacionalização da grande propriedade
fundiária, justamente porque representa uma
concentração, a mais avançada do ponto de vista
técnico, dos meios de produção e dos métodos agrícolas,
única que pode servir de ponto de partida para uma
economia socialista no campo. Mesmo não sendo
necessário confiscar ao pequeno camponês o seu pedaço
de terra, podendo-se tranquilamente deixá-lo convencer-
se por si mesmo das vantagens da exploração coletiva,
que o levarão a aderir primeiro ao agrupamento
cooperativo e depois ao sistema de exploração social
coletiva, é evidente que toda reforma econômica
socialista no campo deve começar pela grande e média
propriedade fundiária. Nesse caso, é preciso transferir,
antes de mais nada, o direito de propriedade à nação, ou
ao Estado, o que vem a ser o mesmo com um governo
socialista; pois apenas isto oferece a possibilidade de
organizar a produção agrícola segundo grandes
perspectivas socialistas coerentes.

Mas, em segundo lugar, um dos pressupostos dessa


reestruturação é suprimir a distinção entre a agricultura
e a indústria, traço característico da sociedade
burguesa, para dar lugar à interpenetração e à fusão
desses dois ramos da produção, à transformação, tanto
da produção agrícola quanto industrial, segundo
perspectivas uniformes. Como quer que seja nos
detalhes o modo prático de gestão – municipal, como
propõem alguns ou centralizada no Estado – a condição
prévia é, em todo caso, uma reforma unitária partindo
do centro, tendo por premissas a nacionalização das
terras. Nacionalização da grande e média propriedade
fundiária, unificação da indústria e da agricultura: são
esses os dois aspectos fundamentais de toda reforma
econômica socialista, sem os quais não há socialismo.

Que o governo dos sovietes na Rússia não tenha


realizado estas reformas consideráveis, quem pode
recriminá-lo por isso? Seria um gracejo de mau gosto
exigir ou esperar que Lenin e seus companheiros, no
breve período do seu poder, no turbilhão impetuoso das
lutas internas e externas, premidos de todos os lados por
inúmeros inimigos e resistências sem conta, resolvessem
ou apenas começassem a resolver um dos problemas
mais difíceis e mesmo, podemos dizer tranquilamente, o
mais difícil problema da transformação socialista.
Também nós, no Ocidente, quando estivermos no poder,
a despeito de condições extremamente favoráveis,
quebraremos mais de um dente nesta dura noz, antes
mesmo de termos escapado às mais simples dentre as
mil dificuldades complexas desta tarefa gigantesca!

Mas um governo socialista no poder deve, em todo caso,


fazer uma coisa: tomar medidas que vão no sentido
dessas condições prévias fundamentais subjacentes a
uma posterior reforma socialista das condições agrárias;
deve, pelo menos, evitar tudo o que barre o caminho a
essas medidas.

Ora, a palavra de ordem lançada pelos bolcheviques –


tomada imediata e partilha das terras pelos camponeses
– devia agir precisamente no sentido inverso. Não só não
é uma medida socialista, como bloqueia o caminho que
para lá conduz, acumulando dificuldades insuperáveis
para a reestruturação das condições agrárias no sentido
socialista.

A tomada das terras pelos camponeses, após a sumária e


lapidar palavra de ordem de Lenin e de seus amigos –
Ide e tomai as terras! – conduziu simplesmente a uma
passagem brusca e caótica da grande propriedade
fundiária à propriedade fundiária camponesa. Não se
criou uma propriedade social, mas uma nova
propriedade privada: dividiu-se a grande propriedade
em médias e pequenas propriedades, a grande
exploração relativamente avançada em pequenas
explorações primitivas que, no plano técnico, trabalham
com os meios da época dos faraós. Mas não é tudo: esta
medida e a maneira caótica, puramente arbitrária como
foi aplicada, não eliminaram as diferenças de
propriedades no campo mas, ao contrário, agravaram-
nas. Ainda que os bolcheviques tenham recomendado ao
campesinato formar comitês de camponeses, para fazer
da apropriação das terras da nobreza uma espécie de
ação coletiva, é claro que esse conselho de ordem geral
nada podia mudar no que se referia à prática real e às
relações de forças reais no campo. Com ou sem comitês,
os camponeses ricos e os usurários, que formavam a
burguesia rural e que detêm o poder local em todas as
aldeias russas, foram certamente os principais
beneficiários dessa revolução agrária. Mesmo sem
verificar, é evidente para qualquer um que ao fim dessa
partilha das terras as desigualdades econômicas e
sociais no seio do campesinato não foram eliminadas
mas exacerbadas, assim como os antagonismos de classe
foram agravados. Mas esse deslocamento de força
ocorreu, incontestavelmente, em detrimento dos
interesses proletários e socialistas.

Discurso de Lenin sobre a centralização necessária da


indústria, a nacionalização dos bancos, do comércio e da
indústria.

Por que não das terras? Aqui, ao contrário,


descentralização e propriedade privada.

Antes da revolução, o próprio programa agrário de


Lenin era diferente. Retomou-se a palavra de ordem dos
tão denegridos socialistas revolucionários, ou melhor, a
palavra de ordem do movimento espontâneo do
campesinato.

Para introduzir princípios socialistas nas relações


agrárias,
o governo soviético tentou, em seguida, criar comunas
agrárias compostas de proletários, na sua maioria
elementos urbanos desempregados. Contudo, pode-se
facilmente prever que os resultados desses esforços,
comparados ao volume total das relações agrárias,
permanecerão necessariamente diminutos e nem sequer
podem ser considerados no estudo da questão16. (Após
terem parcelado em pequenas explorações a grande
propriedade fundiária, o melhor ponto de partida para
uma economia socialista, procuram-se criar explorações
comunistas modelo.) Nas condições dadas, essas
comunas têm apenas valor experimental e não de uma
vasta reforma social.

Antes, uma reforma socialista no campo teria, quando


muito, encontrado a resistência de uma pequena casta
de grandes proprietários fundiários nobres e capitalistas
e de uma pequena minoria da rica burguesia rural, cuja
expropriação por uma massa popular revolucionária
seria apenas uma brincadeira de crianças. Agora, após a
“apropriação”, toda coletivização socialista da
agricultura tem um novo inimigo, uma massa de
camponeses proprietários que aumentou e se fortaleceu
enormemente e que defenderá com unhas e dentes,
contra todo atentado socialista, sua propriedade
recentemente adquirida. Agora, a questão da
socialização futura da agricultura, isto é, a questão da
produção em geral, na Rússia, tornou-se uma questão de
conflito e de luta entre o proletariado urbano e a massa
camponesa. A que ponto esse conflito se agravou,
mostra-o o boicote das cidades pelos camponeses, que
retém os víveres para obter lucros exorbitantes,
exatamente como os nobres (Junker – cf. nota
4do3ºtexto:“OquequeraLiga Spartakus?”)prussianos. O
pequeno camponês francês tornou-se o mais valente
defensor da grande Revolução Francesa que lhe tinha
dado as terras confiscadas aos emigrados. Como soldado
de Napoleão, levou a bandeira francesa à vitória e,
percorrendo toda a Europa, aniquilou o feudalismo num
país após o outro. Talvez Lenin e seus amigos tenham
esperado que sua palavra de ordem em relação à
agricultura produzisse efeito semelhante. Mas o
camponês russo, tendo tomado a terra por sua própria
conta, não pensou nem em sonhos em defender a Rússia
e a revolução, às quais ele a devia. Aferrou-se à sua nova
propriedade, abandonando a revolução aos seus
inimigos, o Estado, à desagregação, a população urbana,
à fome.

A reforma agrária de Lenin criou no campo, no seio do


povo, uma nova e poderosa camada de inimigos do
socialismo, cuja resistência será muito mais perigosa e
mais obstinada que a da aristocracia fundiária.

***

Se a derrota militar se transformou no colapso e na


desagregação da Rússia, cabe aos bolcheviques uma
parte da responsabilidade. Os próprios bolcheviques
agravaram consideravelmente as dificuldades objetivas
da situação pondo no primeiro plano da sua política uma
palavra de ordem: o assim chamado direito das nações à
autodeterminação; o que, na realidade, se escondia por
trás dessa fórmula era a desagregação do Estado russo.
A fórmula, constantemente proclamada com uma
obstinação doutrinária, sobre o direito das diferentes
nacionalidades do império russo de determinarem por si
mesmas o seu destino, “até e inclusive o direito de se
separarem da Rússia”, era um grito de guerra particular
de Lenin e de seus companheiros durante sua posição à
guerra de Miliukov e à de Kerenski17. Ela constituiu o
eixo de sua política interna depois da insurreição de
outubro e toda a plataforma dos bolcheviques em Brest-
Litovsk18, a única arma que tinham para opor à posição
de força do imperialismo alemão.

O que choca, em primeiro lugar, na obstinação e na


intransigência com que Lenin e companheiros se
agarraram a esta palavra de ordem, é o fato de que ela
está em flagrante contradição, não só com o seu
pronunciado centralismo político, mas também com sua
atitude perante os outros princípios democráticos.
Enquanto professavam um desprezo glacial pela
Assembleia Constituinte, pelo sufrágio universal, pela
liberdade de imprensa e de reunião, em suma, por todo
o arsenal das liberdades democráticas fundamentais das
massas populares, cujo conjunto constituía o “direito à
autodeterminação” na própria Rússia, eles tratavam o
direito das nações à autodeterminação como a joia da
política democrática, pelo amor da qual era preciso
sacrificar todas as considerações práticas da crítica
realista. Enquanto, na Rússia, não tinham dado a menor
importância ao voto popular nas eleições para a
Assembleia Constituinte, voto popular fundado no
sufrágio mais democrático do mundo, dado na liberdade
plena de uma República popular, simplesmente
declarando nulo seu resultado19 a partir de frias
considerações críticas, em Brest (Litovsk) defenderam o
“plebiscito” nas nações alógenas da Rússia para
decidirem pertencer ou não ao Estado russo como o
verdadeiro paládio de toda liberdade e de toda
democracia, como a quintessência inalterada da vontade
do povo, e como a instância suprema, decisiva, na
questão do destino político das nações.

Esta contradição flagrante é tanto mais incompreensível


na medida em que as formas democráticas da vida
política em cada país, como veremos mais tarde,
constituem de fato fundamentos extremamente
preciosos, mesmo indispensáveis da política socialista,
enquanto o ilustre –direito das nações à
autodeterminação” não passa de oca fraseologia
pequeno-burguesa, de disparate.

De fato, o que pode significar esse direito? O bê-á-bá da


política socialista consiste em combater, como qualquer
espécie de opressão, a opressão de uma nação por outra.

Se, apesar de tudo, políticos tão lúcidos e críticos quanto


Lenin, Trotski e seus amigos, que não fazem senão dar
de ombros ironicamente a qualquer espécie de
fraseologia utópica tal como desarmamento, Sociedade
das Nações etc., desta vez fizeram um cavalo de batalha
de uma frase oca da mesma categoria que as
precedentes; isso acontece, nos parece, por uma espécie
de oportunismo. Evidentemente, Lenin e seus
companheiros estimavam que não havia meio mais
seguro de vincular as numerosas nacionalidades
alógenas do Império russo à causa da revolução, à causa
do proletariado socialista que concedendo-lhes, em
nome da revolução e do socialismo, a liberdade suprema
e ilimitada de disporem do seu próprio destino. Essa era
uma política análoga à que os bolcheviques adotaram
em relação aos camponeses russos, cuja fome de terra
pensavam satisfazer pela palavra de ordem de
apropriação direta das terras da nobreza, vinculando os
assim à bandeira da revolução e do governo proletário.
Infelizmente, nos dois casos, o cálculo era
completamente falso. Enquanto Lenin e seus
companheiros esperavam manifestamente, como
defensores da liberdade das nações “até à separação
enquanto Estado”, fazer da Finlândia, da Ucrânia, da
Polônia, da Lituânia, dos países bálticos, das populações
do Cáucaso etc., aliados fiéis da Revolução Russa, nós
assistimos ao espetáculo inverso: uma após outra, essas
“nações” utilizaram a liberdade recentemente oferecida
para se aliarem, como inimigas mortais da Revolução
Russa, ao imperialismo alemão e para levarem, sob sua
proteção, a bandeira da contrarrevolução para a própria
Rússia. Um exemplo típico disso é oferecido pelo
episódio com a Ucrânia, em Brest20, que provocou uma
viragem decisiva nas negociações (russo-alemãs) e em
toda a situação política dos bolcheviques, tanto interna
quanto externamente. A atitude da Finlândia, da Polônia,
da Lituânia, dos países bálticos, das nações do Cáucaso
mostra do modo mais convincente que não se trata aqui
de uma exceção fortuita, mas de um fenômeno típico.

Certamente, em todos esses casos, não são na realidade


as “nações” que praticaram essa política reacionária,
mas apenas as classes burguesas e pequeno-burguesas
que, em oposição violenta às suas próprias massas
proletárias, transformaram o “direito à
autodeterminação nacional” num instrumento da sua
política de classe contrarrevolucionária. Mas – e nós
tocamos aqui o xis da questão – é exatamente nisso que
reside o caráter utópico e pequeno-burguês dessa
fórmula nacionalista: na dura realidade da sociedade de
classes, sobretudo numa época de antagonismos
exacerbados, ela se transforma simplesmente num meio
de dominação das classes burguesas. Os bolcheviques
precisaram aprender à sua custa e à custa da revolução
que, sob a dominação capitalista, não há
autodeterminação da “nação”, que, numa sociedade de
classes, cada classe da nação aspira a se
“autodeterminar” de um modo diferente, que, para as
classes burguesas, as considerações sobre a liberdade
da nação vêm bem depois das considerações sobre a
dominação de classe. A burguesia finlandesa, assim
como a pequeno-burguesia ucraniana, fosse totalmente
de acordo ao preferir a dominação alemã à liberdade da
nação, caso esta tivesse que estar ligada aos perigos do
“bolchevismo”.

Esperava-se transformar em seu contrário essas


relações de classe reais através de “plebiscitos” – em
Brest, todas as discussões giravam em torno desta ideia
– e, confiando na massa popular revolucionária, obter
um voto majoritário a favor da fusão com a Revolução
Russa; se Lenin e Trotski pensavam seriamente nisso,
davam mostras de um otimismo incompreensível, mas se
se tratava apenas de uma estocada tática no duelo com a
política de força alemã, era brincar perigosamente com
fogo. Porém, mesmo sem ocupação militar alemã, dado o
estado de espírito da massa camponesa e de grandes
camadas de proletários ainda indiferentes, dada a
tendência reacionária da pequeno-burguesia e os mil
meios de que a burguesia dispunha para influenciar o
voto, esse célebre “plebiscito”, caso tivesse sido
realizado nos países limítrofes, muito possivelmente
teria chegado por toda parte a um resultado que não
teria regozijado os bolcheviques. A regra infalível nesses
plebiscitos sobre a questão nacional pode ser assim
enunciada: ou bem as classes dominantes se arranjem
para impedi-los, quando não lhes convêm ou, caso se
realizem, procurem influenciar os resultados por todas
as espécies de meios e truques, de tal maneira que
nunca introduziremos o socialismo por via de plebiscito.
Aliás, o fato de a questão das aspirações nacionais e das
tendências particularistas ter sido levantada em plena
luta revolucionária, ter sido impelida para o primeiro
plano por ocasião da paz de Brest e ter sido mesmo
considerada como o Schibboleth21 da política socialista e
revolucionária, lançou a maior confusão nas fileiras do
socialismo e abalou, justamente nos países limítrofes, a
posição do proletariado. Na Finlândia, enquanto
combateu como fração da compacta falange
revolucionária da Rússia, o proletariado socialista tinha
já uma posição de força dominante; detinha a maioria na
Dieta, no exército, havia reduzido a burguesia à
impotência completa e era senhor da situação no país.
No começo do século, quando ainda não tinham sido
inventadas as inépcias do “nacionalismo ucraniano”,
com seus Karboventse e seus universais22, quando Lenin
ainda não tinha feito da “Ucrânia independente” o seu
cavalo de batalha, a Ucrânia russa era a fortaleza do
movimento revolucionário russo. Foi de lá, de Rostov, de
Odessa, da bacia do Donetz, que irromperam, desde
1902 e até 1904, as primeiras torrentes de lava da
revolução, que fizeram de todo o sul da Rússia um mar
de chamas, preparando assim a explosão de 1905; o
mesmo fenômeno se repetiu na atual revolução, em que
as tropas de elite da falange proletária foram
constituídas pelo proletariado do sul da Rússia. Desde
1905, a Polônia e os países bálticos eram os focos mais
poderosos e mais seguros da revolução: aí o proletariado
socialista representava um papel preponderante.

Como é possível que em todos esses países a


contrarrevolução subitamente triunfe? Foi precisamente
separando-o da Rússia que o movimento nacionalista
paralisou o proletariado e o entregou à burguesia
nacional dos países limítrofes. Em vez de se esforçarem
para realizar o agrupamento mais compacto possível das
forças revolucionárias em todo o território do império,
no espírito de uma autêntica política de classe
internacionalista, que, aliás, preconizavam, em vez de
defenderem, com unhas e dentes, a integridade do
império russo enquanto território da revolução, em vez
de oporem a todas as tendências nacionalistas e
particularistas este mandamento supremo da política: a
coesão indissolúvel dos proletários de todas as nações
situadas no âmbito da Revolução Russa, os
bolcheviques, com sua fraseologia nacionalista
retumbante sobre “o direito à autodeterminação até a
constituição de Estados separados”, forneceram, ao
contrário, à burguesia de todos os países limítrofes, o
mais desejado e esplêndido pretexto, forneceram
literalmente uma bandeira às aspirações
contrarrevolucionárias desses países. Em vez de pôr em
guarda os proletários dos países limítrofes contra todo o
separatismo, mostrando-o como uma armadilha
puramente burguesa, e de sufocar, com mão de ferro, as
tendências separatistas no ovo – usar a força era, nesse
caso, agir verdadeiramente no sentido e no espírito da
ditadura proletária – ao contrário, com sua palavra de
ordem, confundiram as massas em todos os países
limítrofes, entregaram-nas à demagogia das classes
burguesas. Encorajando dessa maneira o nacionalismo,
eles próprios provocaram e prepararam a desagregação
da Rússia, pondo nas mãos dos seus inimigos o punhal
com que estes iam golpear o coração da Revolução
Russa.

Certamente, sem a ajuda do imperialismo alemão, sem


“as coronhas alemãs em punhos alemães”, como
escrevia a Neue Zeit de Kautsky, jamais os Lubinsky e
outros canalhas da Ucrânia, jamais os Erich, os
Mannerheim23, na Finlândia, nem os barões bálticos
teriam dado cabo das massas proletárias socialistas de
seus países. Mas o separatismo nacional foi o cavalo de
Tróia no qual os “camaradas” alemães, baioneta nas
mãos, se introduziram em todos esses países. Os
antagonismos de classe reais e as relações de força
militar provocaram a intervenção da Alemanha. Mas
foram os bolcheviques que forneceram a ideologia que
mascarou essa campanha da contrarrevolução,
fortaleceram a posição da burguesia e enfraqueceram a
do proletariado. A melhor prova é a Ucrânia, que deveria
representar um papel tão fatal nos destinos da
Revolução Russa. O nacionalismo ucraniano na Rússia
era completamente diferente do tcheco, do polonês ou
do finlandês, nada mais que um simples capricho, uma
frivolidade de algumas dúzias de intelectuais pequeno-
burgueses, sem raízes na situação econômica, política
ou intelectual do país, sem qualquer tradição histórica,
pois a Ucrânia nunca constituiu um Estado ou uma
nação, não tinha nenhuma cultura nacional, exceto os
poemas romântico-reacionários de Shevchenko24. É
como se numa bela manhã os habitantes do litoral do
norte da Alemanha quisessem fundar, por causa de Fritz
Reuter25, uma nação baixo-alemã e um Estado
independente! E com sua agitação doutrinária sobre o
“direito à autodeterminação até inclusive etc.”, Lenin e
seus companheiros inflaram artificialmente essa farsa
grotesca de alguns professores universitários e
estudantes, transformando-a num fator político.
Conferiram importância ao que, no início, era apenas
uma farsa, até que a farsa adquiriu uma terrível
gravidade: isto é, ela transformou-se, não num
movimento nacional sério, pois o mesmo continua não
tendo raízes, mas em estandarte, em bandeira de união
da contrarrevolução! Desse ovo estéril saíram, em Brest,
as baionetas alemãs.

As fórmulas vazias têm, por vezes, na história da luta de


classes, uma significação muito real. A sorte fatal do
socialismo quis que nesta guerra ele fosse escolhido
para fornecer pretextos ideológicos à política
contrarrevolucionária. Quando a guerra explodiu, a
socialdemocracia alemã apressou-se em enfeitar as
investidas do imperialismo alemão com um escudo
ideológico tirado do quarto de arrecadação do
marxismo, declarando que se tratava da expedição
libertadora contra o czarismo russo, desejada por nossos
velhos mestres, em 184826. Com sua fórmula sobre a
“autodeterminação”, estava reservado aos antípodas do
socialismo governamental, aos bolcheviques, trazer água
ao moinho da contrarrevolução e fornecer assim uma
ideologia, não só para o estrangulamento da própria
Revolução Russa, como ainda para a liquidação, num
sentido contrarrevolucionário, de toda a guerra mundial.
Nesta perspectiva, temos boas razões para examinar a
fundo a política dos bolcheviques. O “direito das nações
à autodeterminação”, acoplado à Sociedade das Nações
e ao desarmamento pela graça de Wilson27, constitui o
grito de guerra em nome do qual ocorrerá o confronto
iminente entre o socialismo internacional e o mundo
burguês. É claro que a fórmula sobre a
autodeterminação e todo o movimento nacionalista que
atualmente constitui o maior perigo para o socialismo
internacional foram consideravelmente reforçados,
precisamente pela Revolução Russa e as negociações de
Brest. Teremos que nos ocupar ainda mais
detalhadamente dessa plataforma. Os destinos trágicos
dessa fraseologia na Revolução Russa, em cujos
espinhos os bolcheviques iam se prender e ferir, devem
servir de advertência ao proletariado internacional.

A ditadura da Alemanha é a consequência de tudo isso.


Da paz de Brest28 ao “tratado complementar”!29 As 200
vítimas expiatórias de Moscou30. Dessa situação
resultou o terror e o esmagamento da democracia.

IV

Examinaremos este ponto mais de perto através de


alguns exemplos.

A famosa dissolução da Assembleia Constituinte, em


novembro de 1917, representou um papel
preponderante na política dos bolcheviques. Esta
medida determinou suas posições ulteriores, significou,
de certo modo, uma mudança de direção na sua tática. É
fato que Lenin e seus companheiros, até à vitória de
outubro, exigiam com furor a convocação de uma
Assembleia Constituinte, que justamente a política de
contemporização do governo Kerenski neste assunto
constituía uma das acusações dos bolcheviques contra
esse governo, dando-lhes motivo ataques extremamente
violentos. Na sua interessante brochura intitulada Da
revolução de outubro ao tratado de paz de Brest, Trotski
diz mesmo que a insurreição de outubro literalmente
“salvou a Constituinte” e a revolução em geral. E
continua: “Quando dizíamos que o caminho levando à
Assembleia Constituinte passava, não pelo pré-
parlamento de Tseretelli, mas pela tomada do poder
pelos sovietes, éramos absolutamente sinceros31.

E eis que depois destas declarações, o primeiro passo de


Lenin após a Revolução de Outubro foi dispersar essa
mesma Assembleia Constituinte à qual a revolução devia
conduzir. Que motivos puderam determinar tão
surpreendente reviravolta? Trotski explica-os
longamente na obra mencionada, e nós vamos expor
seus argumentos32.

“Se os meses que precederam a Revolução de Outubro


constituíram um período em que as massas se
deslocaram para a esquerda e em que os operários, os
soldados e os camponeses afluíram irresistivelmente
para o lado dos bolcheviques, este processo manifestou-
se no seio do Partido Socialista-Revolucionário33 por um
fortalecimento da ala esquerda às custas da ala direita.
Mas, nas listas eleitorais estabelecidas pelos socialistas
revolucionários, os velhos nomes da ala direita ainda
representavam três quartos dos candidatos...

“É preciso acrescentar a isso que as próprias eleições


ocorreram nas primeiras semanas após a Revolução de
Outubro. A notícia da mudança realizada espalhava-se
de maneira relativamente lenta, em círculos
concêntricos, partindo da capital para a província e das
cidades para as aldeias. Em muitos lugares, as massas
camponesas pouco sabiam o que se passava em
Petrogrado e em Moscou. Elas votaram em ‘Terra e
Liberdade’34 e os representantes que elegeram para os
comitês rurais colocavam-se, na maior parte do tempo,
sob a bandeira dos Narodniki35. Mas, assim, as massas
camponesas votavam em Kerenski e Avkesentiev36, que
dissolveram esses comitês rurais e prenderam seus
membros. (...) Este estado de coisas mostra claramente
a que ponto a Constituinte estava atrasada em relação
ao desenvolvimento da luta política e aos agrupamentos
no interior dos partidos.”
Tudo isto é perfeito e muito convincente. Só espanta que
pessoas tão inteligentes quanto Lenin e Trotski não
tenham chegado à conclusão evidente que decorria dos
fatos acima. Uma vez que a Assembleia Constituinte
tinha sido eleita muito antes da mudança decisiva, a
Revolução de Outubro, e refletia na sua composição a
imagem de um passado caduco e não do novo estado de
coisas, a conclusão se impunha por si mesma: dissolver
esta Constituinte envelhecida, portanto natimorta, e
convocar imediatamente eleições para uma nova
Constituinte! Eles não queriam e não podiam confiar a
sorte da revolução a uma Assembleia que refletia a
Rússia de ontem, a Rússia de Kerenski,
o período das hesitações e da coalizão com a burguesia.
Muito bem! Logo, nada mais restava senão convocar
imediatamente em seu lugar uma Assembleia saída da
Rússia renovada e mais avançada.

Em vez disso, a partir das insuficiências específicas da


Assembleia Constituinte reunida em outubro, Trotski
deduz que qualquer Assembleia Constituinte é supérflua
e generaliza mesmo essas insuficiências, proclamando a
invalidade, durante a revolução, de toda representação
popular saída de eleições populares gerais.

“Graças à luta aberta e direta pelo poder


governamental, as massas trabalhadoras acumulam em
muito pouco tempo uma experiência política
considerável e sobem rapidamente, no seu
desenvolvimento, a um nível mais elevado. O pesado
mecanismo das instituições democráticas segue tanto
mais dificilmente este desenvolvimento, quanto maior
for o país e mais imperfeito seu aparelho técnico”
(Trotski, p. 93).
E assim chegamos ao “mecanismo das instituições
democráticas em geral”. Pode-se antes de mais nada
objetar que esta apreciação das instituições
representativas exprima uma concepção um tanto
esquemática e rígida, que contradiz expressamente a
experiência histórica de todas as épocas revolucionárias.
Segundo a teoria de Trotski, toda Assembleia eleita
reflete apenas, de uma vez por todas, o estado de
espírito, a maturidade política e a mentalidade do
eleitorado no momento preciso em que vai às urnas. O
corpo democrático é, segundo esta teoria, sempre o
reflexo da massa no dia da eleição, assim como o céu
estrelado, segundo Herschel37, não nos mostra nunca os
astros tais como são quando os vemos, mas tais como
eram no momento em que, de uma distância
incomensurável, enviavam suas mensagens luminosas
para a Terra. Nega-se assim qualquer relação intelectual
viva entre os eleitos e o eleitorado, qualquer influência
recíproca constante entre ambos.

Como toda a experiência histórica contradiz este


raciocínio! Esta mostra-nos, ao contrário, que o fluido
vivo do estado de espírito popular banha
constantemente os organismos representativos, penetra-
os, orienta-os. Senão como seria possível assistir, às
vezes, em qualquer parlamento burguês, às
divertidíssimas cabriolas dos “representantes do povo”
que, subitamente animados de um “espírito novo”,
produzem entonações inteiramente inesperadas? Como
seria possível que, de tempos em tempos, as múmias
mais ressequidas assumissem ares juvenis e que os
pequenos Scheidemann de todas as espécies
encontrassem de repente em seus peitos tons
revolucionários – quando a cólera ruge nas fábricas, nas
oficinas, nas ruas?
Esta influência constantemente viva do estado de
espírito e da maturidade política das massas sobre os
organismos eleitos seria impotente, precisamente numa
revolução, perante o esquema rígido das divisas dos
partidos e de suas listas eleitorais? Bem ao contrário! É
justamente a revolução que por sua efervescência e seu
ardor cria essa atmosfera política, leve, vibrante,
receptiva na qual as vagas do estado de espírito popular,
a pulsação da vida do povo influem instantaneamente e
do modo mais extraordinário sobre os organismos
representativos. É justamente nisso que se fundam
sempre as cenas célebres e impressionantes, no início
de todas as revoluções, em que velhos parlamentos
reacionários ou muito moderados, eleitos sob o antigo
regime por um sufrágio restrito, transformam-se
subitamente em porta-vozes heroicos da insurreição, em
revolucionários românticos e impetuosos (Stürmer und
Dränger)38. O exemplo clássico é o famoso Longo
Parlamento na Inglaterra: eleito e convocado em 1642,
ficou sete anos em exercício e refletiu sucessivamente
em seu seio todas as mudanças do estado de espírito
popular, a maturidade política, a divisão das classes, a
progressão da revolução até ao seu apogeu, desde a
reverente escaramuça inicial com a coroa, quando o
“speaker”39 falava de joelhos, até à supressão da
Câmara dos Lordes, à execução de Carlos I e à
proclamação da República.

Esta extraordinária metamorfose não se repetiu


igualmente nos Estados Gerais em França, no
parlamento de Luís Filipe eleito por um sufrágio
censitário e mesmo – este último e tão impressionante
exemplo está bem próximo de Trotski – na IV Duma
russa que, eleita no ano da graça de 191240, sob o
domínio rígido da contrarrevolução, sentiu subitamente
levantar-se, em fevereiro de 1917, o vento juvenil da
revolta e transformou-se no ponto de partida da
revolução?

Todos estes exemplos mostram que “o pesado


mecanismo das instituições (...)” encontra um corretivo
poderoso exatamente no movimento vivo e na pressão
constante da massa. E quanto mais democrática a
instituição, quanto mais viva e forte a pulsação da vida
política das massas, tanto mais imediata e precisa é a
influência que exercem – apesar das rígidas divisas
partidárias, das listas eleitorais obsoletas etc.
Certamente toda instituição democrática tem seus
limites e lacunas, o que, aliás, compartilha com todas as
instituições humanas. Só que o remédio encontrado por
Lenin e Trotski – suprimir a democracia em geral – é
ainda pior que o mal que devia impedir; com efeito, ele
obstrui a única fonte viva a partir da qual podem ser
corrigidas as insuficiências congênitas das instituições
sociais: a vida política enérgica, sem entraves, ativa das
mais largas massas populares.

Tomemos um outro exemplo surpreendente: o sufrágio


elaborado pelo governo dos sovietes. Não se vê muito
bem a significação prática desse sufrágio. Da crítica
feita por Lenin e Trotski às instituições democráticas
depreende-se que eles recusam fundamentalmente
representações populares saídas de eleições gerais e
que não querem senão apoiar-se nos sovietes. Então não
se vê bem por que foi elaborado um sistema de sufrágio
universal. Aliás, que se saiba, o sufrágio universal nunca
foi aplicado; não se ouviu falar de eleições para qualquer
espécie de representação popular que o tivesse por
base. Pode-se supor que permaneceu apenas um produto
teórico de gabinete; mas tal como é, constitui um
produto surpreendente da teoria bolchevique da
ditadura41. Todo direito de voto, assim como em geral
todo direito político, não deve ser julgado por esquemas
abstratos de “justiça” nem pela fraseologia burguesa
democrática, mas segundo as condições econômicas e
sociais a que se aplica. Esse sufrágio foi elaborado pelo
governo soviético para o período de transição entre a
formação social burguesa-capitalista e a formação
socialista, para o período da ditadura do proletariado.
Segundo a interpretação dada por Lenin e Trotski desta
ditadura,
o direito de voto só é concedido aos que vivem do
próprio trabalho e recusado a todos os outros.

Ora, é claro que semelhante direito de voto só tem


sentido numa sociedade que se encontra
economicamente em condições de permitir a todos que
quiserem trabalhar, viver, digna e decentemente, de seu
próprio trabalho. É esse o caso da Rússia atual? Dadas
as enormes dificuldades em que se debate a Rússia
soviética, isolada do mercado mundial e privada de suas
principais fontes de matérias-primas, dada a espantosa
desorganização da vida econômica no seu conjunto, a
brusca reviravolta das relações de produção em
consequência das transformações nas relações de
propriedade na agricultura, na indústria e no comércio,
é óbvio que inúmeras existências foram subitamente
desenraizadas, atiradas fora de seu caminho, sem
nenhuma possibilidade objetiva de encontrar, nesse
sistema econômico, qualquer utilização para a sua força
de trabalho. Isto não se refere apenas à classe dos
capitalistas e dos proprietários fundiários, mas também
à grande camada da pequena burguesia e à própria
classe operária. É um fato que o desmoronamento da
indústria provocou um êxodo em massa do proletariado
das cidades para
o campo, onde procura se empregar na agricultura. Em
tais condições, um direito de voto político, que tem como
condição econômica a obrigação de todos trabalharem, é
uma medida totalmente incompreensível. Por sua
orientação, ele deve privar de direitos políticos apenas
os exploradores. Mas enquanto forças de trabalho
produtivas são desenraizadas em massa, o governo
soviético vê-se, em contrapartida, freqüentemente
obrigado a arrendar, por assim dizer, a indústria
nacional a seus antigos proprietários capitalistas. O
governo soviético também se viu obrigado, em abril de
1918, a selar um acordo com as cooperativas de
consumo burguesas. E mais, a utilização de especialistas
burgueses revelou-se indispensável. Uma outra
consequência do mesmo fenômeno é que camadas
crescentes do proletariado são mantidas pelo Estado
com os fundos públicos, na qualidade de guardas
vermelhos etc. Na realidade, este sistema priva de
direito camadas cada vez maiores da pequena burguesia
e do proletariado, para as quais o organismo econômico
não prevê nenhum meio que lhes permita exercer a
obrigação de trabalhar.

É um contrassenso fazer do direito de voto um produto


utópico, um produto da imaginação, desligado da
realidade social. E justamente por isso não constitui um
instrumento sério da ditadura proletária.42

Quando após a Revolução de Outubro toda a camada


média, a intelligentsia burguesa e pequeno-burguesa
boicotaram durante meses o governo soviético,
paralisando as estradas de ferro, os correios, o
telégrafo, as escolas e o aparelho administrativo,
insurgindo-se assim contra o governo operário,
impunham-se todas as medidas de pressão para quebrar
com mão de ferro a resistência: privação dos direitos
políticos, dos meios de subsistência etc. Assim se
exprimiu, com efeito, a ditadura socialista, que não deve
recuar perante nenhum meio de coerção para impor ou
impedir certas medidas no interesse da totalidade. Em
contrapartida, um direito de voto que priva de direitos
vastas camadas da sociedade, colocando-as
politicamente fora do quadro social, sem ser capaz de
dar-lhes um lugar no interior mesmo do quadro
econômico dessa sociedade, uma privação de direitos
que não é uma medida concreta tendo em vista um fim
concreto mas uma regra geral de efeito duradouro, não
constitui uma necessidade da ditadura mas uma
improvisação incapaz de sobreviver43.

Mas a Assembleia Constituinte e o direito de voto não


esgotam a questão: é preciso considerar ainda a
supressão das garantias democráticas essenciais a uma
vida pública sadia e à atividade política das massas
trabalhadoras: liberdade de imprensa, direito de
associação e de reunião, que foram abolidos para todos
os adversários do governo soviético. A argumentação de
Trotski, acima citada, sobre o peso dos corpos eleitorais
democráticos não basta, nem de longe, para justificar
esses ataques. Em contrapartida, é um fato patente,
incontestável, que sem liberdade ilimitada de imprensa,
sem possibilidade de se associar e de se reunir, a
dominação de vastas camadas populares é totalmente
impensável.

Lenin diz: o Estado burguês é um instrumento para


oprimir a classe operária, o Estado socialista, um
instrumento para oprimir a burguesia. Que este é, por
assim dizer, o Estado capitalista posto de cabeça para
baixo. Esta concepção simplista negligencia o essencial:
a dominação de classe da burguesia não requer a
educação (Erziehung) nem a formação (Schulung)
política de toda a massa do povo, pelo menos não além
de certos limites estreitamente traçados. Para a ditadura
proletária esta educação é o elemento vital, o ar sem o
qual não pode viver.

“Graças à luta aberta e direta pelo poder


governamental...”44 Aqui Trotski contradiz-se e
contradiz seus próprios camaradas de partido da
maneira mais espantosa. Justamente por essa afirmação
ser exata é que, ao sufocarem a vida pública, obstruíram
a fonte da experiência política e interromperam a
evolução ascendente. Ou então seria preciso admitir que
essa experiência e essa evolução eram necessárias até a
tomada do poder pelos bolcheviques, que tinham
atingido seu apogeu e se tornado doravante supérfluas.
(Discurso de Lenin: a Rússia foi conquistada para o
socialismo!!!)

É o contrário, na realidade! As tarefas gigantescas de


que os bolcheviques se aproximaram com coragem e
decisão exigiam precisamente a mais intensiva formação
política das massas e acumulação de experiências.45

O pressuposto tácito da teoria da ditadura, segundo


Lenin-Trotski, consiste no seguinte: a transformação
socialista seria uma coisa para a qual o partido
revolucionário tem no bolso uma receita pronta que
bastaria em seguida aplicar com energia.46 Infelizmente,
ou, se se quiser, felizmente, não é assim. Bem longe de
ser uma soma de prescrições inteiramente prontas que
bastaria aplicar, a realização prática do socialismo como
sistema econômico, social e jurídico é uma coisa
totalmente envolta nas brumas do futuro. O que temos
em nosso programa são apenas alguns grandes marcos
orientadores que indicam a direção em que devem ser
procuradas as medidas a tomar, indicações, aliás, de
caráter sobretudo negativo. Sabemos mais ou menos o
que suprimir primeiro para deixar o caminho livre à
economia socialista. Em contrapartida, nenhum
programa socialista, nenhum manual de socialismo
podem indicar de que tipo serão as milhares de medidas
concretas, práticas, grandes e pequenas, que é preciso
tomar a cada passo para introduzir os princípios
socialistas na economia, no direito, em todas as relações
sociais. Não é uma lacuna mas, ao contrário, é
precisamente a vantagem do socialismo científico sobre
o utópico. O sistema social socialista não deve e nem
pode ser senão um produto histórico, nascido da própria
escola da experiência, nascido na hora da sua
realização, resultando do fazer-se da história viva que,
exatamente como a natureza orgânica, da qual faz parte
em última análise, tem o belo hábito de produzir
sempre, junto com uma necessidade social real, os meios
de satisfazê-la, ao mesmo tempo que a tarefa a realizar,
a sua solução. E assim sendo, é claro que o socialismo,
por sua própria natureza, não pode ser outorgado nem
introduzido por decreto. Ele pressupõe uma série de
medidas coercitivas, contra a propriedade etc. Pode-se
decretar o negativo, a destruição, mas não o positivo, a
construção. Terra nova. Mil problemas. Só a experiência
é capaz de corrigir e de abrir novos caminhos. Apenas
uma vida fervilhante e sem entraves chega a mil formas
novas, improvisações, mantém a força criadora, corrige
ela mesma todos os seus erros. Se a vida pública dos
Estados de liberdade limitada é tão medíocre, tão
miserável, tão esquemática, tão infecunda é justamente
porque, excluindo a democracia, ela obstrui a fonte viva
de toda riqueza e de todo progresso intelectual. (Prova:
os anos de 1905 e os meses de fevereiro a outubro de
1917.) O que ocorre no plano político vale também para
o econômico e o social. É preciso que toda a massa do
povo participe. Senão o socialismo é decretado,
outorgado por uma dúzia de intelectuais fechados num
gabinete.

Controle público absolutamente necessário. Senão a


troca de experiências permanece no círculo fechado dos
funcionários do novo governo. Corrupção inevitável.
(Palavras de Lenin, Mittteilungs-Blatt, n. 36.)47 A prática
do socialismo exige uma transformação completa no
espírito das massas, degradadas por séculos de
dominação da classe burguesa. Instintos sociais em
lugar dos instintos egoístas, iniciativa das massas em
lugar da inércia, idealismo que faz superar todos os
sofrimentos etc. etc. Ninguém o sabe melhor, nem o
descreve mais convincentemente, nem o repete com
mais obstinação do que Lenin48. Só que ele se engana
completamente quanto aos meios. Decretos, poder
ditatorial dos contramestres, punições draconianas,
terror, são apenas paliativos. O único caminho que leva
ao renascimento é a própria escola da vida pública (die
Shule des öffentlichen Lebens selbst), a mais ampla e
ilimitada democracia, opinião pública (öffentliche
Meinung). É justamente o terror que desmoraliza.

Se tudo isso for suprimido, o que resta, na realidade? No


lugar dos organismos representativos saídos de eleições
populares gerais, Lenin e Trotski puseram os sovietes
como a única representação verdadeira das massas
operárias. Mas, abafando a vida política em todo o país,
a paralisia atinge também, cada vez mais, a vida nos
sovietes. Sem eleições gerais, sem liberdade ilimitada de
imprensa e de reunião, sem livre enfrentamento de
opiniões, a vida se estiola em qualquer instituição
pública, torna-se uma vida aparente na qual a
burocracia subsiste como
o único elemento ativo. A vida pública adormece
progressivamente, algumas dúzias de chefes, partidários
de uma inesgotável energia e de um idealismo sem
limites, dirigem e governam; entre eles, a direção é
assegurada, na realidade, por uma dúzia de espíritos
superiores, e a elite do operariado é convocada de
tempos em tempos para reuniões, com o fim de aplaudir
os discursos dos chefes e de votar unanimemente as
resoluções propostas: é pois, no fundo, uma clique que
governa – trata-se de uma ditadura, é verdade, não a
ditadura do proletariado, mas a ditadura de um punhado
de políticos, isto é, uma ditadura no sentido puramente
burguês, no sentido da dominação jacobina
(periodicidade dos Congressos dos sovietes adiada de
três para seis meses!). E ainda mais: tal estado de coisas
engendra inevitavelmente um recrudescimento da
selvageria na vida pública: atentados, execução de
reféns etc. É uma lei objetiva, todo-poderosa, a que
nenhum partido pode fugir.

O erro fundamental da teoria de Lenin-Trotski é que


precisamente eles opõem, tal como Kautsky, a ditadura à
democracia. “Ditadura ou democracia”, assim é posta a
questão, tanto pelos bolcheviques quanto por Kautsky.
Este manifesta-se naturalmente pela democracia, isto é,
pela democracia burguesa, visto ser a alternativa que
propõe à transformação socialista. Em contrapartida,
Lenin e Trotski manifestam-se pela ditadura em
oposição à democracia e, assim sendo, pela ditadura de
um punhado de pessoas, isto é, pela ditadura burguesa.
Esses dois pólos opostos estão igualmente afastados da
verdadeira política socialista. Quando o proletariado
toma o poder não pode nunca, segundo o bom conselho
de Kautsky, renunciar à transformação socialista, sob o
pretexto de que “o país não está maduro”, e consagrar-
se apenas à democracia, sem se trair a si mesmo e sem
trair a Internacional e a revolução. Ele tem o dever e a
obrigação de tomar imediatamente medidas socialistas
da maneira mais enérgica, mais inexorável, mais brutal,
por conseguinte, de exercer a ditadura, mas a ditadura
da classe, não a de um partido ou de uma clique;
ditadura da classe, isto significa que ela se exerce no
mais amplo espaço público (in breitester
öffentlichkeit),com a participação sem entraves, a mais
ativa possível das massas populares, numa democracia
sem limites. “Como marxistas, nunca fomos idólatras da
democracia formal”, escreve Trotski49. Certamente,
nunca fomos idólatras da democracia formal. Também
nunca fomos idólatras do socialismo ou do marxismo.
Deve-se concluir daí que devemos, à maneira de Cunow-
Lensch Parvus50, jogar o socialismo, ou o marxismo, no
quarto de arrecadação, quando nos atrapalha? Trotski e
Lenin são a resposta negativa viva a esta pergunta.
Nunca fomos idólatras da democracia formal só pode
significar uma coisa: sempre fizemos distinção entre o
núcleo social e a forma política da democracia burguesa,
sempre desvendamos o áspero núcleo de desigualdade e
de servidão sociais escondido sob o doce invólucro da
igualdade e da liberdade formais – não para rejeitá-las,
mas para incitar a classe operária a não se contentar
com o invólucro, incitá-la a conquistar o poder político
para preenchê-lo com um conteúdo social novo. A tarefa
histórica do proletariado, quando toma o poder, é
instaurar a democracia socialista no lugar da
democracia burguesa e não suprimir toda democracia. A
democracia socialista não começa somente na Terra
prometida, quando tiver sido criada a infraestrutura da
economia socialista, como um presente de Natal, já
pronto, para o bom povo que, entretanto, apoiou
fielmente o punhado de ditadores socialistas. A
democracia socialista começa com a destruição da
dominação de classe e a construção do socialismo. Ela
começa no momento da conquista do poder pelo partido
socialista. Ela nada mais é que a ditadura do
proletariado.

Perfeitamente: ditadura! Mas esta ditadura consiste na


maneira de aplicar a democracia, não na sua supressão,
ela se manifesta nas intervenções enérgicas e resolutas
pondo em causa os direitos adquiridos e as relações
econômicas da sociedade burguesa; sem isso a
transformação socialista não pode ser realizada. Mas
esta ditadura precisa ser obra da classe e não de uma
pequena minoria que dirige em nome da classe, quer
dizer, ela deve, a cada passo, resultar da participação
ativa das massas, ser imediatamente influenciada por
elas, ser submetida ao controle do público em seu
conjunto (gesamten öffentlichkeit), emanar da formação
política crescente das massas populares.

Assim procederiam certamente os bolcheviques se não


sofressem a terrível pressão da guerra mundial, da
ocupação alemã e de todas as dificuldades anormais que
delas decorrem, dificuldades que, obrigatoriamente,
desfiguram qualquer política socialista, mesmo animada
das melhores intenções e em nome dos mais belos
princípios.

Um argumento brutal em apoio a este raciocínio


consiste na utilização abundante do terror pelo governo
dos conselhos, sobretudo no último período, antes do
desmoronamento do imperialismo alemão, desde o
atentado contra o embaixador da Alemanha. A verdade
banal de que as revoluções não são batizadas com água
de rosas é em si mesma bem pobre.

Pode-se compreender tudo o que se passa na Rússia


como uma cadeia inevitável de causas e efeitos, cujos
pontos de partida e de chegada são a omissão do
proletariado alemão e a ocupação da Rússia pelo
imperialismo alemão. Seria exigir de Lenin e seus
companheiros uma obra sobre-humana pedir-lhes que,
em tais circunstâncias, criassem, como que por um
passe de mágica, a mais bela democracia, a mais
exemplar ditadura do proletariado e uma economia
socialista florescente. Com sua atitude decididamente
revolucionária, sua energia exemplar e sua inabalável
fidelidade ao socialismo internacional, eles na verdade
realizaram o que era possível em condições tão
diabolicamente difíceis. O perigo começa quando
querem fazer da necessidade virtude, fixar em todos os
pontos da teoria uma tática que lhes foi imposta por
essas condições fatais e recomendar ao proletariado
internacional imitá-la como modelo da tática socialista.
Assim fazendo, põem-se inutilmente como exemplo e
colocam seu mérito histórico real e incontestável sob o
acúmulo dos erros impostos pela necessidade; assim,
prestam um mau serviço ao socialismo internacional, por
amor do qual lutaram e sofreram, ao querer fazer entrar
no seu arsenal, como novas descobertas, todas as
tortuosidades introduzidas na Rússia por necessidade e
coerção, e que, no final das contas, eram apenas
irradiações da falência do socialismo internacional nesta
guerra mundial.

Bem podem gritar os socialistas governamentais


alemães que a dominação dos bolcheviques na Rússia é
uma caricatura da ditadura do proletariado. Quer tenha
sido, ou seja, isso só aconteceu porque ela foi o produto
da atitude do proletariado alemão, ela mesma uma
caricatura da luta de classes socialista. Todos nós
vivemos sob a lei da história, e só em escala
internacional a ordem socialista pode ser introduzida. Os
bolcheviques mostraram que podem realizar tudo aquilo
de que um partido autenticamente revolucionário é
capaz nos limites das possibilidades históricas. Não
devem querer fazer milagres. Pois uma revolução
proletária exemplar e perfeita num país isolado,
esgotado pela guerra mundial, estrangulado pelo
imperialismo, traído pelo proletariado internacional
seria um milagre. O que importa é distinguir, na política
dos bolcheviques, o essencial do acessório, a substância
da contingência. Neste último período, em que lutas
finais decisivas são iminentes no mundo inteiro, o
problema mais importante do socialismo, a questão
palpitante da atualidade, era e permanece, não este ou
aquele detalhe de tática, mas a capacidade de ação do
proletariado, a energia revolucionária das massas, a
vontade do socialismo de chegar ao poder. Neste
sentido, Lenin, Trotski e seus amigos foram os primeiros
a dar o exemplo ao proletariado mundial, e até agora são
os únicos que, como Hutten51, podem exclamar: “Eu
ousei!”

Eis o que é essencial e duradouro na política dos


bolcheviques. Nesse sentido, o que permanece seu
mérito histórico imperecível é que conquistando o poder
político e colocando o problema prático da realização do
socialismo abriram o caminho ao proletariado
internacional e fizeram progredir consideravelmente o
conflito entre capital e trabalho no mundo inteiro. Na
Rússia, o problema só podia ser posto. Não podia ser
resolvido na Rússia, ele só pode ser resolvido em escala
internacional. E, nesse sentido, o futuro pertence em,
toda parte, ao “bolchevismo”.

1 NOTAS

Die Neue Zeit, Stuttgart, 23 de agosto de 1923.


Hebdomadário, órgão teórico do Partido Social
Democrata Alemão (SPD). Editado por Karl Kautsky até
1917 e em seguida por Heinrich Cunow, de 1918 a 1922.

Kar Kautsky (1854-1938): teórico marxista do SPD,


ideólogo influente da II Internacional, fundador e editor
da Neue Zeit até 1917. Em 1898 combateu o
revisionismo de Bernstein. Rosa Luxemburg e Kautsky
mantinham relações de amizade, definitivamente
rompidas em 1910, por motivos pessoais e políticos.
Kautsky foi pacifista durante a guerra e um dos
fundadores do Partido Social Democrata Independente
(USPD), formado por um grupo pacifista expulso do SPD
em janeiro de 1917, do qual a Liga Spartakus participou
até o final de dezembro de 1918. Kautsky opôs-se
violentamente à Revolução de Outubro na Rússia e ao
governo bolchevique. Junto com a maioria do USPD
voltou ao SPD em 1922.
2 Pavel Borissovitch Axelrod (1850-1928): com

Plekhanov, um dos pioneiros do marxismo na Rússia. Foi


um dos fundadores do grupo “Emancipação do
Trabalho”. Tornou-se menchevique depois de 1903.
Pacifista durante a guerra. Combateu violentamente os
bolcheviques e morreu no exílio.

Fedor Ilitch Dan (1871-1947): médico, membro do grupo


“Emancipação do Trabalho”, em seguida membro do
Partido Operário Socialdemocrata Russo (POSDR).
Membro permanente do Comitê Central Menchevique.
Em 1917 foi membro do Soviete de Petrogrado. Emigrou
em 1922.
3 Rosa Luxemburg tem em mente os socialistas

majoritários liderados por Ebert, Scheidemann e David,


entre outros.
4 Vorwärts , Berlim 1891-1933: quotidiano, órgão central

do SPD. Em 1916, passa às mãos dos socialdemocratas


majoritários. Redatores-chefes: W. Liebknecht, R.
Hilferding, Ernst Meyer, Friedrich Stampfer e Kurt
Geyer. Após sua proibição pelo regime nazista, passa a
ser editado na Tchecoslováquia e torna-se, a partir de 18
de junho de 1933, o Neuer Vorwärts . A 17 de janeiro de
1938 vai para Paris.

Friedrich Stampfer (1874-1957): jornalista


socialdemocrata, redator-chefe de Vorwärts de 1917 a
1933.
5 Cadetes: Partido Constitucional democrata cuja origem

remonta a 1905. Dirigentes: Miliukov e Struve.


6 Segundo a lei eleitoral de dezembro de 1905, os

eleitores foram divididos em quatro classes, de acordo


com a situação social e as posses. Dessa maneira, os
proprietários de terras mantinham privilégios especiais
e restringia-se o número de deputados operários e
camponeses. Depois do golpe de Estado de 1907, novas
limitações foram acrescentadas a esta lei eleitoral
antidemocrática, de forma a garantir a dominação dos
grandes proprietários de terras.
7 Pavel Nikolaevich Miliukov (1859-1943): historiador,

professor da Universidade de Moscou, líder dos Cadetes.


Foi deputado da III e IV Dumas. De março a maio,
ministro dos Negócios Estrangeiros do governo
provisório. Fez parte das forças antibolcheviques
durante a guerra civil. Em 1921, emigrou para a Europa
ocidental.
8 Kaledin mobilizou os cossacos do Don que, em agosto
de 1917, chefiados por Kornilov, marcharam sobre
Petrogrado (nome de São Petersburgo de 1914 a 1924,
quando passa a chamar-se Leningrado), sendo
derrotados pelos revolucionários russos.
9 Trata-se de Kautsky.
10 Philipp Scheidemann (1865-1939): dirigente

socialdemocrata, entrou no comitê dirigente em 1912.


Deputado do Reichstag de 1903 a 1918 e de 1920 a
1933. Em 1918, membro do Conselho dos Comissários
do Povo. Foi o primeiro chanceler da República alemã
(fevereiro a junho de 1919). Participou da repressão à
revolução de novembro de 1918.
11 John Lilburne (1614-1657): principal porta-voz dos

levellers (niveladores), partidários da República


democrática durante a guerra civil inglesa.
12 Diggers (cavadores): grupo radical puritano inglês

(1649-1650). Defendia a propriedade comunal da terra.


13 Longo Parlamento (outubro de 1640-dezembro de

1648): convocado por Carlos I, perdeu sucessivamente


46 deputados, presos pelo Exército de Cromwell e
Fairfax, em seguida mais 96, que o Exército obrigou a
expulsar. Esse Parlamento expurgado – Rump Parliament
– acusou e mandou executar o rei.
14 Gueorguevitch Tseretelli (1882-1959): menchevique

georgiano, deputado da II Duma e presidente do grupo


socialdemocrata da Duma. Preso, foi eLivros na Sibéria
de novembro de 1907 a março de 1917. Em 1917,
membro do Soviete de Petrogrado, depois ministro do
Interior do governo provisório. Emigrou em 1919.
15 Nota de Rosa Luxemburg, no alto da página, sem

indicar onde inserir esta observação: “(Importância da


questão agrária. Já em 1905. Depois, na III Duma, os
camponeses de direita! Questão camponesa e defesa.
Exército)”.
16 Nota de Rosa Luxemburg, na margem esquerda, sem
indicação de onde devia ser inserida: “Monopólio dos
cereais com recompensas. Agora, post festum, querem
introduzir a luta de classes nas aldeias”.
17 O governo provisório em que Miliukov era ministro

dos Negócios Estrangeiros continuou a guerra e


garantiu aos países da Entente cumprir todas as
obrigações que a aliança entre eles e a Rússia
comportava. Essa política prosseguiu com o novo
governo constituído em maio de 1917, no qual Kerenski
era ministro da Guerra. Em julho, esse governo lançou
uma ofensiva que teve um saldo de 60.000 vítimas, entre
mortos e feridos.
18 Em Brest-Litovsk, a 3 de dezembro de 1917,

começaram as negociações de paz entre a Alemanha e o


governo soviético. O Estado-maior alemão impôs ao
governo soviético condições extremamente duras, como
a anexação da Ucrânia, Polônia, províncias bálticas,
Finlândia e Cáucaso.
19 As eleições para a Assembleia Constituinte tinham

sido iniciativa do governo provisório. O governo


bolchevique, constituído em outubro, permitiu que as
mesmas se realizassem. A Constituinte foi eleita e
reuniu-se a 5 de janeiro de 1918. Desde a sua primeira
reunião, opôs-se aos bolcheviques que, por isso,
resolveram dissolvê-la a 6 de janeiro, com o argumento
de que a composição de forças da Assembleia não
correspondia mais à Rússia revolucionária daquele
momento.
20 A Assembleia ucraniana, a Rada central, assinou a 27

de janeiro de 1918, enquanto as negociações russo-


alemãs prosseguiam em Brest-Litovsk, um tratado com
as potências centrais que dava direito à Alemanha de
ocupar a Ucrânia. Entretanto, nesse momento, a Rada já
não tinha mais poder efetivo. Este encontrava-se
praticamente em toda a Ucrânia nas mãos dos
bolcheviques.
21 Schibboleth: palavra cuja pronúncia permitia a uma

seita judia reconhecer seus inimigos. Daí significar sinal


de reconhecimento, senha.
22 Karboventse: moeda ucraniana; Universal: assembleia

nacional de toda a Ucrânia.


23 Rafael Waldemar Erich (1879-1946): estadista e jurista

finlandês. A favor da independência e da aliança com a


Alemanha. Primeiro-ministro de 1920-1921; Karl-Gustav-
Emil Mannerheim (1867-1951): oficial russo,
comandante em chefe das forças contrarrevolucionárias
na guerra civil finlandesa, em 1918. De 1918 a 1919,
regente da Finlândia.
24 Taras Shevchenko (1814-1861): grande poeta,

escreveu baladas impregnadas das tradições populares,


ucranianas e cossacas. A maioria dos críticos não o
considera reacionário.
25 Fritz Reuter (1810-1874): o mais famoso escritor

baixo-alemão (plattdeutsch). Seu personagem “tio


Bräsig”, típico baixo-alemão, camponês e pequeno-
burguês, tornou-se uma figura popular da literatura
alemã.
26 Em 1848, Marx e Engels haviam esperado e defendido

que os países atingidos pela revolução fizessem uma


frente comum contra a Rússia, sustentáculo da reação
na Europa.
27 Thomas Woodrow Wilson (1856-1924): presidente dos

Estados Unidos quando estes entraram na guerra.


Defendia a constituição de uma Sociedade das Nações
que, no seu entender, deveria impedir todo conflito entre
Estados.
28 Depois de muitos meses de negociações, o governo

soviético foi obrigado a aceitar, a 3 de março de 1918, as


condições de paz impostas pela Alemanha e seus aliados.
29 A 27 de agosto de 1918, foi assinado um tratado anexo
pelo qual a Rússia renunciava à sua soberania sobre a
Estônia, Livonia e Geórgia. A Alemanha, em
contrapartida, deveria evacuar alguns dos territórios
ocupados em troca de uma soma de 6 bilhões de marcos.
30 A 6 de julho de 1918, o embaixador da Alemanha na

Rússia foi assassinado pelos socialistas-revolucionários


de esquerda, que queriam derrubar para o governo
soviético. Esta tentativa de golpe foi duramente
reprimida pelos bolcheviques.
31 Leon Trotski, Von der Oktober-Revolution bis zum

Brester Friedens -Vertrag . Berlim, s.d., p. 90.


32 Esta argumentação não consta do manuscrito de Rosa

Luxemburg e por isso não é reproduzida na edição da


Dietz. Expomos aqui a passagem de Trotski, segundo a
edição de Paul Levi, retomada nos Politische Schriften
III. Frankfurt, Europäische Verlagsanstalt, 1975.
33 Partido Socialista-Revolucionário: continuador do

populismo pela sua defesa do papel revolucionário dos


camponeses e do terrorismo político como método de
ação. Em 1917, ocorre uma cisão no partido e é criada
uma nova organização denominada Partido Socialista-
Revolucionário de Esquerda. Os socialistas-
revolucionários de direita, como eram chamados pelos
grupos de esquerda, acabaram por agir de acordo com
os mencheviques. Líderes: Avksentiev e Kerenski, entre
outros.
34 Zemlia I Volia (Terra e Liberdade): jornal dos

socialistas-revolucionários, publicado em Moscou de


março de 1917 a maio de 1918.
35 Narodniki: intelectuais e nobres russos, partidários do

populismo (cf. nota 19 de “Questões de organização...”).


36 Nicolaï Avksentiev (1878-1943): um dos chefes dos

socialistas-revolucionários de direita. Após a Revolução


de Fevereiro de 1917 fez parte do governo provisório, no
qual os ministros socialistas-revolucionários reprimiram
os camponeses que ocupavam as terras.
37 Sir William Herschel (1738-1822). Astrônomo inglês

nascido em Hanover. Criador de astronomia estelar.


38 Stürmer und Dränger: poeta do Sturm und Drang

(tempestade e ímpeto), corrente da literatura alemã


(1767-1785) que se opôs ao racionalismo da Ilustração,
caracterizando-se pela exaltação dos sentimentos e pela
sede de liberdade.
39 Speaker: o deputado que preside os trabalhos na

Câmara dos Comuns.


40 No original, por lapso de Rosa Luxemburg, consta

1909.
41 A Constituição de 10 de julho de 1918 reconhecia o

direito de voto a todos os cidadãos maiores de 18 anos,


salvo aos que empregavam mão-de-obra assalariada ou
que não viviam de seu próprio trabalho, tais como
comerciantes, eclesiásticos e membros da polícia
czarista.
42 Nota na margem esquerda, sem indicação do lugar
onde devia ser inserida: “Um anacronismo, uma
antecipação da situação jurídica que convém a uma base
econômica socialista já realizada, mas não ao período de
transição da ditadura proletária”.
43 Nota na margem esquerda, sem indicação de onde

devia ser inserida: “Tanto os sovietes como espinha


dorsal, quanto a Constituinte e o sufrágio universal”.
Numa página solta, sem número, lê-se: “Os bolcheviques
qualificavam os sovietes de reacionários porque, diziam,
compostos, na maioria, por camponeses (delegados dos
camponeses e delegados dos soldados). Quando os
sovietes ficaram do seu lado, tornaram-se os justos
representantes da opinião popular. Mas esta brusca
reviravolta estava ligada apenas à paz e à questão
agrária”.
44 Reticências no original. Rosa Luxemburg retoma a
passagem de Trotski citada anteriormente.
45 Observação na margem esquerda, sem indicar o lugar

de inserção: “Liberdade somente para os partidários do


governo, somente para os membros de um partido – por
mais numerosos que sejam –,não é liberdade. Liberdade
é sempre a liberdade daquele que pensa de modo
diferente. Não por fanatismo da ‘justiça’, mas porque
tudo quanto há de vivificante, de salutar, de purificante
na liberdade política depende desse caráter essencial e
deixa de ser eficaz quando a “liberdade” se torna um
privilégio”.
46 Nota na margem esquerda, sem indicação de onde

devia ser inserida: “Se os bolcheviques forem honestos


consigo mesmos, não vão querer negar que precisaram
caminhar às apalpadelas, fazer tentativas, experimentos,
ensaios de todos os tipos e que uma boa parte das
medidas tomadas não são pérolas. Certamente é o que
nos acontecerá a todos, quando começarmos, mesmo as
condições não sendo por todo lado tão difíceis”.
47 Por engano, n. 29 no original. Rosa Luxemburg faz

referência a um artigo intitulado “Após a revolução


russa”, publicado no “Mitteilungs-Blatt des Verbandes
der sozialdemokratischen Wahlvereine Berlins und
Umgegen”, de 8 de dezembro de 1918. Este boletim de
informações retomava, no artigo mencionado, às vezes
literalmente, o essencial do texto de Lenin “As tarefas
imediatas do poder dos sovietes”. (Ver Lenin, Oeuvres, t.
27, p. 243-289.)
48 Nota numa folha solta: “Discurso de Lenin sobre a

disciplina e a corrupção”. (Alusão ao artigo do boletim


de informações socialdemocrata. Ver nota anterior.)
“Mesmo entre nós, assim como por todo lado, a anarquia
será inevitável. O elemento do lúmpen-proletariado é
inerente à sociedade burguesa e dela não pode ser
separado.

Provas:
1) Prússia oriental. As pilhagens dos ‘cossacos’.
2) A generalização, na Alemanha, das pilhagens e dos
roubos (‘fraudes’, pessoal dos correios e estradas de
ferro, polícia, fronteiras completamente suprimidas
entre a sociedade bem ordenada e a penitenciária).
3) A rápida depravação dos dirigentes sindicais. Contra
isso, medidas de terror draconianas são impotentes. Ao
contrário, elas corrompem ainda mais. Único antídoto:
idealismo e atividade social das massas, liberdade
política ilimitada.”

Ideias desenvolvidas numa outra folha solta: “Em toda


revolução, a luta contra o lúmpen-proletariado constitui
um problema em si, de grande importância. Também na
Alemanha, assim como em toda parte, teremos que
enfrentar isso. O elemento lúmpen-proletário é
profundamente inerente à sociedade burguesa, não
apenas como camada particular, como dejeto social que
cresce de forma gigantesca, sobretudo quando as
muralhas da ordem social desmoronam, mas como
elemento integrante do conjunto da sociedade. Os
acontecimentos na Alemanha – e mais ou menos em
todos os outros países – mostraram com que facilidade
todas as camadas da sociedade burguesa se acanalham.
A gradação entre os aumentos abusivos de preços, as
fraudes dos proprietários poloneses nobres, os fictícios
negócios de ocasião, a falsificação dos gêneros
alimentícios, a trapaça, a corrupção de funcionários, o
roubo, o assalto e a pilhagem se apagou de tal forma que
as fronteiras entre os cidadãos honrados e os bandidos
desapareceram. Repete-se aqui o fenômeno da
depravação constante e rápida das virtudes burguesas
quando são transplantadas além-mar para solo social
estrangeiro, nas condições coloniais. Desfazendo-se das
barreiras e dos apoios convencionais da moral e do
direito, a sociedade burguesa, cuja lei vital íntima
consiste na mais profunda imoralidade, é presa de um
acanalhamento muito simples: a exploração do homem
pelo homem, direta e desenfreadamente. A revolução
proletária terá que, por todo lado, combater esse
inimigo, instrumento da contrarrevolução.

E contudo, mesmo neste caso, o terror é uma espada


sem gume, ou melhor, uma espada de dois gumes. A
mais draconiana justiça militar é impotente contra a
irrupção das desordens do lúmpen-proletariado. Com
efeito, todo regime de estado de sítio que se prolonga
leva invariavelmente ao arbitrário, e todo arbitrário tem
um efeito depravante sobre a sociedade. O único meio
eficaz de que a revolução proletária dispõe consiste,
também aqui, em tomar medidas radicais de natureza
política e social e transformar o mais rapidamente
possível as garantias sociais da vida da massa, e em
desencadear o idealismo revolucionário, que não pode
subsistir por muito tempo senão graças a uma vida
intensamente ativa das massas, numa liberdade política
ilimitada.

Assim como contra as infecções e os germes infecciosos


a ação livre dos raios solares é o meio mais eficaz para
purificar e curar, também a revolução e seu princípio
renovador, a vida intelectual que ela suscita, a atividade
e a auto-responsabilidade das massas, portanto, a mais
ampla liberdade política, são
o único sol que cura e purifica”.
49 Trotski. Op. cit. p. 93.
50 Heinrich Cunow (1862-1936): professor na

Universidade de Berlim, membro do SPD, escritor,


editou a Neue Zeit a partir de 1918. No começo da
guerra passou da esquerda para a direita do partido,
que apoiava o governo.

Paul Lensch (1873-1926): conhecido jornalista


socialdemocrata. Até 1914 fez parte da ala esquerda do
partido. No momento da declaração de guerra passou
para o campo dos socialistas majoritários.

Parvus (ver nota 14: “Questões de organização...”).


51 Ulrich von Hutten (1488-1523): teólogo alemão,

célebre por seus ataques virulentos, no início da


Reforma, contra o clero e os monges. É freqüentemente
citado por Rosa Luxemburg.
3. O que quer a Liga
Spartakus? 1

I
A 9 de novembro, na Alemanha, os operários e soldados
destruíram o antigo regime. Nos campos de batalha da
França, dissipara-se a ilusão sangrenta de que o sabre
prussiano dominava o mundo. O bando de criminosos
que havia começado o incêndio mundial e precipitado a
Alemanha num mar de sangue, gastara todo o seu latim.
Enganado durante quatro anos o povo que, a serviço do
Moloch2, esquecera os deveres impostos pela civilização,
o sentimento da honra e a humanidade, que se deixara
usar para qualquer infâmia, esse povo despertou do
sono de quatro anos – à beira do abismo.

A 9 de novembro, o proletariado alemão levantou-se


para sacudir o jugo vergonhoso que o oprimia. Os
Hohenzollern3 foram escorraçados, conselhos de
trabalhadores e soldados eleitos.

Mas os Hohenzollern eram apenas os gerentes da


burguesia imperialista e dos Junker4. A burguesia com
sua dominação de classe, essa é a verdadeira culpada
pela guerra mundial – tanto na Alemanha quanto na
França, na Rússia quanto na Inglaterra, na Europa
quanto na América. Os capitalistas de todos os países
são os verdadeiros instigadores da matança dos povos.
Ocapital internacional é esse Baal5 insaciável em cujas
fauces sangrentas foram atiradas milhões e milhões de
exaustas vítimas humanas.

A guerra mundial pôs a humanidade perante a seguinte


alternativa: ou manutenção do capitalismo, novas
guerras e rápida queda no caos e na anarquia, ou
abolição da exploração capitalista.

Com o fim da guerra mundial, a dominação de classe da


burguesia perdeu o direito à existência. Ela já não é
capaz de retirar a sociedade do terrível caos econômico
que a orgia imperialista deixou atrás de si.

Meios de produção foram aniquilados em proporções


enormes. Milhões de trabalhadores, a melhor e mais
competente geração da classe operária, massacrada.
Aos que ficaram vivos, ao voltarem para casa, espera-os
a escarnecedora miséria do desemprego. A fome e as
doenças ameaçam aniquilar até à raiz a força do povo. A
bancarrota financeira do Estado, conseqüência do
enorme fardo das dívidas de guerra, é inevitável.

Para escapar a essa confusão sangrenta e a esse abismo


escancarado não há outro recurso, outra salvação, outra
saída senão o socialismo. Só a revolução mundial do
proletariado pode pôr ordem nesse caos, dar a todos pão
e trabalho, pôr fim ao dilaceramento recíproco entre os
povos, dar à humanidade maltratada paz, liberdade e
uma verdadeira cultura. Abaixo o salariato! Este é o
lema do momento. O trabalho assalariado e a dominação
de classe devem ser substituídos pelo trabalho
cooperativo. Os meios de trabalho não devem mais ser o
monopólio de uma classe,mas tornar-
sebemcomum.Chega de exploradores e explorados!
Regulamentação da produção e repartição dos produtos
no interesse da coletividade (Allgemeinheit). Abolição,
tanto do modo de produção atual, da exploração e da
pilhagem, quanto do atual comércio, que não passa de
fraude.
No lugar dos patrões e de seus escravos assalariados,
trabalhadores que cooperam livremente! Otrabalho
deixa de ser um tormento, porque dever de todos! Uma
existência digna e humana para todos os que cumprem
seus deveres para com a sociedade! Doravante, a fome
não é mais a maldição que pesa sobre o trabalho, mas a
punição da ociosidade!

Só numa sociedade assim serão extirpados a servidão e


o ódio entre os povos. Só quando essa sociedade se
concretizar, a terra deixará de ser profanada pela
matança entre os homens. Só então poderemos dizer:

Esta guerra foi a última.

O socialismo é, nesta hora, a única tábua de salvação da


humanidade. Sobre as muralhas da sociedade
capitalista, desmoronando, ardem, como uma
advertência, as palavras do Manifesto Comunista:

Socialismo ou queda na barbárie!

II

A realização da sociedade socialista é a mais grandiosa


tarefa que, na história do mundo, já coube a uma classe
e a uma revolução. Esta tarefa exige uma completa
transformação do Estado e uma completa mudança dos
fundamentos econômicos e sociais da sociedade.

Esta transformação e esta mudança não podem ser


decretadas por nenhuma autoridade, comissão ou
Parlamento: só a própria massa popular pode
empreendê-las e realizá-las.
Em todas as revoluções anteriores, era uma pequena
minoria do povo que conduzia a luta revolucionária, que
lhe dava os objetivos e a orientação, utilizando a massa
apenas como instrumento para fazer triunfar seus
próprios interesses, os interesses da minoria. A
revolução socialista é a primeira que só pode triunfar no
interesse da grande maioria e graças à grande maioria
dos trabalhadores.

A massa do proletariado é chamada não só a fixar


claramente o objetivo e a orientação da revolução, mas é
preciso que ela mesma, passo a passo, através da sua
própria atividade, dê vida ao socialismo.

A essência da sociedade socialista consiste no seguinte:


a grande massa trabalhadora deixa de ser uma massa
governada, para viver ela mesma a vida política e
econômica na sua totalidade, e para orientá-la por uma
autodeterminação consciente e livre.

Assim, da cúpula do Estado à menor comunidade, a


massa proletária precisa substituir os órgãos herdados
da dominação burguesa: Bundesrat (Conselho federal),
parlamentos, conselhos municipais, pelos seus próprios
órgãos de classe, os conselhos de operários e de
soldados. Precisa ocupar todos os postos, controlar
todas as funções, aferir todas as necessidades do Estado
pelos seus próprios interesses de classe e pelas tarefas
socialistas. E só por uma influência recíproca constante,
viva, entre as massas populares e seus organismos, os
conselhos de trabalhadores e de soldados, é que a
atividade das massas pode insuflar ao Estado um
espírito socialista.

Por sua vez, a transformação econômica só pode


realizar-se sob a forma de um processo levado a cabo
pela ação das massas proletárias. No que se refere à
socialização, secos decretos emitidos pelas autoridades
revolucionárias supremas não passam de palavras ocas.
Só o operariado (Arbeiterschaft), pela sua própria ação,
pode transformar o verbo em carne6. Numa luta tenaz
contra o capital, num corpo a corpo em cada empresa,
graças à pressão direta das massas, às greves, graças à
criação dos seus organismos representativos
permanentes, os operários podem alcançar o controle e,
finalmente, a direção efetiva da produção.

As massas proletárias devem aprender, de máquinas


mortas que o capitalista instala no processo de
produção, a tornar-se dirigentes autônomas desse
processo, livres, que pensam. Devem adquirir o senso
das responsabilidades, próprio de membros atuantes da
coletividade (Allgemeinheit), única proprietária da
totalidade da riqueza social. Precisam mostrar zelo sem
o chicote do patrão, máximo rendimento sem o
contramestre capitalista, disciplina sem sujeição e
ordem sem dominação. Omais elevado idealismo no
interesse da coletividade (Allgemeinheit), a mais estrita
autodisciplina, verdadeiro senso cívico das massas
constituem o fundamento moral da sociedade socialista,
assim como estupidez, egoísmo e corrupção são os
fundamentos morais da sociedade capitalista.

Só pela sua própria atividade, pela sua própria


experiência, pode a massa operária adquirir todas essas
virtudes cívicas socialistas, assim como os
conhecimentos e as capacidades necessárias à direção
das empresas socialistas.

A socialização da sociedade não pode ser realizada em


toda a sua amplitude senão por uma luta tenaz,
infatigável da massa operária em todos os pontos onde o
trabalho enfrenta o capital, onde o povo e a dominação
de classe da burguesia se encaram, olhos nos olhos. A
libertação da classe operária deve ser obra da própria
classe operária.

III

Nas revoluções burguesas, o derramamento de sangue,


o terror, o assassinato político eram as armas
indispensáveis nas mãos das classes ascendentes.

A revolução proletária não precisa do terror para


realizar seus fins, ela odeia e abomina o assassinato. Ela
não precisa desses meios de luta porque não combate
indivíduos, mas instituições, porque não entra na arena
cheia de ilusões ingênuas que, perdidas, levariam a uma
vingança sangrenta. Não é a tentativa desesperada de
uma minoria de moldar o mundo à força, de acordo com
o seu ideal, mas a ação da grande massa dos milhões de
homens do povo, chamada a cumprir sua missão
histórica e a fazer da necessidade histórica uma
realidade.

Mas a revolução proletária é, ao mesmo tempo, o dobre


de finados de toda servidão e de toda opressão. Eis por
que, contra ela, numa luta de vida ou morte, como se
fossem um único homem, se erguem todos os
capitalistas, os Junker, os pequenoburgueses, os oficiais,
todos os aproveitadores e parasitas da exploração e da
dominação de classe.

Não passa de delírio extravagante acreditar que os


capitalistas se renderiam de bom grado ao veredicto
socialista de um Parlamento, de uma Assembléia
Nacional, que renunciariam tranqüilamente à
propriedade, ao lucro, aos privilégios da exploração.
Todas as classes dominantes, com a mais tenaz energia,
lutaram até ao fim por seus privilégios. Os patrícios de
Roma, assim como os barões feudais da Idade Média, os
gentlemen ingleses, assim como os mercadores de
escravos americanos, os boiardos da Valáquia, assim
como os fabricantes de seda de Lyon – todos
derramaram rios de sangue, caminharam sobre
cadáveres, em meio a incêndios e crimes, provocaram a
guerra civil e traíram seus países para defender
privilégios e poder.

Último rebento da classe dos exploradores, a classe


capitalista imperialista ultrapassa em brutalidade, em
cinismo nu e cru, em abjeção todas as suas
antecessoras. Ela defenderá com unhas e dentes o que
tem de mais sagrado: o lucro e o privilégio da
exploração. Utilizará os métodos sádicos revelados em
toda a história da política colonial e no decorrer da
última guerra. Moverá céus e terra contra o
proletariado. Mobilizará o campesinato contra as
cidades, açulará camadas operárias retrógradas contra a
vanguarda socialista, utilizará oficiais para organizar
massacres7, tentará paralisar toda medida socialista
pelos milhares de meios da resistência passiva, lançará
contra a revolução vinte Vendéias8, pedirá socorro ao
inimigo externo, às armas dos Clemenceau, Lloyd
George9 e Wilson10, preferindo transformar a Alemanha
num monte de escombros a renunciar de bom grado à
escravidão do salariato.

Será preciso quebrar todas estas resistências passo a


passo,com mão de ferro e uma brutal energia. À
violência da contrarevolução burguesa é preciso opor o
poder revolucionário do proletariado. Aos atentados e às
intrigas urdidas pela burguesia, a lucidez
inquebrantável, a vigilância e a constante atividade
damassa proletária. Às ameaças da contra-revolução, o
armamento do povo e o desarmamento das classes
dominantes. Às manobras de obstrução parlamentar da
burguesia, a organização ativa damassa dos operários e
dos soldados. À onipresença e aos mil meios de que
dispõe a sociedade burguesa, é preciso opor o poder
concentrado da classe operária, elevado ao máximo. Só
a frente única do conjunto do proletariado alemão,
unindo o proletariado do Sul e o do Norte da Alemanha,
o proletariado urbano e o rural, os operários e os
soldados, a liderança intelectual viva da revolução alemã
e a Internacional, só o alargamento da revolução
proletária alemã, permitirão criar a base de granito
sobre a qual o edifício do futuro pode ser construído.

A luta pelo socialismo é a mais prodigiosa guerra civil


conhecida até hoje pela história do mundo, e a revolução
proletária deve-se preparar para ela com os
instrumentos necessários, precisa aprender a utilizá-los
– para lutar e vencer.

Munir assim a massa compacta do povo trabalhador da


totalidade do poder político, para que realize as tarefas
da revolução,eis a ditadura doproletariadoe,portanto,a
verdadeira democracia. Não há democracia quando o
escravo assalariado se senta ao lado do capitalista, o
proletário agrícola ao lado do Junker, numa igualdade
falaciosa, para debater seus problemas vitais de forma
parlamentar. Mas quando a massa dos milhões de
proletários empunha com sua mão calosa a totalidade do
poder do Estado, tal o deus Thor11 com seu martelo,
para arremessá-lo à cabeça das classes dominantes, só
então haverá uma democracia que não sirva para lograr
o povo.

Para permitir ao proletariado realizar essas tarefas, a


Liga Spartakus exige:

I. Medidas imediatas para assegurar o triunfo da


revolução
1. Desarmamento de toda a polícia, de todos os
oficiais, assim como dos soldados de origem
não proletária, desarmamento de todos os que
pertencem às classes dominantes.
2. Requisição de todos os estoques de armas e de
munições, assim como das fábricas de armas,
pelos conselhos de operários e de soldados.
3. Armamento do conjunto do proletariado
masculino adulto que constituirá uma milícia
operária. Formação de uma guarda vermelha
proletária, que será a parte ativa da milícia e
proteção permanente da revolução contra
ataques e intrigas contra-revolucionárias.
4. Supressão do poder de comando dos oficiais e
suboficiais; substituição da obediência militar
de cadáver (militärischen Kadavergehorsams)
pela disciplina livremente consentida pelos
soldados; eleição de todos os superiores pela
tropa, com o direito permanente de revogar os
mandatos; abolição da jurisdição militar.
5. Exclusão dos oficiais e dos Kapitulanten12 de
todos os conselhos de soldados.
6. Substituição de todos os órgãos políticos e de
todas as autoridades do antigo regime por
homens de confiança dos conselhos de
operários e de soldados.
7. Instituição de um tribunal revolucionário que
julgará os principais culpados pela guerra e
pelo seu prolongamento: os Hohenzollern,
Ludendorff, Hindenburg, Tirpitz13 e seus
cúmplices, assim como todos os conjurados da
contra-revolução.
8. Requisição imediata de todos os estoques de
víveres com o fim de assegurar o abastecimento
do povo.
II. Medidas políticas e sociais

1. Abolição de todos os Estados particulares;


criação de uma República socialista alemã
unificada.
2. Supressão de todos os parlamentos e
conselhos municipais, cujas funções serão
preenchidas pelos conselhos de operários e
de soldados, assim como pelos comitês e
órgãos por eles designados.
3. Eleição de conselhos de operários em toda a
Alemanha pelo conjunto do operariado adulto
dos dois sexos, na cidade e no campo, por
empresa; eleição de conselhos de soldados
pela tropa, exceto os oficiais e os
Kapitulanten; direito dos operários e
soldados de, a todo momento, revogarem os
mandatos dos seus representantes.
4. Eleição de delegados dos conselhos de
operários e de soldados em todo o Reich para
o Conselho Central (Zentralrat) dos
conselhos de operários e de soldados
que,porsua vez,elegerá um Comitê Executivo
(Vollzugsrat) ; este será o organismo
supremo dos Poderes Legislativo e Executivo.
5. O Conselho Central reunir-se-á, no mínimo,
uma vez a cada três meses – sempre com
reeleição dos delegados –, a fim de exercer
um controle permanente sobre a atividade do
Comitê Executivo e de estabelecer um
contacto vivo entre a massa dos conselhos de
operários e de soldados de todo o Reich, e o
organismo governamental supremo que os
representa. Os conselhos de operários e de
soldados locais têm o direito, a todo
momento, de revogar os mandatos e de
substituir seus delegados no Conselho
Central, no caso destes não agirem de acordo
com o mandato que lhes foi dado. O Comitê
Executivo tem o direito de nomear e depor os
Comissários do povo (Volksbeauftragten),
assim como as autoridades centrais do Reich
e os funcionários.
6. Supressão de todas as diferenças de casta,
de todas as ordens e de todos os títulos; total
igualdade entre os sexos, no plano jurídico e
social.
7. Medidas sociais importantes: redução do
tempo de trabalho para lutar contra o
desemprego e levar em consideração a
fraqueza física do operariado, conseqüência
da guerra mundial; fixação da jornada de
trabalho em 6 horas, no máximo.
8. Imediata reorganização dos sistemas de
abastecimento, habitação, saúde e educação,
no sentido e no espírito da revolução
proletária.

III. Medidas econômicas imediatas


1. Confisco de todos os bens e rendas dinásticas
em proveito da coletividade (Allgemeinheit).
2. Anulação das dívidas do Estado e de outras
dívidas públicas, assim como dos empréstimos
de guerra, exceto subscrições de um
determinado valor, a ser fixado pelo Conselho
Central dos conselhos de operários e de
soldados.
3. Expropriação de todas as explorações agrícolas
grandes e médias, constituição de cooperativas
agrícolas socialistas dependendo de uma
direção central à escala do Reich; as pequenas
explorações camponesas continuarão de posse
dos seus proprietários até que estes adiram
livremente às cooperativas socialistas.
4. A República dos Conselhos expropriará todos os
bancos, minas, usinas metalúrgicas, assim
como todas as grandes empresas industriais e
comerciais.
5. Confisco de todas as fortunas acima de um
certo valor, a ser fixado pelo Conselho Central.
6. Apropriação do conjunto dos transportes
públicos pela República dos Conselhos.
7. Eleições, em todas as fábricas, de conselhos de
fábrica que, de acordo com os conselhos
operários, deverão administrar todos os
assuntos internos da empresa, as condições de
trabalho, controlar a produção e, finalmente,
assumir a direção da empresa.
8. Instituição de uma Comissão Central de Greve
que, em colaboração permanente com os
conselhos de fábrica, deverá coordenar o
movimento de greve que começa em todo o
Reich, assegurando-lhe a orientação socialista e
o apoio vigoroso do poder político dos
conselhos de trabalhadores e de soldados.
IV. Tarefas internacionais

Restabelecimento imediato das relações com os partidos


irmãos dos outros países para dar à revolução socialista
uma base internacional, estabelecer e garantir a paz
pela confraternização internacional e pelo levante
revolucionário do proletariado do mundo inteiro.

V. Eis o que quer a Liga Spartakus!

E porque a Liga Spartakus quer isto, porque exorta e


impele a agir, porque é a consciência socialista da
revolução, é odiada, perseguida, caluniada por todos os
inimigos secretos ou declarados da revolução e do
proletariado.

– Crucifiquem-na! – gritam os capitalistas, tremendo por


seus cofres-fortes.
– Crucifiquem-na! – gritam os pequeno-burgueses, os
oficiais, os anti-semitas, os lacaios da imprensa
burguesa, tremendo pelos bons petiscos que lhes
permite a dominação de classe da burguesia.
– Crucifiquem-na! – gritam os Scheidemann
(Scheidemänner) que, como Judas Iscariotes, venderam
os operários à burguesia e tremem pelos trinta dinheiros
da sua dominação política.
– Crucifiquem-na! – repetem ainda, como um eco,
camadas do operariado, iludidas, enganadas,
mistificadas, e soldados que não sabem que acusam sua
própria carne e seu próprio sangue, quando acusam a
Liga Spartakus!
No ódio, na calúnia contra a Liga Spartakus une-se tudo
o que é contra-revolucionário, inimigo do povo, anti-
socialista, equívoco, turvo, lucífugo. Isso confirma que
na Liga Spartakus bate o coração da revolução e que o
futuro lhe pertence.

A Liga Spartakus não é um partido que queira chegar ao


poder passando por cima da massa operária ou servindo-
se da massa operária. A Liga Spartakus é apenas a parte
mais consciente do proletariado que indica a cada passo
às grandes massas do operariado suas tarefas históricas,
que, a cada estágio particular da revolução, representa o
objetivo final socialista e que, em todas as questões
nacionais, defende os interesses da revolução proletária
mundial.

A Liga Spartakus recusa-se a compartilhar o poder com


os Scheidemann-Ebert14, esses criados da burguesia,
porque considera que colaborar com eles significa trair
os princípios fundamentais do socialismo, reforçar a
contra-revolução e paralisar a revolução.

A Liga Spartakus recusará igualmente chegar ao poder


unicamente porque os Scheidemann-Ebert se
desgastaram e os independentes15 caíram num impasse
ao colaborar com eles16.

A Liga Spartakus nunca tomará o poder a não ser pela


vontade clara e inequívoca da grande maioria da massa
proletária em toda a Alemanha. Ela só tomará o poder se
essa massa aprovar conscientemente os projetos,
objetivos e métodos de luta da Liga Spartakus.

A revolução proletária não pode chegar a uma total


lucidez e maturidade senão subindo, passo a passo, o
amargo Gólgota de suas próprias experiências, passando
por vitórias e derrotas.

A vitória da Liga Spartakus não se situa no começo mas


no fim da revolução: ela identifica-se à vitória dos
milhões de homens que constituem a massa do
proletariado socialista.

De pé, proletários! À luta! Trata-se de conquistar um


mundo e de lutar contra um mundo. Nesta última luta de
classes da história mundial pelos mais sublimes
objetivos da humanidade, lançamos aos inimigos este
grito: – Dedos nos olhos, joelhos no peito! (Daumen aufs
Auge und Knie auf die Brust! )

A Liga Spartakus

1 Este texto, publicado pela primeira vez no jornal


spartakista Die Rote Fahne (A Bandeira Vermelha), a 14
de dezembro de 1918, foi redigido por Rosa Luxemburg
quando os spartakistas ainda faziam parte do Partido
Social Democrata Independente. Entretanto, as
divergências entre spartakistas e independentes,
tornadas insuperáveis, levaram à criação, no final de
dezembro, do Partido Comunista Alemão (KPD). No
Congresso de fundação do KPD, a 31 de dezembro, o
programa da Liga Spartakus foi adotado por
unanimidade, com apenas algumas modificações de
detalhe.
2 Moloch (Velho Testamento): divindade semítica à qual

os pais sacrificavam os filhos.


3 Hohenzollern: dinastia prussiana de onde saíram os

imperadores da Alemanha a partir de 1871.


4 Junkers: membros da aristocracia prussiana
proprietária de terras, conservadores, militaristas,
defendendo seus interesses agrários contra qualquer
forma de liberalismo.
5 Baal: falso deus.
6 Encontramos aqui uma referência explícita ao
Evangelho de São João, que aparece freqüentemente em
Rosa Luxemburg. No final deste texto, aliás, há mais
referências bíblicas.
7 Rosa Luxemburg está sendo profética. Foi assassinada

um mês depois, justamente por soldados e oficiais.


8 Vendéia: região costeira ocidental, na França, centro

da resistência camponesa contra a República, durante a


Revolução Francesa.
9 Georges Clemenceau (1841-1929): primeiro-ministro da

França de 19061909 e de 1917-1919. David Lloyd


George (1863-1945): primeiro-ministro da Inglaterra de
1916-1922.
10 Ver nota 27 em “A Revolução Russa”.
11 Thor: deus do trovão na mitologia nórdica,

representado empunhando um martelo.


12 Kapitulant: soldado que, através de um contrato

(Kapitulation), se obrigava a um longo período de


serviço, obtendo assim o direito à aposentadoria.
13 Erich Ludendor (1865-1937): general alemão e

principal colaborador de Hindenburg durante a Primeira


Guerra Mundial.

Paul von Hindenburg (1847-1934): marechal e estadista


alemão. Comandante dos Exércitos alemão e austríaco
durante a Primeira Guerra Mundial. A política civil e
militar na Alemanha, de julho de 1917 até o armistício,
estava sob o controle de Ludendorff e Hindenburg.
Eleito presidente do Reich em 1925 e 1932. Nomeou
Hitler chanceler. Alfred von Tirptz (1849-1930):
almirante alemão, ministro da Marinha de 1897 a 1916.
Em 1917, formou o partido alemão da Pátria,
nacionalista e pangermanista. Deputado nacionalista no
Reichstag de 1924 a 1928.
14 Friedrich Ebert (1871-1925): presidente do SPD desde

o pré-guerra. A partir de 10 de novembro de 1918, um


dos seis membros do Conselho dos Comissários do Povo.
Primeiro presidente da República de Weimar, eleito a 11
de fevereiro de 1919.

Scheidemann-Ebert: Ebert procura a todo custo


preservar a monarquia. Porém, a revolução alastra-se
pelo país, o imperador renuncia a 9 de novembro,
assumindo Ebert a chefia do governo. Scheidemann fez
parte do gabinete Max de Bade, último chanceler do
império, para logo em seguida ser membro, junto com
Ebert, do Conselho dos Comissários do Povo, nas mãos
de quem estava o governo. Donde a crítica a ambos,
constante em Rosa Luxemburg.
15 Independentes: membros do USPD.
16 Com a renúncia do imperador, a República é

proclamada e o poder passa a ser exercido por uma


coalizão dos partidos operários SPD e USPD. Rosa conta
com a desmoralização dos socialistas, tanto majoritários
quanto independentes, perante as massas. Entretanto,
os independentes, por discordarem de certas medidas
políticas dos majoritários, deixam o governo a 29 de
dezembro. E Ebert não só não se desmoraliza, como é
eleito presidente da República.
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