157-Texto Do Artigo-283-1-10-20210814
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Resumo
O Brasil apresenta sistematicamente baixos índices de leitura ao tempo em
que sua população comporta altos níveis de evasão escolar. Por entender que lei-
tura, escrita e educação estão imbricadas e a reversão desse quadro requer políticas
que visem acesso a minorias, a discussão proposta nesse texto passa pela análise
de dados de pesquisas recentes, pela percepção de quem constitui essa população
excluída e dos interesses subliminares desse contexto. O objetivo é propor uma
reflexão que inclua editoras universitárias como agentes desse movimento a par-
tir do exemplo da Editus – Editora da UESC, Universidade Estadual de Santa Cruz,
em Ilhéus, Bahia. O estudo tem como suporte teórico autores como Freire (1996)
e Fischer (2006), além de Puncher (2019), e mostra como é possível implementar
ações que tenham o livro e a leitura estruturados como caminho para apropriação
de conhecimentos e saberes, ampliação de consciência e transformação social.
Introdução
Falar de leitura é certamente buscar compreender de maneira mais ampla
o contexto social, político e econômico em que vive a população brasileira, pen-
sando para além de páginas impressas ou de uma tela de algum dispositivo que
disponibilize um texto – entendendo aqui texto nas suas mais variadas formas de
expressão, envolvendo palavras, imagens, sons... Desse modo, o panorama atual
em debate não se distancia de um desenho histórico secular, tampouco pode ser
compreendido ou combatido sem que se olhe atentamente para o cenário em
que essas pessoas estão inseridas, buscando, de fato, um entendimento e reflexão
apurados, com a intenção de propor caminhos que possam livrar essa parcela
populacional dessas amarras.
Portanto, a proposta apresentada nesta análise visa oferecer elementos para
que se reflita acerca das circunstâncias atuais, pontuando inicialmente dados que
possibilitem entender a cena contemporânea em torno do acesso à leitura no
Brasil e sua relação com o campo da educação. Posteriormente, a partir da expe-
riência de editoras universitárias, a tentativa é apontar caminhos possíveis para
um futuro que possa ser desenhado de modo a entender valores como alteridade,
colaboração, equidade entre os seres humanos, dentre outros tantos desafios, e
todos eles entrelaçados com vistas a dirimir as mazelas sociais que permeiam a
vida de grande parte dessa sociedade.
cultural e pessoal? Por outro lado, entre o público que compôs a amostra, 82%
gostariam de ler mais e 47% afirmaram não ler por falta de tempo.
Esses dados se complementam com os que trazem as razões que levam
as pessoas a ler, sendo a mais citada o fato de que a leitura traz conhecimento.
Entre outras justificativas, estão: a leitura como possibilidade de aprender a viver
melhor, como uma atividade interessante, como caminho para atualização e cres-
cimento profissional. Ainda que tenham aparecido respostas que consideram a
leitura como uma atividade cansativa, que ocupa muito tempo e que só lê por-
que é obrigado, é evidente o reconhecimento do ato de ler como sendo um fator
positivo para a vida, com adjetivos como prazeroso, facilitador da aprendizagem
escolar e auxiliar para se “vencer na vida”.
Ao tentar encontrar indicadores da relação leitura-educação, é possível
perceber que 39% dos entrevistados estão estudando, contra 61% que não estão
estudando; ademais, a pesquisa mostra que a maior influência para que o indiví-
duo leia vem dos professores. Recorremos, com isso, ao educador Paulo Freire,
que sempre defendeu o acesso à educação e o combate às desigualdades sociais,
reforçando o papel fundamental que o professor ocupa na mediação desse pro-
cesso que conduz à formação de sujeitos autônomos e socialmente implicados.
Um outro ponto que me parece interessante sublinhar, característico de uma
visão crítica da educação, portanto da alfabetização, é o da necessidade que
temos, educadoras e educadores, de viver, na prática, o reconhecimento
óbvio de que nenhum de nós está só no mundo. Cada um de nós é um ser
no mundo, com o mundo e com os outros (FREIRE, 1994, pág. 60).
Entende-se, assim, que a luta pela leitura é também uma luta pela educa-
ção, que livro e educação estão interligados e que decorre dessa associação outro
elemento que é a escrita. Nessa perspectiva é que se recorre a outra pesquisa,
essa mais específica sobre o perfil educacional. A Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios - PNAD Contínua, módulo educação 20193, que aponta para mais de 11
milhões de analfabetos no Brasil.
O mesmo levantamento indica que mais da metade das pessoas com 25
anos ou acima não completaram o Ensino Médio, por terem abandonado a escola
ou por nunca terem frequentado uma instituição escolar. Mais uma vez, torna-se
importante ressaltar variáveis como classe social, raça e gênero: dos estudantes
que foram entrevistados, 71,7% dos que deixaram de estudar sem completar o
Ensino Médio são pretos e pardos. Também nessa direção, nota-se que na pas-
sagem do Ensino Fundamental para o Médio esse abandono se intensifica. A
pesquisa em questão mostra que entre os principais motivos estão a necessidade
que esses jovens têm de trabalhar e a falta de interesse que reconhecem ter pelo
ambiente escolar e seus processos educativos. Entre as mulheres, as principais
causas de abandono são gravidez e necessidade de se dedicar aos afazeres domés-
ticos. Outro levantamento reforça o que vem sendo delineado até aqui:
A exclusão escolar afeta, principalmente, crianças e adolescentes das camadas
mais vulneráveis da população, já sem outros direitos respeitados. São, em
sua maioria, pobres, negros, indígenas e quilombolas. Muitos deixam a escola
para trabalhar e contribuir com a renda familiar; outros têm algum tipo de
deficiência. Grande parte vive nas periferias dos grandes centros urbanos, no
Semiárido, na Amazônia e nas zonas rurais. Muitos já passaram pela escola,
mas não tiveram as oportunidades necessárias para aprender, foram sendo
reprovados até que deixaram a sala de aula. Ou foram vítimas de bullying,
preconceito, violência, e não conseguiram continuar (UNICEF, 2020).
Os dados trazidos pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF)
corroboram com os números da PNAD Contínua Educação na direção de eviden-
ciar a exclusão social como realidade brasileira, em que sistemas são criados para
beneficiar elites em detrimento de camadas da população que se situam às mar-
gens das condições mínimas para uma sobrevivência que respeite a dignidade da
pessoa humana. É evidente que as estruturas e a qualidade da educação ofertada
por muitas escolas no país já se constituía como um agravante para os abismos
sociais mesmo antes da pandemia provocada pela Covid-19 no início de 2020. O
alerta da UNICEF apresentado acima data de janeiro desse ano, sendo anterior à
chegada/identificação do coronavírus ao país.
Aponta para a mesma questão, o IV Relatório Luz da Sociedade Civil da
Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável Brasil (2020)4, trabalho que vem sendo
desenvolvido pelo Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030,
composto por cerca de 50 entidades de todas as regiões do Brasil. Agenda 2030 é
considerada um plano de ação “para as pessoas, para o planeta e para a prosperi-
dade”5 e foi pactuada pelo Brasil e outros 192 países que integram a Organização
das Nações Unidas (ONU). O GT tem como objetivo acompanhar a execução dos
Diante dos baixos índices de leitura no país e das nuanças que envolvem
esse cenário, como é possível ser conferido mesmo que parcialmente a partir dos
dados trazidos até aqui, pode-se afirmar com tranquilidade que ser inserido na
categoria de leitor no país não tem sido uma questão de escolha, tampouco ter
discernimento crítico para poder escolher o que ler, bem como para entender a
força que o conhecimento que pode ser acessado por meio da leitura é capaz de
provocar mudanças sociais estruturais.
Entre os projetos que seguem nessa linha, foi implantado em 2013 o “Editus
Digital”6, que oferece grande arte do catálogo da Editora em acesso aberto para
que o público possa ler e baixar em pdf gratuitamente. Em 2014, a Editora criou o
“Um Lugar pra Ler”7, voltado para a disponibilização de armários com livros em
alguns pontos do campus universitário para leitura. No ano seguinte, foi lançado
o projeto “No Caminho tem um Livro”8, que no momento está suspenso devido
ao fim do convênio com a empresa de ônibus parceira, mas que tinha como obje-
tivo disponibilizar títulos da Editora para leitura gratuita no transporte público.
Esse projeto foi, inclusive, finalista do Prêmio Retratos da Leitura, promovido pelo
Instituto Pró-Livro.
Ao avaliar a sua inserção na comunidade a qual pertence, a equipe da
Editora procurou pensar sobre as implicações sociais em torno de uma editora
universitária. Surgiram questionamentos como: quem lê nossos livros, nossos
possíveis leitores têm acesso aos nossos livros, temos capacidade para lidar com
a acessibilidade, trabalhamos para viabilizar o acesso aberto e temos pensado e
trabalhado o nosso entorno?
Como resultado, surgiram duas ações. A primeira foi buscar se aproxi-
mar de escolas regionais, fomentando o contato dos escritores de livros infanto-
juvenis do seu catálogo com estudantes da Educação Básica, desde a Educação
Infantil. Essas conversas podiam partir da leitura que os estudantes tenham feito
de alguma publicação dos autores em questão ou mesmo para um bate-papo
sobre livro, leitura e vida, por exemplo.
A outra ação foi criar a Feira Universitária do Livro em 2013, que em 2018
contou com outros parceiros e evoluiu para a Festa Literária de Ilhéus, que chega a
2020 na sua terceira edição, agregando dois eventos, o Festival Literário de Ilhéus e
a Feira Universitária do Livro da UESC. Desde o princípio, a Feira do Livro e depois a
Festa Literária tiveram como característica agregar atividades voltadas para o livro
e a leitura tendo como foco principal estudantes da Educação Básica. As primeiras
edições ocorreram no campus da UESC e, posteriormente, foram ocupados equi-
pamentos culturais do centro da cidade, facilitando o deslocamento desse público
e viabilizando a aproximação de equipamentos culturais com os quais, muitas
vezes, não há uma relação de pertencimento.
6 http://www.uesc.br/editora/index.php?item=conteudo_livros_digitais.php Acessado em 18 de
nov. 2020.
7 http://www.uesc.br/editora/index.php?item=conteudo_projetos.php Acessado em 18 de nov. 2020.
8 http://www.uesc.br/editora/index.php?item=conteudo_projetos.php Acessado em 18 de nov. 2020.
Puchner tem razão. Mas fala a partir de um olhar que se lança para o mundo
a partir da Universidade Harvard. O crescimento é real, mas quem integra e alcança
esse processo? Essa tem sido, talvez, a grande questão a ser respondida e resolvida.
Leitura e transformação
Se o leitor se faz lendo, entre livros, papéis, plataformas e linguagens, se
preparando e sendo preparado para descobrir o mundo, sem dúvida, é papel
de todos os que já conseguiram acesso, atuar de modo colaborativo na tentativa
de minimizar esse estado em que o país se encontra e promover as mudanças
possíveis nesse panorama. O caminho vai depender das potencialidades de cada
um, seja por meio de pequenos projetos ou se engajando em lutas pela imple-
mentação e manutenção de políticas públicas para o setor do livro, da leitura e
das bibliotecas.
Esse objetivo transformador associa-se ao pensamento de Fischer (2006),
quando afirma ser o conhecimento a finalidade da leitura:
A leitura, uma aptidão natural cumulativa, desenvolve-se e progride de
modo excepcional. Cada prática resulta em aperfeiçoamento, abrindo
caminho para uma experiência cada vez mais vasta. Os que têm lido com
amplidão e sabedoria, os que têm dominado a palavra escrita e, assim, sua
linguagem e sua cultura, desfrutam em geral de mais respeito na sociedade.
Isso jamais mudará (FISCHER, 2006, pág. 312).
Como já foi dito, e agora também em concordância com Fischer, seja cien-
tífica ou literária, a leitura carrega consigo um inquestionável poder social trans-
formador. Entretanto, reforçamos a necessidade de que haja tempo – e condições!
– para a gestação de um leitor. Uma vez que essa reflexão parte da defesa por
equidade, por polifonia e diversidade, é preciso que cidadãos e instituições este-
jam empenhados em atuar pelo coletivo, pelas minorias que são historicamente
excluídas dos espaços de decisão e poder por serem consideradas desprovidas
de capacidade, quando na verdade não lhes foi dada oportunidade de aprendi-
zagem, de se constituírem como sujeitos de suas próprias vidas. Mas apesar de
tudo, resistem. Como disse genuinamente a ativista e poeta Maya Angelou: “Mas
ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar” (PORTAL GELEDÉS, 2018). E,
levantando-se, segue. Sempre em frente.
Referências Bibliográficas:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF:
Presidência da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm Acesso em: 19 de nov. 2020.