PSICANÁLISE Introdução
PSICANÁLISE Introdução
PSICANÁLISE Introdução
Não basta ter um certificado para ser considerado (a) psicanalista. Tradicionalmente, quem
deseja atuar como psicanalista deve integrar uma sociedade psicanalítica com preceitos bem
definidos a respeito de como a prática deve ser executada. Isto é, embora não haja
regulamentação governamental sobre a prática da psicanálise, deve haver um rígido controle por
parte das sociedades psicanalíticas a respeito de como seus profissionais estão atuando.
Não. Psicanalistas não são formados através dos modelos da educação tradicional, mas sim
através de métodos próprios desenvolvidos pelas sociedades psicanalíticas. A formação em
psicanálise contempla a teoria, as análises pessoais obrigatórias e o atendimento supervisionado
por uma sociedade. Se você tem um certificado de pós-graduação em Psicanálise e não faz parte
de uma sociedade psicanalítica, então você não é psicanalista.
Não. É necessário que, além do certificado, você conte com os auspícios de alguma sociedade
psicanalítica (ou sindicato, tal como o SINATEN – neste caso a comprovação de formação
clássica através do certificado também é necessária) para que suas práticas como psicanalista
sejam reconhecidas. Uma pessoa com certificado de psicanalista que atua sem fazer parte de
alguma sociedade psicanalítica é equiparável a qualquer outro profissional que atue sem o
respaldo do órgão regulador de sua profissão. Ou seja, ser atendido por um psicanalista que não
faz parte de alguma sociedade psicanalítica significa colocar em risco aquilo que se tem de mais
valioso: a saúde.
Não. A psicanálise não é uma subdisciplina de outras ocupações. A psicanálise é uma disciplina
que se sustenta sem a necessidade do aval de qualquer ocupação que exista no mundo. Em
termos gerais, não é necessário qualquer tipo de formação acadêmica formal para exercer a
psicanálise, uma vez que o curso de formação oferecido pelas sociedades psicanalíticas já é uma
formação completa.
De qual sociedade o(a) psicanalista deve fazer parte para ser psicanalista?
As próprias sociedades psicanalíticas devem exercer controle de como seus psicanalistas estão
atuando. Como vimos, não há e nem pode haver regulamentação do governo a respeito da
prática psicanalítica, uma vez que esta varia de sociedade para sociedade.
Como você já deve ter notado, os seres humanos tendem a falar sobre seus problemas. É
bastante natural procurar alguém em quem possamos confiar quando nos deparamos com algum
problema em nossas vidas. Às vezes, podemos pedir conselhos, mas muitas vezes simplesmente
queremos nos sentir ouvidos e compreendidos.
Esta é a premissa básica da psicoterapia, a terapia ocorrerá ao fazer com que o cliente (ou
paciente) fale sobre seus problemas. O papel do psicoterapeuta, a depender das suas técnicas
de atendimento, é usar o relato do cliente para encontrar um alívio ao seu sofrimento.
Em algumas formas de terapia, a solução é dada como um método prático que o cliente pode
aplicar em sua vida. Por exemplo, em uma terapia “focada em solução”, os clientes são
orientados a mudar suas rotinas diárias. Isso acontece costumeiramente em vertentes do
comportamentalismo.
A psicanálise, ao contrário de muitas outras terapias, não tenta encontrar uma fórmula que pode
ser aplicada ao cotidiano do cliente para fundamentar uma solução. Em vez disso, busca a razão
que teria originado a queixa ou o sintoma.
Uma “solução”, em determinados tipos de psicoterapias, pode representar na verdade uma
mudança de atitude ou deixar de lado os traumas passados. Ou seja, cada terapia possui uma
própria orientação de tratamento, assim como uma própria definição de cura.
Isso significa, portanto, que não é fácil medir o sucesso de uma terapia. O que significa também
que não existe uma terapia melhor que outra, pois há muita subjetividade envolvida em termos de
quão melhor alguém se sente no decorrer da terapia. O que funciona bem para uma pessoa pode
não funcionar para outra (A psicanálise, porém, demonstra grande eficácia quando comparada a
outros métodos).
Reflexão pessoal: Como o fato de conversar com alguém já ajudou você? Pense em um
momento em que você enfrentou um problema difícil. Você falou com alguém sobre isso? Se sim,
isso ajudou? Por quê? Caso contrário, você gostaria de ter alguém para conversar?
Pode parecer óbvio, mas psicoterapia é diálogo e capacidade de ouvir. Na maioria das
psicoterapias (sem importar a qual linha pertença) o tratamento ocorre em um ambiente
individual, no qual o terapeuta e o cliente discutem os problemas do cliente. O espaço em si,
como veremos em lições futuras, pode ser inclusive a internet, como uma chamada de áudio.
Independentemente do lugar onde ocorram as sessões, as pessoas procuram terapia por muitas
razões. Algumas pessoas lutam com sintomas de mazelas mentais que trazem enorme
sofrimento, como a depressão. Outras, lidam com situações muitas vezes indescritíveis, como a
ansiedade ou a fobia. Outros não têm um problema explícito, mas podem estar achando a vida
difícil, chata, triste ou mesmo sem sentido.
Há casos ainda que se repetem frequentemente nas clínicas, trazendo o retorno de elementos
conhecidos da cultura social. Por exemplo, você já deve ter lido a respeito de pessoas que entram
na casa dos quarenta ou cinquenta anos e sofrem com a chamada “crise de meia idade”. No
decorrer de sua profissão de psicanalista, você verá que casos assim são frequentes.
A psicoterapia pode ajudar essas pessoas a entenderem como chegaram à sua situação atual na
vida e também pode ajudá-las a decidir qual direção irão tomar dali em diante.
O foco do psicoterapeuta (e da terapia em si) deve ser o bem-estar e a saúde mental do cliente.
O cliente chegará sempre com uma demanda. Isto é, dirá ao terapeuta o que lhe aflige e causa
mal-estar. Nesse momento, o psicanalista deve entender a demanda e nortear o cliente para um
entendimento.
O psicanalista não deve dar conselhos de qualquer natureza. Deve, em vez disso, fazer com que
o próprio cliente entenda o que está errado e o que traz insatisfação, tentando restabelecer o
bem-estar. Veremos em aulas futuras exatamente o que acontece numa sessão de psicanálise.
Veremos futuramente no decorrer do curso que um dos aspectos mais fundamentais para que a
terapia tenha sucesso é a relação entre o terapeuta e o cliente. Em psicanálise chamamos as
manifestações dessa relação de “transferência“. Em termos práticos, trata-se da confiança que o
cliente deposita no terapeuta.
Clientes que confiam em seus terapeutas têm altíssimas chances de obterem exito nas terapias,
enquanto aqueles que possuem algum tipo de desconforto ou desconfiança quase nunca obtêm
resultados. O autor Frank, J. D. (1973), em seu livro Persuasion and healing (Persuasão e cura)
descreve a importância dessa relação, cuja finalidade é levar o cliente ao entendimento de seu
sintoma através de suas próprias interpretações.
Deve-se estabelecer mutuamente o objetivo da terapia
O objetivo da terapia deve ser estabelecido pelo terapeuta com o cliente. A partir das demandas
trazidas, o terapeuta orientará o rumo da terapia. A demanda trazida pelo cliente geralmente é
também o objetivo da terapia. Ou seja, um cliente que chegue à clínica se queixando de
ansiedade, busca, evidentemente, alívio para a ansiedade.
No entanto, nem sempre a demanda definirá de forma clara o objetivo, sendo papel do terapeuta,
portanto, definir primariamente um objetivo que será compartilhado com o cliente no decorrer das
sessões.
O importante é que o objetivo seja sempre definido, pois isso evita qualquer mal-entendido entre
terapeuta e cliente. Há clientes que não entendem exatamente como a terapia funciona e podem
acabar gerando expectativas irreais a respeito dos resultados. Por isso é importante que o
terapeuta deixe bem claro quais serão os objetivos da terapia, ou seja, o que o cliente pode
esperar. Veremos no decorrer do curso como os objetivos devem ser definidos.
O(A) terapeuta nunca deve analisar a queixa ou os relatos do cliente sob qualquer tipo de viés de
ética ou moral. Não cabe ao terapeuta analisar se as atitudes do cliente são moralmente corretas
ou não. Isso significa, portanto, que não é papel do terapeuta dizer se o cliente está certo ou
errado. Como veremos no decorrer do curso, a psicanálise não está sujeita a valores morais, o
que significa que o psicanalista também não deve estar.
É comum, dependendo da linha terapêutica adotada, que o terapeuta estipule uma duração em
dias, semanas ou até mesmo meses para a terapia. Isso é, na verdade, uma consequência das
demandas modernas. O paciente sente a necessidade de saber por quanto tempo precisará ir ao
terapeuta. Espera que haja um prazo para a solução de sua queixa.
Veremos que, embora o tratamento com psicanálise possa levar meses (e até mesmo anos em
muitos casos), há a possibilidade de o psicanalista se adaptar ao estilo de atendimento das
psicoterapias breves. No decorrer do curso, aprenderemos que cabe a você escolher qual estilo
adotará durante a carreira, uma vez que tanto o método tradicional quanto o contemporâneo
apresentam resultados.
Por mais interessante que seja o relato de um cliente, o terapeuta nunca deverá comentar a
respeito dele com outras pessoas. A confidencialidade é um dos pontos mais importantes das
terapias. No geral, as pessoas só buscam um(a) terapeuta quando estão 100% certas de que
poderão falar tudo o que precisam.
Caso não se sinta à vontade, o cliente nunca irá conseguir relatar o que realmente desperta sua
angústia. Tudo o que um cliente diz deve ficar somente entre cliente e terapeuta, ao menos na
psicanálise é essencial que seja assim. Exploraremos mais sobre a ética na psicanálise no
decorrer do curso.
O terapeuta deve trabalhar sob código de ética da sua profissão
Embora o terapeuta não exerça juízo moral ou ético, deve trabalhar sob o código de ética de sua
profissão. O instituto Somata disponibiliza o código de ética a ser seguido por seus psicanalistas
no fim do curso. É importante que, enquanto estiver exercendo a ocupação de psicanalista, você
esteja sempre filiado a algum órgão que o regulamente.
Isso irá garantir segurança para você e também para seus clientes, portanto pertencer a uma
sociedade de psicanalistas é fundamental. Ao fim do curso você será convidado a se juntar ao
registro de Psicanalistas do Instituto Somata e também do International Psychoanalysis
Council.
Em essência, a psicanálise (ou psicoterapia psicanalítica) pode ser descrita como um método de
psicoterapia que explora o conteúdo da mente inconsciente. Quando você se depara com a
psicanálise pela primeira vez, poderá achar que alguns conceitos são estranhos. No entanto, à
medida que você aprende sobre as teorias subjacentes e as maneiras pelas quais elas se
reúnem, você vai entendendo tudo com clareza.
Nesta aula você aprenderá o que um(a) psicanalista deve levar em consideração para que possa
praticar a psicanálise clínica.
Nossas mentes são movidas por duas energias psíquicas que só podem ser transferidas e nunca
destruídas.
Isto é, todo o nosso pensamento (e comportamento) é fruto dessas energias psíquicas. No
decorrer do curso (e da profissão) vamos nos referir a essas energias psíquicas como impulsos.
A primeira energia é chamada de “Eros”, também conhecida como pulsão de vida ou libido. Aqui
é importante perceber que, embora a palavra “libido” seja frequentemente usada em conversas
cotidianas para se referir ao desejo sexual de uma pessoa, na psicanálise a “libido” tem um
significado muito mais amplo. Em nossos estudos, entenderemos a libido como “desejo pela
vida”.
A segunda pulsão que orienta nossas vidas é chamada de “Thanatos”, também é conhecido
como “pulsão de morte”. De acordo com Freud, todo ser humano sente, em maior ou menor grau,
os dois impulsos ao mesmo tempo.
Os seres humanos gostam de criar e dar vida, mas também sentem um certo fascínio pela morte.
Às vezes as pessoas podem se sentir compelidas a destruírem coisas ou até pessoas que são
importantes para elas mesmas. Isso acontece com todos.
No entanto, o ser humano não pode viver plenamente essas pulsões, pois isso não seria
socialmente aceito. O ser humano então, de maneira muito frequente, reprime as pulsões
desejantes a fim de evitar a angústia de sua realização poderia ocasionar.
Um adulto saudável emocionalmente é alguém que gerencia seus desejos básicos e canaliza
suas energias psíquicas em ações inócuas e socialmente aceitáveis.
Veremos futuramente que, dentre os mecanismos de defesa que todos nós utilizamos, está a
sublimação. Este mecanismo de defesa é comumente utilizado como forma de equilíbrio das
pulsões. Por exemplo, uma pessoa que tenha reprimido sua agressividade diante da frustração
de não ter podido discutir com o chefe, poderá se ver gritando contra adversários numa partida de
futebol. Isso seria um processo de sublimação perfeitamente aceito e tudo aconteceria a nível
inconsciente.
Em uma de suas cartas (Meu contato com Josef Popper – 1932), Freud explica que as pulsões
têm origem biológica:
Todo o fluxo de nossa vida mental e tudo o que se expressa em nossos pensamentos são
derivações e representações das pulsões multiformes que são inatas em nossa constituição
física.
Atualmente, o psicanalista Mark Solms tem mostrado o funcionamento de pulsões e atividades
oníricas através de estudos detalhados do cérebro humano, comprovando o que até então era
apenas teoria (Dreaming and REM sleep are controlled by different brain mechanisms –
2000). As pesquisas mostram que as pulsões são os representantes psíquicos dos imperativos
metabólicos e endocrinológicos do corpo, apoiando a sobrevivência do indivíduo e a reprodução
da espécie. O substrato cerebral central para a fonte do impulso libidinal é o hipotálamo medial,
que responde a sinais relativos ao estado do corpo e influencia os circuitos no tronco cerebral,
sistema límbico e prosencéfalo, tornando certos comportamentos e respostas mais ou menos
provável.
Leitura obrigatória do Módulo 1: MEU CONTATO COM JOSEF POPPER- LYNKEUS (1932) –
Freud
MEU CONTATO COM JOSEF POPPER- LYNKEUS (1932) NOTA DO EDITOR INGLÊS MEINE
BERÜHRUNG MIT JOSEF POPPER-LYNKEUS (a) EDIÇÕES ALEMÃS: 1932 Allgemeine
Nährpflicht (Viena), 15. 1932 Psychoanal. Bewegung, 4, 113-18. 1934 G.S., 12, 415-20. 1950
G.W., 16, 261-6. (b) TRADUÇÃO INGLESA: ‘My Contact with Josef Popper-Lynkeus’ 1942 Int. J.
Psycho-Anal., 23 (2), 85-7. (Trad. de James Strachey.) 1950 C.P., 5, 295-301. (Reimpressão da
anterior.) A presente tradução inglesa é uma versão corrigida da de 1950. Este artigo apareceu,
pela primeira vez, numa revista fundada sob a influência de Josef Popper (1838- 1921), em
número especial editado para comemorar o décimo aniversário de sua morte. Freud havia escrito
um artigo mais curto, em moldes semelhantes, dez anos antes, na própria ocasião da morte de
Popper (1923f). Pode-se encontrar uma explicação sobre o homenageado na Nota do Editor
Inglês que apresenta aquele artigo (Edição Standard Brasileira, Vol. XIX, pág. 323, IMAGO
Editora, 1976). As primeiras páginas do presente artigo proporcionam uma verdadeira sinopse de
toda a essência da teoria psicológica de Freud, escrita com clareza e precisão características.
MEU CONTATO COM JOSEF POPPER- LYNKEUS No inverno de 1899, meu livro sobre A
Interpretação de Sonhos (embora a página de rosto tivesse recebido a pós-data do novo século)
encontrava-se diante de mim, finalmente pronto. Essa obra foi produto de quatro ou cinco anos de
trabalho e sua origem não foi comum. Ocupando o cargo de professor conferencista de Novas
conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos - Sigmund Freud 126 doenças
nervosas, na Universidade, eu vinha tentando sustentar-me e a minha família, que crescia
rapidamente, exercendo a clínica médica entre os chamados ‘neuróticos’, tão numerosos em
nossa sociedade. Mas a tarefa se mostrou mais difícil do que eu imaginara. Os métodos usuais
de tratamento evidentemente ofereciam pouco ou nenhum auxílio: outros caminhos deviam ser
seguidos. E como haveria de ser possível ajudar de algum modo os pacientes, quando não se
conhecia nada de sua doença, nada das causas de seus sofrimentos ou do significado de suas
queixas? Assim sendo, procurei sequiosamente orientação e ensino junto ao grande Charcot, em
Paris, e junto a Bernheim, em Nancy; por fim, uma observação feita por meu mestre e amigo
Josef Breuer, de Viena, pareceu abrir uma nova perspectiva para a compreensão e o êxito
terapêutico. O fato é que essas novas experiências tornaram claro que os pacientes que
qualificávamos como neuróticos, em certa medida sofriam de distúrbios mentais e deviam, por
conseguinte, ser tratados por métodos psicológicos. Nosso interesse, portanto, voltou-se
necessariamente para a psicologia. A psicologia que vigorava naqueles tempos, nos cursos
acadêmicos de filosofia, tinha muito pouco a oferecer e absolutamente nada que servisse aos
nossos propósitos: tínhamos de descobrir, desde o início, tanto os métodos como as hipóteses
teóricas que os sustentassem. Assim, pus-me a trabalhar nesse sentido, primeiramente em
colaboração com Breuer e, depois, independentemente dele. No final, transformei em parte
inseparável da minha técnica solicitar a meus pacientes que me falassem, sem se criticarem, tudo
o que lhes viesse à mente, conquanto se tratasse de idéias que não pareciam fazer sentido ou
que eram difíceis de referir. Quando concordaram com minhas instruções, os pacientes
contavam-me seus sonhos, entre outras coisas, como se fossem coisa da mesma espécie que os
seus demais pensamentos. Isto era evidente indicação de que eu devia atribuir tanta importância
a esses sonhos quanto a outros fenômenos inteligíveis. Não eram, porém, compreensíveis, e sim
estranhos, confusos, absurdos: tais como os sonhos, de fato, os quais, por essa mesma razão,
eram condenados pela ciência como uma espécie de repuxões fortuitos e absurdos do órgão da
mente. Se meus pacientes tinham razão — e pareciam estar apenas repetindo antigas crenças
mantidas, durante milhares de anos, por pessoas sem bases científicas —, eu me encontrava
perante a tarefa de interpretar sonhos numa forma que pudesse resistir às críticas científicas. No
início, eu, a respeito dos sonhos dos meus pacientes, naturalmente entendia não mais do que
esses mesmos sonhadores. Contudo, aplicando a esses sonhos, e, mais especialmente a meus
próprios sonhos, o método que eu já utilizara para o estudo de outras construções psicológicas
anormais, consegui responder à maior parte das questões que se podia levantar numa
interpretação de sonhos. Havia muitas questões: Com que sonhamos? Por que sonhamos? Qual
a origem de todas as características estranhas que diferenciam os sonhos da vida desperta? — e
muitas outras questões mais. Algumas das respostas puderam ser dadas com facilidade e vieram
a confirmar pontos de vista que já haviam sido apresentados; outras, porém, envolviam hipóteses
completamente novas, referentes à estrutura e ao funcionamento do aparelho da mente. As
pessoas sonham com as coisas de que a mente se ocupou durante as horas da vida desperta. As
pessoas sonham a fim de apaziguar impulsos que ameaçam perturbar o sono e a fim de poderem
dormir. No entanto, por que se tornou possível aos sonhos apresentarem aparência tão estranha,
tão confusamente absurda, em contraste tão evidente com o conteúdo do pensamento desperto,
apesar de tratarem do mesmo material? Não podia haver dúvida de que os sonhos eram apenas
um subtítulo de um processo racional de pensamento e podiam ser Novas conferências
introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos - Sigmund Freud 127 interpretados, isto é,
traduzidos para um processo racional. O que precisava ser explicado era, contudo, a distorção
que a elaboração onírica efetuara sobre o material racional e inteligível. A distorção onírica era o
mais profundo, o mais difícil problema da vida onírica. E o que a esclareceu foi a noção segundo
a qual os sonhos formavam uma classe em pé de igualdade com outras formações
psicopatológicas e se revelavam, por assim dizer, como psicoses normais dos seres humanos.
Isso porque nossa mente, esse precioso instrumento por intermédio do qual nos mantemos vivos,
não constitui uma unidade pacificamente independente. Antes, pode ser comparada a um Estado
moderno no qual uma plebe, sedenta de prazer e de destruição, tem de ser reprimida à força por
uma classe superior mais prudente. Todo o fluxo de nossa vida mental e tudo o que se expressa
em nossos pensamentos são derivações e representações dos instintos multiformes que são
inatos em nossa constituição física. Mas nem todos esses instintos são igualmente suscetíveis de
serem orientados e educados e nem todos eles têm igual facilidade para se ajustarem às
exigências do mundo externo e da sociedade humana. Diversos deles conservam sua natureza
primitiva, ingovernável, irrefreável; se os deixássemos à solta, infalivelmente nos levariam à ruína.
Conseqüentemente, aprendendo pela experiência, desenvolvemos em nossa mente organizações
que, sob a forma de inibições, se opõem às manifestações diretas dos instintos. Todo impulso
com caráter de desejo, que surge das fontes de energia instintual, deve ser submetido ao exame
das mais altas instâncias de nossa mente e, não sendo aprovado, é rejeitado e impedido de
exercer influência sobre nossos movimentos — isto é, de ser posto em execução. Realmente são
muitas as vezes em que esses desejos são proibidos até mesmo de ingressar na consciência,
que, habitualmente, não chega a tomar conhecimento da existência dessas fontes instintuais
perigosas. Descrevemos esses impulsos como estando reprimidos, do ponto de vista da
consciência, sobrevivendo apenas no inconsciente. Se aquilo que está reprimido empenha-se, de
alguma forma, por obter ingresso à consciência ou ao movimento, ou a ambos, já não estamos
mais normais: nesse ponto, emerge toda a gama de sintomas neuróticos e psicóticos. A
manutenção das inibições e repressões necessárias exige de nossa mente um grande dispêndio
de energia, do qual ela se alivia com satisfação. Uma boa oportunidade para isso parece surgir à
noite, através do estado de sono, pois o sono implica uma cessação de nossas funções motoras.
A situação parece segura e a severidade de nossa força policial interna pode, portanto, ser
relaxada. Como não se pode ter certeza, ela não é retirada por completo: possivelmente o
inconsciente jamais dorme, em absoluto. E, então, a redução da pressão sobre o inconsciente
reprimido produz seu efeito. Dele originam-se desejos que durante o sono poderiam encontrar
aberta a porta de entrada para a consciência. Se chegássemos a conhecê-los, ficaríamos
aterrorizados tanto por seus temas como por sua falta de freios e, na verdade, pela mera
possibilidade de sua existência. No entanto, isto só acontece raramente, e, quando acontece,
acordamos o mais depressa possível, em estado de medo. Mas, via de regra, nossa consciência
não experimenta o sonho como ele realmente se passou. É verdade que as forças inibidoras (a
censura de sonhos, conforme as denominamos) não estão inteiramente despertas, outrossim não
dormem por completo. Elas exerceram uma influência sobre o sonho enquanto este lutava para
encontrar expressão mediante palavras e imagens, eliminaram aquilo que era mais censurável,
modificaram outras partes do sonho, até se tornarem irreconhecíveis, desfizeram conexões reais
enquanto introduziam conexões falsas, até que a fantasia plena de desejos, franca porém brutal,
que estava por trás do sonho, transformou-se no sonho manifesto, tal como dele nos lembramos:
mais ou menos confuso, quase sempre estranho e incompreensível. Assim, o sonho (ou a Novas
conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos - Sigmund Freud 128 distorção
que o caracteriza) é a expressão de uma conciliação, é a evidência de um conflito entre impulsos
e tendências reciprocamente incompatíveis de nossa vida mental. E não nos esqueçamos de que
o mesmo processo, a mesma influência mútua de forças, que explica os sonhos de uma pessoa
normal, nos possibilita compreender todos os fenômenos da neurose e da psicose. Devo pedir
desculpas se até aqui falei tanto a respeito de mim mesmo e de meu trabalho relativo aos
problemas do sonho; mas isto foi um preliminar necessário para o que vem a seguir. Minha
explicação da distorção onírica parecia-me nova: em parte alguma eu encontrara qualquer coisa
parecida. Anos depois (já não consigo lembrar quando), encontrei o livro de Josef Popper-
Lynkeus Phantasien eines Realisten. Uma das histórias deste livro tinha como título ‘Träumen wie
Wachen’ [‘Sonhar Acordado’], e não podia deixar de suscitar meu mais profundo interesse. Havia
nele a descrição de um homem que podia gabar-se de jamais ter sonhado qualquer coisa
absurda. Seus sonhos podiam ser fantásticos, como contos de fadas, mas não eram tão
desprovidos de concordância com o mundo desperto, que fosse possível dizer terminantemente
que ‘eram impossíveis ou absurdos em si mesmos’. Traduzindo para a minha forma de expressar,
isto significa que, no caso desse homem, não ocorria distorção onírica; o motivo apresentado
para a ausência desta explicava ao mesmo tempo o motivo de sua ocorrência. Popper deu ao
homem uma compreensão interna (insight) completa dos motivos de sua peculiaridade. Fê-lo
dizer: ‘A ordem e a harmonia reinam tanto em meus pensamentos como em meus sentimentos, e
esses dois não lutam entre si… Eu sou um só e indiviso. Outras pessoas estão divididas e suas
duas partes — vigília e sonho — estão quase permanentemente em guerra uma com a outra.’ E
ainda, quanto à interpretação dos sonhos: ‘Certamente que essa não é uma fácil tarefa; mas com
um pouco de atenção por parte daquele que sonha, deve sem dúvida alcançar êxito. — Você
pergunta por que é que na sua maioria não alcança êxito? Em outros como você, sempre parece
haver algo que jaz oculto em seus sonhos, algo de impuro num sentido especial e mais elevado,
uma certa qualidade secreta em seu ser que é difícil de acompanhar. E eis por que seus sonhos,
tão amiúde, parecem estar destituídos de significado ou mesmo ser absurdos. Mas no sentido
mais profundo não é isso de modo algum o que ocorre; realmente, não pode ser assim
absolutamente — pois é sempre o mesmo homem, quer esteja acordado, quer sonhando.’ Ora,
se deixarmos de lado a terminologia psicológica, era esta a mesma explicação da formação
onírica a que eu chegara com meu estudo dos sonhos. A distorção era uma conciliação, algo de
dissimulado havia na sua própria natureza, era um conflito entre pensamento e sentimento, ou,
como eu o formulara, um conflito entre o consciente e o reprimido. Onde não houvesse um
conflito desse tipo e não fosse necessária a repressão, os sonhos não poderiam ser estranhos
nem absurdos. O homem que sonhasse de modo não diverso do modo como pensa quando
acordado, teria garantido para si, segundo Popper, a própria condição de harmonia interna que,
na qualidade de reformador social, almejava na formação do corpo político. E se a ciência nos
informa que um homem assim, inteiramente isento de maldade e falsidade, isento de repressões,
não existe e não poderia sobreviver, podemos, não obstante, suspeitar que, na medida em que é
possível uma aproximação a semelhante ideal, este encontrou sua concretização na pessoa do
mesmo Popper. Dominado pela emoção de encontrar tamanha sabedoria, comecei a ler todas as
suas obras — seus livros sobre Voltaire, sobre religião, sobre guerra, sobre a provisão universal
da subsistência, etc. — até haverse formado nitidamente diante de meus olhos uma imagem
desse grande homem sincero, que foi um pensador e crítico, e, ao mesmo tempo, um afetuoso
humanitário e reformador. Refleti muito a respeito dos direitos do Novas conferências
introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos - Sigmund Freud 129 indivíduo, que ele
advogava, e a que com satisfação teria dado meu apoio, não estivesse eu sido refreado pela idéia
de que nem o processo da Natureza nem os fins da sociedade humana justificavam muito essas
reivindicações. Um especial sentimento de simpatia atraía-me a ele, de vez que também ele,
evidentemente, tivera uma experiência dolorosa da amargura da vida de um judeu e do vazio de
ideais da civilização de nossos dias. No entanto, nunca o vi pessoalmente. Ele sabia de mim
através de conhecidos comuns e, certa vez, tive oportunidade de responder a uma carta sua, na
qual me pedia algumas informações. Mas nunca o procurei. Minhas inovações em psicologia
tinham-me separado de seus contemporâneos, e especialmente daqueles mais idosos:
muitíssimas vezes, quando me aproximava de um homem que eu tinha venerado a distância,
viame repelido, digamos assim, por sua falta de compreensão daquilo que se tornara toda a
minha vida para mim. E, afinal, Josef Popper tinha sido um físico: fora amigo de Ernst Mach. Eu
desejava ardentemente que a feliz impressão de nossa concordância quanto ao problema da
distorção onírica não viesse a ser desfeita. Assim aconteceu que adiei a ocasião de visitá-lo, até
que se tornou tarde demais, e agora o que posso fazer é saudar seu busto nos jardins em frente
ao nosso Rathaus.