Dossiê Teologia e Ecologia
Dossiê Teologia e Ecologia
Dossiê Teologia e Ecologia
Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem
sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis
que rastejam sobre a terra”. E Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o
criou, homem e mulher ele os criou (Gn 1,26-27).
Adonai plantou um jardim em Éden, no oriente, e aí colocou o homem que modelara. [...]
Adonai tomou o homem e o colocou no jardim de Éden para o cultivar e o guardar (Gn 2,8.15).
Notável é que, ao criar as pessoas humanas não se diga como para os outros animais, que são
criados segundo a sua espécie (cf. Gn 1,21.24.25). Do ser humano predica-se que é criado “à
nossa imagem, como nossa semelhança”, isto é, de Deus (cf. Gn 1,26). Quando da criação dos
animais os pronomes possessivos referiam-se a eles próprios, ao passo que na criação humana os
pronomes possessivos referem-se a Deus. Isso significa que os seres humanos não têm o ponto
de referência em si mesmos, mas em Deus. A espécie humana é feita para remeter a Deus. As
demais criaturas são referidas à terra, ao ar e ao mar. [...] Mais importante que qualquer obra
anterior, a criação do homem representa uma decisão divina sem precedentes. O agir exclusivo e
característico de Deus, indicado pelo verbo “bara”, alcança significado pleno: usado por três
vezes em Gn 1,27 ressalta que nessa criatura o agir criador de Deus atinge o vértice. Ao chegar à
criação do homem, a palavra de Deus não é mais uma ordem, mas enuncia uma resolução:
“Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança” (Gn 1,26). O escrito javista, por
sua vez, refere-se quase exclusivamente à origem humana. A criação propriamente dita aparece
somente como terminus a quo. Encontramo-nos numa perspectiva decididamente
antropocêntrica, em que o liame entre homem e terra, é vital. Mas há, na pessoa humana, algo
absolutamente original e diferente que é o sopro vital, que a torna ser vivente2.
Contudo, está peculiaridade do ser humano não o coloca “acima” das criaturas,
mas ao “centro” de uma teia de relações, com a responsabilidade de cultivar e guardar
os bens agraciados pelo Criador. Essa “teia” é costurada por cinco fios relacionais:
Relacionalidade criatural com Deus Criador: “Adonai chamou o homem: onde estás?” (Gn 3,9).
Relacionalidade esponsal: “Por isso o homem deixa seu pai e sua mãe, une-se à sua mulher, e
eles se tornam uma só carne” (Gn 2,24).
2
Mariano WEIZENMANN. “Leitura ecológica e algumas leituras teo(eco)lógicas de Gn 1-11”. In TQ
Teologia em Questão n. 5(2004), Taubaté, p. 31-32.
3
Relacionalidade com o mundo animal: “Adonai modelou então, do solo, todas as feras
selvagens e todas as aves do céu e as conduziu ao homem para ver como ele as chamaria: cada
qual deveria levar o nome que o homem lhe desse” (Gn 2,19) 3.
Por sua natureza terrena (adamá = Adão) e capacidade criativa (hawá = Eva), o
ser humano é, ao mesmo tempo, imagem de Deus e solidário com todas as demais
criaturas. A exegese de Bereshit e o desenvolvimento hermenêutico da antropologia
bíblica ajudaram a aprofundar o sentido desta narrativa, superando os riscos de uma
interpretação unilateral do “domínio” humano sobre as criaturas:
O modo de receber o dom e exercer a missão requer da pessoa humana fidelidade a si mesma
e a Deus, para cuidar da criação. Isso significa mantê-la na sua bondade original, desenvolver
suas potencialidades e, em comunhão com o Senhor, efetuar a própria realização. Por isso
mesmo o fiel ora: “Deus dos Pais, Senhor de misericórdia, que tudo criaste com tua palavra e
com tua sabedoria formaste o homem para dominar as criaturas que fizeste, governar o mundo
com justiça e santidade e exercer o julgamento com retidão de vida, dá-me a sabedoria contigo
entronizada e não me excluas do número de teus filhos” (Sb 9, 1-4).
Ao dom divino como proposta corresponde a tarefa humana feita resposta. Ei-la, pois,
explicitada em três dimensões:
Para dominar as criaturas feitas por Deus – Aqui nos deparamos com uma clara referência
a Gn 1,26-28. Criado à imagem de Deus, o homem pode sujeitar toda a terra e dominar
sobre animais, peixes e aves. Mas seu domínio não se estende sobre seus semelhantes,
porque somente Deus é Senhor do homem. Submeter o próprio semelhante equivaleria a
um pecaminoso abuso de poder que não escaparia ao castigo divino.
Para governar o mundo com justiça e santidade – A genuína autoridade provém de Deus e,
por essa razão, dos governantes exige-se uma conduta perfeita em ordem a Deus
(santidade), tributando-lhe o culto devido e sintonizando-se com sua vontade (justiça).
Para exercer o julgamento com retidão de vida – Se Deus julga retamente, também o
homem (porque criado à imagem de Deus e porque agindo com um poder derivado de
Deus e exercido em seu nome) deve atuar um juízo reto, de acordo com as leis divinas4.
Como acenamos antes, a Torah determina o shabat a cada sete dias, bem como
o shabat a cada sete semanas de anos:
3
Cf. idem, ibidem.
4
Idem, p. 36-37.
5
Cf. Leonardo BOFF. Ecologia – grito da terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004, p. 92-
115.
4
Durante seis anos semearás o teu campo; durante seis anos podarás a tua vinha e recolherás os
produtos dela. Mas no sétimo ano a terra terá seu repouso sabático, um sábado para o Senhor
Deus: não semearás o teu campo e não podarás a tua vinha, não ceifarás as tuas espigas, que
não serão reunidas em feixes, e ao vindimarás as tuas uvas das vinhas, que não serão podadas.
Será para terra um ano de repouso (Lv 25,3-5).
Contarás sete semanas de anos, sete vezes sete anos, isto é, o tempo de sete semanas de anos
– quarenta e nove anos. No sétimo mês, no décimo dia do mês, fará ressoar o toque da
trombeta; no dia das expiações (yom kippur) fareis soar a trombeta (shofar) em todo o país.
Declarareis santo o qüinquagésimo ano e proclamareis a libertação de todos os moradores da
terra. Será para vós um jubileu: cada um de vós retornará a seu patrimônio, e cada um de vós
voltará para seu clã. O qüinquagésimo ano será para vós um ano jubilar: não semeareis, nem
ceifareis as espigas que não forem reunidas em feixe; não vindimareis as cepas que tiverem
brotado livremente. O jubileu será para vós coisa santa e comereis o produto dos campos (Lv
25,8-12).
A redistribuição dos terrenos segundo o número de famílias, garantindo sua subsistência. É uma
modalidade de reforma agrária (cf. Lv 25,13-17).
A segurança e o sustento, com base na produção do sexto ano (anterior ao Ano Jubilar). Trata-se do
princípio da segurança alimentar (cf. Lv 25,18-22).
O resgate das propriedades, com base no senhorio absoluto de Deus sobre a terra (Lv 25,23-34). Se
Deus é o efetivo proprietário, o povo é hóspede e beneficiário. Assim, a Torah estabelece regras
para que as pessoas recuperem a terra em vista do sustento, favorecendo o resgate das posses
eventualmente negociadas por carência financeira ou perdidas como pagamento das dívidas.
Quando necessário, o Ano Jubilar previa, inclusive, o perdão das dívidas (cf. Lv 25,24). Por isso foi
chamado “o ano da graça” (Lc 4,19).
O resgate das pessoas, mediante o perdão dos débitos financeiros e laborais, no caso de
estrangeiros e servos (cf. Lv 25,35-55). A Torah determina procedimentos que respeitam a
dignidade de israelitas e não-israelitas, favorecem transações justas e previnem abusos de poder. É
o embrião judaico dos Direitos Humanos.
acaso, nem se destina à mera utilidade dos humanos, mas constitui um louvor vivo à
glória do Criador:
Adonai me criou, primícias de sua obra, de seus feitos mais antigos. Desde a eternidade fui
estabelecida, desde o princípio, antes da origem da terra. Quando os abismos não existiam, eu
fui gerada, quando não existiam os mananciais das águas. Antes que as montanhas fossem
implantadas, antes das colinas, eu fui gerada; ele ainda não havia feito a terra e a erva, nem os
primeiros elementos do mundo. Quando firmava os céus, lá estava eu, quando traçava a
abóbada sobre a face do abismo; quando condensava as nuvens do alto, quando se enchiam as
fontes do abismo; quando punha um limite ao mar; e as águas não ultrapassavam o seu
mandamento, quando assentava os fundamentos da terra. Eu estava junto com ele como
mestre-de-obras, eu era o seu encanto todos os dias, todo o tempo brincava em sua presença:
brincava na superfície da terra, encontrava minhas delícias entre os homens (Prov 8,22-31).
O texto conclui com toques lúdicos e estéticos, remetendo ao segundo olhar, atento à
beleza do cosmos. Por sua vez, Yeshua ben-Sirac diz:
Por sua Palavra o Senhor fez suas obras, e seu decreto se realiza segundo sua vontade. O sol
que brilha contempla todas as coisas e a obra do Senhor está cheia da sua glória. Os Santos do
Senhor não são capazes de contar todas as suas maravilhas, o que o Senhor onipotente
estabeleceu firmemente para que tudo subsista em sua glória. Ele sondou as profundezas do
abismo e do coração humano, penetrou os seus segredos. Porque o Altíssimo possui toda a
ciência e vê o sinal dos tempos. (...) Todas as coisas formam pares, uma diante da outra e ele
não fez nada incompleto. Uma coisa consolida a excelência da outra: quem poderá fartar-se de
contemplar a sua glória? (Eclo 42,15-18.24-25).
Naturalmente vazios foram todos os homens que ignoraram a Deus e que, partindo dos bens
visíveis, não foram capazes de conhecer Aquele que é; nem, considerando as obras, de
reconhecer o seu Artífice. Mas foi o fogo, ou o vento, ou a água impetuosa, ou os luzeiros do
céu – príncipes do mundo – que eles consideraram como deuses! Se, fascinados por sua beleza,
os tornaram deuses, aprendam quanto lhes é superior o Senhor dessas coisas, pois foi a própria
fonte da beleza que as criou. E se os assombrou sua força e atividade, calculem quanto mais
poderoso é Aquele que as formou; pois a grandeza e a beleza das criaturas fazem, por analogia,
contemplar o seu Autor (Sab 13,1-5).
Aos piedosos e justos, porém, o Deus Criador concede a sabedoria, para que
adquiram a ciência da criação:
Em suas mãos estamos nós, nossas palavras, toda a inteligência e a perícia do agir. Ele me deu
um conhecimento infalível dos seres para entender as estrutura do mundo, a atividade dos
elementos, o começo, o meio e o fim dos tempos, as alternâncias dos solstícios, as mudanças
de estações, os ciclos do ano, a posição dos astros, a natureza dos animais, a fúria das feras, o
poder dos espíritos, os pensamentos dos homens, a variedade das plantas, as virtudes das
raízes. Tudo conheço, oculto ou manifesto. Pois a Sabedoria, artífice do mundo, me ensinou
(Sab 7,16-22).
Embora tais regras nem sempre tenham um motivo objetivo (pois não se
baseiam nas modernas considerações sanitárias e nutricionais), servem para manter a
sacralidade da vida, classificando o que deve ser preservado ou evitado. Com a
diáspora do povo judeu pela Europa, Ásia, costa do Mediterrâneo, Américas e outras
partes do mundo, os rabinos tiveram que investigar as normas do Talmud, pois as
plantas, aves e animais citados (com suas respectivas classificações) nem sempre
condizem com a flora e a fauna da região à qual os israelitas migravam.
Isto teve, pelo menos, duas conseqüências: a) o desenvolvimento de estudos
biológicos, botânicos e anatômicos das espécies, para que se pudesse aplicar a elas as
antiqüíssimas regras do Talmud; b) a consolidação de uma hermenêutica criativa,
aberta, da Torah e do Talmud, que nos permitem – hoje e no futuro – aplicar seus
princípios básicos às recentes questões nutricionais, ecológicas, éticas e ambientais . 7
como hermenêutica interior da mesma Torá, embora suas interpretações sigam mais a
bússola da inefabilidade, do que da literalidade.
Ein-Sof não é o nome de Deus, mas o termo que significa seu completo ocultamento. Não é,
pois, correto dizer “Ein-Sof, louvado seja” ou “possa Ele ser bendito” porque Ele não pode ser
bendito por nossos lábios9.
7
Cf. Adin STEINSALTZ. O Talmud essencial. Rio de Janeiro: A. Koogan, 1989, p. 255-285.
8
Cf. Marcial MAÇANEIRO. Esoterismo e fé cristã. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 49-63.
9
Baruch Kosover em Amud ha-Avodah. Apud Gershom SCHOLEM. Cabala. Rio de Janeiro: A. Koogan,
1989, p. 82.
8
b) O exílio da Shekiná
c) As dez sefirot
ou “regiões”:
10
Sefirot é a forma plural de sefirá = esfera, região ou patamar, em hebraico.
9
1. Coroa – Keter
2. Sabedoria – Hokmah
3. Inteligência – Binah
[Conhecimento – Daat: a séfira secreta]
4. Misericórdia – Hesed
5. Julgamento – Din ou Ghevurah
6. Beleza – Tíferet
7. Eternidade – Netsah
8. Majestade – Hod
9. Fundamento – Yessod
10. Reino – Malkut
11
Algumas obras da Cabala reproduzem o esquema visual das sefirot presente no Zohar. Entre elas,
Shaaré orah [Pórticos de luz], de Josef Gikatilla, Mantova, 1561; e Pardes rimonim [O pomar das romãs]
de Moshe Cordovero, Cracóvia e Novygdvar, 1591.
10
Antes que qualquer forma tivesse sido criada, Deus estava só; sem forma e semelhante a nada.
E porque o homem não é capaz de conceber Deus como Ele realmente é, não lhe é permitido
representá-Lo, nem em pintura, nem por Seu Nome, nem inclusive por um ponto. Mas depois
de ter criado o homem, Deus quis ser conhecido por Seus atributos: como o Deus da
Misericórdia, o Deus da Justiça, o Deus Todo-Poderoso, o Deus dos Exércitos e Aquele-que-é. É
só pelo conhecimento de Seus atributos que podemos dizer “toda a terra está cheia da Sua
glória”. Tampouco Ele deve ser comparado ao homem, que vem do pó e está destinado à
morte. Ele está acima de todas as criaturas e é maior que todos os atributos. Nem atributo,
nem imagem, nem corpo: assemelha-se mais às águas, sem forma e sem limites. Entretanto,
quando as águas estão espalhadas na terra, somos capazes de concebê-las e falar delas sob
variadas formas: primeiro, há a fonte; daí, o rio que brota dela e espalha suas águas sobre a
terra. Depois, a bacia, dentro da qual fluem as águas, e que forma o mar. Então, o mar, de onde
as águas correm em sete canais, fazendo dez formas no total. Mas, caso essas formas se
rompam, as águas escapariam e retornariam à sua fonte original, enquanto as formas em que
estavam contidas cairiam em ruínas.
Dessa maneira foram criadas as dez sefirot. A primeira sefirá, a Coroa, é a fonte de onde brilha
uma luz sem fim, e que chamamos O Infinito ou Ein-Sof, já que não temos meios à nossa
disposição para compreendê-lo. Então vem um vaso tão concentrado quanto um ponto, como a
letra Yod; esta é a Fonte da Sabedoria (Hokma). Depois vem um vaso tão imenso quanto o mar;
este é a Inteligência (Binah), e nos dá o epíteto “Deus Inteligente”. Mas, entre a Sabedoria e a
Inteligência, Deus derramou Sua própria Substância, de modo que deste mar saem os sete
canais ou atributos: Misericórdia (Hesed), Justiça (Din), Beleza (Tíferet), Triunfo (Netsah), Glória
(Hod), Realeza (Malkut) e a Fundação (Yessod). Assim, podemos designar Deus como: o Grande,
o Misericordioso, o Forte, o Magnificante, o Deus da Vitória e Aquele-que-é o Fundamento de
todas as coisas12.
Cada uma das sefirot são como “esferas” ou “vasos” nos quais subsiste a
totalidade de Ein-Sof, agora manifesto por atributos intercomunicantes. Sendo assim,
todo o universo – estruturado por esta emanação – contém centelhas de Ein-Sof e
permanece potencialmente uno, tal qual Deus é Uno (Ehad) . 13
d) Os quatro mundos
e) A árvore e o corpo
A árvore sefirótica – a distribuindo dos dez atributos como árvore invertida, de cima para baixo: as
raízes em Ein-Sof, o começo do tronco em Keter e os últimos ramos em Malkut. Este desenho de
árvore invertida tem um sentido místico: é a figura cabalista do mundo criado, com suas raízes em
Ein-Sof e sua ramagem em Malkut. Os ramos são conexos, descendo de três em três atributos.
Formam um caminho de cima para baixo, por onde desce (e sobe) a Shekiná – a Presença do
Altíssimo em exílio17.
15
Tendências panteístas do Zohar, como observa Gershon Scholem em As grandes correntes da mística
judaica, São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 247-251.
16
Cf. Gershon SCHOLEM, ibidem, p. 240-242. No Zohar: Revelações sobre o homem (Parte 1 – Idra
Rabba).
17
Uma figura medieval da árvore sefirótica está reproduzida em: Henri SEROUYA. La Cabala. Roma:
Mediterranée, 1989, p. 38.
12
O corpo sefirótico – outra distribuição das dez sefirot, mas à maneira de um corpo. Representa a
crença cabalista de que as “esferas” ou “atributos” formam o corpo de Adam Kadmon – o Homem
Primordial – que é a primeira expressão pela qual Ein-Sof pode ser percebido. Deste modo, a Cabala
faz coincidir o movimento criador das dez sefirot com o Homem Primordial que se mostra, então,
como uma espécie de demiurgo. Enquanto Ein-Sof permanece inefável (nem mesmo se lhe atribui
ser “criador” em sentido operativo) é Adam Kadmon, com seu corpo sefirótico, quem efetivamente
cria todas as coisas.
sefirot, então o corpo humano é também imagem e semelhança das dez sefirot. As
sefirot formam nossa estrutura ontológica; estão presentes em nossos membros e
potências interiores (intelecto, memória e vontade). 3) Já que as sefirot constituem
toda a realidade existente, dos mundos astrais à matéria, então o corpo humano por
elas formado é uma síntese de todos os elementos do cosmos . 19
f) Cabala e ecologia
Com este material denso e eclético – ora ébrio de poesia, ora sóbrio de
intelecção – a Cabala fornece aos seus seguidores uma teologia da criação, uma
hermenêutica da humanidade e do mundo e um código de comportamento que leva
em conta o corpo, a sexualidade e a alimentação; as relações afetivas e sociais; a
prece, o trabalho e o repouso; a administração do tempo; a relação com a terra, a
água, os vegetais e animais – já que todas as criaturas formam uma unidade místico-
21
20
Leia o “prólogo” de José de Unamuno à edição brasileira de textos seletos do Zohar. Cf. Ariel BENSION
(ed.). O Zohar – o livro do esplendor. São Paulo: Polar, 2006, p. 33-36.
21
Cf. Z’ev ben Shimon HALEVI. O trabalho do kabbalista. São Paulo: Siciliano, 1994.
14
“E Deus viu que tudo era bom”: esta exclamação se repete em cada dia da
criação, no relato do Gênesis. Assim a Bíblia nos recorda a bondade das obras de Deus,
para quem as criaturas, na sua diversidade, entoam um canto de louvor. Nesta
perspectiva, o relato das origens de Gênesis 1-2 não é um fóssil do passado, mas
sentido do presente e projeto para o futuro: ser “jardim” (pardes ou paradisum) é o
destino que o Criador deseja para a Terra. Já dizia Carlos Mesters: “O paraíso é como
que a maquete do mundo. É a planta de construção a ser realizada pelo empreiteiro
que é o ser humano, homem e mulher. É um projeto que desafia constantemente a fé
e a coragem do ser humano” . 22
Esses elementos aparecem na liturgia cristã do Oriente e do Ocidente: nos sacramentos, nos lucernários,
23
nas celebrações pascais, nos hinos mais solenes e no ritmo lunar do calendário litúrgico.
16
Sempre acontecem mal-entendidos quando passagens bíblicas são tiradas de seu contexto
histórico-tradicional e usadas para a legitimação de outros interesses. Por isso, temos que
atentar também para o relato javista da criação: Gn 2,15 fala do “jardim do Éden” que os
homens devem “cultivar e guardar”. O domínio da pessoa humana sobre a terra deveria, pois,
corresponder à atividade de um jardineiro que cultiva e preserva. De modo algum se fala de
cultura exaustiva e de exploração24.
c) O Cristo cósmico
como, no tempo de sua vida terrena, Jesus assumiu em seu corpo toda a humanidade;
na sua condição pascal, o mesmo Jesus recapitula em seu corpo escatológico toda a
Criação: “tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito” (Jo 1,3); “tudo nele
subsiste” (Col 1,17).
Cf. Jean-Michel MALDAMÉ. Cristo para o universo. São Paulo: Paulinas, 2005. Também: John HAUGHT.
25
O Dia do Senhor chegará como ladrão: os céus se desmancharão com estrondo; os elementos,
devorados pelas chamas, se dissolverão; e a terra, juntamente com suas obras, será consumida.
Se todo este mundo está fadado a ser desfazer, qual não deve ser a santidade do vosso viver e
da vossa piedade, enquanto esperais e apressais a vinda do Dia de Deus, no qual os céus,
ardendo em chamas, se dissolverão, e os elementos, consumidos pelo fogo, se fundirão? O que
nós esperamos, conforme Sua promessa, são novos céus e nova terra, onde habitará a justiça
(2Ped 3,10-13).
Eis a tenda de Deus com os humanos. Ele habitará com eles. Eles serão o seu povo; e ele – o
Deus-com-eles – será o seu Deus. Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos, pois nunca mais
haverá morte, nem luto, nem clamor, e nem dor haverá mais. Sim! As coisas antigas se foram.
[...] Eis que faço novas todas as coisas! (Ap 21,3-5).
Pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente. E não
somente ela. Mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos interiormente,
suspirando pela redenção do nosso corpo (Rm 8,22).
Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam por teu amor
e suportam enfermidades e tribulações.
Bem-aventurados os que as sustentam em paz,
que por Ti, Altíssimo, serão coroados.
No hino se cruzam as duas linhas, horizontal e vertical. Juntas formam um conhecido símbolo
da totalidade cósmica. O movimento inicial se dirige verticalmente para Deus: “Altíssimo,
onipotente e bom Senhor”. É a busca de transcendência, o sonho para cima. Mas Francisco logo
se dá conta de que não consegue cantar Deus, porque “nenhum homem é digno de sequer Te
mencionar”. Não se amargura nem se recolhe a uma atitude apofática. Volta-se então à
dimensão horizontal onde estão todas as criaturas, pois elas falam de Deus: “Louvado sejas,
meu Senhor, com todas as tuas criaturas”. Abre-se então à fraternidade horizontal e universal.
Canta as criaturas “porque de Ti, Altíssimo, são um sinal”. Se não podemos falar de Deus,
podemos falar das criaturas, marcadas pela presença de Deus e descobrindo a
sacramentalidade de todos os seres26.
Todos os elementos estão ordenados em pares, onde se combina o feminino com o masculino:
sol-lua, vento-água, fogo-terra. Todos esses casais são englobados pelo grande casal, Sol-Terra,
de cujo matrimônio cósmico derivam todos os demais pares. Inicia cantando o Sol, a quem
chama, por força de arquétipo, de Senhor [messor]. Mas como é também criado por Deus não
deixa de ser irmão [frate]. O mesmo dirá da Terra. Arquetipicamente Mãe [matre].
Teologicamente é irmã [sora]. Então dirá: “o Senhor, irmão Sol e a irmã Mãe Terra” 27.
26
Leonardo BOFF. Ecologia – grito da terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004, p. 290.
27
Idem. Os termos originais usados por Francisco – messor (senhor), frate (irmão), sora (irmã) e matre
(mãe) – são acréscimos didáticos nossos, conforme grafia dos códices medievais. Cf. Feliciano OLGIATI
(trad.). Gli scritti di Francesco e Chiara d’Assisi. Padova: Edizioni Messaggero, 1996, p. 163-164.
28
O Liber divinorum operum (Livro das obras divinas) é uma das principais obras de Hildegarda de
Bingen, ao lado do Scivias (contração do latim Scito vias domini: Conhece os caminhos do Senhor). A
composição dessas obras atravessou décadas: 1141-1151 para o Scivias; 1163-1174 para o Liber
divinorum operum. O livro Physica (também intitulado “Livro da medicina simples”) se interpõe a esses
dois, entre 1151-1158. Indicamos as seguintes traduções: ILDEGARDA DI BINGEN. Il libro delle opere
divine. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 2003. HILDEGARDA DE BINGEN. Scivias. Madrid: Editorial
Trotta, 1999.
20
- Hildegarda vê um ser divino, feito de energia ígnea (predomínio do elemento fogo). Ele é vermelho e
flamejante. Traz em si o universo, como dentro de um útero. O universo é representado como roda a
girar. O ser divino abraça este cosmos inteiro, envolvendo-o em sua energia ígnea. No centro da roda
cósmica Hildegarda vê uma figura humana de grandes medidas. A cabeça toca as nuvens, os pés tocam
os abismos, os braços se estendem à direita e à esquerda, alcançando as extremidades da terra. Ao
redor da figura humana estão vários círculos, também a girar: o círculo do ar seco, do ar úmido, das
águas e do éter. Mais acima estão as esferas celestes, com planetas e estrelas. Há também quatro
ventos que animam a esfera cósmica e tocam o homem. Cada vento é soprado por um animal: leão,
caranguejo, lobo e cervo.
- A harmonia do conjunto se constrói em torno do homem: tudo se volta à figura humana no centro da
esfera, que toca o Norte, o Sul, o Leste e o Oeste. Fraco na sua constituição - pois é carne - o ser humano
é grandioso pelo seu espírito e alma. Inteligente, é animado pelo Espírito de Deus. Dominando o centro
da esfera e tocando as extremidades do mundo, o homem sofre a influência dos elementos: ar úmido e
ar seco o circundam, as estrelas lhe enviam luz, as águas celestes o envolvem e os ventos o atravessam.
Nele todos os elementos se encontram e interagem. E mesmo assim, a figura humana é única: por sua
inteligência, tudo domina; por sua alma, tem uma dignidade maior que todas as demais criaturas.
- Embora afligido pelos elementos, ele é maior que os elementos. E embora pobre em sua carne, a luz
divina que nele habita brilha mais que os astros. Por ocupar o centro e receber o influxo de tudo, o ser
humano se conecta diretamente às energias interiores da roda cósmica: ele participa, assim, do
movimento e do equilíbrio do mundo. É no mundo que o ser humano experimenta a salvação divina,
ciente de que sua inteligência e agir afetam o ambiente vital.
O fato de que no centro da roda cósmica apareça a figura humana, indica que o homem se situa
dentro da estrutura do mundo, ou seja, ao centro. Pois ele – mais que qualquer outra criatura
vivente – é destinado a reinar. Sim, apesar do aspecto tão pequeno que quase provoca risos,
21
ele é grande por suas faculdades de alma. Tem a cabeça erguida e o corpo saudável. Seus pés
tocam a terra. Ele põe em movimento todos os elementos, grandes ou pequenos, e com a obra
de suas mãos – direita ou esquerda – ele pervade o universo. E faz tudo isto em virtude do
homem interior que o capacita a tais obras. As potências da alma que circundam o corpo
chegam às alturas acima do homem, irradiando-se pelo mundo inteiro. Aquele que crê,
contemplando com os olhos carnais as criaturas ao seu redor, enxerga Deus em todas as partes,
reconhecendo-O Senhor sobre todas as criaturas, porque é Ele o criador delas29.
Ela também explica o simbolismo do leão, caranguejo, lobo e cervo, donde provêm os
ventos:
Estas cabeças de animais enviam seu sopro para dentro da roda do mundo e sobre a figura
humana, para que, emitidos para fora, estes ventos mantenham o mundo em equilíbrio e
guardem o agir humano em vistas da salvação. De fato, o universo não existiria, nem o homem
poderia salvar-se, se ambos não fossem constantemente animados pelo sopro de tais ventos30.
Hildegarda joga com palavras e imagens: vento pode ser traduzido por
"sopro", "hálito vital" ou "ânimo". O leão simboliza o vento forte, que de longe faz
ouvir suas rajadas. O caranguejo retrata a variação, pois ele olha para um lado e anda
para outro. O lobo representa a confiança; e o cervo, a docilidade. Assim ela fala dos
quatro ventos que movem o globo terrestre e do fluir do ânimo humano: força,
variação, firmeza e docilidade. Há uma analogia entre os ventos do globo e os ventos
interiores do ser humano (os humores da alma). Assim Hildegarda se preserva de
deslizes teológicos: nem panteísmo confuso, nem maniqueísmo pessimista. A ordem
cósmica foi criada em vista da salvação: os elementos se interagem sob a providente
Sabedoria divina, para o bem de todas as formas de vida, cujo centro é ocupado pelo
ser humano.
Em outras duas obras – Physica e Causae et curae – Hildegarda discorre
sobre saúde, enfermidade e propriedades terapêuticas da natureza. Ela demonstra a
correspondência das criaturas, convicta da harmonia originária que agrega o universo:
assim como há um único plano de salvação para toda a humanidade, haveria uma
interação entre as diversas manifestações do mundo visível e invisível. Esta unidade
existe desde a criação e subsiste em toda a ordem cósmica. Debaixo da diversidade das
criaturas há uma "potência sutil" (subtilitas) que perpassa todos os corpos, dos astros
às plantas, relacionando os elementos, compondo as substâncias e dotando a natureza
de uma capacidade curadora. Localizar as "sutilezas da natureza" significa investigar a
arquitetura e as substâncias do universo criado, no qual Deus dispôs cada coisa
sabiamente, para sua glória e o bem humano. Iluminada pelo ensino bíblico,
Hildegarda crê que a natureza é boa, destinada por Deus a ser uma farmácia cujos
"frutos servem de alimento e as folhas de remédio" (Ez 47,12).
Hildegarda é considerada, em nossos dias, uma precursora da abordagem
holística do ser humano (Antropologia Integral) e da natureza (Ecologia Complexa). Sua
cosmovisão é dinâmica, num diálogo entre imanência e transcendência. Ela aponta
para as noções recentes de biocenose (comunidades orgânicas de seres vivos) e
ecossistema (sistemas de vida auto-organizantes e conexos), ao conceber a vida como
um movimento de esferas vitais e energéticas interligadas.
29
Hildegarda de Bingen, no Liber divinorum operum. Traduzimos aqui a edição Migne da obra, in
Patrologia Latina 197, coluna 761.
30
Idem, coluna 763.
22
Por este nome – ponto Ômega – designei um último pólo auto-subsistente de consciência,
bastante misturado ao Mundo para poder reunir em si, por união, os elementos cósmicos
chegados ao extremo de sua centração por arranjo técnico – e capaz, no entanto, por sua
natureza supra-evolutiva (ou seja, transcendente) de escapar à regressão fatal que ameaça (por
estrutura) toda a construção da matéria, do espaço e do tempo32.
31
Pierre TEILHARD DE CHARDIN. O meio divino. São Paulo: Cultrix, 1995. Também: O fenômeno humano. São
Paulo: Cultrix, 1995.
32
Comment je vois, parágrafo 20, 1948. Apud Peter SMULDERS. A visão de Teilhard de Chardin. Petrópolis:
Vozes, 1965, p. 107.
23
Jamais digas ó Homem, como dizem alguns: “A Matéria se desgastou; a Matéria está morta”.
Até o último instante dos séculos a Matéria será jovem e exuberante, resplandecente e nova
para quem quiser. Nunca mais repitas: “A Matéria está condenada, a Matéria é má”. Pois veio
alguém que disse: “Bebereis veneno e ele não vos fará mal”. E ainda: “A vida sairá da morte”. E
finalmente proferiu a palavra definitiva da minha libertação: “Isto é meu corpo”.
Não, a pureza não está na separação, mas numa penetração mais profunda do Universo. Ela
está no amor da Essência única, incircunscrita, que penetra e elabora todas as coisas por dentro
– muito além da zona mortal em que se agitam as pessoas e os números. Ela está num casto
contato com aquele que é “o mesmo em todos”.
Oh, como é belo o Espírito se elevando, ornado com as riquezas da Terra! Banha-te na Matéria,
filho do Homem. Mergulha nela, lá onde ela é mais violenta e mais profunda! Luta em sua
corrente e bebe sua vaga! Foi ela que outrora embalou tua consciência. É ela que te levará até
Deus! 34
Longe de serem incompatíveis com a existência de uma Causa Primeira, as idéias transformistas
são, ao contrário, a mais nobre e mais revigorante maneira de nos representar seu influxo. Para
o evolucionista cristão, a ação criadora de Deus não se concebe mais como imposição intrusa
de suas obras no meio dos seres preexistentes, mas como um ato de fazer nascer – no seio das
33
Cf. Pierre TEILHARD DE CHARDIN. “A potência espiritual da matéria”. In Hino do universo. São Paulo:
Paulus, 1994, p.61-74.
34
Idem, p. 68. As aspas e itálicos são do próprio Teilhard.
35
Teilhard usa o termo francês “esprit” para designar a consciência e pensamento reflexo próprios do
sujeito humano; o aparecimento do “esprit” assinala aquele momento de complexidade evolutiva em
que a vida de “hominiza”, inaugurando a noosfera: o invólucro de consciência da Terra.
36
Pierre TEILHARD DE CHARDIN. Mundo, homem e Deus. S. Paulo: Cultrix, 1986, p. 59.
24
coisas – os termos sucessivos de sua obra. A ação criadora de Deus não é nem menos essencial,
nem menos universal, nem sobretudo menos íntima por isso. A Evolução não é de modo algum
“criadora” – como a Ciência pretendeu acreditar durante algum tempo; mas ela é a forma
expressiva, para a nossa experiência no Tempo e no Espaço, da Criação37.
Considerações finais
Evidentemente há nas Escrituras uma outra leitura do relato da criação com outra
funcionalidade do ser humano, feito anjo protetor e cultivador do jardim do Éden (Gn 2,15). E
assim reforçando uma fundamental perspectiva ecológica. Deveremos, em seu devido lugar,
desentranhar outras perspectivas da tradição judeo-cristã que são benfazejas para uma re-
ligação de todas as coisas consigo mesmas e com sua fonte. Assim nos referiremos à graça
original, à aliança com todos os viventes simbolizada pelo arco-íris após o dilúvio, a dança da
criação, o Evangelho do Cristo cósmico, a in-habitação do Espírito nas energias do universo, a
natureza sacramental da matéria por causa da encarnação do Verbo e dos sacramentos, a
recapitulação de todas as coisas para serem, por assim dizer, o corpo de Deus38.
Referências:
BOFF, Leonardo. Ecologia – grito da terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004.
37
Idem, apud Peter SMULDERS, op. cit., p. 56.
38
Leonardo BOFF. Ecologia – grito da terra, grito dos pobres, op. cit., p. 114.
25
HÄRING, Bernhard. Livres e fiéis em Cristo vol. III. São Paulo: Paulinas, 1984.
HAUGHT, John. Cristianismo e ciência – para uma teologia da natureza. São Paulo: Paulinas, 2009.
OLGIATI, Feliciano (trad.). Gli scritti di Francesco e Chiara d’Assisi. Padova: Messaggero, 1996.
TEILHARD DE CHARDIN, Pierre. Mundo, homem e Deus. São Paulo: Cultrix, 1986.
ZIZIOULAS. Ioannis. A criação como eucaristia. São Paulo: Editora Mundo e Missão, 2001.
com a habitação humana na Terra. Assim emergiu, a partir dos anos 70, o paradigma
ecológico de contornos multidisciplinares, envolvendo a Biologia, a Geologia, a
Climatologia e a Genética, no debate com as Tecnologias e os Governos.
2. Novos ensaios
Gênesis 1 – 2: Deus se manifesta nas criaturas, dotadas de bondade e beleza; a vida é disposta
ordenadamente, cada ser ocupando seu lugar no cosmos; a pessoa humana possui dignidade específica,
com a responsabilidade de zelar pela Criação; as espécies convivem na casa comum; o mundo se
apresenta como jardim fecundo e variado.
Levítico 25,1-7: Deus estabelece o repouso da terra (suspensão temporária das atividades
agropecuárias) para renovar o solo, suprir os aquíferos, preservar as fontes e o verde, num cuidado que
garante a vigência da vida e das espécies, ao modo de criação continuada.
Sabedoria 1,7 e 11,24-26 e 13,5: presença do Espírito de Deus no cosmos; valor das criaturas aos olhos
de Deus, amigo da vida; as criaturas remetem ao Criador e O dão a conhecer (raciocínio analógico).
Eclesiástico 17,1-12: Deus modela o ser humano à sua imagem, com criatividade e inteligência; pelos
sentidos e pelo discernimento, a pessoa humana é qualificada para promover o bem e praticar a justiça.
Eclesiástico 18,1-14: o conjunto da Criação (formas de vida no tempo e espaço, com sua complexidade)
escapa à percepção humana; criado da Terra, o ser humano pode errar em suas buscas e até degradar-
se; mas o Criador lhe outorga graça e misericórdia, educando-o pacientemente.
João 1,1-5: Deus cria todas as coisas, no macro e no microcosmo, pela potência de sua Palavra (dabar
em hebraico; logos em grego); em todas as coisas Ele se pronuncia; por isso o universo é inteligível ao
ser humano, que o interpreta e nele incide com sua criatividade.
João 5,17: Jesus afirma a ação criadora e renovadora de Deus no universo, como cuidado permanente
pela vida; todo dia é dia da Criação, dimensionando até o repouso sabático.
28
Romanos 8,19-23: embora complexa e extensa, a Criação ainda está se fazendo, a cada êon (unidade de
tempo, no curso dos séculos); isto implica em processos, transformação, aprimoramento do mundo, à
semelhança de um parto; nós humanos participamos diretamente neste processo criativo, por nossa
corporeidade; quem preside esta criação contínua é o Espírito Santo (pneuma criador): ele atua no
tempo que envelhece e faz surgir o novo, qual “parteiro” de novas primícias.
Colossenses 1,12-20: Deus criou tudo pela sua Palavra, aquela mesma Palavra (logos) que se encarnou
em Jesus Cristo; Ele é, pois, a imagem visível do Criador, revelação de Deus ao homem, e do homem a
Deus; na plenitude de sua Páscoa todo o universo é recriado e unificado.
2Pedro 3,5-13: Pedro discerne o mistério da Criação, perceptível nos sinais do tempo e do espaço;
recorda as antigas cosmogonias da Terra tirada do abismo aquoso; fala dos elementos (água, terra e
fogo); supera a cronologia habitual dos calendários e aponta para uma esperança: novos céus e nova
terra, onde reinará a justiça.
Apocalipse 21,1: numa afirmação sintética e solene, revela-se enfim o novo céu e a nova terra, tendo
por capital a “nova Jerusalém” (Yir’shalom = Yeru’shalaim: lugar da plenitude, em hebraico): cidade
aberta às nações, realização de todas as esperanças, termo de chegada da humanidade caminheira no
tempo.
b) Destinação universal dos bens da natureza – Terra, água, ar, clima, sementes,
fármacos e identidade genética são valorados como dons do Criador e patrimônio
universal da comunidade humana. Tais componentes da vida têm primazia sobre os
interesses particulares, mercadológicos e bélicos: não devem se reduzir a mercadoria,
validados por sua mera utilidade, usados como recurso de guerra, nem administrados
29
como privilégio de alguma elite. Afinal, são bens recebidos da natureza e destinados à
sobrevivência das gerações, presentes e futuras. Ao valor material e funcional desses
bens, a fé cristã acrescenta o valor da dádiva que os qualifica como dons do Criador
para todas as criaturas. Portanto, os recursos naturais necessários à vida e à
sobrevivência têm estatuto de bem comum e direito humano.
A cultura ecológica não se pode reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para os
problemas que vão surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento das reservas
naturais e da poluição. Deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma política, um
programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao
avanço do paradigma tecnocrático. Caso contrário, até as melhores iniciativas ecologistas
podem acabar bloqueadas na mesma lógica globalizada. Buscar apenas um remédio técnico
para cada problema ambiental que aparece, é isolar coisas que, na realidade, estão interligadas
e esconder os problemas verdadeiros e mais profundos do sistema mundial. (LS 111)
Foi dito que a narração do Gênesis, que convida a “dominar” a terra (cf. Gn 1,28), favoreceria a
exploração selvagem da natureza, apresentando uma imagem do ser humano como dominador
e devastador. Mas esta não é uma interpretação correta da Bíblia, como a entende a Igreja.
Pois se é verdade que nós, cristãos, algumas vezes interpretamos de forma incorreta as
Escrituras, hoje devemos decididamente rejeitar que – do fato de ser criados à imagem de Deus
e do mandato de dominar a terra – se deduza um domínio absoluto sobre as outras criaturas. É
importante ler os textos bíblicos no seu contexto, com uma justa hermenêutica, e lembrar que
nos convidam a “cultivar e guardar” o jardim do mundo (cf. Gn 2,15). Enquanto “cultivar” quer
dizer lavrar ou trabalhar um terreno, “guardar” significa proteger, cuidar, preservar, velar. Isto
implica uma relação de reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza. Cada
comunidade pode tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência,
mas tem também o dever de protegê-la e garantir a continuidade da sua fertilidade para as
gerações futuras. (LS 67)
c) Reconhecimento do valor das criaturas – “Ao mesmo tempo em que podemos fazer
um uso responsável das coisas, somos chamados a reconhecer que os outros seres
vivos têm um valor próprio diante de Deus” (LS 69). E, em coerência com a correção
hermenêutica assumida na encíclica, Papa Francisco prossegue:
34
Hoje, a Igreja não diz, de forma simplista, que as outras criaturas estão totalmente
subordinadas ao bem do ser humano, como se não tivessem um valor em si mesmas e fosse
possível dispor delas à nossa vontade; mas ensina – como fizeram os bispos da Alemanha –
que, nas outras criaturas, “se poderia falar da prioridade do ser sobre o ser
úteis”. O Catecismo [da Igreja Católica] põe em questão, de forma muito direta e insistente,
um antropocentrismo desordenado: “Cada criatura possui a sua bondade e perfeição próprias.
As diferentes criaturas, queridas pelo seu próprio ser, refletem, cada qual a seu modo, uma
centelha da sabedoria e da bondade infinitas de Deus. É por isso que o homem deve respeitar a
bondade própria de cada criatura, para evitar o uso desordenado das coisas”. (LS 69)
Mais adiante, Papa Francisco aponta ao Criador como referência originária e valorativa
das criaturas: “Na tradição judaico-cristã, dizer criação é mais do que dizer natureza,
porque tem a ver com um projeto do amor de Deus, no qual cada criatura tem um
valor e um significado” (LS 76). Assim, a “novidade qualitativa” do ser humano não nos
permite desprezar as demais criaturas, nem valorizá-las na medida estrita de nossos
interesses:
Seria errado também pensar que os outros seres vivos devam ser considerados como meros
objetos submetidos ao domínio arbitrário do ser humano. Quando se propõe uma visão da
natureza unicamente como objeto de lucro e interesse, isso comporta graves consequências
também para a sociedade. (LS 82)
A meta do caminho do universo situa-se na plenitude de Deus, que já foi alcançada por Cristo
ressuscitado, fulcro da maturação universal. E assim juntamos mais um argumento para rejeitar
todo e qualquer domínio despótico e irresponsável do ser humano sobre as outras criaturas. O
fim último das restantes criaturas não somos nós. Mas todas avançam, juntamente conosco e
através de nós, para a meta comum, que é Deus, numa plenitude transcendente onde Cristo
ressuscitado tudo abraça e ilumina. (LS 83)
d) Imbricações entre ecologia e humanidade – Papa Francisco nos adverte que “não
haverá uma nova relação com a natureza, sem um ser humano novo. Não há ecologia
sem uma adequada antropologia” (LS 118). Por outro lado, pondera que não se
corrigirá o “antropocentrismo desordenado” substituindo-o pelo “biocentrismo”: isto
levaria o planeta a “um novo desequilíbrio que não só não resolverá os problemas
existentes, mas acrescentará outros. Não se pode exigir do ser humano um
compromisso para com o mundo, se ao mesmo tempo não se reconhecem e valorizam
as suas peculiares capacidades de conhecimento, vontade, liberdade e
responsabilidade” (LS 118). E observa:
Se a crise ecológica é uma expressão ou uma manifestação externa da crise ética, cultural e
espiritual da modernidade, não podemos nos iludir de sanar a nossa relação com a natureza e o
meio ambiente, sem curar todas as relações humanas fundamentais. (LS 119)
35
Entre tais relações fundamentais estão: nossa relação transcendente com Deus-Amor,
o Criador de todas as coisas (cf. LS 119); e nossa relação com os demais seres
humanos, a começar dos mais fragilizados, em reação à cultura do descarte que gera
exclusão social (cf. LS 123). Ambas, articuladas entre si, participam da nossa relação
com a natureza, voltada à integridade dos ecossistemas e à manutenção da vida como
um todo (cf. LS 131-132). Enfim, o nexo ecologia-antropologia se verifica
particularmente nas relações entre “a natureza e a sociedade que a habita” (LS 139).
Neste sentido, Papa Francisco se aproxima da máxima ecológica de Edgar Morin – “a
humanidade está na natureza e a natureza está na humanidade” (apud PENA-VEGA,
2005, p. 71) – como lemos na encíclica:
Isto nos impede de considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera
moldura da nossa vida. Estamos incluídos nela, somos parte dela e compenetramo-nos. As
razões, pelas quais um lugar se contamina, exigem uma análise do funcionamento da
sociedade, da sua economia, do seu comportamento, das suas maneiras de entender a
realidade. Dada a amplitude das mudanças, já não é possível encontrar uma resposta específica
e independente para cada parte do problema. É fundamental buscar soluções integrais que
considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas
crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise sócio-
ambiental. (LS 139)
O clima é um bem comum, um bem de todos e para todos. [...] A água potável e limpa constitui
uma questão de primordial importância, porque é indispensável para a vida humana e para
sustentar os ecossistemas terrestres e aquáticos. (LS 23 e 28)
Referências:
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37
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Brasília: UNESCO; OREALC, 2005.
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1207.
ZIZIOULAS, I. A criação como eucaristia. São Paulo: Editora Mundo e Missão, 2001.
Dossiê de Textos para uso interno, no âmbito da disciplina Temas de Teologia e Ecologia do PPGT da PUCPR