A Interpretação Do CPC

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A Interpretação do Cpc/2015 e a Distinção entre Conceitos


Teóricos (Doutrinários) e Conceitos Normativos (Legais)

Conceitos teóricos ou doutrinários devem ser distinguidos de conceitos


normativos ou legais.1 Os conceitos teóricos compõem teorias e explicações as
afirmações formuladas com base nelas. Os conceitos normativos, por sua vez, integram
as normas, assim como os atos jurídicos formulados com base nelas. A necessidade de
ter uma clara distinção entre os dois conceitos é tanto maior pela circunstância de ambos
serem, frequentemente, veiculados pelas mesmas expressões linguísticas.

Conceitos teóricos são formulados livremente pelos teóricos. Como tais, não
podem ser “avaliados” diretamente, salvo quanto a saber se há ou não algo que nele se
subsuma, ou se se trata de um conceito vazio. Fora esse caso extremo, a valoração que
se possa dar a conceitos teóricos passa, necessariamente, pela valoração das teorias,
explicações e afirmações que o tomam como ingrediente. Por exemplo, um conceito
excessivamente inclusivo, dificilmente produzirá alguma teoria útil, na medida em que,
com base nela, se pode, no máximo, formular afirmações banal e trivialmente
verdadeiras de “quase tudo”.

Por outro lado, conceitos normativos não são “livremente” formulados. A razão
é óbvia, mas convém explicitá-la: na medida em que conceitos normativos são os
próprios ingredientes de que são constituídas as normas jurídicas, a “criação” deles é um
fragmento da própria criação de normas jurídicas. Aliás, conceitos normativos, nesse
sentido, não existem independentemente de normas jurídicas, sendo apenas um dos
fatores que se pode abstrair de uma norma jurídica. Como um mesmo conceito
normativo pode ser fator de muitas normas jurídicas, tem-se, às vezes, a impressão que
há uma “autonomia” de “noções jurídicas”, porém isso é um erro de categoria. Dessa
forma, a determinação de conceitos normativos é um aspecto da determinação de
normas jurídicas, pela interpretação de seu respectivo texto legislativo.

Um problema relativamente sério ocorre quando, por influências políticas


diversas, um termo utilizado originalmente para designar um conceito teórico – vale
dizer, um termo que ou foi cunhado, artificialmente, por um determinado doutrinador,
para designar um conceito por ele proposto, ou que pré-existia, mas a ele foi atribuído,
1 A distinção entre “conceitos teóricos” X “conceitos observacionais” é antiga em filosofia da ciência. Cf.
para uma discussão crítica, CARNAP, Rudolf. The methodologial character of theoretical concepts.
In Minsesota Studies in the Philosophy o Science – The Foundations of Science and the Concepts of
Psychology and Psychoanalysis. FEIGL, Herbert e SCRIVEN, Michael (Eds.), University of Minneapolis
Press, Mineapolis: 1956, p. 38-76. São ainda de grande importância e atualidade, sobre a distinção mais
geral entre “conceitos técnicos” e “conceitos não técnicos” – mais próxima à distinção feita no texto – as
lições de Gilbert Ryle. Cf. RYLE, Gilbert. Dilemmas. Cambridge University Press: Cambridge: 1964, p.
82-92.
por certo doutrinador, um sentido (conceito) específico (às vezes, inclusive,
idiossincrático) – passa a integrar um texto legislativo, através do qual se deve veicular
uma norma. Neste caso, há uma tendência quase incontrolável de considerar,
“automaticamente” (não criticamente), que aquele termo passa a expressar o conceito
teórico que, no discurso doutrinário, ele habitualmente expressa. Isso, contudo, é um
equívoco. A determinação do sentido de qualquer expressão linguística que integra um
texto legislativo jamais pode ser feita sem considerar o significado global desse texto,
ou seja, a norma por ele (possivelmente) expressa bem como os diversos contextos em
que esse mesmo texto e a norma (possivelmente) por ele veiculada se inserem.

O CPC/2015 apresenta alguns exemplos interessantes, os quais devem ser objeto


de atenta consideração pela comunidade jurídica. Alguns dos casos que já se anunciam
extremamente controversos, são os que dizem com a inclusão, pela primeira vez em
texto legislativo, dos termos ‘tutela provisória’, ‘tutela provisória de urgência cautelar’,
‘tutela provisória de urgência antecipada’, ‘tutela fundada em evidência’, ‘tutela da
evidência’ (todos ocorrentes no Livro V da Parte Geral do CPC/2015), ‘jurisprudência
estável’, ‘jurisprudência íntegra’, ‘jurisprudência coerente’, ‘jurisprudência estável,
íntegra e coerente’ (todos ocorrentes no art. 924 do CPC/2015), ‘medidas
indutivas’ )art. 139, inc. IV, do CPC/2015), entre outros.

Nesta breve nota, não cabe, obviamente, realizar uma análise nem da história
subjacente à inclusão de tais termos, nem dos conceitos normativos ou legais que a eles
se deve atribuir como seus respectivos significados. O que se quer, tão somente, é
alertar para o surgimento de concepções equivocadas, que sustentem, sem a realização
de uma interpretação adequada dos dispositivos legais em que tais termos ocorram,
levando em consideração o universo de dados contextuais consistentes em outros
dispositivos legais, as normas por eles veiculadas, bem como dados de situações
concretas em que a norma veiculadas pelos dispositivos legais em que os mencionados
termos ocorram, venha a ser utilizada como critério de decisão.

Um exemplo emblemático desse “transplante direto” de um conceito teórico,


habitualmente expresso como sentido “idiossincrático” de certo termo, para tomar este
conceito teórico como conceito normativo, expresso por um idêntico termo, porém
integrante de um texto legislativo, tem-se o exemplo da expressão ‘jurisprudência
íntegra’. Como amplamente sabido, “direito como integridade” é “slogan” que costuma
ser utilizado para sintetizar a concepção do Direito elaborada por Ronald Dworkin.
Influenciado por ele, o eminente Prof. Lênio Streck 2 propôs a inclusão, no que hoje é o
art. 924 do CPC/2015, por ocasião da etapa do respectivo processo legislativo que
transcorreu na Câmara dos Deputados, das expressões ‘íntegra e coerente’, para
qualificar, ainda mais, a expressão ‘jurisprudência estável’, de modo a tornar mais
determinado – essa foi a declarada intenção do “legislador”, na medida em que se possa
considerar como intenção do legislador aquela do autor de uma sugestão dessas – o
dever dos tribunais imposto pela norma veiculada pelo art. 924 mencionado.

Agora, aprovada a inclusão e promulgado o CPC/2015, que passou a conter a


expressão ‘jurisprudência estável, íntegra e coerente’, bem como, por mera inferência
gramatical, as expressões ‘jurisprudência estável’, ‘jurisprudência íntegra’ e
‘jurisprudência coerente’, o próprio Streck tem sustentado que a expressão
2 STRECK, Lênio. Novo CPC terá mecanismos para combater decisionismos e arbitrariedades?
http://www.conjur.com.br/2014-dez-18/senso-incomum-cpc-mecanismos-combater-decisionismos-
arbitrariedades.
‘jurisprudência íntegra’ expressa, como conceito normativo, precisamente o conceito
teórico que, com base na obra de Dworkin, se pode(ria) atribuir a tal expressão, como se
existisse um “vínculo apriorístico e rígido” entre a expressão e o conceito por ele
selecionado. Esse é um exemplo de equivocada “interpretação automática” de termos,
utilizados habitualmente (ou idiossincraticamente) para expressar conceitos teóricos,
para a qual se quer advertir na presente nota. É certo que não se pode excluir que, após
uma interpretação adequada e devidamente fundamentada, à expressão ‘jurisprudência
íntegra’ se venha a ser atribuído, como conceito normativo por ela veiculado, o exato
sentido que Streck3 defende que se lhe atribua. O que não é correto, do ponto de vista
metodológico, é realizar o “salto lógico” que o mencionado autor comete, em tomar a
mencionada expressão como significando “rígida e aprioristicamente”, o que ele
entende que ela significa.

Essa é uma lição que deve ser extraída para a interpretação de todas as
disposições integrantes do CPC/2015, particularmente aquelas que, como visto, são de
alguma forma originariamente associadas a conceitos teóricos e passaram a constar, em
textos legislativos, pela primeira vez com o advento do CPC/2015. O fato de tais
termos, quando “tokenizados” no discurso doutrinário, veicular determinado conceito
teórico é um dado relevante, mas jamais suficiente, na determinação do conceito
normativo que o mesmo termo veicula, quando “tokenizado” em um texto legislativo. 4

3 STRECK, Lênio. Jurisdição, fundamentação e dever de coerência e integridade no novo


CPC http://www.conjur.com.br/2016-abr-23/observatorio-constitucional-jurisdicao-fundamentacao-
dever-coerencia-integridade-cpc.
4 Em estudos sobre a linguagem, tornou-se habitual se referir a expressões linguísticas como “types”,
quando não ocorrentes em nenhum ato concreto de proferimento, e se referir às mesmas expressões,
quando ocorrentes num fragmento concreto de discurso produzido, como “token” daquela “type”. Daí a
distinção entre “expressão-type” e “expressão-token”. Por exemplo, nas sentenças ‘João viajou de carro’ e
“O carro de Maria quebrou’, ocorrem dois “tokens” da “expressão-type” ‘carro’.

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