Aula Magna Abril 2024 UFRJ Ministro Celso Amorim
Aula Magna Abril 2024 UFRJ Ministro Celso Amorim
Aula Magna Abril 2024 UFRJ Ministro Celso Amorim
15 de abril de 2024
Palavras Iniciais
É uma distinta honra ter sido convidado para proferir pela segunda
vez uma Aula Magna na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sempre
tive grande admiração por esta instituição, que conheci quando fiz meu
vestibular de filosofia – curso que tive que abandonar por circunstâncias
diversas. Àquela época ainda se chamava “Universidade do Brasil”, o que
denotava seu caráter pioneiro entre as instituições de ensino superior. Era
também o cenário onde se desenrolavam eventos políticos e intelectuais
de repercussão nacional. Para ficar com apenas um: recordo com nitidez
a conferência proferida por Jean Paul Sartre, acompanhado de Simone de
Beauvoir, depois da passagem do casal por Havana, para um público que
abarrotava o salão nobre da Faculdade Nacional de Filosofia, ansioso por
ouvir as reflexões do filósofo francês, criador do existencialismo, mas
bem próximo do marxismo.
Proferi minha primeira Aula Magna na UFRJ em 12 de março de
2004, a convite do Magnífico Reitor da época, o saudoso Aloisio Teixeira.
Portanto há 20 anos. Esse arco temporal me lembrou o livro do grande
pensador político Edward Carr, “20 anos de crise”. Eu poderia parafrasear
Carr, sem querer ombreá-lo, e dizer que se trata de 20 anos de desafios,
realizações e – há que admitir – algumas frustrações.
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Confrontarei, de uma perspectiva necessariamente subjetiva, a
realidade da época em que muitos dos alunos aqui presentes nasceram
com a do momento em que ingressaram na Universidade. Em 2004, eu era
ministro das relações exteriores no primeiro mandato do Presidente Lula,
depois de uma breve experiência no cargo de Chanceler durante o governo
Itamar Franco.
Lula chega ao poder em período que coincide com processos de
transformação no Brasil e no mundo. As breves narrativas que se seguem
se inserem nesse quadro de uma realidade em constante movimento e
ilustram como é ilusório pensar que a História é linear e passível de
definições apriorísticas. Na verdade, uma das caraterísticas da História é
que ela nos surpreende sempre. Acredito que esse deveria ser o primeiro
ensinamento para quem vai estudar a política e as relações internacionais.
Então
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República Federal da Alemanha. Em meio a comentários diversos,
perguntei ao meu interlocutor se ele previa a reunificação da Alemanha
como algo próximo. Sua resposta refletiu a visão da época. “Sim,
voltaremos a ser um país único, mas nem meus filhos verão isso
acontecer; só, quem sabe, os filhos dos meus filhos”.
A mesma miopia se revelaria, em sentido inverso, nos anos que se
seguiram à derrocada do “mundo comunista”. Alguns analistas chegaram
a imaginar que esse novo mundo, marcado pelo predomínio do
capitalismo e da democracia liberal, viera para ficar. Em termos
geopolíticos, essas mudanças seriam acompanhadas por um predomínio
praticamente absoluto dos Estados Unidos, que exerceriam o poder,
quando possível, através da ONU, ou unilateralmente quando necessário.
Essa utopia conservadora durou pouco. Cerca de uma década depois de
Francis Fukuyama ter decretado o “Fim da História”, em 1992, já era
possível perceber que não permaneceríamos estáticos, sob o domínio de
uma única superpotência. De meados para fins dos anos noventa, já se
notava o crescente incômodo causado por ações militares unilaterais.
Como embaixador do Brasil na ONU, pude perceber essa reação não só
da parte de nações do chamado terceiro mundo, mas de membros
permanentes do Conselho de Segurança. Enquanto a primeira Guerra do
Golfo, após a invasão do Kwait por Saddam Hussein, foi aceita com
pouquíssima ou nenhuma resistência, as ações norte-americanas contra o
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regime iraquiano passaram a ser objeto de contestação crescentemente
vocal. Essa reação foi ainda mais estridente, quando, já no governo Bush,
Washington, com o apoio de uns poucos aliados “incondicionais” resolveu
recorrer à força de maneira unilateral. Essa resistência provinha não só
dos adversários previsíveis (Rússia e China), mas também de potências
consideradas aliadas, como França e Alemanha e, de forma oscilante, até
de países em desenvolvimento, como o próprio Brasil. Embora com
limitações, o mundo estava se tornando mais multipolar, com o poder mais
descentralizado.
No plano econômico, o fracasso estrondoso da chamada Rodada do
Milênio da Organização Mundial do Comércio (OMC) foi uma
demonstração de que o consenso formado nos grandes países capitalistas
não seria automaticamente aceito nos países em desenvolvimento. Aliás,
ainda no campo da economia, é curioso notar que um estudioso como
Fukuyama não tenha percebido a mudança profunda que decorreria da
emergência da China, que, por sinal, só viria a entrar para OMC em 2001.
Contrariamente à concepção e aos interesses da potência dominante,
ingenuamente repetidos por políticos e intelectuais de países em
desenvolvimento, a visão estática ou linear da história havia se tornado
rapidamente obsoleta.
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É nesse mundo em transformação que Lula chega ao poder. O clima
que se vivia no Brasil era de otimismo. A passagem de faixa de Fernando
Henrique Cardoso, um sociólogo, com grande influência intelectual, que
contribuíra para o fim da ditadura militar, para Lula, um trabalhador e
líder de um partido de esquerda, foi um momento simbólico da
consolidação da democracia brasileira. Embora problemas sempre tenham
existido, era um Brasil de esperança.
Na política externa, muitos percebiam uma oportunidade para o
Brasil vir a desempenhar um papel de maior relevância. Havia muitos
desafios, mas também, para alguns de nós, clareza sobre o que era preciso
fazer para enfrentá-los. As condições pareciam propícias para que o Brasil
não se limitasse a reagir às propostas que estavam sendo discutidas.
Queríamos influir diretamente na agenda internacional e de forma não
limitada ao nosso entorno geográfico.
Eu já havia sido ministro, no governo Itamar Franco, e fora
embaixador em postos relevantes, especialmente em Genebra, sede de
vários organismos internacionais, e em Nova York, sede da ONU. Não
ignorava a importância do Brasil, em função de seu tamanho e da tradição
diplomática, respeitada para além da nossa região. Eu sentia, entretanto,
que padecíamos de um certo complexo de inferioridade, oriundo do nosso
passado colonial e de nossa dependência econômica, que se estendia aos
planos político e cultural. Sempre me recordo de uma afirmação de Jorge
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Castañeda, um sociólogo mexicano, que flertara com a esquerda, mas que
na época integrava o governo neoliberal de Carlos Salinas. Em um artigo
que li no Herald Tribune, Castañeda afirmou que “Brazil punches below
its weight” ou, em uma tradução livre, o Brasil é um time que joga abaixo
da sua liga.
Esse sentimento de inferioridade, que o escritor e dramaturgo
Nelson Rodrigues, referindo-se ao futebol, definiu como “complexo de
vira-lata”, foi algo com que tive que lidar muitas vezes durante a minha
carreira e não só na diplomacia, mas nas experiências que tive fora do
Itamaraty, como Presidente da Embrafilme e como Assessor Internacional
no Ministério da Ciência e Tecnologia. Quando fui embaixador em
Genebra, recebia por vezes instruções que podiam ser lidas como:
“defenda tal ou qual posição, mas não seja proativo; não faça nada que
hostilize os Estados Unidos ou a Europa”. Ao Brasil, como “potência
média”, cabia apenas se conformar, ou, no máximo, fazer pequenos
ajustes a propostas das grandes potências ocidentais. Essa postura tímida,
que caracterizava o Brasil como um país que não tem “excedente de
poder”, fora teorizada no governo militar e retomada no período
democrático – com apoio da mídia e de boa parte do meio intelectual e
político.
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O Brasil não deveria, segundo essa concepção, tentar influir na
política mundial e muito menos se contrapor a iniciativas das potências
dominantes. Por isso, na minha primeira aparição pública como ministro
indicado pelo Presidente Lula, em vez de detalhar temas, limitei-me a
definir a atitude que prevaleceria na nossa atuação internacional. Disse
que teríamos uma política externa ativa e altiva.
O governo Lula tinha, desde o início, uma ideia clara do caminho a
seguir. Quem confrontar o “programa” de política externa exposto no
discurso de posse do novo presidente com o que efetivamente ocorreu nos
oito anos que se seguiram constatará uma notável coincidência entre o
proposto e o realizado, algo incomum no campo da diplomacia e das
relações internacionais. Evidentemente, questões imprevistas tiveram que
ser enfrentadas e oportunidades não cogitadas inicialmente se ofereceram.
Deixo este registro para que historiadores e politólogos analisem – e
possivelmente contestem – as razões desse traço, a meu ver singular.
Três temas exigiam de imediato um posicionamento que
demonstrasse claramente qual seria o sentido da nova política externa.
Dois deles tinham a ver com a área econômico-comercial, que era em
grande medida o ponto nevrálgico do nosso relacionamento externo. O
mais importante se referia à posição do Brasil em relação à Área de Live
Comércio das Américas (ALCA), uma iniciativa norte-americana; e o
outro era como o Brasil reagiria às propostas que estavam sendo
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negociadas no contexto da Rodada de Doha da OMC. Mas havia um
terceiro, relacionado à paz e segurança: a postura que adotaríamos em face
da iminente invasão do Iraque.
A percepção de muitos no Brasil, entre os quais eu me incluía,
mesmo que de forma cautelosa, por exercer cargo de embaixador, era de
que a ALCA não nos favorecia. Talvez a voz mais expressiva neste
sentido, tenha sido a do meu colega e companheiro de jornada, Samuel
Pinheiro Guimarães. A ALCA era excessivamente intrusiva em questões
delicadas para o Brasil, como propriedade intelectual e investimentos, e
pouco favorável em temas de nosso interesse, como subsídios agrícolas e
acesso a mercados para produtos em que éramos competitivos. Na parte
estritamente comercial, as negociações tarifárias seguiam uma
metodologia que penalizaria nossa indústria, ao adotar como base,
diferentemente do que ocorria no plano multilateral, a tarifa aplicada e
não a tarifa consolidada. Não é o caso de discorrer aqui sobre essas
tecnicalidades, mas vale registrar que esse aspecto era um dos mais
polêmicos e a decisão tomada, ainda no governo anterior, era desfavorável
aos nossos interesses.
A batalha não era fácil. Até entre pessoas críticas da ALCA,
prevalecia a ideia de que o Brasil não poderia, ou não deveria, opor-se
frontalmente a um tema defendido com empenho por Washington e aceito
tácita ou expressamente pela grande maioria dos países latino-americanos
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e caribenhos. Apesar dos ataques constantes da mídia e de parte de nossa
elite econômica, o governo Lula evitou uma confrontação aberta, mas
soube buscar, por meio de uma tática apoiada na defesa de interesses
legítimos e incontestáveis, uma forma de redefinir os termos da
negociação. Como consequência dessa postura, o tema foi sofrendo
esvaziamento progressivo, que acabou resultando no abandono da
iniciativa pelos próprios norte-americanos. (Na verdade, a Conferência
de Mar del Plata, de 2005, muitas vezes vista como o momento em que a
ALCA foi morta, constituiu mais o canto fúnebre do que o tiro de
misericórdia, que já havia sido disparado há tempos).
Algo semelhante ocorreu em relação à Rodada de Doha. Durante o
ano de 2003, Estados Unidos e União Europeia procuraram encontrar um
modus vivendi para os interesses frequentemente opostos de ambos,
sobretudo no tema de agricultura, ao mesmo tempo em que faziam
exigências excessivas e injustas aos países em desenvolvimento.
Juntamente com países como Índia, Argentina e China, além de algumas
nações mais pobres da África, o Brasil esteve à frente de um movimento
que ficou conhecido como G20 comercial. Atuando de forma unida – o
que não deixou de ser motivo de surpresa – enfrentou as pressões e
impediu um acordo que seria altamente desfavorável às nações do que
hoje chamamos de Sul Global. Os impasses culminaram com mais um
fracasso da OMC, com o melancólico final da Conferência Ministerial de
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Cancún, no México, em setembro de 2003. Na época, isso nos rendeu
muitas críticas, mas com o tempo ficou claro que havíamos feito a coisa
certa para evitar um resultado que seria muito prejudicial aos nossos
interesses.
Assim, tanto no plano global, quanto no regional, o governo Lula
disse a que veio, recusando-se a aceitar acordos que seriam desfavoráveis
ao país, a partir da nossa visão de desenvolvimento. É tentador ver nessas
posições um aspecto essencialmente obstrucionista. Não foi, entretanto, o
que se passou, sobretudo no plano multilateral. A seriedade e a justiça da
nossa atitude foram logo reconhecidas. Meses depois de publicar um
artigo altamente crítico ao Brasil no Financial Times, o principal
negociador norte-americano, Robert Zoellick, me telefonaria com o
objetivo de convidar o Brasil a participar de um grupo restrito de países
que deveria construir uma proposta de acordo para a Rodada de Doha.
Esse grupo acabaria se consolidando como um G-4 composto pelos
Estados Unidos, a União Europeia, a Índia e o Brasil. Inicialmente, ficaria
conhecido como o “novo Quad”, que substituiria aquele que fora antes o
núcleo das negociações no âmbito da OMC (Estados Unidos, União
Europeia, Canadá e Japão). O novo G-4, para desconforto de muitos,
permaneceria no centro das discussões até a paralisação total nas
negociações da Rodada em julho/agosto de 2008.
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Esse papel destacado do Brasil só foi possível em função da clareza
das nossas posições, com o respaldo integral do Presidente Lula, mas
deveu-se também, em grande medida, à nossa capacidade de articulação
com os demais países em desenvolvimento, inclusive as nações mais
pobres. Mesmo sem conseguir alcançar todos os objetivos, a ação do
Brasil no governo Lula contribuiu decisivamente para evitar o
“congelamento” de relações altamente injustas, que tradicionalmente
caracterizam o comércio internacional.
No plano ainda mais sensível da paz e segurança, o Brasil reagiu
com firmeza ao sério ataque ao direito internacional que foi a invasão do
Iraque pelos Estados Unidos, Reino Unido e outros aliados (“Coalition of
the Willing”), sem a autorização do Conselho de Segurança da ONU. Mais
do que a defesa da integridade de um outro país em desenvolvimento, a
atitude brasileira representou um clamor de apoio ao multilateralismo. Ao
nos opormos à invasão, não poderíamos imaginar que um compatriota
nosso, Sergio Vieira de Mello, que atuou como representante do
Secretário-Geral das Nações Unidas para o Iraque, seria uma das vítimas
desse conflito, após o ataque à sede da ONU em Bagdá em 2003.
A atitude do Brasil na questão do Iraque viria a fortalecer nossa
aproximação com os países do Oriente Médio. Em reconhecimento à
crescente importância da voz do Brasil nos temas relativos à região, fomos
convidados a participar de eventos como as Conferências sobre o Iraque
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(Bruxelas, 2005), a Conferência sobre Afeganistão (Londres, 2006) e a
Conferência de Annapolis sobre o conflito Israel-Palestina (2007). No
caso dessa última, o Brasil foi um dos três países em desenvolvimento,
não árabe, não islâmico, não membro permanente do Conselho de
Segurança, convidados a participar da reunião. Os outros dois foram Índia
e África do Sul, nossos parceiros no IBAS, de que falarei mais adiante.
Nesse contexto de expectativa em relação à continuidade das negociações
para a solução do conflito, tomamos a decisão corajosa e pioneira de
reconhecer o Estado da Palestina em 2010. A importante revista norte-
americana “Foreign Policy” registrou a audácia desse passo em um artigo
com um título provocador, que cito de memória: “ao apagar das luzes, o
governo Lula não cessa de nos surpreender”.
Um aspecto estruturante da nossa política externa foi a ênfase na
integração da América do Sul, com ações concretas em favor do
MERCOSUL (notadamente dos sócios menores, Uruguai e Paraguai) e os
passos em direção à Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA),
depois rebatizada e institucionalizada como UNASUL, em 2008 pelo
Tratado de Brasília. Poucos meses depois, realizamos, na Bahia, a
primeira cúpula de países latino-americanos e caribenhos, sem tutela
externa, processo que veio a desaguar na criação da Comunidade de
Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC).
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Além das iniciativas institucionais, destacaria também o papel
pacificador que o Brasil teve em situações de conflito potencial grave na
região, como as disputas entre Venezuela e Colômbia e entre Equador e
Colômbia. Quando solicitado, o Brasil também atuou para diminuição de
tensões internas, como no caso da Venezuela e da Bolívia. No caso da
crise entre Equador e Colômbia, desencadeada pelo bombardeio de forças
das FARC em território equatoriano, foi de particular importância a
Reunião do Grupo do Rio, no final de 2007. A decisão – tomada e
negociada exclusivamente entre latino-americanos e caribenhos – seria
acatada pela OEA. Invertíamos assim a ordem de prioridades, elegendo o
relacionamento com nossos vizinhos por sobre a configuração
hemisférica, uma herança da Guerra Fria.
Um processo notável e de grande importância foi a articulação de
países em desenvolvimento de diferentes regiões do mundo. Logo no
início do governo, o presidente Lula comentou comigo a ideia de uma
cúpula entre o Brasil e os países árabes, que, em sua visão, seria um passo
para uma “nova geografia político-econômica mundial”. O presidente e
eu mesmo viajamos a vários países da região com o objetivo de promover
a inciativa. Em maio de 2005, sediamos a primeira Cúpula América do
Sul - Países Árabes (ASPA) em Brasília. Essa iniciativa, que teve
seguimento com as Cúpulas de Doha (2009), Lima (2012) e Riad (2015),
merece ser revigorada.
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Movidos por um desejo de reconciliação com nossa própria história,
buscamos reforçar nossas relações com a África. Foram muitas as
iniciativas com países africanos no plano bilateral, desenvolvidas na
sequência de trocas de visitas presidenciais. Em 2006, com base em um
entendimento entre o presidente Lula e o presidente Obasanjo, da Nigéria,
inauguramos a Cúpula América do Sul - África (ASA). Tanto a ASPA
quanto a ASA foram tentativas de buscar parcerias que representassem
alternativas ao frequentemente assimétrico relacionamento Norte-Sul.
Além dos méritos políticos de rebalanceamento das relações
internacionais, essas iniciativas tiveram importante impacto comercial.
Nosso intercâmbio com o Oriente Médio chegou, em números redondos,
a crescer quatro vezes, e com a África cinco vezes, (2002-2008).
Outra importante iniciativa entre países em desenvolvimento foi
objeto de discussão já no segundo dia de governo, por ocasião de um
encontro meu com a ministra das Relações Exteriores da África do Sul
Nkosazana Zuma. A partir de uma ideia de minha colega sul-africana, que
supunha um número maior de países, sugeri a formação de um G-3 (Índia,
Brasil e África do Sul), três grandes democracias, multiétnicas, plurais,
uma em cada região do mundo em desenvolvimento. Mais tarde, esse
grupo passaria a ser conhecido como IBAS. Durante os dois mandatos do
presidente Lula, realizaram-se cinco Cúpulas do IBAS, afora as muitas
reuniões ministeriais e técnicas. Esse processo chamou a atenção de
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funcionários e políticos de países variados, inclusive o Alto Representante
da União Europeia, Javier Solana, que procuravam se aproximar, de uma
forma ou de outra, desse agrupamento original.
Mais importante: Rússia e China manifestavam o desejo de
participar do IBAS. Não seria exagerado dizer que esse interesse, somado
a outros fatores, está na origem da formação do BRICS. Mantive várias
conversas com o então ministro das Relações Exteriores russo, Igor
Ivanov, em que o objetivo de participação no IBAS foi repetidamente
expressado. A China, por sua vez, fazia aproximações sobretudo com a
África do Sul. Recordo-me também que o presidente Hu Jintao, dirigindo-
se diretamente ao presidente Lula, à margem da Cúpula do G-8+5, em
Heilingdam, na Alemanha, em 2007, elogiou a atuação do IBAS, sem que
o assunto fizesse parte da pauta. Inicialmente, os ministros do exterior do
G-3 resistiam à ideia de diluir o grupo com a incorporação de duas
potências que carregavam agendas pesadas e eram membros permanentes
do Conselho de Segurança. Afinal, o grupo BRICS viria a consolidar-se
no final da primeira década dos anos 2000.
Um passo decisivo dessa evolução foi uma proposta que me fez, em
2006, o ministro russo Sergey Lavrov, que sucedera a Ivanov e era meu
velho conhecido da ONU. Nessa primeira fase tratava-se de BRIC, já que
a proposta russa não contemplava a África do Sul. Inicialmente, foi
formado um foro ministerial, que se reunia à margem da Assembleia-
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Geral das Nações Unidas. Em 2008, teve lugar o primeiro encontro
ministerial fora da sede da ONU, em Ecaterimburgo, na Rússia. No ano
seguinte, seria realizada a primeira Cúpula, também em Ecaterimburgo,
seguida da Cúpula de Brasília de 2010. Aproveitando a ocasião de
reuniões praticamente simultâneas entre IBAS e BRIC, a África do Sul
participou da Cúpula de Brasília. Pretória passaria a integrar formalmente
o grupo na Cúpula de Sanya, na China, em 2011.
É curioso notar que a Rússia se tenha interessado por essa
configuração, possivelmente em função de dificuldades no
relacionamento com as grandes potências ocidentais. Não por acaso, o ex-
primeiro-ministro russo Yevgueni Primakov fora o primeiro estadista a
utilizar, ainda nos anos 90, o termo multipolaridade. Ao Brasil, como a
outros países do grupo, também interessava buscar maior equilíbrio nas
relações internacionais, cuja agenda ainda era, em grande medida,
dominada pelos Estados Unidos da América, que, segundo uma expressão
da secretária de Estado Madeleine Albright se tornara, com o fim da
Guerra Fria, a “única superpotência remanescente”.
Quando criamos o BRICS, talvez não tivéssemos a consciência
plena do papel que o foro viria a ter na política mundial. Tampouco era
evidente o peso que adquiriu o G20, surgido na esteira da crise do Lehman
Brothers em 2008, que abalou profundamente as finanças do mundo. A
crise de 2008, pela primeira vez em muitos anos, pôs em questão a
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governabilidade do sistema econômico mundial, com obvias implicações
políticas. Os líderes das principais economias do mundo perceberam que
era necessária uma nova arquitetura de concertação sobre temas
financeiros, que fosse além do G-8, então composto pelos sete países mais
ricos e pela Rússia. Sobre esta, recordo-me de uma frase dita ao acaso
pelo então presidente Medvedev, na Cúpula de Ecaterimburgo do BRICS.
Segundo o presidente russo, Moscou tinha clareza de que só fazia parte
do grupo porque tinha a bomba atômica.
Importante recordar que, desde 2003, o Brasil vinha sendo
sistematicamente convidado para as Cúpulas do G-8, no formato que ficou
conhecido como G-8 + 5, que incluía Brasil, China, Índia, África do Sul
e México. Para esses cinco países, no entanto, tratava-se de uma
participação marginal, já que sua opinião sobre os temas importantes não
era refletida adequadamente nas declarações aprovadas pelo grupo.
Mesmo antes da crise financeira de 2008, já se vinha discutindo a
possibilidade de reformar o G-8+5 de modo torná-lo mais equilibrado ao
conceder aos países emergentes status equivalente ao dos países
desenvolvidos. Também se discutia a ampliação do grupo, com a possível
participação de países como Indonésia e Egito. A crise de 2008
demonstrou de maneira mais evidente a precariedade da governança
econômica mundial e tornou o tema mais urgente.
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Nesse contexto, o presidente Bush propôs a elevação a nível de
Cúpula de um grupo de concertação pouco conhecido que existia no FMI,
o G20. Recordo-me do telefonema em que o presidente Bush fez
concretamente essa proposta ao presidente Lula. Bush certamente já tinha
discutido a ideia com aliados mais próximos, como Reino Unido e França,
mas tive a nítida impressão de que o Brasil era um dos primeiros países a
ser consultado. Coincidentemente, já estava agendada uma reunião de
ministros das Finanças do G20 do FMI em São Paulo, à qual o presidente
Lula compareceu como anfitrião. Em novembro de 2008, o presidente
Lula participou da primeira Cúpula do G20 em Washington.
A culminação desse processo de crescente participação do Brasil nos
principais fóruns e temas internacionais foi o nosso envolvimento,
juntamente com a Turquia, nas negociações do dossiê nuclear iraniano.
Em julho de 2009, na Cúpula do G8+5, na Itália, o presidente Obama
pediu explicitamente a ajuda brasileira nas relações com o Irã, em
particular nas negociações sobre o programa nuclear. A fala do presidente
Obama poderia ser resumida em três frases: 1) “estendi a mão para os
iranianos, mas não fui correspondido”; 2) “o programa nuclear iraniano é
o problema mais importante da segurança mundial” e 3) “preciso de
amigos que possam conversar com países que se recusam a falar
conosco”.
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Especificamente na questão nuclear, tratava-se de retirar do Irã uma
certa quantidade de urânio enriquecido, que seria utilizável em um
armamento nuclear, em troca de acesso a elementos combustíveis para seu
reator de pesquisa. Esse esquema, que emanou de uma proposta norte-
americana, ficou conhecido como “Swap Agreement” (Acordo de Troca).
Depois de um longo processo negociador, chegou-se à Declaração de
Teerã de 17 maio de 2010, um resultado que correspondia essencialmente
à proposta do Acordo de Troca. Era uma medida de construção de
confiança, que mereceu referências positivas de vários especialistas e
conhecedores do tema, entre eles Mohamed ElBaradei, ex-diretor da
Agência Atômica, Thomas Pickering, ex-Subsecretário de Estado dos
Estados Unidos e Roger Cohen, articulista do New York Times e
especialista em temas do Oriente Médio.
Ainda que tenha sido rejeitado na época, esse esforço teve influência
no processo negociador que se seguiu. Anne Marie Slaughter, que fora
diretora de planejamento diplomático do Departamento de Estado à época
da Declaração, argumentou em um artigo publicado no Financial Times
em novembro de 2011 que as potências ocidentais deveriam revisitar o
acordo do Brasil e da Turquia. Um acordo provisório entre o Irã e as
principais potências nucleares mais a Alemanha foi alcançado em 2013.
O jornalista Clóvis Rossi, que foi por muitas vezes crítico das nossas
políticas, reconheceu em um artigo de novembro de 2013 que o “acordo
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do Lula era melhor”. A versão definitiva, conhecida como JCPOA, foi
aprovada pelas partes apenas em 2015 e logo seria abandonada por
Donald Trump. Em recente encontro, funcionário norte-americano de
primeiro escalão referiu-se à proposta brasileira como um “passo
importante”.
O fato de termos sido chamados para participar de uma negociação
tão complexa em um campo altamente sensível era uma demonstração de
que o Brasil tinha se colocado no mundo. E seu envolvimento no “grande
jogo da política internacional” não se justificava apenas pela defesa de
seus interesses, mas também pela importância global, como queria San
Tiago Dantas, grande idealizador da política externa independente.
À altura do segundo mandato de Lula, apesar das tensões
geopolíticas, a ameaça de guerra entre as grandes potências parecia
afastada e as relações entre as grandes nações em desenvolvimento se
multiplicavam. A integração da América Latina, em particular da América
do Sul, parecia caminhar a passos rápidos. A multipolaridade era vista
como algo essencialmente benigno e alcançável. O próprio Obama viria a
se referir, já no seu segundo mandato, ao mundo multipolar, para desgosto
dos “neocons”. Assim, ao tempo em que o governo Lula chegava ao fim,
coincidindo com o final da primeira década do milênio, poder-se-ia dizer
que, apesar de percalços e frustrações, havia um clima geral de otimismo.
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Agora
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eleição do presidente Lula representou uma retomada da confiança nas
instituições democráticas e um retorno à racionalidade na política. Mas
esse otimismo é matizado por uma sensação de fragilidade diante de tudo
o que se passou nos últimos anos. Esse processo de recuperação ainda está
em curso.
O período que sucedeu ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff
e à prisão de Lula foi marcado pela ausência quase total do Brasil no
cenário internacional. Pior ainda: em temas como gênero e raça, tanto
internamente, como no debate internacional, foram tomadas posições que
estavam em total desconformidade com valores civilizatórios. Estivemos
à beira de uma guerra com a Venezuela, a pretexto de uma intervenção
supostamente humanitária, que teria levado à ruptura de uma história de
150 anos de paz entre o Brasil e seus vizinhos. Essa ausência do Brasil,
agravada por posturas negativistas em relação a valores, é responsável
pelo que algumas personalidades políticas sul-americanas chamavam de
“hueco brasileño” (vazio brasileiro). Havia um reconhecimento de que,
sem o Brasil, a atuação da América Latina, em especial da América do
Sul, ficava muito debilitada.
A primeira tarefa do Lula III era, assim, recuperar a posição do
Brasil no mundo. Daí a intensa agenda de viagens do presidente em seu
primeiro ano de mandato. Depois de participar da Cúpula da CELAC, em
Buenos Aires, Lula visitou os Estados Unidos e a China, participou da
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reunião do G-7 em Hiroshima e da Cúpula do G20 na Índia, apenas para
destacar alguns desses compromissos. Logo no início do segundo ano,
visitou a Liga Árabe, no Cairo, e a União Africana, em Adis Abeba,
acentuando o universalismo de nosso relacionamento externo. Como diz
o próprio presidente “o Brasil voltou”. Mas voltou para um mundo
marcado por três grandes crises, que compõem um quadro extremamente
preocupante: a climática, a da saúde e a geopolítica. Essas crises vêm
somar-se a uma crise estrutural: a da fome e da desigualdade.
A ameaça à própria existência humana causada pela crise climática
tornou-se um tema inescapável. Por outro lado, a ação coletiva nessa área
enfrenta imensas dificuldades, como se vê pelo fato de que o consumo
mundial de petróleo continua a crescer. O limite de 1,5º do aumento da
temperatura terrestre será provavelmente ultrapassado ainda nesta década,
com consequências irreversíveis. O primeiro compromisso internacional
de Lula como presidente eleito foi na COP 27, em Sharm El Sheik. Já em
seu primeiro dia, o governo do presidente Lula deu início a um esforço de
restauração das políticas públicas voltadas à mudança do clima, em
particular o combate ao desmatamento, com a recriação do Fundo
Amazônia. Sediamos, em agosto passado, a Cúpula da Amazônia, que
propôs a concertação de posições dos países amazônicos nas negociações
de clima. Como destacou o presidente, “o mundo sempre falou da
Amazônia. Agora, a Amazônia fala ao mundo”.
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O Brasil está empenhado a contribuir para manter a esperança de um
planeta habitável. Temos defendido que uma transição só será justa se
ocorrer no contexto do desenvolvimento sustentável e do combate à
pobreza. Ao assumir suas responsabilidades, o Brasil também tem feito
um chamado para que os países desenvolvidos cumpram suas promessas,
sobretudo em matéria de financiamento. O presidente Lula foi
especialmente enfático sobre esse tema na Cúpula de Paris sobre o Novo
Pacto de Financiamento Global. Não por acaso esse tema foi incluído
entre as prioridades do Brasil no G20.
Outra crise que escancara a fragilidade da vida humana é a da saúde
global. No período em que estive fora do governo, participei de um painel
de alto nível estabelecido pelo Secretário-Geral da ONU Ban Ki-moon
para discutir as lições do Ebola. O relatório do painel (“Protecting
Humanity from Future Health Crises”), publicado em janeiro de 2016,
alertava sobre os riscos de novas pandemias com consequências
desastrosas, caso certas medidas não fossem tomadas com sentido de
urgência. Algumas delas diziam respeito ao fortalecimento dos sistemas
de saúde dos países; outras tinham a ver com o acesso a medicamentos e
vacinas. Nada ou muito pouco foi feito. Foi surpreendente testemunhar,
quatro anos depois, que a pandemia de COVID-19 se desdobraria de
forma tragicamente similar ao que estava previsto no relatório.
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O mundo que encontramos ao voltar ao governo no início de 2023
também é marcado por imensas tensões geopolíticas. Em alguns casos,
trata-se de conflitos armados que trazem embutidos riscos de guerras
globais. Isso coloca para o Brasil novos desafios. No período anterior,
houve momentos de tensão, como a própria guerra no Iraque, começo da
expansão da OTAN para a Europa do Leste, o conflito na Georgia e o
contínuo e desumano bloqueio a Cuba. Ainda assim, apesar dos discursos
inflamados e ações unilaterais, as superpotências agiam de forma
relativamente racional e conseguiam por vezes colocar interesses comuns
acima de desavenças.
Quando saímos do governo, a secretária de Estado dos Estados
Unidos, Hillary Clinton, e o ministro das Relações Exteriores da Rússia,
Sergey Lavrov, falavam no “Reset Button” (um recomeço). Agora, não
seria exagero dizer que Estados Unidos e Rússia estão indiretamente em
guerra. Há tempos, não se assistia a um enfrentamento militar no coração
na Europa, como a guerra da Ucrânia.
Indiscutivelmente, a Rússia atravessou uma linha vermelha ao
invadir a Ucrânia e fazer uso da força sem autorização do Conselho de
Segurança da ONU, o que despertou um sentimento de profunda
insegurança na Europa e no Ocidente como um todo. A invasão da Ucrânia
ensejou ampla condenação, à qual o Brasil se juntou. Mas não será
possível encontrar uma solução estável para esse conflito, ignorando as
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legítimas preocupações de segurança da Rússia. Em meus contatos com
autoridades estrangeiras sobre esse tema, tenho feito referência a uma
palestra proferida à BBC pelo historiador britânico Arnold Toynbee em
1952. Toybee não era de nenhuma forma simpático à União Soviética, na
época governada por Stalin, mas, ainda assim, reconhecia que a Rússia
tinha sua própria experiência de invasões por parte do Ocidente, como as
que ocorreram em 1941 (Alemanha nazista), 1915 (Alemanha), 1812
(França Napoleônica), 1709 (derrota na Batalha de Poltava) e 1610
(Comunidade Polono-Lituana).
A eventual solução para o conflito na Ucrânia não será perfeita para
nenhum dos lados. Uma verdadeira negociação só terá início quando as
partes perceberem que não atingirão seus objetivos maximalistas. Será
preciso uma dose de realismo e um novo arranjo de segurança que envolva
a Europa como um todo. Tenho participado de reuniões convocadas pela
Ucrânia, a última das quais na Suíça. Países em desenvolvimento como
Brasil, Índia e África do Sul têm sido convidados, sem, entretanto, que
suas sugestões sejam levadas em consideração. O governo do presidente
Lula tem também mantido um canal aberto com Moscou. Eu mesmo
estive com o Presidente Putin, em Moscou, como também com o
Presidente Zelensky em Kiev. Mas até aqui, em que pese eventuais acenos
retóricos, não foi possível perceber, de um lado e de outro, uma real
disposição de negociar.
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Por mais perigosa que seja a guerra na Ucrânia, ela de certa forma
empalidece diante da intensidade e da barbaridade da guerra em Gaza. Se
no caso da guerra na Ucrânia é até possível vislumbrar, em teoria, uma
solução, ainda que difícil, o conflito entre Israel e Palestina é ainda mais
intratável. A ação terrorista do Hamas é condenável sob todos os aspectos,
mas a reação desproporcional de Israel é inaceitável. A Corte
Internacional de Justiça se pronunciou no sentido de que há plausibilidade
de genocídio e adotou medidas cautelares correspondentes. O conflito
entre Israel e Palestina é singular na ressonância emocional que desperta
e na maneira como se reflete na política interna de muitos países. A
manipulação de símbolos e crenças religiosas é particularmente visível no
Brasil. Este conflito é como um vórtice capaz de gerar turbulências
globais. Ainda que saibamos os contornos de uma solução – que envolve
a criação de um Estado palestino viável, com fronteiras seguras, vivendo
ao lado do Estado de Israel – não existe hoje uma disposição efetiva em
dialogar. Será necessária muita pressão internacional para que cheguemos
a esse ponto.
Durante os mandatos anteriores do presidente Lula, falava-se do
Mapa do Caminho, da Iniciativa Árabe para a Paz, da Conferência de
Annapolis. Tive a oportunidade de participar de algumas dessas
discussões. Apesar das enormes dificuldades, parecia haver uma
racionalidade básica na busca dos interesses das partes, e por vezes até
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certo humor. Lembro-me particularmente de uma conversa que tive com
o então negociador palestino Saeb Erekat, que faleceu em 2020. Disse a
Erekat que me parecia que a raiz dos problemas do Oriente Médio era o
fato de a região ter muita história. Erekat rapidamente acrescentou “muita
história, e pouca geografia”. Hoje, esses processos de diálogo são
inexistentes e a situação se agravou de maneira trágica, desafiando a
consciência da humanidade.
Além desses conflitos, há também uma questão estrutural, a
possibilidade de uma nova Guerra Fria. A rivalidade entre Estados Unidos
e China, em termos econômicos, alcançou elevado nível de tensão, que
levou alguns analistas a enxergarem a possibilidade de evolução para um
conflito militar. Na obra “A caminho da guerra: Os Estados Unidos e a
China conseguirão escapar da armadilha de Tucídides?”, o historiador
Graham Allison compara a dinâmica de competição entre Estados Unidos
e a China com a que existiu entre Atenas e Esparta e desencadeou a Guerra
do Peloponeso. Em ambos os casos, uma potência emergente passa a ser
uma ameaça direta aos interesses de outra grande potência, aumentando
as chances de conflito. Como indício positivo de que começa a haver uma
percepção dos riscos e um esforço de superá-los, dois acontecimentos
recentes merecem ser notados. Por ocasião do encontro da APEC em
novembro passado, Xi Jinping foi aplaudido de pé por empresários norte-
americanos ao final de discurso que proferiu na Califórnia. Por outro lado,
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o próprio Graham Allison manteve diálogo fluido com Xi Jinping em
recente visita à China. Nessa ocasião, foi lançado um livro de entrevistas
de um autor chinês com o pensador americano com o título mais otimista
“Escapando da Armadilha de Tucídides”.
Aqui perto de nós, a situação não é menos complexa. Encontramos
uma América Latina muito diferente da era que foi caracterizada como
“onda rosa”. Depois de uma sucessão de governos progressistas – ou
conservadores que não se furtavam ao diálogo –, houve um retorno de
governos de direita, ou mesmo de extrema-direita, como ocorreu no
Brasil. A fragilidade institucional passou a ser algo corrente em nossa
região. Também é alarmante a gravidade da ameaça do crime organizado,
que em alguns casos tem levado à falência quase total do Estado.
Quando se discute a integração na América do Sul, é comum que
muitas pessoas pensem apenas no comércio. O comércio é sobretudo um
instrumento. O objetivo principal é a paz. A integração e a paz são as bases
essenciais da projeção internacional do Brasil. Viver em paz em nossa
região é o que nos dá tranquilidade para atuar no mundo.
Em minha Aula Magna de 2004, afirmei que a integração da
América do Sul não era um objetivo fácil de realizar. A CELAC é um foro
político que continua operante, mas sofre de limitações institucionais,
enquanto o futuro da UNASUL – que teria força jurídica por ter sido
criada por tratado – ainda é uma indagação. O MERCOSUL enfrenta
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dificuldades, especialmente no seu relacionamento externo, em virtude de
concepções divergentes de como o bloco deve inserir-se na economia
internacional. O fato auspicioso da adesão da Bolívia não chega a
compensar totalmente essas divergências.
As negociações entre o MERCOSUL e a União Europeia duram
mais de vinte anos e a resistência de vários setores, especialmente os
agricultores franceses, é crescente. Pessoalmente, continuo a ver no
acordo interesse mais estratégico do que estritamente econômico. A ideia
do acordo ainda está muito ligada à esperança de construção e de
consolidação de um mundo multipolar, mas a sua base conceitual, a crença
de que o livre-comércio resolveria todos os problemas, já não prevalece.
O crescimento do protecionismo nos países desenvolvidos põe em risco o
futuro da OMC, cujo pilar principal – o sistema de solução de
controvérsias – parece irremediavelmente paralisado e acentua a crise do
multilateralismo.
O futuro?
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problemas gravíssimos como a mudança do clima, as pandemias, as
guerras e a fome. Essa cooperação é necessária para lidar com novos
desafios, como a regulamentação da inteligência artificial e das
plataformas digitais. É urgente a reforma da governança global, com
amplo escopo, como ocorreu nas conferências de Versalhes, São
Francisco/Breton Woods. Quando contemplamos o anacronismo da
governança atual, quase oitenta anos após sua origem, é como imaginar
que depois da Primeira Guerra Mundial a ordem internacional ainda fosse
regida pelos conceitos do Congresso de Viena (1814-1815).
Já se disse que a humanidade só coloca problemas que ela é capaz
de resolver. Minha esperança é que a humanidade possa empreender um
esforço para repactuar as bases da governança global sem que uma guerra
mundial ou outra catástrofe equivalente a obrigue a fazê-lo.
O G-20, ligeiramente modificado para dar mais peso ao continente
africano, é uma esperança. Embora alguns puristas temam que as
discussões no G20 – criado para lidar com temas econômicos – sejam
contaminadas pelas crises do momento, não se pode desconhecer que as
questões econômicas devem receber também um tratamento político.
Inversamente, queira-se ou não, crises políticas e de segurança impactam
na economia. A expansão temática do G20 já é uma realidade. Em alguns
casos, trata-se de uma oportunidade de levar temas que são tratados pelos
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ministros especializados para discussão em nível presidencial. A mudança
da governança global não pode ser fatiada.
Assim como a governança global precisa ser fortalecida, a
democracia também precisa ser valorizada e protegida. Em todo o mundo,
assistimos a expressões de uma extrema direita populista, que remete ao
contexto da Europa nos anos 20 e 30 do século passado. É preocupante o
grau de agressividade das discussões que ocorrem na internet, onde
passamos tempo cada vez maior de nossos dias. A civilidade como
princípio básico do debate público deixou de ser respeitada. Nesse
ambiente, prevalecem explicações simplistas para temas complexos.
Ganham tração aqueles capazes de mobilizar os sentimentos mais
primitivos das pessoas, como o ódio e o medo. O que se vê como resultado
dessa dinâmica é o crescimento da sensação de desconfiança dentro da
sociedade, que acaba se voltando contra as instituições democráticas. A
extrema-direita compreende perfeitamente essa lógica e tem usado esses
instrumentos como forma de mobilização política. É um movimento que
se articula internacionalmente e que segue um “script” semelhante em
diversos países. Não há resposta simples para esse fenômeno. Mas o
abandono, tático que seja, de posições radicais pelos setores progressistas
pode ser um caminho. Assim como ocorreu no Brasil nas últimas eleições,
representantes de um amplo espectro político que inclui a esquerda e o
centro devem continuar a unir forças pela preservação da democracia.
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Conclusões
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desenvolvimento tecnológico e industrial. Continuaremos atuando com
uma visão democrática e pluralista. E continuaremos a ter o combate à
fome, à pobreza e às desigualdades como elemento norteador de nossas
ações.
Em meio a tantos desafios, há também que reconhecer a evolução
positiva de certos temas nas últimas décadas. Embora ainda haja muito
por fazer, ampliou-se o papel das mulheres na vida pública, a luta pela
igualdade racial avançou e os direitos dos povos indígenas têm sido
reconhecidos. Mas como vimos no Brasil, visões retrógradas e
obscurantistas continuam vivas e sempre prontas a forçar retrocessos. A
Universidade, como defensora da razão e do livre debate de ideias, terá
papel fundamental para garantir a continuidade do progresso.
Para voltar ao ponto de onde partimos. Uma política externa não será
ativa e altiva se não defender com desassombro os interesses nacionais.
Mas tampouco o será se não incorporar os valores civilizatórios e não
refletir os ideais da democracia, da racionalidade e da justiça.
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