2009 Iracema

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iracema

josé martiniano de
alencar júnior
Iracema

1. Contexto social e HISTÓRICO

A vinda de D. João VI para o Brasil e as conseqüentes transformações ocor-


ridas em nosso quadro cultural, como a inauguração da Biblioteca Pública (hoje
Biblioteca Nacional), a criação de cursos médico-cirúrgicos na Bahia e no Rio de
Janeiro, a Academia da Marinha e a Academia Militar, o Real Horto (Jardim
Botânico) e o Museu Real, contribuíram para a inserção de um ensino técnico e
científico em nosso meio, embora visasse sobretudo à reorganização do Exército e
da Marinha. A criação de escolas e de cursos profissionais visava a uma resposta
imediata para os problemas do governo português recém-transladado ao Brasil.
A nova configuração do meio brasileiro, que adquiria aspectos urbanos, necessi-
tava de determinados profissionais. A independência política, realizada quatorze
anos após a chegada de D. João VI, e as lutas para sustentá-la contra Portugal,
como os problemas militares externos (a Cisplatina) e internos (a Confederação
do Equador), colocaram a questão política e militar em primeiro plano, apresen-
tando como único empreendimento cultural do Primeiro Império a criação das
Faculdades de Ciências Jurídicas e Sociais, em 1827, em Olinda e em São Paulo.
No período da Regência (1831-1840), foi criado o Colégio Pedro II.
No dia 13 de maio de 1808, começou a funcionar no Brasil a primeira ti-
pografia, que imprimia livros científicos e um jornal, A Gazeta do Rio de Janeiro.
Aos poucos, numa terra de analfabetos, foram-se criando um público leitor e as
condições necessárias para a consolidação de uma literatura.
Após a Independência do Brasil, em 1822, cresceu entre os intelectuais brasilei-
ros o sentimento de nacionalismo e o desejo de criar uma literatura identificada com
as raízes históricas do país e do seu povo, com o intuito de diferenciá-la da literatura
portuguesa. Os escritores românticos brasileiros ansiavam por criar uma literatura
que contivesse os elementos essenciais da cultura brasileira; surgiu, então, a primeira
geração romântica, que trabalhava os temas do indianismo e do nacionalismo.
O teatro romântico brasileiro surgiu dentro do programa de nacionalização
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da literatura.
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2. Estilo literário da época

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A palavra romântico deriva do latim romanice e significa “à maneira dos


romanos”. No século XII, o termo rommant referia-se à língua vulgar, ou seja,
toda língua que não fosse o latim.
Das acepções da palavra romantismo, convém distinguir: 1) a palavra ro-
mantismo deriva de romântico (romantic), que, por sua vez, deriva de romance
(roman). O adjetivo romântico designava, na Inglaterra do século XVII, as narrati-
vas fantasiosas das novelas de cavalaria; 2) no século XVIII, na França, designava
paisagens selvagens e pitorescas; 3) no século XIX, na Alemanha, designava uma
tendência artística contrária ao Classicismo.
Como o adjetivo romântico é empregado sem muito rigor, normalmente
ocorrem algumas confusões, porque ora designa um estado de espírito, uma
atitude, e, portanto, está presente em todas as épocas, ora designa uma escola
literária do início do século XIX.
Como escola literária, o Romantismo surgiu na Alemanha, com a publicação
da revista Athenäeum, editada pelos irmãos Schlegal, de 1798 a 1800, em Iena,
espalhando-se daí para o restante do mundo.
Na Inglaterra, o Romantismo teve início em 1798, com a edição de Lyrical
Ballads, de autoria conjunta de Wordsworth e Coleridge. Na França, o Romantismo
passou a ter plena aceitação em 1820, com Méditations, do poeta Lamartine.
Em Portugal, o ano de 1825, com a publicação de Camões, de Almeida Gar-
rett, marcou o início do Romantismo português. O Romantismo no Brasil teve
início em 1836, com a publicação de Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves
de Magalhães.
O Romantismo valoriza, sobremaneira, o idealismo e o espiritualismo. Por
idealismo, entenda-se o primado do sujeito sobre o objeto, ou seja, o universo
interior é mais importante que a realidade exterior e, por isso, as emoções im-
portam mais que a realidade, a subjetividade vale mais que a realidade externa,
e as emoções falam mais alto que a razão. Por espiritualismo, entenda-se que a
realidade é o espírito e a matéria (o real) é inferior ao espírito, devendo apenas
servi-lo.
O Romantismo valoriza a noite, o sonho, a dor, a arte e a natureza como
formas de fugir da realidade, de negar a razão. Para os românticos, em oposição
ao Iluminismo do século XVIII, não é a razão que leva o homem ao conhecimen-
to do infinito, mas o sentimento e a fantasia. Por isso, cabe ao poeta, e não ao
racionalista, a descoberta do sentido da vida.
O homem romântico encontra-se no limiar de dois mundos: pela alma está
ligado ao divino, e aí reside sua grandeza; pelo corpo está preso à matéria, e aí
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reside sua desgraça. Sua metade matéria o prende ao mundo físico, o que faz
com que ele sinta uma profunda nostalgia do infinito e do divino, e toda separa-
ção, seja da infância, do lar, da amada ou da pátria, desperta nele a saudade do
infinito. Por isso, para ele a vida é insuportável, e a morte é vista como solução
para o sofrimento. Como os cristãos chamam o mundo terreno de século, vem
daí o “mal do século”, isto é, a consciência de que este mundo é apenas sofri-
mento e, portanto, o melhor a fazer é abandoná-lo, seja através do sonho, seja
através da morte, vista como “a recompensa da vida”. O homem nasceu para a
dor, não para a alegria.
Para o romântico, o sentimento mais importante é o amor, porque liga o
homem ao infinito. Todo o amor terreno é apenas a superfície do amor infinito,
que só pode ser alcançado pela morte. Daí a morte completar o amor, pois só
no infinito o homem pode viver a plenitude do sentimento amoroso. Por isso,
o final feliz não é importante, porque a única felicidade possível reside na co-
munhão com o infinito. O sentimento elevado ao infinito é o que o romântico
chama de sublime.
Como a alma do homem não é deste mundo, ele se rebela contra toda re-
gra que deseje prendê-lo, pois acredita que a sua alma é livre. Nada, portanto,
pode prendê-lo, nem as regras da sociedade nem as regras da criação literária.
Daí a idéia de ruptura com todas as regras da arte e com tudo o que aprisiona
o homem.
A relação do homem com sua parte divina pode ocorrer por intermédio da
nação, que o romântico entende como um povo que se organiza politicamente
num território, em decorrência de uma vontade divina. Por isso, a inspiração
vem do povo, e o artista é nacionalista, devendo saber traduzir, em seus textos,
a “alma do povo”. Não é por acaso que, no Romantismo, surgiu uma ciência que
procurava investigar a sabedoria popular, recebendo o nome de folclore.
O individualismo romântico não é contrário ao sentimento nacionalis-
ta, porque, em sua solidão, o romântico sente simpatia por todos os seres do
universo, e em particular pelo ser humano. Em seu egocentrismo, ele se sente
integrado ao cosmos.
O movimento romântico brasileiro coincide com o momento decisivo de
autonomia da pátria. Os escritores tomam para si a missão de reconhecer e va-
lorizar o passado brasileiro, conferindo à literatura cores locais e esforçando-se
para criar uma literatura legitimamente brasileira, capaz de revelar as qualidades
grandiosas da pátria que se tornara independente. Neste sentido, José de Alencar
aparece na literatura brasileira como o consolidador do romance, realizando, na

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prosa de ficção, sobretudo em romances como O guarani e Iracema, a tendência


nacionalista que vinha sendo reclamada pela crítica.
O gosto pelo teatro foi uma das características marcantes do Romantismo
em todos os países. No Brasil, coube a Gonçalves de Magalhães a encenação da
primeira tragédia, intitulada Antônio José ou O poeta e a inquisição, no dia 13 de
março de 1863, no palco do Constitucional Fluminense, no Rio de Janeiro, sob
os cuidados do ator João Caetano.
O grande nome do teatro romântico brasileiro é Martins Pena, considerado
o inventor da comédia de costumes brasileira.
O teatro de José de Alencar é marcado por uma preocupação moral. A
comédia O demônio familiar apresenta a figura do menino escravo Pedro, o “de-
mônio familiar”, como um malandro e aproveitador, capaz apenas de fazer o
mal para a família brasileira.

Resumo das principais características românticas

• Liberdade de expressão

• Escapismo, fuga da realidade por meio de um retorno à infância e ao pas-


sado histórico e por meio do sonho e da morte.

• Individualismo, egocentrismo

• Subjetivismo, valorização das emoções

• Nacionalismo

• Idealização da realidade
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José Martiniano de Alencar Júnior

3. O AUTOR
José Martiniano de Alencar Júnior nasceu em
Mecejana, Ceará, no dia primeiro de maio de
1829. Era primogênito dos sete filhos de um
padre que largou a batina, após conhecer
uma prima, para se casar.
Seu pai, José Martiniano de Alencar,
foi um importante político, tendo sido sena-
dor e presidente da província do Ceará.
José de Alencar estudou Direito
na faculdade do Largo São Francisco,
em São Paulo, onde travou amizade
com Álvares de Azevedo, Aureliano
Lessa e Bernardo Guimarães, com
quem fundou a famosa Epicuréia,
uma sociedade “etílico-literária-
charutesca”, que marcou época
naquela faculdade.
Formado em Direito, exer-
ceu a advocacia, seguindo tam-
bém uma promissora carreira política, sendo ministro da Justiça de Pedro II e
deputado por vários mandatos. Entretanto, teve o seu nome vetado pelo próprio
imperador a uma cadeira no Senado, em razão de uma desavença literária envol-
vendo o poeta Gonçalves de Magalhães (1811-1882), que havia publicado o seu
poema épico-indianista, Confederação dos Tamoios, sob as expensas de Pedro II.
Ao declarar que sua obra se tornaria o símbolo da poesia brasileira (assim como
Os lusíadas, de Camões, simbolizavam a poesia de Portugal), recebeu críticas
negativas de Alencar em artigos assinados sob o pseudônimo de Ig. Pedro II saiu
em defesa do amigo poeta, com o artigo Um Outro Amigo do Poeta. Não satisfeito,
proibiu Alencar de assumir o Senado, alegando que ele ainda era jovem para tal
cargo. Inconformado, Alencar retrucou, perguntando ao imperador como alguém
de 14 anos poderia, então, ter assumido o Império.
Decepcionado com a política, passou a dedicar-se com mais freqüência
à carreira literária (e também à jornalística), explorando o romance, a crônica,
o teatro, a poesia e a crítica literária, tornando-se o mais completo escritor do
Romantismo brasileiro. José de Alencar morreu no Rio de Janeiro, em 12 de de-
zembro de 1877, acometido pela tuberculose.

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Obras
Romances sociais Narrativa autobiográfica
1856 – Cinco minutos 1893 – Como e por que sou romancista
1857 – A viuvinha
1862 – Lucíola
1864 – Diva Teatro
1870 – A pata da gazela 1857 – O crédito
1872 – Sonhos D’Ouro 1857 – Verso e reverso
1875 – Senhora 1857 – O demônio familiar
1893 – Encarnação 1858 – As asas de um anjo
1860 – Mãe
Romances indianistas 1867 – A expiação
1857 – O guarani 1875 – O jesuíta
1865 – Iracema
1874 – Ubirajara
Crítica literária e polêmica
Romances regionalistas 1856 – Cartas sobre a Confederação dos
Tamoios
1870 – O gaúcho
1865 – Ao imperador: Cartas políticas de
1871 – O tronco do ipê Erasmo e Novas cartas políticas de
1874 – Til Erasmo

1875 – O sertanejo 1866 – Ao povo: Cartas políticas de Erasmo


1866 – O sistema representativo

Romances históricos
1865 – As minas de prata
1871 – Guerra dos mascates Crônica

1873 – Alfarrábios 1874 – Ao correr da pena


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4. A OBRA

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CARACTERÍSTICAS GERAIS
José de Alencar soube como ninguém explorar o espaço que lhe era con-
cedido no jornal. Criou colunas para suas crônicas, publicou seus romances de
folhetim, já que era muito difícil conseguir quem os editasse em livros – vale
a pena lembrarmos que a primeira editora nacional só surgiu no começo do
século XX, fundada por Monteiro Lobato (1882-1948). Também não se deixou
intimidar, escrevendo críticas e criando polêmicas, que fizeram dele um dos
nomes mais respeitados, admirados e temidos no meio jornalístico da época.
Alguns de seus romances, como Senhora e Lucíola, já deixavam transpa-
recer, devido aos temas tratados, características realistas; já outros, como O
guarani e Iracema, fizeram de Alencar o maior romancista romântico de nossa
literatura. O primeiro, quando publicado no Diário do Rio de Janeiro, sob a forma
de folhetim, causou tanto impacto, furor e frenesi na época que era comum
ver pessoas em círculo escutando um leitor de boa voz contar o capítulo do
dia. Já Iracema, uma das obras-primas de nossa literatura, é considerada um
verdadeiro poema em prosa (ou uma prosa poética?), devido à beleza e à rara
sensibilidade com que nos é contada a história de Martim e Iracema.
Conhecedor de nossa cultura indígena – assim como Gonçalves Dias
(1823-1864) na poesia –, Alencar, como vimos, escreveu três romances indianistas:
O guarani (este também com valor histórico, daí ser considerado o introdutor do
romance histórico na literatura brasileira), Iracema e Ubirajara. Em O guarani, temos
a figura do índio assimilando a cultura européia de Ceci e de sua família; em Ira-
cema, temos o contrário, isto é, a figura do europeu, no caso Martim, assimilando
a cultura indígena de Poti e Iracema. Em Ubirajara, temos somente a presença do
índio, já que, ao contrário das duas anteriores, que se passam por volta de 1600,
esta se passa antes de 1500, portanto sem a presença do elemento branco. Por
isso, consideramos Ubirajara o mais aborígene romance de Alencar.
Quanto à linguagem, Alencar adotou a coloquial. Assim, encontramos
alguns erros que não ferem gravemente a nossa gramática, mas que foram du-
ramente criticados pelo seu conterrâneo Franklin Távora (1842-1888), autor de
O cabeleira e iniciador da literatura regionalista nordestina. Távora, que lutava
por uma literatura tipicamente brasileira (e essa literatura, para ele, obrigato-
riamente tinha de ser a nordestina, única região que não havia sido influen-
ciada pelos costumes europeus, apesar das invasões holandesas e francesas),
não se conformava que um cearense, assim como ele, escrevesse de maneira
europeizada. Trocaram, então, farpas literárias: Távora sob o pseudônimo de
Semprônio, Alencar, sob o de Cincinato.
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CARACTERÍSTICAS DE IRACEMA
O poeta modernista Manuel Bandeira (1886-1968), em seu livro Louvações, ho-
menageou José de Alencar e sua obra Iracema pelo centenário de sua publicação:

Louvo o Padre, louvo o Filho


E louvo o Espírito Santo.
Idem louvo, exalto e canto
O prosador, grande filho
Do Norte, e que no deserto
Do romance nacional
Ergueu, escorreito e diserto,
Seu mundo, – um mundo imortal.

Além, muito além da serra


Que lá azula no horizonte,
Inventou a donzela insonte,
Símbolo da nossa terra,
E escreveu o que é mais poema
Que romance, e poema menos
Que um mito, melhor que Vênus:
A doce, a meiga Iracema.

E o mito inda está tão jovem


Qual quando o criou Alencar.
Debalde sobre ele chovem
Os anos, sem o alterar.
Nem uma ruga no canto
Dos olhos de moço brilho!
Louvo o Padre, louvo o Filho
E louvo o Espírito Santo

Para muitos, a palavra Iracema é o anagrama de América, isto é, o novo


mundo nascido do cruzamento do velho mundo com o mundo selvagem. Temos
então a seguinte equação:
Velho Mundo (Europa / Martim) + Mundo Selvagem (Indígena / Iracema)
= Novo Mundo (América / Moacir).
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Tendo como subtítulo Lenda do Ceará, daí não possuir o mesmo valor
histórico contido em O guarani (que trata da fundação do Rio de Janeiro), Ira-
cema é, portanto, uma obra alegórica sobre a colonização do Ceará, podendo,
perfeitamente, representar toda a colonização brasileira. Desse modo, podemos
considerar Moacir, o filho do sofrimento, não só o primeiro cearense, mas o
primeiro brasileiro.
São características românticas presentes em Iracema: nacionalismo; idea-
lização do índio como um herói (aí entra também a figura do guerreiro branco,
Martim); sentimentalismo exagerado; retorno ao passado e sentimento de religio-
sidade cristã, como podemos perceber neste trecho:
O cristão repeliu do seio a virgem indiana. Ele não deixará o rastro da desgraça
na cabana hospedeira. Cerra os olhos para não ver, e enche sua alma com o nome e a
veneração de seu Deus:
– Cristo!... Cristo!...

Quanto ao foco narrativo


Narrado em terceira pessoa, o narrador, dotado de onisciência, isto é, sabe
de tudo o que acontece com os seus personagens, mostra-se tão inspirado quanto
qualquer exaltado poeta do período, deixando pelo caminho de sua narrativa
um rastro de mensagens de amizade, amor, sabedoria, felicidade e família, que
podemos sintetizar nesta fala de Poti:
– O guerreiro sem amigo é como a árvore solitária que o vento açouta no meio do
campo; o fruto dela nunca amadurece. A felicidade do varão é a prole, que nasce dele e
faz seu orgulho; cada guerreiro que sai de suas veias é mais um galho que leva seu nome
às nuvens, como a grimpa do cedro. Amado de Tupã, é o guerreiro que tem uma esposa,
um amigo e muitos filhos; ele nada mais deseja senão a morte gloriosa.

Quanto à linguagem
Como bem disse Manuel Bandeira, Alencar escreveu um romance que
se parece mais com um poema. Isso porque o romancista-poeta se utilizou de
recursos estilísticos, principalmente de símiles e metáforas da fauna e da flora
de nossa natureza, para a caracterização de seus personagens, tanto no aspecto
físico quanto no emocional, fazendo com que eles surgissem amalgamados a
essa natureza.
– O gavião paira nos ares. Quando o nambu levanta, ele cai das nuvens e rasga as
entranhas da vítima. O guerreiro tabajara, filho da serra é o gavião.
– O guerreiro pitiguara é a ema que voa sobre a terra; nós o seguiremos como suas
asas – disse Iracema.
– As lágrimas da mulher amolecem o coração do guerreiro, como o orvalho da
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manhã amolece a terra.


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Quanto ao tempo
O romance Iracema se passa por volta de 1600, já com a presença do colo-
nizador europeu. Essa é uma época de lutas entre portugueses e os invasores
franceses e holandeses.
Tempos depois, quando veio Albuquerque, o grande chefe dos guerreiros brancos,
Martim e Camarão partiram para as margens do Mearim a castigar o feroz tupinambá
e expulsar o branco tapuia.

Quanto ao espaço
As ações se passam no território cearense. A tribo Tabajara (senhor das
aldeias) domina o interior da província. Já a tribo Pitiguara ou Potiguara (senhor
dos vales) domina o litoral (daí uma tribo de pescadores ou, pejorativamente, os
comedores de camarão, segundo os seus inimigos).
Poti saudou o amigo e falou assim:
– Antes que o pai de Jacaúna e Poti, o valente guerreiro Jatobá mandasse sobre todos
os guerreiros pitiguaras, o grande tacape da nação estava na destra de Batuireté, o maior
chefe, pai de Jatobá. Foi ele que veio pelas praias do mar até o rio do jaguar, e expulsou
os tabajaras para dentro das terras, marcando a cada tribo seu lugar; depois entrou pelo
sertão até a serra que tomou seu nome.

ENREDO
O primeiro capítulo, na verdade, é o último, em que Martim, seu filho,
Moacir, e o cão partem para Portugal, logo após a morte de Iracema. Mas vamos
ao enredo:
Martim, o guerreiro branco, vive entre os índios pitiguaras e tem o guer-
reiro Poti como um irmão. Os pitiguaras vivem no litoral, daí serem chamados
também de senhores das palmeiras. Numa caçada com Poti, Martim se perde do
amigo, entrando na área habitada pelos inimigos tabajaras, tribo da índia Irace-
ma. E é justamente ela, ao sair do seu banho, quem o encontra e, pensando ser
talvez ele algum mau espírito da floresta, atira nele sua flecha, acertando-o de
raspão no rosto.

Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu.
Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido .

Mas Iracema percebe que Martim não era um espírito, tampouco um inimi-
go, e o amor entre eles nasce de maneira repentina. Preocupada com o ferimento,
Iracema leva Martim para sua tribo, apresentando-o ao pajé e seu pai, Araquém,
como um convidado de Tupã.
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Iracema

A virgem aponta para o estrangeiro e diz:


– Ele veio, pai.
– Veio bem. É Tupã que traz o hóspede à cabana de Araquém.
Assim dizendo, o Pajé passou o cachimbo ao estrangeiro; e entraram ambos na
cabana.

Iracema era a responsável por preparar o licor da jurema, uma bebida alu-
cinógena que, segundo a crença, fazia com que os índios entrassem em contato
com Tupã, o seu Deus, e com outros sonhos. Mas para isso ela tinha que se
manter virgem.
Iracema voltara com as mulheres chamadas para servir o hóspede de Araquém, e
os guerreiros vindos para obedecer-lhe.
– Guerreiro branco – disse a virgem –, o prazer embale tua rede durante a noite;
e o sol traga luz a teus olhos, alegria à tua alma.
E assim dizendo, Iracema tinha o lábio trêmulo, e úmida a pálpebra.
– Tu me deixas?
– As mais belas mulheres da grande taba contigo ficam.
– Para elas a filha de Araquém não devia ter conduzido o hóspede à cabana do Pajé.
– Estrangeiro, Iracema não pode ser sua serva. É ela que guarda o segredo da jurema
e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o Pajé a bebida de Tupã.

Por estar Martim com saudade de sua pátria e de seus pais, e sabendo ainda
que ele deixara a sua noiva em Portugal, Iracema lhe prepara a bebida, para que
ele os visse e matasse assim a sua saudade.
– Bebe!
Martim sentiu perpassar nos olhos o sono da morte; porém logo a luz inundou-lhe
os seios d’alma; a força exuberou em seu coração. Reviveu os dias passados melhor do que
os tinha vivido: fruiu a realidade de suas mais belas esperanças.
Ei-lo que volta à terra natal, abraça a velha mãe, revê mais lindo e terno o anjo
puro dos amores infantis.

Irapuã, chefe dos tabajaras, ao saber da presença do branco em sua tribo


e de seu envolvimento com Iracema, por quem era apaixonado, enciúma-se e o
desafia para um combate.
– O coração aqui no peito de Irapuã ficou tigre. Pulou de raiva. Veio farejando a
presa. O estrangeiro está no bosque, e Iracema o acompanhava. Quero beber-lhe o sangue
todo: quando o sangue do guerreiro branco correr nas veias do chefe tabajara, talvez o
ame a filha de Araquém.
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Iracema protege Martim da ira de Irapuã. Mas o seu desejo é vê-lo longe
dos campos tabajaras e revela-lhe o seu segredo:
– Guerreiro branco, Iracema é filha do Pajé, e guarda o segredo da jurema. O
guerreiro que possuísse a virgem de Tupã morreria.

Caubi é destinado por seu pai, Araquém, a ser o guia de Martim, levando-
o em segurança até a presença de Poti. Entretanto, os tabajaras os perseguem e
Iracema tem de voltar à cabana de seu pai, onde Martim é escondido.
Quem seus olhos primeiro viram, Martim, estava tranqüilamente sentado em
uma sapopema, olhando o que passava ali. Contra, cem guerreiros tabajaras com Irapuã
à frente, formavam arco. O bravo Caubi os afrontava a todos, com o olhar cheio de ira e
as armas valentes empunhadas na mão robusta.
O chefe exigira a entrega do estrangeiro, e o guia respondera simplesmente:
– Matai Caubi antes.
A filha do Pajé passara como uma flecha: ei-la diante de Martim, opondo também seu
corpo gentil aos golpes dos guerreiros. Irapuã soltou o bramido a onça atacada na furna.
– Filha do Pajé – disse Caubi em voz baixa –, conduz o estrangeiro à cabana: só
Araquém pode salvá-lo.

Iracema prepara novamente o licor da jurema para Martim, que desta vez
sonha em possuir a bela índia.
– Vai, e torna com o vinho de Tupã.
Quando Iracema foi de volta, já o Pajé não estava na cabana; tirou a virgem do
seio o vaso que ali trazia oculto sob a carioba de algodão entretecida de penas. Martim
lhe arrebatou das mãos, e libou as gotas do verde e amargo licor.
Agora podia viver com Iracema, e colher em seus lábios o beijo, que ali viçava
entre sorrisos, como o fruto na corola da flor. Podia amá-la, e sugar desse amor o mel e o
perfume, sem deixar veneno no seio da virgem.
(...)
A filha de Araquém escondeu no coração a sua ventura. Ficou tímida e inquieta,
como a ave que pressente a borrasca no horizonte. Afastou-se rápida, e partiu.
As águas do rio banharam o corpo casto de recente esposa.
Tupã já não tinha sua virgem na terra dos tabajaras.

Os guerreiros tabajaras vão ao encontro de Araquém no bosque sagrado


para o ritual do mistério da jurema. O pajé decreta a cada guerreiro um sonho
enquanto distribui a bebida de Tupã preparada por Iracema:
Este, grande caçador, sonha que os veados e as pacas correm de encontro às suas
flechas para se transpassarem nelas (...).
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Iracema

Outro, fogoso em amores, sonha que as mais belas virgens tabajaras deixam a
cabana de seus pais e o seguem cativas de seu querer (...).
O herói sonha tremendas lutas e horríveis combates, de que sai vencedor, cheio de
glória e fama.

Enquanto estão sob o efeito da bebida, Iracema, proibida de presenciar o


ritual, aproveita para levar Martim ao encontro de Poti. Ao transporem as terras
dos tabajaras, pisando já na dos pitiguaras, a índia dos lábios de mel revela a
Martim que o que houve entre eles não tinha sido um sonho, portanto ela não
era mais virgem, muito menos a protegida de Tupã. E já se considerava mulher
de Martim, que a aceita como tal. Mas os índios tabajaras, já refeitos do ritual
sagrado, perseguem-nos novamente. Quando tudo parecia perdido, surgem os
guerreiros pitiguaras, chefiados por Jacaúna, irmão de Poti, que derrotam os
tabajaras. Iracema se entristece ao ver os cadáveres de seus irmãos no campo de
batalha, enquanto os sobreviventes fugiam envergonhados.
Iracema silvou como a boicininga; e arrojou-se contra a fúria do guerreiro tabajara.
A arma rígida tremeu na destra possante do chefe e o braço caiu-lhe desfalecido.
Soava a pocema da vitória. Os guerreiros pitiguaras conduzidos por Jacaúna e Poti
varriam a floresta. Fugindo, os tabajaras arrebataram seu chefe ao ódio da filha de Araquém
que o podia abater, como a jandaia abate o prócero coqueiro roendo-lhe o cerne.
Os olhos de Iracema, estendidos pela floresta, viram o chão juncado de cadáveres de seus
irmãos; e longe o bando dos guerreiros tabajaras que fugiam nuvem negra de pó. Aquele sangue
que enrubescia a terra, era o mesmo sangue brioso que lhe ardia nas faces de vergonha.
O pranto orvalhou seu lindo semblante.
Martim afastou-se para não envergonhar a tristeza de Iracema.

Ao chegarem ao litoral, Martim e Iracema se hospedam na tribo Pitiguara.


Mas a índia não se sente à vontade vivendo numa tribo inimiga da sua. Partem,
então, à procura de uma terra que não fosse dominada pela grande nação “dos
comedores de camarão”. Com o auxílio de Poti, Martim constrói a cabana na
terra em que nasceria o próprio Alencar, Mecejana.
– Estes campos são alegres, e ainda mais serão quando Iracema neles habitar. Que
diz teu coração?
– O coração da esposa está sempre alegre junto de seu guerreiro e senhor.
Seguindo pela margem do rio, o cristão escolheu um lugar para levantar a ca-
bana. Poti cortou esteios dos troncos da carnaúba; a filha de Araquém ligava os leques
da palmeira para vestir o teto e as paredes; Martim cavou a terra e fabricou a porta das
fasquias da taquara.
Quando veio a noite, os dois esposos armaram a rede em sua nova cabana; e o amigo
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no copiar que olhava para o nascente.


93
José Martiniano de Alencar Júnior

Iracema dá a Martim a notícia de sua gravidez:


Travou da mão do esposo, e impôs no regaço:
– Teu sangue já vive no seio de Iracema. Ela será mãe de teu filho.
– Filho, dizes tu? – exclamou o cristão em júbilo.
Ajoelhou ali e cingindo-a com os braços, beijou o seio fecundo da esposa.

Mas um mensageiro pitiguara, mandado por Jacaúna, convoca Poti para


uma grande batalha: Irapuã havia feito uma aliança com os brancos tapuias,
como eram chamados os franceses pelos pitiguaras, para combater a grande
nação de Jacaúna. Martim, guerreiro branco, deixa Iracema grávida, partindo
ao lado de Poti.
Caminhando, caminhando, chegaram os guerreiros à margem de um lago, que
havia nos tabuleiros.
O cristão parou de repente e voltou o rosto para as bandas do mar: a tristeza saiu
de seu coração e subiu à fronte.
– Meu irmão – disse o chefe –, teu pé criou raiz na terra do amor, fica: Poti voltará
breve.
– Teu irmão te acompanha – ele disse –; e sua palavra é como a seta de teu arco:
quando soa, é chegada.
– Queres tu que Iracema te acompanhe às margens do Acaracu?
– Nós vamos combater seus irmãos. A taba dos pitiguaras não terá para ela mais
que tristeza e dor. A filha dos tabajaras deve ficar.

Novamente os pitiguaras derrotam os tabajaras, irmãos de Iracema:


Martim e seu irmão haviam chegado à taba de Jacaúna, quando soava a inúbia: eles
guiaram ao combate os mil arcos de Poti. Ainda dessa vez os tabajaras, apesar da aliança
dos brancos tapuias do Mearim, foram levados de vencida pelos valentes pitiguaras.
Nunca tão disputada vitória e tão renhida pugna, se pelejou nos campos que regam
o Acararu e o Camucim; o valor era igual de parte a parte, e nenhum dos dois povos fora
vencido, se o deus da guerra, o torvo Aresqui, não tivesse decidido dar estas plagas à raça
do guerreiro branco, aliada dos pitiguaras.

Ao retornar, Martim encontra Iracema triste, pois percebe que o seu amado
tem o pensamento em sua terra natal e na noiva que deixara por lá:
– O que espreme as lágrimas do coração de Iracema?
– Chora o cajueiro quando fica tronco seco e triste. Iracema perdeu sua felicidade,
depois que te separaste dela.
– Não estou eu junto de ti?

94
Iracema

– Teu corpo está aqui; mas tua alma voa à terra de teus pais, e busca a virgem
branca, que te espera.
Martim doeu-se. Os grandes olhos negros que a indiana pousara nele o tinham
ferido no íntimo.
– O guerreiro branco é teu esposo, ele te pertence.
Sorriu em sua tristeza a formosa tabajara:
– Quanto tempo há que retiraste de Iracema teu espírito? Dantes, teu passo te
guiava para as frescas serras e alegres tabuleiros: teu pé gostava de pisar a terra da
felicidade, e seguir o rasto da esposa. Agora só buscas as praias ardentes, porque o mar
que lá murmura vem dos campos em que nasceste; e o morro das areias, porque do alto
se avista a igara que passa.

Iracema tem consciência de que faz do seu amado um infeliz. Martim parte
novamente para guerrear ao lado dos pitiguaras. Enquanto Martim guerreia,
nasce o seu filho. Iracema dá-lhe o nome de Moacir:
Iracema, sentindo que se lhe rompia o seio, buscou a margem do rio, onde crescia
o coqueiro.
Estreitou-se com a haste da palmeira. A dor lacerou suas entranhas; porém logo o
choro infantil inundou sua alma de júbilo.
A jovem mãe, orgulhosa de tanta ventura, tomou o tenro filho nos braços e com
ele arrojou-se às águas límpidas do rio. Depois suspendeu-o à teta mimosa; seus olhos o
envolviam de tristeza e amor.
– Tu és Moacir, o nascido de meu sofrimento.

Caubi, irmão de Iracema, aparece, dando-lhe notícias de Araquém,


que nunca mais ergueu a cabeça depois que a filha partiu. Iracema pede
a Caubi que conte ao pai sobre a morte da filha, para, assim, aliviar o seu
sofrimento.
Iracema não tem leite para amamentar o seu filho. Filhotes de cachorro
sugam o seu peito e:
A feliz mãe arroja de si os cachorrinhos, e cheia de júbilo mata a fome ao filho. Ele
é agora duas vezes filho de sua dor, nascido dela e também nutrido.

Ao retornar para Iracema, Martim a encontra enfraquecida e ela, com gran-


de esforço, entrega-lhe Moacir. Antes de morrer, faz um último pedido:
– Enterra o corpo de tua esposa ao pé do coqueiro que tu amavas. Quando o
vento do mar soprar nas folhas, Iracema pensará que é tua voz que fala entre seus
cabelos.
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95
José Martiniano de Alencar Júnior

Martim, seu filho, Moacir, e o cão partem para Portugal. Algum tempo
depois, voltam e colonizam o Ceará.
O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da pátria. Havia aí a pre-
destinação de uma raça.
(...)
Afinal volta Martim de novo às terras, que foram de sua felicidade, e são agora de
amarga saudade.
(...)
Era sempre com emoção que o esposo de Iracema revia as plagas onde fora tão feliz,
e as verdes folhas a cuja sombra dormia a formosa tabajara.

PERSONAGENS
Iracema (lábios de mel) – Índia tabajara, responsável por preparar o licor
da jurema, bebida que provoca alucinações em seus guerreiros. Apaixona-se por
Martim, colonizador português, com quem perde a sua virgindade, quebrando a
tradição da jurema. Iracema representa o amor e a abnegação, morrendo em favor
da colonização européia. Como sabemos, Iracema é o anagrama de América. Na
descrição abaixo, notem que a natureza serve de recurso para a caracterização
da índia, entretanto a índia é superior à natureza:
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da
graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como o seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque
como seu hálito perfumado.
Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do
Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal
roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.

Martim (filho de guerreiro) – Português que passa a viver entre os índios


pitiguaras. Seu nome deriva de Marte, deus da guerra, daí dar mais importância
às batalhas do que propriamente ao amor que nutria por Iracema.
E é a própria Iracema quem o batiza com o nome indígena de Coatiabo,
isto é, guerreiro pintado.
Aliás, Martim não sente remorso nenhum em lutar contra os tabajaras, tribo
a que pertencia Iracema. Historicamente, Martim Soares Moreno participou das
lutas contra os holandeses e franceses que invadiram o Nordeste brasileiro.
Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e
não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar,
nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe
o corpo.

96
Iracema

Poti (camarão) – Guerreiro pitiguara, amigo de Martim. Convertido ao


cristianismo, recebeu o nome de Antônio Filipe Camarão. Historicamente,
participou, ao lado dos portugueses, da guerra contra os invasores holandeses,
com a patente de capitão-mor dos índios. Em Iracema, Poti simboliza a amizade
sincera e inquebrantável.
O valente Poti, resvalando pela relva, como o ligeiro camarão, de que ele tomara
o nome e a viveza, desapareceu no lago profundo. A água não soltou um murmúrio, e
cerrou sobre ele sua onda límpida.

Araquém – Pajé dos tabajaras e pai de Iracema. Recebe Martim em sua tribo,
julgando-o ser um convidado de Tupã. Simboliza a sabedoria adquirida com a
velhice (como todo pajé em uma tribo). É o responsável, no bosque sagrado, por
distribuir os sonhos no momento em que os guerreiros tabajaras bebem o licor
da jurema, preparado por Iracema. Com a partida da filha, sua cabeça vergou para
o peito e não se ergueu mais.
O ancião fumava à porta, sentado na esteira de carnaúba, meditando os sagrados
ritos de Tupã. O tênue sopro da brisa carmeava, como frocos de algodão, os compridos e
raros cabelos brancos. De imóvel que estava, sumia a vida nos olhos cavos e nas rugas
profundas.

Caubi (senhor do caminho) – Irmão de Iracema. É designado por seu


pai, Araquém, para ser o guia de Martim até o encontro com Poti. Mais tarde,
reencontra a irmã, quando pela primeira vez Martim a deixara para guerrear,
trazendo-lhe notícias de seu pai Araquém.
– Filha de Araquém, escolhe para teu hóspede o presente da volta e prepara o mo-
quém da viagem. Se o estrangeiro precisa de guia, o guerreiro Caubi, senhor do caminho,
o acompanhará.

Andira (morcego) – Índio tabajara, irmão do Pajé Araquém. Assim como


o irmão, é prudente, mas acaba sendo ofendido por Irapuã, por este não aceitar
o seu conselho de não ir atrás dos pitiguaras e esperá-los para o combate.
– Andira, o velho Andira, bebeu mais sangue na guerra do que já beberam cauim
nas festas de Tupã, todos quantos guerreiros alumia agora a luz de seus olhos. Ele viu mais
combates em sua vida, do que as luas lhe despiram a fronte. Quanto crânio de potiguara
escalpelou sua mão implacável, antes que o tempo lhe arrancasse o primeiro cabelo? E o
velho Andira nunca temeu que o inimigo pisasse a terra de seus pais; mas alegrava-se
quando ele vinha, e sentia com o faro da guerra a juventude renascer no corpo decrépito,
como a árvore seca renasce com o sopro do inverno. A nação tabajara é prudente. Ela
deve encostar o tacape da luta para tanger o membi da festa. Celebra, Irapuã, a vinda
dos emboabas e deixa que cheguem todos aos nossos campos. Então Andira te promete o
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banquete da vitória.
97
José Martiniano de Alencar Júnior

Irapuã (mel redondo) – Chefe dos tabajaras e apaixonado por Iracema. Daí
o seu ciúme doentio, o seu ódio por Martim e o desejo de matá-lo a qualquer
custo. Assim como Poti e Martim, Irapuã também é um personagem histórico, só
que é inimigo declarado dos portugueses e aliado dos franceses que invadiram
o Maranhão.
Desabriu, enfim, Irapuã a funda cólera:
– Fica tu, escondido entre as igaçabas de vinho, fica, velho morcego, porque temes
a luz do dia, e só bebes o sangue da vítima que dorme. Irapuã leva a guerra no punho de
seu tacape. O terror que ele inspira voa com o rouco som do boré. O potiguara já tremeu
ouvindo o rugir na serra, mais forte que o ribombo do mar.

Jacaúna (jacarandá preto) – Grande chefe dos pitiguaras e irmão de Poti.


Outro personagem histórico, foi amigo de Martim Soares Moreno, lutando ao seu
lado contra os holandeses e franceses. Assim como Araquém, Jacaúna representa
a boa hospitalidade. Seu colar de guerra fazia voltas em seu pescoço, exibindo
os dentes dos inimigos por ele derrotados.
– Jacaúna é um grande chefe, seu colar de guerra dá três voltas ao peito. O tabajara
pertence ao guerreiro branco.

Moacir (filho do sofrimento) – Filho de Iracema e Martim, simboliza não


só o primeiro cearense, mas o primeiro brasileiro. Com a morte de Iracema,
Martim o leva para Portugal, para depois retornarem, dando início à colonização
européia.
O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da pátria. Havia aí a pre-
destinação de uma raça?

QUATRO ÍNDIAS E UM SÓ DESTINO


O sofrimento que só vê o seu alívio com a morte não é exclusivo da índia
Iracema. Outras três índias também foram marcadas em nossa literatura por essa
tragicidade: Lindóia, Moema e Ci.
Lindóia, personagem de O Uraguai, poema épico do árcade José Basílio
da Gama (1740-1795), protagoniza a parte mais importante da obra ao se deixar
picar por uma serpente no seio. Após a morte de seu marido e chefe Cacambo,
envenenado a mando do padre Balda, Lindóia não se submete às ordens do sa-
cerdote, que a obrigava a ser casar com Baldeta (filho do padre Balda com uma
índia), optando então por morrer.
O mesmo acontece com Moema – personagem de Caramuru, outro poema
épico do também árcade Frei José de Santa Rita Durão (1722-1784) –, que se dei-
xa afogar quando seguia a nado o navio que levava o seu grande amor, Diogo
Álvares Correia, e a índia Paraguaçu para a França, onde se casariam.

98
Iracema

Ci – personagem de Macunaíma, do modernista Mário de Andrade


(1893-1945) –, chefe das amazonas, é seduzida por Macunaíma, apaixona-se por
ele, mas “sobe ao céu por um cipó” após perder o seu filho recém-nascido, que
mamara em seu peito envenenado pela grande Cobra Preta.
Portanto, quatro índias unidas pelo mesmo sofrimento, que se desencadeia,
inevitavelmente, para a morte, como podemos notar nos três trechos a seguir:

Cansada de viver, tinha escolhido


Para morrer a mísera Lindóia.
(...)
O desgraçado irmão, que ao despertá-la
Conhece, com que dor! no frio rosto
Os sinais do veneno, e vê ferido
Pelo dente sutil o brando peito.
(...)
E por todas as vezes repetido
O suspirado nome de Cacambo.
Inda conserva o pálido semblante
Um não sei quê de magoado e triste,
Que os corações mais duros enternece
Tanto era bela em seu rosto a morte.
O Uraguai

Tão dura ingratidão menos sentira


E esse fado cruel e doce me fora,
Se o meu despeito triunfar não vira
Essa indigna, essa infame, essa traidora.
Por serva, por escrava, te seguira.
Se não temera de chamar senhora
A vil Paraguaçu, que, sem que o creia,
Sobre ser-me inferior, é néscia e feia.

Enfim, tens coração de ver-me aflita,


Flutuar, moribunda, entre estas ondas;
A um ai somente, com que aos meus respondas.
Bárbaro, se esta fé teu peito irrita,
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Nem o passado amor teu peito incita


99
José Martiniano de Alencar Júnior

(Disse, vendo-o fugir) ah, não te escondas


Dispara sobre mim teu cruel raio...”
E indo a dizer o mais, cai num desmaio.

Perde o lume dos olhos, pasma e treme,


Pálida a cor, o aspecto moribundo;
Com a mão já sem vigor, soltando o leme,
Entre as salsas escumas desce ao fundo.
Mas na onda do mar, que, irado, freme
Tornando a aparecer desde o profundo,
– Ah, Diogo cruel! – disse com mágoa, –
E sem mais vista ser, sorveu-se na água
Caramuru

Terminada a função a companheira de Macunaíma toda enfeitada ainda, tirou do


colar uma muiraquitã famosa, deu-a pro companheiro e subiu pro céu por um cipó. É
lá que Ci vive agora nos trinques passeando, liberta das formigas, toda enfeitada ainda,
toda enfeitada de luz, virada uma estrela. É a Beta do Centauro.
Macunaíma

5. EXERCÍCIOS
1. UFMG
Todas as personagens de Iracema, de José de
Alencar, estão corretamente explicadas, exceto:
a) A filha de Araquém escondeu no coração a sua
ventura. Ficou tímida e quieta como a ave que
pressente a borrasca no horizonte.
= Iracema entrega-se a Martim.
b) Iracema preparou as tintas. O chefe, embebendo as
ramas da pluma, traçou pelo corpo os riscos vermelhos e pretos, que ornavam a grande
nação pitiguara.
= O chefe pinta Martim, preparando-o para o combate com os tabajaras.
c) Iracema, sentindo que se lhe rompia o seio, buscou a margem do rio, onde crescia o coqueiro.
= Iracema prepara-se para dar à luz Moacir.
d) O guerreiro branco é hóspede de Araquém. A paz o trouxe aos campos do Ipu, a paz
o guarda.
= Iracema protege Martim da fúria de Irapuã.
e) Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol
não deslumbra, sua vista perturba-se.
= Martim aparece pela primeira vez a Iracema, que saía do banho.
100
Iracema

2. IME-RJ
Na visão romântica de José de Alencar, o índio é:
a) descrito como um ser preguiçoso, que passa o tempo sentado à porta da cabana.
b) um defensor árduo dos animais que são por ele atraídos.
c) idealizado para assumir características européias.
d) exterminado para que os cristãos povoem as nossas terras.
e) nenhuma das repostas anteriores.
3. Fatec-SP
Em Iracema, de José de Alencar, observa-se que o autor:
a) procurou ser fiel à tradição histórica, e suas personagens foram participantes
de episódios reais da colonização brasileira.
b) procurou basear-se na história da colonização para recompor, em termos
poéticos, as origens do Ceará.
c) procurou explorar o lado pitoresco e sentimental da vida dos índios, na época
em que os portugueses ainda não haviam chegado.
d) procurou enfatizar o problema da destruição da cultura indígena pelo domínio
português.
e) procurou negar a existência de conflitos culturais entre colonizadores e nativos.
4. PUC-SP
Iracema constitui com O guarani e Ubirajara a trilogia dos romances indianistas
de José de Alencar. Na poesia, Gonçalves Dias também exaltou o índio em textos
como I-Juca Pirama, Leito de folhas verdes, Marabá, O canto do piaga, além do poema
épico Os Timbiras. Pergunta-se: o que representou o indianismo na literatura
romântica brasileira?
5.
Leia o trecho abaixo:
Estreitou-se com a haste da palmeira. A dor lacerou suas entranhas; porém logo o choro
infantil inundou sua alma de júbilo. A jovem mãe, orgulhosa de tanta ventura, tomou o
tenro filho nos braços e com ele arrojou-se às águas límpidas do rio. Depois suspendeu-o
à teta mimosa; seus olhos então o envolviam de tristeza e amor.
– Tu és Moacir, o nascido de meu sofrimento.

Considere atentamente as seguintes afirmações, que se referem não só ao texto


anterior como também ao contexto do romance Iracema.
I. A protagonista divide-se entre a tristeza e a alegria: esta, pelo nascimento do
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filho mestiço; aquela, por sentir que não viverá para vê-lo crescer.

101
José Martiniano de Alencar Júnior

II. Um dos procedimentos estilísticos de Alencar em seu romance está nas su-
gestivas aproximações entre expressões em tupi e o significado em português,
como a que se dá na fala da protagonista.
III. O nascimento de Moacir representa, simbolicamente, a heróica, mas inútil,
resistência dos guerreiros tabajaras à colonização do branco europeu.
Das afirmações anteriores:
a) apenas II é verdadeira.
b) apenas III é verdadeira.
c) apenas I e II são verdadeiras.
d) apenas II e III são verdadeiras.
e) I, II e III são verdadeiras.
6. Fuvest-SP
Sobre o romance indianista de José de Alencar, pode-se afirmar que:
a) analisa as reações psicológicas da personagem como um efeito das influências
sociais.
b) é um composto resultante de formas originais do conto.
c) dá forma ao herói, amalgamando-o à vida da natureza.
d) representa contestação política ao domínio português.
e) mantém-se preso aos modelos legados pelos clássicos.

7. Unisul-SC
Assinale a alternativa incorreta a respeito de Iracema, de José de Alencar.
a) Nela aponta-se a confluência dos gêneros literários lírico e épico.
b) É uma exaltação da flora, da fauna e da terra brasileiras.
c) Retrata a luta pela colonização do Ceará, no início do século XVII.
d) É uma obra essencialmente lírica, pois é repleta de elementos sonoros.
e) Iracema pode ser considerada a personagem-símbolo da terra-mãe que seduz
o estrangeiro.

8. Fuvest-SP
Iracema faz parte da tríade indianista de José de Alencar, juntamente com outros
dois romances.
a) Quais?
b) Cada um desses romances teria uma finalidade histórica. Qual teria sido a
intenção do autor com Iracema?

102
Iracema

9. UFMG
Leia a afirmativa a seguir, em que José de Alencar critica a visão dos cronistas
europeus sobre os indígenas:

Os historiadores, cronistas e viajantes da primeira época, se não de todo o período


colonial, devem ser lidos à luz de uma crítica severa (...) Homens cultos, filhos de uma
sociedade velha e curtida por longo trato de séculos, queriam esses forasteiros achar nos
indígenas de um mundo novo e segregado da civilização universal uma perfeita confor-
midade de idéias e costumes.

Apesar de sua visão crítica, Alencar, em Iracema, adota a mesma atitude, quando:
a) apresenta metaforicamente o índio como representante do homem bra-
sileiro.
b) atribui às personagens indígenas um comportamento baseado em códigos
europeus.
c) recupera para a literatura a memória da fauna, da flora e da toponímia indí-
genas.
d) tenta ser fiel ao espírito da língua indígena na composição das imagens.

10.
Assinale a alternativa incorreta a respeito de Iracema, de José de Alencar.
a) O livro faz parte de um painel que mostra a contribuição de brancos, índios e
negros na constituição da nacionalidade brasileira, ao lado de romances como
O gaúcho e As minas de prata.
b) Esta obra corresponde ao desejo de José de Alencar de escrever um livro que
tratasse das origens da nacionalidade brasileira, característica comum aos
projetos românticos brasileiros.
c) As personagens indígenas são idealizadas como boas ou más, conforme o
apoio que davam ou não ao colonizador português, num maniqueísmo bas-
tante comum ao Romantismo.
d) “– Senhor de Iracema, cerra seus ouvidos para que ela não ouça.” – esta é
uma fala de Iracema. O uso da terceira pessoa dirigida a ela própria é um
recurso do autor para tentar recriar a linguagem que ele considerava próxima
à indígena.
e) Símiles de elementos da terra – vegetais e animais – e da linguagem indígena
dão à narrativa um certo exotismo buscado pelo autor, aproximando-a, ao
mesmo tempo, do mito.
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103
José Martiniano de Alencar Júnior

Gabarito
1. B 7. D
2. C 8.
3. B a) O guarani e Ubirajara.
4. O índio, para o Romantismo brasileiro, tem a b) Narrar a lenda da fundação do Ceará e a
mesma simbologia que o cavaleiro medieval
mistura das raças indígena (Iracema) e bran-
para o Romantismo português, isto é, o sím-
ca (Martim), criando o primeiro brasileiro
bolo da nacionalidade, do heroísmo de uma
pátria livre. (Moacir).
5. C 9. B
6. C 10. A

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