Arte Brasileira No Século XIX

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CAPÍTULO 2: A ARTE EM MEADOS DO SÉCULO XIX IUOBRASIL

A consolidaçãodo Império
O reinado de D. Pedro ll é um período de grande importância
na consolidação do Brasil como nação. Alguns fatores definidores
são aí instituídos, desenhando um perfil, que perdurará em muitos
casos para além da República.
O primeiro desses fatores diz respeito à formação de um mo-
delo de economia agrária voltada para a exportação e dependente
das importações dos países europeus já industrializados. O desen-
volvimento da cultura do café concentrou a riqueza do país nas
mãos de uma eliteformada por grandes proprietários de terras e de
escravos. No entanto, culturalmente, o Imperador e boa parte desta
elite encontravam-se identificados com os ideais liberais, depen-
dentes dos valores burgueses, que são buscados em viagens fre-
quentes à Europa e com a importação regular de toda sorte de ob-
jetos desde livros, objetos de arte e utensíliosdo cotidiano, até
projetos completos de implantação de transportes ferroviários, de
serviços urbanos de iluminação,fornecimentode gás e água e de
escoamento de esgotos, e de melhoriados portos.
O segundo daqueles fatores refere-seà ação de uma rede de
instituições voltadas para formação de uma elite intqjeçlyql.e artísti-
ca, capaz de garantir a inserção do país no panorama cultural inter-
náõiõhal. Vários instituições são criadas, como o Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro e as antigas, como a Academia de Belas Ar-
tes, passam por reformas nesse período, obedecendo a um projeto
políticobastanteclaro: criar os fundamentosçultulBisda nação, es-
crever e discutir a história do país, como forma de lançar as bases
de.seu futuro. Assim, grande parte do esforço do Segundo Reinado,
inclusive o enorme investimento em projetos artísticos, remete a
um projeto político de criação de símbolos nacionais e de formula-
ção de um verdadeiro imaginário para a nação.

A expansão da Academia
Após os primeiros anos de grandes dificuldades, a Academia
passou a ser uma instituição de grande prestígio durante o Império
Duas figuras foram aí fundamentais: Féjjx EHile Taunay diretor de
1834 a 1851 - e Manuel de Araújo Porto Alegre diretor entro.1854
e 1857 injetaram na Academia algumas mudanças fundamentais.
Taunay organizou as Exposições Gerais a partir de 1840 - ertLque
trabalhos de professores e alunos da Academia eram.expostos.ao
lado de obras de artistas externos e instituiu os prêmios dexiagens
à Europa.em]845. Porto Alegre empenhou-se na mudança dos
currículos, além de uma evidente preocupação çou os problemas
da arte brasileira -, lançando as bases de um verdadeiro projeto
nacionalista. que é seguramente o ponto de partida da produção
do Segundo Reinado.
Com a instituiçãodo prêmio de viagem à Europa, sedimenta-
se uma relação direta com a ltália.ea França. O período de estudos
destes artistas no exterior é monitorado pela Academia do Rio de
Janeiro, que escolhe as instituiçõese os professores estrangeiros,
controla o desenvolvimento dos trabalhos dos alunos, exige a ela-
bolgção de cópias de obras dos grandes mestres tiradas dos pEl11çj-
pais museus europeus. Em geral..no.retorno ao Brasil, muitos destes
artistasforam absorvidos pela Academia como professores. Estabele-
cia-se, assim. um circuito praticamentefechado em torno do sistema
acadêmico - muito característico desse tipo de instituição -, que
será muito criticado no futuro, primeiro pelos próprios integran-
tes da Academia na passagem dos séculos XIX e XX e mais tarde
pelos modernistas. Além disso, a Academia vai ter um papel norma-
tivo para o resto do país: não apenas irá funcionar de forma bastan-
te centralizadora,atraindo alunos das demais províncias, como será
futuramente copiada em instituições locais similares. Se o fecha-
mento institucionalé uma realidade, o mesmo não pode ser dito
quanto ao simples transplante de ideias europeias, pois apesar de a
Academia carioca seguir o modelo de ensino francês, há grandes
diferenças entre os dois países nesse tópico.

28 . SONDA GOME$ PEREIRA


As diferenças entre os sistemas de ensino na Fiança e no Brasil
Na França do século XIX, o sistema acadêmico.envolvia uma
rede complexa. formada pela Academia de Belas Artes, pela Escola
de Belas Artes e por inúmeros ateliês externos. A Academia sempre
se ocupou primordialmente da elaboração e da aplicação da doutri-
na, controlando a nomeação dos professores e o grande concurso
final do Prêmio de Romã. Já a Escola fornecia apenas aulas teóricas
e de desenho e realizavaos concursos regularesnas diversas práti-
cas artísticas, que os alunos aprendiam, até a Reforma de 1863, ape-
nas em ateliês externos.
No Rio de Janeiro, todas essas funções ficavam concentradas
numa única instituição: a Academia Imperial de Belas Artes. Não
havia ateliês externos voltados para o ensino. Assim, as aulas práti-
cas tinham de ser dadas dentro da Academia, que também era
responsável pela organização e pelo julgamento dos concursos,
além da organização das Exposições Gerais. Não é, portanto, de
se estranhar que pouco se faça na parte doutrinária - como fre-
quentementereclamavam os seus diretores Félix-EmileTaunay
e Araújo Porto Alegre. Em grande parte por esse motivo, o con-
trole da nossa Academia nunca atingiu o rigor que havia na
Franca. Muitas das punições e retaliações originavam-se de di-
vergências pessoais, movidas, em grande parte, pela disputa
por um espaço profissional exíguo - como parece ter sido o
caso do corte do pensionato do escultor Almeida Reis. E alguns
pensionistas mantiveram-se na Europa, mesmo sem apresentar
os resultados esperados, como ocorreu com os arquitetos Hei-
tor Branco de Cordovillee Ludovico Berna. Portanto,a críticae a
historiografia posteriores exageraram o poder. o alcance e a re-
gularidade do controle da nossa Academia.

A expansão do neoclassicismo
e o aparecimento de outros revivalismos na arquitetura
A arquiteturado século XIX na Europa foi marcada por uma
série de movimentos historicistas, que são normalmente chamados
de rev/wa/s- como a palavra inglesa indica, trata-se de retomar es-
tilos do passado, adaptando-os às novas necessidades da socieda-
de industrial e burguesa. De maneira geral, a escolha desses estilos

Arte Brasileira no Século XIX. 29


foi determinada a passagem dos estudos teóricos e práticos das
disciplinas militares para a Escola de Aplicação do Exército. Em
1858, a Escola Militar da Corte torna-se Escola Central, ensinando
apenas Engenharia Civil, transformando-se em 1874 em Escola Poli-
técnica. Nessa instituição foram formadas gerações de técnicos
identificados com o progresso tecnológico, atentos aos problemas
sanitários das cidades e versáteis nos estilos em voga na Europa.
Atuam na capital, mas espalham-se também por todo o país, ligados
a projetos que exigiam tecnologia avançada. como a implantação da
rede ferroviária e a montagem de estruturas importadas em ferro.
Ao lado dos arquitetos e engenheiros, nascidos e formados no
pais, atuam técnicos europeus emigrados.Sua presença destacada,
tanto na capital quanto nos estados, foi fundamental para a expan-
são do historicismo e mais tarde do ecletismo.
Nesse período, há também uma maior diversificaçãode pro-
gramas na arquitetura escolas, hospitais, teatros entre outros -
como prova da crescente transformação da sociedade brasileira da
época segundo os modelos liberais e burgueses, em que muitos
setores - como a educação e a saúde - passam a ser preocupação
e obrigação do Estado.

A escultura e a pintura voltadas


para a narrativa histórica e o indianismo
AÊraduçãaarlística desse períodoé=aracterizada. sobretudo,
pela absorção do romantismo e apresenta alguns traços distintivos.
Em primeiro lugar, o interesse e a proteção pessoais do Imperador
D. Pedro ll monarca que construiu a imagem pública de político
liberal e intelectual amante das ciências e das artes. Em segundo
lugar, as artes em geral - a música. a literatura e as artes visuais -
vão fazer parte nesse momento do esforço político de .çgDs!!yção
do maginárioda nova nação..buscando.os temas nacionaisdentro
de um modelo de uma história celebrativa dos fatos e homens rele-
vantes à sua soberania como a Guerra do Paraguai, poLgxemplo
- e dos elepenlFQSconstitutivos de sua formação étnica peculiar-
em especial o indianismo. Vários autores têm destacado a impor-
tância da criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em
1838, que passou a ditar os parâmetros que norteariaram a escrita

34 . SONDA GAMES PEREIRA


da história clo país Essa orientação certamente marcou a produção
da pintura históricadaí em diante. Mas é preciso, também, ter cui-
dado..parta.!!ãgçQ11$iderar a obrQêrlÍgticauma simples transposição
da narrativa histórica para a tela. pois-os artistas responderão a essa
demanda de forma diferenciada.Vamos examinar um conjunto des-
sas obras (Figuras 11 a 15).

Os grandes fatos da higórla passada QUpresente do país são


propostos em encomendas de ajgllçlQpgrte.jeitos pelo Estado, e
são gp geral entregues aos dois grandes pintores do período: Vítor
M ekelgs..g Pedro.Américo.

,4 or/me/ra m/ssa no Bus//. de Vitor Meireles afigura 11), foi


.!nspjladalla carta de Pero Vaz de Caminha. Pintada em Paras,foi ex-
posta no Salão de 1861, recebendo elogios da crítica. O deslocamen-
to do tema principal para um dos lados da composição, a distribuição
irregularentre massas e vazios, o apelo maior ao público, que quase
se incorpora à cena. acompanhando os índios colocados de costas
no prirpelo plano :todos esses elementos apontam a absorção de
alguns princípios românticos, como a dinamização da narrativa e a
maior aproximação com o espectador.

IFígura 11) Vitor Meireles. ,4 pr/he»a m/ssa no Bus//. Olho s/ tela 1860, 268 x 356
cm IMNBA).

Arte Brasileirano Século XIX . 35


afigura 12) Vitor Meireles. Bala/ha dos Guararapes. Oleo s/ tela, 1879. 494.5 x 923
cm {MNBA}.

Na década seguinte, Vitor Meireles recebeu a encomenda para


realizar a obra Bala/ha dos Guararapes afigura 121,relativaà luta de
expulsão dos holandeses do Brasil no século XVll, em que o pintor,
seguindo a narrativa historiográfica da época, procurou ressaltar a
união dos três elementos formadores do país na época - o portu-
guês, o índio e o negro - na luta conjunta, que possibilitou a derrota
dos invasores. Nessa tela, Vítor Meireles buscou conhecer o local e
os fatos históricos que trouxessem o máximo de veracidade à pin-
tura. O resultado formal é uma composição em que os vários ele-
mentos em diagonal - especialmente as lanças e as espadas -, a
movimentação dos soldados e dos cavalos e mesmo a distribuição
irregular de massas e vazios encontram-se submetidos à constru-
ção de um conjunto que é equilibrado e harmonioso. Na época. Vi-
tor Meireles foi criticado pela calma e mesmo frieza da cena. Mas o
artista, representando uma cena referente ao passado mais distante
- do século XVll -, optou por uma representação mais idealizada e,
por isso mesmo, mais heroica.

36 . SONDA GOMOS PERnRA


Na mesma década, Pedro Américo pinta a Bala/ha do ,4va/(Fi-
gura 13). Exposta junto à Bala/ha dos Guararapes, a comparação
entre essas duas imensas telas históricas foi inevitável pela crítica da
época. Representaçãode um episódio de um passado recente- a
Guerra do Paraguai-, a Baía/ha do 4t'aítem uma abordagem muito
mais dramática, em que predomina o caos de corpos, cavalos e ar-
mas, quase sem nenhuma hierarquizaçãode personagens. A com-
paração entre as duas batalhas torna evidente que, mesmo partin-
do do mesmo ponto - uma encomenda oficial com claro objetivo
político -, os artistas injetam a sua própria personalidade artística.
chegando a resultados diferenciados.
Assim. a produçãopictóricade meados do séculoXIX é mar-
cada por dois aspectos fundamentais. O primeiro, mais abrangente,
é constituído pelas grandes telas históricas, que incorporam o ro-
mantismo e permanecem até hoje como referências obrigatórias nos
manuais escolares de História do Brasil -, prova de sua eficiência
como elementos identificadoresde representação da nação.
O segundo é o indianismo, parte integrantetambém do proje-
to de construção da nacionalidade, que foi especialmente desenvol-
vido na literatura como no romance /racemade José de Alencar
- e na música como na ópera O Guaran/de Carlos Gomos.

afigura 131 Pedro Américo. Baía/ha do ,4wa/lOleo s/ tela, 1872i1877, 600 x 1100 cm
(MNBA).

Arte Brasileira no Século XIX. 37


Na pintura, o indianismopode ser visto em obras como/t4oe-
ma de Vitor Meireles (Figura 141,inspirada no poema indianista Cara-
murt/ de Santa RataDurão e exposta ao público em 1863. A figura da
índia espalha-se pelo primeiro plano da tela, numa ligeira diagonal e
recebendo uma maior intensidadede luz. Fora isso, o que a tela evi-
dencia é a perfeita harmonia entre a índia e a natureza - as duas
representadas em tons de ocre que se complementam. Para o india-
nismo, o índio é o "bom selvagem" -, aquele que se encontrava em
harmonia total com uma natureza intocada.

afigura 14}Vitor Meireles./poema. Olho s/ tela, 1866, 129 x 190 cm IMASPI

Também a escultura envolveu-se com a temática histórica e o


indianismo no campo das encomendas oficiais. Há vários exemplos
de índios representando os rios do Brasil, como P/o Para/ba do Su/
de Almeida Reis. Mas em ,4/egorü ao /mpér/o Bus//e»o afigura 15),
de 1872, de Francisco Manuel Chaves Pinheiro, é o próprio Império
que se faz representar como um índio. A postura ainda é clássica,
como a representação de um guerreiro antigo, mas o indígena é
imediatamente reconhecível.

38 . SONDA GOMOS PEREIRA


afigura 15} Francísco Chaves Pinheiro. ,4/egorü ao /mpér/o Bras#e»o. Terracota
jescultura realizadapara ser passada para o bronze em tamanho três vezes maior
que o atual), 1872,192x 75 x 31 cm IMNBA)

Arte Brasileira no Século XIX. 39


A pintura de paisagem. a natureza-morta e os registros científicos
Os temas da paisagem e da natureza-mortaeram considerados
menores dentro da hierarquia de gêneros da doutrina acadêmica.
Mas certamente os pintores da Academia aprendiam essas temáti-
cas, que lhes poderia ser útil na representação das pinturas his-
tóricas e dos retratos considerados os gêneros superiores -,
pois tinham a cadeira de Pintura de Paisagem, Flores e Animais.
Vários artistas, como Felix-EmileTaunay e Agostinho da Mota,
dedicaram-se a esses gêneros - que tiveram, na Europa. enorme
importância na construção de uma visualidade moderna, justa-
mente pela ausência de conteúdo narrativo. E alguns desses ar-
tistas, como José dos Reis Carvalho,participaramde expedições
científicas e produziram obras na interseção entre arte e ciência.
Vamos analisar o seguinte conjunto de obras IFiguras 16 a 19).

:1

afigura 161Félix-EmileTaunay. 1/rifada /Wãed 'água. Oleo s/,tela, c. 1850, 115x 88


cm IMNBA).

40 . SONDA GOMOS PENEIRA


IFígura 17) Agostinho da Mota. /Wamáoe me/anca. Óleo s/ tela. 1860,53,4 x 65 cm
IMNBA).

Félix-EmileTaunay dedicou-se à pintura de paisagem. Na tela


14sfa da /Wãe d 'água (Figura 161, enfatiza o lado grandioso e miste-
rioso da floresta e da cascata, em contraste com a pequenez das fi-
guras humanas, mantendo a concepção de uma natureza que é des-
conhecida e quase inacessível ao homem - ideia recorrente no
romantismo.
Já a natureza-mortaisola alguns elementos da natureza em ar-
ranjos montados pelo artista, como se vê em /damão e me/anca de
Agostinho da Mota (Figura 17). O caráter decorativo de algumas
naturezas-mortas é reforçado pela inclusão de objetos, como apa-
rece na tela de José dos Reis Carvalho - uma magnífica natureza
-morta, na qual o aspecto decorativo se sobreleva, inclusive com
a estatueta de D. Pedro ll.

Arte Brasileirano Século XIX . 41


Finalmente,é preciso que se faça menção aos desenhos e
aquarelas, que serviram de registro científico. Grande parte dessas
obras é feita por artistas estrangeiros, em geral componentes das
diversas expedições científicas que circularam pelo imenso territó-
rio do Brasil. Podemos aqui apontar um artista formado pela Acade-
mia, que se dedicou também a esse tipo de trabalho: Reis Carvalho
IFiguras 18 e 19). Fruto da primeira grande expedição científica brasi-
leira- conhecida como a Comissão das Borboletase direcíonada ao
Ceará -, Reis Carvalho ilustrou cenas do cotidiano dos vilarejos que
percorria e representou flores, algumas acompanhadas por insetos.
São desenhos aquarelados de grande delicadeza e detalhismo.

afigura 18) José dos Reis Carvalho. Flor com óorbo/efa. Aquarela
[s.d.]., 53,2 x 36,1 cm IMuseu D. Jogo V] da EBA/UFRJ).

42 . SONDA GOMOS PENEIRA


afigura 19}José dos Reis Carva[ho. E7orcom insefo. Aquare]a,[s.d.]., 53,2 x 36,1 cm
IMuseu D. Jogo VI da EBA/UFRJ).

Arte Brasileirano Século XIX . 43


A atualização da pintura
e a convivência entre vários movimentos estéticos
Se até o período anterior as artes plásticas brasileiras tinham
-se mantido dentro dos limitesdo neoclassicismo e do romantismo,
agora, entre as décadas de 1880 e 1920, houve realmente entre os
artistas brasileiros uma ânsia de atualização: sobretudo a pintura
absorveu concomitantementetodos os demais movimentos, que a
Europa e em especial a França haviam formulado ao longo do sécu-
lo XIX - o realismo, o impressionismo e o simbolismo - e no início
do XX as primeiras vanguardas históricas - sobretudo o fovismo e
o expressionismo.
Salvo algumas poucas exceções, a produção artística desta
geração é muito heterogênea. tanto formal quanto tematicamente.
Os artistas como Eliseu Visconti. RodolfoAmoedo, Belmiro de
Almeida, Henrique Bernardelli. entre outros -, não se filiam estrita-
mentea um ou outro movimento;ao contrário,utilizamdiversos
estilos, movimentando-secom desenvoltura num largo campo de
possibilidades de linguagem.
Tanto na Europa quanto no Brasil, a versatilidade estilística dos
artistas desse período tem origem num fato, que parece estar sendo
desprezado pelos estudiosos: a importânciadas tipologias, isto é,
as soluções de compromisso entre tema e forma, que eram sugeri-
das pelos grandes mestres e que passaram a constituir a tradição
artística ocidental. Sabemos que o grande objetivo da pintura desde
o Renascimento era "contar história", ou seja, a sua função narrati-
va. Dessa forma, cada tema apresentava um caráter específico, com
suas exigências iconográficas e a necessidade de construção de um
clima emocional adequado à história narrada.
Assim, do ponto de vista da prática artística e o ensino acadê-
mico estava particularmente atento a esse fato -, as escolhas dos ar-
tistas eram muito mais tipológicas do que estilísticas. Isto explicaria
por que os artistas dessa geração apresentam esse comportamento
eclético: o estilo seria escolhido em função da sua adequação ao
tema e à função, apoiando-se num repertório de tipologias composi-
tivas sugeridas pela tradição pictórica europeia.
Para analisar melhor essa diversidade estilística, vamos fazer
um recorte na década de 1880-, período, como já citamos anterior-
mente, em que a Academia está sofrendo grandes questionamentos

70 - SONDA GOMOS PEREIRA


internose externos, e as discussões sobre modernizaçãotransforma
ram-se em polêmicas públicas através dos jornais e revistas.
Para isto, vamos examinar alguns grupos de obras, todas des
sa década. Tomemos inicialmenteo seguintegrupo de obras(Figu
ras 40 a 431.

\F\gu ra 4Q\ Ped 10Amor\co . Judite rende graças a Jeová por ele ter conseguido livrar
sua páüü dos Auroras de Ho/oáernes. Oleo s/ tela, 1880, 229 x 141,7 cm (MNBA).

Arte Brasileira no Século XIX. 71


Em todos esses trabalhos, o conteúdo histórico ou alegórico
está presente, tanto nos temas estranhos quanto nos assuntos dire-
tamente ligados ao Brasil. Mantém-se aqui a norma tradicional da
pintura neoclássica, que destacava a superioridade da pintura histó-
rica e dos retratos, assim como a prioridade dos temas nobres, bem
como incorporava o gosto romântico pelos temas exóticos e nacio-
nalistas, em geral através de um tratamento idealizado.
Em todas essas obras, verificamosa primaziado desenho
como forma primeira de estruturaçãoda composição -, ao qual se
adequa a cor. mesmo quando as obras revelam uma maior riqueza
cromática. Os motivos principais da narração são centralizados e
obedecem a uma distinção rigorosa entre figura e fundo. Essas
obras evidenciam, portanto, a mescla de valores neoclássicos e ro-
mânticos, assim como a sua permanência em finais do século XIX
- quando outros movimentos estéticos já se encontravam em pau-
ta, tanto na Europa quanto no Brasil.
Vamos analisar essa mescla de elementos neoclássicos e ro-
mânticos mais de perto. A tela Ju(#fe de Pedro Américo (Figura 401
associa uma figura centralizada, com uma movimentação de braços
absolutamente simétrica. com um fundo mergulhado na sombra, que
torna os seus componentes cortina e outros objetos - dificilmente
reconhecíveis. Em primeiro plano, mas mantido em hierarquia se-
cundáriaaos pés de Judite. apenas a arma utilizadae a cabeça de
Holofernes, dando uma absoluta clareza à leitura do tema.
Já ,4 car/oca (Figura 411, em sua temática. nos oferece um
exemplo interessante da incorporação das referências nacionais no re-
pertório tradicionalmente europeu. A obra apresenta uma alegoria
ao Rio Carioca - principal fonte de abastecimento de água para a
cidade do Rio de Janeiro até início do século XX -, que é represen-
tado pela figura humana feminina, junto a uma fonte de água cor-
rente. Essa figura alegórica mantém-se em total destaque em rela-
ção à paisagem ao fundo, dando à pintura uma atmosfera de
distanciamento e idealização. Associa o desenho - que é fundamen-
tal na estruturação da composição - à cor, aparente na grande rique-
za cromática da paisagem que Ihe serve de cenário. A sua frontalida-
de estabelece uma ligação direta entre a obra e o espectador,
evitando qualquer dispersão para além do espaço da representação.

72 . SONDA GOMOS PEREIRA


afigura 41) Pedro Américo. .4 car/oca. Oleo s/ tela, 1882, 205 x 134 cm {MNBA)

Arte Brasileirano Século XIX. 73


Uma abordagem diferente aparece em a Rabequ/sfa árabe (Fi-
gura 42). Nessa tela, existe certamente um destaque entre figura e
fundo, mas a torção de corpo e o olhar da figura feminina dirigido
para um ponto lateralfora da tela quebram aquela relação direta
com o espectador,que ocorria nas duas obras anteriores. Além
disso, é interessante observar a proximidade do fundo: em vez de
um cenário perspectivado, a abequ/sfa encontra-se à frente de

afigura 421 Pedro Améríco. aóequ/sia árabe. Oleo s/ tela, 1884


87 x 60 cm (MNBA).

74 . SONDA GOMOS PENEIRA


um plano restrito, que torna o espaço da pintura exíguo - solução
bastantecomum na época entre os artistas europeus independen-
tes e que já se identificacom a vocação da modernidadepara a
planaridade da tela.
Em O ú/f/mo ramo/o (Figura 43), Amoedo entrega-se à temáti-
ca históricade cunho indianista.A composição faz uso de uma es-
cala muito restrita de cores - reforçando a ideia da integração entre
o índio e a natureza --, mas é a disposição em diagonal dos corpos
do índio e do sacerdote que fazem o tema destacar-se e dão legibi-
lidade à tela, narrando o episódio ligado à expulsão dos franceses
do Rio de Janeiro.

afigura 431 Rodolfo Amoedo. O ú/f/mo ramo/o. Oleo s/ tela, 1883. 180 x 260 cm
IMNBA).

Arte Brasileirano Século XIX


Passemos, agora, a um outro conjunto de obras(Figuras 44 a
481.Nesse grupo, salta de imediato aos olhos a mudança na temáti-
ca - tirada do cotidiano, com o evidente abandono dos chamados
temas nobres. Mesmo no caso de um estudo de modelo vivo, como
Esft/do de mu/her afigura 451, esse tradicional exercício na forma-
ção do artista acadêmico toma uma feição nova, pela ambientação
contemporânea. O interesse pelo trabalho do artista é evidente na for-
ma descritiva como são apresentados os interiores do ateliê: ,4fe#é do
a/7&íaafigura 44), Descanso do modo/o (Figura 461e /nfe/zorde afe#é
afigura 48) nos revelam ambientes incorporados ao gosto burguês -
pelo mobiliário e demais acessórios organizados como espaços de
convívio social -, mas denotam também, por um certo desalinho e a
presença de objetos tais como instrumentos musicais, que se trata de
um lugar em que a liberdadedo artista e o gosto pela arte são primor-
diais. O mesmo interesse pela descrição minuciosa dos interiores apa-
rece em relação à vida doméstica - chegando-se até a cenas de briga
de um casal, como em ,4rruáos(Figura 47). Nada aqui ecoa da idealiza-
ção e da retórica tradicionaldo grupo anterior.O realismoabriu cami-
nho para a vida comum e derrama sobre ela um olhar aproximado. A
tradicionaldistânciaentre a obra e o espectador é rompida por essa
tomada íntima, que permite o compartilhamento e a identificação entre
artista e público.
Esse segundo grupo traz, portanto, grandes inovações temáti-
cas. Vejamos agora como essas obras se apresentam do ponto de
vista formal. Em pelo menos três dessas cinco obras fsfudo de
mu/her (Figura 45), 1)esconso do moda/o (Figura 46) e ,4rruáos (Figu-
ra 471-, podemos observar um tratamento plástico semelhante: a
composição é estruturada primordialmente pelo desenho e os mo-
tivos principaisda temática se destacam. mas os elementossecun-
dários colchas, almofadas, papel de parede, objetos de decoração
- recebem um tratamento cromático detalhado. É como se o olhar do
artistapousasse sobre cada um desses objetos com enorme cuida-
do, fazendo desses elementos parte constitutiva da composição. ,4re-
//édo a/7fsfaafigura 44), até mesmo porque não apresenta nenhuma
figura humana, exacerba essa exposição apaixonada de objetos, em
que a narração é suspensa, ficando o conteúdo expresso na própria
aparência da pintura. Nessa obra, apesar do desenho ter também o
caráter estrutural, a cor está muito mais fragmentada - facilitada,
certamente, nesse caso, pela técnica da aquarela sobre cartão. A
tela /r7fedorde afe//éafigura 48) apresenta a mesma intimidade dos

76 . SONDA GOMOS PENEIRA


quadros anteriores, mas há uma diferença remarcável no tratamen-
to plástico: a composição é basicamente construída por manchas
coloridas, que sugerem o espaço, as figuras humanas e os objetos,
sem defina-loscom precisão.

afigura 44} Rodolfo Amoedo. 4fe//é c/o aNüfa em Pa/fs. Aquarela s/


cartão, 1883,57 x 77 cm IMNBAI.

afigura 45} Rodolfo Amoedo. Estudo de mu/her. Oleo s/ madeira


1884, 150 x 200 cm IMNBA). '

Arte Brasileira no Século XIX. 77


S

afigura 46) Almeida Júnior. l)esconso do moda/o. Óleo s/ tela. 1882, 100x 130 cm
(MNBA)

afigura47) Belmíro de Almeída. ,4rruáos.Oleo s/ tela, 1887, 89 x 116 cm {MNBAI

78 . SONDA GOMOS PENEIRA


afigura 48) Abigail de Andrade. /r7fer/orde afe//é. Oleo s/ tela, 1889, 80,5 x 64,5 cm
IColeção Sérvio Fadel)

Arte Brasileira no Século XIX


Vejamos, agora, um outro conjunto de obras(Figuras 49 a 54).
A pintura de paisagem sempre foi. ao longo do século XIX, um gê-
nero de pintura mais praticado pelos estrangeiros. No contexto do
projeto político do Império de civilizar o país - superando o passado
colonial e afirmando a supremacia branca numa população mestiça
-, a paisagem tinha certamente um papel secundário, pois ela repre-
sentava o lado selvagem a ser domado. Embora fascinasse os artis-
tas românticos e desafiasse os cientistas viajantes, essa natureza
aparece na pintura inscrita de forma subordinada, mesmo nas ce-
nas indianistas.
E muito significativo que a paisagem passe a interessar mais
aos pintores no final do século XIX, quando se dá o crescimento
das cidades, os problemas sanitários se tornam mais agudos e au-
menta a consciência da importância dos espaços verdes. A tentati-
va de representara cidade e todo o seu entorno paisagísticoé o
que faz Vitor Meireles em 1885 em seu Panorama do R/o de Jade»o

afigura 49) Vitor Meireles. Estudo para o Panorama do Río de Janeiro /LÍorrodo
Cafre/o. Oleo s/tela, 1885, 100 x 100 cm IMNBA}. '

80 . SONDA GOMOS PEREIRA


a 541. IFigura 49). O velho mestre da Academia se volta para essas paisa-
m ge- gens numa atitude semelhante ao dos paisagistas do início do sé-
:odo culo: é uma visão distanciada,em que a sensibilidadena apreen-
;ado são da paisagem em suas diferentes texturas- céu, mar. vegetação,
!atiça casario está entrelaçada com um verdadeiro interesse documen-
epre- tal. É a paisagem, enquanto objeto da representação, que interes-
anis- sa primordialmenteao pintor.
reza
A diferença entre o Panorama de Vitor Meireles afigura 491e as
s ce-
paisagens Cascata da 7#uca afigura 50), t/7sfado Cat'a/ãoafigura
511, e Pra/a da Boa l/?agem (Figura 52) reside sobretudo na tomada
mais aproximada, como se o espectador estivesse sendo incorporado à
lento paisagem, numa clara postura romântica. O desenho ainda está mui-
au- to presente. estruturando a composição de forma sólida, mas as
itati- massas coloridas estão se tornando cada vez mais densas, tornando
éo alguns limites indefiníveis. Aqui. tão importante quanto a prática da
eira pinturaao ar livreé a atitude do artistade comunhão com a natureza,
recortando um recanto especial, ao qual o pintor se devota a essa
natureza idealizada. Estamos certamente no campo da representa-
ção, e o objeto se impõe ao artista pelo seu caráter especial, mas
não há dúvida que essa operação necessita da sensibilidade do ar-
tista. da maneira como ele olha e revela a natureza.

do
afigura 50) Augusto Rodrigues Duarte. Cascata da 7#uca. Oleo s/ tela, 1884, 111 x
85 cm IMNBA).

Arte Brasileira no Século XIX. 81


afigura51) Georg Grimm. 1/7sfa
do Cat/a/áo.Óleo s/ tela, 1884,111 x 85 cm (MNBA

SONIA GAMES PEREIRA


afigura 521 Hipólito Caron Praia da Boa Viagem. O\eo sl le\a 1884,50 x 75 cm
(MNBA).

Muito se tem dito sobre o chamado Grupo Grimm: grupo de


Jovens pintores, como Castagneto e Caron. que se dedicaram à
paisagem ao ar livre, seguindo o mestre alemão Georg Grimm,
que ensinou na Academia durante dois anos centre 1882 e 18841.
Com o afastamento do professor, os alunos o acompanharam
fato tomado por alguns autores como sintomático da intolerância
acadêmica, na sua incapacidade de absorver o novo - no caso, a
pintura ao ar livre -, prática muito utilizada. primeiro pelos român-
ticos e depois pelos impressionistas, que incentiva os artistas a
abandonarem o ateliê e a pintarem diretamente sobre a tela, sem
a intermediação dos esboços preparatórios. Apesar da inegável
importância do Grupo Grimm, tal afirmativa apresenta alguns pro-
blemas. Além de encobrir o fato de outros paisagistas anteriores já
terem praticado a pintura ao ar livre, acentua uma leitura polariza-
da entre modernos e acadêmicos.
As duas paisagens de Castagneto F)orfodo 8/o de ./ane/ro
afigura 53) e /War/nhacom barco (Figura 54) - invertem a rela-
ção das obras anteriores. É o sujeito - o pintor e também o es-
pectador- que dá vida à natureza,vista, essencialmente.não
como ela é na realidade. mas da forma como é vista'pelo artista.

Arte Brasileira no Século XIX. 83


O desenho é praticamentebanido e são as cores - ou melhor,as
manchas coloridas que tecem toda a composição. Estamos,
agora. nos distanciandodo campo restritoda representaçãoe
entrando naquilo que vai ser uma das maiores reivindicações da
arte moderna: a pura expressão.
Todas essas obras revelam a diversidade da produção ligada à
Academia - tanto na temática quanto no tratamento plástico, assim
como na posturados artistas - e evidenciamque a relação entre
tradição e modernidade ocorre no próprio campo da arte acadêmi-
ca. Assim, verificamos,de um lado, a longa duração de estilose
temáticas mais tradicionais e sua convivência até certo ponto pací-
fica com linguagens e assuntos mais atualizados. De outro, a versa-
tilidade dos artistas que exploram essas diversas linguagens, de
acordo com o caráter e a função das pinturas.

afigura 531 Giovanni Battista Castagneto. Podo do P/o de Janeá'o. Olho s/ tela
1884, 54,7 x 94 cm IMNBA).

84 . SONDA GOMOS PENEIRA


afigura 54) Giovanni Battista Castagneto Alar/nha com barco. Oleo s/ madeira
1885, 16x 22 cm(Museu de Arte de São Paulo - MASP}.

As experiências com a modernidade e a persistência da


tradição narrativa na pintura
No final do XIX e nos primeiros anos do século XX, alguns
artistas incorporam àquela diversificação já apontada, algumas
outras linguagens modernas, principalmente o expressionismo e
o fovismo.
Vamos examinar inicialmenteum grupo de retratos(Figuras 55
a 57). Esses três retratos estão certamente ligados ao realismo, mas
eles são um bom exemplo de como essas definiçõesestilísticas
encobrem muitas nuanças, pois os três apresentam diferenças
importantes. As obras de Modesto Brocos(Figura 55) e de Rodol-
fo Amoedo (Figura 56) apresentam o retratado em seu ofício e
ambiente de trabalho, mas, enquanto Amoedo detalha o cenário,
descrevendo os objetos que compõem o ateliê, Modesto Brocos
faz um fundo impreciso e próximo, concentrando toda a atenção do
espectador no personagem, na mesa e nos objetos próprios à escri-
ta. Já Almeida Júnior afigura 57) coloca o seu retratado na situação

Arte Brasileirano Século XIX . 85


de modelo, cercado de volumes e panos que tornam o ambiente
impreciso. Sobretudo o grande painel branco ao fundo faz avançar
o plano de fundo tornando exíguo o espaço da representação.
Essa apresentação solitária do personagem, sem os atributos usu-
ais que eram usados na retratístíca,a indefiniçãodo cenário e a
tendência à planaridade, são recursos muito utilizadosentre os pinto-
res independentes na Europa e certamente indicam uma postura mo-
derna do artista.

+
.!&

afigura 55) Modesto Brocos. /?efrafodo escdfor ,4Nur ,4zevedo. Oleo s/ tela, 1891
46 x 58 cm(Coleção Sérgio Fadel)

86 . SONDA GOMOS PENEIRA


IFígura 56} Rodolfo Amoedo. Hefrafo de Jogo 77mófeoda Cosia. Oleo s/
madeira, 1908, 49,5 x 29,7 cm(MNBA).

Arte Brasileirano Século XIX


afigura 57} Almeida Júnior. Refrafo do p/nror Z?e/m/rode ,4/me/da. C)leo s/
madeira,[s.d.]. 55 x 47 cm IMASP}.

Vamos agora observar algumas paisagens (Figuras 58 a 591.


Essas duas paisagens são construídas por manchas coloridas, em
que a textura irregular da camada pictórica é explorada como recur-
so plástico, reforçando a ideia de espontaneidade no registro da
paisagem e o prazer do artista com o aspecto material da pintura.
Mas há uma diferença importante entre elas. Enquanto Castagneto
afigura 58) prefere os tons mais suaves, Navarro da Costa (Figura
59) acentua as cores, impregnando a paisagem de vibração, como
faziam os pintores fovistas na França.

SONDA GOMES PEREIRA


F' #''
&

afigura 581Gíovanni Battista Castagneto. Drec/70da F)a/a de Sáo coque em Pague


rá. Oleo s/ madeira.c. 1898.32 x 40 cm(MNBA)

afigura59) Navarro da Costa. /Luar/nha.


Oleo s/ madeira, 1911, 33x 40 cm IMNBA}

Arte Brasileira no Século XIX. 89


Passemos, agora. a um outro grupo de pinturas (Figuras 60 a
64). Todas essas cinco obras têm claras funções narrativas,mas
apresentam diferenças nítidas em sua linguagem plástica.
As duas primeiras(Figuras 60 e 61l seguem o realismo, em sua
temática do cotidiano e o caráter descritivo do ambiente e dos obje-
tos. Mas há, entre as duas, uma diferençano caráterdo tema. En-
quanto Rodolfo Amoedo afigura 601registra uma cena da sociedade
burguesa, Almeida Júnior afigura 61l retrata quase que o mesmo as-
sunto, mas passado no ambiente modesto de gente mais pobre.
Esse lado da obra de Almeida Júnior, chamado pelos estudiosos de
fase caipira, será muito elogiado no futuro pelos historiadores e críticos

.I'@
afigura 60} Rodolfo Amoedo. /Wásnolüüs. Oleo s/ tela. 1895. 100 x 74 cm
(MNBA}.,

90 - SONDA GOMOS PEREIRA


ligados ao modernismo. Segundo eles, somente essa parte da obra
de Almeida Júnior se salvava da alienação generalizada da arte do
século XIX, só interessada em copiar os modelos franceses. O pro-
blema dessa abordagem é fazer da temática nacionalistao parâme-
tro único para a análisedas obras, desconhecendoas qualidades
plásticas e o caráter inventivo de muitos artistas dessa época na
apropriação dos modelos europeus.

afigura 61) José Ferraz de Almeida Júnior. Pecado d/71'c//.


Oleo s/tela. 1895, 139 x 79 cm IMNBA). '

Arte Brasileirano Século XIX . 91


afigura 62) Eliseu Visconti
Recompensa
de São Se
óasf/ão. Oleo s/ tela, 1898
218 x 133 cm (MNBA).

A obra de Visconti (Figura 621dá conta da absorção do simbo-


lismo. Visconti fez várias obras nessa linguagem, tais como G/oven-
tu kXSSaà.Pedro Alvares guiado pela Providência \\899'b.Oréadas
j18991e a Peconopensa de São Sebasf/ão (1 898). Vários elementos
nesta pintura indicam a prática simbolista. Um deles é a diferença
de escala entre os dois personagens em primeiro plano São Se-
bastião e o anjo e as duas mulheres num plano recuado --,fugindo
à perspectiva tradicional. Assim como a diferença na representação
da árvore em primeiro plano - bastante realista e a paisagem de
fundo -, que também escapa à perspectiva - apresentando-se mais
como um fundo plano decorado. Por último, os detalhes em doura-
do - reminiscências da pintura anterior ao Renascimento - que os
simbolistas apreciavam especialmente.

92 SONDA GAMES PERnRA


As duas obras seguintes(Figuras 63 e 64) exploram sobretu-
do as possibilidades expressivas da cor. É o caso de Z)/ac/everão
de Albuquerque(Figura 63). O caráter narrativo é minimizado, para
dar lugar ao registroda luminosidadetípica de um dia de verão.
Os tons mais claros do vestido da figura feminina e da cortina fa-
zem contraponto com a densa vegetação ao fundo, aumentando o
efeito de vibração das cores.

afigura 63) Georgina de Albuquerque. D/á de t/e/áo.Oleo s/ tela


1904. 130 x 89 cm (MNBAI. '

Arte Brasileira no Século XIX. 93


'n

afigura 64) Rodolfo Chambelland. Ba//eâ Xaníasü. Oleo s/ tela, 1913, 149 x 209 cm
(MNBA)

Rodolfo Chambelland (Figura 641explora também a vibração


das cores, mas aproveitasobretudoa texturadas pinceladaspara
aumentar a sensação de movimento e animação. A tela trata do car-
naval. É no Rio de Janeiro moderno, depois de reformado pelo Pre-
feito Pereira Passos, que o carnaval carioca se estruturou, passando
das antigas brincadeiras do entrudo para as formas mais burguesas
do baile à fantasia e do desfile de grupos carnavalescos. E exatamen-
te esse aspecto peculiar à vida carioca que é tema de Rodolfo Cham-
belland nessa obra. Mas o artista não tem nenhuma intenção docu-
mental, pois nela importam muito mais a sua percepção e o seu
envolvimento com o tema. A obra não é mais uma mera transcri-
ção pictórica de um fato da vida cotidiana, pois está impregnada
da relação afetiva e da percepção que o artista mantém com o
tema. O espaço pictórico é representado com certa profundidade.
mas a indiferenciação do fundo concentra a atenção do especta-
dor nos volumes formados pelos foliões dançando. São figuras
construídas por manchas coloridas e pulsantes, que fazem a pintura
vibrar como o próprio baile de carnaval. Assim, como já observou

94 . SONDA GOMOS PEREIRA


um crítico sobre essa obra. o movimento está presente na obra. não
apenas pelo tema carnavalesco, mas ele é experimentadotambém
pela nervosidade latenteda própria pintura. É, portanto, a cor que
serve de instrumento ao artista para o registro de suas sensações,
explorando de forma livre e espontânea as suas possibilidades de
expressão.
Finalmente,é interessante comentar um exemplo pouco co-
mum entre nós, tanto nessa época, quanto nas décadas seguintes:
/Wafern/dadaem cócu/os de Belmiro de Almeida (Figura 65). Essa
obra inscreve as figuras humanas em superposições de círculos,
que acabam quase diluindo o reconhecimentodas figuras. Apesar
de pouco comum, essa é uma das poucas experiências mais radi-
cais com as linguagens avançadas do início do século XX na Euro-
pa, que, a partir do cubismo, vai explorar as linguagens abstratas.

+
l

afigura 651Belmiro de Almeida. /L7afern/dado


em caca/os. Oleo s/ tela, 1908. 46 x
61 cm (Coleção Sérvio Fadel).

Arte Brasileira no Século XIX . 95


CardosOswald. Figura áem;rw/na
/ando ao ar //vre.Oleo s/tela, 1912, 50 x 60 cm ICo
leção Sérgio Fadel).

96 . SONDA GOMOS PENEIRA


Henrique Cavaleiro. /VuÁem/n/ho.Oleo s/tela. 1953. 162,5 x 114.0 cm. Concurso de
magistério para a Escola Nacional de Belas Artes(Museu D. Jogo VI/ EBA/ UFRJI
A longa duração da tradição narrativa na arte brasileira no século XX explica a per-
manência dos exercícios de modelo vivo, inclusive como exigência em concursos
didáticos

Arte Brasileira no Século XIX


Oswaldo Teixeira. Praça Flor/a/70,/?/ode Jade/ro ICinelândia). Oleo s/tela colada em
madeira, 1922,31 x 31 cm IColeção Sérgio Fadel)

98 . SONDA GOMOS PEREIRA


b

Artur Timóteo da Costa. Fkaça F/orüno, P/o de Janeúo (Cinelândia}. C)leo s/tela
1922, 51,5 x 62 cm IColeção Sérgio Fadell

ida em

Antânio Parreiras. Paragem. Oleo s/madeira, 1910, 26,6 x 39,8 cm IMuseu D. Jogo
VI / EBA / UFRJ)

Arte Brasileira no Século XIX. 99


Francisco Bolinha. Pa/acede Z?o/onça. Belém/Porá, 1915

1 00 . SONDA GOMOS PENEIRA


José Lapertozae Victor Renaut Coelho. /?es/dénc/ade ,4á0/7soPena Jf
Belo Horizonte,final do século XIX

Arte Brasileirano Século XIX . IOI


C b'
W

&

Valérío Vieíra. Os frhfa Ua/ér/os. Fotomontagem. c. 1900 (Coleção Marca Luíza Viei-
ra). Essa fotomontagem recebeu a medalha de prata na Exposição de Saint Louis
nos Estados Unidos em 1904. Observe que todos os personagens em cena(inclu-
sive o busto sobre o móvel e os retratos nas paredes) são representados pela foto
do próprio ValéríoVíeira
CONCLUSÃO
modernidade nas artes: o projeto modernista vai incorporar o dis
curso nacionalistae terá em São Paulo a sua base militantede artes
tas e intelectuais.
No entanto, as três décadas iniciais do modernismo brasilei-
ro apesar do discurso inflamado e do comportamento militante
- continuarão fiéis à figuração, garantindo, em grande parte. a
continuidade da tradição narrativa. que desde o Renascimento,
era considerada o objetivo maior das artes plásticas e, em espe-
cial, da pintura. Portanto, entre a arte dos séculos XIX e XX não
há uma ruptura radical: existem traços em comum ao lado das
diferenças.

I 04 . SONDA GOMES PEREIRA


anis

Itante
a

unto

jipe
nao
das

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