2023 AlbertoCamargoPortella VCorr
2023 AlbertoCamargoPortella VCorr
2023 AlbertoCamargoPortella VCorr
VERSÃO CORRIGIDA
São Paulo
2023
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
VERSÃO CORRIGIDA
São Paulo
2023
2
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
3
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
Nome do Prof. (a) orientador (a): Prof. Dr. Rafael de Bivar Marquese
___________________________________________________
(Assinatura do (a) orientador (a)
4
A meus pais, Joaquim e Marlene,
que sempre me auxiliaram em todos os caminhos.
5
AGRADECIMENTOS
6
Ferraro, Mariana Ferraz Paulino, Marina Sanchez, Pedro Henrique Sette, Roberta
Quirino, Thomáz Fortunato e Verônica Fernandes.
De modo particular, devo um especial obrigado a Nicole Leite Bianchini, Tiago
Andrade, Isabela Rodrigues de Souza e João Gabriel Covolan. O convívio e as conversas
com esses grandes amigos durante os anos de pesquisa (e de pandemia) foram um
necessário escape às tensões da pós-graduação.
Aos amigos que conheci em São Paulo, agora espalhados pelo interior: Isabel
Filier de Oliveira, Victor Ruy Rossetti, Felipe Leonardo Ferreira, Larissa Karoline
Campos Oliveira e Letícia Fernandes Costa.
Aos amigos e professores que conheci no interior, nos anos de SESI e SENAI. Em
especial, àqueles docentes que me instigaram a ser historiador e professor de História:
Antonio, Celina, Elizangela, Lúcia, Luciana, Maria José e Patrícia.
Não posso deixar de lembrar e agradecer aos alunos, professores e funcionários
da EMEIF Joaquim Salvador de Quevedo e da EMEF Marcilio Leite de Almeida, em
Capela do Alto. Graças a eles, pude também perceber como a docência complementa o
trabalho de pesquisador.
Aos meus familiares, os muitos tios, tios-avôs e primos, pelo incentivo dado ao
primeiro – e por enquanto o único – historiador da família. Aos meus avós José dos Santos
Portella e Sebastiana Maria Portella, Darci Paes de Camargo e Maria de Lourdes Pedroso
Camargo. Esse trabalho também é dedicado a eles.
A meu avô José, agradeço pelas conversas nas tardes de domingo, que saíam do
arroz e chegavam aos mais variados assuntos. As visitas à sua casa eram uma ótima e
necessária pausa no cotidiano de pesquisa.
A meus pais, Joaquim e Marlene, não tenho palavras para expressar o quanto
contribuíram para a minha formação. Nunca deixaram de me auxiliar, encorajando-me a
seguir os caminhos da pesquisa e valorizando o meu trabalho.
Aos meus irmãos, André e Andréia, agradeço por todo o apoio desde o início da
graduação. Se um se dedica às exatas e a outra, às biológicas, completo o trio me
dedicando às humanas!
A Anderson agradeço pelas boas conversas e pelos conselhos sobre a pesquisa e
a docência.
Às minhas sobrinhas, Eloá e Isabelle. Desde 2014, tornaram mais alegre a vida da
família, inclusive a minha durante os anos de graduação e mestrado.
7
Como parte da primeira geração da família a entrar em uma Universidade, penso
que é preciso defender o caráter público e gratuito do ensino superior, muitas vezes tão
atacado e desvalorizado com corte de verbas e outras ações. Aproveito para valorizar,
portanto, o trabalho dos professores e funcionários da Universidade de São Paulo e
especialmente da FFLCH.
Enfim, também agradeço às agências de fomento, CAPES (processo
88887.371849/2019-00) e FAPESP (processo 2019/12541-2), que ofereceram bolsas e
tornaram possível o desenvolvimento da pesquisa.
8
[...] Todas as nações da Europa se aumentaram e aumentam
ainda hoje pela recíproca imitação. Cada uma vigia
cuidadosamente sobre as ações que obram as outras. Assim
fazem todas própria, mediante a informação dos seus ministros,
a utilidade dos inventos alheios [...].
9
RESUMO
10
ABSTRACT
PORTELLA, Alberto C. The colonial rice in the Portuguese enlightened reforms (1750-
1808). 2023. 262 p. Dissertação (Mestrado em História Social). Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023.
This dissertation aims to understand which factors established the commercial rice
cultivation in Portuguese America at the end of the eighteenth century. At the same time,
it connects that development to reformists writings about agriculture issued in Portugal at
the same period. Indeed rice was among the many commodities which constituted the
Portuguese Empire’ late eighteenth century movement of productive diversification. The
colony’s export records show successful commercial cultivation of the crop in American
soil. We aim to understand such transformation in light of the development of global rice
markets dynamics and the impact of Enlightened Reformations on it. Moreover, those
conditions also meant the rise of intellectual disputes on riziculture through a variety of
writings on this crop and agriculture. To evaluate these transformations, we analyze the
organization of riziculture in some parts of Portuguese America at the end of the century
and those writings which tried to remodel the rice production with almost no success.
Those two changes, one related to production and the other to reformists texts, are
understood through some analysis of the rice market during the 18th century and the shifts
in the Portuguese economic thinking.
11
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: territórios asiáticos com cultivo de arroz no século XX, retratando regiões
tradicionalmente rizicultoras (sudeste asiático, China, Índia etc.). Fonte: BRAY,
Francesa; COCLANIS, Peter; FIELDS-BLACK, Edda; SCHÄFER, Dagmar. Rice: global
networks and new histories. New York: Cambridge University Press, 2015, p.
XXII…………………………………………………………………………………p. 39.
Figura 2: região de domesticação e cultivo de arroz no oeste da África. Fonte: CARNEY,
Judith. Black Rice: the African origins of rice cultivation in the Americas. Cambridge &
Londres: Harvard University Press, 2001, p. 39…………………………………….p. 41.
Figura 3: regiões rizicultoras, com atenção conferida à África e à dispersão da espécie
O. glaberrima. Fonte: CARNEY, Judith. Black Rice: the African origins of rice
cultivation in the Americas: Cambridge & Londres: Harvard University Press, 2001, p.
155…………………………………………………………………………………..p. 42.
Figura 4: principais regiões rizicultoras no globo (séc. XVIII). Concepção e elaboração:
Alberto Camargo Portella. Elaboração em QGIS 3. Fontes: COCLANIS, Peter. “Distant
thunder...”, passim; BRAUDEL, Fernand. Civilização material... As estruturas do
cotidiano..., pp. 127-138; SHARMA, Shatanjiw D. “Domestication and diaspora...”, pp.
1-24; CARNEY, Judith. Arroz Negro..., passim; MARÍ, Rubén; PEYDRÓ, Ricardo J.,
op. cit., passim; ARRUDA, José Jobson de A. O Brasil no comércio..., pp. 392-398;
VALENTIM, Agnaldo. Uma civilização do arroz: agricultura, comércio e subsistência
no Vale do Ribeira (1800-1880). 2006. 400 p. Tese (Doutorado em História Econômica).
FFLCH-USP, São Paulo, 2006, passim; ALDEN, Dauril. “Manuel Luis Vieira...”,
passim.........................................................................................................................p. 51.
Figura 5: cultivo de arroz com força das marés no Lower South. Fonte: CARNEY, Judith.
Black Rice: the African origins of rice cultivation in the Americas. Cambridge & Londres:
Harvard University Press, 2001, p.
79…………………………………………………………........................................p. 55.
Figura 6: esquematização de duas formas para o cultivo de arroz. Fonte: CARNEY,
Judith. Arroz Negro: as origens africanas do cultivo do arroz nas Américas. Bissau:
Instituto da biodiversidade e das áreas protegidas, 2018, p. 129..................................p. 56.
Figura 7: CODINA, Joaquim José. [Engenho de pilões de socar]. [S.I.: s.n.], [17--). 1
desenho, nanquim, p&b, imagem 32,5x19,0 cm em f. 34,5x24,0. Disponível em:
<http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=1420>. Acesso em 8 de
julho de 2022.............................................................................................................p. 194.
Figura 8: CODINA, Joaquim José. Moinho de arroz. Original, 1784. Extraído de CFC –
1 (49). BNRJ 21, 1, 2 (30) apud Anexo com imagens de PATACA, Ermelinda.
Mobilidade e permanências de viajantes no mundo português: entre práticas e
representações científicas e artísticas. 2015. 385 p. Tese (Livre docência). Faculdade de
Educação, USP, São Paulo, 2015..............................................................................p. 194.
12
Figura 9: CODINA, Joaquim José. Ventilador de arroz. Original, 1784. Extraído de CFC
– I (48). BNRJ 21, 1, 2 (32) apud Anexo com imagens de PATACA, Ermelinda.
Mobilidade e permanências de viajantes no mundo português: entre práticas e
representações científicas e artísticas. 2015. 385 p. Tese (Livre docência). Faculdade de
Educação, USP, São Paulo, 2015..............................................................................p. 195.
13
LISTA DE GRÁFICOS E TABELAS
14
ABREVIATURAS
15
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 17
1. PORTUGAL E O MERCADO MUNDIAL DE ARROZ NO SÉCULO XVIII 32
1.1. Uma recapitulação 37
1.2. A rizicultura na Península Itálica 42
1.3. O caso britânico 48
1.4. A rizicultura no Lower South 52
1.5. Conclusão 61
2. AS LUZES EM PORTUGAL E O REFORMISMO LUSO-AMERICANO 66
2.1. O período pombalino 71
2.2. Os planos reformistas pós-pombalinos 81
2.3. Mudanças e continuidades 124
3. A REFORMA DA AGRICULTURA IMPERIAL 131
3.1. As Memórias da Academia Real 132
3.2. A Tipografia do Arco do Cego e os projetos editoriais e econômicos portugueses 146
3.3. Hipólito José da Costa e a agricultura dos Estados Unidos da América 170
3.4. Teorias e a prática rizicultora 189
4. O CAMPO PRODUTIVO AMERICANO 192
4.1. As inovações produtivas do Rio de Janeiro 197
4.2. São Paulo e os planos de reforma agrícola 203
4.3. O norte da América portuguesa e os arrozais 209
CONCLUSÃO 219
FONTES LIDAS E CITADAS 224
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA E CITADA 241
16
INTRODUÇÃO
1
Ver, por exemplo, CARDOSO, Alírio. “Especiarias na Amazônia portuguesa: circulação vegetal e
comércio atlântico no final da monarquia hispânica”. Tempo, Niterói, v. 21, n. 37, 2015; MARQUESE,
Rafael de B. “A tale of two coffee colonies: environment and slavery in Suriname and Saint-Domingue, ca.
1750-1790”. Comparative Studies in Society and History, Ann Arbor, v. 64, n.3, 2022, pp.722-755;
COCLANIS, Peter. “Distant thunder: the creation of a world market in rice and the transformations it
wrought”. The American Historical Review, Bloomington, v. 98, n. 4, 1993. No caso do ouro, ver
MARQUESE, Rafael de B.; MARQUES, Leonardo. “Ouro, café e escravos: o Brasil e ‘a assim chamada
17
O arroz despertou no início da pesquisa certa inquietação. Apesar de ser um item
considerável na pauta de exportações do final do século XVIII e com importância na vida
material da população luso-americana desde o começo da colonização, pouca atenção foi
conferida a ele enquanto objeto de estudo acadêmico no Brasil e em Portugal. Itens como
o café, o açúcar e o ouro despertaram maior zelo e foram enquadrados em diversos
estudos historiográficos, desde as obras de Virgílio Noya Pinto dedicadas ao metal até os
debates atuais sobre a cafeicultura brasileira. O arroz nunca recebeu tanta consideração.
No caso brasileiro, podemos citar textos escritos por Sérgio Buarque de Holanda, Corsino
Medeiros dos Santos, Agnaldo Valentin, Reinado dos Santos Barroso Junior e Walter
Hawthorne. Em Portugal, por seu turno, elencamos os trabalhos de Irene Vaquinhas e um
artigo recente escrito por alguns antropólogos sobre a cultura do cereal em terreno luso.
Não havia, porém, nenhum estudo de maior fôlego e que visasse compreender as
dinâmicas do desenvolvimento da cultura comercial de arroz na América lusa. Esse foi o
objetivo que perseguimos durante o trabalho2.
Mas nem tudo se resume a Brasil e Portugal, pois o arroz é objeto de investigação
em outros quadrantes do globo há mais tempo e com maior frequência. Considerações
gerais e rápidas sobre ele aparecem em diversas obras na Europa, como nas de Fernand
Braudel, Pierre Chaunu e naquelas dedicadas à história da alimentação. No caso norte-
americano, tendo em vista que o cereal foi um cultivo essencial à história de algumas
3
Ver BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII. Volume 1.
As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 127-138;
CHAUNU, Pierre. A história como ciência social: a duração, o espaço e o homem na época moderna. Rio
de Janeiro: Zahar, 1976, pp. 181-239; VELOSO, Carlos. A alimentação em Portugal no século XVIII nos
relatos dos viajantes estrangeiros. Coimbra: Minerva Histórica, 1992; WOOD, Peter H. Black majority:
negroes in colonial South Carolina. From 1670 through the Stono Rebellion. New York: Alfred A. Knopf,
1974; LITTLEFIELD, Daniel C. Rice and slaves: ethnicity and the slave trade in colonial South Carolina.
Urbana/Chicago: University of Illinois Press, 1991; CARNEY, Judith. Arroz negro: as origens africanas do
cultivo do arroz nas Américas. Bissau: Instituto da Biodiversidade e das áreas protegidas, 2018; também
COCLANIS, Peter. The shadow of a dream: economic life and death in the South Carolina Low Country,
1670-1920. New York/Oxford: Oxford University Press, 1989.
19
forma de adentrar com cuidado as minúcias do mundo produtivo, ao mesmo tempo em
que inserimos o trabalho em um debate atual4.
Buscamos dar espaço a uma commodity pouco explorada na historiografia luso-
brasileira, haja vista os estudos dedicados ao café, ao ouro ou ao açúcar, e inserir essa
discussão em um debate atual sobre a materialidade produtiva, tudo isso enquadrado pela
economia-mundo europeia e atlântica, em que havia diferenças entre a realidade política,
econômica e social do mundo ibérico e aquela do noroeste europeu. Portugal, até meados
do século XVIII, dependeu de importações de arroz vindas da América britânica e, por
volta de 1750, inseriu a rizicultura em um projeto mais amplo de substituição de
importações e diversificação produtiva calcado na emulação de práticas de outras
potências europeias. Essa é a primeira faceta do trabalho que desejamos apresentar,
evidenciando uma trilha de estudos já estabelecidos e buscando responder a novas
questões5.
O trabalho não se resume às considerações produtivas e àquelas relacionadas ao
mercado mundial da commodity. A relação entre o sistema atlântico ibérico e o do
noroeste europeu, mediada pelo mercado de arroz, envolveu informações e textos.
Lidamos com debates sobre o impacto do reformismo ilustrado nas ideias sobre a
economia e a agricultura no império português durante o século XVIII. São diversas as
discussões enfrentadas, já iniciadas na própria definição do que foi a ilustração europeia
e seu impacto em terreno luso. Partilhamos das considerações de diversos autores,
segundo os quais Portugal foi palco de mudanças que podem ser entendidas a partir de
um enquadramento reformista e ilustrado. No Império português, a ilustração criou suas
raízes e buscou empreender mudanças na cultura, sociedade e economia, ao mesmo tempo
em que diversas características do Antigo Regime deveriam ser e foram preservadas. Em
outras palavras, as ideias ilustradas foram utilizadas também com o fim de fortalecer o
poder estatal, materializado nas figuras dos monarcas e de seus poderosos ministros.
Novamente, tais transformações são entendidas por meio de um modelo que considera a
contemporaneidade de dois sistemas atlânticos surgidos e estruturados de modo diverso.
A suposta defasagem entre os dois trouxe à tona, no lado ibérico, a emulação das
4
Ver CARNEY, Judith. Arroz negro.... O debate ocorreu na “The American Historical Review” e envolveu
diversos autores (Walter Hawthorne, Devid Eltis, David Richardson, Philip Morgan, Gwendolyn Midlo
Hall e S. Max Edelson). Os textos estão citados na bibliografia deste trabalho.
5
BERBEL, Marcia; MARQUESE, Rafael de B.; PARRON, Tâmis. Escravidão e política: Brasil e Cuba,
c. 1790 – 1850. São Paulo: Hucitec & Fapesp, 2010, pp. 5 – 93.
20
experiências do noroeste europeu, inclusive por meio da tradução de diversas obras
escritas nesse outro espaço do continente – dedicadas também à agricultura. Tais
mudanças estiveram relacionadas às práticas agrícolas luso-americanas e não podem ser
analisadas sem as considerações materiais antes debatidas6.
O trabalho também está escorado numa longa trilha historiográfica sobre a
dinâmica do reformismo ilustrado e seus impactos na colônia americana. Buscamos
embasar nossas análises em estudos clássicos no Brasil e em Portugal, como os de Jorge
Borges de Macedo, Fernando Novais e José Jobson Arruda, dedicados à compreensão das
mudanças empreendidas no final do século XVIII no império luso. Daí nossa
concordância com a ideia de um reformismo ilustrado em Portugal que afetou as práticas
sociais e econômicas na América. Ao mesmo tempo, uma nova historiografia sobre esse
processo e seus principais nomes nos auxiliou a repensar criticamente e a ampliar a
contribuição dos estudos anteriores. Autores como Nívia Pombo e José Luís Cardoso
foram de grande auxílio para a pesquisa, ao permitirem compreender de melhor forma os
processos reformistas, seus sujeitos e os impactos sobre a política imperial,
principalmente no que tange às ideias econômicas e às práticas de emulação7.
A faceta reformista da ilustração portuguesa é analisada tendo em conta os
trabalhos organizados por determinadas instituições culturais luso-americanas, como a
Academia Real das Ciências de Lisboa e a Tipografia do Arco do Cego, assuntos de
diversos trabalhos acadêmicos das últimas décadas. São contribuições atuais a um debate
que vem ocorrendo há pelo menos quarenta anos. Ao mesmo tempo, a historiografia luso-
americana contribuiu com nossa discussão na forma dos diversos trabalhos que versaram
sobre o pensamento econômico português durante os Setecentos, sobre o ecletismo que
dominou as fórmulas econômicas em Portugal, momento de transição entre ideias
6
Ver NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). 9ª edição.
São Paulo: Hucitec, 2011; e ARRUDA, José Jobson de A. O Brasil no comércio colonial. São Paulo:
Editora Ática, 1980; também AZEVEDO, Dannylo de. O Fazendeiro do Brasil: manuais agrícolas no Brasil
colonial em finais do século XVIII. 2018. 215 p. Dissertação (Mestrado em História Econômica). FFLCH-
USP, São Paulo, 2018. Por fim, consultar também BERBEL, Marcia; MARQUESE, Rafael de B.;
PARRON, Tâmis, op. cit., especialmente as pp. 76-80.
7
Ver, por exemplo, MACEDO, Jorge B. de. A situação econômica no tempo de Pombal. Lisboa: Gradiva,
1989; CARDOSO, José Luís. O pensamento econômico em Portugal nos finais do século XVIII (1780-
1808). Lisboa: Estampa, 1989; HANSON, Carl A. Economia e sociedade no Portugal barroco. Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1986; também POMBO, Nívia. Dom Rodrigo de Sousa Coutinho: pensamento
e ação político-administrativa no Império Português (1778-1812). São Paulo: Hucitec, 2015; por fim,
VALADARES, Virgínia Maria T. A sombra do poder: Martinho de Melo e Castro e a administração da
capitania de Minas Gerais (1770-1795). São Paulo: Hucitec, 2006. Os trabalhados de Novais e Arruda
foram citados anteriormente.
21
relacionadas ao mercantilismo e as novas proposições da Economia Política liberal.
Conciliando os debates sobre o reformismo com as discussões sobre o pensamento
econômico em Portugal no século XVIII, acreditamos responder com mais propriedade
acerca do papel dessas ideias na gênese da cultura comercial de arroz na América lusa no
período8.
Por fim, há aqueles trabalhos, essenciais para nossa discussão, sobre a constituição
de determinados espaços coloniais luso-americanos e suas reconfigurações na segunda
metade do século XVIII, na trilha das reformas empreendidas pelo poder metropolitano.
Com eles, pudemos avaliar, na prática agrícola, os resultados das transformações do
mercado mundial de arroz e das mudanças no pensamento econômico surgidas no bojo
do reformismo ilustrado português. No caso da capitania de São Paulo, deixamos de lado
aquela visão de uma “capitania da decadência”, analisando sua constituição econômica
durante o século XVIII. O arroz estava entre os novos itens agrícolas encorajados pela
administração e que encontraram boas condições mercantis e ambientais na capitania,
com elevada importância no Vale do Ribeira. No Rio de Janeiro, analisamos a
constituição da rizicultura na região e os primeiros empreendimentos destinados à
preparação comercial do cereal. No caso do Maranhão, há mais trabalhos dedicados à
questão, explorando a conhecida prática rizicultora desenvolvida no norte da América
lusa, inclusive a inserindo em debates atuais sobre a cultura do arroz na América e a
transformação econômica ocorrida na segunda metade do século XVIII 9.
8
Sobre as instituições citadas e os debates econômicos, ver CARDOSO, José Luís. O pensamento
econômico..., pp. 43-123; PATACA, Ermelinda M.; LUNA, Fernando José (orgs). Frei Veloso e a
Tipografia do Arco do Cego. São Paulo: EDUSP, 2019. Também NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil
na crise..., pp. 228-229; CARDOSO, José Luís. “Genovesi e a economia política ilustrada em Portugal”.
Cultura – Revista de História e Teoria das Ideias, Lisboa, v. 36, 2017, p. 7. Para considerações sobre o
mercantilismo e uma tentativa de elencar suas características essenciais, ver DEYON, Pierre. O
mercantilismo. São Paulo: Perspectiva, 2009.
9
Para a capitania de São Paulo, ver BLAJ, Ilana. “Agricultores e comerciantes em São Paulo nos inícios
do século XVIII: o processo de sedimentação da elite paulistana”. Revista Brasileira de História, São Paulo,
v. 18, n. 36, 1998; ARRUDA, José Jobson de A. “A essencialidade agropastoril da economia colonial: a
fazenda mista paulista”. História (São Paulo), Franca/Assis, v. 39, 2020; VALENTIN, Agnaldo. Uma
civilização do arroz...; por fim, BELLOTTO, Heloísa L. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo
do Morgado de Mateus em São Paulo (1765-1775). São Paulo: Conselho Estadual de Artes e Ciências
Humanas, 1979. Para o Rio, PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a economia do Rio de Janeiro
na segunda metade do Setecentos. Jundiaí: Paco Editorial, 2013; também ALDEN, Dauril. “Manoel Luís
Vieira: an entrepreneur in Rio de Janeiro during Brazil’s eighteenth century agricultural renaissance”. The
Hispanic American Historical Review, Durham, v. 39, n. 4, 1959. Para o Maranhão, CARDOSO, Alírio.
“Especiarias na Amazônia portuguesa...”; também HAWTHORNE, Walter. From Africa to Brazil...; por
fim, BARROSO JÚNIOR, Reinaldo dos S. Nas rotas do atlântico equatorial....
22
Interessa, então, saber se foi o mercado mundial de arroz ou as ideias ilustradas
de reforma econômica que tiveram maior preeminência no desenvolvimento da cultura
comercial de arroz nessas capitanias destacadas. Longe de buscar respostas finais e
inquestionáveis, algo impossível aliás, tentaremos demonstrar a intrincada relação entre
essas duas facetas na explicação de algo que sabemos de antemão, isto é, que houve
sucesso no cultivo comercial de arroz na segunda metade do século XVIII na América
lusa e que isso foi acompanhado por uma considerável produção de textos sobre
agricultura e a cultura de arroz. O mercado mundial de arroz, em expansão no século
XVIII, e as novas ideias sobre economia, e consequentemente sobre a agricultura,
explicam o espaço aberto à rizicultura imperial portuguesa e seu desenvolvimento
comercial a partir de meados do século XVIII. Tal articulação teve dois importantes
resultados: o primeiro se revestiu de um caráter mais evidente e foi o crescimento do
cultivo comercial do cereal em terras portuguesas. O segundo, articulado ao primeiro, foi
uma expressiva produção literária e científica dedicada à agricultura e à agronomia. Nesse
último caso, mesmo que os letrados tenham buscado efetuar diversas reformas agrícolas
e suas propostas tenham sido lidas e aceitas aqui e acolá por alguns senhores de terras,
acreditamos que tais textos não foram a principal força instituidora nos campos
produtivos. Esses escritos são mais resultado de um movimento que vinha ocorrendo
desde o início do século, acompanhando as mudanças contemporâneas na produção. As
mesmas condições que geraram os campos de arroz criaram um contexto em que escritos
puderam surgir. Os textos surgidos no quarto final do Setecentos responderam à realidade
produtiva, que vinha se desenvolvendo desde a década de 1760, e buscaram repensá-la.
Mesmo que nesse último intento não tenha havido sucesso, ainda assim, são parte do
processo de reforma econômica e demonstram a tentativa de racionalização daquela
realidade10.
10
Sobre a produção de arroz na América lusa desde os anos 1760, ver SANTOS, Corsino M. dos, op. cit.,
p. 56.
23
como novas ideias agrícolas tecidas na metrópole. Tal articulação não escapou mesmo
aos atores do período, pois, no mês de maio de 1781, em meio às transformações do
reformismo ilustrado em Portugal e às novidades do reinado mariano, o então visconde
de Vila Nova da Cerveira, Tomás Xavier de Lima Teles da Silva, assinou um pequeno
documento que mais tarde foi preservado na biblioteca da Ajuda. O nobre português
iniciou seus apontamos citando o cereal como um item de primeira necessidade em
Portugal e argumentando que sua produção atendia ao consumo interno luso e criava
exportações. Na verdade, desde os anos 1760, a produção luso-americana oferecia
remessas do cereal para Portugal, evidenciando o sucesso do cultivo comercial de arroz
em diferentes regiões da América portuguesa. Isso se encaixava de ótima forma nos
desígnios dos reformistas ilustrados portugueses, preocupados com o equilíbrio da
balança de comércio e com o desenvolvimento agrícola do império11.
Em seguida, Teles da Silva destacou que o cereal que “antigamente vinha aqui de
fora do Reino era o de Gênova e Veneza”, além de um do Levante, que, por terem
qualidades distintas, possuíam preços variados. Mas isso mudou no início do século
XVIII, quando o arroz britânico, vindo da Carolina do Sul principalmente, superou em
preço e qualidade seus concorrentes do Velho Mundo e tomou o mercado português para
si12. Isso, visto em retrospectiva, prejudicou a própria produção portuguesa na América:
Esta grande concorrência do arroz da América inglesa e a estimação que
mereceu neste reino, mais pela aparência e por ser gênero estrangeiro do que
pela boa qualidade, fez também que as fábricas de arroz estabelecidas no Rio
de Janeiro e Bahia nunca pudessem aumentar-se nesta louvável e utilíssima
cultura pelos nocivos empates que experimentou na concorrência e grande
consumo que com preferências se dava ao arroz carolina13.
11
Biblioteca da Ajuda, 54 – XIII – 4 (34), p. 1. Agradeço a Fabio Pesavento pela disponibilização da
transcrição desse documento. Sobre as remessas de arroz enviadas a Portugal, ver SANTOS, Corsino M.
dos, op. cit., p. 56. Sobre as ideias reformistas, ver CARDOSO, José Luís. O pensamento econômico...,
passim, especialmente as pp. 43-56.
12
Biblioteca da Ajuda, 54 – XIII – 4 (34), pp. 1-1v. Segundo o documento, o preço do arroz de Gênova
variava de 3$000 a 3$600 réis o quintal; o de Veneza, de 3$800 a 4$400; o do Levante, de 2$200 a 3$000;
o britânico, de 2$800 a 3$400 réis.
13
Idem, Ibidem, p. 1v.
24
à produção e beneficiamento do cereal na América. Todavia, segundo o autor do
documento, os americanos ainda conseguiram vencer na concorrência, barateando o seu
arroz14.
Veio então a Guerra de Independência dos EUA, como parte da crise do sistema
atlântico do noroeste europeu e, consequentemente, do Antigo Regime. Os americanos e
seu arroz não puderam mais entrar nos portos lusos e, “[...] cessando por este princípio a
entrada de seu arroz nos portos de Portugal, imediatamente respiraram as fábricas e a
cultura do mesmo gênero neste Reino e suas conquistas [...]”15. Parecia haver então um
caminho aberto para que a produção “nacional” substituísse aquelas importações e desse
ânimo à economia combalida de Portugal:
O certo é que depois da sublevação dos americanos, pela qual foram excluídos
de poderem entrar nos portos deste Reino e seus domínios, tem chegado neles
a mesma cultura a produzir quantidade tal que não só fertiliza aos povos
nacionais, mas sobejam as avultadas partidas que do mesmo gênero vão já para
os reinos estrangeiros principalmente para os da França, Espanha quando nem
de Gênova nem de outra alguma nação vem aqui outro arroz presentemente
que não sejam algumas insignificantes porções [...]16.
Tal texto foi escrito em maio de 1781. Em 24 de julho, a rainha assinou um alvará
proibindo a entrada de arroz estrangeiro em Portugal. A medida teorizada pelo visconde
encontrou sua realização no alvará de dona Maria I. Se as mudanças ocorridas no mercado
mundial do arroz parecem ter contribuído para com o sucesso do cultivo na América lusa,
14
Biblioteca da Ajuda, 54 – XIII – 4 (34), pp. 1v-2.
15
Idem, Ibidem, pp. 2-2v.
16
Idem, Ibidem, p. 2v.
17
Idem, Ibidem, p. 3v.
18
Idem, Ibidem, p. 4.
25
também devemos pôr em conta as ideias ilustradas que se relacionaram à economia, à
agricultura e a um projeto imperial luso19.
Por um lado, buscamos demonstrar a forma como a rizicultura na América
portuguesa, em fins do século XVIII, foi moldada por condicionantes mais amplas,
relacionadas ao mercado mundial de arroz e a mudanças no modo de pensar a economia
em Portugal. Evidenciamos como a análise dos discursos do reformismo ilustrado luso-
americano sobre economia deve ser relacionada ao estudo do mercado mundial do grão
para uma melhor compreensão do processo. Por outro, por meio da análise da escrita de
textos sobre agronomia e do desenvolvimento da cultura comercial de arroz no império
luso, demonstramos a forma como isso respondeu às condições iniciais, responsáveis pelo
desenvolvimento da rizicultura colonial portuguesa e das teorizações sobre o cereal 20.
Para empreender tal análise, contamos com uma série documental variada. A
estrutura da dissertação comporta quatro capítulos. No primeiro capítulo analisamos
alguns dados referentes às exportações britânicas de arroz, parte delas direcionada a
Portugal, com vistas a detalhar de melhor forma a organização produtiva britânica e os
fluxos no mercado mundial de arroz. No segundo e terceiro capítulos, utilizamos
essencialmente escritos surgidos no bojo do reformismo ilustrado português, com vistas
a compreender, em primeiro lugar, o pensamento econômico luso e, depois, as ideias
sobre agricultura e a rizicultura coloniais. Obras de atores como Sebastião José de
Carvalho e Melo, Rodrigo de Souza Coutinho, frei José Mariano da Conceição Veloso e
Hipólito José da Costa Pereira foram mobilizadas para empreender a análise. Por fim, no
quarto capítulo, nos baseamos na missiva entre autoridades portuguesas e na legislação
da época para avaliar o espaço da rizicultura em terreno luso-americano; com vistas a
avaliar o papel dos cativos na implantação do cultivo, foram utilizados dados sobre o
desembarque de escravos em diversas regiões portuguesas, disponibilizados na
plataforma SlaveVoyages.
O primeiro capítulo da dissertação visa construir uma imagem ampla do mercado
mundial de arroz na primeira metade do século XVIII. Com o objetivo de melhor
19
Para o decreto, ver “Alvará prohibindo a entrada de arroz estrangeiro” in SILVA, Antonio D. da.
Collecção da legislação portugueza desde a ultima compilação das ordenações... Legislação de 1775 a
1790. Lisboa: Typografia Maigrense, 1828, pp. 300-301.
20
Tal método, baseado na mútua determinação entre a parte e o todo, tem em Sartre um de seus proponentes.
Ver SARTRE, Jean-Paul. Questão de Método. 4ª ed. São Paulo & Rio de Janeiro: DIFEL, 1979, pp. 34 –
148, especialmente a p. 112.
26
esclarecer sua constituição, incursões na longa história do cereal são parte da exposição,
para compreender o papel substitutivo do arroz e o modo como se tornou conhecido do
público consumidor europeu. A análise desse mercado, envolvendo regiões
mediterrânicas e atlânticas, é condição necessária para compreender o desenvolvimento
da rizicultura colonial portuguesa e dos discursos reformistas relacionados ao grão, assim
como a construção de argumentos médicos e ambientais sobre a cultura do cereal. De
modo resumido, buscamos discutir a demanda pelo grão em Portugal nas primeiras
décadas do século XVIII, os possíveis locais de oferta (Península Itálica e o Lower South)
e as alterações ocorridas no fim do século. Tal discussão, todavia, não envolverá a análise
detida do corpo documental escolhido para a pesquisa, apesar do uso de uma ou outra
fonte para a avaliação dos fluxos mercantis entre a América britânica e Portugal.
Se o arroz era conhecido e consumido na Europa desde a Antiguidade e produzido
para subsistência e venda local na América lusa desde o início da colonização, a quebra
da produção britânica durante a Guerra de Independência dos EUA abriu uma
oportunidade para a efetivação da produção comercial portuguesa e para que os letrados
continuassem a pensar no cereal. Portugal, até então, dependia das remessas vindas dos
domínios britânicos. Com vistas a substituir as importações que pesavam sobre a balança
comercial lusa, em um contexto de dificuldades econômicas, o conflito serviu como
alavanca para os planos portugueses de produção e envio de arroz à metrópole. Portanto,
o mercado mundial do cereal em fins do século XVIII é uma das facetas para a
compreensão da efetivação da produção comercial do grão na América lusa e do
surgimento de escritos sobre o cereal nesse período21.
O segundo capítulo, intitulado “As luzes em Portugal e o reformismo luso-
americano”, demonstra de modo panorâmico as mudanças no discurso econômico
português durante a segunda metade do século XVIII, por meio da análise das obras de
alguns destacados sujeitos da época: o marquês de Pombal, dom Rodrigo de Sousa
Coutinho, o bispo Azeredo Coutinho e o negociante MJR. O objetivo é destacar o modo
como as preocupações econômicas e a forma de analisar o campo econômico sofreram
transformações e como isso pôde impactar as oportunidades abertas ao cultivo do cereal
e às teorizações sobre a rizicultura. Desde já, salientamos que o arroz parece desaparecer
de nossa argumentação conforme esse capítulo avança, mesmo que em uma hora ou outra
21
Para essas informações, ver os próximos capítulos da dissertação.
27
considerações feitas sobre ele venham à tona. Longe de significar um problema ou defeito
em nossa análise, acreditamos que isso na verdade demonstra a própria posição desse
cereal dentro do quadro mais amplo da reforma agrícola imperial, uma posição menos
relevante do que, por exemplo, a da cochonilha. Visto como um item de “primeira
necessidade”, como no caso do visconde acima citado, talvez fosse um tanto óbvio falar
sobre sua relevância ou reafirmar os modos de cultivo em escritos reformistas. De toda
forma, o desenvolvimento dos campos rizicultores e de escritos ilustrados dedicados ao
cereal deve ser compreendido tendo em vista aquelas mudanças no pensamento
econômico luso que destacaram o papel da terra, da agricultura e do trabalho na
composição da riqueza imperial. Para além disso, o capítulo visa destacar nos escritos
desses atores o modo como avaliaram a emulação de práticas estrangeiras, análise essa
que auxiliará em algumas das observações feitas na sequência22.
No terceiro capítulo, cujo título é “A reforma da agricultura imperial”, visamos
compreender como diversos escritos sobre agricultura, e alguns sobre rizicultura,
surgiram em Portugal no fim do Setecentos. Depois, relacionar os projetos de reforma
agrícola luso-americanos ao desenvolvimento da rizicultura colonial, com o foco nas
publicações vindas à tona no quarto final do século XVIII, por meio da ação editorial da
Academia Real das Ciências de Lisboa ou ainda da Tipografia do Arco do Cego. Obras
de membros da intelligentsia ilustrada da época, tais fontes são centrais para o
entendimento daquele desenvolvimento – mesmo com os devidos cuidados que tomamos
com seus argumentos. Para além de escritos sobre os problemas agrícolas mais amplos,
como aqueles produzidos por Domingos Vandelli, outros textos voltados aos lavradores
são essenciais para a discussão.
A ideia do terceiro capítulo é verticalizar em uma análise de obras estritamente
relacionadas à agricultura, à emulação de práticas agrícolas do estrangeiro. Bons
exemplos são as obras editadas e traduzidas por Frei Veloso, as memórias da ARCL ou
ainda uma das únicas memórias sobre o arroz. Essa parte do capítulo está estruturada em
subitens que tratam de: memórias mais amplas sobre a agricultura portuguesa no século
XVIII, traduções que envolveram o conhecimento agrícola estrangeiro, uma seção que
problematiza a relação entre teoria e prática no movimento ilustrado luso-americano e,
22
Para a ideia das oportunidades abertas à rizicultura e à escrita sobre ela, ver KOSELLECK, Reinhart.
“‘Espaço de experiência’ e ‘horizonte de expectativa’: duas categorias históricas” in Futuro passado:
contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2006, pp.
305-327.
28
afinal, uma memória com considerações específicas sobre o arroz. A aparente falta de
atenção conferida ao grão pelos escritos voltados à prática agrícola é uma das questões a
merecer exame, haja vista o seu exitoso cultivo em terras americanas. Todos esses escritos
são entendidos como resultado das mudanças no mercado mundial do cereal e das
transformações no pensamento econômico português23.
Dessa forma, chegamos a um passo relevante: se a produção historiográfica
dedicou poucas páginas ao arroz quando o comparamos a outras commodities, a posição
desse cereal nas considerações dos ilustrados luso-americanos também causa certa
estranheza, haja vista os poucos textos agronômicos diretamente dedicados a ele e, de
modo complementar e contraditório, sua importância no mundo produtivo e no comércio
da América lusa. Tudo isso contribui para o questionamento do papel das ideias ilustradas,
quando considerado o desenvolvimento da cultura de arroz em solo luso. Tais escritos,
assim como os campos arrozeiros, foram resultado das mudanças no mercado mundial de
arroz, que abriram brechas para essa produção, e das transformações no pensamento
econômico, com a valorização da agricultura e do trabalho. Os textos não foram
instauradores de uma realidade material luso-americana, mas resultado intelectual de
preocupações anteriores e de realidades produtivas já em desenvolvimento.
Também como resultado dos dois fatores, no quarto capítulo, buscamos analisar
de modo breve a efetivação da cultura de arroz no terreno americano, ou seja, o
desenvolvimento da rizicultura no norte da América portuguesa, no Rio de Janeiro e na
capitania de São Paulo. Buscamos analisar o modo como os planos reformistas puderam
ou não ter afetado a agricultura luso-americana. Aqui, a disponibilização de textos sobre
agricultura e a realidade produtiva americana são vistas como resultado de um mesmo
processo, mas a força instituidora dos textos foi pouco expressiva. Os escritos, feitos em
contexto metropolitano e muitas vezes afastados da realidade produtiva, podem até ter
sido lidos por alguns senhores, mas não tiveram força para domar e transformar a
realidade dos campos produtivos. O arroz e seus métodos de cultivo já eram conhecidos
de longa data e, na verdade, o avanço rizicultor foi iniciado décadas antes da veiculação
desses escritos. Ainda assim, mesmo que não tenham influenciado tanto a realidade dos
campos, sua existência já denota a importância que a terra e suas produções ganharam
nesse período e reforçam o caráter transformativo do final do século XVIII. Por fim,
23
Entre 1796 e 1811, o arroz foi o quinto produto mais exportado a partir da América portuguesa – ver
ARRUDA, José Jobson de A. O Brasil no comércio colonial..., pp. 353 – 354.
29
dados sobre o tráfico de cativos disponibilizados na plataforma Slave Voyages e a
correspondência oficial de administradores luso-americanos foram essenciais para a
construção do argumento, embasando as conclusões sobre a organização produtiva
americana e o modo como a rizicultura pôde ser estabelecida nessa parte do Novo Mundo.
Assim, teremos visto de que maneira e com que intensidade as mudanças
ocorridas se originaram de e, mais tarde, impactaram o mercado mundial do cereal. A
produção foi capaz de saciar a demanda portuguesa pelo cereal, adequando-se muito bem
às propostas reformistas da época, mas não causou uma imensa e duradoura
transformação no mercado europeu do artigo. As antigas zonas produtoras britânicas
retomaram sua força e, já no século XIX, o Brasil independente viu a produção do cereal
decair consideravelmente. Ainda nesse capítulo, permeando a análise de cada uma das
regiões, recuperaremos e refletiremos criticamente sobre a “tese do arroz negro”, testando
as hipóteses no quadro formado pelas regiões estudadas. O desenvolvimento da cultura
do cereal, contrariando os proponentes daquela tese, pôde ocorrer mesmo sem o
conhecimento dos cativos vindos da região do arroz africano, graças a experiências aqui
existentes e a tentativas de cultivo postas em prática durante a colonização. Dessa forma,
se até essa parte do trabalho, buscamos demonstrar as condições mais amplas que
tornaram possível o cultivo comercial de arroz na América lusa e a produção de textos
agrônomos na metrópole, aqui demonstraremos também aquelas condicionantes locais
responsáveis pelo sucesso da cultura, relacionadas ao conhecimento rizicultor dos
colonos e escravos ou ao capital utilizado nesses empreendimentos 24.
Resumindo a argumentação que buscamos desenvolver nas próximas páginas,
acreditamos que a organização do mercado mundial de arroz durante o século XVIII e as
transformações no modo de pensar a economia calcadas no movimento ilustrado auxiliam
a entender dois processos atados ao desenvolvimento da cultura comercial de arroz em
terras luso-americanas. Por um lado, compreendemos as transformações ocorridas nos
campos produtivos americanos, envolvendo os ambientes escolhidos para cultivo, as
práticas de incentivo metropolitanas e o modo como o grão era cultivado e
comercializado. Por outro, fica evidente como a escrita de textos sobre agricultura e
rizicultura também foi resultado daquele contexto e, inclusive, não tendo sido responsável
por determinar totalmente a produção, também respondeu às mudanças produtivas e
24
Ver SANTOS, Corsino M. dos., op. cit., pp. 37-40. Para as informações sobre a produção norte-
americana, ver nosso gráfico na página 59.
30
intelectuais que vinham de antes. Numa lógica ilustrada, a escrita desses textos visou
determinar e transformar o que ocorria na realidade produtiva americana, mas sem muito
sucesso.
Com tal desenho interpretativo, buscamos dar conta da problemática envolta no
título de nosso trabalho: o arroz colonial no reformismo ilustrado português. Tratamos
aqui da cultura comercial efetivada em terreno colonial português, com suas
especificidades e materialidade particular, e da produção intelectual voltada a esse cereal.
O mercado mundial do cereal não pôde ser esquecido e o papel exercido pelas ideias da
ilustração e a atenção conferida à economia e à agricultura mereceram uma detida
consideração. Somente assim podemos compreender o que levou o visconde de Vila Nova
da Cerveira a escrever aquele informe em 1781, sobre um grão não muito considerado na
época e mesmo posteriormente.
31
1. PORTUGAL E O MERCADO MUNDIAL DE ARROZ NO
SÉCULO XVIII
1
HENRIQUES, Francisco da F. Âncora Medicinal para conservar a vida com saude, escrita pelo Doutor
Francisco da Fonseca Henriques, natural de Mirandella, medico do serenissimo Rey de Portugal D. João
V. Lisboa: Officina de Miguel Rodrigues, 1731, p. iij. Para mais informações sobre o autor e sua obra, ver
MACHADO, Diogo B. Bibliotheca Lusitana Historica, Critica, e Cronologica [...] Tomo II. Lisboa:
Officina de Ignacio Rodrigues, 1747, p. 148. Ver também REIS, José Pedro L. “Comer no século XVIII,
segundo Francisco da Fonseca Henriques”. Alimentação Humana, Porto, v. 15, n. 1, 2009, passim.
2
HENRIQUES, Francisco da F., op. cit., pp. 84 – 267.
3
Idem, Ibidem, pp. 264 – 265.
32
Tais considerações sobre o arroz fazem-nos pensar no papel desempenhado por
esse item nas mesas de Portugal durante os Setecentos e no modo como era obtido e
alimentava a população. É certo que a alimentação da Europa como um todo, entre os
séculos XV e XVIII, quando as possiblidades assim o permitiam, conjugou o consumo
da carne ao dos cereais (o trigo era preferido, mas nem sempre estava disponível, sendo
estão substituído pelos cereais secundários, como o centeio, a aveia e a cevada). No caso
luso, desde períodos medievais, o consumo dos mais pobres teve como base os cereais e
o vinho, e a carne apareceu especialmente entre os que possuíam melhores condições de
vida. Tais itens de consumo e mesmo a frequência com que apareciam à mesa atestavam
diferenças de classe entre os portugueses e, por consequência, as reforçavam4.
Discrepâncias na quantidade e qualidade da alimentação dos portugueses,
segundo classes e mesmo regiões, eram uma constante da época. Como exemplo, ao lado
de itens triviais, havia outros pouco acessíveis, como o chá, café e chocolate. Pensemos
no caso das receitas refinadas existentes no século XVIII, compiladas por Francisco
Borges Henriques ou Lucas Rigaud. Tratava-se de refeições, provavelmente, pouco
usuais nas mesas dos menos abastados5.
Se o trigo, usado principalmente na preparação de pão, imperava absoluto entre
os cereais, sendo seguido pelo milho, centeio, cevada e aveia, o arroz, atestado e aprovado
por Henriques em 1721, marcava sua presença em território luso ao menos desde o século
XIV. Como substituto barato e popular de outros cereais apreciados, evidenciando,
segundo Veloso, a luta entre preferências e possibilidades, o arroz encontrava espaço nas
mesas portuguesas. Fato esse que reforçava o argumento de Fonseca Henriques acerca da
ubiquidade do cereal em Portugal, algo peculiar frente às diferenças alimentares acima
referidas. Durante o século XVIII, encontrava-se arroz nos banquetes do Arcebispo Frei
4
Ver FERREIRA, Nuno P. S. “A alimentação portuguesa na Idade Medieval”. Alimentação Humana,
Porto, v. 14, n. 3, 2008, passim. Sobre, de modo amplo e bem articulado, a alimentação na Europa como
parte constituinte da vida material – a infraestrutura da economia – e algo longevo na história das
civilizações, ver BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII.
Volume 1. As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 11
– 14 e 89 – 236.
5
REIS, José Pedro L., op. cit., pp. 5 e 8; VELOSO, Carlos. A alimentação em Portugal no século XVIII
nos relatos dos viajantes estrangeiros. Coimbra: Minerva Histórica, 1992, passim; FERREIRA, Nuno P.
S., op. cit., pp. 105 – 107; BRAGA, Isabel Drumond. “O receituário de Francisco Borges Henriques:
culinária, cosmética e botica em Portugal no século XVIII”. Revista Diálogos Mediterrâneos, Curitiba, n.
12, 2017, pp. 73 – 74; BRAGA, Isabel Drumond. “Influências estrangeiras nos livros de cozinha
portugueses (séculos XVI – XIX): alguns problemas de análise”, in Estudos em homenagem ao professor
doutor José Marques. II volume. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006, pp. 237 –
247; BRAUDEL, Fernand. Civilização material... As estruturas do cotidiano..., pp. 112 – 115.
33
Inácio de São Caetano, ao mesmo tempo em que os dependentes consumiam esse cereal;
podia ser um ingrediente essencial ao preparo de doces ou comercializado nas cidades
por mulheres de diferentes condições sociais6.
De certo modo, em meados do século XVIII, o arroz tinha seu espaço e era um
apreciado item na alimentação dos portugueses. Não deixam de ser relevantes as opiniões
a seu respeito oferecidas por diversos atores da época. Médicos e mesmo livros de receitas
atestavam o lugar ocupado pelo grão. Por mais que não pudesse ser equiparado ao trigo,
angariou um relevante espaço nas mentes e hábitos alimentares portugueses, o que veio a
ser fortalecido conforme as décadas avançaram7.
Iluminando tal contexto, é preciso considerar o fato de que houve em Portugal, ao
menos na segunda metade do século XVIII, uma crise cerealífera, abrindo espaço ao
substituto arroz. Mesmo autores como José Vicente Serrão, para quem a crise foi relativa
e não gerou fomes generalizadas, admitem a existência de um déficit cerealífero, ainda
que menos impactante do que antes pensado. Segundo essa linha de argumentação, o
século XVIII trouxe bons rendimentos agrícolas à metrópole portuguesa. Cultivos
tradicionais, como o trigo, perderam espaço, e houve a expansão de outros, como a vinha,
os olivais, os frutos e o milho, por meio, por exemplo, de oportunidades criadas pelo
mercado mundial. O aumento do produto agrícola bruto, apontado pelo autor, ocorreu em
um contexto de substituição de cultivos, da utilização de novos terrenos e do
desenvolvimento de melhorias agrícolas. Todo o processo esteve atrelado à nova
configuração do mercado luso e seu congênere internacional. O mercado interno cresceu
e o externo trouxe oportunidades às exportações lusas8.
6
VELOSO, Carlos, op. cit., passim; FERREIRA, Nuno P. S., op. cit., p. 106 – 107; BRAGA, Isabel
Drumond. “Influências estrangeiras...”, pp. 245 – 246; para o caso do milho, ver SERRÃO, José Vicente.
“A agricultura portuguesa no século XVIII: progresso ou atraso?” in MOTTA, Márcia (org.). Terras lusas:
a questão agrária em Portugal. Rio de Janeiro: Editora da UFF, 2007, pp. 34 – 57. Para o arroz enquanto
item substitutivo, ver MORGAN, Kenneth. “The organization of the colonial rice trade”. The William and
Mary Quarterly, Williamsburg, v. 52, n. 3, 1995, p. 436. Substituto também nas viagens que varavam o
interior de certas regiões da colônia americana. Segundo Rosa Marin, quando havia falta de farinha,
presumivelmente de mandioca, o arroz era utilizado pelos viajantes. Ver MARIN, Rosa E. “Agricultura no
delta do rio Amazonas: colonos produtores de alimentos em Macapá no período colonial”. Novos Cadernos
NAEA, Belém, v. 8, n. 1, 2005, p. 78.
7
HAWTHORNE, Walter. From Africa to Brazil: culture, identity, and Atlantic slave trade, 1600 – 1830.
New York: Cambridge University Press, 2010, pp. 148 – 149. Consultar as notas 2 e 5 deste capítulo.
8
Para autores que enxergam crises cerealíferas em Portugal, ver MARIN, Rosa, op. cit., p. 80 (“Portugal
enfrentava, na segunda metade do século XVIII, um grande deficit cerealífero [...]”); também FERREIRA,
Nuno P. S., op. cit., p. 107; para autores que somente pontuam a necessidade de importar cereal estrangeiro,
ver VELOSO, Carlos, op. cit.¸ passim; RODRIGUES, José Damião. “‘Para o socego e tranquilidade publica
das Ilhas’: fundamentos, ambição e limites das reformas pombalinas nos Açores”. Tempo, Niterói, v. 11, n.
34
O autor, todavia, não deixou de apontar os entraves agrícolas do período. A falta
de cereais, por exemplo, não era novidade, existindo sinais da “falta de pão” desde a Idade
Média. Havia importações de cereais, vindas de diversos locais do globo, principalmente
para abastecer Lisboa, validando o argumento da oferta deficitária nacional, que teria
aumentado conforme o século XVIII avançou. Contudo, ao demonstrar o consumo per
capita dos cereais, Serrão concluiu que as importações, na segunda metade do século,
giraram ao redor de 6% do consumo nacional agregado. A dependência de cereal
estrangeiro existiu no século XVIII, principalmente para abastecer Lisboa e a porção sul
do país, mas não tinha grandes proporções e nem foi indício de uma crise na agricultura
ou ainda na cerealicultura do reino. O foco na produção para exportação foi acompanhado
pelo abandono parcial do cultivo de trigo, cujo consumo seria sustentando por
importações. Ainda assim, o autor defendeu a existência de uma crise na década de 1760,
em que a falta de capital, com o consequente embaraço à compra de cereal estrangeiro,
“[...] evidenciou as insuficiências da produção nacional e os problemas de funcionamento
do mercado interno, bem como a incapacidade dos sistemas de abastecimentos para
enfrentarem situações de crise”. Tal crise, todavia, não foi um movimento de longo prazo,
nem mesmo deu origem a uma depressão de longa duração. Considerando a pluralidade
agrícola do Portugal setecentista, houve, segundo Serrão, atraso e progresso, ao mesmo
tempo em que, de modo geral, existiu um caráter positivo da agricultura do Reino nesse
século9.
Portanto, algum déficit cerealífero foi reconhecido pelos autores e respostas
tiveram de ser procuradas. Com isso, o arroz pôde cumprir tal papel. Contudo, se seu
consumo era desejado e fomentado por nomes como Fonseca Henriques, a produção
portuguesa sabidamente não era capaz de responder a tais anseios. Havia um escasso
cultivo de arroz na metrópole no século XVIII, restrito, por exemplo, aos pântanos no
Alentejo, às margens do Mondego e Vouga (terrenos propícios ao cultivo do cereal), e a
Setúbal. Em certas regiões, segundo Rosa Marin, a escassez de trabalhadores, para a
21, 2006, pp. 156 – 157; enfim, com opinião diversa e sustentando os argumentos do parágrafo, ver
SERRÃO, José Vicente, “A agricultura portuguesa...”, passim.
9
SERRÃO, José Vicente, “A agricultura portuguesa...”, passim. Existiria, segundo o autor, “[...] um
sintoma evidente da existência de um défice cerealífero nacional, assim como, provavelmente, e não menos
relevante, um sintoma de problemas ao nível dos sistemas internos de comercialização e transportes, que
tornariam o mercado da capital menos acessível ou menos apetecível para a oferta interna [...]” – Idem,
Ibidem, p. 45. A solução para tais problemas foi buscada nas reformas de fins do século XVIII, como
veremos nos próximos capítulos.
35
extenuante colheita, foi um obstáculo à rizicultura reinol. Ademais, a produção na região
do Mondego, por exemplo, somente ganhou relativa força e importância no decorrer do
século seguinte. Portugal, durante os Setecentos, dependeu em última instância de arroz
de fora da metrópole10.
Para suprir a demanda pelo cereal durante boa parte do século XVIII, os
portugueses se valeram da importação de duas regiões distintas, estruturadas de modo
flagrantemente diverso. Por um lado, havia remessas de regiões da Península Itálica,
como aquelas que se encontravam às margens do Rio Pó, tradicionais produtoras do grão.
Por outro, as colônias britânicas do Lower South norte americano, particularmente a
Carolina do Sul e a Geórgia, encontraram na rizicultura o segredo de seu desenvolvimento
econômico e se tornaram responsáveis por expressiva parcela das importações
portuguesas. Articulando as duas regiões de oferta, os suprimentos italianos de arroz
somente foram deslocados pelos da Carolina do Sul por volta do ano de 1730, mas, de
acordo com a balança de comércio de 1777, durante a guerra de independência dos EUA,
o arroz da Península Itálica retomou a posição dianteira, superando o das colônias
britânicas11.
10
VELOSO, Carlos, op. cit., passim; MARIN, Rosa, op. cit., p. 80. Aliás, no caso do trigo – dominante
entre os cereais – Portugal também tinha de arcar com importações – ver MARQUES, António H. de
Oliveira. A sociedade medieval portuguesa. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1963, especialmente o
capítulo sobre a mesa portuguesa. Para informação citada no parágrafo e sobre as plantações de arroz no
Mondego, administradas, por exemplo, pelos frades do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, ver
VAQUINHAS, Irene. “Breve historial sobre a cultura do arroz nos campos do Mondego”, in
VAQUINHAS, Irene; SOUSA, Dina de. Saberes e sabores do arroz carolino do Baixo Mondego. Coimbra:
Associação dos Agricultores do Vale do Mondego, 2005, pp. 15 – 22; e VAQUINHAS, Irene. “Nem sempre
o arroz é doce...: a polêmica sobre os arrozais nos campos do Mondego na 2ª metade do século XIX”, in
VAQUINHAS, Irene; MENDES, José A. Canteiros de Arroz: a orizicultura entre o passado e o futuro.
Montemor-o-Velho: Câmara Municipal de Montemor-o-Velho, 2005, pp. 5 – 48. Como apontaram Ana
Isabel Silva e Carlos Manuel Faísca, “O cultivo de arroz em Portugal só começou a ganhar expressão
nacional a partir do século XIX quando, a reboque de um conjunto de medidas protecionistas, várias regiões
do país começaram a produzir este cereal. Porém, favorecida pela abundância de água, a orizicultura
desenvolveu-se de forma muito desigual no território nacional, atingindo sobretudo as planícies aluviais de
alguns dos maiores rios portugueses – Mondego, Sado, Vouga e Tejo – e seus afluentes” – ver SILVA, Ana
Isabel; FAÍSCA, Carlos Manuel. “A orizicultura em Ponte de Sor – economia e saúde pública (1850-
1950)”. Abelterium, Alter do Chão, v. II, n. 1, 2015, p. 107. Afinal, para mais locais em que o arroz foi
cultivado em Portugal, inclusive destacando a cultura influenciada por marés e a presença de africanos
escravizados nos campos, ver CARMO, Miguel et al. “African knowledge transfer in Early Modern
Portugal: enslaved people and rice cultivation in Tagus and Sado rivers”. Diacronie. Studi di Storia
Contemporanea, Bolonha, n. 44, 2020.
11
ALDEN, Dauril. “Manoel Luís Vieira: an entrepreneur in Rio de Janeiro during Brazil’s eighteenth
century agricultural renaissance”. The Hispanic American Historical Review, Durham, v. 39, n. 4, 1959,
passim, principalmente a p. 534; “Balança geral do commercio de Portugal com as naçoens estrangeiras no
anno de 1777”. BNRJ, I-6, 4, 6, passim apud ALDEN, Dauril, “Manoel Luís Vieira...”, p. 534;
HAWTHORNE, Walter. From Africa to Brazil…, p. 149; ver também ARRUDA, José Jobson de A.
“Correspondência epistolar e as possibilidades do comércio português na Itália em 1800”. Revista de
História, São Paulo, n. 118, 1985. Ver também ALDEN, Dauril. “Late colonial Brazil, 1750-1808” in
36
Em meados do século XVIII, o arroz havia se estabelecido nos hábitos alimentares
lusos. Portugal era um importador no interior da rede que integrava produção, comércio
e consumo de arroz. Dependia das remessas estrangeiras ao mesmo tempo em que
incentivava o cultivo cerealífero italiano e a produção rizicultora escravista na América
britânica. Como se constituiu esse mercado mundial do arroz e qual foi o modo pelo qual
Portugal nele se encaixou até meados do século XVIII? No contexto do desenvolvimento
da rizicultura americana, qual foi a natureza dos laços que a entrelaçaram à escravidão?
Para responder a tais questões e aprofundar a explicação sobre o caráter do cereal aqui
considerado, vale expor uma pequena descrição da longa história do arroz.
O cultivo de arroz, abarcando a espécie asiática (Oryza sativa L.), africana (Oryza
glaberrima Steud.) e americana (Oryza sp.) e suas diversas variedades, recua há milênios
antes de Cristo. Apesar da existência e consumo de espécies selvagens, apenas as três
anteriormente citadas foram domesticadas. Na Ásia, se o arroz foi originalmente
cultivado em terrenos secos, na forma hoje conhecida como agricultura de sequeiro, sua
produtividade aumentou quando a produção passou a ocorrer em superfícies inundadas.
Com a disponibilidade de água e sol, afinal, os arrozais podem surgir em distintas partes
do globo12.
No caso asiático, seu cultivo é atestado há ao menos 10.000 anos e assegurou – e
ainda garante – a base alimentar de diversas sociedades. Podemos mesmo dizer, segundo
Braudel, que ela foi a planta por excelência da “civilização asiática”, exemplo de estrutura
do cotidiano, definindo as condições materiais e simbólicas da existência. O cultivo em
BETHELL, Leslie (ed.). The Cambridge History of Latin America. Volume II. Colonial Latin America.
Cambridge: Cambridge University Press, 1984, pp. 639-641.
12
BRAUDEL, Fernand. Civilização material... As estruturas do cotidiano..., p. 127; COCLANIS, Peter.
“The road to commodity hell: the rise and fall of the first American rice industry” in FOLLET, Richard;
BECKERT, Sven; COCLANIS, Peter; HAHN, Barbara. Plantation Kingdom: the American South and its
global commodities. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2016, p. 15. Espécies selvagens de arroz
foram consumidas em diversas partes do globo e ainda o são. Exemplares são determinadas espécies do
gênero Zizania (Zizania palustris) e do gênero Oryza (Oryza glumaepatula e Oryza latifolia). Em relação
às domesticadas, há décadas são conhecidas e estudadas as espécies asiática e africana. Contudo, de acordo
com recentes estudos arqueológicos, na região amazônica, durante o Holoceno intermediário (cerca de
4.000 A.P.), houve a domesticação de uma nova espécie de arroz (Oryza sp.). Devido ao fato de a descoberta
ser relativamente recente, resumimos nossas considerações sobre essa espécie à nota presente. Consultar
para essa informação e para outras do parágrafo HILBERT, Lautaro et al. “Evidence for mid-Holocene rice
domestication in the Americas”. Nature Ecology & Evolution, London, v. 1, n. 11, 2017; também CHANG,
Te-Tzu. “Rice”, in KIPLE, Kenneth F.; ORNELAS, Kriemhild C. (eds.). The Cambridge World History of
Food. Volume 1. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, especialmente a p. 133.
37
zonas inundadas, mais produtivo, foi levado primeiramente à Índia e mais tarde à China
meridional aproximadamente em 2.100 a.C. Após a entrada nesses territórios, o cereal foi
levado ao Tibete, Indonésia e Japão13.
No que respeita à espécie asiática, especialistas definiram a existência de
variedades diversas, com morfologia, fisiologia e genética particular. Geneticamente, há,
ao menos, três subespécies identificadas: a japonica, encontrada em regiões mais
distantes da linha do Equador e locais mais frios; a indica, cujo crescimento ocorre em
regiões mais quentes do globo; e a bulu, ou javanica, uma variante tropical da japonica14.
Em relação à produção, o transplante de mudas, a utilização de instrumentos
agrícolas no preparo dos terrenos, a própria configuração da paisagem, tudo isso foi
notado em um escrito chinês do século XIII. Canais foram construídos, mantidos e
vigiados pelo Estado para controlar e facilitar o acesso à água, essencial ao cultivo
cerealífero (o canal imperial do rio Yangtzé em Pequim é exemplar a esse respeito). Tudo
isso envolvendo um imenso trabalho e enquadrando, segundo Braudel, um bom exemplo,
anterior ao século XVIII, de comércio de média distância baseado no arroz. O cereal era
enviado do sul ao norte da China ou da região do Sião à Índia15.
A partir da Índia, o arroz se espalhou para regiões do império aquemênida, em
alguma data entre os séculos VI e IV a.C. Nesse último período, seu cultivo estava
estabelecido no local e foi atestado por Diodoro Sículo. A história do grão na região foi
de sucesso, pois, no século X, o arroz somente era menos cultivado do que o trigo e a
cevada. A dispersão, no entanto, não foi interrompida16:
13
COCLANIS, Peter. “ReOrienting Atlantic history: the global dimensions of the ‘western’ rice trade”, in
CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge; SEEMAN, Erik R. The Atlantic in Global History (1500 - 2000). New
Jersey: Pearson, 2007, pp. 111 – 129; BRAUDEL, Fernand. Civilização material... As estruturas do
cotidiano..., pp. 92 e 127 – 128. Os efeitos do arroz sobre a cultura e mesmo a linguagem de diversos povos
podem ser vistos de modo inicial em SHARMA, Shatanjiw D. “Preface” in SHARMA, Shatanjiw (ed.).
Rice: origin, antiquity, and history. Enfield: Science/CRC Press, Taylor & Francis Group, 2010, pp. XI-
XVI; e SHARMA, Shatanjiw D. “Domestication and diaspora of rice” in SHARMA, Shatanjiw (ed.). Rice:
origin, antiquity, and history. Enfield: Science/CRC Press, Taylor & Francis Group, 2010, p. 6. Ainda sobre
o arroz asiático, e com outras considerações, ver CHAUNU, Pierre. A História como ciência social: a
duração, o espaço e o homem na época moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, pp. 186-193 e 214.
14
SHARMA, Shatanjiw D. “Domestication and diaspora…”, pp. 2 – 3. Ainda sobre o arroz, Sharma
apontou grandes variações no que respeita a locais de cultivo, produtividade e preparo como alimento –
SHARMA, Shatanjiw D. “Preface”…, p. XIII.
15
BRAUDEL, Fernand. Civilização material... As estruturas do cotidiano..., pp. 127 – 134. Na verdade,
segundo Te-Tzu Chang, o uso de recursos para o controle de inundações no Rio Amarelo é bem mais antigo,
datando, aproximadamente, de 2.000 a.C. – CHANG, Te-Tzu, op. cit., p. 140.
16
SHARMA, Shatanjiw D. “Domestication and diaspora…”, pp. 14 – 17. Os debates sobre a domesticação,
as respostas para o quando e onde desse evento ainda são motivo de grande discordância. Sobre isso, ver
Idem, Ibidem, pp. 1 – 14. Ver também CHRISTENSEN, Peter. The decline of Iranshahr: irrigation and
38
Quando Alexandre, o Grande, invadiu a Índia em 327 a.C., os gregos ficaram
mais conscientes do arroz enquanto uma cultura agrícola e tentaram introduzi-
la no Oriente Médio. No final do primeiro século depois de Cristo, os romanos
ocuparam o Egito e navegaram, a partir de portos no mar Vermelho, em direção
a locais no sul da Índia. Eles importaram especiarias, pérolas e marfim,
pagando com moedas de ouro. Os romanos introduziram o cultivo de arroz na
Síria, Palestina e na Ásia Menor, provavelmente também no Egito17.
Figura 1: territórios asiáticos com cultivo de arroz no século XX, retratando regiões tradicionalmente
rizicultoras (sudeste asiático, China, Índia etc.). Fonte: BRAY, Francesca; COCLANIS, Peter; FIELDS-
BLACK, Edda; SCHÄFER, Dagmar. Rice: global networks and new histories. New York: Cambridge
University Press, 2015, p. XXII.
Todavia, o arroz não foi domesticado e conformou a base alimentar apenas nas
regiões asiáticas acima mencionadas. Outra espécie do grão surgiu no oeste da África e
environments in the history of Middle East, 500 BC to AD 1500. Copenhagen: Museum Tusculanum Press,
University of Copenhagen, 1993, p. 117 apud SHARMA, Shatanjiw D. “Domestication and diaspora…”,
p. 14.
17
SHARMA, Shatanjiw D. “Domestication and diaspora…”, p. 15. Segundo Sharma, a rizicultura tomou
impulso no Egito e em Bagdá após as conquistas árabes, respectivamente em 642 d.C. e 750 d.C. Ademais,
tal grão era parte relevante da dieta dos cázaros nos séculos VII e X d. C. – Idem, Ibidem, p. 15. Nossa
tradução de: “When Alexander the Great invaded India in 327 BC, the Greeks became better aware of rice
as a crop and tried to introduce it in the Middle East. By the end of the 1st century AD, the Romans occupied
Egypt and they were sailing from Egyptian ports on the Red Sea to south Indian ports. They were importing
spices, pearls and ivory and paying with their gold coins. The Romans introduced rice cultivation in Syria,
Palestine and Asia Minor and most probably in Egypt as well”.
39
lá se estabeleceu como alimento da população local. Dentro de uma região da África com
variações ambientais significativas, que se estende do Atlântico ao lago Chade e do Saara
à floresta tropical africana, o arroz foi domesticado e vem sendo cultivado com o auxílio
de diversas técnicas há pelo menos 3.000 anos. Nessa região, o cereal era cultivado ao
redor do lago Chade, nos vales de determinados rios, bem como em regiões com bom
índice pluviométrico. O desenvolvimento e cultivo de uma espécie local tiveram êxito,
excluindo a possibilidade de transferência, por mãos e mentes não-africanas, de sementes
e conhecimentos asiáticos18.
Frente ao arroz asiático, o africano possuiu variação menor na cor da casca, do
grão e no tipo de grão. Além disso, se adaptou a diferentes ambientes, como as regiões
úmidas interiores, as planícies de inundação de marés de rios, os manguezais e as terras
altas da Guiné, Libéria, entre outros locais19.
Europeus e árabes, entre os séculos VIII e XVIII, observaram e descreveram a
rizicultura na região e, discorrendo sobre a venda do cereal aos portugueses,
demonstraram a existência de um comércio localizado de arroz. Homens como o
comerciante Álvares d’Almada notaram com grande perspicácia as tecnologias então
utilizadas pelos povos nativos no cultivo do cereal. Na região, o português pôde observar
a infraestrutura do cultivo, bem como o processo de transplante das mudas de arroz. Por
sua vez, em 1685, Sieur de la Courbe descreveu os arrozais e os montes de terra que
detinham a água, ao passo que o capitão Samuel Gamble, envolvido no tráfico de
escravos, testemunhou a utilização de ferramentas específicas no trato do arroz por volta
de 1793. A transformação de mangues em terrenos aptos ao cultivo cerealífero, por meio
18
VAN ANDEL, Tinde. “African Rice (Oryza glaberrima Steud.): lost crop of the enslaved Africans
discovered in Suriname”. Economic Botany, New York, v. 64, n. 1, 2010, p. 1; LINARES, Olga F. “African
rice (Oryza glaberrima): history and future potential”. Proceedings of the National Academy of Sciences of
the United States of America, Washington – DC, v. 99, n. 25, 2002, passim; CARNEY, Judith. Arroz Negro:
as origens africanas do cultivo do arroz nas Américas. Bissau: Instituto da Biodiversidade e das Áreas
Protegidas, 2018, especialmente as pp. 35-103; CARNEY, Judith. “African origins of rice cultivation in the
black Atlantic”. África: revista do centro de estudos africanos, USP, São Paulo, v. 27/28, n. 1, 2006/2007,
pp. 91 – 114; CARNEY, Judith. “O arroz africano na história do Novo Mundo”. Fronteiras: journal of
social, technological and environmental science, Anápolis, v. 6, n. 2, 2017, pp. 183 – 185; SHARMA,
Shatanjiw D. “Domestication and diaspora...”, pp. 17 – 18; por fim, CARNEY, Judith; MARIN, Rosa A.
“Aportes dos escravos na história do cultivo do arroz africano nas Américas”. Estudos Sociedade e
Agricultura, Seropédica & Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, 1999, p. 115. Pierre Chaunu também cita o arroz
africano em seu livro publicado em 1974 – CHAUNU, Pierre, op. cit., p. 215.
19
SHARMA, Shatanjiw D. “Domestication and diaspora...”, p. 18.
40
da construção de diques e da readequação química do solo, envolveu uma gama de
conhecimentos amplos e uma imensurável quantia de trabalho20.
Figura 2: região de domesticação e cultivo de arroz no oeste da África. Fonte: CARNEY, Judith. Black
Rice: the African origins of rice cultivation in the Americas. Cambridge & Londres: Harvard University
Press, 2001, p. 39.
O arroz oeste-africano, além de ser parte da dieta local, segundo Judith Carney,
ainda se tornou um artigo de subsistência para os cativos que cruzavam o Atlântico em
navios negreiros. Mesmo se avaliarmos o papel do arroz frente ao de outros alimentos
(como milho e mandioca) e levarmos em consideração as críticas feitas às hipóteses de
Carney, é certo que ele constituiu uma relevante fonte de calorias para os escravizados
em sua árdua travessia oceânica – ainda mais se considerarmos que a conservação do
arroz em casca é melhor do que a do trigo, acomodando-se de modo mais seguro a viagens
insalubres e prolongadas21.
20
LINARES, Olga F., op. cit., passim; CARNEY, Judith. Arroz Negro..., passim, especialmente as pp. 35-
103 e as pp. 98-103; CARNEY, Judith; MARIN, Rosa A. “Aportes dos escravos...”, pp. 115 e 120 – 121.
21
BRAUDEL, Fernand, Civilização material... As estruturas do cotidiano..., p. 127; LINARES, Olga F.,
op. cit., p. 16360; CARNEY, Judith. Arroz Negro…, pp. 105-150; CARNEY, Judith. “O arroz africano na
história...”, pp. 185 e 191. Para as críticas a Carney e para as informações do parágrafo, ver ELTIS, David;
MORGAN, Philip; RICHARDSON, David. “Agency and diaspora in Atlantic History: reassessing the
African contribution to rice cultivation in the Americas”. The American Historical Review, Bloomington,
v. 112, n. 5, 2007, especialmente as pp. 1346 – 1347; também ELTIS, David; MORGAN, Philip;
RICHARDSON, David. “Black, brown, or white? Color-coding American commercial rice cultivation
with slave labor”. The American Historical Review, Bloomington, v. 115, n. 1, 2010, pp. 166 – 167. Sobre
o abastecimento dos navios do tráfico negreiro, ver o caso da mandioca em RODRIGUES, Jaime. “‘De
farinha, bendito seja Deus, estamos por agora muito bem’: uma história da mandioca em perspectiva
atlântica.” Revista Brasileira de História [online], São Paulo, v. 37, n. 75, 2017.
41
Figura 3: regiões rizicultoras, com atenção conferida à África e à dispersão da espécie O. glaberrima.
Fonte: CARNEY, Judith. Black Rice: the African origins of rice cultivation in the Americas. Cambridge &
Londres: Harvard University Press, 2001, p. 155.
Com essa explanação rápida acerca do cultivo original do cereal e seu papel no
tráfico atlântico de escravos, podemos agora compreender de melhor forma como,
durante o século XVIII, se constituiu um amplo mercado de arroz, cuja produção
abastecia o mercado europeu e, especialmente para nossos propósitos, saciava os anseios
dos consumidores lusitanos.
42
Península Ibérica durante o século VII d.C. e dos turcos ao sudeste europeu, de modo que,
na Idade Média, a rizicultura estava estabelecida na região de Valência 22.
Na Península Itálica, o grão teve funções médicas reconhecidas no período
romano, e, durante a Idade Média, remessas chegaram do Egito, Sicília e Espanha.
Contudo, somente com a introdução do cultivo de arroz na Península Itálica no século
XV, com o auxílio financeiro de mercadores da Lombardia, a rizicultura ganhou
efetividade e sua produção pôde ser comercializada junto a outras regiões europeias,
deixando de ter apenas um alcance local. Tal espaço, também supridor das demandas
portuguesas setecentistas, viu o arroz se espalhar pela Lombardia, Piemonte, Venécia e
Toscana, e transformar a realidade dos camponeses. Segundo Coclanis, junto de remessas
vindas do Levante, a produção da região atendeu à demanda europeia, que aumentou nos
séculos XVI e XVII23.
No Vêneto do século XVIII, diversos observadores atestaram a existência de
canais de água, construídos também para dinamizar a economia local. Juntos aos rios
Adige e Brenta, auxiliavam na circulação de mercadorias, mas também ofertavam a tão
necessária água aos campos de arroz. Para Salvatore Ciriacono, ademais, a decisão do
poder estatal e das elites em investir nos campos do interior veneziano, na agricultura
22
COCLANIS, Peter. “Distant Thunder: the creation of a world market in rice and the transformation it
wrought”. The American Historical Review, Bloomington, v. 98, n. 4, 1993, passim; COCLANIS, Peter.
“The road to commodity hell…”, p. 24; MARÍ, Rubén B.; PEYDRÓ, Ricardo J. “Crónicas de arroz,
mosquitos y paludismo en España: el caso de la provincia de Valencia (s. XVIII – XX)”. Hispania – Revista
Española de Historia, Madrid, v. LXX, n. 236, 2010, pp. 687 – 698; segundo Sureshkumar Muthukumaran,
a mais antiga evidência de arroz no Mediterrâneo data do século XII a.C. No Egito, a produção e até mesmo
o consumo do cereal não foram comprovados antes do período greco-romano. No século I d.C., supõe-se o
consumo e uso ritual do cereal em regiões ao norte dos Alpes, remetido de locais mais ao sul: “[...] The
Roman military encampment at Novaesium (Neuss) produced 196 charred grains of rice dating to the first
quarter of the 1st century AD. These were recovered from a building identified as a military hospital
(valetudinarium) suggesting that rice was valued for its medicinal properties, which are amply remarked
upon in various Roman pharmaceutical and medical treatises […]”. Para o autor, os gregos, no século V
a.C., teriam conhecido bem o arroz, devido ao fato de Sófocles ter citado um pão feito a partir do grão. De
qualquer forma, “[a]lthough rice was already a cultivar in Mesopotamia from at least the 12 th century BC,
it remained a marginal subsistence crop for most of antiquity. Beyond any cultural preferences which must
have exercised a substantial influence on crop choices, the intensive labour and water requirements of rice
cultivation dissuaded large-scale cultivation of rice across the Middle East and the Mediterranean until at
least Late Antiquity and the early Islamic period when more efficient use of water yielding technologies in
the form of the water wheel and extensive irrigations works emerged […]” – ver MUTHUKUMARAN,
Sureshkumar. “Between archaeology and text: the origins of rice consumption and cultivation in the Middle
East and the Mediterranean”. Papers from the Institute of Archaeology, London, v. 24, n. 1, 2014, passim.
23
COCLANIS, Peter. “Distant Thunder...”, passim; BRAUDEL, Fernand. Civilização material... As
estruturas do cotidiano..., pp. 95 e 111; COCLANIS, Peter. “The road do commodity hell...”, pp. 24 – 25;
SHARMA, Shatanjiw D. “Domestication and diaspora…”, p. 15; ver também, de modo mais completo,
FERRERO, Aldo; VIDOTTO, Francesco. “History of rice in Europe”, in SHARMA, Shatanjiw (ed.). Rice:
origin, antiquity, and history. Enfield: Science/CRC Press, Taylor & Francis Group, 2010, passim.
43
propriamente dita, foi a resposta para o minguante papel de Veneza na economia
internacional e regional no século XVII. Campos de arroz, que podiam garantir retornos
até quatro vezes maiores do que os de milho, já eram cultivados na região de Verona na
segunda metade do século XVI. No século XVIII, as regiões de Verona e Vicenza
lideravam a produção do cereal nessa porção da Península24.
No caso da Lombardia, a partir do século XII, houve o desenvolvimento e
integração de uma rede de canais, fazendo com que Milão recebesse diversos produtos
com um preço menor. Mudanças e investimentos atingiram o campo, como a “[…]
introdução de plantas forrageiras na rotação de culturas, a propagação de pastagens
irrigadas e um consequente aumento na quantidade de gado […]”. Alterações ocorreram
na agricultura, com consequências sobre a paisagem e, entre elas, estava o cultivo dos
campos de arroz. Mesmo em períodos em que a economia não ia bem, havia
investimentos na agricultura na Lombardia e no Piemonte, constituindo a base de uma
agricultura capitalista. A partir do final do século XV, o cultivo rizicultor se estendeu ao
redor de Milão, alcançando Pavia e ultrapassando os rios Ticino e Adda25.
O cultivo de arroz na Península, nos locais próximos ao rio Pó, necessitava de
“[...] uma grande quantidade de trabalho sazonal com baixíssima especialização [...]” e
em tal caso o trabalho de mulheres e crianças era almejado e utilizado 26. Logo, a
constituição da rizicultura foi acompanhada pela disponibilização de uma força de
trabalho apta às tarefas agrícolas, que vivia em condições ultrajantes. Ademais, sem as
24
CIRIACONO, Salvatore. Building on Water: Venice, Holland and the Construction of the European
Landscape in Early Modern Times. New York/Oxford: Berghahn Books, 2006, pp. 6, 11, 24 – 25, 62 – 69,
72 e 82. Segundo o autor, no século XVII, quando “[…] Venice was playing a more and more marginal
role in the international economy, it was perhaps inevitable – or at least understandable, from a strategic
point of view – that the State and its ruling class should fall back upon social and economic conservatism.
Here, the existence of an extensive but weakly-organised workforce within the countryside also worked to
the advantage of the Venetian patricians, who within the expanding agricultural concerns of their country
estates could impose the pay and conditions that suited them”. Ao mesmo tempo, o autor vê essa mudança
nos rumos do capital como uma tática de investimento: o alto preço de produtos agrícolas, atrelado ao
crescimento populacional, compensava a mudança nos rumos do capital – Idem, Ibidem, pp. 11 e 62 – 63.
Ver também BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV – XVIII.
Volume 2. Os jogos das trocas. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009, pp. 216, 246 – 249, 270.
25
DOWD, Douglas F. “The economic expansion of Lombardy, 1300 – 1500: A study in political stimuli
to economic change”. The Journal of Economic History, Cambridge, v. 21, n. 2, 1961, passim;
CIRIACONO, Salvatore, op. cit., pp. 23 – 25 e 66 (nossa tradução de: “[…] early introduction of fodder
plants in the crop rotation cycles, the spread of irrigated pasture-land and a resultant increase in livestock
herds […]”).
26
Em 1590, o trabalho de crianças e mulheres foi proibido na Lombardia – ver SHARMA, Shatanjiw D.
“Domestication and diaspora...”, p. 15. Como atestou Chaunu, “[...] Na Europa, o arroz moderno que
permite rentabilidades recordes é sempre um fruto da miséria. Na Itália, no século XVI; na Espanha, no
século XVIII... com a ameaça da malária, que é mal controlado [...]” – CHAUNU, Pierre, op. cit., p. 217.
44
mudanças na paisagem empreendidas desde o início da Idade Moderna, todo o capital
envolvido nessa atividade não teria sido incorporado à terra, e, consequentemente, a
agricultura da região teria tido outro futuro27.
O crescimento do mercado mundial de arroz, inclusive de suas exigências,
ocorrido entre o final do século XVIII e início do XIX, afetou diretamente a região,
modificando o modo em que o cereal era cultivado: de um cultivo contínuo de arroz, “la
risaia stabile”, passou-se a um cultivo inserido na rotação de culturas, “risaia a vicenda”.
Mas as transformações não se encerraram aí, pois a rizicultura na Lombardia, por
exemplo, teve força no século seguinte, atada às demandas europeias. Segundo Tom
Barbiero, entre 1861 e 1879-83, a produção do cereal na região quadruplicou-se28.
27
DE BERNARDI, Alberto. “Risicoltura e capitalismo”. Studi Storici, Roma, a. 17, n. 3, 1976, passim.
Nossa tradução de: “[...] una grande quantità di lavoro stagionale a bassissima specializzazione [...]” – Idem,
Ibidem, p. 187.
28
Idem, Ibidem, passim; BARBIERO, Tom. “A reassessment of agricultural production in Italy, 1861 –
1914: the case of Lombardy”. Journal of European Economic History, Roma, v. 17, 1988, pp. 103 – 116.
29
BRAUDEL, Fernand. Civilização material... As estruturas do cotidiano..., pp. 11 – 14.
45
se encaixam bem no que Braudel denominou como “o capitalismo em casa alheia”,
quando ele foi levado a deixar sua predileção pela circulação, em períodos em que a taxa
de lucros em outras atividades compensava a mudança nos rumos do capital. Ainda assim,
até o século XVIII, é preciso ter em mente dois fatores essenciais. Apesar daquelas
“insinuações”, o verdadeiro setor capitalista, em que os maiores lucros eram encontrados,
continuou a ser o da circulação. Em outras palavras, os capitalistas agiram “[...] [e]m
função da distribuição, que [era] então o verdadeiro setor lucrativo”. A vida material, o
rés do chão, ainda predominava, restringindo e possibilitando a vida de homens e
mulheres. A economia de mercado e o capitalismo se desenvolviam, com o último se
enraizando em determinados pontos da economia-mundo europeia e já possuindo um
papel mundial30.
Levando isso em conta, o arroz ainda era pouco relevante no início da era
moderna, quando confrontado a outros grãos consumidos. Somente após as viagens
marítimas e os contatos com o mundo extra-europeu, especialmente a América, a
economia do arroz sofreu uma expressiva transformação. Logo, podemos nos questionar
o que ocorreu quando o arroz chegou à América, cuja base produtiva dependia em enorme
medida da escravidão. É preciso considerar na discussão o fato de que somente a partir
do século XVIII estabeleceram-se consideráveis sistemas de comercialização, “[...] sem
os quais mercadorias pesadas e perecíveis [como o arroz] não pod[eriam] circular com
regularidade em grandes distâncias [...]”. Certamente, as comunicações melhoraram e o
comércio passou por desenvolvimentos consideráveis. O crescimento demográfico na
Europa do século XVIII, aliado a colheitas ruins, fizeram a população depender em última
instância de importações oriundas do além-mar31.
Os contatos com partes desconhecidas ou pouco exploradas do globo pelos
europeus, a construção de feitorias, o início da produção nos territórios americanos, todos
esses fatores estimularam o comércio mundial. O capital europeu, com o auxílio estatal,
30
BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987, p. 28;
BRAUDEL, Fernand. Civilização material... Os jogos das trocas..., pp. 199 – 327. Também CHAUNU,
Pierre, op. cit., p. 201.
31
BRAUDEL, Fernand. Civilização material... As estruturas do cotidiano...., pp. 95 e 111; BRAUDEL,
Fernand. A dinâmica do capitalismo..., p. 28; COCLANIS, Peter. “Distant Thunder…”, passim,
especialmente as pp. 1051-1059; MORGAN, Kenneth, op. cit., p. 436; COCLANIS, Peter. “The road to
commodity hell...”, p. 29; sobre os usos do arroz (ele foi alimento, mas, junto a seus subprodutos, foi
utilizado na indústria de amido e papel, na alimentação de animais e na fabricação de bebidas alcoólicas) e
sobre o modo como uma certa “filantropia” de classes mais abastadas e do Estado influenciou a demanda
pelo grão, alimentador dos pobres, ver Idem, Ibidem, pp. 25 – 26.
46
não apenas exerceu seu papel no desenvolvimento do comércio, mas coordenou
diretamente a produção, inclusive de arroz americano. Dito de outra forma, se o arroz, na
América, geralmente fazia parte da vida material das populações locais, agindo como
componente de uma infra-economia autossuficiente que englobava negócios circunscritos
a um breve raio, ele passou a atrair a atenção e foi integrado ao capitalismo. A rizicultura
americana, comercial, foi desenvolvida em linhas capitalistas e em seu horizonte eram
antevistos vultosos lucros. Os capitalistas europeus constituíram, portanto, novas zonas
de comércio rizicultor, fora do restrito espaço europeu e mediterrânico32.
Complementando tais considerações sobre a oferta e demanda do grão, se entre o
século XVI e meados do XVII, “[...] uma pequena quantidade de arroz era comercializada
para o consumo humano como um suplemento para pequenos grãos mais familiares ou
como um substituto durante tempos de escassez [...]”, ele não deixava de ser valorizado
por suas qualidades medicinais, cerimoniais e inclusive como item de luxo. Contudo, no
século XVIII, ganhou espaço enquanto alimento barato e versátil, e também com suas
funções industriais modestas. Nesse século, ele se tornou “[...] um alimento básico
alternativo (uma fonte barata de carboidratos complexos) especialmente importante para
alimentar populações de baixa renda [...]”33.
32
BRAUDEL, Fernand. Civilização material... As estruturas do cotidiano..., pp. 11 – 14, 160 e 199 – 231;
BRAUDEL, Fernand. Civilização material... Os jogos das trocas..., pp. 231, 236 – 243, 329 e 493 – 494;
BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo…, passim; ARRIGHI, Giovanni. O Longo Século XX:
dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora Unesp, 1996,
pp. 1 – 26; COCLANIS, Peter. “Distant Thunder…”, pp. 1054 – 1055; CARNEY, Judith. “O arroz africano
na história...”, pp. 185 – 187; ver também COCLANIS, Peter. “The road to commodity hell...”, p. 25.
33
COCLANIS, Peter. “The road to commodity hell…”, pp. 25 – 26 (nossa tradução de: “[…] small
quantities of rice were marketed for human food as a supplement to more familiar small grains or as a
substitute during shortages […]”; “[...] an alternative dietary staple (a cheap source of complex
carbohydrates) especially important for feeding low-income populations […]”); COCLANIS, Peter. The
shadow of a dream: economic life and death in the South Carolina Low Country, 1670 – 1920. New
York/Oxford: Oxford University Press, 1989, p. 133. O papel do arroz na alimentação de presos, na
América do Norte do século XVIII, pode ser contemplado no diário da viagem pelos Estados Unidos escrito
por Hipólito José da Costa, analisado em nosso terceiro capítulo – ver PEREIRA, Hipólito José da C. Diário
da minha viagem para Filadélfia (1798-1799). Brasília: Edições Senado Federal, 2004, pp. 75-82.
47
lado do Atlântico, o arroz, em suas variedades asiática e africana, teve destaque para
nossos propósitos. Seu valor comercial e os hábitos alimentares a ele relacionados
também atravessaram o oceano34.
34
Sobre a troca ambiental entre Velho e Novo Mundo, ideia que ganhou fortuna historiográfica nas obras
de Crosby, ver, entre outras obras, CROSBY, Alfred. Imperialismo ecológico: a expansão biológica da
Europa: 900 – 1900. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, especialmente pp. 71 – 192; também
CARNEY, Judith. “O arroz africano na história”..., p. 183.
35
BERBEL, Marcia; MARQUESE, Rafael de B.; PARRON, Tâmis. Escravidão e política: Brasil e Cuba,
c. 1790 – 1850. São Paulo: Hucitec & Fapesp, 2010, pp. 5 – 93, especialmente as pp. 27 – 33, 41 – 42;
ARRIGHI, Giovanni, op. cit., pp. 33 e 110 – 130, especialmente a p. 124. Com base no último texto citado,
a lógica capitalista de expansão percebe e busca o poder na aquisição de “[...] recursos escassos [...]”, ao
passo que a territorialista pretende angariar poder por meio da extensão dos territórios – Idem, Ibidem, p.
33.
36
Para Braudel, a economia-mundo não é necessariamente equivalente à economia de todo o globo. Ela
“[...] envolve apenas um fragmento do universo, um pedaço do planeta economicamente autônomo, capaz,
no essencial, de bastar a si próprio e ao qual suas ligações e trocas internas conferem certa unidade orgânica”
e uma de suas características é “[...] transpor as fronteiras políticas e culturais [...]”. “[...] [É] uma soma de
espaços individualizados, econômicos e não econômicos [...]”. Nossa ideia do mercado mundial de arroz
deve ser compreendida com base nessa definição – ver BRAUDEL, Fernand. Civilização material,
economia e capitalismo: séculos XV – XVIII. Volume 3. O tempo do mundo. São Paulo: Martins Fontes,
2009, pp. 12 – 14.
48
Antuérpia para Amsterdam. A guerra contra os espanhóis, e também frente aos
portugueses, foi levada pelos holandeses a todo o mundo, fato esse que abriu uma janela
de oportunidades para os empreendimentos coloniais ingleses e franceses. No Caribe,
tendo contato com técnicas do fabrico do açúcar transmitidas por holandeses e sendo
inseridos no valorizado tráfico negreiro, ingleses e franceses puderam solidificar suas
posições. Na América do Norte, por seu turno, as colônias continentais inglesas
cristalizaram suas posições como produtoras de insumos às Antilhas, inclusive de arroz,
configurando-se, inicialmente, enquanto “[...] retaguarda[s] agrícola[s] [...]” das
plantations caribenhas. Os poderes políticos do noroeste europeu haviam consolidado
suas posições coloniais37.
Mas o sucesso holandês durante o período, como potência daquela região
europeia, enfrentou oposições. Após 1650, veio à tona uma resposta por parte de França
e Grã-Bretanha, com base em suas economias nacionais robustas. As particularidades
desses últimos atores se destacaram, pois surgiu uma economia açucareira muito
capitalizada e integrada verticalmente38, a concentração produtiva em somente um
produto e ainda o desequilíbrio demográfico em favor dos escravos. Se, por um lado, os
holandeses foram deslocados do comércio caribenho pelos novos atores, por outro, as
metrópoles ibéricas foram semi-periferizadas: os frutos da exploração colonial passaram
a ser direcionados ao noroeste europeu. Houve a “[...] subordinação das redes comerciais
mais amplas do sistema atlântico ibérico às redes do sistema atlântico do noroeste
europeu”39.
Tal subordinação ficou bem patente na relação existente, no século XVIII, entre
Grã-Bretanha e Portugal. O ouro garimpado na América portuguesa saudava os
inevitáveis déficits gerados nas trocas desequilibradas. Portugal enviava uma quantidade
expressiva de seus vinhos ao parceiro comercial do norte, além de produtos como azeite
e madeiras das colônias. Por seu lado, a Inglaterra enviava manufaturas e alimentos como
o arroz40.
37
BERBEL, Marcia; MARQUESE, Rafael de B.; PARRON, Tâmis, op. cit., pp. 41 – 54; ARRIGHI,
Giovanni, op. cit., pp. 130 – 148.
38
Por integração vertical entende-se que, no contexto dessa agricultura muito capitalizada, as “[...] partes
agrícola e manufatureira [são] pertencentes a um único empresário [...]” – BERBEL, Marcia; MARQUESE,
Rafael de B.; PARRON, Tâmis, op. cit., p. 46.
39
Idem, Ibidem, pp. 41 – 93, especialmente as pp. 44 – 46 e 57; BRAUDEL, Fernand. Civilização
material... O tempo do mundo..., pp. 42 – 43; ARRIGHI, Giovanni, op. cit., pp. 144 – 148, 161 – 162 e 212
– 214.
40
BERBEL, Marcia; MARQUESE, Rafael de B.; PARRON, Tâmis, op. cit., pp. 57 – 59.
49
Tais considerações fornecem um necessário enquadramento para compreender a
origem e ulterior solidificação da rizicultura britânica no Lower South. A produção de
arroz nessa região nasceu atada aos empreendimentos coloniais do noroeste europeu, ao
mesmo tempo em que o comércio a conectou aos mercados ibéricos. Desenvolvendo tal
problemática, devemos destrinchar brevemente o modo como essa região, abastecedora
do mercado português, desenvolveu-se e solidificou sua posição dentro do mercado
mundial de arroz no decorrer do século XVIII. Ignoraremos, por um momento, alguns
específicos debates concernentes à rizicultura nessa região: discute-se se o cultivo
envolveu somente a espécie asiática ou também a africana ou, ainda, se e em que medida
o conjunto de conhecimentos relacionado ao arroz derivou do oeste da África ou da
Europa41.
41
Para um panorama da rizicultura na América britânica colonial, ver CLIFTON, James. “The rice industry
in colonial America”. Agricultural History, Mississippi State, v. 53, n. 3, 1981, passim; sobre as remessas
enviadas a Portugal, ver MORGAN, Kenneth, op. cit., p. 435. Sobre os debates, ver, por exemplo,
CARNEY, Judith. Arroz negro..., pp. 193-214; ELTIS, David; MORGAN, Philip; RICHARDSON, David.
“Black, brown, or white?...”, pp. 169 – 170.
50
os dois últimos espaços apresentaram certas aproximações mercantis e, segundo alguns
autores, tecnológicas e culturais, ao passo que o primeiro, o asiático, somente ganhou
maior espaço nos mercados “ocidentais” no final do século XVIII e durante o XIX 42.
42
BRAUDEL, Fernand. Civilização material... As estruturas do cotidiano..., p. 127; também NIEBUHR,
Carsten. Travels through Arabia, and other countries in the East, performed by M. Niebuhr… V. I.
Edimburgo, 1792, p. 97; COCLANIS, Peter. “Distant thunder...”, passim, principalmente as pp. 1057-1059.
43
Para uma defesa da ideia de integração entre as várias regiões produtoras de arroz, ver CARMO, Miguel
et al., op. cit., p. 49.
51
para o arroz britânico que nos voltamos neste momento, conferindo atenção à organização
produtiva e comercial das colônias da Carolina do Sul e Geórgia.
Relevante colônia inserida no Lower South britânico, a Carolina do Sul44 não teve
no arroz seu único e primeiro produto de exportação. Seus colonos iniciais vieram da
Inglaterra, bem como de Barbados nas décadas finais do século XVII. Os do último local
trouxeram as bases do sistema de plantation, fundamentado no trabalho escravo, e a
colônia, inicialmente, se voltou ao comércio de provisões junto às ilhas caribenhas, ao
tráfico de peles com os indígenas e, enfim, à exploração de madeiras e seus derivados.
Tais decisões, todavia, não abrem espaço à conclusão de que esses mesmos colonos
desconheciam as possibilidades abertas ao cultivo de arroz: em 1666, em Londres, um
panfleto sobre a Carolina já asseverava que a região era adequada ao cultivo do cereal.
Os colonos devem ter conhecido as potencialidades do cereal e houve iniciativas dos
Lordes Proprietários para o incentivo da cultura. Decisões mais relevantes e sistemáticas,
contudo, levaram alguns anos para tomar forma45.
De acordo com uma carta de um habitante da colônia, Edward Randolph, dirigida
ao Board of Trade em 27 de maio de 1700, cerca de 330 toneladas de arroz do ano anterior
44
É preciso considerar nos dados que, durante a maior parte do período colonial, as duas Carolinas, nas
estatísticas, eram designadas pela forma única e singular “Carolina”. Sabemos, todavia, que o comércio
exterior e com a metrópole inglesa eram dominados pela homônima do sul – ver COCLANIS, Peter. The
shadow of a dream..., pp. 248 – 249.
45
CLIFTON, James. “The rice industry in colonial America”. Agricultural History, Mississippi State, v.
53, n. 3, 1981, passim; DETHLOFF, Henry C. “The colonial rice trade”. Agricultural History, Mississippi
State, v. 56, n. 1, 1982, pp. 231 – 232; SALLEY JR., Alexander S. The Introduction of rice culture into
South Carolina. Bulletins of the Historical Commission of South Carolina – 6. Columbia: The State
Company, 1919, p. 2 apud DETHLOOF, Henry C., op. cit., p. 231. Ver também COCLANIS, Peter. The
shadow of a dream..., pp. 13 – 26. O conceito de plantation aqui utilizado se refere a uma organização semi-
industrial, criada, na sua essência, em Barbados na década de 1640, cujo aspecto central era a reunião, em
um mesmo local, do cultivo e processamento de uma commodity. Ademais, “[...] [t]he principal features of
the plantation complex were large-scale landholdings and slave-based labor forces; hierarchical and race-
based management systems; export orientation; high-value per capita output; and the application of
scientific techniques of management to improve productivity”. Para essa definição, ver BURNARD,
Trevor. Planters, merchants, and slaves: plantation societies in British America, 1650 – 1820. Chicago &
London: The University of Chicago Press, 2015, pp. 3 – 5. Contudo, é preciso considerar a historicidade
da própria plantation, ver seu desenvolvimento com o passar dos séculos, não estando ela definida e
imutável já no século XV. Para isso, ver o artigo em que Miller problematiza a “busca das origens” dos
engenhos de açúcar, evitando, segundo ele, uma simplificação progressista e teleológica da história –
MILLER, Joseph C. “O Atlântico escravista: açúcar, escravos e engenhos”. Afro-Ásia, Salvador, n. 19/20,
1997. Para mais informações sobre a fundação da colônia, ver COCLANIS, Peter. “Global perspectives on
the early economic history of South Carolina”. The South Carolina Historical Magazine, Charleston, v.
106, n. 2/3, 2005, pp. 133 – 136.
52
haviam sido exportadas. Na década de 1720, importantes mudanças locais contribuíram
para a solidificação da posição comercial do arroz. A guerra com os yamasee (1715 –
1718) abalou a pecuária e, consequentemente, os laços comerciais com o Caribe. Por
outro lado, artigos usados na construção naval perderam privilégios em sua
comercialização. Aliados ao fato de que havia mais escravos do que brancos já em 1708,
tais fatores estimularam o cultivo de arroz na colônia. Durante a década de 1730, a
produção da colônia atingiu a média de 51.063 barris ao ano. Segundo Peter Coclanis,
deve-se analisar a situação levando em conta o potencial de lucros e de perdas. Dito de
outro modo, com a demanda existente, foi justificada a mudança em direção a atividades
agrícolas prometedoras de maiores lucros, como o cultivo de arroz46.
Durante e após os anos 1730, houve a introdução da irrigação nos campos de arroz
e a disseminação do cultivo desse cereal na Carolina do Norte e Geórgia. Se na primeira
dessas colônias o arroz nunca atingiu uma relevante produção, no caso da Geórgia, a
história foi diversa. Inicialmente, a escravidão era proibida e havia limitações na
quantidade de terras que poderiam ser possuídas pelos colonos georgianos. Contudo,
quando tais proibições caíram por terra em 1750, as regiões dos rios Savannah, Ogeechee
e Altamaha foram palcos do desenvolvimento da rizicultura. Se em 1756 a colônia
exportou 2.299 barris, entre 1771 e 1774 a produção atingiu uma média de 26.634 barris
de arroz, escoados principalmente através do porto de Savannah47.
O arroz americano somente ganhou espaço significativo nos mercados de
exportação no começo do século XVIII, quando uma indústria rizicultura tomou raízes na
colônia da Carolina do Sul. Para isso, a disponibilidade de mão-de-obra qualificada e de
capitais, o aumento da população como um todo, o transporte e o comércio bem
desenvolvidos e o conhecimento do local foram essenciais 48. Em outras palavras, houve
46
CLIFTON, James, op. cit., pp. 269 – 280; “Edward Randolph to Board of Trade, 27 May 1700”,
SALISBURY, W. Noel et al. (eds.). Records in the British Public Record Office relating to South Carolina,
1663-1710, 5 vols. Atlanta & Columbia: Foote and Davies Company, 1928-1947, 4: 189-90 apud
CLIFTON, James, op. cit., p. 269; DETHLOOF, Henry C., op. cit., passim; COCLANIS, Peter. The shadow
of a dream..., pp. 61 – 64. De acordo com Russell Menard, o grande desenvolvimento arrozeiro na Carolina
do Sul a partir das primeiras décadas do século XVIII não significou, imediatamente, a desaparição de
outras atividades. Segundo o autor, as remessas ao estrangeiro de breu e alcatrão – derivados da madeira –
cresceram cerca de dez vezes entre o início dos anos 1710 e 1725. O comércio de provisões e produtos de
madeira também teve altas – ver MENARD, Russell R. “Financing the Lowcountry export boom: capital
and growth in early South Carolina”. The William and Mary Quarterly, Williamsburg, v. 51, n. 4, 1994,
pp. 670 – 671.
47
DETHLOFF, Henry, op. cit., p. 239; CLIFTON, James, op. cit., pp. 274 – 282.
48
Coclanis ainda destaca a ausência de um mercado interno relevante na colônia, forçando a Carolina do
Sul a interagir com o mundo. Ver COCLANIS, Peter. “Global perspectives…”, pp. 134 – 135. Aliás, é
53
a conjugação de capital e iniciativa europeia, trabalho escravizado africano e recursos do
Novo Mundo. Não podemos deixar de elencar ainda a queda de preços na indústria de
produtos navais e melhorias técnicas na produção rizicultora (com isso, custos
diminuíram e a oferta aumentou). A região possuiu vantagens competitivas aliadas a uma
integração relativa do globo que favoreceu sua produção e comércio rizicultor49.
Além disso, devemos considerar o crescimento populacional na Europa, região
consumidora do arroz britânico, e o preço maior de cereais competitivos. De fato, a
demanda europeia pelo cereal cresceu no século XVIII, e o crescimento populacional, a
urbanização, bem como o aumento das rendas dos europeus, explicam essa mudança. Se,
por um lado, o comércio do grão cresceu, com mais força no norte da Europa, por outro,
a oferta italiana, tradicional supridora do grão, foi limitada e cara em relação a outras
regiões produtoras. Os europeus precisaram de outra solução. A Ásia poderia ser uma
opção50?
[…] Os europeus sabiam bem que a Ásia era o local óbvio em que podiam
conseguir arroz: ao menos 95 por cento do arroz mundial era produzido lá, os
custos de produção eram menores do que na Europa e os europeus importavam
pequenas quantidades do cereal asiático, através do Levante, havia séculos.
Todavia, outras considerações levaram os europeus a procurar a solução em
outro local. A dimensão do mercado de arroz na Europa ainda era muito
sempre preciso distinguir as duas regiões que compunham a Carolina do Sul: lowcountry e backcountry. A
colonização do último ganhou força após 1750. “[...] The low country, in other words, was integrated far
more completely into the Atlantic economy during the late colonial period than was the Carolina
backcountry […]”. Se em 1770, de 49.066 brancos da colônia, 30.000 moravam no backcountry, por outro
lado, os colonos brancos do lowcountry dominavam as principais remessas para o mercado inglês no
período, como o arroz, as peles, os produtos florestais e 90% do anil – COCLANIS, Peter. The shadow of
a dream…, pp. 74 – 75.
49
COCLANIS, Peter. “The road to commodity hell…”, pp. 16 e 31; COCLANIS, Peter. “Rice prices in the
1720s and the evolution of the South Carolina economy”. The Journal of Southern History, Athens, v. 48,
n. 4, 1982, pp. 540 – 542; COCLANIS, Peter. “Global perspectives...”, pp. 134 e 139-140; COCLANIS,
Peter. “Distant thunder...”, pp. 1056 – 1057. O arroz foi conhecido anteriormente em outras regiões da
América, sem levarmos em conta as espécies nativas. Segundo Sharma, “[…] [e]arly Spanish explorers
introduced Asian rice to the Caribbean islands and South America. Rice first arrived in Mexico in the 1520s
at Veracruz which was selected for its warm, wet, climate. Rice cultivation started in Colombia in the
Madalena River valley around 1580 and was first cultivated as an upland crop like wheat. Rice cultivation
started much later (in 1761) in the Mainas [sic] province of Brazil”. Ver SHARMA, Shatanjiw.
“Domestication and diaspora...”, pp. 16 – 17. Sharma, todavia, ignora o cultivo de arroz desde o século
XVI no Brasil, evidenciado por personagens como Gabriel Soares de Sousa, bem como o cultivo mais
amplo no Rio de Janeiro em meados do século XVIII – ver CARNEY, Judith. “O arroz africano na
História...”, p. 186; ALDEN, Dauril. “Manoel Luís Vieira...”, passim.
50
COCLANIS, Peter. “Global perspectives...”, pp. 137 – 140; COCLANIS, Peter. “Distant thunder...”, pp.
1055-1059. Para uma explicação mais cuidadosa sobre o papel do aumento da renda europeia, relacionando
mudanças na demanda à transformação da oferta da Carolina do Sul, ver COCLANIS, Peter. The shadow
of a dream..., pp. 48 – 110.
54
pequena, a razão valor/peso do cereal muito baixa e as preocupações com
tempo e distância muito grandes para justificar um compromisso com a Ásia51.
Figura 5: cultivo de arroz com força das marés no Lower South. Fonte: CARNEY, Judith. Black Rice: the
African origins of rice cultivation in the Americas. Cambridge & Londres: Harvard University Press,
2001, p. 79.
51
COCLANIS, Peter. “Global perspectives...”, p. 138. Nossa tradução de: “[...] Europeans knew full well
that Asia was the obvious place to go for rice: at least 95 percent of the world’s rice was produced there,
productions costs were far lower than in Europe, and Europeans had been importing small quantities of
Asian rice via the Levant for centuries. Nonetheless, other considerations led Europeans to look elsewhere
at the time. The size of the rice market in Europe was still too small, the cereal’s value/weight ratio too low,
and time/distance concerns too great to justify a commitment to faraway Asia”.
52
Idem, Ibidem, pp. 137 – 140.
55
Todavia, fatores internos também tiveram o seu peso, haja vista que o sucesso do
cultivo de arroz em solo americano esteve relacionado à paisagem agrícola local. O
ambiente e suas variações afetaram diretamente a rizicultura britânica na América do
Norte. O cultivo inicial ocorreu em terras altas da região, sem irrigação. Quando se
percebeu que o grão crescia de melhor forma em terrenos alagados e irrigados, a paisagem
do cultivo foi transformada. Inicialmente, nestas zonas, escolheram-se as terras inundadas
interiores de água doce, as quais conviveram, mais tarde, com as zonas influenciadas
pelas marés, cuja importância cresceu gradualmente e com mais força após a Revolução
Americana. Nessas últimas, é claro, a produtividade era maior. Ainda assim havia
problemas, pois a geografia do cultivo de arroz ficou restrita a determinadas margens de
rios, como vemos na imagem anterior53.
Figura 6: esquematização de duas formas para o cultivo de arroz. Fonte: CARNEY, Judith.
Arroz Negro: as origens africanas do cultivo do arroz nas Américas. Bissau: Instituto da biodiversidade
e das áreas protegidas, 2018, p. 129.
53
COCLANIS, Peter. “The road to commodity hell…”, pp. 17-19; AGHA, Andrew; PHILIPS JR., Charles
F. “Landscapes of cultivation: inland rice fields landscapes and archaeological sites”. The African Diaspora
Archaeology Newsletter, Urbana/Champaign v. 12, n. 3, 2009, pp. 4 – 10; CLIFTON, James, op. cit., pp.
274 – 276; COCLANIS, Peter. The shadow of a dream..., pp. 96 – 97. Sobre o cultivo inland, e com algumas
considerações sobre o tidal, ver SMITH, Hayden. Rich swamps and rice grounds: the specialization of
inland rice culture in the South Carolina Lowcountry, 1670-1861. 2012. 319 p. Tese (Doctor of Philosophy).
The University of Georgia, Athens, 2012, passim.
56
Na atividade em que se engajaram os colonos, havia gastos muitas vezes
consideráveis. Não bastava atirar as sementes em qualquer porção de terreno, ainda mais
se o objetivo fosse a produção comercial do grão. Nos terrenos alagados interiores, era
necessário desflorestar, nivelar, construir diques e comportas para armazenar a água da
chuva, de riachos ou lençóis freáticos. Segundo Dethloff, “[...] a água era armazenada em
reservatórios e então liberada nos campos com o auxílio da gravidade, depois era retirada
dos campos e lançada em charcos ou córregos”, como podemos observar na figura
anterior. Tal método de irrigação era irregular, demandava muito trabalho e nem todos os
terrenos eram adequados. Buscou-se, então, outra forma de cultivo. Na cultura tidal,
envolvendo a construção de diques e canais para a utilização da água das marés, os custos
dos capitais fixos e variáveis eram consideráveis. Contudo, de acordo com Dethloff, com
o uso das marés e sem a utilização de bombas, os planters obtiveram acesso irrestrito à
água, ainda que fosse necessária a construção de uma custosa infraestrutura (diques e
barragens)54.
Ainda assim, os planters que puderam investir na produção tidal obtiveram
consideráveis ganhos com suas plantations e os trabalhadores escravizados. Como sinal
da riqueza gerada nos arrozais, basta dizer que, durante a segunda metade do século
XVIII, as taxas líquidas de retorno anual ficavam em 25 por cento55.
Plantations de arroz demandavam investimentos por parte de seus possuidores.
Nesse quesito, Russell Menard descreve o modo como capitais estrangeiros – britânicos
ou caribenhos – ou originados na própria colônia financiaram o boom rizicultor britânico.
Segundo o autor, há evidências, no final do século XVII e início do século XVIII, de que
determinados homens compraram uma boa quantia de escravos e se voltaram à produção
em larga escala em suas propriedades, utilizando capital estrangeiro trazido à colônia. Ao
mesmo tempo, havia pequenos proprietários que trabalhavam suas terras, no máximo,
com pouquíssimos escravos, cultivando provisões ou pequenas quantidades de arroz ou
se dedicando à pecuária. Tais atores, com o auxílio do crédito dispensando localmente,
54
COCLANIS, Peter. “The road to commodity hell…”, pp. 20 – 22; CARNEY, Judith. Arroz Negro…, pp.
105-150, principalmente a p. 126; CLIFTON, James M., op. cit., pp. 275 – 277; DETHLOFF, Henry C.,
op. cit., pp. 238 – 239 (nossa tradução de: “[...] [w]ater was caught in reservoirs, and then released into
fields by gravity flow, and flushed from the fields into sloughs or streams […]”. Dethloff, nas páginas
citadas, detalha o sistema tidal: “[…] The tidal system utilized the ocean tides, which when rising forced
the fresh water in the coastal rivers to back up-river, and raised the water levels. The incoming tide pushed
open a series of water-gates or locks and when tides changed the gates or lock automatically closed,
capturing the fresh water for irrigation until the next high tide […]”.
55
COCLANIS, Peter. “The road to commodity hell…”, pp. 20 – 22.
57
acumularam capitais que possibilitaram incrementos na produção. Logo, mesmo não
sendo a única chave de explicação para o sucesso agrícola na Carolina do Sul no período
considerado, o crédito local ao menos teve parte relevante nele: “[...] os planters da
Carolina do Sul hipotecaram suas plantations, gado e escravos para expandir suas
propriedades por meio da compra de terra, gado e especialmente escravos adicionais” 56.
Um exemplo disso, envolvendo uma forma de financiamento local, ocorreu por
meio das constantes hipotecas feitas no correr do século XVIII. A maioria dos que
adiantavam empréstimos era de Charleston, e os que recebiam a quantia emprestada com
a garantia de suas propriedades, habitualmente, eram habitantes das zonas rurais da
Carolina do Sul. Sem dúvida, o fluxo de capitais, em sua mais relevante parte, saía das
cidades e dos bolsos dos mercadores em direção às plantations, ou com destino à fronteira
agrícola. Tal tendência reforçou-se, em boa parte, com o passar do século XVIII57.
A rizicultura estava muito bem consolidada, nas colônias da Carolina do Sul e
Geórgia, antes da Revolução Americana. Sua intricada estrutura produtiva e comercial
reunia planters, agentes, banqueiros, capitães de navios e juristas. Os mercadores,
comumente, dispensavam o crédito necessário à agricultura, além de servirem como
intermediários nas vendas para o exterior e proverem itens usuais aos habitantes da
colônia. Os planters, por seu turno, mesmo aparecendo em determinados momentos como
credores – principalmente nas zonas rurais afastadas de Charleston–, habitualmente
criavam débitos com outros atores locais58.
Mercadores, donos de plantations, agentes, donos dos navios de comércio, sem
nos esquecermos dos traficantes de escravos, todos esses atores se encontravam e
participavam do lucrativo comércio de arroz. Assim financiado e planejado, o cultivo
desse cereal nas colônias da Carolina do Sul e Geórgia conferiu a seus produtores a maior
renda per capita continental, ao mesmo tempo em que transformou cidades como
Charleston, Beaufort, Georgetown e Savannah. Sobrenomes como Cotesworth,
Manigault, Allston, Laurens e Pinckney deveram suas fortunas à produção e comércio do
56
MENARD, Russell, op. cit., passim (nossa tradução de: “[…] South Carolina planters mortgaged their
plantations, livestock, and slaves to expand their estates by purchasing additional land, livestock, and,
especially, slaves” – MENARD, Russell, op. cit., p. 675); COCLANIS, Peter. “The road to commodity
hell…”, pp. 20 – 24. Segundo Agha e Philips Jr., a indústria naval e o tráfico de peles auxiliaram no
financiamento da rizicultura – AGHA, Andrew; PHILIPS JR., Charles F., op. cit., p. 6.
57
MENARD, Russell, op. cit., passim.
58
DETHLOFF, Henry, op. cit., pp. 239 – 243; CLIFTON, James, op. cit., passim; MENARD, Russel, op.
cit., pp. 661 – 676; WOODS, Michael. “The culture of credit in colonial Charleston”. The South Carolina
Historical Magazine, Charleston, v. 99, n. 4, 1998, passim.
58
cereal nessas regiões. Somadas, as remessas de arroz ao estrangeiro a partir dos dois locais
saltaram de uma média de 3 milhões de libras anuais entre 1713 e 1717 para 77 milhões
entre 1768 e 1772, como pode ser notado no gráfico seguinte. Com capitais financiando
a produção rizicultora, explica-se a explosão produtiva ocorrida no local, bem como
outras transformações: em 1690, havia cerca de 4.000 habitantes na Carolina do Sul e
aproximadamente 1.500 escravos. Em 1740, em meio ao boom rizicultor, os números
eram mais significativos: perto de 54.000 habitantes, cerca de 39.200 escravos59.
90.000.000
80.000.000
70.000.000
60.000.000
LIBRAS
50.000.000
40.000.000
30.000.000
20.000.000
10.000.000
0
1690 1700 1710 1720 1730 1740 1750 1760 1770 1780
ANOS
Gráfico 1: Arroz exportado a partir das regiões rizicultoras britânicas (1698 – 1774). Fonte: U.S.
DEPARTMENT OF COMMERCE. Historical statistics of the United States. Colonial times to 1970. Part
II. US Bureau of the census: Washington, D.C., 1975, p. 119260.
59
MENARD, Russell, op. cit., pp. 659 – 660; DETHLOFF, Henry, op. cit., pp. 239 – 243; WOODS,
Michael, op. cit., passim; MORGAN, Kenneth, op. cit., pp. 433 – 435, 441 et seq; COCLANIS, Peter.
“Global perspectives...”, pp. 140-141; COCLANIS, Peter. “The road to commodity hell...”, p. 20;
CLIFTON, James, op. cit., passim; Henry Laurens, a título de exemplo, foi um mercador na Carolina do
Sul. Por mais que tenha residido a maior parte de sua vida em Charleston, envolvido em suas atividades
mercantis, também possuiu e administrou diversas plantations na Carolina do Sul – ver MORGAN, Philip
D. “Three planters and their slaves: perspectives on slavery in Virginia, South Carolina, and Jamaica, 1750
– 1790” in JORDAN, Winthrop D.; SKEMP, Sheila (eds.). Race and family in the colonial South: essays.
Jackson & London: University Press of Mississippi, 1987, pp. 37 – 79.
60
Um quilograma equivalia a cerca de 2,20 libras no período – ver BETHELL, Leslie (ed.). The Cambridge
History of Latin America. Volume II. Colonial Latin America. Cambridge: Cambridge University Press,
1984, p. XII.
59
era transportada e comercializada em outras colônias continentais. Da parcela exportada
entre os anos de 1768 e 1772, a título de exemplo, 65% foram, via Grã-Bretanha, para a
Holanda e os países de fala alemã, 18% para o Caribe e 17% para a Espanha e Portugal.
A atual região da Alemanha concentrava a demanda de arroz no norte europeu, recebendo
remessas a partir de Amsterdam, Rotterdam e Hamburgo. O cereal foi consumido “[...]
em outros locais do norte da Europa, no entanto: com regularidade na França, Bélgica e
na Holanda, por exemplo [...] ao menos intermitentemente na Escandinávia e no leste do
Báltico também [...]”. No último caso das porcentagens, referente ao sul europeu, que
mais nos interessa, as exportações de arroz – juntamente com outros cereais e o bacalhau
– reforçaram a tendência ao desequilíbrio da balança comercial portuguesa em relação à
Grã-Bretanha, saldado com ouro e prata. Sinal da convivência conflituosa entre dois
impérios com cronologias coloniais distintas, englobando um espaço de experiência
particular que guiava expectativas diversas, inclusive quanto à necessidade de reformas 61.
O lucrativo comércio de arroz levou os atores a ele vinculados a lutarem pela
manutenção de oportunidades de mercado no sudeste europeu, no deficitário mercado
português. O arroz, entre outros produtos coloniais britânicos, foi designado como “artigo
enumerado” em 1704, significando que, antes de ser comercializado em outras regiões,
teria de ser encaminhado diretamente à metrópole. Isso, em teoria, proporcionaria
matérias primas aos ingleses e um mercado certo para os produtos americanos. Contudo,
tal restrição também aumentaria os custos de transporte e os riscos de deterioração. A
partir de 1714, a Assembleia da Carolina do Sul demandou a rejeição da lei e, em 1731,
o Parlamento aliviou a situação para os produtores do Lower South: para incentivar o
61
FISHER, Harold E. S. De Methuen a Pombal: o comércio anglo-português de 1700 a 1770. Lisboa:
Gradiva, 1984, especialmente o capítulo IV; MORGAN, Kenneth, op. cit., pp. 433 – 438. O destino da
maior parcela das exportações carolinas, o norte da Europa, também foi o alvo de exportações italianas;
arroz italiano (e também espanhol) era exportado, por exemplo, para a França – ver FERRERO, Aldo;
VIDOTTO, Francesco, op. cit., p. 345; ver também, para a informação precedente e as do parágrafo,
COCLANIS, Peter. The shadow of a dream..., pp. 133 – 134 (nossa tradução de: “[…] elsewhere in northern
Europe, however: with regularity in France, Belgium, and the Netherlands, for example […] at least
intermittently in Scandinavia and the eastern Baltic as well […]”). Segundo Peter Coclanis, “[...] internal
consumption in Great Britain, which generally had been quite limited in the eighteenth and early nineteenth
century, increased after that time, especially after the repeal of the Corn Laws in 1846. As alluded to earlier,
some shipments of rice, having worked their way down the Danube, made it all the way to the Romanian
ports of Ibraila and Galatz but shipments to that region paled in comparison with shipments to the west and
north”. Ademais, o arroz consumido na própria colônia da Carolina do Sul era de pior qualidade, não-
comercializável; eram grãos quebrados ou subprodutos como a palha etc. – Idem, Ibidem, pp. 133 – 134.
Sobre experiências e expectativas diversas, consultar KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado:
contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2006, pp.
305-327.
60
comércio dessa commodity, o Parlamento conferiu aos produtores e mercadores a “[...]
liberdade para transportar arroz da província da Carolina na América diretamente para
qualquer porto europeu ao sul do Cabo Finisterra, em navios construídos na e pertencentes
à Grã-Bretanha e conduzidos de acordo com a lei”. Dessa forma, ficou evidenciada a
importância do mercado ibérico para o cultivo e comércio de arroz no Lower South, a
ponto de parte dessa região obter privilegiada posição na legislação comercial britânica62.
1.5. Conclusão
Compreendemos o modo pelo qual Portugal era parte de um mercado de arroz que
conectava diversas regiões ao redor do oceano atlântico e mesmo regiões mediterrânicas.
A rizicultura britânica, supridora da demanda ibérica, deve ser compreendida e analisada
tendo em consideração o desenvolvimento colonial britânico. Por outro lado, os
desenvolvimentos ocorridos no império português já vinham de antes e com origem
diversa, compondo uma temporalidade particular. A economia-mundo e os mercados
mundiais, inclusive de arroz, articulavam as duas realidades63.
Dessa forma, devemos entender a organização da produção de arroz nas colônias
britânicas e as medidas tomadas pelos portugueses na segunda metade do século XVIII
como momentos distintos na formação dos dois impérios. Justamente por isso, e pelo
descompasso existente entre aquelas duas realidades no final do século XVIII, fazem
sentido as ações postas em jogo pela Coroa portuguesa, com vistas a emular práticas que
aparentemente haviam dado bons resultados em outros locais. O arroz, comprado aos
britânicos e pesando na balança comercial portuguesa, representava muito bem as tensões
existentes naquela época entre Portugal e Grã-Bretanha.
No Atlântico do século XVIII, havia diferentes temporalidades que, ao mesmo
tempo, se inter-relacionavam nesse espaço geográfico. As regiões rizicultoras britânicas,
62
DETHLOFF, Henry, op. cit., pp. 233 – 236; “Acts of Parliament, Anno Tertio Georgii II. Regio., pp.
559-564” apud DETHLOFF, Henry, op. cit., p. 236 (nossa tradução de: “[...] liberty to carry rice from his
Majesty’s province of Carolina in America, directly to any port of Europe southward of Cape Finisterre, in
ships built in and belonging to Great Britain, and navigated according to law”); CLIFTON, James, op. cit.,
pp. 280 – 281; também MORGAN, Kenneth, op. cit., pp. 438-439.
63
Como foi apontado por Berbel, Marquese e Parron, baseados nas ideias de Reinhart Koselleck, tratou-se
da contemporaneidade do não-contemporâneo, exemplificada pela coexistência, pela simultaneidade de
dois sistemas com temporalidades diversas, de dois impérios com suas particularidades. O comércio de
arroz, deficitário para Portugal e lucrativo para os britânicos, exemplificou a dinâmica relação entre os dois
sistemas. Para essas informações e as do parágrafo, ver BERBEL, Marcia; MARQUESE, Rafael de B.;
PARRON, Tâmis, op. cit., pp. 27 e 53 – 54; também KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado..., p. 317.
61
supridoras da demanda portuguesa, possuíam um espaço de experiência peculiar. O
desequilíbrio na balança comercial – envolvendo o arroz – entre Grã-Bretanha e Portugal
era o saldo do embate de duas temporalidades distintas, era o indício de um tenso vínculo
entre as partes no mercado mundial64.
Como dois impérios inseridos no desenvolvimento do mundo moderno e na
dissolução do Antigo Regime, ambos entraram em crise em fins do século XVIII. Isso
abriu caminho ao entendimento da disparidade do império britânico em relação às antigas
potências ibéricas. Os portugueses decidiram, afinal, emular os fatores que trouxeram
sucesso àquela potência do noroeste europeu. Em outras palavras, decidiram superar a
defasagem, garantindo “[...] uma agricultura escravista altamente capitalizada nas áreas
coloniais conectada ao desenvolvimento comercial acelerado na metrópole [...]” 65.
Tal contexto conflitivo e de transformações teve na conhecida Guerra de
Independência das Treze Colônias britânicas um de seus principais eventos. Esse conflito
teve efeitos diretos sobre a produção de arroz no Lower South. Savannah, na Geórgia, foi
capturada pelos britânicos em 1778, ao passo que Charleston e o interior da Carolina do
Sul foram tomados em 1780. Assassinatos, confiscos, fuga de escravos, tais fatores
apareceram durante o conflito e, aliados à “quebra da lei e da ordem” e à desarticulação
do comércio, afetaram a produção regional. No caso das exportações saídas de
Charleston, na Carolina do Sul, a desarticulação da produção foi evidente: se em 1774, a
cidade exportou 118.482 barris de arroz dos 145.268 saídos das colônias, em 1783
Charleston exportou tão-somente 24.255 barris66.
Se considerarmos que o barril, no ano de 1755, equivalia a 525 libras (foi o
máximo valor do barril no período anterior à Revolução Americana) e extrapolarmos tal
valor de maneira arbitrária para 1783, temos que Charleston exportou 12.733.875 libras
de arroz nesse ano. Em 1774, antes do início da guerra, como vimos no primeiro gráfico,
a exportação total de todas as regiões rizicultoras da América britânica continental
64
BERBEL, Marcia; MARQUESE, Rafael de B.; PARRON, Tâmis, op. cit., pp. 11 – 19, 27 – 28 e 75.
65
Idem, Ibidem, pp. 17, 27 – 28, 54, 64, 75 – 93. Trata-se, portanto, da formação de uma consciência sobre
tal disparidade. Para um argumento próximo, ao mesmo tempo distinto, sobre a formação de uma
consciência da realidade de fins do século XVIII, mas relacionada a uma crise do sistema colonial
português, ver MOTA, Carlos Guilherme. Atitudes de inovação no Brasil -1789-1801. Lisboa: Livros
Horizonte, s/d, p. 17.
66
AGHA, Andrew; PHILIPS JR., Charles F., op. cit., passim; CARNEY, Judith. Arroz negro…,
especialmente as pp. 193-235; DETHLOFF, Henry, op. cit., p. 242; U.S. DEPARTMENT OF
COMMERCE. Historical statistics of the United States. Colonial times to 1970. Part II. US Bureau of the
census: Washington, D.C., 1975, pp. 1164-1165, 1192-1193.
62
alcançou 76.265.700 libras e a de Charleston, sozinha, foi responsável por 62.203.050
libras. Vemos, portanto, as consequências catastróficas da guerra sobre o comércio de
arroz. Somente em 1789, as exportações de Charleston retomaram o patamar de 100.000
barris ou 52.500.000 libras de arroz por ano67.
140.000
120.000
100.000
BARRIS
80.000
60.000
40.000
20.000
0
1725 1730 1735 1740 1745 1750 1755 1760 1765 1770 1783 1788
ANOS
Gráfico 2: Exportação de arroz a partir de Charleston (1725 - 1789). Fonte: U.S. DEPARTMENT OF
COMMERCE. Historical statistics of the United States. Colonial times to 1970. Part II. US Bureau of the
census: Washington, D.C., 1975, pp 1163 – 1165, 119268.
A Revolução fez com que houvesse graves problemas nas exportações. Houve
dificuldades nas remessas de arroz diretamente à Europa. O fluxo do tão-necessário
crédito britânico cessou, assim como as linhas comerciais. Para entender a relevância de
tal quebra, basta adicionar que, de acordo com Peter Coclanis, “[...] na véspera da
Revolução, o débito per capita dos colonos brancos da Carolina do Sul, devido a credores
britânicos, era maior do que o de qualquer outra colônia continental [...]” 69. A guerra
67
Conforme U.S. DEPARTMENT OF COMMERCE. Historical statistics of the United States…, pp. 1163
– 1165 e 1192 – 1193.
68
Seguindo a fonte citada, o valor do barril variou consideravelmente no período. Um barril valia 350 libras
até 1720; o valor aumentou 10 libras anualmente até 1730 e estacionou em 450 até depois de 1740. Voltou
a crescer 5 libras por ano até atingir seu valor máximo, antes de 1776, de 525 libras em 1755.
69
DETHLOFF, Henry, op. cit., p. 242; COCLANIS, Peter. The shadow of a dream…, pp. 104 e 266 (nossa
tradução de: “[...] on the eve of the Revolution the per capita debt of South Carolina’s white inhabitants to
British creditors was higher than that in any other mainland colony […]”); ver também BLACKBURN,
Robin. “Capitalismo e Novo Mundo: escravidão, acumulação primitiva e industrialização”, in BONILLA,
Heraclio (org.). Os conquistados: 1492 e a população indígena das Américas. São Paulo: Hucitec, 2006, p.
348.
63
trouxe enormes problemas financeiros e humanos, pois, devido às fugas e mortes, por
exemplo, 25.000 escravos escaparam ao controle dos planters, valor correspondente a ¼
do contingente total do Lower South. O endividamento dos senhores, possivelmente
derivado do contexto bélico e dos problemas comerciais apontados, fez travar o comércio
de cativos na década de 178070.
Ainda assim, isso não significou o fim da produção rizicultora na região. Após a
Revolução, a produção foi retomada e houve a mudança final para a cultura com a força
das marés. Vemos como esse temporário caos na produção britânica funcionou como uma
efetiva janela de oportunidades para outras regiões, incluindo a América portuguesa71.
Tendo em vista a quebra das linhas mercantis que levavam arroz
britânico/americano, os europeus tiveram de buscar novas fontes do cereal. Uma
alternativa viável poderia ser o “arroz italiano”. Há menção de que a exportação italiana
para Portugal superou a das colônias britânicas em 1777, durante a guerra de
independência dos EUA. Contudo, além do cereal italiano ser relativamente caro, parte
da Península Itálica enfrentava algumas dificuldades. Em 1783, segundo dom Rodrigo de
Sousa Coutinho, enviado português à Corte da Sardenha, as remessas de seda para Lion
e Londres decaíram em virtude da guerra de independência dos EUA, ao mesmo tempo
em que, e de maneira mais relevante para nossos propósitos, diminuíram-se as remessas
de arroz ao exterior devido à carência de trigo e à necessidade de “subsistências”. Não
podemos atestar se a dificuldade foi restrita a esse ano ou se se estendeu, mas,
aparentemente, não era na Península em que os portugueses poderiam sanar parte de seus
problemas. Portugal continuou a necessitar de fontes de arroz alternativas72.
70
MARQUESE, Rafael de B. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle
dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 236-237 e 240;
CARNEY, Judith. Arroz negro..., pp. 209 e 226. Também SMITH, Julia F. Slavery and rice culture in Low
Country Georgia, 1750-1860. Knoxville: The University of Tennessee Press, 1985, pp. 28-31 e 43. Por fim,
NADELHAFT, Jerome J. The disorders of war: the Revolution in South Carolina. Orono: University of
Maine at Orono Press, 1981, passim, principalmente as pp. 62 e 151-152.
71
Segundo Coclanis, a cartada final contra a rizicultura do Lower South foi dada no século XIX. Por um
lado, com uma maior integração mundial, a entrada de arroz asiático (Bengala, Java, Lower Burma) no
mercado ocidental desestabilizou a produção do Lower South. A entrada desse arroz foi incentivada no
século XIX pelo domínio britânico na Índia, e um dos fatores explicando tal mudança foi a quebra da oferta
americana causada pela Guerra de Independência dos EUA. Por outro, a produção rizicultora nos EUA
deslocou-se da costa atlântica em direção ao velho sudoeste (Lousiana, Arkansas e Texas) – COCLANIS,
Peter. The shadow of a dream..., pp. 134 – 137; COCLANIS, Peter. “Distant thunder…”, pp. 1056 – 1059,
1070 – 1071; AGHA, Andrew; PHILIPS JR., Charles F., op. cit., pp. 4 – 11; CLIFTON, James, op. cit.¸ p.
276; U.S. DEPARTMENT OF COMMERCE. Historical statistics of the United States…¸ p. 1192.
72
Ver a nota 11 deste capítulo; COCLANIS, Peter. “Global perspectives...”, p. 138; ALDEN, Dauril.
“Manoel Luís Vieira...”, p. 534; COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Recopilação dos ofícios expedidos de
Turim no ano de 1783”, in Textos políticos, econômicos e financeiros (1783-1811). Tomo I. Direção de
64
A desarticulação da produção britânica, somada aos demais fatores elencados,
criou um momento de oportunidade em um mercado promissor. Durante certo tempo, o
Lower South perdeu espaço no mercado-mundial e novos locais foram articulados a ele.
A Revolução, dentro de um quadro mais amplo de reformas econômicas lusas que
buscavam sanar os problemas imperiais, pode ter funcionado como uma alavanca,
abrindo uma brecha de oportunidade em um momento em que Portugal procurava
substituir suas importações e reformar sua economia. No caso de Portugal, antigo
comprador de arroz britânico e local em que se proibiu a entrada de navios dos “rebeldes
americanos” em 1776, a rizicultura não passou despercebida. Conhecido desde o início
da colonização portuguesa na América, o arroz – até então produzido como alimento de
subsistência, para consumo local – atraiu a atenção das autoridades lusas e entrou na mira
das reformas então empreendidas. A rizicultura portuguesa deveria suprir a demanda lusa,
substituir as importações britânicas de arroz, também responsáveis pelos saldos negativos
na balança comercial. Nesse processo, a emulação de técnicas alheias, a busca de novos
cultivos e a divulgação de novas ideias econômicas tiveram acentuada relevância73.
edição de Andrée Mansuy Diniz Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, pp. 11-14; SILVA, Andrée M. D.
“Introdução” in COUTINHO, dom Rodrigo de S. Textos políticos, econômicos e financeiros (1783-1811).
Tomo I. Direção de edição de Andrée Mansuy Diniz Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. XIV.
73
Ver COCLANIS, Peter. “Distant thunder...”, pp. 1056 – 1059, 1062 – 1063; COCLANIS, Peter. The
shadow of a dream..., pp. 134 – 137; DETHLOFF, Henry, op. cit., p. 242; troca de e-mails do autor com o
professor Peter Coclanis (abril de 2020); CARNEY, Judith. “O arroz africano na história...”, pp. 185 – 187;
CARNEY, Judith. Arroz negro..., pp. 99, 193-214, 199 e 204; MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal:
paradoxo do Iluminismo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1997, pp. 69-158; BOXER, Charles R. O
império marítimo português: 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 195, 204, 206 e 208-
210; ARRUDA, José Jobson de A. “Decadência ou crise do império luso-brasileiro: o novo padrão de
colonização do século XVIII”. Revista USP, São Paulo, n. 46, 2000, pp. 69 – 70; AZEVEDO, Dannylo de.
O Fazendeiro do Brasil: manuais agrícolas no Brasil colonial em finais do século XVIII. 2018. 215 p.
Dissertação (Mestrado em História Econômica). FFLCH-USP, São Paulo, 2018, passim, principalmente
pp. 29 – 30, 120 – 121 e 134 – 135; MARQUESE, Rafael de B. Administração & Escravidão: ideias sobre
a gestão da agricultura escravista brasileira. São Paulo: Hucitec, 1999, passim; também MOREIRA,
António. “Desenvolvimento industrial e atraso tecnológico em Portugal na segunda metade do século
XVIII”, in SANTOS, Maria Helena C. dos (coord.). Pombal revisitado: comunicações ao colóquio
internacional organizado pela comissão das comemorações do 2º centenário da morte do marquês de
Pombal. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, p. 55. Acreditando na legislação produzida no reinado de dona
Maria I, a produção de arroz na América portuguesa foi exitosa, a ponto de suprir as demandas lusas e
incentivar a proibição de importações estrangeiras em 1781. Ver SILVA, Antonio Delgado. Collecção da
legislação portuguesa desde a ultima compilação das ordenações, redegida pelo desembargador Antonio
Delgado da Silva. Legislação de 1775 a 1790. Lisboa: Typographia Maigrense, 1828, pp. 300 – 301. Sobre
a proibição da entrada de navios americanos em portos portugueses em 1776, consultar SILVA, Antonio
Delgado. Collecção da legislação portuguesa... Legislação de 1775 a 1790..., p. 99. Para outros autores
que citaram o impacto dessa guerra no mercado de arroz, ver VALENTIN, Agnaldo. “Comércio marítimo
de abastecimento: o porto de Iguape (SP), 1798-1880”. Cadernos de Resumos do V Congresso Brasileiro
de História Econômica, Caxambu, 2003, p. 8; SMITH, Julia F. Slavery and rice culture in Low Country
Georgia, 1750-1860. Knoxville: The University of Tennessee Press, 1985, pp. 29, 214 e 215 apud
VALENTIN, Agnaldo. “Comércio marítimo…”, p. 8; também FURTADO, Celso. Formação econômica
do Brasil. 18ª edição. São Paulo: Ed. Nacional, 1982, pp. 90-91.
65
2. AS LUZES EM PORTUGAL E O REFORMISMO LUSO-
AMERICANO
Vimos em nosso tempo a aurora do mais ditoso dia e a justa posteridade lerá
com admiração as ações de um soberano que fez renascer de entre as cinzas a
mais florescente cidade, criando o crédito público e desterrando o prejuízo que
nos sujeitava a uma nação perita nos seus interesses, que com o aparente e
especioso véu de proteção, nos tinha quase reduzido a ser colonos duma
estranha metrópole. Vemos a feliz continuação deste dia no reinado da nossa
Augusta Soberana; e as mais lisonjeiras esperanças nos fazem ver na sua régia
sucessão perpetuado o bem público e elevado o esplendor da nação tanto além
da glória dos nossos maiores, quanto as luzes do século décimo oitavo excedem
às do décimo quinto e décimo sexto1.
1
Ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Discurso sobre a verdadeira influência das minas dos metais
preciosos na indústria das nações que as possuem, e especialmente da portuguesa (1789)” in Textos
políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo I. Direcão de edição de Andreé M. D. Silva. Lisboa:
Banco de Portugal, 1993, p. 173.
66
pensamos nesse período não podemos deixar de citar a Ilustração e sua influência sobre
o pensamento português2.
Apresentaremos uma síntese das mudanças na economia portuguesa do período e
as propostas reformistas então teorizadas como respostas à realidade cambiante. Ao
mesmo tempo, buscaremos inscrever e compreender tais transformações e o papel
reservado à agricultura na transformação mais ampla do pensamento econômico
português, com novas formas de avaliar a riqueza e buscar o enriquecimento do império.
Com o presente capítulo, prosseguimos a avaliação dos motivos pelos quais a
cultura comercial de arroz luso-americana tomou força no final do século XVIII e como
foi constituído um espaço de discussão que tornou possível a escrita de diversos textos
sobre agricultura. Se nas páginas anteriores, questões relacionadas à conjuntura
internacional da época, nomeadamente as referentes à Revolução Americana, tomaram a
frente na explicação, agora o peso e importância do reformismo ilustrado português no
estabelecimento daqueles processos será avaliado.
O impacto das ideias ilustradas na Península Ibérica em fins dos setecentos foi e
continua a ser assunto muito debatido e controverso. Concordâncias raramente vêm à
tona. As divergências, por sua vez, já se iniciam na própria definição do que pode ser
descrito como Ilustração. Um “movimento de ideias” que tomou força durante os
Setecentos? Tal afirmação está correta, mas requer complementos. Nesse momento, as
discordâncias aparecem. Seriam ideias revolucionárias ou as reformistas também
marcariam presença? Seriam marcadas pela secularização? Existiria um Iluminismo
radical como padrão para hierarquizar as demais experiências da época? Seriam, enfim,
mudanças essencialmente mentais3? Como bem apontou Emilia Viotti da Costa,
2
Tais ideias se originaram também na leitura de VALENTIN, Agnaldo. “Comércio marítimo de
abastecimento: o porto de Iguape (SP), 1798-1880”. Cadernos de Resumos do V Congresso Brasileiro de
História Econômica, Caxambu, 2003, p. 3.
3
Goldman, por exemplo, defendeu a existência de diversas variantes dentro do pensamento ilustrado: o
autor citou extremistas, como Mably, Meslier e Morelli, cujo ideal estaria na defesa da igualdade, acima
dos direitos de propriedade e liberdade; elencou também os fisiocratas como moderados; e, enfim, postulou
a existência de um grupo, o dos enciclopedistas, formado por atores como Holbach e Diderot –
GOLDMAN, Lucien. La Ilustración y la sociedad actual. Caracas: Monte Ávila Editores, 1968, pp. 54 –
68. Para a diferenciação entre Iluminismo democrático radical e Iluminismo antidemocrático moderado,
ver ISRAEL, Jonathan. A Revolução das Luzes: o Iluminismo Radical e as origens intelectuais da
democracia moderna. São Paulo: EDIPRO, 2013, pp. 15 – 43. Para um texto que discute a ideia da
secularização na Ilustração e que define a Aufklärung como “um modo novo de estar no mundo”, uma nova
leitura vinculada à religião, agricultura etc., em que havia crítica à tradição, ver PEREIRA, Miguel B.
67
[...] A única concordância que existe entre os historiadores é que houve a
Ilustração, um movimento de ideias vagamente associado aos enciclopedistas
e aos filósofos franceses: Rousseau, Montesquieu, D’Alambert, Voltaire, os
quais, por sua vez, se ligavam a Bacon, Newton e Hume, e que se relacionavam
a muitos outros intelectuais em diferentes partes da Europa e do Novo Mundo.
Quanto ao mais não há concordância [...]4.
“Iluminismo e secularização”. Revista de História das Ideias: o Marquês de Pombal e o seu tempo. 2 tomos.
Coimbra: Universidade de Coimbra, v. 4, tomo 2, 1982-1983, especialmente as páginas 445 – 446.
4
COSTA, Emilia V. da. “A invenção do Iluminismo”, in COGGIOLA, Osvaldo (org.). A Revolução
Francesa e seu impacto na América Latina. São Paulo: Nova Stella Editorial, 1990, p. 31. Lucien Goldman,
a título de exemplo, caracterizou a Ilustração como “[...] el conjunto de las diversas corrientes de
pensamiento racionalista y empirista que se desarolló en el siglo XVIII en los países de Europa Occidental,
sobre todo en Francia e Inglaterra [...]”. Para ele, suas origens seriam anteriores ao século XVIII e seu
impacto ainda seria sentido na época em que escreveu – GOLDMAN, Lucien, op. cit., p. 30.
5
Ver, por exemplo, AZEVEDO, João Lúcio de. O Marquês de Pombal e a sua época. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Anuário do Brasil; Lisboa: Seara Nova; Porto: Renascença Portuguesa, 1922, pp. 87 – 92: “A Europa, nos
mesmos países do catolicismo, olhava com pasmo o que se passava na península, o abismo a que a
superstição e a falta de cultura mental tinham lançado estes povos. Considerava que, enquanto nos Estados
do Papa os hebreus eram livres, na Espanha e em Portugal, por frágeis indícios, se votavam cristãos à
fogueira. Em toda a parte as pessoas ilustradas condenavam tão atroz situação. O horror, o ridículo, que
mais tarde, na frase de Voltaire, caracterizou o suplício de Malagrida, acompanhava, em terras estranhas, o
nome português” – Idem, ibidem, pp. 90 – 91; FALCON, Francisco. A época pombalina: política econômica
e monarquia ilustrada. 2ª edição. São Paulo: Ática, 1993, pp. 196 – 212; ARAÚJO, Ana Cristina. A cultura
das luzes em Portugal. Temas e problemas. Lisboa: Livros Horizonte, 2003, pp. 9 – 50, especialmente as
pp. 15 – 21; MACEDO, Jorge Borges de. A situação econômica no tempo de Pombal. Lisboa: Gradiva,
1989, cap. 1; MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1997, pp. 1-35; para a crítica à ideia de “ilustrações nacionais”, ver ISRAEL, Jonathan, op.
cit., p. 29. Ademais, para uma contundente e cirúrgica crítica aos argumentos de Israel, ver a resenha de
JACOB, Margaret. “Spinoza got it”. London Review of Books, Londres, v. 34, n. 21, 2012.
68
tensionada, entre continuidades e rupturas, por uma variedade de ideias durante os
Setecentos6.
Portugal fez parte desse movimento mais amplo ocorrido no século XVIII,
caracterizado por noções críticas da realidade, pela interrelação racional do homem com
o seu entorno. Uma relação entre o discurso, substanciado em planos e projetos, e a ação.
Suas particularidades, é claro, denotam diferenças em relação ao ocorrido no restante da
Europa, mas não o isolam desse fluxo de transformações. Nesse processo, homens vindos
do estrangeiro, bem como portugueses que permaneceram no Reino, contribuíram para a
construção de ideais reformistas. Tais reformas ilustradas objetivaram reforçar o Estado
absolutista luso, centralizando a administração e robustecendo o poder real, e sanar a
defasagem em relação ao noroeste europeu. Havia em Portugal, portanto, um regime
absolutista, autoritário e lógico, buscando a retomada “[...] do controle nacional sobre a
economia e a revitalização do Estado”. Daí a busca estatal pelo bem-estar e progresso e
o enlace entre reformismo e despotismo7.
Pioneiro nas explorações do ultramar iniciadas no século XV ao conciliar sua
lógica territorial de expansão à lógica capitalista dos mercadores e financistas da
Península Itálica, Portugal estruturou, junto da Espanha, o que é interpretado como um
6
ARAÚJO, Ana Cristina, op. cit., pp. 9 – 50, especialmente pp. 11 – 21. Segundo a autora, “[e]xcêntricos
em relação à órbita de influência da ciência experimental, mas não totalmente afastados das grandes linhas
de fractura impostas pelo racionalismo cartesiano, os grandes centros irradiadores da segunda escolástica
peninsular mantêm-se, cautelosamente, à margem das principais disputas que, além-Pirinéus, atravessam
os campos filosófico, literário e científico. Relegados para uma posição periférica, no terreno editorial –
com uma censura apertada que coarcta a expansão do mercado livreiro – e obrigados, no plano doutrinal, a
assumir o papel de receptores defensivos de outras correntes de pensamento, os eruditos portugueses e
castelhanos não escapam, todavia, aos efeitos provocados pelas sucessivas ondas de choque impostas pela
difusão do movimento das Luzes [...]” – Idem, ibidem, pp. 14 – 15.
7
GOLDMAN, Lucien, op. cit., pp. 11 – 68, especialmente pp. 11 – 19; MAXWELL, Kenneth. Marquês de
Pombal: paradoxo do iluminismo..., pp. 6 – 19 e 159 – 177; ARAÚJO, Ana Cristina, op. cit., pp. 13 – 21;
SANTOS, Catarina Madeira. Um governo ‘polido’ para Angola: reconfigurar dispositivos de domínio
(1750 – c. 1800). 2005. 645 p. Tese (Doutorado em História) – Universidade Nova de Lisboa/École des
Hautes Études en Sciences Sociales, Lisboa/Paris, 2005, pp. 24 – 56; BERBEL, Marcia; MARQUESE,
Rafael de B.; PARRON, TÂMIS. Escravidão e política: Brasil e Cuba, c. 1790-1850. São Paulo: Hucitec
& Fapesp, 2010, pp. 11-93; FALCON, Francisco. A Época Pombalina: política econômica e monarquia
ilustrada. 2ª edição. São Paulo: Ática, 1993, p. 205 – 210: Falcon viu uma notável ruptura com o barroco
durante o século XVIII, substanciada, por exemplo, nas ações do grupo que se reunia ao redor do conde da
Ericeira ou na ação dos oratorianos. “[...] Conviria, entretanto, não esquecer o caráter intrinsecamente
eclético de todas as posições filosóficas dos oratorianos, bem como não exagerar o âmbito dos resultados
anteriores a 1746, aproximadamente, pois, ainda aqui, é somente após o golpe do Verdadeiro método que
as posições se definem e as mutações têm lugar”. Cabe referenciar o fato de que as reformas em Portugal
contaram com a ação e ideias de portugueses retornados do estrangeiro, os quais traziam como bagagem
intelectual as ideias ilustradas do restante da Europa. Para esses apontamentos e uma análise crítica da ideia
de estrangeirado em solo português, ver MIRANDA, Tiago C. P. dos R. “‘Estrangeirados’. A questão do
isolacionismo português nos séculos XVII e XVIII”. Revista História, São Paulo, n. 123 – 124, 1990/1991.
69
sistema atlântico ibérico e presenciou, nos seguintes séculos, o desenvolvimento de um
sistema concorrente no noroeste europeu. Assim sendo, no século XVIII, havia dois
sistemas concorrentes e a defasagem existente entre os dois, em prejuízo das antigas
potências ibéricas, requereu ações por parte dos governantes lusos. Nessa ótica, os
Estados ibéricos encontravam-se em uma temporalidade distinta da das potências do
noroeste, exemplificando a “contemporaneidade do não-contemporâneo”. As medidas
postas em prática atingiram todo o império e buscaram superar a defasagem e reforçar o
Estado8.
Para além das mudanças nos discursos e nos planos de reforma, o final do século
XVIII e o início do seguinte, atravessados pelos ideais da Ilustração em seus mais diversos
matizes – como o reformista português –, foram palco de mudanças materiais conjugadas
às transformações mentais. Acompanhando autores como Giovanni Arrighi e Dale
Tomich, supomos uma mudança na economia-mundo europeia do século XVIII por meio
da definição de um ciclo de acumulação britânico, sucedendo ao holandês que perdurou
essencialmente durante o século XVII e boa parte do XVIII. Dessa forma, as mudanças
mentais substanciadas pela Ilustração ocorreram de modo conjugado à industrialização e
urbanização no continente europeu, fatores esses que tomaram força no século seguinte9.
No final do século XVIII e com expressiva força durante o século XIX, a Europa
experenciou um significativo crescimento demográfico, fato esse relacionado ao
crescimento das cidades do continente. O contexto era de evidentes transformações, pois
as indústrias demandavam novas e mais matérias-primas, ao mesmo tempo em que o
crescimento e transformações demográficas na Europa estavam “[...] associados a novos
8
Para as informações do parágrafo e sobre as duas lógicas de expansão e o papel pioneiro atribuído a
Portugal, ver ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio
de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora Unesp, 1996, pp. 111 – 130; para as ideias do parágrafo e a
ideia de sistema atlântico e de contemporaneidade de temporalidades não-contemporâneas na colonização
americana, ver BERBEL, Marcia; MARQUESE, Rafael de B.; PARRON, Tâmis, op. cit., pp. 21 – 93; para
o parágrafo, ver ainda MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo..., pp. 69-94 e
pp. 168 – 171; SANTOS, Catarina Madeira, op. cit., pp. 26 – 27 e 32 – 43: é somente na segunda metade
do século XVIII que Portugal estrutura um governo centralizado, superando uma administração baseada
em soluções casuísticas. Para reforçar o Estado luso, foram redefinidas as estratégias de disciplinamento
social (direito, educação etc.).
9
ARRIGHI, Giovanni, op. cit., pp. 130 – 245; TOMICH, Dale. Through the prism of slavery: labor, capital,
and world economy. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 2004, pp. 56-71, especialmente p. 59;
COCLANIS, Peter. “Global perspectives on the early economic history of South Carolina”. The South
Carolina Historical Magazine, Charleston, v. 106, n. 2/3, 2005, p. 137; SERRÃO, José Vicente. “População
e rede urbana nos séculos XVI-XVIII” in OLIVEIRA, César (dir.). História dos municípios e do poder
local (dos finais da Idade Média à União Europeia). Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, pp. 63-77. Também
ARRUDA, José Jobson de A. “Decadência ou crise do império luso-brasileiro: o novo padrão de
colonização do século XVIII”. Revista USP, São Paulo, n. 46, 2000, passim.
70
padrões de consumo que aumentaram a dependência europeia em relação aos produtores
periféricos de alimentos”10. Tais mudanças balizaram as transformações em Portugal no
período e suscitaram respostas que retroagiram sobre o enquadramento mais amplo.
10
TOMICH, Dale, op. cit., p. 59 (nossa tradução de: “[...] associated with new patterns of consumption that
increased Europe’s dependency on peripheral producers for foodstuffs”); ARRUDA, José Jobson de A.
“Decadência ou crise...”, pp. 76-77; também SERRÃO, José Vicente. “População e rede urbana...”, passim.
11
ARAÚJO, Ana Cristina, op. cit., pp. 23 – 36; MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do
iluminismo..., pp. 10 – 16; MACEDO, Jorge Borges de, op. cit., p. 46. Como destaca Dannylo de Azevedo,
o Estado português, administrado por Pombal, continuou a postar obstáculos ao livre fluir das luzes. A ele
interessava os objetivos práticos das ciências e da razão e não o potencial questionador da razão ao
Absolutismo. Ao mesmo tempo, as elites coloniais buscavam medidas que não colocassem em perigo seus
privilégios e os laços coloniais. Como procuramos demonstrar no início desse capítulo, a ilustração em
Portugal servia aos interesses do Estado absolutista – AZEVEDO, Dannylo de. O Fazendeiro do Brasil:
manuais agrícolas no Brasil colonial em finais do século XVIII. 2018. 315 p. Dissertação (Mestrado em
História Econômica) – FFLCH-USP, São Paulo, 2018, pp. 30 – 39. Francisco Falcon, por seu turno,
argumentou que Portugal, antes do século XVIII, estaria defasado em relação ao restante da Europa,
havendo uma “inércia mental” e “interesses retrógrados”. Portugal, fora dos fluxos de mudança que corriam
a Europa desde o século XV, teria entrado nos Setecentos com “costumes e ideias” defasados – ver
FALCON, Francisco. A Época Pombalina..., pp. 149 – 160, especialmente as pp. 153 – 158.
71
levaram à confecção do Tratado de Madrid. O segundo, por seu turno, escreveu um
famoso texto, seu “Testamento Político”, em que indicava, ao príncipe dom José,
Sebastião José como potencial secretário, o que veio a ser concretizado anos mais tarde 12.
Além disso, e ligadas às questões trabalhadas no próximo capítulo, não se pode
deixar de lembrar que houve tentativas de diversificação agrícola no império português
em fins do século XVII, em um contexto mais amplo de reformas econômicas
patrocinadas, por exemplo, pelo Conde da Ericeira. Isso atestou, mais uma vez, a
existência de experiências anteriores e similares àquelas de fins do Setecentos13.
12
AZEVEDO, João Lúcio de, op. cit., pp. 87 – 115, 132 – 133.
13
Ver HANSON, Carl. Economia e sociedade no Portugal Barroco (1668-1703). Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1986, pp. 179-284.
14
BARRETO, José. “Introdução” in CARVALHO E MELO, Sebastião José de. Escritos econômicos de
Londres (1741-1742). Edição de José Barreto. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1986, pp. VII, XXIII – XXXV
et seq. Segundo Barreto, haveria um caráter programático nos escritos de Carvalho e Melo em Londres –
Idem, Ibidem, p. LVII.
15
BARRETO, José. “Introdução”..., pp. XXIII – XXIV.
16
Idem, Ibidem, pp. XXIII – XXIV.
72
Sem perder a aliança com os ingleses, garantia da segurança portuguesa, Sebastião
indicava a necessidade da emulação das estratégias que garantiram a superioridade
britânica. Desejou “[...] investigar [...] as causas com que Sua Majestade achou logo nos
princípios do seu reinado o comércio de Portugal em tanta decadência, ao mesmo passo
que o de Inglaterra e de outras nações tiveram um desmedido aumento [...]”. Em seus
escritos do período, diversas ideias foram apresentadas e podem ser vistos alguns tópicos
que mais tarde tomariam a sua atenção. A necessidade de reformas imperiais já estava
presente na mente do enviado17 e a Inglaterra aparecia como um modelo das decisões a
serem tomadas.
Em uma carta remetida de Londres a Marco António de Azevedo Coutinho, em
janeiro de 1741, Sebastião José atestava, de acordo com seu ponto de vista, que os
ingleses abusavam das convenções estabelecidas, infringindo os direitos de Portugal. Os
males da relação, indícios de problemas para o reino luso, não vinham da letra dos
tratados, mas dos abusos cometidos pelos parceiros comerciais do noroeste europeu.
Segundo o enviado português, era preciso forçar os ingleses a andarem na linha dos
tratados, o que traria ganhos para os portugueses. O problema seria convencer os aliados
disso, os quais tinham em mente que a dependência lusa facilitava os abusos. Afinal de
contas, eles nutriam “[...] ideias de que Portugal tem o seu único refúgio em Inglaterra e
de que, sem esta, nem pode ter segurança no continente nem conservar a América”.
Enquanto Portugal não pudesse tomar medidas mais duras contra as infrações, Sebastião
José concluiu que o melhor seria tolerar os abusos ingleses e não encontrar outros piores,
surgidos de decisões mal pensadas. Quando a situação permitisse, Portugal poderia
requerer o respeito aos tratados e a retratação dos abusos18.
Portanto, Sebastião José via problemas comerciais que afetavam o império
português. A solução não seria fácil, mas algo deveria ser feito. As ideias postas no papel
poderiam ser o início de uma mudança19.
17
BARRETO, José. “Introdução”..., pp. XXXV – XXXVI e XLIX – L. Também CARVALHO E MELO,
Sebastião José de. “Carta ao cardeal da Mota em 19 de fevereiro de 1742”, in Escritos econômicos de
Londres (1741-1742). Edição de José Barreto. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1986, p. 158.
18
CARVALHO E MELO, Sebastião José de. “Carta de ofício a Marco António de Azevedo Coutinho em
2 de janeiro de 1741 (extracto)” in Escritos econômicos de Londres (1741-1742). Edição de José Barreto.
Lisboa: Biblioteca Nacional, 1986, pp. 3 – 32. Azevedo Coutinho foi o anterior enviado extraordinário em
Londres; foi substituído por Sebastião José e depois foi alçado ao cargo de secretário de Estado – ver
BARRETO, José. “Introdução”..., p. VII.
19
Contudo, mesmo preferindo certo imobilismo nas respostas frente aos ingleses, Sebastião apontou uma
pequena medida ao governo português. Os ingleses utilizavam portugueses, com passaportes expedidos
pelo governo luso, como testas-de-ferro no comércio entre Portugal e Inglaterra. Afinal, eram os ingleses
73
Tais ideias ficam mais claras em um documento posterior, a conhecida “Relação
dos gravames”. Para além de reforçar aqueles argumentos e demonstrar possíveis
resoluções dos problemas, quais são as demais ideias aí contidas referentes à economia
imperial? Primeiramente, devemos destacar a enumeração das ditas máximas do
comércio inglês, algo feito para demonstrar o sucesso da aliada, mas, possivelmente, com
o objetivo de iluminar o que poderia ser emulado. Uma das máximas era a da preferência
por “mercadorias grosseiras e volumosas” sobre artigos “finos e preciosos”, algo feito
pelos ingleses em seu comércio de tabaco, trigo e inclusive de arroz. Menos valiosos e
com maior volume, demandariam mais pessoas em seu comércio, enriquecendo o país.
Isso seria complementado pela quinta máxima: “[...] toda a nação deve procurar [...]
receber os gêneros alheios em materiais indigestos e crus e transportar os próprios para
os introduzir nos domínios estranhos depois de serem digeridos e beneficiados pelas
manufaturas [...]”. Ademais, o comércio mais vantajoso para as metrópoles seria o de suas
colônias, fazendo com que as riquezas não fossem perdidas no estrangeiro. Para isso, os
artigos naturais das colônias, ou outros que beneficiassem o império, mereceriam atenção.
Afinal de contas, ao procurar entender as infrações cometidas pelos ingleses, o enviado
argumentou que era20
[...] indispensável referir desde Londres o que está sucedendo em Lisboa e todo
Portugal. Pois que nesta matéria o mesmo que aí seria mais dificultoso ao
exame direto, se acha aqui sem outro merecimento que o da paciência em
acumular as notícias que os casos do tempo trazem por reflexão a esta
distância, onde param as vistas do comércio da Europa inteira21.
Tais eram as ideias do enviado, dicas do que seu país deveria seguir para atenuar
os abusos ingleses sobre o comércio luso. Todavia, a descrição das violações era também
uma maneira de demonstrar o êxito que deveria servir como padrão. Com muito sentido,
buscava-se emular as estratégias da região onde estavam “[...] as vistas do comércio da
que ganhavam nesse negócio. Sebastião defendeu que os passaportes deveriam ser concedidos somente a
portugueses “[...] notoriamente abonados e incapazes de ser testas de ferro [...]”. Ver CARVALHO E
MELO, Sebastião José de. “Carta de ofício a Marco António de Azevedo Coutinho em 8 de julho de 1741”
in Escritos econômicos de Londres (1741-1742). Edição de José Barreto. Lisboa: Biblioteca Nacional,
1986, pp. 113 – 118; sobre o imobilismo, ver o parágrafo anterior.
20
CARVALHO E MELO, Sebastião José de. “Rellação dos gravames que ao comercio e vassallos de
Portugal se tem inferido e estão actualmente inferindo por Inglaterra, com as infracções que dos pactos
reciprocos se tem feito por este segundo reyno assim nos actos de parlamento que publicou como nos
costumes que stableceo e nos outros diverços meyos de que se servio para fraudar os tratados do comercio
entre as duas nações” in Escritos econômicos de Londres (1741-1742). Edição de José Barreto. Lisboa:
Biblioteca Nacional, 1986, pp. 36 – 43, 75.
21
Idem, Ibidem, p. 95
74
Europa inteira”, sinal de sucesso mercantil. Por outro lado, e de modo particular para
nossos propósitos, vemos que o arroz, volumoso e pouco fino, se encaixava em muitas
das prescrições elencadas por Sebastião José. Cultivado em terras portuguesas no Novo
Mundo, seria utilizado para alimentar a população metropolitana, sem a necessidade de
importações estrangeiras22.
Tais considerações ficaram claras na carta de Sebastião José ao cardeal da Mota,
datada de fevereiro de 1742. Nela, ao apresentar um inglês chamado Cleland e seu plano
comercial para Portugal, ficaram atestados certos eixos da argumentação do enviado.
Discorrendo sobre o comércio asiático, Portugal deveria emular os “[...] mesmos meios
de que se servem os outros Estados a quem é tão útil o comércio da Índia [...]”, mas, para
que houvesse sucesso, seria necessária a articulação entre os planos governamentais e a
prática dos mercadores. Quais seriam, então, algumas das estratégias a serem emuladas
de países como Dinamarca, Suécia, França, Holanda e Inglaterra? A busca no estrangeiro
e o emprego em Portugal de pessoas com experiência e conhecimento mercantil, aliada
ao estímulo do estudo de tais questões no reino. As ideias deveriam ser apresentadas de
modo simples aos mercadores, instigando-os a bem desempenhar suas funções23:
[...] Todas as nações da Europa se aumentaram e aumentam ainda hoje pela
recíproca imitação. Cada uma vigia cuidadosamente sobre as ações que obram
as outras. Assim fazem todas própria, mediante a informação dos seus
ministros, a utilidade dos inventos alheios. Por isso refiro a V. Imm.ª os
descobrimentos particulares que desta parte se tem feito no método da
administração e manejo do comércio marítimo [...]24.
Por meio de estratégias antes utilizadas por britânicos e franceses para superar os
holandeses, Sebastião José visava a compressão da defasagem entre seu país e as
potências do noroeste europeu. Uma boa estratégia seria a emulação do que criou o
sucesso do sistema concorrente, “[...] com vistas à aceleração do tempo histórico”. O
impacto dessas diretrizes nos planos reformistas lusos, para além do espaço asiático,
poderá ser visto e discutido no decorrer das próximas páginas. Desde já, notamos como a
emulação pôde envolver práticas comerciais e produtivas, como a cópia e tradução de
escritos alheios. No fim das costas, no correr de alguns anos, Sebastião José deixou de
ser o enviado a Londres e se tornou o poderoso ministro que conhecemos. As reformas,
22
CARVALHO E MELO, Sebastião José de. “Rellação dos gravames...”, p. 95.
23
CARVALHO E MELO, Sebastião José de. “Carta ao cardeal da Mota...”, pp. 133 – 161.
24
Idem, Ibidem, p. 158.
75
então, foram postas em prática e as mudanças na organização econômica e no pensamento
sobre o assunto foram estabelecidas25.
As mudanças na administração imperial portuguesa, pensadas para sanar os novos
problemas, tomaram forma dentro de um programa de governo bem delimitado a partir
da segunda metade do século XVIII26. As reformas ganharam corpo e se inseriram no
contexto acima delineado. Tal fase teve início formal com a ascensão de Sebastião José,
o futuro conde de Oeiras e marquês de Pombal, à posição ministerial em 1750. Apesar de
não demarcar um choque absoluto em relação ao período anterior, Sebastião José deixou
traços distintos em seu período no governo, respondendo a problemas particulares de sua
época27.
Escolhido pelo rei dom José I para ocupar, inicialmente, a Secretaria de Estado
da Guerra e dos Negócios Externos, Pombal assumiu a Secretaria dos Negócios do Reino
no ano de 1756, algum tempo após o terremoto e tsunami que devastaram Lisboa.
Auxiliado pelos demais secretários e membros do governo, Sebastião José empreendeu
reformas nos mais variados âmbitos da administração imperial, desde a remodelação do
sistema educacional, substanciada na reforma da Universidade de Coimbra, até o início
das propostas de diversificação agrícola imperial. Como um dos eixos estruturadores
25
BERBEL, Marcia; MARQUESE, Rafael de B.; PARRON, Tâmis, op. cit., pp. 5 – 93, especialmente pp.
45 – 46 e 76 – 85.
26
A ideia não é a de um programa de governo sem contradição e cuja autoria coube somente a Pombal.
Defendemos que havia um projeto bem esboçado, envolvendo centralização política e uma visão abrangente
da administração imperial, que procurou posicionar de melhor forma Portugal no concerto mundial. Um
programa que reforçou as ideias reformistas. Ver MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do
iluminismo..., pp. 168 – 171 e pp. 119-139; SANTOS, Catarina M., op. cit., pp. 27, 32 – 38, 44 e 52 – 53;
ARRUDA, José Jobson de A. “Decadência ou crise...”, passim; também MOREIRA, António.
“Desenvolvimento industrial e atraso tecnológico em Portugal na segunda metade do século XVIII” in
SANTOS, Maria Helena C. dos. (coord.). Pombal revisitado: comunicações ao colóquio internacional
organizado pela comissão das comemorações do 2º centenário da morte do Marquês de Pombal. Lisboa:
Editorial Estampa, 1984, pp. 18 e 55.
27
MACEDO, Jorge Borges de, op. cit., passim, especialmente as pp. 16 – 17 e 46 – 63; MAXWELL,
Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo..., pp. 168 – 177 e pp. 119-139; AZEVEDO,
Dannylo de, op. cit., p. 39; talvez, uma explicação para as constantes disputas quanto à novidade assinalada
por Pombal se deva ao fato de ele ter, segundo Maxwell, feito reformas “disfarçadas”, novidades com
linguagem anterior – MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo..., pp 9 – 10 e
61. Para uma interpretação contrária a essa, ver MAGALHÃES, Joaquim Romero. “Sebastião José de
Carvalho e Melo e a economia do Brasil”, in Labirintos brasileiros. São Paulo: Alameda, 2011, pp. 173 –
198: para o autor, a política pombalina não foi “homogênea” nem “coerente”. Teria havido, na verdade,
respostas às conjunturas e eventos e não um projeto sistemático e bem orientado. Ademais, diz que não
houve muita preocupação de Pombal pela economia brasileira e que ele não pôde controlar os demais
membros do governo, cuja autonomia Magalhães frisa em seu texto. As ações de Pombal foram,
essencialmente, pragmáticas. Aparentemente, tais considerações de Magalhães se assemelham muito às de
Jorge Borges de Macedo. Para esse segundo autor, não foi criado um plano pombalino, mas repostas do
governo à situação prevalecente à época, medidas tomadas para enfrentar a crise existente – ver MACEDO,
Jorge Borges de, op. cit., passim.
76
dessas medidas, havia a necessidade de compensar a suposta superioridade das demais
nações, como a Grã-Bretanha. Seu objetivo foi, de modo sumário, aumentar o poder do
Estado por meio, por exemplo, de práticas mercantilistas, ao mesmo tempo em que tornou
monopólio estatal a coerção e a imposição de impostos. Os ideais ilustrados estiveram
presentes, ligados essencialmente ao fortalecimento do Estado frente às potências do
norte. Como argumenta Kenneth Maxwell, Pombal, ainda em Londres, procurou
compreender a superioridade britânica e, consequentemente, a debilidade generalizada de
Portugal face à aliada do norte, algo que pudemos confirmar na análise da
correspondência de Sebastião José durante sua estada em Londres. Enfim, defasado e com
pouco peso no concerto europeu, Portugal dependeu de seu império para defender sua
posição28.
As reformas empreendidas pela governação pombalina foram amplas e estavam
baseadas em uma nova visão sobre o conjunto imperial. Pombal empreendeu reformas
fiscais, militares, educativas e econômicas, buscando incrementar o poder estatal. Fez
alterações na cobrança de impostos, criou o Erário Régio e uma burocracia atrelada às
suas visões, enfrentou a ordem jesuíta e sua subordinação a Roma, incentivou a
diversificação agrícola, a reorganização urbana da colônia e o desenvolvimento de
manufaturas. Segundo Maxwell, o secretário objetivou tornar o império lucrativo,
aproximando, assim, “[...] os interesses dos empresários portugueses e os do império”.
Buscou tornar os comerciantes lusos aptos à competição com os estrangeiros. As reformas
foram coerentes e combinadas em um plano abrangente, pretendendo uma “exploração
racional das colônias”, criando uma espécie de reforma total. Dentre todas essas medidas,
28
Ver MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo..., passim, especialmente as
pp. 4-7. Ademais, relativizando o tantas vezes descrito abismo criado pela administração pombalina em
relação ao período anterior, Maxwell se refere ao fato de que Sebastião José serviu como diplomata em
Londres e Viena durante o reinado de dom João V, período no qual pôde aquilatar experiências e leituras
que mais tarde guiariam sua governação – Idem, Ibidem, pp. 1 – 10. Ainda sobre Pombal, ver
MAGALHÃES, Joaquim Romero, op. cit., passim. Acerca da visão sobre a Inglaterra e os ingleses em
Portugal, ver OLIVEIRA, Luiz Eduardo. “A Inglaterra como vilã: Sebastião José de Carvalho e Melo e o
discurso da anglofobia”. Revista Letras com Vida – literatura, cultura e arte, Lisboa, v. 5, 2012. Pombal,
segundo Maxwell, não era anti-inglês, mas apenas buscou defender os interesses dos mercadores
portugueses – MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo..., pp. 51-68
(especialmente as pp. 63-64) ou ainda MACEDO, Jorge Borges de, op. cit., cap. 3. A questão da
dependência em relação aos britânicos merece uma última nota. Como bem diz Tiago Miranda, durante os
séculos XVII e XVIII, a “dependência” estava relacionada a algo visto como “útil” pelos Estados. Dito de
outra forma, “[...] a força de um Estado media-se pelas alianças [...] e pela posição que ocupava no equilíbrio
europeu”. A partir dessa ideia, deve-se focalizar as escolhas da aliança inglesa, bem como a tentativa de
manter uma instável neutralidade nas relações diplomáticas lusas – ver MIRANDA, Tiago C. P. dos R., op.
cit., p. 57; NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial, 1777-1808. 9ª
edição. São Paulo: Hucitec, 2011, pp. 17 – 56.
77
todavia, as que mais nos interessam são as reformas econômicas imperiais, cujos
resultados foram relevantes29.
Portugal foi, durante boa parte do século XVIII, dependente de cereal importado
e isso tinha reflexos sobre a balança comercial com as nações estrangeiras. A criação de
companhias privilegiadas, a título de exemplo, buscou auxiliar na reversão desse cenário
com a diversificação da produção, até então centrada no açúcar e tabaco. Ao mesmo
tempo em que esses dois produtos foram alvos de medidas de recuperação, diversos
outros, como anil, algodão e arroz, tiveram sua produção incentivada. Tais propostas
visaram transformar o espaço de Portugal no comércio mundial, baseando-se na ação
direta do Estado no comércio e na produção imperial. No final das contas, visou proteger
“[...] o comércio mutuamente vantajoso – o vinho do Porto, por exemplo – mas também
aspirava a desenvolver uma poderosa classe nacional de homens de negócios [...] [aptos
a] desafiar seus concorrentes estrangeiros [...]” 30.
Na porção americana do império, buscou-se diversificar a produção, para assim
atender às novas exigências da época. Manufaturas, incentivadas na metrópole,
necessitavam de matérias-primas, a crescente população ansiava por alimentos em
volume maior e era necessário depender menos das importações vindas do estrangeiro. A
diversificação, iniciada nesse período pombalino, surtiu efeitos, como será visto adiante,
pois a pauta de exportações foi ampliada em fins do século XVIII: algodão, arroz, café,
cacau foram incentivados e despachados à metrópole, obtendo êxito em graus diversos 31.
29
ARRUDA, José Jobson de A. “Decadência ou crise...”, passim; MAXWELL, Kenneth. Marquês de
Pombal: paradoxo do iluminismo..., passim, especialmente as pp. 55, 61 e 94; MACEDO, Jorge Borges de,
op. cit., passim; para Fernando Tomaz, houve uma reforma administrativa-financeira; tal “[...] reforma –
que se traduziu, de imediato, na criação de um Tesouro Geral e na reorganização do Conselho da Fazenda
– teve por finalidade instituir um sistema de centralização das receitas e das despesas do Estado, dotando,
deste modo, o poder central de um instrumento de controle eficaz das finanças públicas [...]”. Contribuiu,
afinal, para o fortalecimento do poder régio. Esse autor mostra como certas medidas, mesmo previstas em
lei, não puderam ser efetivadas, demonstrando algumas deficiências das reformas – ver TOMAZ, Fernando.
“As finanças do Estado pombalino – 1762-1776”, in Estudos em homenagem a Vitorino Magalhães
Godinho. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1988, pp. 355 – 388. Sobre a urbanização promovida no
período pombalino, com foco na capitania de São Paulo, ver BACELLAR, Carlos de A. P. “As famílias de
povoadores em áreas de fronteira da capitania de São Paulo na segunda metade do século XVIII”. Revista
Brasileira de Estudos de População, Belo Horizonte, v. 34, n. 3, 2017.
30
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo..., passim, principalmente as pp.
43, 133-134 e 170; AZEVEDO, Dannylo de, op. cit., pp. 115 – 134 e 145 – 157; BERBEL, Marcia;
MARQUESE, Rafael de B.; PARRON, Tâmis, op. cit.¸pp. 81-82; FERLINI, Vera Lucia A. “Uma capitania
dos novos tempos: economia, sociedade e política na São Paulo restaurada (1765 – 1822)”. Anais do Museu
Paulista, São Paulo, v. 17, n. 2, 2009, pp. 238 – 239. Ver também as notas 7, 8 e 9 do primeiro capítulo e
os parágrafos a que se referem.
31
FERLINI, Vera Lucia A., op. cit., pp. 238 – 239; MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo
do iluminismo..., pp. 51-177, especialmente as pp. 119-158; MOREIRA, António. “Desenvolvimento
78
É nesse contexto de mudanças mentais da Ilustração europeia, atreladas às
transformações materiais do ciclo de acumulação britânico, em que compreendemos as
reformas ilustradas ocorridas no final do século XVIII e as transformações na forma de
ver a configuração econômica do império. Dentro de tal contexto reformista, o processo
de diversificação agrícola ganhou relevo. Alimentos como o arroz encontraram novo
espaço e, produzidos nas colônias, foram enviados à metrópole32.
Um vislumbre das mudanças trazidas pelas reformas ilustradas pombalinas pode
ser encontrado nas famosas “Observações secretíssimas” do marquês de Pombal, escritas
após a inauguração de uma estátua em homenagem a dom José I em 1775. Nelas,
Sebastião José, de modo pouco surpreendente para a ocasião, cantou as glórias do reinado
de seu rei. Apontou diversos indícios das boas mudanças que haviam ocorrido, como o
desenvolvimento nas artes e na educação do povo. No que mais nos interessa, asseverou
que Portugal já não dependia de algumas manufaturas do estrangeiro e elencou diversos
produtos coloniais e do reino que enriqueciam o império: diamantes, açúcar, tabaco,
couros, sal, vinho, frutas, pau-brasil e produtos asiáticos. Sinal da diversificação da
produção colonial, todavia, atestou-se a produção de “[...] cacau, café, arroz, algodão,
gengibre, cravo grosso e fino, urucum e outros muitos gêneros do Pará e Maranhão [...]”
e isso na década de 1770, antes dos escritos reformistas dedicados à agricultura. Afinal
de contas, com tais riquezas da América e da Ásia, o Portugal de dom José, nas palavras
de seu ministro, tinha o “[...] comércio externo mais feliz e opulento do que o foi naquele
feliz dos senhores reis D. Manuel e D. João III [...]”. Se havia a necessidade de adequar
a situação portuguesa, contando com a experiência de outras potências europeias,
Sebastião Jose visou acelerar as soluções ao mesmo tempo em que fez reminiscências a
uma experiência anterior, quando os ibéricos se viam como atores historicamente
avançados. Todas essas considerações tecidas pelos atores de então denotam a
constituição, nas palavras de Koselleck, de um espaço de experiência atrelado a um
horizonte de expectativas: via-se a realidade passada de Portugal e a realidade presente
dos entes políticos do noroeste europeu, pensava-se na recomposição futura da monarquia
industrial e atraso...”, p. 55; AZEVEDO, Dannylo de, op. cit., p. 183; ARRUDA, José Jobson de A.
“Decadência ou crise...”, p. 69; ARRUDA, José Jobson de A. O Brasil no comércio colonial. São Paulo:
Editora Ática, 1980, pp. 351 – 354.
32
Sobre o ciclo de acumulação britânico, ver a nota 9 deste capítulo. Para as demais informações, ler a nota
do parágrafo anterior.
79
lusa em novos moldes por meio de mudanças na organização e no pensamento sobre a
economia33.
Se antes, enquanto em Londres, Pombal vira a necessidade de emular os sucessos
alheios, quase quarenta anos mais tarde, chegou a dizer que os estrangeiros deveriam
emular os sucessos lusos. Nada de inesperado em um escrito que, segundo o próprio
Pombal, foi lido pelo monarca. Sabemos, todavia, que as reformas continuaram após
Pombal, com novos atores e novas medidas. Ainda havia trabalho a ser feito. Portanto,
Pombal utilizou estratégias mercantilistas para iniciar esse movimento reformista, mas
não deve ser descrito como um mercantilista rígido. Por um lado, apostou na constituição
de companhias monopolistas, mas, por outro, objetava à suposta riqueza das minas de
metais preciosos, defendendo outras origens para o engrandecimento do império34.
Antes de continuarmos a análise das transformações na economia imperial após
Pombal, cabe frisar o fato de que as reformas ilustradas em Portugal não se encerraram
com a queda de Sebastião em 1777, ano em que dom José I faleceu e dona Maria I assumiu
o trono. Apesar de alguns estudiosos destacarem uma suposta “viradeira” no novo
reinado, espécie de negação às medidas pombalinas, houve continuidade das medidas
reformistas no que respeita a nossa análise. Atores como dom Rodrigo de Sousa Coutinho,
bem como outros ilustrados, levaram adiante as propostas reformistas e as teorizações
sobre a economia35.
33
CARVALHO E MELO, Sebastião José de. “Observações secretissimas do Marquez de Pombal sobre a
collocação da Estatua Equestre de Sua Magestade o Senhor D. José I” in Gabinete histórico que a Sua
Magestade Fidelissima o Senhor Rei D. Miguel I em o dia dos seus felicissimos anos 23 de outubro de 1831
offerece Fr. Claudio da Conceição, Ex-definidor, examinador synodal do Patriarchado de Lisboa,
Prégador Regio, Chronista, e Padre da Provincia de Sancta Maria d’Arrabida, e Chronista do Reino.
Tomo XVII. Lisboa: Impressão Regia, 1831, passim. Para o argumento sobre as temporalidades, consultar
BERBEL, Marcia; MARQUESE, Rafael de B.; PARRON, Tâmis, op. cit., pp. 11-93; e KOSELLECK,
Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto/Editora PUC-Rio, 2006, pp. 305-327.
34
Ver CARVALHO E MELO, Sebastião José de. “Observações secretissimas...”, passim, especialmente
as pp. 321-322 e 331-332; ARRUDA, José Jobson de A. “Decadência ou crise...”, p. 69; BERBEL, Marcia;
MARQUESE, Rafael de B.; PARRON, Tâmis, op. cit., pp. 80-81. Para análises críticas sobre o
mercantilismo, ver SUPRINYAK, Carlos Eduardo. “Moeda, tesouro e riqueza: uma anatomia conceitual
do mercantilismo britânico do início do século XVII”. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 39, n. 3, 2009;
também DEYON, Pierre. O mercantilismo. São Paulo: Perspectiva, 2009.
35
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo..., pp. 159-177; NOVAIS,
Fernando. Portugal e Brasil na crise..., pp. 224 – 298; para outro autor que enxergou continuidades das
ações pombalinas no reinado de dona Maria I, ver BOXER, Charles R. O império marítimo português:
1415 – 1825. São Paulo: Companhias das Letras, 2002, pp. 208 – 209.
80
2.2. Os planos reformistas pós-pombalinos
36
HOLANDA, Sérgio B. de. “Apresentação” in COUTINHO, José Joaquim da C. de A. Obras econômicas
de J. J. da Cunha Azeredo Coutinho. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966, pp. 13 – 26. Para mais
informações sobre a biografia do bispo ilustrado, ver CANTARINO, Nelson M. A razão e a ordem: o bispo
José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho e a defesa ilustrada do Antigo Regime português (1742-
1821). São Paulo: Alameda, 2015, especialmente as pp. 23-64.
37
Ver CARDOSO, José Luís; CUNHA, Alexandre M. “Discurso econômico e política colonial no Império
Luso-Brasileiro (1750-1808)”. Tempo, Niterói, v. 17, n. 31, 2011, passim; também CASTRO, Armando.
“Introdução” in Economia Política feita em 1795 por M.J.R. Introdução e direção de edição de Armando
Castro. Lisboa: Banco de Portugal, 1992, p. xiv; também MARQUESE, Rafael de B. Administração &
Escravidão: ideias sobre a gestão da agricultura escravista brasileira. São Paulo: Hucitec, 1999, cap. II;
AZEVEDO, Dannylo de, op. cit., pp. 104-105.
81
que conhecia do Império português, com vistas a indicar soluções que pudessem sanar o
desprezo das demais nações. Para Azeredo Coutinho haveria uma estreita união entre
agricultura, navegação e indústria, cada qual dependendo e reforçando a outra, e cujos
frutos seriam essenciais na competição com as demais nações. Nessa disputa, afinal, uma
estratégia seria a imitação de ações que se mostraram proveitosas e que poderiam “servir
de regra”. Suas análises e soluções devem ser compreendidas tendo em vista tal visão da
economia imperial38.
Para Azeredo Coutinho, a união útil e bem feita entre os diversos ramos da
economia traria bons resultados para o império. Um ótimo exemplo é dado no plano de
construção de navios na colônia: com trabalhadores e materiais de construção em
abundância, as naves sairiam “[...] por um preço mais cômodo; os fretes ser[iam] mais
baratos, os gêneros das colônias se dar[iam] na metrópole o melhor mercado e com
preferência aos dos estrangeiros que conosco quiserem concorrer”. Vemos a articulação
entre comércio e agricultura, e como, no caso da última, o arroz se encaixava muito bem
nas considerações do bispo. Sua produção na América portuguesa e o envio à metrópole
auxiliariam na substituição das importações. E isso, segundo o autor, a partir da simples
competição no mercado, sem proteções e preferências dadas pelo Estado39.
Nesse escrito, notamos a influência da incipiente economia política. Uma nova
perspectiva sobre os ramos da economia imperial veio à tona. Agricultura, comércio e
indústrias gerariam lucros para Portugal, já não somente baseados na posse das terras,
vistas certas vezes como as únicas geradoras de riquezas. Ao mesmo tempo, todavia,
Coutinho englobou outras ideias em seu escrito. Se pareceu defender um comércio mais
livre, criticando monopólios, ele não deixou de citar o papel estatal40.
38
HOLANDA, Sérgio B. de. “Apresentação”..., p. 30; COUTINHO, José Joaquim da C. de A. “Ensaio
economico sobre o commercio de Portugal e suas colonias offerecido ao serenissimo principe da Beira o
senhor D. Pedro, e publicado de ordem da Academia Real das Sciencias pelo seu socio D. José Joaquim da
Cunha de Azeredo Coutinho, bispo em outro tempo de Pernambuco, depois eleito de Bragança, e Miranda,
e actualmente bispo d’Elvas, do conselho de sua alteza real etc. Segunda edição corrigida, e accrescentada
pelo mesmo auctor” in Obras econômicas de J. J. da Cunha Azeredo Coutinho. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1966, pp. 63, 68 – 88.
39
COUTINHO, José Joaquim da C. de A. “Ensaio economico sobre o commercio de Portugal e suas
colonias”..., p. 124. Também CANTARINO, Nelson M., op. cit., p. 115.
40
COUTINHO, José Joaquim da C. de A. “Ensaio economico sobre o commercio de Portugal e suas
colonias”..., pp. 75 – 84, 142 – 143. Ver TOMICH, Dale. “A riqueza do império: Francisco Arango y
Parreño, Economia Política e a Segunda Escravidão em Cuba”. Revista de História, São Paulo, n. 149,
2003, pp. 17 – 20.
82
Coutinho sabia e descreveu a importância dos auxílios do governo. Citando
Bielfeld, o bispo aparentemente concordou com a ideia de que gratificações ou isenções
deveriam ser instrumentos no auxílio da produção nacional. Dessa forma, evitar-se-iam
grandes prejuízos, “[...] um pela ruína do gênero da nação, outro pelo dinheiro que nos
leva o estrangeiro a troco do seu [...]”. Na parte final do primeiro capítulo dessa sua obra,
o autor, em uma nota, revelou o pensamento que seguia. Gratificações, dadas pelo
governo, seriam úteis e necessárias até o momento em que a produção agraciada já não
precisasse delas. Tal argumentação foi reforçada em outra obra, a “Memória sobre o preço
do açúcar”, de 1791. Ao novamente criticar os monopólios e a fixação na mineração, o
bispo defendeu que “[o] meio de promover e adiantar a indústria da nação é deixar a cada
um a liberdade de tirar um maior interesse do seu trabalho: os ingleses e os holandeses,
primeiros mestres da arte do comércio, têm dado a todos estas lições”. Ao mesmo tempo
argumentou que, no caso particular do cultivo da canela na América portuguesa, havia
necessidade de “socorro superior”, substanciado na forma de menores direitos
alfandegários e proibição de importações estrangeiras41.
Compreendemos essas mudanças, como afirma Marquese, ao vermos o Estado,
dentro do âmbito da economia política, não como ator econômico primordial, mas um
tanto secundário. Os indivíduos, e seus interesses, necessitariam de ser livres, e o Estado,
menos invasivo. A ele caberia “[...] o papel de corpo coordenador dos esforços diversos
dos indivíduos que operavam no mercado [...]”. A argumentação do bispo Azeredo
Coutinho não se distanciava dessas premissas, defendendo, segundo Buarque de Holanda,
uma harmonia entre os indivíduos e a sociedade, relacionada à união entre os diversos
41
COUTINHO, José Joaquim da C. de A. “Ensaio economico sobre o commercio de Portugal e suas
colonias”..., pp. 134 – 137. Na parte III, capítulo I, parágrafo IX, o bispo defendeu que as indústrias “de
primeira necessidade” em Portugal deveriam receber auxílio estatal: “[...] rebaixar-lhes os direitos quanto
for possível, para no curso dos vendedores dar a preferência ao fabricante da nação”. Portugal não deveria
proibir as indústrias de luxo, mas deixar de estimulá-las. Citando Bielfeld, todavia, o bispo sabia do erro de
querer substituir todas as importações e da correlata necessidade de comprar algo do estrangeiro. Afinal,
“[...] um homem não negocia com outro, ou não lhe compra um traste, sem que ele lhe compre ou lhe tome
outro em desconto [...]”. Idem, Ibidem, pp. 159 – 162. Ver também COUTINHO, José Joaquim da C. de A.
“Memória sobre o preço do açúcar” in Obras econômicas de J. J. da Cunha Azeredo Coutinho. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1966, pp. 180, 182 – 185. Para mais críticas à mineração e outras ideias do
bispo ilustrado, ver COUTINHO, José Joaquim da C. de A. “Discurso sobre o estado atual das minas do
Brasil...” in Obras econômicas de J. J. da Cunha Azeredo Coutinho. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1966, pp. 187 – 229. Aliás, a argumentação de Azeredo Coutinho sobre a necessidade de também
comprar algo dos estrangeiros pode ser aproximada às ideias de Thomas Mun, desenvolvidas mais de um
século antes – ver SUPRINYAK, Carlos Eduardo. “Moeda, tesouro e riqueza...”, especialmente a p. 578.
83
ramos da economia42. Aparentemente, todavia, o Estado, para Azeredo Coutinho, é mais
do que apenas um coordenador, pois suas ações também tinham relevância para a
dinamização da economia. Talvez, um modo de interpretar essa peculiar posição do
aparelho estatal em Portugal esteja na suposição de que o Estado deveria auxiliar na
dinamização inicial da economia imperial, sem, entretanto, colocar entraves à ação dos
indivíduos.
No que tange à reforma agrícola, Coutinho argumentou que as terras portuguesas
na América seriam capazes de sustentar o cultivo de plantas oriundas de diversas partes
do globo, algo comprovado pela experiência. Mas não somente gêneros tropicais ou
exóticos foram incentivados. Para o bispo, mesmo sendo cultivado na Europa, o trigo
mereceria atenção em terras americanas. Afinal de contas, como sinal da estreita ligação
entre comércio e agricultura, a maior quantidade de trigo resultaria na autossuficiência
cerealífera, mas também em vendas para o exterior, a um preço menor do que o dos
concorrentes. Coutinho viu a relação entre metrópole e colônia com novos traços43:
A metrópole e as colônias, principalmente a respeito da agricultura e de tudo o
que é produção da terra, se deve considerar como um só prédio de um
agricultor, cujo fim é conservar a sua casa em abundância e ter um grande
supérfluo para vender aos estranhos. Ao possuidor de muitas quintas não
importa, nem deve importar, que esta ou aquela lhe renda mais: só, sim, que
todas lhe rendam muito44.
42
MARQUESE, Rafael de B. Administração & Escravidão..., passim, especialmente as pp. 140 – 150;
HOLANDA, Sérgio B. de. “Apresentação”..., pp. 30-31. Ver também CANTARINO, Nelson M., op. cit.,
pp. 89 e 244.
43
COUTINHO, José Joaquim da C. de A. “Ensaio economico sobre o commercio de Portugal e suas
colonias”..., pp. 142 e 152 – 153.
44
Idem, Ibidem, p. 153.
84
das possessões coloniais lusas, algo esperado de um membro destacado da monarquia
portuguesa45.
Azeredo Coutinho buscou defender a realidade com a qual concordava, enquanto
filho da elite colonial, membro destacado da Igreja Católica e elemento da intelligentsia
ilustrada luso-americana. Em um momento de tensões na realidade política europeia
(revoluções) e de desafios às ideias econômicas e sociais então prevalecentes, o bispo
usou de diversas ideias, certas vezes contraditórias, para defender seus pontos de vista.
Como apontou Nelson Cantarino, podemos identificar em seus textos influências dos
“salmantinos” dos séculos XVI e XVII, de ideias nascentes da Economia Política, da
definição de riqueza construída por Montesquieu e, em diminuta escala, do cameralismo
germânico. Azeredo acreditava, nas palavras do historiador, que “[...] a prosperidade
econômica é fundamental para a manutenção dos Estados, sendo esta última o seu
principal objetivo” 46. Como o mesmo autor concluiu, o bispo desejou
“[...] controlar essas mudanças, mantendo a ordem estabelecida. Não podemos
rotular Azeredo como um reacionário empedernido. Assim, se suas convicções
o levaram a defender uma sociedade excludente [...], seus métodos, por outro
lado, sempre foram ilustrados: o debate na esfera pública e a busca pelo
convencimento de seus opositores”47.
45
COUTINHO, José Joaquim da C. de A. “Ensaio economico sobre o commercio de Portugal e suas
colonias”..., pp. 154 – 156. Também CANTARINO, Nelson M., op. cit., p. 78. Segundo Cantarino, para o
bispo “[...] o exclusivo comercial não é sinônimo de monopólio [...]”; “[...] O exclusivo era uma rede de
reciprocidades que unia e dava coerência a todas as partes da Monarquia [...] – para essas citações e a
continuação do argumento ver CANTARINO, Nelson M., op. cit., pp. 107-129.
46
Ver CANTARINO, Nelson M., op. cit., passim, principalmente as pp. 16-19, 31-64, 77-107, 121-138,
154, 158, 166, 182, 199-209, 226-231 e 241-246.
47
Idem, Ibidem, p. 246.
85
vendas, possibilitando melhores preços. Nessa disputa com outras nações, segundo o
bispo, os ingleses perderiam48. Em conclusão, ele resumiu seus pontos:
Finalmente, se Portugal conservar uma marinha respeitável de guerra e de
comércio, renunciando todo o espírito de conquista, contentando-se com o
muito que possui em todas as quatro partes do mundo, promovendo por todos
os meios as riquezas que as suas possessões são capazes de produzir,
conservando os seus vassalos em paz e sossego na fruição dos seus bens,
economizando as suas fábricas para as manufaturas necessárias, deixando as
de luxo para os estrangeiros, para que eles por esta porta entrem a comprar o
nosso supérfluo e se interessem conosco no comércio geral das nações, pode-
se dizer com confiança que Portugal não será inquietado e que todas as nações
se interessarão na sua conservação, como na própria de cada uma49.
48
COUTINHO, José Joaquim da C. de A. “Ensaio economico sobre o commercio de Portugal e suas
colonias”...,, pp. 166 – 167.
49
Idem, Ibidem, p. 172.
86
a obra de Rebelo, de certa forma, sintetizou as mudanças ocorridas em fins do século
XVIII. Por sua vez, os escritos de Coutinho também permitem elucidar o processo mais
geral de amadurecimento das novas ideias sobre a economia portuguesa, algo presente
em sua própria trajetória de vida. Até o momento, focalizamos nas ideias mais amplas
sobre as mudanças econômicas. Com Coutinho, ganha espaço uma discussão mais teórica
sobre o pensamento econômico português50.
Dom Rodrigo de Sousa Coutinho é considerado um dos funcionários da
monarquia portuguesa mais relevantes do final do século XVIII. O período em que atuou
como membro da governação portuguesa, iniciado na função de secretário de Estado dos
Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos até se tornar presidente do Real Erário e
mais tarde secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, foi marcado pelo
prosseguimento daquele movimento reformista posto em prática no reinado de dom José
I. Portanto, perde força a ideia de que a ascensão de dona Maria I teria configurado uma
completa “viradeira” na administração do império. Boa parte das medidas de
diversificação agrícola somente ofereceu seus resultados após a queda de Sebastião José
em 1777, não podendo, todavia, ser entendidas sem a análise desse prévio período51.
Se a atuação de Coutinho merece atenção, isso não significa considerá-lo um novo
e lendário Pombal, como se fosse o único responsável pelas medidas tomadas e propostas
à monarca e futuramente ao príncipe regente dom João, ou que não teve de enfrentar
interesses de outros secretários e funcionários, responsáveis pelas demais repartições.
Também não deve nos levar a desconsiderar os anos que intermediaram entre a queda de
Pombal, em 1777, e a nomeação de Coutinho em 1796. Um dos casos emblemáticos, que
nos ajuda a refletir sobre a divisão dos poderes dentro da monarquia, foi o de Martinho
de Melo e Castro, secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos entre 1770
e 1795, um dos atores políticos mais longevos do período. Seu poder e a falta de decisão
em assuntos relativos à administração colonial já foram avaliados com cuidado na
50
Para algumas dessas informações, ver POMBO, Nívia. Dom Rodrigo de Sousa Coutinho: pensamento e
ação político-administrativa no Império Português (1778-1812). São Paulo: Hucitec, 2015, p. 25.
51
Ver POMBO, Nívia. Dom Rodrigo de Sousa Coutinho..., pp. 25-29 e 80-81; também NOVAIS, Fernando
A. Portugal e Brasil na crise..., pp. 224-225. Para a qualificação desses atores como funcionários da
monarquia, ver PAULINO, Mariana F. A semântica do tempo no discurso de reformistas ilustrados sobre
as Américas ibéricas (c. 1750 – c. 1807). 2020. 294 p. Dissertação (Mestrado em História Social) – FFLCH,
USP, São Paulo, 2020.
87
historiografia e demonstram como o poder metropolitano não podia ser resumido à
atuação de um único secretário (no caso, o marquês de Pombal)52.
O período de governo de dona Maria I foi cenário da rescisão de algumas decisões
do período anterior, relacionadas ao espaço da nobreza tradicional e do clero na sociedade
portuguesa, mas não causou uma quebra absoluta com o movimento reformista que vinha
ocorrendo, pelo menos, desde 1750. Um bom exemplo é dado pela criação da Academia
Real das Ciências de Lisboa, em 1779, instituição em que teve atuação Domingos
Vandelli, convidado para se estabelecer em Portugal por Carvalho e Melo em 1764. Ou,
mais tarde, na criação da Tipografia do Arco do Cego em 1799, iniciativa que contou com
decisões e o auxílio de dom Rodrigo de Sousa Coutinho. A persistência de medidas e
movimentos de cariz reformista fica evidente53.
Dom Rodrigo se formou e iniciou sua carreira como funcionário do Estado em
meio aos resultados das reformas empreendidas desde meados da centúria. Nasceu em
1755, no seio de uma família com antepassados nobres, filho de dom Francisco Inocêncio
de Sousa Coutinho e de dona Ana Luísa Joaquina Teixeira de Andrade da Silva. Seu
padrinho foi ninguém menos do que Sebastião José de Carvalho e Melo. Mais tarde,
estudou no Colégio dos Nobres e iniciou, sem finalizar, os estudos na Universidade de
Coimbra. No último local, aliás, teve contato com o professor José Anastácio da Cunha,
52
Sobre a atuação de Melo e Castro, ver VALADARES, Virgínia Maria T. A sombra do poder: Martinho
de Melo e Castro e a administração da capitania de Minas Gerais (1770-1795). São Paulo: Hucitec, 2006,
passim. Sobre a relação, possivelmente, conflituosa entre Melo e Castro e Carvalho e Melo, ver Idem,
Ibidem, pp. 51-54. Sobre as oposições a Coutinho e conflitos com outros funcionários, ver SILVA, Andrée
M. D. “Introdução” in COUTINHO, dom Rodrigo de S. Textos políticos, económicos e financeiros (1783-
1811). Tomo I. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p.
XLII e XLVI-XLVIII; também COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Projecto de alvará para abrir um
empréstimo do valor de 4 milhões de cruzados (31 de Janeiro de 1797)” in Textos políticos, económicos e
financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco
de Portugal, 1993, pp. 97 e 102.
53
Ver VALADARES, Virgínia Maria T. A sombra do poder..., p. 51-54; também POMBO, Nívia. Dom
Rodrigo de Sousa Coutinho..., pp. 80-82 e 233; também POMBO, Nívia. “Os livros de economia rural da
Casa Literária do Arco do Cego: autores e editores no final do século XVIII português (1799-1801)”. Anais
do Encontro Internacional e XVIII Encontro de História da Anpuh-Rio: História e Parcerias, Niterói, 2018;
e NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise..., p. 224-228. Para a criação da Academia Real das
Ciências de Lisboa, ver CARDOSO, José Luís. Pensar a economia em Portugal: digressões históricas.
Algés: Difel, 1997, cap. V. Sobre Vandelli, ver DALLA COSTA, Ricardo. Ciências naturais e econômicas
na obra de Domingos Vandelli (1735-1816). 2017. 116 p. Tese (Doutorado em História da Ciência) –
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017, pp. 12-18. Aliás, nem mesmo o reinado
anterior ao de dom José, o de dom João V, deve ser interpretado como absolutamente avesso a novas
discussões, como visto no início deste capítulo. Para um bom exemplo sobre a continuidade, ler os elogios
feitos por Rodrigo de Sousa Coutinho ao reinado de dom José I – COUTINHO, dom Rodrigo de S.
“Observações relativas às finanças dos Estados sardos em 1794” in Textos políticos, económicos e
financeiros (1783-1811). Tomo I. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de
Portugal, 1993, pp. 274-275.
88
responsável por conduzir reuniões filosóficas e que, mais tarde, foi denunciado à
Inquisição. Contando com as manobras de seu pai, foi nomeado como enviado português
na Corte da Sardenha em 1778 e lá desenvolveu um trabalho que ultrapassou as
atribuições de um mero representante diplomático. Coutinho escreveu muito nesse
período, teceu ideias que mais tarde influenciariam sua ação como secretário de Estado 54.
O reformismo ocorrido na Península Itálica, de fundo católico, configurou um
interessante terreno de observação. Coutinho permaneceu em Turim de 1779 a 1796,
período no qual aquilatou diversas experiências. As leituras e observações feitas guiaram
a escrita de diversos documentos, nos quais há indícios das discussões correntes na
Europa do período, bem como a tessitura de planos para a melhoria da situação econômica
de Portugal. Se ainda não tinha poder para tomar decisões que influenciassem os destinos
do império, seus escritos evidenciaram a forma como recebeu, interpretou e sintetizou as
novas ideias econômicas que então surgiam. Como outros atores portugueses do período,
o tempo no estrangeiro auxiliou na conformação de um ideário ilustrado e reformista
relativo a Portugal. Dessa forma, seu pensamento econômico estava intrinsecamente
relacionado à ação reformista, compondo uma base teórica para a última e, a partir das
experiências passadas de Portugal e presentes de outras nações, teorizando um futuro
possível para o império português55.
No tempo em que permaneceu em Turim, Coutinho escreveu uma série de relatos
sobre sua atuação, como forma de resumir às autoridades lusas o que havia feito e propor
algumas ideias. No que se refere às suas ideias econômicas, já na “Recopilação dos ofícios
expedidos de Turim no ano de 1783”, Coutinho criticou os monopólios, mas não deixou
de censurar as medidas tomadas contra aquele problema, envolvendo preços taxados etc.
Ao não deixarem livre o mercado, tais medidas vedariam a concorrência, a qual “[...]
54
Consultar SILVA, Andrée M. D. “Introdução”..., pp. XI-XVI, XXIII e XXXVI. Sobre a relação de
Coutinho com o professor José Anastácio Cunha, ver POMBO, Nívia. Dom Rodrigo de Sousa Coutinho...,
pp. 131-134; também POMBO, Nívia. “A cidade, a universidade e o Império: Coimbra e a formação das
elites dirigentes (séculos XVII-XVIII)”. Intellèctus, Rio de Janeiro, ano XIV, n. 2, 2015, pp. 7-10. A
passagem sobre José Anastácio parece despropositada, mas traz reflexões. Para muitos estudiosos, como
vimos, a Ilustração em Portugal foi um movimento atenuado e estreitamente controlado pelo Estado. Essa
opinião não deixa de ter sua validade, mas pode obscurecer a atuação de um personagem como Cunha,
cujas opiniões o levaram a julgamento. Seria isso um sinal de que, em Portugal, as ideias radicais também
teriam terreno ou somente confirmaria que, caso elas surgissem, seriam cerceadas? De qualquer forma,
Cunha conviveu com futuros, e importantes, funcionários da monarquia lusa.
55
Ver POMBO, Nívia. “Um turista na Corte do Piemonte: dom Rodrigo de Souza Coutinho e o iluminismo
italiano e francês (1778-1790)”. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 25, n. 41, 2009, passim. Ver SILVA,
Andrée M. D. “Introdução”..., pp. XIV-XV, XXIII e XXXIX.
89
procuraria certamente o bom e abundante mercado e destruiria igualmente o monopólio”.
Já nesse escrito, Coutinho dissertou sobre a situação econômica e os problemas
enfrentados na região, advertindo medidas e situações que envolveram a agricultura,
pecuária, indústria e comércio. Certamente, ele sabia da importância de todos esses ramos
para a bom desempenho da economia56.
Ainda assim, se aparentou defender um comércio mais livre, Coutinho não deixou
de criticar o contrabando, capaz de atrapalhar as relações entre as colônias e as
metrópoles. Quando dissertando sobre a natureza da Revolução Americana, criticou o seu
exemplo e a possibilidade de a revolução instaurar “um comércio interlope [fraudulento]
e clandestino”, prejudicando os desígnios metropolitanos. Ademais, na argumentação
sobre a seda em Portugal, o enviado defendeu o auxílio do Estado no início das atividades
dos produtores e a proteção comercial por meio da proibição de importações
estrangeiras57. Como resumiu o enviado:
[S]eria necessário procurar aos fabricantes nacionais o consumo da nação e das
suas colônias. Para este fim, desde a primeira fundação, seria necessário
estabelecer maiores impostos sobre todos os estofos que se fabricassem fora
do Reino e, à proporção que se aperfeiçoasse no país algum em particular e
que pudesse bastar ao consumo nacional, devia estabelecer-se a inteira e total
proibição desta manufatura estrangeira. Assim em pouco tempo estaríamos no
caso de vender o que antes comprávamos: fato que a experiência e história de
todas as nações verifica58.
O ator, portanto, mostrava sua compreensão das novas ideias do período, ligadas
à definição e concretização de um comércio mais livre. Mas, como português e
funcionário da monarquia, sabia da essencialidade dos domínios ultramarinos lusos para
56
Ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Recopilação dos ofícios expedidos de Turim no ano de 1783” in
Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo I. Introdução e direção de edição de Andrée
M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, pp. 5-20, especialmente as pp. 8-9; e COUTINHO, dom
Rodrigo de S. “Recopilação dos ofícios expedidos de Turim no ano de 1786” in Textos políticos,
económicos e financeiros (1783-1811). Tomo I. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva.
Lisboa: Banco de Portugal, 1993, pp. 56-57. Coutinho também criticou o efeito deletério de privilégios
sobre a concorrência – ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Discurso sobre o comércio de Itália
relativamente ao de Portugal (20 de Outubro de 1784)” in Textos políticos, económicos e financeiros (1783-
1811). Tomo I. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p.
101. Ademais, criticou o monopólio criado pelas corporações – COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Discurso
sobre a mendicidade (sem data – 1787 ou 1788)” in Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811).
Tomo I. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, pp. 206
e 208.
57
Ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Recopilação dos ofícios expedidos de Turim no ano de 1783...”,
pp. 23-24; e COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Reflexões políticas sobre os meios de estabelecer em
Portugal a cultura e manufactura da seda (20 de Março de 1784)” in Textos políticos, económicos e
financeiros (1783-1811). Tomo I. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de
Portugal, 1993, p. 119.
58
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Reflexões políticas sobre os meios de estabelecer...”, p. 124.
90
a existência do Império português. As novas ideias teriam de ser adequadas à realidade
lusa. Um comércio mais livre não trazia uma justificativa para o contrabando. Tais
argumentos demonstram como aquele apregoado livre-comércio teria as suas necessárias
limitações, visando defender a industrialização portuguesa e a própria configuração
imperial lusa. Se a liberdade comercial era vista como uma forma de desenvolver as
receitas individuais e do império, ela teria de se adequar à estrutura política e social da
monarquia portuguesa. Tudo, é claro, buscando os maiores benefícios para a nação e
embasando as tão necessárias reformas.
Da mesma forma, para incentivar o comércio luso com embarcações próprias,
evitando o pagamento de fretes a outras nações, Coutinho defendeu a isenção ou
diminuição de impostos para negociantes. Uma ação que deveria ser patrocinada pelo
Estado, o que, por sua vez, mostrava como aquele comércio livre, defendido
anteriormente, necessitava de alguns ajustes feitos pela administração monárquica. Tal
argumentação demonstrava o embate econômico entre as diversas nações europeias, em
um jogo em que Coutinho buscava angariar benefícios para Portugal59.
Esse tipo de teorização se repete. Em outra oportunidade, o autor defendeu que a
concorrência entre produtores de casulos de seda sinalizaria aqueles que trabalhariam de
melhor forma por meio de diferentes preços, “o que promoveria a boa criação, pois todos
desejariam vender por melhor preço os seus casulos”. Contudo, ainda nessa atividade, o
autor defendeu a instituição de prêmios para os melhores produtores, provavelmente
financiados pelo Estado. Se alguns acreditavam que “a ilimitada liberdade e concorrência
se[ria] o modo de fazer prosperar a indústria nacional”, Coutinho argumentava que havia
exceções, pois a concorrência seria suficiente para aumentar a quantidade de seda
produzida, mas não garantiria a qualidade. Daí a necessidade de regulamentos impostos
aos artistas. Nesses exemplos, o Estado pode ser visto, teoricamente, como um regulador
e também promotor, promovendo o “interesse público”, haja vista que, sozinhos, os
particulares não conseguiriam fazê-lo60.
59
Ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Recopilação dos ofícios expedidos de Turim no ano de 1783...”,
pp. 25-26. Para outro exemplo de auxílio da monarquia, ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Reflexões
políticas sobre os meios de estabelecer...”, p. 122. Aliás, seriam esses embates entre as nações um exemplo
do “jogo de soma zero” característico do mercantilismo? Ver SUPRINYAK, Carlos Eduardo. “Moeda,
tesouro e riqueza...”, pp. 578-579.
60
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Reflexões políticas sobre os meios de estabelecer...”, pp. 118 e 121.
Ver também CARDOSO, José Luís. “D. Rodrigo de Sousa Coutinho em Turim: cultura económica e
formação política de um diplomata ilustrado” in DA MOTA, Isabel F.; SPANTIGATI, Carla Enrica
91
O enviado tinha interessantes ideias, muitas delas baseadas nas leituras e
observações feitas sobre a Europa, mas, afinal, também foi pragmático. As aparentes
contradições demonstram um conhecimento ainda em formação e, além disso, a própria
tentativa de conciliar as teorizações amplas, originadas alhures, à realidade portuguesa.
Devido a isso, foi possível o enviado argumentar o seguinte:
[...] Seja-me lícito ajuntar a estas reflexões outra que me parece digna da maior
atenção e é a necessidade que há de dar toda a liberdade para a introdução das
sedas estrangeiras nas manufaturas, principalmente os organsins de Piemonte,
pois sem este preliminar, a nossa indústria nacional não poderá prosperar
enquanto Portugal não produz suficiente matéria primeira. Tomo a liberdade
de fazer esta reflexão porque tenho ouvido aqui a alguns negociantes
piemonteses que quiseram remeter sedas para Portugal e que acharam alguma
dificuldade na introdução por causa dos privilégios da Fábrica de Seda de
Lisboa; privilégios que se realmente existem são inteiramente contrários aos
princípios mais evidentes da economia política61.
(coords.). Tanto ella assume novitate al fianco: Lisboa, Turim e o intercâmbio cultural do século das luzes
à Europa pós-napolêonica. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2019, pp. 24-25.
61
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Reflexões políticas sobre os meios de estabelecer...”, p. 131.
62
Nessa argumentação, o enviado exemplificou com reformas nas instituições religiosas – COUTINHO,
dom Rodrigo de S. “Recopilação dos ofícios expedidos de Turim no ano de 1786...”, pp. 67 – 68.
92
nação, provavelmente por todas serem atividades que englobavam aquele trabalho
originador de riquezas – considerando que o conceito de trabalho aí utilizado é um tanto
abstrato e somente obtém sentido relacionado àquelas atividades produtivas. Ao
argumentar que as riquezas se originariam “unicamente na perfeição da sua agricultura e
extensão da sua indústria”, o enviado defendeu que isso traria benefícios ao comércio e à
navegação, beneficiando ao mesmo tempo o Estado e os particulares63.
Se o autor conferiu relevância ao trabalho genérico, à agricultura e às indústrias,
não desconsiderou o papel do comércio, pois sobre ele, em 1784, escreveu o “Discurso
sobre o comércio de Itália relativamente ao de Portugal”, em que destacou tal atividade
na composição da riqueza das nações e na competição entre os diversos atores políticos.
O enviado defendeu que o bom comércio era aquele que envolvia a venda de produtos
coloniais ou manufaturas e, em troco, o recebimento de gêneros de primeira necessidade,
matérias-primas ou moedas. Dessa forma, ao analisar as alfândegas portuguesas em outro
63
Ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Recopilação dos ofícios expedidos de Turim no ano de 1786...”,
pp. 37-38, 51 e 68-69; também COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Discurso sobre o comércio de Itália...”,
pp. 97-98; por fim, COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Reflexões políticas sobre os meios de estabelecer...”,
p. 113. Ao considerar um tratado entre a França e a Inglaterra, Coutinho asseverou que as melhorias na
agricultura, indústria, comércio e pescaria que poderiam ser empreendidas por dona Maria I seriam mais
interessantes do que as trocas comerciais com os ingleses, com isso, provavelmente, querendo dissipar
quaisquer preocupações sobre as consequências daquele tratado em Portugal. Nesse momento, ademais, o
enviado demonstrou, mais uma vez, a forma como enxergava a constituição da riqueza do Estado. Portanto,
para que o tratado não gerasse problemas para os portugueses, segundo o autor, sua nação deveria produzir
o que fosse preciso, ficando livre “da imediata dependência” – ver COUTINHO, dom Rodrigo de S.
“Recopilação dos ofícios expedidos de Turim no ano de 1786...”, pp. 75-76 e 89-90. Para mais passagens
em que Coutinho relacionou a agricultura e a composição da riqueza, ver COUTINHO, dom Rodrigo de S.
“Reflexões políticas sobre os motivos da prosperidade da agricultura deste país [Piemonte], que servem a
fazer ver praticamente as vantajosas consequências dos sábios princípios adoptados” in Textos políticos,
económicos e financeiros (1783-1811). Tomo I. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva.
Lisboa: Banco de Portugal, 1993, pp. 141-142. Sua atenção ao trabalho, todavia, ganhou considerável
espaço. Em outro momento, quando discutindo a utilidade das máquinas, o enviado asseverou que tais
implementos gerariam mais riquezas, pois facilitariam o trabalho e, ao mesmo tempo, diminuiriam as
despesas – COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Discurso em que se prova a necessidade e utilidade dos
estudos e conhecimentos hidrodinâmicos em Portugal...” in Textos políticos, económicos e financeiros
(1783-1811). Tomo I. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal,
1993, p. 184. Dom Rodrigo considerou os interesses de cada indivíduo e como isso afetava ou se
relacionava ao todo social ou ao Estado. Quando argumentou sobre a situação agrícola da Itália, disse que
“[...] ninguém cultiva quando do seu trabalho não espera colher um fruto considerável”. Coutinho, ao
argumentar, dissertou sobre benefícios aos particulares e ao público – COUTINHO, dom Rodrigo de S.
“Recopilação dos ofícios expedidos de Turim no ano de 1786...”, pp. 56 e 86. Em outras ocasiões, defendeu
que as melhorias na economia beneficiariam tanto os particulares como as rendas do soberano –
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Discurso em que se prova a necessidade e utilidade dos estudos e
conhecimentos hidrodinâmicos em Portugal...”, pp. 177-178. Para mais argumentos sobre as relações entre
o indivíduo e o todo, ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Discurso sobre a mendicidade...”, p. 208. Afinal
de contas, a relação entre o público e o privado, entre a ação dos particulares e aquela do Estado, visava a
composição da felicidade do corpo social. Os ganhos dos particulares seriam proveitos para o “bem
público” – ver VALADARES, Virgínia Maria T. A sombra do poder..., p. 144.
93
documento, defendeu a isenção conferida às exportações de manufaturados lusos, a
imposição às manufaturas importadas do estrangeiro, “[...] aliviando as matérias
primeiras, cuja introdução necessitamos para as nossas artes e indústria [...]”. Se o
comércio era também uma fonte de riquezas para o Império, podendo afetar sua posição
política na Europa e sua capacidade de industrialização, ele precisava ser bem
regulamentado, o que Coutinho demonstrou desejar nessas notas sobre sua organização64.
Porém, novamente, o comércio não gerava os ganhos de maneira isolada.
Demonstrando a ligação entre o trabalho e os demais ramos da vida econômica,
conferindo um destacado espaço ao comércio, asseverou o representante português que:
[...] A nação que compra os produtos brutos para manufaturar, seja para o
próprio consumo seja para revender, tem a maior utilidade neste comércio, pois
procura um novo emprego ao trabalho dos seus cidadãos, e dependendo pela
maior parte a riqueza das nações do número dos seus habitadores industriosos,
fica claro que esta compra é um novo alimento para a riqueza nacional. A nação
que vende as suas produções em bruto perde, geralmente, o trabalho que elas
admitiram [...]65.
64
Ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Discurso sobre o comércio de Itália...”, pp. 95, 98 e 100; também
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Reflexões sobre as finanças e fiscalidade de Portugal [1786]” in Textos
políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo I. Introdução e direção de edição de Andrée M. D.
Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. 236.
65
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Discurso sobre o comércio de Itália...”, p. 99.
66
Para um ponto em que o enviado relacionou a importância do trabalho a pequenas reformas em Portugal,
ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Discurso sobre a mendicidade...”, p. 228.
67
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Discurso sobre a mendicidade...”, p. 204. Para outro trecho em que
Coutinho defendeu a divisão do trabalho, ver Idem, Ibidem, p. 229.
94
Vimos, portanto, a forma pela qual Coutinho teceu sua concepção da riqueza,
bebendo nas teorias econômicas então em gestação. Mas o enviado também teria de
considerar a realidade portuguesa, e um assunto relevante para tal era o papel a ser
conferido às minas de metais preciosos. Como elas se encaixariam em sua teoria? Afinal
de contas, o que se deveria esperar do ouro? Coutinho discordou daqueles que atribuíam
ao acúmulo desse metal a causa dos problemas econômicos das nações. No conhecido
“Discurso sobre a verdadeira influência das minas dos metais preciosos”, escrito ainda
em Turim, o enviado argumentou em contrário àqueles que pensavam serem as minas
algo desastroso para as nações. Elas, na verdade, impulsionariam a produção, graças à
demanda por elas criada e, segundo a própria lógica de sua argumentação, contribuiriam
na composição daquele “ânuo trabalho”, fonte das rendas nacionais. Os maus efeitos
surgidos não deveriam ser creditados às minas, pois, como em sua resposta aos
argumentos de Montesquieu, tal ideia “[...] só podia ter força no caso de uma nação, que
não tendo indústria, pagasse uma balança desvantajosa com o produto das minas [...] mas
não se podem justamente culpar as minas de um efeito independente delas [...]”68. A culpa
deveria ser procurada alhures:
O reinado do senhor rei D. Pedro, época em que se descobriram as grandes
minas do Brasil, foi também a do tratado de Methuen, o qual destruindo todas
as manufaturas do reino e fazendo cair todo o nosso comércio nas mãos de uma
nação aliada e poderosa, fixou contra nós a balança do comércio em tal maneira
que o imenso produto das minas foi limitado para a soldar (sic).
As minas retardaram por algum tempo sentir-se os efeitos daquele desigual
tratado e foram, contudo, culpadas quando principiou a conhecer-se a ruína da
indústria nacional. No reinado do senhor D. João V produziram aquela
aparente riqueza, que não sendo fundada na indústria, e diminuindo
continuadamente por uma balança muito ruinosa, veio enfim a desvanecer-se.
A pouca justiça com que se criminaram as minas foi bem conhecida no reinado
do senhor rei D. José I de saudosa memória, que procurou remediar todos os
abusos que se tinham introduzido à sombra do tratado de Methuen tanto em
dano da nação e que eram o verdadeiro motivo da nossa decadência 69.
Todas essas considerações sobre a nação em que estava e sobre outras da Europa,
moldando a forma como entendia a economia, serviram como uma base para o enviado
dissertar sobre as medidas que esperava que fossem implementadas em Portugal. De certa
68
Ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Discurso sobre o comércio de Itália...”, p. 99; também
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Discurso sobre a verdadeira influência das minas dos metais preciosos
na indústria das nações que as possuem, e especialmente da portuguesa” in Textos políticos, económicos e
financeiros (1783-1811). Tomo I. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de
Portugal, 1993, pp. 169-173.
69
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Discurso sobre a verdadeira influência das minas dos metais
preciosos...”, pp. 172-173.
95
forma, é em tais planos em que vislumbramos mais diretamente o modo como sua estada
em Turim serviu para sua futura ação enquanto secretário de Estado. Ainda em um
documento enviado de Turim, endereçado ao secretário Martinho de Melo e Castro, o
enviado atestou diversas medidas que poderiam ser feitas para reformar o império70.
Coutinho apresentou planos para o bom desenvolvimento de Portugal e da
agricultura lusa, envolvendo também mudanças guiadas pela sua concepção sobre a
economia. Sua atenção era múltipla, englobando questões financeiras e produtivas, e um
dos objetivos das medidas foi a substituição de importações, algo a ser feito por meio da
melhor produção agrícola e da pecuária. Quando, por exemplo, defendeu a introdução de
canais de rega em Portugal, argumentou que isso melhoraria a pecuária nas terras
portuguesas e, consequentemente, seria um modo de diminuir as importações. Em muitos
planos, Coutinho ainda considerou a necessidade e a forma pela qual se daria o
financiamento, citando a criação e circulação de papel-moeda, a cargo do Estado. Para o
autor, a boa organização dos recursos financeiros, da Fazenda Real, seria essencial para
a nação e nisso contava o bom estabelecimento do crédito público. Um dos planos
envolveu a criação de um banco público, responsável por pagamentos dos juros reais,
substituindo os tesoureiros particulares71.
Mas como a nação portuguesa conseguiria colocar em práticas tais ideias,
baseadas, por sua vez, nas práticas de observação e leitura de Rodrigo de Souza Coutinho?
Nisso tudo, a emulação teria um destacado papel, haja vista que, como asseverou José
Luís Cardoso, “[...] a riqueza e grandeza econômica e política de uma nação também se
promove[ram] através da aprendizagem de bons exemplos e de casos bem-sucedidos
[...]”. A estada de Coutinho no norte da Península Itálica disponibilizou ao enviado um
70
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Recopilação dos ofícios expedidos de Turim no ano de 1786...”, pp.
57-58 e 81.
71
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Recopilação dos ofícios expedidos de Turim no ano de 1786...”, pp.
57-58, 86 e 90; COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Observações e reflexões sobre um trabalho de medidas
de terreno e produções do Ribatejo (Lisboa, 11 de Julho de 1793)” in Textos políticos, económicos e
financeiros (1783-1811). Tomo I. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de
Portugal, 1993, p. 166; COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Discurso em que se prova a necessidade e
utilidade dos estudos e conhecimentos hidrodinâmicos em Portugal...”, pp. 180 e 190-191; e COUTINHO,
dom Rodrigo de S. “Reflexões sobre o estabelecimento do crédito público, melhoramento da Fazenda Real,
e outros objectos que interessam à existência gloriosa do nosso real trono (29-10-1795)” in Textos políticos,
económicos e financeiros (1783-1811). Tomo I. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva.
Lisboa: Banco de Portugal, 1993, pp. 285-288. Para Coutinho, a situação da Fazenda não seria boa em
1795, haja vista que “[...] a nossa Real Fazenda não acha, quando necessita, nem o socorro dos nossos ricos
negociantes no reino e nas colônias, nem ainda a confiança dos particulares, que todos fogem da mesma,
temendo a má fé dos que a administram” – COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Reflexões sobre o
estabelecimento do crédito público...”, p. 286.
96
local de observação e de formação intelectual, contribuindo para com as propostas
reformistas direcionadas para sua terra natal e baseadas na emulação de práticas alheias,
algo semelhante ao ocorrido com Pombal na primeira metade do século. Como ele mesmo
argumentou em um caso específico, “[...] o exemplo da nação que mais tem aperfeiçoado
as suas sedas nada deixa a desejar: e imitá-la é o meio mais seguro de chegar ao fim que
se deseja”72.
No tempo em que permaneceu em Turim, Coutinho dissertou sobre vários
assuntos, teorizando sobre o campo econômico com base em suas leituras e experiências,
ao mesmo tempo em que propôs algumas ideias que poderiam ser adotadas em Portugal.
Sua abordagem foi ampla, considerando o comércio, a agricultura, as indústrias e,
inclusive, a necessidade de financiamento para tais empreitadas, revelando ter um
pensamento que não restringia a busca por riqueza a um campo isolado do econômico.
Para isso, a emulação das práticas de outras nações seria um caminho a ser seguido e
aconselhado pelo enviado. Ademais, se não houve um escrito dedicado especialmente ao
cereal aqui em análise, e produzido na região em que se encontrava, Coutinho não deixou
de fazer citações esporádicas a ele, como parte de seu pensamento mais amplo sobre a
agricultura e a economia. Um argumento pode ser destacado. Quando analisando o
comércio de Portugal e da Itália, o enviado citou alguns produtos coloniais que poderiam
ser exportados por Portugal e o arroz estava entre eles. Ali o arroz era citado como
exportação, talvez como indício de que o processo de diversificação agrícola na América
lusa já começava a dar resultados, também como resultado prático das novas concepções
econômicas exemplificadas por Coutinho. Tais menções devem ser encaradas frente à
constituição mais ampla de seu pensamento, como buscamos sintetizar73.
72
Ver CARDOSO, José Luís. “D. Rodrigo de Sousa Coutinho em Turim...”, p. 23; COUTINHO, dom
Rodrigo de S. “Reflexões políticas sobre os meios de estabelecer em Portugal a cultura e manufactura da
seda...”, pp. 116-117. Sobre uma suposta vantagem do atraso, ou seja, de Portugal tentar se beneficiar dos
conhecimentos alheios, anteriormente desenvolvidos, ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Plano de
lotaria para fundar o estabelecimento da filatura e organsinagem da seda em Trás-os-Montes (25-10-1786)”
in Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo I. Introdução e direção de edição de
Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. 136. Para outros exemplos de emulação, ver
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Discurso em que se prova a necessidade e utilidade dos estudos e
conhecimentos hidrodinâmicos em Portugal...”, p. 189; COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Recopilação dos
ofícios expedidos de Turim no ano de 1786...”, pp. 55 e 79.
73
Ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Discurso sobre o comércio de Itália...”, p. 101; também
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Reflexões sobre os motivos da prosperidade da agricultura deste país
[Piemonte], que servem a fazer ver praticamente as vantajosas consequências dos sábios princípios
adoptados (1789)” in Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo I. Introdução e direção
de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, pp. 148-149. Para mais menções
esporádicas ao arroz, ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Discurso sobre o comércio de Itália...”, pp.
97
Coutinho não finalizou sua vida política como enviado em Turim. Como o
substituto de Martinho de Melo e Castro, se tornou responsável pela Secretaria de Estado
dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos em 1796. Mais tarde, assumiu a
presidência do Erário Régio. Nessas posições, teve contato direto com assuntos que
envolveram a situação política, econômica e social das colônias portuguesas. Sua
concepção sobre a economia, seu pensamento econômico, também pode ser avaliado
nesse novo contexto. Apesar de ter escrito memórias sobre questões econômicas do
período, a documentação mais burocrática, envolvendo alguns avisos e a troca de
correspondência oficial, traz considerações sobre as concepções do então secretário.
Nosso objetivo é recuperar sua concepção do econômico, que pouco mudou em relação
aos anos anteriores em Turim, e avaliar a forma como pode ser relacionada à atuação em
uma secretaria responsável pelos domínios ultramarinos de Portugal74. Com isso também
damos continuidade à análise das práticas reformistas que vinham ocorrendo desde 1750,
no momento em que Coutinho assumiu uma importante secretaria de governo da
monarquia lusa.
Nesse novo período de sua trajetória, Coutinho avaliou a necessidade de reformas
na economia portuguesa e propôs alguns projetos, mas, ao mesmo tempo, elogiou a
situação econômica do Império, a ponto de escrever, em 1800, que “[...] todo o mundo
conhece que a nação nunca esteve tão rica, nem o seu comércio tão extenso e tão
poderoso”. Seria isso um sinal de que os planos haviam dado certo, de que o reformismo
iniciado em 1750 verteu bons resultados, ou simplesmente a retórica de um funcionário
da monarquia em uma representação enviada ao príncipe regente? Sabemos que a situação
econômica portuguesa em fins do século XVIII havia sido transformada, com evidentes
resultados na diversificação agrícola e na balança de pagamentos com o exterior, mas isso
não exclui a segunda possibilidade75.
108-109; e COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Relação política da Casa de Sabóia [excertos]...” in Textos
políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo I. Introdução e direção de edição de Andrée M. D.
Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. 338. Para um exemplo evidente e tardio de como certas leituras
e a observação influenciaram os projetos de Coutinho, ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Carta para o
Marquês Mordomo-mor sobre recursos e meios de fazenda (22 de Outubro de 1796)” in Textos políticos,
económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva.
Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. 96. Sobre as leituras que fez, a biblioteca amealhada em Turim e as
principiais influências teóricas para Coutinho, ver CARDOSO, José Luís. “D. Rodrigo de Sousa Coutinho
em Turim...”, passim, principalmente as pp. 39-40.
74
Ver POMBO, Nívia. Dom Rodrigo de Sousa Coutinho..., pp. 25-26.
75
Ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Representação ao príncipe regente sobre o decreto de suspensão
das obras, e sobre a conta geral da despesa da repartição da marinha em todo o ano de 1799 (21 de Janeiro
98
De qualquer forma, nos documentos produzidos nessa nova fase da vida política
de dom Rodrigo surgem novas ou são reforçadas as antigas representações sobre a
economia portuguesa. Ficou evidente, portanto, como a estada em Turim influenciou sua
ação e pensamento como secretário de Estado da monarquia portuguesa e como as
observações no estrangeiro foram um essencial aspecto do reformismo luso76.
No que tange à relação entre a proteção dispensada pela Coroa e a pura
concorrência entre os fabricantes, Coutinho continuou a demonstrar certa ambiguidade
em sua argumentação. Algumas atividades econômicas, que poderiam servir aos
propósitos do Estado, mereceriam ser sustentadas pelo governo, como foi proposto no
caso da fábrica de cordoarias, essencial à marinha real. Ademais, em um projeto de alvará
destinado a algumas das ilhas atlânticas portuguesas, o secretário defendeu a liberdade do
comércio dos grãos, mas, ao mesmo tempo, estabeleceu a necessidade de limites máximos
e mínimos nos preços, os quais determinariam a proibição ou incentivo às exportações.
Ainda assim, Coutinho, ao criticar a proibição de remessas agrícolas na América lusa em
1798, defendeu que “[...] a inteira e livre circulação de todos os gêneros e a segurança de
um mercado, onde os preços só dependem da concorrência, são os melhores meios de
procurar uma segura abundância [...]”. Novamente, seu pragmatismo parece ter soado
mais alto, ainda mais sendo o responsável por uma das três secretarias de Estado da
monarquia. Ao mesmo tempo em que demonstrou o conhecimento teórico das novas
ideias econômicas, a situação imperial demandou adaptações77.
de 1800)” in Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção de
edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, pp. 17-18; também COUTINHO, dom
Rodrigo de S. “Representação ao príncipe regente sobre vários assuntos” in Textos políticos, económicos e
financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco
de Portugal, 1993, p. 91. Sobre as mudanças econômicas no final do século, ver NOVAIS, Fernando A.
Portugal e Brasil na crise..., pp. 292-294. Para um trecho em que o secretário contrastou a bonança
portuguesa ao caos na Europa, ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “1º Discurso: 22-12-1798” in Textos
políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção de edição de Andrée M. D.
Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, pp. 179 e 182.
76
POMBO, Nívia. Dom Rodrigo de Sousa Coutinho..., p. 129. Ver também CARDOSO, José Luís. “D.
Rodrigo de Sousa Coutinho em Turim...”, pp. 20-21.
77
Ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Representação ao príncipe regente sobre a criação de uma tontina
para as compras de linho necessárias à cordoaria (12 de Setembro de 1797)” in Textos políticos, económicos
e financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco
de Portugal, 1993, p. 12; COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Projecto de alvará sobre a administração e
governo das Ilhas dos Açores, Madeira e Porto Santo (Sem data [1799])” in Textos políticos, económicos e
financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco
de Portugal, 1993, pp. 27-28; COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Avisos e instruções para D. Fernando José
de Portugal, governador e capitão general da capitania da Baía” in Textos políticos, económicos e
financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco
de Portugal, 1993, p. 43. Coutinho também dissertou sobre “[...] os preços médios, em que a liberdade da
99
Seu pragmatismo também se revelou quando, para organizar a economia do reino,
defendeu a criação de um banco com determinados privilégios, impedindo de certa forma
a concorrência, ou quando não concordou com a taxação sobre as manufaturas
portuguesas proposta pelo tesoureiro-mor, pois elas não conseguiriam, dessa forma,
competir com as do exterior. Como avaliou o secretário, “[...] Em lugar de as taxar, é por
ora necessário ajudá-las com novos meios; e quando se sustentarem a si mesmas então
serão objetos de taxação, não as que se exportarem, mas as que se consumirem”. Coutinho
tinha em mente as nascentes ideias econômicas, defensoras de um comércio mais livre,
mas também apoiava medidas que auxiliariam o equilíbrio e o desenvolvimento
econômico do Império. Afinal, como afirmado em outro documento, a ideia era a de “[...]
conciliar o interesse geral dos [...] vassalos com a segurança dos princípios de um
comércio o mais livre [...]”, ou seja, conciliar os interesses privados e o bem público por
meio da ação do Estado78. Como afirmou em outra ocasião, ao escrever sobre os recursos
naturais:
exportação deve ser inteira e sem limite [...]” – COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Projecto de alvará sobre
a administração e governo das ilhas...”, p. 28. Para exemplos de quando Coutinho advogou a abolição de
contratos, ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Representação ao Príncipe Regente sobre o Alvará para a
abolição dos contratos do sal e da pescaria da baleia (6-08-1798)” in Textos políticos, económicos e
financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco
de Portugal, 1993.
78
Ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Projecto de alvará de criação do banco real brigantino (Julho de
1797)” in Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção de edição
de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. 114; COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Carta
para o marquês mordomo-mor relativa à avaliação das rendas reais e despesas para o ano próximo futuro
(16 de Fevereiro de 1799)” in Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução
e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. 125; COUTINHO, dom
Rodrigo de S. “Projecto de alvará sobre o comércio do sal nas capitanias de Pará e Maranhão (sem data –
anterior a 1799)” in Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção
de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. 67. Ver CARDOSO, José Luís. “D.
Rodrigo de Sousa Coutinho em Turim...”, pp. 40-42. Outro exemplo se deu no caso do comércio do sal.
Nas palavras da rainha dona Maria I, era preciso remediar alguns problemas nesse comércio (volume e
preços), mas o “remédio” da concorrência e da liberdade comercial seria muito lento em seu agir. A rainha
propôs, então, medidas que fugiriam daqueles princípios, como a fixação de preços, mas se preocupou
também em “não vexar os donos dos navios” – ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Projecto de alvará
sobre o comércio do sal...”, pp. 66-68. Medidas de urgência deveriam ser adotadas, ferindo a liberdade
comercial, mas com cuidados. Em outro documento, Coutinho defendeu a criação de uma companhia
comercial com alguns privilégios, para desenvolver a agricultura ou o comércio de domínios portugueses
na Ásia – ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Carta para o marquês mordomo-mor, presidente do Real
Erário, sobre o comércio e navegação da Índia (24 de Novembro de 1800)” in Textos políticos, económicos
e financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco
de Portugal, 1993, pp. 70-72. Para outro documento em que Coutinho citou privilégios, ver COUTINHO,
dom Rodrigo de S. “Carta para o marquês mordomo-mor sobre recursos e meios de fazenda (22 de Outubro
de 1796)” in Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção de
edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. 94. Ademais, Coutinho também
defendeu o oferecimento de prêmios para incentivar o trabalho rural – ver COUTINHO, dom Rodrigo de
S. “Reflexões sobre o alto preço que vão tomar as carnes, e meios de remediar este inconveniente no
100
[...] minas e bosques necessitam de ser regulados por princípios científicos, em
que se acha calculada a utilidade geral, e não abandonados ao interesse dos
particulares, que nestes casos, e só neles, contraria ou ao menos pode contrariar
a pública utilidade, formando uma notável excepção aos princípios gerais da
economia política79.
Certamente, não era somente naquele caso, mas em muitos outros em que as
teorias alheias teriam de ser adaptadas à realidade portuguesa e em que o Estado precisaria
regular a relação entre o público e o privado. Coutinho sabia das tensões em que se
envolvia ao escrever sobre tais assuntos80. Todas essas ideias do secretário, apesar de não
constituírem um trabalho específico sobre teorização econômica, demonstraram o
amadurecimento de diversas ideias, de modo integrado.
Suas afirmações não foram resultado de um simples casuísmo, mas envolveram
um plano sistemático, não deixando de lado diversas considerações econômicas. Assim,
vemos uma crítica a um monopólio específico acompanhada de considerações sobre a
pecuária, o comércio reinol e, afinal, o modo como a renda da Coroa era administrada:
Indubitavelmente o estanque do sal é, não só muito prejudicial a toda a
América, mas ainda ao Reino, pois que o alto preço a que o mesmo gênero se
vende na América impede que ele ali se dê aos gados a quem é benéfico, que
se salguem as carnes, e diminui o consumo em dano do Reino, que exporta
uma menor quantidade. Creio que sobre este ponto não há hoje pessoa alguma
que hesite em tal matéria, e é bem feliz o poder-se avançar que a supressão
deste estanque não custa ao Estado senão 120 mil cruzados, que tal é a renda
que pagam os contratadores à Fazenda Real, e pela qual recebem o direito de
vexarem toda a América81.
momento presente, e para o futuro” in Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II.
Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, pp. 169-170.
79
Ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Instruções para Manuel Ferreira da Câmara, Intendente Geral das
Minas na Capitania de Minas Gerais e Serro Frio (26 de Novembro de 1800)” in Textos políticos,
económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva.
Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. 73. Para uma análise de tal trecho, mas em outro contexto
argumentativo, ver PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica
ambiental no Brasil escravista (1786-1888). 2ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 62.
80
Sobre essa adaptação, ver POMBO, Nívia. “Um turista na Corte do Piemonte...”, pp. 224-225.
81
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Memória sobre o melhoramento dos domínios de Sua Majestade na
América (1797 ou 1798)” in Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução
e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. 56.
101
reforma, e não da total transformação da realidade portuguesa. Como atestou Novais para
o caso da supressão das Companhias de Comércio em 1778 e 1780, “[...] O exclusivo
metropolitano voltava assim a sua expressão mínima, ‘normal’, isto é, a ser privilégio da
burguesia mercantil metropolitana em conjunto”. Coutinho prosseguiu com tais reformas,
buscando não descaracterizar em demasia a estrutura socioeconômica portuguesa 82,
mesmo que tais mudanças acabassem desestabilizando, por fim, a realidade então
reinante83.
Podemos acentuar que o pensamento de Coutinho apresentou evidentes
continuidades, haja vista que na própria definição de riqueza, o autor expôs três origens
para tal: “o produto da terra, os salários dos jornaleiros e artistas e a renda do capital que
se acumula e se emprega seja em beneficiar e fazer produtiva a terra, seja em pôr em ação
os braços dos operários”. Tal definição se coaduna àquela que evidenciava o trabalho
como origem das riquezas. Como complemento, Coutinho criticou a “seita dos
economistas”, que teriam contestado tais pontos de vista, provavelmente ao enxergar
somente na terra a origem das riquezas. Novamente, não criticou cegamente a mineração,
defendendo a redução do quinto com vistas a estimular a atividade na América portuguesa
e a liberdade condicionada em sua exploração. Contudo, se a atividade mineradora
contribuiria para com as rendas reais e dos particulares, isso não levaria à consideração
do próprio metal como riqueza em si, haja vista que “[...] A moeda circulante é o sinal
representativo das riquezas de cada país e serve de unidade para as trocas dos efeitos que
diariamente se fazem [...]”84.
82
Ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Memória sobre o melhoramento dos domínios...”, pp. 56-57; ver
também NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise..., pp. 243-244. Para uma discussão sobre as
ideias de Coutinho nessa temática, ver POMBO, Nívia. “Um turista na Corte do Piemonte...”, pp. 221-225.
83
CARDOSO, José Luís. “D. Rodrigo de Sousa Coutinho em Turim...”, p. 41.
84
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Memória sobre o melhoramento dos domínios...”, pp. 55, 58 e 60.
Coutinho considerou a moeda da seguinte forma: “[...] De tudo o que fica dito sobre a moeda, seja metálica,
que é um sinal representativo universal, seja em papel, que é um representativo da metálica [...]” – ver Idem,
Ibidem, p. 61. Tendo em conta a importância do trabalho para a composição das riquezas na visão desse
secretário, é interessante citar que ele criticou os ociosos em 1798, marcando outra continuidade
argumentativa em relação a seus textos de Turim – ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Avisos e
instruções para D. Fernando José de Portugal...”, pp. 42-43. Para um trecho em que o secretário asseverou
que a agricultura é “a principal origem da riqueza nacional [no Brasil]”, ver COUTINHO, dom Rodrigo de
S. “Memória sobre o melhoramento dos domínios...”, p. 57. Vemos, aqui, confirmado o diagnóstico de que
as colônias deveriam se dedicar à produção agrícola. O trabalho nela empreendido geraria riquezas para o
Império. Para um trecho em que Coutinho dedicou espaço às fábricas, ver COUTINHO, dom Rodrigo de
S. “4º Discurso: 19-01-1802” in Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II.
Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. 202. Sobre a
concepção de riqueza do autor, ver também CANTARINO, Nelson M., op. cit., pp. 173-174.
102
Relacionada à sua visão sobre a economia, qual era a concepção do secretário
Coutinho sobre as colônias, tendo em vista o momento reformista de Portugal? Afinal de
contas, eram parte essencial da constituição econômica, política e social do império e
objetos da atuação política de Coutinho, agora um secretário de Estado com força de
decisão. Para compreender essa parte essencial de seu pensamento econômico e que
influenciou na própria adaptação das teorias vindas de fora, a “Memória sobre os
melhoramentos dos domínios de Sua Majestade na América”, escrita em 1797 ou 1798,
é relevante. Nela, o secretário discutiu questões da Fazenda e da política imperial,
especialmente sobre a América, “a base da grandeza do nosso augusto trono”. Devemos
salientar, todavia, que o próprio autor conferiu um maior peso à organização da Fazenda,
haja vista “que é o principal ponto de que dependem os outros e que é o que em última
análise decide da grandeza dos soberanos e da felicidade dos povos”85.
No que tange à organização política do Império, é conhecida a máxima de
Coutinho de que havia um enlace feliz e natural entre as colônias e a metrópole,
prometedor dos maiores benefícios a todo o Império:
[...] A feliz posição de Portugal na Europa, que serve de centro ao comércio do
Norte e Meio-dia do mesmo continente, e do melhor entreposto para o
comércio da Europa com as outras três partes do mundo, faz que este enlace
dos domínios ultramarinos portugueses com a sua metrópole seja tão natural,
quanto pouco o era o de outras colônias que se separaram da sua mãe-pátria; e
talvez sem o feliz nexo que une os nossos estabelecimentos, ou eles não
poderiam conseguir o grau de prosperidade a que a nossa situação os convida,
ou seriam obrigados a renovar artificialmente os mesmos vínculos que hoje
ligam felizmente a monarquia, e que nos chamam a maiores destinos, tirando
deste sistema todas as suas naturais consequências [...]86.
85
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Memória sobre o melhoramento dos domínios...”, pp. 47-48 e 54-55.
86
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Memória sobre o melhoramento dos domínios...”, p. 48.
103
do império e, afinal, certas reformas na produção, circulação de moedas e na taxação
colonial87.
Em respeito à agricultura, tecendo um enlace com a própria ideia de riqueza, ao
argumentar sobre a produção agrícola na América lusa, o autor não deixou de a conectar
a ditames políticos, pois a riqueza gerada nas colônias seria essencial para a organização
de todo o império, garantindo a subsistência das populações imperiais e o comércio de
antigos e novos produtos88, no que se inscrevia o arroz:
Animar as culturas existentes e naturalizar no Brasil todos os produtos que se
extraem de outros países deve ser outro grande objeto do legislador político,
unindo-lhe também o cuidado de segurar-lhes com a mais extensa navegação
o seu consumo na Europa por meio da metrópole e nas outras partes do mundo
por meio de outros domínios que a nossa real Coroa possui. Não seria contrário
ao sistema de províncias com que luminosamente se consideram os domínios
ultramarinos, o permitir que neles se estabelecessem manufaturas, mas a
agricultura deve ainda por muitos séculos ser-lhes mais proveitosa do que as
artes, que devem animar-se na metrópole para segurar e estreitar o comum
nexo, já que a estreiteza do terreno lhe nega as vantagens de uma extensa
agricultura89.
87
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Memória sobre o melhoramento dos domínios...”, pp. 48-62. Para um
resumo das medidas preconizadas por Coutinho na “Memória sobre os melhoramentos”, ver Idem, Ibidem,
pp. 64-66. Sobre, por exemplo, os apontamentos referentes aos correios na América portuguesa, ver Idem,
Ibidem, p. 66. Acerca de tal assunto, consultar a pesquisa de mestrado ainda em prosseguimento de
FORTUNATO, Thomáz. Nas vértices do Império: a formação das redes de correio na América portuguesa
(1796-c.1808). Dissertação em elaboração (Mestrado em História Social) – FFLCH-USP, São Paulo.
88
Sobre a busca de subsistência e novos produtos, ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Instruções para
Manuel Ferreira da Câmara...”, p. 73. Consideramos que a agricultura faz parte daquela fonte das riquezas
ligada essencialmente ao trabalho. Contudo, há algumas considerações em certos documentos que põem tal
ideia à prova. Em um projeto de lei feito por Coutinho, lemos que “[...] sendo a agricultura a primeira e
mais essencial das três origens e fontes da riqueza dos Estados [...]” – COUTINHO, dom Rodrigo de S.
“Projecto de carta de lei sobre reformas na agricultura (sem data – depois de Julho de 1799)” in Textos
políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção de edição de Andrée M. D.
Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. 164; em outro documento, suavizando tal afirmação, lemos que
“[...] a agricultura é uma das principais fontes da riqueza nacional [...]” – COUTINHO, dom Rodrigo de S.
“4º Discurso...”, p. 198. Em outro trecho, chegou a argumentar que “[...] o comércio deve ser a base da
grandeza do real trono e do Estado [...]” – COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Projecto de um empréstimo
de 15 milhões de cruzados (6 de Dezembro de 1798)” in Textos políticos, económicos e financeiros (1783-
1811). Tomo II. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993,
p. 119. Apesar de tais apontamentos guardarem certa distância do que antes referimos, fica ainda em pé
aquela definição de riqueza do autor calcada no trabalho produtivo.
89
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Memória sobre o melhoramento dos domínios...”, pp. 53-54.
104
América, local em que havia boas condições para o desenvolvimento desse ramo da
economia. Ademais, para beneficiar a agricultura, seria necessário garantir “fundos” aos
agricultores, com que pudessem melhorar o trabalho no campo90. Aí vemos também como
o secretário demonstrou especial interesse pela organização e reforma financeira do
Império luso, o que foi reforçado quando argumentou que “[...] um bom estado de
Fazenda é o melhor esteio dos tronos [...]”91. A agricultura não foi vista de modo isolado,
mas articulada, por exemplo, à existência de manufaturas, garantindo matérias-primas às
últimas92. Desse modo, o nexo se tornaria feliz e uniria de modo natural o reino e as
colônias ultramarinas portuguesas, garantidoras de matérias primas, alimentos e
reexportações para a metrópole93.
E em todo esse processo reformista, afinal, havia o desejo de substituir
importações que pesavam sobre a balança comercial, por meio da diversificação
econômica e melhoria da produção imperial, o que também poderia criar novas
exportações para o comércio luso. Tal reforma agrícola envolveria a garantia dada pelo
Estado e a instrução dos lavradores94:
90
Ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Instruções para Manuel Ferreira da Câmara...”, pp. 73-75;
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Plano sobre o mais fácil e natural meio de aumentar a povoação e riqueza
do Alentejo: criação de uma caixa de crédito ou banco particular (13 de Junho de 1798)” in Textos políticos,
económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva.
Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. 161. Para mais argumentos sobre a visão de Coutinho acerca da
agricultura, ver também a nota de Silva em COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Reflexões sobre o alto preço
que vão tomar as carnes...”, p. 168. Para um exemplo de mudança produtiva envolvendo a instrução dos
lavradores, ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “4º Discurso...”, p. 199.
91
Ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Representação ao príncipe regente sobre vários assuntos (5 de
Julho de 1798)” in Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção
de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. 91; COUTINHO, dom Rodrigo de
S. “Representação a S. A. R. o Príncipe Regente sobre um plano de fazenda (15 de Março de 1799)” in
Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção de edição de Andrée
M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. 142.
92
Ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Plano sobre o mais fácil e natural meio de aumentar a povoação
e riqueza do Alentejo...”, pp. 161-162.
93
ARRUDA, José Jobson de A. “Decadência ou crise do império luso-brasileiro: o novo padrão de
colonização do século XVIII”. Revista USP, São Paulo, n. 46, 2000, passim; FERLINI, Vera Lucia A.
“Uma capitania dos novos tempos...”, pp. 238-239.
94
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “4º Discurso...”, pp. 200-201; COUTINHO, dom Rodrigo de S. “1º
Discurso...”, p. 185; COUTINHO, dom Rodrigo de S. “2º Discurso: 7-01-1800” in Textos políticos,
económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva.
Lisboa: Banco de Portugal, 1993, pp. 191-192. Todo esse plano reformista, amplo e articulado, envolvia,
por certo, a emulação de práticas econômicas e científicas de outras nações – ver COUTINHO, dom
Rodrigo de S. “Projecto de carta de lei sobre o crédito público e criação de um banco público de crédito e
circulação (sem data – antes de Julho de 1797)” in Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811).
Tomo II. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. 109;
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “1º Discurso...”, pp. 180-183; COUTINHO, dom Rodrigo de S. “5º
Discurso: 29-03-1803” in Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e
direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. 207.
105
Que artes pode o Brasil desejar por muitos séculos, quando as suas minas de
ouro, diamantes etc., as suas matas e arvoredos para madeiras de construção,
as culturas já existentes e que muito podem aperfeiçoar-se, quais o açúcar, o
cacau, o café, o índigo, o arroz, o linho-cânhamo, as carnes salgadas etc., e as
novas culturas de canela, do cravo da Índia, da noz moscada, da árvore-do-pão,
etc., lhe prometem juntamente com a extensão da sua navegação uma renda
muito superior ao que jamais poderiam esperar das manufaturas e artes, que
muito mais em conta por uma política bem entendida podem tirar da
metrópole? Assim útil e sabiamente se combinam os interesses do império e o
que à primeira vista pareceria sacrifício vem, não só a ser uma recíproca
vantagem, mas o que menos parecia ganhar é o que disso mesmo tira o maior
proveito. Para vivificar estas culturas, para lhes dar toda a extensão que elas
podem ter, é que se deve por toda a atenção na navegação e abertura dos rios
que do centro do Brasil vêm à costa e praia do mar [...]95.
95
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Memória sobre o melhoramento dos domínios...”, p. 54.
96
Ver SILVA, Andrée M. D. “Introdução”..., pp. XXIII-XXIV e XLII; CARDOSO, José Luís. “D. Rodrigo
de Sousa Coutinho em Turim...”, pp. 31-32; POMBO, Nívia. Dom Rodrigo de Sousa Coutinho..., pp. 51-
55 e 72-73.
106
podem ter marcado relevantes pontos em seu pensamento, mas, como afirmou Cardoso e
procuramos demonstrar anteriormente, ele possuía “[...] uma concepção mais geral sobre
o papel do trabalho produtivo na formação da riqueza [...]. No “Discurso sobre a
mendicidade”, por exemplo, Adam Smith foi a grande influência. Mesmo que possamos
falar de certo ecletismo em seu pensamento econômico, influenciado por suas leituras
também ecléticas e por seu pragmatismo, há claramente uma evolução demonstrada em
seu pensamento, com a aceitação e adaptação das novidades teóricas trazidas pelos
pensadores da nascente Economia Política. Como exemplo disso, o pensamento
econômico de Coutinho não desconsiderou a ação e interesses dos indivíduos, mas
também conferiu relevante papel ao Estado e ao soberano português97. Sua visão era
coerente, pois
[...] a busca de felicidade torna-se no objeto central das decisões políticas do
soberano ilustrado que gere um sistema integrado em que a economia política
assume papel motor. O soberano não se substitui ao mercado, melhor dizendo,
não impede o bom funcionamento da sociedade comercial; pelo contrário, é ao
soberano que cabe o papel de equilíbrio entre a vida civil e o bem-estar
individual, por um lado, e o bem-comum e a felicidade pública, por outro98.
97
CARDOSO, José Luís. “D. Rodrigo de Sousa Coutinho em Turim...”, pp. 32-44. O papel do Estado, no
mínimo, envolvia a garantia da segurança no comércio internacional, negociações etc. – ver Idem, Ibidem,
pp. 41-42.
98
CARDOSO, José Luís. “D. Rodrigo de Sousa Coutinho em Turim...”, p. 42.
107
Como forma de encerrar a análise acerca dos desenvolvimentos no pensamento
econômico português desse período, podemos gastar um pouco de tinta com uma obra
escrita em fins do século XVIII. O maior espaço a ela dedicado aqui se explica pelo seu
caráter abrangente e a proposta de análise sistemática da economia portuguesa. Datada
do ano de 1795 e somente publicada em 1821, trouxe algumas considerações sobre as
questões anteriormente trabalhadas. Trata-se de “Economia Política” escrita por Manuel
Joaquim Rebelo, um negociante de Lisboa. A obra representou um desenvolvimento das
questões antes debatidas, trazendo à tona algumas problemáticas que seriam mais bem
desenvolvidas somente durante o século XIX. É uma boa forma de finalizar a análise,
demonstrando as mudanças no discurso econômico português do período. Para além
disso, poderá evidenciar, mais uma vez, o modo como a emulação de experiências alheias
foi considerada, com vistas a embasar as reformas econômicas99.
Manuel Joaquim Rebelo, o autor, não é como os demais escritores aqui vistos. Era
um homem de negócios de Lisboa, assim como seu pai o fora, e também se tornou um
familiar do Santo Ofício da Inquisição. Foi um negociante da capital lusa, em uma posição
não tão elevada quanto à riqueza. E, apesar do conhecimento declarado em seu texto e da
biblioteca amealhada por ele e seu pai, não teve uma educação formal, em Coimbra ou
em outras instituições, como os outros atores aqui analisados100.
Em sua obra, os primeiros três capítulos resumem boa parte de suas considerações
teóricas, as quais, todavia, não podem ser compreendidas sem os fins práticos do autor.
No que se refere à teoria, foi influenciado por diversos autores, tais como Smith, Bielfeld,
99
Ver VILAGRA, Bruno Ricardo. Manuel Joaquim Rebelo e o pensamento econômico português na crise
do império luso-brasileiro. 2017. 223 p. Tese (Doutorado em Histórica Econômica). FFLCH/USP, São
Paulo, 2017, pp. 22-24 e 186-188. A obra foi produzida anonimamente, somente constando as siglas MJR
como identificação do autor. Todavia, estudos feitos desde a década de 1980 apontaram a autoria de Manuel
Joaquim Rebelo. Para essas informações ver CASTRO, Armando. “Introdução” in M.J.R. Economia
Política feita em 1795 por M.J.R. Introdução e direção de edição de Armando Castro. Lisboa: Banco de
Portugal, 1992; também VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., pp. 26 – 42; por fim, CARDOSO, José Luís.
O pensamento econômico em Portugal nos finais do século XVIII (1780-1808). Lisboa: Editorial Estampa,
1989, pp. 221-230.
100
Ver CASTRO, Armando, op. cit., p. XIII; também VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., pp. 35-42.
Segundo Vilagra, a atuação de Rebelo na Junta do Comércio, criada pelo marquês de Pombal, teria tido
influência sobre o autor. Afinal, a Junta abriu espaço para teorizações sobre a economia e esse pode ter sido
um espaço em que o negociante tomou contato com questões abordadas em seu livro. Vilagra, ao analisar
as consultas elaboradas pela instituição, demonstrou que houve “[...] a utilização de uma nova abordagem
interpretativa acerca da realidade econômica [...]” e citou que seus membros deixaram de lado
considerações fisiocráticas, valorizando não somente o trabalho agrícola. Como será visto, tais ideias
estiveram presentes nas considerações de MJR. Ao mesmo tempo, como Rebelo não tinha posição tão
importante dentro dessa instituição – ou seja, não tinha tantas amarras burocráticas, tinha mais liberdade
para teorizar – ver VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., pp. 48-51, 60, 65-66 e 184.
108
Quesnay e Genovesi. Mesmo que a obra tenha feito uma análise original em e sobre
Portugal, o objetivo prático de analisar e solucionar problemas da economia lusa esteve
presente, permeando toda a obra101.
Já de início, o autor destacou as atribuições conferidas ao governo, sendo ele o
responsável, por exemplo, por animar as ciências e “ordenar os meios necessários para
que os povos pudessem, pelo seu trabalho, alcançar facilmente o seu sustento”.
Dissertando acerca dos impactos comerciais sobre a sociedade, advindos das conquistas,
estabeleceu que o aumento do comércio trouxe transformações ao governo: os indivíduos
buscariam o seu sustento, e o Estado somente deveria auxiliar tais ações por meio da boa
justiça e defesa militar. Todavia, com vistas a conseguir as rendas públicas necessárias,
ou seja, os impostos, o governo deveria tomar atitudes para dissipar os problemas que
atrapalhavam o desenvolvimento das riquezas do país102:
[...] Por este motivo, às obrigações do governo soberano, que antes se
conheciam, acresceu outro tanto, ou mais importante, qual é a de prever em
que os vassalos tenham os meios necessários, assim para alcançarem o seu
preciso sustento, como para poderem concorrer e contribuir para a geral
subsistência do Estado civil103.
Foi assim que o autor interpretou a relação entre os interesses individuais e a ação
do Estado. Os indivíduos buscariam os seus interesses, agindo de modo um tanto
autônomo em relação àquele. Mas o governo não deixaria de ter um importante papel na
regulação da esfera econômica. De modo sintético, segundo Vilagra, a obra do negociante
girou ao redor de duas questões fundamentais, que resumem boa parte dessas
considerações: a liberdade comercial e dos agentes econômicos. Tudo isso baseando as
reformas e levando ao desenvolvimento econômico português. Tais ideias nos relembram
daquelas apresentadas anteriormente por Azeredo Coutinho e dom Rodrigo, que também
enxergaram um coerente complemento entre os dois polos de ação 104.
101
VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., pp. 21, 26-27 e 100; CASTRO, Armando, op. cit., passim,
especialmente as pp. xiv e xxv-xxvi. Vilagra destacou que as várias descrições feitas por Rebelo em sua
obra são também sinais da influência da literatura memorialista, que esteve em voga na Academia Real das
Ciências de Lisboa – ver VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., p. 100.
102
Ver M.J.R. Economia Política feita em 1795 por M.J.R. Introdução e direção de edição de Armando
Castro. Lisboa: Banco de Portugal, 1992, pp. 3 – 5.
103
M.J.R., op. cit., p. 5.
104
VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., pp. 22 e 26-27. Como será visto, a relação entre a ação do Estado
e os interesses dos indivíduos é complexa e ambígua. Em certos momentos, por exemplo, Rebelo frisou as
“naturais diligências” que organizariam a vida econômica: “[...] a distribuição proporcionada dos artífices,
e agricultores, mais facilmente se faz por si mesma e se põem em equilíbrio pelas naturais diligências dos
interesses particulares; contanto que o governo político não proteja a uns com o prejuízo dos outros. Na
109
Para bem compreender essa relação, o estudo da economia política seria
necessário. Contudo, apesar de que alguns poucos negociantes ou estadistas a
conhecessem, a maior parte do povo não a entendia, até mesmo porque o conhecimento
sobre tal tema era algo relativamente recente. O estudo dedicado à agricultura, às artes, à
moeda, ao comércio, entre outros assuntos, levaria a bons resultados para o todo social e
deveria ser incentivado. Mesmo que somente alguns a conhecessem de forma orgânica, a
propagação de suas ideias poderia influenciar de alguma forma quem não a conhecia,
beneficiando todo o império e a sua economia. Se outros estudos relevantes, como os da
botânica e medicina, ganharam terreno no final do século XVIII, era chegado o tempo de
os portugueses se dedicarem ao estudo da economia política, emulando as práticas de
ingleses, franceses e italianos. Aqui, a ciência da economia política seria utilizada para
organizar todos os ramos econômicos do império, oferecendo suas lições ao governo
monárquico. A busca e a aplicação de ideias alheias ao mundo português envolveram,
potencialmente, até mesmo a constituição do estudo da economia política 105:
Os conhecimentos necessários para promover e proteger a agricultura, as artes,
a navegação e o comércio; assim como para a boa administração da Fazenda
Real e para a acertada regulação dos tributos e da moeda corrente, são os que
constituem a economia política, a qual neste reino é ainda mais peregrina do
que a história natural e as matemáticas; nem faltará quem olhe com mofa e
desprezo para a pretensão de a qualificar por ciência, quanto mais para a
insinuação de se instituir dela um estudo formal e metódico106.
Por meio da busca de conhecimento sobre o assunto no exterior, uma teoria geral
deveria ser construída, sem desconsiderar as particularidades de Portugal, o que revela,
segundo Vilagra, o pragmatismo do negociante. Rebelo, todavia, sabia das dificuldades
para a implementação desse estudo particular, pois, como visto acima, tal estudo deveria,
para se estabelecer, superar a desconfiança dos portugueses, um sinal da ebulição de
ideias e dos conflitos daí advindos nesse final do século XVIII107.
É dessa forma pela qual o autor criou uma teoria mais ampla, destacando a
necessária articulação entre os indivíduos e o Estado e a íntima relação entre os diversos
ramos que compunham a economia imperial, a qual, ademais, mereceria um estudo
proporção dos empregos indiretos com os diretos para a produção física, assim como dos de luxo com os
necessários, é que mais se requer a particular atenção superior”. Ver M.J.R., op. cit., p. 21.
105
Ver M.J.R., op. cit., pp. 5-9; VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., p. 105. Vilagra destacou a relevância
da emulação na obra de Rebelo – ver VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., p. 103.
106
M.J.R., op. cit., p. 7.
107
Idem, Ibidem, p. 9; VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., p. 106.
110
qualificado. Mas, dentro dessa teoria, quais foram as formas pelas quais o autor
considerou a riqueza? Seriam discursos próximos aos apresentados anteriormente? E o
papel do comércio? Como a agricultura é aí compreendida? E, afinal, qual seria o papel
conferido às colônias, incluindo a América portuguesa? Todas essas considerações nos
ajudam a entender o modo como a economia foi repensada e, nela, o papel da agricultura
e, mais particularmente, da rizicultura colonial.
Sobre a agricultura, os melhoramentos nela empreendidos foram vistos por Rebelo
como “[...] a mais importante de todas as artes [...]”. No século XVIII, após a “restauração
das letras”, a filosofia bem orientada teria trazido bons resultados para a física e a
agricultura. Dessa forma, as nações que mais atenção conferiram a tais estudos, seriam os
entes políticos superiores em riqueza e poder. A ignorância agrícola, por outro lado, seria
um atributo dos povos bárbaros. Portugal, nesse contexto, necessitava conferir atenção à
terra e as suas produções, tendo em vista a experiência daquelas nações mais “cultas” e
“avançadas”108.
Todavia, a cultura das terras deveria ser encarada por pessoas instruídas e não
somente pelos lavradores, cujos conhecimentos seriam limitados. Assim, ela alcançaria
aperfeiçoamentos. Ao dizer que a agricultura deveria ser bem considerada, diz que ela
estava abandonada, prática e teoricamente, aos cuidados dos “rústicos”, ou seja, aos
lavradores, aos trabalhadores braçais. Caberia ao Estado mudar tal situação, por meio, por
exemplo, da criação e sustentação de sociedades econômicas, as quais tinham “[...] sido
em outros reinos o meio mais próprio para essa emenda [...]”. Afinal, o trabalho da terra
englobaria a prática dos lavradores e a teoria econômica e agrícola discutida nas
academias ilustradas. Somente com esse auxílio prestado pelo Estado, a agricultura
conseguiria os tão necessários avanços, articulados, por sua vez, aos interesses dos
indivíduos, anteriormente frisados109.
Vemos o modo como a emulação de práticas vistas como superiores garantiria
melhores resultados na produção agrícola portuguesa. Contudo, não só de boas técnicas
108
M.J.R., op. cit., p. 29. Essa superposição entre a ausência de trabalho agrícola e a qualidade de bárbaro
foi usada nas “Memórias Econômicas da Academias de Ciências de Lisboa” – ver SILVA, José Veríssimo
A. da. “Memória histórica sobre a agricultura portuguesa considerada desde o tempo dos romanos até ao
presente. 1782” in Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento
da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo V. Direção de
edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1991.
109
M.J.R., op. cit., p. 30. Ainda sobre a prática da emulação, Rebelo fez considerações em seu texto sobre
os portos francos: o autor asseverou que, na cópia de experiências alheias, devia-se conhecer bem o exemplo
e adequá-lo à situação local, ou seja, à de Portugal – ver Idem, Ibidem, p. 127.
111
a agricultura necessitava. Rebelo sabia do fundamental papel desempenhado pelo capital
na sustentação do trabalho agrícola, pois era essencial a existência de “[...] bastante
cabedal sobressalente para renovar anualmente com proveito as suas reproduções [...]”.
Novamente, o Estado teria seu papel a cumprir: na administração do Erário, com vistas a
beneficiar os agricultores portugueses, os tributos deveriam ser bem calculados,
diminuindo o seu peso. Atestando as ligações entre os diversos ramos da economia, o
autor defendeu a “[...] proteção e auxílio do comércio e das manufaturas; porque esses
são os meios próprios para criar novas forças no corpo político atenuado; aliás não
cobrando vigor à agricultura, será cada vez mais perigosa a enfermidade do Estado”.
Ademais, sem o comércio, as produções agrícolas não encontrariam o seu necessário
consumo110.
Aliando tais teorizações a considerações práticas, relativas a Portugal, Rebelo
questionou e propôs alguns “setores” agrícolas merecedores da maior consideração.
Nessa definição, levou em conta a importância para a subsistência da população e a
natureza dos terrenos e climas lusos. Dessa forma, elencou em primeiro lugar a cultura
do trigo, milho, centeio e cevada, junto à de legumes, frutas e hortaliças. Não houve
grandes surpresas aqui, tendo em vista a constituição da alimentação europeia do período.
Notamos a ausência do arroz, enquanto os demais cereais tradicionais e inclusive o milho
foram considerados. Em seguida, as pastagens e o gado vacum tiveram a sua importância
acentuada, tanto para a agricultura, com os adubos, como para a subsistência humana.
Afinal, o autor também destacou a possibilidade de criar o gado lanar, tendo em vista a
alimentação e a manufatura de tecidos111.
O autor ainda citou a cultura de vinhas, olivais, amoreiras e a criação de bichos-
da-seda112. Por fim, argumentou a respeito do arroz:
Finalmente há terrenos apaulados que são próprios para produzirem o linho,
ou o arroz e o não são para outras produções: nestas culturas se devem
aproveitar, preferindo em todo o caso o linho, ou outra qualidade de
sementeira, que for adequada; porque o trabalho do arroz é muito nocivo à
saúde das gentes e enfraquece tanto as terras que em poucos anos as faz inúteis
para muitos tempos [...]113.
110
M.J.R., op. cit., pp. 31-33.
111
M.J.R., op. cit., pp. 33-34.
112
Idem, Ibidem, pp. 34-35.
113
Idem, Ibidem, p. 34.
112
Ecoando certas questões que serão mais bem trabalhadas no próximo capítulo,
Rebelo atestou que o linho e o arroz poderiam ser culturas destinadas a terrenos inundados
ou enxarcados, inaptos para outros cultivos, provavelmente mais valorizados. Ainda
assim, entre os dois, a preferência estaria no linho, haja vista os problemas ocasionados
pelo cereal. Notamos a argumentação genérica de que o trabalho rizicultor seria nocivo.
Isso estaria relacionado às condições laborais ou aos supostos miasmas exalados em tal
terreno inundado? Talvez ambas as condições. De forma incomum, todavia, M.J.R.
atestou que a cultura arrozeira enfraqueceria os terrenos e, nesse caso, apresentou uma
consideração original, não observada pelos demais autores consultados na pesquisa. É
dessa forma, portanto, em que o arroz é avaliado em seu escrito, sendo parte constituinte
da teorização sobre a agricultura: se a lavoura é parte importante da economia do reino,
o arroz, nela, não tinha tanta relevância, sendo superado até mesmo pelo linho, produção
que não era de primeira necessidade para a subsistência humana. Tal argumento
demonstra a ideia de que o arroz deveria ser um cultivo colonial, local em que os
problemas seriam mais fáceis de tolerar114.
Complementando tais ideias e ligando-as à problemática do comércio, em sua
reflexão sobre os portos francos, Rebelo defendeu uma “liberdade ilimitada” no comércio
de cereais, englobando o trigo, a cevada, o milho, o centeio, a aveia, as farinhas etc. –
note-se, novamente, a ausência do arroz nessa enumeração. Para o autor, tais cereais,
vindos de portos alheios, deveriam ser livres para entrar em Lisboa, mesmo que
carregados em embarcações estrangeiras, “enquanto o não possa ser nas nossas próprias”.
Depois, esses grãos poderiam ser vendidos ou exportados para qualquer lugar “sem
dependência de jurisdição alguma”. Essa liberdade atrairia mais navios e, assim, mais
cereal. Contra as críticas a essa medida, citou um exemplo do noroeste europeu, pois as
Províncias Unidas “se sustenta[vam] de trigo estrangeiro e, contudo, o comércio do trigo
[era] franco, livre e isento [...]; a experiência ensina[va] que regulamentos coactivos mais
serv[iam] de repelir, do que de atrair [cereais] [...]”. Havia, portanto, falta de cereal e a
forma de atraí-lo era por meio de uma maior liberdade de comércio, o que contrastava
com muitas das ideias mercantilistas defendidas por alguns autores, envolvendo, a título
de exemplo, o estabelecimento de companhias monopolistas. 115.
114
Para as críticas ao arroz, consultar as análises do próximo capítulo.
115
M.J.R., op. cit., pp. 133-134.
113
Rebelo ainda citou a exploração de bosques e de minas e a pescaria, indo além de
questões relacionadas à lavoura. Finalizou argumentando que tais produções deveriam
receber mais importância do que as de luxo. É dessa forma em que o autor enxergou a
constituição produtiva do reino. Mas a própria definição de importância na produção
desses itens, elencando itens de primeira, segunda e de inferior necessidade, não
esbarraria na liberdade incondicional dos lavradores? Se no comércio os itens poderiam
ser trocados com certa facilidade, qual seria o motivo de determinar a importância e tentar
regular a produção?116 Segundo Rebelo,
[...] quem possui as cousas que são da primeira necessidade dá a lei a respeito
do seu preço a quem por elas quer trocar as menos precisas; e ainda tem maior
vantagem com que somente oferece os objetos de luxo e apetite, além de que
facilmente ocorrem embaraços que dificultam a vinda do que se há de mister
de fora, por cujos motivos não só está mais seguro, mas negoceia com mais
favoráveis condições, quem tem de casa o que lhe é preciso [...]117.
Esses seriam os motivos que levariam a tais regulações. Nesse caso específico,
vemos como as forças livres do mercado não estariam tão livres assim, tendo de ser
guiadas por outras questões, para o benefício da sociedade e do Estado português, o que
nos recorda das considerações dos autores antes analisados. Se, por um lado, Rebelo
conferiu atenção às particularidades práticas de Portugal, elencando os itens que poderiam
ser cultivados, o autor também buscou ideais gerais, de alcance mais amplo:
[...] Do que se conclui por uma regra geral que em todo o Estado onde se puder,
com utilidade dos lavradores, cultivar o trigo, deve o governo soberano suscitar
a sua cultura com preferência a outra qualquer, por ser objeto da primeira
necessidade118.
116
M.J.R., op. cit., pp. 33-36.
117
Idem, Ibidem, p. 35.
118
Idem, Ibidem, p. 36.
114
uma explanação sobre a agricultura, o autor a conectou a uma observação teórica sobre a
relação entre o poder estatal e os indivíduos. Ficou evidente a organicidade da
interpretação de Rebelo, em que as questões foram trabalhadas de forma conjunta,
resvalando umas nas outras119.
Para o autor, a agricultura requeria a maior consideração por parte da monarquia
e “[...] as suas vantagens, em uma nação, são superiores às de qualquer outro emprego
dos seus indivíduos [...]”. Todavia, longe de ser um fisiocrático, como adiante será visto,
o autor apresentou uma visão de conjunto do todo econômico, interligado e
interdependente, em que a agricultura tinha destaque, enquanto base de sustentação da
sociedade. Seguindo a interpretação de José Luís Cardoso para o movimento
memorialista da época, talvez seja possível frisar uma espécie de agrarismo presente em
suas considerações, sem deixar de notar a importância conferida a outros setores
econômicos e a sua definição de riqueza. As próximas linhas tornarão mais evidente o
modo como Rebelo associou a agricultura a um todo orgânico da economia lusa 120.
Mesmo com tais assertivas sobre a importância das produções agrícolas, não se
deve concluir que a definição de riqueza do autor se resumiu ao trabalho da terra. Para
Rebelo, a terra é o patrimônio essencial das sociedades, “[...] mas a maior, ou menor
riqueza de cada um[a] del[a]s, é proporcionada ao trabalho e à indústria com que os
homens cultivam as produções naturais [...]”. O trabalho dos cidadãos criaria a riqueza
do Estado e “acrescentaria valor às mercadorias”. Em tal contexto argumentativo,
ademais, a povoação deveria ser bem atendida, tendo em vista que o trabalho dos
habitantes produziria a maior parte da riqueza do todo social. Não por acaso, o autor
argumentou que as rendas do Estado, por meio do trabalho, teriam a sua origem não só
na agricultura, mas também na pescaria, na mineração e na produção de manufaturas121.
119
VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., pp. 89-91 e 183-185.
120
M.J.R., op. cit., p. 36; VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., pp. 22, 123-124 e 184; CARDOSO, José
Luís. O pensamento econômico em Portugal..., pp. 67-79; também CARDOSO, José Luís. Pensar a
economia em Portugal..., caps. V e VI; PEDREIRA, Jorge Miguel. “Agrarismo, industrialismo, liberalismo
– algumas notas sobre o pensamento económico português (1789-1820)” in CARDOSO, José Luís (org.).
Contribuições para a História do Pensamento Económico em Portugal: comunicações apresentadas no
Seminário sobre História do Pensamento Económico em Portugal organizado pelo Centro de Investigação
sobre Economia Portuguesa (CISEP) do Instituto Superior de Economia. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1988. Para outro argumento sobre a influência da literatura memorialista em Rebelo, ver
VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., p. 100.
121
M.J.R., op. cit., pp. 26-29 e 36-37; VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., p. 115. Tanto é verdade que o
trabalho seria a origem das riquezas que, para Rebelo, “[...] nas produções naturais e artificiais consiste
essencialmente a renda total do Estado, e que o trabalho dos lavradores e dos artífices é o que diretamente
cria essas produções. Logo do valor deste trabalho é que unicamente pode sair toda a importância dos
115
Afastando-se, portanto, de concepções fisiocráticas, Rebelo não compreendeu o
trabalho agrícola como o único “fisicamente produtivo”. Pelo contrário, depreendeu uma
relação dele com a produção dos artífices, ambos como fontes de riqueza para o império
português122:
[...] Para Rebelo, os ofícios das manufaturas e artes eram produtivos na medida
em que o valor do trabalho não era apenas o que consumiram de produtos
agrícolas durante o processo produtivo, mas o produto do trabalho criaria
novos valores às mercadorias, que supririam com sobejo a manutenção e
reprodução do trabalho123.
tributos, ainda que eles sejam pagos imediatamente por uma e outras classes de vassalos, em razão da
propriedade e posse dos bens em que eles se acham atualmente [...]” – ver M.J.R., op. cit., p. 86.
122
M.J.R., op. cit., pp. 42-43. Rebelo também analisou a relevância da produção de artigos de luxo. Caso
seu consumo fosse inevitável, as reservas imperiais não deveriam ser gastas para trazer tais itens do exterior.
A produção deveria ser nacional, “[...] enquanto el[a] não prejudicar a outras mais necessárias ocupações
[...]” – ver Idem, Ibidem, p. 43. Para uma discussão sobre as características do pensamento fisiocrático e
mercantilista, ver CARDOSO, José Luís. O pensamento econômico em Portugal..., pp. 67-79 e DEYON,
Pierre. O mercantilismo....
123
VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., p. 91.
124
M.J.R., op. cit., pp. 44-46. Nessa explicação, Rebelo lançou mão da imagem da fábrica de alfinetes,
retirando-a ou da obra de Smith ou da Enciclopédia. Ver Idem, Ibidem, p. 44.
125
Ver Idem, Ibidem, pp. 46-47. Tal argumentação sobre os privilégios etc. podia também ser encontrada
nas consultas da Junta do Comércio analisadas por Vilagra. Todavia, também houve divergências entre as
formulações de MJR e as da Junta sobre o assunto. Ver VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., pp. 63-65.
116
É essa a forma pela qual Rebelo concebeu a sua ideia de riqueza. Por um lado, se
distanciou daquelas visões fisiocráticas que encontravam na terra a única origem das
riquezas, sem deixar, contudo, de frisar a importância das produções agrícolas. Tal visão,
como visto, pode aproximá-lo da argumentação agrarista então vigente. Rebelo sabia da
maior relevância da agricultura, mas sinalizou que a produção manufatureira também
atendia às necessidades básicas da população. Avaliou que “[...] o trabalho nas
manufaturas criaria novos valores, em oposição à[s] ideias fisiocráticas da esterilidade do
trabalho não empregado à agricultura”. Por outro lado, longe estava também de igualar a
riqueza nacional ao acúmulo de metais, sendo esse último um traço normalmente
atribuído ao pensamento mercantilista. Para ele, esses últimos serviriam basicamente
como “signos do valor dos outros bens”. Os metais entrados no país seriam resultado do
trabalho agrícola ou industrial anterior, responsáveis pela produção de artigos excedentes
que foram comercializados. Más consequências viriam de uma errada definição da
riqueza, igualando-a ao acúmulo daqueles metais126:
[...] Mas se entender erradamente que esta [a riqueza] consiste essencialmente
nos metais preciosos, porque com eles se podem alcançar de fora as cousas que
são necessárias; se deixar de prover em que haja de casa as mais precisas, para
poder negociar com os estrangeiros vantajosamente e não violentado pela
necessidade, nestes casos quanto maior quantidade daqueles metais
produzirem as suas minas, tanta será necessária para pagar o que de fora lhe
vier por não o poder escusar; diminuirá a povoação do Estado pela falta de
ocupação e de indústria; tudo será desordem e miséria127.
Ao mesmo tempo, esses metais não tinham somente esse papel, pois eram também
mercadoria. Graças a isso, a balança comercial de Portugal deveria ser vista de modo
particular, tendo em vista a existência de minas em seus domínios do ultramar. O autor
propôs um exemplo para que se compreendesse essa outra faceta dos metais: nele,
sustentou que Portugal exportaria mercadorias no valor de 30 milhões e importaria no
valor de 40 milhões128. Nessa hipótese – não muito longe da realidade:
[...] Se não tivesse Portugal minas de ouro, do qual faz dinheiro, perderia em
cada ano esses dez milhões, e de tanto se iria empobrecendo o Estado. Assim
126
M.J.R., op. cit., pp. 41-42 e 55; também VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., p. 123; NOVAIS, Fernando
A. Portugal e Brasil na crise..., pp. 60-62. A ideia de que, no final do século XVIII, havia uma conjugação
entre os setores agrícola, manufatureiro e comercial é defendida por Rebelo, assim exemplificada por
Vilagra: para Rebelo, “[...] uma vez realizada a importação daqueles produtos essenciais à sobrevivência
humana, haveria um aumento dos custos de sobrevivência que, pela teoria do valor do trabalho elaborada
por Rebelo, levaria ao aumento de todos os demais produtos [...]”. Portanto, desequilíbrios em um setor da
economia afetariam os demais. Ver VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., p. 123. Sobre o entrelaçamento
dos diversos setores econômicos, ver ARRUDA, José Jobson de A. “Decadência ou crise...”, passim.
127
M.J.R, op. cit., pp. 56-57.
128
M.J.R., op. cit., pp. 123-124.
117
acontece àquelas nações que não têm minas de ouro ou prata; e por isso o que
recebem ou pagam em dinheiro à satisfação do mais que vendem, ou do mais
que compram, indica o seu lucro ou a sua perda. Mas onde há minas daqueles
metais a balança do comércio se calcula por outro modo, e eles se consideram
como mercadorias, e computando-se o seu valor na conta do que sai para
pagamento do que entrar de sorte que se Portugal extrair anualmente das suas
minas tanto ouro que importe em 12 milhões; e não houver de pagar em razão
da balança geral do seu comércio mais do que os 10 milhões supostos, lucrará
anualmente neste comércio dois milhões; e será essa uma prova da sua riqueza
progressiva. Pelo contrário extraindo das minas só oito milhões de ouro, será
necessário que pague os dois milhões que faltam com o dinheiro, ou outros
bens que de antes possuía; e continuando assim o seu prejuízo, irá
empobrecendo; não poderá pagar o que deve e chegará a não poder comprar o
que há de mister129.
Os metais não eram a riqueza em si, mas tão-somente seu signo. Ao mesmo tempo,
nos países ibéricos, principalmente, deveriam também ser vistos como mercadorias. Se,
por enquanto, Rebelo tratou um tanto teoricamente sobre o erro de se compreender os
metais como a própria definição de riqueza, mais adiante veremos como a prática
econômica lusa ilustrou tais decisões equivocadas. No momento, ainda demonstraremos
como Rebelo complexificou a ideia de riqueza, abrindo espaço ao papel do comércio130.
Mesmo não sendo produtivo nele mesmo e sem acrescentar muito ao valor dos
bens, era o comércio que garantia o consumo das produções e “alcança[va] o preço
competente de uns e outros produtos”. Dessa forma, era ele o dinamizador das atividades
agrícolas e manufatureiras e, por conseguinte, uma das fontes de riqueza131.
Ao governo caberiam algumas medidas para bem administrar a atividade
comercial. Deveria, basicamente, oferecer a proteção e a liberdade necessárias. Em
relação à primeira demanda, os pontos básicos envolviam a facilidade e a segurança
129
M.J.R., op. cit., p. 124.
130
Ver também VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., pp. 93-94. No trecho assinalado, Vilagra destacou
como a interpretação de Rebelo sobre o valor dos metais era próxima e ao mesmo tempo distinta da de
autores como Bacelar Chichorro.
131
Ver M.J.R, op. cit., p. 48. Rebelo reconhecia que os comerciantes lidavam com importante parte do
dinheiro de outros cidadãos e por isso deveriam ser vigiados. Contudo, isso não deveria levar a intromissões
em seus negócios por parte do Estado e suas “incompetentes direções”. O comerciante deveria “[...] ter a
liberdade de comprar e vender; transportar e navegar como a sua indústria lhe sugerir. Do contrário podem
acontecer não pequenos danos ao interesse comum”. Suas críticas nesse campo vão além e envolvem até
mesmo a relação com as colônias: “[...] A navegação mercantil como uma grande parte que é do comércio,
necessita assim como este, de uma grande liberdade. Depois de se declararem as viagens que são permitidas,
e os portos dos próprios domínios, ou alheios, onde se pode ir a negociar, não convém que o governo
soberano, ou em seu nome o governo particular, em cada um dos diversos portos, se intrometa, a dirigir,
demorar, ou dificultar a disposição do negociante, com um, ou outro ligeiro pretexto [...]”. Como visto e se
verá adiante, mesmo que Rebelo tenha reconhecido alguns direitos do governo monárquico, na regulação
do comércio colonial, não deixou de defender a liberdade – condicionada – dos comerciantes. Como
assinalou Vilagra, é evidente a tentativa de atrelamento da lógica do Antigo Regime às novas ideias da
Economia Política. Ver Idem, Ibidem, pp. 49-50 e 62-63; também VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., pp.
109 e 184-185.
118
comerciais: a facilidade fazia referência, por exemplo, à existência de boas condições de
transporte, por terra ou mar. Por outro lado, deveria haver segurança contra os mais
variados tipos de criminosos e o aperfeiçoamento da justiça. Se isso, enfim, dizia respeito
à proteção, como seria definida a liberdade para o comércio132?
A liberdade mais útil ao comércio em oposição à natural cobiça dos
comerciantes consiste em que o governo soberano e os ministros régios tratem
com uma grande igualdade a todos os negociantes, sem concederem a uns
pouco maior proteção, privilégios, isenções, ou outras particulares vantagens
dos que em geral gozam todo os mais; porque do contrário resultam os
monopólios que fazem lucrar demasiadamente aos que são favorecidos com a
preferência e tolhem o equilíbrio dos preços das mercadorias, os quais não se
estabelecem competentemente, senão pela livre concorrência de todos os
negociantes, que os faz ganhar o menos que é possível em benefício comum
[...]133.
132
M.J.R., op. cit., pp. 52-53.
133
Idem, Ibidem, p. 53.
119
nem todos teriam os mesmos direitos e que os membros inferiores teriam um maior grau
de dependência. Todavia, ao mesmo tempo em que se preservava a hierarquia, todas as
partes que compunham o império deveriam ser enlaçadas, formando um todo bem
articulado134, talvez visando algo próximo àquele feliz nexo defendido por dom Rodrigo.
O reino deveria conferir importância à agricultura com vistas a obter itens de
primeira necessidade, imprescindíveis à alimentação da população, mas não poderia
deixar de considerar e se atentar às manufaturas. Dessa forma, por meio do comércio,
venderia o que sobrasse, comprando os artigos que faltassem ao consumo interno.
Contudo, a situação se torna mais intricada quando Rebelo considerou a existência dos
domínios ultramarinos. Portugal teria a “felicidade” de dominar extensas terras na
América, “[...] em que a agricultura pode ter uma infinita extensão [...]”, o que já de
antemão revela o papel a elas proposto. A agricultura aí empreendida ofereceria
produções distintas das do reino, beneficiando a economia imperial. Por outro lado, o
pequeno número de colonos deveria somente se dedicar a atividades manufatureiras “[...]
de mais fácil execução e de mais pronta necessidade para se prover pelo comércio do
reino dos produtos [e] outras manufaturas necessárias, cômodas e de luxo, a troco das
suas superabundantes produções”135. Tais considerações recordam as ideias do secretário
Sousa Coutinho sobre o desenho imperial português.
134
Ver M.J.R., op. cit., pp. 12-13 e 64; também VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., pp. 109 e 184-185.
Em sua discussão sobre os portos francos, Rebelo criticou a ideia de utilizar Lisboa como um porto dessa
natureza, recebendo as produções americanas de outras nações. Reunidas em Lisboa, haveria maior
competição estrangeira e os preços cairiam. Portugal criaria maior concorrência para suas próprias
produções luso-americanas. E no caso da Ásia? Tal franquia acabaria com a navegação portuguesa naquele
continente, os empregos então existentes e os lucros. Os estrangeiros, por seu turno, ganhariam o que
Portugal perdesse. Ver M.J.R., op. cit., pp. 134-135. Dom Rodrigo, por seu turno, defendeu a criação de
um porto franco no Algarve enquanto ainda vivia em Turim – COUTINHO, dom Rodrigo de S.
“Recopilação dos ofícios expedidos de Turim no ano de 1786”..., p. 78.
135
M.J.R., op. cit., pp. 64-65. Um caso intermediário, postulamos, seria o do arroz: mesmo conhecido e
produzido no reino, seu cultivo em terreno luso-americano poderia trazer maiores benefícios econômicos,
haja vista a disponibilidade de terrenos e o clima favorável. Para outro trecho em que Rebelo teorizou sobre
o espaço da agricultura e das colônias, ver Idem, Ibidem, pp. 22 e 36. Ademais, certas teorizações do autor
sobre os direitos alfandegários refletem algumas das legislações feitas a respeito do arroz, citadas mais à
frente. Para Rebelo, artigos produzidos no Reino ou que logo o seriam, e que fossem ainda assim
importados, deveriam ser taxados. Por outro lado, “[...] a não se porem em prática os meios diretos para as
poder ter da própria cultura, ou fabricação, o aumento dos direitos nas de fora só por si não é o que as há
de produzir; antes as dificultará mais, sendo assim feito intempestivamente; porque virá a encarecer o custo
do sustento, e do vestuário, com tão grave dano público, quanto o uso dos gêneros for mais necessário. Os
direitos da entrada das primeiras matérias que não há, e se necessitam para laborarem as próprias
manufaturas, se devem moderar o mais que for possível [...]”. Complementando tais considerações, Rebelo
propôs que as taxas sobre as mercadorias exportadas por Portugal fossem pequenas, tendo em vista a
competição com as de outras potências. No caso das colônias lusas, o preço estabelecido seria pago, fosse
qual fosse. Contudo, sendo caras, encareceriam as próprias produções da colônia direcionadas à metrópole.
120
Nesse contexto argumentativo, aliás, se o arroz era nocivo às pessoas e às terras
do reino, talvez Rebelo pensasse que somente nas colônias, dedicadas à agricultura em
sua essência, ele poderia ser cultivado sem tanto alarde. Lá, o arroz seria cultivado longe
de cidades e por escravos, não camponeses portugueses. Esse é o espaço teorizado para a
rizicultura, com base nas ideias de ilustrados portugueses.
Reforçando suas teorizações e proposições práticas, Rebelo argumentou que a
América portuguesa possuía uma antiga história de contribuições econômicas para com
o reino. O autor elencou, por exemplo, o açúcar, o tabaco e, afinal, o ouro já no início do
século XVIII. Nesse último caso, apresentou importantes considerações, pois Portugal
teria, naturalmente, fabricado dinheiro com esse metal garimpado, mas, de modo errôneo,
instituiu a prática de comprar muito do que precisava com tal “riqueza”, ignorando a
agricultura e as manufaturas. Tornando a situação mais problemática, logo as minas de
ouro também passaram a apresentar quedas produtivas. Ou seja, a confiança exagerada
naquele sinal representativo causou diversos problemas à economia, desregulando a base
agrícola e manufatureira do império. Como caracterizar o papel desempenhado por esse
metal e quais foram as soluções encontradas pelo negociante?136.
[...] Desenganados à nossa custa pela experiência, já sabemos que o ouro em
si não é a maior, senão a menor riqueza; mas também devemos advertir que
como metal precioso de um uso geral para a representação dos valores, não
deixa de ser importante e digna de particular cuidado a sua extração, a qual
convém prosseguir de modo que ela não prejudique a cultura dos géneros
próprios para o uso necessário que são de maior importância. Portanto, parece
que fora um novo erro o desprezar as minas de ouro, deixando de pôr em
prática os remédios oportunos para prevenir a sua total decadência [...]137.
Novamente, vemos o encadeamento imperial e o impacto no todo político de decisões financeiras. Ver
Idem, Ibidem, pp. 92-93.
136
M.J.R., op. cit., pp. 65-66.
137
Idem, Ibidem, p. 66. Um dos “remédios” propostos pelo autor, para a recuperação da mineração, seria o
ensino de melhores práticas aos mineradores – Idem, Ibidem, pp. 66.
121
possível e rentável entre essa região e os entrepostos portugueses na Ásia, ainda que o
poderio luso nessa última região tenha decaído muito em relação a outros tempos 138.
Demonstrando o modo como encarava as íntimas relações entre as partes do
império português, um exemplo foi citado quando o autor argumentou sobre a forma pela
qual os habitantes da África ocidental conseguiriam mercadorias necessárias e as
diferenças de preços daí resultantes. Segundo Rebelo, conforme fossem mais caras, “[...]
tanto maior preço terão os negros no Brasil, e consequentemente as produções deste virão
a custar mais; o que será causa não só de o reino as pagar por maior preço, mas também
de não terem tanto consumo pelo comércio exterior [...]”139.
Articulando as explanações do autor sobre os vários setores produtivos, bem como
da configuração imperial de Portugal, vemos que Rebelo não defendeu uma inteira
liberdade comercial, mas aquela dos sujeitos, dos agentes econômicos do reino.
Privilegiou as atividades econômicas do Reino, em detrimento da dos colonos,
preservando, assim, o monopólio essencial para Portugal140. Reforçando os laços
coloniais em uma lógica de Antigo Regime, o negociante defendeu uma regra geral,
mesmo que também tenha gastado tempo com discussões práticas e específicas:
A regra geral prescreve que o comércio das colónias seja inteiramente
dependente do reino, que é a cabeça do Estado; pelo que se deve ser totalmente
proibido o comércio direto das colônias com os domínios estrangeiros.
Enquanto ao de umas com outras colônias particularmente entre si, também
em geral ele não deve ser permitido senão enquanto for preciso para a
conservação das mesmas colônias [...]141.
138
M.J.R., op. cit., pp. 67-70.
139
M.J.R., op. cit., p. 69.
140
VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., p. 120.
141
M.J.R., op. cit., p. 69.
122
como negociante na praça de Lisboa, conhecedor que foi das práticas comerciais desse
período, bem como sua participação na Junta do Comércio142.
Sua obra envolveu o embate entre diversos binômios. Se, por um lado, a
interpretação que se faz dela traz à tona o enlace entre teorização e prática, Rebelo
também trabalhou com a articulação dos interesses individuais àqueles do Estado. Sinais
evidentes da influência de novas ideias que deveriam ser adaptadas ao terreno português.
Outro binômio argumentativo visto no livro teve na ideia da emulação sua chave
interpretativa. Novamente, as potências do noroeste europeu, compondo uma
temporalidade distinta e articulada pelo mercado mundial àquela dos países ibéricos, são
apresentadas como exemplos do que Portugal deveria fazer, ainda que as ideias
necessitassem de adaptações. Rebelo tomou ideias emprestadas ao estrangeiro, mas visou
preservar as características portuguesas, ligadas a uma configuração do Antigo Regime.
“[...] São essas ‘exceções’ da teoria geral do autor que nos possibilitam compreender sua
especificidade, e como os postulados produzidos em países estrangeiros foram por ele
adaptados para a realidade portuguesa”143.
Todas essas questões apresentadas revelam o clima eivado de novidades e
persistências nesse final do século XVIII. Por mais que estivesse baseado em ideias
originais, recortadas de obras recentes, Manoel Joaquim Rebelo era um homem de sua
época, vinculado às experiências do Antigo Regime e, particularmente, às experiências
de Portugal e suas colônias. Defendeu em seu texto a monarquia e o sistema colonial, ao
mesmo tempo em que teorizou sobre a economia política. Como símbolo das novas ideias,
por exemplo, Rebelo contrapôs a usura ao juro do dinheiro, defendendo a cobrança do
último, que traria benefícios à sociedade e à economia. Evidenciou a simultaneidade, em
fins do século XVIII, de ideias distintas, o embate entre juízos liberais nascentes e a lógica
ainda existente do Antigo Regime144. Como bem concluiu Bruno Vilagra,
142
VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., pp. 22, 65-66, 89-90, 106, 109 e 183-185; CASTRO, Armando, op.
cit., passim, principalmente a p. XVII.
143
VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., pp. 26-27, 102-107, 124 e 180-188; M.J.R., op. cit., pp. 3-5;
BERBEL, Marcia; MARQUESE, Rafael de B.; PARRON, Tâmis, op. cit., pp. 11-93.
144
Ver M.J.R., op. cit., pp. 100-102; CASTRO, Armando, op. cit., pp. xiv et seq. VILAGRA, Bruno
Ricardo, op. cit., pp. 184-185 e 188. Evidenciando, mais uma vez, a articulação entre vigilância superior e
liberdade econômica, disse Rebelo sobre a taxa de juros: “[...] Não está no arbítrio do soberano o determinar
qual há de ser o preço legal do juro do dinheiro, pois que ele se regula sempre pelo preço que corre no
comércio, o qual é o que no contraste dos opostos interesses do vendedor, e do comprador, estabelece
naturalmente os preços de todas as cousas venais. Sim pode às vezes o soberano, em atenção a algumas
particulares circunstâncias, moderar o preço legal do juro, estabelecendo-o com alguma diminuição do
preço natural, e corrente no comércio; porém se excedendo a diminuição ao que requerem essas
123
[...] São latentes as posições ímpares defendidas pelo autor quando cotejado
com seus pares coetâneos. Para além da preocupação de Rebelo em apoiar suas
teses em formulações teóricas, sobressai sua abordagem da economia em si,
compreendida por ele de maneira sistêmica, ou seja, a economia desenvolveria
importante função em todos os ramos da sociedade. Ao mesmo tempo, fica
claro que Economia Política é uma obra dentro de seu tempo, na medida em
que apesar de uma abordagem teórico-conceitual sui generis, é portadora de
concepções e modos de compreensão, tanto dos fenômenos econômicos como
sociais, característicos do momento de sua escrita, finais do século XVIII145.
Por meio da análise das obras elencadas neste capítulo, dois caminhos
interpretativos podem ser tomados. O primeiro diz respeito ao desenvolvimento do
circunstâncias, se apartasse muito daquele preço natural, fazia o soberano uma injusta violência, assim
como fora taxar qualquer mercadoria em preço diminuto do seu natural valor” – ver M.J.R., op. cit., pp.
102. Por fim, não podemos deixar de sinalizar que a defesa dos juros deve ser interpretada tendo em conta
que Rebelo era um ator que lidava com negociações que envolviam essa cobrança – VILAGRA, Bruno
Ricardo, op. cit., p. 118.
145
VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., p. 136.
146
Ver BERBEL, Marcia; MARQUESE, Rafael de B.; PARRON, Tâmis, op. cit., pp. 76-77; AZEVEDO,
Dannylo de, op. cit., pp. 36 e 95-96. As discussões sobre tal tema não foram finalizadas na obra de Rebelo
em Portugal. Rodrigues de Brito, Silva Lisboa, Acúrsio das Neves são alguns nomes que continuaram o
debate. Como sinal de que as discussões de Rebelo continuaram relevantes no início do século XIX, sua
obra somente foi publicada em 1821, 26 anos após a escrita – ver VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., pp.
184-188.
124
pensamento econômico português, cobrindo um período que fundamentalmente vai da
década de 1740 ao início do século XIX. Nesse contexto, as discussões foram
modificadas, os interesses foram renovados e os participantes variaram. O segundo está
relacionado ao modo como a emulação pode ser uma chave-interpretativa das propostas
apresentadas pelos atores analisados.
Houve mudanças interpretativas na forma de analisar a economia no período,
conjugadas a ideias ilustradas e reformistas em terras portuguesas. Ao iniciarmos a
discussão com os escritos de Sebastião José de Carvalho e Melo, enquanto enviado a
Londres e como membro da governação lusa, notamos o papel fundamental das colônias
para o império e a manutenção de algumas práticas mercantilistas, haja vista a criação das
conhecidas companhias monopolistas de comércio e a tentativa de reformulação na
balança de pagamentos. É evidente que tais práticas tinham suas particularidades, pois,
como argumentou Maxwell, para os ibéricos, o objetivo não foi atrair metais preciosos de
outros poderes europeus, mas evitar que aqueles garimpados em suas colônias americanas
saíssem em direção ao restante do globo. A política econômica de Pombal visou fortalecer
a posição dos mercadores portugueses. O objetivo de Pombal foi “[...] fortificar o poder
de barganha da nação dentro do sistema comercial atlântico”. Dessa forma, explica-se a
preocupação constante com o comércio, a agricultura e a indústria, envoltos em uma
lógica econômica que privilegiava o equilíbrio da balança de pagamentos e a substituição
de importações, tendo em vista também a queda na acumulação de metais. Ao mesmo
tempo, a própria dinamização das demais atividades econômicas pode demonstrar uma
implícita transformação na maneira de conceituar a riqueza, não dependente apenas do
garimpo de ouro e da prata ou somente da produção da terra. Com o ouro escasseando
nos campos americanos, houve uma tentativa de dinamização econômica, conjugando a
agricultura às manufaturas e ao comércio. Talvez, devido a tais mudanças, principalmente
no final do século, alguns autores puderam citar um mercantilismo ilustrado como forma
de avaliação das práticas econômicas e políticas do período: espécie de meio-termo entre
o mercantilismo visto como mais tradicional e as novas formas de abordar a economia e
a política. Outros, por seu turno, evidenciaram a persistência de ideias econômicas e
políticas do século XVII durante o Setecentos, inclusive influenciando as ações de um
125
reformador como o marquês de Pombal. Tratou-se de um período eivado de rupturas e
continuidades147.
Se houve continuidades nas práticas reformistas entre os reinados de dom José I e
de dona Maria I, isso não significa que mudanças no modo de conceber a economia devem
ser subestimadas. Na análise proposta, englobando as obras do bispo Azeredo Coutinho,
M.J.R. etc., percebemos os desenvolvimentos argumentativos ocorridos no período,
momento de transformação e inovação nas teorias econômicas. Talvez, tais mudanças
também tenham de levar em conta as ebulições políticas ocorridas, materializadas nas
diversas revoluções europeias e atlânticas148.
No caso do eclesiástico, para além das citações a diversos autores do período, o
que demonstra o embate e tentativa de utilização de novas ideias, vemos novos pontos
argumentativos surgirem. Azeredo Coutinho gastou páginas ao explorar a articulação
entre os interesses individuais e aqueles do Estado, demonstrando a necessidade de bem
considerar a ambos. O papel do Estado, enquanto coordenador e ator na economia, é um
dos exemplos das ambiguidades do período. Destacamos ainda o papel essencial atribuído
às colônias e a demonstração da necessária junção entre os diversos ramos que
compunham a economia imperial. O que, aliás, reforça o argumento de Arruda de que
havia uma articulação entre tais ramos. Como reformista em um império de alcance
mundial, Azeredo Coutinho defendeu a necessária articulação entre as partes que
147
Para as considerações, ver MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo..., pp.
66-68; ARRUDA, José Jobson de A. “Decadência ou crise...”, passim; NOVAIS, Fernando A. Portugal e
Brasil na crise..., pp. 57 – 116 e 213 – 298, especialmente as pp. 223, 229-230, 250-251 e 285; CARDOSO,
José Luís; CUNHA, Alexandre M. “Discurso econômico e política colonial no Império luso-brasileiro
(1750-1808)”. Tempo, Niterói, v. 17, n. 31, 2011, passim; FALCON, Francisco José C. “O império luso-
brasileiro e a questão da dependência inglesa – um estudo de caso: a política mercantilista durante a Época
Pombalina, e a sombra do Tratado de Methuen”. Nova Economia, Belo Horizonte, v. 15, n. 2, 2005, p. 24;
e, enfim, MONTEIRO, Nuno G. “Pombal’s government: between seventeenth-century valido and
enlightened models” in PAQUETTE, Gabriel (ed.). Enlightened reform in southern Europe and its Atlantic
colonies, c.1750-1830. Farnham/Burlington: Ashgate, 2009, passim. As práticas mercantilistas podem ter
várias definições. Ver, por exemplo, NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise..., pp. 60-62, 223,
230 e 250. Para Arrighi, por seu turno, o mercantilismo pode ser definido como não “[...] apenas a resposta
imitativa dos governantes territorialistas ao desafio criado pelo capitalismo holandês de âmbito mundial.
Igualmente importante foi a tendência a reafirmar ou restabelecer o princípio territorialista da autarquia,
sob a nova forma da ‘gestão econômica nacional’, bem como a tendência a contrapor esse princípio ao
princípio holandês da intermediação universal [...]” – ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro,
poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora Unesp, 1996, pp. 144-
145. Ademais, algumas das práticas reformistas de fins do século XVIII tiveram antecedentes no Portugal
do final do século XVII, evidenciando, mais uma vez, a ideia de rupturas e continuidades, ver HANSON,
Carl. Economia e sociedade no Portugal Barroso (1668-1703). Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1986.
148
Ver POMBO, Nívia. Dom Rodrigo de Sousa Coutinho..., pp. 51-52; também NOVAIS, Fernando A.
Portugal e Brasil na crise..., pp. 224 e 227-239.
126
compunham o edifício monárquico. Em suas palavras, como vimos anteriormente, todos
os domínios da Coroa deveriam oferecer seus ganhos, tendo em vista a boa situação
econômica de Portugal149. Nessa argumentação, partilhou muitos pontos de vista com
dom Rodrigo de Sousa Coutinho, quem, enquanto enviado numa corte estrangeira e
depois como secretário de Estado, contribuiu ao debate sobre a economia, trazendo
também as novas considerações vinculadas ao desenvolvimento da Economia Política.
Não se pode deixar de argumentar um interessante ponto, que reforça os sucessos
dos empreendimentos reformistas. Iniciamos com considerações de um funcionário da
governação, depois transformado no mais poderoso ministro de dom José I, o qual, ainda
que não seja descrito como um grande filósofo, agiu em um contexto marcado por um
intenso movimento de ideias. Azeredo Coutinho, por seu turno, foi um membro do clero,
ator com funções governativas e um publicista que debateu, enquanto parte da
intelligentsia portuguesa, diversos assuntos referentes à economia imperial. Dom Rodrigo
de Sousa Coutinho contribuiu com seus diversos escritos sobre as reformas e a economia,
trazendo à tona as novas teorizações sobre o campo econômico. Finalmente, houve o
negociante Manuel Joaquim Rebelo, homem de negócios que não estudou em Coimbra
ou na Aula do Comércio, mas escreveu uma obra e adentrou, com propriedade, nas
discussões econômicas e políticas do período. Não seria isso um sinal de certo sucesso do
reformismo ilustrado, ao ter feito com que as discussões mais atualizadas alcançassem
até mesmo um negociante da praça de Lisboa, que chegou a debater a organização
econômica do império? Ou foi somente um acaso? Segundo Maxwell, as reformas
empreendidas na época pombalina visaram tornar a classe dos mercadores portugueses
apta à competição com os estrangeiros. Isso não envolveria, por certo, o acúmulo de
conhecimento? Não podemos esquecer, afinal, que uma das instituições criadas no
período foi a Aula do Comércio, voltada, teoricamente, à educação “comercial” dos
mercadores. Por mais que M.J.R. não tenha lá estudado, sua produção intelectual pode
ser um sinal das mudanças mentais ocorridas no período. Manuel Joaquim não só atuou
149
Para os argumentos, ver COUTINHO, José Joaquim da C. de A. “Ensaio economico sobre o commercio
de Portugal e suas colonias”..., pp. 124, 134 – 137 e 153; ver também COUTINHO, José Joaquim da C. de
A. “Memória sobre o preço do açúcar”..., pp. 180, 182 – 185; MARQUESE, Rafael de B. Administração
& Escravidão..., passim, especialmente as pp. 140 – 150. Para o argumento de Arruda, ver ARRUDA, José
Jobson de A. “Decadência ou crise...”, passim.
127
como negociante em Portugal, mas também se aventurou em discussões amplas do e sobre
o período150.
De toda forma, M.J.R. finalizou nossa análise ao propor um modo orgânico e
sistemático de enxergar a economia portuguesa. O título da obra já nos referência as
fontes de suas ideias e o autor citou nominalmente Adam Smith em seu escrito. Ideias da
economia política se fizeram presentes em seu trabalho, na forma de conceituar a riqueza,
afastando-se de princípios fisiocráticos, na proposta de divisão do trabalho ou ainda nas
críticas à mineração151.
É evidente que tal análise não dá conta de todas as variações presentes no discurso
econômico do período. Basta pensar, por exemplo, nas “Memórias Econômicas da
Academia Real das Ciências de Lisboa”, com seu forte tom agrarista, relacionado à escola
fisiocrática francesa. Nelas, havia grande apreço pela riqueza originada na agricultura e,
portanto, não foi à toa que esse ramo da economia teve tanta força nas memórias, como
será visto no próximo capítulo. Resumidamente, portanto, tal explicação nos propõe a
ideia do ecletismo no pensamento econômico do período. Ao mesmo tempo em que
vemos linhas com mais força dentro desse desenvolvimento, deixando de lado
considerações mais afeitas ao mercantilismo por meio da aceitação de ideias relacionadas
à fisiocracia ou à Economia Política, o ecletismo se fez presente, conjugando ideias
mercantilistas, da fisiocracia francesa, de autores italianos como Antonio Genovesi, ou
ainda do escocês Adam Smith. A própria definição de riqueza foi complexificada por
meio de considerações sobre o valor do trabalho, da agricultura, das manufaturas e do
comércio. Talvez, uma razão para o fenômeno esteja na natureza do movimento
reformista português, responsável pela introdução das novas ideias econômicas e políticas
em território luso. Como afirmou Novais, “[...] as teorias [foram] assimiladas em função
da situação concreta; ao mesmo tempo, pois, atitude de abertura em face dos novos
tempos, e de tentativas de adequação às condições específicas: o pragmatismo
cientificista lastreava o ecletismo [...]”152.
150
Ver MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo…, pp. 1, 51-68 e 170;
HOLANDA, Sérgio B. de. “Apresentação” in COUTINHO, José Joaquim da C. de A. Obras econômicas
de J. J. da Cunha Azeredo Coutinho..., pp. 13 – 26; VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., pp. 38-39, 48-50
e 77-78.
151
VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., pp. 21, 89-91, 123, 134-135 e 183-185; CASTRO, Armando, op.
cit., passim; M.J.R., op. cit., pp. 44, 56-57 e 66.
152
Ver CARDOSO, José Luís. O pensamento econômico em Portugal..., pp. 67-79; PEDREIRA, Jorge
Miguel. “Agrarismo, industrialismo, liberalismo – algumas notas sobre o pensamento económico português
(1789-1820)” in CARDOSO, José Luís (org.). Contribuições para a História do Pensamento Económico
128
E o que isso tem a ver com o nosso objeto de pesquisa, o arroz colonial? É tal
contexto interpretativo da economia que nos permite pensar no espaço dedicado ao arroz
nesse conturbado final do século XVIII. Os atores, como visto, citaram o cereal em alguns
momentos, como item agrícola cuja produção poderia ser posta em prática, ainda que
houvesse críticas, como no caso de M.J.R. A mudança no discurso econômico, com o
papel da agricultura ganhando relevo e articulada aos demais ramos da economia, permite
situar o desenvolvimento da rizicultura e dos textos a ela dedicados em um contexto
intelectual e material mais amplo. É dessa forma que a produção comercial de arroz e a
escrita de memórias e textos tiveram o seu desenvolvimento enquadrado. Além disso, se
particularmente o arroz era visto como nocivo, era nas colônias em que seu espaço foi
determinado. Por isso, então, discutimos sobre o arroz colonial.
Aliada a isso, por outro lado, há a questão da emulação. Já Sebastião José
defendeu, na década de 1740, a necessidade de emular as práticas comerciais alheias, o
que foi reforçado pelos demais autores analisados. De maneira pouco surpreendente, citou
a Inglaterra como local que oferecia experiências a serem consideradas pelos portugueses,
em um contexto de abusos comerciais cometidos por aquela tradicional aliada. Tais
apontamentos ficaram evidentes, por exemplo, em nossa análise da “Relação dos
gravames”, escrita por Carvalho e Melo ainda na metrópole britânica. Tal fato revela o
papel de Portugal dentro da economia-mundo europeia, como parte do sistema atlântico
ibérico. Os atores da época enxergaram certa defasagem em relação às potências do
noroeste europeu e a emulação era um meio de aproximar as distintas experiências. Essa
ideia também pode ser interpretada nos escritos posteriores, como foi visto nas obras de
153
CARVALHO E MELO, Sebastião José de. “Carta ao cardeal da Mota...”, pp. 133 – 161; CARVALHO
E MELO, Sebastião José de. “Rellação dos gravames...”, pp. 36 – 43, 75 e 95; CARVALHO E MELO,
Sebastião José de. “Carta de ofício a Marco António de Azevedo Coutinho...”, pp. 18-19; COUTINHO,
José Joaquim da C. de A. “Ensaio economico sobre o commercio de Portugal e suas colonias”..., p. 85;
M.J.R., op. cit.¸pp. 6-7, 30 e 127; BERBEL, Marcia; MARQUESE, Rafael de B.; PARRON, Tâmis, op.
cit., pp. 5 – 93, especialmente pp. 76 – 85. Deixando de lado os discursos do período analisado, a
interpretação historiográfica atual destaca tal problemática. Nas palavras de Berbel, Marquese e Parron,
“[...] a saída para o quadro de estagnação em que encontrava a Espanha [acrescentemos Portugal] e seu
império consistiria em emular as experiências de França e Inglaterra com vistas à aceleração do tempo
histórico” – BERBEL, Marcia; MARQUESE, Rafael de B.; PARRON, Tâmis, op. cit., p. 77.
154
Ver, por exemplo, VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., pp. 106-107, 124 e 184-185. Para uma discussão
sobre adaptação, circulação e emulação de ideias econômicas, ver CARDOSO, José Luís. “Circulating
economic ideas: adaptation, appropriation, translation” in CUNHA, Alexandre M.; SUPRINYAK, Carlos
Eduardo (eds.). The Political Economy of Latin American independence. London/New York: Routledge,
2017.
130
3. A REFORMA DA AGRICULTURA IMPERIAL
[...] Aqui é o lugar de citar as providências dadas por S.A.R. para a conservação
e cortes regulares das matas e arvoredos do Brasil, cujo produto deve ser
imenso, para o estabelecimento de nitreiras artificiais e nitreiras naturais, que
dão já de si as maiores esperanças, para a cultura do linho cânhamo; e mais que
tudo de citar as aquisições que se devem aos esforços ordenados pelo mesmo
augusto Senhor e que têm introduzido no Brasil a cultura da árvore de pão, a
do cravo da Índia, a da pimenta, a da canela e a de muitas outras culturas
preciosas ou já adquiridas ou que tocam ao momento de o ser, podendo
asseverar-se que nos poucos anos da regência de S.A.R. fez Portugal maiores
aquisições deste gênero do que não havia feito em todo um século. Para se
constituir S.A.R. benfeitor em todos os sentidos dos seus vassalos portugueses
que habitam o Brasil, até acaba de fazer-lhes comunicar por via de impressão
todas as melhores obras que se conheciam e se haviam publicado em França e
na Grã-Bretanha a respeito das grandes culturas próprias daquele continente e
é provável que na época presente se tirem os maiores proveitos desta sábia
resolução política [...]1.
Neste capítulo, buscamos verticalizar nossa análise na relação, tecida nos escritos
da época, entre a Ilustração luso-americana, a agricultura e, com maior particularidade, a
rizicultura imperial. O trecho citado é de autoria de dom Rodrigo de Sousa Coutinho. É
uma boa forma de demonstrar a conexão entre as transformações do pensamento
econômico português e as mudanças teorizadas para a agricultura imperial. Se Coutinho
teve seu pensamento econômico sumarizado nas páginas anteriores, a passagem acima
demonstra o modo como viu as mudanças necessárias para a agricultura, envolvendo não
só a intervenção direta sobre o terreno, com novos cultivos e novas atividades produtivas,
mas também a disponibilização de conhecimentos agronômicos, com base na emulação
de conhecimentos amealhados em outros locais da Europa. Se o discurso econômico
preconizou mudanças na forma de analisar a realidade do império, um dos resultados foi
a produção de uma considerável literatura agronômica.
O foco deste capítulo se volta para aquelas obras do reformismo ilustrado luso-
americano dedicadas de modo mais direto às melhorias da agricultura imperial.
Inicialmente, serão analisadas algumas contribuições apresentadas nos vários tomos das
“Memórias Econômicas da Academia Real das Ciências de Lisboa”. O objetivo é avaliar
o modo como a agricultura foi analisada, as soluções propostas e o espaço dedicado aos
cereais, principalmente ao arroz. O conteúdo agrarista desses escritos ficará patente. Em
seguida, será feita a análise de alguns escritos publicados pela Tipografia do Arco do
1
Ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “1º Discurso: 22-12-1798” in Textos políticos, económicos e
financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco
de Portugal, 1993, pp. 186-187.
131
Cego e outras iniciativas editoriais conexas, buscando localizar o papel ou ausência de
atenção conferida ao arroz. Afinal de contas, a menor atenção dispensada a um importante
item da pauta de exportações da América lusa também pode significar algo. Em um
primeiro momento, uma rápida discussão das propostas elencadas nos vários tomos de
“O Fazendeiro do Brasil” será empreendida. Em seguida, escritos originais ou traduções
feitas pela tipografia trarão consideráveis informações relativas ao modo como a
agricultura foi repensada naquele momento. Tecendo uma conexão às questões do
próximo capítulo, alguns escritos de Hipólito José da Costa, relativos à sua viagem de
observação aos Estados Unidos da América entre 1798 e 1800, serão um bom modo de
aliar a análise da teoria à da prática do reformismo ilustrado português. Por fim, uma
memória específica sobre o arroz, publicada em 1801, reforçará a discussão, como ponto
de chegada dos conteúdos até então analisados2.
2
Ver NUNES, M. J. “Prefácio” in Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para
o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo
I. Lisboa: Banco de Portugal, 1990, p. XV; CARDOSO, José Luís. O pensamento econômico em Portugal
nos finais do século XVIII (1780-1808). Lisboa: Estampa, 1989, pp. 67-79. Também PEDREIRA, Jorge
Miguel. “Agrarismo, industrialismo, liberalismo – algumas notas sobre o pensamento económico português
(1780-1820)” in CARDOSO, José Luís (org.). Contribuições para a História do Pensamento Económico
em Portugal: comunicações apresentadas no Seminário sobre História do Pensamento Económico em
Portugal organizado pelo Centro de Investigação sobre Economia Portuguesa (CISEP) do Instituto Superior
de Economia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988.
3
Ver NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). 9ª edição.
São Paulo: Hucitec, 2011, p. 224; também POMBO, Nívia. Dom Rodrigo de Sousa Coutinho: pensamento
e ação político-administrativa no império português (1778-1812). São Paulo: Hucitec, 2015, pp. 51-54.
132
envolvendo diversas melhorias técnicas, alguns transplantes de espécies e a construção
de uma infraestrutura variada no Reino. A Academia se constituiu enquanto um
privilegiado locus de produção reformista e produziu diversas memórias editadas nos
vários tomos das “Memórias Econômicas”. São ótimos exemplos da atenção conferida à
agricultura no bojo das reformas ilustradas portuguesas e do pragmatismo reinante no
período. O conhecimento econômico e científico deveria ser posto a serviço do
engrandecimento do Império e nisso também contaram as mudanças no pensamento
econômico analisadas anteriormente e as oportunidades criadas nos mercados mundiais 4.
As memórias tinham amplo objetivo, envolvendo desde o conhecimento das
potencialidades naturais do Império até a proposição de melhorias na agricultura. A
Academia buscou aliar a teoria à prática, com vistas a reformar a economia imperial.
Complementando as considerações do último capítulo, tais obras são exemplares da
crítica ao mercantilismo e da utilização de ideias relacionadas à fisiocracia, ou talvez de
algo que pode ser chamado de agrarismo. Muitos dos autores eram jovens, havia pouco
saídos das universidades, filhos das reformas ocorridas desde 1750 e pessoas que deram
continuidade a elas5.
Inicialmente, foi o abade José Correia da Serra, introduzindo as memórias da
Academia, quem contribuiu para a exposição das mudanças então desejadas. O autor fez
transparecer a relação entre os diversos atores reformistas, atestando qual foi o papel dos
escritos trazidos à tona pelos ilustrados luso-americanos:
[...] Dar providências, remover obstáculos, extirpar abusos, compete somente
aos ministros do poder soberano; influir com grandes exemplos, intentar
grandes estabelecimentos, cabe só nas forças dos ricos proprietários; propagar
4
Ver CARDOSO, José Luís. “Introdução” in Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de
Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-
1815). Tomo I. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1990, passim; e
NUNES, M. J., op. cit., pp xv-xvi. Um artigo sobre o tema é de BRAGA, Isabel D. “Luzes, natureza e
pragmatismo em Portugal: o contributo da Real Academia das Ciências no século XVIII”. Tempo, Niterói,
v. 22, n. 41, 2016. Sobre a melhoria de técnicas, ver SEQUEIRA, Joaquim Pedro F. de. “Memória sobre a
introdução das gadanhas alemãs, e flamenga em Portugal” in Memórias Económicas da Academia Real das
Ciências de Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas
conquistas (1789-1815). Tomo V. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal,
1991.
5
Ver CARDOSO, José Luís. “Introdução”..., pp. xviii-xix e xxiii; CARDOSO, José Luís. O pensamento
econômico em Portugal..., pp. 67-79; também a nota explicativa em VANDELLI, Domingos. “Memória
sobre a preferência que em Portugal se deve dar à agricultura sobre as fábricas” in Memórias Económicas
da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria
em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo I. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa:
Banco de Portugal, 1990, p. 193.
133
as luzes, que para este fim lhe subministra a natureza dos seus estudos, é tudo
quanto podem e devem fazer as corporações literárias6.
6
SERRA, José C. da. “Discurso preliminar” in Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de
Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-
1815). Tomo I. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1990, p. 9.
7
As melhorias na agricultura trariam benefícios aos particulares e ao Estado. Sobre essa opinião, ver
SEQUEIRA, Joaquim Pedro F. de. “Memória sobre a introdução das gadanhas...”, pp. 9-10.
8
SERRA, José C. da. “Discurso preliminar”..., p. 9. Sobre o uso das memórias, ver, por exemplo,
SEQUEIRA, Joaquim Pedro F. de. “Memória sobre a introdução das gadanhas...”, p. 28. Ver também
VILAGRA, Bruno Ricardo. Manuel Joaquim Rebelo e o pensamento econômico português na crise do
império luso-brasileiro. 2017. 223 p. Tese (Doutorado em História Econômica). FFLCH/USP, São Paulo,
2017, p. 105; e MOURA, Roseli A. de. “O legado da oficina e tipografia do Arco do Cego e textos para a
colônia americana: Mineiro do Brasil” in SILVA, Márcia Regina B. da; HADDAD, Thomás A. S. (orgs.).
Anais do 13º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia. Rio de Janeiro: Sociedade
Brasileira de História da Ciência, 2012, p. 1.
134
que agora analisamos. Na verdade, portanto, a escrita desses textos veio depois do início
da produção e tentou repensá-la em novos moldes. Houve considerável sucesso na busca
de informações sobre a cultura, mas nem tanto na composição de propostas práticas para
transformá-la. Veremos como esses textos se mostraram, muitas vezes, descolados da
realidade colonial.
Era preciso conhecer o território imperial, suas potencialidades, por meio da
História Natural, e nesse intento envolveu-se a necessidade de substituir as importações
e transplantar espécies vegetais que pudessem ser cultivadas em território luso. Como
veremos, tais ideias não ficaram restritas aos anseios reformistas da Academia, mas se
espraiaram por outras iniciativas científicas e econômicas do período. Um dos autores a
melhor sintetizar tais princípios foi o conhecido Domingos Vandelli, em uma série de
memórias por ele escritas e publicadas pela Academia. Chamado para se estabelecer em
Portugal em 1764 por Sebastião José de Carvalho e Melo, o paduano foi um bom exemplo
da continuidade do reformismo entre os reinados josefino e mariano, fazendo parte da
organização da Academia e também da Junta do Comércio9.
Vandelli escreveu diversas memórias para a Academia e em uma delas
argumentou que, em determinados países como a Suécia e a Dinamarca, as leis e prêmios
foram a chave do sucesso dos cultivos. Para que a agricultura fosse promovida no Império
luso, “inúteis são todos os livros, todos os projetos, não havendo uma particular legislação
bem executada, que tire os fortes impedimentos e anime com prêmios e honras os
lavradores”. Dessa forma, iniciou suas considerações com a necessidade de amplas
medidas para o fomento agrícola, ultrapassando a mera proposição de ideias através dos
livros e, assim, sinalizou em um escrito a necessidade de superar a escrita. Outro
9
SERRA, José C. da. “Discurso preliminar”..., pp. 9-10; também DALLA COSTA, Ricardo. Ciências
naturais e econômicas na obra de Domingos Vandelli (1735-1816). 2017. 116 p. Tese (Doutorado em
História da Ciência). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017, passim. A Academia,
segundo Serra, ainda teve interesse no estudo das artes (vistas como a “aplicação do conhecimento da
natureza às nossas precisões e utilidades”) e da literatura. Nesses estudos, havia a ideia da utilização
pragmática do passado luso, haja vista que, para o autor, “[...] O conhecimento do que a nação é, e do que
pode ser, pelo que já tem sido, é dos mais úteis para a sua felicidade e só pode esperar-se dos esforços
unidos de um corpo tal como a Academia” – ver SERRA, José C. da. “Discurso preliminar”..., p. 10. Para
considerações sobre esse papel vinculado ao passado, à história, ver KOSELLECK, Reinhart. “Historia
Magistra Vitae – sobre a dissolução do topos na história moderna em movimento” in Futuro passado:
contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006. Assim, para
alguns, não só da emulação das potências coetâneas Portugal conseguiria boas ideias para o seu futuro, mas
também a partir da análise e recuperação do seu próprio passado. Para um aprofundamento dessa última
questão, ver PAULINO, Mariana F. A semântica do tempo no discurso de reformistas ilustrados sobre as
Américas ibéricas (c. 1750 – c. 1807). 2020. 294 p. Dissertação (Mestrado em História Social) – FFLCH,
USP, São Paulo, 2020, passim, principalmente o cap. I.
135
memorialista, Joaquim de Amorim Castro, propôs ainda o estabelecimento de “preços
certos e vantajosos” para incentivar o cultivo. Foram, portanto, diversas as ações
propostas com vistas a melhorar a situação econômica e financeira do império, parecendo
haver uma interdependência entre todas elas10.
O paduano também teceu críticas ao modo como a agricultura estava configurada
no Reino: muitas terras incultas, cultivos ordenados erroneamente, fazendo com que
Portugal comprasse itens do estrangeiro, o que certamente contribuía para a má situação
das finanças imperiais. Junto a tais considerações vinha um ponto mais relacionado à
nascente História Natural, pois havia uma noção “geral de querer que qualquer espécie
de terreno produza com utilidade toda a casta de vegetais [...]” e o autor ainda criticou a
forma pela qual a terra era então preparada. Erros que deveriam ser corrigidos, trazendo
benefícios à agricultura. Por outro lado, sobre as colônias, considerou várias delas e as
suas produções, e, no caso do Brasil, o descreveu como despovoado e inculto apesar das
boas qualidades no clima e terreno. Criticou a forma como a agricultura era praticada,
com queimadas e com o uso do trabalho escravo, “não havendo branco algum que se
digne ser lavrador, principal causa porque no Brasil nunca poderá ter grande aumento a
agricultura”, no que demonstrava certo desconhecimento dos desenvolvimentos pelos
quais a lavoura passava na América portuguesa, ou decidiu ignorá-los. Vandelli, portanto,
não poupou críticas à organização agrícola imperial como um todo, mas deixou aberta a
possibilidade de melhorias, haja vista que os problemas pareciam derivar essencialmente
das más práticas dos lavradores e da falta de medidas políticas tomadas pelos que
detinham o poder11.
10
VANDELLI, Domingos. “Memória sobre a agricultura deste reino, e das suas conquistas” in Memórias
Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e
da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo I. Direção de edição de José Luís Cardoso.
Lisboa: Banco de Portugal, 1990, p. 127; também CASTRO, Joaquim de A. “Memória sobre o malvaísco
do distrito da Vila da Cachoeira no Brasil” in Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de
Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-
1815). Tomo III. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1991, p. 285. Para
outro exemplo sobre a defesa de Vandelli da emulação de práticas alheias, ver VANDELLI, Domingos.
“Memória sobre a preferência que em Portugal se deve dar à agricultura sobre as fábricas” in Memórias
Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e
da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo I. Direção de edição de José Luís Cardoso.
Lisboa: Banco de Portugal, 1990, p. 190. Para um autor que defendeu a impressão de memórias, ver
SEQUEIRA, Joaquim Pedro F. de. “Memória sobre a introdução das gadanhas...”, pp. 29-30.
11
VANDELLI, Domingos. “Memória sobre a agricultura deste reino, e das suas conquistas”..., p. 128-132.
Para uma análise das ideias sobre a devastação no período colonial, ver PÁDUA, José Augusto. Um sopro
de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-1888). 2ª edição. Rio de
Janeiro: Zahar, 2004, passim.
136
As memórias, portanto, expuseram os problemas existentes na agricultura e em
outras produções do império e propuseram diversas medidas para a sua boa recuperação,
com vistas a sanar os problemas econômicos imperiais. Se atores como dom Rodrigo ou
MJR pensaram em novos moldes a organização econômica imperial e o papel da
agricultura, agora vemos tais teorizações guiando a escrita de diversos textos, por meio
da proposição objetiva de diversas medidas, obras diretamente dedicadas e oriundas desse
contexto reformista.
Os problemas na agricultura do reino e na do império teriam suas raízes na própria
expansão portuguesa, pois a agricultura teria sido abandonada quando todas aquelas
riquezas do ultramar chegaram ao conhecimento dos metropolitanos e dos estrangeiros.
Nesse caso, o arroz pode se encaixar facilmente nas considerações do paduano, enquanto
um artigo importado na primeira metade do século XVIII12. Ecoando críticas antecipadas
nas páginas precedentes, Vandelli afirmou que
[...] as grandes riquezas que os portugueses transportaram daquelas colônias
fizeram com que, atraídos os estrangeiros com o desejo delas, procurassem
fornecer a Portugal entre muitos gêneros, grãos, legumes etc. que os mesmos
avidamente recebiam, julgando-se pelos povos mais ricos, quando ao mesmo
tempo não era Portugal mais que um depositário por breve tempo das riquezas
das suas colônias, por isso mesmo que se via obrigado a comutá-las pelos
gêneros que a incúria da agricultura e da indústria lhe faziam indispensáveis
[...]13.
12
VANDELLI, Domingos. “Memória sobre a agricultura deste reino, e das suas conquistas”..., pp. 131-
132.
13
Idem, Ibidem, p. 132.
137
base da sociedade, de pouco servem as manufaturas e as naturais produções [...]” ou ainda
quando asseverou que “as produções da terra são a única e verdadeira riqueza e a cultura
dela o único princípio da sobredita”. A agricultura, no fim das contas, necessitava de
melhorias em Portugal, mais urgentes para o paduano devido a sua essencialidade na
conformação econômica e social do Império14.
Ela deveria receber maior atenção, mas sem desconsiderar as estreitas ligações
existentes entre os variados ramos da economia: “querer fazer independentes entre si a
agricultura e a indústria é um paradoxo, porém querer entre nós antepor a indústria à
agricultura é outro ainda mais pernicioso”. A agricultura seria uma base para a atividade
industrial, garantindo a subsistência dos fabricantes, e, com essa garantia, as fábricas
poderiam funcionar de boa forma e consumir em maior quantidade os produtos
agrícolas15. Como afirmou Vandelli:
As fábricas não podem subsistir, nem prosperar, senão em proporção do estado
florescente da agricultura. Todas as fábricas precisam abundância e barateza
das primeiras matérias, e particularmente da mão-de-obra, que depende
absolutamente da abundância das produções da agricultura16.
14
VANDELLI, Domingos. “Memória sobre a agricultura deste reino, e das suas conquistas”..., pp. 132-
134; VANDELLI, Domingos. “Memória sobre algumas produções naturais deste reino, das quais se poderia
tirar utilidade” in Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento
da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo I. Direção de
edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1990, p. 136; VANDELLI, Domingos. “Memória
sobre as produções naturais do reino, e das conquistas, primeiras matérias de diferentes fábricas, ou
manufacturas” in Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento
da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo I. Direção de
edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1990, p. 169; por fim, VANDELLI, Domingos.
“Memória sobre a preferência...”, pp. 189 e 191-193. Para outro trecho em que Vandelli defendeu as
premiações aos lavradores, articuladas às leis agrárias, ver VANDELLI, Domingos. “Memória sobre
algumas produções naturais das conquistas, as quais ou são pouco conhecidas, ou não se aproveitam” in
Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento da agricultura,
das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo I. Direção de edição de José
Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1990, p. 144. O estabelecimento de fábricas, para o autor, deveria
levar em conta dois pressupostos: I. o uso de matéria-prima nacional; II. não retirar mão-de-obra dos
campos. Chegou a defender o trabalho “fabril” dos cultivadores em seu tempo ocioso – ver VANDELLI,
Domingos. “Memória sobre a preferência...”, pp. 190-191.
15
VANDELLI, Domingos. “Memória sobre a preferência...”, pp. 186-187.
16
Idem, Ibidem, p. 191.
17
Idem, Ibidem, p. 193.
138
Ficou evidente a preferência conferida à agricultura na conformação da riqueza
imperial, o que autoriza as conclusões sobre o pronunciado agrarismo presente nas
considerações econômicas de Vandelli e da Academia como um todo. Todo esse
pensamento do autor deve ser incluído no conjunto mais amplo de suas ideias, visando a
listagem e utilização dos recursos existentes nos territórios de Portugal. Vandelli,
analisando minérios, plantas e animais, pensava na substituição de importações e na
procura de novos ramos de comércio, tendo em vista a situação financeira e econômica
do império na segunda metade do século XVIII. Isso envolveria o próprio propósito da
Academia de Ciências de Lisboa e as atividades desempenhadas pelos ilustrados
treinados nas universidades e academias, pois, como afirmou o professor paduano, “[...]
quantas outras produções naturais desconhecidas se achariam ainda neste reino, se por
naturalistas zelosos fosse atentamente visitado? Com as quais se poderia suprir as que
vêm de fora e servir para o comércio externo [...]”18.
As melhorias econômicas, relacionadas a um trabalho científico de análise da
natureza e seus recursos, ligado à História Natural, trariam grandes benefícios ao império.
Por outro lado, a emulação poderia estar conjugada à instrução dos lavradores. Ou seja, a
busca por conhecimento ou mesmo cultivos estrangeiros estaria articulada à instrução da
18
VANDELLI, Domingos. “Memória sobre algumas produções naturais deste reino...”, pp. 135-142;
VANDELLI, Domingos. “Memória sobre algumas produções naturais das conquistas...”, pp. 145-146 e
154; VANDELLI, Domingos. “Memória sobre as produções naturais do reino, e das conquistas...”, pp. 169-
170. Para Vandelli, a substituição das importações não bastava para sanar todos os problemas portugueses.
Era preciso ir além: “este último axioma econômico é verdadeiro em um país onde pode subir o preço dos
gêneros sem que os possa ter mais baratos de fora, com a permutação dos das suas colônias; mas não é
assim em Portugal, onde por causa dos gêneros das suas colônias, concorrem de várias partes comestíveis,
os quais pela abundância fazem abaixar o preço aos do reino; e deste modo nunca chega o valor das
produções nacionais da agricultura a ser suficiente para fazer trabalhar melhor a terra, e por consequência
fazer as ditas produções mais abundantes” – ver para essa informação e outras do parágrafo VANDELLI,
Domingos. “Memória sobre a preferência...”, pp. 189-190 e 193; também CARDOSO, José Luís. O
pensamento econômico em Portugal..., pp. 67-79; também PEDREIRA, Jorge Miguel. “Agrarismo,
industrialismo, liberalismo...”. Afinal, como afirmou Vandelli, “[...] Muitas outras raras e úteis produções
terão as conquistas, além das conhecidas e das indicadas, as quais por falta de indagações até agora não
estão descobertas; ao menos eu não as tenho observado. Estas porém que se têm indicado seriam bastantes
para diminuir a importação de muitos gêneros de fora, e suprir os que faltam, e estender mais o comércio”
– ver VANDELLI, Domingos. “Memória sobre algumas produções naturais das conquistas...”, p. 155. Um
interessante exemplo de substituição de importações através do uso de produtos das colônias foi dado no
caso do malvaísco, ver CASTRO, Joaquim de A. “Memória sobre o malvaísco do distrito da Vila da
Cachoeira no Brasil”..., p. 283. Para outro exemplo da conjugação entre a substituição de importações e a
abertura de novos ramos comerciais, ver CABRAL, Estevão. “Memória sobre o papel” in Memórias
Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e
da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo IV. Direção de edição de José Luís
Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1991, p. 153.
139
população, para que ela aproveitasse aquela oportunidade buscada pelo poder
monárquico19. Como afirmou Joaquim Pedro Sequeira, numa nota nada enigmática:
O que proponho aqui não é um vão projeto imaginado às escondidas no silêncio
do gabinete, ou tirado de informações empíricas; mas é o que se pratica pela
Europa e que eu vi praticar em muitas partes dela e o que nos ensinam os
maiores escritores economistas, alemães, franceses e ingleses. E se isto se
pratica nos países da Europa, onde melhor se entende a economia rural, e se os
lavradores daqueles países, como peritos na matéria, o acham bom e vantajoso
para o lavrador português; e porque o não porá ele em prática?20.
19
SEQUEIRA, Joaquim Pedro F. de. “Memória sobre a introdução das gadanhas...”, pp. 8-9 e 16.
20
SEQUEIRA, Joaquim Pedro F. de. “Memória sobre a introdução das gadanhas...”, p. 23.
21
VANDELLI, Domingos. “Memória sobre algumas produções naturais das conquistas...”, pp. 143-155.
22
Idem, Ibidem, p. 144.
140
demonstrou a criação de novos ramos comerciais – sendo esses todos objetivos do
reformismo ilustrado português. Por outro lado, isso também pode ser aproximado das
críticas proferidas por MJR de que o arroz não seria bom para as terras lusas, sendo,
talvez, uma análise mais relacionada às terras do reino. Dito de outra forma, o espaço para
o cultivo de arroz era colonial e tal produção já era atestada na época da escrita das
memórias.
Vandelli também defendeu a transplantação de espécies vegetais e a emulação de
práticas econômicas do exterior. Seu pensamento unia o trabalho da ciência às respostas
para os problemas econômicos do império. O próprio Vandelli reconheceu as ações da
Academia como uma continuidade daquelas tomadas durante o reinado de dom José, pois
nesse último período teriam sido dados “gerais movimentos a todos os ramos da pública
administração, ficando aos vindouros [inclusive a ele] o aperfeiçoar e aproveitar esses
grandes impulsos que [...] um dia [fariam] [...] a felicidade da nação”, ou, como buscamos
argumentar, repensar a realidade produtiva em novos moldes. Vandelli considerou a
agricultura como a fonte das riquezas do império e defendeu necessárias reformas na sua
organização, envolvendo medidas tomadas pelo poder político metropolitano. Visou
sistematizar e elencar a produção natural do Reino e das colônias com vistas a demonstrar
a possibilidade de sua utilização, e nisso o arroz encontrou espaço, justamente um item
que antes era importado e agora, em fins do século XVIII, conhecia uma destacada
produção na América lusa23.
Mas se tais memórias do paduano nos auxiliam a compreender o espaço dedicado
à agricultura, outra memória publicada pela ARCL considerou de perto a situação agrícola
do império e trouxe algumas informações sobre o arroz. Trata-se de um escrito de José
Veríssimo Alvares da Silva, em que o autor elogiou a agricultura, citando a preferência
dada a ela no passado, e analisou a consideração a ela dispensada. Para superar os
problemas agrícolas e fazer a agricultura progredir, Alvares da Silva partiu de uma análise
histórica, tendo em vista que “A história é mestra da vida e luz da verdade”. Com esse
tipo de enquadramento, pretendeu refletir sobre a organização produtiva em Portugal 24.
23
VANDELLI, Domingos. “Memória sobre algumas produções naturais das conquistas...”, pp. 149-150 e
155; VANDELLI, Domingos. “Memória sobre a preferência...”, pp. 185 e 193 (inclusive a nota
explicativa).
24
Ver SILVA, José Veríssimo A. da. “Memória histórica sobre a agricultura portuguesa considerada desde
o tempo dos romanos até ao presente. 1782” in Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de
Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-
1815). Tomo V. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1991, pp. 149-150.
141
Portugal possuía boas terras, boas produções naturais, boa posição geográfica para
a produção e comércio, em um mundo em que havia constante competição entre os
diversos atores políticos. Com tais pressupostos, o autor analisou a agricultura nos
diversos tempos de Portugal, desde o período romano, em que ela ia bem, passando pela
decadência trazida pelas invasões bárbaras e muçulmanas. Nos primeiros tempos da
monarquia lusa, o autor enxergou melhorias e contratempos para a agricultura e destacou
que “Os trabalhos e fadigas dos homens são o que produzem a abundância em um
Estado”. Mas a situação teria ficado melhor com o reinado de dom Dinis, haja vista que
“[...] Sem as riquezas da Índia, sem o ouro do Brasil, D. Dinis fez o Estado florescente; é
ele um exemplo de que só as riquezas primitivas, isto é, o pão, e tudo o que a terra nos
fornece, são as verdadeiras riquezas do Estado [...]”. Tal boa situação se prolongou pelos
reinados seguintes, mesmo que ainda houvesse alguns problemas afetando a produção da
terra25. Como o próprio autor ilustrou:
A lavoura floresce nesta época pelos cuidados que puseram nela os príncipes;
porém o erário começando-se a administrar mal, os pequenos morgados
produzindo gente inútil são dois males que, com outros, concorreram na
seguinte época para levarem a lavoura à última ruína26.
25
SILVA, José Veríssimo A. da. “Memória histórica sobre a agricultura portuguesa...”, pp. 151-152 e 157-
171. Há uma aparente ambiguidade na forma como o autor enxergou a constituição da riqueza, pois, se
neste parágrafo, parece ter uma concepção agrarista, logo exprimiu que “[...] as riquezas de uma nação são
sempre em proporção ao trabalho [...]” – ver Idem, Ibidem, p. 171.
26
Idem, Ibidem, p. 174.
27
Idem, Ibidem, pp. 175-178 e 185.
142
conheciam, levados às primeiras dignidades do Estado [...]. A física geral, a
história natural, a química, a mecânica são indispensáveis a um país que quer
fazer florescer a agricultura e por consequência o bem público. Da terra é que
nos vem o sustento e ela o dá em razão do trabalho; para este se fazer
comodamente vêm as artes fabris; a perfeição destas depende da mecânica; a
mecânica de geometria e ciências de cálculo. E como a terra não produz só em
razão do trabalho, mas também em razão do clima e da seiva e suco nutritício
das plantas, daqui a necessidade da física e suas partes. Estas ciências, porém,
tão úteis ao homem, sem conhecimento e propagação das quais um reino é
inculto, pobre e falto de forças, foram ignoradas pelos portugueses; e o
monopólio das humanidades lhe fechou por muito tempo as portas;
persuadindo aos seus alunos que com elas tinha entrado a heresia no norte28.
O arroz teria tido fortuna no passado luso, provavelmente depois de sua introdução
no século XIV, mas, no tempo analisado nesse trecho de sua obra (séculos XVI ao XVIII),
já não havia nem memória sobre ele. A experiência passada poderia ser utilizada como
artifício retórico para pensar ou analisar o futuro, provavelmente com vistas a recuperar
uma produção cuja importância para Portugal o levou a citá-lo naquela abrangente
memória.
O autor também argumentou sobre as mudanças e continuidades ocorridas a partir
do reinado de dom José I, período em que as reformas ilustradas, como vimos, ganharam
força em solo luso. As mudanças mentais ocorridas no período tiveram sua importância,
pois “[...] A razão, que por toda a Europa entrava nos gabinetes, [foi] escutada no trono
de Portugal [...]”. Tais transformações tiveram impacto sobre a economia portuguesa,
com bons resultados na agricultura, na indústria e nas finanças imperiais. O autor ainda
28
SILVA, José Veríssimo A. da. “Memória histórica sobre a agricultura portuguesa...”, p. 184. Como o
autor argumentou em outro trecho, “[...] A soma do trabalho é que faz as riquezas do Estado e a felicidade
pública [...] – ver Idem, Ibidem, p. 192.
29
SILVA, José Veríssimo A. da. “Memória histórica sobre a agricultura portuguesa...”, p. 185.
143
citou medidas que colocaram em circulação muitas terras antes “proibidas” de circular ou
que disponibilizaram mais trabalhadores à agricultura e às artes. Sobre esse movimento
reformista amplo e articulado, argumentou que 30:
[...] A indústria e agricultura vão sempre de par com a arte de cultivar a razão,
com as matemáticas, com a física, com as disciplinas políticas e econômicas.
A experiência de todos os séculos dá provas sem contradição. A expulsão do
Peripato; o estabelecimento do Colégio de Nobres; a introdução das ciências
matemáticas; a reforma da Academia, na qual a química e a botânica aparecem
pela primeira vez aos portugueses são de um bem infinito para a lavoura.
Jamais houve povo agricultor que não fosse juntamente sábio, nem também o
houve desprezador da cultura que não fosse ignorante e bárbaro. As artes e as
ciências raiando no nosso país lhe mostram o caminho, que antes era pouco
trilhado. A nobreza portuguesa começa a encher o seu entendimento de
conhecimentos úteis; e em todas as classes do Estado entra nova cultura31.
30
SILVA, José Veríssimo A. da. “Memória histórica sobre a agricultura portuguesa...”, pp. 186-189. Sobre
o modo articulado como o autor viu a administração da monarquia, citamos o seguinte trecho: “[...] Os
grandes tributos em um povo aumentam o preço dos gêneros e das manufaturas; do aumento dos preços
segue-se o não se poder sustentar a concorrência com os estranhos; prevalecendo os gêneros e a indústria
estranha pela sua barateza, não tem saída o que é próprio do país; não havendo saída, não há utilidade; sem
esta não há fabricar nem cultivar; sem fabricar nem cultivar não há meios com que se sustente a povoação;
sem esta não pode haver grandes exércitos [...]” – Idem, Ibidem, p. 191.
31
SILVA, José Veríssimo A. da. “Memória histórica sobre a agricultura portuguesa...”, p. 188.
32
Idem, Ibidem, pp. 191-195.
33
Idem, Ibidem, pp. 194-195.
144
princípios físicos e circunstâncias que constituem e fertilidade dos terrenos; e
há pouco que o sócio José Correia da Serra recitou na mesma Academia uma
dissertação sobre os prados artificiais. A qualidade do nosso país montanhoso
pela maior parte faz a matéria que ele escolheu interessante de sua natureza;
quando o não fora pela pena, com que foi tratada. O sócio Domingos Vandelli
além de outros conhecimentos úteis à agricultura, que tem espalhado no país,
fez a nova sementeira do cânhamo com boa colheita. A do arroz tem de novo
ressuscitado; e já em muitas das nossas praças em vários dias se vende aos
alqueires. As rendas dos bispados, cabidos, comendas etc. têm crescido; e a
causa é porque a sementeira do milho grosso se tem propagado muito. Porém
como a agricultura está intimamente unida com o sistema das finanças, com as
contribuições, e encargos do Estado, com a soma do trabalho, e diminuição do
ócio; segue-se que para florescer a lavoura o primeiro passo é dar tranquilidade
ao lavrador, honrar a sua ocupação, como a mais preciosa e útil à república;
aliviá-lo dos demasiados tributos que sobre ele carregam; livrá-lo o mais que
puder ser da gente de justiça e oficiais dos concelhos, o maior peso que a
lavoura suporta34.
Se antes, Alvares da Silva argumentou que o arroz havia sido esquecido, não
havendo memória sobre ele, agora ele estava sendo trazido de volta à vida, compondo um
relevante item na economia agrícola de Portugal. Sabemos, no entanto, que a produção
vinha ocorrendo na América ao menos desde 1760. Alvares da Silva também desejava
repensar a agricultura. Para além disso, ainda havia trabalho a ser feito para enriquecer o
país e é com tais apontamentos que podemos frisar a conexão reformista desde 1750 e
compreendermos também a continuação dessas medidas a seguir. Mesmo que não haja
uma memória exclusiva sobre o arroz nos diversos tomos das Memórias da ARCL, vemos
sua importância através das pequenas notas sobre ele tecidas, tanto na importante obra de
Vandelli como nessa interpretação vasta sobre a agricultura portuguesa na longa duração.
Por mais que não tenha tido um espaço especial entre as memórias, o arroz, como cereal
e item de subsistência, tinha a sua relevância notada de maneira tímida mas significativa 35.
Exportado desde os anos 1760 da América, e com as mudanças no pensamento econômico
e nos mercados globais, fazia sentido para os ilustrados pensarem em novas linhas a
agricultura e a rizicultura colonial ou, ao menos, continuar a incentivar a sua produção.
Apesar das expectativas dos autores sobre o potencial de seus textos para
transformar a realidade, acreditamos que são exemplos de como essas obras responderam
à realidade já estabelecida. Com citações sobre a produção de arroz, com o uso de termos
34
SILVA, José Veríssimo A. da. “Memória histórica sobre a agricultura portuguesa...”, p. 195.
35
SILVA, José Veríssimo A. da. “Memória histórica sobre a agricultura portuguesa...”, p. 195. O
argumento sobre o caráter do arroz, enquanto cereal de subsistência, cuja relevância não precisaria ser
atestada por uma memória específica, foi inspirado nas ideias de e nos debates com Mariana Ferraz Paulino,
que estudou o conceito de tempo enquanto transversal e oblíquo nos discursos dos reformistas ilustrados
luso-americanos e hispano-americanos. Ver PAULINO, Mariana F., op. cit., passim.
145
do pensamento econômico do tempo, os autores responderam ao que viam e pensaram
em transformar essa visão. No caso dessas memórias, no entanto, houve um diminuto
impacto no terreno americano. Elas não instituíram a exportação; com base no que já
existia, buscaram rever e propor modificações.
Contudo, por mais que os textos não tenham sido os responsáveis por criar a
rizicultura colonial, são resultados intelectuais de transformações na forma de ver a
economia e das oportunidades criadas pelo mercado. A academia foi um locus de
discussão que, a partir das mudanças amplas pelas quais passava o discurso sobre a
riqueza imperial e a própria produção, focalizou nas possíveis transformações na
agricultura do império, propondo mudanças. Para isso, muito contou o trabalho de
articulação entre práticas de observação e a escrita das memórias 36.
36
Exemplo da articulação entre observações in loco e a escrita de memórias na ARCL é BALSEMÃO,
Visconde de. “Memória sobre a descrição física, e económica do lugar da Marinha Grande, e suas
vizinhanças” in Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento da
agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo V. Direção de
edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1991, pp. 197-212.
146
Reino, a Tipografia do Arco do Cego publicou uma quantidade significativa de trabalhos,
alguns originais e muitas traduções, evidenciando aquele empenho em emular
conhecimentos úteis vindos de outras realidades, principalmente daquelas no norte
europeu, com vistas a repensar a realidade econômica imperial37.
A Tipografia, dando continuidade ao projeto pombalino, demonstrava o desejo de
aproveitar as oportunidades existentes em ambiente colonial, publicando livros
relacionados à agricultura. Sua novidade ficava na composição de escritos mais acessíveis
e na forma de compor os livros (com ilustrações), demonstrando que buscava instruir os
lavradores em assuntos agronômicos38.
Tal iniciativa teve uma curtíssima duração, sendo encerrada em 1801 e
incorporada à Impressão Régia, mas o trabalho de seus membros e o objetivo reformista
atrelado às obras publicadas oferecem algumas reflexões39.
37
HARDEN, Alessandra R. de O. “Os tradutores da Casa do Arco do Cego e a ciência iluminista: a
conciliação pelas palavras”. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v. 50, n. 2, 2011, pp. 303-304;
BRAGANÇA, Aníbal. “Arco do Cego e Impressão Régia (Lisboa e Rio de Janeiro): sobre rupturas e
continuidades na implantação da imprensa no Brasil”. Anais do XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação, Natal, 2008, pp. 6-8; ver também FARIA, Miguel F. de. “A Florae Fluminensis de Frei José
Mariano da Conceição Veloso e a gênese da Casa Literária do Arco do Cego” in PATACA, Ermelinda M.;
LUNA, Fernando José (orgs.). Frei Veloso e a Tipografia do Arco do Cego. São Paulo: EDUSP, 2019, pp.
209-235; CURTO, Diogo R. “Iluminismo e projetos coloniais em Angola (1797-1802)” in PATACA,
Ermelinda M.; LUNA, Fernando José (orgs.). Frei Veloso e a Tipografia..., pp. 30-32; por fim, POMBO,
Nívia. Dom Rodrigo de Sousa Coutinho...., pp. 199-210.
38
FARIA, Miguel F. “Da facilitação e da ornamentação: a imagem nas edições do Arco do Cego” in
CAMPOS, Fernanda Maria G. de et al (orgs.). A Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801),
Bicentenário. Lisboa: Biblioteca Nacional/Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1999, p. 120 apud
BRAGANÇA, Aníbal, op. cit., pp. 9-10; BRAGANÇA, Aníbal, op. cit., pp. 8-10; POMBO, Nívia. Dom
Rodrigo de Sousa Coutinho..., pp. 199-202; também VILLALTA, Luiz Carlos. “A Casa do Arco do Cego:
política editorial régia, censura e disputas” in PATACA, Ermelinda M.; LUNA, Fernando José (orgs.). Frei
Veloso e a Tipografia..., pp. 80-83.
39
BRAGANÇA, Aníbal, op. cit., pp. 10-12.
147
planejamentos. Demonstram como esses ilustrados buscaram repensar o mundo
produtivo, com foco na América lusa.
O arroz, porém, não ganhou destaque individual em nenhum dos tomos,
reverberando a nossa análise dos escritos da ARCL. Não há escritos particulares sobre
esse cereal, apesar de seu valor na alimentação e comércio imperiais. Ainda assim, as
considerações mais amplas relativas à economia e agricultura imperiais têm a sua
importância na própria definição do papel reservado ao cereal. Ou seja, ao ser reafirmada
a necessidade de diversificação agrícola e de melhoramentos técnicos, a análise do
desenvolvimento da rizicultura e da proposta de alterações encontra um contexto
adequado em que pode ser avaliada, um contexto discursivo sobre agricultura em que sua
análise deve ser efetuada. Devido a isso, é válido analisar as ideias e propostas elencadas
pelo frei nas apresentações de todos os tomos.
No primeiro escrito, publicado em 1798 na Régia Oficina Tipográfica, vemos as
principais considerações do frei, guias de suas traduções. Dedicando-o ao açúcar, mas
ecoando considerações mais amplas em sua apresentação, Veloso afirmou que seu
empenho na tradução das dezenas de memórias visou a conveniência da América
portuguesa, “[...] para o melhoramento da sua economia rural e das fábricas, que dela
dependem, pelas quais ajudados, houvessem de sair do atraso e atonia em que atualmente
est[avam] e se pusessem ao nível com os das nações nossas vizinhas [...]”. A melhoria na
quantidade e qualidade das produções era um alvo pretendido, demonstrando os planos
de diversificação produtiva e melhoramento técnico das culturas imperiais. Sem perder a
visão do conjunto imperial europeu e a suposta necessidade de acompanhar os
desenvolvimentos alheios. Segundo o frei, portanto, a emulação, mediada pela tradução,
de práticas agrônomas do estrangeiro poderia garantir o desenvolvimento econômico
português e sanar a suposta defasagem em relação à boa parte da Europa. Aí está o motivo
das extensas traduções, forma prática e direta de reproduzir, adaptando, o conhecimento
alheio40.
Não à toa, no tomo segundo da primeira parte da obra, Veloso explicou que as
traduções buscavam melhoramentos na cultura, feitura e refino do açúcar. Assim, ao citar
a trasladação ao português da obra de Dutroni de La Couture, afirmou que o francês visou
40
Ver VELLOSO, Frei José Mariano da C. O Fazendeiro do Brazil. Melhorado na economia rural dos
generos já cultivados, e de outros, que se podem introduzir [...] TOM. I. PART. I. Da cultura das canas, e
factura do assucar. Lisboa: Regia Officina Typografica, 1798, p. i.
148
melhorar a extração de açúcar, na quantidade e qualidade, alcançando preços mais
cômodos, com benefícios aos agricultores. Questões de qualidade da produção, consumo
e da própria confecção do produto estariam presentes. A tradução traria benefícios aos
súditos e ao império41.
Ao demonstrar a necessidade do estabelecimento da agricultura, “o objeto da
maior contemplação das colônias”, Veloso analisou o passado luso e criticou a
importância indevida conferida ao ouro, reiniciando um debate já visto anteriormente. A
agricultura colonial poderia ter entregado matérias primas, produtos comerciáveis e
reexportações ao Reino, enriquecendo-o, mas não houve incentivo para tais atividades.
Na verdade, a busca pelo ouro foi animada, a procura por um bem “imaginário, aparente
e momentâneo”. A situação demandava mudanças, segundo o autor, pois havia muito
tempo que o ouro atraía a atenção e era lavrado, mas “[...] tendo-se tirado muito, não se
sabe onde para”. Sem benefícios à agricultura, a riqueza vinda dos campos auríferos não
bastava, não permanecendo em Portugal ao ter de sustentar as pesadas importações42.
Contudo, para o religioso e editor, a situação teria mudado, sem surpresas, no
reinado que patrocinava as obras publicadas, no que também demonstrou reconhecer a
realidade produtiva. Provavelmente para o autor, uma das causas e também consequência
dessa transformação foram os incentivos conferidos aos escritos sobre a agronomia
portuguesa. Para Veloso, tais obras tiveram importância, visando melhorias que
beneficiariam toda a agricultura do império 43. Dessa forma, dom João, ainda príncipe,
teria procurado
[...] [F]azer-lhes ver [aos vassalos] pelas memórias, mandadas imprimir à custa
da Real Fazenda, quais sejam as melhores práticas da economia rural,
descobertas por aquelas nações que mais as tem adiantado, e que, apesar de
possuírem pequenos territórios, as suas exportações se avantajam com tanto
excesso às nossas. Que, tendo recebido de nós os primeiros elementos, neste
continente, os tem feito chegar a tanta perfeição que nos vemos obrigados a ser
seus discípulos. Vossa Alteza não quer que só se melhore uma ou outra em
particular, mas que todas em comum e que se introduzam novos ramos
compatíveis com o país [...]44.
41
VELLOSO, Frei José Mariano da C. O Fazendeiro do Brazil, Cultivador. Melhorado na economia rural
dos generos já cultivados, e de outros, que se podem introduzir [...] TOM. I. PART. II. Da cultura das
canas, e factura do assucar. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1799, pp. iii-v.
42
VELLOSO, Frei José Mariano da C. O Fazendeiro do Brazil. Melhorado na economia rural dos generos
já cultivados, e de outros, que se podem introduzir [...] TOM. I. PART. I. Da cultura das canas, e factura
do assucar. Lisboa: Regia Officina Typografica, 1798, pp. x-xii.
43
Idem, Ibidem, pp. xii-xiii.
44
Idem, Ibidem, pp. xii-xiii.
149
As proposições de Veloso acerca da organização econômica de Portugal, vista em
suas críticas à mineração, são fundidas a proposições de melhoria agrícola, por meio da
tradução de obras estrangeiras patrocinada pelo poder régio. Veloso, já no final do século
XVIII, reconheceu que melhorias vinham ocorrendo havia décadas. Talvez, desejasse
colocar os escritos como base para repensar a agricultura, no que o trecho anterior se
encaixou perfeitamente.
Com esses escritos, a experiência alheia, vista como superior, poderia servir de
parâmetro às mudanças necessárias à agricultura imperial. Aí está, portanto, a razão das
diversas traduções empreendidas. Traduções que fizeram desaparecer outro problema,
pois a falta de conhecimento de idiomas estrangeiros não mais seria motivo da falta de
empenho nas reformas. O conhecimento, teoricamente, estava disponível aos
interessados, traduzido pelos ilustrados luso-americanos e publicado nos
empreendimentos editoriais patrocinados pela Coroa. Se era preciso chegar ao patamar
avançado das demais potências, principalmente daquelas do noroeste europeu, as
traduções evidenciariam as melhores práticas a serem seguidas45.
Todavia, o pensamento de Veloso não se resumiu a essa análise de seu contexto,
das disputas imperiais. Para o frei, também devia ser levada em conta a experiência dos
antigos e nisso, sem dúvida, contou também o passado de Portugal, antes das decisões
equivocadas relacionadas à mineração. Veloso citou práticas de transplante de especiarias
e culturas exóticas ocorridas antes do século XVIII, que, todavia, foram interrompidas
por razões discutíveis. Apesar disso, quando escreveu, “[...] à vista do que têm praticado
as nações que possuem colônias entre os trópicos, [se] tardássemos em seguir os passos
dos antigos e o exemplo dos vizinhos, certamente seriamos censurados de insensíveis”.
Surge aí algo relevante, pois se o movimento reformista luso-americano pôde ser
interpretado à luz de uma suposta divergência de experiência em relação ao noroeste da
Europa, essa diferenciação de temporalidade, envolvendo experiências e expectativas
distintas, tem seu complemento no discurso sobre a situação portuguesa naquele presente
frente ao passado, mais glorioso, dos ibéricos46, repetindo considerações antes feitas por
membros da ARCL.
45
VELLOSO, Frei José Mariano da C. O Fazendeiro do Brazil. Melhorado na economia rural dos generos
já cultivados, e de outros, que se podem introduzir [...] TOM. I. PART. I. Da cultura das canas, e factura
do assucar. Lisboa: Regia Officina Typografica, 1798, p. xiii.
46
Consultar o prólogo, não paginado, de VELLOSO, Frei José Mariano da C. O Fazendeiro do Brazil,
Cultivador, Melhorado na economia rural dos generos já cultivados, e de outros, que se podem introduzir
150
Mas se essa era a base “teórica” do empreendimento, quais seriam os entraves
agrícolas luso-americanos que precisariam ser resolvidos? Os problemas agrícolas, que
necessitavam de soluções, afetavam a própria natureza colonial, causando, por exemplo,
devastações de matas que poderiam ser preservadas. A prática agrícola, aliada à
implementos mal planejados, eram causas desse consumo e destruição de lenha, muito
criticados pelo frei. Se o cultivo do milho, por exemplo, causava muita destruição nos
terrenos, não haveria outra forma de cultivá-lo ou outro grão que o substituísse? Existiam,
sem dúvida para o autor, princípios agrícolas errados que necessitavam de correção. Os
agricultores luso-americanos teriam de abandonar “a tosca e grosseira economia rural dos
primitivos inquilinos do Brasil”, que ainda conseguiram piorar. Com base nisso, quais
seriam as reformas preconizadas por Veloso, ecoando, na verdade, decisões mais amplas,
tomadas no centro do império e baseadas na experiência de outras potências47?
Os lavradores, teoricamente, deveriam empreender uma série de substituições em
sua prática laboral. Em vez do uso de “escravos ou racionais”, a utilização de bois e
cavalos, por exemplo, deveria ser incentivada. No lugar de machados e das cinzas das
queimadas, haveria as enxadas, os arados e os adubos. Dessa forma, seguiriam “[...] tudo
quanto a sabia e iluminada Europa usa nas suas lavouras [...]”. Ademais, não haveria
obstáculos a essas trocas, ou adaptações, visto que “[...] [a] diferença dos climas, das
terras, dos gêneros de cultura, é especiosa e fútil. A natureza é a mesma em toda a parte”.
Tal afirmação, mesmo que pareça desnecessária, era essencial. Se a natureza era igual em
todas as partes do mundo, a tradução de obras estrangeiras, criadas em ambientes
específicos, e a transplantação de novos cultivos teriam sua razão de ser, podendo inspirar
os lavradores luso-americanos48.
[...] Tomo IV. Especiarias. Parte I [...]. Lisboa: Impressão Régia, 1805; também BERBEL, Marcia;
MARQUESE, Rafael de B.; PARRON, Tâmis. Escravidão & Política: Brasil e Cuba, c. 1790 – 1850. São
Paulo: Hucitec & Fapesp, 2010, pp. 11-93; KOSELLECK, Reinhart. “‘Espaço de experiência’ e ‘horizonte
de expectativa’: duas categorias históricas” in Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos
históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006, pp. 305-327; enfim, PAULINO, Mariana, op. cit.,
passim, principalmente as pp. 31-77.
47
VELLOSO, Frei José Mariano da C. O Fazendeiro do Brazil. Melhorado na economia rural dos generos
já cultivados, e de outros, que se podem introduzir [...] TOM. I. PART. I. Da cultura das canas, e factura
do assucar. Lisboa: Regia Officina Typografica, 1798, pp. xviii-xxv. Veloso criticou algumas vezes o modo
pelo qual as fornalhas eram construídas e indicou soluções propostas nas traduções. O uso do bagaço da
cana é citado como forma de diminuir o uso de lenha – ver Idem, Ibidem, pp. xviii-xix e xxviii-xxix. Ver
também FERREIRA, Breno F. L. “Conversação da natureza e modernização agrícola nos prefácios de O
Fazendeiro do Brasil, de frei José Mariano da Conceição Veloso (1798-1806)”. Temporalidades, Belo
Horizonte, v. 11, n. 2, 2019.
48
VELLOSO, Frei José Mariano da C. O Fazendeiro do Brazil. Melhorado na economia rural dos generos
já cultivados, e de outros, que se podem introduzir [...] TOM. I. PART. I. Da cultura das canas, e factura
151
Ou seja, Veloso preconizava novas práticas, uma nova organização agrícola para
a colônia portuguesa, ao mesmo tempo em que suas traduções incentivavam a
diversificação ou a retomada em melhor pé de culturas já conhecidas. As terras seriam
constantemente renovadas, menos terreno seria utilizado na produção, menos escravos
seriam comprados, tudo em benefício do Estado e dos particulares. Os novos cultivos ou
técnicas beneficiariam não somente os lavradores luso-americanos, com novas
oportunidades produtivas, mas também os habitantes do reino, com os ganhos de sua
comercialização. Portanto, era necessário remodelar a cultura agrícola luso-americana,
“inferior” à de outros locais, sempre tendo em vista que não eram os terrenos, a natureza,
a causa das dessemelhanças. Para que tais melhorias surtissem bons resultados, todavia,
urgia outro passo. Seria necessário que a atividade dos colonos fosse acompanhada por
auxílios do Estado, concretizados por meio de legislação comercial, proteção etc. Aqui,
Veloso fecha um interessante raciocínio: era preciso emular práticas alheias
disponibilizadas nas traduções. Em seguida, tais ensinamentos reorganizariam a
agricultura luso-americana, superando os vícios longevos; por fim, os auxílios estatais
também eram necessários. Resgatando considerações do último capítulo, podemos
sustentar que Veloso teceu observações sobre a relação entre o Estado e os particulares e
sobre o modo como as colônias estariam conjugadas à economia do reino49.
do assucar. Lisboa: Regia Officina Typografica, 1798, pp. xxv-xxvi. Ver também PATACA, Ermelinda
M. “Frei Veloso viajante” in PATACA, Ermelinda M.; LUNA, Fernando José (orgs.). Frei Veloso e a
Tipografia do Arco do Cego. São Paulo: Edusp, 2019, pp. 182-185. Nessas páginas, Pataca destacou a
importância das viagens de Veloso pela América portuguesa na posterior escrita das apresentações de “O
Fazendeiro do Brazil”.
49
VELLOSO, Frei José Mariano da C. O Fazendeiro do Brazil. Melhorado na economia rural dos generos
já cultivados, e de outros, que se podem introduzir [...] TOM. I. PART. I. Da cultura das canas, e factura
do assucar. Lisboa: Regia Officina Typografica, 1798, pp. xxvii-xxviii e xxxi; consultar o prólogo de
VELLOSO, Frei José Mariano da C. O Fazendeiro do Brazil, Cultivador, Melhorado na economia rural
dos generos já cultivados, e de outros, que se podem introduzir [...] Tomo III. Bebidas Alimentosas. Parte
I [...]. Lisboa: Oficina de Simão Thaddeo Ferreira, 1800; também consultar o prólogo de VELLOSO, Frei
José Mariano da C. O Fazendeiro do Brazil, Cultivador. Melhorado na economia rural dos generos já
cultivados, e de outros, que se podem introduzir [...] TOMO II. TINTURARIA. PARTE I. Lisboa: Impressão
Régia, 1806. No caso dos ganhos comerciais para o reino e para os colonos, o autor se referiu ao café, mas
acreditamos que tais argumentos são válidos para outras culturas. É interessante o modo como Veloso
elogiou o café enquanto planta e bebida. Suas considerações tratam do modo como era consumido, os
locais, entre outros aspectos. Ver o prólogo de VELLOSO, Frei José Mariano da C. O Fazendeiro do Brazil,
Cultivador, Melhorado na economia rural dos generos já cultivados, e de outros, que se podem introduzir
[...] Tomo III. Bebidas Alimentosas. Parte I [...]. Lisboa: Oficina de Simão Thaddeo Ferreira, 1800. Não se
pode deixar de citar um ótimo trabalho dedicado ao tema da produção e consumo do café: BIANCHINI,
Nicole L. Café e chá na representação visual europeia: 1640-1790. 2021. 339 p. Dissertação (Mestrado
em História Social). FFLCH-USP, São Paulo, 2021. Sobre os problemas da cultura agrícola portuguesa,
Veloso, por exemplo, fez severas críticas aos lavradores luso-americanos no cultivo do índigo. Asseverou
ainda: “[...] cujas fábricas, se fossem de menos rendimento que as açucareiras, também tinham sobre elas a
vantagem de serem mais ao alcance das pessoas menos poderosas, por menos complicadas nos seus
152
Ainda assim, mesmo com auxílio régio, os lavradores podiam cometer erros e
prejudicar as riquezas imperiais. Um caso citado pelo frei foi o do anil:
[...] os fabricantes, homens faltos de toda a instrução, como pela maior parte
são os cultivadores, entregues a certas receitas ou mal copiadas ou mal
vertidas, firmados em experiências próprias sem princípios, longe de terem
feito progresso algum vantajoso, e apesar de terem sido sustentados e
aguilhoados pelas bondades régias, se tem recuado e atrasado lastimosamente
neste fabrico [...]50.
Veloso citou a tradução de escritos estrangeiros, uma das formas teorizadas pelo
autor para sanar os problemas que afligiam a economia portuguesa. Todavia, seu uso não
era diretamente efetivo, uma vez que “[...] à vista delas [das traduções], po[derão]
escolher os cultivadores as que mais lhes quadrarem, e confrontando-as com as suas
práticas e experiências [...] hajam de levar as suas fábricas ao último ponto de perfeição
[...]”. Os sábios portugueses, aqueles ilustrados que planejavam as reformas, deveriam se
dedicar aos assuntos agrícolas por mais que parecessem “grosseiros”, sendo, na verdade,
essenciais à nação. A emulação das práticas alheias, daquelas que outras nações primeiro
aperfeiçoaram, era algo necessário, e Veloso exerceu isso em suas traduções 51.
aprestos, menos dispendiosas no seu custeio, muito menos destruidoras das matas, e por estes lados
superiores àquelas” – ver o prólogo de VELLOSO, Frei José Mariano da C. O Fazendeiro do Brazil,
Cultivador. Melhorado na economia rural dos generos já cultivados, e de outros, que se podem introduzir
[...] TOMO II. TINTURARIA. PARTE I. Lisboa: Impressão Régia, 1806. Além de criticar a inatividade dos
colonos, ainda defendeu que o cultivo assinalado poderia ser uma fonte de renda para os pequenos
lavradores, diversificando a produção, com benefícios ao Estado e aos particulares. Haveria uma
diversificação de produtores no âmbito da diversificação agrícola luso-americana. Ver também VELLOSO,
Frei José Mariano da C. O Fazendeiro do Brazil, Cultivador, Melhorado na economia rural dos generos já
cultivados, e de outros, que se podem introduzir [...] TOM. II. PART. III. Cultura do Cateiro, e criação da
cochonilha. Lisboa: Oficina de João Procópio da Silva, 1800, pp. iv-vii. Sobre as oportunidades criadas
para os pequenos produtores, ver também ARRUDA, José Jobson de A. “A economia brasileira no fim da
época colonial: a diversificação da produção, o ganho de monopólio e a falsa euforia do Maranhão”. Revista
de História, São Paulo, n. 119, 1985/1986/1987/1988, pp. 20-21. Também AZEVEDO, Dannylo de. O
Fazendeiro do Brasil: manuais agrícolas no Brasil colonial em finais do século XVIII. 2018. 315 p.
Dissertação (Mestrado em História Econômica) – FFLCH-USP, São Paulo, 2018, p. 114.
50
Ver o prólogo de VELLOSO, Frei José Mariano da C. O Fazendeiro do Brazil, Cultivador. Melhorado
na economia rural dos generos já cultivados, e de outros, que se podem introduzir [...] TOMO II.
TINTURARIA. PARTE I. Lisboa: Impressão Régia, 1806.
51
Ver o prólogo de VELLOSO, Frei José Mariano da C. O Fazendeiro do Brazil, Cultivador. Melhorado
na economia rural dos generos já cultivados, e de outros, que se podem introduzir [...] TOMO II.
TINTURARIA. PARTE I. Lisboa: Impressão Régia, 1806; VELLOSO, Frei José Mariano da C. O
Fazendeiro do Brazil, Cultivador. Melhorado na economia rural dos generos já cultivados, e de outros,
que se podem introduzir [...] TOMO II. TINTURARIA. PARTE II. Cultura da Indigoeira, e extracção da
sua fecula [...]. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1800, pp. iv-vi. Ao argumentar que as obras
deveriam ser avaliadas pelos lavradores frente às experiências, Veloso afirmou que “[...] traslado as obras
de maior crédito, deixando aos mesmos fabricantes o julgar se são ou não convenientes as suas fábricas,
conforme as circunstâncias do terreno, clima e tempo em que se acham [...]” – ver o prólogo de VELLOSO,
Frei José Mariano da C. O Fazendeiro do Brazil, Cultivador. Melhorado na economia rural dos generos já
cultivados, e de outros, que se podem introduzir [...] TOMO II. TINTURARIA. PARTE I. Lisboa: Impressão
Régia, 1806. Aqui, os terrenos e climas fazem diferença na prática agrícola. Todavia, em outro tomo,
153
Mas como tais escritos seriam utilizados, haja vista que os lavradores poderiam
avaliar e decidir sobre a sua aplicabilidade? Para o frei,
[D]evem ser como cartilhas ou manuais que cada fazendeiro respectivo deve
ter continuamente nas mãos dia e noite, meditando e conferindo as suas antigas
e desnaturalizadas práticas com as novas e iluminadas, como deduzidas de
princípios científicos e abonadas por experiências repetidas que eles propõem
para poderem desbastardar e legitimar os seus gêneros, de sorte que hajam, por
consequência, de poder concorrer nos mercados da Europa a par do dos
estranhos. Isto quer e manda V.A.R., e para isto lhes administra estes subsídios
necessários de que até agora os tinha privado a inércia. Sem livros não há
instrução52.
argumentou que “[...] [a] diferença dos climas, das terras, dos gêneros de cultura, é especiosa e fútil. A
natureza é a mesma em toda a parte”. Ver VELLOSO, Frei José Mariano da C. O Fazendeiro do Brazil.
Melhorado na economia rural dos generos já cultivados, e de outros, que se podem introduzir [...] TOM.
I. PART. I. Da cultura das canas, e factura do assucar. Lisboa: Regia Officina Typografica, 1798, p. xxvi.
Sinal de que o conhecimento agrícola estava em construção e ambiguidades podiam aparecer em obras de
um mesmo autor.
52
VELLOSO, Frei José Mariano da C. O Fazendeiro do Brazil, Cultivador. Melhorado na economia rural
dos generos já cultivados, e de outros, que se podem introduzir [...] TOMO II. TINTURARIA. PARTE II.
Cultura da Indigoeira, e extracção da sua fecula [...]. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1800,
p. iv. Sobre o cacau, disse Velloso, frisando o papel desempenhado pelos práticos, pelos lavradores: “[d]os
autores copiei tudo o que vai escrito a este respeito, que é até onde se poderiam estender os meus deveres
e forças, faltando-me os conhecimentos práticos, deixo aos seus cultivadores o juízo do que a respeito desta
grande cultura se tem escrito [...]” – ver o prólogo de VELLOSO, Frei José Mariano da C. O Fazendeiro
do Brazil, Cultivador, Melhorado na economia rural dos generos já cultivados, e de outros, que se podem
introduzir [...] Tomo III. Bebidas Alimentosas. Cacao. Parte III [...]. Lisboa: Impressão Régia, 1805. Como
visto na apresentação feita por Correia da Serra aos tomos das “Memórias económicas”, os particulares
também teriam seu papel dentro do reformismo ilustrado português.
53
Ver o prólogo de VELLOSO, Frei José Mariano da C. O Fazendeiro do Brazil, Cultivador Melhorado
na economia rural dos genero já cultivados, e de outros, que se podem introduzir [...] Tomo III. Bebidas
Alimentosas. Parte II. Publicado por Fr. José Mariano da Conceição Velloso [...]. Lisboa: Oficina de
Simão Thaddeo Ferreira, 1799.
154
alheias ao mundo luso-americano, complementando as diretrizes da ARCL. Envoltos,
ademais, em uma lógica que combinava a ação individual à do poder monárquico. Tais
traduções auxiliariam na conformação do pensamento luso-americano sobre a agricultura
imperial (seus problemas e soluções), também atadas àquelas considerações mais amplas
vistas no capítulo anterior, relativas à transformação do discurso econômico português e
que conferiram atenção ao papel da agricultura na criação da riqueza imperial. Esses
apontamentos sobre a produção agrícola também fazem parte do entendimento do
desenvolvimento da cultura de arroz nos domínios americanos do Império português: se
não foram esses escritos os responsáveis pela dinamização inicial da produção de arroz
na América lusa, os fatores responsáveis pelo desenvolvimento da produção comercial de
arroz (mercado mundial e transformações do pensamento econômico) também explicam
o surgimento desses textos54. Dito de outra forma, as condições que tornaram possível a
produção de arroz também foram responsáveis pelo surgimento desses escritos, que
responderam a uma realidade produtiva já existente. Teorizaram sobre arroz quando o
cereal já estava sendo cultivado na América e tentaram repensar e racionalizar a produção.
Todavia, ao propor mudanças amplas, inclusive com críticas ao uso do trabalho escravo
e à forma como os colonos lavravam as terras, Veloso, por exemplo, demonstrou
desconhecer a dinâmica colonial.
Além disso, mais importante do que analisar as diversas traduções empreendidas
por frei José Mariano, concernentes a cultivos específicos, as considerações apresentadas
servem como introdução à análise de outras obras relacionadas aos empreendimentos
editoriais e econômicos luso-americanos. Uma delas, de particular alcance e importância,
foi o “Discurso sobre o melhoramento da economia rustica do Brazil”, escrita por José
Gregório Navarro e publicada em 1799 pela oficina de Simão Thaddeo Ferreira. O próprio
título demonstra a relevância da análise para o nosso objeto de estudo, e esse escrito nos
ajuda a entender aquele desconhecimento da dinâmica produtiva colonial que afetou os
textos ilustrados.
O autor iniciou sua argumentação elogiando a qualidade da terra, “mãe comum de
todos os viventes”, mas logo apresentou uma série de erros cometidos pelos lavradores
em seu trato. No caso da América, o argumento permaneceu: se, no início da colonização,
54
Para um aporte teórico acerca da adaptação de ideias econômicas, ver CARDOSO, José Luís.
“Circulating economic ideas: adaptation, appropriation, translation” in CUNHA, Alexandre M.;
SUPRINYAK, Carlos Eduardo. The Political Economy of Latin American independence. London/New
York: Routledge, 2017, passim.
155
os terrenos foram férteis, logo, por meio de queimadas e erradas práticas, os lavradores
empobreceram os terrenos, prejudicando a agricultura. Como solução, foram em busca
de novos terrenos ou buscaram extrair os metais, “que lisonjeavam mais a sua ambição”.
Tais práticas prejudicaram não só a própria agricultura, mas as cidades que dela
dependiam. Navarro, em um pequeno parágrafo, tentou teorizar uma suposta “ruína
agrícola” da América portuguesa, dando-lhe como causa as erradas práticas dos
lavradores, que inutilizavam os terrenos. A mineração, nesse caso, não é tanto vista como
causa do abandono agrícola, mas como necessária consequência da inutilidade agrícola
dos terrenos. Na falta de boas terras, os antigos agricultores deram espaço a sua
ambição55.
E qual seria o prognóstico? Navarro supôs, por um lado, que dificilmente a
conduta seria transformada, pois os homens tinham maus hábitos ou consideravam
somente “o seu interesse particular e aparente [em vez do] interesse público, real e
verdadeiro”. Com isso, a situação tenderia à ruína antes descrita. Mas nem tudo estava
perdido. Navarro, sem surpresas, propôs alguns remédios para o problema. Os lavradores
deveriam retornar às suas terras pouco férteis e utilizar o arado para reanimá-las56:
[...] Só ele é capaz de preparar com perfeição a terra para canaviais, feijoais,
arrozais e para todo o gênero de grãos e de sementes, com tanta vantagem que
um só preto com uma junta de bois pode lavrar tanta terra como vinte pretos
com o uso da enxada, o que se pode provar todos os dias com a experiência.
Aquelas terras assim lavradas não tornam mais a criar as raízes que a faziam
infrutuosa e ficam sendo capazes das melhores produções. Aí temos já as
grandes povoações cercadas de grandes fazendas para lhes fornecer os gêneros
da primeira necessidade por muito menor preço; aí temos lavradores com 40
escravos e algumas juntas de bois fazendo o mesmo serviço e conveniência
que outros, sem o uso do arado, com quatrocentos escravos. Aí temos os
escravos mais contentes, mais sadios, mais duráveis, porque o trabalho é muito
mais suave. Aí temos finalmente a terra prodigalizando outra vez as suas
riquezas57.
O arado por meio de sua utilização por escravos, seria capaz de fazer os terrenos
voltarem a produzir gêneros de primeira necessidade. Aqui o arroz é visto como essencial
ao consumo local, como alimento de subsistência, sendo responsável pela alimentação
dos núcleos urbanos nos arredores das plantações. Não só, o arado permitiria uma
produção mais “racional”, explorando menos escravos e de modo mais condizente com
55
Ver NAVARRO, José Gregório de M. Discurso sobre o melhoramento da economia rustica do Brazil,
pela introducção do arado, refórma das fornalhas, e conservação de suas mattas [...]. Lisboa: Oficina de
Simão Thaddeo Ferreira, 1799, pp. 7-12.
56
Idem, Ibidem, pp. 12-14.
57
Idem, Ibidem, pp. 14-15.
156
os objetivos senhoriais, oferecendo os cultivos a menores preços. Os cativos, por seu
turno, se tornariam supostamente mais duráveis. Aquela ferramenta agrícola, portanto,
apesar de críticas feitas ao seu uso, se mostrava, para Navarro, muito útil à realidade
agrícola da América portuguesa; seria um modo de melhorar a rusticidade do cultivo
agrícola nesses domínios luso-americanos58.
E qual teria sido uma boa forma de espraiar o uso desse implemento agrícola?
Mais do que por meio de penas ou prêmios, a utilização do arado nas terras pertencentes
à Coroa teria sido um belo exemplo aos demais agricultores. Aliada a isso, Navarro ainda
defendeu a preservação de matas, para o uso de sua lenha e madeira, e o envio de espécies
de árvores do reino para a América portuguesa59. Dessa forma, argumentou:
Que poucas coisas é preciso introduzir-se e praticar-se para fazer o Brasil o
país mais rico e mais afortunado de todo o mundo! A introdução e uso do arado
e das fornalhas de nova invenção; a conservação das árvores úteis e
necessárias, a plantação dos que forem destes reinos, a criação do gado lanisco.
Eis aqui, segundo me parece, todo o plano do melhoramento e da reforma da
agricultura do Brasil. Parece que é chegada a época da sua maior felicidade
porque o Príncipe Nosso Senhor, que tem por título o seu nome, se lembra dele,
e dos seus naturais e habitadores com paternal cuidado; e o sábio ministro que
do céu lhe foi mandado, para promover a causa dos moradores das três partes
do mundo, não sossega nem descansa para satisfazer perfeitamente as virtuosas
intenções de um príncipe tão bom, que já principia a reinar nos corações dos
seus fieis vassalos60.
58
Sobre as críticas ao arado, ver NAVARRO, José Gregório de M. Discurso sobre o melhoramento..., p.
15. Navarro não concordou com críticas ao uso do arado em solo luso-americano. Uma delas dizia respeito
a seu manejo em terrenos com raízes. O autor disse que “[...] é verdade que o uso do arado é impraticável
nas terras muito novas e que não têm sido trabalhadas, mas qual é a fazenda do Brasil, por mais nova que
seja, que não tenha algum pedaço de terra suscetível do arado e que não vá tendo pelo decurso dos anos
outra maior porção de terra desta natureza? Quem não sabe que a terra de maiores árvores, que chamamos
de mato virgem, sendo trabalhada no espaço de doze até quinze anos, fica sendo capaz de se lavrar! [...]” –
Idem, Ibidem, pp. 15-20. Para uma discussão sobre o assunto, mostrando que o arado tinha outras
dificuldades em sua implementação, validando as críticas dos colonos, ver POMBO, Nívia. “O Fazendeiro
do Brasil, de frei Veloso, e a economia rural da América portuguesa (1798-1806)” in SILVA, Bruno;
FURTADO, André (orgs.). Passados impressos: estudos sobre a circulação de ideias (séculos XVII-XX).
Curitiba: Editora CRV, 2018. Ver também CRUZ, José Carlos et al. “Manejo do solo e sistema plantio
direto” in CRUZ, José Carlos et al. (eds. técs.). Milho: o produtor pergunta, a Embrapa responde. Brasília:
Embrapa Informação Tecnológica, 2011, pp. 59-72.
59
Ver NAVARRO, José Gregório de M. Discurso sobre o melhoramento..., pp. 17-20.
60
Idem, Ibidem, pp. 19-20.
157
americanos não eram como aqueles do Velho Mundo, congelados no inverno e que
precisavam ser revirados para o cultivo se tornar possível. Aqui, o uso do arado acabava
por fazer o solo perder nutrientes e umidade com a exposição ao calor, prejudicando,
portanto, a lavoura. Por outro lado, o uso do instrumento ia contra a própria configuração
escravista colonial. Todo senhor de escravos devia relacionar o número de cativos às
necessidades da colheita e beneficiamento, momentos mais relevantes da produção
colonial e em que mais mão-de-obra era necessária. Na época do plantio, todavia, muitos
cativos ficavam mais ociosos, o que trazia preocupações para os senhores, que buscavam
controlar e disciplinar sua mão-de-obra. O uso do arado, em tal contexto, acabaria por
facilitar o trabalho dos cativos justamente na época do plantio, deixando-os mais ociosos,
trabalhando menos e prejudicando os desígnios senhoriais. Por isso, querendo repensar a
realidade colonial, Navarro e Veloso esbarraram em desconhecimentos sobre a
configuração natural e produtiva da América lusa61.
O livro de Navarro reforça as considerações antes vistas de frei Veloso. Se “O
Fazendeiro do Brasil” explicitamente destacou a necessidade de diversificação de
cultivos, haja vista os variados tomos destinados ao açúcar, café ou ainda ao anil, a obra
de José Gregório Navarro também destacou tal tema e, conjuntamente, a necessidade de
melhorias técnicas na produção, ali materializadas, por exemplo, na utilização do arado.
Se Navarro procurou soluções para os problemas agrícolas, seu livro original as propôs
de modo articulado, inclusive destacando o espaço local dedicado aos arrozais. Todavia,
seguindo algo que outros ilustrados fizeram, alguns de seus apontamentos demonstravam
um desconhecimento da organização da produção, prejudicando os modos tecidos para
repensar a agricultura colonial.
61
Para a base da não-aceitação do arado, ver POMBO, Nívia. “O Fazendeiro do Brasil, de frei Veloso, e a
economia rural da América portuguesa (1798-1806)” in SILVA, Bruno; FURTADO, André (orgs.).
Passados impressos: estudos sobre a circulação de ideias (séculos XVII-XX). Curitiba: Editora CRV, 2018,
p. 27 (consultar a nota n. 43); AZEVEDO, Dannylo de. O Fazendeiro do Brasil..., pp. 128-129; CRUZ,
José Carlos et al. “Manejo do solo...”; também HOLANDA, Sérgio B. de. “Do chuço ao arado” in
Caminhos e Fronteiras. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 204-208. Para o argumento
relacionado à escravidão, ver GORENDER, Jacob. “Leis da rigidez da mão de obra escrava” in O
escravismo colonial. 6ª ed. São Paulo: Expressão Popular/Perseu Abramo, 2016, pp. 249-274,
especialmente as pp. 253 e 255-256; também CARDOSO, Fernando Henrique. “Estrutura econômica e
política da sociedade escravocrata” in Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade
escravocrata do Rio Grande do Sul. 5ª edição revista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 217.
158
Tais melhorias técnicas atreladas à diversificação da produção também
referenciaram de modo mais direto a produção de arroz no império português. Devemos
analisar outro escrito estrangeiro, apresentado ao público letrado português, com vistas a
compreender quais foram as informações recebidas de outros espaços europeus e
atlânticos que conformaram o conhecimento luso acerca da rizicultura e do arroz. Trata-
se da tradução dos dois volumes da obra American Husbandry, publicados originalmente
em Londres em 1775 de forma anônima. Foi também com base nas informações das então
colônias britânicas que os ilustrados portugueses puderam apresentar obras com potencial
de transformar a situação agrícola colonial. As traduções vieram à tona em 1799, pelas
mãos de José Feliciano Fernandes Pinheiro e Antônio Carlos Ribeiro de Andrade. Ambos
os volumes foram impressos na Oficina de Antônio Rodrigues Galhardo. A tradução
apresentou informações sobre diversas colônias da Grã-Bretanha, desde a Nova Escócia
e Canadá até a Nova Inglaterra, Pensilvânia, Virgínia e a Luisiana Oriental, sem deixar
de considerar a Jamaica e Barbados. Para nossos propósitos, relacionados ao arroz, houve
discussões sobre a Carolina do Norte (setentrional), Carolina do Sul (meridional),
Geórgia, Flórida Oriental e Ocidental, em que o cereal foi citado e avaliado pelo autor
anônimo. A cultura de arroz já estava estabelecida em Portugal havia séculos, com boa
parte de seus arranjos conhecidos, e tais traduções buscaram oferecer meios para repensar
o saber rizicultor teoricamente acessível aos ilustrados e lavradores portugueses 62.
Com capítulos dedicados às colônias britânicas, a obra apresentou, criticamente,
informações sobre a geografia, a agricultura e o comércio coloniais. Como bem atestou
Rafael Marquese, o autor apresentou os cultivos coloniais, as técnicas agrícolas e as
possíveis melhorias. Tais sugestões, semelhantes às propostas dos ilustrados portugueses,
englobaram desenvolvimentos técnicos e a diversificação produtiva. Como aspecto
particular dessa composição, “[a] todo momento, a agricultura metropolitana foi lembrada
como parâmetro de excelência técnica a ser seguido pelas colônias”. Escrita após a Guerra
62
Cultura americana que contém huma relação do terreno, clima, producção, e agricultura das colonias
britanicas no norte da America, e nas Indias Occidentais... pelo bacharel José Feliciano Fernandes
Pinheiro, em dois volumes. Vol. I. Publicado por Fr. José Mariano da Conceição Velloso.... Lisboa: Oficina
de Antonio Rodrigues Galhardo, 1799; Cultura americana que contém huma relação do terreno, clima,
producção, e agricultura das colonias britanicas no norte da America, e nas Indias Occidentais... pelo
bacharel Antonio Carlos Ribeiro d’Andrade, em dois volumes. Vol. II. Publicado por Fr. José Mariano da
Conceição Velloso.... Lisboa: Oficina de Antonio Rodrigues Galhardo, 1799. Sobre a autoria do original
em inglês, creditou-se a obra a Arthur Young, mas isso foi posteriormente revisto – ver MARQUESE,
Rafael de B. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas
Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 232; ver também a introdução de
CARMAN, Harry (org.). American Husbandry (1ª ed., 1775). Port Washington: Kennikat Press, 1964.
159
dos Sete Anos, em um momento de crise, a obra visou melhorar as relações entre as
colônias e Londres, questões que interessariam e muito aos ilustrados reformistas luso-
americanos. Como será visto adiante, buscou reforçar os laços coloniais63.
Antes de apresentar as informações sobre o arroz que puderam ser acessadas pelos
portugueses, não se pode deixar de analisar rapidamente o pequeno mas interessante
prefácio escrito por José Feliciano Pinheiro. Nele, o tradutor destacou que a obra original
buscara corrigir os problemas da “economia rústica das colônias inglesas”, o que nos faz
lembrar da argumentação de José Gregório Navarro e Veloso, ou seja, o desejo de
repensar a realidade agrícola. Se isso foi possível em terrenos vistos como inferiores aos
das colônias portuguesas, o que se poderia esperar, então, para Portugal 64? Segundo
Pinheiro,
“[...] que incalculáveis consequências não resultarão de se naturalizarem estas
ideias proveitosas e os sistemas mais apropriados nas colônias portuguesas da
América, clima o mais benigno, região a mais bela do meio-dia? Haja um
estímulo nobre de despertá-las do sono letárgico, que as acabrunha, e dissipar
a languidez funesta, que encadeia todos os princípios de fecundidade nos
campos os mais férteis do universo!”65.
63
MARQUESE, Rafael de B. Feitores do corpo, missionários da mente..., pp. 232-233.
64
Cultura americana... Vol. I... (consultar a apresentação inicial da obra).
65
Idem, Ibidem.
160
desprezo pela rizicultura colonial britânica. Nessa região, que não produziria tanto arroz,
haveria a falta de portos e cidades comerciais, criando obstáculos à cultura do cereal. Ao
mesmo tempo, tal problema teria suas vantagens, pois teria feito “[...] recuar os novos
colonos para o sertão, e os obrigou a entregarem-se à agricultura comum em um terreno
e em um clima apropriado a produções muito mais valiosas que o arroz [...]”. Tal repulsa
pelo cereal e por seu local de produção foi reforçada ao longo das páginas e capítulos
seguintes66.
O escritor também teceu críticas a outros “defeitos” agrícolas da colônia. Um
deles foi a falta de utilização de estrumes de animais, graças à facilidade de acesso a terras
férteis que dispensava o cuidado com as que eram cultivadas. A produção baixa, por outro
lado, não estaria relacionada à natureza local, mas a uma agricultura vista como “ruim”.
Para o autor, caso o interior da colônia fosse cultivado, a cultura de arroz não
necessariamente deveria ser estimulada, haja vista que era cultivado na Carolina do Sul
“[...] onde há pauis67 suficientes para colher-se mais do que poderão jamais vender [...]”68.
Como uma das propostas de melhorias, o autor defendeu que os novos habitantes
vivessem no interior da colônia, região mais saudável, cultivando anil, seda e algodão. E
o motivo seria o benefício econômico da metrópole, longe de apenas buscar o bem-estar
dos potenciais habitantes69:
É este um melhoramento que adiantaria muito os interesses da Grã-Bretanha,
porque o anil, algodão e a seda são gêneros que ela compra aos estrangeiros
por grande preço; e se tivesse mais do que o necessário para o consumo de suas
próprias manufaturas, eles são artigos de pronta venda em toda a Europa, de
sorte que nada requer mais o cuidado da metrópole do que aquelas suas
colônias que são próprias por natureza a produzi-los [...]70.
66
Cultura americana... Vol. I..., pp. 287-288, 292-293.
67
Segundo o dicionário Priberam, o paul é um “[t]erreno alagado com água estagnada”. Consultar:
<https://dicionario.priberam.org/pauis>. Acesso em 01 de junho de 2021
68
Cultura americana... Vol. I..., pp. 294, 300 e 310-311.
69
Idem, Ibidem, pp. 306-308. Outro exemplo desse interesse político metropolitano foi dado
posteriormente, na parte da obra dedicada à Carolina do Sul: “[...] porque em todas estas províncias ao Sul
produzem-se gêneros valiosos, que põe os habitantes em estado de comprar as manufaturas da Grã-
Bretanha, o que não sucede nos estabelecimentos ao norte [...]” – Idem, Ibidem, p. 359.
70
Cultura americana... Vol. I..., pp. 307-309.
161
antes analisadas. Pode ser estranho o arroz não figurar no trecho, sendo ele um importante
cultivo regional. A argumentação posterior, todavia, tornou tudo mais compreensível.
Também foi dito que o interior da colônia da Carolina do Norte traria um bom
ambiente para lucros e para a vida dos habitantes, inclusive aumentando a vida dos
escravos, essenciais para o cultivo de variados produtos. O autor ainda defendeu um
sistema de rotação de culturas para o benefício da agricultura local. De tal forma, quando
a terra não mais produzisse grãos, devido à contínua utilização, deveria ser semeada com
gramas para formar pastos, com vistas a alimentar os rebanhos. Por fim, não deixou de
criticar a falta de limpa nos campos cultivados71.
Vemos considerações que se repetiriam nos diversos trabalhos da ilustração
portuguesa, visando uma boa conexão entre agricultura e pecuária e melhores métodos
no trato dos terrenos. Objetivava-se “[...] o plantio de novos tipos de forragem para o gado
(com o objetivo de aumentar a quantidade de animais [...] e por consequência a produção
de adubo), o plantio de novas variedades de legumes e cereais, a rotação de culturas
[...]”72. São ideias vistas em várias obras do período, não apenas naquelas publicadas no
contexto imperial britânico. Os escritos reformistas luso-americanos também utilizaram
parte dessa perspectiva.
Em seguida, ao colocar seus olhos mais ao sul, na Carolina meridional, o autor
iniciou com considerações sobre o clima. Não deixou de criticar os “eflúvios” vindos dos
campos de arroz que prejudicariam a vida local – argumentação recorrente à época, como
será visto adiante na dissertação. Analisou as produções locais e a qualidade dos terrenos
e, novamente, prezou pela parte interior da colônia, local fértil, saudável, muito diferente
da costa, da região dos arrozais. Os campos para o citado cereal estavam localizados
somente no litoral, não podendo ele ser cultivado no interior do país – algo, aliás, glorioso
para o autor. Os homens e mulheres que se aventurassem nessa colônia deveriam seguir
para o interior e ali conseguiriam “[...] gêneros melhores e mais valiosos do que o arroz”.
Ficou patente a preferência pelo interior da colônia e o desprezo pelo citado cereal73.
71
Cultura americana... Vol. I..., pp. 310-311, 312, 314 e 317-318. Essa ocupação interiorana geraria
produções “complementares à economia metropolitana” (como seda, anil e tabaco), intensificando “a
política mercantilista inglesa”. Ver MARQUESE, Rafael de B. Feitores do corpo, missionários da mente...,
p. 234. Vemos a construção do argumento político, ao lado de um outro, agrícola e médico.
72
Ver MARQUESE, Rafael de B. Feitores do corpo, missionários da mente..., p. 229.
73
Cultura americana... Vol. I..., pp: 323-324, 325-337.
162
Ainda assim, ao falar com mais detalhes sobre a cultura arrozeira na Carolina do
Sul, o autor não se furtou e dedicou um bom espaço à descrição da cultura do cereal. Ao
mesmo tempo, não deixou subentendidas suas críticas a tal cultivo. Vale a pena ler o
extenso trecho, tendo em vista que tal descrição foi uma das mais completas que pôde
chegar a Portugal, auxiliando potencialmente na modelação do conhecimento rizicultor
português, ao menos daquele debatido entre os ilustrados:
O arroz é ainda a grande produção de comércio da Carolina Meridional, e por
ele desprezam os plantadores o sadio e ameno sertão para viverem nos
Horrores da costa; este é o nome que os americanos dão aos pântanos: o arroz
se pode cultivar somente em terras tão baixas que se possam alagar à vontade
e todas as terras dessa costa na Carolina são necessariamente pântanos. A
primeira coisa que devem fazer é enxugá-los, trabalho em que não têm métodos
particulares que mereçam ser noticiados ou sejam desconhecidos na Inglaterra.
Apenas os enxugam, derrubam as árvores, que em alguns são muito numerosas
[...]. Com tudo não esperam que a terra fique limpa deles, mas começam a
plantar o seu arroz entre os troncos. Plantam em março, abril e maio; os negros
abrem regos em distância de dezoito polegadas, e perto de três polegadas de
fundo, nos quais lançam as sementes [...] depois de plantado deixam-lhe água
até certa profundeza, a qual se repete, e tira diferentes vezes durante o tempo
do seu crescimento [...]. O principal objeto de cultura é conservar a terra limpa
de ervas [...]. Isto é somente o que é preciso fazer até a colheita, a qual
ordinariamente se faz pelos fins de agosto, ou princípios de setembro [...]
depois do que o metem em celeiros, ou dispõe em medas do mesmo modo que
se faz aos grãos na Europa74.
A seguinte operação é como nas outras castas de grãos malhá-lo e depois crivá-
lo, o que primeiramente era uma operação muito enfadonha, mas
presentemente se acelera muito com o uso de uma joeira de vento. Depois de
crivado moe-se para se livrar da casca; isto se faz em moinhos de madeira de
perto de dois pés de diâmetro: criva-se então de novo, e se põe em um pilão de
largura suficiente para conter meio algueire, no qual os negros o batem com
mãos de pilão para assim o desprenderem de sua casca espessa; esta operação
é de muito trabalho. Em ordem a separá-lo da flor da farinha, ou pó feito ao
pisar-se, é peneirado, e de novo se passa por outra peneira, que se chama de
mercado, a qual separa o arroz quebrado e miúdo, depois do que se embarrica,
e fica pronto para vender-se75.
74
Cultura americana... Vol. I..., pp. 338-339.
75
Idem, Ibidem, pp. 339-340.
163
foram mais dirigidas aos problemas envolvidos no cultivo. Além de não haver métodos
que mereciam descrições, foi apontado mais um inconveniente da cultura:
O leitor deve observar nesta relação que a cultura desta planta é terrível; pois
a poder-se imaginar um trabalho particularmente mal são e ainda fatal à saúde
deve ser o de estar, como os negros, metido até os artelhos, e ainda meia perna,
em água, que cobre um lodo atoladiço, e exposto em todo esse tempo a um sol
abrasador, que faz o mesmo ar que eles respiram mais quente que o sangue
humano. Estes pobres miseráveis estão então em uma fornalha de eflúvios
fétidos e podres: apenas se pode imaginar um emprego mais horrível, não é
muito inferior ao de cavar no Potosí [...]76.
O autor anônimo, aqui traduzido, defendeu a ideia de que o trabalho nos arrozais
seria insuportável, inclusive afetando a condição e vida dos escravos. Não só, a perda de
cativos causada pelas más condições da cultura afetaria o bolso dos senhores, com as
necessárias reposições. Contudo, não se pode deixar de questionar: se o arroz teria tão
grandes problemas e seria a origem de tamanhas dificuldades, por que continuaria a ser
cultivado? Parte da resposta, para o autor anônimo, estaria no costume. Os cultivadores
viam no arroz sua fonte de riqueza. Na verdade, estariam presos ao passado, quando ainda
não havia a possibilidade de outros cultivos. As críticas ao arroz, todavia, também tinham
outro fundamento77.
Na base, o argumento do autor foi sobretudo político. Era preciso conciliar as
produções coloniais aos anseios comerciais da metrópole. O governo deveria incentivar
a produção de anil, tabaco, da seda e não do arroz, pois esse último competia por mercados
com o trigo produzido na metrópole. Afinal, “[...] todo o arroz vendido à Espanha e a
Portugal os habilita a passarem sem outro tanto do nosso trigo; e o mesmo sucede em
parte com a Alemanha [...]”. Ainda assim, não defendeu a restrição ao cultivo arrozeiro,
haja vista que “[...] não sei se podemos suprir de trigo todos esses mercados, supondo que
eles no-los comprem, e também porque o valor do arroz se dispende todo em mercadorias
britânicas [...]”78.
Ainda reforçando esse argumento, o autor atestou que a colônia não devia e não
podia depender do arroz para seus ganhos. As remessas do cereal, destinadas ao norte da
Europa e à Península Ibérica, dependeriam “miudamente da abundância de pão”, algo que
76
Cultura americana... Vol. I..., p. 340.
77
Cultura americana... Vol. I..., pp. 340-341 e 344-345.
78
Idem, Ibidem, pp. 344-345. Outros cultivos, tais como o anil, não trariam nenhuma desvantagem,
diferentemente do arroz – Idem, Ibidem, p. 345. Sobre o “argumento político” criado pelo autor anônimo,
ver MARQUESE, Rafael de B. Feitores do corpo, missionários da mente..., pp. 233-236.
164
poderia mudar no futuro, afetando as exportações britânicas, como já vinha ocorrendo em
Portugal desde 1750. Dessa forma, o autor pareceu preconizar uma expansão das
exportações coloniais, que não afetasse as vendas da metrópole destinadas à Europa.
Deveria haver o aumento das exportações sem criar competição dentro do império
britânico. Os colonos empregados no cultivo dos terrenos americanos seriam um natural
complemento às atividades manufatureiras metropolitanas79.
A produção de itens necessários à metrópole e vantajosos aos interesses coloniais,
aliada à não competição com o comércio metropolitano, seria o desejado caminho para o
império britânico. Isso destacaria positivamente as colônias meridionais, incluindo a
Carolina do Sul – e por essa razão o arroz não deveria ser incentivado80.
E, por fim, quais foram os melhoramentos necessários e aconselhados para a
colônia? O autor não deixou de lembrar o problema causado pela abundância das terras,
o que fazia com que os habitantes fossem “maus agricultores”. Como era fácil ganhar o
sustento em terras imensas e férteis à sua disposição, cuidados com a cultura eram
dispensados. Somados a isso ainda apareciam a crítica ao modo como os cultivadores
lidavam com as ervas daninhas, a necessidade de utilização de animais no cultivo, bem
como alguns implementos, e, enfim, os benefícios do cultivo conjunto de variedades.
Frisou, novamente, a necessidade de bons pastos para sustentar o gado, sem prejuízos
para a colônia, pois “[...] [a] grama, sendo bem dirigida, seria tão proveitosa como o pão,
e podia adquirir-se sem alguma diminuição da quantidade dele em um país onde a terra é
tão abundante [...]”. Foram defendidos ainda um sistema de culturas e a introdução de
gramas vindas do exterior. Ao aconselhar o plantio de trigo e trevo no interior da colônia,
vemos a proposta ligação entre a agricultura e a pecuária (o trevo poderia ser utilizado
como alimento para os rebanhos)81.
De modo surpreendente, o autor enxergou uma forma de conciliar a cultura do
arroz com os bons terrenos do interior da colônia. A estrutura da produção, todavia, seria
79
Cultura americana... Vol. I..., pp. 355-356 e 377-378. Sobre as relações entre colônias e metrópole, disse
o autor: “Considerando-se com vistas nacionais, não podem resultar ruins consequências de manifestar os
grandes lucros que é possível fazer pelas plantações na Carolina; pois que todos os habitantes desta
província estão empregados em bem da Grã-Bretanha, e a agricultura é uma ocupação bem proveitosa para
lhes permitir pensar em manufaturas; todo o seu vestuário, sustento, instrumentos e uma variedade de outros
artigos vem da Grã-Bretanha, além de que a exportação e importação ocupam muitos navios e marinheiros
da metrópole [...] – Idem, Ibidem, pp. 377-378. Tal proposta se assemelha muito àquela de Coutinho sobre
a organização do império português, vista nas páginas 103 e 104 deste trabalho.
80
Idem, Ibidem, pp. 382-383.
81
Idem, Ibidem, pp. 398-406 e 411.
165
diferente, com uma nova variedade; somente desse modo o arroz era aceitável aos olhos
do escritor anônimo. Tratou-se de uma melhoria que envolveria também a importação de
uma espécie exótica:
Há outro melhoramento que merece aqui mencionar-se; é a cultura daquela
espécie de arroz que se dá nas terras secas e mesmo nas colinas e montanhas.
Esta espécie é bem conhecida nas diversas partes das Índias Orientais, e
seriam, no interior da Carolina Meridional, de utilidade, como um novo arrimo
dos plantadores que ali se fixassem; e seria de muito mais vantagem obter este
grão de um país sadio do que dos pântanos insalutíferos da parte marítima. Sem
dificuldade se conseguiria da Índia algumas sementes deste arroz, e ao menos
valeria a pena de experimentar-se82.
O autor pôde até reconhecer a importância do cereal para algumas das colônias do
sul, mas os locais de cultivo, os métodos de cultura e os problemas comerciais criados
pelo grão o desabonariam. Uma forma, inicial talvez, de melhorar o espaço do cereal seria
a introdução de uma variedade adaptada aos solos secos do interior da colônia. A costa
dos “Horrores” seria, em parte, abandonada, e a produção do cereal, provavelmente
menor, não saturaria o mercado e não competiria com outros grãos produzidos no espaço
imperial britânico83.
Enlaçando os argumentos sobre a diversificação de cultivos com a necessidade
política de melhorar a situação imperial, o autor usou do exemplo das vinhas. Se antes
faltava conhecimento sobre tal cultura, a situação era distinta quando o autor escreveu. O
novo entrave era a falta de recursos daqueles que queriam nela “investir”. Devido a isso,
e lembrando boa parte da argumentação dos reformistas lusos, atestou que “[...] é a tais
homens que se deviam dar socorros públicos, pois que a nação é ainda mais interessada
nos seus sucessos do que eles próprios”. A cultura das vinhas traria benefícios não só aos
particulares, mas a todo o império, pois a importação de vinhos – inclusive os da Madeira
– pesava na balança comercial britânica, prejudicando o comércio e as finanças imperiais.
82
Cultura americana... Vol. I..., pp. 411-412.
83
O arroz produzido em locais secos, o arroz de sequeiro, tem uma produção inferior à daqueles cultivados
em locais úmidos e inundados. Ver, por exemplo, COCLANIS, Peter. “The road to commodity hell: the
rise and fall of the first American rice industry” in FOLLET, Richard; BECKERT, Sven; COCLANIS,
Peter; HAHN, Barbara. Plantation Kingdom: the American South and its global commodities. Baltimore:
Johns Hopkins University Press, 2016, p. 17; também SMITH, Hayden. Rich swamps and rice grounds:
the specialization of inland rice culture in the South Carolina Lowcountry, 1670-1861. 2012. 319 p. Tese
(Doctor of Philosophy). The University of Georgia, Athens, 2012, p. 38; DETHLOFF, Henry. “The colonial
rice trade”. Agricultural History, Mississippi State, v. 56, n. 1, 1982, pp. 238-239.
166
Dessa forma, não seria ruim que a demanda por vinhos fosse atendida também por uma
produção colonial britânica, que necessitava de incentivos do governo84.
A agricultura deveria ser variada, criando alternativas produtivas para os colonos.
Em tal caso, as atividades nas diversas plantations ou nas menores propriedades poderiam
ocorrer ao longo de todo o ano, com maiores lucros garantidos aos proprietários. Os
escravos, por seu turno, seriam mantidos sempre ocupados, tendo em vista que as ações
de “[s]emear de inverno diversas novidades, malhar, transportar e vender outras, construir
sebes, estrumar e fazer outros trabalhos, conservariam os escravos de uma plantação
regularmente ocupados por todo o inverno [...]”. De tal forma, os cultivadores carolinos
emulariam as práticas dos “melhores agricultores da Europa”, fazendo os escravos
trabalharem mais, auferindo maiores lucros85.
Por fim, o autor fez suas considerações sobre a Geórgia e as duas Flóridas. No
caso da primeira colônia, citou o incentivo a produção de seda, cânhamo e vinhos –
inclusive dizendo que houve experimentos com “cachos bravios” e atestando que tentou-
se trazer “um vinhateiro bem experimentado, com algumas cepas de Borgonha” da
França. Sinal da conjugação da experimentação agrícola com as teorizações sobre o
mesmo assunto. Ao mesmo tempo, defendeu os bons métodos na cultura das terras, que,
possivelmente, deveriam ser ensinados aos ignorantes cultivadores. Esses últimos
estariam propensos a cultivar gêneros conhecidos, do costume, menosprezando outros
que prometiam maiores ganhos. Pessoas com bons conhecimentos sobre diversos cultivos
deveriam ser trazidas para ensinar os cultivadores locais. Premiações, “tanto honorárias,
como pecuniárias”, deveriam ser utilizadas para incentivar os lavradores georgianos. A
instrução dos lavradores, aliada ao incentivo por meio de prêmios, seria o caminho a ser
adotado – e que os reformadores portugueses também seguiram mais tarde86.
84
Cultura americana... Vol. I..., pp. 412-413. Novamente citando o problema das importações e sugerindo
a possibilidade de criar exportações, vemos a defesa do cultivo do cânhamo: “[...] Tais tratos são numerosos,
e, se cultivassem bem o cânhamo, nos poupariam grande porção das imensas somas que se pagam
anualmente ao Báltico por esta mercadoria. [...] a América então teria cânhamo de mais para suprir todas
as nossas precisões e as suas também; e a medida que as colônias aumentassem em cultura, a Europa seria
um mercado constante para tudo que elas produzissem [...]” – Idem, Ibidem, pp. 416-417. Substituição de
importações atrelada à criação de ramos comerciais: tal junção não é uma novidade específica desse
trabalho.
85
Cultura americana... Vol. I..., pp. 418-419.
86
Cultura americana... Vol. II..., pp. 19-25 (o autor cita uma carta recebida), 29 e 31-33. Enfim, o autor
elencou uma série de artigos importados do exterior pela Grã-Bretanha, cuja produção deveria ser
incentivada na América, fazendo com que a balança comercial em relação ao exterior se tornasse mais
equilibrada: cânhamo, linho, vinhos, seda, azeite, ruiva (provavelmente a garança), lã e algodão. Em vez
167
Em relação às duas Flóridas, o autor as considerou criticamente. Citando as
condições produtivas, não concordou com a ideia de que a região tivesse potencial
rizicultor; considerou que “[...] os pauis, de que estávamos de posse, antes da aquisição
da Flórida, poderiam, sendo cultivados, produzir mais arroz do que o que consome metade
do mundo”. A região poderia produzir arroz ou anil, mas não conseguiria competir com
a Carolina em tal questão e nem haveria necessidade para isso. Dessa forma, desencorajou
a ida de novos colonos à região, dizendo que melhor fariam se fossem ao interior das
demais colônias britânicas (não às partes marítimas, produtoras de arroz). Nessa região,
na verdade, deveria haver a construção de fortalezas; nela, navios de guerra e comércio
deveriam ser abrigados: “[...] quanto a plantações, não se devem animar nenhumas, exceto
aquelas que forem subordinadas aos fins de abastecer as guarnições e navios [...]” 87.
*
Para o império português, tal tradução disponibilizou conhecimentos que,
teoricamente, poderiam ser acessados por certas parcelas da população lusa,
especialmente aquelas dedicadas aos estudos reformistas e outras que controlavam as
decisões governamentais, com vistas a repensar os desenvolvimentos agrícolas que já
vinham ocorrendo. A obra trouxe informações e críticas sobre a rizicultura que podem ter
moldado a percepção portuguesa acerca do grão, junto às demais obras. Também trouxe
notas mais amplas, sobre novos princípios agrícolas, sobre as relações político-
econômicas que deveriam ser mantidas entre a metrópole e as colônias, principalmente
acerca da necessidade de as periferias imperiais contribuírem no processo de substituição
de importados por meio da multiplicação de cultivos. Nessa perspectiva, recordamos que
o arroz, no caso de Portugal, havia sido um item crítico na pauta de importações,
auxiliando na alimentação metropolitana por meio de remessas estrangeiras, mas, no
momento da tradução, a realidade já era diversa e o arroz era produzido na América. As
considerações trazidas à tona pela tradução podem ter auxiliado nos planos relativos à
de enviar dinheiro para fora do império, a produção colonial seria paga com as manufaturas britânicas,
fortalecendo os laços coloniais – Idem, Ibidem, pp. 34-36.
87
Cultura americana... Vol. II..., pp. 43-44, 45, 45-46, 53-54. O arroz foi visto como uma importante
produção da Flórida por Pedro de Campomanes, em uma obra publicada em 1762. Ver CAMPOMANES,
Pedro R. Reflexiones sobre el comercio español a Indias (1762). Edição, transcrição e estudo preliminar de
Vicente L. Rosa. Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 1988, p. 303.
168
rizicultura colonial. Sabemos que ela foi enviada à colônia, pois em 1800 foram remetidos
três exemplares do “Cultura Americana” à Casa do Correio de São Luís, no Maranhão 88.
Todavia, devemos destacar os possíveis obstáculos a tais intentos reformistas.
Sabemos que a obra original não chamou a atenção das elites coloniais britânicas. Para
isso muito contou o seu propósito, ou seja, o foco na população metropolitana, com vistas
a informar prováveis migrantes e “reforçar o poder inglês sobre as colônias continentais”.
Como será visto no caso luso, a incapacidade de atingir o público visado nas colônias,
escasso mas existente, foi repetida, prejudicando os interesses reformistas metropolitanos
e a tentativa de “refazer” a rizicultura colonial89. Ainda assim, foram tais escritos
agrônomos os escolhidos pelos reformistas luso-americanos, traduzidos ou originalmente
publicados em Portugal. Era a partir disso que os reformistas e as autoridades do Estado
poderiam conceber os planos para as reformas imperiais. Particularmente no caso do
“Cultura Americana”, se ela citava extensivamente o arroz, traduzia contudo uma visão
detratora do cultivo arrozeiro em território britânico, a mesma que chegou a Portugal. Se
a publicação e tradução de textos buscaram dar as bases para repensar a rizicultura e não
foram muito lidos, as informações detratoras também não auxiliariam muito em tal
projeto. Por outro lado, também não prejudicaram a cultura que já se desenvolvia em solo
luso. Com tais apontamentos, agora podemos passar a outra face das teorizações
agronômicas luso-americanas. No próximo caso, articulando parte das teorizações antes
vistas a uma prática de observação in loco, com vistas a fornecer bons exemplos e
conhecimentos aos portugueses, há os relatos da viagem de Hipólito José da Costa aos
EUA em fins do século XVIII.
88
Ver MOURA, Roseli A. de., op. cit., p. 1; VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., pp. 148-149; CARDOSO,
José Luís. “Nas malhas do império: a economia política e a política colonial de d. Rodrigo de Souza
Coutinho” in CARDOSO, José Luís (coord.). A economia política e os dilemas do império luso-brasileiro
(1790-1822). Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001,
p. 90; ver também POMBO, Nívia. “A cidade, a universidade e o Império: Coimbra e a formação das elites
dirigentes (séculos XVII-XVIII). Intellèctus, Rio de Janeiro, ano XIV, n. 2, 2015, passim. Sobre o envio
dos livros à colônia, ver GALVES, Marcelo C. “Cultura letrada na virada para os oitocentos: livros à venda
em São Luís do Maranhão”. Anais do XXVII Simpósio Nacional de História: conhecimento histórico e
diálogo social, Natal, v. 1, 2013, pp. 10-11.
89
Ver MARQUESE, Rafael de B. Feitores do corpo, missionários da mente..., pp. 235-236; também
WEGNER, Robert. “Livros do Arco do Cego no Brasil colonial”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos,
Rio de Janeiro, v. 11, suplemento 1, 2004.
169
3.3. Hipólito José da Costa e a agricultura dos Estados Unidos da
América
90
Sempre devemos lembrar dos argumentos de Goldman referentes à relação das ideias com a ação no
pensamento ilustrado – ver GOLDMAN, Lucien. La Ilustración y la sociedad actual. Caracas: Monte Ávila
Editores, 1968, pp. 12 – 14.
91
LEÃO, Múcio. “Esboço de uma biografia” in PEREIRA, Hipólito da C. Diário da minha viagem para
Filadélfia (1798-1799). Brasília: Edições Senado Federal, 2004, pp. 23-26. Segundo Leão, a obra de
Hipólito pode ser dividida em duas partes: aquela mais dedicada à prática, à economia, e outra literária. Na
primeira, estariam escritos como a “Descrição da árvore açucareira”, a “História breve e autêntica do Banco
da Inglaterra”; na segunda, estaria, por exemplo, o “Correio Brasiliense”. Uma tal divisão tem um elevado
grau de arbitrariedade, haja vista que uma obra literária pode tratar de assuntos práticos, relacionados à
economia ou à política. Todavia, a repartição apresentada ajuda a perceber a complexidade da carreira do
ator e os traços pelos quais ela se desenvolveu. Para passagens que reforçam a imbricação de assuntos no
“Correio Braziliense”, ver OLIVEIRA, Milena F. “Hipólito José da Costa e as ideias econômicas d’O
Correio Braziliense”. Intellèctus, Rio de Janeiro, ano XVI, n. 1, 2017, pp. 110 e 112.
170
dos atrativos agrícolas do exterior, pela análise da organização econômica de nações com
potenciais conhecidos e valorizados92.
Tais considerações ficaram patentes nas instruções da viagem, apontadas por dom
Rodrigo de Sousa Coutinho. Segundo o então secretário, a viagem de observação deveria
levar somente um ano, e Hipólito estaria encarregado de procurar “[...] alguns produtos e
noções de úteis culturas aos Estados Unidos da América e ao México”, tarefa que incluiu
a remessa de sementes, a observação de plantas e o entendimento dos métodos de cultivo.
Em primeiro lugar, segundo o ministro, Hipólito deveria conhecer as publicações e tomar
exames sobre o tabaco e sua cultura. Também deveria buscar informações teóricas e
práticas sobre o linho-cânhamo e observar o cultivo da batata, dos prados artificiais e da
árvore açucareira. No que concernia ao México, teria de observar e buscar noções sobre
a cochonilha e o cacto em que tal inseto se hospedava, sem desconsiderar outros cultivos.
Por fim, deveria procurar informações sobre a mineração nas duas regiões americanas e
acerca dos artifícios hidráulicos utilizados na navegação, ou ainda em máquinas. Nessas
curtas e imperativas instruções, Hipólito foi encarregado da busca de referências sobre
diversas culturas agrícolas e outros conhecimentos econômicos, por meio de observações
diretas e da consulta a obras publicadas. Para nosso propósito, é essencial notar a ausência
de orientações sobre o arroz, assunto que será retomado adiante93.
Na viagem, Hipólito descreveu seus roteiros e percalços em um diário de uso
pessoal. Nele, há diversas menções à realidade agrícola dos Estados Unidos e em certos
momentos o autor gastou tinta especificamente com o arroz, apesar de o cereal não constar
nas instruções conferidas por Sousa Coutinho. O escrito cobriu o período em que Hipólito
permaneceu na Filadélfia, na Pensilvânia, tendo feito rápidas incursões em outras
localidades, como Nova Iorque e Boston. Particularmente no diário, o contato com o
conhecimento agrícola sobre o cereal se deu de modo provavelmente indireto, através de
informações que recolheu e anotou. Nesse caso, tendo fontes nas quais confiar, visitas aos
locais produtivos podiam não ser necessárias. As fontes dariam acesso a “um saber já
92
BUVALOVAS, Thais Helena dos S. “O Diário da minha Viagem para Filadélfia. Maçonaria e jornalismo
político na missão de Hipólito José da Costa aos Estados Unidos”. Almanack braziliense, São Paulo, n. 9,
2009, p. 104. Aliás, foi em 1794 que o agrônomo William Strickland foi enviado, pela Câmara de
Agricultura da Inglaterra, aos EUA, para uma “inspeção agrícola” – ver MARQUESE, Rafael de B. Feitores
do corpo, missionários da mente..., p. 250. Tratou-se, certamente, de uma época permeada por tais viagens
filosóficas, de observação.
93
COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Instruções do ministro Rodrigo de Souza Coutinho a Hipólito José da
Costa” in XAVIER, Paulo. Hipólito José da Costa: um observador econômico na América. Porto Alegre:
Instituto Estadual do Livro/Fundo Nacional da Cultura, 1997, pp. 43-45.
171
sistematizado pelos norte-americanos” e que poderia servir de base à organização agrícola
portuguesa94. Algo que o próprio Hipólito reconheceu em uma carta enviada à dom
Rodrigo de Sousa Coutinho. Segundo o viajante, durante o inverno, teria de se contentar
“em adquirir conhecimentos teoréticos do país, aliás indispensáveis, e familiarizar-me
com pessoas que farão, ao depois, a minha viagem muito mais proveitosa” 95.
Hipólito iniciou a descrição de sua viagem, iniciada na corveta William, em 10 de
outubro de 1798. No decorrer das próximas semanas, ao longo do Atlântico, fez
descrições as mais variadas, destacando-se, para nosso propósito, suas anotações sobre a
fauna e flora marinha. Tais descrições o acompanhariam em toda a viagem aos EUA, haja
vista a contínua descrição do seu cotidiano e das características locais, junto a algumas
comparações em relação à metrópole portuguesa e à Europa como um todo. Para
demonstrar a importância e as personagens envolvidas na missão, basta dizer que Hipólito
recebeu durante a viagem cartas de frei Veloso, conhecido pela iniciativa reformista
atrelada à Tipografia do Arco do Cego, e de dom Rodrigo de Sousa Coutinho96.
Em território americano, não levou muito tempo para colocar em ação seus
objetivos. Já no final de dezembro de 1798, escreveu e expos cálculos sobre a produção
de açúcar a partir da “árvore açucareira” (o bordo açucareiro), ao passo que logo foi em
94
BUVALOVAS, Thais Helena dos S. “O Diário da minha Viagem para Filadélfia...”, p. 105. Além do
diário, Hipólito foi autor de diversos escritos, como uma memória sobre a viagem aos EUA – que também
será aqui estudada. Na versão lida do “Diário”, editada pelo Senado Federal, existem diversas missivas
trocadas por Hipólito com autoridades portuguesas, também interessantes para a pesquisa. Ver LIMA,
Alceu A. “Introdução” in PEREIRA, Hipólito da C. Diário da minha viagem para Filadélfia (1798-1799).
Brasília: Edições Senado Federal, 2004. Um exemplo do modo como Hipólito também buscou informações
indiretas se deu quando ele recebeu, de cidadãos locais, folhetos com obras da Sociedade de Agricultura.
Ou ainda quando notou que “[...] Um sujeito que esteve na Geórgia me deu esta informação sobre o algodão:
cada hill contém três pés que produzem 4 th. e ocupam 2 pés de terreno”. Ao mesmo tempo, o autor não
deixou de aproveitar o contato direto com o conhecimento agrícola local. Em 14 de setembro de 1799, em
Charlestown, Hipólito citou que “[...] Um lavrador, que me deu esta instrução [sobre o cultivo e
beneficiamento do tabaco], me disse que se podiam colher as folhas em qualquer tempo antes das neves”.
Para tais trechos, ver PEREIRA, Hipólito da C. Diário da minha viagem para Filadélfia (1798-1799).
Brasília: Edições Senado Federal, 2004, pp. 134, 136 e 140. Sobre o caráter pessoal do Diário, ver BRAGA,
Oswaldo M. “Nota final” in PEREIRA, Hipólito da C. Diário da minha viagem..., p. 203. Ver também,
BUVALOVAS, Thais. Hipólito da Costa na Filadélfia: imprensa, maçonaria e cultura política na viagem
de um ilustrado luso-brasileiro aos Estados Unidos (1798-1800). São Paulo: Hucitec, 2011, pp. 64-66.
95
PEREIRA, Hipólito da C. “Copiador e Registro das Cartas de Ofício” in Diário da minha viagem..., p.
157-158.
96
PEREIRA, Hipólito da C. Diário da minha viagem..., pp. 35-52, 147 e 151. Entre essas comparações, há
elogios e críticas. Como exemplo, no dia 28 de dezembro de 1798, Hipólito visitou um museu na Filadélfia
e criticou sua organização e conteúdo, o desleixo em não seguir o sistema proposto por Lineu. Ademais,
também comparou as prisões europeias com os estabelecimentos norte-americanos, elogiando os últimos.
Vemos, portanto, que suas observações não se resumiram à botânica e à agricultura, mas envolveram
diversos aspectos da sociedade visitada – Idem, Ibidem, pp. 53-54, 80 e 106. Para uma descrição de novas
máquinas, ver Idem, Ibidem, p. 83. Para suas críticas, por exemplo, à organização militar norte-americana,
ver Idem, Ibidem, p. 109. Sobre as missivas com as autoridades lusas – ver Idem, Ibidem, pp. 147 e 151.
172
busca de “John Batram que, segundo uma gazeta, tinha sementes para vender”. No dia 11
de janeiro do ano seguinte, voltou à residência do botânico e combinou a compra de várias
sementes. De tal forma, além da procura de conhecimentos técnicos sobre as produções
locais, úteis ao império luso, empreendeu também a compra das sementes requeridas pela
missão. Uma remessa, endereçada a dom Rodrigo de Sousa Coutinho, estava pronta no
dia 8 do mês seguinte97.
Suas contínuas atividades na cidade o levaram também a outros locais em busca
das desejadas sementes. Em certo momento, travando contato com um certo Mr.
Hamilton, “um sábio muito apaixonado de botânica”, Hipólito notou e descreveu a sua
coleção de plantas de diversas partes do globo, inclusive do Brasil. Particularmente, citou
uma variedade de cana-de-açúcar, nativa do Pacífico, cuja produção alcançava o dobro
da cana “ordinária”. Junto a essas descrições mais gerais, relacionadas à produção,
Hipólito também gastou páginas com exposições botânicas um tanto minuciosas,
comparando espécies e citando suas características. Buscou conhecer a flora e a fauna
locais e suas possíveis potencialidades, úteis à economia imperial portuguesa e ao
conhecimento científico então em construção98.
Em diversos momentos, vemos seu interesse por espécies com potencial cultivo
na América lusa e mesmo com assuntos mais amplos relativos à economia imperial.
Hipólito, por exemplo, destacou que “[...] [e]ntre as diferentes plantas que os ingleses
97
PEREIRA, Hipólito da C. Diário da minha viagem..., pp. 52-53, 57-58 e 64. O autor chegou a defender
a remessa de búfalos a Portugal como parte dessa estratégia de observação e busca de valiosos itens. Qual
seria o interesse? Em outra passagem, além de fazer anotações fisiológicas sobre o animal, citou que “[...]
a carne é igualmente boa que a do boi; a pele faz bom couro e o cabelo se manufatura e faz um tolerável
bom pano [...]”. Os interesses econômicos, aliados aos científicos, ficaram patentes – ver Idem, Ibidem, pp.
64 e 67. Tal assunto é retomado em uma carta enviada a dom Rodrigo. Hipólito argumentou que poderia
“[...] remetê-los daqui para Lisboa, e que a combinação destes animais com as vacas de Portugal deve
produzir uma raça fortíssima e sumamente adaptada para os trabalhos da agricultura” – PEREIRA, Hipólito
da C. “Copiador e Registro das Cartas de Ofício” in Diário da minha viagem..., p. 180. O nome das espécies
das sementes enviadas está em Idem, Ibidem, p. 158-165.
98
PEREIRA, Hipólito da C. Diário da minha viagem..., pp. 66 e 68-69. Em outro momento, no dia 11 de
março de 1799, Hipólito destacou novas técnicas na produção do açúcar, apresentadas por um francês vindo
de Saint Domingue. Citou, a título de exemplo, o uso do bagaço da cana como combustível nas fornalhas.
Ao mesmo tempo, se mostrou interessado em informações sobre a cochonilha, apresentadas pelo mesmo
francês – ver Idem, Ibidem, p. 70. Ver OLIVEIRA, Milena F., op. cit., p. 108; também MORAES, Eulália
Maria Aparecida de; SANTOS, Christian Fausto M. dos; CAMPOS, Rafael D. da S. “Filosofia Natural
Lusa: A Viagem Philosophica e a Política Iluminista na América Portuguesa Setecentista”. Confluenze,
Bologna, v. 4, n. 1, 2011. Mr. Hamilton voltou a ser citado em uma das cartas de Hipólito a Coutinho.
Segundo o primeiro, Hamilton estaria disposto a auxiliar com sementes, mas pedia, por seu turno, sementes
da metrópole portuguesa e da América lusa. Hipólito viu o ajuste com bons olhos. Ver PEREIRA, Hipólito
da C. “Copiador e Registro das Cartas de Ofício” in Diário da minha viagem..., p. 169. O interesse em obter
sementes, conhecimento agrícola etc. não estava restrito aos portugueses.
173
trouxeram da ilha Otahito foi o Artocapus ou Árvore do Pão que é muito própria para o
Brasil, mas que não há nos Estados Unidos, porém é muito possível obtê-la da Jamaica”.
Afastando-se de cultivos mais conhecidos, o autor demonstrou a possibilidade de
obtenção de plantas mais exóticas, cuja produção seria muito facilitada na América
portuguesa. Gastou páginas também com descrições sobre técnicas de preparo do solo ou
esmiunçando o modo de preparo do açúcar a partir da seiva da árvore açucareira. Em
alguns momentos, descreveu com detalhe a botânica de árvores, apresentando também as
suas potencialidades produtivas e comerciais. Novos cultivos e novas técnicas para
produções conhecidas eram parte das anotações do enviado, essenciais para repensar a
agricultura luso-americana99.
Além disso, mesmo estando nos EUA, Hipólito não perdeu a oportunidade de
estabelecer seus olhares em outras regiões e cultivos. Em certo momento, chegou a citar
algumas culturas presentes na ilha da Jamaica, notadamente a árvore-do-pão e a cana-de-
açúcar. Tais olhares, de acordo com o autor, também se concretizaram. Em uma carta
enviada a Sousa Coutinho em 15 de abril de 1799, disse o viajante que havia escrito e
tentado obter certas sementes da Jamaica: a da já citada árvore do pão e da cana-de-açúcar.
No dia 15 de agosto do mesmo ano, Hipólito enviou outra missiva atestando que
“[a]cabam de chegar a Filadélfia as plantas sobre que tinha falado a V. Ex- nas minhas
cartas n° 3 e n° 5, e são a árvore do pão, a nova cana-de-açúcar, e a planta e inseto da
cochonilha”. Plano elaborado e executado, com potenciais recompensas ao império
português100.
Hipólito José também não deixou de demonstrar sua atenção aos problemas
comerciais. Explicou que a manufatura do “issinglass101” não ia bem nos EUA por causa
dos problemas de mão-de-obra, o “[...] que faz com que os russos possam fornecer este
artigo muito mais barato que os americanos [...]”. A ideia de competição e da
possibilidade de superar os concorrentes no mercado estava presente. Mas era necessário
se preocupar também com a possibilidade de ser superado, pois ouviu e anotou de um
vice-cônsul “[...] que o tabaco do Brasil seria aqui bem estimado se não fosse o vir aqui
99
PEREIRA, Hipólito da C. Diário da minha viagem..., pp. 75, 97-98, 102-105 e 118-119.
100
PEREIRA, Hipólito da C. “Copiador e Registro das Cartas de Ofício” in Diário da minha viagem..., pp.
169-170, 178 e 183.
101
Trata-se do isinglas, uma gelatina feita a partir de bolsas de ar de peixes. É usada como agente
clarificante e em geleias e colas. Significado disponível em < https://www.merriam-
webster.com/dictionary/isinglass>. Acesso em 05 de maio de 2021.
174
tão caro depois de comprado em Lisboa” – sintoma daquela competição entre os dois
impérios que contextualizou a viagem do português. Ao mesmo tempo, em outra
oportunidade, descreveu aspectos do cultivo e beneficiamento do tabaco nos Estados
Unidos em algumas poucas linhas. Afinal, oportunidades comerciais deveriam ser bem
avaliadas e, portanto, aproveitadas. Nessa toada, descreveu supostos “bichos de seda
nativos da América” superiores aos do Velho Mundo. Seu comentário final deixou
patentes os objetivos da viagem e das observações: “[...] De tudo isto resulta que se deve
animar a cultura dos bichos da seda no Brasil”102. Era preciso conhecer a realidade diversa
para emular ou adaptar as experiências que se mostrassem atrativas.
A cochonilha foi outro alvo de sua missão e, certa vez, encontrando um almirante
espanhol, soube “[...] que havia no México um botânico chamado Jesse, ou Iesen, que
estava para publicar algumas obras. Disse-me que a cochonilha se produzia na província
de Guaxaba, no México [...]”. Logo em seguida, anotou com detalhes alguma informação
sobre o trato do cacto e do inseto. O mesmo cultivo também levou Hipólito a acessar
outras formas de conhecimento, tendo em vista o objetivo de acumulação do saber
agronômico. Em 28 de novembro de 1799, destacou o empréstimo de um livro de um
certo Mr. Hamilton e o título era bem sugestivo: ““Letters to sir Joseph Banks Baronet,
President of the Royal Society on the subject of coxinnical [cochineal] insects, discovered
at Madras by James Anderson M. D., etc. Madras, 1788””. Demonstração patente do
modo como o conhecimento agrícola era valorizado e circulava na época, conformando
aquele “saber sistematizado” destacado anteriormente. Ainda sobre tal cultivo, tão caro à
missão do português, o autor chegou mesmo a traçar um plano para a busca e extravio do
cacto e do inseto vindos do México, utilizando Havana como um posto intermediário. As
dificuldades, todavia, não seriam fáceis de superar. Vale a pena ler o trecho em sua
integridade. Nele, Hipólito demonstrou de modo direto a natureza de sua missão nos
EUA103:
102
PEREIRA, Hipólito da C. Diário da minha viagem..., pp. 89, 108, 136 e 151. Hipólito também fez
menção ao cultivo da “árvore do chá”, vendo-a como apta ao terreno luso-americano e comentou com Sousa
Coutinho sobre o assunto – PEREIRA, Hipólito da C. “Copiador e Registro das Cartas de Ofício” in Diário
da minha viagem..., p. 186. O autor logo disse que a agricultura local estaria em decadência e uma das
causas seria “[...] que as terras estão possuídas por pessoas que não têm fundos para as cultivar [...]” –
PEREIRA, Hipólito da C. Diário da minha viagem..., pp. 111-112. Vemos, portanto, como a busca de
melhorias agrícolas necessitava de ser acompanhada de boas condições financeiras, ideia presente em
muitos escritos da ilustração portuguesa.
103
PEREIRA, Hipólito da C. Diário da minha viagem..., p. 152 – 153; PEREIRA, Hipólito da C. “Copiador
e Registro das Cartas de Ofício” in Diário da minha viagem..., pp. 165-167.
175
[...] [A] planta, que é de uma natureza muito diversa daquela que temos no
Brasil [...] e muito menos os insetos poderão sofrer as mudanças e alternativas
do clima, vindo de Vera Cruz para Havana, dali para Filadélfia ou Nova York,
daqui para Lisboa e de Lisboa para o Brasil [...]. O único meio que lembro para
vencer esta dificuldade será esperar algum navio que vá dos Estados Unidos
com escala para o Brasil, e fazer passar nele a planta, no caso de se poder obter
de Havana.
Suponho que são raros os exemplos de ter S. Majestade dado licença a navios
que vão daqui para o Brasil, mas a ser possível conceder-se neste caso,
teríamos a vantagem de poder ali introduzir muitas plantas utilíssimas, e
principalmente a que vou a dizer a V. Exa, talvez mais interessante para nós,
que a mesma cochonilha, e é uma nova espécie de cana-de-açúcar que foi
trazida da ilha Otahito [...]. Esta cana, que observei também na estufa de Mr.
Hamilton, é tão vantajosa que rende o duplo da outra, e um francês, antigo
habitante de S. Domingos, me assegurou que, tendo obtido esta cana, viu que
lhe rendia o triplo da outra, e que o açúcar era de melhor qualidade, tendo, além
disto, a vantagem de que o bagaço depois de seco abunda para o fogo,
necessário na depuração de toda a calda que a mesma cana tem produzido.
A semente e planta do tabaco de Virgínia, as de prados artificiais e outras, que
são de uma quase igual importância, podiam seguir a sorte das outras a haver
uma tal ocasião104.
104
PEREIRA, Hipólito da C. “Copiador e Registro das Cartas de Ofício” in Diário da minha viagem..., pp.
165 – 166. Hipólito se preocupava, de fato, em obter sementes e conhecimentos técnicos, como quando
citou o caso do tabaco. “A pequena porção de semente do tabaco de Virgínia, que agora remeto, e que pode
ser plantada em Lisboa este verão, servirá para mostrar que a espécie é bem diferente da que temos no
Brasil, e quando fizer a viagem do Maryland escolherei, para remeter, uma porção considerável, que
acompanharei com a descrição da cultura, para se poder enviar ao Brasil [...]” – Idem, Ibidem, p. 170.
Vemos uma rápida referência à escrita de manuais sobre a cultura do tabaco. Manuais agrícolas de diversas
culturas estavam sendo publicados na metrópole, como aqueles vindos da Arco do Cego. Sobre as
dificuldades relativas ao plano, os obstáculos, ver Idem, Ibidem, pp. 177-178. Hipólito finalizou: “[...]
porque sendo de tanta importância para Portugal a aquisição daquilo que me leva ao México, que suponho
será para o futuro mais uma fonte de riquezas; ficarei satisfeito ao menos de obter no Brasil a planta e
inseto, a poder ser, no caso que não possa absolutamente examinar por mim a sua cultura e preparação” –
Idem, Ibidem, p. 177.
176
contemplar o cereal que é o foco da presente pesquisa. Estando onde estava, teve contato
com informações sobre o arroz e seu cultivo. De modo mais particular, no dia 12 de
janeiro de 1799, apresentou uma descrição cuja importância não pode ser subestimada.
Ao anunciar uma visita ao representante de Portugal na cidade, escreveu sobre seu contato
com um médico irlandês chamado doutor Rosso 105.
[...] [E] o Dr. Rosso, que é um médico irlandês, que tendo viajado à Índia, à
Turquia, à Europa quase toda, sabendo muitas línguas (até o português, pois
pediu ao ministro que queria as Décadas do Couto e Barros), me fez uma
observação sobre o arroz da Carolina, e é que, no Egito, o reputam pior que o
daquele país, e constituindo a bondade do grão na maior quantidade de farinha
que tem, pois que esta é parte nutriente; nenhum arroz é mais farinhoso que o
do Nilo, e Egito em geral, o que se conhece, porque, deitado de molho, é o que
absorve maior quantidade de água; entretanto, eu acho um gosto particular ao
arroz da Carolina, que não encontro no do Brasil; talvez seja do modo porque
o cozem; mas é certo que ele tem nos mercados de Londres um preço superior
ao da Itália [...]106.
105
PEREIRA, Hipólito da C. Diário da minha viagem..., pp. 58-59. Por fim, demonstrando de modo direto
a ligação do diário à presente pesquisa, um dos primeiros americanos citados por Hipólito foi o “[...] General
Pinckney, que esteve de Ministro em França, e agora ocupado com o General Washington a fazer o plano
da guerra [...]”. Provavelmente, tratava-se de Charles Cotesworth Pinckney, nascido na Carolina do Sul e
cujo sobrenome o ligava aos grandes donos de plantations de arroz. Trata-se de um dos sobrenomes citados
no primeiro capítulo da presente dissertação – Idem, Ibidem, p. 51.
106
PEREIRA, Hipólito da C. Diário da minha viagem..., pp. 58-59. A produção de arroz no Egito foi citada
em partes precedentes deste trabalho. Ademais, há uma nota sobre esse grão no Egito, no século XVIII,
trazida à tona pelo viajante europeu Niebuhr. Segundo o autor, na segunda metade do século XVIII, a
exportação de arroz estava proibida nos portos egípcios e teria até mesmo havido remessas de arroz
britânico ao país. Ver NIEBUHR, Carsten. Travels through Arabia, and other countries in the East,
performed by M. Niebuhr… V. I. Edimburgo, 1792, p. 97.
177
vantajoso aos desígnios agrícolas portugueses do que, por exemplo, aquele cultivado na
Península Itálica107.
Continuando com descrições sobre o processo produtivo, o autor não deixou de
destacar as informações a ele repassadas sobre a rizicultura108:
[...] Há, na Geórgia, boas culturas de arroz e máquinas para o descascar.
Semeiam o arroz de modo que está na água desde que se planta quase até que
amadurece, então, esgotam a água por desgotadoiros ou regos, e o arroz
amadurece todo de repente; e quando as panículas estão maduras e secas é
ceifado e se deixa no campo em pequenas medas até que a palha esteja
perfeitamente seca, então o trilham para o guardar no celeiro. As máquinas
para limpar o arroz são trabalhadas por animais ou por água109.
107
PEREIRA, Hipólito da C. Diário da minha viagem..., pp. 58-59.
108
Para outras ocasiões em que Hipólito gastou tinta com a descrição do modo de cultivo de diversas
plantas, ver PEREIRA, Hipólito da C. “Copiador e Registro das Cartas de Ofício” in Diário da minha
viagem..., pp. 196-200.
109
PEREIRA, Hipólito da C. Diário da minha viagem..., p. 112. Logo em seguida, o autor citou a cultura
do algodão e índigo na Flórida e Geórgia. Acerca do primeiro artigo, falou de “duas espécies”,
provavelmente querendo diferenciar o algodão arbóreo daquele produzido em arbustos. Sobre o índigo,
citou que “[o] índigo feito na East-Flórida é julgado quase igual ao melhor índigo espanhol, especialmente
a qualidade a que chamam flora. Eu vi um exemplo, que era em nada inferior ao melhor prussiano azul” –
ver Idem, Ibidem, p. 113.
110
Sobre a escrita, tradução, publicação ou envio de manuais agrícolas, memórias etc., como parte do
projeto reformista imperial, ver PEREIRA, Hipólito da C. “Copiador e Registro das Cartas de Ofício” in
Diário da minha viagem..., pp. 178-181, 184, 188-189 e 202.
178
em publicar tudo quanto é preciso (sic) saber-se pelos lavradores para o
melhoramento da agricultura do país111.
O arroz, sem dúvida, esteve entre os objetivos do autor para a missão. Tanto é
verdade que em uma carta endereçada a dom Rodrigo de Sousa Coutinho, datada de 24
de março de 1799, Hipólito descreveu seus planos de viagem e disse que, após viajar pelo
norte dos EUA, “[...] passar[ia] aos estados do Sul, onde se aproveitavam o tabaco, arroz,
prados, etc.”. Como vimos, as mais destacadas regiões produtoras de arroz estavam ao
sul, nas colônias da Carolina do Sul, Geórgia e, em menor quantidade, na Carolina do
Norte. Não à toa, Hipólito objetivou visitar essas regiões, mesmo que, na realidade, as
intenções possam não ter sido praticadas112.
De um modo geral, essas foram as informações coletadas por Hipólito. Com uma
missão ampla, o autor fez notas sobre diversas culturas, sem desconsiderar a rizicultura.
Se gastou páginas com descrições sobre a produção, não deixou também de considerar o
espaço comercial conferido ao cereal. As observações deram conta de amplos processos:
partindo do cultivo e beneficiamento, alcançaram a comercialização e as preferências dos
consumidores. No todo, vemos como Hipólito pensava o espaço econômico ocupado por
Portugal no período e a necessidade de mudança. No fim das contas, era preciso repensar
a economia, tendo em vista os problemas que a afetavam.
Demonstrando isso e dando exemplo das preocupações do autor, destacaremos
uma última nota do diário, feita por Hipólito no dia 14 de dezembro de 1799. Articulam-
se as questões da dependência cerealífera lusa, da competição comercial entre as nações
europeias e de uma necessidade implícita de tomar providências relativas a tais assuntos:
“[...] Mr. Barry, um negociante de Baltimore com quem falei hoje à noite, em
casa do ministro de Espanha, me disse que North Carolina é o Estado da
América que tem uma natural ligação com Portugal, porque os produtos são:
boas aduelas e muito trigo, o que nós necessitamos; disse-me que o vinho do
Porto tem decaído muito porque tem vindo para aqui muito vinho da Figura
com o nome de Porto, e sendo-lhe inferior tem feito perder o crédito ao
verdadeiro Porto e dado saída aos vinhos franceses; para prova disto me alegou
que tinha 20 pipas há 4 anos que não podia vender. Eu acho mais uma razão, e
é que seus apaixonados recomendam sempre os vinhos de França, eu tenho
sempre visto em casa do ministro de Espanha louvar o vinho de França e dizer
que estão em moda em Inglaterra; os pobres vinhos de Portugal não tem
ninguém que lhe faça isto”113.
111
PEREIRA, Hipólito da C. Diário da minha viagem..., p. 139.
112
PEREIRA, Hipólito da C. “Copiador e Registro das Cartas de Ofício” in Diário da minha viagem..., p.
166.
113
PEREIRA, Hipólito da C. Diário da minha viagem..., p. 154.
179
*
Finda a viagem, o que Hipólito apresentou com base em todas essas informações?
Quais foram os frutos a partir de sua experiência? Como a cultura do arroz no império
português poderia se beneficiar de suas notas e observações? O diário, como visto, era de
uso pessoal e não seria ele o resultado oficial de sua viagem. Todavia, tendo ficado um
bom tempo nos EUA, era esperado que a estada contribuísse com as necessidades
imperiais e bem cumprisse os objetivos da missão.
Sabemos que um dos resultados palpáveis foi um escrito sobre a viagem.
Intitulado “Memória sobre a viagem aos Estados-Unidos por Hippolyto José da Costa
Pereira”, foi oferecido a Sousa Coutinho em janeiro de 1801114.
Segundo a memória, a viagem de Hipólito foi bem além daquela descrita no diário,
pondo em prática os planos e orientações iniciais. Contudo, encontra-se aí um grande
problema, apresentado e avaliado por Thais Buvalovas em sua pesquisa sobre o viajante.
De acordo com a autora, as viagens descritas por Hipólito (pelo sul dos EUA e inclusive
ao México, descritas na “Memória” e em algumas cartas de ofício) não ocorreram.
Haveria muitas inconsistências nas descrições e, portanto, Hipólito teria criado um “jogo
de máscaras”, obscurecendo sua narrativa115.
As inconsistências prejudicam a análise dos escritos de Hipólito, haja vista que as
viagens podem não ter ocorrido, contrariando o que é descrito pelo próprio autor. Ainda
assim, mesmo que não tenha feito as observações nos locais produtivos e nem tenha
efetuado as viagens em busca das tão demandadas sementes e conhecimentos, as
observações e as notações acerca das espécies botânicas e técnicas agrícolas, mesmo que
obtidas de modo indireto, ainda legitimam sua viagem e podem ter fornecido um
arcabouço de informações agrícolas aos metropolitanos.
Na “Memória”, ele escreveu que, após sair da Filadélfia, em abril de 1799, viajou
pelos estados do norte dos EUA: Nova Iorque, Vermont, New Hampshire, Massachussets
e Rhode Island. Inclusive, fez menção de ter visitado Montréal. Todavia, diz ainda que
andou pela Carolina do Sul e do Norte, Virgínia, Maryland e Delaware. Após essa
pequena perambulação, teria retornado ao estado da Pensilvânia. Os assuntos que mais
114
PEREIRA, Hipólito da C. “Memória sobre a viagem aos Estados-Unidos por Hippolyto José da Costa
Pereira”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, tomo XXI, 1858 [2ª edição,
1930].
115
BUVALOVAS, Thais. Hipólito da Costa na Filadélfia..., pp. 64-74.
180
atraíram a sua atenção, tirando o arroz do topo, foram o tabaco, o linho cânhamo e as
árvores. Ainda assim, destacou o cereal ao sublinhar as produções da Carolina do Sul e
Geórgia. Revelando o modo como as observações deveriam ser feitas, citou o contato
com “[...] cultivadores de maior experiência e que corrobor[a]m as suas opiniões com um
maior número de factos [...]”. Para além dos cultivos agrícolas, também escreveu sobre
projetos hidráulicos e mecânicos, minerais, companhias de ações, pescarias etc. 116.
Mesmo que as viagens não tenham ocorrido, o que parece provável, as anotações
nessa memória sistematizam as ideias do autor, angariadas também em terreno norte-
americano, e muito do que ele escreveu em seu diário.
Corroborando uma necessidade sentida no império português, a de substituir
importações, revelou que o cultivo do cânhamo no Brasil faria com que Portugal não mais
necessitasse de importações vindas do Báltico, que certamente pesavam na balança
comercial portuguesa. Produzindo o artigo em território português, “[...] pelo contrário o
chegaremos a exportar de Lisboa para as outras nações [...]”117. Defendeu também que
“[...] as rotações que [os norte-americanos] fazem com as batatas e diversos cereais, são
sem dúvida dignos de que se imprimam em folhetos breves, e adaptados à compreensão
dos nossos agricultores em geral, e que se distribuam pelas províncias [....]”118. Tendo em
vista os objetivos da viagem nas disposições a ele dadas por Sousa Coutinho, podemos
supor que Hipólito José atendeu às demandas requisitadas.
Vemos certo rigor presente nas anotações do enviado, procurando conjugar as
informações apresentadas pelas “testemunhas” a fatos que as qualificassem. A opinião do
autor de que os escritos agrícolas eram algo necessário para o melhoramento da
agricultura imperial demonstra como aquelas observações poderiam ser utilizadas,
beneficiando os agricultores portugueses e, por fim, as finanças imperiais. Tal benefício
aos lavradores seria o seu modo de repensar os desenvolvimentos agrícolas luso-
americanos. Suas observações, agora materializadas em uma memória, eram um passo
encorajado e importante nesse sentido.
Quando Hipólito citou suas observações sobre o algodão, revelou todo o escopo
da missão, resumindo os conhecimentos práticos que desejou repassar aos seus
116
PEREIRA, Hipólito da C. “Memória sobre a viagem...”, pp. 316-317 e 323-326.
117
Ademais, o autor também frisou a possibilidade de criar gados em Portugal, para, assim, diminuir as
importações de carne estrangeiras – ver PEREIRA, Hipólito da C. “Memória sobre a viagem...”, pp. 319-
321.
118
PEREIRA, Hipólito da C. “Memória sobre a viagem...”, pp. 319 e 321.
181
conterrâneos. O autor questionou tudo o que pôde sobre o preparo dos terrenos, seleção
das sementes, sobre o cuidado com as plantas e com suas “moléstias”, e não deixou de
procurar “[...] obter todas as noções que podem conduzir ao cálculo provável do
rendimento e despesas, máquinas para descaroçar [...] e não duvido[u] que a exposição
destes factos se[ria] agradável e interessante aos nossos agricultores do Brasil”. Contudo,
nem só elogios surgiram nas observações. No caso do índigo, fez críticas ao modo como
era preparado na Geórgia e Carolina. Concluiu que, “[...] achei mais erros a notar, que
descobertas a aprender, nesta parte da agricultura dos Americanos”. De modo muito
patente, revelou o que pretendia com suas observações e com a escrita dessa memória.
Por certo, a emulação envolvia a observação e a crítica das experiências alheias119.
No caso do arroz, apresentou algumas informações já referenciadas anteriormente
no diário, ao mesmo tempo em que ofereceu novas. Vale a leitura integral de um trecho:
O modo porque na Carolina e Geórgia, plantam, regam e cuidam do arroz, é
diferente do que se pratica no Brasil. Não posso julgar qual dos métodos seja
preferível, porém suponho que deve ser vantajoso fazer saber aos nossos
agricultores brasileiros, outro método que o que eles usam, deixando à sua
experiência o determinar qual é melhor. Os diferentes engenhos porém, que os
americanos têm inventado para descascar o arroz, não podem deixar de ser
aceitáveis aos nossos agricultores do Brasil, pois sei que eles não conhecem
outro método para esta operação que o pilão sempre movido a braço de
homens. Estes mesmos pilões sendo trabalhados por um moinho de água,
quebram muito menos o arroz que quando são moídos a braço; e isto pela
uniformidade do movimento [...]120.
119
PEREIRA, Hipólito da C. “Memória sobre a viagem...”, pp. 321 – 322.
120
PEREIRA, Hipólito da C. “Memória sobre a viagem...”, p. 322 – 323.
182
influenciada pelo desenvolvimento agrícola luso-americano e objetivou repensá-lo, certas
vezes os ilustrados compreenderam mal a realidade agrícola americana 121.
Hipólito, ainda assim, fez uma consideração um tanto original e que retoma parte
da argumentação da dissertação. É um caminho frutífero para finalizar a presente seção
que procurou demonstrar como sua viagem aos EUA se encaixou nos desígnios
reformistas portugueses do período. Ao ter citado uma espécie de arroz selvagem, “tão
saboroso e nutritivo como o arroz comum”, disse que ele podia “[...] naturalizar-se na
Europa com toda a facilidade, pois que se produz espontaneamente nas margens dos lagos
do Canadá, e subministrará à gente pobre um barato e abundante mantimento”. Se suas
observações visavam remediar alguns problemas sentidos na economia e agricultura de
Portugal, que demandavam soluções amplas e bem pensadas, o autor não deixou de
entender também a natureza do consumo de arroz em solo luso. O arroz era um item
substitutivo, importante na alimentação da população mais pobre, sem deixar de ser
consumido em outras ocasiões e por pessoas de outras esferas sociais122.
Era nessa função em que o arroz se encaixava na balança comercial portuguesa.
Era essa a situação que permitia a observação crítica e a emulação de experiências alheias.
A viagem de Hipólito ocorreu nesse horizonte e procurou responder a problemas bem
objetivos. Demonstrou a articulação da ação com o pensamento no projeto reformista
luso-americano. Mas, como vimos, ao buscar refazer a realidade material,
desconhecimentos ficaram evidentes. Na próxima seção deste trabalho, cabe entender e
qualificar o impacto das teorizações metropolitanas, surgidas também da prática, como
uma resposta intelectual às oportunidades abertas à agricultura imperial portuguesa 123.
121
Ver ALDEN, Dauril. “Manoel Luís Vieira: an entrepreneur in Rio de Janeiro during Brazil’s eighteenth
century agricultural renaissance”. The Hispanic American Historical Review, Durham, v. 39, n. 4, 1959,
pp. 529 – 537. Alden cita ainda: “[...] In Pará an army engineer, Teodósio Constantino de Chermont,
constructed several different types of rice mills during the ‘seventies and ‘eighties based on slave and
horsepower […]” – Idem, Ibidem, p. 537; ver CHERMONT, Theodozio Constantino de O. “Memória sobre
a introdução do arroz branco no Estado do Gram-Pará”. Revista Trimensal do Instituto Histórico,
Geographico e Etnographico do Brazil, Rio de Janeiro, tomo XLVIII, parte I, 1885. Ademais, até mesmo
no Reino havia engenhos de arroz no final do século XVIII – ver CARMO, Miguel et al. “African
knowledge transfer in Early Modern Portugal: enslaved people and rice cultivation in Tagus and Sado
rivers”. Diacronie. Studi di Storia Contemporanea, Bolonha, n. 44, 2020, p. 61 (inclusive a nota n. 101);
QUINTELA, António Carvalho et al. “Património cultural dos cursos de água da bacía do Sado” in
MOREIRA, Ilídio et al (eds.). Gestão ambiental dos sistemas fluviais. Lisboa: ISApress, 2004, pp. 345-
374 apud CARMO, Miguel et al., op. cit., p. 61.
122
PEREIRA, Hipólito da C. “Memória sobre a viagem...”, p. 323. Ver também COCLANIS, Peter. “The
road to commodity hell…”, pp. 25-26; VELOSO, Carlos. A alimentação em Portugal no século XVIII nos
relatos dos viajantes estrangeiros. Coimbra: Minerva Histórica, 1992, passim.
123
Por fim, não procurei analisar as posições teóricas de Hipólito José acerca da economia ou agricultura,
mesmo que tal seja possível. Afinal de contas, como apontou Milena Oliveira no caso do “Correio
183
*
Se todos esses escritos conformaram ideias para repensar a agricultura e mais
particularmente a cultura de arroz em Portugal, agora analisaremos uma memória escrita
sobre tal cereal. Podemos avaliar o modo como o grão e sua cultura foram interpretados
e a atmosfera de anseios e receios que os envolviam. Toda a discussão agrícola, com base
em memórias originais e traduções, pode ser relacionada à escrita de tal obra 124.
Trata-se da “Memória sobre a cultura do arros em Portugal, e suas conquistas”,
escrita por Vicente Coelho de Seabra Silva Telles, médico, professor em Coimbra e sócio
da Academia Real. A memória foi publicada pela Casa do Arco do Cego em 1800 125. O
autor também se destacou pela elaboração de estudos sobre ouro e diamantes, divulgando
conhecimentos químicos. Foi sócio da Academia Real, um dos autores das já citadas
“Memórias Econômicas” e faleceu em 1804. É a partir dessa carreira, com contribuições
às iniciativas reformistas portuguesas, que se entende o local ocupado por essa memória
sobre o arroz126.
A escrita da obra teve como objetivo, segundo o seu autor, mostrar os defeitos e
mudanças na agricultura lusa. A necessidade de “pôr-se apar [...] das outras Nações” era
algo sentido e que merecia a busca de soluções. Procurou sanar um “erro” por meio das
ciências naturais. Vemos a teoria construída nas academias e escolas defendida como
solução para problemas práticos da economia portuguesa127.
O grão em destaque teria muitas vantagens, haja vista que, sendo de primeira
necessidade, era bom, saboroso, fértil e “[...] o seu terreno [era] apropriado aquele que é
Brasiliense”, e para mim com ecos nos escritos aqui analisados, o ideário econômico do autor “[...] é muito
mais prático e político do que propriamente teórico [...]” – OLIVEIRA, Milena F., op. cit., p. 125. Ademais,
o escopo nessa seção do trabalho foi mais o de apresentar as observações relativas à agricultura e à
rizicultura estrangeira e portuguesa do que o de analisar as teorizações econômicas, algo já estabelecido em
parte anterior desta dissertação. Para mais informações sobre as posições econômicas de Hipólito, o artigo
de Milena Oliveira deve ser consultado.
124
Essa não foi a única memória sobre o arroz encontrada nesta pesquisa. Foi escrita também outra memória
que ostentava arroz em seu título, sem, todavia, tratar desse cereal em seu texto. Ver “Memória sobre a
produção do trigo, arroz e outros grãos”. RIHGB, Rio de Janeiro, a. 163, n. 416, 2002. Para Dalla Costa, o
autor desse escrito teria sido Domingos Vandelli – DALLA COSTA, Ricardo. Ciências naturais e
econômicas..., p. 57.
125
TELLES, Vicente C. de S. S. Memoria sobre a cultura do arros em Portugal, e suas conquistas,
oferecida a S. Alteza Real o Principe Regente Nosso Senhor, por Vicente Coelho de Seabra Silva Telles.
Medico, e lente substituto de zoologia, mineralogia, botanica, e agricultura, na Universidade de Coimbra,
e socio da Academia Real das Sciencias de Lisboa, etc. Publicada por Fr. José Mariano Velloso. Lisboa:
Na Offic. da Casa Litteraria do Arco do Cego, 1800.
126
Ver VARNHAGEN, Francisco A. “Biographia dos brasileiros distinctos por letras, armas, virtudes, etc.
– Vicente Coelho de Seabra”. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, tomo IX, 1869, pp. 261 – 264.
127
TELLES, Vicente C. de S. S. Memoria sobre a cultura do arros..., consultar a apresentação da obra.
184
incapaz de produzir nenhum outro grão frumentáceo”. Apesar disso, o autor citou a
existência de uma “injusta guerra” feita ao arroz, inclusive com proibições do cultivo
feitas em Portugal128 – algo que nos lembra das considerações de MJR sobre a produção
de arroz em solo luso, bem como das críticas contidas nas traduções do “Cultura
Americana”. Vicente Seabra atestou que
[...] me resolvi a reclamar os direitos da ultrajada cultura do arroz, aliás
sabiamente promovidas pelos Nossos Augustos Soberanos, [...] e sendo os
escritos públicos os únicos meios de rasgar o misterioso véu da impostura
perante o público, tomei a meu cargo a presente memória; ficando-me a
satisfação de me declarar publicamente pela verdade e pelo bem público [...]129.
Ou seja, mesmo que tal escrito não tenha instituído a produção americana, visou
combater ideias detratoras sobre o cultivo existentes e trazidas a Portugal, ao mesmo
tempo em que reconheceu que a rizicultura havia sido promovida pela Coroa.
Seguindo as ideias de Correia da Serra, de que caberia às academias “propagar as
luzes”, o autor seccionou a obra em duas partes, uma dedicada a examinar a relação entre
a rizicultura e a saúde da população – destacada pelo autor como a principal seção da
memória – e outra voltada ao exame da cultura do cereal. Visto que a produção colonial
de arroz já ocorria havia algumas décadas, Seabra, na verdade, desejou responder às
críticas existentes, talvez àquelas vistas nos demais textos 130.
Debatendo os supostos problemas gerados pela cultura do cereal, questionou se
sua cultura seria, de fato, nociva. Se não, tal cultivo, útil e necessário, não deveria sofrer
entraves. Dessa forma, para responder aos questionamentos, averiguou se os vegetais
eram as causas de epidemias. Gastou espaço discutindo as opiniões de antigos e modernos
sobre as epidemias, discutindo os efeitos dos vegetais apodrecidos na atmosfera, para
concluir que “os vegetais viventes não somente não podem ser causa de epidemias, mas
que, pelo contrário, são o melhor preservativo delas”131.
128
TELLES, Vicente C. de S. S. Memoria sobre a cultura do arros..., apresentação da obra, p. i (“Da
Cultura do Arros”).
129
TELLES, Vicente C. de S. S. Memoria sobre a cultura do arros..., apresentação da obra, p. ii (“Da
Cultura do Arros”).
130
TELLES, Vicente C. de S. S. Memoria sobre a cultura do arros..., apresentação da obra, p. ii (“Da
Cultura do Arros”). Para as ideias de Correia da Serra, consultar as páginas 133-135 deste trabalho.
131
TELLES, Vicente C. de S. S. Memoria sobre a cultura do arros..., pp. 1-3, 5 e 9. O autor também
destacou que os conhecimentos médicos ainda não tinham respostas definitivas para o problema das febres
– Idem, Ibidem, p. 15. Logo, provavelmente Seabra via certa imprudência em conclusões precipitadas sobre
o arroz, imputando-lhe algum dano.
185
De forma consequente, o arroz, como planta, não traria prejuízos à saúde. Mas e
o modo como era cultivado, envolvendo as necessárias inundações? Se a água utilizada
estivesse em movimento, nenhum problema existiria. E se estivesse parada? Para Seabra,
“[...] a cultura do arroz, ainda mesmo em água estagnada, ou não é nociva, ou quando
seja, é incomparavelmente menos do que os pauis [...]”. Os fatos históricos também
comprovavam tal argumentação132:
Se o arroz causasse epidemias, quem poderia duvidar que aquele país, onde
houvesse maior cultura desta planta, seria o mais perseguido das supostas
epidemias? E quem duvidaria que este país, por isso que era de mais a mais
perseguido por este flagelo da saúde humana, seria menos povoado que os
outros que tivessem de menos este inimigo do gênero humano? Se lançarmos
porém, os olhos sobre o nosso globo, veremos que na Ásia, e particularmente
na China, se cultiva mais arroz do que em todo o resto do mundo, que dele se
faz o pão e o seu principal alimento, e ao mesmo tempo veremos que somente
o império da China tem quase o dobro dos habitantes de toda a Europa [...]:
como pois podia isto acontecer se o arroz causasse epidemias? [...]133.
Telles argumentou que o arroz era cultivado nas margens do rio Mondego e o grão
era relevante no comércio da América portuguesa, não havendo queixas contra ele, no
que demonstrou conhecer a realidade agrícola imperial. Na defesa do grão, atestou que
os pauis ocupavam muito mais terrenos em Portugal e, portanto, haveria maior chance de
eles serem a causa de algum problema. Concluindo, o autor retomou seus pontos e
afirmou que o arroz somente poderia causar danos à população quando cultivado em água
estagnada e com maus métodos. O cultivo não deveria ser proibido, mas regulado. Os
problemas não surgiam “de o cultivar, mas sim do modo com que se cultiva”134.
Na segunda parte, Telles iniciou com elogios, dizendo que o arroz era um dos
melhores cereais, com vários usos. Alimentaria a população com um pão excelente e o
gado com a sua palha. Sua cultura seria muito produtiva e fácil. Como outra razão de sua
utilidade, ele “[...] vegeta e produz melhor em terrenos úmidos e pantanosos; terrenos em
que se não pode cultivar nenhum dos outros cereais; e por isso se faz mais apreciável”135.
Seria uma cultura que não competiria por terrenos com outros cultivos selecionados.
132
TELLES, Vicente C. de S. S. Memoria sobre a cultura do arros..., pp. 10-12.
133
TELLES, Vicente C. de S. S. Memoria sobre a cultura do arros..., pp. 12-13.
134
TELLES, Vicente C. de S. S. Memoria sobre a cultura do arros..., pp. 14-15 e 17. Citando a América
portuguesa, disse Seabra que: “[...] o nosso Brasil oferece uma série de exemplos não interrompida, onde
se vê que países no princípio inabitáveis, sem haver neles um só grão de arroz, hoje são habitados e
saudáveis apesar de ser o arroz um de seus principais ramos de cultura e comércio. Estes factos são
inegáveis. Para que pois atribuir à esta planta o que se deve atribuir a outras causas?” – Idem, Ibidem, pp.
14-15 (nota a). Aí temos a consciência da situação produtiva americana.
135
Idem, Ibidem, pp. 17-18.
186
Citou o modo de cultivá-lo, o tempo, particularizando o caso na América
portuguesa. O plantio deveria ocorrer em locais úmidos “por si ou artificialmente”. Em
Portugal, o terreno deveria ser preparado com arados, criando uma planície de
inundação136. E na América? Seriam seguidos todos esses passos?
No Brasil não está ainda geralmente admitido este modo de preparar o terreno
e de semear, o que sem dúvida será preferível quando o uso da charrua e arado
foi ali abraçado. Costumam queimar o mato nascido no terreno apropriado no
fim do estio, e logo nas primeiras águas fazem pequenas covas no terreno em
distâncias pouco mais ou menos de um palmo uns dos outros, em que lançam
quatro até 8 grãos de arroz (que neste caso não precisa ser molhado [...]) e os
cobrem com pouca terra; o arroz germina e as chuvas, que então costumam vir,
o regam naturalmente137.
136
TELLES, Vicente C. de S. S. Memoria sobre a cultura do arros..., pp. 18-20. Para o autor, aliás, os
terrenos em Portugal precisariam ser regados para o cultivo do arroz; na América lusa, por seu turno, as
chuvas naturalmente desempenhariam essa função – Idem, Ibidem, p. 19-20.
137
TELLES, Vicente C. de S. S. Memoria sobre a cultura do arros..., p. 22.
138
Idem, Ibidem, pp. 22-24.
139
TELLES, Vicente C. de S. S. Memoria sobre a cultura do arros..., pp. 24-25.
140
Idem, Ibidem, p. 26.
187
que depende de alimento estrangeiro é uma nação de escravos. Um Estado
pode existir sem minas, mas não pode existir sem pão141.
Vemos como tal memória sobre o arroz e seu cultivo sintetiza muita da
argumentação apresentada anteriormente. Mesmo não sendo contemplado nos mais
conhecidos volumes agrícolas do reformismo luso, como as “Memórias Econômicas” e
“O Fazendeiro do Brazil”, ainda houve um pequeno escrito dedicado ao cereal
“ultrajado”. Na verdade, ainda que seu espaço específico seja menor do que, diga-se, o
da cochonilha, o pensamento sobre o arroz revisto e construído no período, sintetizado
nas várias obras originais e traduções, também foi usado para repensar e tentar reformar
a rizicultura colonial. Nas obras, a necessária articulação entre teoria e prática se fazia
presente a todo momento, como sinal característico desse período reformista.
Nessa obra, vemos conjugados três aspectos relevantes sobre tal cultivo,
relacionados a anseios e preocupações agrícolas, sociais e econômicas: as apreensões
médicas, seu potencial alimentício e, por fim, a necessidade de depender menos das
importações estrangeiras.
Quanto ao primeiro item, as preocupações médicas de então ficaram patentes,
relacionadas aos potenciais perigos dos arrozais. Se o arroz é pouco considerado no
“American Husbandry” devido a questões políticas, as médicas não deixaram de estar
presentes, citadas pelo autor anônimo, como também por MJR. Vemos a repetição de
alguns desses argumentos na obra de Telles, por mais que o objetivo do autor fosse o de
repensá-los e demonstrar onde residiam os reais causadores das epidemias. Nada de
surpreendente se se relembrar que tais ideias não eram novas, mas remontavam, pelo
menos, a meados do século XVIII, quando António Ribeiro Sanches já criticava o arroz.
Nas palavras de Sanches, “nenhuma vila ou cidade poderá jamais ser sadia se nos
arredores houver paúles, atoleiros e águas encharcadas”. Se Telles viu necessidade em
rebater tais argumentos, eles ainda prevaleciam e contestavam o desenvolvimento da
rizicultura, que, apesar disso, ia muito bem na América. Em um momento em que havia
mudanças nas concepções sobre a medicina, saúde coletiva e individual, havia muita
preocupação com os “miasmas” e seus efeitos. O arroz pôde, então, aparecer como vilão,
muito embora Seabra tentasse desculpá-lo142.
141
TELLES, Vicente C. de S. S. Memoria sobre a cultura do arros..., p. 27.
142
Sobre as ideias médicas do período, inclusive relacionadas ao arroz, ver COSME, João. “A consciência
sanitária em Portugal nos séculos XVIII-XIX”. CEM – cultura, espaço & memória, Porto, n. 5, 2014, pp.
188
Tais preocupações, por maior peso que tivessem, não impediram o
desenvolvimento da cultura do cereal. Além disso, em ambiente colonial, utilizando
escravos africanos no cultivo, tais preocupações com os miasmas provavelmente
deixavam de existir. Outras razões, portanto, explicam o caminho adotado.
Em relação ao segundo e terceiro itens, já trabalhados anteriormente, a
necessidade cada vez mais sentida de garantir alimentos a uma população crescente em
Portugal fazia necessária a busca de substitutos ou complementos ao trigo, ao pão. O arroz
era um deles, uma fonte de alimento para as várias camadas populacionais do reino e que
já vinha sendo produzido comercialmente, e de modo intenso, havia algumas décadas,
além de seus outros usos já atestados no primeiro capítulo da dissertação. Possivelmente,
foi um fato responsável pela vitória sobre os receios médicos quanto à rizicultura. A
necessidade de garantir a subsistência teve maior importância143.
Por fim, se o arroz garantiria alimento à população metropolitana, isso seria feito
por meio de uma produção que poderia emular as técnicas utilizadas em outros quadrantes
do globo. Essa era a razão das observações diretas e das obras publicadas sobre o cultivo;
buscaram repensar algo já em desenvolvimento. O objetivo era não depender de
estrangeiros para garantir a subsistência da população, como atestou Telles, equilibrando
também as contas com os demais atores políticos do período144.
45- 61. Para a citação de Sanches, ver SANCHES, António R. Tratado de conservação da saúde dos povos.
Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2003, p. 23 apud COSME, João, op. cit., p. 47. Para opiniões
contemporâneas sobre os pauis, ver, por exemplo, COUTINHO, dom Rodrigo de S. “5º Discurso: 29-03-
1803” in Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção de edição
de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. 209. Sobre essa discussão, apontou Chaunu
que “[...] O grande arrozal lamacento do Extremo Oriente é são; o pequeno arrozal mediterrânico constitui
um vetor malárico [...]” – CHAUNU, Pierre. A história como ciência social: a duração, o espaço e o homem
na época moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, p. 192.
143
Ver SERRÃO, José Vicente. “População e rede urbana nos séculos XVI-XVIII” in OLIVEIRA, César
(dir.). História dos municípios e do poder local (dos finais da Idade Média à União Européia). Lisboa:
Círculo de Leitores, 1996, passim; VELOSO, Carlos, op. cit., passim; COCLANIS, Peter. “The road to
commodity hell....”, pp. 24-30.
144
Para considerações similares, ver NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise..., pp. 285-298.
189
no mundo atlântico e europeu, as medidas tomadas preservariam a estrutura social
portuguesa e dinamizariam a economia imperial145.
Buscamos evidenciar como a prática editorial e científica portuguesa foi inserida
naquela lógica mais ampla e reformista. A análise de obras originais ou traduções,
editadas, por exemplo, pela Tipografia do Arco do Cego, demonstrou, em primeiro lugar,
o desejo de mudanças e transformações na agricultura imperial, sinalizadas pela tentativa
de melhorias técnicas e de maior diversificação da pauta agrícola portuguesa. Tal objetivo
foi perseguido mesmo em uma viagem de observação feita por Hipólito José da Costa
Pereira aos Estados Unidos da América, o que, afinal, também demostrou a prática de
busca e adaptação de conhecimentos alheios ao mundo português. Os exemplos citados
demonstraram o interesse luso por conhecimentos estrangeiros, que poderiam auxiliar a
repensar e reformar as práticas agrícolas portuguesas. Na base, todos esses escritos foram
uma consequência dos caminhos abertos à agricultura e à rizicultura na América lusa e
buscaram, por seu turno, repensar e transformar as práticas agrícolas.
Os escritos originais, as traduções e as viagens empreendidas a outros locais
criaram uma quantidade de informação que se tornou disponível, fundamentalmente, aos
ilustrados e agentes governativos luso-americanos, muitos dos quais responsáveis pela
tomada de decisões políticas ou pelo aconselhamento na tomada dessas decisões. Muitos
dos agentes governativos ou funcionários da monarquia eram eles próprios ilustrados que
estudaram em Coimbra, escreveram memórias ou ainda viveram no exterior146.
O menor espaço dedicado ao arroz também pode significar algo, tendo em vista a
sua importância na alimentação portuguesa do período. Como item de primeira
necessidade, mais relacionado à subsistência da população pobre, mesmo que produzido
comercialmente, a sua importância e forma de cultivo talvez fossem vistas como mais
óbvias, da mesma forma que aquelas de outros cereais como o trigo ou o centeio. O arroz
era conhecido havia séculos em Portugal e sua produção comercial dentro do império
145
BERBEL, Marcia; MARQUESE, Rafael de B.; PARRON, Tâmis, op. cit., passim, principalmente as
pp. 76-77; AZEVEDO, Dannylo de. O Fazendeiro do Brasil: manuais agrícolas no Brasil colonial em finais
do século XVIII. 2018. 215 p. Dissertação (Mestrado em História Econômica). FFLCH-USP, São Paulo,
2018, pp. 38-39; NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise..., pp. 223-225.
146
MOURA, Roseli A. de., op. cit., p. 1; VILAGRA, Bruno Ricardo, op. cit., pp. 148-149; CARDOSO,
José Luís. “Nas malhas do império: a economia política e a política colonial de d. Rodrigo de Souza
Coutinho” in CARDOSO, José Luís (coord.). A economia política e os dilemas do império luso-brasileiro
(1790-1822). Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001,
p. 90; NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise..., pp. 232-233, 239; POMBO, Nívia. Dom Rodrigo
de Sousa Coutinho..., passim; POMBO, Nívia. “A cidade, a universidade e o Império...”, passim.
190
visava os problemas da garantia de subsistência do povo e da substituição de importações,
em um momento crítico para a economia portuguesa. Assim como não faria muito sentido
frei Veloso traduzir uma memória sobre o trigo – cujo cultivo era conhecido e
sistematizado em solo luso, o arroz, talvez, se encaixasse parcialmente em tal ideário,
conhecido havia séculos e com uma considerável produção na América. Ainda assim,
houve algumas notas dedicadas a ele, bem como toda uma memória escrita por Seabra
Telles, demonstrando que, apesar de conhecido, sua cultura ainda era motivo de
polêmicas e necessitava de ser debatida, o que muitas vezes reforçava que ele só seria
tolerado como cultivo colonial. No caso de Telles, por exemplo, sua obra não visou iniciar
o cultivo de arroz, mas contestar ideias que o qualificavam como nocivo. Como
procuramos deixar evidente, as próprias notas sobre as necessárias mudanças na
agricultura criaram um contexto de discussões que englobou a rizicultura imperial. Isso
somente evidencia o espaço do arroz: cereal conhecido e cultivado, um item básico na
alimentação portuguesa, ainda assim participou, mesmo que timidamente, daquele
impulso reformador, de diversificação e melhorias técnicas, do final do século XVIII 147.
Esses escritos não foram os responsáveis por inaugurar a produção de arroz, mas
foram consequência intelectual desse desenvolvimento. Mesmo que possam não ter tido
muito influência no terreno luso-americano e possivelmente não tenham sido lidos, são
um resultado e ao mesmo tempo fator de impulsão do movimento reformista,
materializado em novas concepções sobre a riqueza e em novos modos de avaliar a
economia, a agricultura e, enfim, a cultura de arroz. Se surgiram graças ao
desenvolvimento prévio agrícola, buscaram repensá-lo, mesmo que não tenham tido
grande sucesso na empreitada, não sendo vendidos na colônia americana e ficando
estocados e sem uso148. De toda forma, a escolha dos textos a serem traduzidos e
disponibilizados demonstra um processo de apropriação selecionada que seria finalizado
quando os lavradores tivessem contato com aquelas ideias diretamente nos livros ou por
meio de discussões influenciadas pelas obras. Dificilmente haveria uma aceitação
completa e rígida dos escritos, mas uma adaptação e utilização críticas daquelas teorias 149.
147
Novamente, o trabalho de Mariana Ferraz Paulino inspirou a avaliação do papel conferido ao arroz pelos
ilustrados luso-americanos: enquanto cereal, sua importância seria bem óbvia e seu cultivo bem conhecido,
não necessitando ser muito discutido pelos ilustrados. Ainda assim, foi discutido, ecoando as polêmicas
que ainda envolviam a sua cultura. Ver PAULINO, Mariana F., op. cit., passim.
148
WEGNER, Robert, op. cit., passim; AZEVEDO, Dannylo de, op. cit., pp. 158-183.
149
Ver CARDOSO, José Luís. “Circulating economic ideias...”, passim. Para um texto que problematiza a
leitura dos livros na colônia, ver POMBO, Nívia. “O Fazendeiro do Brasil, de frei Veloso...”, passim.
191
4. O CAMPO PRODUTIVO AMERICANO
“Um Estado pode existir sem minas, mas não pode existir sem pão” – a memória
de Vicente Seabra Telles sintetiza muito do que se discutiu até aqui: a reorganização do
mercado de arroz no século XVIII, representada na referência um tanto genérica ao pão e
à sua relevância para as sociedades; as discussões sobre a realidade e o pensamento
econômico no Império português, ecoadas na contraposição entre as minas e a produção
agrícola; o modo como a agricultura foi repensada e alguns planos reformistas foram
desenvolvidos, culminando na escrita da própria memória dedicada ao cereal. Se os dois
primeiros capítulos nos auxiliam a entender o advento de processos sintetizados no
terceiro, este capítulo se volta à materialidade produtiva luso-americana1.
As mudanças no mercado de arroz e na constituição do pensamento econômico
português afetaram de alguma forma a produção de arroz na América portuguesa, como
as balanças de exportação da região o demonstram. Por isso, este capítulo discutirá de
forma breve o desenvolvimento dos arrozais em terreno luso-americano. Nesse caso, a
atenção estará voltada à capitania do Rio de Janeiro, à capitania de São Paulo, com
particular destaque à região de Iguape, e ao norte da América portuguesa, às capitanias
do Maranhão e Pará2.
Os próprios textos ilustrados de reforma agrícola atestaram que a rizicultura se
desenvolvia e poderia se desenvolver nas colônias. O arroz, então, era essencialmente
colonial, produzido fora do reino por escravos e, certas vezes, por populações livres e
pobres dessas porções do império. Dessa forma, aqueles malefícios relacionados à cultura
do arroz poderiam ser suportados, longe do centro de poder metropolitano.
Os desenvolvimentos do mercado mundial de arroz e as ideias ilustradas sobre
economia e agricultura tiveram, por um lado, um impacto na criação e tradução de
diversos textos sobre agronomia, incluindo a rizicultura. Por outro, também podem ser
relacionadas às mudanças no campo produtivo luso-americano. Na compreensão dessa
mais ampla transformação produtiva, entre as razões relacionadas ao mercado mundial
1
TELLES, Vicente C. de S. S. Memoria sobre a cultura do arros em Portugal, e suas conquistas, oferecida
a S. Alteza Real o Principe Regente Nosso Senhor, por Vicente Coelho de Seabra Silva Telles. Medico, e
lente substituto de zoologia, mineralogia, botanica, e agricultura, na Universidade de Coimbra, e socio da
Academia Real das Sciencias de Lisboa, etc. Publicada por Fr. José Mariano Velloso. Lisboa: Na Offic.
da Casa Litteraria do Arco do Cego, 1800, p. 27.
2
ARRUDA, José Jobson de A. O Brasil no comércio colonial. São Paulo: Editora Ática, 1980, pp. 351-
354 e 392-398.
192
de arroz do século XVIII e as transformações ilustradas dos discursos econômicos
portugueses no mesmo período, não estabelecemos uma absoluta primazia explicativa,
haja vista que ambas tiveram impacto variado naqueles processos. Esse é o guia de nossa
interpretação nas próximas páginas.
400.000
350.000
300.000
Arrobas
250.000
200.000
150.000
100.000
50.000
0
1789
1795
1767
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1793
1797
1799
1801
1803
1805
1807
Anos
Figura 7: CODINA, Joaquim José. [Engenho de pilões de socar]. [S.I.: s.n.], [17--]. 1 desenho, nanquim,
p&b, imagem 32,5x19,0 cm em f. 34,5 x 24,0. Disponível em:
<http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=1420>. Acesso em 8 de julho de 2022.
Figura 8: CODINA, Joaquim José. Moinho de arroz. Original, 1784. Extraído de CFC – I (49). BNRJ 21,
1, 2 (30) apud Anexo com imagens de PATACA, Ermelinda. Mobilidade e permanências de viajantes no
mundo português: entre práticas e representações científicas e artísticas. 2015. 385 p. Tese (Livre
docência). Faculdade de Educação, USP, São Paulo, 2015.
3
Ver as páginas 182-183 deste trabalho.
194
Figura 9: CODINA, Joaquim José. Ventilador de arroz. Original, 1784. Extraído de CFC – I (48). BNRJ
21, 1, 2 (32) apud Anexo com imagens de PATACA, Ermelinda. Mobilidade e permanências de viajantes
no mundo português: entre práticas e representações científicas e artísticas. 2015. 385 p. Tese (Livre
docência). Faculdade de Educação, USP, São Paulo, 2015.
4
Sobre a viagem de Alexandre Rodrigues Ferreira e dos demais membros de sua equipe, ver RAMINELLI,
Ronald. “Ciência e colonização – Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira”. Tempo, Niterói, v.
6, 1998.
195
Se assim o foi, cabe então analisar de perto a resposta dada em terreno luso-
americano. Evidentemente, a produção aumentou, mas podemos compreender de maneira
mais particular o campo produtivo? Nesse caso, podemos recuperar de alguma forma o
debate da tese do arroz negro? Ou seja, o desenvolvimento da cultura comercial de arroz
na América lusa teve alguma relação com a experiência dos escravos da região arrozeira
africana?
O debate sobre o “arroz negro” teve seu início na década de 1970 com os trabalhos
inovadores de Peter Wood e Daniel Littlefield. No início dos anos 2000, Judith Carney
prosseguiu a discussão ao publicar seu Black Rice, obra na qual defendeu a ideia de que
conhecimentos rizicultores oeste-africanos, eficientes “saberes agronômicos”, teriam sido
transportados através do Atlântico pelos africanos escravizados e formado a base para o
cultivo de arroz nas Américas. A partir de 2007, na revista The American Historical
Review, Philip Morgan, David Eltis, David Richardson, Max Edelson, David Hawthorne
e Gwendolyn Middlo Hall inseriram suas impressões favoráveis ou não à tese original.
Alguns – como Morgan, Eltis e Richardson – teceram críticas às ideias de Carney.
Segundo os três historiadores, o estabelecimento de ligações de causalidade direta entre
sistemas de conhecimento agronômicos, nos moldes propostos por Carney, não encontra
comprovação empírica nos dados reunidos e disponibilizados na plataforma Slave
Voyages5.
É isso que tentaremos recuperar a seguir. Em um primeiro momento,
destacaremos o cultivo de arroz na capitania do Rio de Janeiro; em seguida, discutiremos
brevemente a produção desse cereal na capitania de São Paulo; por fim, faremos algumas
notas sobre a produção no norte da América portuguesa. Com tais apontamentos,
tentaremos construir uma breve síntese sobre a produção de arroz na América portuguesa.
5
Ver CARNEY, Judith. Arroz negro: as origens africanas do cultivo do arroz nas Américas. Bissau:
Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas, 2018, passim; CARNEY, Judith; MARIN, Rosa A.
“Aportes dos escravos na história do cultivo do arroz africano nas Américas”. Estudos Sociedade e
Agricultura, Seropédica & Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, 1999, pp. 117 – 120. Ver ELTIS, David; MORGAN,
Philip; RICHARDSON, David. “Agency and diaspora in Atlantic history: reassessing the African
contribution to rice cultivation in the Americas”. The American Historical Review, Bloomington, v. 112, n.
5, 2007, passim; ELTIS, David; MORGAN, Philip; RICHARDSON, David. “Black, brown, or white?
Color-coding American commercial rice cultivation with slave labor”. The American Historical Review,
Bloomington, v. 115, n. 1, 2010, passim; COCLANIS, Peter. “Global perspectives on the early economic
history of South Carolina”. The South Carolina Historical Magazine, Charleston, v. 106, n. 2/3, 2005, pp.
139 – 140. Os demais textos dos autores envolvidos na discussão encontram-se citados na bibliografia deste
trabalho. Para um diálogo crítico entre certas propostas de Carney e Voeks e a situação concreta no Vale
do Paraíba cafeicultor no século XIX, ver MARQUESE, Rafael de B. “Diáspora africana, escravidão e a
paisagem da cafeicultura no Vale do Paraíba oitocentista”. Almanack braziliense, São Paulo, n. 7, 2008.
196
Explicaremos o estabelecimento da produção comercial de arroz na América lusa a partir
de condicionantes mentais e materiais, e analisaremos brevemente o campo produtivo,
também com vistas a mapear novos caminhos de pesquisa.
Como apontou Caio Prado Júnior, a produção americana de arroz tinha como
fulcro a exportação, responsável por dinamizar o cultivo em diversas localidades, como
o Rio de Janeiro e o Maranhão. Mas o consumo interno também existia e, mesmo em
menor escala, criava demanda e orientava a produção em outras localidades. Dessa forma,
destacamos esse caráter duplo da produção arrozeira. Como alimento básico de
subsistência, mas com potencial comercial, o grão podia ser produzido sem muita
tecnologia para consumo local ou em larga escala para abastecer até mesmo a metrópole
portuguesa no outro lado do oceano6.
O Rio de Janeiro é a primeira região analisada neste capítulo devido à contribuição
produtiva e por constituir um exemplo do cultivo do cereal impulsionado também por
medidas de incentivo metropolitanas – frutos das mudanças no pensamento econômico e
das oportunidades criadas pelo mercado mundial. Estamos falando da capitania que
abrigou, desde 1763, a capital do Estado do Brasil e, junto às regiões do norte da América
portuguesa, foi uma das primeiras regiões da colônia dedicadas à produção comercial de
arroz. É um belo exemplo do porquê a sociedade e a economia coloniais não podem ser
compreendidas sem referência à intricada relação com a política e a economia
metropolitanas. O cultivo comercial de arroz na América portuguesa visava substituir as
importações, sanar os déficits comerciais portugueses, garantir a subsistência da
população e, se possível, criar novos ramos de comércio7.
Desde o final do século XVII, a capitania e sua principal cidade ganharam
importância graças às descobertas de ouro ocorridas na capitania vizinha de Minas Gerais.
6
Ver PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 1ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011, p. 165.
7
Ver NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial, 1777-1808. 9ª edição.
São Paulo: Hucitec, 2011, pp. 288-289 e 322-323; FALCON, Francisco José C. “O império luso-brasileiro
e a questão da dependência inglesa – um estudo de caso: a política mercantilista durante a Época Pombalina,
e a sombra do Tratado de Methuen”. Nova Economia, Belo Horizonte, v. 15, n. 2, 2005, passim; também
ARRUDA, José Jobson de A. “Decadência ou crise do império luso-brasileiro: o novo padrão de
colonização do século XVIII”. Revista USP, São Paulo, n. 46, 2000, p. 69; por fim, VELOSO, Carlos. A
alimentação em Portugal no século XVIII nos relatos dos viajantes estrangeiros. Coimbra: Minerva
Histórica, 1992, passim.
197
O Rio de Janeiro obteve, então, importância comercial devido à movimentação em seu
porto e estratégica enquanto “porta de entrada” para a região das riquezas americanas.
Todavia, quando do arrefecimento da mineração em meados do século XVIII, a economia
imperial foi afetada de forma drástica, com agudas consequências na balança de
pagamentos, e medidas reformistas foram postas em ação para tentar recuperar a
economia e as finanças imperiais. Tais embalos também foram sentidos na capitania
fluminense8.
A capitania do Rio de Janeiro experimentou as consequências dos planos
reformistas teorizados na metrópole desde meados do século XVIII, os quais visaram
superar os problemas econômicos e financeiros causados pela queda da produção mineira.
Mesmo se não sofreu uma grave crise econômica, ao menos houve um período de
marcada estagnação em parte da capitania, refletido, por exemplo, nas negociações de
imóveis e no mercado de crédito da cidade do Rio de Janeiro. Ou seja, problemas
econômicos e financeiros surgiram a partir de meados do século e soluções foram
buscadas para retomar o crescimento econômico. As mudanças teóricas suscitadas por
esses problemas, sintetizadas nas transformações do pensamento econômico luso, ou seja,
nas novas definições de riqueza e no valor conferido às produções coloniais, podem
ajudar a explicar o propalado “renascimento agrícola” ocorrido na colônia como um todo
e nessa capitania em particular no final do século XVIII. Nesse caso, não só o arroz obteve
literal espaço no terreno da capitania, mas diversos cultivos obtiveram sucesso produtivo
em graus variados9.
8
Sobre essas informações, consultar as referências da nota anterior. Conferir também PESAVENTO, Fabio.
Um pouco antes da Corte: a economia do Rio de Janeiro na segunda metade do Setecentos. Jundiaí: Paco
Editorial, 2013, pp. 27-33; FALCON, Francisco José C. “O império luso-brasileiro...”, passim; também
BOXER, Charles R. O império marítimo português: 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002,
pp. 194-195. Para mais informações, ver MELLO E SOUZA, Laura de; BICALHO, Maria Fernanda. 1680-
1720: império deste mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, passim. Para uma discussão
envolvendo o ouro luso-americano, ver MARQUESE, Rafael de B.; MARQUES, Leonardo. “Ouro, café e
escravos: o Brasil e ‘a assim chamada acumulação primitiva’” in MARQUESE, Rafael de B. Os tempos
plurais da escravidão no Brasil: ensaios de história e historiografia. São Paulo: Intermeios, 2020.
9
ALDEN, Dauril. “O período final do Brasil Colônia: 1750-1808” in BETHELL, Leslie (org.). História
da América Latina. Volume II. América Latina Colonial. São Paulo: Edusp/Brasília: FUNAG, 2004,
passim. Para o parágrafo e o argumento de que o período não foi marcado por uma crise econômica, mas,
sim, pela estagnação, ver PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte..., pp. 56-88 e 189-198. Para
outras considerações sobre a economia e sociedade coloniais do Rio de Janeiro, ver FRAGOSO, João;
GUEDES, Roberto; KRAUSE, Thiago. A América portuguesa e os sistemas atlânticos na Época Moderna:
monarquia pluricontinental e Antigo Regime. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2013; também FRAGOSO,
João. “A noção de economia colonial tardia no Rio de Janeiro e as conexões econômicas do Império
português: 1790-1820” in FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima
(orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de
198
As medidas de recuperação econômica envolveram a dinamização agrícola da
capitania e diversos cultivos foram incentivados, como o arroz, antes parcamente
aproveitado enquanto exportação mas presente na produção local. Nesse processo,
importante papel coube às autoridades régias, como o marquês do Lavradio, tendo em
vista a recuperação econômica local e o equilíbrio da balança de pagamentos do Império,
que não mais contava com tanto ouro para saldar os crescentes déficits comerciais. Era
preciso variar a produção comercial na capitania, restrita naquele momento ao açúcar e
ao cultivo da mandioca10. O próprio Lavradio atestou suas tentativas referentes ao cereal
aqui analisado:
Promovi do modo que pude a lavoura do arroz; e como eu não tinha com que
ajudar aos lavradores, nem aos fabricantes, interessei-me com alguns
negociantes, fazendo-lhes muitas festas e distinções, para que eles quisessem
auxiliar aos que tinham fábricas, a fim de que eles pudessem animar aos
lavradores11.
Por certo, Lavradio não tinha extenso poder para tomar decisões, em âmbito de
todo o império, que dinamizassem ou auxiliassem a produção do cereal e, de tal forma,
buscou tratos informais para auxiliar os produtores locais de arroz. As medidas oficiais,
por outro lado, teriam de vir da Corte, como já estava ocorrendo há algum tempo, pois
diversas foram as leis que buscaram amparar a produção rizicultora na América lusa.
Como exemplo, podemos citar a primeira delas, datada de 1761, em que dom José I
isentou “[...] de direito por tempo de dez anos todo o arroz remetido de qualquer dos
portos do Brasil para os deste Reino [...]”. Houve a renovação dessa isenção em 1773,
1783, 1800, 1804 e 1809 e, ademais, privilégios concedidos a uma fábrica de descasque
de arroz na capitania do Rio de Janeiro. Portanto, as medidas de incentivo régias tiveram
destacado papel na dinamização agrícola da capitania, mas não funcionaram sozinhas 12.
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Para uma síntese das transformações no pensamento econômico
português no final do século XVIII, ver nosso segundo capítulo.
10
Ver PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte..., pp. 34, 70 e 87; também CARNEY, Judith. “O
arroz africano na história do Novo Mundo”. Fronteiras: journal of social, technological and environmental
science, Anápolis, v. 6, n. 2, 2017, p. 186; OLIVEIRA, Victor Luiz A. “Lavradores, vice-reis e as políticas
de fomento econômico no Rio de Janeiro colonial: o caso do anil”. História e Economia, São Paulo/Lisboa,
v. 18, n. 1, 2017, passim; e, enfim, MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo.
2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, pp. 119-139.
11
PORTUGAL, Luís de A. (marquês de Lavradio). “Relatório do vice-rei marquez de Lavradio, vice-rei
do Rio de Janeiro, entregando o governo a Luiz de Vasconcelos e Souza, que o succedeu no vice-reinado”.
Revista Trimestral de História e Geografia ou Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo
4, n. 16, 1843, p. 468 apud OLIVEIRA, Victor Luiz A., op. cit., p. 91.
12
“Decreto isemptando de quaesquer emolumentos o arroz do Brasil que entrar nos portos deste Reino” in
SILVA, Antonio D. da. Supplemento á collecção de legislação portugueza... Anno de 1750 a 1762. Lisboa:
Typographia de Luiz Correa da Cunha, 1842, pp. 814-815; “Alvará acerca da Fabrica de descascar arroz
199
Como sinal de que tais medidas surtiram efeitos, uma decisão incentivou e ao mesmo
tempo revelou o espaço da cultura rizicultora em fins do século XVIII. Em 24 de julho
de 1781, tal decisão notou que
Eu a Rainha faço saber aos que este alvará virem, que tendo consideração sobre
o grande adiantamento, em que nos Meus Domínios Ultramarinos, e neste
Reino se acha a cultura do arroz, cuja abundância tendo suprido de algum
tempo a esta parte o consumo deste mesmo Reino, faz esperar utilíssimas
vantagens aos Meus Vassalos, que com louvável zelo se empregam nas
plantações do mesmo gênero: E querendo animar este ramo de indústria e
comércio, não só em benefício comum dos povos daquele continente, mas
também em utilidade pública dos vassalos destes Reinos: sou servida proibir,
como por este proíbo, a entrada de todo o arroz que não seja da produção dos
Meus Domínios [...]13.
no Rio de Janeiro” in SILVA, Antonio D. da. Collecção da legislação portugueza desde a ultima
compilação das ordenações... Legislação de 1763 a 1774. Lisboa: Typographia de L. C. da Cunha, 1858,
pp. 279-281. Para as isenções, ver também “Decreto isemptando por dez annos de direitos o arroz que vier
do Brazil” in SILVA, Antonio D. da. Supplemento á collecção de legislação portugueza... Anno de 1763 a
1790. Lisboa: Typographia de Luiz Correa da Cunha, 1844, p. 301; “Decreto prorogando por mais dez
annos a isempção de direitos ao arroz dos Dominios Ultramarinos” in SILVA, Antonio D. da. Collecção
da legislação portugueza desde a ultima compilação das ordenações... Legislação de 1775 a 1790. Lisboa:
Typografia Maigrense, 1828, p. 341; “Decreto isentando de direitos por mais dez annos o arroz introduzido
de quaesquer dos portos dos Dominios deste Reino” in SILVA, Antonio D. da. Supplemento á collecção
de legislação portugueza... Anno de 1791 a 1820. Lisboa: Typografia de Luiz Correia da Cunha, 1847, pp.
219-220; “Decreto isentando por mais cinco annos de Direitos o arroz do Brazil importado neste Reino” in
SILVA, Antonio D. da. Collecção da legislação portugueza desde a ultima compilação das ordenações...
Legislação de 1802 a 1810. Lisboa: Typografia Maigrense, 1826, pp. 270-271; “Portaria com a isempção
de Direitos para o Arroz” in SILVA, Antonio D. da. Supplemento á collecção de legislação portugueza...
Anno de 1791 a 1820. Lisboa: Typografia de Luiz Correia da Cunha, 1847, p. 427.
13
“Alvará prohibindo a entrada de arroz estrangeiro” in SILVA, Antonio D. da. Collecção da legislação
portugueza desde a ultima compilação das ordenações... Legislação de 1775 a 1790. Lisboa: Typografia
Maigrense, 1828, pp. 300-301. É interessante notar que mais tarde, em 1801, a exportação de arroz ao
estrangeiro foi proibida – ver “Aviso prohibindo a exportação do arroz” in SILVA, Antonio D. da.
Supplemento á collecção de legislação portugueza... Anno de 1791 a 1820. Lisboa: Typografia de Luiz
Correia da Cunha, 1847, p. 220. A proibição de importação de arroz estrangeiro caiu por terra somente em
1808, possivelmente devido aos problemas da invasão francesa – ver “Aviso ao mesmo fim” in SILVA,
Antonio D. da. Supplemento á collecção de legislação portugueza... Anno de 1791 a 1820. Lisboa:
Typografia de Luiz Correia da Cunha, 1847, p. 364; para outras medidas que beneficiaram ou envolveram
arroz estrangeiro, ver “Portaria isemptando por mais hum anno de meios Direitos a importação do arroz”
in SILVA, Antonio D. da. Supplemento á collecção de legislação portugueza... Anno de 1791 a 1820.
Lisboa: Typografia de Luiz Correia da Cunha, 1847, p. 464; em 1815, houve discussão sobre o arroz vindo
de fora e seu impacto na vida de rizicultores e consumidores portugueses – “Portaria authorisando o
Conselho da Fazenda para a admissão do arroz Estrangeiro” in SILVA, Antonio D. da. Supplemento á
collecção de legislação portugueza... Anno de 1791 a 1820. Lisboa: Typografia de Luiz Correia da Cunha,
1847, p. 562; sobre arroz estrangeiro e asiático, ver “Portaria sobre direitos do Arroz” in SILVA, Antonio
D. da. Collecção da legislação portugueza desde a ultima compilação das ordenações... Legislação de
1811 a 1820. Lisboa: Typografia Maigrense, 1825, p. 365; a decisão de 1781 continuou reverberando nas
próximas décadas e foi lembrada em 1817 quando o rei dom João VI “Foi servido determinar por sua
resolução de 25 de agosto do referido ano de 1816, ampliando por esta forma o mencionado alvará: que
este só tenha a sua exata observância em todas aquelas ocasiões em que o preço do arroz do Brasil não
chegar ao de quatro mil oitocentos réis por quintal; porque assim, que com efeito chegue, será admitido a
despacho o arroz estrangeiro, pagando este os direitos como atualmente se pratica” – ver “Portaria do
Conselho da Fazenda, para que o arroz estrangeiro seja admittido a despacho, quando o do Brazil chegar a
4$800 réis por quintal” in SILVA, Antonio D. da. Collecção da legislação portugueza desde a ultima
compilação das ordenações... Legislação de 1811 a 1820. Lisboa: Typografia Maigrense, 1825, p. 564.
200
Reforçando a base que sustentou tal decisão, alguns anos mais tarde, em 1783, a
mesma rainha dona Maria notou que a produção de arroz na América lusa abastecia o
reino e ainda criava exportações para o estrangeiro, cumprindo muito bem os objetivos
do reformismo anteriormente notados nesta dissertação14. Medida que comprova mais
uma vez que os escritos ilustrados, dedicados à agricultura e surgidos no final do século
XVIII, não tiveram força instituidora. Responderam a um contexto produtivo já sólido e
buscaram repensá-lo sem muito sucesso. Como a lei demonstra, o processo produtivo
vinha de antes, desde meados da centúria.
Porém, para além da ação oficial da Coroa e dos indivíduos por ela nomeados em
ambiente colonial, havia mais a ser feito. Os lavradores eram parte da engrenagem
essencial. O cultivo de arroz, diferentemente de outros, não oferecia tantos riscos às
famílias da cidade do Rio de Janeiro, pois, como citou Pesavento, o arroz era cultivado
em terrenos antes pouco aproveitados, charcos, terrenos úmidos, não impactando
naqueles já aproveitados para outras culturas, e, caso não fosse comercializado, poderia
ser incorporado à alimentação das famílias produtoras. Algumas famílias que tinham de
pagar foros viam em tal produção, assim como na do anil, uma chance de obter
rapidamente liquidez, haja vista a compra garantida por negociantes que se aventuraram
no beneficiamento do arroz. A ação desses negociantes impulsionou o cultivo do cereal
no Rio de Janeiro por meio do estabelecimento de fábricas de descasque e da compra da
produção dos cultivadores do cereal. Um caso emblemático foi o de Manoel Luís Vieira
e sua fábrica na região de Andaray Pequeno, que teve parte de sua produção enviada para
Lisboa, Porto e as ilhas atlânticas portuguesas no final do século XVIII 15.
14
“Decreto prorogando por mais dez annos a isempção de direitos ao arroz dos Dominios Ultramarinos”...,
p. 341.
15
PESAVENTO, Fabio. Um pouco antes da Corte..., pp. 70-77, 76 e 83; IHGB, CU, arq. 1-1-29, volume
29, p. 252 verso-253 apud PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte..., p. 76; OLIVEIRA, Victor
Luiz A., op. cit., pp. 98-103; também ALDEN, Dauril. “Manoel Luís Vieira: an entrepreneur in Rio de
Janeiro during Brazil’s eighteenth century agricultural renaissance”. The Hispanic American Historical
Review, Durham, v. 39, n. 4, 1959, passim. No contexto das memórias da ARCL, devemos citar a
preocupação com a utilização de terrenos pouco ou não aproveitados em Portugal – ver, por exemplo,
SILVEIRA, António H. da. “Racional discurso sobre a agricultura e população da província de Alentejo”
in Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento da agricultura,
das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo I. Direção de edição de José
Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1990, especialmente as pp. 61-62. Uma memória também tratou
de outro ponto importante, lembrado acima no caso do arroz: a importância de novos cultivos não
interferirem na produção de cultivos já cristalizada – ver CASTRO, Joaquim de A. “Memória sobre o
malvaísco do distrito da Vila da Cachoeira no Brasil” in Memórias Económicas da Academia Real das
Ciências de Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas
conquistas (1789-1815). Tomo III. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal,
1991, p. 284.
201
Na base do cultivo, portanto, havia espaço para as famílias dos pequenos
lavradores, que cultivavam arroz sem grandes aportes tecnológicos, utilizando terrenos
pouco adequados a outras culturas. Nessas propriedades e nas maiores, se houve a
utilização de mão-de-obra escrava, ela deve ter sido composta, provavelmente, de cativos
vindos da região do Congo e Angola, ou seja, da África central e ocidental, como vemos
na tabela a seguir. Foram essas regiões africanas que abasteceram, em sua maior parte, o
mercado de cativos na capitania do Rio de Janeiro durante o século XVIII. Poucos cativos
eram provenientes das áreas produtoras de arroz no oeste da África, ali representada pelas
regiões da Senegâmbia, Serra Leoa e, de menor forma, pela Costa do Ouro. Tudo isso nos
leva a crer que no caso do sudeste da América lusa, incluindo a capitania do Rio de Janeiro
e também a de São Paulo, o conhecimento rizicultor dos cativos oeste-africanos não
contou muito para o desenvolvimento da cultura de arroz. Ainda assim, não devemos
tecer conclusões precipitadas, pois os poucos cativos da região do arroz africano podem,
numa hipótese extrema, ter sido utilizados especificamente nas propriedades arrozeiras,
ainda mais se nos lembrarmos de que não estamos lidando com regiões dedicadas
exclusivamente ao arroz. Dito de outra forma, a maioria esmagadora dos cativos pode ter
se dedicado a outros cultivos, enquanto aqueles poucos vindos da região do arroz africano
podem ter sido utilizados nas propriedades rizicultoras. Somente pesquisas mais
detalhadas, se possíveis, podem responder a tais dúvidas16.
Mas há outro ponto que nos leva a crer que os arrozais puderam se desenvolver
sem o conhecimento técnico oeste africano, relacionado à história da Fazenda de Santa
Cruz, administrada por jesuítas desde o século XVI na capitania do Rio de Janeiro. Lá,
com o auxílio de mão-de-obra indígena, eclusas, represas e canais de drenagem foram
construídos até meados do século XVII, beneficiando a produção agrícola local que
abrangeu o arroz. Mais tarde, cativos africanos foram incorporados à propriedade
administrada pelos padres. De toda forma, tecnologias essenciais ao cultivo arrozeiro e
16
PESAVENTO, Fabio. Um pouco antes da Corte..., pp. 76-77 e 83. Obviamente, somente um estudo
detalhado poderia analisar em pormenor a composição escrava das propriedades produtoras de arroz,
mapeando a origem dos cativos e, assim, colaborando com as discussões sobre a tese do arroz negro. Para
mais considerações sobre o tráfico para a América lusa, ver KLEIN, Herbert. “A demografia do tráfico
atlântico dos escravos para o Brasil”. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 17, n. 2, 1987. A ideia de que é
preciso quantificar o número de escravos conhecedores da rizicultura sofreu críticas por parte de S. Max-
Edelson, para quem “A single African farmer may have demonstrated viable ways to grow and process rice
that others observed, emulated, and disseminated” – ver MAX-EDELSON, S. “Beyond ‘Black Rice’:
reconstructing material and cultural contexts for early plantation agriculture”. The American Historical
Review, Bloomington, v. 115, n. 1, 2010, p. 126.
202
mesmo a produção do cereal puderam existir antes mesmo da chegada, em números
consideráveis, de escravos africanos, o que corrobora a nossa ideia de que o cultivo do
grão pôde prescindir, na sua origem, do conhecimento dos cativos rizicultores ou daqueles
escravos que conheciam a cultura17.
17
Ver PEDROZA, Manoela. Por trás dos senhorios: senhores e camponeses em disputa por terras, corpos
e almas na América portuguesa (1500-1759). Jundiaí: Paco Editorial, 2020, pp. 176-195. Também da
mesma autora PEDROZA, Manoela. “O senhorio territorial em construção: o caso dos padres jesuítas na
América portuguesa (Fazenda de Santa Cruz, Rio de Janeiro, Brasil, 1596-1759)”. Comunicação
apresentada na Conferência de História Rural, Girona, 2015, painel 39.
18
Cabe uma observação: nos dados referentes aos cativos enviados a partir da região do arroz africano, há
diversas lacunas, com zero escravos enviados ao sudeste da América portuguesa. Isso prejudica nossa
interpretação, pois tais valores são praticamente impossíveis. Ainda assim, nos períodos em que há dados
disponíveis, percebemos a considerável inferioridade numérica em relação às demais regiões de embarque
de cativos, o que, por seu lado, reforça a nossa argumentação.
19
PESAVENTO, Fabio. Um pouco antes da Corte..., pp. 80-81.
203
comercial de arroz não fez desaparecer aquela utilização atada ao rés-do-chão,
relacionada à vida material da população e que envolvia provavelmente até mesmo
espécies selvagens do cereal20. Como foi atestado em um documento da época, em
Curitiba, sujeita então à capitania de São Paulo, deveria ser promovida
[...] geralmente a agricultura e com especialidade as produções próprias do
país, que os são da primeira necessidade para a subsistência dos moradores ou
tem uma infalível exportação para fora, como é o trigo, a farinha de mandioca,
arroz, café, algodão etc.21
Tal argumentação sobre a capitania paulista complementa o que vimos sobre a
produção de arroz no Rio de Janeiro, muitas vezes relacionada a um cultivo em menor
escala, a um mercado e consumo locais. Ainda que pudesse ser exportado e que sua
produção comercial tivesse sido incentivada, haja vista a situação imperial e atlântica, o
arroz também fazia parte das roças dos pequenos lavradores, como item cultivado para a
subsistência das famílias, dos escravos ou ainda, possivelmente, para uma
comercialização restrita. Tais fatores podem contribuir para a discussão sobre a tese do
arroz negro, pois, aqui, mesmo cultivado com o auxílio de alguns cativos, era um item
conhecido desde o início da colonização, parte das roças dos pequenos lavradores,
provavelmente cultivado de forma rústica em terrenos úmidos ou em sequeiro, sem
grandes aportes tecnológicos. O cultivo não demandou, portanto, muitos conhecimentos
agronômicos, para além daqueles que alguns portugueses possuíam e que desenvolveram
na América lusa, também em contato com as práticas indígenas. O arroz enquanto item
da vida material das populações luso-americanas nos auxilia a complexificar a discussão
sobre as origens do cultivo de arroz nas Américas. Ele não dependeu apenas dos
conhecimentos dos cativos, também quando cultivado pelos pequenos produtores. Nesse
caso, difere daquele cultivo intensivo levado a cabo pelos escravos em distintas partes da
20
Sobre o arroz para as tropas, ver “Relação do q’ se deve apromptar no Porto de Araraytaguaba p.a a
conducta do Brigadr.o José Custodio de Sá e Faria, Off.es e mais Tropas q’ o acompanhar p.a a Praça de
Guatemy” in Documentos Interessantes para a História e Costumes de S. Paulo. Volume VIII. Yguatemy.
São Paulo: Typographia Aurora, 1895, p. 147. Ver também BELLOTTO, Heloísa L. Autoridade e conflito
no Brasil colonial: o governo do Morgado de Mateus em São Paulo (1765-1775). São Paulo: Conselho
Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1979, pp. 221-222. Sobre a produção de arroz, provavelmente para
subsistência, desde o século XVI em São Paulo e para sua importância comercial durante o século XVIII
na capitania, ver HOLANDA, Sérgio B. de. “O arroz em São Paulo na Era Colonial” in COSTA, Marcos
(org.). Sérgio Buarque de Holanda: escritos coligidos: livro I, 1920-1949. São Paulo: Editora
Unesp/Fundação Perseu Abramo, 2011, pp. 340-345.
21
CASTRO E MENDONÇA, António Manoel de M. “Documento deque faz menção a carta supra” in
Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo. Ofícios do capitão general Antônio
Manoel de Melo Castro e Mendonça (governador da capitania). 1797-1801. Vol. 87. São Paulo:
Departamento do Arquivo do Estado de São Paulo/Secretaria da Educação, 1963, p. 95.
204
América, bem como daquela cultura baseada em de mão-de-obra camponesa da Península
Itálica22.
Contudo, a capitania de São Paulo traz mais informações à discussão. Temos uma
localidade que se especializou na cultura de arroz na região, o Vale do Ribeira, com uma
produção comercial que utilizou mão-de-obra escravizada. Mesmo que sua produção não
tenha sido exportada para fora da América, serviu, ao menos, para abastecer a cidade do
Rio de Janeiro em fins do século XVIII e durante parte do século XIX. Produzido em
escala comercial, o arroz não foi um item cultivado de saída, mas ganhou força em fins
do século XVIII na esteira da política de diversificação posta em marcha pela Coroa
portuguesa e materializada na ação governativa de atores como o Morgado de Mateus ou
Lobo de Saldanha23.
A colonização do Vale do Ribeira remonta ao século XVI, ao período inicial da
ocupação e exploração portuguesa na América. Em um primeiro momento, e com força
até o final do século XVII, a região se firmou economicamente por meio da exploração
de metais preciosos e, mais tarde, da indústria de construção naval, já no século XVIII.
Todavia, foi a rizicultura, em fins do Setecentos, que marcou definitivamente o ambiente
e a sociedade locais, configurando, nas palavras de Agnaldo Valentin, uma “civilização
do arroz” 24.
22
Os cativos possivelmente utilizados na rizicultura dessa região, segundo a tabela 1, não provinham, em
sua maior parte, da região do arroz africano. Para um texto que discute o espaço das fazendas mistas na
economia colonial, também produtoras de arroz, ver ARRUDA, José Jobson de A. “A essencialidade
agropastoril da economia colonial: a fazenda mista paulista”. História (São Paulo), Franca/Assis, v. 39,
2020.
23
Ver VALENTIN, Agnaldo. Uma civilização do arroz: agricultura, comércio e subsistência no Vale do
Ribeira (1800-1880). 2006. 400 p. Tese (Doutorado em História Econômica). FFLCH/USP, São Paulo,
2006, passim; VALENTIN, Agnaldo. “Comércio marítimo de abastecimento: o porto de Iguape (SP), 1798-
1880”. Cadernos de Resumos do V Congresso Brasileiro de História Econômica, Caxambu, 2003, pp. 1-9;
também BELLOTTO, Heloísa L., op. cit., passim, principalmente as pp. 216-223. Por fim, sobre a ação de
outro governador, ver LEITE, Lorena. ‘Déspota, tirano e arbitrário’: o governo de Lobo de Saldanha na
capitania de São Paulo (1775-1782). Jundiaí: Paco Editorial, 2018. Em 1767, o então governador de São
Paulo, o Morgado de Mateus, ao escrever uma missiva ao diretor da aldeia de São João de Guarulhos, o
instruiu: “Depois disto Vossa mercê apontará se podem haver aí madeiras, ou plantação de arroz, que se
transporte para o Reino”. Sinal de que a produção arrozeira não deveria ficar restrita ao consumo dos
colonos, garantindo a subsistência dos habitantes da metrópole. Trata-se de um documento colonial que
comprova parte do que vimos expondo até aqui – ver MOURÃO, Luiz António de S. B. “Para o director
da Aldéa de S. João dos Guarulhos” in Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo.
Ofícios do Capitão General D. Luiz Antonio de Souza Botelho Mourão (Morgado de Mateus) aos diversos
funcionarios da Capitania. 1766-1767. Vol. LXVII. São Paulo: Tipografia do Globo, 1943, pp. 162-163.
Para um documento em que o governador citou a falta de itens no Reino e, logo em seguida, citou o arroz
colonial, ver MOURÃO, Luiz António de S. B. “Para o mesmo [João da Sylva Pinheiro, da Comarca de
Parnaguá]” in Documentos Interessantes... Vol. LXVII..., pp. 165-166.
24
VALENTIN, Agnaldo. Uma civilização do arroz..., passim; VALENTIN, Agnaldo. “Comércio
marítimo...”, pp. 2-3; também PAES, Gabriela S. M. “Os negros d’água do rio Ribeira de Iguape: mito e
205
Para compreender tal mudança na configuração econômica do Vale do Ribeira,
devemos considerar que, em fins do século XVIII, a capitania de São Paulo passou por
consideráveis transformações. Ela havia sido tolhida de diversos territórios após as
descobertas das minas no final do século XVII e início do século XVIII e, em 1748,
perdeu sua autonomia administrativa, ficando sujeita à capitania do Rio de Janeiro.
Todavia, em 1765 a situação mudou por meio da autonomia novamente conferida à região
pela Coroa portuguesa e a nomeação de dom Luís António de Souza Botelho Mourão, o
conhecido Morgado de Mateus, como capitão general. Governando a capitania entre 1765
e 1775, Botelho Mourão foi responsável por diversas medidas reformistas, no bojo das
propostas pombalinas já destacadas, envolvendo as finanças, a defesa e ainda a estrutura
administrativa da região. Nesse contexto, a economia paulista não foi esquecida, tendo
sido alvo de medidas de incentivo em suas diversas facetas, tais como na mineração de
ferro e na produção agrícola para subsistência e exportação. Sobre a última, como
exemplo, foi planejada a remessa de arroz a Portugal a partir do porto de Santos. A
produção do cereal, no final desse século ou no início do XIX, existia em diversas
localidades da capitania, desde Iguape até Ubatuba25.
É nesse quadro que compreendemos o início da produção de arroz no Vale do
Ribeira, região que reunia condições ambientais propícias à cultura do cereal, cultivado
nas margens do rio Ribeira. É também a partir das medidas de incentivo metropolitanas
e da ação de seus representantes na América lusa que entendemos como a produção de
arroz no Vale se inseriu naquele quadro de diversificação agrícola e de melhoramentos
técnicos proposto pela monarquia portuguesa26. Por sua vez, tais medidas e a ação dos
história numa narrativa elaborada por comunidades negras do Vale do Ribeira”. Revista Brasileira de
História, São Paulo, v. 39, n. 81, 2019, p. 74. Segundo documento da época, a vila de Paranaguá, próxima
ao Vale do Ribeira, possuía uma “Produção infinita do melhor arroz” – ver LORENA, Bernardo José de.
“P.a o Secretario d’ Estado” in Publicação Official de Documentos Interessantes para a História e
Costumes de S. Paulo. Volume XLV. Correspondencia recebida e expedida pelo General Bernardo José de
Lorena, Governador da Capitania de S. Paulo, durante o seu Governo. 1788=1797. São Paulo: Duprat &
Comp., 1924, p. 208.
25
Ver BELLOTTO, Heloísa L., op. cit., p. 28-31, 49-50 e 87-261. Ver também MICHELI, Marco V.
“Diversificação econômica na capitania de São Paulo: o perfil econômico das vilas do litoral norte e sul
(1798-1821). Faces da História, Assis, v. 5, n. 1, 2018, passim. Ainda MATTOS, Renato.
“Problematizando a ‘decadência’ paulista: a complexa inserção de São Paulo nas redes mercantis do
Império português (1765-1808)”. HISTOReLo – Revista de Historia Regional y Local, Medellín, v. 6, n.
11, 2014.
26
Conforme afirmou Pasquale Petrone, talvez com ecos na história pregressa da região, “A lavoura de arroz
está ligada ao rio, pois localiza-se nas áreas de vargedos inundáveis. O fato do cultivo ser feito diretamente
no terreno, sem replante, o renovar-se anualmente a plantação precedendo-a com a queimada, sem
preocupação com manter limpo o campo de cultivo; a pequena atenção que se dá à própria ‘limpa’ do
arrozal, permitindo-se que as ervas daninhas se desenvolvam a vontade; a ausência de técnicas no sentido
206
administradores relacionadas ao arroz foram possíveis graças às mudanças na forma de
pensar a economia e às oportunidades criadas pelo mercado de arroz.
O arroz produzido nessa região, ao redor de sua mais importante vila, Iguape, foi
o responsável por remessas destinadas ao Rio de Janeiro e a Santos, além de ter sido
utilizado, provavelmente, na alimentação local, de homens livres e de escravos. Sua
produção foi de menor escala quando comparada à de outras regiões da América lusa,
mas sua análise não deixa de ser relevante. O arroz, aqui, foi uma produção central de
toda uma região, dinamizador da agricultura local até o final do século XIX. Mesmo que
em uma escala menor, a produção do cereal foi fundamental no Vale, criando um
interessante quadro de observação27.
Quanto à quantidade de arroz produzida e exportada em Iguape, em 1798, em um
período ainda marcado pelas políticas metropolitanas de diversificação produtiva, 11.070
alqueires de arroz (socado e em casca) foram exportados da vila, o que conformaria uma
exportação de 18.460 arrobas de arroz. De acordo com Corsino dos Santos, nesse mesmo
ano, 11.075 arrobas de arroz foram exportadas de São Paulo para Portugal, o que pode
significar que parte da exportação de Iguape foi destinada a outros locais, talvez à própria
cidade do Rio de Janeiro. Por outro lado, entre as décadas de 1820 e 1880, quando a
produção rizicultora local já estava consolidada, mesmo fugindo de nosso recorte
cronológico, as quantidades exportadas no porto de Iguape saíram de cerca de 50.000
alqueires (83.379 arrobas) em uma data próxima a 1829 para 80.000 (133.406 arrobas)
em aproximadamente 1847, chegando a cerca de 150.000 alqueires (250.137 arrobas) por
volta de 1856, e atingiram, por fim, cerca de 70.000 alqueires (116.731 arrobas) por volta
de 1881. Tais considerações fogem às nossas questões e aos problemas aqui debatidos,
mas demonstram o sucesso do cultivo na região28.
de aproveitar racionalmente as águas das cheias, assim como a colheita, feita, normalmente, a canivete, são
todos elementos que caracterizam o primitivismo da cultura, e contribuem para distingui-la dos arrozais das
áreas de lavoura intensiva do tipo chinês, por exemplo. Como cultura de vargedos, o arroz dispõe-se, no
caso em questão, entre o rio, de um lado, e a mata ou o ‘jundu’ de outro lado [...]” – ver PETRONE,
Pasquale. “Notas sôbre os sistemas de cultura na baixada do Ribeira, SP”. Boletim Paulista de Geografia,
São Paulo, n. 39, 1961, p. 59. De toda forma, destacam-se as condições ambientais propícias ao cultivo do
cereal.
27
VALENTIN, Agnaldo. “Comércio marítimo de abastecimento...”, pp. 4 e 9; também SANTOS, Corsino
M. dos. “Cultura, indústria e comércio de arroz no Brasil colonial”. RIHGB, Rio de Janeiro, n. 318, 1978,
p. 57.
28
Ver MICHELI, Marco V., op. cit., pp. 205 e 208; também SANTOS, Corsino M. dos. “Cultura, indústria
e comércio de arroz...”, p. 56; VALENTIN, Agnaldo. “Comércio marítimo de abastecimento...”, p. 19.
Consideramos que um alqueire valia 24,18 quilogramas e uma arroba valia 14,5 quilogramas – ver
BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina. Volume 1. América Latina Colonial. 2ª ed. São
207
Tendo tal configuração em vista, o que podemos dizer sobre a mão-de-obra
utilizada na produção? Se o arroz, na região, foi o principal dinamizador econômico a
partir de fins do século XVIII, como podemos entender as condições laborais de sua
produção? O arroz foi cultivado nas margens de um importante rio, aproveitando a tão
necessária água na cultura do cereal. Mas, para a organização produtiva, o conhecimento
dos cativos contou? Nossas exposições anteriores já nos dão uma parte da resposta, pois
o sudeste da América lusa não recebeu muitos cativos da região do arroz africano e nisso
também se encaixou o Vale do Ribeira. Segundo diversos autores, a maior parte dos
escravos aí utilizados veio, de fato, da região do Congo e Angola. Como argumentou
Gabriela Paes:
Os comerciantes do Vale do Ribeira buscavam os cativos no Rio de Janeiro.
Grande número de africanos procedia da África Centro-Ocidental, é o que
mostram os Maços de População de Xiririca para o ano de 1806. Apesar de a
maioria dos escravizados dessa localidade ser nascida no Brasil, 32 cativos
eram africanos. Desse total, 31 eram provenientes da África Centro-Ocidental
(12 cativos oriundos de Angola, 18 de Benguela e um do Congo) (Paes, 2007,
p. 35) [...] Mesmo num período anterior, dada a intensidade e a relevância do
comércio escravista na África Centro-Ocidental, a quantidade de africanos
dessa região levados ao Vale do Ribeira parece ter sido expressiva 29.
Paulo; Brasília: EDUSP/Fundação Alexandre de Gusmão, 2012, p. 12; LUNA, Francisco V.; KLEIN,
Herbert S. “Nota a respeito de medidas de grãos utilizadas no período colonial e as dificuldades para a
conversão ao sistema métrico”. Boletim de História Demográfica, São Paulo, ano VIII, n. 21, 2001.
29
PAES, Gabriela S. M., op. cit., p. 78.
30
Ver VALENTIN, Agnaldo. “Comércio marítimo de abastecimento...”, p. 3. Para mais informações sobre
a região, ver VALENTIN, Agnaldo. “Entre o chuço e o remo: agricultores e caiçaras no Vale do Ribeira
(1800-1880)”. Caderno de resumos do XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, Caxambu,
2006. Também SCATAMACCHIA, Maria Cristina M. “Arqueologia do antigo sistema portuário da cidade
de Iguape, São Paulo, Brasil”. Revista de Arqueología Americana, Ciudad de Mexico, n. 22, 2003.
208
São Paulo demonstra necessárias adequações à tese do arroz negro, mas de nenhum modo
possibilitam conclusões peremptórias sobre a discussão.
31
Para dados sobre a produção da região, consultar ARRUDA, José Jobson de A. O Brasil no comércio
colonial..., pp. 395-396. As divisões administrativas na América lusa são mais antigas: no início do século
XVII, por exemplo, foi fundado o Estado do Maranhão – ver CHAMBOULEYRON, Rafael. “Conquistas
diferentes e de diferentes climas: o Maranhão, o Brasil e a América portuguesa (séculos XVII e XVIII)”.
Esboços, Florianópolis, v. 26, n. 41, 2019.
32
Ver ARRUDA, José Jobson de A. “A economia brasileira no fim da época colonial: a diversificação da
produção, o ganho de monopólio e a falsa euforia do Maranhão”. Revista de História, São Paulo, n. 119,
1985/1986/1987/1988, pp. 4, 13 e 19-21; ARRUDA, José Jobson de A. O Brasil no comércio colonial...,
p. 246; também ARRUDA, José Jobson de A. “Decadência ou crise do império luso-brasileiro: o novo
padrão de colonização do século XVIII”. Revista USP, São Paulo, n. 46, p. 69.
33
HAWTHORNE, Walter. From Africa to Brazil: culture, identity, and Atlantic slave trade, 1600-1830.
New York: Cambridge University Press, 2010, pp. 28-29 e 33; MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal:
paradoxo do iluminismo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1997, pp. 52-54. Sobre o contrabando botânico,
209
Por outro lado, a base econômica da ocupação sofreu importantes transformações.
De início, houve a busca pelas drogas dos sertões, atividade predatória, de pouca
tecnologia e que envolveu o uso de mão-de-obra indígena. Contudo, após as medidas
reformistas tomadas a partir de 1750, novos cultivos tomaram a dianteira na pauta
produtiva local, contemporâneas às transformações no suprimento de mão-de-obra para
os campos. No caso do Maranhão, entre 1796 e 1811, o algodão e o arroz lideraram a lista
de exportações da capitania, seguidos pela cera, vaquetas, couro, farinha, entre outros
itens. No caso do Pará, no mesmo período, a pauta de exportações, em ordem de
importância, englobava o cacau, algodão, arroz, cravo fino, café etc. Sem dúvida, foi no
caso do Maranhão, ao redor de seus rios aptos à cultura, que a produção de arroz obteve
seu terreno mais fértil na América portuguesa de fins do século XVIII34.
A região norte da América portuguesa variava consideravelmente de sua
contraparte ao sul. Separadas por centenas de léguas de território, as duas porções da
colônia também tinham sua comunicação marítima dificultada pelas correntes oceânicas,
fazendo com que as relações do norte com a capital metropolitana, Lisboa, fossem mais
eficientes e rápidas do que com o resto da América lusa. Junto a isso, a região norte seguiu
outros passos em sua configuração econômica, muitas vezes definidos por uma ecologia
variada e certas vezes pouca afeita à agricultura – como em alguns terrenos pobres e
longínquos. Em um primeiro momento, essa zona de colonização atraiu a atenção de
diversas potências europeias durante os séculos XVI e XVII. Mas os portugueses
conseguiram efetivar sua posição de poder e passaram a explorá-la economicamente,
vencendo assim a competição com franceses e holandeses pela região. A primeira
tentativa de organização econômica envolveu a utilização de mão-de-obra indígena e a
extração de variadas drogas do sertão local. Valorizadas nos mercados europeus, tais
artigos eram colhidos e transportados pelos indígenas, que os conheciam há muito tempo,
ver POMBO, Nívia. “As ‘riquezas do mundo’ – cobiça e ciência nos jardins botânicos de Caiena e Belém
do Pará (1790-1803)”. Navigator, Rio de Janeiro, v. 6, n. 11, 2010.
34
Ver HAWTHORNE, Walter. From Africa to Brazil..., pp. 31-32 e 45-54; também ARRUDA, José Jobson
de A. O Brasil no comércio colonial..., pp. 248, 266 e 393-396; MAXWELL, Kenneth. Marquês de
Pombal: paradoxo do iluminismo..., pp. 132; BARROSO JÚNIOR, Reinaldo dos S. “O arroz de Veneza e
os trabalhadores de Guiné: a lavoura de exportação do Estado do Maranhão e Piauí (1770-1800)”. Outros
Tempos, São Luís, v. 8, n. 12, 2011, p. 112; e ALDEN, Dauril. “O período final do Brasil Colônia: 1750-
1808” in BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina. Volume 2. América Latina Colonial. São
Paulo e Brasília: EDUSP e FUNAG, 2004. Ver também CHAMBOULEYRON, Rafael. “Conquistas
diferentes e de diferentes climas...”, pp. 92-93. A ideia de que a diversificação agrícola envolvia a disputa
com outros poderes europeus tem uma de suas raízes no século XVII – ver CHAMBOULEYRON, Rafael.
“Conquistas diferentes e de diferentes climas...”, pp. 96-97.
210
e mais tarde enviados à Europa. Conciliavam-se assim as condições ambientais, propícias
à existência daquelas drogas, e a demografia local, garantidora de mão-de-obra barata e
com úteis conhecimentos laborais35.
Todavia, ainda assim a região deixava a desejar quando comparada a outros locais
mais pujantes dos domínios lusos no início do século XVIII: o nordeste possuía seus
extensos canaviais e o açúcar ali produzido era enviado a Portugal, ao passo que o centro-
sul da colônia descobrira as jazidas de ouro na região das Minas Gerais. Para piorar o
quadro, a mão-de-obra utilizada no norte da América portuguesa, predominantemente
indígena, apresentava sinais de esgotamento, devidos aos constantes apresamentos e ao
alastramento de doenças trazidas pelos colonos36.
Tal quadro somente seria transformado a partir da segunda metade do século
XVIII, quando as medidas de incentivo metropolitanas, calcadas na valorização da terra
e da produção imperial, e a crise nos mercados de commodities abriram uma janela de
oportunidade para a região. O arroz exerceu um papel nessa considerável mudança e o
local passou por uma transformação demográfica quanto à organização da mão-de-obra
para os campos. Se desde o início da colonização, a força de trabalho indígena
predominou nas expedições extrativistas e nas tentativas agrícolas realizadas, tal
realidade foi transformada na segunda metade do Setecentos com a chegada de escravos
africanos. Não podemos compreender todas essas mudanças sem fazer referência à
política econômica portuguesa, aos planos ilustrados e às condicionantes do mercado
mundial. Somente a inter-relação entre todas essas facetas nos permite entender o que
ocorreu nesse local e nos demais aqui analisados. Havia problemas econômicos que
atingiam o império português após a queda da extração de metais no centro-sul colonial,
o que deu ímpeto a diversas medidas reformistas e teorizações sobre a organização
35
Ver BARROSO JÚNIOR, Reinaldo dos S. Nas rotas do atlântico equatorial: tráfico de escravos
rizicultores da Alta Guiné para o Maranhão (1770-1800). 2009. 199 p. Dissertação (Mestrado em História).
UFBA, Salvador, 2009, pp. 51-58; FONSECA, André Augusto da. “Reformismo ilustrado na Amazônia
portuguesa: constrangimentos econômicos, ambientais e tecnológicos (1755-1799)”. X Congresso
Brasileiro de História Econômica/XI Conferência Internacional de História de Empresas, Juiz de Fora,
2013, s/p; HAWTHORNE, Walter. From Africa to Brazil..., pp. 26-27 e 32; CARDOSO, Alírio
“Especiarias na Amazônia portuguesa: circulação vegetal e comércio atlântico no final da monarquia
hispânica”. Tempo, Niterói, v. 21, n. 37, 2015, pp. 119 e 122-129; por fim, ARRUDA, José Jobson de A.
“A economia brasileira no fim da época colonial...”. Contudo, isso não significou que não havia relações
entre o norte da colônia e o sul ou nordeste. A experiência colonial na parte sul do território foi usada em
escritos do norte, como quando havia discursos sobre a escravidão – CHAMBOULEYRON, Rafael.
“Conquistas diferentes e de diferentes climas...”, pp. 89-91.
36
Ver BARROSO JÚNIOR, Reinaldo dos S. Nas rotas do atlântico equatorial..., p. 77; HAWTHORNE,
Walter. From Africa to Brazil..., pp. 32-37.
211
econômica imperial, com uma revalorização do papel da terra e sua produção. Não por
acaso, diversos escritores se dedicaram a assuntos agrícolas e escreveram ou traduziram
muitas obras dedicadas à temática37.
Além disso, a produção nesse quinhão português da América contou com um
período favorável nos mercados europeus. Havia demanda por vários produtos na Europa,
ao mesmo tempo em que as revoltas e revoluções no mundo atlântico quebraram diversas
linhas de suprimento, diminuindo a oferta. Esse foi o caso do arroz britânico da Carolina
do Sul, afetado pelas proibições e entraves criados pela Revolução Americana, ou ainda
aquele do açúcar e café produzidos na colônia francesa de Saint-Domingue, excluídos de
diversos mercados após a eclosão da revolução escrava. Articulados da forma como
vimos nos últimos capítulos, esses foram fatores que contribuíram para a transformação
econômica desta região portuguesa na América38.
Nesse contexto, se o algodão encimou as listas de exportação das duas principais
colônias do norte da América lusa, o Pará e o Maranhão, isso não significou que o papel
reservado ao arroz fosse de pouca monta. Produzido comercialmente e com auxílio
metropolitano desde meados do século XVIII, a produção alcançou patamares elevados
nas duas capitanias: no caso do Pará, conforme o gráfico 4, a exportação atingiu um ápice
de aproximadamente 140.000 arrobas em 1787; no caso do Maranhão, os números
chegaram a quase 380.000 arrobas em 1806. Tais números não podem ser entendidos sem
referência às garantias dadas pela Coroa em relação à produção e comércio do produto,
substanciadas em isenções e proteções ao arroz luso-americano, como vimos no caso do
Rio de Janeiro e que se adequa à presente região. Além disso, foi necessária a
disponibilização de mão-de-obra para os arrozais, condição materializada também por
meio da organização da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão39.
37
HAWTHORNE, Walter. From Africa to Brazil..., pp. 31-54; ver também ARRUDA, José Jobson de A.
“A economia brasileira no fim da época colonial...”, pp. 19-21.
38
Sobre a Revolução na colônia de Saint-Domingue e os impactos por ela trazidos ao mercado mundial de
açúcar e café, ver SOUZA, Isabela R de. O sistema de plantation em tempos de revolução abolicionista:
Saint-Domingue, 1790-1803. Dissertação em andamento (Mestrado em História Social). FFLCH-USP, São
Paulo.
39
HAWTHORNE, Walter. From Africa to Brazil..., pp. 50-51. Sobre essa desvalorização historiográfica
do arroz e outros apontamentos do parágrafo, ver BARROSO JÚNIOR, Reinaldo dos S. “O arroz de Veneza
e os trabalhadores de Guiné: a lavoura de exportação do Estado do Maranhão e Piauí (1770-1800)”. Outros
Tempos, São Luís, v. 8, n. 12, 2011, pp. 110-111. Para considerações sobre a importância econômica de
uma capitania da região, a do Piauí, ver CHAMBULEYRON, Rafael; MELO, Vanice S. de. “Governadores
e índios, guerras e terras entre o Maranhão e o Piauí (primeira metade do século XVIII)”. Revista de
História, São Paulo, n. 168, 2013.
212
Criada em 1755, como parte dos planos mais amplos de Pombal para a
recuperação econômica do império luso, a Companhia teve como um de seus objetivos o
desenvolvimento da região norte dos domínios americanos. Para isso, produtos com
aceitação no mercado europeu foram incentivados, ao passo que foi facilitada a
introdução de mão-de-obra escrava para sustentar tal empreendimento40.
A administração local também teve papel destacado no incentivo à lavoura
arrozeira. Tanto isso é verdade que, no ano de 1752, Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, irmão do marquês de Pombal e responsável pela administração do Estado do
Grão-Pará e Maranhão, escreveu uma carta endereçada ao secretário Diogo de Mendonça
Corte-Real. Nela, elencou os itens produzidos na região sob sua autoridade e, sem
surpresas, o algodão foi notado em primeiro lugar, produzido no Pará e no Maranhão.
Contudo, a riqueza vegetal da região não se resumia a essa matéria-prima. Segundo
Furtado, também o arroz encontrava espaço nos terrenos41 e
[...] podia dar tanta ou maior utilidade que o açúcar, pelo grande consumo que
tem no Reino, e no seu transporte tirava a Nação e a Coroa o lucro de haver
mais navios, e em consequência, mais fretes e maior número de marinheiros.
O arroz se fabrica, nestas Capitanias, em todas as terras alagadiças, nas quais
se dá muito melhor que nas outras, porque [dá] nestas duas e três novidades
cada ano.
No Maranhão se tem experimentado que o arroz a que chamam de Veneza é o
de melhor produção, e o mais fácil de descascar. A lavoura deste gênero podia
ser de grande utilidade aos lavradores, se, assim como fabricam a terra com
enxada, a beneficiassem com arado de que nestas terras ninguém se serve;
porque lhes ficava mais fácil o trabalho. O produto do arroz, nas piores terras,
cada alqueire de semente dá 30 de novidade (produção e colheita), chegando a
dar 100 nas terras mais naturais deste gênero42.
40
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo..., pp. 59-61 e 97; BARROSO
JÚNIOR, Reinaldo dos S. Nas rotas do atlântico equatorial..., pp. 28-29 e 35. Para uma avaliação negativa
sobre o papel e eficiência da Companhia, ver SHIKIDA, Cláudio D. “Apontamento sobre a Economia
Política da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão”. Revista de Economia e
Administração, São Paulo, v. 6, n. 2, 2007.
41
FURTADO, Francisco Xavier de M. “Carta a Diogo de Mendonça, dando, em cumprimento ao disposto
no § 26 das suas Instruções, notícia dos 39 gêneros produzidos no Estado...” in MENDONÇA, Marcos C.
de. A Amazônia na Era Pombalina. 1º tomo. Correspondência do governador e capitão-general do Estado
do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado – 1751-1759. 2ª edição. Brasília: Senado
Federal, Conselho Editorial, 2005, pp. 268-275.
42
FURTADO, Francisco Xavier de M. “Carta a Diogo de Mendonça...”, pp. 270-271.
213
diversificação produtiva, a melhoria do comércio e a garantia de alimentos para a
população do Reino. Mas isso não foi tudo. Respondendo a esses desenvolvimentos
notados no ano de 1752, algumas décadas mais tarde diversos escritos produzidos na
metrópole foram enviados à região – os textos agronômicos antes analisados – e buscaram
repensar essa realidade já em desenvolvimento. Por mais que não tenham sido a força
instituidora de uma realidade produtiva, sua circulação ocorreu e possivelmente foram
lidos por atores locais. Sinal de que as preocupações metropolitanas com o
desenvolvimento agrícola da colônia prosseguiram no final do século XVIII43.
Podemos entender como a produção do cereal na região pôde se destacar no
conjunto imperial português. Houve um contexto político e econômico que abriu brechas
para que a produção ganhasse terreno, envolvendo desde a situação das finanças imperiais
até os eventos ocorridos no mundo atlântico em fins do século XVIII. E isso se relacionou
mais tarde às práticas ilustradas de incentivo agrícola, materializadas nos livros enviados
à colônia. O ambiente da região, com rios cujas margens podiam ser cultivadas e outras
zonas propícias ao cereal, favoreceu uma cultura de arroz mais produtiva, como foi notado
até mesmo por Mendonça Furtado em 1752. Aqui, portanto, o arroz se tornou um dos
principais itens cultivados e em uma extensão considerável, o que explica o fato de a
região liderar a lista de exportações de arroz na América lusa44.
*
Mas se houve sucesso na produção do cereal, com um ambiente favorável e mão-
de-obra africana oferecida pela Companhia monopolista, qual teria sido o papel dos
cativos na promoção da lavoura arrozeira? O Maranhão e o Pará confirmariam a ideia da
articulação direta entre conhecimentos rizicultores oeste-africanos e a lavoura do cereal
na América, ou podemos somá-los aos casos de São Paulo e Rio de Janeiro? Nesses
43
Sobre o envio de livros, ver GALVES, Marcelo C. “Cultura letrada na virada para os oitocentos: livros
à venda em São Luís do Maranhão”. Anais do XXVII Simpósio Nacional de História: conhecimento
histórico e diálogo social, Natal, v. 1, 2013, pp. 4-11. Sobre o arroz de Veneza, ver BARROSO JÚNIOR,
Reinaldo dos S. “O arroz de Veneza e os trabalhadores de Guiné...”, pp. 112-113. Sobre o “arroz da terra”
e sua utilidade na alimentação de pobres, ver CHERMONT, Theodozio Constantino de O. “Memória sobre
a introdução do arroz branco no Estado do Gram-Pará”. Revista Trimensal do Instituto Histórico,
Geographico e Etnographico do Brazil, Rio de Janeiro, tomo XLVIII, parte I, 1885, p. 79.
44
Sobre os rios da região, zonas produtoras de arroz, ver BARROSO JÚNIOR, Reinaldo dos S. “O arroz
de Veneza e os trabalhadores de Guiné...”, p. 112. Para uma fonte que destaca a existência de máquinas
movidas à força de animais para o beneficiamento do arroz nessa região, ver CHERMONT, Theodozio
Constantino de O., op. cit., pp. 79-84, especialmente as pp. 81-82.
214
últimos, a produção de arroz pôde ocorrer sem a direta articulação com os saberes
africanos.
No que respeita ao tráfico atlântico, a Senegâmbia e outros locais próximos
formavam a região produtora de arroz no oeste da África e esse foi o local que mais supriu
de cativos o norte da América portuguesa entre os anos de 1676 e 1825. No final do século
XVIII, que mais nos interessa no momento, o número de cativos vindos daquela paragem
africana era mais do que o dobro daqueles vindos da África ocidental, que liderava o
suprimento de escravos para as demais regiões da América lusa.
A tese do arroz negro parece se adequar de boa forma a esse local dos domínios
luso-americanos. O cultivo de arroz teria contado com a experiência dos cativos
rizicultores e, talvez, os próprios atores locais, donos de propriedades e comerciantes de
cativos, valorizassem esse conhecimento e oferecessem ou utilizassem cativos daquela
região africana na lavoura. Chegaríamos à conclusão de que, se houve o desenvolvimento
de arrozais sem o auxílio direto da experiência africana nas capitanias de São Paulo e do
Rio de Janeiro, também pode ter ocorrido uma contribuição para o desenvolvimento da
rizicultura na região amazônica, possivelmente reconhecida e buscada pelos atores que
organizavam o mundo produtivo naquelas paragens45.
Mas realmente houve uma decisão deliberada de importar aqueles escravos? As
ações da Companhia monopolista teriam sido guiadas somente pelo anseio dos senhores
rizicultores? Se o algodão liderava as exportações, seriam os produtores de arroz capazes
45
Para variações desse argumento, ver, por exemplo, BARROSO JÚNIOR, Reinaldo dos S. “O arroz de
Veneza e os trabalhados de Guiné...”; ou ainda HAWTHORNE, Walter. “From ‘Black Rice’ to ‘Brown’:
rethinking the history of risiculture in the seventeenth- and eighteenth-century Atlantic”. The American
Historical Review, Bloomington, v. 115, n. 1, 2010.
215
de determinar o fluxo de cativos para aquela região? Por fim, mesmo com aqueles cativos
vindos das zonas africanas do arroz, a rizicultura somente se desenvolveu graças a eles?
Há menções à preferência de administradores por cativos provenientes da
Senegâmbia e adjacências, que poderiam aumentar a produtividade agrícola do Grão-Pará
e Maranhão. Mas se isso aparecia nos discursos da época, é difícil concluir se os cativos
realmente contribuíram com algo, visto que havia povos daquela região africana que não
praticavam a rizicultura e podiam estar englobados nas remessas destinadas ao norte da
América lusa. Podem ter sido escravizados e vistos como experientes na produção de
arroz, mas não teriam muito com o que contribuir. Ou seja, mesmo que os senhores e
administradores realmente tenham privilegiado cativos daquela região, as dinâmicas do
tráfico, envolvendo a diminuição de custos e a oferta africana, não garantiriam que só
cativos rizicultores seriam enviados à América e que as preferências dos compradores
determinassem tudo. Como argumentaram Eltis, Morgan e Richardson, nem todos os
cativos vindos da Alta-Guiné seriam rizicultores, pois lá também havia povos que se
dedicavam a outras produções46.
Ainda é preciso considerar o regime de ventos e correntes que fazia com que
houvesse uma “natural” ligação entre as duas regiões, entre o norte da América e a região
do arroz na África. Novamente, portanto, a ligação entre as duas regiões não teria sido
tecida pelas preferências pessoais dos senhores e dos administradores, mas pelas
condições ditadas pela natureza atlântica, pela oferta na África e pelo interesse dos
comerciantes em diminuir custos47.
Não se trata de negar absolutamente qualquer contribuição cativa ao
desenvolvimento da rizicultura nessa região e noutras da América, mas criticar uma
transferência direta de todo um conhecimento oeste-africano ao Novo Mundo, que pôde
ter permanecido intacto e conferido quase todas as bases à produção de arroz nas regiões
americanas. Também devemos analisar a organização do tráfico, para entender como os
46
BARROSO JÚNIOR, Reinaldo dos S. “O arroz de Veneza e os trabalhadores de Guiné...”, pp. 117-124;
ver também ELTIS, David; MORGAN, Philip; RICHARDSON, David. “Agency and diaspora in Atlantic
History: reassessing the African contribution to rice cultivation in the Americas”. The American Historical
Review, Bloomington, v. 112, n. 5, 2007, pp. 1339-1340, 1345-1346. Para uma autora que defende o papel
dos cativos na organização da rizicultura americana, ver, por exemplo, HALL, Gwendolyn M. “África e
africanos na diáspora africana: os usos de bancos de dados relacionais”. Topoi, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21,
2010. Somente esse artigo de Hall, para além do livro de Carney, foi traduzido ao português no âmbito do
debate sobre o arroz negro. Isso reflete algumas tendências atuais da historiografia brasileira.
47
BARROSO JÚNIOR, Reinaldo dos S. Nas rotas do atlântico equatorial..., pp. 51-58; ELTIS, David;
MORGAN, Philip; RICHARDSON, David. “Agency and diaspora...”, p. 1335.
216
fluxos foram constituídos ao longo dos anos. Com a análise das três regiões aqui
apresentadas, pudemos ver como a rizicultura colonial portuguesa pôde ocorrer sem a
presença de cativos africanos especializados naquela cultura, e isso não significa que não
houve nenhuma contribuição dos escravos ao cultivo, mas que tal presença não foi
essencial e determinante. Como argumentou Walter Hawthorne, isso não desmerece
totalmente as ideias de Carney e dos que esposam a tese do arroz negro, pois a produção
de arroz, principalmente em locais influenciados por marés, pôde ter contado com a
experiência de cativos que conheciam essa cultura há um bom tempo. De qualquer forma,
não acreditamos que, sem aquele conhecimento, a cultura do cereal não teria se
desenvolvido nas diversas partes do Novo Mundo48.
É preciso considerar que o arroz era conhecido há muito tempo na Europa, sendo
produzido em escala comercial desde o século XV na Península Itálica, nas margens do
Rio Pó. Alguns europeus, portanto, também sabiam como funcionava a cultura do cereal.
É preciso levar em conta a demanda crescente por produtos alimentícios que fazia girar a
economia atlântica. Ecoando as palavras de Coclanis, os africanos também conheciam o
sorgo, mas ele não se tornou um item essencial à economia atlântica e, assim, não invadiu
os campos produtivos americanos. Somente o conhecimento dos cativos e seus desejos
de afirmação em um novo local não explicam os desenvolvimentos ocorridos na
produção. A agência dos cativos existiu, assim como podem ter existido preferências
senhoriais por cativos vistos como mais aptos à cultura do arroz, mas, como
argumentaram Eltis, Morgan e Richardson, o tráfico atlântico e a organização produtiva
americana são mais complexos, indo além de decisões individuais ou de pequenos grupos:
o tráfico envolveu a realidade africana (suas guerras e rivalidades internas) e as decisões
tomadas por comerciantes em busca de lucros e pelos poderes europeus. A produção
americana abrangeu a configuração do ambiente no Novo Mundo e também as decisões
tomadas pelas metrópoles, como visto no caso da diversificação produtiva ocorrida na
América lusa. Envolveu um jogo de poder intrínseco à colonização europeia e à
escravidão49.
48
Para a base de nosso argumento, ver ELTIS, David; MORGAN, Philip; RICHARDSON, David. “Agency
and diaspora...”, passim, especialmente as pp. 1329-1335, 1353-1354 e 1356-1357; também
HAWTHORNE, Walter. “From ‘Black Rice’ to ‘Brown’...”, pp. 162-163.
49
ELTIS, David; MORGAN, Philip; RICHARDSON, David. “Agency and diaspora…”, pp. 1335-1346 e
1352-1357. Ver também COCLANIS, Peter. “Global perspectives on the early economic history of South
Carolina”. The South Carolina Historical Magazine, Charleston, v. 106, n. 2/3, 2005, pp. 137 e 139-140.
Enfim, MAX-EDELSON, S. “Beyond ‘Black Rice’: reconstructing material and cultural context for early
217
Como, então, explicar o desenvolvimento da cultura de arroz? Houve
improvisações na América, envolvendo capital e ideias europeias, ideias africanas e o
ambiente do Novo Mundo. A relação entre todos esses fatores nos auxilia a compreender
como o arroz pôde crescer em terrenos secos e úmidos em várias regiões americanas. E
não podemos esquecer as próprias dinâmicas da colonização, envolvendo poder político
e econômico, pois não foi à toa que a produção de arroz ganhou mais terreno justamente
quando, em nosso caso, Portugal percebeu a necessidade de diversificar a produção50.
Na base de tudo, no caso das possessões lusas na América, se a discussão sobre o
que tornou possível a produção de arroz envolve o debate sobre a contribuição cativa, não
podemos nos esquecer daquele quadro mais amplo. Foram as oportunidades criadas pelo
mercado mundial do cereal e as transformações no modo de pensar a economia que
tornaram possível a produção na América portuguesa. Para que tudo engrenasse bem no
campo produtivo, entraram em cena aquelas condições expostas: conhecimentos, capital
e ambiente propício à cultura. É essa articulação entre condições mais amplas e outras
vinculadas ao local que explica o desenvolvimento da lavoura rizicultora na América
portuguesa em fins do século XVIII.
plantation agriculture”. The American Historical Review, Bloomington, v. 115, n. 1, 2010, pp. 130-133.
BARROSO JÚNIOR, Reinaldo dos S. “O arroz de Veneza e os trabalhadores de Guiné...”, pp. 121-124.
50
ELTIS, David; MORGAN, Philip; RICHARDSON, David. “Agency and diaspora…”, pp. 1335, 1353-
1354 e 1357; COCLANIS, Peter. “Global perspectives…”, pp. 134 e 139-140.
218
CONCLUSÃO
1
Conferir BERBEL, Marcia; MARQUESE, Rafael de B.; PARRON, Tâmis. Escravidão e Política: Brasil
e Cuba, c. 1790-1850. São Paulo: Hucitec & Fapesp, 2010, pp. 11-93.
219
É nesse contexto de mudanças em que a agricultura foi avaliada, e,
especificamente, as ideias sobre a produção de arroz passaram por importantes
discussões. As condições ditadas pelo mercado mundial do cereal e pelas transformações
no pensamento econômico trouxeram à tona dois resultados. Por um lado, o efetivo
cultivo de arrozais em distintas porções da América lusa. Por outro, uma produção de
escritos agronômicos, cujo objetivo foi refazer a rizicultura – já estabelecida na América
– de modo mais racional, segundo os seus proponentes.
Empreendemos, em primeiro lugar, a análise de diversos escritos dedicados à
reforma agrícola da produção colonial, um dos resultados daqueles processos. Se tais
textos não puderam ser vistos de modo isolado, haja vista aquelas mudanças materiais e
mentais, também trouxeram considerações novas. Especificamente, trouxeram à tona a
busca pela diversificação agrícola e a melhoria dos processos técnicos na América lusa,
uma tentativa de racionalização da realidade produtiva. Ao fazerem isso, também
ilustraram a tentativa de emulação e o modo como uma das potências do sistema atlântico
ibérico, Portugal, buscou resolver problemas e propor novidades a partir de experiências
alheias. Mais um sinal da imbricação de duas realidades sistêmicas, ilustrando a
“contemporaneidade do não contemporâneo”2.
Demonstramos como a agricultura e o arroz se tornaram parte das discussões
ilustradas sobre reforma agronômica e debatemos o espaço dedicado ao arroz nesses
escritos. Provavelmente, por ser um cereal de relativa importância na dieta lusa e ter boa
parte de suas técnicas produtivas conhecidas havia séculos, não havia tanto interesse em
discutir sobre o cereal. Talvez fosse um tanto óbvio escrever sobre o arroz, assim como o
seria sobre o trigo, a aveia ou o milho. De toda forma, o arroz foi um dos principais itens
no processo de diversificação agrícola ocorrido em fins do século XVIII, demonstrado
pelas pautas de exportação da América lusa. Quando citado em textos originais ou
traduzidos, normalmente o cereal era criticado, ou defendido justamente contra aquelas
críticas.
Tais textos não inauguraram a produção comercial de arroz em solo luso-
americano, mas foram um resultado daquelas mudanças no mercado mundial do produto
e das transformações no pensamento econômico português. Escreveu-se sobre agricultura
2
BERBEL, Marcia; MARQUESE, Rafael de B.; PARRON, Tâmis, op. cit., pp. 27-54; KOSELLECK,
Reinhart. “‘Espaço de experiência’ e ‘horizonte de expectativa’: duas categorias históricas” in Futuro
passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006, p.
317.
220
e sobre o arroz, pois havia condições mercantis que abriam possibilidades para a
agricultura portuguesa, ao mesmo tempo em que a valorização da terra, da agricultura
propriamente dita, fez daqueles assuntos algo valioso para as políticas imperiais. Os
textos, então, buscaram repensar aquela realidade material em novos moldes, com
novidades baseadas em experiências alheias, mas falharam em tal intento. Por um lado,
algumas das novidades aqui já existiam, como no caso dos engenhos visados por Hipólito
da Costa. Algumas das novidades não se adequavam à realidade colonial do cultivo de
arroz, como foi o caso do arado, que iria contra a lógica escravista da produção americana.
Por outro, não há certeza se os textos realmente foram lidos.
Mas houve outro resultado daqueles processos mais amplos. O arroz era um
cultivo presente em terreno luso-americano desde o século XVI, mas sua produção ampla
e comercial somente ganhou força em meados do século XVIII. Condicionantes materiais
e mentais foram trazidas à tona com vistas a explicar o salto produtivo. Não se trata de
definir qual delas teve maior peso, pois diversas objeções podem surgir para qualquer
argumentação. A Revolução Americana e o caos no mercado de arroz não explicam a
forma pela qual a produção ganhou força antes de 1776, apesar de fazê-lo para o período
posterior. Os escritos ilustrados que objetivaram difundir ideias sobre a economia podem
ter valorizado a produção agrícola, mas não explicam sozinhos os saltos vistos no cultivo.
Todavia, quando aliamos tais argumentos à situação econômica do império luso, marcada
pela queda da extração aurífera em meados do Setecentos e pela dificuldade de sustento
das importações, o desenvolvimento da produção comercial de arroz na América começa
a tomar contornos mais nítidos.
O arroz importado contribuía com a subsistência da população enquanto um cereal
alternativo, mas as importações foram prejudicadas pela diminuição do fluxo de metais
após 1760. Diversas regiões da colônia americana, sem contar alguns territórios do reino,
reuniam condições ambientais e sociais necessárias para o cultivo de arroz e havia a
necessidade de garantir esse suprimento à metrópole. As reformas ilustradas contribuíram
com a valorização da produção agrícola, do trabalho humano como um todo. Se o
movimento reformista em Portugal tomou força desde 1750, as exportações de arroz a
partir da América começaram a ganhar relevo, aproximadamente, após 1767; por outro
lado, a década de 1770 – quando estourou a Revolução nas colônias britânicas, marcou
aquele processo de “alavanca”, uma expressiva movimentação ascendente nas
exportações luso-americanas, substitutas das remessas norte-americanas. Tais fatores
221
também ofereceram oportunidade para o surgimento de diversas obras e manuais práticos
sobre a cultura de dezenas de cultivos, e entre eles, mesmo que com diminuta
participação, estava o arroz3.
Portanto, é dessa forma que buscamos analisar o arroz colonial no reformismo
ilustrado português. Aliando análises sobre ideias reformistas às condições ditadas pelo
mercado, acreditamos ter conseguido revelar alguns fatores que levaram à produção
comercial de arroz na América lusa e à produção de textos dedicados ao tema na
metrópole, o que também reforça a intrincada relação entre centro e periferias coloniais.
Não há como entender os desenvolvimentos em ambos os locais sem uma visão de
conjunto, que reforce o caráter integrado dos processos de então.
E não há como compreender o processo sem levar em conta aqueles aspectos mais
relacionados ao local, ao mundo produtivo. Buscamos fazer isso ao analisar o cultivo de
arroz em distintas partes da América portuguesa, no que, aliás, pudemos adentrar o debate
sobre o “arroz negro” e postular que a existência da rizicultura colonial não dependeu da
transferência intacta de conhecimentos oeste-africanos. Aspectos mais amplos –
relacionados ao mercado e à política imperial – se aliaram a análises mais circunscritas,
na busca de uma explicação mais abrangente sobre o cultivo na América.
Com tais fatores formando nosso quadro explicativo, entendemos como foi
possível ao visconde de Vila Nova da Cerveira, citado em nossa introdução, revelar por
meio de um escrito o bom momento vivenciado pela rizicultura colonial portuguesa,
destacando o atendimento da demanda lusa e a criação de exportações. Sinal de que, já
em 1781, aqueles processos evidenciados haviam tornado possível o cultivo comercial na
América.
No final das contas, percebemos bem o caráter dessa cultura: o arroz aqui
analisado é, sem dúvida, colonial. Os discursos médicos o viam como nocivo e
influenciavam a escrita e escolhas de alguns ilustrados, por mais que outros tentassem
defendê-lo. Por outro lado, ele exigia uma quantidade expressiva de trabalho,
demandando muito de camponeses ou escravos. Se a agricultura era vista, para as colônias
3
Sobre a exportação de arroz a partir da América lusa, ver nosso gráfico na página 193.
222
e segundo dom Rodrigo, como “mais proveitosa do que as artes”, com mais sentido ainda
o espaço da rizicultura – “nociva” – era colonial4.
Podia gerar lucros aos donos de plantations, ou uma diminuta renda aos pequenos
lavradores, mas, como apontou Pierre Chaunu, ela era “fruto da miséria”, no que
certamente contava o ambiente de cultivo e o trabalho opressor, além de prover um
alimento essencial para os pobres num período em que o crescimento demográfico foi
evidente5.
Mesmo que o arroz não fosse vital para o mundo ocidental, vemos como o seu
desenvolvimento comercial na América portuguesa envolveu processos distintos,
entrelaçando a realidade lusa numa lógica mercantil e de emulação de ideias, conectando-
a a outros espaços europeus, com temporalidades coloniais distintas. Mesmo não sendo
vital, seu desenvolvimento nos auxilia a compreender processos mais amplos daquele
período, relacionados a dinâmicas demográficas e econômicas que então se estabeleciam.
Auxilia a compreender como tal cultivo podia ser parte relevante da vida material de
populações do Novo e Velho Mundo e fazer parte de projetos capitalistas dedicados à sua
produção6.
Seria interessante, no fim das contas, compreender as minúcias da produção com
mais cuidado, em uma perspectiva que conectasse distintas regiões de cultivo e diversas
formas de trabalho. Os debates aqui feitos auxiliariam na resolução desse novo problema,
bem como seriam desenvolvidos com mais particularidade. Mas isso é tema para outra
ocasião.
4
Ver COUTINHO, dom Rodrigo de S. “Memória sobre o melhoramento dos domínios de Sua Majestade
na América (1797 ou 1798)” in Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II.
Introdução e direção de edição de Andrée M. D. Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. 54.
5
CHAUNU, Pierre. A História como ciência social: a duração, o espaço e o homem na época moderna.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976, p. 217.
6
Ver COCLANIS, Peter. The shadow of a dream: economic life and death in the South Carolina Low
Country, 1670-1920. New York/Oxford: Oxford University Press, 1989, p. 133.
223
FONTES LIDAS E CITADAS
224
COSTA, José Inácio da. “Memória agronómica relativa ao concelho de Chaves” in
Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento
da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815).
Tomo I. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1990.
FEIJÓ, João da S. “Ensaio económico sobre as Ilhas de Cabo Verde em 1797” in
Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento
da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815).
Tomo V. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1991.
________. “Memória sobre a urzela de Cabo Verde” in Memórias económicas da
Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e
da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo V. Direção de edição de
José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1991.
FONSECA, Francisco P. R. da. “Descrição económica do território que vulgarmente se
chama Alto-Douro” in Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa,
para o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas
conquistas (1789-1815). Tomo III. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa:
Banco de Portugal, 1991.
LOUREIRO, João de. “Da transplantação das árvores mais úteis de países remotos” in
Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento
da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815).
Tomo I. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1990.
LOUREIRO, Pe. João de. “Memória sobre o algodão, sua cultura, e fábrica” in Memórias
económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento da
agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo
I. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1990.
MESQUITA, João Manuel de C. de. “Memória sobre a cultura, e utilidade dos nabos na
comarca de Trancoso” in Memórias económicas da Academia Real das Ciências de
Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas
conquistas (1789-1815). Tomo V. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa:
Banco de Portugal, 1991.
OLIVEIRA, Joaquim Pedro G. de. “Extracto das posturas da vila de Azeitão, comarca de
Setúbal” in Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o
adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas
(1789-1815). Tomo III. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de
Portugal, 1991.
PORTUGAL, Alexandre António das N. “Apontamentos sobre as queimadas enquanto
prejudiciais à agricultura” in Memórias económicas da Academia Real das Ciências de
Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas
conquistas (1789-1815). Tomo III. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa:
Banco de Portugal, 1991.
PORTUGAL, Tomás António de Vila-Nova. “Memória sobre a cultura dos terrenos
baldios que há no termo da vila de Ourém” in Memórias económicas da Academia Real
das Ciências de Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em
Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo II. Direção de edição de José Luís
Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1991.
225
________. “Memória sobre os juros relativamente à cultura das terras” in Memórias
económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento da
agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo
III. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1991.
________. “Observações que seria útil fazerem-se para a descrição económica da
comarca de Setúbal” in Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa,
para o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas
conquistas (1789-1815). Tomo III. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa:
Banco de Portugal, 1991.
________. “Observações sobre o mapa da povoação do termo da vila de Azeitão” in
Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento
da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815).
Tomo III. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1991.
RIBEIRO, José P. “Análise química de várias raízes para extrair farinha, ou polvilhos, e
remetida à Academia” in Memórias económicas da Academia Real das Ciências de
Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas
conquistas (1789-1815). Tomo IV. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa:
Banco de Portugal, 1991.
SÁ, José António de. “Descrição económica da Torre de Moncorvo” in Memórias
económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento da
agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo
III. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1991.
SEQUEIRA, Joaquim Pedro F. de. “Memória acerca da cultura, e utilidade dos
castanheiros na comarca de Portalegre” in Memórias económicas da Academia Real das
Ciências de Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em
Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo II. Direção de edição de José Luís
Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1991.
________. “Memória sobre a introdução das gadanhas alemãs, e flamenga em Portugal”
in Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento
da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815).
Tomo V. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1991.
________. “Memória sobre as azinheiras, sovereiras, e carvalhos da província do
Alentejo, onde se trata de sua cultura, e usos, e dos melhoramentos, que no estado actual
podem ter” in Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o
adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas
(1789-1815). Tomo II. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de
Portugal, 1991.
SERRA, José C. da. “Discurso preliminar” in Memórias económicas da Academia Real
das Ciências de Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em
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considerada desde o tempo dos romanos até ao presente. 1782” in Memórias económicas
da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes,
226
e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo V. Direção de edição
de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1991.
________. “Observações botânico-meteorológicas do ano de 1800 feitas em Tomar” in
Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento
da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815).
Tomo V. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1991.
SILVEIRA, António Henriques da. “Racional discurso sobre a agricultura, e população
da província de Alentejo” in Memórias económicas da Academia Real das Ciências de
Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas
conquistas (1789-1815). Tomo I. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco
de Portugal, 1990.
TELES, Vicente C. de S. S. “Memória sobre a cultura do rícino em Portugal, e
manufactura do seu óleo” in Memórias económicas da Academia Real das Ciências de
Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas
conquistas (1789-1815). Tomo III. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa:
Banco de Portugal, 1991.
TRIGOSO, Sebastião Francisco M. “Memória sobre os terrenos abertos, o seu prejuízo
na agricultura, e sobre os diferentes métodos de tapumes” in Memórias económicas da
Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e
da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo V. Direção de edição de
José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1991.
VANDELLI, Domingos. “Memória sobre a agricultura deste reino, e das suas conquistas”
in Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento
da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815).
Tomo I. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1990.
________. “Memória sobre a preferência que em Portugal se deve dar à agricultura sobre
as fábricas” in Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o
adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas
(1789-1815). Tomo I. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de
Portugal, 1990.
________. “Memória sobre algumas produções naturais das conquistas, as quais ou são
pouco conhecidas, ou não se aproveitam” in Memórias económicas da Academia Real
das Ciências de Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em
Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo I. Direção de edição de José Luís
Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1990.
________. “Memória sobre algumas produções naturais deste reino, das quais se poderia
tirar utilidade” in Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para
o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas
(1789-1815). Tomo I. Direção de edição de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de
Portugal, 1990.
________. “Memória sobre as produções naturais do reino, e das conquistas, primeiras
matérias de diferentes fábricas, ou manufacturas” in Memórias económicas da Academia
Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e da
indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo I. Direção de edição de José
Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1990.
227
________. “Memória sobre o encanamento do rio Mondego” in Memórias económicas
da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes,
e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Tomo III. Direção de edição
de José Luís Cardoso. Lisboa: Banco de Portugal, 1991.
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e de ordem de Sua Alteza Real o Principe Regente, Nosso Senhor. Colligido de Memorias
Estrangeiras por Fr. José Mariano da Conceição Velloso. Tomo IV. Especiarias. Parte I
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________. O Fazendeiro do Brazil, Cultivador, Melhorado na economia rural dos
generos já cultivados, e de outros, que se podem introduzir; e nas fabricas, que lhe são
proprias, segundo o melhor, que se tem escrito a este assumpto. Debaixo dos auspicios,
e de ordem de Sua Alteza Real o Principe Regente, Nosso Senhor. Collegido de Memorias
Estrangeiras por Fr. José Mariano da Conceição Velloso. Menor Reformado da
Provincia da Conceição do Rio de Janeiro, etc. Tomo V. Filatura. Parte I [...]. Lisboa:
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TELLES, Vicente C. de S. S. Memoria sobre a cultura do arros em Portugal, e suas
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do Arco do Cego, 1800.
Outras fontes
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da legislação portuguesa desde a ultima compilação das ordenações, redegida pelo
desembargador Antonio Delgado da Silva. Legislação de 1775 a 1790. Lisboa:
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portuguesa do desembargador Antonio Delgado da Silva. Pelo mesmo. legislação de
1791 a 1820. Lisboa: Typographia de L. C. da Cunha, 1847.
“Aviso prohibindo a exportação do arroz” in SILVA, Antonio D. da. Supplemento à
collecção da legislação portuguesa do desembargador Antonio Delgado da Silva. Pelo
mesmo. legislação de 1791 a 1820. Lisboa: Typographia de L. C. da Cunha, 1847.
BURLAMAQUI, Frederico Leopoldo Cesar. Manual da cultura do arroz. 6º manual
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reciprocos se tem feito por este segundo reyno assim nos actos de parlamento que
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para fraudar os tratados do comercio entre as duas nações” in Escritos econômicos de
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interessantes, onde utilmente são empregados; em que se propõe o estabelecimento de
uma escola, e corpo de hidráulicos, para os empregar utilmente, e finalmente se apontam
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______. “Discurso sobre a verdadeira influência das minas e dos metais preciosos na
indústria das nações que as possuem, e especialmente da portuguesa (1789)” in Textos
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de Andrée Mansuy Diniz Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993.
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de Andrée Mansuy Diniz Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993.
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XAVIER, Paulo. Hipólito José da Costa: um observador econômico na América. Porto
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______. “Observações e reflexões sobre um trabalho de medidas de terreno e produções
do Ribatejo (1793)” in Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo I.
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Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção
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seda em Trás-os-Montes” in Textos políticos, económicos e financeiros (1783-1811).
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Alentejo: criação de uma Caixa de crédito ou Banco particular (13-06-1798)” in Textos
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económicos e financeiros (1783-1811). Tomo II. Introdução e direção de edição de
Andrée Mansuy Diniz Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993.
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de Andrée Mansuy Diniz Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993.
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Tomo I. Introdução e direção de edição de Andrée Mansuy Diniz Silva. Lisboa: Banco
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Andrée Mansuy Diniz Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993.
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“Decreto isemptando de quaesquer emolumentos o arroz do Brasil que entrar nos portos
deste Reino” in SILVA, Antonio D. da. Supplemento à collecção da legislação
portuguesa do desembargador Antonio Delgado da Silva. Pelo mesmo. Anno de 1750 a
1762. Lisboa: Typographia de L. C. da Cunha, 1842.
“Decreto isemptando por dez annos de direitos o arroz que vier do Brazil” in SILVA,
Antonio D. da. Supplemento à collecção da legislação portuguesa. do desembargador
Antonio Delgado da Silva. Pelo mesmo. Anno de 1763 a 1790. Lisboa: Typographia de
L. C. da Cunha, 1844.
“Decreto isentando por mais cinco annos de Direitos o arroz do Brazil importado neste
Reino” in SILVA, Antonio D. da. Collecção da legislação portugueza desde a ultima
compilação das ordenações, oferecida a El Rei nosso senhor, pelo desembargador
Antonio Delgado da Silva. Legislação de 1802 a 1810. Lisboa: Typographia Maigrense,
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